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Economia sem truques

O mundo a partir das escolhas de cada


um

Carlos Eduardo Gonçalves e Bernardo Guimarães


Índice
Prólogo
1. O pobre não é burro
2. A feia fumaça e o casaco verde-chiclete
3. A lei que proíbe cobrar menos
4. A lei que aumenta o salário
5. De caçadores-coletores a guias de turismo lunar
6. E eu vos declaro marido e mulheres
7. O preço do futuro
8. Vegetarianos, preços e bois
9. As árvores da Ilha de Páscoa e as ruas de Londres
10. O mercado das almas
11. 289 dias
12. O poder mágico da cerveja
13. Casas esquisitas
14. As cigarras
15. Os ombros dos gigantes
16. O milagre da transformação do suco de laranja em vinho
17. O mercado de promessas
18. Faxineiro ou aviãozinho
19. Pedreiros e políticos
20. As leis da economágica
Índice didático

Prólogo
1. Escolhas
2. Externalidades
3. Preços
4. Salários
5. Produção e empregos
6. Restrição orcamentária
7. Taxa de juros e trocas intertemporais
8. Sistema de preços e equilíbrio
9. Falhas de Mercado
10. Desigualdade
11. Falhas de governo
12. Noções de econometria
13. Taxação
14. Previdência
15. Educação
16. Comércio
17. Crédito
18. Mercados ilícitos
19. Instituições políticas
20. As leis da economágica
Prólogo
Este é um livro que ensina economia a partir de seus princípios mais básicos, usando exemplos lúdicos, mas
voltado a questões práticas e importantes. Ao nosso ver, a ciência econômica moderna fornece instrumentos que nos
permitem compreender os fenômenos socioeconômicos e encontrar soluções que melhoram concretamente a vida
das pessoas. Contudo, talvez pelo caráter hermético das técnicas estatísticas e matemáticas empregadas ou pelo
linguajar específico dos economistas acadêmicos, esse entendimento normalmente não chega ao público. Nós
acreditamos que é possível ensinar a todos aqueles interessados nos debates sobre políticas públicas a maneira do
cientista econômico analisar os diversos fenômenos sociais. Este livro busca justamente estabelecer esse elo entre o
economista acadêmico e a discussão cotidiana.
O livro desenvolve e aplica a questões concretas o substrato da lógica econômica, buscando consolidar ao longo
dos capítulos os pilares dessa lógica ao invés de entrar em detalhes específicos das discussões dos jornais. Aqui, o
leitor não encontrará nada sobre a reunião do Copom, nem os últimos dados da cotação do dólar. Para ensinar
economia, falamos de coisas como o colapso da civilização que habitava a Ilha da Páscoa, a fabricação de vinho
francês a partir do suco de laranja, e as casas com janelas cobertas por tijolos. Não parece economia? Apenas por
enquanto.
Em termos de estrutura, o livro está dividido em duas partes. A primeira lança as bases teóricas do pensamento
econômico moderno, enquanto a segunda se dedica a aplicar esta lógica, este arcabouço de raciocínio, ao
entendimento de temas particularmente caros ao país, como educação, comércio e mercados de crédito. Os doze
primeiros capítulos tratam dos fundamentos, enquanto os oito capítulos restantes focam em aplicações.
O ponto de partida de toda nossa análise está nas escolhas das pessoas e em sua interação com o mundo ao
redor. Raciocinando a partir das escolhas individuais, mostraremos como são determinados os preços, os salários, os
empregos e a produção da economia. Falaremos sobre a feia fumaça que sobe apagando as estrelas, as leis que
apenas parecem aumentar os salários, o problema do pai do Woody Allen, e muitos outros casos. Em seguida,
explicaremos quando e porque o governo deve intervir na economia e os princípios básicos que nortearão as
decisões sobre políticas públicas. Ficará claro porque o governo não deve interferir com os impactos sobre o preço
do ouro de uma charge ofensiva a Maomé feita por um cartunista dinamarquês, e porque o governo deve intervir a
fim de reduzir o congestionamento nas ruas de Londres.
Entendida a teoria, passaremos a questões ligadas ao debate corrente no Brasil, como tributação, e instituições
políticas. Não falaremos sobre as particularidades das reformas discutidas na conjuntura, o que importa para nós é a
lógica econômica por trás de cada assunto. Por exemplo, se queremos saber sobre as políticas públicas adequadas
para a previdência, vamos antes entender o problema das cigarras e das formigas. Isso, no entanto, não significa que
trataremos desses temas de maneira abstrata. Para discutir estas questões, é necessário atentar para a realidade, e o
livro está recheado de dados reais e de histórias concretas como a de um banqueiro que ganhou o Prêmio Nobel da
Paz.
Algumas passagens do livro podem parecer óbvias, mas o óbvio com freqüência desemboca no surpreendente.
Por exemplo, o fato de o traficante de drogas não emitir notas fiscais nas suas vendas é óbvio, mas é bem menos
claro que é por causa disto que há tanta violência associada ao tráfico.
O Brasil tem constantemente recorrido a truques de economágica para tentar resolver seus problemas,
implementando políticas públicas que tentam remediá-los sem tocar em suas causas fundamentais. Claro está, os
coelhos não têm saído da cartola. Ao longo deste livro, usaremos o arcabouço econômico tanto para desvendar os
truques da economágica, como para pensar e propor soluções que de fato funcionem.
1. O pobre não é burro
Bangladesh é um país muito pobre, bem mais pobre que o Brasil. É também um dos maiores exportadores do
mundo no setor têxtil, onde se empregam mais de um milhão de pessoas. Em 1992, mais de 50 mil destes
empregados eram crianças de até 14 anos, meninas em sua maioria. Crianças que não estavam estudando nem
brincando, crianças cuja infância se resumia a produzir roupas que seriam vestidas por estrangeiros, e cujo salário
mensal não era suficiente para pagar a conta de alguns jantares dos estrangeiros que vestiam as roupas por elas
produzidas. O trabalho infantil era proibido por lei em Bangladesh, mas a lei não pegou.
Foi então que uma lei americana proibiu a importação para os Estados Unidos de produtos que utilizavam
trabalho infantil. A lei americana pegou e, consequentemente, o trabalho infantil nas indústrias têxteis de
Bangladesh foi drasticamente reduzido. Cerca de 50 mil crianças foram dispensadas da dura vida nas fábricas.
Mas por que será que as crianças estavam trabalhando nas fábricas? Seria essa uma escolha de pais cruéis,
imposta às crianças indefesas? Bem, pais normalmente se importam com os filhos, e ainda que alguns não se
importem, é difícil imaginar que 50 mil crianças estivessem sendo escravizadas pelos seus pais. O que estava
motivando esta escolha?
Na nossa vida, estamos sempre buscando escolher o que é melhor para nós. O processo decisório não é fácil,
simples ou indolor, e o ato da escolha não raro causa angústias, suscita dúvidas e é penoso para quem decide. Mas,
apesar disto, a verdade é que nós, você e a população pobre de Bangladesh estamos todos sempre escolhendo,
tentando buscar o melhor para nossas vidas. Até mesmo quando optamos por delegar nossas escolhas a alguém,
estamos decidindo não escolher, e arcando com os custos e benefícios desta opção.
Mas estas escolhas não são totalmente livres. Inúmeras restrições as condicionam, delimitam e influenciam,
como, por exemplo: (i) as limitações de ordem financeira que todos enfrentamos (o salário de professor universitário
não nos permite escolher viajar para o exterior de primeira classe); (ii) os impedimentos de natureza jurídico-legal
que nos cercam (podemos acabar presos se, para comprarmos o ticket de primeira classe, resolvemos assaltar um
banqueiro em sua mansão); (iii) a nossa falta de informação sobre diversos temas (quanto dinheiro será que o
banqueiro guarda em sua casa? Ela é fortemente vigiada por câmeras de segurança?), (iv) as normas morais que
regem nosso padrão de comportamento social (mesmo se a mansão estiver desprotegida e a probabilidade de sermos
pegos pela polícia for muito baixa, não achamos correta a escolha de assaltar o banqueiro); etc.
Em resumo, as escolhas são em larga medida determinadas pelo conjunto de restrições. Entretanto, estar restrito
em suas opções não é o mesmo que não ter opção, é analiticamente diferente de não escolher. As crianças e seus pais
em Bangladesh não escolheram o infeliz destino de trabalharem em tenra idade e sob condições ruins por mera
ignorância. O pobre não é burro. Se eles assim o fizeram foi por ser esta sua melhor opção disponível entre as várias
e péssimas alternativas possíveis.
O problema das crianças em Bangladesh era o conjunto de alternativas disponíveis, e não a escolha de trabalhar
na fábrica em si. Mas por que esta distinção importa?
Em 1992 mais de 50 mil crianças estavam escolhendo trabalhar para a indústria têxtil de Bangladesh, escolha
esta que a lei americana as impediu de manter. As conseqüências da lei foram trágicas para as crianças. Elas não
deixaram o trabalho para ingressar na escola, nem tampouco passaram a curtir as tardes brincando nos parques. A
realidade mostrou-se menos idílica: elas se tornaram prostitutas, trombadinhas, ou foram trabalhar quebrando pedras
na pedreira. Em suma, saíram da fábrica para se envolver em atividades ainda piores. Além disto, algumas mães
tiveram que abandonar seus empregos para cuidar dos filhos, acentuando o problema de pobreza destas famílias.
Se os propositores da lei proibindo a importação de produtos que utilizam trabalho infantil tivessem pensado
que a escolha prévia das crianças era fruto de um restrito conjunto de alternativas disponíveis e não de burrice, eles
não teriam se surpreendido com o fiasco que se mostrou a lei. Afinal de contas, se fosse uma opção viável para as
famílias pobres de Bangladesh mandarem seus filhos para as escolas e parques, elas o estariam fazendo antes da
entrada em vigor da lei norte-americana.
Não demorou para que as conseqüências negativas da lei fossem percebidas e, em 1995, após dois anos de
penosa negociação, um novo e melhor acordo foi firmado entre a associação das industrias têxteis de Bangladesh e a
UNICEF. Este acordo tinha como ponto principal prover melhores alternativas às crianças. O documento
explicitamente solicitava que, para o bem das próprias crianças, as fábricas não as demitissem até que estas tivessem
disponível uma alternativa melhor. Com o apoio financeiro internacional e trabalho das organizações locais,
alternativas começaram a ser desenvolvidas. A boa noticia é que já se detectam melhoras.[1]
A todo instante, dezenas de indivíduos escolhem ser assaltantes, entrar na prostituição, trabalhar incontáveis
horas no canavial sob sol inclemente, ou em condições precárias na indústria têxtil. Nenhuma destas escolhas nos
soam como minimamente desejáveis. A muitos de nós elas causarão, com plenitude de razão, indignação e revolta
contra o grau de injustiça social que refletem. Quais as escolhas que se apresentam, por exemplo, a um indivíduo
nascido em uma favela violenta de uma grande metrópole ou no interior de um estado pobre do Nordeste brasileiro?
Saber que ele tentará escolher da melhor maneira possível dentre suas opções, todas muito ruins, não soa nada
animador, mas é importante ter em conta que o problema de fundo não se resolverá atacando as escolhas em si, e
sim melhorando o leque de opções disponíveis para os mais desprovidos. Alterar forçosamente as escolhas destas
pessoas, ao invés de focar na melhora das possíveis alternativas, nada resolve e provavelmente apenas piorará uma
situação que já é em si ruim.
Semelhante idéia se aplica ao caso da prostituição voluntária de adultos. Todo ano vários turistas desembarcam
no Brasil motivados pelo clima, pelas praias e pelo turismo sexual. Ao mesmo tempo, há inúmeras campanhas
contra o turismo sexual em várias cidades onde a atividade turística é parte relevante da economia local.
A escolha da prostituição como profissão está, de acordo com alguns especialistas, ligada a complicados fatores
familiares e psicológicos. Mas, como no exemplo anterior, parte da explicação para a decisão de vender o corpo
decorre da falta de alternativas melhores e não de ignorância sobre o fardo da profissão. Sendo assim, proibir a
prostituição de adultos pode agradar aos que querem uma cidade livre de prostitutas, mas não vai contribuir para
melhorar a vida delas. Por quê? Porque a proibição não cria magicamente postos de trabalho em outros lugares, não
aumenta o nível educacional da prostituta, e nem transfere renda para ela poder alimentar seus filhos. Como
anteriormente, entender que uma escolha que julgamos ruim decorre, com alta probabilidade, das alternativas ainda
piores a que uma pessoa tem acesso, é primordial para desenhar estratégias de políticas públicas que gerem bons
resultados.
Neste livro, estaremos sempre raciocinando a partir das escolhas individuais. A lógica empregada pela ciência
econômica moderna para analisar os diversos fenômenos que nos cercam centra-se nas escolhas dos indivíduos e nas
restrições que afetam e limitam estas escolhas. O que motiva esta abordagem metodológica?
Em um plano mais teórico, são dois os motivos que nos levam a partir do pressuposto que o indivíduo escolhe o
que é melhor pra si. A primeira é mais filosófica e tem a ver com a ideia primária de respeito às preferências e
liberdades individuais. Os nossos pais gostam mais de picadinho com jiló do que de sashimi de salmão. Esta
preferência nos soa estranha, esquisita, mas forçá-los a comer o sashimi não vai ajudá-los, não vai torná-los mais
felizes.
A segunda é mais prática e está relacionada ao fato de os indivíduos terem melhor informação a respeito de suas
alternativas e de toda sorte de restrições que os acometem, do que o têm governante, o político e o estudioso. O
trabalhador de Bangladesh e a prostituta brasileira conhecem melhor do que ninguém o seu mundo e as suas opções.
Apesar de na grande maioria dos casos ter mais opções é melhor do que ter menos, existem certas
circunstâncias onde restringir seu próprio campo de escolha pode acabar sendo benéfico. Em geral, isto é verdade
nas situações onde é difícil resistir ao que chamaremos genericamente de “tentações”, mesmo sabendo que ceder a
elas pode gerar perdas significativas para o indivíduo.
Ulisses, o navegador da Odisséia de Homero, mostrou ter entendido bem esta questão. Ao navegar por mares
povoados por sereias, sedutoras porém mortais, e sabendo que não poderia resistir a seu chamado uma vez escutada
a doce melodia de seu canto, ele pede a seus auxiliares que amarrem suas próprias mãos à haste do navio.
Basicamente, ele pede, para seu próprio bem, que lhe retirem uma opção: a de mergulhar para encontrar as sereias.
Ao amarrar as próprias mãos, Ulisses sai ileso da aventura.
Da mesma forma, em casa de diabético, é melhor não entrar doce. Pode ser difícil resistir à tentação de comer
um bombom, mas é extremamente importante que o diabético não os saboreie. Alguns diabéticos mais racionais e
controlados não vão comer doce mesmo que haja uma caixa de deliciosos chocolates na estante da sala. Mas retirar
esta opção do alcance do diabético pode ajuda-lo a não ceder a esta tentação. Um dos autores deste livro tem
dificuldades enormes de não comprar livros ao entrar em uma boa livraria. Uma saída que ele encontrou para evitar
gastar parte importante do seu orçamento com esta compulsão foi buscar passar bem longe da livraria - amarrando
as próprias mãos (pés?) como Ulisses. O nó não está se mostrando dos mais firmes, contudo, pois uma vez no
shopping center onde se encontra a dita livraria, é quase impossível para ele manter o compromisso de não entrar (e
é impossível entrar livraria e sair sem livros!). Sua próxima tentativa é abolir os jantares de fim de semana em
restaurantes do shopping onde se acha a famigerada livraria.
Mas mesmo nos poucos casos onde o indivíduo escolhe em prejuízo próprio, é importante analisar os
fenômenos socioeconômicos a partir de sua decisão individual. Quando levamos a sério a ideia de que trabalhadores,
consumidores, empresários, cidadãos e governantes estão sempre escolhendo e reagindo aos incentivos, fica muito
mais fácil entender o funcionamento da economia e analisar o impacto de políticas públicas. Por outro lado, quando
se abandona este pressuposto, descamba-se para o que apelidamos aqui de economágica, com sérias consequências
adversas para a economia.
Nossas escolhas se alteram de acordo com as condições do ambiente que nos cerca, ou mais precisamente, com
as diversas variáveis que afetam os custos e os benefícios de cada uma de nossas possíveis escolhas. Essas mudanças
em face de modificações no ambiente estão na raiz do entendimento do funcionamento de uma economia de
mercado.
O exemplo mais típico e usual de reação a mudanças no ambiente tem a ver com o impacto de variações dos
preços dos bens que consumimos. Quando sobe o preço da manteiga, por exemplo, os consumidores aumentam a
procura por margarinas, um substituto razoavelmente próximo para muitos. Já quando o pãozinho francês fica mais
caro na padaria e as pessoas passam a consumi-lo em menor escala, cai também a demanda por manteiga, dado que
ambos são em geral consumidos em conjunto.
Além de escolher o que compramos, escolhemos trabalhar ou não, como e onde.
Em um feriado prolongado de muito calor, quando a volta de milhares de carros do litoral congestiona as
estradas, rapidamente aparecem, como que surgidos do nada, grupos de vendedores ambulantes de água e
refrigerante. Essas pessoas estão escolhendo trabalhar no feriado, reagindo à oportunidade temporária de ganhos
mais altos propiciada pela combinação de calor e engarrafamento.
Nossas opções de trabalho dependem de nossa formação, que também é fruto de uma escolha. Todos os anos,
entre 800 e 1500 alunos saídos dos cursos de graduação em economia prestam uma espécie de vestibular para
ingressar nos programas de mestrado de economia oferecidos pelas diversas escolas do país. Em anos em que o
mercado de trabalho para economistas juniores encontra-se aquecido, muitos deles deixam de lado a escolha de
estudar para a prova de ingresso no mestrado e decidem entrar no mercado de trabalho. Nestes anos, os candidatos
inscritos para a prova nacional do mestrado em economia raramente passam de 1000. Mas quando a economia do
país vai mal, e o mercado de trabalho por conseqüência torna-se temporariamente menos atraente para os formandos
da graduação em economia, a demanda pelos cursos de mestrado cresce vigorosamente, podendo alcançar o teto do
intervalo acima sugerido. Os recém formados estão escolhendo de acordo com as condições do ambiente que os
cerca, adiando a entrada no mercado de trabalho para um momento mais propício, e aproveitando o interregno para
aprimorar suas habilidades no curso de mestrado.
Produtores e vendedores escolhem produzir e vender de acordo com as características da demanda. Ambulantes
e pequenos comerciantes encontrados nas calçadas das grandes ruas e avenidas, que costumeiramente ofertam ao
público passante múltiplas bijuterias, capas de celular, e até funcionam como intermediários financeiros comprando
tickets refeição, rapidamente reaparecem nas esquinas com pencas de guarda-chuvas, de R$ 5 e R$ 10, quando a
chuva pega o transeunte no contra-pé oferecendo uma boa oportunidade de lucro para os vendedores. A decisão do
que ofertar dos ambulantes não é, portanto, rígida: ela muda quando muda o ambiente.
O inchaço dos departamentos financeiros das empresas em países que vivenciam períodos de inflações altas e
crônicas é outro exemplo de reação às condições do ambiente. Quando a inflação é muito alta, tão ou mais
importante que produzir com qualidade, ter uma boa estratégia de marketing, selecionar com cuidado os
fornecedores, ou desenvolver novos produtos, é ter um departamento de finanças que seja bastante eficiente em
proteger as receitas da firma da erosão inflacionária, utilizando para tal os mais diversos instrumentos financeiros
disponíveis. Mas quando a inflação cai, o tamanho e a importância estratégica dos departamentos de finanças nas
empresas diminui a olhos vistos. Mais recursos (humanos e financeiros) passam então a ser alocados para os
departamentos de criação de novos produtos, ou para os de vendas. Empresários e acionistas estão constantemente
decidindo em que departamento focar mais recursos em função da alteração do entorno macroeconômico.
Nos Estados Unidos, um país de muitos obesos, existe uma quantidade enorme de lojas ofertando roupas apenas
para pessoas que pesam mais de uma tonelada; no Brasil, onde o ambiente é outro – com menos obesos – estas lojas
são muito mais raras. A decisão sobre o que produzir depende das características dos consumidores.
Os políticos, representantes do povo, também estão escolhendo. Nas democracias do início do século XIX,
apenas os ricos e os instruídos votavam. As escolhas das plataformas de campanha dos políticos levavam isto em
consideração e, consequentemente eram ainda muito incipientes programas de transferência de renda aos pobres, ou
escolas públicas gratuitas. Mas então se deu uma mudança de ambiente: os pobres passaram a votar também. O que
aconteceu com as escolhas dos políticos? Elas mudaram de acordo com a mudança dos incentivos. Se o pobre vota,
os olhos do político a ele se voltam. E com a extensão do sufrágio, os governos começaram a financiar escolas,
hospitais públicos e programas de transferência direta de renda com impostos (majoritariamente pagos pelos mais
ricos).
De maneira similar, o aumento da longevidade das pessoas aumentou ao longo do século XX a participação de
idosos na população total. Apoiar programas de transferência de renda para um grupo amplo de eleitores – os idosos
– foi-se tornando cada vez mais uma escolha interessante para os políticos, e deu-se como consequência um
aumento dos gastos públicos com pensões na segunda metade do século XX.
Em resumo, as pessoas estão escolhendo a todo instante. No entanto, como vivemos em sociedade, decisões
individuais frequentemente geram consequências que não se limitam a quem as toma, afetando outros no seu
entorno de maneira negativa ou positiva. Este fato gera importantes consequências econômicas e é o tema do nosso
próximo capítulo.
2. A feia fumaça e o casaco verde-chiclete
É da escritora americana Fran Lebowitz a frase: “o seu direito de usar um casaco de poliéster verde-chiclete
termina onde começam os direitos do meu olho”. Se ela fosse economista, provavelmente exporia o mesmo
pensamento de maneira diferente, ressaltando que nossas escolhas podem afetar os outros. No caso específico, que a
roupa que escolhemos propicia uma visão agradável ou não aos olhos daqueles que nos vêem passar. Sim, a frase
não soaria muito divertida, mas chamaria atenção para o fato de que embora estejamos sempre escolhendo o que
preferimos, não necessariamente estamos escolhendo o que é o melhor levando-se em conta todas as pessoas
envolvidas e afetadas pela nossa decisão.
Caetano Veloso, na música Sampa, apresenta queixa contra “a feia fumaça que sobe apagando as estrelas”.
Quando as fábricas poluentes e os donos de automóveis velhos escolhem lançar no ar enormes nuvens de fumaça
negra, o nosso céu fica mais triste e o ar menos saudável. No capítulo 1, argumentamos que interferir diretamente
nas escolhas dos indivíduos lhes era prejudicial. Mas e neste caso, devemos respeitar a decisão individual das
empresas de poluir o ar?
Nosso bom senso nos diz que não, e ele está correto. Mas é importante entender exatamente porque. O diferente
aqui em relação aos exemplos do capítulo anterior é que a emissão de fumaça gera um dano para os outros que não é
ressarcido pelos agentes poluidores.
Quando decidimos, comparamos os custos e os benefícios que obteremos em cada uma das alternativas que se
nos apresentam. Entretanto, como estamos interagindo o tempo todo em sociedade, às vezes os custos e benefícios
das nossas escolhas recaem sobre outros, seja de maneira positiva, ou de maneira negativa. A estes impactos da
escolha individual, que transcendem os limites do indivíduo, os economistas dão o nome de “externalidades”.
Nossa escolha de sujar ou limpar nossa casa deve ser respeitada, pois arcamos com todos os custos e
conseqüências desta opção. A nossa decisão de sujar o mundo, poluindo o ar, não. Ela não pode receber o mesmo
tratamento, pois os custos de um mundo mais poluído não incidem apenas sobre quem decide poluir.
Quando uma empresa produtora de papel lança dejetos tóxicos oriundos do processo de produção em um rio,
matando seus peixes e contaminando sua água, sua ação gera prejuízos para a população ribeirinha que nele costuma
pescar, recolher água doce, ou banhar-se, e até mesmo para o cidadão que fica desagradado ao presenciar a triste
cena de dejetos ou espuma química navegando rio abaixo. O ato da empresa prejudica pessoas não envolvidas na
decisão de poluir. Ele gera externalidades negativas.
Também há uma externalidade negativa quando um proprietário de terras do Mato Grosso promove uma
queimada em seu terreno com vistas a abrir espaço para futuras plantações. Ao fazê-lo, ele lança no ar uma
quantidade de gás carbônico que leva a uma deterioração da qualidade de vida de outras pessoas. É verdade que a
pior qualidade do ar também afeta o proprietário, mas isto não constitui uma externalidade negativa. Externalidade é
apenas a parte do impacto que incide sobre os outros.
E os exemplos não param por aí: jogar bituca de cigarro pela janela; não desligar o celular no cinema; andar no
ônibus lotado sem usar desodorante; dirigir perigosamente; sair de carro em um horário de trânsito intenso
(aumentando o tráfego para os que já estão tentando chegar no trabalho); entrar no elevador e apertar o sétimo
quando alguém no elevador se dirige ao décimo andar (e, portanto, é “atrasado” pela sua parada no sétimo); roubar;
conversar alto na biblioteca; buzinar no trânsito; fumar em lugar fechado, são todos casos de externalidades
negativas. São instâncias onde a ação privada afeta adversamente o bem-estar de outros.
O fato de uma ação provocar externalidades negativas não significa que ela não deva ser tomada. Por exemplo,
a ambulância que passa correndo na minha frente para chegar um pouco antes ao seu destino atrasa a minha viagem
em alguns segundos. Mas os segundos para a pessoa que precisa de atendimento médico são mais importantes do
que para mim. Então, a ação do motorista da ambulância não deve ser coibida porque seus benefícios compensam
suas externalidades negativas. Da mesma maneira, aviões poluem o ar, mas a viagem de avião deve ser evitada
apenas se os custos para todos provenientes da externalidade negativa – a poluição – superarem os benefícios
líquidos diretos da ação para os passageiros – ou seja, o benefício do transporte menos os outros custos da viagem.
Um exemplo sério e bastante importante de externalidade negativa, que recebe a alcunha de “tragédia dos
comuns”, ocorre quando a ação privada e desarticulada de vários indivíduos exaure, rapidamente, algum precioso
recurso que é comum a todos.
Imaginemos o caso de um pasto público, onde todos os criadores de gado de uma certa região podem levar seus
bezerros para engorda. Se o pedaço de terra em questão fosse propriedade de um único fazendeiro, ele procuraria
economizar um pouco dos recursos do pasto para o futuro, e decidiria quantos bezerros a ele levar tendo em conta
que um número excessivo de bezerros hoje exauriria os recursos disponíveis para os bezerros de amanhã. Mas se
outros fazendeiros podem também ali alimentar seus respectivos rebanhos, a economia feita por um dado fazendeiro
pode ser facilmente apropriada pelos bezerros dos outros. Em vista disto, se o fazendeiro considera apenas os custos
e benefícios que recaem sobre si mesmo, ele optará por levar o máximo possível de bezerros ao pasto, antes que o
capim disponível seja consumido por outros rebanhos.
Onde exatamente encontra-se a externalidade negativa neste exemplo? No fato de que cada bezerro a mais que
um certo fazendeiro opta por levar ao pasto se traduz em menor quantidade de grama disponível para os outros
rebanhos, prejudicando assim os outros fazendeiros.
Se todos fazendeiros desconsideram as externalidades na sua tomada de decisão, todos tentarão extrair o
máximo possível do pasto no curtíssimo prazo. O resultado desta falta de coordenação entre os fazendeiros é que os
recursos do pasto se deterioram muito rapidamente.
O problema da tragédia dos comuns, exemplificado no parágrafo precedente é, em muitos casos concretos,
extremamente sério, podendo levar países ao caos econômico-social e a guerras civis. É o caso, por exemplo, de
muitas nações que possuem grande quantidade de preciosos recursos naturais. A guerra dos diamantes em paises
africanos como Serra Leoa é uma triste ilustração de como os incentivos e escolhas individuais (ou de grupos) – que
tentam vorazmente se apropriar dos diamantes que jazem nas minas do país – podem levar a um rompimento
completo do tecido social. Para os habitantes de Serra Leoa, os diamantes são uma maldição, não uma benção.
Mas os reflexos das ações privadas que ultrapassam os limites do indivíduo também podem ser positivos.
De fato, muitas decisões pessoais podem aumentar o bem-estar de pessoas alheias ao processo de escolha
privado. Por exemplo, a decisão individual de se educar é um dos mais citados atos geradores de externalidades
positivas. Pessoas mais educadas (no sentido amplo da palavra) convivem melhor em sociedade, votam melhor nas
eleições onde se escolhem os representantes que tomarão decisões afetando a todos, disseminam parte de seus novos
conhecimentos a seus colegas de trabalho, criam filhos mais educados, respeitam mais as leis de trânsito, etc.
Outros exemplos de externalidade positiva são: cuidar do quintal, ou enfeitá-lo para a semana de Natal,
propiciando uma visão agradável aos transeuntes; organizar a comunidade para realização de tarefas coletivas;
convidar os amigos para desfrutar de um saboroso jantar na sua casa, etc.
Uma vez estabelecido o conceito de externalidades negativas e positivas, a pergunta que se segue naturalmente
é se levamos estes impactos sobre os outros em consideração quando estamos decidindo. Quando não levamos, a
escolha privada difere da escolha que seria ideal para a sociedade como um todo.
Conta a Bíblia que Jesus Cristo aconselhava ao ser humano “amar o próximo como a si mesmo”. Em linguagem
mais mundana, o conselho era considerar os custos e benefícios de suas ações nos outros como se estes incidissem
sobre si mesmo. 500 anos antes de Cristo, Confúcio ensinava a “jamais impor aos outros o que você não escolheria
para si”.[2] No linguajar do economista, o mandamento cristão e a filosofia de Confúcio poderiam ser expressos
como: “atribua às externalidades de seus atos o mesmo valor que você atribui aos efeitos de suas ações sobre si
mesmo”.
Os exemplos pouco animadores citados acima deixam claro que o conselho cristão não é seguido à risca. Claro,
não somos todos inveterados egoístas que pensamos sempre, e exclusivamente, em nós mesmos. Considerações
altruístas explicam em alguma medida o cuidado de muitas pessoas em preservar o meio-ambiente, e a realização de
doações financeiras de variadas naturezas. Mas tampouco levamos sempre em conta na sua integridade os efeitos de
nossas escolhas sobre os outros. Caso contrário, como explicar a ação do motorista que lança guimba de cigarro pela
janela e dirige de modo irresponsável, a poluição dos rios pelas fábricas, pessoas roubando as outras, a guerra por
diamantes em alguns países da África ou os 1000 assassinatos que ocorrem semanalmente no Brasil?
Como veremos em capítulo futuro, quando os efeitos de uma dada externalidade forem de fato relevantes,
torna-se necessária e desejável a intervenção do ente governamental para coibi-la. Dito de outro modo, confiar no
bom coração dos donos das fábricas para deter a poluição do ar não é boa solução. Cabe ao governo tentar fazer com
que o dono da fábrica leve em conta nas suas decisões os efeitos indesejáveis da poluição no ar.
Levando a definição de externalidades ao pé da letra, a verdade é que a grande maioria de nossas ações afeta o
bem-estar das outras pessoas, ainda que apenas superficialmente. Em vista disto, e como veremos em capítulo
futuro, para que a intervenção governamental faça sentido na prática, os efeitos das ações de alguém sobre o bem-
estar dos outros precisam ser significativos. Poluição encaixa-se nesta definição prática, roubar e fumar em espaço
fechado também, mas e casacos verde-chiclete? Não entendemos muito de moda, mas somos contra o governo
interferir na decisão de alguém vestir uma roupa mais exótica porque ela não agrada o transeunte que se veste mais
conservadoramente. De uma maneira geral, quando a intervenção do Estado depende de um juízo de valor deste
tipo, nossa primeira reação é desaprová-la. Voltando à música de Caetano, é preciso distinguir a feia fumaça que
sobe apagando as estrelas da deselegância discreta das meninas de Sampa.
3. A lei que proíbe cobrar menos
Em 1992, transitou pela Assembleia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que obrigava cinemas, teatros,
circos e casas de espetáculo a cobrarem o dobro do preço do ingresso de todas pessoas que não tivessem a
carteirinha de estudante. Cobrar mais barato, qualquer valor inferior ao dobro do preço cobrado aos estudantes, seria
ilegal.
Esta lei da entrada-dobrada para os não portadores de carteirinha foi aprovada no dia 13/05/1992 e vigora até os
dias de hoje, sendo mais conhecida pelo nome de lei da meia-entrada. O texto da lei coloca que todo estudante tem
direito a pagar metade do preço cobrado às demais pessoas em cinemas, circos, espetáculos teatrais, esportivos,
musicais e de lazer. Para entendermos porque a lei da meia-entrada tem impactos idênticos a uma lei que
estabelecesse entrada dobrada para os não estudantes, precisamos antes entender como os preços são formados em
uma economia de mercado, quais são os fatores que os afetam.
Os preços dos bens em uma economia de mercado são uma escolha das firmas. Lembrando que as escolhas
variam com as condições do ambiente, neste capítulo focaremos nossa análise nas variáveis que jogam papel
fundamental na determinação dos preços.
O principal objetivo de qualquer empresa é a obtenção de lucro. Às vezes, porém, elas tomam decisões que
parecem não estar diretamente ligadas a este objetivo. Por exemplo, algumas ações visam estabelecer reputação de
longo prazo e ampliar a fatia de mercado da empresa. Uma maneira de fazê-lo é vender temporariamente o bem a
preço inferior ao seu custo de produção. Esta ação de fato prejudica a lucratividade da empresa no momento
presente, mas ao mesmo tempo, contribui para maior lucro no futuro, pois atrai mais clientes, alguns dos quais
continuarão comprando o bem quando seu preço voltar ao normal.
A decisão sobre o preço de venda, assim como as outras escolhas importantes da empresa, se pautará pelo
objetivo de obter os maiores ganhos possíveis.
Mas se em uma economia de mercado, as empresas são livres para escolher o preço de seus bens e têm em vista
somente o lucro, não é natural esperar que elas escolham preços excessivamente altos, prejudicando o bem-estar do
consumidor final?
Vejamos. Quanto mais alto o preço de um bem, maior é a receita obtida por unidade vendida do mesmo. Mas
como os consumidores reagem a um preço mais alto escolhendo outro bem substituto, ou simplesmente escolhendo
comprar o mesmo bem em menor quantidade, menor será também o número de unidades vendidas. O resultado
líquido de uma elevação de preços sobre o lucro é, portanto, em princípio, incerto. Assim um aumento exagerado do
preço não acarretará em lucro maior para a firma porque a queda nas vendas mais que compensará a elevação do
ganho por unidade vendida. Portanto, a empresa nunca escolherá preços excessivamente alto que não maximizam
seu lucro.
Um exemplo concreto relacionando o preço da entrada no cinema com o lucro dos donos do cinema ilustra este
ponto. Se o preço do ingresso cobrado for muito baixo, digamos de R$ 2, o faturamento será pequeno mesmo que o
cinema fique cheio. Já se o valor do ticket for de R$ 100, o cinema ficará vazio e a receita também será pífia.
Nenhuma das duas estratégias levam a um bom lucro. Para maximizá-lo, a empresa escolhe um preço intermediário
que gera uma boa receita por unidade vendida e é ao mesmo tempo capaz de atrair uma boa clientela. Este preço no
Brasil gira hoje em torno de R$ 30 para não-estudantes, e R$ 15 para estudantes.
Mas dizer que a empresa escolhe o preço para maximizar seu lucro não nos esclarece lá muita coisa. É
importante entender que condições do ambiente afetam esta relação entre preço e lucro porque mudanças nestas
condições são a base da explicação para as diferenças nos preços escolhidos pelas empresas. De uma maneira geral,
o preço escolhido pela empresa dependerá crucialmente de dois fatores: (i) o custo do produto para a empresa e (ii) a
sensibilidade da demanda dos consumidores aos preços.
Vejamos primeiro o impacto do componente custo. Custos mais altos comprimem o lucro por unidade, e à
medida que este diminui, torna-se mais interessante para a empresa aumentar o preço, ainda que isso implique em
alguma redução da quantidade vendida.
Um exemplo numérico ajuda a entender este ponto. Pensemos em uma empresa cogitando elevar seu preço de
R$20 para R$21. Ela considera que este aumento causará uma redução de 20% na demanda pelo seu bem. Vale a
pena então aumentar o preço?
A resposta depende do custo unitário de produção. Se este, por exemplo, é de R$19, o lucro por unidade é R$1
ao preço de R$20. Se o preço sobe para R$21, o lucro por unidade passa a ser R$2. Portanto, com a elevação, o
lucro por unidade dobra e a quantidade vendida se reduz em 20%: neste caso vale a pena subir o preço para R$21.
Agora, suponha que o custo unitário de produção é R$10. Sendo o preço R$20, o lucro por unidade vendida é
R$10. Com o preço de R$21, o lucro por unidade vendida é R$11. Assim, ao preço de R$21 a quantidade vendida é
20% menor e o lucro por unidade é 10% maior que no caso do preço a R$20. Com o custo mais baixo, portanto, não
vale a pena subir o preço.
O ponto ressaltado pelo exemplo acima vale em geral: dado um certo comportamento da demanda, custos
maiores fazem com que seja interessante para a empresa cobrar preços maiores.
A empresa não repassa a variação dos custos aos consumidores porque considera “justo” que eles paguem pelo
aumento, ou, no caso simétrico, porque elas vêem como “coerente” que eles compartilhem dos benefícios de uma
redução dos custos. Nada disso foi levado em conta no exemplo acima. A relação positiva entre preços e custos não
depende dos sentimentos da empresa por seus clientes. Uma empresa que apenas objetiva maximizar o lucro cobra
preços mais altos quando os custos são maiores.
Um importante fator que afeta o custo do bem é a produtividade da empresa - a medida de quanto ela produz
por unidade de insumo empregado.
Há algumas décadas, dizia o Barão de Itararé que “pobre, quando come frango, um dos dois está doente”. O
frango, antes caro e inacessível ao pobre, hoje é a carne mais barata à disposição dos consumidores. O motivo? Não
a benevolência do avicultor, mas os fortes ganhos de produtividade vivenciados no setor.
Da mesma maneira, os avanços tecnológicos têm aumentado a produtividade na fabricação de aparelhos
eletrônicos. Isto reduz custos e, consequentemente, o preço dos produtos. Por exemplo, televisores com tela plana,
que antes não eram viáveis comercialmente, hoje já são encontrados nas lojas e, no futuro, provavelmente, custarão
ainda menos.
Avanços tecnológicos não são a única maneira que as empresas encontram para reduzir custos. Por exemplo,
grandes redes de supermercado, como Carrefour e Wal Mart, têm alto poder de barganha com seus fornecedores e
assim conseguem comprar destes a preços mais baixos. É por isto que seus preços aos consumidores tendem a ser
menores que os dos pequenos armazéns.
Além do custo, o outro fator que determina os preços é a chamada elasticidade-preço da demanda. Diz-se que a
demanda pelo bem é “elástica” quando um aumento do preço acarreta forte redução de vendas, e “inelástica” no
caso oposto. Quanto maior a elasticidade, menor será o preço de venda escolhido pela empresa.
Um exemplo numérico ilustra este ponto. Consideremos novamente uma empresa cogitando elevar o preço do
seu bem de R$20 para R$21. O custo de produzir uma unidade do bem é igual a R$19, independentemente da
quantidade produzida. Note que a mudança aumentará o lucro por unidade de R$1 para R$2. Vale a pena então
aumentar o preço?
A resposta depende da elasticidade, ou seja, de quanto a demanda reage a uma mudança no preço. Se com o
preço a R$21, a demanda se reduz em 20%, vale a pena cobrar mais caro. Neste caso, o lucro por unidade dobra,
mais do que compensando a queda de 20% nas unidades vendidas.
Por outro lado, se o aumento do preço derruba a demanda para um terço do seu valor inicial, cobrar mais barato,
R$ 20, é mais lucrativo. Com a demanda mais elástica, apesar de o lucro por unidade dobrar, as vendas caem para
menos da metade e, portanto, o lucro total se reduz.
Novamente, o ponto estabelecido pelo exemplo é geral: quanto menor o impacto dos preços na demanda,
maiores serão os preços que maximizam o lucro. Se aumentos de preço acarretam grande perda de vendas, é melhor
para a empresa cobrar preços baixos.
Um fator muito importante para determinar a elasticidade da demanda de um determinado bem é o grau de
concorrência enfrentado pela empresa. Se a concorrência é acirrada, um pequeno aumento de preços leva a grande
queda na demanda e uma queda dos preços atrai grande numero de compradores. Neste caso, as empresas escolherão
vender seus produtos a preços próximos dos seus custos.
Quando a concorrência é acirrada, as empresas que não conseguirem produzir a um custo próximo do das
empresas mais eficientes acabarão sendo varridas do mercado. Por quê? Sendo o preço de venda próximo ao custo
de produção, as empresas com custos menores venderão seus produtos a preços inferiores aos custos de produção
das empresas menos eficientes. Para que estas obtenham um lucro por unidade vendida razoável, o preço de venda
precisaria ser significativamente mais alto que o das mais eficientes, implicando, portanto, em uma quantidade
vendida muito baixa.
Em alguns casos, a concorrência é tão grande que a escolha da empresa é praticamente ditada pelo mercado.
Isto geralmente ocorre quando muitos produtores fabricam bens praticamente idênticos. Por exemplo, um exportador
de laranjas pode vender grandes quantidades de seu produto ao preço vigente no mercado, mas não conseguirá
vender quase nada se tentar cobrar preços um pouco maiores porque laranja é laranja mesmo.
Já se há pouca concorrência, seja porque os consumidores não têm boas informações sobre opções alternativas,
seja porque os concorrentes estão localizados geograficamente muito longe, seja porque não há outros produtores de
um certo bem, os preços serão significativamente mais altos que os custos.
Produtos difíceis de serem substituídos devido a alguma característica específica que os tornam únicos sob os
olhos do consumidor são mais caros justamente porque mudanças de preço têm menor impacto sobre as vendas. Se o
preço de um prato especial que só aquele restaurante francês de seu bairro serve se eleva, suas idas ao restaurante,
caso você goste muito de comida francesa, diminuem pouco. Porque o prazer de uma refeição lá é praticamente
insubstituível, a elasticidade aos preços é baixa, e a comida é cara. Note que restaurantes não são escassos em um
determinado bairro, mas bons restaurantes franceses sim. E é justamente esta escassez no quesito qualidade que lhe
confere o poder de cobrar bem acima do custo do prato.
De um modo geral, as empresas tentam diferenciar seus produtos, seja por meio de inovações tecnológicas que
dão características especiais ao produto, seja via anúncios publicitários que valorizam a marca, justamente para
convencer os seus clientes que o que oferecem é um bem ou serviço diferente da concorrência. Esta diferenciação
faz com que aumentos de preços não causem grandes quedas na demanda e, portanto, possibilita à empresa cobrar
mais caro e lucrar mais.
O grau de concorrência também é influenciado pelo comportamento dos consumidores. Se as pessoas procuram
bastante antes de comprar, as vendas serão mais afetadas pelo preço e, portanto, as lojas cobrarão preços mais
baixos. O advento da internet tornou mais fácil, rápido e barato comparar preços, aumentando a concorrência e
reduzindo o nível dos preços de alguns produtos.
Se vários consumidores procuram bastante, de loja em loja, antes de comprar, os preços serão mais baixos para
todos os consumidores – mesmo aqueles que não se dedicam a encontrar boas barganhas. De fato, o executivo que
entra na livraria com pressa querendo um exemplar de “Economia sem Truques” para o amigo secreto da empresa
que começa em 15 minutos está disposto a pagar pelo livro mais do que um aposentado que já passou em 8 lojas
pesquisando o melhor preço. A busca do aposentado pelo preço mais baixo gera uma externalidade positiva para o
executivo, que pagaria mais pelo livro se todos fossem como ele. Se o mundo tem muito aposentado, o preço do
livro é menor; se ele é habitado por muito executivo apressado, o preço é mais alto.
Mas a externalidade positiva que o aposentado gera para o executivo só se materializa porque em geral as
empresas não podem discriminar preço, ou seja, não podem cobrar mais do executivo do que do aposentado pelo
mesmo livro.
Em algumas ocasiões, no entanto, as empresas cobram mesmo preços diferentes dependendo do cliente ou, pelo
menos, arrumam artifícios indiretos para cobrar mais de quem tem mais disposição para pagar. As montadoras de
automóveis, por exemplo, encontraram uma maneira interessante de fazê-lo, que é vender carros novos com e sem
acessórios adicionais (teto solar, pára-choques diferenciado, etc) e cobrar bem mais pelo carro com acessórios. Deste
modo, a concessionária além de vender o carro básico para grande número de compradores também consegue extrair
mais dos consumidores mais ricos, dispostos a pagar caro pelo automóvel da marca escolhida com os acessórios
desejados. Os acessórios servem para a empresa diferenciar os clientes mais sensíveis a preço (que levam o carro
sem acessório), dos menos sensíveis a preço (que optam pelo carro com acessório). O lucro dela assim é mais alto
que no caso onde ela só vendesse carros sem acessórios (sem explorar a disposição a pagar mais dos menos
sensíveis a preço), e que no caso onde ela ofertasse somente carros com acessórios (espantando os clientes mais
sensíveis a preço).
Empresas aéreas fornecem outro exemplo de discriminação de preços quando vendem tickets para a classe
executiva que custam mais que o dobro do preço do ticket da classe econômica. Alguns clientes estão dispostos a
pagar caro para viajar com mais luxo. Outros preferem preços mais baixos a maior conforto. Para a companhia aérea
interessa ter as duas classes, uma para cada tipo de cliente.
Acontece que, neste caso, a empresa concorre com ela mesma ou, melhor dizendo, a viagem na classe executiva
concorre com a passagem na classe econômica. Assim, se a viagem do passageiro da classe econômica é
desconfortável, a opção de viajar de executiva se torna mais atraente. Não é à toa que na classe econômica a cadeira
reclina pouco e seu joelho fica apertado contra as costas do passageiro que viaja na fila da frente. Se a classe
econômica fosse confortável, como o avião cumpre basicamente a função de levar o cliente de um ponto a outro,
mesmo os menos sensíveis a preço não se disporiam a pagar tanto a mais apenas para usufruir algumas regalias,
como uma comida melhor ou um vinho caro. Não seria muito custoso melhorar o assento da classe econômica, mas
a companhia aérea precisa que o passageiro da econômica tenha pouco conforto para conseguir vender assentos mais
caros na executiva, discriminando preços e extraindo um lucro maior daqueles com maior capacidade de pagar.
Se a concorrência no mercado de passagens aéreas fosse tão acirrada quanto no mercado de laranjas, uma
companhia aérea não conseguiria discriminar preços dessa maneira, pois uma empresa concorrente teria incentivos
para criar aviões apenas com a classe econômica e com poltronas mais confortáveis, e assim atrair a clientela
disposta a pagar um pouquinho a mais pelo conforto extra.
A concorrência é menos acirrada no mercado de viagens aéreas do que no mercado de laranjas por motivos
inerentes ao tipo de atividade e por conta da legislação. De fato, é complicado e demorado entrar no ramo de
transporte aéreo, demora-se para estabelecer uma reputação com a clientela e para montar a estrutura necessária para
operar, e os ganhos de escala fazem com que empresas maiores sejam mais eficientes. Portanto, há poucas
companhias em operação. Mas aspectos da legislação colaboram para reduzir a competição ao estabelecer que a
maior parte dos vôos entre dois países só possam ser operados por companhias com base em um dos dois países –
por exemplo, vôos diretos entre Brasil e Inglaterra só podem ser operados por empresas brasileiras ou britânicas.
Há alguns anos, a União Européia aboliu este tipo de restrição para vôos entre países membros. A partir desta
liberalização, novas empresas entraram no mercado de transporte aéreo e hoje se paga muito menos para viajar de
avião pela Europa. Como dissemos anteriormente, maior competição leva a menores preços.
Em outras ocasiões, as empresas são obrigadas por lei a cobrar diferenciado dos seus clientes, como é o caso
dos cinemas, teatros e casas de espetáculos no Brasil. Estes estabelecimentos são obrigados a discriminar preço entre
os que têm e os que não têm carteirinha de estudante. De acordo com a lei brasileira, a meia-entrada em cinemas,
circos, espetáculos teatrais, esportivos, musicais e de lazer é um direito garantido a todo estudante e, portanto, ao
escolher o preço, os estabelecimentos vão levar em conta: os seus custos, a relação entre o preço e a demanda dos
dois grupos – com e sem carteirinha – e a obrigatoriedade de o preço dos com carteirinha ser metade do preço dos
sem carteirinha.
A escolha do preço se dará seguindo a mesma linha de raciocínio desenvolvida acima, com a única diferença
que a empresa escolherá um preço para estudantes e outro preço para os não-estudantes, sendo este obrigatoriamente
o dobro daquele.
Dadas as elasticidades das demandas dos dois grupos e os custos, adicionar uma condição adicional que a
empresa precisa respeitar do tipo “preço dos estudantes deve ser metade do dos outros” gera o mesmo resultado final
que adicionar uma condição do tipo “preço dos outros deve ser o dobro do dos estudantes”. O impacto nos preços da
lei da meia-entrada para os estudantes é idêntico ao impacto da lei da entrada-dobrada para os outros.
Seguindo o mesmo raciocínio, estipular meia-entrada para todos é o mesmo que abolir a meia-entrada, e de fato
a UNE tem se mostrado veementemente contra qualquer iniciativa de meia-entrada para todos.
Tomando um exemplo concreto: um ingresso na pista do show da Ivete Sangalo, realizado em São Paulo no dia
30/10/2006 custava R$60 para estudantes e R$120 para os outros. Se não houvesse a lei da meia-entrada, a casa de
shows escolheria um preço apenas, a ser cobrado igualmente de todos. A R$60, o faturamento seria pequeno porque
muita gente querendo entrar não encontraria ingresso, e a R$120 para todos haveria pouco público. O preço
escolhido no dia após a abolição da lei da carteirinha estaria entre R$60 e R$120.
Qual a lógica por trás da lei da meia-entrada? A justificativa comumente apresentada é que os eventos culturais
complementam a educação dos estudantes. Seria benéfico, portanto, que os estudantes pudessem frequentar mais
eventos deste tipo. Entretanto, a lei não cria os eventos culturais num passe de economágica, não reduz custos, nem
cria recursos para os estabelecimentos que proveem estes serviços. O que ela faz é simplesmente transferir parte do
custo dos estudantes para os outros consumidores. Ou, colocado de outro modo, os não portadores da carteirinha
subsidiam a entrada dos que a possuem.
Portanto, para decidirmos sobre a propriedade ou não da lei da meia-entrada para estudantes (ou,
equivalentemente, lei da entrada-dobrada para os outros), temos que pensar se julgamos correta ou não essa
transferência de custos que aumenta o acesso de estudantes a eventos culturais às custas do afastamento de não
estudantes destes mesmos eventos.
No Brasil, uma pequena parte da população tem acesso à educação superior. Com a lei da meia-entrada, essa
pequena parte da população paga em shows, teatros e cinemas metade do preço pago pelos que já se formaram (e
não falsificaram a carteira de estudante) e pelos que nunca tiveram acesso à educação superior. A maior parte
daqueles que não tiveram a oportunidade de fazer um curso universitário – que em geral estão em estratos de renda
menos favorecidos – vão achar difícil desembolsar de R$ 120 a R$ 200 para assistir a Ivete Sangalo. Mais ainda, os
poucos que o fizerem estarão de fato pagando parte da conta dos estudantes que assistem a Ivete de camarote por R$
100. Faz sentido uma política pública que implementa este tipo de transferência?
Muitos dos que nunca entraram na universidade escolhem não ir ao cinema assistir a um bom filme por conta
do preço do ingresso. Alguns reais a menos no preço do cinema trariam um pouco mais educação, cultura e
divertimento justamente àqueles que menos recursos tem. Por conta disto, não nos agrada uma lei que obriga os
cinemas, teatros e casas de espetáculos a transferir parte do preço do lazer dos estudantes aos que nunca tiveram a
chance de estudar.
É um erro comum achar que uma lei estabelecendo que os estudantes portadores de carteirinha pagarão metade
do preço do ingresso não alterará o preço para os outros. Os defensores de tal política parecem raciocinar
erroneamente da seguinte maneira: a medida baratearia a entrada para os estudantes sem piorar a situação dos não-
estudantes, que pagariam o mesmo que antes. Mas os preços não estão fixos! São as empresas que escolhem os
preços e as quantidades dos seus produtos em uma economia de mercado, não o governo. Se uma lei obriga a
empresa a cobrar menos de certo grupo, ela se ajustará cobrando mais de outro.
Há várias “leis de carteirinha de estudante” por aí. Outras propostas de políticas públicas também parecem se
basear na ideia de que as empresas não reagirão a elas. Por exemplo, as leis que congelam os preços dos produtos
não mudam os custos de produção nem as demandas dos consumidores, mas proíbem as empresas de vender seus
produtos a um preço mais alto. Se a empresa decide respeitar a lei, ela reagirá produzindo menos, o que gerará
racionamento e filas. Um litro de leite que custaria R$2,20, custará, por exemplo, R$1,90 mais trinta minutos na fila
para os que conseguirem comprar.
Se para não deixar muitas famílias sem acesso ao leite a compra de mais de um litro por família é proibida, ou
seja, se há racionamento, a primeira unidade custará R$2,20 e a segunda não poderá ser comprada (o que é o mesmo
que dizer que seu preço é infinitamente elevado). Como no caso dos cinemas, as leis podem regular o preço do leite,
mas não dão origem a mais vacas, não criam leite do além.
Além destes transtornos, o congelamento afetará as decisões futuras sobre preços, investimentos, quantidade
produzida, etc, que refletirão os medos de um próximo congelamento.
Como já dito, as empresas escolhem o preço de acordo com seus custos e com a demanda dos consumidores.
Assim, leis que aumentam os custos das empresas encarecerão seus produtos. Por exemplo, uma lei que
efetivamente proíba as fábricas de autopeças de utilizar uma tecnologia que polui o ar tem como resultado um
mundo mais limpo e carros mais caros. Talvez queiramos como sociedade que esta lei seja implementada, mas é
preciso ficar claro que ela não traz benefícios de graça.
O estatuto do idoso fornece um outro exemplo. Ele permite que certas pessoas viajem gratuitamente em ônibus
interestaduais, mas visto que a lei não cria ônibus nem reduz o preço do petróleo nos mercados internacionais, os
outros passageiros acabam arcando com a maior parte dos custos, subsidiando assim a passagem mais barata do
idoso. Novamente, não estamos neste caso tecendo juízo de valor, mas é importante ter em mente que o preço para
os outros passageiros não está fixo, não é imune à lei.
Por outro lado, algumas leis contribuem para reduzir preços. As leis que obrigam restaurantes a exibirem os
preços de seus pratos na porta, ou postos de gasolina a apresentarem seus preços em lugar visível e letras garrafais,
facilitam a aquisição de informação pelo consumidor. Sendo mais fácil obter informação sobre a concorrência, o
consumidor reage mais a preços e, portanto, passa a ser mais lucrativo para as empresas cobrar preços menores.
As leis que impedem a empresa de vender “gato” por “lebre” através de manipulação de informação, além de
importantes em si, também estimulam a concorrência. Ao reduzir a quantidade de informação falsa divulgada pelas
empresas, a lei permite que o consumidor experimente produtos de outras marcas não estabelecidas e não precise
ficar preso a uma única empresa em que confia. É um importante papel do governo, portanto, assegurar a
transmissão de informações relevantes nas relações comerciais e garantir o cumprimento dos contratos. Desta
maneira, o consumidor pode escolher com menos receio, forçando indiretamente um aumento da competição entre
as empresas.
Em resumo, para entender a formação de preços é preciso centrar a atenção em custos e na relação entre
demanda e preços. Impostos sobre os produtos têm impactos em custos e, portanto, afetam os preços. Não é à toa
que a empresa que sonega impostos pode escolher cobrar menos pelo seu produto para ganhar um cliente que busca
preços mais baixos – alguém já ouviu falar de algum médico ou dentista que cobra preços diferentes “com recibo” e
“sem recibo”? Já o custo de um escova de dente na farmácia do aeroporto em São Paulo custa muito mais que na
farmácia da esquina não porque os custos são mais altos naquela, mas porque a falta de alternativas para quem se
encontra prestes a embarcar sem uma escova de dente torna a demanda pouco sensível ao preço. Leis ou mudanças
no ambiente afetando alguma destas duas variáveis afetarão, pois, os preços. O resto é economágica.
4. A lei que aumenta o salário
A Constituição Brasileira, promulgada em 1988, menciona como um direito dos trabalhadores urbanos e rurais,
o gozo de férias anuais remuneradas com um terço a mais do que o salário mensal normal (artigo 7º, inciso XVII).
Os trabalhadores já tinham direito a férias remuneradas antes de 1988, mas sem receber o adicional de um terço do
seu salário mensal. Passados aproximadamente vinte anos da promulgação da lei, qual o seu impacto sobre os nossos
salários? Estamos ganhando anualmente equivalente a um terço de um salário mensal a mais?
O salário é um preço, o preço do trabalho. No capitulo anterior, examinamos como as empresas escolhem os
preços dos bens que vendem. Neste capítulo, é a vez de nos perguntarmos como é determinado este preço especial
chamado salário. A lógica é similar a da determinação dos preços dos bens.
Salários dependem da interação entre empresas e trabalhadores. E são três os fatores jogando papel importante
nesta interação, a saber: (1) as escolhas das empresas que demandam trabalhadores; (2) as escolhas dos
trabalhadores, que vendem seu trabalho; e (3) o processo de barganha entre empresas e trabalhadores.
A demanda das empresas por mão-de-obra depende do balanço entre custos e benefícios trazidos pelos
empregados, de seu efeito líquido sobre o lucro da empresa. Para ela, o custo de um trabalhador a mais é o seu
salário acrescido de todos os impostos atrelados ao pagamento do funcionário e demais custos indiretos (custos de
contratação, administrativos, etc). Já o beneficio de um trabalhador adicional na empresa depende de quanto ele
ajuda a empresa produzir mais, ou reduzir os custos de produção, melhorar a distribuição e o marketing, etc. Se os
benefícios de contratar esse trabalhador superarem os custos, a empresa escolhe contratá-lo.
Para analisar o que se passa do outro lado, o da oferta de mão-de-obra, temos que entender as escolhas dos
trabalhadores, dado que as pessoas escolhem se querem trabalhar ou não e, também, quanto querem trabalhar. O que
está por trás desta decisão?
O benefício fundamental do trabalho é o salário, mas há outros, como o aprendizado que o trabalho proporciona
- e que pode ser útil no futuro - a satisfação pessoal, etc. O custo de trabalhar para uma empresa é o tempo que se
gasta no emprego e que poderia ser utilizado em outras atividades, como: desfrutar do lazer (ir a praia, ler um livro,
namorar, jogar futebol); trabalhar para a família (cuidar das crianças, cuidar da casa e da horta); ou trabalhar por
conta própria (fazer mapa astral, vender pão de mel, realizar projetos de arquitetura). Estas atividades compõem o
que é chamado de “custo de oportunidade” do emprego e é com elas que as pessoas comparam a opção de trabalhar
para uma empresa. Assim, uma pessoa decide ofertar sua mão-de-obra às firmas apenas se os benefícios do emprego
superam o custo de oportunidade, ou seja, os benefícios da mais atraente destas opções alternativas.
O terceiro elemento que entra na determinação do trabalho é a barganha que se desenrola entre empresas e
trabalhadores. Empresas querem pagar menos, trabalhadores querem receber mais. Como no caso dos produtos, um
importante elemento para se definir o preço do trabalho (o salário) é a competição: empresas competem entre si
pelos trabalhadores e trabalhadores competem entre si pelos empregos. A competição entre as empresas tende a
elevar os salários, enquanto a por empregos tende a reduzi-los.
Em situações em que o poder de barganha das empresas é alto, por exemplo, porque não existem alternativas
disponíveis interessantes aos trabalhadores, os salários tenderão a ser mais baixos. Já em situação reversa, por
exemplo, no caso de existirem várias empresas em busca de um certo tipo de trabalhador, os salários tenderão a ser
mais elevados. Um dos papéis dos sindicatos de trabalhadores e patronais é justamente o de reduzir a competição
entre seus membros para assim aumentar o poder de barganha do grupo como um todo.
Um dos fatores que aumenta o poder de barganha dos trabalhadores é sua capacidade de migrar entre empresas
ou abrir seu próprio negócio. Alguns economistas consideram que mudanças ocorridas na economia mundial a partir
dos anos 70 alteraram a relação de barganha levando a um aumento na renda dos trabalhadores mais qualificados.
A ideia é a seguinte: no mundo inteiro, vicejavam no período entre o pós-guerra e os anos 70, empresas muito
grandes onde eram desenvolvidas inúmeras tarefas relativas ao processo de produção (as empresas eram ditas
verticalizadas). Devido a menor pressão competitiva e também ao menor fluxo de tecnologia e de comércio, cada
empresa tocava suas operações de maneira bastante própria, não havendo como hoje tanta convergência dos
processos produtivos em direção ao mais eficiente. Os trabalhadores, portanto, eram muito familiarizados com o
processo produtivo dos seus locais de trabalho, mas sabiam menos dos processos das outras empresas. Por serem
suas habilidades mais específicas à empresa a que pertencia, era mais difícil mudar de emprego.
Sair e abrir um novo negócio também não era geralmente uma alternativa viável. Os mercados de capitais eram
menos desenvolvidos, sendo mais difícil levantar recursos suficientes para se abrir uma nova empresa.
Em resumo, os trabalhadores qualificados nesta época tinham oportunidades mais restritas fora da grande
empresa e isto enfraquecia o seu poder de barganha, o que afetava adversamente seu salário e as condições de
trabalho.
Com o passar do tempo, desenvolveram-se novas tecnologias flexíveis que tornaram a empresa pequena mais
eficiente; o mercado financeiro se desenvolveu e aprofundou suas operações de financiamento, possibilitando o
trabalhador insatisfeito com a firma sair e abrir um novo negócio; e cresceu o fluxo de tecnologia entre setores e
países, levando a certa convergência do processo produtivo que aumentou a capacidade de migração do trabalhador
de uma empresa para outra.
Todos estes fatores contribuíram para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores qualificados, o que em
parte explica a melhora em seus salários e condições de trabalho vivenciadas desde então.
Similarmente ao caso dos preços, apenas mudanças que afetem o interesse das firmas pelos trabalhadores, o
destes em ofertar trabalho, ou a barganha entre ambos é que levarão a alterações de longo prazo, concretas, nos
salários.
A lei que estabelece a remuneração de um terço a mais que o salário normal no mês de férias dos trabalhadores
não mudou a produtividade do trabalhador, e não alterou os benefícios que ele traz à empresa. Tampouco afetou o
custo de oportunidade do trabalhador, ou o jogo de barganha entre firmas e trabalhadores. Cheira, portanto, a truque.
No curto prazo, a lei deu sim aos trabalhadores uma remuneração real extra, mas como nenhum dos três
determinantes do salário se alterou, com o passar do tempo, e à medida que empresas e trabalhadores foram se
adaptando ao novo ambiente e assinando novos contratos de trabalho, este ganho foi sumindo. O ajuste se deu no
salário mensal pago pela empresa, agora menor no montante necessário para compensar a obrigatoriedade de se
pagar um terço a mais por ano.
Em uma economia de mercado, os salários mensais, assim como os preços, não estão fixos. Portanto, vinte anos
depois, nada mudou por conta da lei obrigando as empresas a pagar este um terço a mais nas férias. Esta
insignificância econômica da lei, após alguma reflexão, não é surpreendente: ao tomar suas decisões de contratar ou
não trabalhadores, as empresas estão considerando o custo total de contratação. Da mesma forma, trabalhadores
também consideram em suas escolhas não apenas o salário mensal, mas sim todos os ganhos do trabalho, incluindo a
remuneração das férias, o décimo terceiro salário e demais benefícios.
Para a empresa, não faz diferença alguma pagar, digamos, 12 salários de R$ 1.300 reais ou 13 salários de R$
1.200 reais, ou ainda 6 salários de R$ 2.600, pois o custo anual é o mesmo para ela em qualquer destes arranjos. A
empresa vai escolher contratar o trabalhador se esperar um benefício proveniente do trabalho dele superior a esse
custo total, e ponto final. Se uma lei obriga a pagar um número maior de salários, após algum tempo o salário
mensal ajusta-se para baixo.
Da mesma maneira, para o trabalhador, o que importa é o bolo total, e não somente o salário mensal. Isto ajuda
a explicar porque, por exemplo, um funcionário público que ganha por mês menos que seu par do mercado privado
não necessariamente deixa o setor estatal pela iniciativa privada. Os outros benefícios que o trabalhador estatal tem
compensam o salário mensal menor, como, por exemplo, menor risco de desemprego e aposentadoria mais elevada.
É por uma lógica similar que, para um mesmo nível de qualificação, pessoas que desenvolvem tarefas mais
arriscadas ou mais desagradáveis, como ser mergulhador de plataforma de petróleo, ou trabalhar no turno da
madrugada, recebem salários mais elevados.
Usando nosso arcabouço básico, podemos analisar os efeitos de um imposto sobre o salário. Neste caso, a
empresa leva a taxação em conta na hora de escolher contratar ou não um outro trabalhador, já que para ela o que
importa é o custo total de contratação e não apenas o salário. Por outro lado, o imposto pago pela empresa não altera
a remuneração do funcionário e, portanto, não afeta os incentivos do trabalhador a ofertar sua mão-de-obra.
Assim, do lado das firmas o imposto gera uma menor procura por trabalho, mas do lado dos trabalhadores ele
não gera menor oferta. Esta combinação leva inicialmente a um aumento do desemprego e, posteriormente, a
diminuição dos salários. O primeiro impacto é no desemprego porque existem impedimentos a ajustes automáticos
dos salários (por exemplo, é necessário aguardar a próxima renegociação salarial, dado que os contratos fixam o
valor nominal dos pagamentos por um certo prazo). Estando as empresas impedidas, por algum tempo, de ajustar os
salários para baixo, a taxação impactará mais pesadamente a quantidade de empregados contratados, e o lucro,
ambos agora menores. No longo prazo, após os ajustes à nova situação, o impacto negativo sobre os salários passa a
ser a consequência mais importante do novo imposto sobre o trabalho.
As empresas consideram em suas escolhas não apenas os custos presentes, mas também os futuros. Por
exemplo, leis que aumentam os custos de demitir funcionários influenciam não apenas as escolhas das empresas
sobre demissões, mas também suas decisões sobre contratações.
Até aqui, viemos tratando o salário como algo homogêneo, comum a um grupo que denominamos
genericamente de trabalhadores. Mas as diferenças salariais entre as pessoas são grandes, há trabalhadores e
trabalhadores. No Brasil então, estas disparidades salariais são enormes, entre as maiores do mundo. O gerente de
informática de uma grande empresa ganha mais de 10 vezes que o faxineiro. De modo geral, na base da questão da
desigualdade de renda está o fato de que profissionais qualificados ganham salários bem maiores que profissionais
pouco qualificados. Mas além disso, há também diferenças expressivas de salários entre profissionais com
qualificação similar, mas que residem em países diferentes: a faxineira na Inglaterra ganha substancialmente mais
que a faxineira no Brasil. Por quê?
Focando na escolha das empresas, um fator chave para entender os salários é a produtividade do trabalhador. As
empresas querem profissionais que rendam bastante, que gerem lucros maiores. A concorrência entre empresas por
trabalhadores mais qualificados fará com que os salários desses profissionais sejam altos. Por exemplo, um
engenheiro que garante alta produtividade para a fábrica, um gerente de marketing que inventa uma boa maneira de
vender cigarros, um médico especialista em remover tumores serão certamente muito bem remunerados. Em média,
quanto mais qualificado for um profissional de certa área de atuação, maior será seu salário.
Infelizmente, muitos brasileiros, em diversas profissões, possuem baixo nível educacional e pouca qualificação.
Isto implica em salários baixos, por dois motivos. Em primeiro lugar, sendo menos qualificados, estes trabalhadores
não serão capazes de executar trabalhos que trazem alto retorno para a empresa. Em segundo, como no Brasil a
quantidade de profissionais pouco qualificados é muito grande, seu salário é adicionalmente deprimido pelo fato de
este grupo numeroso competir pelas mesmas vagas.
Vejamos então a questão da diferença salarial entre profissionais similares de países diferentes. A faxineira na
Inglaterra ganha muito mais do que a brasileira não por limpar melhor a casa ou por ser mais produtiva, mas sim
porque há menos pessoas na Inglaterra que escolhem esse tipo de trabalho. Menos gente oferta o serviço de faxineira
e, portanto, seu rendimento, é maior. Além disto, como os salários nos outros setores da economia são mais altos lá
do que aqui, a faxineira só aceita exercer esta profissão por um ganho mais alto. Em termos do nosso arcabouço
básico, o custo de oportunidade da faxineira – dado pelo salário em outras atividades que ela poderia escolher
exercer – é mais alto na Inglaterra do que no Brasil. Aqui há muitas pessoas dispostas a trabalhar como faxineiras
porque há muitas pessoas sem qualificação suficiente para almejar outros tipos de trabalho. A grande oferta de
faxineiras reduz o rendimento obtido por cada uma e não é por outro motivo que mesmo famílias com poder
aquisitivo não muito alto contratam faxineiras para limpar suas casas. O custo – seu salário – é baixo.
Analisemos agora os possíveis impactos de uma intervenção do governo no rendimento de faxineiras. Como
uma lei garantindo um preço mínimo por um dia de faxina afetaria este mercado? A lei não muda os incentivos para
as escolhas dos patrões, nem para as das faxineiras, ela só altera a barganha entre eles: não tendo como pagar menos
que este salário mínimo legal, algumas famílias limparão sua própria casa e algumas faxineiras vão amargar o
desemprego. Portanto, a lei vai beneficiar as faxineiras que continuarem trabalhando e estavam ganhando menos que
o preço mínimo agora imposto aos patrões. No entanto, a lei tem um efeito colateral: ela é prejudicial para o grupo
das ex-faxineiras agora desempregadas, dado que ao novo preço menos famílias contratarão faxineiras.
Leis que estabelecem um salário mínimo têm, portanto, dois efeitos: elas aumentam o salário das pessoas que
continuam com seus empregos, mas tendem a gerar desemprego. No Brasil, o debate sobre o salário mínimo é muito
contagiado pelo impacto deste sobre as aposentadorias e sobre as contas do governo. Isto é uma particularidade
brasileira, que se deve ao fato de os benefícios previdenciários de muitos aposentados estarem, por lei, vinculados ao
mínimo. Em princípio, contudo, aposentadoria e salário mínimo são tópicos bem diferentes.
Recentemente no Brasil, foi aprovada uma proposta de lei que aumentou o período da licença maternidade das
mulheres que dão à luz, de quatro para seis meses. A intenção de possibilitar que as recém mamães fiquem mais
tempo com os filhos é louvável, mas como no caso do salário mínimo das faxineiras, esta proposta também tem
efeitos colaterais. Aumentar o período de licença maternidade significa, para as empresas, um aumento do custo de
contratar mulheres em idade onde a probabilidade de gravidez é mais alta. Como são as empresas que escolhem
quem contratar, elas terão menos incentivos para empregar mulheres nessa idade.
Se leis como a de um terço a mais nas férias não geram efeito nenhum no longo prazo e a imposição de um
salário mínimo elevado beneficia alguns mas prejudica outros, o que se pode fazer para aumentar de fato a
remuneração das pessoas menos qualificadas, que passam necessidades por conta de um rendimento insuficiente?
Como vimos no capítulo 3, as empresas procuram estimular a demanda por seus produtos para poder assim
cobrar preços mais altos. Da mesma maneira, para aumentar o salário dos trabalhadores, nada melhor que estimular
o interesse das empresas em contratá-los Para isso, a melhor solução é torná-los mais produtivos.
E uma política pública eficaz para torná-los mais produtivos é investir em sua qualificação, aprimorando seu
nível educacional. Isso traz benefícios em duas frentes: em primeiro lugar, o profissional mais qualificado executará
trabalhos mais rentáveis para a empresa (e que, portanto pagam mais). Em segundo lugar, ao diminuir o número de
pessoas com menor qualificação, diminui-se o contingente de pessoas dispostas a trabalhar em empregos como o de
faxineira ou lixeiro, e aumenta-se consequentemente a remuneração daquelas que seguem nestas profissões.
Outras políticas públicas têm impactos nos salários não por modificar a escolha das firmas, mas por afetar as
decisões dos trabalhadores. Por exemplo, quando o programa bolsa-escola foi implementado no distrito federal em
meados da década de 90, algumas mães de família contempladas pela ajuda financeira deixaram de trabalhar para
outras famílias. Optaram por largar as profissões de passadeira, faxineira, empregada, etc.
O programa bolsa-escola foi suspenso no governo seguinte. A então secretária da educação havia dito em
entrevista a um programa de televisão de Brasília que “pelo menos cinco amigas minhas perderam suas passadeiras
quando seus filhos começaram a receber a bolsa-escola. Ganhou o peixe, não precisa mais pescar”.[3]
Trabalhar como passadeira é uma escolha. Sem o auxílio proveniente do bolsa-escola, a estas mulheres restam
poucas opções além de trabalhar pelo pagamento que for possível obter para ajudar no orçamento familiar. Mas,
com o bolsa-escola abre-se outra possibilidade: elas podem escolher ficar em casa e cuidar dos filhos. Ao dar essa
opção às mães de famílias pobres, esses programas assistenciais reduzem o contingente de passadeiras dispostas a
trabalhar pelo salário vigente. Sobram donas de casa querendo passadeiras e, assim, a remuneração da passadeira
sobe. Consequentemente, menos donas de casa vão querer passadeiras. Contudo, algumas passadeiras decidem
seguir no ramo até porque o salário agora está mais alto (ou porque não tem filhos) e após o ajuste à nova situação,
quando não estão sobrando nem passadeiras, nem donas de casa, o salário da passadeira para de subir.
Vejamos detalhadamente o que faz o preço da passadeira subir. A dona de casa que ficou sem passadeira ao
preço antigo (por conta do bolsa-escola), mas que está disposta a pagar um pouco mais para ter suas roupas
passadas, consegue manter a antiga passadeira ou contratar uma nova, pagando um pouco mais. Simultaneamente, a
passadeira que quer continuar trabalhando começa a notar a mudança na demanda por seu trabalho: com a falta de
passadeiras no mercado, as passadeiras começam a ser mais requisitadas. O processo não é instantâneo, mas
passadeiras e donas de casa percebem logo a nova situação e não tardam a se adaptar. O resultado final é menos
passadeiras ganhando mais e mais ex-passadeiras cuidando dos filhos.
É importante notar que o bolsa-escola melhora também a vida de mulheres pobres que não têm filhos, ao
aumentar o salário das passadeiras que continuam na profissão. Esse efeito é similar ao impacto da busca do
aposentado pelo preço mais baixo no preço do livro pago pelo executivo, discutido no capítulo anterior.
O efeito do bolsa-escola é bastante diferente do efeito do salário mínimo: no caso do bolsa-escola, algumas
pessoas passam a escolher cuidar de suas famílias ou de seus afazeres ao invés de trabalhar para outras famílias; no
caso do salário mínimo, pessoas que gostariam de estar trabalhando e recebendo o salário vigente não conseguem
mais arrumar trabalho. O primeiro amplia o leque de escolhas do trabalhador, o segundo o reduz.
Portanto, o bolsa-escola reduz os incentivos dos que ganham pouco a trabalhar. Assim, os salários sobem e o
número de pessoas trabalhando cai. Essa é uma boa política pública? A importante discussão sobre quais políticas
públicas devem ser implementadas será retomada em capítulo futuro.
Por que algumas profissões pagam tanto? Ídolos do futebol e da música são extremamente bem remunerados
porque muitas pessoas estão dispostas a pagar para assistir suas performances. Basta um clique no controle da
televisão e lá está o Neymar fazendo suas acrobacias nos gramados da Europa. A tecnologia moderna permite que
milhões de pessoas possam ver o Neymar nas suas TVs, e isto explica porque os clubes estão dispostos a pagar tão
caro por ele.
A vontade, o sonho de se tornar um Neymar, ou uma Ivete Sangalo, explica porque muitas pessoas estão suando
as camisas nas equipes juvenis de futebol e cantando nos bares por cachês módicos. Elas não estão ali só pelo
dinheiro que recebem agora, mas também pelo sonho, por poucos realizados, de ganhar muito no futuro.
Além de escolherem sua profissão, as pessoas escolhem a cidade e até mesmo o país onde irão morar e
trabalhar. Como dissemos, existem grandes diferenças salariais entre pessoas de países diferentes. O que explica
estas diferenças? Estas diferenças existem, e persistem, porque há importantes barreiras à migração de trabalhadores,
como restrições legais, dificuldades com o idioma e a cultura, além da própria distância entre os países, que encarece
a migração. Já dentro de um mesmo país, as barreiras à migração são muito menores, e devido a isto são também
menores as diferenças salariais entre pessoas de qualificação similar e exercendo o mesmo trabalho em cidades
diferentes.
Mas, em alguns casos, há restrições legais à migração dentro de um mesmo país. Por exemplo, por motivos
ligados à preservação do meio ambiente, um brasileiro qualquer não pode se mudar para Fernando de Noronha e
abrir um negócio por lá. Esta barreira ao livre fluxo de trabalhadores explica porque os serviços em Fernando de
Noronha – ou seja, a remuneração dos trabalhadores locais – são mais caros do que em outras praias do Brasil. O
trabalhador local não é ameaçado pelo risco de outros oferecerem o mesmo serviço a preço menor.
Concluindo, a lei que aumenta o salário, mencionada no título deste capítulo, não é o inócuo inciso
constitucional que estabelece o pagamento de um terço a mais nas férias. Os fatores que determinam os salários são
as escolhas dos trabalhadores de ofertar ou não trabalho (relacionadas a seus custos de oportunidade), as
considerações de custo/beneficio de contratar das empresas, e as condições do ambiente que determinam o poder
relativo de barganha entre ambos. Leis que afetam os salários são leis que alteram alguma dessas variáveis.
Dentre esses fatores, o mais relevante e que, portanto, deveria receber maior atenção no desenho de políticas
públicas, é o valor produzido pelo trabalhador, sua produtividade. No próximo capítulo veremos porque a renda do
trabalhador subiu nos últimos dez mil anos.
5. De caçadores-coletores a guias de turismo lunar
O imaginário popular é permeado pelo medo de que as máquinas tomem o lugar do homem ou, menos
dramaticamente, ocupem parcela significativa dos nossos postos de trabalho. Woody Allen captou como poucos essa
aflição do homem moderno ao dizer: “meu pai trabalhou na mesma empresa durante doze anos. Eles o demitiram e o
substituíram por uma maquininha deste tamanho, que faz tudo o que o meu pai fazia, só que muito melhor. O
deprimente é que minha mãe também comprou uma igual”.
O medo das máquinas é quase tão velho quanto a industrialização. Nos idos de 1811-1817, ainda no início da
revolução industrial, alguns trabalhadores da industria têxtil inglesa chegaram até a destruir máquinas em protesto
contra as mudanças trazidas pelas novas tecnologias. Os “Luddites”, como eram chamados, se opunham a utilização
de máquinas, vociferando que elas gerariam quedas salariais (dado que poderiam ser operadas por trabalhadores
menos qualificados) e perdas de emprego (pois as máquinas fariam parte do trabalho dos homens).
Na mesma toada, em meados do século XIX, Karl Marx afirmava que o processo de acumulação de capital
produziria constantemente um “exército de desempregados”. Essa massa desempregada contribuiria para reduzir os
salários dos trabalhadores. Além disso, as variações nos salários dependeriam basicamente da expansão e contração
no contingente desse exército.
Mas o que dizem os dados? Podemos descobrir a relação entre acumulação de capital, desemprego e salários
médios observando os seus valores em um país ao longo do tempo ou em vários países num dado momento. Se no
século XIX esses dados não estavam a disposição, hoje eles estão, e os resultados deste tipo de análise saltam aos
olhos.
De acordo com os dados, não há relação importante entre o estoque de capital e a taxa de desemprego. Além
disso, quanto maior é o estoque de capital per capita em uma economia, maior é o salário médio. Em países
desenvolvidos, há mais capital, mais máquinas e os salários são muito mais altos e o desemprego não é maior que
em países com pouco capital.
A evolução nos processos de produção e as consequentes mudanças nos salários e na natureza dos empregos
não são fenômenos recentes. De fato, essa história começa bem antes da revolução industrial. Mais precisamente, há
milhares de anos atrás.
Antes de domesticar as primeiras plantas selvagens (ou seja, adaptá-las ao cultivo agrícola), há cerca de 11.000
anos atrás, os homens viviam em pequenos bandos nômades de caçadores-coletores. Por volta daquela data, segundo
nos relata o biólogo Jared Diamond em seu livro Guns, Germs, and Steel, foram domesticadas as primeiras espécies
de plantas na região da Eurásia, dando origem à agricultura e ao sedentarismo. A domesticação das plantas, dentre
várias consequências, diminuiu a utilidade dos caçadores para os bandos, apesar de não eliminá-la completamente.
Não era mais preciso tanta gente correndo pela mata ou se aventurando pelos rios atrás de alimento. Ao proporcionar
comida de modo mais farto e fácil, a domesticação das plantas – um avanço tecnológico importantíssimo – gerou
provavelmente a primeira onda de re-alocação de emprego mundial. Caiu a demanda pelos serviços dos caçadores-
coletores e cresceu a necessidade de agricultores.
No começo, é provável que os mais empedernidos caçadores tenham torcido o nariz para a mudança. Alguns
devem inclusive ter amargado o desemprego e a perda de status social por algum tempo, e quem sabe até tentado
organizar movimentos contra o avanço da agricultura. Mas, com o decorrer do tempo, eles deixaram sua atividade
antiga, passaram a se dedicar a outras tarefas (dentre elas a própria agricultura) e se beneficiaram do avanço
econômico-social trazido pela maior abundância de alimentos. Prova disto é que a proporção de caçadores-coletores
no mundo é hoje ínfima, e nos recônditos quinhões onde esta atividade não foi completamente eliminada, predomina
a pobreza.
Difundindo-se a prática da agricultura, mais gente passou a despender boa parte de seu tempo nas lavouras, mas
como a prática agrícola é mais eficiente na tarefa de prover alimentos que a caça-coleta, menos pessoas eram
necessárias para gerar a mesma quantidade de alimentos e assim, alguns membros do grupo puderam se dedicar a
outras atividades. Não é à toa que os primeiros sinais do desenvolvimento da linguagem escrita tenham sido
encontrados justamente nas regiões que mais precocemente dominaram a agricultura. O antigo caçador-coletor, não
aproveitado na agricultura, mas beneficiado por ela, tornou-se inventor da escrita moderna. Nada mal.
Mas o avanço não parou aí. Como nos ensina Adam Smith, um dos pais da ciência econômica moderna, a
labuta cotidiana, no mesmo lugar, sobre o mesmo objeto, facilita a descoberta de novas técnicas de fazer a mesma
tarefa mais eficientemente. Deste processo de constante inovação surge então a enxada, a irrigação, o plantio
alternado, o trator, os fertilizantes, etc, e a produtividade agrícola não cessa de crescer.
Estas descobertas de melhores práticas agrícolas, que vieram gradativamente, levaram, com o tempo, a
aumentos adicionais da quantidade de alimento produzida por cada trabalhador. A economia foi assim enriquecendo
(mais produção por trabalhador), e um novo fluxo de re-alocação de trabalho começa então a ocorrer: agora cada vez
menos gente era necessária nas lavouras para produzir alimento para todos, e consequentemente a quantidade de
gente empregada no campo começa a declinar.
Para se ter uma idéia da magnitude deste movimento no período mais recente, nos países hoje desenvolvidos, a
população empregada no campo no começo do século XX era de mais ou menos 50% da força de trabalho. No final
do mesmo século, este número beirava os 5%. Mas os 45% restantes não ficaram desempregados. Hoje, a taxa de
desemprego nos Estados Unidos e na Inglaterra oscila nas vizinhanças dos 5%. Na Europa continental, este número
é maior, por volta de 10%, mas ainda assim bem menor que a perda de emprego no setor agrícola ao longo dos
últimos cem anos.
Já nos países mais pobres do mundo, onde há fome e extrema miséria, muita gente se encontra ainda empregada
na agricultura, em muitos dos casos mais de 50% da força de trabalho é ainda rural. Nestes lugares, por diversas
razões, não chegaram as inovações tecnológicas e o maquinário moderno, e muita gente segue empregada na
agricultura. A maioria, contudo, amarga a pobreza extrema.
O impressionante é que nestes cem anos de redução da mão-de-obra no campo (e redução também da proporção
do produto agrícola dentro do PIB total), a produção agrícola total cresceu a taxas vertiginosas. O filósofo e
economista Malthus, que postulou no século XVIII que o crescimento da produção de alimentos seria incapaz de
acompanhar o passo do crescimento populacional, errou. A produção de alimentos, ao contrário do por ele esperado,
cresceu mais rápido que a população mundial, e hoje os episódios de fome em países muito pobres não se devem à
pouca produção de comida, mas à pobreza.
Como foi dito acima, as máquinas e a tecnologia expulsaram grandes contingentes de agricultores do campo,
mas isso não foi ruim para as pessoas. Pelo contrário. O desemprego no campo foi compensado, ao longo do tempo,
pelo surgimento do emprego em outras áreas: muitos se empregaram na indústria; mais pessoas passaram a se
dedicar aos serviços em geral; outros se empregaram nos cargos públicos; aumentaram os contingentes dos
exércitos; cresceu o número de cientistas, professores, pintores, músicos, navegadores, apenas para citar algumas das
ocupações que, dinamicamente, e de maneira imprevisível, foram, ou crescendo, ou surgindo, para tomar o lugar das
antigas.
Este processo evolutivo é fluido, ininterrupto e incerto. Se há muito tempo atrás muitos de nós éramos
caçadores, depois nos tornando agricultores, e mais tarde trabalhadores industriais, hoje somos majoritariamente
provedores de serviços. Nos países desenvolvidos, mais de 60% da força de trabalho hoje se encontra no setor
terciário: as pessoas estão criando seguros para evitarmos riscos, fazendo cinema, cozinhando pratos que misturam
elementos franceses e tailandeses, provendo serviços para os turistas, etc.
E Amanhã? Guias de turismo lunar? Agricultores do solo submarino? Produtores de energia alternativa?
Simplesmente não há como saber. Por exemplo, em 1943, o presidente da IBM disse: “eu acho que há um mercado
mundial para talvez cinco computadores”. Como se pode ver, a economia evolui, mudanças tecnológicas fazem
desaparecer profissões e surgir outras.
O que sabemos é que as máquinas e o avanço tecnológico, que ganharam grande impulso a partir do início do
século XIX, tiraram a humanidade do nível de subsistência e nos proporcionam hoje um nível médio de vida muito
superior ao de nossos antepassados, assim como, provavelmente, proporcionarão bem-estar econômico e social
maior ainda para as gerações futuras. Já onde houve pouca penetração tecnológica e de máquinas, os salários
permaneceram baixos e a renda total também.
O número de máquinas e novas técnicas a serviço do homem na produção de bens e serviços cresceu,
substancialmente, desde a Revolução Industrial. Fosse o número de empregos na economia fixo, o aumento da
participação das máquinas e o avanço científico teriam causado uma explosão do desemprego. Mas o número de
empregos não está fixo porque não há uma certa quantidade definida de bens que temos que produzir. Se as
máquinas fazem parte do nosso trabalho, nós produzimos mais. Aliás, muito mais. Como nos mostra o historiador
Angus Madison, nos 8 séculos entre o ano 1000 e o ano 1820, a renda mundial per capita cresceu 50%. Após a
revolução industrial, entre 1820 e 1998, a renda mundial per capita cresceu espantosos 800%.
O equívoco de quem pensa que as máquinas roubam, de maneira duradoura, emprego do trabalhador, está
diretamente associado à idéia de que a quantidade e a natureza dos postos de trabalho estão fixos, quando em
verdade não estão. E não estão porque ainda não se encontraram limites para as possibilidades de se produzir mais,
ou de se produzir coisas diferentes.
A evolução da natureza dos empregos é, por vezes, surpreendente. No filme “Flores Partidas”, a personagem
vivida por Sharon Stone responde ao ex-namorado Don Johnston (Bill Murray), quando perguntada sobre sua
profissão atual, que ela agora é arrumadora profissional de armários. A outra ex-namorada de Don, Carmem (Jessica
Lange) trabalha intermediando o diálogo de animais com seus donos, uma espécie de psicóloga e médium de
animais de estimação. Esses são exemplos extremos de uma tendência mundial de criação de novos serviços, que
têm absorvido os trabalhadores que estavam há 100 anos majoritariamente na indústria, e há 1000 anos
principalmente na agricultura.
A tendência de crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho também ilustra a criação de
novos empregos na economia. Até algumas décadas atrás, um percentual muito baixo das mulheres se dispunha a
adentrar na força de trabalho. Mas, mudanças culturais e de atitude, a queda da taxa de natalidade e inovações
tecnológicas como a máquina de secar e o forno microondas levaram a uma maior participação da mulher no
mercado de trabalho em quase todo o mundo. As mulheres, que antes estavam realizando tarefas domésticas,
passaram a buscar inserção no mercado de trabalho, competindo com os homens. Entretanto, isso não gerou uma
elevação da taxa de desemprego porque o número total de empregos cresceu.
Como já mencionado, o avanço tecnológico e mais investimento em máquinas, no longo prazo, estão
associados a salários mais altos. Países desprovidos de máquinas e atrasados tecnologicamente são, em geral, mais
pobres. Mas por quê precisamente o par tecnologia/máquinas está associado a salários mais elevados?
Salários, como dissemos no capítulo 4, dependem fundamentalmente da produtividade dos trabalhadores.
Quanto mais o trabalhador produz para a empresa, mais a empresa está disposta a pagar por seus serviços. E
máquinas e tecnologia habilitam ao mesmo trabalhador produzir mais. Esse incremento faz com que a empresa
esteja disposta a pagar salários mais altos.
Há quase 100 anos, Henry Ford criava a linha de montagem para a produção do seu Modelo T empregando
muitas máquinas e novas técnicas. A produtividade de sua fábrica era consequentemente alta para os padrões da
época, um carro era montado em cerca de 100 minutos. O ritmo nas linhas de montagem exigia bastante energia dos
operários, mas os trabalhadores da Ford recebiam pagamento superior ao salário de outras empresas. Mais
produtividade, mais salário.
Por outro lado, trabalhadores desprovidos de máquinas e tecnologia tendem a ganhar menos. Um agricultor de
um país pobre da África, que não tem acesso a sementes de boa qualidade, tratores e fertilizantes, produzirá muito
menos por hora trabalhada que seu par brasileiro, com acesso àqueles três insumos de produção. Este, por sua vez,
produzirá menos que seu par norte-americano, em posse de tecnologia mais avançada e que tem ainda a sua
disposição estradas e ferrovias de melhor qualidade para escoar sua produção. Em parte devido a estas diferenças de
tecnologia e máquinas, a renda do agricultor americano será maior que a do brasileiro, que será mais alta que a do
africano.
Isso não significa que apenas jogar equipamentos de última geração em um país pobre vai aumentar os salários
da população local: além de terem mais capital, os países mais desenvolvidos têm uma força de trabalho mais
qualificada, capaz de tirar proveito dos avanços tecnológicos. Da mesma maneira, o conhecimento dos engenheiros
seria pouco útil numa ilha isolada do resto do mundo sem fábricas e máquinas.
Mas em que pese os inquestionáveis ganhos econômicos do avanço tecnológico em uma perspectiva de longo
prazo, as coisas não são tão simples no curto prazo. A constante destruição e criação de empregos que decorre do
progresso técnico, e de mudanças institucionais, gera custos de curto prazo que não podem ser menosprezados e que
podem funcionar como barreira a mudanças muitas vezes necessárias.
O desemprego, ainda que temporário, gera mesmo muito sofrimento e toda sorte de dificuldades. Não é nada
fácil quando uma habilidade adquirida ao longo de anos deixa de ser valiosa e faz-se então necessário adquirir outras
novas, mais úteis às necessidades de um “admirável mundo novo”. Que o diga o “pai do Woody Allen”. Começando
com os custos econômicos, como irá o desempregado sustentar um nível de consumo minimamente razoável no
intervalo de tempo que abrange a aquisição de novas habilidades e a busca por novo posto de trabalho? E o
problema não para aí. Os impactos na autoestima e na satisfação pessoal gerados pelo desemprego também não
podem ser menosprezados.
Além disso, os grupos que sofrem no curto prazo com a chegada das máquinas, do avanço tecnológico, ou da
abertura econômica têm todo o interesse em se organizar para impedir a adoção da nova tecnologia que gerará
perdas diretas para eles. Quanto mais difícil a adaptação à nova realidade, mais pressão eles exercerão pela
manutenção do status quo, e mais provável, portanto, que a sociedade como um todo se veja privada de determinado
avanço tecnológico.
Uma das objeções dos “Luddites”, os trabalhadores ingleses que destruíam máquinas há 200 anos atrás, era que
como os novos equipamentos podiam ser operados por mão-de-obra menos qualificada, haveria redução dos salários
dos trabalhadores tradicionais do setor. De fato, as máquinas reduziram mesmo o salário dos empregados mais
qualificados naquele setor por terem feito com que mais pessoas pudessem realizar uma tarefa antes bem
desempenhada apenas por aqueles dotados de habilidades específicas. Por outro lado, a inovação foi benéfica para o
grupo dos menos qualificados, que antes não podiam trabalhar na indústria, e também para a sociedade em geral,
que se beneficiou do acesso a roupas a preços mais baixos.
Para compensar as perdas e facilitar a readaptação dos grupos que são mais adversamente atingidos por uma
inovação tecnológica, pelo aumento de máquinas empregadas na produção, ou por outros fatores que geram re-
alocações traumáticas na economia, os governos adotam medidas como o salário desemprego e programas de
retreinamento. Mais adiante, após entendermos melhor o papel do governo na economia, voltaremos a essa questão.
Máquinas, tecnologia, abertura econômica e maior participação das mulheres no mercado de trabalho não têm
efeitos duradouros sobre o desemprego. Portanto, não se deve tentar impedir mudanças que são, no longo prazo,
benéficas para a sociedade como um todo. Imagine o leitor a perda para a economia mundial se o sindicato dos
datilógrafos tivesse logrado impedir a difusão dos microcomputadores, que acabaram por jogar a pá de cal em cima
daquela profissão.
Menos dramaticamente, impor leis impedindo empresas de demitir, ou determinar legalmente o tamanho
máximo da jornada de trabalho são exemplos concretos de decisões que recorrem à economágica, e que não ajudam
a diminuir o desemprego no médio e longo prazos. Por quê? De novo, porque o número de empregos não é uma
constante da natureza e as firmas reagem a este tipo de imposição. Por exemplo, países da Europa continental que
têm como lei uma curta jornada de trabalho e leis trabalhistas menos flexíveis apresentam uma maior taxa de
desemprego e, principalmente, mais longos períodos de desemprego por causa dos efeitos adversos dessas leis na
criação de empregos pelas empresas.
Quando inventamos maneiras de produzir melhor, estamos aumentando a renda média no mundo e a quantidade
de bens e serviços disponíveis para o nosso consumo. Mas a renda pode aumentar de modo desigual, porque os que
não conseguem tirar proveito das novas tecnologias podem perder espaço para os que conseguem. De fato, há
evidências de que o avanço tecnológico pode beneficiar os indivíduos com mais capacitação e ao mesmo tempo
prejudicar os menos instruídos (em geral, mais pobres). A questão da redistribuição de renda será tratada em
capitulo posterior.
Em suma, as pessoas estão escolhendo seu trabalho e seu consumo e as empresas estão escolhendo sua
produção, suas contratações e seus preços, para maximizar lucro. Preços, salários, empregos e produção são
determinados pela interação destas escolhas. No capítulo seguinte, passamos à discussão sobre as restrições afetando
as escolhas.
6. E eu vos declaro marido e mulheres
O que ocorreria se uma nova lei desse a todo homem o direito de se casar com até 3 mulheres, mas vetasse esta
possibilidade às mulheres? No Brasil, se aprovada, esta lei provocaria a indignação de muita gente. Contudo, é
instrutivo pensar no que aconteceria se esta lei passasse a vigorar.
Imagine se todo homem resolvesse exercer seu novo direito e se casasse mesmo com 3 mulheres. Seriam
necessários muitos quartos na casa, e provavelmente haveria muitas brigas, intrigas e rixas domésticas. Devido à lei,
o homem seria o todo-poderoso, e imporia com alguma facilidade suas vontades, pois resolvesse uma mulher entrar
em conflito ou dele discordar, o homem poderia puni-la deixando-a num canto e escolhendo dar mais atenção às
outras duas. Neste mundo pós-lei, ao passear na rua cada homem sairia de braços dados com 3 mulheres. Ia faltar
braço!
Mas espera um pouco... como podem faltar braços de homem? Para todo homem exercer esse novo direito,
seria preciso haver no mundo 3 mulheres para cada homem. Mas não há. O número de mulheres e homens no
mundo é muito parecido e, portanto, a conta não fecha. Assim, se a tal lei entrasse em vigor, seria impossível que
todos os homens se casassem com 3 mulheres. Para cada galã com 3, haveria dois outros homens sobrando, sem
mulher alguma.
A lei não pode revogar a restrição imutável e dada pela natureza de que o número de homens e mulheres no
mundo é aproximadamente igual. Dito de outro modo, a lei não cria mulheres. Em média, existe um homem para
cada mulher, e enquanto for esta a proporção no mundo, não há lei que possibilite a todo homem se casar com 3
mulheres. Não há como ignorar a restrição dada pelo número de mulheres existentes. Obviamente, vale o mesmo
argumento para uma lei possibilitando cada mulher se casar com 3 homens.
Agora, se alienígenas abduzissem boa parte da população masculina mundial para realizar suas experiências de
rotina e o número de homens caísse para um terço do valor atual, apenas um terço das mulheres poderia estar
casada, de acordo com a lei corrente. A mudança de lei sugerida poderia então ser considerada, visando evitar que
um número demasiado grande de mulheres permanecesse sem casar. Com o ataque dos alienígenas, não haveria lei
que conseguisse garantir a todas as mulheres o direito de se casar com um homem se este não pudesse estar casado
com mais mulheres simultaneamente.
Nos capítulos anteriores, nós vimos como as escolhas das pessoas determinam os preços, os salários, a
quantidade e a natureza dos empregos, e a produção de um país. Neste capítulo, vamos voltar nossa atenção para as
restrições ou limitações que afetam essas escolhas.
No mundo, vivemos cercados de restrições porque os recursos disponíveis para consumir e produzir não são
infinitos. Ao contrário, eles são escassos. No exemplo lúdico apresentado acima, não há três mulheres para cada
homem em nenhum país do mundo. Mais preocupante do que isto, em países pobres não existem recursos
suficientes para resolverem-se todas as mazelas socioeconômicas simultaneamente. É preciso escolher prioridades.
Conscientizar-se da existência da restrição de recursos é o primeiro passo para uma sociedade alocar eficazmente os
recursos que possui. Saber que não há como prover tudo para todos ilumina o debate sobre quais são as prioridades,
principalmente quando o erário público é que está em questão.
Todos nós prestamos atenção às restrições que se impõem às nossas próprias escolhas. Nosso dinheiro é
limitado, então temos que escolher entre viajar nas férias ou trocar de carro. Nosso tempo também é limitado, então
se escolhermos dormir de dia, ir à faculdade à noite, e tocar violão de madrugada, sobrarão poucas horas para
estudar. Quando recebemos convites para dois jantares no sábado à noite, precisamos escolher um. Se o que
ganhamos com o nosso trabalho não é suficiente para alimentar nossas famílias, ou nossos filhos mais velhos vão
trabalhar, ou não teremos o que dar de comer aos menores.
Essa lógica, que é tão simples para as decisões individuais, também se aplica às escolhas do país como um todo.
Os gastos governamentais são financiados com os impostos arrecadados da população – não há como se comer o
pão que não se produziu. Recursos públicos não crescem nos arrabaldes de Brasília. Todo o gasto do governo
precisa ser financiado com recursos produzidos pela sociedade e, portanto, quando o governo gasta, ele
invariavelmente está tirando recursos de alguém. É preciso, portanto, que haja uma boa razão justificando seu gasto.
Infelizmente, em muitas ocasiões, no bojo das discussões sobre políticas públicas, esta restrição básica que se
apresenta às escolhas do país é esquecida.
Por exemplo, muitas vezes ouvimos slogans defendendo a “universidade gratuita”. Mas construir e manter as
salas de aula, equipar laboratórios e contratar professores custa dinheiro, dinheiro que não cai do céu. Se a
universidade é gratuita para quem estuda, é porque quem não estuda está pagando. O meu direito à universidade
gratuita é a sua obrigação de pagar pela minha educação universitária.
No mundo da economágica, o governo pode criar universidades gratuitas. Os professores cairão dos céus para
ensinar os alunos, as salas de aula serão construídas de graça, os laboratórios doados pelos mesmos alienígenas
anteriormente mencionados. No mundo real, onde valem as leis da economia, a coisa é diferente. Não existem
universidades gratuitas e as leis, infelizmente, não podem criá-las, assim como a lei do casamento não cria duas
mulheres a mais para cada homem. No mundo da economia, nada cai do céu. No mundo da economia, existem
restrições de recursos.
As leis podem sim determinar a divisão do custo do ensino universitário entre os estudantes e a população em
geral. Essa questão é muito importante e será discutida a fundo em capítulo futuro que tratará da educação. Aqui, a
mensagem é simplesmente a de que não existe algo que se possa chamar universidade gratuita. Ela pode ser gratuita
para um grupo, mas não é gratuita para a sociedade.
Como vimos anteriormente, para melhorar a vida da população mais pobre, é preciso melhorar o conjunto de
alternativas disponíveis a eles – ou seja, é preciso mexer nas restrições às suas escolhas. Um programa do governo
que dá dinheiro aos pobres pode ajudar, mas aí se esbarra na mesma questão: os recursos têm que vir de algum lugar
dado que o governo mesmo não cria recursos. Para financiar o programa de transferência de renda é preciso taxar a
população não beneficiada. Essa é uma escolha importante e será discutida mais adiante.
É curioso ver como os governantes gostam de alardear que eles colocaram recursos na educação, que eles
aumentaram as transferências de recursos para os mais pobres, que eles construíram novas estradas. Mas quem
financiou estes gastos foi você, foi a sociedade como um todo, que paga impostos. O que os políticos por nós
escolhidos fazem é decidir onde alocar os recursos que lhes entregamos via tributos. É uma tarefa importantíssima,
sem dúvida alguma. Mas o dinheiro, os recursos, são da sociedade, não dos políticos. Para que o governo possa
gastar mais, ele precisa tirar recursos de nós. Não há como se escapar desta restrição. Não há como desrespeitar o
que os economistas chamam de restrição orçamentária.
Portanto, quando discutimos se o governo deve ou não destinar recursos para certa atividade, a questão que
deve ser posta é a seguinte: devemos arrecadar dinheiro da população para que o Estado pague por estes bens ou
serviços? O benefício do serviço público que se programa implementar ou aumentar é maior que o custo do imposto
que o financia? Sempre que estivermos pensando nas escolhas do Estado, devemos nos colocar essa pergunta e
quando ouvirmos “que é um dever do Estado prover tal serviço”, devemos nos lembrar que isso significa
simultaneamente “é um dever da população pagar por tal serviço”.
Além de escolher o que o governo deve fazer, temos também que escolher como o governo deve taxar a
população. Por exemplo, para construir uma estrada, o governo pode arrecadar recursos via impostos ou cobrando
pedágio. Qual das duas maneiras é melhor? Esse assunto será o foco da nossa atenção em capítulo futuro.
No nosso dia a dia, lembramos constantemente das nossas limitações de tempo e dinheiro. Mas o orçamento do
governo é tão grande que parece que sempre cabe mais alguma coisinha. São tantos bilhões em impostos que parece
que uma solicitação de verbas a mais, outra obra ou transferência de recursos não vão fazer diferença. De fato, cada
um desses pequenos gastos representa uma proporção muito pequena do total despendido pelo Estado. Mas, para
cada um desses pequenos gastos, devemos pensar se vale a pena ou não arrecadar o dinheiro da população para
executá-los. Quando o governante raciocina deste modo, o Estado estará escolhendo como nós escolheríamos se
levássemos em conta as vontades e necessidades de todos.
É muito comum escutarmos pessoas utilizando a corrupção no governo como justificativa para algum gasto
público adicional: “são tantos milhões para os mensaleiros e querem cortar os investimentos em infraestrutura ou os
recursos para reformar a estrada!? Deveriam cortar é a corrupção, não o gasto com estradas!”.
Claro que viver em um país sem corrupção seria muito melhor para todos nós que escolhemos não nos
corromper. Qualquer uso do dinheiro público é melhor do que o desvio para o bolso de alguns corruptos. Mas o que
isto tem a ver com demanda por mais gasto público? Reformar a estrada, ou gastar mais em saúde, não vai diminuir
a corrupção. Aliás, pode até mesmo aumentá-la porque gera oportunidades adicionais para prática de suborno,
favorecimento político, etc. Colocando de outra forma: não é porque parte do dinheiro é desperdiçado que devemos
desperdiçar mais ainda, assim como não é porque os cupins estão roendo o pé da poltrona que devemos quebrar o
abajur, ou comprar outro abajur. Combater a corrupção é muito importante, pois quanto menos corrupção, menos o
governo tem que nos taxar para prestar os mesmos serviços. Mas isso não altera em nada, em absolutamente nada, a
maneira como devemos pensar cada gasto público. A pergunta crucial continua sendo: vale a pena arrecadar
dinheiro da população para este projeto?
Como dissemos anteriormente, todos nós enfrentamos restrições às nossas escolhas. Às vezes temos que
escolher entre a viagem nas férias e a reforma da casa. Mas uma possibilidade é pegar dinheiro emprestado e fazer
os dois, certo? Sim, e isso vale para pessoas, empresas e países. Contudo, como veremos no próximo capítulo, isso
não altera em nada a essência dos argumentos aqui apresentados.
7. O preço do futuro
Carlo Ponzi nasceu na Itália em 1882, migrou para os Estados Unidos em 1903 e nos anos seguintes teve
passagens pouco marcantes por diversos trabalhos e prisões até alcançar a fama em 1920. No final de 1919, Ponzi
deu seu passo decisivo para o hall da fama ao criar uma empresa que prometia dobrar o dinheiro dos investidores em
apenas 90 dias. A bem da verdade, não havia muita atividade produtiva na empresa, mas os primeiros investidores
realmente receberam seu dinheiro com o retorno prometido: Ponzi utilizava o dinheiro dos novos clientes para pagar
os antigos.
Esta exorbitante rentabilidade levou milhares de pessoas a investir o dinheiro na companhia de Ponzi em busca
de ganho rápido e fácil. A partir do início de 1920, dólares passaram a inundar os cofres de sua empresa. Com o
dinheiro de renovados investidores, Ponzi era capaz de repagar aqueles que haviam investido há 90 dias e optavam
por não reinvestir. Em meados de 1920, Ponzi era um milionário e uma celebridade em Boston, onde sua empresa
operava.
Como deve desconfiar o leitor, um esquema deste tipo não pode durar muito tempo. Em algum momento, o
fluxo de novos clientes não é suficiente para pagar aos antigos o dobro do que investiram há 90 dias e o esquema cai
por terra. De fato, em agosto de 1920, menos de um ano depois de começar a captar recursos de investidores, a
empresa de Ponzi faliu e ele foi preso por fraude. Muitos investidores perderam bastante dinheiro nesta ciranda.
Por seu fabuloso esquema, Carlo Ponzi merece ser considerado um dos grandes mestres da economágica.
Apenas no mundo da economágica, um negócio que se baseia em pagar dívidas tomando novos empréstimos de
terceiros, e assim sucessivamente, pode funcionar. No mundo real, consumir mais hoje contraindo dívida no banco
ou utilizando o cartão de crédito significa consumir menos amanhã; endividar-se para investir na produção,
comprando máquinas ou insumos, implica ceder parte do valor produzido aos credores quando o momento do
pagamento chegar.
Depois de outras tantas passagens por prisões e trabalhos pelo mundo, esse grande mestre da economágica
morreu no Brasil, no Rio de Janeiro. Sem dinheiro, claro. Mas o nome de Carlo Ponzi está gravado nos livros de
economia e criminologia.
Endividar-se é, essencialmente, trocar futuro pelo presente; poupar é o reverso da moeda. A dívida não amplia
nossa capacidade de gastar: ela amplia nossa capacidade de gastar hoje e reduz as nossas possibilidades de consumo
no futuro. O cartão de crédito não cria dinheiro, não aumenta nossa renda. Empresas, indivíduos e governos podem
gastar mais do que suas receitas em um dado periodo, mas para isso devem gastar menos do que recebem em outros
momentos.
Este capítulo trata do mercado que possibilita trocarmos bens presentes por bens futuros: o mercado financeiro
de empréstimos. Devido a essa possibilidade, a restrição orçamentária do governo e das pessoas, descrita no capítulo
anterior, deve ser vista como uma limitação que incide sobre o conjunto das escolhas possíveis hoje e no futuro, e
não como uma limitação ao gasto hoje. Se enxergamos a restrição orçamentária dessa maneira, a lógica exposta no
capítulo anterior segue intocada.
A possibilidade de trocar bens presentes por bens futuros é importante para consumidores, empresas e países.
Para alguns consumidores, pode ser desejável consumir mais do que sua renda em um certo período. Por
exemplo, se eu quero comprar um carro novo porque acabou de nascer minha filha, mas ainda não tenho dinheiro
suficiente para tal, eu posso pegar dinheiro emprestado e comprar o carro hoje – eis para isso os financiamentos, o
cheque especial, o cartão de crédito e os empréstimos pessoais. Mas o cartão de crédito não cria dinheiro, então de
onde vem os recursos para comprar o carro?
Esses recursos vêm de alguém que não tem necessidade de comprar o carro hoje e prefere poupar o dinheiro
para consumir mais no futuro. Para isso, ele deposita seu dinheiro no banco que intermedia a transação com o
tomador do financiamento. Em uma operação de empréstimo, o tomador está comprando dinheiro hoje e dando em
troca, ou melhor, se comprometendo a dar em troca, dinheiro amanhã. Assim como no mercado de bananas se troca
dinheiro por bananas e no mercado de carros se troca dinheiro por carros, no mercado financeiro, dinheiro hoje é
trocado por dinheiro no futuro.
Como diz o título deste capítulo, o juro é o preço do futuro, ou melhor, o preço relativo entre dinheiro no futuro
e dinheiro hoje. Se a taxa de juros é de 10% ao ano, 100 reais hoje equivalem a 110 reais daqui a um ano. Os 10
reais são o custo de ter as coisas hoje ao invés de no futuro.
Se muita gente quer antecipar o consumo, tomando dinheiro emprestado, há excesso de demanda por dinheiro
hoje e, consequentemente, excesso de oferta de dinheiro amanhã. De que maneira se dá o ajuste destes excessos?
Como explicado nos capítulos precedentes, via mudanças nos preços. Se falta banana, sobe o preço da banana; se
falta passadeira, sobe o salário da passadeira; se falta gente no cinema, cai o preço do ingresso. Se todo mundo quer
consumir bens hoje, o preço dos bens existentes hoje tem que subir com relação ao preço dos mesmos bens amanhã.
O aumento do preço do crédito – a taxa de juros – desestimula a demanda por dinheiro hoje, e estimula
simultaneamente a poupança, que é o mesmo que estimular a demanda por dinheiro amanhã. O presente fica mais
caro, e o futuro mais barato, e em vista disto as pessoas alteram suas escolhas.
Justamente porque podemos pegar dinheiro emprestado e podemos poupar, nosso consumo pode ser diferente
da nossa renda em um dado instante do tempo. Quando pegamos recursos emprestados, ele é maior que a renda no
presente; quando poupamos, ele é menor. Assim, gastos e receitas não precisam ser iguais em todos os instantes do
tempo, mas gastar acima da renda hoje precisa ser compensado por gastos abaixo da renda em algum momento no
futuro.
Como dissemos no capítulo 6, não há como escapar da restrição orçamentária. Entretanto, é possível transferir
consumo de um período para o outro. Por exemplo, caso em um determinado mês eu receba R$3000 de salário mas
queira gastar R$3500, eu posso fazê-lo pegando emprestado os R$500 que faltaram. No mês seguinte eu terei uma
dívida de R$500 mais os juros – digamos, R$20. Se meu salário não muda e eu recebo R$3000 novamente, me
sobrarão apenas R$2480 para consumir após quitar a dívida. O empréstimo posterga a necessidade de me ajustar aos
meus meios. É verdade que há a possibilidade de tomar-se novo empréstimo e, com estes recursos, honrar-se o
antigo, mas esquema Ponzi só funciona no mundo da economágica. No mundo real, o dia do ajuste de contas alguma
hora chega, dado que ninguém vai querer financiar para sempre indivíduos (ou empresas, ou governos) com planos
de gastar continuadamente mais do que permitem seus recursos.
Há também a possibilidade de não se honrar a dívida assumida – aplicar um calote no credor. Isso de fato muda
a restrição orçamentária de pessoas (ou até mesmo países), ampliando suas possibilidades de gastar no curto prazo.
O problema é que o caloteiro encontrará dificuldades para levantar novos empréstimos no futuro e poderá sofrer
sanções legais por suas estripulias. De fato, a taxa de juros leva em conta a propensão de indivíduos e países a
repagar seus empréstimos. Não é por outro motivo que credores internacionais cobram mais caro para emprestar a
países por eles considerados, seja pelo seu histórico, seja pelas suas frágeis condições econômicas, menos propensos
a repagar.
A possibilidade de não repagar é a grande diferença entre o mercado de crédito e os mercados de carros,
bananas, passadeiras e entradas de cinema. Nestes últimos, as trocas se materializam quase que imediatamente. Eu
desembolso alguns reais e recebo a banana no caixa do supermercado no mesmo instante. A passadeira recebe no
final do dia, no máximo no final do mês. Em uma operação de crédito, não. Dinheiro no presente é trocado por uma
promessa de pagamento no futuro, e às vezes este futuro está anos à frente. Por isto, todos os fatores que envolvem a
possibilidade de calote – punições para não pagadores, regras informais da sociedade, instituições – são muito
importantes para entender o funcionamento deste mercado.
Poder trocar dinheiro hoje por dinheiro no futuro é importante para o bom funcionamento das empresas. Para
produzir, as empresas precisam do trabalho das pessoas e, normalmente, também de um arsenal de máquinas e
equipamentos, mas em muitos casos a empresa não tem hoje recursos próprios suficientes para comprá-los. O
mercado de crédito possibilita à empresa comprar a máquina hoje com o lucro que ela gerará amanhã.
O juro do empréstimo que o gerente lhe cobrará para que você possa comprar a máquina é o verdadeiro custo
de adquiri-la. Note que se não houver juro, quando você compra uma máquina de R$ 10.000, pegando este mesmo
valor emprestado no banco, sua posição financeira líquida é a mesma de antes de adquirir a máquina, ou seja, zero.
Você tem R$ 10.000 de dívida (seu passivo), mas também R$ 10.000 de máquina (seu ativo). Mas como os juros são
positivos, é preciso adicioná-los no lado do passivo. Sua dívida é então maior que o valor da máquina. Por exemplo,
se o juro é 10% ao ano, a dívida é de R$ 11.000. A máquina, porém, se vendida para saldar a dívida, só levantaria
R$ 10.000 (isto sem considerar a depreciação do valor da máquina pelo uso e a taxa de inflação). O custo do capital
é então esta diferença de R$ 1.000. O custo do capital é exatamente o juro.
A conta que o empresário faz antes de comprar a máquina é, portanto, a seguinte: se o que a máquina gerar a
mais de receita for superior à taxa de juro do empréstimo, ele compra a máquina; caso contrário, ele não investe. Se
a máquina, por exemplo, aumenta os ganhos da empresa em R$ 1.500, então vale a pena se endividar para comprá-la
mesmo com juros de 10%. Se ela adiciona apenas R$ 500 de receita, então só vale a pena adquiri-la se os juros
forem inferiores a 5%.
O exemplo acima trabalha com a hipótese de que o empresário não tem dinheiro próprio para comprar a
máquina. Mas e se ele tiver, o cálculo que o leva a investir ou não é diferente?
O dono da fábrica que tem dinheiro em caixa pode consumir os lucros de sua firma hoje ou pode escolher
transferir esse lucro para consumo futuro. Para sacrificar o consumo presente para consumir mais no futuro, ele tem
duas opções: comprar a máquina, ou depositar esse lucro em um banco e receber os juros. Assim, o custo de
oportunidade de investir em máquinas, ou seja, o quanto se ganharia se ao invés de comprar máquinas o empresário
colocasse o dinheiro no banco, é o juro que o empresário recebe para emprestar seu capital. Portanto, ele compra a
máquina se o retorno que esta lhe traz em termos de maior produção superar o juro que ele pode receber do banco.
Assim, tendo ou não dinheiro em caixa, a lógica que norteia a decisão de investir é a mesma.
De uma maneira geral, investir é sacrificar consumo hoje para consumir-se mais amanhã.
A mesma ideia se aplica para aluguéis de imóveis. O inquilino aluga o imóvel do proprietário, assim como o
dono da fábrica aluga o capital do banco quando precisa tomar emprestado para investir. Quem aluga – capital ou
apartamento - usufrui um serviço: o retorno da máquina comprada, ou o teto que o protege do sereno da noite. Quem
fornece o serviço naturalmente cobra por ele, o juro do poupador no primeiro caso, o aluguel do proprietário no
segundo.
Assim como consumidores e empresas, os países também podem poupar ou endividar-se.
Como já dito, os gastos do governo são sempre financiados pelos impostos que pagamos. Mas, como no caso
dos indivíduos e empresas, os impostos não precisam ser a todo instante iguais aos gastos do governo. E nem
devem. Se alguma tragédia natural torna necessário um aumento expressivo dos gastos públicos para ajudar os
atingidos de uma enchente, por exemplo, não faz sentido aumentar os impostos na mesma proporção do crescimento
dos gastos no mês da tragédia para logo depois, cessada a necessidade de ajuda humanitária, reduzir estes impostos
novamente ao patamar prévio. Neste caso, em vez de impor esta oscilação aos impostos, o governo tem a alternativa
de emitir dívida, arrecadando com ela os recursos de que tem necessidade, e deixando para pagar os compradores
desta dívida mais à frente. Para pagar os compradores de sua dívida, o governo precisará arrecadar mais, mas o
aumento de imposto neste caso pode ser espalhado ao longo de um estendido período de tempo.
Seja taxando, seja emitindo dívida, um aumento dos gastos do governo precisa ser financiado com redução do
consumo privado das pessoas. Ao cobrar impostos, o governo tira dinheiro das pessoas. Ao emitir dívida, o governo
tira dinheiro e entrega títulos da dívida a determinados cidadãos. Estes títulos serão pagos no futuro, é verdade, mas
pagos com dinheiro de quem? Dos próprios cidadãos, dado que o governo não fabrica recursos. Nos dois casos, para
o governo poder gastar mais, as pessoas precisam gastar menos. Em resumo, dívida do governo hoje é o mesmo que
mais imposto amanhã.
A alternativa de dar o calote nos cidadãos também existe. Quando isso acontece, o governo deixa de honrar os
compromissos assumidos com o grupo de pessoas que emprestaram dinheiro quando da emissão da dívida, mas
também deixa de taxar toda a população. Essa opção é idêntica a cobrar imposto dos credores, no valor integral da
dívida. A diferença é que nesse caso o Estado engana seus próprios cidadãos, uma política pública que não faz muito
sentido.
O Estado pode também pegar dinheiro emprestado dos estrangeiros e, no futuro, não repagar. Mas os custos
para a economia decorrentes do calote na dívida são normalmente grandes o suficiente para que valha a pena honrar
os compromissos com os credores externos. Os estrangeiros, assim como nós, estão escolhendo e se inferirem que
há uma grande chance de não serem repagos, não nos emprestarão recursos. Assim, pegar dinheiro emprestado e não
repagar normalmente não é uma boa solução.
É verdade que, às vezes, alguns eventos fazem com que seja muito custoso pagar e o país escolhe renegociar
suas dívidas. Por exemplo, os aumentos nas taxas de juros internacionais no início dos anos 80 levaram boa parte
dos países latino-americanos a buscar acordos com o FMI e credores internacionais. Depois de muitos anos de
negociação, Brasil, Uruguai, Argentina e México obtiveram uma redução da dívida de cerca de 30%. Mas a
possibilidade destas renegociações é levada em conta na determinação das taxas de juros dos empréstimos. As taxas
de juros mais altas compensam as eventuais reduções no pagamento.
Em suma, a restrição orçamentária impõe limites sobre os gastos que o estado pode incorrer – é preciso
arrecadar dinheiro dos cidadãos para pagar o que gasta. É sempre possível financiar parte dos gastos com dívida,
mas dívida hoje significa mais impostos amanhã, ou menos gastos amanhã. Portanto, é impossível violar a restrição
orçamentária que incide sobre as decisões presentes e futuras.
Mas, espere, há outro jeito de financiar gastos: o governo pode simplesmente imprimir dinheiro! Desse modo, o
governo paga as suas despesas extras com o dinheiro que imprimiu, sem impostos e sem dívida. Bem, só se for no
mundo da economágica, porque no mundo real imprimir dinheiro não cria os recursos, as estradas, as ambulâncias, o
trabalho das pessoas. Se o governo usa mais recursos, alguém tem que usar menos, e este alguém só pode ser o
cidadão.
Na verdade, imprimir dinheiro é uma forma indireta, escondida, de taxar. Quando o governo imprime moeda, o
dinheiro que as pessoas carregam consigo perde valor. O país não fica mais rico porque a produção de bens e
serviços não se altera magicamente com a emissão de notas novas. Mas como existe agora maior quantidade de
notas de Reais indo atrás da mesma quantidade de bens, os preços dos bens se elevam em Reais. Portanto, o poder
de compra dos reais que temos no bolso diminui e ficamos mais pobres do mesmo jeito que ficaríamos mais pobres
se o governo impusesse um novo imposto para quem tem dinheiro vivo no bolso. Assim, imprimir dinheiro tem o
mesmo efeito que cobrar imposto sobre a quantidade de moeda que o indivíduo detém. E este imposto disfarçado na
inflação incide mais pesadamente sobre as pessoas mais pobres dado que muitas delas carregam parte importante de
sua renda sob a forma de dinheiro.
Em resumo, com dívida ou sem dívida, para qualquer proposta de gasto do governo, a pergunta que devemos
nos fazer é a mesma do capítulo 6: vale a pena arrecadar dinheiro da população para este projeto?
8. Vegetarianos, preços e bois
Um jornalista dinamarquês, certa tarde, decide publicar uma charge ofensiva a Maomé na edição de seu jornal
de tiragem diária. Uma onda de indignação atinge vários países islâmicos, e cresce a tensão ocidente/oriente. Não
parece que a piora nas relações irá se restringir ao curto prazo. Aumenta a incerteza geopolítica no mundo.
Quase que imediatamente o preço internacional do ouro se eleva. A elevação na incerteza geopolítica gera um
aumenta na demanda por ouro, considerado por muitos como refúgio seguro para os capitais em tempos mais
turbulentos. A elevação do preço do ouro sinaliza uma mudança de preferências das pessoas em face de um mundo
mais incerto.
A alta do ouro, por sua vez, torna mais atraente investir no descobrimento de novas minas. Recursos financeiros
são então deslocados para esta atividade, e trabalhadores migram das minas de carvão para as minas de ouro. É o
incentivo fornecido pelo aumento do preço do ouro que põe em marcha toda esta re-alocação de capitais, recursos
humanos e físicos. São ajustes do lado da oferta.
Mas há ajustes também do lado da demanda por ouro para outras atividades. Um noivo, prestes a presentear sua
futura esposa com um bela aliança de dezoito quilates vai à joalheria e descobre que agora precisará desembolsar
mais pelo presente. De fato, após a divulgação da charge, e a consequente valorização do ouro como reserva de
valor, é provável que menos gente compre anéis de casamento com elevada quantidade de ouro. Se ainda quiser
comprá-lo, nosso noivo precisará desembolsar mais dinheiro.
Por causa de uma charge do Maomé, a aliança de noivado ficou mais cara e mais gente passou a se dedicar a
encontrar mais ouro. O preço está maluco, causando alterações sem sentido na economia? Não, muito pelo contrário.
Todas estas re-alocações são bem-vindas, eficientes no linguajar do economista, visto que estão em consonância
com o desejo da sociedade de alocar maior parcela de sua poupança sob a forma de reservas de ouro. Para que esta
vontade possa se concretizar, é preciso que se encontre mais ouro e/ou que se demande menos ouro para outras
atividades (fabricação de anéis, por exemplo). Não há como evitar este ajuste, e a alteração no preço se encarrega
justamente de por em marcha estas mudanças na oferta e demanda.
O curioso é que aos ouvidos do mineiro que foi trabalhar buscando ouro, e aos do noivo que comprou uma
aliança mais simples, talvez nunca tenha chegado o episódio da charge. Mas foi ele o responsável pela mudança de
emprego de um e pela diferente escolha de consumo do outro. O sistema de preços é quem silenciosamente
operacionaliza a mudança necessária no mundo pós-charge. A causa desta alteração é real e concreta: o aumento das
tensões geopolíticas.
No capítulo 3, vimos como os preços são determinados, mas pouco falamos da importância do sistema de
preços para o bom funcionamento do sistema econômico. Este é o propósito central deste capítulo.
Resumidamente, a função principal do sistema de preços é sinalizar para todos, produtores e consumidores de
bens, duas coisas: (i) o valor atribuído pelo conjunto da sociedade a um determinado bem e, (ii) o custo que esta
mesma sociedade incorre ao produzi-lo.
O sistema de preços funciona como um repositório de enorme quantidade de informações que afetam demanda
e oferta. Ele as agrega, sintetiza, e transmite para todos os agentes da economia em um simples e observável dado
que condensa as informações sobre as escolhas de todas as pessoas: o preço final do bem. Pode parecer à primeira
vista incrível que o sistema de preços tenha o poder de agregar e transmitir informações com precisão e agilidade
não passíveis de serem reproduzidas pelo mais poderoso dos computadores, mas esta é a pura verdade. As decisões
independentes de milhões de agentes econômicos, as mais diversas descobertas tecnológicas de que a maioria de nós
nem ficou sabendo, as mudanças nos custos de produtores longínquos por fatores que nos são completamente
desconhecidos, as modificações nos hábitos de consumo de cidadãos de outros países, etc, são fatores que geram
oscilações em milhares de demandas e ofertas mundo afora e são sintetizados na variação do preço final dos
produtos.
A beleza do sistema de preços advém do fato de que, devido a ele, produtores e consumidores individuais não
precisam despender tempo analisando esta miríade de mudanças afetando demandas e ofertas de outros
consumidores e produtores de um dado bem. Aliás, mesmo se quisessem, eles não teriam como faze-lo dada a
necessidade de processar quantidade inimaginável de informação que tal tarefa requer. Graças ao sistema de preços,
basta-lhes observar o efeito líquido deste turbilhão de mudanças sobre o preço final do bem que se quer comprar ou
fabricar, e com base apenas nesta informação (o preço), decidir quanto comprar ou produzir.
O preço de um bem é, portanto, um grande e prático veículo transmissor de informação. É o aumento no preço
do ouro que avisa aos produtores que é hora de se procurar mais ouro, e que sugere aos consumidores que comprem
alianças mais modestas.
E se não houvesse um sistema de preços para silenciosamente operar as mudanças desejadas pela sociedade,
sem ordens diretas de ninguém, de maneira rápida e fluida, como no caso acima descrito?
A alternativa seria nomearmos um todo poderoso governante que, pensando tão somente no bem-estar da
sociedade, e tendo informação precisa sobre todas as mais mínimas mudanças nos gostos e nos custos de produção
de uma quantidade gigantesca de consumidores e produtores, decidisse a demanda de cada individuo da sociedade e
a quantidade a ser ofertada por cada produtor, para todos os bens e serviços existentes. Soa uma tarefa infactível.
No caso do ouro, por exemplo, este grande e todo poderoso governante precisaria decidir quantos trabalhadores
realocar das minas de carvão para as de ouro, além de obrigar um decepcionado noivo a comprar uma aliança mais
singela.
Parece pouco provável que tal modelo econômico possa funcionar de maneira minimamente eficiente. Primeiro
pelo irrealismo da hipótese de que todas as ações do tal governante visariam o bem-estar da sociedade. Segundo, e
mais importante, porque é tarefa impossível para um governante – mesmo o mais bem intencionado de todos –
coletar e processar este conjunto quase infinito de informações e dele concluir as demandas individuais e as ofertas
ideais de cada produtor. Como conhecer os gostos e desejos de todas as pessoas, a estrutura de custos de produção e
tecnologia para todos os bens da economia? Depois, como combinar essa informação toda para se determinar o que
cada pessoa vai produzir e consumir?
Como os preços são peça-chave para o bom funcionamento de uma economia, a interferência do governo na sua
determinação causa ineficiências. Se o governo, por exemplo, impede o preço do ouro de subir, não se gerarão os
incentivos necessários para ir-se em busca de novas minas (que ajudariam a satisfazer o desejo da sociedade pós-
charge de poupar em ouro), e provavelmente vários noivos teriam que formar fila na porta da joalheria, uma maneira
nada boa de alocar a menor quantidade de anéis restantes. Em suma, as demandas e ofertas de bens não refletirão os
verdadeiros anseios da sociedade nem o custo de produção dos bens e serviços.
Este ponto é importante dado que muitos governos, no bojo de seus planos econômicos, tentaram, no passado,
fazer política social ou controlar a inflação fixando o preço de alguns produtos. É mister desmistificar os benefícios
de uma política como esta. Por exemplo, fixar por lei um preço baixo para o arroz e o feijão não levará a um maior
consumo destes víveres por parte da população de baixa renda. Não no longo prazo. Levará, isto sim, a menor
plantio porque os produtores estão escolhendo o que produzir com base nos incentivos que têm para fazê-lo – sendo
o preço um dos mais importantes. Com um preço muito baixo, fixado por lei, os produtores de arroz e feijão
mudariam, com o passar do tempo, seu plantio, passando a priorizar outras culturas com preços livres e
determinados pelo mercado, ou até mesmo deixando a agricultura pela indústria ou pelos serviços.
No longo prazo, a oferta de arroz e feijão cairia após uma fixação de preços, e o problema social não seria
atenuado. Tentar fazer política social controlando o preço dos alimentos é um truque de economágica. Não dá certo,
pois supõe, equivocadamente, que o congelamento dos preços não afeta a oferta, que ele não mexe com os
incentivos dos produtores.
Vejamos um outro exemplo do funcionamento do sistema de preços. O que aconteceria, no longo prazo, com o
número de bois e vacas no mundo se muito mais gente optasse por se alimentar com base em dietas vegetarianas?
Em um mundo com menos degustadores de carnes, despencaria a demanda por carnes e, portanto, aumentaria o
número de bois vivos em um momento inicial. Por outro lado, cresceria a demanda por soja, fonte importante de
proteínas para os recém convertidos vegetarianos. Inicialmente, esta alteração levaria a um crescimento do preço da
soja e uma redução do preço da carne, dado que nem a oferta de soja pode aumentar de um momento ao outro, e
nem a oferta de bois pode ser reduzida em uma tacada.
Os inveterados consumidores de carne não convertidos à dieta vegetariana se beneficiariam do menor preço da
carne por um tempo, enquanto os vegetarianos - novos e antigos - pagariam o custo de serem agora um grupo maior
em forma de preço mais alto da soja. O preço da carne precisaria cair para motivar os “carnívoros” a consumir mais
carne. Caso contrário, sobraria carne no açougue, o que não seria de interesse do açougueiro. Da mesma maneira, o
preço da soja precisaria subir para que as pessoas escolhessem consumir menos soja – se não, não haveria soja para
atender às demandas de todos. O preço é o mensageiro das mudanças.
Mas a mudança no preço da soja relativamente ao preço da carne também mandaria um sinal importante aos
produtores: seria então mais atrativo produzir soja e menos atrativo criar gado. Temporariamente, os produtores de
soja veriam seu lucro crescer com a alta de preços e, como consequência, alguns criadores de boi, de olho neste
lucro mais alto, passariam a plantar soja, largando a pecuária pela agricultura.
O processo migratório para as plantações de soja não ocorreria instantaneamente, visto que não é trivial mudar
assim de atividade de uma hora para outra (são precisos novos investimentos, tempo para se conhecer um outro
mercado, etc). Mas, com o tempo, surgiriam mais e mais plantadores de soja, atraídos pelo lucro maior. O aumento
da oferta total de soja levaria à gradual reversão daquela alta inicial de preço. À medida que o preço voltasse ao que
era anteriormente, o aumento do lucro puxado pela conversão à dieta vegetariana iria se reduzindo. O processo
seguiria até que cessasse o movimento de pecuaristas querendo virar plantadores de soja. A economia estaria então
com maior área plantada de soja e menor número de criadores de boi. Os preços voltariam ao que eram
anteriormente e, não havendo mudanças nos custos, os lucros nos dois setores seriam os mesmos de antes.
Chegaríamos então a um mundo com mais soja e menos bois, o que faria todo o sentido dado que agora
teríamos mais vegetarianos na população do que antes. Tudo operacionalizado através do sistema de preços, que
altera os incentivos dos produtores para que se realize o ajuste demandado pela sociedade.
Assim, cai a demanda por carne, sacrificam-se menos bois e vacas, e seu número consequentemente...diminui!
Mais vegetarianos e menos bois pode parecer algo contraditório. Mas não é, não no longo prazo.
Mas e se o governo decidisse intervir? E se o lobby dos pecuaristas batesse à porta do ministro da agricultura
após a queda de preço da carne pedindo apoio financeiro e terminasse sendo atendido via implementação de um
subsídio para os criadores de boi?
Se o governo decidisse subsidiar os criadores de boi, a mudança desejada pela sociedade, qual seja, de ter mais
soja e menos carne do que antes da reviravolta vegetariana não se concretizaria plenamente. Esta intervenção é dita
por conta disto ineficiente. Vejamos em pormenores o que se daria.
Consideremos que, inicialmente, o lucro médio nas duas atividades fosse o mesmo. Digamos que sem
intervenção do governo, a alta da demanda por soja e a queda da demanda por boi gerasse inicialmente uma redução
do preço do quilo da carne de R$10 para R$9, e uma alta do quilo da soja de R$3 para R$4. Como dissemos, o
aumento do lucro dos plantadores de soja atrairia para o setor alguns criadores de boi, o que reduziria a oferta de
carne e aumentaria a de soja. Este movimento não cessaria enquanto os lucros não voltassem a serem iguais. Como
os custos não se alteraram (por hipótese, para facilitar a exemplificação), isto significa que o processo de ajuste
estaria terminado exatamente quando os preços retornassem aos valores vigentes anteriormente. Mas as quantidades
produzidas de soja e carne seriam agora diferentes: mais soja e menos carne devido à migração de pecuaristas para a
sojicultura.
Entretanto, se o governo optasse por subsidiar os criadores de boi, ele atrapalharia este ajuste. Imaginemos que
ao constatar a queda inicial de R$1 no preço da carne, o governo estabelecesse um subsídio de igual monta aos
criadores de gado. Para transferir estes R$1/quilo aos pecuaristas, o governo precisaria taxar a sociedade em igual
montante.
Agraciado com o subsídio, o criador de boi seguiria recebendo um total de R$ 10/quilo (R$9 + R$1 de
subsídio), e seu lucro permaneceria igual. Mas o preço da soja seria agora de R$4, e assim o lucro desta atividade
seria mais alto do que era antes, quando o preço era R$3. Sendo a lucratividade da soja mais alta que antes e
permanecendo inalterada a da criação de bois, surgiria de novo o incentivo para que os criadores de gado se
tornassem plantadores de soja. Mas o movimento de ajuste não seria exatamente igual ao do exemplo sem
intervenção do governo. Devido ao subsídio, que incentivaria as pessoas a permanecerem na pecuária mesmo com
uma demanda menor por carne, o movimento de ajuste seria mais fraco.
No caso sem intervenção, logo após a transformação vegetariana, o setor de soja passaria a lucrar R$1/quilo a
mais que antes, enquanto o lucro na criação de bois sofreria uma queda de R$1/quilo. A diferença de lucratividade
setorial era, portanto, logo após a mudança, de R$2/quilo. Com o subsídio de R$1/quilo, não haveria redução de
lucro na pecuária e a diferença na lucratividade passaria a ser apenas de R$1/quilo. Esta menor diferença de
lucratividade setorial devido ao subsídio incitaria um fluxo também menor de recursos produtivos da pecuária para a
agricultura e, portanto, um ajuste final menor na quantidade produzida de cada um. Em outras palavras, a quantidade
de carne produzida cairia menos e a de soja subiria menos do que no caso sem subsídio do governo. Os anseios de
uma sociedade com mais vegetarianos não seriam plenamente atendidos por não se ter permitido que o sistema de
preços funcionasse livremente.
Como ficariam os preços em um mundo com subsidio? Aos preços anteriores, de R$3 e R$ 10, os lucros não
seriam iguais: o lucro na criação de bois seria de R$1 a mais do que era antes, pois o pecuarista estaria recebendo
R$10 de preço + R$1 de subsídio, sem mudança de custo; e o lucro em plantar soja seria o mesmo, pois não
haveriam ocorrido mudanças nem no seu preço, nem em seu custo. Então, alguns produtores de soja migrariam para
a pecuária, aumentando a oferta de carne e reduzindo a de soja, até que se reestabelecesse a condição de lucros
iguais. Devido às mudanças na oferta, o preço do quilo do boi seria um pouco inferior a R$10, e o do quilo da soja
um pouco superior a R$3.
E os lucros? O produtor da soja claramente teria lucro maior que antes: o preço da soja seria maior, sem
alteração no custo. Como após a migração entre setores a lucratividade de pecuaristas e agricultores é a mesma,
segue-se que o lucro dos criadores de gado também aumentaria com o subsídio. Por outro lado, o contribuinte que
financia o subsídio com impostos sairia perdendo. Na verdade, se este contribuinte fosse um voraz comedor de
carne, ele talvez não ficasse com subsídios (pois a carne sem subsídio custaria mais, R$10, após os ajustes na
produção). Mas se ele fosse vegetariano, seguramente estaria pior, pois além dos impostos, ele precisaria também
desembolsar mais pelo quilo da soja.
Essas questões distributivas são importantes, mas o ponto principal é que, para a sociedade como um todo, o
subsídio seria ineficiente porque as quantidades produzidas de soja e carne não estariam de acordo com a nova
composição da sociedade, que agora abriga maior número de vegetarianos. Dados os custos de se produzir carne e
soja e as vontades de consumo das pessoas, o país estaria produzindo soja de menos e carne demais. Aqueles que
não se convertessem à dieta vegetariana estariam comendo mais carne do que comeriam se considerassem na sua
decisão os reais custos de produção.
O subsídio polui o sinal do sistema de preços. O povo pediu menos boi e mais soja. O preço avisou, mas o
subsídio atrapalhou, emperrando o ajuste requerido por uma nova sociedade com mais vegetarianos.
Um outro preço que transmite informações importantes é a taxa de câmbio. É verdade que ela oscila demais,
mais que o preço da carne, por motivos que os economistas não entendem direito, e isto polui um pouco sua tarefa
de transmitir informações relevantes para a sociedade. Mas em alguns casos, seus movimentos têm origem clara.
Um país que de chofre se descobre possuidor de grande fonte de riquezas naturais vivencia uma valorização de
sua moeda. O motivo é simples: caso se descubram reservas e mais reservas de petróleo em solo nacional, crescerão
as exportações de petróleo e entrarão, como contrapartida, muitos dólares no país. A entrada de muitos dólares, que
os exportadores de petróleo trocam por reais para poderem consumir outros bens aqui dentro, desvaloriza o dólar, o
que é o mesmo que dizer que fortalece nossa moeda. A taxa de câmbio passa, por exemplo, de R$/U$ 2,00 para
R$/U$1,50.
Esta mudança no preço da moeda nacional não é boa nova para os exportadores, mas é boa notícia para os
importadores e para todos que consomem bens comprados no exterior. Ao descobrir petróleo, o país fica mais rico, e
sendo mais rico pode consumir mais bens produzidos no exterior. A taxa de câmbio mais apreciada é reflexo de que
podemos comprar mais lá fora com os recursos que nos vêm da venda do petróleo.
O câmbio mais apreciado manda também um sinal para os produtores. Exportar bens torna-se menos lucrativo,
pois cada dólar agora será convertido em menor quantidade de reais e produzir bens que podem ser importados de
modo mais barato também deixa de ser uma boa. Por conseguinte, muitos produtores optarão por mudar de ramo
tentando fugir da concorrência dos importados e deixando de exportar. Recursos produtivos serão então mobilizados
para áreas onde tal concorrência não ocorre. Por exemplo, o setor de serviços é menos sujeito a concorrência de
importados dado que pouca gente pega um avião para cortar o cabelo, ir a um restaurante ou ao teatro na Europa, e
poucos mandam seus filhos estudar no exterior. Assim, setores como os de corte de cabelo e educação receberão
maior afluxo de recursos produtivos após uma apreciação da moeda doméstica. De novo, as mudanças não são
imediatas, mas acabam ocorrendo com o passar do tempo.
Mas não é ruim uma queda das exportações nos setores não ligados ao petróleo? Vejamos. Parte do que nós
produzíamos agora não fabricamos mais, mas ainda assim continuamos consumindo, em troca pelo petróleo que
exportamos. Uma parte do pessoal que produzia bens para exportação agora está exportando petróleo. Outra parte
está produzindo educação e comida tailandesa, aumentando nossas possibilidades de consumo. Em princípio,
portanto, não há nada errado com a queda nas exportações dos produtos não ligados ao petróleo, dado que agora
podemos importar os bens que queremos, vendendo petróleo. Da mesma maneira, um agraciado com o prêmio da
loteria vai consumir mais e provavelmente trabalhar menos. As exportações caem justamente porque estamos mais
ricos. Tudo intermediado pelo preço, neste caso apelidado de taxa de câmbio.
Há, contudo, alguns problemas decorrentes da descoberta do petróleo. O primeiro é que o exportador vê sua
renda se reduzir no curto prazo – o problema do pai do Woody Allen. O segundo é mais grave. Como uma família
que ganha na loteria e se vê corroída por disputas e desavenças, muitos países que descobrem preciosos recursos
naturais têm seu tecido social esgarçado e desenvolvem instituições políticas que não fomentam o desenvolvimento.
Isto não decorre diretamente da descoberta do recurso natural, mas de como a sociedade e o sistema político
domésticos se organizam para dele tirar proveito.
Em suma, em uma economia de mercado, uma maior preferência por dietas vegetarianas na população ou uma
charge com o profeta Maomé desencadeiam alterações generalizadas em toda a economia. O artífice dessa mudança
é o sistema de preços, que avisa ao noivo que as outras pessoas estão demandando mais ouro e aos produtores
agrícolas que os consumidores querem mais soja e menos boi.
O economista F.A.Hayek, ganhador do prêmio Nobel em 1974, disse uma vez que se os impactos do sistema de
preços fossem o resultado de uma deliberada criação humana e as pessoas entendessem seus efeitos, o sistema de
preços seria aclamado como uma das grandes invenções da humanidade.[4]
Mas às vezes deixar que a economia funcione livremente não é a melhor pedida. No exemplo deste capítulo, a
intervenção do governo subsidiando os criadores de boi só atrapalha o ajuste a uma nova realidade. Como ficará
claro nos capítulos 9 e 10, contudo, existem situações onde a intervenção pública torna as coisas melhores para a
sociedade.
9. As árvores da Ilha de Páscoa e as ruas de Londres
No capítulo 2, nós estudamos o exemplo de um pasto público, onde todos os criadores de gado de uma certa
região podiam levar seus bezerros para engorda. Observamos que do ponto de vista de um criador, não valia a pena
poupar o pasto para o futuro, pois se os seus bois não comessem a grama hoje, amanhã quando eles voltassem ao
pasto, outros bois já a teriam comido. A economia feita por um fazendeiro é facilmente apropriada pelos bezerros
dos outros. Por conta disto, o pasto acaba sendo excessivamente utilizado por todos e se deteriora rapidamente.
Esse exemplo está em muitos livros-texto de economia, inspirado pelo fato histórico concreto de utilização
excessiva de pastos públicos na Inglaterra. Mas hoje em dia, para muitos de nós, os pastos não fazem mais parte do
dia a dia. Os pastos foram substituídos pelas ruas, e ao invés de bois, vemos carros. O mundo mudou. Todavia, o
problema envolvendo a utilização excessiva de bens públicos não mudou em nada.
Assim como os pastos, as ruas da cidade são um bem público, todos nós podemos usá-las. No entanto, nem
sempre é fácil utilizar as vias públicas. Quando saímos de carro, não raro nos deparamos com engarrafamentos de
trânsito causados pelo número excessivo de veículos nas vias de tráfego. Cada motorista é como o criador de gado
do exemplo anterior: sua decisão individual de sair com o carro na rua causa prejuízo aos outros, ao contribuir um
pouco mais para os congestionamentos.
Ao nos defrontarmos com a escolha entre sair com o carro, andar a pé, utilizar o transporte coletivo, ou ficar em
casa, consideramos os impactos de cada alternativa sobre o tempo que levaremos para chegar ao destino, em quão
agradável será a viagem e também quanto ela nos custará. Contudo, normalmente não levamos em conta, na nossa
decisão, o fato de que ao colocarmos o nosso carro nas ruas, estamos atrapalhando o trânsito para os outros e
estamos aumentando a poluição do planeta.
No capítulo anterior, vimos que o sistema de preço reflete as demandas e ofertas de cada um. Mas se nós não
levamos em conta o impacto negativo das nossas decisões individuais sobre as outras pessoas, os preços também
não refletirão esses efeitos. Portanto, o sistema de preços de livre mercado não nos levará à melhor alocação de
recursos possível como sociedade quando houver externalidades.
Se a minha análise dos custos e benefícios de sair com o carro não inclui a piora no trânsito que eu mesmo
estarei causando, há um custo importante, para a sociedade, que não está sendo considerado na minha escolha
individual. Como resultado, o sistema de preços não levará isso em conta e o funcionamento do mercado, sem
intervenções, levará a carros demais circulando pelas ruas. Por outro lado, se nós levássemos em conta esta
externalidade negativa que causamos sobre os outros, o trânsito estaria em seu nível ideal sob o ponto de vista da
sociedade.
O meu carro na rua atrapalha um pouquinho o trânsito para todos, o que significa que as pessoas provavelmente
estariam dispostas a me pagar certa quantia para que eu não saísse de carro. É muito difícil calcular quanto cada
pessoa estaria disposta a pagar, mas suponhamos que as frações de centavos de cada um resultem em um total de 5
reais. Então, do ponto de vista da sociedade, apenas se eu estivesse disposto a pagar 5 reais para sair com o meu
carro, eu deveria fazê-lo.
Uma maneira de implementar essa transferência de mim para a sociedade seria através da implementação de um
imposto. O governo poderia, por exemplo, cobrar 5 reais de mim e distribuir para as outras pessoas a fim de
compensá-las pelo infortúnio adicional causado pelo meu carro. Mesmo com a imposição desta taxação, ainda
veríamos muitos carros nas ruas, mas certamente não tantos quantos vemos hoje: sairiam nas ruas apenas aqueles
dispostos a compensar a sociedade pelo seu impacto negativo no trânsito e na poluição. Com a imposição dessa
taxação, o número de carros circulando seria o ideal sob o ponto de vista da sociedade.
Em um caso como este, onde se caracteriza uma externalidade negativa da ação privada, a interferência do
governo é crucial para que o sistema de preços envie o sinal correto para as pessoas. Se as leis conseguem fazer com
que incorporemos os custos das nossas decisões sobre a sociedade (que os economistas chamam de custo social),
nossa escolha final levará em consideração o impacto das nossas ações sobre os outros e a externalidade deixa de ser
verdadeiramente um problema.
Na Londres do final do século XX, o congestionamento das ruas era um dos principais problemas enfrentados
pelos moradores, de acordo com as pesquisas de opinião. A velocidade média dos carros nos horários de pico não
era maior que a das carroças no início do século!
Em fevereiro de 2003, foi introduzida em Londres uma “taxa do congestionamento”. Para sair nas ruas em um
dia de semana na cidade era necessário pagar uma taxa de 5 libras esterlinas por dia. Este valor foi aumentado dois
anos depois para 8 libras. As consequências? O trânsito se reduziu, há mais bicicletas e ônibus nas ruas, e menos
carros particulares. Só sai de carro para o trabalho quem prefere pagar a taxa de 8 libras ao invés de utilizar o
transporte coletivo ou a bicicleta.[5] A medida, quem diria, tem o apoio da maioria dos moradores.
Ainda assim, cobrar, fiscalizar e multar os motoristas gera muitos custos. Estimativas econômicas dos
benefícios da “taxa do congestionamento” (primariamente associados com menos tempo no trânsito e maior
confiabilidade no sistema de transporte) indicam que os custos administrativos equivalem a mais de dois terços dos
benefícios. Isto mostra que mesmo as intervenções governamentais que em princípio parecem fazer sentido não
saem de graça. Com efeito, os custos da implementação de políticas públicas podem ser altos demais relativamente a
seu benefício. Voltaremos a esta questão em capítulo futuro.
O problema da poluição é semelhante ao do congestionamento. Se não houver leis regulando a poluição emitida
das chaminés das fábricas e dos escapamentos dos automóveis, os donos de fábricas e automóveis não pagarão o
custo social da poluição. Assim, suas escolhas não refletirão completamente os custos da poluição, e teremos
cidades mais poluídas que a sociedade escolheria – fumaça demais apagando as estrelas. Porque o custo de poluir
para quem polui é menor que o custo da poluição para a sociedade, é necessário haver leis regulando a emissão de
gases poluentes.
Qual seria o nível ideal de poluição? Por um lado, poluição zero seria excelente. Mas por outro, isso significaria
que não andaríamos de carro, não viajaríamos de avião, não utilizaríamos nenhum bem cuja produção causa
poluição no ar, etc. Então, dadas as restrições tecnológicas de hoje, a poluição que queremos como sociedade não é
zero. Em termos teóricos, uma ação que causa poluição deve ser tomada se (e somente se) o poluidor estiver
disposto a pagar mais do que a sociedade demandaria para aceitar tal aumento na poluição. O nível de poluição ideal
é aquele que resulta de decisões individuais que seguem essa regra.
O problema de fundo é que o ar é um bem público. Se houvesse um mercado para o ar, se tivéssemos que
comprar o ar para respirarmos e se só fôssemos capazes de poluir o nosso próprio ar, não haveria problema nem
dilema. O sistema de preços incorporaria as preferências de cada um, e o preço dos ares de diversas qualidades
refletiria as demandas das pessoas e a capacidade tecnológica de controlar a poluição. O nível de poluição neste
mundo fictício seria o ideal. Não caberia ao governo determinar o nível de poluição, pois custos e benefícios de
poluir recairiam inteiramente sobre os indivíduos. No máximo, o governo poderia transferir renda aos pobres para
que eles tivessem a opção de comprar um ar de melhor qualidade.
Claramente, esta solução de mercado para o problema do ar é absolutamente impossível. Todos nós respiramos
o mesmo ar, ele não tem dono, não é possível comercializá-lo como os outros bens. Não é possível evitar que a
fumaça do cigarro que eu fumo na rua diminua a qualidade do ar de outro transeunte que sofre de asma. Tampouco
este transeunte tem como demandar de mim uma indenização pelo mal que lhe causo.
O ar, assim como as ruas de Londres e como os pastos abertos, é um bem público e, portanto, a sociedade deve
ter leis que limitem a poluição a fim de preservar sua qualidade. A diferença entre público e privado aqui é crucial,
pois ao mesmo tempo em que faz sentido proibir o fumo em elevadores e locais de trabalho, não faz sentido proibir
um indivíduo de fumar trancado em seu apartamento. No segundo caso, os custos são todos privados.
A maneira ideal de se regular a poluição é fazer com que as pessoas ou empresas paguem pelos custos sociais
da poluição que geram. Se não há leis antipoluição, o preço de poluir é zero para quem polui. Como ocorre com os
outros bens na economia, quando se estabelece um preço positivo para a poluição, a “demanda” por poluição
diminui e terminamos com um ar de melhor qualidade.
A idéia de se pagar pela poluição não é um desvario acadêmico. Em muitos países desenvolvidos, o mercado de
créditos de carbono já é uma realidade, ainda que incipiente. Nesses casos, o governo fixa um nível máximo de
emissão de poluentes. Uma empresa que descobre meios de produzir menos agressivos ao meio ambiente pode
vender parte de sua “cota de poluição” para outra empresa. Esse mecanismo gera incentivos para empresas buscarem
meios de produção menos poluentes, e faz com que a poluição seja gerada pelas empresas que estão dispostas a
pagar mais pelo direito de poluir. Essas empresas serão aquelas que não têm alternativas economicamente viáveis
que lhe permitam poluir menos - e, portanto, escolhem pagar para ter o direito de poluir mais - e cujos consumidores
estão dispostos a pagar mais caro pelos produtos (pois os custos de produção, agora acrescidos da necessidade de
comprar direitos de poluir, influenciam os preços finais dos bens).
Na maior parte dos países, ainda não há mercado de créditos de carbonos, mas as empresas são obrigadas por
lei a controlar a emissão de poluição. Por exemplo, a água que sai das fábricas deve ser tratada e devolvida aos rios
obedecendo a critérios técnicos de qualidade. Esta intervenção é benéfica para a sociedade. Contudo, a criação do
mercado de créditos de poluição é ainda melhor porque quando existe esse mercado, a alocação final destes créditos
-- isto é, quanto cada empresa poderá poluir -- é mais eficiente. Eficiente no sentido de que as empresas com mais
facilidade de controlar a emissão de poluentes poluirão menos que as com maiores dificuldades de implantar
sistemas antipoluentes, sem que isto implique em poluição total maior (lembre-se, a poluição total está fixa por lei,
os créditos apenas realocam os direitos de poluir entre os poluidores).
Note que na ausência dessas leis, as empresas que escolhessem não levar em conta esses custos sociais da
poluição teriam vantagens sobre empresas preocupadas com a preservação do meio ambiente, porque aquelas, não
gastando recursos visando reduzir a poluição, poderiam vender seus produtos a preços menores. Este é um caso onde
a concorrência pode ter efeitos colaterais indesejáveis. A concorrência pressiona empresas a reduzir seus custos, o
que é muito bom em geral, pois se produzimos mais com menos recursos, a sociedade, como um todo, está mais
rica. Mas a concorrência não força as empresas a reduzirem custos que não são pagos por elas, mas sim por toda a
sociedade, como é o caso da poluição. Ao contrário, controlar a poluição custa caro para a empresa, que não
embolsa plenamente os benefícios que esta ação gera para a sociedade, mas vê-se obrigada a elevar o preço do seu
produto final, o que a torna menos competitiva.
De fato, muitos problemas ligados ao consumo excessivo de recursos naturais poderiam ser resolvidos se eles
fossem devidamente “precificados”. Os problemas de excessiva utilização (desperdício) de água, de devastação dos
pastos abertos no passado, de muita poluição apagando as estrelas, de muito tráfego, etc, podem ser sempre vistos
como problemas de ausência de preços que reflitam verdadeiramente os custos.
Preços muito baixos afetam os incentivos das pessoas de maneira a gerar utilização excessiva de um dado
recurso. O caso da água é um exemplo atual importante. Se os governos mundiais estão realmente muito
preocupados com a questão da provável falta de água no futuro não muito longínquo, o primeiro passo para
equacionar o problema seria elevar seu preço (que é regulado pelo Estado) para os consumidores – tomando as
devidas medidas para minimizar o impacto desse aumento de preço sobre os pobres. Esta mudança de preço levaria
as pessoas a tomarem banhos mais curtos (se as contas fossem todas individualizadas), incitaria investimentos
visando minimizar desperdícios na indústria e na lavoura, e aumentaria os incentivos de um dos autores deste livro a
fechar a torneira enquanto ensaboa a louça de casa. O resultado final: maior preservação de água potável.
De fato, a história atesta que o adiamento de medidas visando preservar bens públicos pode realmente ter
consequências funestas.
A Ilha de Páscoa, situada no oceano Pacífico e descoberta por um explorador holandês em 1722, é famosa por
suas imensas e aterrorizantes estátuas de pedra, e já foi lar de uma grande sociedade de origem polinésia. Quando
descoberta pelos europeus, ela abrigava apenas 2000 habitantes, mas em seu entorno encontravam-se um total 200
estátuas, evidência clara de um passado mais glorioso que o presente. O que aconteceu com os habitantes da Ilha de
Páscoa? O que causou sua débâcle?
Teorias recentes argumentam que o esgotamento das árvores na Ilha de Páscoa foi fundamental para explicar o
colapso daquela civilização. O desaparecimento das árvores tornou impossível a construção de boas embarcações de
longo alcance e assim levou ao fim da caça de peixes grandes de alto mar (golfinhos); dificultou o aquecimento no
inverno e a construção de novas casas; levou a enorme diminuição da quantidade de pássaros disponíveis que antes
frequentavam a ilha e haviam sido fonte importante de alimentos; e, finalmente, a ausência de árvores comprometeu
a qualidade do solo e a agricultura.[6]
Árvores eram demandadas na ilha para o aquecimento, construção de embarcações e casas, mas também para a
confecção das tais estátuas, paradoxalmente símbolo da pujança daquela civilização. As enormes pedras de que eram
constituídas as estátuas não eram viáveis de serem transportadas sem grande número animais de carga, ali ausentes.
Restava como opção a técnica de transportá-las via rolagem sobre os troncos de madeira, muitos troncos de madeira.
Além disto, para erguê-las eram necessárias grandes quantidades de cordas, feitas a partir das árvores da região,
espécies semelhantes à palmeira moderna.
Mas as florestas eram um bem público. Ninguém era dono das árvores. Se a madeira tivesse um dono e fosse
negociada em um mercado de madeiras na Ilha de Páscoa, o sistema de preços refletiria os aumentos na demanda e a
escassez da oferta. Um frenesi de construção de estátuas, neste caso, acarretaria em elevação do preço da madeira,
desencorajando adicionais construções de estátuas. O aumento do preço refrearia a demanda por madeira (para seus
diversos fins), ao mesmo tempo em que incitaria a plantação de novas árvores pelos vendedores de madeira,
capitalistas em busca de maiores lucros.
Em outras palavras, o preço mais alto sinalizaria escassez, e as forças de oferta e demanda impediriam o
desaparecimento das árvores. Do lado da demanda, os diversos clãs, querendo provar sua superioridade através de
estátuas gigantes como nos relatam os historiadores, buscariam outros modos mais baratos de autoafirmação. Do
lado da oferta, o preço elevado da madeira incitaria alguns nativos a investirem em técnicas de renovação florestal. É
possível até que o repique do preço da madeira levasse ao surgimento de uma nova profissão: o técnico em plantio
de árvores da Ilha de Páscoa.
O esgotamento precoce da floresta poderia até ter sido evitado na presença de direitos de propriedade e um
sistema de preços, mas mesmo neste caso árvores demais teriam sido cortadas sob a perspectiva da sociedade. O
problema é de novo a presença de uma externalidade negativa associada à decisão individual de derrubar árvores.
Menos árvores significa menor quantidade de pássaros e, conseqüentemente, menor quantidade de alimento (ovos e
aves) para todos. Uma árvore a menos também deteriora a qualidade do solo (por erosão) em outros pontos da ilha,
prejudicando todos e diminuindo a produtividade da atividade agrícola. Nenhum destes dois problemas seria
automaticamente resolvido pelo mercado porque estes custos do desmatamento incidiriam majoritariamente sobre
outras pessoas, não sobre o dono das árvores. Por conta disso, direitos de propriedades sobre as árvores reduziriam a
devastação das florestas, mas seria necessária intervenção do governo para que a preservação do meio-ambiente se
desse da maneira socialmente ideal.
Apesar da devastação das florestas prejudicar toda a sociedade, faltaram os incentivos para cada indivíduo
preservar o meio-ambiente. Consequentemente, faltaram meios de sobrevivência e alimentos para os habitantes.
Sobraram apenas as estátuas assustadoras pontilhando o litoral da ilha.
Até aqui, nossos exemplos têm se centrado nas externalidades negativas, mas como mencionamos no capítulo
2, há também as externalidades positivas. Nos voltemos agora a alguns casos desta natureza.
Em setembro de 1928, o pesquisador Alexander Fleming estava realizando experimentos em seu bagunçado
laboratório, quando notou que um certo fungo parecia não permitir o crescimento de determinadas bactérias.
Fleming passou então a estudar o efeito bactericida do tal fungo e percebeu que ele agia contra outras tantas
bactérias. Esta descoberta foi a chave para a obtenção da penicilina, anos depois, por dois outros pesquisadores,
Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey. Fleming, Chain e Florey foram agraciados com o Prêmio Nobel em
1945. A descoberta da penicilina possibilitou a produção de antibióticos por empresas de medicamentos no mundo
inteiro. Difícil pensar em externalidade positiva maior do que esta.
De fato, a parte mais difícil e mais custosa da produção de remédios é a pesquisa necessária para inventá-lo.
Produzi-lo depois de descoberta sua fórmula é relativamente fácil. O mesmo vale para programas de computador e
para músicas. Difícil é criá-los, reproduzi-los em CD’s é bem mais fácil. E isto gera um problema: o inventor pode
não se apropriar inteiramente dos ganhos gerados pela sua invenção porque é demasiadamente fácil imitá-la uma vez
descoberta a fórmula, ou inventada a música. A difusão da pirataria é um exemplo concreto deste problema.
Se imitar é fácil, o inventor arca sozinho com o enorme custo envolvido na fase de pesquisa, mas tem que
dividir o benefício com outros pegando carona na sua invenção. É verdade que Fleming, Chain e Florey poderiam
passar a produzir eles mesmos remédios utilizando a penicilina, mas isso não resolveria em nada o problema
mencionado. Ao perceberem os efeitos antibacterianos do novo medicamento, outros não teriam muita dificuldade
em reproduzir a fórmula, diminuindo brutalmente a rentabilidade da invenção para o inventor.
A invenção é um caso clássico de externalidade positiva. Os benefícios que ela gera para a sociedade são
grandes, mas o inventor tem dificuldade de se apropriar destes benefícios privadamente. Em vista disto, a quantidade
de pesquisa realizada tenderá a ser inferior à ideal, sob o ponto de vista da sociedade.
Mas o problema pode ser diminuído com a intervenção do governo. Assim como atos que geram externalidades
negativas devem ser tornados mais custosos pela lei, atos que geram externalidades positivas devem ser estimulados
via políticas públicas adequadas. Por exemplo, uma maneira muito usada no passado para incitar a pesquisa era
estabelecer prêmios para cientistas que apresentassem invenções, descobertas ou resoluções de problemas
intrigantes. Foi, por exemplo, em um destes concursos que Newton começou a desenvolver o cálculo matemático.
Outro mecanismo, mais usado correntemente, que incrementa os incentivos a inovar são as patentes,
instrumento legal adotado pelos governos que visa garantir o monopólio temporário da produção de um bem para
quem o concebe. Quando a lei garante que uma única pessoa ou empresa tem o direito de comercializar uma
determinada descoberta por algum tempo, esta pessoa ou empresa arrebanhará parte significativa dos lucros ou
benefícios gerados pela tal descoberta e, portanto, terá mais incentivos para engajar-se na pesquisa de novos
produtos e invenções adicionais. Ela escolherá dedicar mais tempo a inventar.
Mas qual deve ser a duração de uma patente? Se ela for muito baixa, o inventor se beneficiará muito pouco de
seu monopólio sobre os frutos da invenção, o que diminui seus incentivos a pesquisar. Já se ela for muito longa, os
ganhos da invenção demorarão muito tempo para se alastrar pela sociedade, pois a quantidade vendida, digamos de
um novo remédio, será restrita (e o preço elevado) enquanto uma pessoa ou empresa detiver o monopólio da
fabricação. A duração da patente deve ser, portanto, calibrada de maneira a incentivar o inventor sem, contudo,
represar demais os ganhos da invenção para a sociedade.
Alexander Fleming não patenteou sua descoberta, preferiu deixá-la ao alcance de todos para que mais
pesquisadores pudessem trabalhar para torná-la comercialmente viável, e mais pessoas pudessem dela se beneficiar.
Ainda assim, a generosidade de Fleming por si só não seria suficiente para a descoberta da penicilina. Fleming era
médico e professor do St Mary’s Hospital em Londres, e fazer pesquisa era parte de seu trabalho, financiado com
dinheiro público. Impostos recolhidos dos contribuintes ingleses pagavam o salário de Fleming que, além de tratar
de seus pacientes e ensinar seus alunos, pesquisava novas formas de curar os doentes. O mesmo vale para Roger
Bacon, descobridor da pólvora e professor em Oxford, e para Giovanni Di Dondi, que além de ter inventado o
relógio mecânico era professor de astronomia na Universidade de Pádua. De fato, o primeiro inventor conhecido da
humanidade, um egípcio chamado Imhotep que foi o construtor da primeira pirâmide e viveu por volta de 2650 a.c.,
era um funcionário público.
Poucas das descobertas que beneficiam a sociedade ocorrem pela simples satisfação altruísta de se inventar algo
que possa beneficiar milhares de outras pessoas – ou pelo prazer de estudar fungos e bactérias. Não é por caridade
que centenas de laboratórios no mundo inteiro contratam e pagam bem pesquisadores que lutam para descobrir a
cura para a Aids. Eles o fazem movidos pelo desejo de auferir belos lucros. O altruísmo sozinho, em que pese sua
altivez e nobreza, é menos potente para fazer a humanidade progredir cientificamente que políticas públicas que
estimulem as inovações, como um sistema de patentes que funcione bem.
Após o advento da patente, que data do século XVI, mas realmente “pegou” no século XIX, muitas pesquisas e
invenções específicas passaram a ser tocadas sem a intervenção direta do governo, pelas empresas que delas se
beneficiam, como os laboratórios farmacêuticos. Mas existe também um tipo de pesquisa, chamada de pesquisa
básica, que é mãe de todas as outras e não pode ser apropriada por uma empresa só, dado que ela traz benefícios
potenciais para um espectro muito amplo de setores. A descoberta de um novo elemento químico, ou de uma nova
propriedade física de algum material, são exemplos claros de pesquisa básica. Mas como é difícil patentear este tipo
de pesquisa, assim como é difícil patentear, por exemplo, uma nova equação matemática, surge então um problema:
quem arcará com os custos deste tipo de pesquisa?
Como não é possível apropriar-se plenamente da invenção, a melhor escolha sob o ponto de vista de um único
indivíduo é esperar que outros invistam em inventar e depois pegar carona na descoberta sem gastar dinheiro e
tempo. Todos raciocinando assim, não se inventa nada, não se descobre uma nova fórmula química. É por conta
disto que os governos modernos seguem utilizando recursos públicos para financiar a pesquisa científica básica,
pagar salários aos pesquisadores, construir laboratórios e promover conferências.
Além das externalidades e dos bens públicos, há outros casos em que a intervenção do governo pode ser
benéfica. Um deles é o caso dos monopólios naturais. Mas o que é um monopólio natural, que problema ele gera, e o
que o governo pode fazer?
O suprimento de energia elétrica para a população é um exemplo clássico de monopólio natural: custa muito
caro construir e manter duas ou mais redes elétricas para levar energia das usinas para as casas e empresas. Ter
apenas um fornecedor de energia para uma determinada região é muito mais barato para a sociedade, e por isto faz
mais sentido que seja assim. Mais precisamente, nos monopólios naturais, os custos de produção decrescem com o
aumento da quantidade ofertada e, assim, há pouco espaço para mais de um fornecedor. Como produzir pouco sai
muito caro, ter firmas concorrendo é ineficiente.
Entretanto, a não existência de uma concorrência acirrada traz custos para a sociedade. A empresa provedora de
eletricidade, tendo o monopólio do mercado, escolherá preços muito superiores aos seus custos de produção. Como
vimos no capítulo 3, ela assim procede porque um aumento do preço leva apenas a uma pequena redução em suas
vendas quando o nível de concorrência é baixo.
E por que isso é um problema? Seria por que o consumidor tem que pagar mais pela sua eletricidade? Não. Sob
o ponto de vista da sociedade como um todo, esse não é o real custo do monopólio, pois a perda do consumidor com
o preço mais alto é o ganho da empresa. Se fosse apenas este o problema, a solução seria taxar o lucro das empresas
e redistribui-lo aos consumidores.
O verdadeiro problema é que, do ponto de vista da sociedade, o consumo de energia será baixo demais.
Idealmente, o consumo de energia deveria ser tal que o benefício extraído de seu uso fosse igual ao custo de fornecê-
la. Isso aconteceria se as pessoas, ao escolher seu consumo, comparassem o beneficio do uso de eletricidade com o
custo de produzir e distribui-la. Na verdade, o consumidor compara esse beneficio com o preço que ele paga. O
problema é que o preço que ele paga no caso de monopólio é muito superior ao custo de produção. Portanto, o nível
de consumo que ele escolhe é baixo demais.
Já quando há concorrência acirrada, o preço de um bem ou serviço é próximo de seu custo. Conseqüentemente,
o nível de produção e consumo é o ideal.
Por conta dessa ineficiência do monopólio, cabe ao governo regular as companhias que agem em mercados
onde se configura uma situação de monopólio natural – como telefonia, suprimento de eletricidade e de água. Isto
não significa que o governo deva ser necessariamente o dono destas companhias: pode ser melhor deixar a produção
e distribuição a cargo de empresas que visam o lucro, e simplesmente monitorar as atividades das empresas através
de agências estatais reguladoras que determinam, por exemplo, os preços dos serviços.
Outro fator que atrapalha o funcionamento dos mercados é o que os economistas denominam de assimetria de
informação entre as partes envolvidas em uma certa transação.
Por exemplo, para um comprador é muito difícil avaliar a qualidade dos automóveis usados à venda. Devido a
isto, o comprador não está disposto a pagar por um bom carro usado tanto quanto estaria se tivesse informação
precisa sobre sua qualidade. Do outro lado da transação, o dono de um bom carro usado possui melhor informação
sobre seu automóvel e não está disposto a vendê-lo a um preço muito baixo.
Esta diferença de informação entre compradores e vendedores sobre a qualidade do carro é um problema sério
porque apesar do vendedor do carro bom não ter incentivos a vendê-lo a um preço baixo, o vendedor do carro ruim
tem. Vejamos um exemplo numérico: suponha que o dono de um bom carro usado queira vendê-lo por R$ 10.000 ou
mais e que o dono de um usado ruim queira vendê-lo por R$ 9.000 ou mais. Suponha também que eu esteja disposto
a pagar até R$ 10.500 por um bom usado, mas apenas R$ 8.500 pelo carro ruim. Seria então desejável que eu
comprasse o carro bom por algum preço entre R$ 10.000 e R$ 10.500 – eu e o vendedor ficaríamos ambos felizes. O
problema é que eu não tenho como saber se o carro é realmente bom. Não tendo certeza, considero, por exemplo,
que a probabilidade de um desses carros ser bom ou ruim é de 50% e, portanto estou disposto a pagar no máximo R$
9.500 (50% x R$ 8.500 + 50% x R$ 10.500) por ele.
Mas por este preço, o vendedor do carro bom não quer vendê-lo. Então, eu sei que se alguém quer vender o
carro a esse preço, é porque o carro é ruim, então eu não vou querer comprá-lo. Portanto, não sai negócio, apesar de
existir uma troca que agradaria ambas as partes (um carro bom por R$ 10.250). O mercado não funcionou.
Há muitos outros casos onde uma das partes de um negócio está mais bem informada que a outra. Por exemplo,
bancos gostariam de emprestar dinheiro apenas a bons pagadores, mas o problema é que quem vai ao banco em
busca de empréstimo sabe mais do que o banco sobre a real possibilidade (e disposição) de honrar o empréstimo.
Não adianta o gerente perguntar “escuta, você pretende repagar este dinheiro?”. E não adianta porque a resposta
tanto do bom, como do mau pagador, seria sempre a mesma: “sim”. Portanto, a resposta é incapaz de diferenciar
bom de mau pagador.
A base do problema está no fato de o banco conhecer menos o devedor do que o próprio devedor conhece a si
mesmo. O resultado disto é que os bons devedores – que não dão calote, mas pagam o juro mais alto porque não
conseguem se diferenciar – são os prejudicados pela existência de maus devedores não facilmente identificáveis.
Este tipo de problema é chamado em economia de seleção adversa. O nome é intuitivo: porque existem maus
pagadores, os juros são mais altos, mas juros mais altos “selecionam” adversamente aqueles que já são mais
propensos a não-repagar, e afastam os bons pagadores (similarmente ao que ocorre no mercado de carros usados).
Iniciativas como o cadastro positivo de bons pagadores ou o registro negativo de maus pagadores ajudam a
reduzir este problema de assimetria de informação. Quanto mais informação o banco tem sobre as pessoas, mais
barato será o preço do empréstimo para os bons pagadores, e mais difícil será obter um empréstimo para aqueles que
não pagaram anteriormente. Um sistema que registra todo o histórico de transações financeiras dos consumidores
ajuda aqueles que pagaram todas as suas dívidas no passado – assim como uma hipotética possibilidade de se avaliar
com perfeição o estado dos carros usados beneficiaria o dono do bom automóvel.
Problema similar ocorre no mercado de seguro de saúde. O candidato a segurado conhece muito mais seu
estado de saúde e seus hábitos cotidianos do que o segurador pode inferir com um punhado de questões. Por conta
disto, o plano de saúde é caro para os que se sabem saudáveis, e barato para os que se sabem mais propensos a ter
problemas de saúde. Seleção adversa na veia. O mercado de seguros não desmorona em face da seleção adversa
porque mesmo as pessoas saudáveis escolhem se segurar de modo a evitar grandes quedas de renda associadas ao
aparecimento de doenças de custoso tratamento, doenças que, aliás, são muitas vezes imprevisíveis.
Outro problema relativo à assimetria de informação ocorre após fechado um tipo de negócio. Por exemplo, um
dono de automóvel tem menos incentivos a cuidar bem do seu carro após comprar uma apólice de seguro. Para que
se aborrecer e gastar dinheiro verificando o estado do extintor de incêndio, ou estacionando em estacionamento pago
quando se sai à noite, se a seguradora é quem arcará com os custos de um carro que pega fogo ou é roubado na
madrugada? E o gerente da seguradora sabe que seus incentivos o levarão a não tomar todos os cuidados possíveis.
Uma maneira que o próprio mercado encontrou de minimizar este tipo de problema é via pagamento de franquia. Se
o segurado bate o carro, ele precisa arcar com parte dos gastos, o que aumenta seus incentivos para dirigir
prudentemente.
No capítulo 5, nos deparamos com as dificuldades daqueles que perdem seus empregos por conta de avanços
tecnológicos – o problema do pai do Woody Allen. Para se proteger desse risco, as pessoas gostariam de comprar
seguros contra o desemprego. Mas não existem seguradoras vendendo este tipo de apólice. Por quê? Como o
trabalhador conhece suas chances de demissão muito melhor que a seguradora, há de novo um problema de seleção
adversa, ainda mais intenso que no caso do seguro saúde. Políticas públicas como o salário desemprego temporário e
programas de re-treinamento são maneiras encontradas para se contornar a inexistência deste mercado.
Como vimos, o mercado e o sistema de preços têm a função de agregar informações sobre o valor atribuído pela
sociedade a um bem e seu custo de produção. Casos importantes em que o mercado falha nesta tarefa são: (1)
externalidades, (2) bens públicos, (3) monopólios naturais e (4) assimetria de informação.
As pessoas normalmente não levam em conta nas suas escolhas todos os custos associados às externalidades de
seus atos. Na ausência de leis, a utilização dos bens públicos (o ar, as ruas e as florestas) e as ações que geram
externalidades negativas ultrapassam o nível desejado pela sociedade - assim como faltarão incentivos para as
pessoas tomarem decisões que geram externalidades positivas (caso da pesquisa básica). Empresas monopolistas
cobrarão um preço pelo seu produto que levará a um consumo menor que o desejado pela sociedade. Negócios que
seriam fechados não o serão por conta de assimetrias de informação.
As intervenções do governo na economia devem se basear nestas falhas de mercado. Multas para quem dirige
perigosamente e leis que nos proíbem de roubar o que pertence aos outros incentivam as pessoas a não tomarem
ações que prejudicam os demais – assim como as medidas que visam reduzir a poluição, o trânsito e a devastação
das florestas. Faz sentido também gastar dinheiro com pesquisa básica e com a organização de um cadastro positivo
de devedores por parte do Banco Central.
Mas são somente estas as razões que justificam a intervenção do governo na economia? E os pobres? E a
redistribuição de renda? De fato, este é um assunto extremamente importante e o próximo capítulo será dedicado
exclusivamente a esta questão.
10. O mercado das almas
Robin Hood, lendário fora da lei da Inglaterra do século XIII, roubava dos ricos para dar aos pobres e era por
isso chamado de “Príncipe dos Ladrões”. Alguns séculos depois, ou mais precisamente em meados do século XIX, a
função desempenhada pelo famoso herói inglês começou a tornar-se, gradativamente, uma incumbência de governos
democraticamente instituídos. Sociedades do pós-iluminismo legalizaram, ou institucionalizaram, o medieval Robin
Hood, implementando políticas de transferências de recursos dos ricos para os pobres.
A lenda de Robin Hood toca em um aspecto importante da questão da redistribuição de renda. Por um lado, nos
soa correto, humano e eticamente elogiável ajudar os mais necessitados, nos parece justo tirar dos ricos para dar aos
pobres. Por outro lado, a apropriação de parte da renda das pessoas – seja entrando e saindo soturnamente de
castelos à noite e assaltando carruagens de passagem pela floresta de Sherwood, ou obrigando-os a pagar impostos –
tem um caráter bastante diferente de doações voluntárias e nos faz pensar até que ponto é correto tirar dos mais bem
sucedidos aquilo que lhes pertence para dar aos mais pobres.
Se um grupo de pessoas na sociedade é obrigado a ceder parte de sua renda, via pagamento de impostos, para
financiar transferência de renda aos mais pobres, há uma interferência do Estado na economia que precisa ser
justificada.
No capítulo anterior, nós estudamos as principais razões para o governo intervir na economia: externalidades,
bens públicos, monopólios naturais e assimetrias de informação. Mas nenhuma destas falhas de mercado parece
tocar o cerne da questão da redistribuição de renda. Por outro lado, dada a desigualdade de renda que observamos no
mundo, transferir renda para os mais pobres soa como uma interferência do público no privado socialmente
desejável.
Se políticas para combater a desigualdade social são bem vindas, está faltando alguma coisa na nossa lista de
argumentos justificando intervenções do Estado na economia. Mas o quê exatamente?
O principal argumento pró-redistribuição se baseia em um critério de justiça logicamente poderoso: o de que as
políticas públicas ideais para uma sociedade são aquelas que seriam escolhidas pelos seus indivíduos antes que eles
soubessem com precisão sua condição como membro de determinada sociedade. Usando a definição de justiça
proposta pelo economista John Harsanyi e pelo filósofo John Rawls, políticas públicas justas, ou ideais para a
sociedade, são aquelas escolhidas sob um véu de ignorância de quem venhamos a ser nesta sociedade, são as que
seriam tomadas em um estágio prévio idealizado onde nossa posição futura como membro desta sociedade ainda nos
seria desconhecida.
Quando escolhemos regras sociais com este método, elas se tornam isentas da influência de interesses
particulares que são frutos da posição social que cada um ocupa na sociedade. Exemplifiquemos.
Imagine que você está destinado a nascer na África do Sul antes do fim do regime de segregação racial. Você
sabe com certeza que será um membro daquela sociedade, só não sabe ainda, devido ao tal véu de ignorância, qual
será a cor da sua pele. Com esta incerteza, você precisa fazer uma opção a respeito do tipo de contrato social que
vigorará em seu país. São duas as opções: uma constituição que preconiza a igualdade de tratamento, independente
da cor da pele, ou uma que institui legalmente o Apartheid. Lembre-se: você ainda não sabe se será negro ou branco.
O que você prefere?
Agora, imagine que você está predestinado a nascer no Brasil. Mas não sabe se em uma família rica dos Jardins,
em São Paulo, que será capaz de colocá-lo nas melhores escolas e cuidará com zelo da sua saúde, ou em um vilarejo
do interior do Piauí, onde se faz uma refeição por dia e não se encontra qualquer espécie de trabalho digno. Tendo
uma chance de 50% de nascer em uma das duas localidades, você votaria, antes de nascer e sob o véu da ignorância,
a favor ou contra programas de redistribuição de renda que repassam recursos das famílias dos Jardins para as do
interior do Piauí?
De acordo com a definição de justiça explicada anteriormente, as respostas a essas questões são as políticas
públicas ideais para cada um desses casos, pois consideram as nossas preferências isentas de nossas posições sociais.
No mundo em que vivemos, as pessoas nascem em condições iniciais extremamente diferentes uma das outras.
Os autores deste livro completaram seu doutorado em economia e hoje são professores universitários, mas isto teria
sido praticamente impossível se tivéssemos nascido em um lar pobre onde as crianças deixam a escola muito cedo
para trabalhar, não recebem alimentação apropriada, são pouco motivadas a estudar, e estão mais sujeitas a contrair
enfermidades de todos os tipos.
Por conta das disparidades nas condições iniciais, se não soubéssemos onde iríamos nascer, certamente
apoiaríamos um programa de transferência de renda para os pobres. Dizendo de outra maneira, se pudéssemos fazer
escolhas antes de nascer, sob o véu de ignorância de quem seríamos posteriormente na sociedade, nós negociaríamos
com outras almas, na mesma situação de incerteza, contratos que transfeririam recursos de quem terminasse
nascendo rico para os que viessem a nascer pobres. Estes contratos seriam como seguros contra a falta de
oportunidades.
Seguros são importantes para nos proteger de riscos. Tomemos os seguros contra roubo de automóveis, por
exemplo. A perda financeira decorrente do furto de um automóvel é grande. Para se proteger deste risco, os donos
dos carros pagam uma taxa para a seguradora e, se o carro for roubado, recebem da empresa que vendeu o seguro
um montante similar ao valor do carro. O seguro não anula as perdas dos donos de carros com os furtos, apenas
distribui estes riscos entre todos os motoristas. Quando um segurado é roubado, é o dinheiro que os outros pagam à
seguradora que vai ser usado para financiar o carro novo. Obviamente, se todos, ou muitos, forem simultaneamente
roubados, a seguradora enfrentará problemas sérios. Mas isto em geral não ocorre porque as seguradoras têm um
grande número de clientes e, portanto, enquanto uns serão furtados, muitos outros não serão. São justamente aqueles
que compram o seguro e não têm seus carros roubados que estão financiando as vítimas, o que nos leva à conclusão
que é o fato de você não saber se vai ou não ser a vítima que torna o arranjo interessante para cada um
individualmente.
Colocando sob o ângulo oposto, se eu souber que não serei o roubado, não me interessarei em fazer o seguro
(de fato, para quem quase não sai com o carro de casa, o seguro não é uma boa pedida). Note, portanto, que é o véu
da ignorância que motiva a decisão de se segurar.
E por que fazer o seguro é melhor que não fazê-lo? Como dito, porque abrir mão de pequenas quantidades de
dinheiro todo mês é melhor que eventualmente perder uma quantidade enorme de dinheiro de uma vez só no caso de
seu carro ser roubado.
Se o custo de ser sorteado na desagradável loteria de perdas de automóvel por furto é grande, o que dizer sobre
o risco de nascer sem oportunidades? A diferença entre a renda de uma pessoa que nasceu pobre em uma favela e a
renda que esta mesma pessoa teria se tivesse nascido em um lar de classe média é enorme. O valor de receber estudo
em boas escolas, alimentação apropriada, lazer, cultura e cuidado com a saúde, etc, é muito, mas muito superior ao
valor de um carro. Se escolhemos fazer seguros contra o roubo do nosso automóvel, certamente escolheríamos
comprar seguros contra a falta de oportunidades ao nascer. As almas negociariam bastante nesse mercado, se ele
existisse.
Seria muito interessante observar o mercado de seguros transacionados pelas almas. Estas, atentas para o
desenrolar dos acontecimentos na Terra, negociariam contratos que especificariam transferências de renda positivas
ou negativas nas mais diversas situações. Como no capítulo 8, o sistema de preços condensaria as informações sobre
as diversas possibilidades que uma criança tem ao nascer nas mais diferentes situações. Da mesma maneira que
mudanças na quantidade de furto de automóveis têm impactos nos preços de seguros, eventos que modificassem as
situações econômicas dos diversos países se refletiriam nos valores das transferências negociadas pelas almas. O
desenvolvimento e as melhoras nas condições de vida na Coréia do Sul nas últimas décadas, por exemplo, afetariam
os valores negociados das transferências pagas ou recebidas por quem viesse a nascer naquele país. Se as almas
preferissem viver no Brasil ao invés de morar na Finlândia, estes gostos se refletiriam nos valores das transferências
negociadas.
Depois de assinados, seria necessário que tais contratos fossem seguidos à risca na Terra. Assim como pagamos
pelo seguro do carro e recebemos dinheiro da seguradora quando nosso automóvel é roubado, quem nascesse em
uma família de classe média na Noruega transferiria uma bolada todo mês para quem nascesse sem ter o que comer
na Etiópia. O menino rico dos Jardins cederia parte de sua riqueza para a pobre menina do Piauí.
Mas claro, esse mercado não existe e é absolutamente impossível criá-lo ou arquitetar algo minimamente
semelhante. Em primeiro lugar, mesmo que as tais almas existam, é improvável que elas possam transacionar com
as outras antes do nascimento. Além disso, é impossível implementar as transferências da menina norueguesa para o
garoto etíope celebradas no contrato firmado pelas almas, antes de nascerem. Isto porque, depois do nascimento, a
menina norueguesa perderia os incentivos para transferir renda para o menino etíope, e não havendo representantes
das Cortes Judiciais das Almas na Terra, ela sairia impune do rompimento do contrato.
No capítulo passado, apontamos as falhas de mercado que podem tornar benéfica a intervenção do Estado na
economia. No caso da desigualdade de oportunidades ao nascer, o problema é mais fundamental: a existência desse
mercado de seguros é essencialmente impossível. Não há como se transacionar seguros contra nascer em situação
miserável. Assim, temos que contar com a ação do governo, e cabe ao Estado implementar as transferências de
renda para os mais pobres.
No capítulo passado, vimos instâncias em que as falhas de mercado impediam alguns mercados de existirem.
Não há mercado para o ar que se polui e se respira, porque o ar é em sua essência um bem público. Não é possível
fazer seguro contra ter dinheiro roubado porque a seguradora não tem como verificar a quantidade furtada, ou a
ocorrência do roubo, e esta assimetria de informação faz com que o preço deste seguro seja tão caro que o
inviabiliza. Não existe mercado de seguro contra chegar atrasado no trabalho porque a seguradora não pode checar o
meu esforço para acordar e sair de casa na hora apropriada - um outro problema de assimetria de informação que
impossibilita a existência deste mercado. O caso da desigualdade de renda é diferente da grande maioria dos casos
em que não há um mercado – mas seria desejável que houvesse – por não estar relacionado a estas falhas.
Em suma, a intervenção do Estado para aliviar a desigualdade de renda é plenamente justificável pela
impossibilidade de existência do mercado das almas.
Os dados mostram que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Segundo dados do Banco Mundial, o
Brasil figura entre os 20 países com maior índice de desigualdade de renda. Essa posição resulta principalmente da
diferença de oportunidades ao nascer, não de um maior esforço por parte dos mais ricos.
Em países onde o problema da desigualdade é bem grave, como no Brasil e no México, programas de
redistribuição de renda como Bolsa Escola e o Progresa ajudam a reduzir a pobreza. Mas programas de auxílio
financeiro aos pobres alteram suas escolhas. Como vimos no capítulo 4, muitas passadeiras optaram por deixar seus
empregos quando o Bolsa Escola foi instituído.
Existem outros tipos de programa de redistribuição de renda que tentam manter ou até aumentar os incentivos
para os mais pobres seguirem trabalhando. Por exemplo, o maior programa de transferência de renda nos Estados
Unidos – apelidado de imposto de renda negativo - não repassa recursos para quem não estiver trabalhando. Ele é
estruturado de modo a aumentar o salário dos que ganham pouco, aumentando os incentivos a se procurar um
emprego.
O que pensamos do impacto do Bolsa Escola sobre as escolhas dos trabalhadores? Por um lado, em algumas
situações não seria desejável que um pai de família deixasse de trabalhar por conta do auxílio financeiro recebido.
Mas por outro, se um pequeno auxílio financeiro é suficiente para fazer alguém decidir não trabalhar, isto significa
que sua escolha inicial de trabalhar se devia à falta de alternativas decentes. Além disto, nos agrada o impacto
positivo do Bolsa Escola sobre o salário das passadeiras que continuam trabalhando (capítulo 4).
No âmbito da discussão assistencialismo versus medidas estruturais, concordamos com a necessidade de centrar
forças na questão da educação, para que as pessoas aprendam por si só a pescar. Mas, hoje, são poucos os que têm
alta qualificação e equipamentos modernos a sua disposição e muitos os que têm disponíveis para si nada mais que
opções ruins e péssimas. Estes têm carência extrema de peixes e não podem esperar. Se nós, os com melhor
qualificação, conseguimos, com nossas redes, tarrafas, arpões e conhecimento do mar, pescar para muitos, enquanto
outros, com pouco conhecimento, e uma vara curta de má qualidade, mal conseguem se sustentar, achamos que não
há nada de errado em dar o peixe ao pobre e desenhar incentivos inteligentes para que eles mantenham seus filhos na
escola para aprenderem a arte de pescar. Mesmo considerando que alguns dos beneficiados perderão o interesse pela
pesca.
Além de aliviar as agruras da pobreza, os programas de transferência de renda podem afetar corretamente os
incentivos da família, por exemplo, impondo que as crianças das famílias beneficiadas com o auxílio permaneçam
na escola e consultem regularmente o posto de saúde. De fato, a miséria implica um verdadeiro desperdício das
habilidades das pessoas que são fundamentais para produzir bens e serviços no mundo de hoje. Milhares de
“potenciais” engenheiros, empreendedores, cientistas, professores, médicos, advogados, etc, nunca chegarão a se
formar, a alcançar a plenitude de suas capacidades econômico-sociais, se tiverem o azar de nascerem na pobreza e
não receberem ajuda para dela se desvencilhar.
Nossa defesa dos programas de redistribuição de renda não é uma defesa da tese de que todos os cidadãos do
mundo devem ganhar a mesma renda, ou ser igualmente beneficiados pelo desenvolvimento econômico. Não
defendemos que Bill Gates, ou Beyoncé, não possam, ou não devam, ganhar muito mais que o cidadão médio em
nome da equidade. O lema marxista “de cada um de acordo com suas capacidades, e a cada um de acordo com suas
necessidades” sugere que a renda seja distribuída às pessoas sem considerar o que elas produziram, ou quanto
trabalharam. Tratar a produção do país como algo que pertence a todos e que deve ser repartido igualmente entre a
população gera os problemas dos bens públicos discutidos no capítulo anterior: se eu recebo uma parte muito
pequena dos frutos do meu próprio trabalho, faltam incentivos para trabalhar, e o resultado é que todos trabalhamos
e produzimos pouco. Em suma, não advogamos pela equidade de resultados, mas pela equidade de oportunidades.
Algumas religiões acreditam que os que nascem miseráveis nesta vida estão pagando pelos erros cometidos em
outras vidas ou seguindo penas impostas pela vontade divina por outros motivos. Se assim fosse, a entidade
responsável pela alocação dos nascimentos pelo mundo estaria fazendo cada um pagar o preço pelos seus atos
passados, um sistema de preços “inter-vidas” estaria operando, e não seria preciso intervenção humana para ajudar
quem nasce na miséria.
Neste capítulo, nós partimos do pressuposto que isso não ocorre, que as crianças que nascem na miséria estão
pagando pela falta de oportunidades ou pelos erros de seus pais. Portanto, cabe a nós, humanos, tomar ações diretas
para combater a desigualdade de renda. Programas de transferência de recursos para os pobres e de melhoria da
qualidade de serviços públicos mais utilizados pelos mais carentes, como educação básica e saúde, servem a esta
função.
11. 289 dias
Em um clássico estudo realizado em 1983 no Peru, os pesquisadores do Instituto Liberdade e Democracia se
propuseram a descobrir quanto tempo e dinheiro seria necessário para um peruano abrir seu próprio negócio,
cumprindo todos os procedimentos burocráticos legais. Para tal, eles simularam a montagem de uma pequena fábrica
têxtil no subúrbio de Lima e se empenharam para cumprir todos os procedimentos exigidos, sem intermediários ou
despachantes, como um peruano de origem humilde faria se quisesse abrir uma empresa obedecendo todos os
requisitos da lei.
Os pesquisadores decidiram não pagar propina aos agentes do serviço público a não ser que esta fosse a única
maneira de continuar com o experimento. No processo que requeria 11 procedimentos legais, por 2 vezes eles
tiveram que pagar propina para seguir adiante, apesar de terem cumprido todos os requisitos da lei. Em outras 8
ocasiões, eles conseguiram, com alguma dificuldade, se desvencilhar dos pedidos de suborno.
O processo levou mais de 9 meses. Mais precisamente, foram necessários 289 dias para que enfim os
pesquisadores dessem a luz à documentação legal necessária para se constituir uma empresa no Peru. Será que tanto
tempo e trabalho geram benefícios para a sociedade? Difícil acreditar. Para se ter uma ideia, apesar dos 289 dias e 11
requisitos legais, as autoridades não perceberam, em momento algum, que estavam lidando com uma simulação.[7]
Em capítulos anteriores, mostramos os benefícios que a intervenção pública pode gerar quando há falhas de
mercado. Mas, como mostra o estudo do Instituto Liberdade e Democracia, não é só o mercado que falha.
As intervenções públicas, tão importantes para corrigir as falhas de mercado, têm seus efeitos negativos. Este
capítulo trata justamente destas falhas, ou seja, aborda os problemas e custos que podem decorrer da intervenção
pública, mesmo quando há bons motivos para que ela seja implementada.
Em termos gerais, os custos da intervenção governamental são de dois tipos. O primeiro e mais direto diz
respeito aos recursos retirados da sociedade pra prover os serviços governamentais. O segundo refere-se às
mudanças nos atos das pessoas provocadas pela intervenção do governo, mudanças com impactos negativos para a
economia.
Como vimos no capítulo 9, cobrar a taxa do congestionamento em Londres e fiscalizar o cumprimento da lei
não sai de graça. Qual o custo? Ao contrário do que pode parecer, o custo para a sociedade da lei anti-
congestionamento não é a taxa que as pessoas pagam para saírem com seus carros. Para implementar a lei, o Estado
precisa construir uma estrutura de cobrança e fiscalização, comprar câmeras e equipamentos, contratar gente pra
multar e arrecadar o imposto, etc. Esses gastos, financiados com impostos, constituem o real custo social da
intervenção do Estado.
O montante arrecadado com a taxa do congestionamento é suficiente para pagar todos esses custos e ainda gerar
algum excedente. O custo da implementação da lei é, portanto, menor que a soma de dinheiro provinda da taxação.
Sobra algum dinheiro para financiar outros gastos do governo, mas estes outros gastos não são custos da taxa do
congestionamento, são custos de outros programas governamentais. Assim, se a prefeitura de Londres aumenta a
taxa do congestionamento, mas nada mais muda - não se compram novas câmeras, não se contratam novos
funcionários - esse aumento da taxa não altera em nada o custo da implementação da lei.
A segunda categoria de custos da intervenção – as mudanças nos atos das pessoas provocadas pela intervenção
do governo – não é menos importante. Assim como as leis podem mudar o comportamento das pessoas para o bem
da sociedade ao fazê-las internalizar os custos sociais, por exemplo, cobrando pela emissão de poluição, as leis
também podem incentivar escolhas que geram custos para a sociedade. Vamos agora entender esses custos.
É fácil entender que se há corrupção, a construção de uma ponte sai mais cara para o contribuinte e, portanto, o
montante arrecadado pelo Estado compra menos pontes. Mas a corrupção causa outra distorção: quando o roubo do
dinheiro público é fácil e largamente praticado, alguns políticos vão decidir suas prioridades de gasto público com
base nas facilidades relativas de se roubar inerentes a diferentes projetos. Por exemplo, é mais fácil roubar
construindo pontes do que aumentando o salário dos professores da escola pública. No primeiro caso, o corrupto
pede uma comissão à empreiteira para fechar o contrato e ponto final; no segundo é mais difícil desviar a verba
orçamentária – como convencer um grupo enorme de professores a pagar propina ao político em troca de aumento
salarial e esconder a informação? Os políticos que decidem onde gastar de olho no seu próprio bolso tenderão,
portanto, a escolher mais pontes e menos salários para professores do que a sociedade o faria.
Além disso, se muitas pessoas e empresas acabam empenhando tempo e recursos para obter favores dos órgãos
públicos encarregados de fiscalizá-las, taxá-las e liberar-lhes permissões, ou então se dedicando à tarefa de encontrar
brechas nas intrincadas regulamentações, ao invés de investir tempo e recursos para inovar, produzir e crescer, a
economia como um todo sai perdendo, pois recursos que poderiam ser utilizados produtivamente são canalizados
para atividades que não geram riqueza, apenas redirecionam recursos na sociedade.
Como mostra o estudo do Instituto Democracia e Liberdade, as regulamentações do Estado implicam em custos
para se abrir uma empresa. Um trabalho posterior, publicado em 2002, compara o tempo necessário para se abrir
uma empresa em diversos países, obedecendo todos os requisitos legais. Sendo difícil e custoso simular aberturas de
empresas em várias partes do mundo, este estudo se baseou apenas em informações oficiais. Em vista disto, o tempo
computado no estudo é provavelmente menor do que na prática se levaria para abrir uma empresa. De todo modo, os
resultados saltam aos olhos. Em Moçambique, Madagascar e na Indonésia, são necessários mais de 4 meses para se
completar o processo. Na outra ponta do espectro, estão Canadá, Austrália, Dinamarca, Nova Zelândia, Estados
Unidos e Inglaterra, onde o processo dura entre 2 e 4 dias. O custo financeiro e o número de procedimentos também
variam enormemente.[8]
Regulamentações como essas alteram as decisões das pessoas, distorcendo-as de um modo prejudicial: se um
empreendedor decide não abrir uma empresa por conta dos trâmites burocráticos custosos, ele e a economia como
um todo saem perdendo. Da mesma forma, quando alguém deixa de importar uma máquina por conta da demora
para liberar os equipamentos na alfândega, há um efeito negativo da legislação sobre a economia. E mesmo quando
a despeito dos empecilhos se importa a máquina, a regulamentação também é custosa porque deixa ocioso por muito
tempo um recurso que poderia ser utilizado produtivamente mais cedo.
Utilizando as vias legais, um empreendedor de Moçambique terá que esperar 5 meses e arcar com custos
financeiros ligeiramente superiores a renda anual per capita de seu país para abrir sua empresa. Mas por que estas
regulamentações ineficientes não são substituídas por regulamentações melhores? Talvez justamente porque sua
continuidade beneficie pessoas como os grandes empresários bem conectados com o governo - que querem evitar a
entrada de novas empresas concorrentes -, ou agentes do setor público, interessados nas dificuldades que lhes
permitem vender facilidades.
A corrupção é um claro custo da intervenção estatal. Assim, quanto mais propensas à corrupção forem as
instituições do país, menor deveria ser o grau de intervenção estatal de modo a evitar este custo. Contudo, os dados
mostram justamente o contrário: em países mais infestados pela corrupção, a burocracia é maior. Por exemplo, abrir
uma empresa leva poucos dias nos países escandinavos, onde os níveis de corrupção são muito baixos, e alguns
meses nos países com instituições mais corrompidas. Esses dados são consistentes com a conjetura aventada no
parágrafo anterior: onde há mais corrupção, aqueles que vendem os atalhos ilícitos para se desvencilhar da selva
burocrática e aqueles que não querem que potenciais concorrentes abram novas empresas conseguem manter as
dificuldades da legislação. Em situações como esta, a existência da máquina estatal e a possibilidade de se obter
dinheiro ou favores via corrupção gera incentivos para a manutenção de mecanismos que emperram o setor
produtivo da economia.
Em suma, a corrupção é mais que uma transferência de recursos da sociedade para um corrupto. Todavia, vários
dos custos acima explicados passam ao largo da discussão sobre o problema.
De fato, estudos estatísticos mostram que nos países onde há mais corrupção, menos negócios são abertos, as
inovações se espalham mais lentamente, a informalidade econômica é maior e o crescimento da economia é menor.
Ao abordar o tema da corrupção, é importante ressaltar o óbvio: funcionários públicos são, em sua maioria,
pessoas honestas que não se corrompem – e o pai de um dos autores desse livro é um desses exemplos. Mas há
pessoas que não se importam em ganhar dinheiro desonestamente. Para estas pessoas, posições que permitem
ganhos com a corrupção são particularmente atrativas. Agora, quando se corromper torna-se arriscado devido a leis
e punições duras e exemplares, algumas das pessoas antes dedicadas à atividade de redirecionar recursos para seus
bolsos escolherão alocar seu tempo para realizar tarefas mais produtivas para a sociedade.
Mas as falhas de governo não estão ligadas apenas ao fenômeno da corrupção.
Como colocado, a regulamentação pública deveria servir pra resolver os problemas discutidos no capítulo 9,
mas muitas vezes ela adquire outras feições. Por exemplo, para tornar-se professor de economia em algumas
faculdades é obrigatório possuir graduação em economia. Os autores deste livro, apesar de terem completado
mestrado e doutorado em economia, não seriam elegíveis para vários concursos públicos de professor universitário
por não terem estudado economia em nível de graduação. Da mesma maneira, para se tornar um advogado no Brasil
é preciso passar em um exame da Ordem; para trabalhar como jornalista, é necessário formação superior em
jornalismo;[9] etc. O que motiva estas regulamentações?
A falha de mercado apresentada como justificativa para estas leis é a assimetria de informação: por vezes o
cidadão comum pode não ser capaz de avaliar com precisão a qualidade dos serviços prestados por professores,
médicos, advogados ou jornalistas. Sendo difícil avaliar a qualidade de um serviço, até mesmo após sua prestação,
alguns profissionais poderiam não se sentir apropriadamente incentivados a investir em sua formação e a se esforçar
nos seus trabalhos. Esta assimetria de informação prejudicaria os bons profissionais, que enfrentariam dificuldades
de se distinguir dos maus devido à dificuldade de avaliação por parte do cliente. Além disso, as empresas também
não teriam incentivos para contratar os melhores profissionais por conta dessas dificuldades de avaliação. Assim, em
tese, as leis impondo regras de entrada para se atuar nesses mercados garantiriam uma qualificação mínima dos
profissionais envolvidos nesses serviços e, portanto, serviriam para controlar a qualidade dos serviços prestados aos
clientes.
Por outro lado, ao impor barreiras à entrada na profissão com exames ou necessidades de diplomas, essas
medidas causam uma diminuição da oferta de profissionais autorizados a trabalhar. Como vimos no capítulo 4, essa
restrição na oferta leva a um aumento no salário do grupo beneficiado pela lei – aqueles que têm o diploma
requerido e os que já estão empregados, dado que essas propostas de lei sempre permitem quem já trabalha
continuar exercendo a profissão. Na outra ponta, a legislação restringe o conjunto de opções das pessoas que não
tem o diploma requerido, causando impacto negativo em seus salários.
Como dissemos anteriormente, o jornal só teria incentivos para contratar maus jornalistas se nós não
conseguíssemos julgar a qualidade dos artigos que lemos. Mas se nós somos capazes de avaliar o que recebemos da
imprensa, não há falhas de mercado e, portanto, não cabe intervenção governamental. Nós acreditamos que as
pessoas são capazes de avaliar a qualidade de um artigo de jornal. Pode ser mais difícil julgar a veracidade das
notícias veiculadas, mas para esse problema pouco ajuda um diploma de jornalismo. Por outro lado, muitos
profissionais qualificados são impedidos de trabalhar como jornalistas por conta da falta do diploma, o que é um
importante custo para a sociedade. Ao nosso ver, nesse caso, os custos da intervenção são claramente superiores aos
benefícios.
Além dos custos que a própria regulamentação impinge, todo o trabalho envolvido para julgar a lei consome
recursos da sociedade que poderiam estar sendo empregados em atividades produtivas. Os juízes que julgam os
recursos teriam muitos outros casos para analisar, os jornalistas que se organizam a favor da lei poderiam estar
trabalhando para informar a população, e os funcionários responsáveis para garantir o cumprimento dessa lei, pagos
pelos cidadãos, poderiam estar prestando outros serviços.
Este tipo de regulação, aliás, não é invenção moderna. Como descrito por Adam Smith, em “A Riqueza das
Nações”, as agremiações profissionais antigamente tentavam manter os salários de seus membros em patamares
elevados obrigando as pessoas a passarem anos sob a tutela de um mestre antes de poderem exercer uma dada
profissão livremente. A justificativa era a mesma: para formar um profissional de qualidade era preciso passar muito
tempo aprendendo com o mestre. Quem lucrava com esta história eram os mestres, pois esta regulamentação reduzia
a oferta de ferreiros, carpinteiros, etc, aumentando a remuneração dos mestres. Nas palavras de Adam Smith,
“quando pessoas do mesmo negócio se juntam, a conversa termina em uma conspiração contra o público”.
Vejamos uma outra instância em que uma falha de mercado é substituída por uma falha de governo. No Brasil
antes dos anos 90, o Estado impôs uma reserva de mercado para os computadores produzidos localmente. Qual a
falha de mercado que justifica esta legislação? A justificativa era a seguinte: sem a lei, ninguém investiria em
computadores, o Brasil jamais seria competitivo nesse ramo. Mas com os incentivos providos pela reserva de
mercado, as empresas nacionais adquiririam conhecimentos para produzir computadores, conhecimentos estes que
se espalhariam pelo país como um todo. Essa difusão de conhecimentos seria uma externalidade positiva, ou seja,
um ganho para a sociedade não levado em conta na decisão de investimento das empresas.
Mas note que se ao invés de investir na produção de microcomputadores as empresas nacionais devotassem
seus esforços para a produção de outros bens, conhecimento sobre a produção desses outros bens seria desenvolvido
e expandido, e a difusão desses conhecimentos também seria uma externalidade positiva. Assim, para se justificar a
intervenção estatal, a externalidade gerada pela produção dos computadores precisaria ser superior à externalidade
associada à produção de outros bens somada às falhas de governo decorrentes da intervenção.
O mesmo tipo de argumento é por vezes empregado para justificarem-se investimentos do governo em outras
áreas – como bancos ou siderurgia. Se produzir aço ou prestar serviços bancários à determinada parcela da
população não é interessante o suficiente para o setor privado, mas gera importantes benefícios sociais, o governo
deveria intervir. A falha de mercado seria, novamente, os benefícios sociais que a empresa não colhe e, portanto, que
o empresário não leva em conta na hora de decidir em que ramo de negócio atuar.
Parte dos custos deste tipo de intervenção estão relacionados à perda de eficiência e ao uso de empresas do setor
público para favorecimentos políticos. No setor privado, empregar amigos improdutivos ou desperdiçar dinheiro é
um custo para donos e acionistas. Eles, portanto, terão mais incentivos para evitar que os funcionários de suas
empresas tomem decisões que não levem à maximização do lucro. O critério de maximização do lucro, como
explicamos nos capítulos 3 e 8, leva a empresa privada a produzir mais eficientemente. No caso do setor público,
quem arca com a conta da ineficiência é a população pagadora de impostos e, portanto, as pressões para se buscar
eficiência e evitar o uso da empresa para favorecimentos pessoais são menores – fazer cortesia com o chapéu do
contribuinte é menos custoso.
Por conta das externalidades associadas ao investimento na indústria nascente, políticas de estímulo à indústria
nacional podem até ser benéficas se sua duração não for demasiadamente longa – porque se ela se prolonga no
tempo, o empresário, protegido da concorrência, tem menos incentivos a buscar eficiência produtiva. O problema
deste tipo de intervenção é que ele incentiva o empresário a tentar manter a proteção indefinidamente. Nestes casos,
um bom lobby é mais lucrativo que uma inovação no processo produtivo. Mas um bom lobby, ao contrário de uma
inovação, não aumenta a produção e nem a renda do país.
Por fim, visando minimizar a corrupção nas empresas públicas, os órgãos públicos precisam obedecer a
critérios rígidos de atuação. Por exemplo, as compras devem seguir procedimentos formais que incluem a
elaboração de detalhados editais, deixando pouco espaço para mudanças, uma margem de flexibilidade estreita. Por
conta destas amarras desenhadas para evitar favorecimentos e corrupção, muitas decisões tomam muito tempo para
serem tomadas e implementadas, e as escolhas em si são mais restritas, o que compromete a eficiência da empresa
pública.
Concluindo, falhas de mercado chamam pela intervenção do Estado. Mas a intervenção do Estado tem seus
custos, por absorver recursos da sociedade para implementar as leis e por modificar os incentivos das pessoas.
Então, para que a intervenção do governo seja desejável, é necessário não apenas que as imperfeições no
funcionamento do mercado sejam custosas: é necessário também que os custos da intervenção pública não superem
seus benefícios.
12. O poder mágico da cerveja
Os capítulos seguintes deste livro são dedicados a temas específicos e que fazem parte do debate cotidiano
sobre políticas públicas, quais sejam, educação, comércio, taxação, previdência, crédito, mercados ilícitos e
instituições políticas. Para estudar as políticas referentes a cada um desses temas, nos basearemos nos conceitos
desenvolvidos até agora no livro. Em vários momentos, utilizaremos resultados de estudos empíricos para
enriquecer nossa análise porque olhar os dados é crucial para o entendimento do mundo e para testar a validade das
teorias. Teorias não corroboradas pela evidência empírica não nos são lá muito úteis, e devem ser substituídas por
outras mais afinadas com a realidade.[10]
Estes estudos empíricos que mencionaremos utilizam dados provenientes de variadas fontes e aplicam técnicas
estatísticas – às vezes relativamente simples, às vezes mais complicadas - para estabelecer relações entre diversas
variáveis econômicas e sociais. Por exemplo, alguns estudos tentam medir qual o efeito de maior educação sobre o
salário de uma pessoa, outros investigam o efeito da abertura comercial sobre a renda dos mais pobres, ou ainda o
impacto dos acordos com o FMI sobre as economias em desenvolvimento.
Por exemplo, para testar o efeito de acordos com o FMI em economias em desenvolvimento, podemos coletar
dados de todos os países em um dado momento e comparar o desempenho econômico dos que acabaram de receber
recursos do FMI com o dos outros países. Essa comparação nos revela que o desempenho econômico é em média
melhor em países sem a participação do FMI. Da mesma maneira, podemos focar o estudo em um país e comparar
períodos em que há acordos com o FMI com outros períodos em que não há. Em vários casos, esta inspeção dos
dados revelará que quando há acordos com o FMI, a economia está em média pior. Podemos concluir a partir dessa
informação que acordos com o FMI atrapalham o desempenho econômico? Será que as políticas impostas pelo FMI
impõem severas barreiras ao crescimento? Estariam esses resultados refletindo a inadequação das políticas
econômicas traçadas pelo FMI para as economias em desenvolvimento?
Vejamos outro exemplo. Muitos pais se preocupam em ajudar seus filhos com suas tarefas escolares. Mas esta
ajuda é benéfica para as crianças? Análises comparando as notas obtidas por estudantes com diferentes graus de
auxílio dos pais nos revelam que são justamente os filhos que os pais mais auxiliam com os afazeres escolares que
têm pior desempenho nas provas. O que poderia estar levando a este resultado? Muita pressão psicológica por parte
de pais que despendem horas do seu fim semana estudando junto com os filhos? Falta de estímulos para a criança
aprender por conta própria?
Antes de começarmos a procurar razões por trás dessas relações empíricas, é preciso entender melhor o que
podemos e o que não podemos concluir a partir desses resultados.
Comecemos então com o exemplo lúdico de um autodenominado guru que deseja testar a validade de uma
teoria pra lá de exótica: a teoria do poder mágico da cerveja. De acordo com a teoria do guru, beber cerveja na praia
aumenta as chances do dia ficar ensolarado. A degustação da cerveja cria na praia um ambiente convidativo para o
Sol e este, sempre atento aos convites dos humanos, faz mais esforço para driblar as nuvens e brilhar no céu. Assim,
quanto mais cerveja é consumida na praia, maior a temperatura e maior o tempo em que a praia fica ensolarada.
Nós sabemos que a teoria não faz o menor sentido. Contudo, o guru está determinado a nos provar sua validade.
Para isso, ele se dispõe a passar um ano na praia coletando dados diários sobre (1) o consumo de cerveja e, (2) a
temperatura na praia. Ao final de um ano, o guru terá uma base de dados com 365 observações de cada uma dessas
duas variáveis.
Se a teoria do guru estiver correta, dias com maior consumo de cerveja corresponderão, em média, a dias com
temperatura mais alta. Em linguajar estatístico, haverá uma correlação positiva entre a temperatura e o consumo de
cerveja: quando o consumo de cerveja é baixo, a temperatura tende a ser baixa também; dias com maior consumo de
cerveja apresentam, em média, maior temperatura.
A correlação é nula quando não há relação entre as duas variáveis. No exemplo, será esse o caso se
temperaturas altas e baixas ocorrerem com a mesma freqüência em dias com muito e com pouco consumo de
cerveja. Por fim, a correlação entre duas variáveis pode também ser negativa. Neste caso, isso ocorreria se dias com
maior consumo de cerveja apresentassem, em média, temperaturas mais baixas.
O guru poderá então calcular a correlação entre as variáveis consumo de cerveja e temperatura, e verificar se
dias com maior venda de cerveja realmente coincidem com dias mais quentes. Utilizando técnicas estatísticas, ele
poderá também estimar a chance da relação encontrada nos dados ser mais que uma mera coincidência.
Temos certeza que a correlação calculada pelo guru será completamente consistente com sua teoria. Sim, ele
certamente encontrará uma correlação positiva entre as duas variáveis: os dados mostrarão que o consumo de cerveja
é significativamente maior em dias quentes do que em dias frios. Contudo, a teoria em si está completamente errada:
a relação positiva entre consumo de cerveja e temperaturas elevadas não se deve ao poder mágico da cerveja de
atrair o Sol, mas ao fato de que as pessoas preferem ir a praia e tomar cerveja em dias quentes. Dizendo de outra
maneira, não é o maior consumo de cerveja que causa altas temperaturas, é a temperatura mais alta que leva mais
pessoas à praia e causa maior consumo de cerveja.
O estudo do guru sofre de um problema que os economistas chamam de causalidade reversa. A relação positiva
encontrada de fato existe, e sua magnitude é grande, mas a causalidade entre as variáveis é a oposta da sugerida por
sua teoria.
Neste exemplo didático, a questão da causalidade reversa pode parecer óbvia, mas em outras situações do
mundo real, nem sempre isto é verdade.
Voltando ao exemplo do início do capítulo, é seguro concluir que a presença do FMI atrapalha os países em
desenvolvimento com base no fato de haver uma correlação negativa entre sua presença no país e o desempenho
econômico? Não, pois há aqui um claro problema de causalidade reversa: o FMI normalmente empresta dinheiro e
propõe programas de ajuste exatamente para os países que estão atravessando mais dificuldades. A existência de
problemas econômicos no país aumenta a chance dele terminar batendo à porta do FMI e assim, mesmo que as
políticas e empréstimos deste órgão exerçam impacto positivo sobre o desempenho econômico do país em crise, é
possível que os dados revelem uma relação negativa entre receber recursos do FMI e desempenho econômico. Por
conta desse problema de causalidade reversa, não é fácil obter estimavas empíricas do efeito de acordos com o FMI
sobre a economia de países em desenvolvimento.
Da mesma maneira, a chance de uma pessoa morrer em um hospital é muito maior do que a chance de morrer
em uma boate. Isto significa que se uma pessoa está doente, correndo risco de vida, devemos tirá-la do hospital e
levá-la a boate? Claro que não. Assim como países com as finanças se deteriorando têm mais chance de pedir
socorro ao FMI, doentes têm mais chance de estar em hospitais que em boates. A maior chance de morrer em um
hospital não se deve ao risco de vida inerente à ida ao hospital, mas ao problema de causalidade reversa aqui
debatido.
Similarmente, o Banco Mundial concede, todos os anos, grandes volumes de ajuda financeira a países pobres na
África. Curiosamente, os países que mais recebem ajuda são os que apresentam menores taxas de crescimento
econômico. Que a ajuda do Banco Mundial não seja efetiva, vá lá, mas será que ela piora a situação dos países que a
recebem? Bem, é preciso notar que mais dinheiro é alocado justamente para os países em maior dificuldade (e que,
portanto, crescem menos). Temos então mais uma vez o problema de causalidade reversa que dificulta a averiguação
do impacto de ajuda sobre o PIB. Assim, não é correto inferir o efeito da ajuda financeira sobre o crescimento
apenas olhando apenas para a correlação entre eles.
No caso do exemplo do guru, é claro que a temperatura exerce impacto positivo no consumo de cerveja e o
consumo de cerveja não tem impacto algum na temperatura da praia naquele dia. Assim, estimar o efeito da
temperatura no consumo de cerveja (o inverso da relação proposta pelo guru) é tarefa relativamente simples.
Contudo, em exemplos econômicos, as variáveis de interesse normalmente exercem impactos e ao mesmo tempo são
afetadas pelas outras, o que torna difícil desvendar a relação de causalidade entre os dados.
De todo modo, maravilhado pela ratificação empírica do poder da cerveja em atrair o Sol – e ignorando o
problema da causalidade reversa – o guru busca agora testar outra vertente de sua teoria: a de que a cerveja tem o
poder de aumentar o desejo das pessoas de tomar sorvete. Ao criar o ambiente festivo na praia, o consumo de
cerveja faz com que as pessoas queiram celebrar suas existências tomando picolé. Mas o guru sabe que para dar
crédito a sua teoria não convencional, ele precisa confirmá-la empiricamente, e assim ele se dedica a coleta de dados
sobre: (1) consumo de cerveja e, (2) consumo de picolé dos frequentadores da praia. Ao final de um ano, o guru terá
uma base de dados com 365 observações de cada uma das duas variáveis, e poderá então calcular no computador a
correlação estatística entre elas.
Novamente, o guru verificará que dias com maior consumo de cerveja coincidem com dias de maior consumo
de picolé, ou seja, mais uma vez a relação encontrada nos dados corrobora – ou assim pensa ele – sua previsão
teórica. Mas é claro que ele está errado mais uma vez. A relação positiva entre consumo de cerveja e consumo de
picolé não se deve ao poder mágico da cerveja de aumentar o desejo por sorvete, mas a uma terceira variável,
omitida da análise: a temperatura na praia. Em dias quentes, as praias estão cheias e tanto o consumo de sorvete
quanto o consumo de cerveja são altos. Em dias frios, não há ninguém na praia e o consumo de ambos é baixo. Na
amostra como um todo, em média, quando o consumo de sorvete é alto, o consumo de cerveja também tende a ser
alto, mas não por conta de uma relação de causalidade entre eles.
Dizendo de outra maneira, não é o maior consumo de cerveja que causa maior consumo de picolé, e nem o
contrário. É o dia ensolarado que faz com que o consumo de ambos seja maior. O estudo do guru sofre de um
problema de variável omitida: a temperatura da praia - variável chave para explicar a relação entre o consumo de
sorvete e cerveja - está omitida na análise.
O segundo problema empírico do guru das cervejas - variáveis omitidas - também é muito frequente nas
analises empíricas.
Por exemplo, como mencionamos anteriormente, dados referentes ao tempo que os pais passam estudando com
os filhos e às notas dos estudantes revelam uma correlação negativa entre as duas variáveis: mais tempo de estudo
com os pais corresponde a notas mais baixas. Mas há uma importante variável omitida: a facilidade de
aprendizagem. Se os filhos têm facilidade em aprender, não há motivo para os pais estudarem com eles. Pela mesma
razão, quando os filhos têm dificuldades, os pais dedicam mais tempo a auxiliá-los. Assim, as crianças com mais
dificuldade na escola estudam mais com os pais e tiram notas mais baixas, mas isso não significa que o impacto do
estudo com os pais sobre o desempenho escolar seja negativo.
Os pesquisadores da área de política monetária costumam argumentar que bancos centrais mais independentes
do governante da vez não precisarão se curvar diante do Executivo e imprimir moeda para cobrir a necessidade de
gastos excessivos. A inflação, portanto, será menor quanto maior for a independência do banco central. Esta é a
teoria, mas o que dizem os dados? De fato, países onde os bancos centrais, guardiões da moeda, são legalmente mais
independentes são também países onde a taxa de inflação é menor. Podemos daí concluir inequivocamente que
maior independência do banco central gera inflação mais baixa?
Não, justamente porque este resultado empírico pode estar sendo causado pela omissão de outra variável que
leva tanto a taxas de inflação mais baixas como à decisão de outorgar maior independência ao banco central. E esta
variável é a aversão à inflação da sociedade. Uma sociedade muito avessa à inflação – como o povo alemão que no
pós-primeira guerra conviveu com inflação tão alta que as pessoas iam as compras com carrinhos cheios de dinheiro
para trazer para casa alguns poucos itens de alimentos – demandará do governo tanto um banco central mais
independente como outras medidas que coíbam a volta da inflação – como prudência nos gastos públicos, proibição
de cláusulas de indexação, etc. A variável omitida “aversão à inflação” poderia, portanto, estar por trás tanto da
maior independência do banco central, como da menor inflação. Assim, sem uma análise mais detalhada, não é
possível afirmar que a correlação entre estas duas ateste a existência de uma relação de causa e efeito.
Similarmente, qualquer análise empírica sobre a relação de escolaridade e renda revela que pessoas com maior
nível de educação recebem maiores salários. E há mesmo bons motivos teóricos, como vimos no capítulo 5 e
veremos de novo no capítulo seguinte, dando suporte a estes achados. Mas podemos considerar esta correlação
positiva como prova empírica cabal de que educação gera maiores salários? Não de imediato. A simples correlação
positiva não é suficiente para indicar causalidade. Pessoas mais motivadas para estudar, mais inteligentes, e mais
esforçadas têm normalmente melhor desempenho na escola do que as outras. Elas, portanto, atingem níveis de
escolaridade maior. Mas acontece que por serem mais esforçadas, inteligentes e motivadas, estas mesmas pessoas
terão também mais facilidade para resolver problemas no trabalho e se esforçarão mais nas suas tarefas como
empregados. Elas, portanto, tenderão a receber salários mais altos, mas não necessariamente por conta de um maior
nível educacional em si, e sim devido às variáveis (omitidas) inteligência e motivação.
As características pessoais de cada um de nós – variáveis omitidas dessa simples análise que relaciona educação
e salário – exercem impacto similar na escolaridade (por exemplo, os mais motivados estudam mais), e na renda (os
mais motivados trabalham com mais afinco) e, portanto, a correlação positiva entre educação e salários reflete não
só o impacto da educação per si sobre a renda, mas também a influência comum sobre ambos destas outras
características do indivíduo.
O problema de variável omitida é relevante quando é difícil mensurá-la. No caso do consumo de cerveja e
sorvete, é fácil medir a temperatura na praia e, assim, é possível incluir essa variável na análise estatística sem
maiores dificuldades. Técnicas de estatística e econometria nos permitem estimar o impacto no consumo de sorvete
no consumo de cerveja já levando em conta outras variáveis, como a temperatura, a presença de chuva, ou o tempo
em que o Sol está encoberto pelas nuvens. Esta análise mais completa não mostraria um impacto significativo do
consumo de cerveja sobre o de sorvete.
O problema de variável omitida no caso da relação educação/salário pode ser atenuado adicionando-se
características pessoais que são observáveis para o pesquisador (como a educação dos pais) na análise, mas nunca
poderá ser plenamente eliminado por que é impossível ter acesso a dados como motivação, capacidade de
aprendizado, etc. Similarmente, é complicado resolver o problema de variável omitida nos dois exemplos anteriores
por ser difícil encontrar boas medidas para a importância que uma sociedade dá à inflação ou para as dificuldades
que a criança tem para aprender.
Como dito, os dados nos ajudam a entender o mundo e também a minimizar a força dos preconceitos
ideológicos de todos os tipos. Mas muitas vezes uma análise superficial ou açodada dos mesmos pode nos induzir a
erros graves. Se não atentássemos para os problemas de causalidade reversa e variáveis omitidas, estaríamos agora
discutindo as possíveis explicações para os efeitos negativos do FMI e do estudo com os filhos. É fundamental
analisar os dados e testarmos nossas teorias, mas não podemos esquecer as lições que tiramos das teorias mágicas da
cerveja no que concerne a análise empírica.
Em várias outras ciências, essas dificuldades de testar teorias são contornadas pela possibilidade de se realizar o
que os pesquisadores chamam de experimentos controlados. Um agrônomo que quer testar o impacto de diferentes
fertilizantes pode dividir um pedaço homogêneo de terra e aplicar cada fertilizante em um dos pedaços para assim
verificar o impacto dos fertilizantes sobre o plantio, livre dos outros efeitos. A homogeneidade dos pedaços de terra
adjacentes significa que as outras variáveis que afetam o crescimento da cultura são muito parecidas em cada
pedaço, o que nos permite identificar o efeito puro dos diferentes fertilizantes. Da mesma forma, um físico pode
realizar vários experimentos controlados em laboratório, alterando apenas uma variável de sua análise e mantendo as
outras rigorosamente constantes para testar os efeitos daquela mudança particular.
Mas nós, economistas, temos muito menos oportunidades de realizar experimentos controlados. Não é
desejável, nem eticamente aceitável, sortear alguns estudantes e impedi-los de continuar estudando para que
possamos, anos depois, obter dados sobre salários de pessoas motivadas para estudar, mas que não o fizeram porque
a escolha lhes foi vedada por um economista em busca de uma boa evidência empírica.
Sendo muito difícil realizar experimentos controlados no mundo da economia, cabe a nós desenvolvermos
técnicas que nos permitam driblar os problemas de causalidade reversa e variável omitida, tornando possível
examinar a relação entre as variáveis de interesse com os dados que podemos obter do mundo. Explicar
detalhadamente essas técnicas vai além do objetivo deste livro e requereria muito conhecimento de estatística, mas
mais importante que entender as técnicas em si é compreender um pouco de sua lógica.
Por exemplo, alguns estudos examinam a relação entre anos de estudo e renda de gêmeos idênticos. A idéia é
que estudando amostras de gêmeos, torna-se possível isolar o efeito de algumas variáveis omitidas (qualquer coisa
que venha do código genético) na análise estatística, o que é muito difícil de fazer em amostras onde as pessoas são
geneticamente heterogêneas. A relação encontrada usando esta técnica é positiva e de grande magnitude: o irmão
gêmeo que estuda mais tem, em média, salário maior – e nesse caso ao menos sabemos que as variáveis omitidas
nos genes não estão influenciando os resultados.
Em economia, quando encontramos situações similares a do exemplo do fertilizante e dos gêmeos, é possível
identificar a relação de causalidade entre as variáveis. De modo geral, leis e eventos que afetam diretamente uma das
variáveis sem impactos diretos na outra nos permitem driblar os problemas de variável omitida e causalidade
reversa. Por exemplo, se o governo baixasse um decreto obrigando todos os pais de filhos com nomes iniciando com
a letra A a estudar com eles todo dia por duas horas e proibisse os pais de filhos com nomes iniciando com B de
fazê-lo, poderíamos testar claramente o impacto do auxílio dos pais no desempenho escolar. Para isso, bastaria
comparar a média das notas de cada grupo de alunos. O ponto é que a lei influencia diretamente o tempo de estudo
com os filhos e não afeta as variáveis omitidas que influenciam a nota, como a facilidade que a criança tem de
aprender.
Em alguns casos, os resultados dos trabalhos empíricos são relativamente precisos, obtidos sob hipóteses
brandas e, portanto, merecem ser tratados como fortes evidências de causalidade de uma variável para outra. No
outro extremo, há casos para os quais não há resultados empíricos convincentes, pois ainda não se encontraram
meios satisfatórios de se contornar os problemas mencionados neste capítulo. E há, claro, os casos intermediários.
Voltando aos exemplos mencionados neste capítulo, estudos utilizando técnicas mais avançadas confirmam que
educação gera de fato maiores salários, sendo essa conclusão bastante robusta a variações da amostra empregada e a
diferentes técnicas de estimação. Alguns trabalhos indicam que ajuda financeira a países pobres não os torna mais
pobres como sugeriria a correlação negativa entre ajuda e crescimento, mas tampouco indicam que a ajuda é algo
relevante. No que tange ao FMI, estudos empíricos têm tido até agora pouco sucesso em determinar o efeito dos
empréstimos do FMI a países em crises financeiras. E, finalmente, os estudos sobre independência do banco central
e inflação sugerem que grande parte do efeito que gera a correlação negativa parece se dever à aversão à inflação da
sociedade – mas a confiança aqui não é das maiores.
Uma importante lição deste capítulo é que quando somos informados sobre a relação entre determinadas
variáveis, devemos sempre atentar para os problemas de causalidade reversa e variável omitida. Por exemplo, ao ler
no jornal que “tomar 3 ou 4 xícaras de chá por dia reduz o risco de ataque cardíaco”, é bom checar como a pesquisa
foi feita. Se a conclusão vem apenas de uma correlação negativa – quem toma chá tem menos chance de sofrer um
ataque do coração –, devemos nos perguntar: mas será que não há uma variável omitida na jogada? Será que as
pessoas que tomam um chazinho três vezes ao dia não são justamente aquelas que levam uma vida com menos
estresse e por conta disso têm menos chance de morrer do coração?
Os jornais esportivos dizem que os times ingleses têm ótimos jogadores e um campeonato muito organizado
porque os ingleses são mais ricos que os brasileiros e, portanto, pagam mais caro pelo ingresso (entre cerca de
R$150 e R$400 para um jogo do Arsenal no campeonato inglês). Mais grana habilita os times a investirem em
jogadores e organização. É verdade, mas note o problema de causalidade reversa: os ingleses estão dispostos a pagar
mais caro não somente por serem mais ricos, mas também porque os times são bons e o campeonato é organizado.
Um pouco mais de organização e segurança nos nossos estádios contribuiria para aumentar a receita dos nossos
times.
Finda a parte teórica do livro, e munidos do arcabouço lógico do economista até aqui desenvolvido, entraremos
a partir do próximo capítulo em temas importantes para a discussão de políticas públicas no Brasil.
13. Casas esquisitas
Um olhar atento às construções arquitetônicas na cidade norte-americana de Nova Orleans, na capital inglesa, e
em Hanói (Vietnã) revela que todas apresentam algo de estranho. Em Nova Orleans, inúmeras construções possuem
este formato diferente apelidado de “costas de camelo”, com apenas um andar na parte da frente e às vezes mais de
dois na parte de trás da casa. Entendemos pouco de arquitetura, mas não parece nada bonito. Seria este padrão de
construção fruto de um gosto esquisito dos moradores da cidade? Já em Londres, não é raro encontrarmos
residências com algumas de suas janelas fechadas com tijolos, como exemplifica o pequeno prédio mostrado acima.
Será que na Inglaterra as pessoas frequentemente se arrependem do número de janelas que mandam construir em
suas casas, fechando-as com tijolo mais tarde? Por fim, no Vietnã muitas construções são extremamente estreitas na
parte da frente e exageradamente altas ou compridas. Há alguma explicação cultural plausível para isto?
Casa estranha pode resultar simplesmente da escolha de gente esquisita. Mas não parece que há mais gente
esquisita nestas localidades que em outros lugares. Da mesma maneira, não há motivo razoável para supormos que o
número de pessoas que cometem enganos quanto ao número de janelas para sua casa seja significativamente maior
em Londres que em outras cidades. E as frentes estreitas em Hanói não são explicadas pelo preço alto do terreno,
pois a metragem quadrada das casas em Hanói não é exígua – o grande comprimento do terreno compensa a
estreiteza da frente. Mas então o que estaria por trás destas casas esquisitas?
Em 1696, o rei do Reino Unido, premido pela necessidade de aumentar suas receitas, propôs uma nova
tributação: o imposto das janelas. Tal imposto estipulava que o montante de impostos devido pelos súditos passava a
ser proporcional ao número de janelas de suas casas. Já em Nova Orleans, o imposto residencial depende não das
janelas, mas do número de andares existentes na parte da frente das casas: quanto maior o número de andares na
parte da frente, mais imposto se paga. E, por último, em Hanói o imposto predial é proporcional à largura da frente
do terreno, não à sua metragem quadrada.
Nenhum dos três impostos mencionados cumpriu plenamente o objetivo de taxar mais os indivíduos mais ricos,
que normalmente têm casas com mais janelas, moram em casas com mais andares e adquirem terrenos mais largos.
E por quê? Porque as pessoas estão sempre tomando decisões privadas com vistas a melhorar sua situação e, para
cada contribuinte individualmente, pagar menos impostos implica necessariamente em melhora.
Esta afirmação é válida mesmo se o imposto é gasto de maneira sábia e eficiente pelo governo. Ao fugir dos
impostos o contribuinte obtém um aumento em sua renda disponível (a renda que sobra após o pagamento de
impostos), e causa uma redução do mesmo montante no bolo total de recursos disponíveis ao governo para gastar.
Se ele paga menos imposto, mas ao mesmo tempo recebe menos serviços públicos, por que ele estaria melhor? O
ponto é que os gastos do governo são distribuídos para toda a população (são bens públicos) e, portanto, a redução
nos benefícios para o contribuinte individual proveniente dessa queda nos recursos totais do governo é muito
pequena.
Um simples exemplo numérico nos ajuda a entender esse ponto. Consideremos um país com apenas 100
famílias. Suponhamos que o governo arrecade impostos das pessoas e divida o montante arrecadado igualmente
entre a população. Isso retrata de maneira simplificada a ação do governo, mas é uma boa simplificação porque
quando o governo constrói uma estrada ou presta serviços à população, ele está de fato devolvendo o dinheiro
arrecadado para as pessoas em forma de um bem público. Todos podem usar a estrada, quem pagou o imposto e
quem não pagou.
Suponhamos que cada família pague 100 moedas de impostos. A arrecadação do governo totalizará então 100
moedas vezes 100 famílias, portanto 10000 moedas. Dividindo-se este total pelas 100 famílias, temos que cada
família recebe do governo 100 moedas - não diretamente, mas sob a forma de uma nova estrada. Ou seja, todo
mundo recebe de volta o que pagou inicialmente.
Agora, suponhamos que uma família fique isenta dos impostos ou consiga evadi-los. A arrecadação do governo
cai para 100 moedas vezes 99 famílias, ou seja, 9900 moedas. Com a devolução desse montante para a população,
cada família acaba recebendo 9900 ÷ 100 = 99 moedas. Em termos líquidos, as famílias que pagaram 100 perderam
uma moeda na transação. A família que não pagou ficou com 99 moedas de saldo.
Os custos e benefícios sociais e pessoais decorrentes do pagamento de impostos podem ser entendidos da
seguinte maneira: de cada 100 moedas que uma família paga de impostos, uma volta à própria família e 99 são
distribuídas para a população. Essas 99 moedas são um custo para a família mas geram bens públicos para as outras
99 famílias.
Suponhamos que seja desejável para as pessoas desse país a aquisição de um bem público no valor de 10000
moedas. Neste caso, se uma família pudesse determinar o pagamento de impostos de toda a sociedade, incluindo ela
mesma, ela escolheria impor a taxação de 100 moedas para cada família. Contudo, como ela não pode decidir pelos
outros, sob o ponto de vista desta família, o melhor é não pagar impostos. Da mesma maneira, o leitor
provavelmente ficaria feliz se fosse isento do pagamento de impostos por um ano, mas não gostaria nada se tal
benefício fosse estendido para toda a sociedade (não haveria polícia nas ruas, nem coleta de lixo, nem fornecimento
de água).
Por conta das vantagens individuais de não pagar impostos, as pessoas passam a inventar maneiras engenhosas
de evitá-los. Se o imposto pago depende do número de janelas, do número de andares na parte da frente da casa, e da
extensão da entrada do terreno, as pessoas escolhem fechar algumas janelas com tijolo, levantar casas com formato
de camelo, e construir em terrenos finos e compridos.
Os donos dos imóveis mostrados acima lograram – pelo menos em alguma medida – escapar das tributações
que o governo almejava lhes impor. Ainda assim, as ações tomadas pelos indivíduos para evitar os impostos não
saem de graça. Isso porque se gasta algum dinheiro cimentando as janelas, mas também – e principalmente - porque
as janelas não estavam lá antes à toa; elas foram construídas porque o dono ou o construtor nelas via alguma
utilidade, como aumentar a iluminação interna e a ventilação, ou prover algum charme decorativo. Fechá-las,
portanto, foi uma decisão que gerou perdas, que causou ineficiência, que não ocorreria na ausência dos impostos.
Casas com formato de camelo são, convenhamos, bem esquisitas, e morar em casa esquisita não agrada a ninguém
(ou quase ninguém). Menos agradável ainda é viver e/ou trabalhar em construções estreitas em uma particular
dimensão. Mas as pessoas preferem viver assim a pagar mais imposto habitando casas normais e, portanto,
desvirtua-se a casa (os economistas gostam mais do termo “distorcer”) e vive-se um pouco pior do que antes do
imposto.
As distorções decorrentes da tributação são as casas esquisitas, e o esforço que as pessoas fazem para escapar
dos impostos. Se todas as famílias do nosso exemplo estão dispostas a enfear, escurecer ou tornar menos práticas
suas casas, e assim escapam dos impostos, o governo não arrecada moeda alguma e nada tem para devolver. Em
termos financeiros, todas as famílias ficaram como antes. A diferença é que o país tem agora casas esquisitas ao
invés de casas normais. A tributação, portanto, gera custos mesmo que não se desembolse um centavo.
Nenhuma destas distorções existiria se os cidadãos levassem em conta a totalidade do impacto de suas ações
sobre seus concidadãos e o governo fosse um ente benevolente, pensando exclusivamente na sociedade. O governo
então escolheria seus gastos de maneira bem-intencionada, as pessoas pagariam os impostos sem serem fiscalizadas,
e ninguém ficaria com a casa feia. Infelizmente, essas hipóteses não têm se verificado na prática. Portanto, é preciso
levar em conta as distorções da taxação na formulação de políticas públicas.
A esta altura do livro, já sabemos que o governo tem importante papel a desempenhar na economia, e que para
gastar – seja provendo bens públicos (capítulo 9), seja com transferência de renda para os mais necessitados
(capítulo 10) – é necessário tirar recursos dos súditos (capítulo 6). Contudo, as ineficiências da tributação precisam
ser sempre levadas em conta. Primeiro, porque para um dado nível de gasto, uma estrutura tributária mais eficiente
gera menos perdas/distorções para a sociedade e, portanto, precisamos prestar atenção às formas de taxação.
Segundo, porque a decisão sobre os gastos do governo precisa em si levar em conta a qualidade, ou eficiência, do
sistema tributário. Além das falhas de governo e dos custos diretos de sua intervenção, precisamos levar em conta as
distorções da tributação na escolha do montante dos gastos públicos.
Até aqui, estamos ressaltando o custo associado às distorções causadas pelos impostos. E este é mesmo um dos
principais objetivos deste capítulo. Contudo, não é esta a ênfase encontrada nas discussões de bar sobre o mesmo
tema. No bar, reclama-se que o governo está tirando dinheiro do nosso bolso e gastando-o perdulária e
irresponsavelmente. Claro, se o governo usa os impostos para favorecer amigos próximos ou construir obras de
pouca utilidade para a população, de fato temos aí um tremendo desperdício de recursos para a sociedade (excluindo
os amigos favorecidos), como já discutido em capítulo anterior.
Mas e se, por exemplo, o governo tira dinheiro das pessoas mais ricas e distribui para as mais pobres? Ou se o
governo impõe uma taxação para fornecer um certo bem público necessário a toda a sociedade? Este capítulo mostra
que mesmo nas situações em que a intervenção do governo é justificada e não há falhas de governo, a taxação gera
custos para a sociedade.
Estas distorções podem ser importantes.
A renda média de um cidadão da Europa e ocidental é 70% da renda média de um norte-americano. O que
explica esta diferença? Façamos um breve check-list relembrando o aprendizado de capítulos anteriores: o estoque
de capital por habitante na Europa não é menor que nos Estados Unidos; a educação média dos europeus também
não é pior que a dos trabalhadores norte-americanos; e as tecnologias empregadas na Europa não diferem de modo
importante das usadas nos Estados Unidos. O que é sim muito diferente entre Europa e Estados Unidos são as horas
trabalhadas pelas pessoas. Nos Estados Unidos, trabalha-se muito mais que na Europa e isto explica grande parte da
mencionada diferença de renda. Para se ter uma idéia, nos Estados Unidos se trabalham em média 39,4 horas por
semana, enquanto na França este número é de 36,2. Esta diferença não parece muito grande, mas só porque ainda
não mencionamos o número médio de semanas por ano trabalhadas em cada um destes países. Nos Estados Unidos:
46,2. Na França: 40,5. Resumindo os números, e fazendo uma média dos países europeus, no velho continente se
trabalha aproximadamente 70% das horas anuais que se trabalham nos Estados Unidos.
Em parte, esta diferença de horas do ano despendidas no trabalho pode ser uma consequência de visões de
mundo distintas: pode ser que o americano valorize mais o trabalho e sua renda enquanto o europeu atribua mais
valor ao lazer, a uma ida ao museu. Mas uma parte substancial da explicação parece estar ligada às diferenças de
impostos e regulamentações do mercado de trabalho, que funcionam como uma espécie de imposto sobre as firmas,
nos Estados Unidos e na Europa Continental. Para se ter uma ideia, na França a taxação sobre as horas trabalhadas
pelas pessoas chega até aproximadamente 55% a partir de um certo nível de salário; nos Estados Unidos, o número
equivalente é 35%.
Os trabalhadores reagem aos incentivos que lhes são dados pelas leis e é natural que optem por trabalhar mais
em um país onde levam para casa uma parcela maior do salário associado à uma hora a mais de trabalho. Do outro
lado, as empresas também estão escolhendo e têm menos incentivos a contratar se a regulamentação do mercado de
trabalho lhes impõe muitos fardos.
Em suma, as pessoas trabalham menos horas quando a tributação de seus rendimentos é mais alta. Estas horas a
menos trabalhadas, para fugir do imposto, são uma distorção. Mas a taxação e a regulamentação que atingem o
mercado de trabalho podem gerar ainda outras distorções. O elevado grau de informalidade econômica observado
em vários países é um exemplo.
As empresas e trabalhadores do setor informal não têm seus contratos e transações registrados. Sem esses
registros (ou com registros incompletos), eles têm maiores dificuldades de demonstrar sua capacidade de pagamento
aos bancos devido à falta de dados oficiais sobre seus lucros e rendimentos. Isso dificulta e encarece o crédito. Além
disso, a empresa no setor informal precisa permanecer pequena. Primeiro, porque escapar dos radares do governo é
mais difícil se a empresa é grande. Segundo, por uma questão de controle interno: se um funcionário do Mc Donalds
resolve fugir do trabalho com o dinheiro do caixa, é fácil para a empresa provar que ele se apropriou indevidamente
da receita da venda dos Big Macs, pois todas as transações estão oficialmente registradas, mas seria impossível ao
Mc Donald’s controlar suas operações sem esses registros formais. As empresas do setor informal então
permanecem pequenas para manter o controle sobre suas transações e funcionários dado que não podem
oficialmente registrar operações como o Mc Donald’s. Do lado dos trabalhadores, as pessoas no setor informal da
economia não têm acesso a alguns benefícios recebidos por quem trabalha no setor formal: por exemplo, estão
menos protegidos contra adversidades como uma doença incapacitante.
Assim como os ingleses escolhiam fechar suas janelas com tijolos há 300 anos atrás, muitas empresas e
trabalhadores escolhem não oficializar suas operações para escapar da taxação ou da regulamentação. Se são
necessários 289 dias para se oficializar a abertura de uma empresa, a maior parte dos pequenos empresários optará
pela informalidade. No setor informal, a empresa paga menos imposto, mas por outro lado tem que arcar com os
custos dessa decisão, como o menor acesso a capital e a ganhos de escala, assim como os moradores das casas
esquisitas pioravam suas casas para pagar menos impostos.
É difícil estimar o tamanho do setor informal de uma economia – justamente porque quem escolhe trabalhar na
informalidade tem motivos para não querer se mostrar à lei – mas de acordo com os resultados de alguns estudos, o
setor informal equivale a cerca de 15% do PIB nos países desenvolvidos, e entre 35% a 40% na América do Sul.[11]
Esses números tão díspares refletem importantes diferenças nos fatores que mais pesadamente influenciam a
decisão de migrar para a informalidade, como: custos e benefícios de se adequar ao sistema formal; efetividade das
punições legais para quem não paga imposto; os constrangimentos sociais para os sonegadores.
Em todos os exemplos apresentados até aqui, as distorções surgem do esforço para fugir dos tributos. O curioso
é que, por conta disto, o tributo pode até mesmo nem ser pago. Institui-se o tributo, as pessoas tomam medidas para
evitá-lo, e sua arrecadação então não ocorre. Mas a distorção – a casa sem janelas, um contingente de pessoas
trabalhando no setor informal – fica lá.
Nos voltemos agora para um exemplo no mercado de bens. Suponhamos que um indivíduo esteja disposto a
pagar até R$ 1 por um lápis, e até R$ 1,80 por dois – afinal de contas a utilidade do segundo lápis, uma vez que já se
tem um, é menor do que a do primeiro, quando não se tem com o quê escrever. Do lado da oferta, o produtor de
lápis está disposto a vender um lápis por no mínimo R$ 0,90 e dois por pelo menos R$ 1,80. Com estas hipóteses, se
não há imposto, no encontro entre comprador e vendedor dois lápis serão vendidos. Mas suponha que agora o
governo decida tributar o lápis, obrigando, por exemplo, o comprador a pagar um imposto de R$ 0,05 sobre cada
lápis comprado. Quanto será a arrecadação de impostos? R$ 0,05 por lápis e, portanto, R$ 0,10 no total?
Vejamos. O imposto tornou o lápis menos atrativo para o comprador porque este agora precisa pagar o
vendedor e também o governo. Cada lápis agora custa efetivamente R$ 0,95. Dois lápis passam a custar R$ 1,90, o
que é mais do que o comprador está disposto a pagar. Comprar um lápis ainda é uma operação que beneficia ambos
– o vendedor ganha seus R$ 0,90 e o comprador desembolsa R$ 0,95 por um bem que ele valora em R$ 1,00.
Respondendo a pergunta do parágrafo precedente, o governo leva para seus cofres apenas R$ 0,05 de impostos,
porque a imposição da taxação fez encolher as trocas que ocorriam no mercado de lápis: ao invés de dois, apenas um
é transacionado. Se o imposto fosse um pouco maior, de R$ 0,11, por exemplo, o lápis passaria a custar R$ 0,90 +
R$ 0,11 de imposto, ou seja, R$ 1,01, e não haveria venda de lápis. Consequentemente, nenhum imposto seria
recolhido.
De fato, o tipo de fenômeno descrito acima pode ser tão forte que em casos extremos a arrecadação de impostos
pode até cair após um aumento da alíquota. Imagine um grande mercado de lápis, onde milhares são comprados e
vendidos todos os dias e sobre os quais é pago um certo montante em impostos. Como vimos, um aumento da
alíquota do tributo vai diminuir a quantidade de trocas feitas, reduzindo a base de arrecadação – que são os lápis
vendidos. Caso, por exemplo, após aumentar o imposto do lápis em 10% a comercialização diária de lápis se reduza
em 15%, a arrecadação total vai declinar ao invés de aumentar.
Entendida a natureza dos custos da tributação, podemos agora nos colocar a seguinte pergunta: o que
caracteriza um bom imposto?
Em linha com o que vimos nos capítulos anteriores, a primeira das prescrições é taxar tudo aquilo que causa
externalidade negativa, pois assim desestimulam-se os atos com consequências ruins para os outros. A tributação
muda os incentivos e influencia decisões, causando distorções. Mas influenciar decisões que geram externalidades
negativas, desestimulando-as via taxação é salutar, pois, indiretamente faz as pessoas levarem em conta os custos
sociais de suas ações.
Além de taxar externalidades, há alguns outros critérios importantes para avaliar a qualidade de um imposto: (i)
as distorções por ele causadas; (ii) sua progressividade; e (iii) a facilidade de cobrá-lo e fiscalizar esta cobrança.
Já falamos aqui sobre as distorções dos impostos. Pulemos então para o segundo critério: progressividade. Um
imposto é dito progressivo se incide majoritariamente sobre pessoas de mais alta renda. A progressividade é um
critério importante porque uma das funções do Estado é justamente transferir renda para os mais pobres.
O terceiro critério é a praticidade do imposto: por não serem pagos voluntariamente, os impostos precisam ser
fáceis de serem cobrados e possíveis de fiscalizar. A famigerada CPMF é um dos tributos mais fáceis de ser cobrado
e fiscalizado, em que pese ser altamente ineficiente no quesito distorções. O pagamento do imposto de renda e do
imposto sobre o consumo é um pouco mais difícil de se fiscalizar porque as empresas e pessoas podem evitar
registrar suas transações. E o imposto do sono, aquele pago de acordo com o registro do número de horas dormidas
mensalmente de cada cidadão, é impossível de ser fiscalizado – e, conseqüentemente, não existe.
O imposto da janela de 1696 é um exemplo de imposto instituído por sua praticidade. O governo inglês optou
por essa estapafúrdia modalidade de tributação justamente porque averiguar a renda de cada cidadão não era fácil e,
além disto, muitos viam a idéia de imposto de renda como uma intromissão indevida do Estado, pois para
implementá-lo, o governo precisaria recolher informações privadas sobre a situação financeira de cada um. A idéia
de revelar ao Rei informações pessoais desta natureza era vista com maus olhos em um país que acabava de passar
pela Revolução Gloriosa, cuja principal conseqüência foi justamente diminuir o poder da Coroa de confiscar seus
súditos.
Vejamos agora como alguns impostos comumente cobrados se encaixam nos dois primeiros critérios
mencionados.
O imposto que incide sobre o capital – a aquisição de máquinas por parte de um empresário, por exemplo – tem
a vantagem de ser progressivo, pois o pobre não investe em máquinas. Mas ele tem a desvantagem de afetar
adversamente a decisão de investir. Se o empresário investe menos por conta da taxação (ou escolhe investir em
outro país) a economia vai ficando com um número relativamente baixo de máquinas e equipamentos, o que
terminará por afetar negativamente os salários dos próprios trabalhadores, como vimos no capítulo 5. Assim, a
taxação sobre o capital deve ser mantida em patamares moderados, pois apesar de sua incidência direta ser sobre os
mais ricos, no longo prazo ela afeta adversamente os salários dos trabalhadores via menor estoque de capital na
economia.
A taxação progressiva sobre o trabalho – isto é, quanto maior o salário maior o imposto – também cria suas
distorções, mas é melhor que a tributação sobre o capital. Ela atende o critério de progressividade porque as
alíquotas deste imposto são crescentes com a renda do trabalho, e sua ineficiência não é muito grande se as alíquotas
para as faixas mais altas de salário não forem exorbitantes. No Brasil, por exemplo, o imposto de renda não é muito
alto, ao contrário do que se costuma dizer.
O imposto sobre o consumo afeta igualmente ricos e pobres que compram os bens taxados, e neste sentido ele
não satisfaz o importante critério de tirar mais dos mais bem aquinhoados. Uma maneira de atenuar esta falha é
isentar de impostos os bens usualmente consumidos pelos mais pobres, como fez o governo brasileiro ao desonerar a
incidência de impostos sobre a cesta básica.
E o que dizer do imposto sobre o consumo de cigarro? Muita gente argumenta que o altíssimo imposto sobre o
cigarro é bom porque assim os fumantes têm uma chance de escapar do vício. Mas precisamos lembrar que fumar é
uma escolha. O fato de o cigarro viciar significa que essa escolha é mais difícil de ser revertida, o que impõe
limitações a essa maneira, digamos liberal, de pensar. Mas tratar fumantes como marionetes que não tem poder
sobre seus atos é um outro extremo que tampouco parece razoável. O cigarro faz mal à saúde, mas a chance de os
fumantes em idade adulta não saberem disto é muito baixa. Além disso, é preciso considerar que fumar é uma fonte
importante de diversão para a camada mais pobre da população, que muitas vezes não tem acesso a outras opções de
lazer. Para eles, portanto, a taxação sobre o cigarro é algo ruim. Assim, taxar pesadamente o cigarro fere um dos
dois pilares da boa tributação: o da progressividade dos impostos.
Por outro lado, a taxação do cigarro tem a vantagem de não gerar muitas distorções porque, no linguajar do
capítulo 3, a demanda por cigarros é inelástica ao preço. Isto significa que a alta taxação não gera grandes quedas na
demanda e, consequentemente, alíquotas draconianas resultam em arrecadação elevada e não em muitas pessoas
deixando de fumar. Por fim, algumas deixam sim de fumar e, portanto de causar uma externalidade negativa para os
não fumantes - graças à tributação. E aquelas que não deixam pagam mais impostos, o que se por um lado é ruim
por conta da questão da falta de progressividade, por outro é coerente dado que muitos fumantes terminarão com
sérios problemas de saúde e precisarão ser assistidos pelo sistema de saúde que em parte é financiado por não-
fumantes. Faz todo sentido que aqueles que vão onerar mais o sistema público de saúde paguem mais por isto via
impostos. Em termos lógicos, o argumento é equivalente à defesa dos pedágios como forma de financiamento das
estradas de rodagem: quem usa mais, paga mais.
Por fim, um imposto que pode satisfazer bem os dois critérios mencionados é o imposto sobre a terra. Como a
terra é um insumo fixo, o dono da terra não tem muitos meios de fugir do imposto. O trabalhador foge do imposto
trabalhando menos ou migrando para a informalidade, o capitalista dono de uma empresa foge do imposto do capital
não adquirindo novas máquinas, os moradores de Hanói escapam da tributação construindo terrenos estreitos na
frente e compridos de fundo, mas o dono da terra não tem muitas opções e, justamente por isto, o imposto sobre a
terra não gera muita ineficiência. Do lado da equidade, um imposto sobre a terra que incida mais pesadamente sobre
os que têm as maiores propriedades tenderá a recolher mais recursos dos mais abastados.
Em suma, neste capítulo buscamos entender as consequências econômicas decorrentes da taxação e, por
existirem vários tipos de impostos, comparar diversas alternativas de tributação. Impostos causam várias espécies de
distorções e têm impactos distributivos. Os melhores impostos são os que desencorajam externalidades, tiram mais
dos mais ricos e distorcem menos as escolhas das pessoas.
14. As cigarras
Em uma das mais famosas fábulas do Esopo, a Cigarra passa o verão cantando enquanto a Formiga trabalha
duro para juntar comida para a estação fria. Chegado o inverno, a Cigarra, sem ter o que comer, vai pedir alimento à
Formiga, que lhe nega ajuda retrucando: “pois cantava no calor de outrora? Que beleza! Agora, dance!”
Hoje em dia, as estações do ano são muito pouco importantes para explicar nossas possibilidades de consumo.
Os avanços tecnológicos que nos permitem conservar alimentos por muito mais tempo e o comércio internacional
que possibilita levar produtos de onde é verão para onde é inverno fazem com que não seja importante poupar no
verão para consumir no inverno. Na verdade, a maior parte de nós sai de férias no verão. Ao contrário da Formiga,
trabalhamos mais na época do frio que na estação quente, não por ser mais produtivo trabalhar no inverno, mas por
simplesmente preferirmos ir à praia e viajar nos dias mais quentes.
Entretanto, chega para nós a época em que não podemos mais trabalhar como antes. O corpo está cansado, a
saúde está frágil, e não conseguimos mais trabalhar tão produtivamente como quando jovens. Assim, se poupar
alimentos para a estação fria não é mais uma preocupação relevante hoje em dia, garantir recursos para o consumo
na velhice seguramente é.
Este capítulo trata das questões econômicas relacionadas à aposentadoria. Como se sabe, a grande maioria dos
Estados modernos têm sistemas de previdência e seguridade social que visam prover renda para os que já não
trabalham mais, para isso taxando os que trabalham no presente. Assim, como não poderia deixar de ser, nossa
primeira pergunta é sobre os motivos desta intervenção estatal: precisa existir um sistema de previdência gerido pelo
Estado?
A resposta pode parecer óbvia: sim, um sistema de previdência é necessário para cuidar dos idosos, garantindo
que eles tenham como viver dignamente após se aposentar. Mas a resposta óbvia está errada. Como qualquer
formiga sabe, mesmo sem ler o capítulo 7 deste livro, é possível guardar recursos hoje para gastar no futuro. Se não
houvesse a aposentadoria do governo, as pessoas por certo poupariam parte da sua renda para quando
envelhecessem. Elas teriam fortes incentivos para guardar para o seu futuro se o governo não lhes estendesse ajuda
na velhice. De fato, na maior parte da história da humanidade, o Estado não interveio nesta questão: os sistemas de
previdência são invenções recentes, instituídos na grande maioria dos países no século XX. Antes disso, aqueles que
não podiam mais trabalhar viviam da renda de suas propriedades (empresas, terras, imóveis), de suas poupanças, ou
eram sustentados pelos mais jovens e mais saudáveis de suas famílias.
A fábula não nos conta o que aconteceu com a Cigarra depois que a Formiga lhe negou auxílio. O que foi dela?
Quais as opções para aqueles que chegam sem um tostão à velhice?
É possível que a Cigarra tenha se deixado morrer lentamente no frio, como um velho esquimó de séculos atrás
que por não mais conseguir caçar e, para não impor um fardo aos outros em épocas de escassez de alimentos, por
vezes acabava sendo morto ou suicidava-se para aumentar as chances de sobrevivência da família.
Mas é possível também vislumbrar outro final menos trágico para a Cigarra. Talvez a Formiga acabasse sendo
convencida a ajudá-la, por simples dó ou troca de favores, como nas versões para crianças que mostram a Formiga
alimentando a Cigarra em troca de canções alegres, ou na bela música de Milton Nascimento, onde a Formiga é a
melhor amiga da Cigarra. E na ausência desta cooperação por parte da Formiga, furtá-la, ou ameaçar usar de
violência para conseguir um pouco de comida poderia funcionar. Alternativamente, em um mundo mais civilizado,
as cigarras poderiam se reunir e formar um grupo de pressão na tentativa de sensibilizar o governo para conseguir
recursos para o inverno. E é provável que o governo optasse por intervir para salvar a vida das cigarras – quem não o
faria? –, taxando a Formiga e transferindo recursos para as imprudentes necessitadas.
Eis aí o principal motivo para a existência de um sistema de previdência que force as pessoas a poupar para a
aposentadoria. Se as pessoas não poupam hoje, os cidadãos no futuro terão incentivos a dar um pouco àqueles que
chegam à velhice desprovidos. As cigarras que não pouparam, na busca pela sobrevivência, podem acabar por usar a
energia que lhes resta para pegar um pedaço da comida das formigas quando o inverno da velhice bater à porta. Se
as cigarras forem muitas e se organizarem, terão considerável poder para convencer o governo e os políticos a ajudá-
las em troca de votos. A imprudência de uns vira o fardo de outros e caracteriza, portanto, uma importante
externalidade negativa.
De fato, muitas pessoas recebem benefícios do INSS sem nunca ter contribuído para o sistema de previdência.
É o caso, por exemplo, dos trabalhadores rurais aposentados. Mas, se parte da poupança de uns é utilizada para
alimentar os outros, temos aqui a externalidade da cigarra. Isso significa que a prescrição de política pública é
aumentar os incentivos para as pessoas pouparem para a velhice, ou até mesmo proibir as pessoas de não guardar
para o futuro.
As tentações para consumir mais ou trabalhar menos na juventude contribuem para acentuar o problema da
imprudência. As cigarras da fábula podem até estar cientes da necessidade de poupar, mas é por vezes difícil deixar
a cantoria e sair para trabalhar. Da mesma forma, resistir a tentação de comprar aquele sapato e poupar um
pouquinho menos “só esse mês” não é fácil. Assim como Ulisses, o navegador de Homero, preferia não ter a escolha
de se jogar ao mar quando atraído pelo canto das sereias, suprimir a opção de não poupar para a velhice, tirando
parte do nosso dinheiro do alcance das nossas mãos, pode nos beneficiar.
Se o ato de poupar para a aposentadoria é tão necessário e nem sempre simples de ser implementado – é difícil
fazer os cálculos, e é difícil resistir à tentação de não poupar – o governo não atrapalha ao não permitir que as
pessoas gastem tudo que recebem. Ao contrário, ele faz um bem ao minimizar a possibilidade de que os imprudentes
gerem externalidades negativas para a sociedade no futuro.
Além de poupar para a sua aposentadoria, o trabalhador precisa também se preparar para a eventualidade de que
um acidente o incapacite de trabalhar, ou para a eventualidade de que faleça jovem, deixando sua família em maus
lençóis. Como vimos no capítulo 10, seguros são importantes para essas ocasiões e, diferentemente do mercado das
almas, mercados de seguros para os riscos de morte e invalidez existem. O problema é que, assim como no caso da
aposentadoria, não se preocupar com essas eventualidades gera externalidades negativas, pois ao antecipar que a
sociedade arcará com parte dos custos de sua imprevidência, o trabalhador pode acabar sucumbindo à tentação de
gastar o dinheiro ao invés de comprar o seguro. Portanto, pelo mesmo motivo que o governo deve intervir para fazer
as pessoas pouparem para o futuro, deve haver medidas e leis que obriguem as pessoas a se segurarem contra esses
riscos.
Vimos até aqui as justificativas para a existência de um sistema que force as pessoas a pouparem para o futuro
ou comprarem seguros para sustentar suas famílias em caso de morte ou invalidez. Entendida essa questão,
passamos à próxima pergunta: como deve se estruturar o sistema de previdência?
Sistemas de previdência existem no mundo todo, e uma maneira de iniciar nossa investigação é examinar como
os sistemas de previdência são estruturados hoje em dia.
No Brasil, e na maioria dos países do mundo, a previdência opera em regime de repartição. Neste sistema, o
dinheiro das aposentadorias, bem como o seguro para inválidos e viúvas, vem da contribuição ao INSS que incide
sobre os salários dos que se encontram empregados hoje. O sistema de repartição é um sistema de transferências:
cada funcionário registrado paga um percentual de seu salário para a previdência e, além disso, a empresa paga ao
INSS uma fração do valor de sua folha de pagamento. São estes recursos retirados dos jovens que financiam os
aposentados e inválidos.
Como dito, a contribuição vem tanto dos trabalhadores como dos empregadores, mas seguindo a lógica
apresentada no capítulo 4, não importa quem paga o imposto. Não faz diferença para empresas e trabalhadores se a
empresa paga um salário de R$1.000 e mais R$200 de imposto, ou se o salário é de R$1.200, mas o trabalhador arca
com R$200 de imposto. As decisões de contratar ou não e o salário líquido são os mesmos nos dois casos.
O que importa é que a contribuição para a previdência funciona como um imposto sobre o trabalho. Isto porque
seu impacto sobre o custo de um funcionário para a empresa é muito maior do que o impacto benéfico dessa
contribuição no bolso do próprio trabalhador.
Vejamos um exemplo simples que ilustra este ponto. Considere dois funcionários de uma empresa, um que
recebe de salário R$10.000 por mês e outro que recebe R$20.000 mensais. A empresa paga ao INSS 20% sobre o
salário de cada um deles. Contudo, os dois vão receber o mesmo valor quando se aposentarem, dado que esses
valores suplantam o teto estabelecido para benefícios pagos pelo sistema. É por isto que a contribuição obrigatória
tem o efeito de um imposto sobre o salário: ela não devolve na proporção que toma.
Esta divergência entre quanto se contribui e quanto se recebe de volta mostra que a contribuição para a
previdência tem as características de um imposto. Isso acontece porque os recebimentos futuros não refletem o
retorno que seria obtido se os pagamentos para a previdência fossem poupados e rendessem os juros de mercado.
Como vimos no capítulo 4, um imposto sobre o salário diminui a demanda por trabalhadores sem aumentar a
oferta. Para um mesmo salário líquido, um maior imposto significa que a empresa tem menos incentivos para
contratar (porque tem que pagar o imposto) e o empregado tem os mesmos incentivos para trabalhar. Esta
combinação leva, inequivocamente, a menores rendimentos e menos empregos.
A empresa e o trabalhador podem tentar fugir do imposto previdenciário e optar pela informalidade. De fato,
como o imposto pago ao INSS é alto, essa escolha se dá com freqüência. Mas como vimos no capítulo passado, isso
é ruim por conta dos custos da informalidade.
Um outro problema sério do atual sistema é que ele enseja altos níveis de corrupção. Arrecadar dinheiro de toda
a população, juntar esse dinheiro em um bolo pouco transparente, e distribuir os recursos para os beneficiários de
acordo com regras complicadas é um convite às falhas de governo. O INSS é mesmo uma presa tentadora para os
ataques de pessoas que querem roubar o dinheiro dos outros. Com muito dinheiro recolhido dos contribuintes a ser
distribuído para aposentados, pensionistas e hospitais, a atividade de corrupção no âmbito deste sistema é lucrativa,
como atestam as fortunas embolsadas por alguns corruptos – há casos de fraudes da ordem de centenas de milhões
de reais. Os desvios de dinheiro da previdência são crimes muito graves que merecem punições muito severas, a lei
firme e seu cumprimento ágil e estrito são instrumentos importantes para minorar os incentivos ao roubo. Mas muito
pode ajudar nesta direção a implementação de um sistema menos propenso a desvios do que o atual.
Além da corrupção propriamente dita, desperdiça-se muita energia e recursos nas disputas políticas pelo
controle da chave do cofre e das leis que regem o uso do INSS. Como nem todos contribuem ao INSS e a relação
entre pagamentos presentes e benefícios futuros é muito tênue, lobbies e movimentações políticas tentando
influenciar as leis que regem o sistema podem ser bastante lucrativos. O resultado? Uma temporada interminável de
caça ao dinheiro da previdência. Em consequência deste incentivo perverso, muita gente acaba devotando esforços e
tempo para essa luta, o que além de por vezes gerar diversas injustiças, é um custo para a sociedade dado que o
trabalho dessas pessoas poderia estar sendo utilizado em outras atividades produtivas, como vimos no capítulo 11.
Esta é então uma importante falha de mercado, inerente ao arranjo atual, que não pode ser desconsiderada da análise.
De acordo com o funcionamento do sistema de previdência de repartição, após um dado número de anos de
serviço, ou ao atingir certa idade, o trabalhador pode começar a receber a aposentadoria. Por exemplo, uma mulher
que completa 30 anos de trabalho aos 50 anos de idade e que tem plenas condições de continuar trabalhando, pode
optar por começar a receber o dinheiro das outras formigas. Em média, ela vai sacar recursos da conta das formigas
por muito tempo se se aposentar tão cedo. As últimas décadas têm presenciado um aumento significativo na
expectativa de vida das pessoas e se o tempo que uma pessoa tem que trabalhar para se aposentar e a idade mínima
permanecem fixos, o aumento na expectativa de vida se traduz em um maior contingente de aposentados na
sociedade. Esta tendência implica que logo não será mais possível manter os mesmos pagamentos aos aposentados
sem aumentar os impostos recolhidos dos que hoje trabalham. Se nada for feito, esta dinâmica demográfica de
aumento de expectativa de vida torna o atual sistema inviável. Contudo, como ninguém quer sair prejudicado com os
ajustes que visam remediar o desequilíbrio crescente – aumentar a contribuição, diminuir os proventos, aumentar a
idade mínima –, as mudanças ou tardam demais ou não saem do papel.
Resumindo um pouco a discussão até aqui, o sistema previdenciário é uma intervenção estatal que surge para
corrigir uma distorção, para disciplinar as cigarras, cuja imprudência traz custos para a sociedade. Como vimos no
capítulo 9, o objetivo dessas políticas públicas é fazer com que as pessoas levem as externalidades em conta ao
tomar suas decisões. Mas a intervenção traz outras distorções importantes. As leis e impostos da previdência acabam
fazendo com que as ações das pessoas se afastem do que seria ideal para a sociedade, gerando custos potencialmente
tão grandes quanto os que a intervenção almeja reduzir. Por conta disto, surge a pergunta: seria possível
implementar um sistema que corrigisse o problema das cigarras, mas gerasse menos distorções na economia?
Uma alternativa ao regime de repartição, hoje utilizado no Brasil, seria um sistema em que cada um tivesse a
sua própria conta de poupança previdenciária. Seria importante que a contribuição para essa conta fosse mandatória
para resolver o problema das cigarras. Assim, um sistema desse tipo resolveria a falha de mercado relevante sem
gerar outras distorções. Os economistas chamam esse sistema de regime de capitalização. Vejamos a lógica desse
sistema.[12]
A característica principal do sistema de capitalização é que a contribuição para a sua própria conta
previdenciária não é um imposto, pois o dinheiro que foi retirado do seu salário para a sua conta reverte
integralmente para você. É verdade que o cidadão não tem a opção de resgatá-lo a qualquer hora - há que deixá-lo na
conta até o momento da aposentadoria chegar. Mas o dinheiro é seu, é sua poupança forçada pelo governo, e você
pode sempre verificar a quantas anda a sua conta. Nesse regime, o dinheiro da sua conta previdenciária é investido,
rende juros, e paga imposto como qualquer outro investimento. Um real poupado hoje, amanhã é um real mais os
juros e, portanto, o trabalhador não vê esse dinheiro como uma taxação, mas sim como poupança. Por causa disto, as
distorções relativas ao impacto da contribuição sobre a criação de empregos não existem. O trabalhador que recebe
R$20.000 por mês e não considera como seus os R$4.000 pagos pela empresa ao INSS, certamente se sentiria dono
dos depósitos mensais de R$4.000 em sua conta previdenciária. Colocado de maneira simples, enquanto o regime de
repartição é um regime de transferência de renda, o de capitalização é um verdadeiro regime de poupança e por isto
ele não gera distorções no mercado de trabalho.
O sistema de capitalização não requer que a administração dos recursos seja feita por empresas privadas, apesar
de esta ser uma possibilidade. O que é importante é que a alocação dos recursos destas contas obedeça a padrões de
prudência rigorosos estipulados pelo governo para evitar que o aposentado receba a desagradável notícia de que seu
dinheiro virou pó, pois o administrador do fundo investiu tudo em títulos de empresas de alto risco. De fato, uma
maneira simples de implementar tal fundo é estipular que, até um certo patamar, todo o dinheiro de uma conta
previdenciária deva ser investido em títulos públicos (os mesmos que compõem os fundos de renda fixa existentes
no mercado), e o que exceder esse patamar poderá ser destinado pelo cidadão para fundos de ações ou de renda fixa
que ele expressamente escolher. O investimento em títulos públicos garante que parte do rendimento estará livre de
riscos e que pessoas com menos educação, que ganham pouco e não entendem de investimentos, não precisem se
preocupar em administrar ativamente sua conta previdenciária. Essa é apenas uma sugestão, uma miríade de
possibilidades existe. O importante é que o cidadão veja o dinheiro de sua conta previdenciária como seu e que boa
parte do rendimento não corra riscos, pois afinal de contas queremos que as pessoas cheguem à aposentadoria com
dinheiro, justamente para evitar o problema das cigarras.
Um ponto de suma importância: as possibilidades de corrupção nesse sistema são muito menores do que no
caso do regime de repartição. Se o dinheiro do INSS é desviado, só se fica sabendo se alguém descobrir, denunciar e
a imprensa divulgar. Não há muita vigilância porque o bolo de recursos é de todos. Por outro lado, é muito mais
difícil que um esquema de corrupção desvie o dinheiro da minha conta sem que eu perceba. Em vez de um bolo
enorme de bilhões de reais a ser distribuído aos beneficiários a cada mês, há milhões de contas previdenciárias, cada
qual com seu dono, e cada dono com fortes incentivos a monitorar sua própria conta. As outras falhas de governo,
ou seja, as disputas políticas pelos direitos e deveres previdenciários também desaparecem. Não há mais o genérico
“recurso da previdência”: há a sua conta pessoal, o dinheiro que você depositou em seu nome. Não há profissionais
ou categorias isentas, direitos diferentes para grupos diferentes, complicações de lei, e nem negociações pouco
transparentes para determinar os rumos do dinheiro ou privilégios para quaisquer tipos de profissionais.
Digamos então que depois de muitos anos de trabalho, uma pessoa que acumulou R$ 1 milhão em sua conta
previdenciária pessoal decide se aposentar. Parece muito dinheiro, mas lembre-se que esse dinheiro tem que
sustentar a pessoa por todo o resto de sua vida. Como fazer agora? Em princípio, o aposentado poderia deixar o
dinheiro em sua própria conta e retirar todo mês um pouquinho. Mas surge aqui um risco inusitado: o risco de viver
muito. O aposentado pode estimar que vai viver mais vinte anos e calcular quanto deve retirar a cada mês para que o
dinheiro acabe exatamente no final desse período. O problema é que a partir do vigésimo primeiro ano, ele não terá
mais como se sustentar.
Jorginho Guinle, famoso playboy brasileiro falecido em 2004 com 88 anos, enfrentou esse problema. Guinle, de
família rica (primeiros donos do Hotel Copacabana Palace), optou por viver sem trabalhar, curtindo jazz e filosofia e
namorando atrizes famosas como Marilyn Monroe e Rita Hayworth. Para cobrir suas despesas nada modestas, ele
usou a fortuna herdada de seus pais. Precavido, Jorginho fez a conta de quanto poderia gastar mensalmente para
viver sem problemas – e sem trabalhar - até o fim dos seus dias. De certo modo, ele se preocupou em poupar para o
futuro. Entretanto, o playboy brasileiro subestimou sua expectativa de vida e no final dos dias precisou morar de
favor no Copacabana Palace. Como ele disse certa vez em entrevista à Rede Globo: "Vivi demais. Achei que ia viver
80 anos. Estou com 87. Me ferrei".
De fato, umas pessoas vivem mais e outras menos, e na hora de se aposentar, ninguém sabe quanto tempo mais
vai viver. Uns morrerão no mês seguinte, outros passarão dos 100 anos. Um seguro contra o risco de viver demais
deve retirar dinheiro dos cidadãos que morrem cedo e transferir recursos para os que têm a sorte da longevidade.
Parece injusto mas não é pois, na hora da aposentadoria, o dia da morte de todos nós está escondido atrás do véu da
ignorância.
Uma boa maneira de implementar essa transferência é a seguinte: no momento de se aposentar, o cidadão troca
o valor total de sua poupança por um pagamento mensal a ser recebido enquanto ele estiver vivo. Ao falecer, sua
poupança passa às mãos do governo, mas enquanto vivo ele recebe um pagamento mensal que depende da taxa de
juro da economia e também da sua expectativa de vida. Se a expectativa de vida é baixa, o aposentado recebe um
retorno maior, porque neste caso a poupança do aposentado passará, em média, mais cedo para as mãos do governo.
Para o governo, o fato de que uns morrerão antes que outros não traz risco financeiro algum, pois o excesso de
pagamentos para aquele que passou dos 100 anos será compensado pelo economizado com o azarado que morreu
logo após se aposentar – assim como para quem vende várias apólices de seguros de automóveis, o gasto com o
pagamento àqueles que tiveram carros roubados é compensado pelo prêmio recebido dos que não foram vítimas de
roubo.
A transformação da poupança do aposentado em pagamentos perpétuos, com o aposentado sacando um pouco
de sua conta todo mês, evita que o aposentado torre a grana de sua poupança em poucos anos e, portanto, resolve o
problema das cigarras que poderia surgir da imprudência dos recém aposentados. Por conta desta possibilidade,
deve-se considerar a obrigatoriedade de se transformar o dinheiro da conta previdenciária em pagamentos perpétuos
no momento da aposentadoria.
Nesse sistema, com que idade a pessoa se aposenta? É necessário que haja uma idade mínima, para evitar o
problema das cigarras. A partir daí, a escolha está nas mãos do cidadão – ele pode ou não continuar depositando
dinheiro em sua conta e pode passar a receber o dinheiro quando quiser. Se ele tem vontade de se aposentar mais
cedo, que se aposente com um benefício menor. Se ele prefere trabalhar mais, seus pagamentos futuros serão
maiores, pois quanto mais velho uma pessoa for, menor sua expectativa de vida e, portanto, maiores os pagamentos
mensais equivalentes a um dado montante de dinheiro.
E se a pessoa falecer antes de se aposentar? Nesse caso, o dinheiro de sua conta é utilizado para sustentar sua
família – devidamente transformado em pagamentos mensais calculados de acordo com a expectativa de vida da
viúva ou do viúvo.
Há outros riscos que não foram considerados até aqui. Por exemplo, e se um pai de família morre logo após se
aposentar, como viverá sua esposa? Se apenas um dos cônjuges tem uma conta previdenciária, o dinheiro poupado
durante anos pode e deve ser transformado em pagamentos mensais a serem recebidos enquanto pelo menos um dos
cônjuges estiver vivo. Nestes casos, o pagamento da aposentadoria se dará por mais tempo (até o último cônjuge
morrer). Consequentemente, o valor mensal da aposentadoria durante todo o período será menor – não há
economágica nesse sistema.
Os demais riscos cobertos pelo sistema de previdência devem ser cobertos com seguros, e se há um problema
das cigarras envolvido, o seguro deve ser obrigatório. Aí se encaixam seguros contra morte ou invalidez para
pessoas cujos salários são fundamentais para a sobrevivência de seus cônjuges. Aliás, pessoas em profissões mais
perigosas devem pagar mais pelo seguro, assim como quem tem carro com mais chance de ser roubado paga um
prêmio maior à seguradora, o que encarece o trabalho desses e aumenta os incentivos para as empresas adotarem
processos produtivos mais seguros.
O regime de repartição tem uma vantagem potencial em relação ao regime de capitalização: ele permite
transferir renda entre pessoas e entre gerações. Por exemplo, pessoas pobres que nunca contribuíram com a
previdência são amparadas por programas no âmbito desse regime. Como argumentamos neste livro, transferir renda
para quem nasceu sem oportunidades é uma importante função do Estado. Tais transferências devem ser financiadas
com impostos. Note, contudo, que em princípio o combate à pobreza poderia ser tratado no âmbito dos programas
sociais de transferência de renda, desvinculado do sistema previdenciário.
Como a análise acima mostra, acreditamos que um regime de capitalização é superior ao regime de repartição.
Contudo, a transição para um novo sistema não ocorre facilmente, por dois motivos: (i) porque já há uma estrutura
em funcionamento, então a mudança para o novo sistema precisaria incorporar quem estava jogando de acordo com
as regras antigas (e como os princípios para essa transição são de certo modo arbitrários, haveria enorme disputa
política para estabelecer as novas regras); e (ii) alguns daqueles que contribuem pouco e colhem muitos benefícios
do regime vigente, bem como os que se beneficiam de esquemas de corrupção no sistema atual, tentariam usar sua
força política para obstruir as mudanças.
Concluindo, as cigarras desse capítulo não são os músicos que alegram as nossas vidas, são as pessoas que não
poupam para os tempos de necessidade. Por conta de suas externalidades negativas, essa imprudência merece uma
intervenção governamental. Esta intervenção via regime de capitalização apresenta menos distorções que quando é
feita através de sistemas de repartição.
15. Os ombros dos gigantes
Em 1904, o físico alemão Otto Lehmann publicou o primeiro trabalho acadêmico sobre cristais líquidos. Desde
então, vários trabalhos científicos foram escritos sobre o tema e depois de muita pesquisa, a partir de 1968,
monitores de cristais líquidos (LCD) começaram a ser produzidos. Hoje, várias pessoas no mundo dominam a
tecnologia de produção de televisores LCD, que são fabricados por diversas empresas.
Otto Lehmann não começou sua pesquisa sobre cristais líquidos do nada. Ele utilizou todo um conjunto de
aprendizado acumulado ao longo de vários anos de estudo. Por exemplo, ele aplicou em seus trabalhos as
ferramentas do cálculo diferencial e integral desenvolvido por cientistas como Newton e Leibniz no século XVII,
cujo conhecimento é hoje necessário para qualquer interessado em física.
Por sua vez, Isaac Newton, que além de ter tido participação fundamental no desenvolvimento do cálculo fez
inúmeras descobertas em vários campos da física e da astronomia, disse uma vez que o que o possibilitava ver longe
era o fato de ele “se apoiar sobre os ombros de gigantes” – ou seja, utilizar todo o conhecimento dos que o
precederam. Essa frase, aliás, não é invenção de Newton. O filósofo francês Bernard de Chartres já havia afirmado
no século XII que “somos como anões sentados sobre os ombros de gigantes, então somos capazes de ver mais
longe que os antigos”.
Issac Newton, um dos maiores gênios científicos que o mundo já conheceu, não sabia nada sobre cristais
líquidos – assim como todos os que viviam naquela época – e não seria capaz de produzir nem mesmo a mais
singela televisão, preto-e-branco que fosse, mesmo que a esta tarefa dedicasse diversos anos de pesquisa e estudo.
Isto porque os tubos de raios catódicos, que compõem os televisores mais simples, só foram inventados no final do
século XIX, e com base no conhecimento acumulado até então, que incluía dois séculos de pesquisa após Newton.
É a educação, o conhecimento aprendido e repassado que explica a enorme distância entre as habilidades de um
homem das cavernas e as de um engenheiro que projeta televisores LCD hoje em dia. É a educação que nos permite
utilizar os conhecimentos acumulados durante milênios; é ela a escada que nos alça aos ombros dos gigantes para
vermos além do que poderíamos enxergar sozinhos.
Praticamente tudo que sabemos vem de algum aprendizado que nos é repassado. Coisas que nos parecem óbvias
não o eram antes de serem inventadas. Por exemplo, os passes curtos no futebol, hoje componentes do repertório de
qualquer criança com mais de dez anos que gosta de jogar bola, não eram rotineiramente utilizados até que os
uruguaios nos jogos olímpicos de 1924 apareceram com essa ideia e ganharam o campeonato. Mesmo tarefas
simples, como operar uma foto-copiadora, lavar pratos e passar a bola para o companheiro do lado, só são fáceis
depois que se aprendeu.
Educar-se significa adquirir um conjunto de habilidades e conhecimentos, não exclusivamente na escola, que
habilitam o indivíduo a: (i) desempenhar uma atividade produtiva qualquer; (ii) ensinar e aprender com os outros e
exercer mais efetivamente sua cidadania; e (iii) aproveitar melhor a vida. Os exemplos que abrem esse capítulo
deixam clara a importância da educação no que tange o primeiro item. Vejamos os outros.
Começando pelo item (iii), uma criança que se educa e aprende a ler poderá, por exemplo, descobrir o
encantador mundo dos livros ou aprender a história de seu país; um indivíduo que estuda e aprende outros idiomas
poderá entrar em contato mais íntimo com novas culturas fascinantes, talvez viajando para outros países e falando o
idioma local; as pessoas que aprendem a mexer no computador ganham acesso a um vasto conjunto de informações
e opções que podem facilitar bastante sua vida. A falta de educação, por outro lado, torna o dia-a-dia mais difícil.
Um analfabeto funcional não consegue entender o significado de uma sentença apropriadamente, o que torna sua
inserção na sociedade muito limitada. Quem não aprende as operações básicas da matemática também enfrenta
dificuldades, não somente no mercado de trabalho, mas até mesmo para fazer a soma da conta na padaria.
O convívio em sociedade também é facilitado quando o nível de educação das pessoas é mais alto. Em média,
pessoas mais educadas entendem melhor as notícias e têm mais facilidade de colher informações relevantes para
julgar a qualidade das políticas públicas. Assim, em média, elas têm melhores condições de escolher bem seus
representantes políticos e de exercer sua cidadania. Além disso, no convívio social, estamos sempre aprendendo uns
com os outros. O conhecimento de uma pessoa, o resultado de sua educação, é frequentemente transmitido ao
conjunto da sociedade.
Uma implicação importante dessa discussão é que a educação de uma pessoa traz externalidades para a
sociedade, pois se você vota bem e se eu aprendo ouvindo o que você fala e observando o que você faz, eu estou
colhendo alguns benefícios da sua educação.
Mesmo que a escola não seja a fonte única de educação, ela é responsável por parte importante desta e,
portanto, pessoas que estudam mais tendem a ter mais conhecimento e salários mais altos que as que estudam
menos. Isso implica que (1) os países onde o nível educacional é mais alto em média serão mais ricos e (2) dentro de
um mesmo país, maior desigualdade no acesso à educação leva a maior desigualdade de renda. De modo geral,
estudos estatísticos confirmam essas premissas.
Sabendo da importância da educação e tendo em mente os dados sobre a educação no Brasil, passamos então a
outra pergunta: qual deve ser o papel do Estado na educação?
É importante que fique claro que o fato de a educação ter impactos grandes na renda das pessoas não significa,
necessariamente, que deva haver intervenção estatal nesta área. Há alguma falha de mercado que a justifique?
Existem sim dois motivos importantes para a intervenção do governo na educação, duas falhas de mercado
relevantes: externalidades e a ausência do mercado das almas.
Como vimos, a educação gera externalidades positivas importantes, além de trazer óbvios ganhos privados, ou
pessoais. Pessoas mais educadas têm mais facilidade de adquirir informação relevante para escolher em quem votar,
têm filhos mais educados - a variável mais importante para determinar o desempenho escolar de uma criança é a
educação dos pais -, transmitem conhecimento aos colegas de trabalho, etc.
Mas e o mercado das almas, o que ele tem a ver a educação?
Financiamento público da educação é talvez a melhor maneira de implementar na prática as transferências que
seriam pactuadas no tal mercado das almas. É verdade que ao invés de dar escola pública, o governo poderia dar
dinheiro. Mas dar dinheiro para a criança? Bem, seria possível dar dinheiro aos pais da criança, porém, seja por
desinformação, seja por terem os pais outras prioridades, é possível que esse recurso não fosse bem empregado em
benefício da criança. Por conta disto e dos fortes ganhos que a educação traz, cremos que financiar a escola das
crianças é uma importante função do Estado.
Vimos então que o Estado deve financiar a educação de crianças pobres, mas isso não nos leva à conclusão de
que o governo deva ser o provedor do serviço educacional. Uma alternativa ao esquema de provimento direto do
serviço educacional por parte do Estado seria o governo financiar a educação das pessoas mais pobres dando-lhes
vales-escola. Com esses vales, os pais de alunos matriculariam seus filhos na escola de sua preferência e as escolas,
por sua vez, descontariam esses vales no Ministério da Educação. O governo continuaria gastando recursos com
educação dos mais carentes, mas não seria o dono das escolas.
Mas qual a vantagem de se dar vale-educação ao invés de prover diretamente escolas públicas, administradas
pelo próprio governo?
Como vimos no estudo mencionado anteriormente, o aluno da escola pública aprende menos do que na escola
privada. Um problema crucial com o ensino público é a falta de incentivos da maioria dos professores e diretores
para prover educação de boa qualidade. Falta de incentivo que é facilmente explicada. De um lado, o bom trabalho
não é devidamente premiado como no setor privado e, do outro, a falta de empenho e a abstenção frequente não são
punidas. É verdade que existem sempre aqueles que, por motivos ideológicos e nobres, acham motivação suficiente
no simples desejo de educar crianças. Mas, infelizmente, poucas andorinhas não fazem verão, e a realidade dos
dados é que o setor público não tem provido educação de qualidade na maior parte dos casos.
O vale-educação aumentaria o poder de barganha dos alunos e pais de alunos, que teriam o poder de escolher e
forçariam então as escolas a competir por seus vales. As escolas, para atrair alunos, teriam que adotar medidas para
melhorar a qualidade do ensino. A competição beneficiaria os alunos e os bons professores, pois as escolas
buscariam contratá-los e suas remunerações seriam mais influenciadas pelo desempenho.
Note que esse plano do vale-escola não demanda que se fechem hoje as escolas públicas em operação. Elas
poderiam continuar operando enquanto houvesse demanda suficiente de pais e alunos, agora portadores de vale-
escola (e com possibilidade de escolha ampliada), por seus serviços educacionais.
Este esquema evitaria algumas falhas de governo. Mas será que funcionaria? Como vimos, a competição
também pode ter seus efeitos colaterais danosos. Por exemplo, se os pais não conseguem verificar a qualidade do
serviço prestado, as escolas, visando lucro, poderiam cortar custos de maneira prejudicial aos alunos, por exemplo,
simplificando currículos para poderem contratar menos professores. Se nas escolas públicas remanescentes este tipo
de prática de competição predatória fosse controlada pelo governo que as administra diretamente, a concorrência das
públicas com as privadas poderia em si atenuar o problema, pois os pais teriam a possibilidade de escolher aquelas.
Isto não ocorreria, contudo, se fosse difícil para os pais se informarem sobre a qualidade dos respectivos currículos.
Caberia então ao governo regular a operação das escolas – por exemplo, exigindo um currículo mínimo das que se
candidatassem a receber os vales-escola – o que, aliás, já ocorre hoje, pois o Ministério da Educação exerce este tipo
de controle sobre as escolas privadas.
Outra possível dificuldade com este esquema é que talvez não seja lucrativo para empreendedores privados
abrir uma escola em uma região onde a quantidade de recursos em termos de vale-escola não for suficientemente
elevada. Como o setor privado se move pela possibilidade do lucro, é possível que algumas regiões se vissem
privadas de escolas particulares. Mas nestes casos o governo poderia interferir diretamente provendo ele mesmo a
escola. Inclusive seria útil para o governo manter alguns estabelecimentos de ensino para poder ter uma ideia melhor
da estrutura de custos de uma escola e, com base nela, escolher o valor dos vales-escola.
Uma objeção equivocada contra o esquema dos vales-escola é que mesmo com ele o pobre não seria capaz de
matricular seus filhos nas melhores escolas privadas do país, que custam cerca de R$2.000 reais por mês, ou até
mais que isso. De fato, não haveria mesmo recurso orçamentário para colocar todos os pobres em escolas de ricos,
mas a realidade é que eles já não podem frequentá-las hoje! O esquema de vale-escola não faz milagre, não torna o
pobre instantaneamente capaz de comprar educação de ótima qualidade – isso seria um passe de economágica. Ele
apenas força uma maior competição entre as escolas e com isto pode levar a uma melhoria na qualidade do ensino.
Sim, os filhos dos mais ricos provavelmente continuariam a estudar nas melhores escolas, mas a pergunta relevante
é: a educação para os pobres melhoraria de qualidade? Ela se beneficiaria de um mercado educacional mais
competitivo?
Se o governo financia o estudo das crianças pobres, seu ingresso na escola deve ser mandatório? O governo
deve interferir nesta decisão familiar?
Estudar ou não é uma escolha – uma escolha em grande parte dos pais das crianças, pelo menos nos anos
cruciais de educação. Os dados sobre a qualidade do ensino ajudam a explicar os dados sobre a quantidade de gente
estudando e os anos que estes optam por permanecer na escola. Se o ensino é de má qualidade, se a escola ajuda
pouco, há menos incentivos para estudar, e outras opções de alocação do tempo tornam-se mais interessantes. Se até
a quarta série do primeiro grau metade dos alunos não aprende a multiplicar ou a ler horas em relógio digital, o
benefício de estudar não parece mesmo grande coisa. Deixar a escola cedo se torna então uma decisão coerente.
Com uma escola de maior qualidade, os pais teriam mais incentivos para escolher deixar os filhos na escola.
Independentemente dessa discussão, acreditamos que o ingresso na escola deva ser mandatório. Em primeiro
lugar, uma criança que não frequenta a escola e, portanto, chega à idade adulta com baixo nível de qualificação
apresenta maiores chances de gerar externalidades negativas para a sociedade – seja por depender de programas
sociais financiados pelo conjunto dos contribuintes, seja por acabar escolhendo se envolver em atividades
criminosas. De modo oposto, o adulto mais educado tem mais chances de gerar as externalidades positivas
mencionadas anteriormente.
Além disso, apesar da má qualidade do ensino afetar uma eventual decisão de não mandar os filhos para a
escola, a falta de zelo ou de informação de alguns pais e a própria miséria também são variáveis importantes nessa
escolha. Primeiro, pode ser difícil para os pais avaliar a qualidade da escola e, principalmente, os impactos desta no
futuro de suas crianças. Segundo, nem todos os pais cuidam bem dos filhos e se preocupam o suficiente com o
futuro deles. Por fim, para famílias que vivem na miséria, o incentivo para aumentar a renda familiar enviando as
crianças para vender chiclete na rua poderia ainda prevalecer mesmo com um ensino escolar de boa qualidade.
Por conta disto, pensamos que o governo deve não só incentivar a educação, mas torná-la mandatória para as
crianças. Programas que incluem a obrigatoriedade de matricular as crianças na escola em conjunção com auxílio
financeiro para as famílias mais pobres (como bolsa-escola) ajudam a alinhar os incentivos dos pais com o que é
melhor para as crianças e para a sociedade como um todo.
Outra pergunta importante é: onde exatamente o governo deve despender mais recursos? Já falamos que os
exames de avaliação de estudantes ressaltam a importância da pré-escola, mas, além disso, onde devemos gastar
mais? Ensino básico, universidades?
A resposta não é simples em lugar nenhum, mas no Brasil ela é menos difícil dado o tamanho do desequilíbrio
entre o que é gasto com ensino superior comparativamente ao alocado para os outros níveis educacionais.
Observando os dados de vários países, a primeira constatação que surpreende é que hoje não gastamos pouco com
educação como proporção do nosso PIB. Despendemos aproximadamente 5% do PIB com educação, uma proporção
superior à mediana. Países como Chile e Coréia do Sul gastam um pouco menos.
O problema está menos no gasto total e mais na qualidade e na alocação deste gasto, como nos revela uma
análise desagregada dos dados.
O Banco Mundial compila uma estatística interessante de quanto os governos de cada país gastam, como
proporção da sua renda per capita, por aluno dos diferentes níveis educacionais.[13] Na grande maioria dos casos, o
gasto público por aluno é um pouco mais elevado no ensino superior. Um pouco mais elevado, mas não muito.
Vejamos alguns exemplos: nos Estados Unidos, o gasto público por aluno universitário é da ordem de 26% da renda
per capita do país, enquanto o gasto por aluno do ensino médio é de 25% da renda per capita americana. Na Coréia
do Sul, 5% (é esse o número mesmo) e 23%, respectivamente; no México, 35% e 18,5%; no Uruguai, 23% e 11%.
No Brasil, os números são 51% e 11%, uma das maiores diferenças encontradas em toda a amostra de países.
O governo brasileiro gasta desproporcionalmente muito com chamado ensino superior. Como já sabemos do
capítulo 6 que é impossível abolir-se a chamada restrição orçamentária, isto significa falta de prioridade para os
ensinos básico e médio. Aqui, as crianças pobres estudam em escolas públicas ruins e as poucas que chegam ao
ensino superior precisam pagar relativamente caro para estudar em faculdades privadas de qualidade inferior à da
maior parte das universidades públicas. Já as crianças que nascem em famílias mais favorecidas, como os autores
desse livro, estudam em escolas privadas de bom nível e tem chances de ingressar na universidade pública de boa
qualidade. Quanto elas pagam para cursar a universidade pública? Nada.
Em vista das externalidades e da questão da redistribuição, o governo deve interferir na área educacional.
Contudo, às vezes os dois motivos se chocam um contra o outro. Por exemplo, deve o Estado financiar os estudos de
um estudante de medicina de família rica? Apesar de tal investimento em educação gerar externalidades positivas
para a sociedade, coletar dinheiro da população em geral para financiar o estudo do filho do rico com impostos
transfere dinheiro para a alma que teve a sorte de nascer em berço esplêndido. A universidade pública gratuita para
os estudantes (paga pelos contribuintes) tem efeito distributivo adverso: transfere renda para quem é mais rico.
Assim, ela só se justifica se as externalidades positivas forem maiores que os custos da redistribuição às avessas
somados aos custos da intervenção do governo (os custos diretos, as falhas e as distorções geradas pela taxação).
Quais são as externalidades nesse caso? A formação de médicos e engenheiros certamente traz ganhos para a
sociedade. Contudo, muitos desses ganhos serão apropriados pelo próprio profissional após concluir seus estudos, na
forma de remuneração. As externalidades são os outros ganhos, explicados no início do capítulo, por exemplo, o
aumento da produtividade do trabalho de um profissional menos qualificado por conta do trabalho do engenheiro, a
transmissão de conhecimentos, etc.
Ao financiar a educação superior, o Estado aumenta os incentivos para as pessoas estudarem nas faculdades
públicas. Assim, mais gente estuda e mais externalidades positivas são geradas. Mas quanto mais de gente se
educando a gratuidade das universidades públicas está causando? Quanto da decisão de fazer faculdade pública se
deve ao fato dela não cobrar mensalidade do aluno?
Parece-nos que a maioria dos nossos colegas de graduação da USP teriam cursado a universidade mesmo se
tivessem que pagar por isto. Mas o que justifica a gratuidade das universidades públicas é justamente a elevação do
contingente de bons estudantes universitários e, portanto, o aumento dessas externalidades. Assim, se o aumento no
número de bons estudantes associado à gratuidade é pequeno, o ganho para a sociedade de financiar a educação
desses profissionais é muito baixo, não compensando o impacto negativo dessa política sobre a distribuição de renda
e os custos da intervenção do governo.
A gratuidade do ensino superior nas universidades públicas é um dos vários temas que merecem ser mais
amplamente discutidos na sociedade, mas raramente o é por suscitar reações extremamente negativas de uma parcela
vocal da população. Estudantes que se beneficiam da gratuidade da educação e professores que veem na cobrança de
mensalidade uma tentativa de privatizar a universidade bloqueiam a discussão. Eles conseguem fazê-lo em parte por
terem maior capacidade e maiores incentivos para se organizar contra propostas de mudança. De onde vem tanto
incentivo? Do fato de os custos da cobrança de mensalidade recaírem sobre um grupo pequeno (o custo por aluno é
alto para cada um dos que após a reforma precisariam pagar a universidade) e bem identificado, facilitando sua
organização contra a reforma. Já os incentivos para lutar a favor da mudança são mais fracos na sociedade como um
todo porque os benefícios para o contribuinte são divididos entre muita gente (cada um de nós deixaria de pagar,
digamos, alguns reais por ano em impostos). Resultado final: distribuição de renda às avessas defendida muitas
vezes pelos que se dizem aliados dos mais carentes. Enquanto o debate não avança, a população como um todo
continua financiando até mesmo o custo do estacionamento “gratuito” dos carros dos estudantes nas universidades
públicas (são dois esses custos: o direto, de manter o estacionamento; e o indireto, mais importante, que é o custo de
oportunidade de não utilizar aquele espaço físico para outros fins).
Uma objeção comum contra a cobrança de mensalidades na universidade pública é que dessa maneira o pobre
jamais poderá estudar nela. Nós acreditamos que a solução para esse problema é crédito subsidiado – de forma que o
estudante possa pagar por sua educação após concluir o curso. Como vimos no capítulo 7, o mercado de crédito nos
permite vender o futuro e, portanto, poderia possibilitar aos estudantes pagar por sua formação com a futura
remuneração.
Outra objeção é que alguns cursos não conseguiriam atrair alunos se fossem pagos, por exemplo, muito pouca
gente escolheria estudar uma língua morta na universidade por conta do pequeno impacto que essa formação terá na
remuneração no futuro. Aceitando que isso venha mesmo a ocorrer, a pergunta é: devemos arrecadar dinheiro da
população pra financiar esses cursos? A resposta será positiva se (e somente se) entendermos que esses cursos geram
importantes externalidades ou bens públicos.
Concluindo, a educação é realmente importante pra gerar renda e melhorias nessa área poderiam beneficiar
substancialmente a população do Brasil, principalmente os mais pobres. Neste capítulo, tentamos entender as razões
por trás das escolhas das pessoas e debatemos qual deveria ser o papel do governo nesta área. Por causa da
distribuição de renda e das externalidades, o governo tem papel importante a jogar na área educacional.
16. O milagre da transformação do suco de laranja em vinho
O lápis é uma invenção humana extremamente simples: um pedaço de madeira com grafite no meio. Sua
produção data do século XVI, após a descoberta de um enorme depósito de grafite nas cercanias de Borrowdale, na
Inglaterra. Instrumentos de escrita semelhantes já eram encontrados nas antigas civilizações – há dois milênios atrás,
por exemplo, os romanos usavam espécies de varetas de chumbo para escrever em seus papiros. Seria o leitor capaz
de produzir, sozinho, esta coisa tão simples chamada lápis?
Nós não seríamos. Produzir um simples lápis nos custaria, professores de economia, muito tempo e trabalho –
para não falar na alta probabilidade de, após muito suor e lágrimas, terminarmos indo à papelaria mais próxima
comprar um prontinho para ser usado.
Mas se quiséssemos nos aventurar a fabricantes de lápis, primeiro precisaríamos estudar a teoria, aprender as
etapas de fabricação de um lápis – como vimos no capítulo 15, pelo menos não seria necessário reinventar o seu
processo de fabricação. Finda a fase de estudo, teríamos então que sair de serrote em mãos em busca de boa
madeira. Onde achá-la? Como cortá-la? Mesmo se superássemos esta etapa, as dificuldades estariam longe de
terminar. Convenhamos: não temos a menor habilidade para trabalhar nem a madeira cortada, nem a grafite. Além
disto, precisaríamos adquirir os equipamentos necessários para amaciar a madeira, deixando-a propícia para ser
apontada, desenvolver a técnica de envolver a grafite com a madeira, etc.
Mas nossa vida é mais simples. Tudo que fazemos é dar aulas de economia, pesquisar sobre economia, e
escrever o “Economia sem Truques”. Em troca disto, o mundo nos dá o lápis e uma miríade de outras coisas. É a
possibilidade de trocar aulas de economia por dinheiro, e dinheiro por todas as outras coisas que nos permite
transformar aulas de economia em lápis, sorvete, computador, ingressos para o jogo de futebol, etc.
De fato, após uma breve reflexão, o leitor notará que quase todos nós não somos capazes de produzir quase
nada do que usamos ou consumimos. Nem mesmo o fabricante de lápis. Ele é bom no lápis, mas muito
provavelmente não sabe nada sobre plantar cereais, criar gado ou fabricar uma calça. E em que pese esta vasta
ignorância, ele não passa fome e não anda despido por aí: ele troca o lápis por estas outras coisas, usando dinheiro
como intermediário da transação. O dinheiro é apenas um instrumento que facilita a troca. A verdadeira mágica está
na troca de um bem que se produz com destreza e eficiência, por vários outros sobre os quais não se tem a mínima
ideia de como produzir.
A lógica do comércio internacional é a mesma do exemplo do lápis. É a lógica da troca que gera benefícios
mútuos. Se tivéssemos que produzir sozinhos os itens que consumimos, fechando nosso lar ao comércio com o
mundo, e plantando nosso próprio tomate, criando algumas vacas, e fabricando roupas em casa, voltaríamos ao nível
de riqueza que o mundo apresentava há uns mil anos atrás. É o comércio com outras pessoas – de outras casas,
cidades, estados ou países – que nos permite a especialização em tarefas que, por sua vez, gera riqueza.
Como se sabe, o Brasil exporta hoje em dia grandes quantidades de suco de laranja. Vários navios partem de
nossos portos em direção à Europa abarrotados deste produto. E alguns destes mesmos navios que partem
carregados com suco regressam com tonéis de vinho francês de alta qualidade aos portos brasileiros. Uma possível
explicação para este fenômeno é que os navios param secretamente em alguma ilha misteriosa no meio do Atlântico,
onde mestres de identidade não revelada transformam nosso suco de laranja em vinho francês. O vinho é então
recolocado nos tonéis e, após alguns meses, aporta no Brasil para felicidade de enólogos e leigos apreciadores como
nós.
Claro, a façanha de suco de laranja transformado em vinho francês pode ser contada de maneira menos
fantasiosa: os navios que partem daqui chegam aos portos europeus sem parar em ilha nenhuma. Nos mercados
europeus, o suco de laranja brasileiro é vendido aos comerciantes locais em troca de moeda local – libras esterlinas e
euros. Com a receita da venda do suco em mãos, os brasileiros compram outros bens não produzidos no Brasil.
Dentre os bens e iguarias importados, figuram os famosos vinhos franceses.
Esta operação de troca é lucrativa tanto para os produtores de vinho francês, que podem degustar um saboroso
suco de laranja brasileiro durante suas refeições, como para nossos produtores de laranja, que desfrutam da
possibilidade de beber um bom vinho francês – não graças a mágicos habitantes de uma ilha misteriosa, mas sim ao
não menos miraculoso comércio internacional.
Em suma, o comércio nada mais é que uma tecnologia que nos permite trocar aulas de economia, projetos de
pesquisa, e este livro, por tudo que consumimos. O comércio é equivalente a uma invenção tecnológica de última
geração (ou a fictícios bruxos produtores de vinho) que possibilita transformar laranja, que nós brasileiros temos em
abundância, em vinho de alta qualidade, que não produzimos em nosso território por razões ligadas ao clima, ao solo
e aos processos produtivos.
De fato, as trocas e o comércio intra e internacional estão na raiz da teoria econômica moderna, cuja
paternidade é muitas vezes atribuída a Adam Smith. Em seu famoso “A Riqueza das Nações”, Smith defendeu que a
prosperidade de um país não era função da quantidade de ouro que ele possuía, mas sim da sua produtividade. E de
que dependeria a produtividade? A ênfase do autor centrava-se na especialização do trabalhador em um número não
muito elevado de tarefas. A ideia de Smith é que a especialização, ao familiarizar o trabalhador com suas tarefas, o
induz a descobrir maneiras melhores e mais eficientes de realizá-las.
Mas especializar-se na produção de uma gama limitada de bens é a princípio problemático, pois um sapateiro,
que só faz isto da vida, não pode viver sem comer; e um agricultor, exclusivamente dedicado a produzir alimentos,
não pode viver sempre andando descalço por aí. É a possibilidade de trocar que possibilita a especialização, pois
quando trocamos ganhamos acesso a um grande número de bens, mesmo produzindo apenas um.
E quais fatores aumentam a eficiência do comércio entre as pessoas, estimulam a especialização e, por
conseguinte, a produtividade? Um deles é a existência de um meio de troca oficial – eis a importante função da
moeda – que seja amplamente aceito na sociedade. Sem este facilitador, precisaríamos convencer o padeiro a nos
ceder seu pão em troca de aulas de economia – a única coisa que sabemos fazer direito. Se ele não estivesse
interessado em aprender economia, ficaríamos sem pão. Da mesma maneira, o padeiro que quisesse estudar
economia também teria dificuldades, pois necessitaria empreender um tremendo esforço de busca de professores de
economia querendo comer seu pão.
Sem a moeda, as trocas passariam a depender de maneira crucial de uma justaposição de duas coincidências: eu
ter o que você quer, e você ter o que eu quero, ao mesmo tempo. Com a moeda, esta dupla coincidência de desejos
não é mais necessária: eu posso vender meu produto a quem quiser comprá-lo, receber o pagamento em dinheiro, e
com este dinheiro adquirir os bens que desejo de outras diversas pessoas, possivelmente não interessadas em aulas
de economia, mas certamente interessadas nas coisas que o meu dinheiro pode comprar.
Um segundo fator que facilita as trocas, ou o comércio, é a existência de regras claras para trocar e de
instituições que contribuem para manter um ambiente propício para esta atividade, principalmente no caso das trocas
impessoais, onde não há em princípio os constrangimentos sociais comuns a grupos menores e suficientemente
fortes para induzir honestidade de comportamento de ambas as partes. A padronização de unidades de medida e a
inspeção de balanças por um agente do governo são exemplos deste tipo de “instituição pró-trocas”. A punição de
comerciantes que utilizem balanças desonestas por um judiciário ágil e não corrupto é outro.
Moeda e instituições são temas interessantíssimos, mas neste capítulo estamos particularmente interessados em
um terceiro fator: o tamanho do mercado consumidor.
Com efeito, a gama de bens fabricados em uma certa região (que pode ser uma cidade, um estado ou um país)
depende do tamanho, ou da escala do mercado consumidor a que esta região tem acesso. À medida que este
aumenta, expandem-se as possibilidades de trocas e assim os ganhos associados à especialização. A partir de um
certo ponto, já é possível para alguém se especializar até mesmo na profissão de professor e pesquisador em
economia.
Mas a especialização é menos lucrativa – e, portanto, pode não ocorrer - se o mercado onde se dão as trocas é
pequeno demais. Isto porque quando a demanda total por cada bem específico não é grande, o produtor individual
não colhe na sua integridade o que se chama em economia de ganhos de escala na produção, um nome elegante para
descrever o fato de que os custos de produção por unidade produzida decrescem, até um certo ponto, com o total
produzido. Exemplificando, o custo de fabricar um lápis é muito maior para quem fabrica apenas um lápis do que
para quem produz milhões. Ou, quando se monta uma fábrica de carro, se gasta uma quantidade enorme de dinheiro
na aquisição dos vários equipamentos necessários. Se nela são produzidos 1000 carros por dia, o custo destes
equipamentos é rateado entre os vários automóveis produzidos, mas se dela saem apenas 10, o custo por carro torna-
se muito alto e a fábrica vai à falência. De maneira geral, quando uma parcela dos custos de produzir independe da
quantidade produzida, produzir mais é mais barato.
Além disso, um mercado pequeno, não viabilizando a especialização em certos bens pelo motivo acima, tornará
mais difícil a vida daqueles que tem potenciais ganhos econômicos em se especializarem porque eles possivelmente
não encontrarão alguns dos bens de que necessitam no mercado e precisarão produzi-los por si próprios –
abandonando a opção de se especializarem. Se não há alguém na economia que se especializou em plantar verduras
e produzir roupas, eu preciso gastar meu tempo cuidando do quintal e tecendo, não posso dedicar-me ao ofício de
produzir lápis ou escrever livro. Esta espécie de círculo vicioso – não me especializo porque os outros não se
especializam porque o mercado é pequeno – leva a uma diminuição do grau de especialização total da economia e,
consequentemente, da sua produtividade.
Se não houvesse o comércio internacional e, portanto, a possibilidade de produzir-se para um mercado mais
amplo que o nacional, países menores e menos populosos – mais precisamente com mercados menores – seriam
menos produtivos e, portanto, mais pobres. Países pequenos estariam fadados a produzir uma gama enorme de
coisas de maneira pouco produtiva em um mundo sem comércio internacional, vendendo seus bens para um
mercado consumidor muito restrito. Já países grandes não sofreriam tanto em um mundo sem comércio
internacional porque a escala de seu mercado doméstico já seria suficiente para suportar um grau razoável de
especialização.
Mas a possibilidade de vender para mercados consumidores de outros países torna o tamanho do mercado
doméstico menos importante na explicação do grau de especialização de uma economia, pois o mercado mundial é
sempre bem maior que o doméstico. De fato, ter acesso ao mundo é vital para os países menores, pois ao
transacionar com o exterior cada produtor do país pequeno desacorrenta-se de seu restrito mercado interno. Além
disto, o comércio internacional possibilita que os bens não produzidos internamente sejam importados, e assim a
população doméstica não precisa ser privada de consumir certos bens só porque os produtores locais escolhem não
ofertá-los.
Não é à toa que países geograficamente menores e menos populosos são também os que mais transacionam com
o exterior – e que países maiores, onde os ganhos de escala podem ser colhidos vendendo-se para seus próprios
compatriotas, são mais fechados às transações externas. Uma boa medida de intensidade de comércio é o somatório
das importações com as exportações, tudo dividido pelo PIB. Essa medida mostra que o pequenino Luxemburgo,
cravado no coração da Europa, é um dos países que mais comercializa com o mundo. Já os Estados Unidos, com o
seu enorme mercado interno, é um dos que comercializa menos com o exterior. O que se produz na Califórnia pode
ser “exportado” para os habitantes de Chicago ou da Flórida.
Além de trazer ganhos de escala, o comércio permite nos especializarmos no que fazemos melhor. Mais
precisamente, como já nos alertava o economista clássico David Ricardo, naquilo que fazemos relativamente
melhor.
Não é difícil aceitar o argumento de que se a Bélgica é melhor na produção de chocolates que a França, e a
França, por sua vez, melhor que a Bélgica na produção de queijos, cada um destes países deva se especializar na
produção do que faz melhor e importar o outro bem. Neste caso, cada país tem vantagem comparativa absoluta na
produção de determinado bem, e poucos discordariam que o comércio entre ambos é benéfico.
Mas e se um país tem vantagem absoluta na produção de ambos os bens? Isto significa que para ele não há
ganhos em comercializar? No lado oposto, o que dizer de um país que não produz nenhum bem melhor que seu
potencial parceiro comercial? Pode ele assim mesmo se beneficiar do comércio?
Dizem os entendidos que Pelé era um belo goleiro, melhor que muito guarda-metas vestindo a camisa 1. Mas
mesmo sendo em termos absolutos um bom goleiro, ele quase sempre atuou com a camisa 10, na linha. Deveriam
seus antigos técnicos tê-lo colocado no gol? Um dos autores deste livro é um exímio lavador de louça – ou assim
pensa seu amigo co-autor. Ele faz o trabalho com rapidez, gasta pouca água e detergente e as panelas saem
brilhando. Em vista disto, ele quase certamente é mais produtivo ao lavar a louça que sua diarista e que muitas das
pessoas que trabalham nos restaurantes em que ele vai. Isto significa que ele, por ser mais produtivo que os outros
nesta tarefa, deva trabalhar lavando louça e não como economista?
As respostas são, claramente, não e não. O que está por trás da explicação é a noção de vantagens comparativas
relativas. Pouco importa que o economista lave melhor a louça que sua diarista. O importante é que ele exerce a
função de economista ainda melhor do que ela, que nunca estudou economia. Da mesma forma, que Pelé fosse bom
goleiro, melhor que outros goleiros inclusive, não era a informação mais relevante para a decisão de onde ele deveria
atuar. O mais relevante era o fato de ele ser muito, mas muito melhor na linha que os outros. Em resumo, o essencial
para a decisão de alocação de trabalho, ou para a decisão do que um país deve produzir e comercializar, são as
vantagens comparativas relativas, e não as absolutas.
Um exemplo fictício e simplificado, com dois países e dois bens, ajuda a fixar a idéia. Suponhamos que uma
pessoa na Armênia seja capaz de fabricar 20 sapatos em 1 hora ou 40 camisetas em 1 hora, ao passo que uma pessoa
na Bulgária, com acesso a processos produtivos menos eficientes, consiga produzir apenas 10 sapatos em 1 hora ou
10 camisetas em 1 hora. Estas informações são resumidas abaixo.

Produtividade dos Países em Horas


. Armênia Bulgária
Sapatos 20 por hora 10 por hora
Camisetas 40 por hora 10 por hora

Como se vê, neste exemplo fictício, a Armênia têm vantagem comparativa absoluta na produção de camisetas e
sapatos. Será que a Bulgária só tem a perder abrindo seu mercado e comercializando com a Armênia?
Duas coisas ficam claras a partir dos dados da tabela precedente: (1) a Armênia é absolutamente mais produtiva
na produção dos dois bens, como já dissemos e, mais importante, (2) a Bulgária é relativamente mais eficiente que a
Armênia na produção de sapatos. Na Bulgária, deixar de produzir 40 camisetas possibilita a produção de 40 sapatos.
Na Armênia deixar de produzir 40 camisetas os habilita a produzir apenas 20 sapatos.
Suponhamos que armênios e búlgaros trabalhem por 2 horas: se cada um deles dedicar uma hora para sapatos e
uma hora para camisetas, os búlgaros produzirão 10 camisetas e 10 sapatos, ao passo que os armênios se sairão com
20 camisetas e 40 sapatos. Para ver como é vantajoso para ambos se especializarem no que fazem relativamente
melhor e depois comercializarem entre si, suponha que os búlgaros se especializem em sapatos e os armênios em
camisetas. No final das duas horas, os búlgaros terão 20 sapatos disponíveis e zero camisetas, enquanto os armênios
produzirão 80 camisetas e zero sapatos.
Mas consumir apenas um dos dois bens é insatisfatório para ambos. Os armênios precisam se calçar e os
búlgaros se vestir. Agora, vamos abrir as portas do comércio internacional. Supondo que um búlgaro possa trocar
com um armênio 10 sapatos por 15 camisetas, ambos saem ganhando. Por quê? O búlgaro ficará neste caso com os
10 sapatos que ele produziu e as 15 camisetas que ele recebeu em troca dos outros 10 sapatos (5 camisetas a mais do
que teria se resolvesse produzir tudo sozinho). Um armênio que encontre dois búlgaros para comercializar dará
2×15=30 camisetas em troca de 2×10=20 sapatos. Como ele havia produzido 80 camisetas, terminará com 80-30=50
camisetas e os 20 sapatos que recebeu. Se quisesse fazer tudo por sua conta, em um mundo sem comércio
internacional, seu saldo final seria de 20 sapatos e apenas 40 camisetas (ao invés de 50).
De onde surgiram as camisetas a mais? Elas são o resultado da especialização, da exploração das vantagens
comparativas. Dois búlgaros que passem duas horas fazendo sapatos produzirão 40 unidades (20 cada um). Um
armênio que se dedique por duas horas a fazer camisetas produzirá 80 camisetas. Agora, se todos eles decidirem
passar uma hora na produção de cada um dos bens, teremos no final 40 sapatos (10 para cada um dos búlgaros e 20
para o armênio) e apenas 60 camisetas (10 para cada um dos búlgaros e 40 para o armênio).
As tabelas abaixo resumem o resultado do comércio.

Produção sem especialização


Armênio Búlgaro 1 Búlgaro 2 Total
Sapatos 20 10 10 40
Camisetas 40 10 10 60

Produção com especialização


Armênio Búlgaro 1 Búlgaro 2 Total
Sapatos 0 20 20 40
Camisetas 80 0 0 80

Note que neste exemplo não há ganhos de escala, apenas de especialização. Não há ganhos de escala porque
fazemos a hipótese de que o custo unitário - em termos de horas despendidas – não varia com o número de bens
produzidos. Búlgaros e armênios saem lucrando do comércio por outro motivo: a especialização naquilo em que têm
vantagens comparativas. Com o comércio, ambos têm a possibilidade de consumir mais do que lograriam se
escolhessem não realizar trocas. Neste sentido, o comércio é tão milagroso quanto os habitantes da ilha do Atlântico.
Os búlgaros do exemplo, sem vantagem absoluta na produção de qualquer dos bens, se beneficiam da
possibilidade de trocar: em um mundo com comércio internacional, eles podem consumir mais do que em uma
situação de isolamento, de autarquia. Mas mesmo com o comércio, eles terminam consumindo menos que os
armênios, por conta de sua menor produtividade absoluta em camisetas e sapatos. Em suma, o comércio aumenta o
consumo dos búlgaros ainda que não a ponto de equipará-lo ao dos armênios.
Além de possibilitar a produção com maior escala – e, portanto, a custo mais baixo – e a exploração das
vantagens comparativas, há outros canais através dos quais o comércio ajuda no desenvolvimento econômico.
Em primeiro lugar, a possibilidade que o comércio abre aos empresários de importar novas variedades de
insumos produtivos, melhores ou mais baratos que seus similares nacionais, ajuda a impulsionar a produtividade do
setor de bens ou serviços finais. Por exemplo, a importação de tornos mecânicos de controle numérico, fabricados
no exterior, aumenta a produtividade dos produtores de autopeças domésticos; os sofisticados aparelhos médicos que
trazemos do exterior tornam nossos médicos mais eficazes na assistência aos doentes; os equipamentos importados
utilizados para controlar a qualidade dos efluentes que as fábricas despejam nos rios reduzem os custos para as
empresas produzirem sem degradar o meio ambiente; etc.
Além do beneficio direto da importação que se dá via aumento da gama disponível de insumos de produção, há
um outro canal importante ligando produtividade à importação: os bens importados trazem embutidos em si todo um
conjunto de tecnologias e idéias desenvolvidas no exterior e que chegam ao conhecimento do produtor doméstico
quando estes bens aportam no nosso território. Os fabricantes de carros japoneses certamente aprenderam bastante
sobre carros estudando os automóveis americanos que importavam antes de começarem a exportar seus modelos
para os Estados Unidos. Similarmente, o violão importado serviu como base para os portugueses criarem o
cavaquinho.
Em poucas palavras, o produtor doméstico aprende observando o bem fabricado no exterior, o que possibilita
melhorias nos produtos e processos existentes e também estimula a criação de novos produtos.
Mudando o foco do produtor para o consumidor, ter acesso a maior variedade de produtos com qualidade e
preços diferentes é melhor do que estar restrito a escolher bens produzidos internamente. Na linguajem do capítulo
1, a importação aumenta o campo de escolha das pessoas, o que somente pode melhorar sua situação. Por exemplo,
antes da abertura econômica dos anos 90, nós brasileiros tinhamos menos opções de consumo.
Veja que nos últimos parágrafos, na raiz dos benefícios gerados pelo comércio, encontra-se a importação.
Importação, e não exportação. É a importação que aumenta a produtividade da economia e é a importação que
incrementa o bem-estar do consumidor. Quando exportamos, produzimos um bem e, ao invés de consumi-lo,
enviamo-lo para o exterior para que alguém lá fora dele desfrute. O que de bom pode haver nisto, em trabalhar duro
para produzir algo para depois mandá-lo de navio, caminhão ou avião, para outro país?
Uns diriam que o beneficio da exportação são os dólares que entram em nossos cofres como resultado da venda.
Mas ninguém come dólares ou extrai prazer de simplesmente possuí-los, com a exceção talvez do Tio Patinhas. Este
tipo de explicação mercantilista, portanto, não faz qualquer sentido. Os dólares da exportação são importantes
justamente porque nos permitem importar. É esta a grande vantagem, ou o principal beneficio, que se extrai das
exportações: elas geram divisas que nos permitem importar mais bens e serviços produzidos no exterior, seja agora,
seja mais à frente. Se não pudéssemos importar, exportar seria apenas um fardo sem benefício nenhum.
Eis que temos aqui uma grande divergência de visões entre o usualmente aventado pelos porta-vozes do senso
comum e o que nos diz a teoria econômica. A teoria econômica – resumida nos parágrafos precedentes – deposita
grande ênfase no beneficio trazido pelas importações, não nas exportações. Nos cadernos de economia dos jornais a
mensagem é reversa: comemora-se sempre um salto das exportações e lamenta-se o crescimento das importações. A
que se deve essa visão?
As exportações mais altas gerando um saldo comercial positivo para um país são como um aumento nas horas
de trabalho e na renda de uma pessoa que vê a demanda por seus serviços aumentar em uma época do ano. Uma
quituteira que fatura mais na época do Natal tem um saldo positivo nesse período, pois ganha mais do que gasta. Em
janeiro, o movimento cai, ela sai de férias e gasta o saldo positivo acumulado em dezembro. Faz sentido comemorar
o trabalho até as 11 da noite em dezembro porque é ele que permite o gasto nas férias de janeiro. Da mesma
maneira, um saldo positivo na balança comercial de um país permite maiores importações no futuro.
Voltando ao exemplo fictício do comércio entre armênios e búlgaros, sendo a produtividade na Armênia maior
que na Bulgária tanto na fabricação de camisetas quanto de sapatos, poder-se-ia pensar que (i) a Bulgária terminaria
importando tudo da Armênia e a esta não exportaria nenhum bem e, (ii) que isso seria ruim para os búlgaros. Mas
como poderia ser ruim para estes últimos receber produtos da Armênia sem dar nada em troca? Seria ótimo. São os
armênios que não ficariam felizes em entregar camisetas e sapatos aos búlgaros em troca de nada, e por conta disto
exportação sem importação nunca ocorre no mundo real.
Mas que mecanismo permite o ajuste entre o exportado e o importado pelos países? Como vimos no capítulo 8,
é o sistema de preços que comunica aos armênios e aos búlgaros o que produzir e o que consumir. Nesse caso, o
sistema de preços é composto pelos preços das camisetas e dos sapatos em cada um dos países e pela taxa de câmbio
que converte os preços em moeda estrangeira em preços em moeda local. Se os búlgaros querem importar muita
coisa da Armênia, mas os armênios não querem importar quase nada da Bulgária, o preço das moedas – a taxa de
câmbio – se ajusta para resolver esta inconsistência. A moeda da Armênia se valoriza frente à moeda búlgara
tornando o produto armênio mais caro com relação ao búlgaro. Isto de um lado desencoraja as compra de produtos
armênios pelos búlgaros e, por outro, encoraja os armênios a comprarem bens fabricados na Bulgária.[14]
Vimos até agora que o comércio internacional permite ganhos de escala, possibilita a cada país se especializar
na produção do que apresenta vantagens comparativas e, a reboque, traz outros ganhos. E o que dizem os dados do
mundo real sobre o impacto do comércio no desenvolvimento econômico dos países?
Estudos estatísticos em geral confirmam que mais comércio causa mais riqueza, ou seja, os países mais abertos
às transações de bens e serviços são usualmente também mais ricos. Um outro resultado interessante destes estudos
é que este impacto positivo do comércio sobre o nível de desenvolvimento é bem menor para o caso de economias
grandes, e bem mais acentuado para as economias pequenas, em linha com o aqui discutido anteriormente.[15]
No capítulo sobre educação, mostramos nosso atraso em relação à Coréia no quesito capital humano e dissemos
que isto explicava boa parte da diferença de renda entre os dois países. Outra parte da explicação reside na postura
em relação ao comércio exterior adotada por ambos países. Enquanto nós, por muitas décadas, optamos por uma
estratégia de crescimento com pouca ênfase no comércio internacional, a Coréia, hoje três vezes mais rica que nós,
tomou a via contrária, incentivando não só exportações como também evitando impor barreiras draconianas às
importações.
E o que dizer dos impactos do comércio internacional sobre a distribuição de renda? Se uma economia menos
desenvolvida, com muitos trabalhadores pouco qualificados, abre as portas de seu comércio para o mundo exterior, o
que acontece com os mais pobres?
Como vimos no capítulo 4, se o número de trabalhadores pouco qualificados é pequeno, há bastante demanda
para o trabalho de cada um deles, e isso eleva seu salário – contrabalançando um pouco o fato de eles serem pouco
produtivos. Mas se a desigualdade de qualificação é alta e há muitos trabalhadores com baixo nível de educação, não
há nem mesmo este efeito compensatório, e o salário deste grupo acaba sendo muito baixo. Por essa razão, o salário
dos trabalhadores menos qualificados é muito mais baixo no Brasil que na Inglaterra.
Um país repleto de trabalhadores pouco qualificados tem vantagem comparativa justamente na produção de
bens que utilizam intensamente o trabalho destes profissionais porque o salário deles é baixo. Esse país, quando abre
suas portas ao comércio com o mundo, tende então a se especializar na produção de bens produzidos por
trabalhadores com pouca qualificação. Em vista desta especialização, a demanda por este tipo de mão-de-obra
aumenta após a abertura - ao passo que a busca por profissionais mais qualificados tende a diminuir (pois os bens
produzidos por estes últimos serão em boa medida importados após a abertura comercial). Portanto, a diferença
salarial entre os muito e os pouco qualificados tende a se reduzir com o comércio. Em resumo, nos países pobres, a
abertura comercial tende a melhorar a distribuição de renda.
Dizendo de outra forma, se o fator de produção (relativamente) abundante em uma economia é a mão-de-obra
pouco qualificada, maior abertura comercial tende a melhorar a distribuição de renda. Por outro lado, em um país
como os Estados Unidos, onde os fatores de produção preponderantes são capital e mão-de-obra qualificada, maior
abertura comercial tende a piorar a distribuição de renda, pois leva a um aumento da remuneração destes dois fatores
em detrimento da mão-de-obra menos qualificada.
Esse efeito da integração comercial sobre a distribuição de renda pode ser visto de uma outra maneira:
consideremos o exemplo da China, um país pobre e grande, com muitos profissionais pouco qualificados, que há
alguns anos vem se integrando cada vez mais à economia mundial. A proporção de trabalhadores pouco qualificados
é maior na China do que nos países com que ela comercializa. Agora, o que aconteceria no caso de uma integração
perfeita entre os mercados de trabalho da China e destes outros países? Nesse mercado integrado, a proporção de
trabalhadores menos qualificados seria menor do que na China, mas maior do que nos outros países. Portanto, nesse
mercado integrado, a desigualdade de renda seria menor do que na China e maior do que no restante dos países.
Este último exemplo analisa uma suposta integração dos mercados de trabalho mundiais, mas os dados mostram
que a migração de trabalhadores é muito pequena entre países – um chinês não pode trabalhar nos Estados Unidos
devido às imensas barreiras legais e culturais que travam o fluxo de mão-de-obra. Mas o que tem a ver a integração
dos mercados de trabalho com integração comercial? O comércio integra indiretamente os mercados de trabalho ao
permitir que consumidores comprem bens produzidos por trabalhadores dos diversos países. A abertura comercial,
por exemplo, faz crescer a demanda por tecidos fabricados na china, elevando – sob a óptica do chinês – o preço dos
tecidos. Isto, por sua vez, causa uma elevação na renda dos chineses envolvidos na produção de tecidos. O salário do
chinês aumenta mesmo sem ele precisar migrar para os Estados Unidos. Do outro lado, o salário do trabalhador
americano pouco qualificado cai, mesmo sem a invasão dos chineses nas cidades americanas. Basta a invasão dos
produtos chineses para diminuir a desigualdade na China e aumentá-la dentro dos Estados Unidos.
E, de fato, apesar da China ainda ser hoje um país pobre, o número de chineses vivendo abaixo da linha da
pobreza tem se reduzido bastante, enquanto a diferença salarial em países como os Estados Unidos tem aumentado.
É verdade que há muitos outros fatores que influenciam a distribuição de renda em um país, mas a abertura
comercial é por vezes apontada como um fator que tem contribuído para torná-la mais desigual nos países
desenvolvidos. Se isso é verdade, então a abertura comercial tem contribuído para melhorar a distribuição de renda
em países mais pobres.
A análise sobre os efeitos de abertura comercial na distribuição de renda dos parágrafos anteriores deve ser
tomada com cautela, pois é bem difícil identificar estatisticamente o efeito da abertura comercial na distribuição de
renda e os dados não corroboram de modo contundente estas predições. De todo modo, as evidências tampouco dão
qualquer subsídio à tese oposta de que o comércio acentua desigualdade em economias menos desenvolvidas.
Por fim, será que a integração econômica contribui para a degradação do meio-ambiente? Por um lado, as
empresas multinacionais podem ser atraídas para os locais com regulamentação ambiental mais frouxa, dado que
estar livre para poluir barateia custos de produção. A livre mobilidade de empresas em um mundo economicamente
integrado pode em tese gerar maior poluição global. Mas, por outro lado, empresas que dependem de exportações
têm incentivos para não desagradar o consumidor cada vez mais consciente da importância da preservação ambiental
dos países importadores. Além disso, o comércio, ao tornar um maior número de países mais prósperos, faz com a
preocupação com a conservação do meio-ambiente se difunda porque ela é em geral mais forte nos países mais
desenvolvidos. Não por diferenças de valores morais, mas porque nos mais pobres a preocupação mais premente na
escala de prioridades é tornar-se mais rico.
E o que dizem os dados? As analises estatísticas não mostram sinais de que as empresas estejam migrando para
países onde a regulação ambiental seja mais fraca, e tampouco existe qualquer evidência de que países que
comercializam bastante poluam mais ou degradem mais o meio-ambiente, em média.
Mas se o comércio é bom para o desenvolvimento do país, e na pior das hipóteses não acentua a desigualdade
de renda em países como o Brasil, como explicar tanta oposição ao comércio e tão pouca defesa da liberalização
comercial?
O comércio recebe forte oposição por dois motivos. O primeiro está ligado ao fato de que apesar de a
possibilidade de transformar suco de laranja em vinho francês produzir ganhos para os países como um todo, ela
gera perdas concretas – ao menos no curto prazo – para alguns grupos dentro dos países, da mesma maneira que a
inserção de novas tecnologias no capítulo 5. Lá vimos que estas novas tecnologias eram rechaçadas pelos Luddites e
pelo pai do Woody Allen, que sofriam com a melhora tecnológica. Da mesma maneira, importantes custos e
deslocamentos no curto prazo decorrem dos processos de abertura comercial e setores inteiros da economia podem
desaparecer em um período curto de tempo após o desmantelamento de uma rede de proteção às importações.
Investimentos em fábricas, máquinas adquiridas, treinamento de pessoal, tudo rapidamente indo pelo ralo.
Estes problemas de curto prazo não são argumentos contra maior abertura comercial – que leva a maior nível de
renda no longo prazo – do mesmo modo que não serviam, no capítulo 5, como justificativa para barreiras ao avanço
de novas tecnologias. Contudo, é importante que a estratégia de abertura leve-os em consideração. Gradualismo no
processo, visando dar tempo para firmas e trabalhadores se adaptarem à nova realidade, e uma rede de proteção
social (seguro desemprego e re-treinamento) para os deslocados no curto prazo são uma combinação que nos soa
interessante.
O segundo motivo é de natureza política: enquanto os benefícios do comércio são difusos e estendidos para um
grande número de pessoas (portanto, o benefício por pessoa não é muito alto), as perdas são em geral concentradas
em grupos menores, tornando o custo por pessoa, dentro destes grupos perdedores, elevado. Esta dicotomia “custos
concentrados / benefícios dispersos” explica porque a movimentação pró-comércio é tão mais fraca que as
manifestações anticomércio.
Empresários e trabalhadores de empresas que só são capazes de sobreviver com proteção contra a competição
externa dedicam bastante esforço para combater tentativas do governo de reduzir as tarifas de importação. Para eles,
a perda do emprego é mais importante e concreta que os ganhos de produtividade que a queda de tarifas traz para a
economia como um todo. Por outro lado, os consumidores que se beneficiariam de um produto um pouco mais
barato e de melhor qualidade, e os produtores que poderiam talvez aprender um pouco sobre a nova tecnologia com
o produto importado, não se sentem individualmente motivados a pegar um avião para Brasília para protestar contra
a proteção tarifária que os prejudica. Seu cálculo custo / benefício não os incentiva a assim proceder.
Por exemplo, nos jornais vemos muitas queixas de empresários que estão perdendo mercado para a
concorrência chinesa. Como dissemos acima, a concorrência chinesa afeta negativamente um pequeno grupo,
aqueles que perdem mercados para os chineses, mas é benéfica para os todos os outros brasileiros. Além disso, o
comércio com a China beneficia os exportadores brasileiros que vendem produtos para os chineses. A população
pode então ser dividida em 3 grupos: os que sofrem com a concorrência chinesa; os que lucram com suas
exportações para a China; e o restante da população, de longe o mais numeroso desses grupos, que se beneficia com
o acesso aos produtos chineses. O que às vezes passa despercebido é que desde 2000 até meados de 2007, o Brasil
vinha exportando mais para a China do que dela importava. O grupo que estava perdendo era o menor de todos os
três, mas apesar disto era o que mais se fazia ouvir.
Talvez em nenhuma outra sub-área da economia o senso comum difira tanto da teoria econômica como no caso
do comércio internacional. É particularmente usual entre não-economistas a tese equivocada de que o comércio
internacional tem as características de um jogo de soma zero, o que significa que se um país ganha comercializando
seus bens com outro, este outro tem que necessariamente perder, como ocorre em corridas de cavalo ou partidas de
xadrez.
O comércio é uma tecnologia que transforma suco de laranja em vinho francês. Os benefícios do comércio
provêm principalmente da exploração de economias de escala e de vantagens comparativas. Como a inserção de
novas tecnologias do capítulo 5, a abertura comercial gera problemas para alguns e ganhos para outros no curto
prazo, e benefícios no longo prazo para toda a economia.
17. O mercado de promessas
Bangladesh é um país muito pobre, bem mais pobre que o Brasil. Lá, um enorme contingente de pessoas não
tem acesso ao mercado formal de empregos e sobrevive trabalhando por conta própria. Por exemplo, um grande
número de mulheres se dedica à produção de cestas de bambus. Em idos dos anos 70, em uma viagem a um vilarejo
de Bangladesh com seus estudantes, o professor de economia Muhammad Yunus ficou sabendo que várias dessas
mulheres tomavam dinheiro emprestado a taxas de juros realmente muito altas – chegando a cerca de 10% por
semana – de emprestadores locais para poder comprar o bambu, seu principal insumo de produção. Por conta destes
compromissos financeiros a taxas estratosféricas, o lucro auferido com a venda das cestas era muito pequeno,
bastando apenas para sustentar a mais módica sobrevivência. [16]
Em 1976, o professor Yunus resolveu emprestar cerca de 100 dólares para 42 dessas produtoras de cestas de
Bambu a taxas de juros razoáveis. Com juros mais baixos, os lucros provenientes de seu trabalho eram
substancialmente maiores, propiciando um acréscimo significativo na pequena renda deste grupo de trabalhadoras.
As produtoras de cestas de bambu se revelaram boas pagadoras e Muhammad Yunus seguiu aumentando sua
carteira de micro empréstimos. Pouco tempo depois, Yunus fundou o Grameen Bank (Banco do Vilarejo), que tinha
como objetivo emprestar dinheiro a pequenos produtores, pessoas muito pobres que estavam amarradas à estaca zero
muitas vezes pela falta de alguns dólares que permitissem iniciar um pequeno negócio.
Hoje, o banco de Yunus empresta para cerca de 7 milhões de clientes em Bangladesh, e mulheres representam
97% de sua clientela. A taxa de inadimplência deste negócio? Apenas 1% dos empréstimos concedidos não são
devidamente repagos. E o Grameen Bank não está sozinho. Em Bangladesh mesmo, há dezenas de instituições
dedicadas ao micro-empréstimo, e a maioria dos lares do país são atendidos por empréstimos desse tipo.
No ano de 2006, Muhammad Yunus e o Grameen Bank ganharam o Prêmio Nobel da Paz. Isso mesmo, da Paz,
não da Economia. Em sua nota explicando a decisão, o Comitê do Prêmio Nobel afirmou: “a paz duradoura não
pode ser atingida se grandes grupos da população não encontram meios de escapar da pobreza. Micro crédito é um
desses meios”. Em outro trecho: “Yunus, principalmente através do Grameen Bank, tornou o micro crédito em um
instrumento de luta contra a pobreza cada vez mais importante”. Por fim: “O micro crédito provou ser uma
importante força libertadora em sociedades onde mulheres particularmente têm que batalhar contra condições
socioeconômicas repressivas”.
Duas observações importantes emergem deste exemplo: (i) o crédito, capitalista em sua essência, de aparência
sisuda e engravatada, é louvado como força libertadora e instrumento de luta contra a pobreza pelo Comitê do
Prêmio Nobel; e (ii) não menos surpreendentemente, emprestar dinheiro a juros para os pobres se iniciou como
atividade filantrópica (o que parece uma contradição em termos) e, ainda hoje, várias instituições de micro crédito
podem ser caracterizadas como entidades assistenciais realizando atividades eminentemente capitalistas.
O crédito, tema desse capítulo, pode de fato ser um importante instrumento para o desenvolvimento econômico
e para o combate à pobreza. Um mercado financeiro em condições de perfeito funcionamento – o que apesar de ser
uma abstração teórica é bom ponto de partida para a análise – torna bem menos importante a posição de largada dos
indivíduos como fator explicativo de seu sucesso econômico. Um trabalhador desprovido de posses iniciais que o
permitam abrir um negócio com dinheiro próprio, mas munido de uma excelente idéia sobre um novo produto ou
nova técnica de produção, ou simplesmente capaz de produzir cestas de bambus, pode pegar dinheiro emprestado
para financiar suas atividades e assim sair da miséria com suas próprias pernas.
Mas o crédito não é importante apenas para os pobres de Bangladesh. Na outra ponta do espectro econômico,
Henry Ford tinha boas idéias na cabeça e pouco dinheiro na mão quando fundou a Ford Motor Company, em 1903.
Para montar sua fábrica de automóveis, Henry Ford contou com o dinheiro de outros 11 investidores. Sua empresa
se caracterizava por inovações nos métodos de produção, alta produtividade, salários altos e trabalho duro nas linhas
de montagem. Vinte anos depois, sua fortuna o colocava no rol dos americanos mais ricos de todos os tempos – no
ranking de Wikipedia, Ford ocupa o segundo lugar, bem à frente de Bill Gates – e suas inovações inspiraram
industriais nos mais diversos setores em todo o mundo. Tamanho sucesso se deve claramente à mente inovadora de
Henry Ford, mas também à possibilidade de levantar dinheiro de outros investidores, dinheiro sem o qual a fábrica
não teria saído do papel.
No capítulo 1, vimos que proibir o pobre de trabalhar nas fábricas têxteis de Bangladesh não ajudava.
Aprendemos que para melhorar a situação de um indivíduo, é crucial melhorar suas opções. Os mercados
financeiros, ao ampliar o campo de escolha dos que não têm recursos, fazem justamente isso. Sem a possibilidade de
tomar emprestado hoje para pagar no futuro, o pobre fica impedido de cursar uma faculdade ou desenvolver seu
próprio negócio e, assim, enfrenta mais dificuldades para sair de sua posição. O crédito oferece às mulheres de
Bangladesh a opção de viver da produção das cestas de bambu.
O crédito é mesmo um instrumento poderoso. Entretanto, como a segunda observação referente ao exemplo de
Bangladesh deixa claro, esse mercado em que se troca dinheiro hoje por dinheiro amanhã muitas vezes não funciona
bem. Foi preciso que entidades com objetivos filantrópicos surgissem para que os pobres de Bangladesh e de todo o
mundo conseguissem tomar emprestado pequenas quantias de dinheiro, pagando juros razoáveis.
De fato, muitas pessoas gostariam de tomar dinheiro emprestado, mas simplesmente não conseguem. Como
vimos no capítulo 9, os mercados livres nem sempre funcionam a contento devido à existência de falhas de mercado,
e não existem mercados financeiros perfeitos. Uma delas, a que chamamos de assimetria informacional, se manifesta
de modo particularmente virulento no caso em questão. E onde o mercado de crédito não funciona bem, o
desenvolvimento econômico-social e o combate à desigualdade ficam comprometidos. O problema é grave porque,
infelizmente, este funcionamento ineficiente dos mercados financeiros é a regra e não a exceção. Mais ainda, a
ineficiência é maior justamente onde seu bom funcionamento seria mais necessário: nas economias mais pobres ou
em desenvolvimento.
Para escolhermos bem as políticas públicas afetando o mercado crédito, precisamos entender melhor suas falhas
e problemas. Esse é um dos objetivos deste capítulo. Mas antes, falemos um pouco da evidência encontrada nos
dados.
Os dados de um conjunto amplo de países sugerem que as economias onde os mercados financeiros são mais
desenvolvidos apresentam PIB por habitante mais alto, ou seja, são mais ricas. A figura seguir ilustra essa relação.
[17]
O gráfico construído com dados do ano de 2005 para 160 países, apresenta o crédito (como proporção do PIB) no
eixo horizontal e o PIB em dólares no eixo vertical. A associação, como se vê, é altamente positiva. A correlação
sugerida nos dois primeiros gráficos não decorre, portanto, de mera seleção “cuidadosa” da amostra de países.
Além disto, os dados também revelam que onde o crédito é mais disseminado, a desigualdade econômica, e a
proporção de pobres na população, são menores. [18]

Grupo de 160 países: crédito x PIB por habitante

Entretanto, como nos alerta o capítulo das teorias mágicas da cerveja, a existência de correlação não implica
necessariamente em causalidade. Por exemplo, será que a correlação positiva nos gráficos acima não vem do fato de
que as economias que se desenvolvem economicamente mais acabam gerando mais demanda por serviços
financeiros e, portanto, dão origem a mercados financeiros mais desenvolvidos (causalidade reversa)? Outra
possibilidade é de que fatores que impulsionam tanto o crescimento econômico como o florescimento destes
mercados – por exemplo, o ambiente institucional – estejam por trás da correlação entre ambos (variável omitida).
Ambas possibilidades são, em princípio, coerentes. Contudo, estudos estatísticos tentando contornar os
problemas de causalidade reversa e variável omitida encontram, em sua maioria, uma relação de causa e efeito indo
do volume de crédito para o desenvolvimento econômico.
E o micro crédito? Ele tem mesmo impacto significativo sobre a redução da pobreza? Casos como a das
produtoras de cestas de bambu indicam que sim, mas é importante também medir esse efeito utilizando mais dados e
métodos estatísticos apropriados. O problema que dificulta esta análise é de novo a causalidade reversa: se uma
região se desenvolve, ela tende a atrair mais crédito e, portanto, o fato de observarmos que mais micro crédito
coincide com maior desenvolvimento não é prova de sua efetividade.
Alguns estudos estatísticos que tentam driblar o problema da causalidade reversa detectam um impacto positivo
e significativo do crédito na luta contra a pobreza. Por exemplo, entre 1977 e 1990, na Índia, um banco só podia
abrir uma agência em uma localidade que já fosse atendida por outros bancos se abrisse simultaneamente 4 agências
em localidades sem agências bancárias. Essa medida afetou as escolhas dos bancos que, na ausência da lei, teriam
aberto menos agências em pequenos vilarejos do que de fato abriram. Para os pesquisadores que utilizam métodos
estatísticos, a lei proporciona uma maneira de identificar o impacto do micro-crédito, pois parte do aumento do
número de agências bancárias nos pobres vilarejos se deu exclusivamente por conta da lei, e não por conta da
causalidade reversa. Utilizando técnicas estatísticas avançadas, um importante trabalho conclui que o aumento de
crédito nos pequenos vilarejos causou de fato uma significativa redução na pobreza.[19] Contudo, outros artigos
focando em outros episódios não chegam às mesmas conclusões.
Outro importante estudo mostra como a diferença no grau de desenvolvimento financeiro entre distintas regiões
da Itália afeta a probabilidade de que um novo negócio seja aberto. O trabalho mostra que quando um indivíduo
muda de uma região italiana onde os mercados de crédito locais são pouco desenvolvidos para outra onde eles são
mais avançados, as chances de que este indivíduo abra sua própria empresa aumentam em 33%. Mais ainda, os
empreendedores residentes nas áreas financeiramente mais desenvolvidas são em média cinco anos mais novos que
os empreendedores das áreas onde os mercados de crédito não funcionam tão bem. Isto sugere que nas regiões onde
os mercados de crédito funcionam mal, é preciso primeiro acumular meios financeiros antes de se abrir um negócio,
enquanto nas áreas onde os mercados de crédito são mais fecundos, não é necessário tanta espera: toma-se
emprestado e monta-se mais cedo o próprio negócio.[20]
Sendo fortes os indícios da importância do crédito no desenvolvimento e nas chances de se escapar da pobreza,
é importante tentar entender porque em alguns lugares, como no Brasil, o crédito ao setor privado encontra forte
dificuldade em florescer.
Para começar, vamos entender um pouco melhor os mercados financeiros. Como vimos no capítulo 7, os
intermediários do mercado financeiro são os responsáveis por promover o encontro dos indivíduos que querem
guardar recursos para o futuro com os que precisam deste dinheiro hoje para investir, digamos para abrir um novo
negócio. Mas por que o poupador não empresta direto ao empreendedor? Por que esta operação é feita através de um
banco?
Os bancos surgem para intermediar as transações financeiras porque a operação direta é custosa, arriscada e
ineficiente. Como vimos no capítulo passado, nós somos capazes de produzir mais, como um todo, se cada um de
nós se especializa em uma determinada função. E os bancos se especializam em captar recursos dos poupadores e
alocá-los onde lhes parece mais rentável. Os profissionais do mercado financeiro usam seu tempo coletando e
analisando informações sobre empresas onde eles podem alocar o dinheiro dos poupadores.
Além de saber mais sobre a situação das empresas, os bancos correm menos riscos que um pequeno
emprestador devido à maior possibilidade de diversificação. Por exemplo, se um médico resolve emprestar sua
poupança acumulada em anos de trabalho para uma empresa com prospectos que lhe pareçam razoáveis e, três
meses depois de feitos os empréstimos, por um azar ou acontecimento adverso qualquer, a empresa começa a ir mal
das pernas, o médico perde boa parte de suas economias.
Por emprestar para muitos projetos e agentes variados, o intermediário financeiro corre muito menos risco de
terminar com os problemas que o médico do nosso exemplo teve que se defrontar. Quando alguns investimentos não
dão certo, o intermediário financeiro ainda pode usar a receita do pagamento dos outros empréstimos para honrar
seus compromissos com o poupador. Dito de outra maneira, ele tem maior habilidade de pulverizar os riscos que
corre porque administra mais recursos e investe em número maior de empresas. E justamente por possuir a
capacidade de diversificar riscos, os poupadores também veem como menos arriscado emprestar seus recursos para
o intermediário.
É interessante notar que no afã de alocar fundos para os melhores usos possíveis visando o lucro e a conquista
de adicionais clientes poupadores (o que também aumenta seu lucro), o intermediário financeiro desempenha um
serviço em prol da eficiência econômica, pois faz os recursos fluírem para as empresas mais rentáveis, ou seja,
aquelas que podem produzir mais com o capital existente na economia.
O intermediário também tem incentivos para monitorar a aplicação dos recursos emprestados, analisando as
notícias e os balanços das empresas onde investe, o que serve como incentivo para as empresas utilizarem seus
recursos de modo eficiente. Se pioram os prospectos sobre a rentabilidade de uma empresa, seu valor no mercado se
reduz e, consequentemente, cai a quantidade de recursos que a empresa pode captar emitindo ações. Quando
aumenta a chance da empresa falir, tomar dinheiro emprestado fica mais difícil e mais caro.
Em resumo, mercados de crédito que funcionam bem aumentam a eficiência da economia de duas maneiras: (a)
selecionando com menores custos os projetos recebedores de recursos (eficiência a priori), e (b) monitorando o uso
da poupança total da economia pelos empreendedores de modo a garantir que ela seja bem empregada, após
realizado o empréstimo (eficiência a posteriori).
Além de contribuir para que os recursos dos poupadores sejam alocados de maneira eficiente na economia, os
mercados financeiros exercem importante impacto positivo sobre as inovações, e não somente porque eles provêm
recursos para um potencial inventor tocar seu projeto adiante. O inovador é um indivíduo que se dedica a uma
atividade de alto risco: seu projeto pode dar certo, mas pode também naufragar, deixando-o em maus lençóis. Ainda
que um empreendedor/inventor de uma ideia tenha dinheiro suficiente para abrir o negócio sozinho, para ele pode
não ser interessante colocar todos – ou quase todos – os seus ovos em uma só sacola: a do seu próprio negócio. Para
ele, portanto, ter a possibilidade de dispersar um pouco deste risco inerente à inovação, dividindo-o com outros
indivíduos, pode ser crucial.
Os mercados financeiros possibilitam esta diversificação de riscos. A venda de ações de uma empresa para
outras pessoas significa que cada acionista individual, dono de uma parcela da mesma, arcará com uma parte
relativamente pequena do risco do novo empreendimento. Na ausência desta possibilidade de diversificação, todo o
risco de um novo negócio teria que ser carregado por uma pessoa só, o que desencoraja as inovações.
As inovações são benéficas por conta de suas potenciais externalidades positivas: se dão bons resultados,
afetam todos na economia. Mas as inovações trazem riscos para o empreendedor e ainda que para a economia como
um todo valha a pena correr esses riscos, pode não valer a pena para uma pessoa só. Os mercados financeiros
ajudam a distribuir esses riscos entre mais pessoas, encorajando as tentativas de inovar que por vezes desembocam
em externalidades positivas.
Henry Ford, citado no início desse capítulo, utilizou recursos de investidores para financiar suas inovações. E
há muitos outros exemplos desse tipo. Várias empresas que operam no mundo da internet começaram como projetos
de alto risco, demoraram para se tornar lucrativas, e hoje são bastante valiosas. Suas operações foram financiadas
com recursos de investidores que podiam arcar com os altos riscos desses projetos pela possibilidade de diversificar:
cada empresa que eles escolhiam para investir recebia uma pequena parte de seu dinheiro. Dessas, algumas
quebraram, outras decolaram, e por conta da diversificação, o risco que esses investidores enfrentavam não era tão
grande. A rapidez com que a internet se desenvolveu se deve, em parte, ao volume de capital direcionado para
financiar as operações dessas empresas.
Então, em termos teóricos, os mercados financeiros ajudam a combater a desigualdade; aumentam a eficiência
com que a poupança das pessoas é empregada; e também possibilitam uma maior diversificação de risco, o que é
muito importante para fomentar a inovação. Pena que na prática a realidade não seja bem esta...
Como o exemplo das mulheres que tomavam dinheiro a juros muito altos, do início desse capítulo, deixa claro,
há muitas falhas nesse mercado. Para melhor desenharmos as políticas, precisamos justamente entender essas falhas,
tanto de mercado, como de governo, que tornam a realidade concreta menos animadora.
Como dissemos no capítulo 7, no mercado de crédito, troca-se dinheiro hoje pela promessa de dinheiro no
futuro. A promessa pode ou não ser cumprida e esta é a questão crucial que distingue o mercado de crédito do
mercado de bananas. Para que o mercado funcione, é fundamental que as promessas de repagar tenham grandes
chances de serem cumpridas. A força e estabilidade dos contratos é crucial.
Mas muitas vezes estes contratos nem mesmo existem. Por exemplo, não é legal assinar um contrato de
empréstimo com crianças. Um menino pobre de 14 anos, ciente das possibilidades de conseguir renda mais alta se
obtiver um bom diploma universitário, e que deseje dedicar-se com afinco aos estudos até tornar-se médico, poderia
em tese tomar dinheiro emprestado para se sustentar enquanto jovem, dado que sua renda futura seria mais que
suficiente para pagar toda sua dívida confortavelmente. Mas ele não pode assinar esse contrato e, portanto, não pode
tomar o dinheiro emprestado.
Na verdade, nesse caso o problema não é a lei. Mesmo que a legislação permitisse, nosso jovem estudante não
conseguiria convencer os bancos a lhe emprestar tamanho montante de recursos, ainda que estivesse realmente
disposto a pagar no futuro todo centavo que fosse devido. A falha de mercado, vista no capítulo 9, é a assimetria de
informação. Nosso estudante, bem como qualquer pessoa que vai captar recursos no mercado financeiro, sabe bem
mais de suas intenções de repagar e está muito mais por dentro das suas perspectivas de ganhos que o intermediário
financeiro. Este, ciente do problema de assimetria informacional, reage ou negando crédito a alguns indivíduos, ou
cobrando caro demais pelos empréstimos.
A primeira opção do banco, não conceder crédito, significa que alguns projetos que seriam economicamente
rentáveis não se tornarão realidade. Por exemplo, nosso estudante não se tornará médico. A segunda, cobrar juros
muito altos, faz coisa parecida, afastando um bom número de pessoas que se sentem desencorajadas pelo elevado
custo do capital que resulta da sua dificuldade de se distinguir do mau devedor aos olhos do intermediário
financeiro.
O requerimento de garantias – uma terceira possibilidade – reduz as consequências adversas provenientes do
problema de assimetria informacional, pois se o empreendedor que deve ao banco não repaga, este se apropria do
bem do devedor, minimizando suas perdas. A relevância das garantias é de fato importante na prática: o empréstimo
para compra de veículos no Brasil é feito a juros bem mais baixos que os incidentes sobre as outras modalidades de
empréstimo justamente por ser relativamente fácil reaver o carro de um indivíduo inadimplente.
Porém, a solução via garantias é imperfeita, por duas razões. Primeiro porque os mais pobres não têm riquezas
que sirvam como garantias para potenciais empréstimos. Nosso estudante e as pobres mulheres de Bangladesh nada
têm a oferecer como garantia de pagamento. Segundo, nem sempre é fácil para o banco se apropriar das garantias do
devedor quando este não honra seus compromissos. Não é por outra razão que os bancos no Brasil fugiam dos
empréstimos habitacionais: era muito difícil retomar um imóvel de um devedor inadimplente – ainda não é fácil,
mas a legislação tem se modificado.
Políticas públicas que aumentam a segurança dos credores através de leis mais duras contra os que não pagam
seus empréstimos aumentam as chances das dívidas serem honradas no futuro e, portanto, reduzem os custos de se
tomar dinheiro emprestado. Se todos acreditam que leis protegendo os credores serão de fato cumpridas de modo
rápido e pouco custoso, os devedores que honram seus compromissos pagarão juros mais baixos. Por outro lado, leis
mais duras prejudicam não somente o mau pagador, mas também alguns bons devedores passando por situações de
especial e imprevisível dificuldade. Em suma, apesar de leis mais severas para inadimplentes causarem punições
duras para os azarados com boa vontade de repagar, elas propiciam o florescimento do mercado de crédito e juros
mais baixos para todos.
De fato, estudos estatísticos mostram que em locais onde as leis são mais lenientes com os direitos de
propriedade do credor, os mercados de crédito são menos desenvolvidos. Isto ocorre mesmo entre países
desenvolvidos.
Os empréstimos consignados, aqueles descontados diretamente do pagamento ao funcionário, reduzem
significativamente as chances de calote ao retirar do devedor a opção de não pagar. A solução não resolve todos os
problemas de credibilidade envolvidos nas operações de crédito por conta dos riscos de falência da empresa ou
demissão do funcionário (circunstâncias em que a probabilidade de pagar as dívidas se reduz), e porque os bancos
ainda podem temer que ações na justiça acabem favorecendo o devedor. Ainda assim, o risco de calote é muito
menor. Sendo o principal problema nesse mercado a possibilidade de não repagar, tais empréstimos devem
solucionar parte do problema.
E os números de fato comprovam que, sem usar truques de economágica, o crédito consignado reduziu
enormemente o custo de se tomar dinheiro emprestado no Brasil para quem tem um emprego formal. Em julho de
2007, a taxa média de juros de empréstimos consignados era 2,28% ao mês, enquanto a taxa média de juros de
outros tipos de crédito pessoal era 4,27% ao mês. Além dessa enorme diferença nas taxas de juros, a quantidade de
empréstimos concedidos a pessoas físicas aumentou muito com o crédito consignado, que hoje já corresponde a
mais da metade do crédito pessoal no Brasil.
Ainda em relação a medidas visando atenuar esta falha de mercado, um bom remédio para minorar o problema
de assimetria de informação é aumentar a informação disponível sobre os indivíduos no que concerne seu histórico
como devedor. Ao diminuir a assimetria informacional existente entre devedor e intermediário financeiro, os
chamados cadastro positivo (que relata o histórico de bom pagador do indivíduo) e cadastro negativo de devedores
(seu oposto) facilitam o funcionamento dos mercados financeiros. A veiculação de informação faz com que as taxas
de juros se reduzam para os bons clientes. Por outro lado, para os maus pagadores, os empréstimos ficarão ainda
mais caros. Mas justamente por causa disso, os devedores terão maiores incentivos para honrar seus compromissos –
o que leva a juros menores.
Além disso, estes cadastros aumentam a concorrência entre os bancos pelos bons clientes porque as
informações sobre clientes de um banco passam a ser acessíveis para os outros. Como vimos no capítulo 3, maior
concorrência leva a menores preços – neste caso, menores taxas de juros. Veicular mais informação, portanto, é um
passo importante para vermos taxas de juros menores nos empréstimos bancários no Brasil.
Um outro fator que funciona como impeditivo ao pleno desenvolvimento dos mercados de crédito e que
desvirtua suas funções pró-desenvolvimento aqui apresentadas tem a ver com a ligação entre mercado de crédito e
dívida pública. Em países onde a dívida ou o déficit do governo são elevados, os mercados de crédito, ao invés de
cumprir as atribuições de selecionar investimentos produtivos, monitorá-los, financiar os inovadores, e promover a
diversificação de riscos, passam a funcionar como instrumento de financiamento dos gastos públicos. A lógica é a
seguinte: um governo que gasta mais do que arrecada, ou que herdou uma dívida grande, vai aos mercados
financeiros em busca de empréstimos que cubram esta diferença (o famoso déficit público), e concorre por uma
quantidade limitada de poupança com outros agentes em busca de recursos para investir. Como o governo é um
tomador de empréstimos grande, sua demanda por dinheiro eleva o preço dos empréstimos – puxa o juro para cima.
Em consequência, outros potenciais tomadores de empréstimos são deslocados para fora do mercado de crédito
devido ao aumento dos juros resultante da entrada de um jogador de peso na briga por recursos.
Não é por acaso que a redução da dívida pública no Brasil nos últimos anos, acompanhada de queda dos juros
que o governo paga nos seus empréstimos, tem levado muitos bancos a investir mais na área de crédito ao setor
privado. Os bancos estão constantemente escolhendo para quem emprestar, e a diminuição da demanda do governo
por recursos (e do juro pago nestes empréstimos) torna mais interessante focar atenção no crédito ao setor privado. É
uma mudança no ambiente causando uma alteração de escolha, exatamente como nos vários exemplos do capítulo 1.
Voltemos então às pobres mulheres de Bangladesh: até o professor Muhammad Yunus começar com seus
empréstimos, elas estavam tomando dinheiro a juros de até 10% por semana. Se cerca de 99% delas costuma pagar
suas dívidas, por quê diabos a concorrência entre emprestadores não foi capaz de baixar essa taxa para níveis
civilizados?
A primeira resposta que vem a mente de muitos é simples: pobre não dá lucro e, portanto, não vale a pena
emprestar pra ele. Esta resposta simples está errada. Marcas de cigarros baratas são sempre ofertadas aos pobres e se
tornam campeãs de vendas. A marca de cigarros mais vendida no Brasil, Derby, é também uma das mais baratas e
detém mais de um terço do mercado formal brasileiro. Gêneros alimentícios básicos não faltam nos mercados das
periferias. As Casas Bahia focam nos consumidores de eletrodomésticos com renda mais baixa e seus negócios só
têm se expandido.
No Brasil, pode se conjeturar que a alta demanda do governo por divisas e os altos juros praticados expliquem a
escassez de oferta de crédito para pequenas empresas e pessoas. Contudo, mesmo em lugares onde as taxas básicas
de juros são baixas, o micro crédito não floresce espontaneamente. Não falta oferta de cigarros e comida para os
pobres a preços razoáveis, mas ofertas de empréstimos de 100 dólares a taxas decentes são mais raras e não se viam
há poucas décadas. Sua utilidade e ineditismo mereceram nada menos que um Prêmio Nobel da Paz.
A explicação para esse fato repousa nas particularidades do mercado de crédito. Uma das razões por trás desta
escassez de empréstimos para os mais pobres é a existência de um alto custo de transação nestas operações: para se
emprestar dinheiro, há que se verificar as possibilidades de repagamento futuro e, se necessário, tomar ações
jurídico-legais para efetivar este pagamento. No caso de um empréstimo de milhões de dólares, vale a pena gastar
dias analisando os balanços da empresa e dinheiro para acionar o departamento jurídico, ou advogados externos.
Mas o lucro proveniente de um empréstimo de 100 reais a taxas razoáveis é muito baixo, e provavelmente não paga
o custo de uma breve análise das chances de calote ou das ações necessárias para forçar o devedor a honrar seus
compromissos.
As instituições envolvidas em operações de micro crédito têm se mostrado criativas nas maneiras utilizadas
para garantir baixas taxas de calote. Por exemplo, os empréstimos do Grameen Bank são para pequenos grupos de
pessoas, e se alguém do grupo não repaga, os outros também sofrem: a caloteira gera uma externalidade negativa
que não agrada em nada as outras. Justamente porque o grupo é pequeno e pertencente a um mesmo círculo social,
há um monitoramento mútuo que diminui os incentivos individuais a não pagar. A pressão das colegas constrange as
“potenciais caloteiras”, e em parte por isto quase todas repagam.
Ainda assim, empréstimos para os muito pobres normalmente não rendem o suficiente para o intermediário
financeiro. Contudo, alguns especialistas acreditam que o micro crédito pode estar se tornando mais lucrativo,
ensejando a entrada de mais bancos nesta modalidade – pelo menos para a parcela menos “micro” do micro crédito.
Devido às dificuldades inerentes ao micro crédito, pode ser interessante então que governos incentivem essa
modalidade de empréstimos via regulamentações e leis. De fato, a lei que forçou os bancos a abrir agências em
pequenos vilarejos na Índia logrou reduzir um pouco a pobreza do país – fazendo às vezes do ausente mercado das
almas. Entretanto, é preciso cuidado, pois esse tipo de intervenção frequentemente desemboca nas falhas de
governo.
De modo geral, políticas públicas que incentivam determinados tipos de empréstimos têm custos: elas reduzem
os incentivos para outros empréstimos. No Brasil, por exemplo, os bancos são obrigados por lei a emprestarem
elevada quantidade de recursos para a habitação e para a agricultura. A ideia por trás do chamado crédito dirigido
(que já equivale, em 2015, a mais da metade de todo o crédito concedido no país) é essa: devido a problemas de
assimetria informacional e a dificuldade de recuperar empréstimos feitos a devedores de má qualidade, os bancos
privados, se deixados livres para escolher, não estenderiam recursos a estas duas áreas importantes da economia.
Entretanto, assim como em vários exemplos que vimos ao longo deste livro, os bancos não são entes inertes que
ficam passivos diante de tal obrigatoriedade: as taxas de juros para os outros setores se modificam em vista da lei.
Quando ela direciona parte dos recursos aos setores habitacional e agrícola, reduz-se a quantidade de dinheiro
disponível para os outros setores da economia. Para estes, o capital fica mais escasso e, portanto, mais caro. Assim
como no capítulo 3 os não portadores de carteirinha subsidiavam os estudantes, aqui os demais setores da economia
pagam mais caro nos seus empréstimos por conta da lei que favorece a habitação e a agricultura.
Ao interferir direcionando o crédito desta maneira, a poupança não flui para quem quer pagar mais pelo capital
e, portanto, para quem tem o uso mais produtivo para o dinheiro. Forçar os bancos a concederem crédito para
determinadas áreas é uma intervenção que precisa ser justificada. Quais as falhas de mercado em questão? Há
externalidades importantes em determinado setor, mais importantes que as externalidades provenientes dos
investimentos em outros setores? As falhas de mercado compensam as falhas de governo? Não se pode fugir deste
importante check-list de perguntas.
Falhas de mercado são comumente citadas para justificar a existência de bancos públicos - como o BNDES
brasileiro – que têm por objetivo fornecer recursos a prazos mais longos e para pequenos tomadores. O argumento é
que os problemas de assimetria informacional e a dificuldade de fazer valer contratos, em conjunção com a
instabilidade macroeconômica, podem levar ao total desaparecimento do mercado de empréstimos de longo prazo.
Se a economia sofre de altos e baixos constantemente, é difícil identificar os bons devedores, e se a lei protegendo
os direitos de propriedade não é firme, torna-se muito arriscado conceder empréstimos de longo prazo. A
inexistência de um mercado de crédito demandaria então uma intervenção direta do Estado.
Além disso, empresas pequenas e desconhecidas, por não terem muitos ativos que sirvam como garantias e por
não terem tido tempo de estabelecer reputação de bons pagadores, são mais propensas a enfrentar dificuldades em
levantar crédito, mesmo crédito de curto prazo. De fato, estudos empíricos comprovam que os investimentos feitos
por estas empresas menores e novas dependem fortemente da quantidade de recursos próprios que elas têm em
caixa, o que deixa de ser verdade no caso de empresas maiores e mais antigas. Estas não precisam tanto de recursos
próprios, pois encontram mais facilidade em captar dinheiro nos mercados financeiros.
Entretanto, criar um banco estatal pode não ser a melhor solução para sanar a falha de mercado em questão,
pois como insistimos no capítulo 11, existem também as falhas de governo. Por exemplo, como garantir que os
empréstimos do BNDES não serão ao menos em parte decididos com base em critérios políticos? E se um banco
público, como o BNDES, escolhe mal sua carteira de empréstimos, quem paga a conta é o contribuinte.
Além disso, o problema de assimetria de informação não é lá muito significativo para grandes empresas, que
podem fornecer garantias para seus empréstimos, possuem receitas mais estáveis e têm uma reputação a zelar. Mas,
o grosso dos empréstimos do BNDES, quase 80% do total, vai justamente para estas empresas de grande porte, e
não para as pequenas firmas, estas sim mais acometidas pelas restrições de crédito derivada das imperfeições de
mercado aqui debatidas. Esse padrão dos empréstimos do BNDES pouco contribui para atenuar o problema de
assimetria informacional que afeta os mercados de crédito.
Por fim, o BNDES foi criado para corrigir a ausência de um mercado de crédito de longo prazo, mas o que dizer
da tese que a sua própria existência impede o surgimento de um mercado de crédito privado de longo prazo? Essa é
uma hipótese plausível dado que é literalmente impossível para os bancos privados concorrerem com o BNDES,
pois este empresta recursos a taxas inferiores às de mercado, às custas do contribuinte.
Concluindo, o crédito pode ser um importante instrumento para o desenvolvimento do país. Contudo, negociar
promessas é mais difícil que negociar bananas, e esse mercado é acometido por severas falhas. Arranjos
institucionais sólidos que garantam o cumprimento destas promessas são cruciais para o bom funcionamento do
mercado de crédito. Esse deve ser o ponto de partida para políticas públicas nessa área.
18. Faxineiro ou aviãozinho
Como aprendemos no capítulo sobre comércio, a possibilidade de efetuarmos trocas nos permite
especializarmos em uma determinada atividade. Com a especialização, professores de economia dão aulas e
escrevem livros, o padeiro prepara o pão, alguns industriais produzem lápis, outros fabricam cerveja, agentes de
turismo vendem passagens aéreas e os traficantes de drogas gerenciam o comércio e a distribuição da maconha. O
benefício é que a especialização aumenta a produtividade de todos.
Todos esses profissionais e empresas sofrem a pressão da concorrência e, em vista dela, os que sobrevivem no
mercado são aqueles que melhor se adequam ao seu ambiente de negócios. Esse ambiente varia com a atividade,
com o lugar e com o entorno institucional dentro do qual a empresa atua. Deste conjunto de fatores dependem as
ações das empresas, o modo como elas se organizam, e seus métodos de trabalho. Por exemplo, como mencionamos
no capítulo 1, em tempos de inflação alta, as empresas escolhem contratar mais pessoas nos seus departamentos
financeiros, para tentar driblar a inflação; e, como vimos no capítulo das casas esquisitas, as diferenças nas taxas de
informalidade entre diferentes países do mundo decorrem de escolhas distintas de empresas e trabalhadores feitas
em concordância com o ambiente, definido pelas regulamentações e pela incidência de tributação.
Uma empresa que produz lápis é organizada de maneira muito semelhante a uma companhia produtora de
cervejas. Claro, há diferenças associadas ao fato de os produtos finais serem distintos, mas a feição geral de seu
modus operandi tem muita coisa em comum. Algumas de suas principais atividades são: a produção do lápis (ou da
cerveja), que envolve plantar ou comprar os insumos, adquirir e manter os equipamentos necessários para produzir o
bem; o marketing e a propaganda; as vendas; a distribuição dos bens; o gerenciamento das finanças; a administração
dos recursos humanos; e a defesa de seus interesses legais, que fica a cargo do departamento jurídico.
Assim como o produtor de lápis, o empresário do ramo de drogas ilegais busca gerir bem seu negócio. Mas o
que é diferente, bastante diferente, são suas preocupações e a sua estrutura organizacional e de operações. Não
porque seus objetivos sejam assim tão distintos, afinal de contas ambos visam maximizar o lucro, mas porque seu
entorno econômico-institucional é completamente diferente.
Algumas das particularidades do ambiente de negócios de drogas ilegais são: há poucas maneiras de anunciar o
produto dado que os canais normais de propaganda lhes estão vedados; não é possível criar reputação através de
uma marca, ou anunciar um preço mais barato nos jornais; e também não há um departamento jurídico que possa
resolver os conflitos com concorrentes, clientes ou funcionários em um tribunal público pois o negócio está fora da
lei.
Em vista dessas particularidades, as tarefas fundamentais para o sucesso nesse negócio são bem diferentes do
caso do lápis e da cerveja e envolvem, por exemplo: manobrar para escapar das garras da lei, seja estabelecendo
relações ilegais com as autoridades, seja escondendo suas atividades; defender-se dos ataques de concorrentes - ou
atacá-los -, não travando guerra de preços, mas guerreando com armas de fogo; garantir os direitos de propriedade
sobre a droga e o cumprimento dos acordos com clientes e funcionários, não acionando um advogado para cobrar
suas dívidas ou despedindo os funcionários desonestos, mas mandando matá-los ou ameaçando de morte suas
famílias.
Porque o entorno econômico é completamente distinto, a maneira de operar do fabricante de cervejas não
funcionaria bem no mercado de drogas. Se um traficante entra em atrito com um de seus trabalhadores, um cliente
ou com a concorrência, ele precisa utilizar a força das armas para resolver o conflito porque as leis e o departamento
jurídico não são alternativas disponíveis. O traficante precisa impor a lei por si mesmo, fora do marco legal ditado
pelo Estado de Direito. Se ele deixa um de seus funcionários ou clientes lhe passarem a perna, sua reputação é
abalada e sua posição fica vulnerável. A única maneira de virtualmente não desaparecer do mercado, é usando a
força bruta. Devido às condições específicas de operação nesse mercado, aqueles que sobrevivem e alcançam maior
sucesso no comércio de entorpecentes utilizam o poder das armas e da violência.
Da mesma maneira, utilizar o modus operandi do traficante no mercado de cervejas também seria ineficiente –
tanto que os produtores de cerveja que sobrevivem nesse mercado operam de outra maneira, e não saem matando
gente por aí. Se alguns clientes não pagam, o empresário não manda matar. Ele prefere entrar na justiça para receber
o dinheiro. A empresa assim procede porque o custo de adotar a estratégia do traficante, que envolve o risco de ser
preso e a dor na consciência de matar uma pessoa, são maiores que os custos legais de contratar um advogado e
esperar para receber a dívida.
É justamente porque o ambiente econômico-institucional com que se defronta uma atividade ilegal, como o
tráfico de drogas, é totalmente diferente do que aquele com que se defronta uma empresa legal, que o comércio de
drogas é feito por traficantes, enquanto o comércio de cerveja e lápis é dominado por empresas que utilizam os
meios legais e mais pacíficos para resolver conflitos. O importante é notar que não há nada sobre o tipo do produto
em si que determina essa diferença de meios de trabalhar. Se a produção e o comércio de maconha fossem legais, a
empresa que dominaria esse mercado adotaria estratégias semelhantes aos produtores de cerveja. Da mesma
maneira, o comércio de cigarros existiria mesmo se fosse proibido, mas os produtores e vendedores utilizariam
métodos semelhantes aos dos traficantes. É a dicotomia legal versus ilegal que é a variável-chave aqui, e não o bem
comercializado em si.
Uma implicação direta desse ponto é que a liberação do comércio de entorpecentes terminaria com a profissão
de traficante. A liberação alteraria o ambiente de negócios, e os conhecimentos e habilidades de um líder do tráfico
seriam muito menos relevantes para o sucesso em um mercado legalizado de drogas do que os conhecimentos de um
executivo de uma grande empresa. Com a legalização, o negócio de drogas seria administrado por pessoas como as
que trabalham nas companhias produtoras de pasta de dentes, que usam canetas e gravatas, e não metralhadoras e
capuzes (ainda que algumas pessoas escolhessem não trabalhar nesse ramo por questões ideológicas, do mesmo
modo como alguns preferem não trabalhar na produção e venda de cigarros hoje em dia).
O exemplo da Lei Seca nos Estados Unidos ilustra bem esse ponto. A venda de bebidas alcoólicas foi proibida
nos Estados Unidos entre 1917 a 1933. Nessa época, o comércio de bebidas alcoólicas era dominado por gangsters
como Al Capone. Hoje, as empresas do setor de bebidas alcoólicas se parecem com as de cereais. O produto não
mudou, o que mudou com a legalização foi o ambiente de negócios.
O mercado de drogas – que movimenta entre 300 a 500 bilhões de dólares por ano[21] - é um mercado ilícito,
funcionando, como as empresas de Capone, à margem da lei. Todavia, mudanças na legislação e no ambiente podem
provocar severas alterações no seu funcionamento e na vida dos envolvidos nesse ramo. O arcabouço desenvolvido
neste livro nos auxilia a entender estes impactos. Por exemplo, uma pergunta muito relevante que permeia o debate
público é: quais seriam as consequências econômicas da legalização do comércio de drogas? Já vimos que o negócio
seria gerenciado de maneira diferente e funcionaria de outra forma, mas o que podemos dizer sobre as vantagens e
desvantagens de um processo de liberalização?
Como vimos no capítulo 11, as intervenções estatais – incluindo leis definindo o que é legal e o que não é - têm
custos. Para que a lei proibindo o comércio de entorpecentes seja cumprida (em certa medida) é necessário gastar
uma grande quantidade de recursos. Para termos uma idéia desses custos, estima-se que a guerra às drogas
promovida pelo governo norte-americano tenha consumido cerca de 45 bilhões de dólares em 2005, o que equivale a
0.35% do PIB americano, uma fatia considerável da renda da maior economia do mundo. E há ainda outros custos.
Por exemplo, por conta do combate ao tráfico, milhares de pessoas terminam atrás das grades – o que é um custo
enorme para elas e para seus familiares.
Mas esses são apenas os custos diretos. Os custos indiretos, como as oportunidades que a proibição abre para o
florescimento da corrupção, também são altos. De fato, uma pesquisa com jovens moradores de favela envolvidos
com o narcotráfico constatou que mais da metade deles já havia sido extorquido por policiais.[22] Ao aumentar o
estímulo para a corrupção no meio policial, a proibição gera impacto negativo no combate aos outros crimes.
Com a proibição, o preço da droga é muito mais alto do que no caso onde seu comércio é liberado. Se vender
drogas é ilegal, o comerciante de drogas precisa gastar uma quantidade enorme de recursos para esconder suas
atividades. Como dissemos, ele não pode simplesmente transportar o produto em caminhões pelas estradas, utilizar
os meios legais para garantir os direitos de propriedade sobre o seu produto, e nem estabelecer reputação através de
uma marca conhecida. Além disso, quem trabalha nesse ramo corre o risco de ser preso – ou morto – e, portanto,
para escolher esse caminho é preciso que sua remuneração seja mais elevada que a das alternativas de trabalho mais
convencionais (ou que exista a perspectiva de vir a ganhar muito bem). Por tudo isso, a proibição leva a um enorme
acréscimo nos custos envolvidos na produção e venda de drogas aos consumidores. E como vimos no capítulo 3, um
maior custo de produção leva a um preço mais alto.
Devido ao maior preço e também à grande dificuldade e risco de se comprar drogas, a proibição acarreta em
menor consumo. Novamente, a Lei Seca nos Estados Unidos é um exemplo instrutivo. Estimativas indicam que o
consumo de bebidas alcoólicas caiu pra cerca de um terço do que era assim que a proibição foi implementada, em
1917. Após algum tempo, no entanto, esta queda atenuou-se. Foram-se gradativamente montando esquemas
alternativos de comercialização, a oferta – agora ilegal – recuperou-se, e o consumo passou a dois terços do que era
antes da imposição da lei. Neste episódio, a brutal queda inicial no consumo foi fortemente influenciada pela
dificuldade de comprar bebidas assim que a Lei Seca foi aprovada. Contudo, estudos estatísticos sugerem que,
passado esse período inicial, o maior responsável pela queda no consumo de bebidas foi mesmo o aumento do preço.
A proibição objetiva justamente a queda no consumo do bem proibido. Quais os custos e benefícios da redução
no consumo para os usuários e não usuários de drogas?
No debate caloroso sobre a legalização de entorpecentes, vê-se grande foco nos custos e benefícios que incidem
sobre o usuário de drogas. Mas é preciso atentar para o fato de que as pessoas adultas escolhem o que querem
consumir. A ingestão de drogas acarreta em danos para a saúde e riscos para a vida, mas apesar disso, muitos
escolhem consumi-las. Saltar de bungee-jump e escalar montanhas são atividades que também trazem riscos para a
vida, mas por gerarem uma sensação gostosa aos praticantes, são demandados e ofertados. Em geral, a consideração
dos custos e benefícios pessoais é deixada a cargo dos usuários. Não há lei proibindo escaladas perigosas. Deveria
ser diferente no caso das drogas?
Há de fato uma importante particularidade no que tange as escolhas sobre consumo de drogas. Em primeiro
lugar, muitas drogas viciam afetando severamente a capacidade de escolha dos indivíduos. A escolha do consumidor
é assim menos “bem calculada” do que no caso de outros produtos. Além disso, pode ser difícil para um jovem ou
adolescente resistir à tentação inicial de provar uma droga, assim como para Ulisses, navegador de Homero, era
difícil resistir ao canto das sereias. O problema é que em muitos casos é difícil largar o vício.
Num caso desses, pode fazer sentido que a sociedade queira tirar dos jovens a opção de consumir drogas. Essa é
uma questão importante que deve ser levada em conta na escolha de políticas públicas, mas como não somos
psicólogos nem médicos, nossa discussão sobre o vício para por aqui.
Sob o ponto de vista do economista, mais importante para o desenho das políticas públicas são as
externalidades negativas do consumo de drogas, como por exemplo os custos que a sociedade incorre para tratar dos
drogados nos hospitais públicos. Outras externalidades comumente citadas são: o aumento da agressividade
decorrente do uso de drogas; os estímulos para cometer crimes no afã de sustentar o vício; a perda de capacidades
cognitivas que pode expor outras pessoas a riscos, como no caso de acidentes de automóveis; etc.[23]
A proibição reduz estas externalidades por diminuir o consumo. Contudo, algumas pessoas podem reagir à
proibição substituindo a droga proibida por outra. Por exemplo, estudos estatísticos apontam que quando 12 estados
americanos descriminalizaram a maconha nos anos 70, o consumo de maconha aumentou, mas o consumo de outras
drogas caiu.[24] Quando a idade mínima para comprar álcool nos Estados Unidos subiu nos anos 80, os atingidos pela
lei passaram a beber menos mas a fumar mais maconha (em média).[25] Além disso, se o comércio de drogas é ilegal,
é mais difícil para o consumidor averiguar a qualidade da droga e, portanto, a qualidade média da droga consumida é
pior. Por exemplo, alguns estudos sugerem que o número de mortes por alcoolismo caiu menos que o consumo de
álcool durante a Lei Seca americana, talvez por conta do maior consumo de bebidas adulteradas. Essas reações de
consumidores e produtores atenuam a queda do consumo de drogas advinda da proibição.
Mas a grande preocupação relacionada ao tráfico de drogas é mesmo a violência – uma enorme externalidade
negativa do narcotráfico. Cenas da violência urbana com raízes no comércio ilegal de drogas são abundantes. Um
jornalista torturado e assassinado por traficantes, um guitarrista de uma banda de rock morto a tiros em seu carro,
uma bala perdida na guerra pelo controle do morro que mata a menina de 6 anos, e todos nós voltamos a nossa
atenção para a questão do tráfico.
Muitas pessoas estão dispostas a pagar caro por drogas e, assim, surgem pessoas dispostas a organizar o
comércio de entorpecentes a fim de auferir os lucros. Isso atrai muitos jovens para trabalhar com o tráfico.
Perspectivas de subir na profissão de traficante e o pagamento são suficientes para atrair milhares de jovens para
carreira tão arriscada e, normalmente, curta. Em geral, os que se alistam nestas fileiras são aqueles que têm custo de
oportunidade baixo – ou seja, com alternativas disponíveis ruins. Muitos desses jovens traficantes foram um dia
meninos da favela sem acesso a uma boa educação e sem um bom exemplo em casa. Ainda jovens, esses meninos se
confrontam com a escolha de buscar um emprego que requer pouca qualificação e oferece um pagamento pequeno,
como o de faxineiro ou de empacotador no supermercado, ou entrar no tráfico como vapor ou aviãozinho –
profissões que não constam dos organogramas das empresas do mundo legal mas fazem parte da estrutura
organizacional do narcotráfico. Faxineiro ou aviãozinho, eis a questão.
Infelizmente, diante dessas alternativas, muitos optam por trabalhar no tráfico e, feita esta escolha, aprendem a
fugir da polícia, se esconder, mexer com armas, e trabalhar num mundo de violência. Esse aprendizado é pouco útil
para o trabalho no supermercado, mas é muito importante para quem resolve cometer outros crimes, como roubos e
seqüestros. Eis aí o ponto principal: os conhecimentos adquiridos no mercado ilegal de drogas tornam o indivíduo
apto a realizar outras atividades criminosas. Além disso, para quem já é procurado pela polícia, usar a violência para
outras atividades (como roubar carros ou realizar seqüestro relâmpago) não é lá muito custoso – afinal, que diferença
faz ser condenado a mais 10 anos de prisão se seus crimes já te garantem uma sentença de 100 anos? Em suma, por
conta do aprendizado e da redução dos custos de se utilizar a violência em outras atividades, os envolvidos com o
tráfico têm maior capacidade e menores custos para cometer crimes que os faxineiros. Portanto, a proibição do
comércio de drogas contribui para o aumento da criminalidade.
Claro, a grande maioria das pessoas decide não cometer crimes e não apenas por uma fria avaliação dos custos
e benefícios. O lar onde a criança cresceu e fatores psicológicos marcantes e diversos são fundamentais nessa
decisão. Não colocamos isto em xeque aqui. Nosso ponto é mais modesto: considerações econômicas também são
importantes na decisão.
Se o comércio de drogas fosse legalizado, muita gente perderia o emprego na estrutura do tráfico. Pessoas com
habilidade para gerenciar o tráfico seriam substituídas por pessoas com capacidades diferentes, como bons
conhecimentos de marketing ou entendimento de logística. Para onde iria o antigo aviãozinho e o soldado do
tráfico? Eles teriam que escolher entre um trabalho dentro da lei e outras atividades ilegais (como sequestro
relâmpago).
Muitos anos após aprovada a liberação das drogas, em um mundo sem narcotráfico, não haveria o aprendizado
de fugir da polícia, manejar armas, e encontrar comparsas decorrente do envolvimento e aprendizado ligado ao
comércio de drogas. Não haveria também bandidos traficantes fugindo da polícia para os quais um crime a mais não
faria muita diferença. No longo prazo, esses fatores contribuiriam para reduzir a criminalidade e a violência.
Entretanto, os efeitos imediatos da legalização do comércio de drogas são muito diferentes do que ocorreria se o
comércio nunca tivesse sido proibido. Há hoje muitas pessoas armadas que vivem do tráfico e sabem muito bem
como fugir da polícia, arrumar armas ilegais, etc. Se o comércio de drogas fosse legalizado, essas pessoas não
poderiam contar com a renda do tráfico, e suas alternativas no mundo legal seriam provavelmente muito pouco
atraentes. Esse pessoal armado, organizado, sem possibilidade de conseguir um bom trabalho e sem a renda da
venda de drogas teria muito mais incentivos para praticar assaltos do que tem hoje.
Portanto, no curto prazo, a liberação das drogas levaria a um aumento na violência, mas no longo prazo, o fim
do narcotráfico levaria a uma redução da criminalidade.
Além da violência dos traficantes, há também os crimes cometidos pelos usuários de drogas. Quais são os
efeitos da proibição da venda de drogas sobre esse tipo de crime? A resposta depende da motivação por trás desses
crimes. Se os roubos ocorrem para financiar o consumo, então o altíssimo preço das drogas decorrente da proibição
aumenta a incidência de furtos e assaltos e, portanto, a liberalização reduziria a criminalidade. Por outro lado, se
esses crimes são cometidos porque as pessoas estão sob o efeito de entorpecentes, a proibição restringe esse tipo de
crime ao reduzir o consumo de drogas. A evidência empírica disponível sugere que o primeiro efeito é o mais
relevante.[26]
Em casos extremos, o narcotráfico pode até mesmo afetar a governabilidade de um país, como mostra o
exemplo da Colômbia nos anos 90. O enorme poder dos traficantes colombianos era uma conseqüência da alta
demanda de estrangeiros por drogas e da proibição de sua comercialização. Tal era a força dos cartéis dos traficantes
que eles podiam financiar verdadeiros exércitos para proteger suas operações. A violência, que ultrapassa os limites
da guerra entre traficantes e autoridades (colombianas e americanas), e a desestabilização do Estado que ela enseja
afetavam enormemente a vida do cidadão comum. O fim da proibição significaria, ao menos no longo prazo, o fim
deste tipo de externalidade negativa.
Concluindo, o barato desse capítulo é uma análise careta sobre o mercado de drogas. O debate sobre a liberação
do comércio de entorpecentes ignora a maior parte dos aspectos discutidos aqui. Coisa de maluco. Traficantes fazem
escolhas – como qualquer comerciante. Faxineiros e aviõezinhos escolheram estas profissões em parte por razões
econômicas. O funcionamento do mercado de drogas obedece às leis da economia assim como o mercado de lápis,
ainda que não obedeça as leis vigentes no arcabouço jurídico do país. Um dos objetivos da análise deste capítulo é
mostrar que os princípios estudados neste livro podem e devem ser aplicados para entendermos fenômenos não
estritamente econômicos.
19. Pedreiros e políticos
Um dos autores desse livro passou recentemente pela experiência de reformar seu apartamento. Para construir
um lavabo e uma pequena biblioteca, contratou-se um pedreiro da região. A maioria das pessoas contrata pedreiros
para tocar a obra da casa porque, como vimos no capítulo 16, não é produtivo se envolver em número
demasiadamente grande de atividades. Pelo mesmo motivo que comercializamos com os outros, delegamos tarefas
para as outras pessoas.
Um pouco de reflexão revela que delegamos um número imenso de tarefas a representantes (os economistas
utilizam o termo “agentes” para designar estes representantes). As pessoas delegam parte da educação de seus filhos
às escolas; os acionistas de uma empresa delegam o gerenciamento do dia-a-dia da empresa a gerentes; os
proprietários de imóveis querendo alugar seu apartamento delegam esta tarefa a um corretor, etc.
A delegação é, em princípio, uma solução bem interessante porque podemos deixar certas tarefas a cargo de
quem tem vantagens comparativas para realizá-las e, ao mesmo tempo, dedicar nosso tempo àquilo que fazemos
melhor ou consideramos mais importante. Um bom professor possui mais didática para ensinar uma criança; um
corretor de imóveis é melhor na tarefa de encontrar um inquilino para nosso apartamento; e um pedreiro experiente
tem mais habilidade para derrubar e levantar paredes do que a maioria de nós.
O caso de um proprietário de uma pequena empresa que vai crescendo e expandindo suas operações ao longo
do tempo ilustra bem os benefícios inerentes à delegação. A complexidade operacional que vem com a escala
crescente do negócio demanda profissionais com conhecimentos específicos (que o fundador geralmente não possui)
em várias áreas. Ao mesmo tempo, a contratação desses profissionais permite que o dono foque sua atenção onde
sua ação é mais importante, ou seja, onde ele tem vantagens comparativas. Por exemplo, Bill Gates escolhe delegar
uma série de tarefas a seus gerentes, diretores e programadores apesar de ser, em muitos casos, até melhor que seus
funcionários no exercício daquela função, para poder se concentrar nos assuntos mais importantes de sua empresa.
Assim como Pelé não jogava como goleiro, Bill Gates não programa o computador.
Entretanto, a delegação também tem seus problemas. O principal deles é que os interesses do agente que se
incumbe da tarefa delegada podem diferir grandemente dos interesses de quem contrata seus serviços. E isto é um
problema porque quando existem estas diferenças, a liberdade que é conferida ao agente para realizar suas funções
pode acabar sendo empregada em beneficio próprio e em detrimento do contratante.
O pedreiro do autor desse livro, por exemplo, se embrenhou em outras obras ao mesmo tempo em que
trabalhava na sua reforma. Seguindo a lógica do parágrafo precedente, havia uma clara discrepância de interesses: o
melhor para o pedreiro era aceitar outras ofertas de obras simultaneamente para ganhar mais dinheiro, ao passo que
o melhor para o autor era que ele se dedicasse somente à sua reforma, para que esta terminasse mais rápido. Esta
divergência vira um problema concreto porque é difícil monitorar o pedreiro e, além disto, é complicado encontrar
outro que retome seu trabalho se decidimos despedi-lo. Assim, uma vez que ele já começou a quebrar a parede da
casa, o melhor é continuar com ele mesmo – e é justamente isso que confere ao pedreiro contratado um alto poder de
barganha.
Acompanhar de perto o andamento dos trabalhos faz com que ele escolha se dedicar mais à reforma, por
exemplo, porque ele deseja passar uma boa imagem para que o indiquemos a vizinhos e amigos. O único
inconveniente desta solução é que acompanhar de perto a obra consome tempo e esforço de quem a contrata. Uma
outra tática que pode ajudar a alinhar os incentivos do pedreiro com os do contratante é não desembolsar muito no
começo da obra, para incentivá-lo a se dedicar a terminá-la no prazo.
Problema similar ao de quem contrata um pedreiro aparece também em outras instâncias onde há delegação.
Por exemplo, o objetivo primordial dos acionistas de uma empresa – seus verdadeiros donos – é que ela dê o
máximo lucro possível. Contudo, esta não é necessariamente a maior preocupação do presidente da empresa. Ele,
como todos nós, escolhe em geral o que é melhor para si mesmo, e isto pode diferir bastante do que é o melhor para
o grupo de acionistas. Por exemplo, adquirir uma outra empresa pode lhe colocar na capa dos principais jornais e lhe
deixar ainda mais poderoso, por ter sob seu controle uma empresa de grande porte após a fusão. Entretanto, este tipo
de operação nem sempre é lucrativa para empresa e, portanto, nem sempre vai ao encontro dos interesses dos
acionistas.
A dimensão desta incongruência de objetivos deve ser levada em conta no momento de decidir o quanto delegar
ao agente (neste caso, o presidente da empresa). Quanto menor a incongruência e mais fácil o monitoramento, maior
o grau de delegação.
Visando alinhar os incentivos do presidente da empresa com os seus, os acionistas podem despedi-lo caso ele
não aja para maximizar os lucros da empresa e recompensá-lo no caso contrário. Mas na prática, implementar essas
recompensas e punições é bem mais difícil. O problema é que não é fácil saber se os atos do presidente estão ou não
em conformidade com os objetivos da empresa. Dado que ele entende mais do dia-a-dia dos negócios que os
acionistas, é difícil julgar peremptoriamente se a aquisição da outra empresa está ou não em desacordo com o
objetivo de maximização de lucro. Será que a tal fusão vai aumentar os lucros no futuro?
Mesmo deixando esta questão da incerteza de lado, há outro obstáculo no caminho: é difícil criar a mobilização
necessária para sacar o presidente da empresa quando ele não age em plena concordância com os interesses dos
acionistas, principalmente se o controle acionário da empresa for muito pulverizado. Investigar seus atos, estabelecer
se elas estão de acordo com os objetivos da empresa e empreender um esforço para expulsá-lo do cargo custa tempo
e dinheiro do acionista. Se a empresa tem um só acionista, isto não é um problema, pois os benefícios do esforço de
monitoramento iriam todos para esse único dono: se as ações da empresa fossem todas suas, ele ganharia bastante
dinheiro com a melhora na empresa decorrente de seu monitoramento. Mas quando há muitos acionistas, os
benefícios são repartidos, e o acionista que usa seu tempo acompanhando os trabalhos do presidente leva apenas
uma parte dos ganhos gerados pelo seu esforço.
Quando há muitos acionistas, cada um tem incentivos para esperar que outro realize a tarefa para pegar carona
no esforço de monitoramento de seu colega. Como diz o ditado popular, quando o problema é de todos, ele não é de
ninguém. Monitorar o presidente é uma espécie de bem público e, como vimos anteriormente, todo bem público é
provido em quantidade abaixo da ideal (se não há intervenção das leis). Aqui, o resultado é que as ações do
presidente da empresa são apenas tenuamente monitoradas.
Um outro “agente” conhecido de muitos é o corretor de imóveis. É ele o responsável por vender ou alugar
apartamentos dos outros, mas infelizmente para o dono, há sempre um conflito de interesse entre ambos. Para o
corretor, esperar para achar um comprador que esteja interessado em pagar mais pelo imóvel muitas vezes não é um
bom negócio, ainda que isto seja o melhor para o dono. Isto fica claro com um simples exemplo numérico.
Suponhamos que o corretor leva 1% do valor de venda em forma de comissão pessoal.[27] Se este corretor vende um
apartamento por R$ 100.000, ele ganha R$ 1.000, e se consegue vender o apartamento por R$ 110.000, ele embolsa
R$ 1.100. Com uma oferta de R$ 100.000 nas mãos, ele ponderará que aceitá-la lhe renderá R$ 1.000, enquanto que
rejeitá-la e esperar por uma oferta de R$ 110.000 pode acabar lhe rendendo R$ 1.100, mas pode também deixá-lo
sem nada se outro corretor vender o imóvel antes. Em resumo, rejeitar a oferta lhe dá mais trabalho, abre a
possibilidade de ganhar R$100 a mais, mas também a de ganhar R$ 1.000 a menos. Por outro lado, a história para o
dono é outra. Com a espera ele recebe a bagatela de R$ 10.000 a mais (menos a corretagem), seja o imóvel vendido
por este corretor, ou por outro. Os interesses de ambos são claramente diferentes: enquanto para o corretor interessa
fechar o negócio o mais rapidamente, para o dono tal açodamento é prejudicial.
Seguindo a mesma lógica dos exemplos anteriores, os políticos são os agentes dos cidadãos, são as pessoas a
quem atribuímos a responsabilidade de tomar importantes decisões em nosso nome, entre elas as de formular leis e
de onde gastar o dinheiro que pagamos sob a forma de impostos. Mas, como no caso do pedreiro, do presidente da
empresa, e do corretor, o que é melhor para os eleitores nem sempre coincide com o que é individualmente melhor
para o político. Muitos, por exemplo, se empenham em desviar dinheiro público para o próprio bolso, o que
claramente não está de acordo com os anseios da sociedade. De novo, observamos a tal divergência entre o que é
melhor para o agente e o que é melhor para quem o contrata.
Assim, em uma dimensão muito importante, as dificuldades inerentes à reforma do banheiro da sua casa em
muito se assemelham aos problemas que atravancam o bom funcionamento do Congresso Nacional, ou da
Democracia de um modo geral. A análise econômica que se emprega para entender o problema do mau
comportamento do pedreiro é muito similar a que se utiliza para entender o mau comportamento do político. O tipo
de solução proposta será, consequentemente, também parecido: implementar mecanismos que façam com que os
incentivos dos políticos se alinhem com os dos eleitores.
De fato, as eleições e as instituições democráticas servem justamente o propósito de alinhar os incentivos dos
políticos com os dos cidadãos. Forçar o político a competir nas eleições é uma maneira de incentivar seu bom
comportamento, é um meio de motivar o eleito a agir em benefício e de acordo com os interesses do eleitor.
Em arranjos ditatoriais, onde a população não tem voz, não há nenhuma margem de contestação das ações dos
agentes-ditadores, e o político fica livre para fazer quase tudo que quiser. Há de fato inúmeros exemplos de tragédias
geradas por governos ditatoriais. Dezenas de milhões de pessoas foram mortas pelas ditaduras da China e da União
Soviética no século XX. Estima-se que o governo ditatorial de Pol Pot, no Cambodia, tenha matado quase dois
milhões de pessoas, ou cerca de um quarto da população do país – pessoas que seriam “inimigas do povo”. Um
ditador com plenos poderes não precisa respeitar nem a vida nem a dignidade de qualquer pessoa, como relata Mario
Vargas Llosa, em seu livro “A Festa do Bode”, que conta um pouco da história da República Dominicana governada
por Rafael Trujillo.
A democracia impede estas tragédias ao restringir o poder dos governantes e ao dar incentivos para que estes
ajam de acordo com os interesses da população. Contudo, similarmente aos outros casos de delegação de
responsabilidades a agentes, a existência de eleições não é solução perfeita para alinhar os incentivos de
representante e representado. Se fosse, não haveria corrupção em governos democráticos, onde o povo elege seus
representantes.
A democracia funciona melhor quando os nossos agentes políticos têm incentivos para agir como nós queremos
que eles ajam. Em vista disto, é importante tentar entender, dentro do arcabouço geral do Estado Democrático de
Direito, se existem maneiras mais eficazes de alinhar os interesses de nossos delegados políticos com os nossos.
Quando estamos de olho na reforma da nossa casa, nosso pedreiro tem interesse em prestar um bom trabalho,
pois sabe que isto pode gerar uma boa recomendação no futuro. Da mesma maneira, os deputados vão escolher
trabalhar como queremos se suas chances de serem eleitos ou reeleitos dependerem fortemente das suas ações.
Logo, para que eles trabalhem defendendo nossos interesses, é preciso que as urnas recompensem aqueles que assim
o fizerem, e penalizem os que não agirem em prol do nosso bem estar. Para isso, a população precisa acompanhar a
“obra” do político.
O problema é que monitorar o político, se esforçar para entender se ele está mesmo agindo na defesa do nosso
interesse, investigar se ele está ou não desviando recursos, etc, é complicado por dois motivos: primeiro, porque
assim como o acionista frequentemente não sabe qual a melhor decisão a ser tomada pelo presidente da empresa, em
muitos casos é difícil saber como o político deveria estar agindo; segundo, pelo problema do bem público já
mencionado anteriormente: os benefícios de monitorar o político vão para todos os eleitores, e da mesma forma que
um acionista não tem incentivos para se esforçar tanto no monitoramento dos diretores da empresa, um único eleitor
sabe que seu voto é um entre milhões, o que faz com que seus incentivos para acompanhar as ações do político
sejam fracos.
Portanto, fazer a democracia funcionar melhor passa por implementar mecanismos que tornem este
monitoramento menos custoso e mais fácil para a sociedade. Assim como distanciar nossa atenção dos pedreiros
atrasa a reforma, tirar nossos olhos das questões importantes para o país permite aos deputados agir da maneira que
eles preferirem. Justamente por isso, é fundamental a existência da imprensa livre, que pode denunciar escândalos,
mostrar padrões de votação aos eleitores, enfim, aumentar a transparência da ação política, tornando-a mais
acessível a um número amplo de leitores e espectadores. Com a imprensa livre, informar-se é menos custoso.
Uma conclusão imediata desse ponto é que permitir aos deputados ou senadores que votem secretamente sobre
quaisquer temas é o mesmo que permitir ao corretor de imóveis vender a nossa casa pelo preço que ele escolher ou
dar ao nosso pedreiro o poder de esconder de nós informações sobre a reforma da nossa própria casa. Assim como
os acionistas têm acesso às ações dos diretores de suas empresas, o eleitor deve poder saber como cada parlamentar
votou em cada questão que lhe interessa. Votações secretas na Câmara ou no Senado são exatamente o oposto do
que recomenda a nossa análise econômica sobre as escolhas dos políticos.
De um modo geral, em nosso país a vigilância a que se encontram submetidos nossos políticos é muito frágil.
Para se ter uma idéia, em muitos casos o eleitor nem sequer se recorda em quem votou.
De fato, todo ano de eleição, os institutos de pesquisa nos revelam que os eleitores, em sua maioria, não se
recordam em quem votaram para deputado na eleição passada, não acompanham o desempenho de seu deputado, e
não sabem em quem votarão. Segundo um estudo feito em fins de 2002 logo após as eleições, cerca de 70% dos
eleitores entrevistados não se lembravam em quem haviam votado para deputado federal nas eleições de 1998, e
30% não se recordavam do deputado escolhido na eleição recém terminada.[28] Ou seja, antes mesmo de assumir o
cargo, o deputado já havia sido esquecido pelo seu eleitor! Como monitorar alguém e avaliar o desempenho de
alguém que você não lembra nem mesmo o nome?
A essas revelações, seguem apelos para que o eleitor se informe melhor, se lembre em quem votou e
acompanhe o desempenho de seu deputado no Congresso. Apelos estes que se mostrarão inócuos, como revelará a
pesquisa na véspera da eleição seguinte. Mas se o eleitor tem tanta amnésia, cabe-nos perguntar se o tipo de sistema
eleitoral vigente contribui para tal. Há arranjos melhores que o atual? Vejamos.
Os dois mais conhecidos sistemas eleitorais são o sistema proporcional, comumente encontrado na América
Latina e em alguns países da Europa Continental, e o distrital, bastante usual nos países anglo-saxões.
No sistema proporcional, a proporção de vagas de cada partido equivale (aproximadamente) à proporção de
votos recebidos pelos candidatos do partido. Por exemplo, se os candidatos do partido dos economistas (PE)
recebem nas eleições 20% dos votos, digamos do estado de São Paulo, e São Paulo tem direito a 70 cadeiras na
Câmara dos Deputados, o PE elege 14 representantes. Quais 14 representantes? A escolha de quem vai efetivamente
ocupar a vaga depende de um outro aspecto do sistema de votação dentro do modelo proporcional. No esquema
chamado de lista aberta, que é o vigente no Brasil desde 1946, as pessoas votam nos candidatos diretamente, e os
mais votados é que vão ocupar as cadeiras. Já na lista fechada, o eleitor vota no partido, e é o partido que dita a
ordenação dos candidatos que vão preencher as vagas, não o eleitor.
Vejamos agora a lógica de funcionamento do sistema distrital, também conhecido como majoritário. Neste
sistema, o país ou o estado é dividido em distritos eleitorais menores que os distritos do sistema proporcional e cada
distrito elege um ou poucos candidatos. Quem ganha a vaga no Congresso para representar um distrito específico é
quem recebe a maioria dos votos e ponto final. Por exemplo, no esquema atual, de votação proporcional, o estado
de São Paulo elege 70 deputados para a Câmara Federal. Se o sistema fosse distrital, 70 seriam eleitos
separadamente via disputa em cada um dos 70 distritos eleitorais de São Paulo. O político não seria mais eleito pelo
estado de São Paulo, mas pelo seu distrito – por exemplo, distrito da zona Oeste da cidade de São Paulo. Não há
listas ou coisa parecida no modelo distrital: as pessoas votam diretamente no candidato apresentado pelo partido
para concorrer naquele distrito em particular.
Quais as vantagens e desvantagens de cada um dos sistemas?
A grande vantagem do sistema proporcional é que a composição do Congresso retrata fielmente a votação dos
eleitores: se um partido tem 20% dos votos, este partido terá, aproximadamente, 20% das cadeiras no parlamento.
Assim, o sistema proporcional permite que as mais diversas visões de mundo que coexistem na sociedade sejam
representadas no Congresso. Se o partido dos macroeconomistas (PME) recebe meros 1% dos votos na sociedade e
há 100 vagas para a Câmara, os eleitores do partido terão 1 deputado para representá-los.
Já no sistema distrital, apenas um candidato de cada distrito é eleito (o mais votado). Por exemplo, se em um
dado distrito, o candidato do Partido dos Economistas recebe 30% dos votos, o dos Arquitetos 28%, o dos
Matemáticos 22% e o dos Psicólogos 20%, o vencedor deste distrito é o político do partido dos economistas. Note,
entretanto, que 70% dos votos não foram para o candidato vencedor. Estes 70% de eleitores terminam não
representados na disputa eleitoral quando o sistema é distrital. Além disso, se o partido dos psicólogos tem 20% e o
partido dos arquitetos tem 28% de apoio em todos os distritos, o partido dos psicólogos não receberá nenhuma vaga
no Congresso. Assim, o sistema distrital não contempla os anseios das minorias como o proporcional.
Em suma, o sistema proporcional preza pela representação. Justamente por isto, sua adoção é freqüentemente
recomendada para países onde questões de minorias étnico-raciais são importantes, como em Israel, por exemplo.
No Brasil, esse tipo de questão é, no nosso entender, menos importante.
Existem maneiras de reduzir este problema de distorção de representatividade no sistema distrital. Na França,
por exemplo, os deputados são eleitos em dois turnos. No caso do nosso exemplo, o candidato do partido dos
economistas e o dos arquitetos iriam para disputa de segundo turno, e o vencedor seria o que recebesse mais de 50%
dos votos. Se os eleitores dos partidos que não chegaram ao segundo turno se alinhassem mais com as idéias do
candidato do partido dos arquitetos, é ele quem terminaria eleito. Já no Chile, a solução é outra. Lá o distrito elege
não um, mas os dois mais votados. Isto minimiza a questão da falta de representatividade, mas ainda assim, no
sistema distrital, a composição do congresso não reflete com exatidão a votação dos eleitores.[29]
Se no sistema proporcional o principal benefício é a representatividade, sua grande desvantagem é afastar o
eleitor do eleito.
Em São Paulo, há por volta de mil candidatos a deputado federal a cada quatro anos. E mais tantos para
deputado estadual. Conhecer uma parte substancial desses é virtualmente impossível. Mas nosso voto não vai apenas
para o candidato que escolhemos, vai também para o partido. Fechadas as urnas, todos os votos dados aos
candidatos do Partido dos Alquimistas são somados e servem para determinar o número de vagas desta agremiação.
Se os votos do Partido dos Alquimistas lhe dão direito a eleger 4 deputados, os 4 mais votados do partido se elegem.
Então, de fato, não sabemos quem se beneficiará com o nosso voto. Em alguns casos, alguns candidatos com
votação irrisória acabam sendo eleitos. Em 2002, por exemplo, o candidato Enéas recebeu mais de um milhão de
votos no Estado de São Paulo, o que deu ao seu partido várias vagas na câmara de deputados. Candidatos do Prona,
com menos de 1.000 votos, totalmente desconhecidos daqueles que os elegeram através do voto no Enéas, ganharam
assento no Congresso.
Mas mais difícil que escolher o candidato, é monitorá-lo. É praticamente impossível acompanhar todos os
deputados do estado (em São Paulo, são 70) em todas as votações importantes. Além disso, não importa se 98% dos
eleitores não gostam de um candidato: os deputados eleitos recebem, tipicamente, menos de 1% dos votos. O fato da
grande maioria da população escolher não votar em um certo candidato não o impede de ser eleito no sistema
proporcional. Em alguns estados, os mais votados são eleitos com meros 2% ou 5% dos votos.
Faz sentido investir nosso tempo para saber como tem votado boa parte dos deputados em inúmeras questões
para depois compará-los com os outros mil candidatos... e escolher um? Não muito, e essa distância entre o eleitor e
o deputado nos ajuda a entender porque as pessoas não se lembram em quem votaram e não acompanham o
desempenho dos seus deputados. Nos ajuda também a entender porque com frequência vários destes não agem em
nosso interesse.
A grande vantagem do sistema distrital em relação ao proporcional é justamente aproximar o cidadão de seus
agentes políticos. Em um sistema distrital, há um pequeno número de candidatos por partido ou coligação, muitas
vezes apenas um candidato (como ocorre hoje nas eleições para governador). Portanto, é simples conhecer todos
eles. Assim, o eleitor fica mais bem informado a respeito de uma quantidade muito menor de candidatos neste
sistema eleitoral. Além disso, para ser eleito, é necessário obter grande parte dos votos em seu distrito e,
conseqüentemente, um candidato rejeitado pela maioria dos eleitores nunca termina eleito.
Depois de eleito, temos que acompanhar apenas o trabalho dos deputados do nosso distrito (no sistema distrital
simples, apenas um deputado) e não do estado inteiro. Como os eleitores e os candidatos concorrentes na próxima
eleição estarão seguindo os atos destes congressistas, eles terão muito mais incentivos para agradar o cidadão. Esta
aproximação aumenta a fiscalização e conseqüentemente os incentivos do eleito a agir em concordância com as
vontades dos eleitores – assim como o nosso pedreiro tem mais incentivos para nos prestar um bom serviço se nós
estamos acompanhando o andamento da reforma.
Alguns estudos empíricos indicam que incentivos ao bom comportamento são menores quando a eleição é feita
pelo sistema proporcional com listas partidárias fechadas. Estimativas usando métodos estatísticos apropriados
mostram que caminhar de um sistema onde todos os representantes políticos são eleitos via sistema de listas para um
no qual todos são eleitos via voto direto reduz a corrupção em aproximadamente 20%.[30]
Além das diferenças na representatividade e na proximidade entre político e candidato, os dois sistemas
eleitorais aqui discutidos têm outras implicações econômicas.
O sistema eleitoral do tipo proporcional dá voz ao que os economistas e cientistas políticos chamam de
interesses dispersos, que são grupos representativos espalhados pelos distritos, mas sem concentração geográfica
relevante. Por exemplo, os aposentados geralmente não constituem quase nunca um grupo majoritário em um certo
distrito, eles raramente estão geograficamente concentrados, mas, apesar disto, eles são numerosos como parcela da
população. Se contabilizam, por exemplo, 10% da população de todos os distritos, eles dificilmente angariam votos
suficientes para eleger um representante em eleições do tipo distrital, onde é preciso ser o mais votado para ganhar.
Mas no voto proporcional, um partido representando os aposentados teria chance de abocanhar 10% das cadeiras.
Não é à toa que os gastos com previdência social são em média mais elevados nos países que adotam o sistema
proporcional: os políticos reagem a incentivos, e eles sabem que defender a bandeira de grupos dispersos
regionalmente, mas numerosos, é um bom negócio no caso do sistema proporcional[31].
Como o sistema proporcional dá voz a todos, o número de partidos nos países que adotam esta modalidade de
votação é geralmente mais elevado do que nos que adotam o voto distrital. Assim, o sistema proporcional tende a
dar origem a governos de coalizão, onde vários partidos dão sustentação ao governo. E governos de coalizão muitas
vezes dificultam a governabilidade, pois cada partido quer ver suas idéias implementadas e é mais difícil se chegar a
acordos. Por exemplo, em uma situação onde se faz necessário cortar gastos, haverá grande discordância onde
economizar no seio da base de sustentação do governo, e não é por outro motivo que os déficits públicos são, em
média, mais altos nos países com sistemas proporcionais (que com frequência dão origem a governos de coalizão).
A natureza do sistema de representação é apenas um exemplo de instituição política. Há outras, e elas são
importantes porque influenciam os incentivos de nossos agentes políticos. Se queremos que eles ajam de acordo com
nossos interesses, devemos criar instituições que influenciam suas escolhas nessa direção. Por exemplo, se é fácil
para nós sabermos para onde são destinados os bilhões e bilhões de reais arrecadados pelo Estado, é mais difícil para
os políticos utilizar esse dinheiro em benefício próprio. Portanto, ampliar o acesso às informações sobre os gastos
públicos beneficia os cidadãos, e na era da internet, isto é relativamente fácil de ser implementado.
Diziam nossos avós que o porco engorda aos olhos do dono. Instituições políticas que aproximam os atos dos
políticos da nossa atenção contribuem para que eles tenham interesse em nos agradar – assim como acompanhar a
reforma da casa faz com que a obra ande melhor. Pedreiros e políticos não são muito diferentes sob o ponto de vista
da análise econômica. Uma maneira de disciplinar nossos representantes políticos é adotar o sistema de voto
distrital.
20. As leis da economágica
Leis sobre a gratuidade do estacionamento em shopping centers foram consideradas nas Câmaras e Assembléias
legislativas de todo o Brasil na década passada. Recursos e liminares foram examinados nos tribunais pelo país. Um
dia era a Assembléia Legislativa de São Paulo que aprovava a lei, no outro era um juiz de Goiânia que a considera
inválida, e o caso ia parar nos Supremos Tribunais de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.
A lei sobre a gratuidade do estacionamento é uma dentre as várias leis da economágica, leis estas que exercem
importantes impactos negativos na vida das pessoas. Frequentemente, as soluções economágicas não advém de má
intenção, ou da vontade explícita de ludibriar os outros em benefício próprio, mas simplesmente da falta de
compreensão do funcionamento da economia. Seja por ignorância ou por má fé, leis como esta são propostas e
muitas vezes aprovada.
Estacionamentos não são gratuitos. Mantê-los demanda recursos e, mais importante, a utilização do terreno tem
um custo de oportunidade elevado, pois este poderia estar empregado para outro fim, como para a construção de um
prédio residencial, por exemplo. Se os clientes não pagam para estacionar e os lojistas do shopping center têm que
arcar com o estacionamento, seus custos totais aumentam. E, como vimos no capítulo 3, um aumento nos custos leva
a um aumento nos preços dos produtos. Como deixa claro o exemplo numérico daquele capítulo, a relação entre
preço de venda e custo de produção não se deve a questões éticas e morais (porque é “correto” repassar este custo ao
consumidor): se o custo é maior, é maior o preço que maximiza o lucro da empresa.
Não é difícil perceber que quando a atividade de vender um produto é mais cara, este custará mais. Por
exemplo, a Lei Seca norte-americana tornou a venda de bebidas alcoólicas mais custosa porque era preciso se
esconder da lei, e o preço do uísque aumentou. Muitas vezes, esses aumentos nos preços não ocorrem no momento
em que a lei é aprovada. De fato, normalmente os estabelecimentos comerciais não tomam decisões sobre preços
diariamente, o reajuste pode demorar um pouco - ou pode já ter sido incorporado aos preços se a lei era esperada
pelo produtor. Em muitas ocasiões as mudanças nos preços se dão de maneiras mais sutis. Por exemplo, ao ter que
pagar o estacionamento dos clientes, uma butique que estivesse prestes a colocar sua coleção antiga em promoção –
25% mais barato que o preço anterior – poderia decidir baixar o preço em apenas 20%. Essa mudança na atitude da
empresa não será percebida pelos clientes. Mas, de qualquer maneira, as mudanças nos custos serão sempre levadas
em conta nas decisões sobre preços das empresas.
Alguns arautos da economágica argumentam que cobrar pelo estacionamento deve ser ilegal uma vez que o
custo do estacionamento já está incluído no preço do produto. De fato, se a loja tem que arcar com os R$ 5 do custo
do estacionamento quando vende uma calça ao consumidor, este custo estará mesmo incluído no preço do bem. Mas
se a loja não tem que pagar esse custo, é mais lucrativo para a loja cobrar menos. Então, a calça custará mais se a
conta do estacionamento tiver que ser paga pela empresa, e menos se for paga pelo cliente.
Outros mestres da economágica defendem a gratuidade do estacionamento com o argumento de que esta
beneficiaria os lojistas, pois o estacionamento gratuito atrairia mais gente para os shoppings, aumentando assim as
vendas das lojas. Expliquem-nos então: por que diabos os legisladores, advogados e juízes sabem disso e os lojistas,
os mais interessados no seu próprio lucro e que melhor conhecem seu próprio negócio, não sabem? Se os donos das
lojas assim pensassem, eles certamente tornariam gratuito o estacionamento, sem que nenhuma lei os forçasse. Se
não o fazem, é porque muitos deles não pensam dessa forma. O erro aqui é esquecer que os lojistas dos shopping
centers, assim como os pobres de Bangladesh, conhecem suas opções melhor que qualquer outra pessoa.
Então, se o lojista tem que arcar com um custo a mais (o do estacionamento), esse é embutido no preço do
produto. Aparentemente nada muda: estacionamento pago, preço menor; estacionamento grátis, preço do produto
mais elevado. A lei parece inócua. A economágica não funciona, mas também não atrapalha. Ou atrapalha?
As leis da economágica atrapalham sim. Seus efeitos negativos podem ser divididos em duas classes. A
primeira abrange as distorções na economia causadas pela lei. A segunda diz respeito aos custos e falhas de governo
associados às leis.
Comecemos com as distorções. É plausível supor que por questões estratégicas empresas que possuam lojas
tanto em shopping centers como em outras localidades queiram cobrar o mesmo preço para um dado bem em todos
os seus estabelecimentos. Por quê? Porque cobrar preços diferentes em lojas diferentes pode desagradar os clientes,
por exemplo.[32] à primeira vista, a política de cobrar preços iguais poderia passar a impressão de que a lei não
causaria problemas. Mas é justamente a interação desta política com a lei do estacionamento gratuito que gera uma
distorção econômica. O problema é que, por conta da política de preço único, o preço do produto sobe para todos,
inclusive para quem faz compra na loja fora do shopping center e, portanto, não utiliza o estacionamento.
Da mesma maneira, o consumidor que decide caminhar até o shopping pagará por suas compras o mesmo que
aquele que ocupa o espaço na garagem. Então, parte da conta do estacionamento é paga por quem vai a pé. A lei
cria, portanto, mais incentivos pra fazer compras no shopping, e de carro.
Em resumo, ganha com a lei quem vai de carro ao shopping center. Perde quem vai a pé ou compra na loja da
rua (no caso da cadeia de lojas que quer o mesmo preço em todos os pontos de venda). Mas o mais importante é que,
no geral, a economia como um todo sai perdendo. Por quê?
A economia como um todo sai perdendo pelo mesmo motivo que no capítulo 8 o subsídio para os pecuaristas
prejudicava a sociedade. Como vimos, o sistema de preços é o responsável para comunicar às pessoas e empresas o
que produzir e consumir. Ao impedir que o preço avise os consumidores que estacionar o carro tem um custo, a lei
leva as pessoas a fazerem suas escolhas como se esse custo não existisse. Portanto, esse recurso escasso –
estacionamento – é utilizado mais do que a sociedade escolheria utilizar se tivéssemos que pagar pelo seu custo.
O que a lei faz é criar uma distorção: muitos carros indo para os shoppings centers. No capítulo 9, vimos que
poluir gera um custo social e que, deixada por si mesma, a empresa tenderá a lançar mais efluentes nos rios do que
lançaria se tivesse que arcar com todos os custos desta ação. Por conta disso, sem a intervenção do Estado, há mais
poluição do que a sociedade como um todo escolheria. As leis contra a poluição têm o objetivo de corrigir essa
distorção, fazendo com as empresas levem em conta as externalidades negativas em suas decisões. Já as leis da
economágica fazem justamente o contrário: onde não há motivo para intervir, elas chegam para atrapalhar a
alocação eficiente de recursos na economia.
Em função da lei, novos shopping centers podem acabar sendo construídos sem estacionamento – o
empreendedor responsável pode decidir construir um estacionamento pago ao lado do shopping, administrado por
uma outra empresa, do mesmo grupo. Nesse caso, depois de fazer suas compras há um pequeno trecho pra percorrer
das lojas ao carro – você trouxe o guarda-chuva? Assim como os moradores das casas esquisitas pioravam suas
casas para escapar dos impostos, o empreendedor que constrói o shopping center pode escolher piorar um pouco seu
estabelecimento se essa distorção lhe for menos danosa que os efeitos da lei.
A segunda classe de problemas causados pelas leis da economágica vêm dos custos de produzir e implementar
estas lei e dos custos associadas às falhas de governo.
O tempo dos deputados e vereadores que analisaram e votaram a lei sobre a gratuidade do estacionamento dos
shoppings custa caro, pois eles poderiam ter usado esse mesmo tempo para apreciar e votar matérias mais úteis para
a sociedade. Da mesma maneira, os juízes que julgaram os diversos casos e liminares têm vários outros processos
esperando pelo seu parecer. Assim como um carro a mais nas ruas deixa o trânsito mais engarrafado, a proposta de
lei do estacionamento gratuito congestiona ainda mais o nosso já moroso sistema judiciário. Ações importantes
esperam anos e anos para ser julgadas, em parte devido ao grande números de leis da economágica que geram
externalidades negativas para o sistema de justiça.
O debate sobre a lei também consome tempo precioso do cidadão, que poderia estar prestando atenção a
questões mais importantes para o país ou curtindo o sábado na praia.
Além disso, Se a lei for aprovada, é necessario utilizar recursos da sociedade para implementá-la. Serão
precisos funcionários públicos para fiscalizar se os estabelecimentos estão ou não cobrando o estacionamento e
aplicar multas, se for o caso. Tudo isso para uma lei que não corrige nenhuma falha de mercado e, portanto, não traz
benefício algum.
Muitas das intervenções da economágica acabam abrindo as portas para a corrupção, que, como já vimos, tem
nefastas consequências para nosso bem estar. Quando alguns se beneficiam da lei em detrimento de outros, há
incentivos para que potenciais ganhadores e perdedores entrem em acordos ilícitos com juízes ou deputados. Isso
sem falar da velha e boa propina para escapar da lei. Claro, a maioria das pessoas escolhe não tomar esses atalhos,
mas há sempre a minoria que o faz.
A lista de leis da economágica é bastante longa e não temos como cobri-la inteiramente aqui. Vejamos alguns
outros exemplos.
Ao acompanhar seu pai em uma recente cirurgia, um dos autores desse livro foi informado que ele teria direito
a refeições gratuitas no hospital. Com efeito, o estatuto do idoso determina que os hospitais sirvam gratuitamente
refeições diárias aos acompanhantes de pacientes com mais de 60 anos. Nós sabemos que produzir e servir comida
não sai de graça. Portanto, o aumento no custo para o hospital vai acabar se refletindo em aumento no preço das
diárias para todos os pacientes e para os planos de saúde. O interessante a notar nesse caso é que mesmo se todos os
pacientes do hospital tiverem mais de 60 anos (não havendo portanto tranferência de renda entre grupos), haverá
uma distorção: a lei incentiva o acompanhante a comer a comida do hospital, pois seus custos são divididos entre
todas as outras pessoas, enquanto o almoço na padaria ao lado tem que ser pago pelo próprio acompanhante. Na
ausência da lei, muitos escolheriam a padaria – por exemplo, o autor desse livro que foi acompanhar o pai. Por conta
da lei, faz-se mais refeições no hospital do que se faria se as pessoas levassem em conta nas suas escolhas os reais
custos e benefícios dessa decisão.
Indo de hospitais para a noitada, proibir a cobrança de consumação mínima não reduz, por um passe de
economágica, os custos das boates. Uma lei proibindo a imposição de uma consumação mínima, que retira a
possibilidade das casas noturnas de oferecer livre ingresso àqueles que mais consomem, resultará em entradas mais
caras para todos.
Alguns dos erros economágicos nascem da ideia de que os estabelecimentos comerciais devem ser obrigados
por lei a cobrar um “preço justo” por seu produto. Esse preço justo seria igual ao custo mais um “lucro justo”.
Entretanto, se não há falhas de mercado, a boa alocação de recursos na economia não depende de nenhuma
consideração de justiça ou de códigos morais ditando os preços corretos.
Como discutimos no capítulo 9, os monopólios têm custos sociais, e portanto seus preços devem ser regulados
pelo Estado. Mas nos casos em que não há poder de monopólio nem outras falhas de mercado, o Estado não deve
interferir nos preços. Como vimos no capítulo 3, o que impede os preços de serem altos demais é a possibilidade da
boate perder o cliente para alternativas concorrentes (que podem ser a boate ao lado, um programa alternativo, ou o
conforto do lar).
Além disso, na prática, é difícil saber o que é o tal do preço justo. Por exemplo, muitas boates cobram preços
diferentes para homens e mulheres, mas o custo de prover música alta e pouca luz não depende do sexo dos clientes.
Seria então essa diferença injusta? Essa discussão pode caber numa conversa de bar, mas não deve influenciar as
políticas públicas. As intervenções do Estado na economia devem se limitar aos casos em que há falhas de mercado,
estudadas nos capítulos 9 e 10 e ao longo do livro.
Não raro as leis da economágica nascem com a idéia de proteger o consumidor. A lei brasileira do inquilinato é
um bom exemplo. No Brasil, os contratos de aluguel tem duração de 30 meses, porque o locador não pode pedir o
imóvel de volta, sem mútuo acordo, antes desse prazo. Então, um proprietário de um apartamento que o queira
alugar por apenas um ano tenderá a escolher ficar fora desse mercado. Uma transação que poderia ser benéfica para
inquilino e proprietário não ocorre. O apartamento que fica vazio por um ano é o custo dessa lei.
Por que a lei não deixa proprietários e inquilinos escolherem o prazo de seus contratos de aluguel? Uma
possível justificativa é que, no nosso país, há muitas pessoas com pouca educação que não sabem ler e entender um
contrato. Estas pessoas seriam presas fáceis para os locadores mal intencionados, e então caberia ao Estado
determinar a forma correta dos contratos para que o consumidor não fosse ludibriado. Nós acreditamos que quem
consegue ler o preço do aluguel em um contrato também consegue ler o prazo. Mas, mais importante, lamentamos
esse paternalismo estatal. O pobre iletrado que quer alugar uma casa tem mais incentivos para cuidar de si que os
agentes do governo, e sabe sobre o prazo que quer alugar o seu imóvel melhor do que ninguém. O paternalismo
estatal acaba gerando leis complicadas, que atrapalham o funcionamento dos mercados e deixam brechas para
avalanches de processos legais.
Se o inquilino não paga o aluguel, a justiça demora vários meses para emitir uma ação de despejo contra o
morador inadimplente. Por conta disso, muitas imobiliárias exigem que o potencial inquilino apresente um fiador –
alguém que se responsabilize pelo pagamento dos aluguéis. Outros locadores exigem seguro fiança, que encarece o
preço pago pelo inquilino. Afinal, quem sai protegido pelo sistema legal que rege os contratos de aluguel?
O arcabouço legal que rege os contratos de locação de imóveis protege o inquilino que não paga em detrimento
daquele que paga corretamente seu aluguel. Por proteger o inquilino caloteiro, a lei reduz os incentivos para os
proprietários de imóveis alugarem seus apartamentos. Consequentemente, diminuem-se os incentivos para as
pessoas investirem na construção de casas para alugar e, portanto, há menos casas para as pessoas morarem.
Alugar uma casa nos Estados Unidos ou na Inglaterra é simples. Mesmo sendo estrangeiro e tendo acabado de
chegar no país, o processo é fácil e rápido. Por quê? Porque o proprietário se sente protegido contra a inadimplência
pelo sistema legal. Assim como no caso do mercado de crédito, punições mais duras contra inquilinos maus
pagadores beneficiam aqueles que honram seus compromissos e, por conta disso, aumentam os incentivos para que
se pague o aluguel em dia. Com menos maus pagadores, as pessoas têm mais incentivos para construir ou comprar
casas para alugar.
Assim como no caso dos inquilinos, as leis também protegem alunos inadimplentes. As escolas podem recusar
sua matrícula no ano seguinte se o estudante atrasar o pagamento da mensalidade por mais de 90 dias, mas durante o
ano letivo, a escola tem pouca influência sobre pais inadimplentes. As consequências dessa lei são parecidas com as
mencionadas acima: os bons pagadores pagam mais e distorcem-se os incentivos de pais de alunos e de empresários
do setor educacional.
Ambas leis têm o intuito de ajudar alunos e inquilinos que passam por dificuldades devido, por exemplo, a
perda temporária do emprego. Mas há alguma falha de mercado relevante que justifique intervenção estatal nesses
casos?
Sim, há uma importante falha de mercado. Ficar desempregado gera consequências sérias para um pai de
família, e se fosse possível, as pessoas tenderiam a escolher se proteger contra esse risco, ou seja, comprar seguros
contra o desemprego (além do que o governo já proporciona). Entretanto, o mercado de seguros contra ficar
desempregado não existe por conta dos problemas de assimetria de informação discutidos no capítulo 9. Um
funcionário sabe bem melhor que a seguradora se ele está prestes a ser demitido ou se goza de prestígio na empresa.
Além disso, ele tem mais incentivos para se demitir (ou causar uma demissão) depois de adquirido o seguro. Por
estes dois motivos, esse mercado não decola.
Diagnosticada a falha de mercado, devemos então nos perguntar: qual a melhor maneira de remediá-la?
Protegendo inquilinos e alunos inadimplentes?
Ficar desempregado não seria problemático se fosse fácil encontrar outro trabalho. Um dos fatores que afeta
negativamente a criação de empregos são as leis que dificultam ou encarecem a demissão de funcionários. Nos
países onde demitir é mais custoso, demite-se menos mas também criam-se menos empregos, então quem está em
busca de emprego leva em média mais tempo para encontrar trabalho. Modificar estas leis trabalhistas diminuiria a
necessidade da lei de proteção ao aluno inadimplente.
Em suma, uma importante falha de mercado nos impede de comprar seguro contra os riscos de desemprego. Por
conta disso, criam-se leis que dificultam demitir funcionários, leis estas que beneficiam quem tem emprego mas
prejudicam os desempregados e atravancam o mercado de trabalho. Por sua vez, para remediar o sofrimento dos
desempregados, criam-se leis que protegem aqueles que não pagam seus aluguéis - desempregados ou não. Fica
então emperrado o mercado de locação de imóveis.
A prática economágica propõe leis que visam combater os sintomas e normalmente pouco fazem contra a
doença. A economia fica então com uma grande quantidade de leis que têm sérios efeitos colaterais.
Entendendo o funcionamento da economia, somos capazes de enxergar outros caminhos. Compreender as
falhas de mercado que causam os problemas é fundamental para encontrar a melhor forma de resolvê-los e escapar
das armadilhas da economágica.
Diz-se por aí que o Brasil tem cerca de 200 milhões de técnicos de futebol. De fato, quase todo mundo entende
da matéria e tem sua opinião sobre a escalação ideal para seu o time ou para a seleção brasileira. Fenômeno
semelhante acontece em relação à economia. Quando saem do assunto o Neymar e a Copa do Mundo, os 200
milhões de técnicos se tornam economistas e passam a opinar sobre a globalização, as taxas de juros e a previdência.
Discutir em sociedade temas econômico-sociais, bem como políticas públicas a eles relacionadas, é mesmo
extremamente saudável e importante para o país. Reformas da previdência, incentivos à educação, abertura
comercial, afinal que políticas devemos adotar? Numa democracia, precisamos estar bem informados para escolher
melhor sobre diversos temas.
Acreditamos, porém, que em larga medida este debate carece de boa fundamentação. “Economia sem truques”
é o livro que quer entrar nas rodas de discussão dos 200 milhões de economistas brasileiros.

[1]
As informações sobre o trabalho infantil em Bangladesh e os programas da UNICEF para tentar resolver os problemas estão acessíveis no website
http://www.unicef.org/sowc97/report/ .
[2]
Analectas de Confúcio XV.24.
[3]
Entrevista da Secretária da Educação de Brasília que suspendeu o programa bolsa-escola, citada pela então senadora Marina Silva, em discurso
disponível no website do senado federal: http://legis.senado.gov.br/pls/prodasen/PRODASEN.LAYOUT_DISC_DETALHE.SHÕ_INTEGRAL?p=253878.
O discurso da senadora menciona explicitamente a escolha de pais e crianças com relação a educação e trabalho.
[4]
F. A. Hayek, “The Use of Knowledge in Society”, American Economic Review, vol.35, 1945.
[5]
Para mais detalhes sobre a taxa de congestionamento em Londres, ver “The London Congestion Charge”, de Jonathan Leape, publicado no Journal of
Economic Perspectives, 2006, vol 20, n. 4.
[6]
Ver “Collapse: How Societies Choose to Fail or Survive”, de Jared Diamond, Penguim, 2005.
[7]
Hernando de Soto, “The Other Path”, Harper and Row Publishers.
[8]
Simeon Djankov, Rafael La Porta, Florencio Lopez de Silanes e Andrei Shleifer, 2002, “The Regulation of Entry”, Quarterly Journal of Economics.
[9]
Esta restrição foi suspensa em 2001, mas voltou a vigorar em outubro de 2005 e continua valendo enquanto escrevemos este capitulo.
[10]
A história da física e do estudo do Cosmo reflete com clareza esta relação entre evidências empíricas e evolução das teorias, como nos ensina Marcelo
Gleiser em seu livro “A Dança do Universo”.
[11]
Schneider, F. and Enste, D., 2000. “Shadow Economies: Size, Causes, and Consequences”. Journal of Economic Literature 38.
[12]
Quando se fala sobre o regime de capitalização, o exemplo chileno é comumente lembrado. O regime utilizado no Chile de fato guarda semelhanças
com o descrito neste livro, pois cada indivíduo tem sua própria conta previdenciária mas, como veremos, em outros aspectos é bastante diferente .
[13]
http://devdata.worldbank.org/edstats.
[14]
No nosso exemplo, 10 sapatos eram trocados por 15 camisetas. Esse número foi escolhido arbitrariamente, mas os preços dos bens e a taxa de cambio
serão sempre tais que armênios e búlgaros sejam induzidos a trocar.
[15]
Para os interessados, ver Frankel and Romer, “Does Trade Cause Growth?”, American Economic Review, 1999.
[16] O valor do empréstimo foi de US$27 em 1976. Considerando a inflação nos últimos 30 anos, esse montante equivale hoje a cerca de US$100.
[17]
Fonte: FMI (2005).
[18] Um estudo interessante sobre o tema é “Finance, inequality, and the poor”, de Thorsten Beck, Ali Demirguç-Kunt e Ross Levine, Journal of
Economic Growth.
[19] Burgess, Robin and Pande, Rohini, 2005, “Do Rural Banks Matter? Evidence from the Indian Social Banking Experiment”, American Economic
Review.
[20] Guiso, Luigi; Sapienza, Paola e Zingales, Luigi, 2004, “Does Local Financial Development Matter?”, Quarterly Journal of Economics.
[21]
United Nations Office for Drug Control and Crime Prevention, 1998. “Economics and Social
Consequences of Drug Abuse and Illicit Trafficking”.
[22]
Trabalho realizado por pesquisadores do Observatório das Favelas do Rio de Janeiro, “Caminhada de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico
de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006”.
[23]
Para uma análise mais completa desse tópico, ver Miron, Jeffrey and Zwiebel, Jeffrey, 1995, “The economic case against drug prohibition”, Journal of
Economic Perspectives 9, #4, 175-192.
[24]
Ver Karyn Model ,1993, “The effect of marijuana decriminalization on hospital emergency room drug episodes, 1975-1978”, Journal of the American
Medical Association 88:423, 737-747.
[25]
DiNardo, John and Lemieux, Thomas, 1992, “Alcohol, marijuana and American youth: the unintended effects of government regulation”, NBER
Working Paper.
[26]
Esses são os resultados das pesquisas de Bruce Benson, David Rasmussen e co-autores.
[27]
A comissão da corretora é maior que 1%, mas o corretor é um “agente” da empresa (como o presidente do exemplo anterior) e para ele o que importa é
o 1% que ele leva.
[28]
“Amnésia eleitoral: em quem você votou para deputado em 2002? E em 1998?” de Alberto Almeida, no livro “Reforma Política: lições da história
recente”, editado por Gláucio Soares e Lúcio Rennó (FGV editora).
[29]
No Brasil, o sistema é proporcional, mas os estados pouco populosos elegem proporcionalmente muito mais deputados que os estados mais populosos
do país. Assim, essa representatividade do sistema proporcional é distorcida no Brasil.
[30]
Ver Torsten Persson e Guido Tabellini, “The Economic Effects of Constitutions”, MIT Press, 2003.
[31]
O estudo de Torsten Persson e Guido Tabellini – “The Economic Effects of Constitutions” – mostra que as diferenças entre os gastos públicos totais e
com previdência dos países que adotam os sistemas proporcional e distrital são de 5% e 2% do PIB, respectivamente. Além disto, nos países onde o sistema
proporcional o déficit do governo é via de regra maior.
[32]
O aumento de custo por unidade vendida, decorrente da loja precisar bancar o estacionamento, é tanto menor quanto maior for a quantidade de lojas da
cadeia que se encontra fora dos shoppings

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