Você está na página 1de 1

UFU - Julho/2007

L
Leia os textos a seguir.
I
Texto A
T
“Ela nascera com maus antecedentes e agora pare- E
cia uma filha de um não-sei-quê com ar de se desculpar
por ocupar espaço. No espelho distraidamente exami-
R
nou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chama- A
vam-se “panos”, diziam que vinham do fígado. Disfarça- T
va os panos com grossa camada de pó branco e se fica- U
va meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda
R
era um pouco encardida pois raramente se lavava. De
dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. A
Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que
seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por
isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela
era iridescente, embora a pele do rosto entre as man-
chas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importa-
va. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. [...]
Só eu a amo.”

Texto B

“Uma nordestina

Ela é uma pessoa


no mundo nascida.
Como toda pessoa
é dona da vida.
Não importa a roupa

de que está vestida.


Não importa a alma
aberta em ferida.
Ela é uma pessoa
e nada a fará
desistir da vida.
Nem o sol de inferno
a terra ressequida
a falta de amor
a falta de comida.
É mulher é mãe:
rainha da vida.

De pés na poeira
de trapos vestida
é uma rainha
e parece mendiga:
a pedir esmolas
a fome a obriga.

Algo está errado


nesta noss vida:
ela é uma rainha
e não há quem diga.”

FERREIRA GULLAR. MELHORES POEMAS.


A) Cite dois elementos constitutivos do poema que contri-
buem para acentuar o seu caráter de apelo “popular”.

B) Compare os textos e discorra sobre a descrição da


nordestina, considerando.
• as perspectivas diferentes do narrador e sujei-
to lírico.
• os aspectos convergentes das opiniões do
narrador e sujeito lírico.

R ESOLUÇÃO :

A) Os dois elementos do poema que contribuem para


a acentuação de seu caráter popular são: o uso de
redondilhas menores e a predominância de uma lin-
guagem coloquial.
A redondilha, também chamada de medida velha, é
um verso de 5 (menor) ou 7 (maior) sílabas poéti-
cas. É um recurso formal muito utilizado em poe-
mas de apelo popular, principalmente nas cantigas
(poemas típicos da Idade Média). No caso do poe-
ma "Uma nordestina", de Ferreira Gullar, nota-se o
uso da redondilha menor durante todo o poema:
1 2 3 4 5
é / do/ na/ da/ vi/ da

Além disso, o poema utiliza-se de uma linguagem


coloquial, com o objetivo de atingir o leitor, fazendo com
que este se identifique com a personagem retratada no
poema. Percebemos também um grande número de re-
petições de palavras, além da ausência de vírgulas, ca-
racterizando assim uma aproximação com a fala do ho-
mem comum ao relatar um fato qualquer.

B) No trecho do livro A Hora da Estrela, de Clarice


Lispector, percebe-se que o narrador inicialmente
ressalta, de forma irônica, os defeitos da persona-
gem principal. Entre estes defeitos, notamos o seu
odor insuportável ("ela toda era um pouco encardida
pois raramente se lavava"), a sua feiúra ("no espe-
lho distraidamente examinou de perto as manchas
no rosto"), o seu mau gosto para roupas ("de dia
usava saia e blusa, de noite dormia de combina-
ção"), sua inutilidade e nulidade no mundo("ela nas-
cera com maus antecedentes e agora parecia uma
filha de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar
por ocupar espaço"; "ninguém olhava para ela na
rua, ela era café frio").

Já no poema "Uma nordestina", de Ferreira Gullar,


o sujeito lírico tenta dar um ar de resistência, de força
à sua personagem. A nordestina do poema, diferente
da Macabéa clariceana, é uma batalhadora ("rainha da
vida", "ela é uma pessoa e nada a fará desistir da
vida"), tem consciência do seu "estar" no mundo ("ela
é uma pessoa no mundo nascida", "como toda pessoa
é dona da vida"), é é uma mulher que consegue resis-
tir aos maiores problemas, como a fome, a falta de
amor, mas mesmo assim, permanece bela, bem vesti-
da "à sua maneira ("não importa a roupa de que está
vestida"), conservando a sua "majestade".
Embora com grandes diferenças, tanto o narrador do
trecho de A Hora da Estrela quanto o sujeito lírico do
poema "Uma nordestina" conseguem sentir uma certa
afinidade, uma certa identificação com as suas perso-
nagens. Mesmo tentando rebaixar a condição de ser
humano de Macabéa, o narrador consegue mostrar al-
guma compaixão por ela (" Só eu a amo"), assim como
o sujeito lírico do poema ("ela é uma rainha e não há
quem diga"), mostrando que ambos conseguem amá-
las (Macabéia e a nordestina), de modos diferentes,
mas ainda assim, é uma espécie de amor.

Você também pode gostar