Apresentação Decolonialidade do saber versus colonialidade do poder? Em busca de uma identidade brasiliana Decolonizando o olhar Aliança e compromisso Origem e ideias centrais
colaboraram nesta edição
entrevista Claudia Roquette-Pinto Imagens poéticas DA REDAÇÃO
Claudia Roquette-Pinto, que fez as colagens que ilustram esta edição da
Cult, é poeta, tradutora e artista plástica. Autora de cinco livros de poesia e com poemas traduzidos em vários idiomas, ganhou o Prêmio Jabuti com Corola, de 2001. Em 2006, Margem de manobra foi finalista do Prêmio Portugal Telecom. Na entrevista a seguir, ela fala de seu trabalho com as palavras e com as imagens. Qual é a relação entre suas atividades como poeta e artista visual? A poeta apareceu primeiro, ao menos publicamente. Mas a colagem sempre foi uma paixão e uma atividade que me acompanhou desde a adolescência. Além disso, para usar uma das classificações poundianas, considero que boa parte da minha poesia é muito fanopeica, ou seja, marcadamente imagética. Sempre tive um olhar meio plástico sobre as coisas. O trabalho de colagem foi retomado na vida adulta, inicialmente num período de bloqueio da escrita e, depois, num breve episódio depressivo, quando trabalhar ressignificando as imagens tornou-se a única maneira possível de acessar minha criatividade. Como será seu próximo livro? Meu novo livro se chama Alma corsária & poemas do Rio e deve sair no primeiro semestre de 2021, pela Editora 34. Todo com poemas inéditos, o que me enche de alegria. Depois de mais de 12 anos sem publicar poesia (meu livro mais recente é Entre lobo e cão, com colagens e trechos de prosa, e saiu em 2014, pela Editora Circuito), finalmente vou poder voltar a sentir o gostinho de me considerar poeta. Como foi o processo de criação das colagens publicadas nesta edição da Cult? Foi pensado e feito com muita consideração e cuidado, principalmente pelo fato de eu ser uma mulher branca, oriunda da burguesia, tendo sido convidada a interpretar/traduzir/fabular sobre um universo que não conheço “de dentro”, mas sim pelo “outro lado”. Contudo, tanto o feminismo como as questões do silenciamento da narrativa e da objetificação do corpo feminino sempre foram temas do meu trabalho – e isso, acredito, esperançosamente, talvez possa me permitir trazer alguma contribuição para o assunto. O Brasil vai dar certo? Qual Brasil? dossiê O que é o feminismo decolonial? Apresentação SUSANA DE CASTRO
O feminismo decolonial acadêmico surge a partir do texto “Colonialidad y
género” (2008), da filósofa argentina María Lugones. Nele a autora amplia a teoria da “colonialidade do poder” do sociólogo peruano Aníbal Quijano, introduzindo a noção de “sistema moderno-colonial de gênero”. Quijano e o grupo de intelectuais latino-americanos do Grupo Modernidade/Colonialidade foram precursores na análise do colonialismo pensado a partir do eurocentrismo, do racismo e da modernidade. Mostraram como o projeto europeu de colonização das Américas estava calcado na teoria pseudocientífica da raça como desculpa para a expropriação capitalista da mão de obra escrava e para o acúmulo de capital globalizado. O racismo que justificou a escravidão de negros e índios, na mesma época em que a Europa saía da servidão e entrava no sistema liberal de pagamento do trabalho mediante salário, deixou marcas indeléveis no continente latino-americano. Entre essas marcas, destaca-se a colonialidade do saber, do poder e do ser. Ou seja, apesar de supostamente independentes, os países latino-americanos continuam subordinados a um modelo de poder que reproduz a hierarquia racial e econômica da época da colônia, que marginaliza os saberes locais e, finalmente, que cinde a identidade nacional, uma vez que ela é marcada por um imaginário colonizado pelo racismo europeu. Para Lugones, além de raça, o conceito “moderno-colonial” de gênero – no sentido de aquilo que qualifica e identifica a diferença sexual – também teria sido introduzido nos países latino-americanos como forma de dominar e controlar o trabalho e os corpos. Homens e mulheres não europeus, indígenas e africanos, eram considerados “diferentes” – leia-se inferiores –, porque não seguiam as mesmas regras de socialização e convivência das sociedades coloniais. Além disso, não eram cristãos. Assim, foi-se construindo a narrativa segundo a qual os povos não europeus, isto é, no caso latino-americano, os povos originários e os africanos da diáspora, viviam como selvagens, próximos à animalidade, e que por isso a cultura e a religião europeias deveriam salvá-los, humanizando-os. O feminismo surge como um movimento europeu-americano de libertação das mulheres da opressão patriarcal. Mas de quais mulheres se está falando? Existe uma identidade universal “mulher”? Todas as mulheres sofrem da mesma forma diante do patriarcado ou algumas também usufruem das benesses dele? O feminismo negro e o feminismo lésbico norte- americanos mostraram que a subjugação da mulher branca ao marido ou ao patrão não a impedia de participar do racismo institucional e estrutural que a favorecia por sua cor e/ou por sua sexualidade, e por isso a alçava a representante e porta-voz de todas as mulheres nos meios de comunicação de massa e nos meios acadêmicos. Nesse sentido, não podemos condenar o patriarcado como uma entidade abstrata que subordina todas as mulheres da mesma forma sem olharmos para as diversas outras formas de opressão, tais como a racial, a sexual e a de classe. Da mesma forma que o conceito universal moderno de ser humano – ou de natureza humana, definida com base no modelo europeu de racionalidade (autonomia moral e razão instrumental) – serviu para legitimar a submissão dos povos não europeus à invasão colonial, cultural e econômica, também pode-se dizer que o conceito universal de “mulher” serviu para ocultar outras formas de opressão, como a de raça e a de classe. O conceito de interseccionalidade, forjado no bojo do feminismo negro, conseguiu dar expressão e visibilidade à opressão de raça, classe, sexualidade e gênero vividas pelas mulheres negras e pelas mulheres não brancas*. Para que a mulher negra e a mulher não branca possam ser elas mesmas representantes de suas pautas e reivindicações, é necessário que lhes seja reconhecido o lugar de sujeito, e que suas experiências façam parte também dos estudos feministas. A contribuição das feministas negras e feministas não brancas foi fundamental para a crítica à identidade “mulher” monolítica do movimento feminista identitário. Não há uma identidade única de mulher que represente todas as mulheres. A situação fica mais clara quando comparamos as pautas do feminismo liberal “universal” pelo direito ao aborto, pela criminalização do assédio e do estupro, pela paridade de gênero na política e nos empregos – temas de interesse claramente da mulher branca universitária, e não necessariamente da mulher trabalhadora e de classe popular. De que adianta lutar pela paridade na representação política se as representantes mulheres forem todas da classe média ou média alta e defenderem seus interesses de classe ao lado de seus pares homens? Se para muitas mulheres brancas a maternidade e o casamento não podem ser mais o destino das mulheres, para muitas mulheres negras e indígenas a maternidade é expressão central de suas identidades como mulheres e como líderes na comunidade – e não está associada diretamente à relação de gênero e de casamento. O trabalho da nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí sobre a sociedade iorubá do sudoeste da Nigéria, The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses (1997), expôs as falhas da universalização do conceito de gênero com base no ideal de família europeia nuclear, por associar maternidade ao casamento. Mostrou que a noção ocidental de “mãe solteira” é uma formulação estranha à cultura iorubá justamente por conjugar as duas coisas, como se uma fosse dependente da outra. Se a segurança pública racista é pautada pelo encarceramento em massa da população negra, as mulheres negras vão se solidarizar com seus companheiros não brancos, e não com as feministas de classe média e heterocentradas e suas pautas de liberação sexual e autonomia financeira. O feminismo decolonial latino-americano se junta ao movimento das mulheres negras e não brancas na reivindicação de que a questão do racismo é central no eixo da opressão patriarcal-capitalista. Não podemos pensar em feminismo brasileiro ou latino-americano sem considerar nossa herança colonial escravista. Pensar um feminismo decolonial latino-americano e brasileiro significa elaborar formas de combater um imaginário racista que considera inferior ao europeu tudo o que é oriundo das comunidades originárias e da cultura afro-brasileira. Importa deixar de glorificar a história colonial escravista e violenta, e criar mecanismos de conscientização coletiva sobre a responsabilidade pelo genocídio negro e indígena e sobre a importância de políticas de reparação e de justiça. Além disso, o feminismo decolonial brasileiro compartilha da preocupação de historiadores com a forma deturpada como nossos antepassados negros e indígenas são descritos na história do Brasil, sempre a partir do olhar do colonizador. Os levantes populares são ignorados pela história oficial, e as populações nativas e os negros escravizados são descritos como desprovidos de capacidade de resistência e luta. No entanto, como mostra a historiadora brasileira Beatriz Nascimento, a identidade negra no nosso país é transpassada pela experiência da luta dos quilombos contra a colonização e a escravidão. Ao todo, na América Latina há cerca de 602 etnias indígenas diferentes. Essa diversidade cultural é fonte de enorme riqueza humana. Se não valorizarmos nossas origens e diferenças, não deixaremos para as futuras gerações uma herança cultural que nos caracterize como povos livres. Este dossiê traz para o leitor uma gama de reflexões díspares com o objetivo comum de iluminar uma experiência feminista própria, latino- americana e brasileira. No primeiro texto a seguir, Mary Garcia Castro dialoga com a feminista Heloisa Buarque de Hollanda sobre os rumos do feminismo decolonial, seus impasses e avanços, com vistas a ajudar Heloisa na escolha dos textos que comporiam o livro que ela estava organizando: Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (Bazar do Tempo, 2020). Mary mostra que, do ponto de vista da metodologia de escrita, não há um só modelo, o científico. Quando se trata de narrar experiências, precisamos nos libertar das amarras academicistas de escrita e adotar sem prejuízo um discurso poético-epistolar. No artigo seguinte, Príscila Carvalho traça as principais linhas teóricas do feminismo decolonial de Abya Yala e mostra suas implicações para o cenário nacional. Depois, Caroline Marim discorre sobre as bases visuais ocidocêntricas da estética e seu contraponto na estética sensorial de artistas contemporâneos latino-americanos. No penúltimo texto, Suely Messeder, utilizando-se de noção central para o feminismo decolonial, a do pesquisador encarnado, traça um diálogo com Mãe Stella de Oxóssi baseado em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia – quando levantou questões como ancestralidade, alianças e compromisso, entre outras. Suely mostra que é possível um outro modo de fazer política, que respeite os diversos atores em jogo. Por fim, apresento um apanhado das contribuições teóricas do feminismo decolonial. O feminismo decolonial não é uma teoria fechada, mas sim um movimento em construção, que vai crescendo e se modificando a partir do momento que novas experiências lhe são acrescentadas.
Nota: Hesitei ao escolher qual termo usar, “descolonial” ou “decolonial”.
Contra o segundo pesava o sentimento de que se tratava de um estrangeirismo (galicismo ou anglicismo), o que entrava em conflito com a proposta. Contra o primeiro pesava o fato de o termo poder sugerir um livrar-se de uma situação – o colonialismo – e talvez retornar a uma situação sem o contágio da opressão colonial. No verbete “Pensamiento descolonial/decolonial” do Diccionario del pensamiento alternativo, organizado por Hugo Biagini e Arturo Roig, é dito que as duas grafias estão corretas, mas que na Argentina se prefere o termo “descolonial”, enquanto nos demais países se prefere “decolonial”. Optei pelo uso de “decolonial” por entender que não é possível simplesmente desfazermo-nos das marcas do colonialismo, mas sim, seguindo Catherine Walsh, “assinalar e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua – de transgredir, intervir, in-surgir e incidir. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua no qual podemos identificar, visibilizar e incentivar ‘lugares’ de exterioridade e construções alternativas”. Trata-se não mais de reagir, mas de agir e construir alternativas mais inclusivas e positivas sobre os saberes e as práticas do continente latino-americano.
*“Não branca” corresponde aqui à expressão “women of color”, adotada por
teóricos norte-americanos em referência ao colorismo, que, como a pigmentocracia, designa a discriminação pela cor da pele. No texto “Colorismo: o que é, como funciona”, Aline Djokic explica que o termo quer dizer, de maneira simplificada, que quanto mais pigmentada for uma pessoa, maior será a exclusão e a discriminação que ela sofrerá. Decolonialidade do saber versus colonialidade do poder? MARY GARCIA CASTRO
Segue artigo em forma de ensaio considerando Theodor Adorno, para quem
o ensaio não é um gênero menor, mas se formata em um livre pensar que flerta com várias disciplinas – e que em especial se fascina com a literatura. Estou solidária com as angústias de Heloisa Buarque de Hollanda na organização de um livro sobre tendências do pensamento feminista hoje e potencialidades da perspectiva decolonial. Perspectiva por aqui ainda sem cumprir seus princípios, como decolar do local, de experiências coletivas de mulheres na contramão de modelagens normativas – o que pode ser paradoxal, considerando a fertilidade das novas tendências do feminismo por estas terras. Aliás, primeira provocação: precisamos de um tipo de feminismo que anule um rico percurso que vem enfrentando golpes e violências, ou será que precisamos de ampliação crítica do feminismo, considerando sujeitos em distintas relações na classe-raça-gênero, em prol de uma frente de vários feminismos, como o negro, o de orientação popular (por exemplo, o das mulheres trabalhadoras rurais), o emancipacionista com projeto socialista, e as elaborações sobre sexualidades não heteronormativas, informadas nos movimentos de grupos LGBTI+? De fato, um dos construtos importantes da perspectiva decolonial seria, segundo Michel Cahen em texto incluído em Para além do pós(-)colonial (Alameda), “evitar o frequente hiperclassismo de certo marxismo, segundo o qual as únicas identidades relevantes são as identidades de classe – essas últimas além disso reduzidas somente às duas classes ‘fundamentais’ constitutivas do modo de produção capitalista”. Mas Cahen também adverte que as identidades estão em um constante reinventar-se, condicionadas por historicidades e múltiplas relações, como as no saber e no poder, não se alimentando apenas de memórias, por mais sofridas que sejam, como a da escravidão: “A colonialidade não é uma mera herança, é uma produção específica de subalternidades enraizadas na história”. Além disso, a complexidade da composição socio-étnico-racial do Brasil, a diversidade de vivências e desejos entre as mulheres, mesmo na raça-e-classe, adverte que de fato é preciso estar atento para escutas de saberes de comunidades, resistências em corpos subalternizados não necessariamente proletarizados, assim como não desconsiderar a importância de tais corpos, sujeitos clássicos na reprodução do sistema capitalista patriarcal. Há que conhecer mais as práticas de resistências diversificadas, ou para potenciais redes de subversão, o que pede combinação de perspectivas feministas micro/macro orientadas, como a que vem se modelando nos debates sobre gênero, reprodução e os/as comuns. São muitas as ilustrações de decolonialidades nativas. Não são novas as resistências a colonialidades por mulheres, então tenhamos cuidado com rótulos novos. Por exemplo, os protestos das mães de jovens negros assassinados pela polícia mobilizam afetos pelos seus, assim como denúncias contra o Estado racista/patriarcal/classista, desafiando colonialidades. Lélia Gonzalez destaca três figuras femininas emblemáticas para a formação da nação: a mulata, a mãe preta e a empregada doméstica. Ilustra assim a dinâmica da herança colonial e as subversões, decolonialidades impressas por elas. Diz Raquel Barreto: “De acordo com Lélia, a mãe preta, de forma consciente ou inconsciente, acabou por passar os valores africanos e afro-brasileiros para as crianças brancas de que cuidou. Em especial ela africanizou o português, e o ensinou, transformando-o em ‘pretuguês’” (expressão da autora). A “mulata”, se enredada em violências simbólicas, desestabiliza moralidades coloniais, impõe erotismo fora dos trilhos familistas. A empregada doméstica, se por um lado faz jus às análises sociológicas sobre vulnerabilizações impostas por heranças escravistas, por outro lado se organiza em sindicatos, federação e até em uma confederação latino- americana com mais de 15 anos e que reúne hoje 25 sindicatos no continente, a Confederación Latinoamericana y de Caribe del Trabajadoras del Hogar (Conlactraho), desafiando teses sobre impossibilidade de organização sindical de atividades ditas pré-capitalistas e sobre seu não reconhecimento como membros da classe trabalhadora por outras categorias. Importante inventariar tais ativismos/saberes para melhor se discutir decolonialidades por aqui. Na literatura sobre decolonialidade, é comum apelar para o resgate de conhecimentos em uso, de povos originais, saberes semeados no cotidiano, sem agressão à natureza, e vindos dos ancestrais. Destacam-se princípios ecológicos, além do conhecimento de resistência em que se misturam o mágico e o “racional”. Ótimo, mas será que é suficiente para enfrentar a barbárie neoliberal e para dar conta do fato de que mais de 50 milhões de brasileiros estão abaixo do nível de pobreza e que muitos são brancos, pobres e querem estar no mercado? De fato, o sistema de raça estrutura desigualdades, inclusive enegrecendo os/as pobres, independentemente da melanina. Mas a conjugação raça/classe/gênero indica que as mulheres negras e as mulheres brancas pobres seriam as mais vulnerabilizadas, reconhecendo-se tal intersecção como uma colonialidade que se metamorfoseia, embora permaneça historicamente. Ora, tal intersecção também sugere que uma perspectiva feminista decolonial pede alianças entre subordinados/as e seria avessa a identitarismos, ou que aposta em hierarquização entre esses/as. As redes de apoio mútuo em vizinhanças territorializadas nas periferias fortalece a tese de que o debate em perspectiva decolonial não comporta identitarismos. Outra questão: será hora de marginalizar a importância de um Estado de bem-estar social e o debate sobre democracia e ater-se a resistências comunitárias? No caso brasileiro, cabe insistir sobre um vetor caro à perspectiva decolonial: a colonialidade do poder, questionando modelos de desenvolvimento baseados na competição, no sistema-mundo, no consumismo, no extrativismo, na redução do ser humano a meio de produção. A teoria do sistema-mundo é anunciada por Immanuel Wallerstein, um dos autores básicos no debate sobre decolonialidade, enfatizando desigualdades sócio-político-econômico-regionais na divisão internacional do trabalho, própria do sistema capitalista – desigualdades entre países do centro, da periferia e da semiperiferia. Além disso, países em regiões periféricas têm uma dependência estrutural de organismos internacionais, que são orientados por interesses de países do centro, inclusive de ordem financeira e humanitária. Wallerstein aposta em movimentos sociais contra tal estado do mundo. Tal vetor choca-se com projetos de nação universalizantes e calcados em progresso e competição, defendidos inclusive por setores das esquerdas. Isso explica que orientações como o Bem Viver, que questionam modelos de desenvolvimento com tais projetos, sejam aceitas só se limitadas a experiências comunitárias. Para uma perspectiva feminista decolonial sensível à experiência de mulheres dos povos originais no Brasil, o texto de Rita Segato sugere pistas teóricas. Refiro-me a um texto que segundo Segato foi publicado originalmente em La cuestión descolonial (org. de Aníbal Quijano e Julio Mejía Navarrete, Universidad Ricardo Palma, 2010). Segato realça um desafio ao debate decolonial: o lugar do Estado. O que no caso brasileiro pede mais investimentos, uma vez que, mesmo com a terrível história de abuso de poder e herança colonial escravista, um Estado democrático, contra governos autoritários, sempre esteve nos projetos de políticas públicas por parte das feministas. Em perspectiva decolonial, como discutir o Estado? Segato não o descarta, enfatizando que mulheres indígenas no Brasil insistiriam na importância de contarem com políticas públicas, com a ação do Estado, mas defendendo autonomia sobre a operacionalização. O que estou sublinhando é que é preciso haver teorias com corpos nativos, decolando de relações socioétnicas, de ambiências e vivências de mulheres. O debate sobre decolonialidade toma fôlego em tempos de desencantos. De fato há que combater o medo com esperança, como sugere Terry Eagleton: enfrentar a crise do capitalismo não como mais uma crise, mas como fracasso de uma visão e ordenação do mundo – considerando o aumento dos descartáveis a que se refere Giorgio Agamben e a vigência da necropolítica, ou o direito de matar do Estado. Aliás, não por acaso, mortes preferencialmente de pobres e negros, em especial nos países ao sul, como dos continentes africano e latino-americano. Achille Mbembe relaciona a necropolítica com tempos de pós-colonialismo. Insisto: precisamos não de uma perspectiva feminista absolutista, do “antes de mim o dilúvio”, mas de uma frente ampla de várias perspectivas, críticas ao status quo. Se a ideia é ter alternativas que mobilizem, há que considerar tanto o estado do mundo, do continente, do país, de casas e corpos, como também o desencanto e a falta de horizontes próximos. Insisto, portanto, que é necessário compor redes de saberes feministas, alianças transnacionais, e também explorar mais precursoras nacionais do debate sobre colonização de mentes e corpos e estratégias de contra-ataque, como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, autoras que muito investiram contra a colonialidade do poder e do saber, destacando o lugar estruturante da raça na formação da nação. É urgente nesse sentido discutirmos mais essas pioneiras, inclusive em sala de aula, buscando decolonizações do saber. A decolonialidade do saber no Brasil é uma promessa, com o aumento de jovens negros/as nas universidades, mas ainda aí impera a colonialidade, com currículos rígidos, de orientação eurocêntrica e disciplinar. É promissora, mas é preciso cuidado para que não se dilua em modismo essa busca por literatura de autoras afrodiaspóricas, em especial as de origem africana, que misturam oralidade e literariedade, histórias e estórias sobre o colonial e o pós-colonial, em que ancestralidade e mundos imaginados se fundem a seus dramas existenciais, como a ambiguidade do fardo-êxtase da maternidade e do amor romântico heteronormativo. Como adverte Lélia Gonzalez, os mitos da democracia racial e da paternal colonização portuguesa se constroem sobre o uso/estupro do corpo da mulher negra e do horror a uma África tida como selvagem ou também desumanizada como paradisíaca. Não por acaso, a entrada de jovens negros/as nas universidades coincide com maior oferta de estudos sobre autores/as africanos/as. Mas não nos iludamos, há que ficar atentos a tentativas de epistemicídios culturais e espirituais, como os boicotes a estudos sobre os povos africanos e expressões religiosas de matriz afro-brasileira por parte de fundamentalismos religiosos e de Estado, como os que vêm ocorrendo no Ensino Médio. Mas por que nomear como decolonial o que não é novo, e sim silenciado, marginalizado academicamente? Tudo bem se com tal nomeação questionamos silêncios, se chamamos atenção para a multiplicidade de sujeitos críticos, saberes de vivências comunitárias, ancestrais, se modelamos ideias de nação contra subalternidades na equação raça/classe/gênero e se contamos outra história sobre descobrimento/encobrimento e heranças coloniais. Mas que em tal modelação nos engajemos em projetos por amefricalatinidades, redes transnacionais, considerando agendas de conhecimento/ação como as propostas por Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento. Esta nos sugere o conceito de potencialidade decolonial estrutural, o “quilombismo”, como resistência cultural, a ser mais explorado em cursos inovadores, reunindo saberes comunitários e acadêmicos. Assim como o conceito cunhado por Lélia Gonzalez, de “Améfrica Ladina”, o de “quilombismo” pede que, para evitar anacronismos ou simplificações históricas, invista-se em epistemologias que explorem histórica e etnologicamente a complexidade do debate sobre colonização, pós-colonialismo e decolonialidade em países africanos, que explorem legados africanos e de povos originais no Brasil e resistências aqui, hoje, ou seja, territorializadas. Gonzalez e Nascimento sugerem que, mais que um “giro linguístico”, esses conceitos pedem investimentos cognitivos e movimentos sociais diversos, calcados em resistências a insubordinações. Também é urgente nos centrarmos em ativismo contra o massacre de povos indígenas e de jovens negros e a repressão às casas de terreiro. E que contribuamos mais, a partir de nossos privilégios institucionais, para visibilizar expressões artístico-culturais e políticas contra normas do estado patriarcal, capitalista. Insisto neste texto no formato ensaio. Ele sugere uma agenda de estudos. De fato, para melhor entender o colonialismo, versões contemporâneas ou colonialidades e identificar experiências decoloniais em vários campos e tipos de comunicação, há que estudar mais as relações étnico-sociais de poder na diversidade de produções das mulheres – experiências que passam por reproduções engendradas em diversas ambiências. Em busca de uma identidade brasiliana PRÍSCILA CARVALHO
As teorias e os movimentos feministas são concepções de duplo
investimento: analítico e empírico. Isso acontece porque reúnem em suas perspectivas teoria e prática, compondo-as como práxis, como poderosas ferramentas de análise que leem as relações de forças patriarcais – e, por decorrência, também antidemocráticas – que compõem o sistema estrutural de dominação sexista. Já é sabido que a desigualdade e a violenta dominância do sexismo se perpetuam pela permissividade de tal cultura androcêntrica, que implica subalternização de mulheres e de outros sujeitos lidos numa ótica sexista e/ou heteronormativa. Embora estrutural, a subalternização varia de acordo com as conexões com outros sistemas de dominação que se articulam e reforçam o patriarcado, como o racismo, o etnocentrismo, a exploração e a espoliação econômicas. Por essa razão, o objetivo dos feminismos é transformar a sociedade em espaços paritários, justos e democráticos. Desqualificá-los ou sectarizá-los é um meio funcional para manter a distância o maior número de pessoas e grupos de suas análises e práxis, de forma que fiquem, consequentemente, em seus “devidos lugares”, seja de subordinação ou de pleno status de cidadania. A tentativa de transformar essa cultura será tanto mais eficaz quanto mais as teorias e movimentos feministas puderem se debruçar sobre essa realidade concreta, seus contextos e arranjos de subalternização. Mesmo que em menor escala e em condição de privilégio, muitos homens são impactados negativamente por esses sistemas de opressão. Talvez essa seja uma das razões que tornam o feminismo descolonial latino-americano e os feminismos das mulheres nativas originárias de Abya Yala tão promissores e especiais, tanto para brasileiras como para brasileiros. O feminismo decolonialista se inspira na noção de interseccionalidade entre raça, classe, gênero e sexo – que emerge dos movimentos feministas das nativas latino-americanas, caribenhas, afro-americanas e chicanas. Porém, realoca tais categorias a partir das análises e experiências implicadas na relação com colonialidade, modernidade e capitalismo. É o que faz, por exemplo, a filósofa María Lugones quando anuncia um movimento de reinserção daquelas categorias no contexto das Américas. Em seu texto “Rumo a um feminismo descolonial”, declara que realiza um deslocamento metodológico da interseccionalidade do “feminismo não branco” para a metodologia analítica do feminismo decolonial por este ir às origens das classificações sexistas e raciais com base na criação da “diferença colonial”. Podemos nos perguntar: mas de onde ela retira as bases para essa virada metodológica? E no que consiste? A fonte principal do mapeamento incorporado tem como referência pesquisas do Grupo Modernidade/Colonialidade, coletivo latino-americano que se fundou por dissidência ou ruptura com os grupos de estudos subalternos e pós-colonialistas. Uma das mais importantes contribuições desse grupo é tornar evidente a existência de um padrão de poder mundial sustentado a partir da colonização das Américas e da África, nomeado de colonialidade do poder. O investimento analítico, desenvolvido por Aníbal Quijano no texto “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, mostrou como a relação entre capitalismo, classe, raça e conhecimento se teceu conceitual, simbólica e materialmente em moldes coloniais e modernos. Para os propósitos deste artigo, podemos dizer de forma resumida que colonialidade e modernidade são elementos constitutivos do capitalismo mundial – e de seu controle sobre todas as formas de trabalho – que se articulam e consolidam no bojo do projeto epistemológico colonial mediante a racialização dos povos colonizados. Para funcionar, a raça serviu como classificação dos povos colonizados com fins de dominação não somente política e econômica stricto sensu, mas também epistemológica e cultural. Penso a contribuição de Lugones com base nesses dois referenciais e em suas mudanças substanciais indispensáveis, que permitem formular o que ela nomeia de “sistema colonial de gênero”. Lugones oferta-nos uma contribuição singular ao mostrar que, se a dominação pela raça é condição sine qua non para que o sistema capitalista de produção possa se erguer – e fazer dos seres humanos mercadorias que geram mercadorias, compondo um mercado mundial –, o gênero racializado é igualmente operante na estrutura de dominação dos povos colonizados das América e da África, sobretudo da dominação das mulheres. A filósofa aprofunda as análises acerca da modernidade colonial e advoga que as mulheres brancas burguesas europeias também são subalternizadas e submetidas ao sexismo, como partes do “lar a serviço do homem branco europeu”. Nessa condição, elas se destinariam a fornecer condições para perpetuar a “raça” branca e as riquezas da família (raça e capital) por meio de sua “pureza sexual”. Ressalta, porém, que a subordinação dessas mulheres não implicou a negação de sua humanidade, ao passo que às mulheres colonizadas a ideia de gênero naquele momento não foi aplicada, na medida em que tal categoria consistia em classificação hierárquica entre humanos – condição que lhes era negada. Assim, mulheres nativas colonizadas – desde então nomeadas de “indígenas” – e mulheres da África – desde então nomeadas de “negras” – foram classificadas segundo o quadro conceitual moderno colonial e, em resumo, assaltadas em sua humanidade: “bestas” cuja sexualidade seria insaciável. Eis nossa condição como mulheres colonizadas. Lugones é analiticamente perspicaz ao identificar a dicotomia humano- não humano como a ferramenta conceitual que permitiu toda sorte de atrocidades contra os povos colonizados. É por essa razão que a filósofa pôde mostrar que mulheres colonizadas não eram gendradas como supõem as teorias feministas mainstream universalistas quando aplicam gênero a toda espécie humana desde sempre. Diferentemente, em lugar de gênero, às mulheres colonizadas cabia o par conceitual macho-fêmea. Se com isso Lugones tem razão, quando atribui a origem do gênero à modernidade colonial, podemos dizer que o mesmo não se aplica ao patriarcado, que, além de viajar muitíssimo para além da modernidade, está ancorado bem antes da modernidade colonial, e também entre os povos colonizados. Pesquisemos os inúmeros relatos de diferentes hierarquias que podem ser identificadas em diversas culturas no Brasil e em outros países da nossa Abya Yala. Encontramos essa avaliação, por exemplo, na feminista comunitária Lorena Cabnal, que nos mostra a existência de um sistema patriarcal ancestral milenário entre originários/indígenas, em seu artigo “Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala”, publicado em Feminismos diversos: el feminismo comunitário (2010). Ainda assim, Lorena Cabnal e outras feministas comunitárias argumentam que, embora a refundação do patriarcado originário existisse antes da colonização, depois surgiu sua versão mais perversa, devido aos componentes trazidos pelo capitalismo e mais tarde pelo neoliberalismo globalizante. No contexto da experiência colonial brasileira, a heterogeneidade racial – que muitas advogam ter se iniciado com os estupros coloniais – não se compôs como “democracia racial”. Ao contrário, revelou-se cinicamente racista, o que exige que nos debrucemos com seriedade sobre o entrecruzamento construído entre gênero, colonialidade, raça e capital, já que ele está no cerne da hegemonia de valores culturais que mantém os arranjos institucionais antidemocráticos no Estado. Ao analisar os pactos sociais que forjam as subalternizações das mulheres, as violências do patriarcado brasileiro e a conexão de gênero, raça e classe, a professora e teórica feminista brasileira Heleieth Saffioti observa em Gênero, patriarcado, violência (2004/2015) vantagens que se somam aos brancos, ricos e heterossexuais em sociedades racistas, classistas e sexistas. Tais conexões são, portanto, indispensáveis para elaborarmos, numa visão geopolítica do conhecimento, um Pensamentos dos Trópicos, sobretudo no nosso Brasil. Saboreando essa ideia, deixo o convite para que leiamos também a professora e teórica feminista Lélia Gonzalez, que penso ser uma das imperdíveis teóricas militantes com quem as mulheres brasileiras precisam se reencontrar. Lélia Gonzalez nos chama a atenção, em Por um feminismo afro-latino-americano (1988), para os atravessamentos materiais e simbólicos violentos que marcam a condição das mulheres afro-latino- americanas no Brasil, apesar de sua influência sobre a cultura brasileira. Eu diria que, imprescindível, Lélia confirma e analisa o que uma rápida visada na história nos convence irrefutavelmente: valores nocivos e antidemocráticos sempre forraram o chão da identidade nacional brasileira. Essa base racista, sexista e classista é convocada com recorrência por grupos que advogam a desigualdade em diversos níveis – os quais, não por acaso, há pouco vieram à tona com grande força no Brasil. O tecido axiológico, que faz, em dimensões e configurações diferentes, do sangue das nativas, negras e brancas o mais encontrado no solo brasileiro, convoca-nos diuturnamente às práxis feministas para a contraprodução cultural em nosso dia a dia, nossas organizações sociais, nosso aparato legal e nossas produções científicas e/ou filosóficas. Meu convite é que resgatemos saberes e práticas dos quais fomos espoliadas e alienadas, e que caminhemos para construir arcabouços reflexivos e críticos, plurais, sobre nós. Nossa urgência por novos parâmetros de eticidade, cuidados e paridade é enorme. Assumamos a desconstrução do racismo estrutural e da colonialidade patriarcal dos quais o Estado brasileiro é signatário – seja por herança, costume, negligências ou conveniências de alguns poucos que até o momento deram as cartas do jogo. Decolonizando o olhar CAROLINE MARIM
Para construir um olhar decolonial, torna-se imprescindível rever as raízes
do pensamento ocidental, fundadas no privilégio dado ao sentido visual em detrimento dos outros, como o tato, o olfato e a audição. O ponto questionável é a centralidade e a persistência da visão para construir as categorias estéticas ocidentais que são limitantes, ao serem exportadas ou transferidas a culturas que valorizam outros sentidos na apreensão da realidade. Em algumas culturas – como a africana, a ameríndia e a andina, entre outras –, não se privilegia o sentido visual; a oralidade, o toque, a convivência relacional e a valorização das trocas harmoniosas com a natureza são os pontos geradores e produtores de todo o conhecimento. A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí aponta em seu artigo “Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos” (1997) que encontramos uma influência teórica fortemente ocidentocêntrica (Europa e Estados Unidos) nos estudos africanos. A propagação da ideia de conhecimento como iluminação, do conhecer como ver e da verdade como luz pode ser notada na frequente associação de uma visão imparcial diretamente relacionada à objetividade. Esse regime de visualidade hegemônico e suas vãs promessas de objetividade acadêmica, científica e estética têm sido refutados por inúmeras teóricas feministas. No artigo “The Mind’s Eye” [O olhar da mente] (1983), Evelyn Fox Keller e Christine Grontkowski examinam as ligações entre o privilégio da visão e o patriarcado, afirmando que as raízes do pensamento ocidental no visual produziram uma lógica masculina dominante que constantemente exclui outros sentidos para construir as concepções de realidade e conhecimento no Ocidente. E o Ocidente está no centro da produção de conhecimento acadêmico africano, como destaca Oyěwùmí. Essa centralidade não apenas influencia, mas também resulta na invalidação de conhecimentos, saberes e valores culturais não assimilados pela cultura ocidental. Epistemicídio que acompanha o processo colonizador e se mantém pela reprodução de modelos de conhecimento ocidentocêntricos que ainda estão presentes com força em nossas produções científicas e artísticas e nos meios de comunicação. De acordo com Oyěwùmí, nem mesmo o feminismo escapou da lógica visual do pensamento ocidental, pois: “A emergência do patriarcado como uma forma de organização social na história ocidental é uma função da diferenciação entre corpos masculinos e femininos, uma diferença enraizada no visual, uma diferença que não pode ser reduzida à biologia”. Não somente a suposição das “mulheres” como universais – presente em muitos escritos feministas –, etnocêntricas, mas a hegemonia do Ocidente em relação a outros agrupamentos culturais também pode ser notada à medida que as teorias ocidentais aplicadas universalmente partem do pressuposto de que as experiências ocidentais definem as experiências de outras culturas. A principal crítica que feministas como Oyěwùmí apontam é a importação de conceitos e categorias ocidentais para estudos e sociedades africanos, como o termo cosmovisão. Conceito de origem alemã (Weltanschauung), largamente usado na filosofia, refere-se a uma percepção geral do mundo, a valores e crenças formados com base em uma descrição global por meio da qual um indivíduo, grupo ou cultura percebe e interpreta o mundo e interage com ele. Para Oyěwùmí, o termo cosmovisão é eurocêntrico, pois capta o privilégio ocidental do visual. Por isso é mais apropriado usar o termo cosmopercepção para descrever culturas que privilegiam outros sentidos, como a iorubá, que apreende a realidade explorando diferentes sentidos, entre eles a oralidade e a audição. Do mesmo modo que acontece nos estudos africanos, é extremamente problemático adotar no Brasil a visualidade como parâmetro epistemológico e sobretudo estético, pois as fortes raízes de ancestralidade africana e ameríndia valorizam outros sentidos, em especial a oralidade e a corporeidade, e também a convivência. Assim, diante de tal crítica, o feminismo decolonial pretende constituir-se dentro de realidades históricas e sociais particulares, como veremos a seguir. Simón Yampara Huarachi, no artigo “Cosmovivencia andina: vivir y convivir en armonía integral – Suma Qamaña”, nos conta sobre uma epistemologia aimará (nação que compreende os Andes e as regiões altiplanas da América do Sul, principalmente Bolívia, Peru e Chile). Além de cosmopercepção, no caso dos povos ameríndio e andino podemos falar de cosmoconvivência – um conviver em harmonia integral, no qual relacionalidade, correspondência, reciprocidade e observância do movimento cíclico e não linear da natureza são as fontes de toda vida. Cosmoconvivência quer dizer: “[...] processe, use e desfrute de energia material e espiritual interativamente e, ao mesmo tempo, ordene a vida de maneira convivial com os diferentes mundos (animais, plantas e divindades) e espaços, emule as energias que cada um possui em um processo ayni”. Assim, como podemos desconstruir nossos olhares ocidentocêntricos para resgatar e preservar diversas narrativas invisibilizadas em nossa cultura? Consideremos a análise estética do trabalho de duas artistas que admiro: Björk e Regina José Galindo. De um lado, na exposição Björk Digital no Museu da Imagem e do Som (MIS, 2019), mais precisamente na instalação de “Family” e “Notget”, noto um forte apelo visual, mesmo em uma vivência que permite um pouco mais de liberdade de movimento, por meio de manoplas que replicam nossas mãos na realidade virtual, permitindo que dancemos com os avatares björkianos. Um forte incômodo se instala pela ausência de estímulo de outros sentidos, principalmente o tato e o olfato. Estou vendo aquela realidade, e não sentindo-a – a interação é ainda extremamente passiva, pouco relacional, e esse é um problema grave para quem nasceu em terra de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo Meireles. Para mim parece pouco. Por si só, o estímulo visual não estabelece uma realidade virtual: na verdade o que temos é uma experiência parcial da realidade, mesmo que acompanhada por música e pelos movimentos da mão projetada na realidade virtual. Por sua vez, Necromonas (2012), a performance da artista guatemalteca Regina José Galindo, é um bom exemplo de provocação e deslocamento de nosso olhar para outros sentidos: o cheiro é mais importante que toda a construção visual da instalação de arte. Nessa obra, é exposto um corpo humano nu. O corpo da mulher está vivo, emitindo necromônios que alertam a comunidade, ou seja, os espectadores, de que há risco de ela morrer. O corpo feminino deitado pacificamente na posição fetal atrai, enquanto o cheiro fedorento (de um porco em decomposição, escondido sob o corpo da performer), em vez de rejeitar o transeunte, visa alertar sensorialmente que todas as mulheres correm risco de morte. Nessas duas obras encontramos diferentes perspectivas. A primeira claramente prioriza e se instaura na potência da visualidade, fortalecendo a contemplação individual em um ambiente restrito sensorialmente, onde a música e a dança ainda são guiadas pelo sentido da visão. Já a segunda provoca diferentes sentidos com o objetivo de extrapolar a interação individual, instaurando-se como um alarme relacional coletivo para as mulheres, que sofrem todas as formas de violência. A obra de Björk ainda se instaura em uma estética ocidentocêntrica, marcadamente europeia, enquanto a da guatemalteca Galindo aproxima de uma estética marcada pela influência dos povos originários maia, garífuna e xinca. Tal como os povos iorubás, ameríndios e andinos, a cultura maia, diferentemente da ocidental europeia, apreende a realidade explorando diferentes sentidos. Apreensão que envolve mais do que a percepção, trata-se de “uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um todo, no qual todas as coisas estão ligadas”, como diz Hampâté Bâ em “A tradição viva”, no livro História geral da África. Precisamos, portanto, olhar além das aparências visuais. Tecer uma trama coletiva, um entrelaçamento de memórias, experiências e histórias que nos reconecte à herança de uma lógica do convívio e não da competição, que valorize todos os sentidos, principalmente em nossa cultura, que tem fortes influências oral e relacional. Uma tessitura da interação e da reciprocidade, uma epistemologia afetiva capaz não apenas de decolonizar as crenças de nossos corpos, mas de reparar, reconstruir e reorientar a ciência, a filosofia e as artes para nos aproximarmos mais dos povos originários. Reorientação que se dá pelo toque, pelo olfato, pelo exercício de escuta – um exercício primordialmente sensorial e afetivo. Aliança e compromisso SUELY MESSEDER
Em tempos insólitos, letárgicos, agenciados sem agências e bizarros, nada
melhor do que desvendar o mistério do comprometer-se com a sabedoria ancestral, cujo vetor maior nos reporta aos ensinamentos de Mãe Stella de Oxóssi, senhora responsável pela obra de arte que é o “Discurso de posse da Cadeira 33”. Antes, porém, de adentrar na interpretação dessa obra, reporto-me à ideia de pessoa comprometida, que transversa o povo iorubá. Mãe Stella de Oxóssi declara que uma pessoa útil/especial/comprometida é aquela que cumpre a função destinada a ela e se distingue da massa uniforme. Portanto, compreender-se como pessoa comprometida é reconhecer-se fora da serialização da tirania absoluta, seja pela metáfora do condor, seja pela metáfora do carcará ou do bacurau: cada uma se distingue pela situacionalidade e pelo contexto. Caminhar nessa trilha metafórica alada, mais adiante esclarecida, é render-se à utopia de que nossas alianças se construirão em uma espécie de espiral que nos conduz à miríade das justiças − social, racial, de gênero, erótica, religiosa, científica − e que nos alinhava aos princípios da ancestralidade, da resistência; do compromisso, da reciprocidade, do reconhecimento e da amorosidade. Em 12 de setembro de 2013, no mês das festas dos erês, das crianças, dos malucos – como dizia minha mãe de santo Luiza Gaiaku –, fomos todos/as presenteados/as pelo discurso, ou melhor, pela belíssima obra escrita por Mãe Stella de Oxóssi, cujo conjunto foi imortalizado em sua justa posse da Cadeira 33 na Academia de Letras da Bahia. Aqui me interessa o mergulho nesse discurso, sem nenhuma pretensão de etiquetar Mãe Stella de Oxóssi como escritora decolonial, mas com o desejo de interpretar essa obra tendo como elo o/a pesquisador/a encarnado/a em seu caminhar epistemológico, teórico, metodológico, ético e estético no giro feminista decolonial brasileiro, sem intenções peremptórias nos adjetivos. Não pretendo seguir nem me enclausurar na análise do conteúdo e sigo livre em minha intuição de olhar e/ou enxergar o discurso em quatro eixos: aliança, pertencimento, geopolítica do conhecimento e princípios. Logo no início do discurso, Mãe Stella de Oxóssi demonstra sua vontade de cumprimentar a todos da audiência como “amigos/as”, para em seguida negar sua própria vontade e declarar que, nos territórios da Academia de Letras e da religião do candomblé, as pessoas movem-se respectivamente pela tradicionalidade e pela hierarquia. Por isso, então, iniciaria seu discurso saudando as autoridades presentes ou representadas, e com isso saudaria a todos/as que compareceram à cerimônia de posse. Dessa forma ela nos concede uma reviravolta: nos faz criar um movimento reflexivo, sagaz, que nos permite a circularidade em ambas as tradicionalidades. Sua audiência é múltipla, e o elo é considerado pela palavra “amigos/as”. A palavra “amigo/a” também nos remete à insurgência possível em ambos os lugares de pertencimento, muito embora a resistência seja o princípio que rege os dois lugares hierárquicos. Então, pensaríamos como ponto de partida o paradoxal – onde desembocaríamos em uma espiral aguda. A meu ver, a tradição deve ser uma reinvenção contumaz, pois, diferentemente do que se poderia imaginar, a tradição não é estática: ela é movimento. Mãe Stella apresenta seu ser no mundo, ou melhor, o ser em seu pertencimento e compromisso, sem entretanto abrir mão de sua agência. Ela nos revela a pessoa especial/útil/comprometida em sua especificidade, cujo compromisso nos faz atentar para seu pertencimento ao orixá, à ancestralidade e à comunidade. O movimento é a tríade e circula na pessoa somente se o compromisso for selado na feitura do iniciado ao candomblé, no evocar da palavra “obrigação”. Para Mãe Stella, o movimento do verbo “comprometer-se” nos conduz a obrigarmo-nos a cumprir um pacto feito, não importa se escrito ou não. Em sua origem latina, obligare é sinônimo de unir, o que implica dizer que, no ato performativo de dirigir-se a alguém “um muito obrigado”, revela-se uma ligação em virtude do favor prestado. Sendo “obrigação” uma das palavras-chave do candomblé, com efeito, a obrigação fica sendo então uma forma de estar cada vez mais unido aos oríÿa. Aqui emerge o princípio da reciprocidade, pelo qual o/a sujeito/a regula sua conduta ética, a qual não prescinde da formalidade da escrita, mas decorre do elo estabelecido na inter-relação pessoal e comunitária. Mais adiante, Mãe Stella fala ainda que a generosidade e a grandeza do ser são evocadas no ato da aliança com o compromisso. A nobre senhora mais uma vez sinaliza o caminho do diálogo entre a Academia Científica e o Candomblé, evocando dois símbolos, o anel da formatura e as correntes da feitura, que significam respectivamente o compromisso com as duas tradições. A princípio, ela nos mostra que as correntes, nos primórdios, são fininhas para os/as iniciantes, ainda frágeis; necessitam, portanto, fortalecer- se com a passagem do tempo para então se tornarem um elo mais potente, capaz de segurar muitos outros elos. Essa narrativa sobre o anel e as correntes nos revela várias camadas desanuviadas. A primeira tem a ver com o anel, que simbolicamente indica o compromisso com os estudos acadêmicos e o crescimento social da pessoa – algo estimado por mãe Aninha para seus/suas filhos/as de santos. Os passos são revelados esmiuçadamente em uma temporalidade do aprendizado. Mãe Stella nos revela o simbólico das correntes fininhas nos primórdios de sua feitura e nos convida a enxergar seus vários referentes, a exemplo da multirreferencialidade do arco-íris. O ser precisa ser fortalecido, afinal o elo necessita de uma ponte mais densa para que outros/as atravessem. Em sua capacidade de diálogo e na busca de elos nas duas tradições distintas, ela nos oferta um repertório para designar as pessoas que têm um objetivo comum: colegas de academia, confrades e confreiras da mesma confraria, colegas de sua comunidade Ilê Axé Opó Afonjá, cumprimentando-se uns aos outros como irmãos/ãs. Assim, confraria, irmandade, comunidade. Curiosamente, os juntos em elos, os juntos em comunidade, os juntos em confraria, os juntos em irmandade consistem no objetivo comum. E não ao acaso Mãe Stella evoca, sabiamente, na comunidade Ilê Axé Opó Afonjá, na figura de Mãe Aninha, o orixá Xangô no princípio de sua ancestralidade. Xangô, que para o povo do candomblé revela a Justiça. Portanto, seguiremos no melhor tom possível em nosso objetivo comum, encarnado na justiça racial, social, de gênero, erótica, religiosa, científica e, certamente – para aqueles/as que compreendem o elo entre essas justiças –, na disputa e no conflito para que haja entre nós a justiça restaurativa. E, com a compreensão dos símbolos das duas tradições, Mãe Stella nos esclarece que a corrente e a cadeira serão honradas por seu pacto, uma vez que a cadeira deixa de ser apenas um lugar de assento para transformar-se em trono simbólico onde ilustres cidadãos se imortalizam. Para adentrar nesse modelo contrastivo tecido por Mãe Stella de Oxóssi entre as duas tradições, com maestria ela nos alinhava nessa nova forma de perceber o princípio da ancestralidade, agora a acadêmica, e nos convida a enveredar em sua geopolítica do conhecimento da Cadeira 33, cujo patrono é o abolicionista Castro Alves. E cita então os imortais que o sucederam: Francisco Xavier Ferreira Marques, Heitor Praguer Fróes, Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araújo. Quando nos debruçamos, ao longo de sua narrativa, nos feitos dos quatro homens que a antecederam, importa o destaque que Mãe Stella oferta à mulher-mãe de Heitor Praguer Fróes, Francisca Praguer Fróes, considerada feminista e uma das primeiras mulheres formadas em medicina no Brasil. Importa-nos também o destaque a seu antecessor imediato na Cadeira 33, o historiador doutor Ubiratan Castro, um homem negro e gordo que se empenhou contra a discriminação racial. Embora Ubiratan Castro tenha escrito pouco, em sua carreira acadêmica ele nos demonstrou a importância dos levantes para o Estado da Bahia. Em seus escritos também aparece a ideia da Revolução do Haiti – somos nós os condenados da terra –, embora, como nos lembra Caetano Veloso em sua canção: “o Haiti não é aqui”. Com isso, precisamos acolher a revolução do Haiti, mas, ao mesmo tempo, nos situar em nosso local de pertencimento, neste caso a Bahia e seus levantes. Mãe Stella nos recorda, em seu discurso, um sentimento que nos afeta positivamente – no qual aposto a louvação entre nós subalternizados, a alegria de existirmos como gente. E nos revela que Ubiratan Castro, Bira Gordo, que assim gostava de ser chamado, mesmo com a saúde frágil transmitia alegria e era um ótimo contador de “causos”, ofertando-nos grande contribuição ao mundo intelectual. É nesse contexto que Mãe Stella nos apresenta a especificidade de Ubiratan Castro alinhavada com a especificidade de Castro Alves. Segundo ela, Bira narra a trajetória da libertação dos/as escravizados/as no Brasil sublinhando a necessidade da luta constante pela liberdade, uma vez que as correntes de ferro, antes visíveis, são no presente correntes imperceptíveis, que marginalizam e excluem; e certamente ele buscaria na poesia de Castro Alves a força necessária para continuar nos enaltecendo como um povo guerreiro que sabe amar e amamentar quem os/as escravizou. Aqui, ela nos destaca o paradoxal das civilizações entre Ubiratan, homem negro, e Castro Alves, homem branco, que tinham um acordo e um objetivo comuns: a liberdade dos homens e das mulheres negros/as. E com isso nos afetamos e nos devolvemos questões: quais seriam nossas formas de alianças? Seríamos nós, feministas etiquetadas como decoloniais, que nos lançaríamos no voo para construir uma nova utopia com o compromisso de alinhavar nossas alianças? Mais uma vez, evoco a metáfora das aves reveladas em três momentos cronológicos distintos, por meio das quais detectamos a sobrevivência pela morte de outrem: a) o condor, que serviu ao liberalismo da América evocado na poesia do baiano Castro Alves; b) o carcará, homenageado na voz da então jovem cantora baiana Maria Bethânia e pela letra do maranhense João do Vale em pleno golpe militar de 1964; por fim, em 2019, o bacurau, que nomeou o filme com roteiro e direção de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, no qual se encontra a glorificação pela sobrevivência dos/as subalternizados/as e racializados/as, mulheres, transexuais, homens negros, professores, malucos, curandeiros. E assim concluo este texto, seguindo o conselho de Mãe Stella de Oxóssi: tentando lidar, no paradoxo entre nem a vaidade nem a modéstia, no movimento da tríade (ancestralidade, comunidade e espiritualidade) que circula no ser, comprometida e pertencente. No fim desta feitura sinto-me honrada em ter conhecido as obras da nobre senhora cujos ensinamentos nos levam a imaginar a modelagem ancestral, ética e estética de um/a pesquisador/a encarnado/a, em quem o compromisso para com a justiça social, racial, de gênero, erótica, religiosa e científica seja efetivamente sua forma blasfema de estabelecer alianças. Origem e ideias centrais SUSANA DE CASTRO
"Feminismo decolonial” nomeia uma corrente dos feminismos subalternos,
contra-hegemônicos, que incluem também os feminismos pós-coloniais, negro, comunitário e indígena, cujas representantes, intelectuais não brancas, denunciam o racismo de gênero e a forma como a geopolítica do conhecimento silencia as vozes das intelectuais e dos intelectuais subalternos, isto é, todas as pessoas não brancas, indígenas, negras, chicanas, latinas, não brancas, indianas, asiáticas, afrodescendentes, mestiças, imigrantes, e as vozes de sexualidade dissidente, pessoas transexuais, gays e lésbicas dos países periféricos do capitalismo (antes chamados de países do terceiro mundo, em desenvolvimento). A geopolítica do conhecimento – dominada pelos países centrais do capitalismo, pelo continente europeu e pelos Estados Unidos – impõe a todos os países do mundo a epistemologia hegemônica baseada em categorias modernas universais de pensamento. Assim, quem está autorizado a falar em nome da raça humana e de toda a população do planeta são somente os intelectuais e acadêmicos dos países centrais, pois eles estariam mais capacitados a perceber o todo da questão, o todo do problema, de modo neutro e imparcial. As mulheres e os homens subalternos não têm autoridade e lugar de fala nessa geopolítica, porque a perspectiva a partir de um país não desenvolvido é sempre vista como parcial e incompleta, por não ter o domínio das categorias universais de análise. O feminismo decolonial – constituído por intelectuais latino- americanas, afrodescendentes, mestiças, não brancas – denuncia a origem da geopolítica injusta do conhecimento na experiência colonial europeia nas Américas. A colonização europeia representa um marco na constituição de uma matriz capitalista-patriarcal de dominação econômica e intelectual que perdura até hoje, sustentando as desigualdades socioeconômicas e as desigualdades entre nações. Além disso, o feminismo decolonial incorpora duas questões centrais do feminismo negro norte-americano: a não fragmentação das opressões e a desuniversalização do sujeito “mulher”. A fragmentação das opressões é uma forma de dominação, pois nenhum oprimido subalterno sofre apenas um tipo de opressão. Todas as raças e nacionalidades subalternizadas são oprimidas pelo menos racialmente e economicamente, de modo que falar do racismo ou do sexismo sem falar da distribuição desigual de riquezas é desviar a atenção do fato de que a origem dessas opressões está no sistema capitalista mundial, ao mesmo tempo que não se questiona o próprio lugar de fala privilegiado desde o centro do capitalismo global. Além disso, a fragmentação das opressões serve também para separar e desunir, para dominar. Uma comunidade fragmentada, na qual homens e mulheres são inimigos uns dos outros, é dominada muito mais facilmente do que uma comunidade em que homens e mulheres são unidos pela solidariedade racial e de classe, e por laços comunitários. Como o restante dos feminismos subalternos, o decolonial também não se vê reconhecido na representação do feminismo pelo feminismo hegemônico-liberal-branco-ocidental-heterocentrado. As experiências e vivências de um corpo feminino racializado, cis ou trans, e pobre, em países da periferia global é tão própria que não há como alguém que nunca viveu sob as mesmas condições saber seu significado ou poder descrever suas dores. Os feminismos, portanto, são diferentes, porque há inúmeras formas de viver em um corpo feminino. Mas quando o feminismo mainstream reivindica a universalização da opressão de gênero como se essa opressão atravessasse todas as culturas e classes sociais, e se sobrepusesse a outras formas de opressão, o que ele está fazendo, na verdade, é também oprimir. Isso é racismo de gênero. A categoria “gênero” faz parte do sistema moderno-colonial eurocêntrico de dominação. Na medida em que o feminismo hegemônico reitera a centralidade dessa categoria de análise, ele é cúmplice e copartícipe do modelo de dominação mundial do capitalismo – que se fundamenta na separação entre ricos e pobres, entre países periféricos e centrais. Na primeira fase do capitalismo global, iniciada com a invasão do continente sul-americano pelos colonizadores europeus no final do século 15, “gênero” foi, ao lado de “raça”, uma das categorias fundamentais usadas para exercer o controle e a dominação das populações nativa e escravizada. O poder e o domínio do colonizador sobre o colonizado, a população nativa e os negros escravizados trazidos do continente africano não se davam exclusivamente pelo uso de força e violência, mas também, e principalmente, pelo exercício do domínio psicológico e epistêmico (= colonialidade do ser e do saber). A invasão do continente latino-americano coincide com o início da era moderna na Europa, mas normalmente os manuais sobre as histórias das ideias não associam os dois eventos. Para os intelectuais latino-americanos reunidos em torno do grupo que ficou conhecido como Grupo Modernidade/Colonialidade, no entanto, os dois eventos estão intrinsecamente ligados: a colonização é o lado escuro e oculto da modernidade. Filósofos europeus deram sustentação ao projeto exploratório colonial, pois nessa mesma época descreviam a humanidade por oposição ao natural e ao animal. O humano, diferente de toda a natureza não pensante, era pelo pensamento separado do mundo para melhor controlá-lo e dominá- lo. Dotado de uma racionalidade do tipo instrumental, a racionalidade para a qual a natureza é meio para o ser humano atingir seu progresso material e econômico, o colonizador não se apresentava mais como um conquistador de territórios e povos como antigamente, mas como um representante da cultura europeia elevada e civilizada – por oposição à cultura inferior dos povos nativos, presos à natureza. A não humanidade dos não europeus “autorizava” que os europeus os explorassem da mesma forma como faziam com os animais, sem dó nem piedade. Assim, o europeu colonizador branco identificou nos corpos não brancos de africanos e indígenas uma diferença “racial” que representava também uma diferença de graus de humanidade. Quanto mais escura a pele, mais bárbaro e não humano era o indivíduo, e isso justificava a exploração de sua força de trabalho da mesma forma que a natureza das colônias servia à economia extrativista europeia. A sociedade colonial era, portanto, organizada a partir da divisão social e racial: negros e índios escravizados na base e europeus ricos no topo; no meio, entre eles, os brancos pobres e os mestiços. A dominação completa dependia da introjeção da ideia, pelo colonizado, de que o modo de pensamento “racional” europeu, baseado em estrutura de pensamento categorial dicotômica, europeu/não europeu, civilizado/bárbaro, humano/não humano, cultura/natureza, superior/inferior, rico/pobre, homem/mulher, era superior ao seu. Até, então, como mostra a vasta literatura sobre o assunto, as sociedades nativas, africanas ou indígenas, organizavam-se socialmente de forma completamente distinta. A base social era comunitária, todos os membros do agrupamento participavam das relações de produção e distribuição. Não havia divisão social baseada em riqueza ou pobreza. As lideranças locais eram ocupadas pelas pessoas mais velhas, e as famílias não eram estruturadas em núcleos e sob o domínio do pai, como no caso europeu. Uma das formas de destruição desse modelo comunitário de organização foi a introdução do sistema moderno/colonial de gênero. Na medida em que as mulheres nativas eram retratadas como não humanas ou selvagens, eram assim retratadas contraditoriamente como “não mulheres”. O sistema europeu de gênero identificava a humanidade como dividida pelo binômio de gênero homem/mulher. A feminilidade era considerada universalmente expressa pela oposição ao masculino, a mulher era o outro do homem. Isso significava que ela era o oposto do que se compreendia como característica exclusivamente do masculino: frágil, passiva, doméstica, materna, emotiva, insegura e fraca. Quem não reproduzisse esse modelo de feminilidade era evidentemente considerado não mulher e, portanto, não humana. Mas claro que a relação entre homens e mulheres na época anterior à colonização não se baseava nessa dicotomia de gêneros opostos que se complementam, porque o modo de pensamento comunitário não era dicotômico e categorial. Não havia essa expectativa de que o sexo biológico determinasse de modo essencial a posição social e o comportamento das pessoas. A introdução do sistema sexo-gênero na colônia foi, por essa razão, uma ferramenta poderosa de dominação, pois fomentava a oposição entre homens e mulheres, pondo em risco os laços comunitários. A divisão e a fragmentação, a separação em categorias opostas, como as de gênero e raça, representam o modo do pensamento europeu moderno que perdura até hoje e que serve de estratégia de dominação e exclusão. O feminismo surge justamente para contrapor-se a essas dicotomias de gênero e a esses ideais de masculinidade e feminilidade que colocavam as mulheres no lado doméstico e submisso. O hegemônico feminismo branco de classe média serve aos interesses de dominação capitalista patriarcal quando define a dominação masculina com base em sua experiência. Assim, por exemplo, durante um longo período a pauta do feminismo mundial foi o direito da mulher ao trabalho e à vida pública. Mas essas questões jamais fizeram parte da pauta, por exemplo, das mulheres negras ou das mulheres trabalhadoras. O feminismo negro norte-americano foi o primeiro a apontar essa falha ao anunciar que a matriz de dominação era múltipla e envolvia não apenas a diferença de gênero, mas também a econômica e a de raça. As mulheres racializadas dos países periféricos do capitalismo global carregam no corpo a experiência da colonização. Na época colonial não foram consideradas mulheres; ao contrário, eram, na visão do colonizador, bestas sexuais, selvagens. Somente na medida em que foram “embranquecendo” ao longo dos séculos, isto é, submetendo-se ao ideal civilizado de feminilidade, foram então reconhecidas como “mulheres”. Essa ferida colonial nunca foi sarada, e o ponto de vista soberano do colonizador perdura até hoje nas relações centro-periferia. Para o feminismo hegemônico, as mulheres periféricas precisam de sua ajuda para se tornarem, como elas, mulheres economicamente independentes e autônomas – o que nos faz concluir que elas ainda nos veem com a mesma condescendência dos dominadores para com os não humanos. O fim da colonização não significou o fim do eurocentrismo e da dominação do capitalismo global sobre a economia dos países não europeus. A população local já havia sido socialmente estratificada de acordo com o ideal de branquitude. O racismo se entranhou nas relações sociais das ex- colônias. Além disso, a relação de suposta superioridade cultural da metrópole para com a colônia foi transposta para o nível da geopolítica do conhecimento. As antigas colônias não realizaram um resgate cultural de suas raízes não europeias, valorizando seus saberes e pensamento. Muito ao contrário, mantiveram uma mentalidade de inferioridade diante da cultura branca europeia – e norte-americana, diríamos hoje. Qualquer indivíduo pode facilmente constatar como a mentalidade colonizada perdura nas sociedades latino-americanas, ao observar a mídia e a moda. Se um extraterrestre chegasse ao nosso país agora e assistisse aos programas de televisão, concluiria que a maioria da população é branca ou embranquecida – jamais imaginaria que mais da metade dos brasileiros é de afrodescendentes. Dividir para governar: era esse o lema da matriz de dominação capitalista global. Nesse sentido, raça e gênero sempre foram tratados como temas distintos. Isso permitiu que o feminismo hegemônico branco descrevesse a opressão feminina separadamente de todos os outros vetores de dominação, como o racial, de classe ou de nacionalidade. Sobretudo hoje, quando a crise pandêmica do capitalismo global traz à tona conflitos raciais e econômicos, fica mais patente a necessidade de o feminismo brasileiro buscar resgatar as experiências comunitárias dos povos originários, quilombolas, brasileiros, caribenhos e latino-americanos. Precisamos também resgatar e valorizar a contribuição do feminismo negro brasileiro para a crítica às categorias de pensamento ocidentais modernas, e nos alinhar ao projeto de decolonizar nossa mentalidade periférica fazendo pesquisa não de modo neutro, mas a partir da singularidade de nossas experiências. Certamente não se trata de tarefa fácil, uma vez que o capitalismo global iguala todos os povos de modo artificial, ao nos fazer crer que pertencemos a uma aldeia global onde todos desejamos as mesmas coisas, os mesmos objetos de consumo. Valorizar as diferenças não significa excluir. Precisamos de uma nova metodologia de pesquisa que incorpore e valorize as diferenças e que não procure nivelar todas as experiências a um denominador comum: o da branquitude hegemônica, patriarcal, racista e heterocentrada. Precisamos de mais estudos sobre a branquitude, que nos mostrem por que o corpo branco não é racializado, enquanto todos os corpos não brancos são. Não falamos de feminismo branco, mas sim de feminismo negro e feminismo indígena. Por que será? Neste texto o leitor escutou as vozes de diversos autores: María Lugones, Yuderkys Espinosa Miñoso, Ochy Curiel, Aníbal Quijano, Oyèrónké Oyěwùmí, Angela Davis, bell hooks, Patricia Hill Collins, Lélia Gonzalez, Gayatri Spivak, entre outros. A elxs devo meu agradecimento pela oportunidade que me deram de reconhecimento libertador do meu lugar de subalternidade dentro da geopolítica do conhecimento e do feminismo hegemônico acadêmico. colaboraram nesta edição Caroline Marim é doutora em Filosofia pela UFRJ e professora colaboradora do programa de pós-graduação em Filosofia da PUC-RS. É coordenadora do grupo de pesquisa Epistemologias, Narrativas e Políticas Afetivas Feministas (CNPq/PUC-RS). Mary Garcia Castro é doutora em Sociologia pela Universidade da Flórida e professora visitante no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. É pesquisadora da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso- Brasil). Príscila Carvalho é doutora em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora em estágio pós-doutoral no Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT). Suely Messeder é doutora em Antropologia pela Universidade de Santiago de Compostela e professora titular da Uneb. É coordenadora do grupo de pesquisa Enlace (Uneb). Susana de Castro é doutora em Filosofia pela Universidade de Munique e professora associada do Departamento de Filosofia e do programa em pós- - graduação em Filosofia da UFRJ. Table of Contents entrevista Claudia Roquette-Pinto Imagens poéticas dossiê O que é o feminismo decolonial? Apresentação Decolonialidade do saber versus colonialidade do poder? Em busca de uma identidade brasiliana Decolonizando o olhar Aliança e compromisso Origem e ideias centrais colaboraram nesta edição