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© 1976 – LOU CARRIGAN

LA GUERRA DE LAS ONDAS


Tradução de Luiz Oawaldo Cunha
Ilustração de Benicio
® 401219/510822
MORTE EM BAGUR
Estava na Espanha com o nome de Jacques Dubonnier,
cidadão francês, em férias. Mas seu verdadeiro nome era
Cirilo Gavrilovich, cidadão soviético, sob as ordens do
MVD. Homem alto, atlético, quarenta e cinco anos, ainda
possuía certos atrativos e uma virilidade a toda a prova.
Usava os cabelos curtos. Tinha boca bem marcada, embora
os lábios fossem finos. Completando o conjunto, os olhos
eram azuis e as mãos musculosas. Vestia calças creme,
camisa estampada e sandálias nos pés. Indumentária de
acordo com a estação do ano e o local onde se encontrava.
Fazia calor na praia de Pais. Uma praia enorme, comprida
e larga. À direita ficavam os penhascos onde haviam
construído um aglomerado de chalés cercados de pinheiros.
À esquerda, a faixa de areia. Era ali que se erguiam as
antenas da Radio Liberty, pintadas de vermelho e branco.
Jacques Dubonnier encontrava-se em terra firme, a
quarenta metros do mar, contemplando as antenas da Radio
Liberty, a emissora que tantos desgostos proporcionara aos
russos, desde o inicio de seu funcionamento, no mês de
março de 1959. Várias vezes falara-se em Moscou na
necessidade de silenciar aquela emissora instalada na
Espanha com o apoio financeiro do congresso dos Estados
Unidos. Diversas circunstâncias, porém, impediram um
ataque direto. A Radio Liberty possuía um sistema de
segurança perfeito, o que fazia os russos hesitarem.
Jacques Dubonnier, isto é, Cirilo Gavrilovich, não
acreditava que sua permanência ali tivesse alguma ligação
com a emissora. Viera de Paris para a costa nordeste da
Espanha, conhecida mundialmente pelo nome de Costa
Brava, a mando do diretório. Para quê? Não sabia ao certo.
Aparentemente, nada tinha a ver com a Radio Liberty. Mas
os planos dos chefes podiam mudar a qualquer momento. Ou
ocultarem possibilidades que mais tarde seriam reveladas.
No momento exato.
Jacques Dubonnier tornou a consultar o relógio e lançou
um último olhar à antena gigantesca da emissora. Em
seguida, observou distraidamente a praia. O mar estava azul
e a areia colorida pelas barracas dos veranistas. Ao fundo, à
esquerda, ficavam as ilhas Medas. Pareciam flutuar naquele
mar que se assemelhava a um cristal muito azul.
O espião balançou a cabeça com um gesto ambíguo e
voltou-se para as poucas construções que havia perto da
praia. Uma delas era um pequeno bar chamado “Mar y Sol”.
Ali marcara Dubonnier encontro com um informante
desconhecido. Entrou no “Mar y Sol” e aproximou-se do
balcão. Pediu uma laranjada. O bar estava meio vazio.
Àquela hora, todos preferiam aproveitar as delicias da praia.
Dois casais jovens, sentados a uma das mesas, riam
despreocupadamente. Uma das moças era espetacular. Os
seios exuberantes pareciam querer saltar da peça superior do
biquíni.
Dez minutos mais tarde, o ambiente continuava o mesmo.
Jacques acabou de tomar a laranjada e acendeu um cigarro.
Ficou fumando, pensativo, contemplando a praia por uma
das janelas. Os jovens haviam saído de novo para o sol e já
mergulhavam nas águas transparentes. Jacques Dubonnier
voltou a cabeça ao ouvir o telefone tocar. Tinha certeza de
que o chamado era para ele.
— Monsieur Dubonnier é o senhor? — perguntou o dono
do bar, após atender o telefonema.
— Sim — respondeu Jacques, pegando o fone.
— Obrigado.
— Sinto muito — disse uma voz de homem, quando
Jacques atendeu. — Impossível comparecer ao encontro,
Dubonnier. Sabe onde fica Bagur?
— Sei.
— Esteja lá daqui a uma hora. Explicarei tudo. Não é
necessário entrar no povoado. Sabe onde fica a casa de
Carmem Amaya?
— Claro que não — rosnou Jacques.
— É fácil localizá-la.

Sentada ao volante do Seat 127 que alugara pouco antes,
Dorothy Griffin viu Cirilo Gavrilovich sair do “Mar y Sol” e
consultar o relógio de pulso. O agente russo entrara no bar há
dezesseis minutos. Que teria o espião soviético vindo fazer
naquela zona espanhola onde só havia uma coisa importante:
Radio Liberty? A resposta parecia tão fácil que Dorothy não
queria aceitá-la.
Continuou atenta. Estacionara o Seat 127 a um quarteirão
do bar. Esperou Gavrilovich entrar no Dodge, também
alugado. Verificou em que direção ele seguia e ligou o
motor. Mas não foi no rastro do soviético. Parou alguns
metros adiante, desceu do carro e entrou no bar.
— Procura alguém, senhorita? — perguntou o dono,
vendo-a olhar ao redor.
Se Dorothy Griffin, além do francês, não falasse
corretamente o espanhol, a CIA, não a teria enviado à
Espanha, nos calcanhares de Gavrilovich.
— Sim — respondeu ela. — Um amigo meu. É alto,
cabelos curtos, olhos azuis. Tem quarenta e poucos anos.
— Acaba de sair — informou o proprietário. — Se andar
depressa, talvez o alcance na estrada de Pals.
— Obrigada. Quem estava com ele?
— Ninguém. Entrou sozinho. Pediu uma laranjada e ficou
vendo o mar. Na certa estava a sua espera, senhorita.
Chamaram-no ao telefone e ele foi logo embora. Ainda me
lembro do nome dele. Era Dubonnier.
— Deixou algum recado?
— Nenhum.
— Muito agradecida.
Dorothy saiu do bar. Segundos depois partia em busca de
Gavrilovich. Fora ao “Mar y Sol” apenas para receber um
telefonema? Dorothy ficou um pouco intrigada. Para receber
um telefonema, não precisaria ter saído do hotel. Em menos
de dois minutos avistou o Dodge de Gavrilovich. O russo era
um sujeito metódico e dirigia sem pressa, como se quisesse
apreciar a natureza. Havia pinheiros por toda a parte. O lugar
era muito agradável. O único detalhe que quebrava a beleza
da paisagem eram as antenas da Radio Liberty. Os soviéticos
estariam tramando alguma coisa com relação à emissora?
A senhorita Griffin ficou tentada a usar o rádio de bolso
para entrar em contato com Dick Ingram, o agente da CIA
que lhe servia de apoio naquele trabalho. Ingram era um
rapaz amável e simpático, que se instalara em Bagur a fim de
ficar perto dela e poder auxiliá-la, caso necessário.
Discretamente, é claro.
— Não — pensou Dorothy. — Não devo chamar o rapaz.
Com isso posso colocá-lo numa situação delicada.
Seguindo Gavrilovich, Dorothy chegou ao povoado de
Pals, a cinco quilômetros da costa. Continuando rumo ao sul,
alcançaram Regencós, lugarejo onde só a torre da igreja se
destacava.
Dali, tomando uma estrada ampla e moderna, foram
subindo em direção a Bagur. Pouco depois avistaram o
castelo em rumas no alto da montanha, em cuja base ficava o
povoado. Gavrilovich não entrou no povoado. Seguiu por
uma bifurcação e não se deteve no primeiro cruzamento. O
mar refulgia ao longe.
Para não passar por entre os chalés construídos na
montanha, descreveu uma circunferência quase completa.
Quando Dorothy já começava a ficar intrigada com as voltas
e mais voltas que o russo estava dando, Gavrilovich tirou o
carro da estrada, seguindo por um atalho à esquerda.
O Dodge levantou uma nuvem de poeira ao avançar pelo
caminho de terra batida. Dorothy refletiu um segundo e
chegou à conclusão de que o Seat 127 faria o mesmo, se ela
também entrasse pelo atalho. Parou o automóvel e ficou
observando a construção com aparência de casa e de castelo
a um só tempo, possuindo uma torre imponente. Ao baixar a
vista à procura do pó levantado pelo Dodge, não viu mais
nada. O agente soviético havia parado, certamente.
Dorothy deixou o Seat no acostamento, pegou a câmara
fotográfica que estava no banco traseiro e desceu. Procurou
uma posição de onde pudesse prosseguir com seu trabalho,
do melhor modo possível. Ela não era “Baby”, é claro. Mas
um dia talvez chegasse a ser tão famosa como sua colega da
CIA.
Viu o carro de Gavrilovich e parou, ocultando-se entre as
moitas. Sorriu, concentrando sua atenção no soviético que se
encontrava diante da casa em ruínas. Não havia portas nem
janelas. Apenas aberturas redondas que pareciam enormes
olhos cegos. A casa arrematada pela torre ficava numa
espécie de esplanada. Um atalho descia pela direita. A
esquerda só havia mato.
Dorothy focalizou a câmara e bateu mais uma fotografia.
Ingram saberia informar mais tarde que casa era aquela. E a
quem pertencia. A atenção da jovem espiã foi atraída por um
homem que surgiu do meio do mato. Gavrilovich também o
viu, pois foi andando em direção a ele. Dorothy lamentou
não ter trazido a teleobjetiva. Vacilou um instante, mas bateu
mais algumas fotos, procurando enquadrar o recém-chegado
da melhor maneira possível.
Os dois homens conversaram durante alguns minutos. O
desconhecido era mais baixo que o russo e de ombros mais
largos. Os cabelos brilhavam muito ao sol e Dorothy
calculou que ele usasse brilhantina.
— Se eu entrasse na casa? — pensou Dorothy. — Os dois
estão perto do mato. Posso contornar pelo outro lado. De
uma das aberturas laterais conseguiria fotografá-los mais de
perto.
Sem pensar duas vezes, avançou por entre as moitas.
Conseguiu chegar ao lado oposto da casa. Observou o
soviético e o desconhecido. De onde estavam não poderiam
vê-la, se corresse para a casa. Foi o que fez. Conseguiu
chegar sem novidades. Entrou. Estava tudo em ruínas. Não
havia móveis. Tratava-se, naturalmente, de uma casa
abandonada. A escada não parecia muito segura. Mesmo
assim, Dorothy subiu. No segundo andar havia uma
infinidade de quartos. Empurrou a porta de um deles e
aproximou-se da abertura que servia de janela. Seus cálculos
não falharam. Lá estavam os dois homens conversando,
perto do matagal.
Dorothy bateu várias chapas, xingando o desconhecido
que se colocara num ângulo onde as costas largas de
Gavrilovich lhe ocultavam o rosto. O filme terminou.
Felizmente trouxera outro rolo. Meteu a mão no decote e
tirou-o. O radinho portátil também estava ali. Recarregou a
câmara e bateu mais algumas fotos. Até ouvir uma voz de
homem no andar de baixo, dizendo:
— Vigiem tudo. Não pode escapar. Deve estar lá em
cima.
Dorothy Griffin empalideceu. Apesar do calor, um
calafrio sacudiu-a dos pés à cabeça.
— Suba com Manfred — prosseguiu a voz masculina. —
Eu procuro-a aqui embaixo. Não sairá viva desta casa.
A palidez de Dorothy Griffin tornou-se cadavérica. Que
deveria fazer em semelhante situação? De repente
compreendeu tudo. Nada, nem ninguém, poderia salvá-la.
Num movimento decidido, porém, tirou do seio o radinho e
apertou o botão de contato.

A curta distancia dali, no jardim de uma casa da rua José
Antônio, isto é, a estrada que cruzava Bagur, o agente
secreto da CIA Richard Ingram cantarolava sob as árvores,
balançando-se tranquilamente numa rede. De repente: bip-
bip-bip. O rádio portátil começou a zumbir no bolso
esquerdo das calças brancas do rapaz.
Ingram deu um pulo da rede, tirou o rádio e atendeu ao
chamado, quase gritando:
— Pronto?
— Ingram? Aqui é Griffin. Dorothy Griffin.
— Que aconteceu?
— Três homens estão em meu rastro, decididos a matar-
me. Mas consegui esconder um rolo de filme no banheiro. Se
conseguir escapar, tornarei a chamá-lo. Mas eles...
Silêncio.
— Griffin? — balbuciou Ingram. — Está ouvindo,
Dorothy? Como posso ajudá-la? Onde se encontra neste
momento? Griffin!

Encolhida num canto do quarto mais escuro que
encontrara, a agente Griffin desligou o rádio e escondeu-o
sob uns tijolos soltos. Fechou os olhos para que o brilho das
pupilas não a denunciasse em meio a escuridão.
— Ei! — gritou o homem cujos passos ecoavam pelo
corredor. — Venham! Já a encontrei!
Dorothy Griffin ergueu-se de um salto e correu para a
porta do quarto. Evitara, até aquele instante, o encontro fatal.
De qualquer modo, lutaria como pudesse, tentando salvar a
vida. Esbarrou com o inimigo, fazendo-o perder o equilíbrio.
Dorothy também levou desvantagem, pois o adversário logo
se levantou e, num movimento preciso, agarrou-a pelo braço,
puxando-a com violência.
Debatendo-se, a espiã desequilibrou-se e caiu de costas.
O homem jogou-se sobre ela, prendendo-a sob seu corpo
musculoso. Dorothy Griffin ouviu as vozes dos outros que se
aproximavam com pisadas fortes. Segundos depois, estava
deitada no chão, segura por três homens.
— A pombinha á linda — murmurou o que a agarrara.
— Não — gemeu Dorothy, quando ele lhe rasgou a blusa.
Num piscar de olhos, despiram-na inteiramente, O
primeiro homem deitou-se em cima dela, lhe mordendo os
lábios com sofreguidão. Dorothy conseguiu livrar-se
daqueles beijos animalescos, mas suas forças não foram
suficientes para empurrar o corpo pesado que a prendia ao
chão. Gritou com o resto de suas energias, mas logo a
amordaçaram com pedaços de sua própria roupa. O primeiro
homem possuiu-a. Dorothy parou de se debater. De nada
adiantava. Não se livraria da brutalidade daquelas feras.
Mesmo que pudesse gritar, ninguém a ouviria. Estavam a
trezentos metros do povoado.
Ninguém poderia ajudá-la. Estava sozinha numa casa em
ruínas, nas mãos de três animais dominados pelo desejo.

1 – Morte na Espanha
— Você é um anjo — afirmou Frank Minello. — Um
anjo de verdade!
— Ora, Frankie — riu a belíssima Brigitte Montfort. —
Os anjos têm asas e eu não.
— Tem sim — garantiu Frank. — As asas mais lindas do
mundo. Mas estão camufladas, é claro! Uma espiã deve agir
assim. Não concorda?
A pergunta foi dirigida ao homem sentado junto de
Brigitte. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, cabelos
cor de cobre, olhos negros, queixo agressivo, boca bem
marcada e o corpo atlético e rijo como o aço. Número Um
era, sem dúvida, o melhor espião de todos os tempos.
Morava em Malta numa casa com jardim e piscina, chamada
Villa Tartaruga, e usava o nome de Angelo Tomasini.
Quando lhe dava vontade, viajava pelo mundo com o nome
de Clark Coleman, realizando algum trabalho rendoso de
espionagem. Em resumo era o homem a quem Brigitte
Montfort amava.
— Para ser franco, Minello, nunca vi asas em Brigitte —
respondeu Número Um, contraindo a fisionomia.
— Não seja desmancha-prazeres — resmungou Frank. —
Custa muito dizer que ela é um anjo?
— Bem, isso é outra coisa. Não vejo asas, Mas concordo
com você, quando diz que ela é um anjo.
— Obrigada, meu amor — murmurou Brigitte, beijando
Número Um no queixo.
— Se é anjo, deve ter asas — insistiu Minello. — Todos
os anjos têm asas.
— Se quiser, me dispo inteiramente para você ver que
não escondo asa alguma, Frankie — disse a espiã,
maliciosamente.
— Caramba! — exclamou Minello. — Por mim pode
despir-se, é claro! Que acha da ideia, Número Um?
— Excelente — apoiou Tomasini. — Adoro contemplar
Brigitte nua. É o espetáculo mais belo que meus olhos já
viram.
— Acha mesmo, meu amor? — balbuciou Brigitte,
lânguida. — Sou o espetáculo mais belo para você, querido?
— Não costumo mentir — resmungou Número Um.
— Essa é boa! — explodiu Minello. — O espião mais
perigoso do mundo e diz que nunca mente! Todos os espiões
mentem.
— Não aborreça meu amor ou prendo você no terraço,
Frankie! — ameaçou Brigitte. — Que mais, querido?
Continue dizendo essas coisas lindas.
Número Um enrugou a testa e consultou o relógio de
pulso. Estavam no salão do apartamento de Brigitte, no
vigésimo sétimo andar do Crystal Building, na 54º Avenida,
em Nova York. Os maus momentos haviam passado mais
uma vez. Ela estava a salvo e Charles Alan Pitzer fora
trazido do Canadá para Nova York, há dias. Fora de perigo
do atentado que sofrera em Ottawa1. Para salvar tio Charlie,
Brigitte adiara a viagem para Villa Tartaruga. Resultado:
Número Um fora obrigado a vir para Nova York,
preocupado com o que pudesse acontecer á mulher a quem
amava acima de tudo.

1
Ver novela “Quer Ser Espiã?”, volume 274 desta coleção.
— Que mais? — insistiu a divina espiã. — Fale, meu
amor.
— Fale logo, homem — exclamou Frank. — Diga uma
porção de frases melosas e acabamos com isso. Não se
esqueçam que me convidaram para um jantar de despedida.
Por causa de vocês, enverguei um smoking, fiz a barba e usei
meu melhor perfume.
— Frankie! — riu Brigitte. — Homem não usa perfume!
— Por que não? — protestou Minello. — Quando você se
perfuma e eu sinto, penso: que maravilha! Logo, se eu me
perfumar, alguém pode dizer o mesmo. Pode me achar
maravilhoso. Além do mais é um perfume do Alaska.
— Do Alaska? — espantou-se a divina.
— Sim, senhora! Fabricado com extrato de bigode de
foca, misturado com graxa de globo ocular de pinguim.
— Santo Deus! — Brigitte arregalou os olhos e abriu os
braços. — Que nojo!
— Pois faço um sucesso com ele — rosnou Minello. —
Ainda outro dia eu ia quietinho pela rua, quando ouvi uns
gritinhos femininos. De prazer? Nada disso! De êxtase!
Voltei-me e o que vi? Três mulheres corriam em minha
direção. Abraçaram-me, me beijaram e queriam que eu as
amasse ali mesmo.
— Deixe de ser mentiroso, Frankie — repreendeu
Brigitte.
— Mentira o quê?! As três eram esquimós. Estavam em
Nova York por terem ganhado um concurso radiofônico
sobre a sexualidade dos pinguins viúvos e suas relações com
as focas solteiras com mais de cinquenta anos. Claro!
Naquelas condições...
Minello calou-se. Conseguira alcançar seu objetivo: fazer
Brigitte rir novamente. E a divina ria às gargalhadas. Seus
olhos se enchiam de lágrimas.
— Deixe de inventar histórias, Frankie — disse ela,
tentando conter o riso. — Está querendo, apenas, impedir
Número Um de me dizer coisas bonitas. Eu sei! Com isso
acaba de demonstrar que é péssimo amigo meu e ótimo
amigo dele!
— Bem, companheiro — suspirou Minello, dando um
tapinha nos ombros de Número Um. — Fiz o que pude para
ajudá-lo.
— Obrigado pela intenção, Frankie — murmurou o
melhor espião do mundo, tornando a consultar o relógio. —
Bem, acho que está na hora de irmos jantar:
— Ninguém sairá daqui enquanto eu não ouvir outra frase
bonita dos lábios do meu amor — afirmou Brigitte.
— Ah! Vou até a cozinha contar uma piada a Peggy. É
novíssima. Ouvi-a hoje de manhã — disse Minello,
levantando-se e saindo do salão, estrategicamente.
Angelo Tomasini levantou-se. Tomou a mão de Brigitte e
puxou-a para si. Abraçou-a. Aconchegou-a em seu peito. A
pele da divina reluzia como se fosse de ouro. Brigitte
Montfort parecia uma ilusão, uma beleza irreal, irradiando
luz própria.
— Frankie tem razão — murmurou Número Um. —
Você deve ser um anjo. Quando estou ao seu lado, sinto que
serei capaz de voar, que poderemos voar juntos.
— Que vulgaridade, meu amor — disse ela, enrugando a
testa.
— Todas as palavras muito usadas acabam parecendo
vulgares. Mas eu não a amo com palavras e sim com o
coração. Lamento não saber dizer o que você espera ouvir.
— Oh, meu Deus! Já disse! Não acrescente mais nada.
Quando o telefone tocou ainda estavam se beijando. Não
se alteraram, naturalmente. Peggy atenderia. Ou Frankie.
Para Brigitte e para Número Um, naquele momento, nada
mais existia. Apenas o amor. Aquele amor que deixava a
divina inquieta, temendo que um dia pudesse acabar, caso
um dos dois morresse. O que não seria difícil de acontecer a
qualquer momento. Mas enquanto estavam vivos,
aproveitavam o que a vida lhes podia oferecer de melhor: o
amor. Amor carnal e espiritual.
Os lábios de Brigitte separaram-se dos de Número Um.
Encostou o queixo no peito dele, suspirando. De repente,
seus olhos esbarraram em Minello, parado à entrada do
salão.
— Que aconteceu, Frankie? — interessou-se a divina.
— Johnny-florista telefonou. O ajudante de Pitzer.
— Sei muito bem quem é Johnny-florista. Que queria
ele?
— Recado de Pitzer, pedindo para você ir à casa de flores
o quanto antes.
— O quanto antes?
— Sim.
Brigitte voltou-se para Número Um, numa pergunta
muda. Viu o maior espião do mundo fazer um gesto
afirmativo e murmurar em seguida:
— Pois vamos. Quanto mais depressa formos, mais
depressa poderemos jantar.

Charles Alan Pitzer, chefe do Setor Nova York da CIA,
recebeu-os em seu quarto, nos fundos da casa de flores da
Segunda Avenida, onde a organização instalara o quartel-
general da região. Flores, espionagem e contraespionagem.
Pitzer estava deitado, com aparência bem melhor. Sorriu ao
ver Brigitte em companhia de Número Um, precedidos por
Johnny, que os esperara na garagem. Mas o sorriso de Pitzer
desapareceu ao deparar com Minello.
— Olá, abutre velho? — exclamou Frank, notando o mal-
estar de Pitzer. — Quantas toneladas de carniça comeu hoje?
— Era imprescindível trazê-lo? — suspirou Pitzer,
encarando Brigitte. Logo, acrescentou: — Olá, Número Um.
O espião respondeu com simplicidade. Brigitte sentou-se
ao lado da cama e passou a mão pela testa do homem que a
iniciara na espionagem.
— Está com bom aspecto, querido — disse ela, sorrindo.
— Nada de febre e uma ótima cor. Sabe de uma coisa, tio
Charlie. Pedi à Central o comando do setor.
— Que setor? — empalideceu Pitzer.
— Do nosso. E me deram, naturalmente.
— Isso significa que não mando mais aqui — murmurou
Pitzer. — E sim, você.
— Exato. Já tomei duas resoluções. Espero que sejam
respeitadas, durante minha ausência. Primeira: Johnny ficará
à testa do setor, até minha volta. Segunda: o senhor, como
parte do pessoal sob minhas ordens, tomará um avião para o
Havaí, para Acapulco, para o Rio de Janeiro ou lá para onde
quiser e ficará descansando algumas semanas. Descanso
físico e mental. Trate de apanhar sol em companhia de gente
agradável. Os gastos ficam por conta da CIA. E não adianta
discutir minhas decisões. Muito bem. Agora, pode falar, tio
Charlie. Que se passa?
— Chamaram da Central, para dar uma informação.
Dessas que devem ser examinadas por você, antes de
tomarmos qualquer resolução.
— Mataram um Johnny? — balbuciou Brigitte,
empalidecendo.
— Chamava-se Dorothy Griffin.
— Uma mulher? Meu Deus! Onde foi?
— Em Bagur, um povoado pequeno da Costa Brava, na
Espanha. Não deve ter ouvido falar nele.
— Engana-se. Perto de Bagur, nos penhascos que se
debruçam no mar, fica um dos melhores hotéis da Europa, o
“Cap Sa Sal”. Número Um e eu planejamos, diversas vezes,
passar uns dias lá. Mas sempre fomos obrigados a adiar
nossos projetos.
— Compreendo — murmurou Pitzer. — Seria absurdo
trocar Villa Tartaruga por um hotel. Mesmo sendo o mais
luxuoso do mundo.
— Pois é. Foi esse o problema. Mas talvez tenha chegado
o momento de irmos para lá — disse a divina espiã com voz
firme. — Que aconteceu com Dorothy Griffin, afinal?
— Não sabemos com exatidão. A moça foi enviada de
Paris para a Costa Brava, seguindo um agente russo chamado
Cirilo Gavrilovich. Ele está hospedado precisamente no hotel
“Cap Sa Sal”. A temporada anda meio fraca para o turismo,
este ano, na Espanha. Por isso Dorothy conseguiu
alojamento com facilidade. Um de nossos agentes foi
destacado para Bagur, com a finalidade de auxiliar o trabalho
dessa moça, dessa Johnny de saias. Foi o agente quem nos
informou da morte dela.
— Como aconteceu?
— Foi violentada e estrangulada em seguida.
— Violentada? — exclamou Brigitte.
— Brutalmente. Depois, estrangularam a pobrezinha.
Desconheço maiores detalhes. Se quiser cuidar do caso, entre
em contato com Johnny-Bagur.
— Já entendi — murmurou Brigitte.
— Vai ficar com o caso?
— É lógico — afirmou a divina espiã. Ergueu os olhos
para Número Um e acrescentou: — Se você não vê
inconveniente, meu amor.
— Já estou acostumado — respondeu ele. — Vamos
passar uns dias nesse tal hotel.
— Obrigada, querido — disse Brigitte, sorrindo. E
dirigindo-se novamente a Pitzer: — Avise a Central de que
aceito a tarefa. Peça para reservarem uma suíte no “Cap Sa
Sal”, em nome de Clark Coleman e senhora. Está bem assim,
meu amor?
— Claro — concordou Número Um. — Meus
documentos em nome de Coleman são individuais. Se fosse
em nome de Angelo Tomasini e esposa, não haveria
dificuldades.
— Não. Seremos Clark Coleman a senhora. Os
documentos já estão prontos há duas semanas. Mas isso são
detalhes insignificantes. Sabe o que o russo foi fazer na
Costa Brava, tio Charlie?
— Não. Cirilo Gavrilovich é um dos diretores da
espionagem soviética no norte da França. Um homem
importante. Mora em Paris. De repente foi para a Espanha,
hospedando-se no hotel “Cap Sa Sal”. Dorothy Griffin
estava em Paris há pouco tempo. Como falava muito bem o
espanhol, foi encarregada de segui-lo.
— Que aconteceu com Gavrilovich? Continua no “Cap
Sa Sal”?
— Não. Desapareceu.
Brigitte balançou a cabeça e imobilizou-se, pensativa. No
fim de dois segundos tornou a encarar Pitzer, murmurando:
— Perto do hotel “Cap Sa Sal”, seguindo a costa rumo ao
norte, existe uma emissora chamada Radio Liberty.
— Sei disso. Foi financiada pelo Congresso dos Estados
Unidos e depende do Ministério de Informação e Turismo da
Espanha. Isso significa que possuímos uma emissora
concedida pelo governo espanhol.
— O que acarretou muitas complicações para diversos
espanhóis — sorriu secamente Brigitte. — Dizem que a
emissora depende diretamente da CIA. Sabe disso?
— Cada qual tem o direito de espalhar os boatos que
quiser — resmungou Pitzer.
— Sem dúvida. Acham que a presença de Cirilo
Gavrilovich nas imediações possa ter alguma relação com a
emissora?
— Em espionagem tudo é possível. Nada se sabe com
certeza, enquanto não se torna evidente.
— Em resumo, estamos inteiramente no ar.
— Exato.
— Temos possibilidades de descobrir, por intermédio do
Congresso dos Estados Unidos ou com o auxilio de qualquer
outra repartição, se algo de especial está acontecendo na
Radio Liberty?
— Especial?
— Claro. Especial. Por que iria um agente soviético
abandonar Paris e ir para a Costa Brava, instalando-se a
poucos quilômetros da emissora?
— Tentarei descobrir alguma coisa e mandarei o que
conseguir para o hotel “Cap Sa Sal”.
— Ótimo. Previnam Johnny-Bagur de nossa chegada ao
aeroporto Muntadas, de Barcelona. Ele que passe por lã para
nos apanhar. Número Um e eu voaremos amanhã para a
Espanha. Obtenha, antes de nossa partida, o máximo de
dados pessoais a respeito de Dorothy Griffin e de Cirilo
Gavrilovich.
— Perfeitamente. Se surgir alguma novidade a respeito
da Radio Liberty, antes do embarque, mandarei avisá-la.
— Magnifico! Bem, o fato de sairmos esta noite para
jantar em nada poderá prejudicar a pobre Dorothy Griffin,
não é mesmo? — suspirou Brigitte.
— Não — balbuciou Pitzer. — Nada mais prejudicará
essa moça.
— Prometo não dizer tolices — exclamou Frank. — Nem
farei bobagens. Jantaremos tranquilamente.
— Tenho certeza disso, Frankie — murmurou Brigitte.
— Você sabe quando pode e quando não pode dizer e fazer
tolices. Mas existem pessoas que não sabem a asneira que
acabam de cometer, em Bagur.

2 – Costa Brava
Espanha, Aeroporto Muntadas, de Barcelona. Dezenove e
trinta. Richard Ingram, agente da CIA, mal continha sua
impaciência. O avião pousara há poucos minutos.
Finalmente satisfaria seu grande anseio profissional:
conhecer a espiã mais perigosa do mundo, em carne e osso.
Não o informaram como ela era. Mas Ingram a identificaria
mal a visse.
E assim foi. O homem alto e forte que acompanhava a
bela mulher de olhos azuis serviu para Ingram compreender
que não estava enganado.
Seu entusiasmo aumentou. Além de conhecer a famosa
espiã, conheceria também o lendário Número Um, o homem
que, anos atrás, constituíra o exemplo a ser seguido pela
espionagem europeia. O melhor agente com que a CIA
contara e que, segundo comentários espalhados desde então,
fora traído pela própria agência2.
Depois daquele falado acontecimento, Número Um
desaparecera do cartaz “oficial” da espionagem no
continente europeu.
Ela era belíssima e impressionante. Richard Ingram
engoliu em seco ao aproximar-se do casal. Comtemplando a
divina criatura de olhos cor do céu, murmurou:
— “Baby”?
— Olá, Johnny — sorriu ela, afetuosamente. — Este é
Numero Um.
— Como vai? — gaguejou Ingram, observando o espião.
Clark Coleman limitou-se a responder com um gesto
impreciso. Ingram tornou a engolir em seco e apontou para
fora, acrescentando:
— O carro está no estacionamento. Querem passar a noite
em Barcelona ou vamos diretamente para o “Cap Sa Sal”?
São cento e quarenta quilômetros até lá.
— Seguiremos imediatamente. Mas não para o hotel, por
enquanto. Esperaremos o momento oportuno para usar o
apartamento que nos reservaram. A menos que você não nos
possa arranjar um alojamento em Bagur.
— Oh, claro! Aluguei uma casa muito simpática na
entrada do povoado. Tem cerejeiras no jardim, imagine!
— Não se torture, Johnny — disse Brigitte, notando a
tristeza do rapaz, apesar de querer mostrar-se alegre e
despreocupado. — Essas coisas são assim mesmo. A culpa
não foi sua. Vingaremos Dorothy Griffin, garanto. Não fique
com remorsos, querido.
— Minha missão era apoiá-la, ajudá-la.
2
Ver novela: “Operação Estrelas”, volume 51 desta coleção.
— Responda uma coisa: você deixou de auxiliá-la,
quando ela lhe pediu, por acaso? Ou não pôde socorrê-la, por
estar envolvido em atividades alheias ao trabalho?
— Não. De modo algum! Eu estava deitado na rede,
quando iam matá-la. Mas nada pude fazer. Nada!
— Vamos ver suas cerejeiras, querido — sorriu Brigitte,
dando um beijo no rosto de Johnny.
Dois minutos mais tarde, partiam de Barcelona, no carro
de Ingram. Ainda era dia. O sol não se escondera até aquela
hora e a estrada estava intransitável.
— Acontece sempre isso às sextas e sábados — explicou
Johnny. — Todos querem passar o fim de semana nas praias
ou no campo. Já conhecem Barcelona?
Brigitte baixou as pálpebras um instante. Sim, já estivera
em Barcelona. Jamais se esqueceria do Johnny-Barcelona.
Como jamais se esqueceria dos que nunca mais voltam 3.
Como a pobre Dorothy Griffin, por exemplo. Observou
Número Um. Ele estava impassível, embora soubesse
perfeitamente como havia acabado o caso de Barcelona,
acontecido alguns anos antes.
— Sim — murmurou ela, finalmente. — Já estivemos
aqui antes. Conhecemos a Espanha muito bem.
— Mas não conhecem Bagur, imagino — atalhou
Ingram.
— Não.
— É um lugarejo simpático, com um urbanismo antigo e
desordenado. As casas foram construídas no sopé da
montanha, em cujo cimo há um castelo. Bem, o que restou
de um castelo, onde se supõe que se refugiassem os
espanhóis quando os mouros chegavam da ilha de Mallorca,

3
Ver A HORA E A VEZ, volume 192 desta coleção.
para atacá-los. É um lugar agradável. Perto dali ficam as
melhores praias da Costa Brava. Talvez possam conhecê-las.
— Tomara! Alguma novidade sobre o que aconteceu?
— Nada. Cirilo Gavrilovich continua desaparecido. A
gerência do “Cap Sa Sal” informou à Guarda Civil, é claro.
O corpo de Dorothy foi encontrado a quarenta e tantos
quilômetros de Bagur, numa cidade relativamente grande
que se chama Gerona.
— Quem encontrou o cadáver da moça?
— Uns garotos.
— Santo Deus!
— Bem, é melhor começarmos pelo começo, não acha?
— Sem dúvida.
— Vejamos... Eu estava no jardim, descansando na rede.
O rádio portátil estava em meu bolso, naturalmente. Eu
contava as cerejas que ia apanhar para comer, quando ouvi o
zumbido. Atendi logo e falei com Dorothy. Anotei nossa
conversa textualmente. Aqui está.
Johnny tirou do bolso uma folha de papel e entregou-a a
Brigitte. A divina leu o que estava escrito e passou para
Número Um. O espião tomou conhecimento da última
conversa entre Dorothy e Johnny e queimou o papel no
cinzeiro da porta a seu lado.
— Deduziu que ela o chamara do hotel ou das imediações
— murmurou Brigitte. — Logo, foi para lá, pensando poder
ajudá-la.
— Isso mesmo. Mas não a encontrei. Voltei para casa de
madrugada, esperando que ela tivesse conseguido livrar-se
dos inimigos e me esperasse lá. Passei a noite em claro,
aguardando uma chamada. Contrariando as ordens recebidas,
chamei-a por minha vez, sem obter resposta. Voltei ao hotel
no dia seguinte. Dorothy ocupava o apartamento 303, mas
não me atrevi a subir. Não por medo e sim para não
complicar as coisas. Passei o dia dando voltas pelos
arredores, mas não obtive resultados positivos. Fui para casa,
à noite, e tentei nova comunicação. Nada conseguindo, entrei
em contato com Gerona e informei que Dorothy continuava
desaparecida. Na manhã seguinte me chamaram de Gerona
para saber se havia alguma novidade a respeito da moça e de
Cirilo Gavtilovich. Como minha resposta fosse negativa,
disseram que tinham prevenido Europa e...
— Europa? — exclamou Brigitte, voltando-se assustada
para Número Um. — O senhor Europa está interferindo
nisso?
— Está — respondeu Johnny. — Encontrava-se em Oslo,
mas preveniram-no de Paris e ele foi para a capital francesa.
De lá seguiu para Gerona. Depois que encontraram o cadáver
e que nos informaram de sua chegada, ele aguarda para
conversar pessoalmente com você.
Brigitte tornou a olhar para Número Um. Fora
precisamente aquele homem, o chefe dos serviços da CIA na
Europa, quem traíra Número Um. Como nada lhe
acontecera, confirmava-se a suposição de que tudo fora
tramado pela própria CIA.
— Não se preocupe — disse o espião de cabelos cor de
cobre. — Esse sujeito não me interessa.
— Se prefere ir esperar por mim em Villa Tartaruga... —
sugeriu Brigitte, deixando a frase no ar.
— Não. Pode ficar descansada, já disse.
— Está bem. Que mais, Johnny?
— Europa está esperando para falar com você. Dorothy
foi encontrada na Casa de Carmem Amaya. É um lugar
muito conhecido de Bagur. Carmem Amaya foi uma famosa
bailarina espanhola. Faleceu há alguns anos. Havia
comprado a casa a uns camponeses, pouco antes de morrer.
Estava em ruínas e ela começou a restaurá-la. Com o
falecimento, ficou abandonada e estragou-se mais e mais. Os
turistas costumam visitá-la e as crianças usam-na para suas
brincadeiras. Fica a trezentos metros do povoado. Foi um
bando de meninos que encontrou o cadáver da moça. Estava
no andar superior, num quarto muito escuro. Os turistas não
entram ali. Passam pela porta e prosseguem na visita. Além
do mais, aquele aposento cheira mal e tem ratos.
— Ratos? — estremeceu Brigitte.
— Encontraram sinais de mordidas no corpo de Dorothy.
As crianças entraram lá, brincando de esconder, e
tropeçaram com a morta. Saíram correndo para avisar a
polícia. Nossos contatos em Gerona conseguiram liberar o
cadáver e espero que já tenha seguido para os Estados
Unidos. Isso é tudo.
— Não. Se li direito, na última conversa de vocês, pelo
rádio, ela disse que havia escondido um rolo de filme no
banheiro.
— Sim. É verdade. Sentindo-se encurralada pelos
inimigos, escondeu o filme e tentou fugir do hotel, com toda
a certeza. Mas eles agarraram-na e meteram-na num carro,
levando-a para a casa de Carmem Amaya, onde a mataram.
— Foi violentada, realmente?
— Sim — gemeu Ingram. — Sem a menor dúvida. Foi
encontrada nua, no quarto escuro. A roupa estava em tiras ao
redor dela. Depois, a estrangularam.
— Você viu o cadáver?
— Sim, vi.
— Identificou-se como amigo dela?
— Não. Achei que isso poderia complicar a situação.
— Fez bem — afirmou Brigitte. — Alguma novidade
sobre a Radio Liberty?
— Sobre a Radio Liberty? — surpreendeu-se Ingram. —
Não sei. Não faço a menor ideia. Por que?
— Antes de sair dos Estados Unidos recebi uma
informação da Central. Dizia que nada sabiam a respeito de
novidades em relação à Radio Liberty. Pensei que você,
estando perto, talvez soubesse de alguma coisa.
— Não. Não sei.
— Além da Radio Liberty, que mais existe de
interessante para nós, os espiões, em Bagur e nos arredores?
— Que eu saiba, nada. Existe um repetidor de televisão,
se não me engano. E um controle de voos, feito a
determinadas horas por um empregado da prefeitura. Não
creio que Moscou considere essas coisas como objetivos
interessantes.
— Sendo assim, só nos resta a Radio Liberty. Isso seria
um objetivo interessante para os russos, não acha?
— Sem dúvida. Bem, estamos chegando à Piaza Espanha.
A estrada transformava-se numa avenida larga. Usando a
ampla e bem iluminada passagem subterrânea, atravessaram
a praça. Foram sair na Gran Via ou Avenida de José
Antônio. Seguiram por ela, em silêncio. Cinemas, cafés,
prédios de apartamentos. A Universidade apareceu à
esquerda. Um pouco adiante o Hotel Ritz. Logo surgiu a
praça de touros. Deixando para trás uma praça cercada de
palmeiras, chegaram a outra extremidade da cidade e
pegaram a autoestrada, rumo ao norte. Começava a
anoitecer, quando Barcelona ficou à retaguarda. Os três
espiões mantinham-se em silêncio. Passaram pelo primeiro
controle de pedágio.
— É melhor chegarmos a Gerona pela autopista e, de lá,
pegarmos uma estrada menor para o interior — sugeriu
Johnny. — O caminho torna-se maior, mas ganhamos tempo.
Se formos pela estrada principal, passaremos por Palamos e
Playa de Aro, localidades de veraneio, onde o trânsito se
engarrafa a toda a hora.
— Johnny — murmurou Brigitte. — Em sua opinião
levaram Dorothy para a casa de Carmem Amaya, a fim de
violentá-la?
— Claro. O carro alugado por ela foi encontrado nas
imediações da casa em rumas. Na certa, ao fugir do hotel, ela
conseguiu chegar ao estacionamento. Mas os inimigos
alcançaram-na e levaram-na no próprio carro.
— Sim, mas há algo que não me convence muito em tudo
isso.
— A que se refere?
— Pense bem. Esses espiões encontravam-se no “Cap Sa
Sal”, por algum motivo importante. Descobrem uma agente
inimiga e a violentam. Depois a estrangulam. Acha isso
aceitável? Parece-lhe um comportamento lógico de espiões?
Além do mais, deixando o cadáver despido. Seria fácil
darem sumiço no corpo, atirando-o no mar, por exemplo,
com uma pedra amarrada ao pescoço.
— Era nisso que eu estava pensando — murmurou
Número Um. — Talvez tudo tenha um sentido. Agiram
assim para despistar, para afastar a ideia de que se trata de
um caso de espionagem.
— É possível. Mas daria menos trabalho acabar com ela
de outro modo. Um tiro certeiro, uma pedra no pescoço e
Dorothy estaria neste momento repousando no fundo do mar.
Bem, de qualquer modo, ela bateu fotografias e escondeu o
filme no banheiro. Logo os assassinos devem aparecer nelas.
Isso já nos fornecerá uma boa pista, não concordam?
— Sim — balbuciou Johnny. — Se encontrarmos o
filme. Dorothy Griffin estava no apartamento 303 do “Cap
Sa Sal”. Cirilo Gavrilovich ocupava o 411. Isto é, em outro
andar e na outra extremidade do hotel. Conhecem o “Cap Sa
Sal”?
— De fotografias, apenas — disse Brigitte. — Há muito
tempo ansiávamos passar uns dias nele. Creio que vamos
realizar nosso sonho, afinal.
— Vão para o hotel esta noite? — perguntou Ingram.
— Não. Precisamos ficar bem afastados de lá.
Oficialmente, pelo menos — sorriu Brigitte.
— Pergunto, porque se devem procurar o rolo de filme no
banheiro do apartamento de Dorothy, quanto mais depressa
melhor.
— Nem tanto. Se os homens agarraram a moça e a
violentaram, podem muito bem tê-la obrigado a dizer onde
escondera o filme. Logo, não o encontraremos mais no
esconderijo. Se eles de nada sabem, melhor para nós. O
rolinho continuará a salvo. Antes de nos instalarmos no “Cap
Sa Sal”, gostaríamos de dar uma volta ao redor do hotel, para
reconhecermos o terreno onde vamos pisar.
— Podemos observar o “Cap Sa Sal” de vários pontos —
informou Johnny. — Se quiserem, daremos um passeio
amanhã cedo.
— Feito — murmurou Brigitte.
— Seria interessante, também, darmos uma olhada na
casa de Carmem Amaya — sugeriu Número Um.
— Ainda está sob a vigilância da Guarda Civil — disse
Ingram, balançando a cabeça negativamente. — Mas podem
observá-la de longe. Não sei se será prudente nos verem
rondando por lá. Devemos levar em conta que os assassinos
de Dorothy Griffin talvez estejam prestando atenção nas
pessoas que visitem o local do crime.
— De qualquer modo, Número Um tem razão —
murmurou Brigitte, após um segundo de reflexão. — Eu
também gostaria de observar a casa, embora de longe:
— Posso preparar para amanhã de manhã uma espécie de
circuito turístico capaz de dar-lhes uma ideia da posição do
“Cap Sa Sal”, de seus arredores e da casa de Carmem
Amaya.
— Excelente ideia, querido — exclamou a divina espiã.
— Ninguém desconfiará de um casal de turistas interessado
em percorrer os arredores de Bagur.
Pouco disseram durante o resto do trajeto. Chegaram a
Gerona, atravessaram a cidade de ponta a ponta e seguiram
rumo a Bagur, passando por diversos povoados que Brigitte
e Número Um acharam bastante simpáticos. Depois de se
afastarem de La Bisbal, um lugarejo alegre e colorido,
Johnny sugeriu pararem num restaurante à beira da estrada,
para jantarem. Brigitte e Número Um apoiaram a ideia do
rapaz. Quanto mais tarde chegassem a Bagur, menos
possibilidades teriam de serem vistos.
Jantaram no El Celler, onde encontraram uma infinidade
de turistas franceses atraídos pela galinha assada e pelas
batatas fritas, especialidade da casa. A espiã mais perigosa
do mundo resolveu ser original e pediu pernas de rã, coelho
assado, e vinho tinto. Número Um preferiu salada com fatias
de presunto e um prato de caracóis, do qual Brigitte beliscou
um pouco.
Eram quase onze horas quando chegaram a Bagur. Pouco
antes de entrarem no povoado,
Johnny mostrou-lhes o castelo no cimo da montanha,
iluminado por poderosos refletores. A construção medieval
em ruínas parecia flutuar na escuridão da noite.
— A paisagem, de lá de cima, deve ser maravilhosa —
balbuciou a divina espiã.
— Exato — disse Johnny. — Se quiserem, iniciaremos
nosso tour de amanhã pelo castelo.
— Radio Liberty estará incluída no circuito turístico, não
é mesmo? — perguntou Brigitte.
— Naturalmente.
Estavam entrando em Bagur. A estrada bifurcava-se. A
da direita subia em ângulo reto. A do centro prosseguia rumo
ao povoado. E a da esquerda descia suavemente,
contornando as casas das abas da montanha. Avançaram pela
do centro e pararam, minutos depois diante de uma casa com
grades de ferro trabalhado.
— Não saiam do carro, por enquanto — aconselhou
Johnny.
O agente desceu e abriu a porta da garagem. Voltou a
sentar-se ao volante e levou o veículo para o jardim.
— Parece um lugar agradável — murmurou Brigitte.
— E sossegado — acrescentou Johnny. — Pena ter tanto
sapo. Há um charco do outro lado do jardim, cheio de sapos.
Passam a noite coaxando. É uma serenata terrível. Mas quem
goza de boa saúde não perde o sono com essas coisas.
— Hum — ronronou Brigitte. — Talvez passemos a noite
ouvindo o concerto dos sapos, Johnny. Onde podemos ficar?
Johnny indicou uma porta e, apanhando a mala de
Brigitte e a de Número Um, entrou na frente, servindo de
guia. Brigitte Montfort levava consigo sua inseparável
maletinha vermelha. Era o seu tesouro e não a confiava a
pessoa alguma. Na verdade, a famosa espiã da CIA poderia
ir de uma ponta a outra do mundo, levando apenas aquela
maletinha. Para que mais?

3 – Um Passeio a Cavalo
Do alto do castelo, na manha seguinte, contemplaram
Bagur e seus arredores. Viram as ruelas retorcidas que
partiam da praça, no centro da qual se destacava a igreja.
Avistaram ao longe o mar, as ilhas Medas envolvidas pela
neblina matinal e a casa de Carmem Amaya, onde a Guarda
Civil continuava de vigilância.
Por volta de meio-dia, Richard Ingram, desempenhando
seu papel de guia turístico, mostrara aos amigos todos os
pontos pitorescos da região. De Tuna, um mirador bem
localizado, puderam ver o hotel “Cap Sa Sal”, cercado de
pinheiros. Várias lanchas cruzavam o mar, arrastando
esquiadores aquáticos.
— Bem — disse Brigitte, finalmente. — Gostaria de dar
uma olhadela na Radio Liberty.
Johnny levou-os por caminhos cheios de curvas, em
direção A praia. Pela janela do carro, Brigitte contemplava a
paisagem. Ficou maravilhada. Não conteve uma exclamação
de alegria ao avistar a praia, colorida pelas barracas dos
banhistas. A água parecia mais transparente que o cristal e de
uma tonalidade de azul impressionante.
— Que lugar maravilhoso — disse ela.
— Há gente demais — rosnou Número Um.
— E verdade — admitiu a divina. — Mas repare na água,
querido. Como e transparente e azul. E parece tão calma.
— Nem sempre — retrucou Ingram. — Quando sopra a
tramontana, as ondas chegam a uma altura inacreditável.
Gigantescas. A água transforma-se numa verdadeira fúria
marrom e inunda toda a enseada com sua ressaca
avassaladora.
— Isso só acontece no inverno, sem dúvida — disse
Brigitte.
— No verão também. Se soprar a tramontana, ninguém
consegue ficar nesse trecho da praia. Não havendo vento, é
um lugar delicioso. Querem saber uma coisa interessante?
Dizem que a CIA tem uma base de submarinos nucleares
diante das instalações da Radio Liberty. São os boatos que
circulam por aqui.
— Onde? — perguntou Brigitte, espantada, observando a
praia de Pals. — Ali?
— Sim — prosseguiu Johnny. — É uma praia arenosa, de
fundo macio e branco. Apesar disso, a voz do povo acha que
há uma base de submarinos junto á Radio Liberty.
— Sim? Pode emprestar-me os binóculos?
Johnny entregou-os à divina espiã. Brigitte assestou-os e
ficou observando, a Radio Liberty. Nada havia de especial
na emissora. Aparentemente, pelo menos. Uma estação como
qualquer outra, com suas antenas e seus departamentos. De
um lado ficava o mar. Do outro uma extensão de terreno
coberta de vegetação, semelhante a um campo de golfe.
— Ao que parece, a Rádio fica entre o mar e um belo
campo de golfe — murmurou Brigitte, baixando os
binóculos.
— Exato — confirmou Johnny. — Perto do campo de
golfe há um destacamento da Guarda Civil com trinta
homens, pronto para acudir ao primeiro sinal de alerta
emitido pela Radio Liberty. Apesar de todos os falatórios, a
emissora encontra-se sob a tutela espanhola do Ministério de
Informação e Turismo, não se esqueça.
— Bem, estamos com fome — suspirou a divina.
— Podemos ir almoçar no “Cap Sa Sal” — sugeriu
logram.
— Deus me livre! Só quero aparecer no hotel quando for
absolutamente necessário.
— Sendo assim, podemos descer até a praia de Pais. De
lá voltaremos a Bagur. Conheço um restaurante pelo
caminho, onde fazem uma galinha assada inigualável. Se
você não for muito exigente, poderemos almoçar bastante
bem.
— Só sou exigente quando posso ser — disse Brigitte
Montfort. — Quando não é conveniente, aceito qualquer
coisa, Johnny.
— Já imaginava.
— Reparou naquele trecho da praia? — perguntou
Número Um, que pegara os binóculos e observava a
paisagem. — O público não tem acesso àquele pedaço.
— Sim — murmurou a espiã. — Li a placa em espanhol,
em francês e em inglês, informando que é proibido passar
daquele ponto.
— Um bom trecho de areia. Uma praia larga, livre de
qualquer obstáculo.
Os três entreolharam-se durante alguns segundos. Brigitte
concordou com um movimento de cabeça. Número Um
devolveu os binóculos a Johnny e deu o braço à espiã mais
perigosa do mundo, ajudando-a a voltar para o carro do
agente da CIA.

Brigitte sentou-se na cama rapidamente e olhou para a
porta, perguntando:
— Que é?
— Sou eu, Johnny. Aconteceu alguma coisa na casa de
Carmem Amaya. Posso entrar?
— Não, não — respondeu a divina. — Sairemos
imediatamente.
Brigitte voltou-se para Número Um, que jazia a seu lado,
gozando as delícias de uma sesta. Já havia acordado e ela
pôde ver o brilho dos olhos dele, na semiobscuridade do
quarto. Inclinou-se e beijou-o nos lábios, sentindo as mãos
do melhor espião de todos os tempos lhe acariciarem as
costas nuas e estremeceu de prazer.
— Ouviu o que Johnny disse? — sussurrou Brigitte.
— Sim.
— Espero que não tenham encontrado outro cadáver na
casa de Carmem Amaya.
— Só saberemos falando com ele. A sesta já durou
bastante.
— Sim, meu amor. Foi bom termos descansado porque
não sabemos o que o destino nos reserva para esta noite.
— Em minha opinião, devíamos esperar até estarmos
hospedados no “Cap Sa Sal”, para então agir — disse
Número Um.
— Prefiro tentar essa incursão ao apartamento de
Dorothy Griffin antes do senhor e senhora Coleman se
instalarem no hotel. Não vai discutir comigo sobre isso, bem,
amor?
— Há muito tempo aprendi que com você não se discute
— resmungou ele. — E pura perda de tempo.
— Bem — riu Brigitte maliciosamente. — Mas, em
compensação, quando está junto de mim, não perde tempo.
Número Um abraçou-a com força e beijou-a com
entusiasmo, tomando todas as iniciativas. O silêncio seria
absoluto se, de vez em quando, não passasse um carro pela
Avenida José Antônio. A tarde, porém, não se ouvia o
concerto dos sapos. Assim, os dois espiões podiam ouvir
nitidamente as batidas de seus corações.
— O que Johnny tem a dizer será tão importante que não
possa esperar um pouquinho? — murmurou Brigitte, após
um suspiro. — Quinze ou vinte minutinhos, bem?
— Vá perguntar a ele. Assim mesmo como está vestida.
Se não for realmente importante, volte para cá — sussurrou
Número Um.
— Se Johnny me visse aparecer assim, inteiramente nua,
desmaiaria ou, pelo menos, ficaria sem fala. Não creio que
ele esteja acostumado a ver mulheres tão belas como eu.
O espião riu, beijou-a rapidamente na boca e pulou da
cama, dizendo:
— É melhor nos vestirmos. Se Johnny falou que é
importante, tratemos de ouvi-lo.
Minutos depois, o casal saiu do espaçoso quarto de
dormir e foi ao encontro de Ingram, no jardim. O rapaz
estava parado junto a uma das cerejeiras. Brigitte colheu
duas cerejas e levou-as à boca, interrogando Johnny-Bagur
com um olhar sugestivo.
— Encontraram algo na casa de Carmem Amaya — disse
ele.
— O quê? — murmurou a divina, saboreando as cerejas.
— Não sei.
— Ora essa! Espero que não se trate de uma brincadeira,
Johnny. Eu estava dormindo uma sesta reparadora, pois,
como sabe, podem surgir dificuldades logo mais à noite.
— Não é brincadeira. Na verdade não sei exatamente de
que se trata. Uns dizem que é uma pistola. Outros, que é um
rádio portátil. Outros falam numa emissora clandestina. E há
quem diga que é uma faca...
— Boatos, bem? — resmungou Brigitte.
— Pois é. De qualquer modo, encontraram algo de
importância, pois a casa encheu-se de guardas civis. Estão
todos lá, neste momento.
— Todos? A quem se refere?
— Ao pessoal da Guarda Civil Espanhola, é claro.
— Ah, sim. Bem, não será fácil descobrirmos o que
encontraram.
— Não. E, para ser sincero, acho uma imprudência nos
aproximarmos abertamente daquela casa. Enfim, se quiser
mesmo ir verificar de que se trata, já encontrei uma solução.
— Adoro pessoas que encontram soluções com rapidez
— sorriu Brigitte. — E detesto as que criam dificuldades
para tudo.
— Podemos ir a cavalo — explicou Ingram.
— Você tem cavalos? — espantou-se a divina espiã. —
Onde?
— Não, não tenho. Mas, lá na extremidade do povoado,
no início da estrada que vai para Palafrugell, existe uma
cocheira. Chama-se “Hipica Can Miró”. Têm cavalos de
aluguel. Todos os dias vejo pessoas passeando a cavalo pelas
vizinhanças. Podíamos ir até lá, alugar os animais e
chegaríamos à casa de Carmem Amaya como quem dá um
passeio, inteiramente ignorante do que está acontecendo.
— A ideia não me parece má. Não monto há muito
tempo, mas isso não é obstáculo. Ou será melhor irmos para
lá diretamente, sem maiores complicações?
— Seria mais simples, realmente. Mas continuo achando
que os assassinos de Dorothy talvez ainda estejam por perto.
Não gostaria que eles tirassem conclusões a nosso respeito.
Não só por nós mesmos e sim porque as conclusões
complicariam ainda mais este caso tão enrolado.
— Esta bem — murmurou Brigitte, após contemplar
Richard Ingram, levemente em dúvida. Finalmente, dando de
ombros, acrescentou; — Não há nada de errado em dar uma
voltinha a cavalo por ai afora, não? Está disposto, meu
amor?
— Se não houver outro remédio — resmungou Número
Um.
Quinze minutos mais tarde, usando o carro de Johnny-
Bagur, chegaram à “Hípica Can Miró”, no alto de uma
ladeira bastante íngreme. Deixaram o automóvel junto ao
portão enferrujado e entraram. A cocheira ficava no fim de
uma alameda. Várias pessoas escolhiam animais para um
passeio. Uma moça aproximou-se dos recém-chegados e
perguntou, sorridente:
— Vão montar?
— Sim — respondeu Ingram. — Queríamos alugar
cavalos para dar uma volta por ai.
— O costume é saírem em grupos — explicou a moça. —
Esta tarde eu sou o guia.
— Bem, nós pensamos...
— Posso levá-los a lugares sossegados e agradáveis —
afirmou o guia. — Ei, Pepe! Vá com Fali e Valentin encilhar
três animais para estes senhores. Depressa, preguiçosos!
Brigitte observou a jovem sorridente. Usava botas, calças
texanas e uma camisa xadrez. Os cabelos louros caiam-lhe
pelos ombros. Os olhos eram verdes e pareciam lançar
faíscas. Uma moça de olhos escuros aproximou-se da outra,
para dizer:
— Só restam dois cavalos, Elena.
— Não — exclamou a loura. — Restavam três. Dá para
todos. Se aparecer mais alguém, sim, vai sobrar.
— São irmãs? — perguntou Brigitte, analisando as duas.
— Não — assustou-se Elena. — Ela tem seis irmãos, mas
eu não faço parte do bando. Vivem brigando. Tenho apenas
uma irmã. É mais boba que os irmãos dessa aí. Anda por aí
sorrindo para um garotão por quem se apaixonou.
— Isso não me parece tolice, Elena.
— Para mim, é. Prefiro montar, a passar a tarde perdendo
tempo com namoros. Sabem montar a cavalo?
— Mais ou menos — sorriu Brigitte. — São filhas do
dono da cavalariça, hem?
— Não — riu Elena. — O proprietário é um solteirão.
Chama-se Luís. Nós o ajudamos e ele nos deixa usar os
cavalos, quando queremos passear. Há pouco nasceu um
potrinho. Depois mostrarei a vocês. Há quinze dias, Dália
teve três cachorrinhos. Quer levar um deles? São uns
amores!
— Acredito. Agradeço o oferecimento mas já tenho um
cãozinho em casa. É um chihuahua. Chama-se Cícero.
Escute, Elena, seria possível passarmos pela casa de Carmem
Amaya?
— Claro. Não haverá outro remédio. Todos querem vê-la,
desde que estrangularam aquela moça. Passaremos por lá.
Vai fazer fotografias?
— Não — respondeu Brigitte.
— Todo o mundo anda batendo fotos da casa de Carmem
Amaya. Até uns dias atrás, ninguém dava importância às
ruínas. Agora ficaram todos interessados. São artistas de
cinema, por acaso?
— Quem? — murmurou Brigitte, intrigada.
— Você e esse senhor — explicou Elena, apontando
Número Um.
— Não. Não somos. Por que perguntou?
Elena trocou um olhar com Rosmy, a companheira de
olhos escuros, e as duas começaram a rir. Brigitte sorriu.
Esperou que passasse o acesso e encarou-as com um olhar
interrogativo.
— E que são tão bonitos, não acha, Elena? — disse
Rosmy.
— Cale-se, sua boba. Precisa aprender a não falar demais
— repreendeu-a a companheira.
— Quantos anos vocês têm? — perguntou Brigitte, rindo.
— Quinze — responderam as duas ao mesmo tempo.
— Quinze anos — pensou Brigitte. — É uma idade linda,
da qual nunca mais nos esquecemos. Aos quinze anos a vida
parece maravilhosa. E é, realmente. Só que quando se tem o
dobro dessa idade, tudo nos parece diferente. Enfim,
paciência. O tempo é implacável!
Os cavalos foram encilhados rapidamente. Pouco depois,
o grupo encabeçado por Elena saia da “Hipica Can Mirô”.
Seguiram pela esquerda, descendo a ladeira pedregosa.
Minutos mais tarde atravessaram a estrada e começaram a
avançar por um trecho coberto de pinheiros. Bagur ficou á
direita. No alto, as rumas do castelo recortavam-se contra o
céu azul da tarde. O calor já não estava tão forte e a
temperatura tornava-se agradável.
Cavalgaram durante meia hora por entre os pinheiros,
sempre sob o comando de Elena e de Rosmy, que se
mantinham na vanguarda e na retaguarda do grupo de
turistas. De vez em quando, punham os animais a galope,
mas logo diminuíam a velocidade, para não cansá-los.
Brigitte avistou, finalmente, a torre da casa de Carmem
Amaya. Pararam pouco depois numa esplanada cheia de
pedras. Atravessaram uma cerca natural, feita por arbustos
de folhas pequenas. Um guarda civil aproximou-se do grupo
de cavaleiros, fez um gesto com o braço indicando o atalho
que levava à estrada e disse em voz alta:
— Façam o favor de retirar-se. Ninguém pode passar por
aqui. Sigam por esse caminho, sim?
Não precisou repetir a ordem. O grupo de cavaleiros
seguiu na direção indicada. Chegando ao final do atalho,
Brigitte deteve sua montaria e voltou-se na sela.
— Acho que aconteceu alguma coisa — comentou
Rosmy. — Há mais guardas civis que ontem, não é mesmo,
Elena?
— Não sei. Parece. Não tive tempo de contar. Com
certeza encontraram outra mulher morta.
— Não fale assim — protestou Rosmy, estremecendo.
— Realmente — disse Ingram, entrando na conversa. —
Alguma coisa houve. Que teria sido?
— Sei lá — resmungou Elena, dando de ombros. — A
Guarda Civil vive metendo o nariz em tudo! Por isso estão
sempre bem informados.
— Sendo assim, a Guarda Civil vai encontrar os
assassinos da tal moça? — sorriu Brigitte.
— Sem dúvida. A Guarda Civil ou a Polícia. Mas os
miseráveis serão encontrados!
— Tomara! — murmurou a divina espiã. — Mas que
estará acontecendo agora, hem? Fiquei curiosa, confesso.
— Se quiser, posso tentar descobrir — ofereceu-se Elena.
— Sim? Como?
— Tenho um amigo que é amigo do filho de um dos
guardas civis. Por intermédio dele talvez possamos averiguar
o que está havendo. Veja! Há mais gente pelos arredores,
olhando para a casa. Como nunca houve. Nem no dia em que
encontraram a moça estrangulada. Algo importante
aconteceu, não é mesmo? Vou saber o que foi. Ali está meu
amigo. Esperem aqui. Volto já.
Bateu com os calcanhares nas ancas do cavalo e afastou-
se alguns metros. Desmontou e, levando a montaria pelas
rédeas, aproximou-se de um grupo de rapazes reunidos perto
das árvores, olhando para a casa. Conversou com eles
durante três ou quatro minutos e voltou para o local onde os
companheiros de passeio a esperavam.
— Não consegui descobrir — informou ela. — Mas
saberei mais tarde, garanto. Está em Bagur, senhorita?
— Sim — respondeu Brigitte. — Estou hospedada numa
casa no povoado.
— Rua José Antônio, número cinco — acrescentou
Johnny.
— Apareça por lá, se conseguir alguma novidade.
— Combinado. Bem, vamos continuar nosso passeio.
Ainda tenho outro grupo de turistas à minha espera.

Eram mais de sete e meia da noite quando Elena parou
diante do portão de ferro do jardim. Brigitte Montfort e
Número Um estavam recostados em espreguiçadeiras. Mal a
avistaram, ficaram de pé e o espião foi receber a jovem guia.
— Olá, Elena — disse ele, abrindo o portão. — Não se
esqueceu da promessa, hem?
— Não, senhor — respondeu a moça, um pouco
embaraçada.
— Entre, entre, querida — convidou Brigitte.
— Quer tomar qualquer coisa? O que?
— Nada, agradecida — murmurou Elena. —Vim apenas
para lhes dizer o que encontraram esta tarde na casa de
Carmem Amaya.
— O que foi?
— Um transmissor de bolso. Menor que um maço de
cigarros.
— Foi a informação dada por um dos guardas civis? —
balbuciou a divina espiã.
— Bem, um dos guardas soube e contou a um amigo do
meu amigo. Enfim, foi o que consegui descobrir. Foi o que
me disseram.
— Não falaram mais nada a respeito desse transmissor?
— perguntou’ Brigitte, indicando uma das espreguiçadeiras,
convidando Elena a sentar-se.
— Não. Um dos guardas encontrou-o no quarto onde
acharam o corpo da moça. Estava num buraco da parede,
onde os tijolos estavam meio soltos e fora do lugar.
— A Guarda Civil parece eficiente, hem? — sorriu a
divina. — Não quer mesmo tomar qualquer coisa? Nem um
refresco?
— Não, obrigada. E seu amigo, onde está? O louro de
cara simpática?
— Está lá dentro — riu Brigitte. — Quer que o chame?
— Não, não. Como no passeio estavam juntos e agora só
encontrei vocês dois, perguntei por ele. Não são artistas de
cinema, não?
— Infelizmente, não, querida — riu Brigitte mais uma
vez. — Escute: não se zangará se eu lhe der uma
lembrancinha, pois não?
— Nada disso — protestou Elena. — Meu pai ficaria
furioso, se soubesse que recebo coisas dos turistas. Bem, mas
não se aborrecerá se souber que apliquei a lembrancinha
numa obra de caridade.
— Sou da mesma opinião — admitiu a divina.
— Por favor, querido.
Número Um fez um sinal afirmativo com a cabeça e tirou
um maço de cédulas do bolso. Separou três de mil pesetas
cada uma e entregou-as a Elena. A moça recebeu as notas,
arregalando os olhos. Finalmente, sem fazer comentários,
guardou-as no bolso das calças e foi andando em direção á
rua.
— Obrigada — exclamou, do portão. — Espero que
queiram dar outros passeios a cavalo!
— É possível — respondeu Brigitte. — Mais uma
pergunta, Elena. Sabe onde posso comprar roupa para mim?
— Claro. Temos de tudo em Bagur. Não sou daqui, mas
venho todos os anos passar o verão. Conheço isto tudo, de
olhos fechados. Se quiser comprar roupa, é só ir à praça e
escolher entre a “Boutique 1701” e a “Helga y Sol”. Eu
aconselho a “1701”.
— Por quê?
— Fica em frente á minha casa. Se quiser, posso levá-la
até lá e apresentá-la a Nieves, dizendo que é minha amiga.
— Quem é Nieves?
— A dona da “1701”.
— Ótimo — exclamou Brigitte, aproximando-se de
Elena. — Vamos até lá. Você nos acompanha, meu amor?
— Se não se importa, prefiro ficar em casa — desculpou-
se Número Um.
— Como quiser. Não me demoro.
Mas só voltou uma hora depois. Número Um continuava
recostado na espreguiçadeira, fumando, quando Brigitte
apareceu diante do portão. Levantou-se e foi ao encontro
dela, beijando-a com ardor, como se há um século não se
encontrassem.
— Johnny continua aguardando notícias pelo rádio? —
perguntou Brigitte.
— Sim. E você? Como foi de compras? Encontrou algo
de seu agrado?
Brigitte soltou uma gargalhada, dizendo em seguida:
— Claro, meu amor! Encontrei na “Boutique 1701” o que
me faltava. Modelinhos que talvez não sejam muito
apropriados para mim, é verdade. Mas são engraçadinhos. E
servem para o que desejo. Com eles passarei despercebida
enquanto estiver cuidando deste caso. Não concorda? Ou já
se esqueceu que planejamos uma visita para esta noite?
— Se o senhor Europa chegar e quiser vê-la, exatamente
hoje?
— Se o senhor Europa quiser ver a famosa agente da CIA
deverá esperar que ela esteja disposta a falar com ele —
respondeu Brigitte Montfort, com decisão.

4 – Pedras Negras
Johnny-Bagur desfolhou alguns mapas, procurando
reproduzir o mais fielmente possível o interior do hotel “Cap
Sa Sal”. Embora não fosse desenhista, conseguiu traçar um
roteiro compreensível, para orientar Brigitte e Número Um
na incursão que pretendiam fazer ao interior do famoso
hotel.
Acomodaram-se no carro de Richard Ingram e partiram
rumo ao “Cap Sa Sal”. O melhor espião do mundo
manobrava o volante com mãos firmes e sem pressa. Como
um turista aproveitando o ar suave da noite. Subiram pela
estrada íngreme à esquerda e passaram pelo “Hotel Bagur”.
— Veja, querido — disse Brigitte, apontando uma
ruazinha estreita e tortuosa. — E ali que fica a “Boutique
1701”.
Angelo Tomasini virou a cabeça um instante e viu a
vitrina iluminada, onde se exibiam trajes e objetos
exclusivamente femininos. Tornou a concentrar-se na
direção e desceram a ladeira por onde haviam passado no
passeio da manhã. Minutos depois, avistaram as luzes do
“Cap Sa Sal”.
Estacionaram o carro numa parte larga da estrada, onde
outros veículos já se encontravam e seguiram a pé, rumo ao
luxuoso hotel de veraneio. Diante do prédio imponente,
estendia-se um jardim bem tratado, sob o qual ficava a
garagem. Num dos cantos do jardim, num cercado de arame,
avistaram alguns flamingos. As aves, àquela hora, dormiam
e o silêncio entre elas era absoluto.
Continuaram andando com naturalidade para a entrada
principal do hotel. Número Um usava um terno claro de
verão e Brigitte um dos vestidos comprados na “Boutique
1701”. Um longo que lhe chegava até os pés. Sem parar de
andar, a espiã apontou a ala esquerda, onde a construção era
mais baixa, constituída por terraços escalonados em quatro
andares. Sob os terraços brilhavam as vitrinas das lojinhas do
hotel. “Don Pepe” exibia artigos para cavalheiros.
“Samantha” tentava as mulheres com modelos alucinantes de
sapatos. Havia ainda uma lojinha de fotografia, uma de
artigos esportivos, uma perfumaria e uma de flores.
— Veja! — espantou-se Brigitte. — A “Boutique 1701”
tem uma lojinha no hotel, também.
— Uma filial, sem dúvida — balbuciou o espião. — Sem
querer aborrecê-la, querida, devo dizer que estou mais
interessado nos terraços, que nessas boutiques minúsculas,
cujos preços são elevadíssimos.
— Não seja exagerado — riu Brigitte. — Mas você está
com a razão. Devemos concentrar nossa atenção nos
terraços. Espero que não tenhamos dificuldades para entrar.
— Por que fala assim? — murmurou Número Um,
surpreso.
— Porque estou vendo um porteiro muito alto, usando
um uniforme imponente.
— Sou capaz de apostar que nem se mexerá, quando você
passar por ele — murmurou Número Um.
— Vamos experimentar — sorriu Brigitte.
Ali estava uma Brigitte diferente. Angelo Tomasini
também não era o mesmo. Elena e Rosmy não os
reconheceriam se os vissem naquele instante. Brigitte
transformara-se, numa ruiva de olhos verdes e rosto
excessivamente maquilado. Quanto a Tomasini, tinha os
cabelos levemente grisalhos e bigodes e costeletas que
modificavam bastante sua fisionomia.
Assim, quando se instalassem no hotel, sob seu aspecto
natural, ninguém os reconheceria. Não calculariam que
fossem o cavalheiro maduro e a jovem ruiva daquela noite.
Entraram, sem que o porteiro movesse uma pestana,
sequer. Deixando-o à retaguarda, deram alguns passos,
observando o amplo vestíbulo onde algumas pessoas
passavam o tempo acomodadas nos confortáveis sofás.
Seguindo as indicações dadas por Johnny-Bagur, sem que
alguém se preocupasse em saber se eram ou não hóspedes do
“Cap Sa Sal”, os dois continuavam a avançar, até chegarem
ao ponto onde se deviam separar. Quando chegou o
momento, agiram sem o menor comentário. Número Um foi
para um lado e Brigitte para o outro.
A divina espiã tomou um dos elevadores e subiu ao
terceiro andar. Segundos depois, seguia pelo corredor, com
passo vagaroso, como se não tivesse pressa. A porta do 303
não apresentou grandes dificuldades para Brigitte. A
fechadura era de boa qualidade. Mas não o suficiente para
opor-se à entrada da famosa e temida agente da CIA. Quinze
ou vinte segundos de suave manejo, servindo-se de suas
gazuas, e a porta do 303 abriu-se sem fazer ruído.
Brigitte entrou, fechou-se pelo lado de dentro e encostou-
se à porta. Pelo envidraçado do terraço entrava claridade
suficiente. Não precisava, portanto, acender as luzes, para
encontrar o banheiro. Aproximou-se do envidraçado para
observar o terraço e o jardim circular que se estendia ao
redor do hotel.
Mais adiante estava o trecho coberto de pinheiros que
descia pelas pedras, quase até o mar. Era ali que ficava a
piscina, encravada na rocha e cercada por alguns bares onde
os hóspedes do “Cap Sa Sal” se divertiam nas noites de
verão.
Não perdeu muito tempo nessas contemplações. Entrou
no banheiro, fechou a porta e acendeu a lanterna-caneta que
sempre levava na maletinha vermelha. Examinou tudo com
atenção. Milímetro a milímetro, numa meticulosidade
exagerada.
De nada adiantou. O rolo de filme não estava em parte
alguma. A menos que o banheiro tivesse algum
compartimento secreto, perfeitamente camuflado, capaz de
escapar aos olhos da espiã mais perigosa do mundo. Brigitte
realizou uma segunda busca, embora gastando nela menos
tempo que na anterior.
O resultado foi o mesmo. Isso a levou a pensar na ideia
que haviam tido, ela e Número Um, de dividirem a tarefa de
revistar os quartos do hotel onde os espiões ficaram
hospedados. Enquanto ela cuidava do de Dorothy Griffin,
Angelo Tomasini fazia o mesmo no apartamento onde ficara
Cirilo Gavrilovich.
Convencida de que nada encontraria ali, Brigitte apagou
sua lanterninha. Pegou a maleta vermelha que deixara junto à
pia e passou para o quarto, preparando-se para retirar-se.
Abriu a porta do apartamento 303 e deu um passo para o
corredor. Mas imobilizou-se ao deparar com o cano da
pistola. O homem que empunhava a arma sorria com um
cinismo ameaçador.
— Você é uma ratinha do hotel ou uma gatinha, amiga da
outra? — perguntou ele.
— Não compreendo, senhor — balbuciou Brigitte,
arregalando os olhos. — Que significa isso?
Captou perfeitamente a presença de outra pessoa às suas
costas. Voltou a cabeça e viu o segundo homem. Seu aspecto
era tão perigoso e agressivo como o do que empunhava a
pistola. O segundo, dando um tapinha no ombro da espiã,
indicou o corredor, murmurando:
— Caminhe e deixe de tolices. Vamos para um lugar
onde possamos conversar mais à vontade, Obedeça, gatinha.
— Ou ratinha — lembrou o primeiro. — Também
podemos estar equivocados, Roger.
— É possível — concordou Roger. — Mais não
fatiguemos o cérebro. Logo esclareceremos esse ponto.
Repetiu o sinal e Brigitte achou melhor não prolongar
uma situação que seria absurda. A princípio, receou que o
homem da pistola fosse da polícia. Vendo que não era,
sentiu-se mais calma. Preferia enfrentar agentes
internacionais a esbarrar com tiras da polícia espanhola.
Desceram pelo elevador. Chegando ao andar térreo e
seguindo as instruções dos dois homens que não exibiam
arma alguma, naquele momento, dirigiram-se para os fundos
do hotel.
Chegaram a um ponto onde o corredor se alargava. Uma
porta pesada fechava a passagem. Em poucos segundos, o
amigo de Roger cuidou do cadeado e a porta pôde ser aberta.
— Bom trabalho, Manfred — elogiou Roger.
— Obrigado — sorriu o que abrira a porta.
— Que significa isso? — insistiu Brigitte. — Para onde
pretendem levar-me?
— Não pretendemos, gatinha. Estamos levando. E não
adianta discutir conosco. Continue andando.
Entraram numa sala ampla, ao fundo da qual havia outra
porta semelhante à primeira. Manfred não teve a menor
dificuldade para abri-la. As paredes mostravam manchas de
umidade.
Ao atravessarem a segunda porta, Brigitte ouviu o rugido
do mar e percebeu que estavam num corredor escavado na
rocha.
— Se fosse uma empregada do hotel, isto seria um grande
privilégio para você — disse Roger. — Este lugar chama-se
Pedras Negras. E aqui que o pessoal do serviço vem tomar
um banho de mar, nas horas de folga.
Manfred empurrou Brigitte pelo ombro. Continuaram a
andar em direção à saída. O negrume da noite recortava-se
muito perto. Mais alguns passos e a brancura da espuma
tornou-se visível aos olhos da espiã de luxo da CIA.
A luz do hotel dava certa claridade ao local. Uma
iluminação indireta, mas suficiente para Brigitte perceber o
quanto aquele lugar era inquietante. Só havia pedras e a
espuma das ondas.
— Cuidado! Veja onde põe os pés — disse Roger. — Se
escorregar, pode molhar o vestido.
Manfred soltou uma gargalhada e tornou a dar um
empurrão nas nádegas de Brigitte. A espiã continuou a
andar, inquieta, preocupada. O medo estampava-se em todo
o seu corpo e os dois homens pareciam confiantes em que a
tinham dominado inteiramente.
A noite estava agradável e a água ao bater nas pedras
erguia uma poeira liquida que seria muito gostosa durante o
dia, quando o sol estivesse quente. Mas naquele momento e
na situação em que se encontrava, Brigitte não achou a
menor graça nas caricias das ondas.
— Está bem — murmurou Manfred, agarrando a ruiva
pelos cabelos, que milagrosamente mantiveram-se firmes no
lugar. — Vamos fazer uma paradinha para conversar. Não
creio que os hóspedes do hotel fiquem na janela,
contemplando este recanto tão pouco atraente, quando lá
dentro há tanta coisa mais indicada para diverti-los, não é
mesmo?
— Como você fala bem — sorriu Roger. — Vamos ver
se a gatinha, ou a ratinha, sabe falar e explicar-se tão bem
como você. Responda, beleza: é amiguinha de uma pequena
que se chamava Dorothy Griffin?
— Que devo responder, para vocês não fazerem comigo o
que fizeram com ela? — perguntou Brigitte. — Não me
agradaria acabar como aquela coitada. É isso mesmo! Além
do mais, em minha opinião, falando é que as pessoas se
entendem.
— Em geral é assim — admitiu Roger. — Mas neste caso
não será possível e acho mesmo que você já falou demais,
boneca.
— Não compreendo — murmurou Brigitte.
— Explicarei em poucas palavras. Com sua resposta,
deixou bem claro para mim e para meu companheiro que
está informada do que aconteceu com Dorothy Griffin. Logo,
deve ser companheira dela e foi enviada para tentar descobrir
quem à matou. E como fomos nós que fizemos o serviço e
não estamos interessados em que você divulgue nossas
façanhas, creio que terá a mesma sorte da sua amiga.
— Também vão violentar-me?
— A ideia não é má — disse Manfred. — Mas o lugar
não é muito adequado.
— Portanto, vamos estrangulá-la e assunto encerrado —
concluiu Roger.
— E me deixarão aqui, estendida nessas pedras, bem à
vista, para o cadáver ser encontrado?
— Você é uma garota muito faladora — rosnou Roger.
— Não. Desta vez agiremos de outra maneira. Não queremos
complicações para o hotel. Deixaremos seu corpo entre as
pedras. Mais tarde uns companheiros nossos passarão por
aqui num iate e a levarão com eles. Chegando ao mar alto,
jogarão o cadáver. Compreendeu?
— Claro. Mas talvez pudéssemos chegar a um acordo —
insistiu Brigitte.
— Hum — resmungou Manfred. — Sabe de uma coisa?
Talvez o chefe preferisse que nós a levássemos viva, para
falar com de.
— Não — cortou Roger. — Se o chefe visse uma mulher
como essa, ficaria atordoado. Vamos encerrar o assunto e
voltar para onde nos mandaram. Se estivermos onde
devemos estar, ninguém nos relacionará com o
desaparecimento dessa gatinha.
— Está certo — suspirou Manfred. — Para ser sincero,
gostaria de fazer com ela o que fizemos com a outra. Se a
violentássemos...
Manfred não terminou a frase. Soltou um gemido abafado
quando o cotovelo direito da espiã se enterrou brutalmente
em seu estômago. O assassino recuou dois passos,
encolhendo-se. Chegando à borda do penhasco, perdeu o
equilíbrio e caiu para trás.
Roger soltou um rugido e tentou sacar a pistola. Naquele
segundo, o pé direito de Brigitte entrou em ação. A perna
elevou-se, até ficar paralela ao chão, encolheu-se e avançou
como um chicote. A ponta do pezinho delicado da espiã
atingiu a virilha do assassino. Roger soltou um uivo de dor e
encolheu-se todo. Mas conseguiu sacar a arma. Apontou-a
rapidamente para a inimiga e puxou o gatilho.
A bala teria acertado Brigitte, se ela tivesse permanecido
no mesmo lugar, depois de assestar aquele atemi dirigido a
um ponto tão vulnerável da anatomia masculina. Mas a espiã
tratou de se movimentar rapidamente e tornou a tocar o
criminoso. Desta vez, com a perna esquerda. A ponta do
sapato acertou a mão direita de Roger, obrigando-o a soltar a
pistola, que voou pelos ares.
Roger soltou outro uivo. De dor e de raiva. E sua fúria
redobrou. Suportando a dor do baixo-ventre e a do pulso,
atirou-se sobre a espiã internacional. O choque foi
fortíssimo. Ambos perderam o equilíbrio. Quase caíram na
água. Felizmente reagiram a tempo, rolando para o lado das
pedras.
Atracaram-se num corpo a corpo brutal e a mão delicada
de Brigitte Montfort assestou um tremendo shuto no nariz do
adversário. Pela terceira vez, Roger gritou de dor e
engasgou-se com o sangue que jorrou, escorrendo-lhe pelo
rosto e entrando por sua boca. O assassino ficou
desorientado. O terror começou a tomar conta dele. A luta
com a “ratinha” encontrada no terceiro andar do hotel estava
tomando um rumo totalmente inesperado,
Uma ratinha de força inacreditável que se levantou
rapidamente e ajudou Roger a fazer o mesmo, puxando-o
pelas roupas. Sem dar tempo ao inimigo de levar as mãos ao
nariz atingido, obrigou-o a dar meia-volta e empurrou-o para
a direita, jogando-o de frente para as pedras.
— Quietinho ai! — arquejou a divina espiã, agarrando-o
pelos cabelos e imobilizando-o. — Não se mexa, ou lhe
quebro o pescoço com um golpe certeiro, entendido?
Roger não podia responder. Sua boca estava cheia de
sangue e mal podia cuspi-lo de lado. Além do mais, a ruiva
empurrava a cabeça dele de encontro à pedra, impedindo-o
totalmente de falar. Com enorme dificuldade, conseguiu
escarrar o sangue e gaguejar algumas palavras que Brigitte
não entendeu, mas que aceitou como frases de submissão.
— Está bem — disse ela, ainda arquejante. — Vai para
onde eu ordenar e responderá às minhas perguntas. Os papéis
se inverteram, não á mesmo? Fique como está, ou se
arrependerá para o resto de seus dias, garanto!
A esperta Brigitte Montfort fez um gesto, fingindo que ia
soltar sua presa. Conforme esperava, Roger tentou voltar-se
para prosseguir com a luta. Mas a mão que o agarrava pelos
cabelos tomou a agir com rapidez e o criminoso foi obrigado
a beijar a pedra mais uma vez. Ao mesmo tempo, a mão
direita da divina espiã esmurrou as costas do assassino,
deixando-o imobilizado em virtude da dor.
— Você não é tão esperto como imagina — disse a
agente internacional. — Podemos continuar a brincadeira, se
estiver gostando de minhas carícias.
Durante alguns segundos, nada mais se ouviu, além do
ruído das ondas batendo nos penhascos. De longe, trazidos
pela brisa suave, chegavam os acordes da orquestra, tocando
música moderna num dos bares do hotel. Brigitte manteve-se
na mesma posição durante vinte segundos. Até convencer-se
de que Roger aceitava os fatos com resignação.
Soltou-o e recuou dois passos. O criminoso não se
mexeu. Sem perdê-lo de vista, a espiã foi andando sempre de
costas até o ponto onde Manfred havia caído. O assassino
continuava entre as pedras e a espuma do mar cobria-o de
vez em quando. Parecia dobrado pela metade, incrustado por
força poderosa no penhasco.
Brigitte tocou-o de leve no pescoço e verificou que estava
morto. Pagara, assim, o preço exigido pela agente de luxo da
CIA, quando matavam um de seus companheiros de
espionagem. Manfred quebrara a cabeça ao bater com ela nas
pedras.
Dirigindo frequentes e rápidos olhares a Roger, Brigitte
meteu a mão no interior do paletó do morto. Tateou-o à
procura da pistola que devia estar sob a axila esquerda. Ficou
surpresa, não encontrando a arma. Aquela fração de segundo
de descuido foi aproveitada por Roger. Vendo a inimiga
distraída, preparou um salto mortal, decidido a derrubá-la.
Mas a divina espiã já encontrara a pistola de Manfred.
Estava sob a axila direita, o que demonstrou que o morto era
canhoto. Ao puxar a arma, Brigitte captou os passos
abafados de Roger e voltou-se rapidamente. Apontou
instintivamente, pousando o dedo no gatilho. Roger já estava
no ar, prestes a cair sobre ela.
Plop! A pistola de Manfred, manejada pela mãozinha
macia de Brigitte Montfort, entrou em ação. Roger soltou um
gemido estrangulado e perdeu as forças, no meio do voo. Em
lugar de cair sobre Brigitte, como parecia que ia acontecer,
foi aterrissar em cima do companheiro, pois a espiã afastou-
se com a velocidade de um raio, deixando a passagem livre.
Assim, os dois assassinos de Dorothy Griffin, agente da
CIA, ficaram mortos, um por cima do outro.
Equilibrando-se com dificuldade no ponto para onde
pulara tentando esquivar-se do corpo de Roger, a divina
espiã permaneceu imóvel. contemplando os assassinos.
Finalmente, balançou a cabeça com ar aborrecido e levantou-
se. Aproximou-se da entrada da ampla galeria que se
comuficava com o interior do hotel. Desvencilhou-se do
vestido longo, estampado em tons de castanho e vermelho.
Ficou só de biquíni e soutien. Deixando a pistola tomada a
Manfred sobre a maletinha, ali pousou também os sapatos.
Voltou para onde se encontravam os cadáveres. Com
certa dificuldade, por causa do terreno irregular, colocou o
primeiro nos ombros e transportou-o até o ponto mais escuro
e mais afastado dos penhascos. Deixou-o numa espécie de
gruta, onde as ondas não o alcançavam. Repetiu a operação
com o segundo criminoso.
Gastou alguns minutos revistando-os minuciosamente.
Tirou de seus bolsos tudo que encontrou. Amarrou no lenço
de cada um os objetos encontrados, cobriu os cadáveres,
como pôde, com pedregulhos soltos e voltou para o lugar
onde deixara sua roupa. Vestiu-se, calçou os sapatos e abriu
a maletinha vermelha, onde colocou a pistola e o que havia
encontrado nos bolsos de Roger e de Manfred.
Depois de verificar se a peruca ruiva não sofrera qualquer
dano capaz de causar espanto a quem a visse, a espiã
internacional seguiu pelo amplo e úmido corredor por onde
os inimigos a tinham levado pouco antes. Chegou ao saguão,
atravessou-o tranquilamente, passou pelo recepcionista e
saiu do hotel. Contemplou o jardim bem cuidado. Desceu a
escadaria e foi andando sob a marquise. Passou pelas
lojinhas elegantes.
Chegou ao portão e saiu dos limites do hotel. Sentindo o
rádio vibrar dentro da maletinha vermelha, desviou-se para a
direita e parou junto a um carro. Pousou a maletinha no
capô, abriu-a e tirou o radinho portátil. Apertou o botão
receptor e sussurrou:
— Pronto, Número Um. Você chamou?
— Sim — respondeu o espião, quase sem voz. — Estou
no automóvel à sua espera. Vi quando se aproximava do
portão.
— Que aconteceu? — perguntou Brigitte.
— Estive no apartamento de Cirilo Gavrilovich. Revistei
o banheiro, mas nada encontrei capaz de despertar nosso
interesse. Dois homens me seguiram. Estão em outro carro,
vigiando-me. Na certa esperam que eu me afaste, para me
seguirem.
— Muito bem — murmurou a divina. — Ligue o motor e
dê a partida, dez minutos depois de me ver passar a seu lado.
Entendeu?
— Sim?
A agente da CIA desligou o rádio, guardou-o na
maletinha e afastou-se do hotel. Pelas imediações havia
inúmeros carros estacionados. Duzentos ou trezentos metros
adiante, onde a estrada se iniciava propriamente, a
iluminação era quase nenhuma. Um ou outro automóvel, ao
passar, criava uma faixa de luz com os faróis. Fora isso,
apenas o brilho das estrelas.
Depois de andar durante sete ou oito minutos, Brigitte
saiu da estrada e foi colocar-se entre os pinheiros, num ponto
que lhe pareceu favorável a suas intenções. Mais uma vez
recorreu à maletinha vermelha. Abriu-a e tirou o tripé de
alumínio. Um minuto depois, as três partes do tripé,
adaptadas ao que à primeira vista parecia um secador de
cabelos a pilha, formavam o tubo-fuzil usado em diversas
ocasiões pela espiã internacional, para resolver situações de
grande perigo.
Colocou uma cápsula prateada no cano do fuzil e apertou
o botãozinho de chamada do rádio.
— Sim? — murmurou Número Um.
— Os dez minutos estão chegando ao final, meu amor.
— Exatamente — respondeu Tomasini. — Vou partir
para Bagur.
— Está bem. Deixe o rádio ligado. Quando eu mandar,
freie bruscamente e de marcha à ré. Verei o carro quando
passar. Logo, não se preocupe cm me fazer sinal.
— Perfeito. Vou dar a saída.
— Felicidades, meu amor.
Brigitte acocorou-se na escuridão, metendo o rádio na
mão esquerda e o tubo-fuzil na direita.
Segundos depois avistou o automóvel. Logo após, o
outro. Identificou o carro de Johnny-Bagur e reconheceu o
vulto de Número Um ao volante, iluminado pelos faróis do
segundo veiculo. Aquela silhueta era inconfundível, para ela.
Esperou Número Um passar. Quando se encontrava a
vinte metros de distância, ordenou pelo rádio:
— Freie e dê marcha à ré.
Número Um obedeceu. Freou o veiculo secamente,
acendendo as luzes vermelhas, regulamentares para a
ocasião. O outro carro também freou. Naquele exato
momento, Brigitte apontou sua arma para a janelinha da
direita do automóvel perseguidor. Puxou o gatilho do tubo-
fuzil e exclamou pelo rádio:
— Freie de novo, meu amor.
O espião cumpriu a ordem com a precisão de um
autômato.
— Pode fazer um favorzinho para mim, querido? —
perguntou Brigitte com voz suave. — Coloque o motorista
do carro no banco traseiro, sim?
Mal acabara de falar, viu Número Um sair do automóvel.
Brigitte deixou seu abrigo e avançou. Quando se juntou a
Número Um, o carro dos adversários já estava sem o
motorista. No assento do lado havia um homem
profundamente adormecido, sob o efeito do narcótico que a
divina espiã lançara com o auxilio do tubo-fuzil. No banco
de trás outro homem também dormia tranquilamente.
— Mais alguma novidade? — perguntou Brigitte.
— Por enquanto, não — respondeu Angelo Tomasini. —
Veremos o que acontece pelo caminho.
— Eu dirigirei o carro dos nossos amiguinhos.
— Sendo, assim, siga na minha frente. Não percamos
tempo. Esta estrada é muito movimentada. Você teve sorte
de poder agir num momento em que não passava carro
algum.
— Sempre tenho sorte, meu amor. Bem, vamos embora.
Até daqui a pouquinho, querido.
Brigitte acomodou-se ao volante do carro requisitado aos
seguidores de Número Um. Manobrou colocando-o no
centro da pista, ultrapassou o de Johnny-Bagur e seguiu em
direção ao povoado. Pelo espelho retrovisor viu o carro
dirigido por Número Um. O homem a quem amava seguia-a,
como um anjo protetor, vigilante, pronto a livrá-la de
qualquer perigo inesperado que pudesse aparecer pelo
caminho.
5 – Um Encontro Desagradavel
Embora um pouco apertados, os dois carros acomodaram-
se no jardim da casa alugada por Johnny. O agente tratou de
fechar o portão e, ao fazê-lo, observou rapidamente os dois
lados da rua. Em seguida, correu para junto de Brigitte e de
Número Um, que acabavam de descer dos respectivos
veículos.
— Que aconteceu? — perguntou Johnny, ansioso. — De
onde saiu esse outro carro?
— Depois explicaremos — disse Brigitte, com sua calma
habitual. — Arranje um pedaço de pano, uma peça de roupa,
qualquer coisa que sirva para vendar os olhos desses dois
sujeitos. De preferência um pano preto. E uma corda para
amarrá-los. Desse modo, ficaremos despreocupados quanto a
eles.
— Quem são? — murmurou o agente, vendo os dois
vultos adormecidos no interior do automóvel.
— Não sei. Certamente possuem documentos nos bolsos.
Vamos levá-los para dentro de casa a fim de revistá-los
cuidadosamente. Examinaremos, também, os papéis dos dois
homens que quiseram matar-me no “Cap Sa Sal”.
Johnny estremeceu de alto a baixo. Número Um,
imperturbável, voltou-se para Brigitte, com um olhar
interrogativo.
— Não se preocupe, meu amor — respondeu ela,
sorrindo. — Como pode verificar, estou inteirinha.
— Não me contou que foi ameaçada, quando se
encontrava no hotel — resmungou ele, com voz tensa.
— Nada me aconteceu. Aos camaradas que me obrigaram
a acompanhá-los até a parte dos fundos do hotel, sim. E lá
ficaram, pobrezinhos, num lugar chamado Pedras Negras. Os
anjinhos queriam fazer comigo o mesmo que fizeram com
Dorothy Griffin, imaginem!
— Foram os que violentaram e estrangularam a moça? —
perguntou Número Um.
— Dois deles, pelo menos. E vangloriavam-se bastante
da proeza. Trouxe tudo que encontrei em seus bolsos. Está
na minha maletinha. Vamos entrar para examinar o material,
junto com os dos homens que estão no carro. Reviste-os,
sim, Johnny? E traga o que encontrar.
— O senhor Europa está lá dentro — balbuciou o agente
da CIA, conseguindo reagir.
Brigitte trocou um olhar apressado com Número Um. O
espião fez um leve movimento com o queixo e nada mais.
Não mudou de expressão. Não contraiu um músculo sequer
de suas feições viris.
— Está bem — suspirou Brigitte. — Falaremos com o
senhor Europa, embora não imagine o que esse cavalheiro
tem para conversar comigo. Prefere ficar aqui no jardim,
meu amor?
— Não.
A resposta de Número Um foi seca e breve. Brigitte
Montfort, porém, entendeu perfeitamente o sentido daquele
monossílabo. Tomou-o pela mão e encaminharam-se para a
porta da casa. Atravessaram o vestíbulo e entraram na sala
acolhedora e bem decorada. Pela janela envidraçada via-se a
rua José Antônio, isto é, a estrada que atravessava o povoado
e que tinha tal nome, naquele trecho. Mas a persiana estava
abaixada, de modo que não poderiam ser vistos por quem
passasse pelo lado de fora.
Três homens se encontravam na sala. Dois deles
regulavam em idade com Richard Ingram e assemelhavam-
se um pouco ao rapaz. Brigitte observou-os rapidamente,
presenteando-os com um sorriso que foi alegremente
correspondido pelos dois Johnnys. Em seguida, a espiã de
luxo da CIA deteve sua atenção no terceiro homem.
Era de estatura média, um pouco gordo, com uma calvície
em estado adiantado, de feições pálidas e inexpressivas.
Frias, mesmo. O senhor Europa contemplou a recém-
chegada, com seus olhos claros. Mas logo desviou a vista,
fixando-a em Número Um. Brigitte teve a impressão de que
a palidez de Europa aumentou de intensidade.
— Boa-noite — disse a senhorita Montfort.
Europa levantou-se, aproximando-se de mão estendida, e
murmurou:
— Há quanto tempo não nos vemos, hem?
— É um prazer do qual posso prescindir — afirmou
Brigitte, aceitando a mão do chefe da espionagem norte-
americana no continente europeu. — Já conhece meu
acompanhante, sem dúvida.
Europa empalideceu ainda mais. Tornou a olhar para
Número Um, que o contemplava como se estivesse diante de
uma pedra.
— Sim — balbuciou Europa, depois de pigarrear duas
vezes, como se procurasse as palavras. — Fui informado de
que você chegaria acompanhada por Número Um. Era
exatamente com ele que eu desejava falar. Não com você.
— Fantástico! — espantou-se Brigitte. — E para falar
com ele, precisou esperar que estivéssemos juntos, aqui na
Espanha, gozando umas férias merecidas? Não sabe onde
mora Número Um, há alguns anos?
— Sei — respondeu Europa. — Mas não encontrei um
momento adequado para visitá-lo.
— Compreendo. Naturalmente calculou que a entrevista
de vocês se tornaria mais fácil, realizando-se em minha
presença. Não é isso?
— É — sussurrou Europa, dando de ombros, resignado.
— Não conseguirei enganá-la, mesmo. Sim. Contava com
sua presença para suavizar nosso encontro, confesso.
— Muito bem — prosseguiu a divina. — Que tem para
dizer a Número Um?
— Desejava saber se ele me perdoou — disse Europa,
após um instante de reflexão.
Um silêncio pesado dominou a sala. As cinco pessoas ali
reunidas permaneceram imóveis, tensas, mudas. E foi assim
que Johnny-Bagur as encontrou, ao entrar, trazendo nas
mãos o que achara nos bolsos dos homens adormecidos no
carro.
— Aqui está — exclamou. Mas vendo a cena estranha
que se desenrolava na sala, perguntou: — Que aconteceu?
— Não se preocupe, Johnny — explicou Brigitte,
voltando-se para ele. — Nada capaz de nos causar
preocupações. Deixe isso em cima da mesa. Quando o
senhor Europa acabar de falar, examinaremos o material.
— Já disse tudo que tinha a dizer — murmurou Europa.
— Não me parece o suficiente — replicou a divina espiã.
— Quer saber se Número Um o perdoou, não? Mas não pede
perdão pelo que fez. Pergunta se foi perdoado, mas não diz:
você me perdoa, Número Um?
— Jamais pedi perdão a pessoa alguma — rosnou
Europa. — Além disso, estamos fartos de saber que o que
aconteceu não foi preparado por mim e sim pela Central da
CIA.
— Realmente — admitiu Brigitte. — De outro modo,
senhor Europa, não estaria conversando conosco neste
momento. Sabe por quê? Porque os mortos não falam. E o
senhor, neste instante, já estaria morto. Por que remexer em
porcarias que desejamos esquecer?
— Não sei o que vocês pensam a meu respeito — disse
Europa. — Acordo, de vez em quando, durante a noite,
pensando naquilo que me mandaram fazer. Eu não tinha
outro remédio, entendem? Fui obrigado a obedecer.
— Podia ter-se recusado a agir daquele modo — replicou
Brigitte secamente. — Se o tivesse feito, não acordaria
durante a noite, pois sua consciência estaria tranquila.
— Não sou você — balbuciou Europa. — Não tenho a
sua independência. Logo, quando recebo uma ordem, devo
cumpri-la.
— Podia ter deixado de cumprir aquela, se a julgava
absurda.
— Como?
— Retirando-se da espionagem.
— Escute aqui, não havia de querer que eu prejudicasse
minha carreira...
— Não discutam mais — cortou Número Um,
interrompendo a frase do chefe da espionagem norte-
americana no continente europeu. — O senhor Europa
deixou de me interessar, há muito tempo. Nem sequer existe,
para mim. Sugiro, meu amor, que nos dediquemos ao
trabalho. Conversas como esta não levam a parte alguma.
Brigitte contemplou o homem a quem amava, durante
dois segundos. De repente, ficando na ponta dos pés, beijou-
o na boca, acrescentando em seguida:
— Como sempre, a razão está com você, querido.
Tratemos de trabalhar. Como o senhor Europa está aqui,
talvez nos possa ser de alguma utilidade.
Europa tornou a empalidecer, mordendo os lábios, numa
prova de impotência, percebida por todos os presentes.
Deixou-se cair numa poltrona e enterrou a cabeça no peito.
Enquanto isso, Brigitte e Número Um espalharam na mesa o
que ela encontrara nos bolsos dos criminosos a quem matara
em Pedras Negras. Juntaram o material recolhido por
Johnny, dos homens que dormiam no carro, e examinaram
tudo com atenção.
Descobriram os nomes dos quatro inimigos. Pelo menos,
os que usavam durante aquela permanência na Espanha. Os
dois anjinhos que ficaram nos penhascos chamavam-se
Roger Arly e Manfred Boll. Os que dormiam no carro eram
André Fast e George Piret. A diferença entre os quatro é que
os dois últimos não usavam armas.
Na carteira de Roger Arly, Brigitte encontrou um pedaço
de papel contendo três nomes: Willman, Borgman e Boll. Ao
lado de cada nome havia anotações de quantias em dólares.
— Será que os três deviam dinheiro a esse aí? —
perguntou Johnny-Bagur. — Parecem anotações de pôquer.
Cada quantia pode corresponder a uma partida.
— Sim — admitiu Brigitte. — Deve ser isso. De qualquer
modo, esta notinha é muito interessante porque nos revela
mais dois nomes: Willman e Borgman. Tomara que nos seja
útil.
— Talvez não — disse Europa, erguendo a cabeça. —
Você matou dois homens que, sem dúvida, formavam um
quarteto com Willman e Borgman. A ausência dos primeiros
deverá alarmar os segundos. E o alarma é o sistema mais
certo para as pessoas desaparecerem de lugares perigosos.
— Bem — murmurou Brigitte com ironia. — Eu não
tinha outra saída. Fui obrigada a escolher. Ou eliminava os
dois sujeitos, ou ficaria dormindo para sempre no fundo do
mar.
— Gostaria de dar uma olhadela nos homens que estão
adormecidos no carro — disse Europa, levantando-se. —
Talvez meus agentes e eu possamos identificá-los.
— Parabéns! — exclamou Brigitte. — Teve uma ideia
muito feliz.
Os dois foram trazidos para o interior da casa e Europa
conseguiu, realmente, identificá-los. Mal os viu, disse sem
hesitar:
— São Otrepiev e Dubrovski, do MVD.
— Tem certeza?
— Absoluta — afirmou Europa. — E se Otrepiev e
Dubrovski vieram para a Espanha, não foi de férias e sim
para fazer algum trabalho.
— Saberia dizer que tipo de trabalho? — perguntou
Brigitte.
— Não. É possível que esteja ligado à viagem de nosso
velho conhecido Cirilo Gavrilovich. Antes de desaparecer,
Gavrilovich instalou-se no “Cap Sa Sal”, registrando-se sob
o nome, também francês, de Jacques Dubonnier.
— Sendo assim, duas coisas podem ter acontecido —
murmurou Brigitte. — Primeira: Jacques Dubonnier, ou seja,
Cirilo Gavrilovich talvez tenha chegado à frente e Otrepiev e
Dubrovski depois, a fim de realizarem uma determinada
missão. Segunda: Cirilo Gavrilovich pode ter saído de Paris
e os outros dois vieram em seu encalço.
— As duas hipóteses são aceitáveis — concordou
Europa. — Sem querer aborrecê-la, porém, tomo a liberdade
de dizer que existem milhares de outras possibilidades, além
dessas duas.
— Sem dúvida — admitiu a divina espiã. — Bem, nada
mais nos resta a fazer, por enquanto. Só poderemos obter
maiores informações daqui a uma hora e meia,
aproximadamente, quando nossos colegas Otrepiev e
Dubrovski acordarem. É bom cuidar deles,
convenientemente, Johnny. Trate de amarrá-los com nós
firmes, entendeu?
— Fique descansada. Temos boas cordas. Não haverá
perigo de fugirem de nossas mãos. Não se preocupe — disse
Johnny-Bagur, sorrindo.
— Não estou preocupada — garantiu Brigitte.
— Outra coisa, Johnny. Existe alguma boate ou um
barzinho, onde haja música, aqui no povoado?
— Por que pergunta?
— Quando passamos pela rua onde fica a “Boutique
1701”, tive a impressão de ouvir música.
— Ah, sim! — exclamou o espião, sorrindo. — São as
sardanas. E uma dança desta região da Espanha. Aqui na
Catalunha todos a sabem dançar. Os pares dão-se as mãos e
formam cordões animados e saltitantes, Em Bagur, todos os
sábados à noite, durante o verão, tocam e dançam sardanas
na Plaza Mayor.
— Deve ser interessante e divertido — murmurou
Brigitte. — Número Um e eu vamos dar uma voltinha por ai.
Depois de trocarmos de roupa, é claro.
— Vai sair, quando nos encontramos metidos numa
situação dessas? — protestou Europa. — Em vez de nos
ajudar a descobrir novas pistas, vai à praça do povoado ver o
povo dançar sardanas?
— O povo e os forasteiros — explicou Richard Ingram.
— Quase todos os turistas que veraneiam em Bagur
aprendem a dançar as sardanas. E gostam muito, acreditem.
— Não estamos aqui para dançar, Ingram — retrucou
Europa, fulminando o agente com um olhar de repreensão.
— Estamos aqui para fazer o que eu determinar —
atalhou Brigitte. — Eu e Número Um vamos à praça assistir
às danças. O senhor pode fazer o que tiver vontade,
naturalmente. Devemos esperar, até nossos amiguinhos
acordarem, não se esqueça. Sendo assim, prefiro passar esse
tempo na praça, assistindo às danças e tomando um refresco.

6 – Conquistando a Guarda Civil


Depois de readquirirem o aspecto normal, isto é, após
voltarem a ser Brigitte Montfort e Angelo Tomasini, o casal
de espiões saiu de casa e foi subindo a rua. A divina puxou o
braço de Número Um, ao vê-1o fazer um movimento em
direção à esquerda, de onde parecia vir a música. Havia
carros por todos os lados e um burburinho de vozes pairava
na noite quente de verão.
— Espere — murmurou ela. — Vamos subir mais um
pouco. Quero lhe mostrar uma coisa que me chamou a
atenção hoje à tarde.
— De que se trata?
— Já verá.
Subiram uma ruela enladeirada e foram parar diante da
“Boutique 1701”. A vitrina estava acesa e Brigitte
contemplou os vestidos e as bijuterias ali expostas. Em
seguida, fez um gesto, apontando para a esquerda. Tomasini
voltou-se e deparou com um beco de calçadas estreitas.
— Chama-se rua Comas y Ros — explicou a divina. —
Sabe como Elena e as amiguinhas dela chamam essa rua?
— Não faço a menor ideia — rosnou Número Um.
— De Quinta Avenida — riu Brigitte. Isso porque, daqui
até a outra extremidade dessa via pública que vai dar na
praça, há de tudo. Vamos seguir por ela. Elena mora ali, no
onze. No térreo fica uma galeria de arte. Não gostei do
nome:
Galeria Wynn. Deviam ter escolhido algo mais espanhol.
Não concorda, meu amor?
— Não me custa nada ficar de acordo com você nessas
coisas — respondeu o espião, quase sorrindo.
— Parece contente — balbuciou Brigitte, arqueando as
sobrancelhas.
— Sinto-me satisfeito pelo modo como você enfocou o
caso entre Europa e eu. Compreendi, também, que não
queria alongar muito a conversa. Parecia uma gata
defendendo os filhotes. Achei divertido. Embora não me
agrade ser tratado como um gatinho indefeso.
— Se tivesse deixado você tomar a palavra, a conversa
teria sido menor e acabaria com mais violência. O melhor,
para nós dois, sem dúvida, é esquecermos o que aconteceu. E
esquecermos o senhor Europa, também. Como ia dizendo,
Elena e as amigas chamam esta rua de Quinta Avenida.
Vamos andando devagar, querido. Poderemos ver as vitrinas
e ouvir a música que vem da praça.
A rua Comas y Ros não era a Quinta Avenida,
naturalmente. Mas tinha de tudo. Inclusive uma farmácia. A
única do povoado. Passaram por um açougue, uma casa de
roupas de criança, uma mercearia, uma loja de artigos
fotográficos e esportivos, um salão de jogos recreativos para
jovens. Percorridos os sessenta metros de rua, chegaram à
praça. Havia gente por toda a parte. A música continuava a
alegrar a todos. Muitas pessoas, entusiasmadas, dançavam
despreocupadamente.
A música cessou e os casais pararam de dançar. A
multidão começou a dispersar-se. Brigitte e Número Um
atraiam a atenção geral, por onde passavam. Sem se
preocuparem com esse detalhe, acompanharam o povo e
atravessaram a praça. A banda de música ocupava o
palanque construído junto à igreja. Naquele momento os
músicos descansavam um pouco.
— Estou com uma fome de lobo — disse Brigitte. — Se
não me engano Elena falou num restaurante que há aqui
perto, onde ela e os amigos costumam ir comer, de vez em
quando. Chama-se “El Farolillo”.
Não foi difícil encontrá-lo. Mas a parte do restaurante já
estava fechada. Só funcionava a parte do bar, onde um
homem em mangas de camisa e de óculos de aro de tartaruga
arregalou os olhos ao ver o casal entrar em seu
estabelecimento.
Brigitte e Número Um aproximaram-se do balcão.
— Podemos jantar? — perguntou a divina espiã.
— Não — respondeu o proprietário, voltando a si do
espanto inicial. — O restaurante já está fechado. Se quiserem
uns sanduiches, podem ir ao outro lado da praça. Servem uns
deliciosos, de lombo de porco assado, de salsichas, e de
presunto defumado. Aqui só servimos bebidas e tapas.
— O quê? — perguntou Brigitte.
— Tapas. Tira-gosto. Azeitonas, camarões, peixe frito.
— Podemos tomar uma cerveja com essas tapas —
sugeriu a divina, interrogando Número Um com o olhar.
— Já acabou tudo — lamentou o dono do bar. — Sábado
à noite o estoque esgota-se logo cedo. Posso servir uma
cerveja, se quiserem.
— Feito — sorriu Brigitte, pousando a mão no braço de
Angelo Tomasini, ao vê-lo fechar a cara. — Vamos tomar
uma cervejinha. Depois provaremos os sanduíches da outra
casa.
— Isso — apoiou o dono do bar. — Chama-se “Toc”.
Fica bem aqui em frente.
O homem de óculos serviu a bebida ao casal de turistas.
Brigitte pegou sua caneca e provou um gole. Voltou-se, em
seguida, para observar a praça. Um grupo de curiosos parado
em frente a “El Farolillo” não se cansava de contemplar a
mulher espetacular que tomava cerveja em companhia de um
homem atraente mas sério, com ar meio enfezado.
— Quanto lhe devemos, senhor Sisco — perguntou a
agente internacional, quando acabou sua caneca de cerveja.
— Vinte e quatro pesetas. Como sabe meu nome?
— Uma freguesa sua me disse. Costuma frequentar seu
restaurante com os pais ou com os amigos. Chama-se Elena.
— Ah, sim! Já sei a quem se refere.
— Ela não apareceu por aqui, esta noite?
— Não. Com certeza está na praça dançando as sardanas.
Não será fácil encontrá-la, no meio de tanta gente.
— Tentaremos. Obrigada, senhor Sisco. Número Um
acabou sua cerveja e pousou uma moeda no balcão. Olhou
para Brigitte e ela fez um sinal afirmativo com a cabeça,
indicando que o dinheiro dava para pagar a despesa.
Encaminharam-se para a saída. Mal puseram os pés na rua,
viram uma mocinha andando apressada. Vinha de uma ruela
de onde chegava o som alegre de música de dança.
— Rosmy — chamou Brigitte. — Aonde vai com tanta
pressa?
— Vou buscar meus irmãos. Elena convidou todos para
irem dançar no “Pinar”.
— “Pinar”? Que é isso?
— Um bar. Fica na rua que sobe para o castelo.
— Ë lá que a juventude de Bagur se reúne?
— Isso mesmo, senhorita. Todos os sábados, ficamos na
praça até se acabarem as sardanas, depois vamos para o
“Pinar”.
— Não é um pouco tarde para os jovens ficarem na rua,
Rosmy?
— Hoje é sábado, senhorita. Com licença. Vou chamar
meus irmãos.
Rosmy saiu correndo. Brigitte olhou para Número Um.
Ele deu de ombros, indiferente. A banda recomeçou a tocar.
A animação voltou a tomar conta da praça. Quem não
dançava acompanhava a animação geral, batendo palmas ou
cantarolando.
Seguindo pela rua indicada por Rosmy, o casal de espiões
logo avistou um letreiro luminoso onde se lia “El Pinar”.
Elena estava rodeada de rapazes. Ao vê-los, foi ao encontro
deles, sorridente, e exclamou:
— Olá! Não diga que vieram dançar a sardana?
— Gostaríamos muito — respondeu Brigitte.
— Infelizmente não sabemos como se dança, querida.
Encontramos Rosmy. Ia chamar os irmãos. Pelo jeito você
está dando uma festinha, hem?
— Sim — riu a jovem guia. — Lembra-se da obra de
caridade de que lhe falei? Pois é esta: convidar os amigos
para se divertirem comigo.
— Hum — sorriu Brigitte. — Não deixa de ser benéfico
ter uma amiga como você, que sabe gastar o dinheiro. Estava
à sua procura, querida.
— Para quê?
— Para que nos convide também. Queremos tomar parte
na festinha — riu Brigitte.
— Claro! Podem pedir o que quiserem. Eu pago.
— Formidável! Antes, pode conversar conosco dois
minutinhos, a sós?
Foram para junto do balcão onde um farto sortimento de
bandejas repletas de camarões, de mariscos e de rins
grelhados despertou o apetite de Número Um, que
murmurou:
— O aspecto é excelente!
— E é tudo muito gostoso — afirmou Elena.
— Meus pais, às vezes, vêm para cá, tomam uma cerveja
com essas delicias que estão vendo e depois vão saborear um
cremar com os amigos.
— Cremar? — interessou-se Brigitte. — Que é isso?
— Uma espécie de coquetel quente — explicou Elena. —
Leva uma garrafa de conhaque, uma de rum, açúcar, um
pouco de canela e umas xicaras de café. Mistura-se tudo
numa vasilha e risca-se um fósforo.
— Caramba! — exclamou a divina espiã.
— Deixam queimar durante alguns minutos para o álcool
evaporar um pouco — prosseguiu Elena. — Depois, é só
beber. Esse coquetel foi inventado por pescadores da região.
Perderam-se numa noite de tempestade e foram levados para
uma enseada solitária, O barco ficou muito estragado e o frio
estava fortíssimo. Para esquentar-se, prepararam a bebida
que lhes descrevi.
— É isso o que eu chamo de saber aproveitar as coisas —
sorriu Brigitte. — Bem, vamos tomar umas cervejinhas com
essas deliciosas tapas. Estamos famintos. Não jantamos,
sabe?
— Estão gostando de Bagur?
— Pitoresco — rosnou Número Um. — Verdadeiramente
pitoresco.
— Sim — riu Elena. — Todos os estrangeiros que
passam por aqui dizem isso. Que queria conversar comigo,
senhorita Montfort?
— Ah, sim. E a respeito da casa de Carmem Amaya.
Sabe se há banheiro por lá?
— E lógico! Estive lá há três ou quatro anos, quando a
casa ficou abandonada. Ate hoje não me esqueci da banheira.
Tive sorte de poder vê-la,
— Explique-se, por favor.
— Carregaram-na logo depois. Alguém passou por aqui,
viu a banheira no aposento onde iam instalar o quarto de
banho, gostou dela e a carregou. Isso mesmo. Afinal, estava
tudo abandonado. Não havia pessoa alguma vigiando a casa.
— Então? — exclamou Brigitte, mudando de assunto. —
Que nos aconselha? Vendo tantos quitutes, fico indecisa.
— Tudo é gotosíssimo — riu Elena. — Não façam
cerimônias, bem?
— Obrigada por nos ter convidado.
— Merecem! Afinal, me deram uma fortuna de gorjeta!
— Ficamos contentes, vendo você tão alegre, em
companhia de seus amigos. Bem, vá cuidar de seus
convidados. Seja uma boa anfitriã. Depois nos tornaremos a
ver, Elena.
— Claro. Vão ficar muito tempo em Bagur?
— Alguns dias.
A jovem sorriu e afastou-se. Número Um observou o
homem magro, de pele escura e cabelos cor de azeviche, que
estava atrás do balcão. Olhava para os forasteiros sem
disfarçar, seu espanto. A mulher rechonchuda que se
encontrava ao lado dele também piscava os olhos, como se
não acreditasse estar vendo à sua frente um casal tão bonito.
Número Um pediu cerveja e um prato variado do que
havia no balcão. Ele e Brigitte saborearam os camarões, os
mariscos e os picadinhos de rim grelhado, conversando sobre
coisas sem importância. Quando o prato estava quase vazio,
Rosmy apareceu, acompanhada por um bando de meninos e
de meninas. Invadiram “El Pinar”, aos gritos, rindo,
aproveitando a juventude. Atrás deles apareceu uma moça
morena, de cabelos castanhos, em companhia de um rapaz
que acompanhava o bando de crianças, com ar preocupado.
Elena foi ao encontro dos recém-chegados. Ao passarem
pelo balcão, apresentou-os a Brigitte dizendo:
— Está é minha irmã Maria Isabel. Está perdendo tempo
com esse camarada aí.
— Perdendo tempo? — balbuciou Brigitte, sorrindo.
— A senhorita sabe. Ficam pelos cantos, de mãos dadas,
suspirando.
— Mas isso é ótimo, Elena — retrucou Brigitte,
divertindo-se com a expressão da guia. — Quando chegar
sua vez, você também vai gostar.
— Deus me livre! Quero dançar com todos, aproveitar a
mocidade.
Elena afastou-se para atender seus convidados, Número
Um e Brigitte esvaziaram as canecas de cerveja. Ficaram
pensativos durante alguns minutos, vendo a animação da
festa promovida pela jovem em “El Pinar”. Na praça a banda
de música continuava tocando sardanas. Os dois espiões
despediram-se da anfitriã com um aceno e saíram. Foram
pela rua, sem pressa, ouvindo a música que se espalhava por
toda à parte.
— Sabe de uma coisa? — disse Número Um, de repente.
— Não tinha pensado nisso, confesso. Mas agora vejo tudo
bem claro. Se o rádio de Dorothy Griffin foi encontrado na
casa de Carmem Amaya, isso significa que foi de lá que ela
ligou para Johnny, antes de morrer. Depois de chamá-lo,
escondeu o aparelho. Logo, é possível que tivesse feito o
mesmo com o filme.
— Pensei exatamente assim, há pouco, meu amor —
balbuciou Brigitte.
— Por que não disse logo?
— Não quis parecer uma boba. E teria parecido, antes de
saber que começaram a instalar um banheiro na casa de
Carmem Amaya, não acha?
— Precisamos ir até lá o mais depressa possível —
sugeriu Número Um. — Se a Guarda Civil encontrou o
radinho de Dorothy Griffin, acabará encontrando o rolo de
filme.
— Sim. Olhe, meu amor, para ser sincera, já pensei num
modo de entrar na casa, apesar da vigilância da Guarda Civil.
— Ficaria surpreso se não tivesse encontrado esse meio
— resmungou Número Um. — Fale.
— Precisamos, antes, passar em casa, para apanhar minha
câmara de jornalista — explicou Brigitte. — Levaremos o
carro de Johnny. Seria uma vergonha se a mais considerada
agente da CIA e Número Um, lançando mão de um plano tão
simples, não conseguissem ainda esta noite o filme que a
infeliz Dorothy Griffin bateu antes de ser assassinada.

— Os miseráveis que fizeram isso merecem um bom
castigo, Gutierrez — disse Crespo, um dos guardas de
plantão, na casa de Carmem Amaya.
— Tem toda a razão — apoiou o companheiro. — Essa
gente precisa de uma lição que sirva de exemplo, evitando
assim que outros tentem coisas parecidas.
— Quer ouvir a minha opinião sincera? — prosseguiu
Crespo. — a seguinte: para mim, há algo esquisito em toda
essa história.
— Por que pensa assim?
— Por causa do rádio que encontramos escondido na
casa.
— Talvez nada tenha a ver com o caso — retrucou
Gutierrez. — O transmissor podia estar aqui antes de o crime
ter acontecido.
— É possível — admitiu Crespo, sem muito entusiasmo.
— Mas não me convence. Ei, um carro se aproxima. Veja!
Os guardas de plantão na casa de Carmem Amaya
imobilizaram-se, observando o carro que se aproximava.
Viram-no parar, segundos depois, e dele saltar uma mulher
de corpo alucinante.
— Boa-noite — disse Crespo, vendo-a avançar para eles.
— Em que podemos servi-la, senhorita?
— Gostaria de bater umas fotos da casa — respondeu a
recém-chegada.
— Fotos? — espantou-se Gutierrez.
— Não posso? — balbuciou a bela jovem, decepcionada.
— Por que não deixa para amanha? — murmurou
Crespo, levemente embaraçado. — De dia é mais fácil que
de noite, não acha? Muita gente esteve aqui, hoje. Bateram
chapas da casa e ninguém as impediu.
— Sei disso. Passei por aqui a cavalo. Para ser franca,
prefiro bater as fotos à noite.
— Por quê? — balbuciou Gutierrez, atordoado com o
corpo curvilíneo da desconhecida.
— Sou jornalista. A história do que se passou aqui
aparecerá em diversos jornais e revistas, com fotos batidas
durante o dia. Gostaria de fazer uma reportagem diferente
das outras. Desejaria oferecer a meus leitores umas fotos
mais originais, falando um pouco sobre a proprietária da
casa, a bailarina famosa, falecida há alguns anos.
Os guardas civis entreolharam-se e voltaram sua atenção
para a visitante. Seus olhos pareciam querer saltar das
órbitas. Contemplavam aquele exemplar de feminilidade
como se pretendessem despi-la com a vista. Jamais haviam
presenciado semelhante espetáculo.
— Tem documentos? — perguntou Crespo, sorrindo.
— Naturalmente. Está na minha maletinha. Um segundo.
A mulher abriu a porta do carro, apanhou a maletinha
vermelha e colocou-a sobre o capô. Remexeu um instante os
objetos que ali se encontravam e retirou um passaporte.
Entregou-o ao guarda. Crespo examinou a fotografia. Leu o
nome e passou o documento para o companheiro. Gutierrez
repetiu os gestos de Crespo.
— É americana — balbuciou o primeiro guarda civil. —
Trabalha para um jornal de sua terra; hem?
— Sim. Para o Morning News. Espere. Devo ter uma
credencial aqui comigo.
Realmente, a senhorita Brigitte Montfort tinha em seu
poder uma credencial jornalística fornecida pelo Morning
News. Os guardas examinaram tudo atentamente e
devolveram os papéis e o passaporte à sua dona.
— Que tipo de reportagem pretende fazer? —perguntou
Crespo.
— Bem... não gostaria de escrever apenas sobre o
assassinato dessa pobre moça. Tenho vontade de contar uma
história romântica, falando sobre a bailarina Carmem Amaya
e o local onde ela queria construir seu verdadeiro lar, para
onde se retiraria nos períodos de descanso. Acho que seria
interessante captar esse lugar numa noite como a de hoje, tão
clara, com um pouquinho de lua.
Os dois guardas civis tornaram a trocar um olhar
interrogativo entre si. Ambos sorriram. Gutierrez, alisando
os bigodes, murmurou:
— Olhe, não há proibição de fazerem fotografias à noite.
Está hospedada em Bagur, senhorita Montfort?
— Sim. Um amigo meu alugou uma casa na Rua Jose
Antônio número 5 e convidou-me para passar uns dias com
ele. E uma casa pequena, logo na entrada do povoado.
— Sabemos onde â. Pertence a uma senhora idosa. Só
fica aqui no inverno. No verão vai com a nora pari outro
lugar e aluga a casa, para ganhar um dinheirinho. Chama-se
dona Leonor.
— Pois é lá que estou, com meu amigo americano.
— Muito bem. Podemos ajudá-la a bater as fotos?
— Não. Não creio. Trouxe o flash comigo. Espero
conseguir um bom trabalho. Se não saírem boas as
fotografias, quem estiver aqui de vigia, amanhã à noite, há
de ser tão gentil como vocês, não é mesmo? E me deixará
bater outro filme.
— Naturalmente — afirmou Crespo.
A senhorita Montfort, a simpática jornalista norte-
americana, levava realmente em sua maletinha umas cargas
de flash que foram utilizadas para bater algumas fotos,
depois de apagados os faróis do carro. Durante quatro ou
cinco minutos, sempre amavelmente escoltada pelos dois
guardas civis, dedicou-se à tarefa de obter ilustrações para
sua futura reportagem, fotografando a casa de diversos
ângulos. Em seguida, após agradecer a gentileza com que
fora recebida, recolheu suas coisas, fechou a maletinha
vermelha, entrou no carro e afastou-se da casa de Carmem
Amaya.
Quarenta minutos depois os guardas Crespo e Gutierrez
viram outro carro se aproximar. Isto é, não era outro. Era o
mesmo. Ao verem o motorista descer, logo o reconheceram.
Não existiam duas pessoas com aquela silhueta. Foram ao
encontro de Brigitte Montfort, sorridentes, e Crespo
perguntou:
— Que aconteceu, senhorita?
— Perdi a chave da casa — disse ela com naturalidade.
— E meu amigo não está. Na certa foi dançar sardanas na
praça. Não consegui localizá-lo. Sou uma boba!
— Se perdeu a chave, será obrigada a esperar até as
danças terminarem — murmurou Gutierrez. — Não deve
faltar muito.
— Voltei porque tenho a impressão de que as deixei cair
aqui, ao abrir a maletinha para tirar a câmara e os flashes.
— Podemos procurar — prontificou-se Crespo. — Tenho
uma lanterna que nos poderá ser útil. Vamos ver. Na
primeira vez, se não me engano, parou o carro um pouco
para aquele lado, não?
As chaves apareceram, naturalmente. Estavam no chão,
bem á vista, e Gutierrez as encontrou. Abaixou-se para
apanhá-las, sacudiu-as do pó e, sorrindo, mostrando os
dentes muito brancos sob a bigodeira, estendeu-as para
Brigitte, exclamando:
— Pronto! Aqui as tem, senhorita.
— Muito obrigada — respondeu ela, sem esconder sua
alegria. — Não sabem o quanto me ajudaram. Foram muito
amáveis.
— Nem tanto — murmurou Crespo. — Podemos servi-la
em mais alguma coisa?
— Claro que não — sorriu Brigitte. — Agradecida por
tudo e boa-noite.
A senhorita Montfort tornou a ocupar seu posto ao
volante. Segundos depois, iniciava mais uma vez a volta para
Bagur.
Os dois guardas civis contemplaram o veículo que se
afastava, até as luzes traseiras desaparecerem numa curva da
estrada.
— Que pequena, hem? — suspirou Crespo, voltando-se
para o companheiro.
— Uma coisa louca! — concordou Gutierrez.
— Mas amanhã, quando voltarmos para o quartel,
comunicaremos ao sargento que ela esteve aqui. E vamos
verificar se há realmente uma senhorita norte-americana
chamada Montfort, na casa de dona Leonor.

7 – Um Bom Serviço
de Laboratorio
A senhorita Montfort agiu sem pressa, seguindo o declive
que levava ao centro do povoado. Mas não foi para lá
diretamente. Em primeiro lugar, porque as ruas que iam dar
na praça haviam sido fechadas ao trânsito de veículos para
não atrapalhar as danças.
Em segundo, porque ela e Número Um haviam marcado
encontro exatamente ali, no Mirador de San Ramon, uma
pequena esplanada um pouco afastada do centro de Bagur,
onde se erguia uma ermida em homenagem ao santo do
mesmo nome. Dali partia uma rua íngreme, em direção ao
castelo, e outra que rodeava as abas da montanha.
Á esquerda da ermida ficava a descida para a estrada de
rodagem, por aonde se chegava à casa de Carmem Amaya. O
mirador de San Ramon era um lugar de onde, nos dias claros
de verão, se podia contemplar uma belíssima paisagem. À
noite viam-se as luzes do mar, ao longe, e as das povoações
mais próximas, que se localizavam na baia de Estartit.
A noite estava clara e estrelada. Normalmente, Brigitte
Montfort teria descido do carro para contemplar aquele
panorama tão atraente. Mas a situação não era normal.
Número Um apareceu quinze minutos depois de Brigitte
ter chegado ao Mirador de San Ramon. Isto é, o tempo
necessário para chegar até ali, após ter saído da casa de
Carmem Amaya, enquanto a jornalista americana se entendia
com os guardas pela segunda vez.
O espião sentou-se ao lado da espiã e estendeu a mão
direita, com a palma voltada para cima, mostrando um
minúsculo objeto.
— Acertamos, hem? — sussurrou Brigitte.
— Exato. Não foi difícil de encontrar.
— Ótimo! Bem, vamos ver se tiramos algum partido da
visita do senhor Europa.
Brigitte manobrou o carro e tomou a rua que descia para a
estrada de rodagem. Pouco depois estavam na entrada de
Bagur, procedente de Regencós. Sem hesitar, entrou pela
Rua José António. No fim de dois minutos o carro estava no
jardim da casa alugada por Richard Ingram e ele próprio
fechou o portão e foi para a sala, juntar-se ao casal de
espiões.
— Conseguiram? — perguntou, ansioso.
— Claro — informou a divina. — Teremos bastante
atividade, a partir de agora. Vamos falar com o senhor
Europa.
O senhor Europa descansava num dos quartos,
mergulhado num silêncio sombrio. Levantou-se quando os
três apareceram A sua frente e estendeu a mão para receber
de Brigitte o insignificante rolinho preto. Contemplou-o um
segundo. Em seguida, voltou-se para a espiã internacional e
balançou a cabeça, murmurando:
— Perfeitamente. Teremos as fotos reveladas e ampliadas
daqui a três ou quatro horas. Um de meus homens partirá
agora mesmo para Gerona, fará o trabalho e voltará para
Bagur.
— Está bem. Não temos tempo a perder.
Europa entregou o rolinho a um de seus comandados. O
agente fez um gesto afirmativo e afastou-se, em companhia
de Johnny. Johnny-Bagur voltou pouco depois. Ao entrar no
quarto, Europa dizia a Brigitte:
— Seria conveniente aproveitarmos, enquanto esperamos
pelas fotos, para interrogar um dos russos.
— Não — balbuciou a agente de luxo da CIA — Prefiro
ver as fotos antes de falar com eles.
— Sua decisão, como sempre, deve ser a melhor —
resmungou Europa. — Sendo assim, tratemos de esperar.

O agente da CIA enviado a Gerona para revelar e ampliar
as fotografias voltou às quatro horas da madrugada. Johnny-
Bagur estava deitado em seu quarto, descansando um pouco.
Brigitte Montfort e Número Um faziam o mesmo. Todos
vestidos, naturalmente, pois não sabiam o que seria
necessário fazer, depois de examinarem o material
fotográfico.
Europa ficou na sala, cochilando no sofá, e o agente
numa das poltronas. Acordaram ao ouvir batidas na porta e
levantaram-se com rapidez. O agente foi atender.
Minutos depois, estavam todos reunidos na sala de estar.
O recém-chegado, após uma ligeira hesitação, estendeu para
Europa o envelope contendo as fotografias. O chefe,
compreendendo a hesitação do subalterno, passou o envelope
às mãos de Brigitte Montfort. A divina espiã sorriu para os
dois.
Número Um, sentado numa poltrona, acendeu um
cigarro, aparentando total indiferença pelo que acontecia
naquela sala.
A agente internacional afastou-se do grupo, indo para um
canto e ali, sozinha, examinou as fotografias obtidas por
Dorothy Griffin antes de morrer. Em seguida, sem dizer uma
palavra, colocou o material nas mãos de Número Um e
sentou-se no braço da poltrona onde ele se encontrava.
Angelo Tomasini examinou as fotos. Em todas elas
aparecia o agente soviético Cirilo Gavrilovich. Em várias
atitudes e em diversos ângulos. Umas haviam sido batidas no
hotel “Cap Sa Sal”. Outras, na estrada margeada de
pinheiros. Algumas mostravam o soviético no bar do hotel,
no restaurante, no vestíbulo e em diversos lugares dos
arredores de Bagur. Uma delas focalizava o espião ao entrar
no carro.
A partir daí, formando uma verdadeira sequência, as
fotografias tornavam-se mais interessantes. Mostravam o
automóvel de Cirilo, fotografado pela retaguarda. A placa
com o número estava bem nítida, em duas delas. Depois, o
russo parado numa praia, de costas para o mar,
contemplando as antenas de duas cores. Como o filme era
em preto e branco, não se podia saber que cores eram. Uma
delas, sem dúvida, devia ser branca.
Prosseguindo na sequência, Cirilo Gavrilovich entrando
num bar chamado “Mar y Sol”. Novamente entrando no
carro. Mais uma mostrando o veiculo pela retaguarda.
Finalmente, descendo do automóvel, relativamente perto da
casa de Carmem Amaya. As últimas mostravam Cirilo
afastando-se da casa, em direção ao atalho que levava ao
matagal. Finalmente, Cirilo Gavrilovich conversando com
um homem que mal se podia ver.
As quatro fotografias finais mostravam um prodígio de
trabalho de espionagem, realizado por Dorothy Griffin. E
não menos prodigioso trabalho de laboratório, realizado
pelas instalações da CIA em Gerona.
Cada uma delas exibia um quarto do rosto do
desconhecido. Essas quartas partes haviam sido ampliadas
com habilidade e numa escala que permitia, juntando-as,
obter quase uma fotografia completa e nítida do rosto do
homem com quem Cirilo Gavrilovich conversava.
As quatro últimas fotos da sequência passaram de mão
em mão. Todos os espiões reunidos naquela sala não se
cansaram de as contemplar, juntando-as como se formassem
as peças de um quebra-cabeça. Mas uma só resposta safa de
seus lábios, embora cada um usasse palavras diferentes:
— Nunca vi.
— Não conheço.
— Não faço a menor ideia de quem seja.
Ninguém conhecia o homem que conversava com o
agente soviético Cirilo Gavrilovich, perto da casa de
Carmem Amaya.
— Agora sim — disse Brigitte Montfort, no fim de
alguns segundos. — Agora, sim. Chegou o momento de
nossos colegas russos nos explicarem o que está acontecendo
por aqui.

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