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SUMÁRIO

INÍCIO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
A SOMBRA DA ALMA
***
Sidney Piesco

***
Primeira edição digital, São Paulo, 2014

***
Editora Vilesi

***

Registro EDA nº: 655.579 livro 1262 Folha 93


Técnica
Copyright © 2014 Editora Vilesi
Imagem da capa: Dolar Photo Club
Design da Capa: Carlos Dultra
Projeto gráfico: Editora Vilesi
Capa: Carlos Dultra
Revisão: Antonio Danesi

Esta obra foi produzida em conformidade com o


novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

***

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Rua Francisco Gomes, 179, Jd Estoril


São Paulo – SP – Brasil
CEP 02417-060
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www.editoravilesi.com.br
Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Piesco, Sidney

A Sombra da Alma / Sidney Piesco; SP: Vilesi, 2014.

ISBN 978-85-65553-04-9

1. Ficção. 2. Literatura brasileira I. Piesco, Sidney II. Título

01-2014 CDD B869.3

***

Índice para catálogo sistemático:

1. Ficção

2. Literatura brasileira – Ficção


Aviso
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***
Esta é uma obra de ficção e
visa somente o entretenimento do leitor.
Qualquer semelhança com a realidade
será mera coincidência.

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***
Nota do autor: ou não!

***
ÍNDICE
INÍCIO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
Em algum momento do futuro
David corria enquanto procurava se abrigar, mas não encontrava nenhum local seguro. Então,
começou a ouvir tiros que pareciam ser em sua direção.

Um beco estreito pareceu um ótimo local para se esconder, e foi onde entrou correndo. A
passagem pertencia a um cortiço com várias famílias e suas crianças por todos os lados. No
final do corredor havia uma bifurcação na qual um dos lados ia direto para outras moradias
pobres, com ruas finas, montando um labirinto muito difícil de ser decifrado por qualquer
pessoa que não tivesse nascido naquele local.

“Isso é perfeito”, pensou David enquanto procurava um ponto alto para se guiar. Assim não
daria voltas em círculo, com o risco de se encontrar com seu perseguidor.

Uma antena de emissora de televisão ao longe serviu de guia para ele, que passou a correr
desenfreadamente pelos estreitos becos, ora se enroscando em roupas que secavam ao varal,
ora tropeçando em brinquedos deixados pelas crianças que usavam aqueles caminhos estreitos
como seu quintal.

O caminho que David tomou mostrou-se um erro, pois terminava de frente para uma pequena
casa sem muros e um telhado baixo. Porém ele não teve dúvida e pulou com toda a sua força
para se segurar na calha e alcançar o telhado, onde continuou sua corrida desenfreada.

Sabia que precisaria se esconder ou encontrar outros integrantes do grupo para somar forças.
Não deveria, em hipótese alguma, enfrentar o perseguidor sozinho, pois lhe conhecia as
habilidades e o treinamento com o mestre Ming. Por isso, sua busca de um abrigo era frenética.

David ainda estava pulando pelos telhados quando percebeu que estaria vulnerável e muito
fácil de ser encontrado se continuasse ali em cima. Então, pulou para um quintal que dava para
outros caminhos, mais entrelaçados que os anteriores. A antena continuava como seu guia.

Repentinamente, David sentiu uma forte dor na cabeça e sua consciência se foi.
CAPÍTULO I

Era começo de maio e o sol teimava em lutar contra as nuvens que o escondiam das pessoas
apressadas rumo ao trabalho.

A cidade, muito grande, tornava anônima aquela criança de oito anos que brincava alegre, nos
fundos do quintal de uma casa pobre, juntamente com seus outros dois irmãos e um amigo.

Uma rampa improvisada, feita com madeira proveniente de uma construção antiga, estava no
final do corredor estreito e era o ponto alto da brincadeira com os skates. Logo atrás da rampa
havia um muro, e depois dele uma casa três metros mais baixa que a de David.

Jorge, seu amigo, também de oito anos, naquele dia resolveu pegar mais impulso que o de
costume para tentar alcançar o muro da vizinha antes de voltar à rampa. Pensou que seria
muito emocionante ver o telhado da casa dos fundos de um local tão alto.

Desceu o corredor imprimindo toda a força que sua pequena perna lhe permitia fazer para
impulsionar o seu velho skate com rodas bambas e uma madeira desgastada. Ao alcançar a
rampa, percebeu que sua velocidade era demasiada e não conseguiria parar no alto para um
giro de 180 graus antes de voltar em segurança, e um grito forte saiu de sua garganta pedindo
socorro, grito que David ouviu horrorizado.

A cena parecia estar em câmera lenta para David. Seu amigo subindo pela rampa com uma
velocidade incompatível com qualquer suposta segurança que aquela armação de madeira
poderia proporcionar e, no seu final, um acidente certo com a morte iminente.

Então, aconteceu pela primeira vez em sua vida. David percebeu que seus irmãos e seu amigo
Jorge se moviam muito lentamente, enquanto seus próprios movimentos eram muito rápidos.
Mas aparentemente nenhum deles notava isso. Em determinado momento, pareceu que os
outros três estavam parados enquanto somente ele se movia. Sua visão ficou diferente, as cores
não tinham muito contraste, mas ele conseguia enxergar tudo perfeitamente.

Aquela criança de apenas oito anos alcançou seu amigo, puxou–o pela camisa até que ela
rasgasse e, assim, conseguiu diminuir a velocidade do skate, evitando o acidente. Porém ele
não entendeu o que se passara. Tentou falar com os irmãos que o ignoraram, assim como seu
amigo, que somente perguntou:

– Mas de onde você saiu?

Naquela noite, David não conseguiu pregar os olhos. A cena de seus irmãos parados enquanto
ele se movia, o seu amigo prestes a sofrer um acidente terrível, a indiferença dos três, tudo isso
era muita coisa para ser absorvida por aquela pequena cabeça cheia de conflitos e dúvidas.

***

Dez anos se passaram. David completou a maioridade e pode realizar um antigo sonho: ter sua
licença para dirigir.

Com muito trabalho desde os catorze anos, conseguiu juntar dinheiro suficiente para ter sua
habilitação e também comprar um automóvel surrado, com dezesseis anos de uso. Era seu
sonho de independência realizado.

E, como não poderia ser diferente, na primeira noite de sábado após o grande feito, David
chamou seu amigo de infância, que ele salvara aos oito anos, para ir a uma casa noturna.

Tudo teria corrido bem, se não fosse aquela criança que estava com seu pai, largar de sua mão
e atravessar a rua na frente do carro de David. Não havia tempo para frear antes de atingir
aquele pequeno corpo que passava apressadamente por seu caminho. A tragédia era inevitável.
E essa foi a segunda vez em sua vida.

Os pneus gastos, o freio com dezesseis anos de trabalho e o chão escorregadio estavam
tramando contra aquela pequena e inocente criatura. Porém, como da primeira vez, o mundo ao
redor de David, assim como seu carro, parou. Nada se movia, a não ser ele. David olhou para
aquele menino com expressão assustada e estática, virou-se e viu seu amigo Jorge segurando o
painel do carro com sua mão direita e com expressão de horror. Ele chegou a chamar Jorge
pelo nome, mas este não se moveu.

Não há como precisar quanto tempo se passou até que David resolvesse sair do carro.
Vagarosamente, abriu a porta, experimentou colocar seu pé no chão e viu que era seguro estar
lá. Então, saiu andando em direção à criança, pegou–a no colo e a levou até o outro lado da rua
em segurança, deixando–a sobre a calçada.

David voltou vagarosamente para o carro, sentou–se ao volante, fechou a porta, olhou para a
frente e o automóvel voltou a arrastar os pneus no chão, já que ele havia posto o pé no freio
novamente.

Assim que o carro parou, ele percebeu que o pai da criança estava olhando perplexo, não
acreditando que seu filho havia escapado do atropelamento, possivelmente pensando que
aquilo tinha sido um milagre. Foi quando a voz de Jorge tirou–lhe a concentração.

– Você viu isso? Essa criança parece ter voado de tão rápido que correu e conseguiu sair da
frente do nosso carro. Minha nossa! Essa foi por pouco!

David não respondeu. Ficou parado, olhando para seu amigo, tentando entender o que havia
acontecido. Lembrou–se da primeira vez que vivenciou algo parecido e somente se perguntava
o que isso tudo significava. Naquele momento, percebeu que era diferente dos outros.

***

Todos cantavam parabéns para David. Sobre o seu bolo havia vinte e três velas rodeadas por
finas camadas de chocolate que imitavam madeira. Era o bolo Floresta Negra, de que ele tanto
gostava. Sobre a mesa estavam vários brigadeiros, taças de vinho quente, pipoca e quentão, já
que seu aniversário era no inverno.

Seu irmão Jonas estava presente, assim como o amigo Jorge com a namorada Lígia e sua
futura cunhada, Amanda. Somente o irmão mais velho, o Chico, ainda não havia chegado, pois
sempre se atrasava para arrumar seus dois filhos pequenos.

A mesa do bolo estava posta na cozinha, onde todos estavam reunidos. Na sala, a televisão
estava ligada, pois suas tias a deixaram assim para retornar em breve, após os parabéns, a fim
de assistir ao programa de Letícia Lira, uma jovem apresentadora que aos vinte e dois anos já
comandava um talk show de grande audiência, e por quem David nutria uma paixão secreta
muito forte.

Ela era linda, uma mulher com cabelos escuros ondulados, estatura média e os olhos, o nariz e
a boca em grande harmonia, principalmente quando um largo sorriso branco se abria em sua
face.

David não sabia, mas a terceira vez estava para chegar em menos de dez minutos. Porém, seria
uma experiência terrível e muito diferente das outras duas.

Assim que os convidados terminaram de cantar os parabéns, o bolo começou a ser servido e
David escolheu seu irmão Jonas para receber o primeiro pedaço. Depois entregou um para sua
mãe, outro para seu pai, assim como para o amigo Jorge, para logo em seguida pedir que sua
mãe continuasse a servir aos seus amigos.

De forma inesperada, um barulho seco e inconfundível foi ouvido do lado de fora da casa. Era
um estrondo alto, que não podia significar outra coisa a não ser um tiro de arma de fogo.

A cozinha ficou em silêncio e todos começaram a se deslocar para uma janela que permitia ver
a rua parcialmente. Então, David pôde ver sua cunhada gritando e gesticulando nervosamente,
enquanto seus dois sobrinhos permaneciam imóveis, olhando assustados para baixo, vendo
algo que estava caído no chão.

Novamente, tudo parou. Ninguém se movimentava, a não ser David que saiu correndo pelo
mesmo corredor que levava à antiga rampa de skate, só que na direção contrária, indo para o
portão que dava para a rua.

O silêncio era predominante. Sua cunhada não se movimentava mais e nem gritava
desesperada. Somente um corpo no chão chamava a atenção de David. Era seu irmão Chico.
Ao descer do carro, Chico foi abordado por um ladrão armado e, como era exímio lutador de
karatê, resolveu reagir para desarmar aquele seu oponente que parecia frágil. Porém, ele não
havia visto que outro ladrão dava cobertura àquele que o abordou. E foi esse segundo
indivíduo que disparou a bala que atingiu em cheio a nuca de Chico derrubando-o já sem vida
no chão frio.

Chegando ao local, David percebeu que o sangue não escorria de seu irmão, apesar de o chão
estar todo vermelho. Sentou-se ao lado de Chico, abraçou–o e começou a chorar copiosamente,
o suficiente para não perceber a aproximação de um estranho.

– David? – perguntou o estranho que estava próximo dele

David não ouviu

– David? – insistiu o estranho.

David olhou para o lado e para o alto, a fim de ver quem o chamava. Era um homem alto que
aparentava ter por volta de cinquenta anos, cabelos grisalhos, barba bem feita e um corpo
muito forte.

– Não se assuste – disse o estranho sorrindo. – Eu sei que o momento é triste e forte, mas
gostaria de me apresentar. Meu nome é Adá. Na verdade me chamo Adalberto, mas meus
amigos sempre me chamaram de Adá.

David olhava para aquela figura que estava com somente metade do rosto iluminado, tentando
entender o que estava acontecendo. Quem era ele? O que estava fazendo ali? Por que ele se
movimentava enquanto todos os outros estavam parados? Essas eram as dúvidas urgentes dele.

– Que... quem é você? – perguntou David gaguejando e com os olhos embaçados pelas
lágrimas.

– Já me apresentei. Adá. – O sorriso permanecia em seu rosto.

– Sim, mas por que você se movimenta e os outros não? – David continuava abraçando o
irmão.

– Eu sou como você – respondeu Adalberto.

– Como eu? Como eu sou? O que eu sou?

Adalberto continuava sorrindo, o que estava irritando David profundamente.

– Somos especiais, David. Somos iguais, mas somos diferentes dos outros.

David descansou a cabeça do irmão sobre o chão, levantou-se e olhou fixamente nos olhos de
Adalberto.

– Foi você? – perguntou com raiva.

– Eu o quê?

– Quem matou meu irmão?

– Não. Foi um bandidinho qualquer. Eu não cheguei a vê-lo.

– E por que está aqui?

– Vim ajudá-lo a salvar o seu irmão.

– Como você pode me ajudar? – David parecia um pouco mais calmo, porém apreensivo.

– Posso ajudá-lo ensinando a trazer o seu irmão de volta. – Adalberto sorriu novamente.

– Como? Ele está morto. – David apontou para o corpo do irmão no chão.

– Sim. Ele está morto agora. Mas não estava há dez minutos. Você pode voltar e evitar que ele
venha para cá, ou mesmo pode chamar a polícia para prender os bandidos antes que seu irmão
chegue com a família.

A expressão de David era um misto de descrença e perplexidade.

– Você é algum louco? – perguntou David.

– Não, meu amigo. Como eu disse, sou como você. E não estamos sozinhos. Mas sente-se para
que eu explique com calma. – Adalberto apontou para a calçada.

David se sentou enquanto olhava para aquele estranho que estava começando a conseguir
convencê–lo de que poderia fazer algo pelo irmão.

– David, preste atenção ao que vou dizer. A prova de que sou igual a você é que o tempo está
parado para todos os que você conhece, mas não para mim. Estou interagindo com você
enquanto os outros parecem estátuas.

Adalberto estendeu a mão em direção às outras pessoas enquanto girava o corpo em círculo
mostrando-as.

– Explique como posso salvar o meu irmão.

David estava ansioso.

– Tenha calma. Ele não vai sair daí e eu lhe garanto que o Chico viverá muitos anos ainda. Seu
irmão vai conhecer os netos. Deixe lhe explicar o que somos. Então lhe explicarei como vamos
salvá-lo.

– Está bem. Eu lhe dou dois minutos para me explicar.

Adalberto sorriu novamente.

– Tudo bem. Vou tentar não passar de dois minutos.

Adalberto olhou fixamente para David. Aquele sorriso havia sumido completamente de seu
rosto.

– Nós podemos manipular o tempo. Conseguimos fazê-lo parar ou mesmo voltar. É um dom
que temos, mas não sabemos de onde vem e nem porque fomos escolhidos. Porém sempre o
usamos para o bem.

– Parar o tempo? Isso é possível? E ninguém usa esse dom para fazer mal aos outros?

– Já usaram sim, mas os Iguais, é assim que nos denominamos, vigiam os atos de cada um de
nós. Você pode encarar isso como uma autoregulamentação.

Adalberto sorriu levemente.

– Ensina para mim! – falou David.

– O quê?

– Ensine-me como posso voltar no tempo. Quero salvar o meu irmão.

– Está certo. Mas você vai me prometer que seguirá as nossas regras.

– E como vou saber quais são essas regras? – David estava curioso e esperançoso.

– São duas regras muito simples. Usar o poder para o bem é a primeira. E a segunda é não
voltar ao passado sem uma forte justificativa e a nossa aprovação.

– Por que não podemos voltar ao passado sem essa aprovação?

– No universo tudo é regido pelo equilíbrio. Já ouviu falar de Yin e Yang da medicina
tradicional chinesa?

– Sim.

– Pois é, esse equilíbrio existe e rege o universo. Como tudo está em equilíbrio, quando
voltamos ao passado para eliminar algo ruim que tenha acontecido, outro acontecimento de
igual teor tomará o seu lugar.
– E no caso do meu irmão, se eu conseguir voltar e salvá–lo, o que acontecerá? – David já se
comportava como um aprendiz.

– Como você tem uma forte justificativa e está utilizando o poder pela primeira vez, acredito
que não acontecerá nada de ruim com algum familiar seu ou com gente de bem. Não costuma
ser assim.

– E como eu faço isso?

– Não é difícil. Você vai precisar se concentrar em um momento do passado e sentir como se
estivesse lá. Para ajudá-lo, vou fazer junto com você. Segure na minha mão para sentir como
deverá ser o seu comportamento.

– Certo. Em qual momento eu devo pensar?

– Algo que aconteceu hoje mesmo pela manhã. Assim você tem tempo de falar com seu irmão
e modificar o horário de chegada dele. Acredito que seja o suficiente para salvá-lo. Uma
pequena modificação, até um simples telefonema, pode mudar todo o destino.

– E se eu não conseguir convencê-lo a vir em outro horário?

– Fácil. Você volta no tempo novamente até conseguir.

David segurou a mão de Adalberto e pensou naquela manhã, no momento em que estava
parando o carro em frente à padaria para pegar o bolo que sua mãe havia encomendado.

Tudo ao redor começou a ficar embaçado, sem contraste, e a girar lentamente até que foi
perdendo sua forma, tornando-se um caldo leitoso que girava ao redor dos dois.

Repentinamente, David estava dentro de seu carro, próximo à padaria e tentando estacionar na
vaga que havia acabado de encontrar. Seu pensamento estava confuso, mas voltou-se para seu
irmão Chico.

Terminou de estacionar o carro e em seguida pegou o seu celular e ligou para o Chico. Ao
ouvir a voz de seu irmão do outro lado da linha, uma lágrima escorreu por sua face.

“Que alívio!”, pensou.

– Chico, nós mudamos o horário do meu aniversário. Em vez de chegar às oito horas, você
pode chegar por volta das seis? Não quero que ninguém chegue tarde, pois soube que a região
está muito perigosa.

– Está bem, meu irmão. Eu estarei lá mais cedo. Mas não prometo que será às seis. Talvez por
volta das sete.
David sentiu um alívio, já que seu irmão havia sido morto às nove horas e dez minutos.

– E tem mais uma coisa, irmão – David falou rapidamente. – Caso alguém o venha assaltar,
jamais reaja. Eles nunca estão sozinhos. Sempre tem alguém dando cobertura.

– Sabe que eu nunca tinha pensado nisso, irmão. Você tem razão. Mas por que está falando
isso?

– Por nada. É que tenho ouvido muita coisa. Nossa cidade está muito perigosa.

David sentiu um alívio muito grande. Havia cercado os acontecimentos de todos os lados.
Porém ainda faltava algo, e ele ligou para a polícia de maneira anônima dizendo que tinha a
informação de que dois marginais estariam naquela rua por volta das nove horas da noite. Os
dois estariam armados e esperando por uma vítima desprotegida.

A noite chegou e, com grande alívio, David viu seu irmão entrar pela porta com os dois filhos
e a esposa. Não havia mais ninguém para chegar à festa e ainda eram sete e meia da noite.

Como da outra vez, os parabéns começaram às nove horas, e após a distribuição do bolo todos
ouviram o barulho de um tiro do lado de fora da casa.

David ficou gelado, mas dessa vez, com controle, parou o tempo e saiu para ver o que havia
acontecido. Ele mesmo ficou espantado ao ver como foi fácil controlar o tempo, uma vez que
já sabia como fazê–lo.

Um policial imóvel parecia seguir em direção a um corpo no chão, no mesmo local onde seu
irmão havia caído na primeira vez.

David correu até o corpo e o virou para ver se era algum conhecido. Não reconheceu aquele
adolescente que levava consigo uma arma, mas percebeu que se tratava de um marginal.
Provavelmente o mesmo que havia atirado em seu irmão.

“O Adá estava certo”. Pensou David. “O equilíbrio se manteve, mas agora com a morte do
ladrão, e não a do meu irmão.”

Aliviado, entrou em sua casa, dessa vez pela sala, e pôde ver a imagem congelada de Letícia
Lira na televisão. Antes de fazer com que o tempo retomasse o seu curso, David sentou-se na
poltrona e ficou apreciando aquela imagem.

“Eu mereço ficar aqui um pouco, depois de tudo o que aconteceu”, pensou. “É o meu
aniversário e vou me dar isso de presente.” – Outro pensamento lhe veio à mente: “Como
posso gostar tanto dela se nem a conheço pessoalmente?”
CAPÍTULO II

David ainda estava sentado na poltrona, admirando Letícia, quando Adalberto entrou pela
porta.

– Você tinha razão, Adá. Eu pude voltar no tempo e salvar meu irmão. Muito obrigado por me
ajudar. – Ele abriu um grande sorriso. – Só não consigo entender como somos capazes de fazer
isso.

– Essa foi somente a primeira lição, David. Eu preciso lhe ensinar muita coisa. Você será um
aprendiz de Igual e eu serei seu mestre.

– Aprendiz? Explique melhor essa coisa de aprendiz.

– Nós, os Iguais, nos vemos na obrigação de ensinar e direcionar o melhor caminho para um
aprendiz de Igual. Então, eu vou lhe ensinar tudo isso a partir de amanhã. Não vá dormir muito
tarde. Acorde cedo que estarei aqui às sete horas.

– Mas, amanhã será domingo e eu combinei que irei pescar com meu pai.

Adalberto soltou uma gargalhada.

– Está vendo como você tem muito a aprender? Nós podemos ficar juntos por um período que
vai equivaler a horas ou até vários dias, que assim que eu retornar o tempo, ainda será domingo
de manhã e você poderá ir pescar com seu pai. Até amanhã, garoto. Se estiver dormindo, vai
acordar com água gelada na cara. – Seus dentes brancos ficaram bem visíveis com o enorme
sorriso que se estampou em seu rosto.

***

Na manhã seguinte uma breve dor percorreu o rosto de David enquanto dormia. Com um
enorme susto, ele acordou e tentou se livrar daquilo que envolvia sua face e lhe proporcionava
uma sensação muito desagradável.

O então aprendiz pôde ver, por detrás da água gelada que percorria seu rosto e se acumulava
em seus olhos, o vulto de um homem que ria muito, a ponto de se contorcer.

– Adá... O que é isso?

– Eu não lhe falei, meu aprendiz? Você estava dormindo e eu cumpri minha promessa.
– Não é possível! – exclamou David. – será que não vou mais ter sossego em minha vida?

– Vai sim, aprendiz. Basta seguir os ensinamentos e tudo correrá bem para você. Porém, se sair
do que nós delimitamos, sofrerá as consequências.

Adalberto tentava ensinar a David que deveria estar sempre em sintonia com os ensinamentos
dos Iguais.

– Está certo. Sei que tenho muito para aprender, mas por favor, não há necessidade desse tipo
de brincadeira.

David levantou–se de sua cama molhada, caminhou até o banheiro para pegar uma toalha e
enxugar seu rosto e parte do peito. Dirigiu–se até o armário e trocou seu pijama molhado por
uma roupa seca e quente.

– Vamos, – disse David – estou pronto.

– Onde você acha que vai?

– Não sei, mas estou pronto para ir aonde quer que seja para começar a aprender. Tudo isso é
muito novo para mim, por isso quero aprender logo.

Adalberto riu novamente.

– Para que vamos sair daqui? O tempo está parado. Podemos ficar em sua casa mesmo e iniciar
o treinamento, jovem aprendiz.

Uma pausa se seguiu antes que ele continuasse a falar.

– David, vamos começar. Primeiro eu quero lhe contar uma breve história do que sabemos.

Adalberto sentou–se na cama de David e começou a falar.

– Nós, os Iguais, não sabemos há quanto tempo estamos aqui. Como somos sempre em número
reduzido, não documentamos nossa história e somente partilhamos o que sabemos.

– Quantos nós somos? – perguntou David.

– Com você, somos em vinte e dois Iguais. Dez homens e doze mulheres. Mas estamos
espalhados pelo mundo. Em nosso país somos somente nós dois, na Inglaterra três, um na
África do Sul, dois na Índia, nove na China, dois na Argentina e três na Austrália.

– Eu não fazia ideia que isso existia.

– Todos nos conhecemos e, para nos comunicarmos instituímos o inglês como nossa língua
oficial. Você sabe falar Inglês, não sabe?

– Sim. – respondeu David. – Aprendi quando criança.

– Nós sabemos disso. Você tem sido acompanhado desde pequeno. Sempre que detectamos um
novo Igual, nós o acompanhamos para que fique sob nosso controle.

– Estou me sentindo mal. Estou com a sensação que tive minha privacidade invadida diversas
vezes. É sério? Vocês me acompanharam desde a infância?

– É um preço que se paga. – Adalberto piscou para ele com um olho somente. – Lembra–se de
quando salvou seu amigo Jorge? Vários Iguais sentiram que o tempo havia parado, mas não era
nenhum de nós. Como vinha de nosso país, me deram a missão de encontra–lo. E desde então
tenho lhe monitorado.

– Parece um sonho misturado com pesadelo, se é que isso existe. Descubro que tenho um
poder maravilhoso mas também descubro que não tive nenhuma privacidade a vida inteira.

– Não se preocupe, aprendiz. Todos nós passamos por isso e estamos bem. – Mais um sorriso
se abriu em sua face.

– Mas, continuando, David, nós nos auto regulamentamos. Nós nos vigiamos e impedimos que
essa habilidade seja usada para o mal.

– Vocês todos são pessoas comuns? Acordam cedo, trabalham, tem família...?

– Sim e não.

– Explique, por favor. – David estava ansioso.

– Tenha calma. – Adalberto ficou visivelmente incomodado. – Primeiro devo ensiná–lo a


trabalhar sua habilidade em seu nível máximo.

Adalberto pegou um vaso na sala que sabia pertencer à mãe de David. Segurou–o no alto e
disse:

– A partir deste momento, o tempo voltou. Veja o que vou fazer.

Ele soltou o vaso e, antes que chegasse ao chão para se despedaçar, David gritou “não” e
apontou a mão em direção ao objeto. Esse Parou no ar, a poucos centímetros de se despedaçar.

– Muito bom! – Adalberto estava batendo palmas. – Você parou o tempo novamente. Agora
está sob o seu comando.

– Mas eu não sei como fiz isso. Só me desesperei com a perspectiva do vaso cair no chão.
Adalberto caminhou até o vaso, o pegou com as duas mãos e colocou–o novamente sobre o
suporte de onde havia retirado.

– Você já tem um bom controle do tempo. Mas ainda não escolhe o momento. E é isso que vou
lhe ensinar.

Ele aproximou–se de David e colocou uma mão sobre seu rosto tapando seus dois olhos.

– Feche os olhos e tente esvaziar sua mente. Deixe que somente o momento faça parte de seus
pensamentos. Não pense no passado nem no futuro. Pense no agora.

– É difícil, mas estou tentando. – David estava quase cochichando

– Você consegue. Concentre–se.

O silêncio tomou conta da sala. Durante uns poucos minutos David conseguiu somente sentir
aquele momento.

– Muito bom, David. Agora pense no tempo. Pense em fazê–lo voltar a correr.

– Os dois ouviram um barulho no andar de cima da casa. Era a mãe de David que havia
acordado. O tempo estava de volta ao seu normal.

– Agora, David, pense novamente no momento e imagine o tempo parando.

O barulho cessou.

– Pronto. Você mesmo parou o tempo. Basta algum treino que o fará de forma natural.

Adalberto pegou uma pequena navalha e segurou–a com sua mão esquerda, já que ele era
canhoto.

– David, faça o tempo voltar. Concentre–se.

Assim que o barulho no andar superior voltou, Adalberto passou a navalha sobre o braço de
David produzindo um corte mediano que começou a sangrar no mesmo momento.

– Você está louco! – Exclamou David tentando não gritar para não chamar a atenção de sua
mãe.

– Concentre–se David. Pare o tempo.

David obedeceu e percebeu que sua dor cessou, mas o corte continuava em seu braço.

– Agora deixe que o tempo corra novamente.


Ele obedeceu e percebeu que o corte havia sumido, assim como a dor.

– O que foi isso, Adá? Como fiquei curado?

– Aprendiz – iniciou Adalberto – nós não sabemos porque, mas cada vez que paramos o tempo
e voltamos, nosso corpo volta como novo. É como se nos purificássemos. Qualquer ferimento
ou doença acaba sumindo. Acreditamos que nos transportamos para uma outra dimensão, ou
algo parecido, cada vez que usamos nossa habilidade, e, assim que retornamos, somente a
nossa parte boa é transportada.

– Então... – David vacilou. – Então nós somos imortais? – Um sorriso se estampou no rosto
dele.

Adalberto soltou uma grande gargalhada.

– Leve um tiro na cabeça para ver se é imortal.

– Então...

– Deixe me explicar. Você precisa de seus pensamentos para parar o tempo e para retorná–lo.
Então, precisa do seu cérebro integro. Você pode se machucar em qualquer parte do corpo que
não seja a cabeça, e desde que se mantenha consciente, poderá retornar sem o machucado.

– E quantos anos nós vivemos?

– O mesmo que todo mundo. Nós envelhecemos e morremos por falência dos órgãos. Ou seja,
morremos quando nosso corpo está cansado. A não ser que seja por um acidente ou atentado
que nos atinja a cabeça.

– E quando eu paro o tempo, continuo a envelhecer? – As perguntas na cabeça de David eram


muitas.

– Não, David. O seu envelhecimento para junto com você. Ele só volta com o retorno do
tempo. Afinal, o que nos envelhece é o tempo. Basta ver o meu exemplo. Se somar todos os
momentos que vivi durante o tempo parado, eu devo ter mais de 100 anos. É difícil saber quão
longa é cada parada do tempo, já que perdemos a referência, mas dá para ter alguma ideia.

David estava assustado com todas essas informações, mas também estava feliz com essa
habilidade.

– Que coisa louca! – exclamou David. – E nenhum dos Iguais cai na tentação de parar o tempo
para sempre?

– Para quê? Viver na solidão é um dos piores castigos.


– E por que você já parou o tempo tantas vezes?

– Eu utilizo minha habilidade para duas coisas. A primeira todos os Iguais tem em comum.
Nós ajudamos pessoas que estão em perigo. A segunda é nosso meio de vida, afinal,
precisamos ter alguns bens para usá–los e ajudar as pessoas.

– Como assim? Explique melhor.

– Você já ouviu falar de A. de Sá?

– Claro que sim. É um famoso pintor de nosso país. Somente não o conheço porque ele não
gosta muito de aparecer na mídia.

– E Adalberto Sálvio, lhe diz alguma coisa?

– É você? Você é o A. de Sá? – David estava surpreso.

– Sim. Eu sou pintor e paro o tempo para poder fazer meus quadros com mais calma. Para ser
sincero, primeiro parei o tempo para aprender a pintar, depois para treinar muito, e agora eu o
paro para produzir. Como posso fazer com muita calma, sem barulho ou estresse, as pinturas
acabam sendo muito boas e eu consigo vender por um bom preço.

– Isso parece um sonho. Eu gosto muito de escrever. Mas, acabei por me formar em
engenharia, que era minha segunda paixão.

– Creio que escrever seria um bom negócio para você, aprendiz. Você terá muito tempo para
pensar e produzir ótimas obras.

– Eu já escrevi algumas coisas, mas nunca mostrei para ninguém por sentir vergonha. E, de
acordo com o que percebi, um escritor não escolhe o momento para escrever, ele deve produzir
quando vem a inspiração.

– Perfeito, David. Assim que você tiver uma inspiração, poderá parar o tempo e escrever com
calma. Temos um outro Igual escritor. Ele tem vários livros publicados e pode lhe ensinar
alguns truques. Como eu não entendo nada de literatura, acho que essa parte vou deixar para
ele.

– E quando eu posso conhece–lo?

– Esse Igual é australiano. Você vai conhece–lo em nossa próxima convenção.

David não se conteve e acabou rindo do que havia escutado de Adalberto.

– Vocês tem uma convenção?


– Bom, não são “vocês” e sim “nós”, e temos sim. Nos encontramos a cada seis meses ou
mesmo antes se algo exigir. Chamamos de convenção porque achamos uma denominação
bonita.

– Quando será a próxima?

– Dentro de dois meses.

– E as esposas e maridos vão junto? – David perguntou de forma quase inocente.

Uma expressão séria tomou conta do rosto de Adalberto. – Nós não temos relacionamentos
sérios. – ele respondeu.

David ficou parado por alguns momentos olhando para o rosto de Adalberto e pensando nas
suas próximas palavras.

– Como assim, nunca? Nunca terei um relacionamento sério? Filhos, família, nada disso?

– Tudo tem um preço, David. Se você conviver com alguém, ela logo notará que sua rotina não
é normal e isso poderá nos colocar em risco.

– Risco? Por que estaríamos em risco?

– As pessoas ficariam com medo de nossas habilidades e seríamos uma ameaça para elas.

– Mas... e... Como vocês vivem sem um relacionamento? Faz parte da natureza humana.

– Nós temos relacionamentos curtos com várias pessoas diferentes. Sempre sem compromisso.
Acredite em mim, David, isso é melhor do que parece.

David ficou olhando para o chão sem acreditar nas palavras de Adalberto, somente pensando
que nunca teria uma esposa ou mesmo filhos para formar uma família. Justo ele que gostava
tanto de crianças.

– David, agora eu vou cuidar das minhas coisas e você tem uma pescaria com seu pai. Nós
voltaremos a nos encontrar.

– Quando?

– A qualquer momento.

Adalberto saiu pela porta enquanto David pensava em tudo o que havia escutado. Tudo era
muito novo e completamente fora do normal. Ele sabia que era diferente desde aquele dia com
seu amigo Jorge, mas não conseguia imaginar a que isso o levaria. Agora ele tinha um mundo
completamente novo e diferente para explorar.
CAPÍTULO III

Dez dias haviam se passado sem que Adalberto aparecesse, quando o som do relógio que
estava sobre o criado–mudo acordou David.

Ele sentou–se na cama assustado, suado, com as mãos apoiadas no colchão um pouco atrás da
linha do seu corpo.

– Letícia Lira! – exclamou. – Sonhei com ela a noite toda. Parecia muito real – ele falava
baixo. – O que isso significa?

David ficou na mesma posição durante um longo período, imerso em seus pensamentos que
tanto o estavam perturbando.

– Estou perdendo meu tempo sonhando com ela. Mesmo que eu a conhecesse, não poderia ter
um relacionamento sério. Além disso ela é casada e tem um filho pequeno.

Ele se levantou, andou um pouco pelo quarto, sentou–se na frente do computador e resolveu
rever alguns textos que havia escrito no ano anterior.

Como uma luz que se acende, as ideias começaram a surgir em sua mente. Parecia uma história
que ele mesmo havia vivenciado ou um filme que havia assistido recentemente.

“Preciso de um bom título para este livro.” – pensou David. – “O sentido do ser... a dor do
ser... a dor da alma... Sentimentos Ocultos. É isso. Sentimentos Ocultos é o título perfeito.”

David começou a escrever a sinopse:

"História de dois jovens que se conheceram em uma danceteria e iniciaram um relacionamento


que, no início parecia somente mais um namoro sem compromisso, mas em pouco tempo ficou
muito sério e os dois passaram a falar em casamento. Após um grave acidente, os dois
passaram a não se reconhecer, eram completos estranhos um para o outro e foram obrigados a
se separar, mas o sentimento permaneceu."

David sentia cada palavra que escrevia. A história se desenrolava em sua cabeça e
imediatamente era passada para seu computador.

Contudo, o acidente, a perda de memória, tudo isso soava muito estranho para ele. Parecia que
a história deveria ser outra, mas David não encontrava a melhor explicação para a separação
dos dois, por mais que tentasse.
Como o tempo estava parado, ele podia escrever tranquilamente, e ao final, já tinha produzido
mais de 200 páginas.

A partir do momento do acidente, David começou a ter mais dificuldade para escrever, pois
sentia que precisava de muito esforço para inventar uma história convincente. Mesmo assim,
escreveu o livro todo adicionando um final feliz ao casal que voltou a se encontrar. Mas, não
era o seu sentimento. Ele sabia que aquele não havia sido o final esperado.

David fez com que o tempo retornasse ao seu normal e, após um banho e um café da manhã
reforçado, seguiu para o trabalho em uma pequena empresa de engenharia, onde era treinee.
Passou o dia imerso em contas de estruturas, concreto e forças vetoriais. O trabalho foi tão
intenso que ele até chegou a esquecer do livro e de suas estranhas habilidades.

O final do dia chegou. Era o momento de retornar para casa, mas ao olhar para os lados,
percebeu que todos estavam imóveis e as imagens não possuíam mais o contraste
característico.

“Isso só pode significar uma coisa”, pensou.

– Olá, David – falou Adalberto.

– Olá, Adá – respondeu David. – Você sumiu.

– Estive viajando para expor os meus quadros. Tenho uma vida intensa na arte e tudo que
produzo tenho que vender. E você, o que tem feito?

– Treinei bastante o controle do tempo. Parei–o várias vezes. Só preciso aprender a voltar ao
passado.

– Calma, aprendiz. Isso você só vai aprender no futuro, quando estiver preparado. Não quero
que use essa habilidade de forma indiscriminada.

– Como lhe falei, parei o tempo várias vezes. Você não percebeu? Também aproveitei algumas
pausas no tempo para escrever um livro. Veio-me à cabeça e escrevi em pouco tempo, se é que
posso falar assim.

– Que interessante. Isso é ótimo. Eu tenho muitos contatos, e um amigo muito querido é diretor
comercial em uma grande editora. Posso convencê-lo a publicar seu livro e fazer uma grande
campanha de marketing para ele. Você pode lançá-lo em Lisboa, durante a nossa próxima
convenção. Seria muito conveniente.

– Isso seria ótimo, Adá. Assim eu poderia deixar este trabalho que é muito desgastante e me
dedicar aos livros. Seria um sonho para mim. Mas, por que Lisboa?

– Você vai precisar de uma boa desculpa perante sua família para viajar para a primeira
convenção, e o lançamento será perfeito.

– Entendo. Gostei da ideia – David sorriu.

– Mas tem um porém. E sempre há um porém. O seu livro tem que ser realmente bom. Caso
contrário, teremos que contratar alguma equipe de ghost writers, que são os escritores
fantasmas. Eles passam para o livro o que você imagina e até corrigem tudo o que já foi
escrito.

Apesar da observação de Adalberto, ele sabia que David seria um grande escritor.

– E como eu vou saber se é bom? Para mim está ótimo, mas eu sou suspeito. – David sorriu
novamente e seu sorriso foi retribuído por Adalberto.

– Deixe o livro comigo. Vou dar uma lida para expressar a minha opinião de leigo e depois
enviá-lo àquele escritor de que lhe falei, um dos Iguais. Ele saberá orientar você e dizer se algo
precisa ser corrigido.

Os dois deixaram o escritório e foram juntos para a casa de David. Ao chegar lá, David
apresentou Adalberto à sua mãe como um amigo das partidas de futebol de domingo.

David entregou o dispositivo com o arquivo do livro para Adalberto, que o guardou no bolso e,
na saída, despediu-se delicada e educadamente de dona Sara, a mãe de David, que percebeu o
quanto Adalberto sabia lidar com as pessoas.

O apartamento de Adalberto ficava na Zona Sul da cidade. Tinha uma sala redonda ampla, seis
quartos, uma cozinha e dois banheiros que o rodeavam na periferia. No interior, muitos
quadros inacabados, rascunhos e tintas espalhadas desordenadamente no chão. A bagunça era
evidente e demonstrava que aquele apartamento era habitado por um homem. No centro da
sala, uma rede que se estendia de um pilar ao outro chamava a atenção, além de um sofá e uma
poltrona.

Adalberto dirigiu-se a uma bancada, pegou o seu computador, deitou-se na rede, inseriu o
dispositivo nele e abriu a tela que continha o livro com o título Sentimentos Ocultos.

– Que título bonito! – exclamou em voz alta. – Nosso amigo começou bem. Eu sabia que ele
não perderia o dom.

Um grande sorriso se abriu no rosto de Adalberto.

Começou a ler o livro de maneira descompromissada, pensando que se tratava de uma história
de romance melodramático, onde os protagonistas enfrentam alguns problemas familiares
durante o relacionamento, mas acabam se casando e sendo felizes.

Porém, conforme ele ia avançando nas páginas, sua expressão começou a se modificar.
Primeiro seu sorriso começou a sumir, depois a expressão ficou séria e passou a uma
fisionomia de alguém muito preocupado.

Adalberto devorou cada palavra e cada detalhe do livro. Voltou a algumas páginas, observou o
nome da personagem principal e viu diversas narrativas que não poderiam ser somente
coincidências. Não havia dúvida. Algo muito preocupante estava acontecendo.

Levantou-se da rede e caminhou pela sala de um lado para o outro, chutou alguns quadros,
colocou a mão no queixo, expressando um pensamento profundo e em alguns momentos sua
expressão demonstrava que ele não estava entendendo completamente a situação.

– Como é possível? – perguntou em voz alta. – Nunca tinha visto aquilo acontecer antes,
principalmente em um primeiro contato e com todos os cuidados que tomei. Será que falhei em
algum ponto?

Dirigiu-se para a bancada onde estava o seu telefone, tirou-o do gancho e hesitou. Repôs o
aparelho novamente na bancada e deu mais uma volta pela sala. De longe, olhou para o
aparelho, parou, pensou e foi rápida e decididamente em sua direção.

Ao pegar o telefone, segurou o número 2 por um tempo e uma chamada pré-programada se


completou. Do outro lado da linha uma voz feminina atendeu em inglês.

– Adá, é você? Aconteceu algo para me ligar?

– Sim, respondeu ele. Algo muito estranho e talvez grave. Acredito que Morrison Deales não
vai gostar de saber.

– O que houve? Diga logo.

– É David. Ele se lembra.

– O quê? Como ele se lembra? Ele nem estava iniciado quando aconteceu! Lembra-se de
tudo?

– Não. Ele não se lembra de toda a história, mas de boa parte dela.

– Com você sabe? – a interlocutora estava nervosa.

– Ele acabou de escrever boa parte da história, rica em detalhes, em seu primeiro livro.

Um silêncio invadiu o outro lado da linha. Após algum tempo, a mulher perguntou:

– E o principal, ele se lembra?

– Não. Isso me deixa um pouco mais sossegado, mas acredito que seja questão de tempo.
– Que ironia! Justo o tempo!

Adalberto sorriu.

– Quem mais já tomou conhecimento disso, Adá?

– Somente você... e eu, claro.

– O Morrison não sabe? Teremos que contar a ele e aos outros. Mas não por telefone. O David
vai à convenção?

– Sim, eu já o convidei. Inclusive o aconselhei a fazer o lançamento desse livro lá em Lisboa.

– Isso vai nos atrapalhar, mas teremos que conseguir uma maneira de conversar sem a presença
dele.

– Como ele vai lançar o livro durante a convenção, será o momento ideal para conversarmos.

– Então sua missão será garantir que esse livro seja publicado e lançado em Lisboa. Temos
pouco tempo. Faça um bom trabalho.

– Pode deixar comigo. Assim será. Só mais um detalhe. – Adalberto tinha algo importante a
dizer. – A personagem principal do livro se chama Letícia.

Mais uma pausa se fez antes da pergunta.

– Tem sobrenome?

– Não. Mas você sabe o quanto ele gosta de assistir aos programas dela, Ingrid.

– É verdade.

Adalberto desligou o aparelho, deitou-se novamente na rede e reiniciou a leitura, agora mais
detalhada, do livro de David, produzindo um relatório minucioso, comparando as
coincidências com fatos reais. Sabia que cobrariam isso dele.
CAPÍTULO IV

David estava apreensivo. Tudo havia mudado em sua vida. Havia pouco tempo ele era apenas
um trainee em um escritório de engenharia, com um salário que mal dava para pagar seus
passeios pela cidade nas noites. Porém se encontrava dentro de um avião havia quase dez
horas, viajando para outro país, para outro continente, a fim de lançar o seu primeiro livro.

O contrato que David havia assinado com a editora do amigo de Adalberto era algo surreal
para ele. A empresa havia adiantado um valor equivalente a dois anos do salário de David no
escritório de engenharia. Além disso, todas as despesas com a viagem, estadia e passeios
turísticos eram bancadas pela empresa, o que não era nada comum para um escritor iniciante.

Ao seu lado, dormindo um sono profundo, estava Adalberto, o que não o deixava esquecer que
a viagem não acontecia somente para o lançamento do livro, mas para o encontro com os
outros Iguais em uma convenção. E David nem sabia direito o que isso significava, muito
menos entendia o que lhe estava acontecendo, apesar de já se ter acostumado a lidar com o
tempo como um motorista aprende a lidar com seu carro após conseguir a habilitação.

O sono o forçou a dormir por algumas horas durante o voo, mas a ansiedade por aterrissar em
outro país, passar pelo controle de imigração, conhecer outros Iguais e lançar o seu livro, o
impediram de dormir no final da viagem.

Uma luz se acendeu no painel que ficava logo acima de sua cabeça indicando que estava na
hora de afivelar o cinto de segurança. O pouso estava próximo, conforme fora anunciado pelo
comandante.

O avião fez a sua aproximação da pista normalmente, sem turbulências ou curvas muito
acentuadas, o que deixou David tranquilo, e pousou suavemente no aeroporto de Lisboa,
fazendo com que Adalberto acordasse.

– Já chegamos?

– Sim, Adá.

– A viagem foi rápida e tranquila, não?

– Para você que dormiu durante todo o percurso, sim. Mas para mim foi um pouco tensa.
Contudo, aqui estamos. Finalmente vou conhecer um país diferente do meu.

Adalberto sorriu.
– Você vai conhecer muitos lugares. Provavelmente conhecerá o mundo inteiro, meu aprendiz.

– Você conhece muitos países?

– Mais do que posso me lembrar – os dentes brancos mostraram um grande sorriso.

Os dois desceram do avião, passaram pelo controle de imigração e esperaram pelas malas. Foi
quando David se sentiu em um território estranho pela primeira vez. Tudo era novo, o
aeroporto amplo e bonito, as pessoas falando de maneira diferente, o clima, tudo parecia muito
empolgante.

– Vamos, David. Nosso carro chegou.

– Vamos de táxi?

– Não, David. Eu aluguei um carro para termos mais mobilidade. Teremos muito o que fazer
aqui. Diversos encontros, o lançamento do seu livro, e ainda lhe mostrarei pontos turísticos
deste encantador país. Espere até conhecer o Oceanário e a torre de Belém.

David abriu um largo sorriso. Estava quase explodindo de felicidade e ansiedade.

– Quando me encontrarei com os outros?

– Tenha calma, aprendiz. Você fará o lançamento de seu futuro Best seller amanhã, enquanto
isso eu irei à pré-convenção. Daqui a dois dias você finalmente conhecerá o nosso grupo.

– Não vou negar que estou muito ansioso. Tenho me sentido diferente do resto do mundo
desde que descobri minha habilidade, por isso será muito bom encontrar outras pessoas iguais
a mim. Mas espere um pouco. Você disse que vai à pré-convenção, portanto não estará no
lançamento?

– Eu já li seu livro duas vezes. Ajudei na revisão e consegui tudo isso para você. Acho que
posso me dar ao luxo de participar da pré-convenção em lugar de comparecer ao lançamento,
não é mesmo?

– Mas vou ficar nervoso sem o seu apoio.

– Não se preocupe. Você estará com a diretora da editora. Ela já arranjou para que tudo corra
perfeitamente. E, se algo ameaçar dar errado, apenas pare o tempo para se concentrar, acalmar
e resolver. Lembre-se destas três palavras que são muito importantes para os Iguais e evitam
muitos problemas: concentrar, acalmar e resolver.

– Vou me lembrar – David sorriu.

***
O hotel ficava em uma grande avenida, próximo ao centro da cidade. Não era o mais
confortável, mas possuía tudo o que era necessário, como uma boa cama, um banheiro com
banheira, café da manhã e o principal, uma vista para o rio Tejo.

David chegou exausto, olhou o relógio e percebeu que havia uma diferença de quatro horas
para mais naquele país, o que ele não achou ruim, pois só pensava em descansar, jantar e
dormir para enfrentar o lançamento de seu livro no dia seguinte. Imaginava que seria um longo
dia, mas não sabia as surpresas que teria.

Adalberto, assim que chegou ao seu quarto, não descansou. Em vez disso, pegou o telefone,
retirou um chip de uma pequena valise com chips de várias localidades e instalou em seu
telefone o que estava marcado como “Portugal”. As ligações começaram. Ele precisava ter
certeza de que todos estavam no país, instalados e prontos para o dia seguinte. Era o
responsável pela organização das convenções.

O primeiro telefonema foi para Ingrid, uma jovem muito bonita, loira, com enormes olhos
azuis que lhe saltavam do rosto e chamavam a atenção de qualquer homem que a encontrasse.

– Olá, chegou bem?

– Sim, Adá. Estou instalada no mesmo hotel que vocês.

– Confortável?

– Já estive em melhores, mas você fez bem em me colocar perto de David.

– Lembre–se de que ele não poderá saber quem você é até ir à convenção.

– Não se preocupe.

– Amanhã será o dia de contar ao Morrison. Espero que ele tenha uma reação razoável sobre o
assunto e não me culpe.

– Culpar de quê? Você não fez nada diferente do que ele ordenou.

– Sim, mas, como lhe falei antes, algo saiu errado, Ingrid.

– Assim como saiu com você, Adá, sairia comigo ou mesmo com ele.

– Espero que Morrison não resolva modificar as coisas novamente.

– Temo por David.

– Eu também, mas não vejo nenhum motivo para pensar que ele corre algum risco.
– Certo. Divirta-se amanhã em Sintra.

– Você não vai comigo?

– Não, Adá. Você se esqueceu de que vai levar David até o shopping, onde se encontra a
livraria na qual será realizado o lançamento e de que já estarei lá? Ficou combinado que eu
acompanharei todo o evento como diretora da editora.

– Tem razão. Deve ser o cansaço da viagem. Vou ligar para os outros para ver se estão todos
bem. O Morrison só chega amanhã.

– Como sempre. Ele é sempre o último a chegar. Às vezes fico irritada com isso.

– Não vou comentar – Adalberto desligou o telefone. Não costumava dar muitas chances para
que um Igual falasse mal de outro, principalmente de Morrison, para evitar encrencas.

***

No dia seguinte David acordou assustado.

– Letícia! – falou baixo. – Novamente? Sonhei com ela a noite toda. – Passou as mãos pelo
rosto – O que isso significa? Será que estou apaixonado por alguém que nem conheço? Mas
parece tão real? – Olhou para o espelho do outro lado do quarto por alguns segundos antes de
continuar falando consigo mesmo.

– Queria contar para alguém, mas tenho vergonha. O que Adá iria pensar? Contar para o Jorge
é impossível. Do jeito que ele é gozador, não me deixaria em paz. Espero que esses sonhos
acabem logo.

David ficou pensativo por mais ou menos dez minutos sobre a cama, olhando para o infinito.
Mas o que ele não sabia era que Leticia Lira estava em Lisboa para gravar um programa
especial com um jogador de futebol que estava no auge da carreira e era muito conhecido por
seus empreendimentos milionários no ramo de casas noturnas, além de participar de diversas
campanhas publicitárias.

Naquele mesmo momento Letícia estava tomando o café da manhã no reservado de seu hotel,
próximo à ponte Vasco da Gama, ao lado do Oceanário, quando seu assessor a interrompeu.

– Letícia, desculpe-me interrompê-la.

Ela, que era muito simpática, deu um sorriso amigável para ele.

– Já interrompeu, querido. Diga o que houve.

– Você chegou a ver propagandas sobre o escritor David Leniz?


– Não respondeu ela, curiosa.

– É um escritor novo. Está lançando o seu primeiro livro, que se chama Sentimentos Ocultos.

– E o que tem de especial nisso?

– Muito. Ele é um escritor novato do nosso país e foi adotado por uma grande editora. Essa
editora está gastando muito dinheiro com a propaganda. É muito dinheiro mesmo em um
marketing pesado. Chegaram a mandar alguns folders para nós. Além disso, mandaram-nos um
exemplar do livro. Já comecei a ler e parece ser muito bom.

– E como eu não vi essa divulgação?

– Aí é que vem o mais estranho. A propaganda mais pesada não é em nosso país, e sim aqui
em Portugal. E a editora é brasileira.

– Aqui? O lançamento vai ser aqui? Por que não no Brasil?

– Sim, vai ser em Lisboa, em uma livraria aqui perto. Isso não é estranho? Acho que daria uma
boa matéria.

– Sim, muito curioso. Quando vai ser?

– Hoje.

Letícia, que era ávida por matérias curiosas para o seu programa, deu um grande sorriso.

– Não perco isso por nada. Quero saber por que eles resolveram investir em um escritor
novato, gastar tanto com propaganda e ainda por cima em outro país com menos habitantes que
o nosso. Quero uma entrevista com esse tal de David Leniz.

– Quer que eu entre em contato com a assessoria dele?

– Não. Vamos chegar de surpresa. Quero entrevistá-lo in loco. Não gostaria que ele se
preparasse com respostas programadas. Estou ansiosa. Isso vai ser muito interessante. Ainda
bem que a outra entrevista será somente amanhã e temos bastante tempo.

– E o seu passeio ao castelo de São Jorge?

– Fica para depois. – Olhou para o seu assessor com um belo e largo sorriso, sua marca
registrada na televisão. – Obrigada, Souza, você é o máximo. Sempre atento ao que é
importante.

Souza abriu um largo sorriso enquanto saía do reservado. O elogio de Letícia valia mais do que
qualquer salário para ele.
“David Leniz...”– pensou Letícia. “David Leniz... Leniz... Esse nome não me é estranho? Acho
que havia uma família Leniz no bairro onde eu morava.”

***

Adalberto foi o primeiro a chegar a Sintra. Subiu por uma estrada pequena e tortuosa até
chegar ao Palácio da Pena, imponente construção no alto do morro, encravada em rochas e
com as paredes pintadas com cores vivas, em tons de amarelo, laranja, púrpura e sua torre
central, a mais alta, em vermelho.

Dirigiu–se para um pátio em um dos lados do castelo, onde uma parede lhe chamou a atenção.
Era toda incrustrada com frutos do mar. Sua beleza o hipnotizou por alguns segundos, até
ouvir uma voz conhecida.

– Distraído, Adá?

Adalberto se virou e viu o seu velho amigo argentino, Juan.

– Olá, Juan. Vejo que desta vez você chegou cedo – Adalberto falou em espanhol, já que uma
das características dos Iguais era falar diversas línguas por terem muito tempo para estudar.

– Sim. Percebo que só você chegou antes de mim. E Ingrid?

Ingrid era um velho caso de amor de Juan.

– Ela não virá hoje. Vai ao lançamento do livro de David, aquele Igual recente.

– Algo especial no lançamento para ela faltar no primeiro dia da convenção?

– Pode apostar que sim. Porém só vou comentar o assunto quando todos estiverem aqui,
principalmente o Morrison.

Juan era de falar pouco, por isso não questionou Adalberto sobre o assunto tão especial que
afastou Ingrid desse encontro. Dirigiu-se para uma mureta que ficava próxima ao muro
incrustrado e, com um pequeno esforço, sentou-se nela, já que sua estatura média o impedia de
sentar-se com desenvoltura em locais mais altos. O vento era forte naquele momento, mas não
chegou a incomodar Juan, que além de bem agasalhado não possuía cabelos para serem
despenteados.

Pouco a pouco os outros dezenove Iguais foram chegando e, como de costume, o Australiano
Morrison foi o último a aparecer, já que era o líder de todos.

Morrison era diferente dos demais. Além de sua estatura avantajada, com seu 1,98 metro, seus
cabelos loiros e seus olhos verdes que pareciam amarelados, ele possuía mais habilidades em
relação ao tempo do que os outros Iguais. Morrison era capaz de parar um tempo dentro do
outro, isolando cada Igual em um momento diferente, e isso assustava um pouco Adalberto.
Além disso, era o único que conseguia fazer retornar o tempo parado por outro integrante do
grupo.

Essas habilidades extras de Morrison eram conhecidas pelos Iguais, porém alguns
desconfiavam que ele possuía algumas outras, que os integrantes desconheciam.

O tempo ao redor de todos os integrantes da convenção cessou e as imagens dos objetos


perderam o contraste.

– Bom dia a todos, meus amigos – iniciou Morrison. – Vejo que a Ingrid não está conosco. –
Era um ótimo observador.

– Ela está acompanhando o aprendiz David – respondeu Adalberto.

– Você me contatou hoje cedo avisando que tinha algo para nos revelar. Então, sugiro que o
primeiro item da pauta da convenção seja esse assunto que parece ser importante.

– O assunto é muito importante, mas não sei precisar quais serão as consequências e nem se
elas realmente existirão.

– Não faça suspense, Adá, diga logo. – Morrison parecia impaciente e curioso.

– Como todos vocês estão cientes, há alguns anos nós detectamos um novo Igual em meu país.
Mais precisamente, em minha cidade. E fui designado para acompanha-lo até percebermos que
ele estava pronto para se tornar um aprendiz.

– Sim. Estamos falando de David, não é? – perguntou Alan, um inglês moreno, pouco mais
alto que Adalberto. – Isso mesmo, Alan. Eu o acompanhei por alguns anos e, quando
detectamos um desvio em sua trajetória, Morrison determinou que houvesse uma intervenção.

Morrison se aproximou de Adalberto.

– E você a cumpriu conforme minhas determinações, se me lembro bem.

– Com certeza, Morrison. Tudo foi feito conforme o planejado.

– E o que é tão importante?

– O livro dele. Na obra Sentimentos Ocultos, ficou muito claro que David se lembra de boa
parte da história.

Morrison deu um passo para trás.

– Mas não é possível! – exclamou.


– Eu também fiquei perplexo.

– Você tem certeza disso? – perguntou Juan.

– Sim, meu caro. Eu acompanhei a história de David desde a sua infância, e o livro traz
detalhes que realmente aconteceram. Não é possível ser coincidência.

– Ele se lembra de tudo?

– Não, Alan. Em determinado momento do livro, a história muda de rumo e se afasta da


realidade.

– Em qual momento? – perguntou Morrison.

– No momento de nossa intervenção. Ele escreveu tudo com detalhes, mas quando entramos na
história ele passou a outros acontecimentos e o livro tornou-se fantasioso.

Morrison afastou-se do grupo até uma mureta com vista para a mata, colocou sua mão no
queixo e ficou pensativo. Todos ficaram esperando o seu retorno, ansiosos e curiosos para
saber qual seria sua reação.

– Adá – principiou ele, enquanto se aproximava novamente do grupo –, suas ordens são para
incentivá-lo a escrever outro livro. Caso ele venha a lembrar mais detalhes da história, quero
ser contatado imediatamente. Vou intervir pessoalmente.

– Nós sabemos que você é o líder – disse Adalberto com certa rispidez na voz –, mas quero
questioná-lo sobre o porquê de ser tão importante afastá-lo dela.

Morrison olhou fixamente nos olhos de Adalberto e nada respondeu. Virou-se para Susan, uma
australiana de beleza mediana e cabelos negros cacheados, e perguntou:

– Qual é o próximo assunto, minha querida?

Susan hesitou por um breve momento, mas logo respondeu:

– Um balanço das nossas ações como Iguais. Acredito que esteja na hora de lermos nossos
relatórios e discutirmos sobre como agimos nos últimos meses.

– Sugiro que façamos isso – disse Morrison. – Depois votaremos a aprovação dos relatórios e
marcaremos uma nova sessão para amanhã, quando finalmente conheceremos o aprendiz.

Ninguém voltou a tocar no assunto David. Todos os relatórios foram lidos, analisados e, após a
aprovação de Morrison, os outros votaram e também aprovaram.

O momento utilizado para tanto foi o equivalente a um dia, porém para os outros habitantes da
terra nenhum segundo havia se passado quando Morrison fez o tempo voltar a caminhar
novamente.

– Como vocês subiram até aqui? – perguntou.

Alguns responderam que subiram com o ônibus-jardineira disponibilizado por Sintra, enquanto
outros responderam que foram a pé.

– Sugiro que todos nós desçamos a pé para apreciarmos a vista enquanto conversamos sobre
outros assuntos mais leves que os de nossos relatórios. Faz tempo que não nos vemos, e não
quero terminar o primeiro dia de convenção às voltas com nossas obrigações.

– Concordo com você – disse Juan.

Os outros também concordaram e alguns até já estavam tomando o caminho para descer pela
pequena estrada.

A caminhada durou trinta minutos, com algumas paradas para fotos do entorno e bate papos
paralelos. Mas Adalberto não participou muito das conversas. Além de preocupado com a
situação de David, não concordava inteiramente com as ordens proferidas por Morrison, cuja
liderança ele nunca aceitara completamente.

– Acho que nos separamos aqui, certo? – disse Morrison.

– Acho que vou voltar a Lisboa e visitar o Oceanário. Alguém gostaria de ir comigo? –
perguntou Adalberto, olhando para Juan.

– Eu não tenho nada para fazer aqui. Vou com você – respondeu este.

– Eu também vou – completou Susan.

Os outros fizeram planos paralelos e o grupo se dispersou, mas não antes de Morrison marcar
as oito horas da manhã do dia seguinte como o horário de encontro entre eles no mesmo ponto
daquela convenção.

Adalberto pegou o seu carro alugado e foi seguido por Juan e Susan até o Oceanário, próximo
à ponte Vasco da Gama e às margens do rio Tejo.

Estava subindo uma pequena rampa, onde compraria os ingressos para a visita, quando seu
telefone tocou. Era Ingrid.

– Bom dia, Ingrid, como está o lançamento? – perguntou Adalberto olhando para Juan.

– Estava bem até há pouco tempo. Muita gente, mas bem organizado. Porém você não vai
acreditar quem chegou aqui para entrevistar David.
Adalberto, não percebendo a coincidência e gravidade da situação, perguntou inocentemente:

– Seria a Letícia Lira? – Soltou uma risada alta.

– Não ria, Adá. É ela mesma.

Um momento de extremo silêncio se fez enquanto Adalberto pensava na situação e em como


agir. Sentia um grande frio na barriga e seus olhos se moviam de um lado para o outro
freneticamente.

– Você tem certeza, Ingrid?

– Sim. Ela chegou há mais ou menos cinco minutos e se dirigiu à mesa de autógrafos
perguntando se poderia entrevistar o “jovem autor”. Toda a equipe de filmagem a
acompanhava.

– E o que está acontecendo neste momento?

– O que você acha? Ela o está entrevistando. E temos diversos jornalistas tirando fotografias
do momento. Há um grande tumulto aqui. Você não ouve o barulho?

– Tumulto? – Adalberto estava muito preocupado.

– Sim. Acho que a divulgação foi muito ampla, e o fato de a Letícia Lira ter chegado agitou
mais os visitantes. Lembre-se que o programa dela é exibido aqui em Portugal e ela é muito
querida neste país.

– Eu... Eu... – Adalberto não sabia direito como agir e estava pensando na melhor solução.

– Venha para cá, Adá. Eu não sei o que fazer.

– Eu também não, mas estamos indo.

– Quantos?

– Eu, Juan e Susan.

– Morrison está com vocês?

– Não. Ele foi para outro local.

– Ótimo. Então venha logo.

– Estou perto. Chegarei aí em breve. Não vou parar o tempo, pois Morrison perceberia e não
quero que ele fique nos questionando sobre isso.
***

Letícia Lira havia chegado à livraria com toda sua equipe móvel de filmagem, composta por
um cinegrafista, um contrarregra, um auxiliar e dois iluminadores, além do assessor Souza, que
também dirigia as filmagens.

Ao entrar na loja, passou rapidamente com toda a sua equipe pelas pessoas que estavam entre
ela e a mesa de autógrafos. Alguns a reconheceram e abriram caminho imediatamente, mas
outros demoraram para entender o que estava acontecendo e chegaram a atrasar um pouco a
sua chegada até David.

Ao chegar à mesa, David estava distraído, olhando para o lado e conversando com uma criança
que teimava em querer saber como o livro terminava. David estava, pacientemente, tentando
convencê-la de que contar o final estragaria a graça de ler e viver a história do livro.

– Posso entrevistar o jovem autor? – perguntou Letícia já com o microfone ligado e seu grande
sorriso, enquanto o cinegrafista apontava o seu instrumento para eles.

David virou-se e olhou para aquela imagem que parecia saída de um sonho. O sorriso largo, os
olhos negros penetrantes e a beleza do rosto que ele tanto admirara por vários anos através da
tela de uma televisão estavam agora diante de seus olhos, ali, próxima o suficiente para que ele
pudesse tocá-la.

Por um instante a voz de David falhou e ele não conseguiu responder, enquanto as pernas lhe
tremiam e a barriga parecia querer sair-lhe pela boca.

“Ela é mais linda pessoalmente”, pensou David enquanto tentava se recuperar do susto e
responder à pergunta de Letícia.

– Senhor David, por gentileza, posso entrevista-lo? – Letícia mudou o tom de sua voz,
aparentando um inexplicável nervosismo.

– Claro, como não? – As palavras saíram automaticamente da boca de David.

– Posso sentar–me ao seu lado nesta cadeira?

– Por favor. – Ele apontou para a cadeira.

A equipe da entrevistadora arrumou tudo ao redor para iniciar a gravação. Isso não demorou
mais que cinco minutos, enquanto Letícia aparentava um nervosismo que nunca apresentou em
suas entrevistas, nem mesmo na estreia de seu programa. Souza estava estranhando tudo
aquilo.

Ela fixou os olhos em uma pequena falha do piso, logo à sua frente, mas não a estava
enxergando, estava pensando nervosamente, tentando lembrar algo que parecia estar em um
passado muito distante.

“De onde eu conheço esse escritor? O nome dele não é estranho, mas também não é comum.
Tenho certeza de que conheci uma família Leniz...” – Ela pensava rapidamente enquanto sua
equipe corria de um lado para o outro, procurando deixar o set de filmagem perfeito.

– David, me diga uma coisa antes de começarmos a entrevista. Nós já nos conhecemos de
algum lugar? Escola, amigos em comum...

David teve a clara sensação de que seu coração iria pular para fora do peito.

– Não me recordo – sua voz era trêmula. – Acredito que não. Eu não me esqueceria. Afinal,
você é famosa. – Tentou sorrir.

Letícia fixou o olhar nos olhos de David e assim ficou por alguns segundos, até perceber que
Souza a chamava.

– Letícia? Está me ouvindo? Temos que começar.

– Ah... sim, Souza. Desculpe. Vamos começar.

Souza iniciou a gravação.

– Entrevista com David Leniz, 3, 2, 1, gravando.

Letícia Lira começou a falar.

– Estamos em Lisboa para entrevistar uma jovem promessa brasileira, o escritor David... é...
David... Desculpe. Corta! – Ela acenou com a mão.

– O que houve, Letícia? – perguntou Souza.

– Desculpe, tive uma falha de memória. Acho que estou cansada. Vamos novamente.

...3, 2, 1.

– Estamos aqui em... Desculpe, Souza. Corta! – Sua voz falhara.

– Você está bem, querida?

– Sim. Alguém pode me trazer um copo com água? Estou com a boca seca.

David percebeu o nervosismo de Letícia, que assim como ele estava com dificuldade para
manter a voz firme. Levou sua mão até a dela, que estava sobre a mesa e segurou-a levemente
enquanto dizia com um tom suave:
– Não temos pressa. Para você eu tenho todo o tempo do mundo. – Olhou para os olhos de
Letícia, que estavam começando a lacrimejar, e abriu um grande sorriso.

– Obrigada, David. Jamais esquecerei essa gentileza. Não sei dizer o que aconteceu comigo. –
Ela falou baixo.

– Tenho certeza que é o cansaço. O estresse faz isso com todos. Talvez o Jet lag.

– É. Pode ser. – Mas ela sabia que não era somente cansaço. Algo muito estranho lhe estava
acontecendo.

Letícia se acalmou rapidamente após o toque de David e pôde iniciar a entrevista.

Tudo corria bem enquanto ela entrevistava o autor. Porém a sua curiosidade era muito grande.
Queria saber o porquê de aquele escritor lançar seu livro em outro país e que motivos
incentivaram uma grande editora a apostar em um jovem escritor sem nenhum outro livro
lançado e gastar tanto dinheiro com ele. Mas a cabeça dela continuava tentando lembrar-se de
onde conhecia aquele rapaz.

Adalberto entrou na livraria no momento em que Letícia começou a perguntar sobre a vida
pessoal de David. Queria saber tudo sobre ele, muito mais do que já tentara conhecer sobre
qualquer entrevistado seu.

– Senhora Letícia Lira – Adalberto interrompeu bruscamente a entrevista.

Espantada, Letícia virou-se para ele com um misto de curiosidade e raiva.

– Quem é o senhor? Por que interrompeu minha entrevista?

– Desculpe, mas eu represento a editora e gostaria de saber se a senhora tem licença para
entrevistar o nosso escritor.

– Tenho sim. Ele mesmo me autorizou.

– Sinto em dizer que ele não pode fazer isso. Nosso contrato é bem claro e somente a editora
ou um de seus representantes pode autorizar uma entrevista com um dos nossos contratados.

– E como faço para ter essa autorização? O senhor me autoriza?

– Desculpe, mas não vou autorizar. Peço que a senhora entre em contato com o nosso
escritório central no Canadá e tente obter essa licença.

David olhava para Adalberto sem entender aquela atitude. – “Por que ele está agindo assim?
Que mal há em dar uma entrevista para promover o livro?”, pensou.
David notou que, após falar com Letícia, Adalberto se afastou e juntou-se a um grupo de
pessoas que ele parecia conhecer desde bastante tempo. Entre elas estava uma mulher que
parecia estar na livraria desde o início.

“Não preciso nem pensar muito a respeito. Esses são os Iguais. Mas estou vendo somente
quatro deles. Onde estarão os outros?”, David pensava nervosamente. “Mas não vai ficar
assim. Vou falar com Letícia.”

Ela havia se levantado e David tentou encontrá-la no meio da confusão que se formou. Muitas
pessoas estavam em seu caminho. Algumas pedindo autógrafo, outras tentando alcançar
Letícia para conversar com ela, pedir um autógrafo, uma foto ou mesmo solicitar uma
entrevista em seu programa.

A confusão era muito grande. David tentava desvencilhar-se das pessoas, contudo só conseguia
ver a entrevistadora muito longe dele e cercada por várias pessoas. Seu pessoal tentava de
todas as formas afastar a todos, mas ela sentiu que o melhor seria deixar a livraria junto com
sua equipe.

David estava determinado a falar com ela e começou a empurrar a todos à sua frente, quando
se lembrou da sua habilidade e repentinamente parou o tempo.

“Agora ficou fácil”. Deu uma risada e começou a se desviar dos corpos inertes à sua frente até
chegar perto de Letícia.

Apesar de todo o seu esforço para se aproximar dela, quatro pessoas apareceram em seu
caminho.

– O que acha que está fazendo, aprendiz? – gritou Adalberto.

– Eu vou falar com ela.

– Você ficou louco? – interveio Ingrid. – Existem diversas câmeras dentro desta livraria. Se
você retomar o tempo quando estiver perto dela, será descoberto. Como vai explicar o seu
deslocamento?

David ficou parado com os olhos fixos em Adalberto, externando uma mistura de fúria e
frustração. Mas logo percebeu que havia errado.

– Vocês estão certos. Vou voltar para onde estava quando parei o tempo. Porém Adá tem
muito para me explicar. Quero saber que atitude foi essa que ele tomou com a entrevistadora.
Quero todos os detalhes e motivos.

Susan olhou para ele com ar repreensivo.

– Você é um mero aprendiz. Não tem que exigir explicação de nada. Somente observe e
aprenda. Adalberto não tem nada para lhe falar. – Virou-se e seguiu para o ponto onde estava
antes de o tempo parar.

David ficou parado por alguns segundos digerindo as palavras daquela mulher que ele nem
conhecia, mas fazia parte de um grupo do qual ele seria obrigado a participar.

Sem aceitar completamente a situação, voltou para o local onde estava e fez com que o tempo
voltasse ao normal. Imediatamente as pessoas começaram a pedir que autografasse o livro que
haviam comprado e ele atendeu prontamente, não sem passar todo o tempo pensando em
Letícia.
CAPÍTULO V

Era o dia seguinte ao lançamento do livro de David. O sucesso foi muito grande e todos os
exemplares que se encontravam na livraria e no estoque da editora em Portugal foram vendidos
no mesmo dia. Mas David não estava pensando nisso.

“Vou me encontrar com os outros Iguais hoje. Mas o que me aflige é saber que estive tão perto
de Letícia Lira e não pude conhecê-la melhor. Por que Adá interviu? O que ele estava tentando
esconder? Será prudente perguntar isso aos outros?”

As perguntas na cabeça de David eram muitas e ele ainda estava se trocando quando o seu
telefone tocou. Ele atendeu:

– David falando.

– Olá, David. Sou a Ingrid, que você conheceu ontem rapidamente na livraria.

– A morena que me deu uma bronca?

– Não. Aquela era Susan. Sou a loira que estava do lado dela.

– Ah, sim. Você esteve na livraria durante todo o lançamento.

– Você notou?

– Sim, mas não vou perguntar o porquê. Não é o que me interessa agora. – David estava
amargo.

– Certo. Estou ligando para dizer que estou no mesmo hotel que você e iremos junto à
convenção. Vamos apresentá-lo aos outros Iguais. Vai ser um dia e tanto para você.

– Na mesma livraria, no mesmo hotel. Parece que vocês costumam me vigiar bastante.

– Não leve a mal. Foi somente precaução. Nós estamos no lado bom. Somos os mocinhos. –
Ingrid sorriu. – Estarei no saguão do hotel em meia hora. Não se atrase. Se for preciso, pare o
tempo.

– Já estou quase pronto. Não me atrasarei.

***
Quando Ingrid e David chegaram a Sintra, todos já estavam reunidos.

David sentiu-se deslocado assim que chegou, pois conhecia somente Adalberto, Ingrid, a
Susan que lhe havia dado uma bronca e um quarto Igual cujo nome ele nem sabia, mas que
estava também na livraria.

Adalberto sorriu para David e foi em sua direção. Porém Morrison se apressou e chegou
primeiro que ele.

– Olá, David. Permita me apresentar. Sou Morrison, o líder dos Iguais.

Adalberto olhou para ele em desaprovação, já que nunca aceitara completamente essas
intromissões.

Imediatamente, Ingrid pegou na mão de Adalberto e apertou-a com força enquanto lhe olhava
para os olhos.

– Não vai começar, não é? – ela cochichou ao ouvido dele.

– Não. Fique tranquila. O fato de não gostar não quer dizer que não aceito – respondeu ele,
também cochichando.

– Olá, Morrison. Prazer em conhecê-lo. Como você pode ver, estou um pouco deslocado, pois
não conheço quase ninguém daqui, a não ser Adá, Ingrid, Susan e aquele rapaz sem cabelo de
quem não sei o nome.

– Juan – respondeu.

– Vejo que os outros já se encontraram com David antes de mim. Isso é muito interessante –
disse Morrison com certo cinismo na voz.

– Nós fomos ao lançamento, já que estávamos perto de lá – respondeu Susan rapidamente.

– Não importa – Morrison continuou a falar. – O importante é que o seu livro foi um sucesso
no primeiro dia de vendas. Quem iria imaginar que venderia mais de mil cópias em um dia?

David olhou surpreso para ele.

– E você já viu a crítica nos jornais locais? Você foi notícia de primeira página em um deles.
Resumindo, David Leniz já é famoso e poderá viver como escritor, o que é ótimo para
esconder a sua atividade principal, que é ser um Igual.

– Atividade principal? – David não entendera muito bem aquelas palavras.

– Sim, David – Juan começou a falar. – Nós utilizamos as nossas habilidades para o bem.
Nossas atividades secundárias são apenas um meio de ganhar dinheiro para financiar o que
fazemos de verdade.

– Deixe que eu explico para ele. – Adalberto adiantou–se e ficou próximo de David. – Nós
temos esta organização chamada Iguais.

– Certo. Isso eu já sabia. Só não estou entendendo como vou ajudar essa organização.

– Você terá muito tempo para aprender, mas vou resumir para que possa começar a se inteirar
de sua missão entre nós.

Adalberto fez um gesto para que David se sentasse em uma mureta próxima.

Ao se virar para sentar-se, ele percebeu que as outras pessoas, que não os Iguais, estavam
paralisadas, ou seja, o tempo estava parado enquanto eles estavam conversando.

Adalberto também se sentou e foi seguido pelos outros componentes do grupo. Cada um em
um local diferente, mas todos próximos, formando uma roda de conversa.

David sentiu um conforto naquele posicionamento dos integrantes. Começava a encará-los


como aliados, e no caso de Adalberto como um possível amigo.

– David, prosseguindo a explicação, nós acreditamos que temos esse dom para fazer o bem.
Creio que Ingrid já lhe falou que somos os mocinhos desta história, não é mesmo?

David sorriu.

– Ela sempre fala isso – continuou Adalberto –, mas nós realmente trabalhamos dessa forma.
Os Iguais não procuram pessoas em perigo, mas sempre que as encontram, ajudam.

– De que maneira ajudamos os outros?

– Vou dar um exemplo. Se percebemos que um acidente vai acontecer, como, por exemplo, um
atropelamento, nós paramos o tempo e retiramos a pessoa da frente do carro ou desviamos a
trajetória dele.

– Entendo. Eu mesmo já fiz isso quando tinha dezoito anos.

– Nós sabemos – interveio Ingrid.

– Sabem?

– Sim, meu querido. Adá já lhe falou que nós o vigiamos durante muito tempo. Morrison
queria ter certeza de que você seria um Igual do bem como nós.
David não percebeu a importância da última frase e prosseguiu com as perguntas.

– E se a pessoa for atropelada? Devemos voltar o tempo para evitar?

– Nem pense nisso – Adalberto falou mais alto. – Devemos voltar o tempo somente em
situações extremas.

– Por quê?

– Eu já lhe disse. O universo trabalha em equilíbrio. Se algo de bom acontece, algo de ruim
tem que contrabalançá-lo. Ou seja, se você volta o tempo para salvar alguém, algo ruim acaba
acontecendo a outro. É o equilíbrio.

– Mas, quando eu salvo alguém de ser atropelado, não estou fazendo algo bom e provocando o
outro lado?

– Não é bem assim que o equilíbrio ocorre. Se o atropelamento não aconteceu ainda, nada de
ruim deverá acontecer se você evitá-lo. O equilíbrio só ocorre com fatos consumados. Você
viu no caso de seu irmão. O bandido morreu no lugar dele.

– Entendi. E o que mais fazemos?

– Tudo que estiver ao nosso alcance. Mas sempre tomando cuidado para não sermos filmados
ou para não alterarmos o equilíbrio. Basta você ser bom e ajudar os outros que já será um Igual
como nós. Eu vou ensiná-lo com bastante paciência. Isso é um resumo do que fazemos. Os
detalhes virão depois.

– Vejo que terei que aturá–lo por muito tempo – David sorriu enquanto se dirigia a Adalberto.

Adalberto também sorriu.

– Mais alguma pergunta?

– Tenho algumas. Vejo que o editor da minha editora está aqui, o que o faz um Igual a nós, não
é mesmo?

– Certo, David – respondeu Paul, um homem moreno e alto de marcantes olhos verdes.

– David – Morrison começou a falar –, há algo que você precisa saber. A editora, o ateliê de
Adá, a empresa de engenharia de Juan e todas as outras empresas que empregam ou pertencem
aos Iguais na verdade são braços de uma mesma companhia baseada no Canadá, a Time Same
Corporation.

David estava atônito com a informação.


– Então os Iguais têm uma empresa?

– Os Iguais, não. Nós temos uma empresa. Você será parte dela também. A editora que o
contratou será sua também. O lucro de seus livros já faz parte de nossos lucros. Inclusive, o
presidente da Time Same está lhe falando nesse momento.

– Então foi por isso que a editora investiu tanto em mim?

– Nenhuma editora investiria tanto em um escritor em início de carreira, mesmo que o livro
fosse excepcional.

– Estou cada vez mais perplexo. Outro dia eu era somente um cara esquisito que não sabia por
que podia fazer coisas estranhas. Agora sou um escritor a caminho da fama, dono de uma
grande empresa, e continuo esquisito.

David sorriu junto com os outros.

Morrison começou a falar para encerrar a convenção:

– Nossa convenção está encerrada, já que analisamos todos os relatórios ontem, e hoje
iniciamos o nosso mais novo Igual, o querido David. Seja muito bem-vindo.

– Eu tenho mais uma pergunta. Posso fazê-la?

– Claro que sim – Morrison respondeu sorrindo.

– Ontem ocorreu algo muito estranho. Uma apresentadora estava me entrevistando e Adá
impediu a entrevista. Mas isso não seria bom para a nossa editora?

Todos se calaram enquanto Morrison olhava para Adalberto.

– O que ocorreu ontem, Adá?

– Não foi nada de mais, Morrison. Somente uma apresentadora do Brasil que estava aqui e
resolveu aproveitar-se da fama repentina de David. Mas eu impedi a entrevista.

– Entendo, Adá. Mas da próxima vez gostaria de ser avisado sobre acontecimentos
semelhantes.

Todos começaram a se dispersar, enquanto Morrison fazia com que o tempo voltasse ao
normal.

– Era Letícia? – perguntou Morrison quando Adalberto passou perto dele.

– Sim.
– Fez muito bem. Depois me mande o seu relatório. Aqui está o pacote para levar ao Brasil.

Morrison entregou a Adalberto um embrulho do tamanho de uma caixa de sapatos, toda


enrolada em fita adesiva e fechada hermeticamente.

***

David começou o terceiro dia em Portugal ligando para todos os hotéis de Lisboa que
constavam de um catálogo da Internet. Seu objetivo era encontrar Letícia Lira.

– Bom dia, meu senhor. Meu nome é David Leniz e quero saber se tem uma hóspede em seu
hotel chamada Letícia Lira.

– Não temos ninguém com esse nome hospedada em nosso hotel.

Essa foi a resposta que ele ouviu dos dezessete hotéis para os quais ligou naquela manhã.

O que David não sabia era que o terceiro hotel para onde ele havia ligado estava hospedando
Letícia. Porém, por uma norma da própria equipe, instituída por ela, sempre que Letícia se
hospedava em algum local a recepção recebia instruções de jamais confirmar a presença deles
ali. Mas, sempre que alguém procurava por ela ou por algum membro da equipe e não estava
em uma lista de nomes permitidos, a recepção avisava a pessoa que fora procurada.

– Senhora Letícia Lira? – perguntou o recepcionista no telefone interno.

– Sim, sou eu.

– Há mais ou menos quinze minutos ligou um rapaz para nós perguntando se você estava
hospedada conosco.

– Ele estava na lista?

– Não. Sinto muito.

– Ele falou o nome?

– Sim. Eu anotei aqui. Só um momento... Sim, está aqui. David Leniz. Não é o escritor que
lançou aquele livro há dois dias?

Letícia sentiu um frio invadir-lhe a barriga, mas não conseguia entender o porquê disso.

– Ele deixou alguma informação para contato? Telefone ou o hotel onde está hospedado?

– Sinto muito, senhora. Não deixou nada e eu não tinha ordens de sua equipe para pedir isso a
ele.
– Está correto. De qualquer maneira, se ele voltar a ligar, por favor, passe a ligação para mim
ou anote alguma informação que me leve até ele.

– Farei isso, senhora Lira. Mais um recado, senhora.

– Pois não.

– Seu marido ligou do Brasil e disse que, como seu telemóvel estava desligado, concluiu que a
senhora estava dormindo e não quis incomodar. Ele me pediu para avisar que saiu em viagem
para o Chile, conforme havia alertado anteriormente. Também pediu que a lembrasse de que
seu filho ficou com as babás.

“Algum dia ele vai ter que me explicar essas viagens repentinas. Elas sempre acontecem
quando não estou por perto”, pensou Letícia enquanto ouvia o recepcionista.

– Senhora? Senhora? Ainda está na linha?

Ela demorou alguns segundos para responder.

– Estou na linha sim. Mais algum recado?

– Somente esses.

– Obrigada.

Letícia desligou o aparelho e, ao contrário do que sempre fazia quando seu marido viajava, não
ligou seu telefone para tentar falar com ele e pedir uma explicação. Só conseguia pensar que
David a havia procurado.
CAPÍTULO VI

Como ainda era muito inexperiente, David pensou que seria seguido por fãs no aeroporto
enquanto aguardava o embarque para o Brasil. Porém o que encontrou foi um aeroporto com
sua rotina normal. Ninguém o reconheceu no saguão ou mesmo na livraria onde ele entrou para
ver seu livro exposto na principal prateleira.

– Já sei o que você está pensando, David. Onde estão todas as pessoas que estavam na livraria.
Não é mesmo?

– Era isso mesmo, Adá.

– Você ainda não é famoso. As pessoas não o vão reconhecer tão facilmente. Somente depois
que você começar a aparecer na televisão.

– É a realidade. Eu pensava que ia encontrar um monte de gente aqui pedindo autógrafo.

Adalberto sorriu:

– Aproveite que ainda é um ilustre desconhecido. Você vai sentir falta disso no futuro.

– A. de Sá? É você?

Uma pessoa que estava no aeroporto reconheceu o pintor.

– Sou eu mesmo, minha senhora – Adalberto respondeu prontamente com um sorriso no rosto.

– Eu tenho um quadro seu na minha sala. Gostaria de cumprimentá-lo pela excelente arte que
produz.

– Muito obrigado.

Os dois conversaram por algum tempo, trocando informações e demonstrando um profundo


conhecimento sobre arte, enquanto David observava tudo.

Após um bom tempo de conversa, Adalberto, que se encontrava a alguns metros de David,
veio em sua direção confirmando que havia terminado o encontro com aquela alegre senhora.

– Está vendo? Mesmo não aparecendo muito as pessoas me reconhecem e acabo por não ter
muita privacidade.
– Isso é ruim ou é bom para nós?

– Para nós é muito bom. Ninguém vai suspeitar que um famoso escritor ou pintor tem a
capacidade de parar e até mesmo voltar o tempo. Somos esquisitos porque somos artistas. Só
isso. Percebeu?

– Entendi. Parece que vocês pensam em tudo.

– Precisamos. Não sobreviveríamos de outra forma.

Os dois se dirigiram até uma lanchonete, onde pediram um bom café para passar o tempo.

David pediu um pastel de Belém para acompanhar, o que Adalberto achou muito estranho, já
que misturar café com algo tão doce não era recomendável. Porém ele sabia que seu aprendiz
estava deslumbrado com tudo o que estava acontecendo e não poderia sair de Lisboa sem
saborear o seu delicioso e célebre pastel.

Ao dar a primeira mordida no doce, David ouviu um barulho do outro lado do saguão do
aeroporto. Várias pessoas falavam ao mesmo tempo e acompanhavam o que parecia ser algum
astro de cinema, da música ou outra pessoa famosa.

Pensou que aquilo aconteceria com ele algum dia e sorriu ao perceber que aquilo poderia não
ser tão agradável como parecia.

As pessoas acompanhavam aquela figura enquanto estendiam para ela pedaços de papel,
guardanapos e até camisas para que os autografasse enquanto tiravam fotos ao seu lado.

A figura parou próxima de David, mas ele não pôde ver quem era, já que não era tão alta e
estava cercada por uma multidão de prováveis fãs.

– Você sabe quem é, Adá?

– Não faço ideia. Talvez algum ator ou atriz local. Mas não consigo ver.

As pessoas que conseguiam um autógrafo se distanciavam, e após algum tempo ele conseguiu
ver quem estava sendo tão assediada. Seu coração disparou, sua mão ficou gelada e David
sentiu as pernas tremerem.

– É a Letícia, Adá.

Adalberto olhou na direção dela, não acreditando em tamanha coincidência. Sabia que havia
apenas um voo saindo naquele dia para o Brasil e, por consequência, se Letícia voltava para
casa, ela estaria no mesmo voo que eles.

– Não acredito nisso.


– O que você disse, Adá?

– Nada, David. Vamos sair desta confusão.

– Mas eu gostaria de falar com a Letícia.

– Agora? Com toda essa gente em volta? O que você falaria com ela? Perguntaria qual é a cor
preferida dela?

– Não sei. Só sinto que preciso falar com ela. Não sei por que sinto isso.

– Você sabe que ela é casada?

– Sei.

– Sabe que ela tem um filho pequeno?

– Sei.

– Quer destruir o casamento dela?

– Não.

David respondia automaticamente a cada pergunta, mas continuava olhando fixamente para
Letícia.

– O que você quer com ela?

David não respondeu.

Adalberto pegou David pelo braço e o virou em sua direção.

– Vamos, diga-me o que você quer com ela. – Ele aparentava nervosismo.

– Não sei, Adá. Não sei mesmo. Mas tenho alguma estranha ligação com essa mulher. É algo
muito forte, que foge da minha própria razão.

Adalberto ficou estático por alguns segundos, olhando para os olhos de David como quem quer
decifrar alguma coisa.

– Vamos sair daqui, David. Eu o proíbo de conversar com essa mulher.

– Proíbe?

– Sim, David. Se você não tem noção do que está fazendo, eu, como seu mentor, tenho a
obrigação de orientá-lo.
– Mas que mal tem em apenas conversar com ela?

– Não vou permitir isso. Essa senhora é casada e você vai atrapalhar a vida dela. Vamos sair
daqui.

Adalberto puxou o braço de David e praticamente o arrastou pelo saguão até o outro lado,
próximo à entrada para a sala de embarque.

– Vamos entrar agora.

– Mas ainda falta muito tempo para o voo.

– Não interessa, David. Estou nervoso com você. Se quer ser meu aprendiz, terá que começar
obedecendo às minhas ordens. Não quero necessitar arrastá-lo novamente por um local cheio
de gente.

David olhou para Adalberto e, após alguns segundos, resolveu segui-lo.

Os dois entraram na sala de embarque e Adalberto procurou um local mais retirado, longe da
porta, já que a sala era grande e tornava possível ficar anônimo.

David o acompanhou a contragosto, sempre olhando para trás na esperança de ver Letícia, até
chegar ao local onde se sentaria.

– David.

– Diga, Adá.

– Você sabe que eu o acompanhei por alguns anos antes de entrar em contato, não sabe?

– Claro que sei. Pelo menos foi o que você me disse.

– É a verdade. E durante esse tempo eu pude notar que você não tem grandes habilidades com
as mulheres.

David esboçou um sorriso forçado.

– Você precisa se soltar mais. Procurar desenvolver o seu lado conquistador. Só assim vai
deixar de sonhar com essa apresentadora.

– Como você sabe que eu sonho com ela?

– Foi somente força de expressão. Eu quis dizer que você pensa muito nela. Por que? Você
também sonha com ela enquanto dorme?

David ficou desconcertado. Não podia contar a verdade a Adalberto.


– Claro que não. Eu só a vejo na televisão. Meu primeiro contato com a Letícia foi no
lançamento do livro. Eu seria um louco se sonhasse com ela.

– Entendo. Mas você deve procurar outras garotas. Deve se divertir um pouco para esquecer
essa fixação que tem pela Letícia Lira.

David olhou para Adalberto tentando adivinhar até onde este havia percebido o quanto ele
gostava daquela mulher.

Os dois ficaram em silencio por um ou dois minutos, até que Adalberto se levantou.

– Tive uma ideia, David. Vá comigo até aquela livraria – apontou para uma loja dentro da sala
de embarque.

– Para quê, Adá?

– Venha. Você precisa de um empurrão para conhecer mulheres. E eu sei como fazer isso.

David ficou assustado. “Será que ele vai querer me apresentar para alguma balconista? Eu não
estou preparado” pensou.

– Não fique parado. Venha comigo – Adalberto insistiu.

David se levantou e seguiu o amigo até a livraria com passos curtos, como um cachorro que
não quer entrar no consultório do veterinário.

Os dois entraram na loja com Adalberto na frente e procurando por algum livro específico nas
prateleiras.

– Deixe–me ver... Sessão de autoajuda... Achei. Está aqui. – Adalberto abriu um sorriso.
Dirigiu-se ao caixa, pagou o livro e saiu risonho com uma sacola na mão.

– Venha David. Vamos sentar-nos lá novamente para eu lhe mostrar o livro.

Ao chegar às suas cadeiras, os dois se sentaram e David pegou a sacola das mãos do amigo.
Estava muito curioso para saber o que Adalberto havia comprado.

Ao abrir a sacola e levantar o livro ao alcance de sua visão, David teve uma surpresa: Como
Conquistar Mulheres – Estratégias de Sedução*. Leu o título do livro em voz alta com certo
espanto no olhar.

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* Como Conquistar Mulheres – Estratégias de Sedução, de Steven P. Oliver e Charles D.


Smith, Editora Vilesi

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– Isso mesmo, meu amigo. Agora você vai aprender a seduzir uma mulher e vai poder esquecer
aquela apresentadora.

– Mas...

– Mas o quê? Não quer o livro?

– Não. Não é isso. Parece bem interessante. Mas será que vai me ajudar?

– Pode ter certeza que sim. Vai existir um David antes e um depois desse livro.

David folheou o livro rapidamente, leu as dicas no final de alguns capítulos e achou aquilo
bem interessante. Porém pretendia ler no avião, com calma, durante a viagem de volta. Por isso
abriu a sua mala de mão e colocou o livro dentro. Foi quando uma voz já conhecida o chamou
pelo nome.

– Sr. David Leniz?

Ele olhou para cima, na direção da voz, e sentiu o sangue lhe congelar dentro das veias.

– Sr. David, posso falar com o senhor um minuto?

David olhou para Adalberto enquanto respondia.

– Claro que pode, Letícia.

– Não é uma entrevista, somente uma conversa. Creio que seu amigo não vai se opor. – Olhou
para Adalberto, que ficou sem reação.

David aproveitou o momento a fim de olhar para sua mala e ter certeza de que o livro não
estava visível. Enquanto isso Letícia sentou-se ao seu lado.

– Posso?

David estava com as mãos geladas.

– Po... pode,claro.

– Você queria falar comigo? – Letícia aparentava certa insegurança na voz, demonstrando que
fora até ele por impulso.

– Como assim? – David estava surpreso com a pergunta.


– No hotel. Você ligou para mim. Na verdade ligou me procurando.

Ele não sabia o que responder. Foi quando Adalberto tentou intervir.

– Você fez o quê? – Estava surpreso.

Porém os dois ignoraram Adalberto e continuaram a conversa.

– É verdade. Eu a procurei, mas não a achei. – Deu um sorriso leve e nervoso para ela.

– Eu estava no hotel para onde você ligou, mas eles sempre recebem a ordem de não me
identificar. Por isso você não me achou.

David estava envergonhado e tentando pensar em algo rápido para ser dito. Algo que pudesse
consertar a situação e quebrar o gelo entre os dois.

– Eu a procurei para pedir desculpas pelo comportamento dos meus amigos no dia do
lançamento.

– Ah... – Letícia fez menção de ter entendido, mas sentia que não era a verdade.

– Eu também queria lhe dizer que vou tentar junto à minha editora uma liberação para poder
participar do seu programa lá no Brasil. Você gostaria?

– Eu adoraria.

Ela mostrou novamente o que tinha de mais bonito. Seu sorriso branco e largo.

– Como posso encontrá-la?

– Veja, David, este é meu cartão com o número de telefone da emissora. Você pode entrar em
contato com minha equipe que eles agendarão um dia para gravarmos o programa. Mas não
deixe o seu amigo mal humorado pegar o cartão. Ele pode dar um sumiço nele. – Ela sorriu
novamente, porém dessa vez olhando para Adalberto.

– Pode deixar. Ele não vai nem ver a cor deste cartão.

Adalberto olhava toda aquela cena incrédulo, quando um som familiar o ajudou. Era a
chamada para o embarque.

Todos se dirigiram para a porta de embarque, mas, para tristeza de David, enquanto ele se
posicionou em frente à fila da classe econômica, Letícia entrou na primeira classe.

David esperou alguns minutos enquanto olhava Letícia entrando pelo portão em direção ao
corredor de embarque. Colocou a mão no bolso, retirou o cartão e começou a ler cada detalhe.
No final, percebeu que havia uma pequena seta desenhada a mão apontando para o verso do
cartão. Ao virar, a grande surpresa: Letícia havia anotado o seu telefone particular.

David abriu um enorme sorriso.

***

Apesar dos pensamentos de David estarem voltados para Letícia, a viagem de volta correu de
forma tranquila. Para se distrair ele leu o livro que havia ganhado de Adalberto, assistiu a dois
filmes e aproveitou para dormir um pouco durante a noite, já que o tempo do percurso era de
dez horas.

– Acorde, David – falou Adalberto balançando o ombro.

David abriu os olhos enquanto tentava focar as pessoas e objetos à sua volta.

– Chegamos?

– Nossa, meu amigo. Você dormiu pesado! O avião pousou e você nem se mexeu – Adalberto
sorriu.

– Caramba. Tive um sonho com começo, meio e fim.

– Vamos. Chacoalhe esse corpo e pegue a sua mala. Temos que descer.

David pegou uma pequena mala que estava no bagageiro sobre sua cabeça e foi seguido por
seu mentor.

Os dois dirigiram-se para o local onde pegariam suas bagagens e David começou a procurar
Letícia. Avistou-a, mas ela estava com toda a sua equipe e alguns curiosos que pediam para
tirar fotos com ela.

David não quis importuná–la. Somente lhe deu um sorriso quando percebeu o olhar dela em
sua direção.

– Vamos, David. As duas malas já estão no carrinho.

Seguiram em direção à alfândega, onde os passaportes foram examinados e liberados.

Ao passar pela alfândega, um agente da Polícia Federal fez um gesto para que Adalberto se
dirigisse à sala de vistoria.

Para surpresa de David, assim que o agente desviou o olhar, Adalberto parou o tempo, abriu a
mala e retirou um pacote, o mesmo que Morrison havia lhe entregado, passou pela Polícia
Federal, saiu no saguão do aeroporto e, depois de dois minutos, retornou.
– David, fique na mesma posição que estava porque eu vou retomar o tempo.

– O que foi isso? Por que você retirou aquele pacote?

– Eu trouxe alguns eletrônicos e não quero que a Receita Federal cobre impostos sobre eles.
Sabe como é, não é David? – Adalberto olhou para ele com um sorriso e deu uma piscada com
o olho esquerdo.

– Bem, você sabe o que faz, Adá, mas eu não acho isso certo. Você tem dinheiro para pagar os
impostos.

– Eu tenho os meus motivos. Agora fique na mesma posição para que não seja filmado com
um movimento estranho quando o tempo voltar.

Os dois passaram pela Polícia Federal e seguiram para o saguão do aeroporto, onde Adalberto
entrou no banheiro e buscou o pacote em um box que ele havia trancado para que ninguém
entrasse.

David tinha a sensação de que começava a conhecer melhor o seu mentor e todo o grupo de
Iguais.

“Eles não são tão corretos quanto aparentam. O que mais estarão escondendo?”

– O que houve, David? Você está quieto desde que passamos pela alfândega. Só por causa dos
eletrônicos? Acho que faço muitas coisas boas para o mundo, não preciso pagar impostos
sobre alguns aparelhos que vou usar. Você não concorda?

– Não é isso, Adá. Eu estou cansado da viagem e por isso estou quieto. Amanhã estarei
melhor.

– Amanhã não vou encontrá-lo. Tenho um serviço a fazer. Vejo você na semana que vem.

Cada um pegou um táxi diferente e os dois foram para suas casas.

Ao chegar em casa, David encontrou-se com sua mãe e contou tudo sobre a viagem, o
lançamento do livro, o sucesso e o encontro com Letícia Lira. Estava muito empolgado e,
apesar de o seu livro ser muito importante, ele se concentrou em falar sobre a apresentadora.

Sara ficou muito curiosa em saber como ela era. Fez diversas perguntas, querendo saber se era
tão bonita como na televisão, se era baixa ou alta, que vestido estava usando e quando o
programa iria ao ar.

– Não, mãe. O programa não será exibido. A gravação foi interrompida porque a editora não
autorizou a entrevista.
– Como assim? – perguntou Sara. – Por que eles não quiseram a publicidade?

– Não sei, mãe, isso ficou muito estranho. Mas eu vou descobrir. Pretendo encontrar Letícia
novamente e conseguir a licença da editora para conceder uma entrevista.

– Você vai ligar para a emissora?

– Não, mãe. Ela me deu um cartão com seu telefone particular.

David colocou a mão no bolso para pegar o cartão de Letícia, porém para sua surpresa ele não
estava mais lá.

Revirou sua mala, todas as suas roupas e objetos tentando encontrar o cartão dela, refez toda a
viagem em sua mente para descobrir o ponto onde poderia ter perdido aquele pedaço de papel
tão precioso, mas tudo em vão.

– Mãe, o cartão não está mais comigo.

– Você o perdeu, meu filho?

– Não creio. Acho que alguém o tirou do meu bolso enquanto eu dormia. Ele ficou aqui o
tempo todo.

– Quem faria isso?

– Eu já imagino. Mas preciso ter certeza antes de acusar alguém sem provas.

David estava muito nervoso, porém tentou se acalmar para pensar na melhor alternativa.
Afinal, se Adalberto havia retirado o cartão do seu bolso, algo maior estava por trás disso, e ele
queria muito descobrir. Sua vontade era ligar para o amigo naquele momento, mas em vez
disso foi tomar um banho para descansar.
CAPÍTULO VII

Uma semana havia se passado desde a volta de David para o Brasil. Durante esse período,
tentou ligar doze vezes para a emissora de Letícia, na esperança de conseguir falar com ela.
Porém a resposta era sempre a mesma:

“A senhora Letícia Lira está gravando no momento, e assim que for possível passaremos o
recado para ela”.

David sabia que aquela era uma resposta-padrão, que era dada a todos os que ligavam para a
emissora tentando falar com ela, afinal, os telefonemas deveriam ser numerosos e eles não
iriam passar todos os recados para a apresentadora. Além disso, se ela dera o número
particular, por que não retornaria um telefonema dele se soubesse que ele ligou?

“A sorte sorri três vezes para nós. Esta foi uma delas e eu perdi a oportunidade. Será que conta
quando alguém interfere? Ou eu ainda terei as três chances? Espero que seja com ela
novamente.”

David estava triste com a situação.

Letícia havia se tornado uma obsessão para ele. Não conseguia saber o motivo, mas também
não conseguia impedir que esse comportamento se manifestasse.

Logo após a décima terceira tentativa, seu telefone tocou. David pensou que fosse ela, mas era
Adalberto.

– Olá, aprendiz. Hoje vou levá-lo a um programa de entrevistas. Você vai divulgar o seu livro
em nosso país. Está na hora de vender por aqui.

– Qual programa?

– Você não vai acreditar. Consegui uma entrevista no talk show do Marco Lahny. Não é o
máximo?

David sentiu vontade de atravessar pelo telefone e esganar Adalberto. Porém fez alguns
segundos de silêncio antes de responder em tom sereno.

– Sim, Adá. Será muito bom, já que é o segundo programa de entrevistas em audiência. A
divulgação será muito interessante.
– Vou passar daqui há pouco para apanhar você. Vamos juntos, pois vou dar uma entrevista
logo em seguida. O programa será comigo e com você.

– Certo, Adá. Vou me preparar.

David não acreditava naquilo:

“Por que não posso dar entrevista para a Letícia Lira e posso para o Marco Lahny? Isso é
muito incoerente”.

***

Adalberto chegou à casa de David após trinta minutos, e este já estava pronto.

Os dois foram para a emissora, onde passaram por gravação durante toda a tarde, com diversas
regravações, principalmente porque David aparentava nervosismo e errava algumas respostas.

Adalberto o observava com atenção e preocupação:

“Acredito que essa história ainda vai nos causar problemas. Só não entendo o porquê de ele
não ter esquecido tudo”.

O dia acabou e os dois voltaram para casa. Adalberto acompanhou David e os dois
conversaram sobre o dia, a entrevista e os próximos passos. O nome de Letícia não foi
mencionado na conversa.

Antes de ir embora, Adalberto falou:

– Ah, David, ia me esquecendo. Lembra-se de que Morrison lhe disse que você seria parte da
empresa?

– Qual empresa?

– Ora, a Time Same. Lembra–se?

– Sim. A dona de tudo – David deu o primeiro sorriso do dia.

– Então, temos que formalizar essa associação.

– Formalizar? Como?

– Você será cotista da empresa. O Morrison está acertando tudo e vamos viajar na próxima
semana.

– Para o Canadá?
– Não. Nós sempre escolhemos algum local interessante para nos encontrarmos. Não que o
Canadá não seja interessante, mas todos já foram lá tantas vezes que não querem voltar tão
cedo. Dessa vez vamos para Saint Martin. Conhece?

– Não. Onde fica?

– No Caribe. É uma ilha linda, metade holandesa, metade francesa.

– Que legal! Quando vamos? – David se mostrou animado.

– Na próxima terça.

– Já?

– Não podemos perder tempo. Agora você é parte do grupo. É um Igual como todos nós.

***

Os dias passaram muito rápido. David estava novamente se dirigindo ao aeroporto na


companhia de Adalberto.

– Isso vai se tornar rotina? – David quebrou o silêncio.

Adalberto olhou para ele surpreso.

– O que vai se tornar rotina, David?

– Viagens.

– Agora eu entendi a sua pergunta. Depende do que você chama de rotina. Eu costumo viajar
para fora do país pelo menos uma vez a cada dois meses. Tem meses que viajo duas ou três
vezes.

– A trabalho?

– É muito difícil eu viajar em férias, somente como turista, pois as viagens do grupo são
sempre para locais turísticos e sempre aproveitamos para passear. Mas tudo começa com o
trabalho.

– Você viaja para divulgar os quadros ou pela empresa?

– Na maior parte das vezes eu viajo pela empresa. Mas lembre-se de que a empresa é apenas
uma segunda ocupação. Na realidade, eu viajo pelo grupo.

– Para convenções?
– Não, David. Muitas vezes precisam de nós em outras partes do mundo. Se precisam, eu vou.

– Essa será a minha vida? – David aparentava desânimo.

Adalberto parou o tempo para que o motorista do taxi não escutasse a conversa.

– O que é isso, David? Você parece desanimado.

– O que aconteceu, Adá?

– Como assim? – Adalberto não entendeu a pergunta de David.

– Você parou o tempo e o taxi parou também. Ele não deveria continuar rodando, já que
estamos encostados nele?

– Ah... Você me confunde, David. Claro que não. Eu parei todo o tempo. Quando quero que o
veículo continue se movendo, eu preciso estar no comando dele.

– Você tem que estar na direção dele? Sentado no local do motorista?

– Não, aprendiz. No comando mental. Eu o imagino se movendo e ele continua. Entendeu?

– Ainda não. Quando eu paro o tempo minha roupa continua se movendo e não deveria, já que
eu não imagino isso.

Adalberto soltou uma gargalhada.

– Claro que você imagina. Você sabe que ela vai continuar se movendo junto com você, caso
contrário não conseguiria sair do lugar. Não precisa ser um pensamento consciente. Pode ser
subconsciente. Entendeu?

– Entendi.

– Mas você não me respondeu. Por que está desanimado. Não gosta de ter esse poder?

– Claro que gosto. Sei que nasci para isso, mas ainda não me acostumei. Você entende que
algo novo está chegando? Além disso, tenho que abrir mão de muitas coisas por ele.

– Você vai se acostumar, amigo. E vai gostar. Principalmente quando começar a sair com
mulheres diferentes. Bonitão desse jeito, você terá uma agenda cheia.

David era alto, forte e com cabelos castanhos. Seus olhos quase verdes chamavam a atenção
quando brilhavam ao sol.

Adalberto sorriu e fez com que o tempo voltasse. Os dois ficaram calados até chegarem ao
aeroporto.
***

A viagem durou nove horas e foi muito tranquila, com exceção de uma pequena turbulência
sobre a Venezuela. Porém, como viajou durante o dia, David não conseguiu dormir nem um
segundo. Além disso, não queria mais dormir ao lado de Adalberto, pois tinha certeza de que
esse havia retirado o cartão de Letícia de seu bolso enquanto ele cochilava.

O avião pousou no aeroporto do Saint Martin e David não acreditou no que viu pela janela
durante a aterrissagem. Parecia que o avião desceria no mar mas, repentinamente, ele avistou a
praia e, logo em seguida, a pista. Era incrível. Uma visão aterradora, mas muito empolgante.

David não podia negar que estava gostando dessa nova vida. Viagens pagas por uma empresa
que seria dele, a recente fama como escritor, novos amigos e poderes incríveis. Era perfeito
demais, e David se lembrou de uma frase que o seu pai sempre falava:

“Quando a esmola é muita, o santo desconfia”.

Os passageiros desceram do avião diretamente na pista, sem um finger ou ônibus que os viesse
buscar. Caminharam até uma passagem enquanto David, admirado, olhava para o aeroporto.

– Adá, veja só que incrível. A pista começa na praia e termina em um morro.

Adalberto sorriu.

– Eu não lhe disse nada para não assustá-lo, mas este é considerado um dos aeroportos mais
perigosos do mundo.

David olhou incrédulo para Adalberto e só conseguia pensar que ainda teria que pegar o avião
naquela pista para voltarem ao Brasil.

O encontro foi no mesmo hotel em que os dois passaram a noite, em Lay Bay. David e
Adalberto estavam no restaurante tomando café da manhã quando Morrison chegou.

– Bom dia, garotos.

– Bom dia – respondeu David enquanto Adalberto terminava de engolir um pedaço de bacon
que mais parecia uma fatia de gordura pura.

– Vamos nos reunir aqui, não vamos?

– Pedi uma sala de reunião aqui mesmo no hotel. Já me certifiquei e eles não têm câmeras lá –
respondeu Adalberto para Morrison assim que conseguiu engolir aquela fatia gordurosa.

– Ótimo. Temos que começar logo. Devo voltar ao Canadá amanhã pela manhã.
– Não vai aproveitar a estadia aqui? – David estava curioso.

– Já estive aqui antes. É muito bonito, mas não tenho tempo para rever as praias. Quem sabe
um dia venho morar neste lugar.

Adalberto levantou-se da mesa.

– Eu também já estive aqui, mas quero aproveitar. Já terminamos o café. Vamos para a sala?

Os três se dirigiram para a sala de reunião do hotel e, ao entrarem, Morrison parou o tempo.

– Ótimo, garotos. Agora que estamos aqui, quero que o Adá leia em voz alta o contrato de
redistribuição das cotas da Time Same Corporation por parte do David. Assim ele pode assinar
e nós terminamos a reunião.

– Quanto eu terei em cotas?

– Ora, o mesmo que todos os Iguais. A vigésima segunda parte.

David sorriu. Era muito bom para ser verdade. Ele seria dono de uma grande empresa.

“Quando a esmola é muita o santo desconfia”, ouviu novamente a voz de seu pai. Mas nada
poderia fazer, pois nada tinha a perder.

Enquanto Adalberto lia o contrato, David pensou em diversas coisas, pois não entendia metade
do palavreado escrito naquelas páginas.

“O que eu tenho a perder? Não tenho nenhum bem a não ser um carro velho. Se tudo der
errado, começo do zero. Não acredito que seja algum golpe. Eles são como eu e ainda passam
o tempo livre fazendo o bem.”

– David... David. Está dormindo com os olhos abertos?

– Desculpe, Adá. Eu me distraí.

– Você tem alguma dúvida?

– Por que o contrato está em inglês?

– A empresa é baseada no Canadá. Poderia estar em inglês ou em francês. Eu não sei francês,
você sabe?

Adalberto sorriu.

– Certo. Onde eu assino?


– Você deve rubricar todas as páginas e assinar na última sobre o seu nome.

Morrison mostrou-lhe onde estava escrito David Leniz.

– Mais uma dúvida. Qual será o meu papel na empresa? Onde vou trabalhar?

– Você não vai trabalhar na empresa. Você é escritor e continuará com esse ofício. Eu cuido do
andamento da nossa firma. Não se preocupe.

– Mas, Morrison, eu receberei algo por essas cotas?

– Claro que sim. Receberá os lucros. Não se preocupe. Você agora é um dos donos. Eu quero
que você se ocupe com os seus livros e com as suas boas ações.

Assim que David terminou de assinar os papéis, Morrison recolheu-os, colocou-os dentro de
uma pasta, levantou-se e estendeu a mão para ele.

– Meus parabéns, garoto. Agora você não é mais um aprendiz. É um Igual como todos nós.

Deu um abraço em David, outro em Adalberto e dirigiu-se para a porta.

– Morrison! – Adalberto o chamou com a voz um pouco alterada.

– Mais alguma coisa, Adalberto?

– Sim. O tempo.

– Ah. Eu havia me esquecido.

Morrison virou-se e o tempo voltou ao normal.

Os dois continuaram sentados por uns momentos, pois não tinham nada programado para
aquela manhã.

– E agora, o que fazemos?

– Não sei, David. Pensei que a reunião seria com o tempo correndo e que nos tomaria toda a
manhã.

– Que tal alugarmos um carro e darmos uma volta na ilha?

– Ótima ideia. Assim eu posso lhe passar mais alguns detalhes do que deverá fazer como Igual.

***

A ilha era muito bonita. Eles demoraram pouco mais de uma hora para dar uma volta completa
por ela, passando pela parte holandesa e depois pela francesa.

David continuava maravilhado com tudo aquilo. Nunca tinha visto algo parecido. A água do
mar era transparente e azulada. Os aviões pousavam praticamente na praia e a população era
muito simpática. Todos pareciam felizes.

Quando estavam retornando ao hotel, David avistou o que parecia ser um automóvel no alto do
morro.

– O que é aquilo, Adá?

– É um carro.

– Como ele foi parar lá?

– Esta é uma zona de furacões. Eu estava aqui em 1995 quando houve um dos maiores
furacões da história de Saint Martin. Foi uma experiência interessante. Eu até pensei em parar
o tempo, pegar um barco e sair daqui, mas percebi que seria muito mais útil ficando. Tomei
coragem e saí à rua quando o furacão estava começando. Não sei dizer quantos, mas salvei
muita gente naquele dia.

– Nossa! Deve ter sido horrível.

– Eu não chamaria de horrível, mas de assustador.

– Como você fez?

– Parei o tempo e saí procurando pessoas em perigo. Cada uma que eu achava, a maioria
voando ou caindo em algum local, era resgatada e levada para um abrigo próximo. Nem tomei
cuidado para não deixar pistas, pois a situação era de tamanho desespero para as pessoas que
nem questionaram o que acontecera com elas.

– Como assim?

– Depois da tempestade eu ainda fiquei por aqui alguns dias como voluntário para ajudar.
Percebi que algumas pessoas contavam para outras que haviam passado por uma experiência
estranha, um milagre ou algo parecido, mas o importante era que estavam bem.

– Quanto tempo você ficou aqui?

– Por volta de um mês.

– Incrível.

Após essa história, Adalberto havia subido muito no conceito de David. Este percebeu o
quanto poderia ser útil para as pessoas utilizando os seus poderes. Estava ainda mais animado.

Os três dias em que ficaram em Saint Martin passaram muito rápido e foram muito
interessantes.

David conheceu todas as praias e ainda foi dar um passeio de barco até Saint Barthélemy, uma
pequena ilha próxima de Saint Martin, território francês.

Porém a viagem de volta ao Brasil não foi tão confortável como a de ida. O avião passou por
diversas áreas de turbulência e tempestade. Tamanha era a trepidação da aeronave que David
começou a sentir muito medo.

– Nossa, Adalberto, isso está me dando medo! Estou amedrontado.

– Por quê?

– Sei lá. A sensação de que o avião pode cair. Não estou bem. Na verdade, estou apavorado.

– Não se preocupe. Este aparelho foi feito para voar, e não para cair. As chances de ocorrer um
acidente com você dentro são infinitamente pequenas.

– É, mas se ocorrer elas passam a ser de 100%, não é mesmo?

– Muito engraçado – Adalberto não sorriu. – Se você perceber que o avião está caindo, basta
voltar o tempo e não embarcar nele.

David sorriu e se ajeitou melhor na poltrona, sentindo-se melhor com a ideia de poder
controlar até a própria morte.

Após a aterrissagem, eles pegaram as malas e Adalberto ligou o seu aparelho telefônico,
quando recebeu prontamente uma ligação. David pôde ver que era Morrison ligando e, como o
som do telefone estava alto e ele se achava próximo, pôde escutar parte da conversa.

– Olá, Adá. Nenhum problema?

– Não. Passei limpo. Não me pararam dessa vez.

– Ótimo. É sempre arriscado usar os poderes para garantir a entrega. Você já sabe quem
procurar.

– Sei sim. Como das outras vezes. Não se preocupe.


CAPÍTULO VIII

David estava em casa, na frente de seu computador, tentando pensar em algo para escrever.
Porém sabia que um livro não é criado dessa maneira. O escritor deve produzi-lo somente
quando está inspirado e, como já era esperado, não conseguiu escrever uma só linha.

Seu telefone estava sobre a bancada quando começou a vibrar e na tela apareceu uma foto de
Adalberto.

– Bom dia, Adá.

– Bom dia, meu bom amigo. Vamos nos encontrar hoje?

– Como você mandar.

– Você conhece aquela concessionária de motocicletas perto da sua casa?

– Aquela na avenida aqui embaixo?

– Essa mesma. Me encontre lá na frente.

– Motocicleta, Adá?

– Não pergunte. Lá eu explico. Me encontre daqui a uma hora.

David pegou sua calça que estava no cabide, uma blusa limpa e se vestiu rapidamente. Na
garagem de sua casa, entrou em seu velho carro e dirigiu-se para a concessionária.

– Olá, Adá. O que viemos fazer aqui?

– Você sabe pilotar motos?

– Sei sim. Tenho licença para isso.

– Ótimo. Nós vamos escolher uma boa para você?

– Como assim? Me explique isso. Eu não tenho como pagar.

– Não se preocupe, David. O Morrison me enviou sua parte no lucro da Time Same ontem. Eu
dividi em duas partes. Este cheque é uma parte – entregou um cheque a David – e o restante
vai para o pagamento da motocicleta.
David olhou o valor que estava no cheque e não pôde acreditar. Aquilo era mais do que ele
ganharia em dez anos no antigo trabalho.

– Tudo isso, Adá?

– Por mês, meu amigo.

– Po...Por mês? – as mãos de David tremiam.

– Vá se acostumando.

David sorriu por mais tempo que o normal.

– Mas, David, uma parte disso você sempre vai usar para suas ações como Igual. A empresa
não vai mais pagar suas viagens ou qualquer outra despesa. A motocicleta vai ser a primeira
aquisição com o dinheiro de sua parte.

– Mas por que vou comprar uma motocicleta? Prefiro um carro. Veja o estado do meu. –
Apontou para o seu velho veículo, que estava com muitos problemas mecânicos e tinha uma
aparência horrível.

– Calma. Você pode comprar o carro que quiser, mas terá que usar a motocicleta nas ações.

– Não estou entendendo. Explique-se, porque não estou vendo lógica nisso tudo.

Adalberto sorriu.

– Pense comigo, David. Você está andando com seu belo carrão quando percebe que tem de
correr para socorrer uma mulher que está prestes a cair de uma ponte do outro lado do rio.
Você para o tempo para fazer isso e seu carro continua andando. Bum! Bateu.

David soltou uma grande gargalhada.

– Eu não tinha pensado nisso. Tudo ao meu redor para e eu continuo. Você tem razão. O
melhor é estar em uma motocicleta, assim eu posso desviar-me de tudo e de todos.

– Nós sempre andamos de motocicleta. Só não fazemos isso quando estamos em outra
localidade, sem a intenção de fazer o bem. Entendeu?

– Vai ser difícil explicar para minha mãe.

– Você já falou para ela sobre os livros, não falou? Diga que vendeu muito e já recebeu seu
primeiro cheque. É simples.

– Não estou falando disso. Ela não vai aceitar que eu ande com uma motocicleta.
– Com o tempo aceitará. Basta não se machucar. Agora vamos entrar para que você escolha a
de que mais gostar. Não precisa economizar. Reservei uma boa parte para pagá-la.

David sorriu e não conseguiu esconder a sua alegria com tudo o que estava acontecendo.

Os dois entraram na concessionária e ele escolheu rapidamente a sua nova máquina. Preferiu a
topo de linha com um motor potente. Era vermelha, sua cor preferida, com o guidão não muito
largo para que pudesse passar com agilidade entre os obstáculos que encontrasse pelo caminho
em alguma ação.

O pagamento foi realizado através de uma transferência com um simples telefonema de


Adalberto para o gerente de seu banco. David ficou impressionado com isso.

Ficou de passar na concessionária dali dois dias para pegar a sua moto, já licenciada com a as
letras e os números de sua escolha. E mais uma vez ficou impressionado com o poder do
dinheiro. Aquilo tudo era perfeito.

***

Os dias se passaram e David continuava maravilhado com a sua nova vida. Já havia iniciado
seu novo livro, um romance, e saía à noite pela cidade procurando alguém em perigo para dar
sua ajuda. David se sentia um verdadeiro super-herói.

Nas duas primeiras semanas ele só conseguiu ajudar uma senhora a atravessar a rua e evitar
uma batida entre um carro e uma motocicleta. Nada além disso. Porém na última semana
David salvou uma criança que estava correndo atrás de uma bola em uma grande avenida. O
atropelamento seria inevitável, mas ele parou o tempo e colocou a criança em segurança na
calçada, junto com a bola. O que rendeu uma bronca de Adalberto, pois David não se
preocupou em saber se alguma câmera o estava filmando. Precisaria tomar mais cuidado com
as próximas ações.

Um pensamento dominou a mente de David durante todos esses dias, apesar de estar ocupado
com suas atividades. Letícia Lira. Não conseguia tirá-la da cabeça e achava que já era hora de
tentar um contato novamente.

Ao acordar naquele dia, David estava decidido a encontrá-la. Pensava em marcar uma
entrevista ou qualquer coisa que lhe deixasse próximo dela. Pegou o telefone e, sem pensar
muito, ligou para a emissora.

– Bom dia. Aqui é David Leniz e gostaria de falar com a senhora Lira.

– Letícia Lira?

– Sim. Ela me pediu que ligasse para marcar uma entrevista.


– A senhora Letícia está em gravação e retornará a ligação assim que possível.

– Com quem eu estou falando?

Dessa vez ele queria que fosse diferente.

– Com Tonny.

– Certo, Tonny. Eu já conheço essa resposta e sei que vocês não passarão o meu telefone para
ela. Mas foi ela quem me pediu para marcar uma entrevista.

– Senhor Leniz, como eu lhe falei, ela está em gravação.

– Às oito horas da manhã? Acho meio difícil.

– Vou passar seu telefone para ela. É este mesmo que o senhor ligou?

– É sim. Mas vou deixar claro que agora eu sei o seu nome e, se ela não me ligar, será porque
você não avisou que eu a procurei.

– É uma ameaça?

– Não faço ameaças. É só um aviso. Quando conseguir falar com ela e me perguntar o porquê
de eu não ter ligado antes, direi que foi o Tonny que impediu. O que você acha que ela fará?

– Senhor, não se preocupe. Vou garantir pessoalmente que ela receba o recado.

David desligou o telefone mais esperançoso. Pensou que ela retornaria logo, pois o Tonny não
teria coragem de arriscar saber o resultado de não passar o recado para Letícia.

Porém não foi o que aconteceu. David esperou o dia inteiro que o seu telefone tocasse, mas
este ficou mudo até à noite.

No dia seguinte, decidido, David pegou sua motocicleta nova e dirigiu-se para a emissora. Ao
chegar à porta, encontrou um segurança que parecia um jogador de basquete americano. Uma
verdadeira fortaleza protegendo a entrada do local.

– Seu crachá, senhor.

– Não tenho. Vim falar com a senhora Letícia Lira.

– O senhor tem hora marcada?

David pensou um pouco.

– Sim. Ela marcou comigo para as nove horas.


– Seu nome?

– David Leniz.

O segurança foi até a guarita e David teve esperança que ele abrisse a cancela. Contudo, voltou
com a cara fechada.

– Fui falar com o assessor da senhora Lira e ele disse você não agendou esta visita.

David não sabia o que dizer.

– Mas eu preciso falar com ela. Sou escritor e ela gostaria de me entrevistar em seu programa.

– Senhor Leniz, se ela quiser entrevistá-lo, irá procurá-lo. O senhor quer deixar seu telefone
conosco?

– Sim. Vou deixá-lo novamente.

A voz de David era de desânimo. Entregou um cartão com o telefone ao segurança, que
representava a maior barreira entre ele e Letícia naquele momento.

Ao subir na sua motocicleta, teve uma ideia.

“Como não pensei nisso antes. É tão simples!”

Saiu com sua moto até um local descampado, onde tinha certeza de que nenhuma câmera o
vigiava. Com seu pensamento, parou o tempo e retornou à emissora. Ao passar pelo segurança,
que estava inerte, não resistiu e lhe mostrou a língua.

Entrou na emissora, que era enorme, começou a procurar Letícia e, após passar por vários
corredores, viu uma placa sobre uma porta com o nome dela.

“Deve ser o seu camarim”, pensou enquanto se dirigia à porta.

Entrou e viu que Letícia estava sentada na cadeira com uma maquiadora passando sobre o seu
rosto algo que encobria as imperfeiçoes que poderiam aparecer sob a luz forte da gravação.

“Como se ela tivesse alguma imperfeição.” – David sorriu.

Pegou um pedaço de papel e fez uma anotação que deixou sobre a mesa de Letícia:

“O Senhor David Leniz ligou diversas vezes para falar com a senhora. Este é seu telefone.
Disse que é urgente”.

Satisfeito, saiu da emissora, fez o tempo retornar ao seu ritmo normal e voltou para casa. E, no
momento em que chegou à sala, seu telefone tocou. Um frio percorreu-lhe a barriga. Era da
emissora.

– Alô.

David atendeu rapidamente.

– Alô. David?

Era a voz de Letícia. Ele não podia acreditar. Sua ideia de deixar o bilhete deu certo.

– Sim. Sou eu.

– Você está me procurando?

– Há muito tempo.

Suas pernas tremiam.

– Por que não ligou em meu telefone?

– Você não vai acreditar. Eu perdi o cartão.

Letícia fez um breve silêncio que pareceu uma eternidade para ele.

– Perdeu?

– Sim. Na viagem. Você não imagina quantas vezes tentei falar com você durante todo esse
tempo.

– Bom. Agora conseguiu. O que você quer?

A voz de Letícia pareceu fria.

– Você queria me entrevistar, não queria? Por isso estou lhe retornando.

– Mas você não podia dar entrevista para mim devido ao seu contrato. Lembra-se?

– Sim. Mas isso já está resolvido. Aquele contrato já não tem valor. Eu posso decidir para
quem vou dar entrevista.

Letícia fez outra breve pausa.

– Pode?

– Posso sim. Algum problema?


– Vários.

David sentiu o coração na garganta.

– Co...como?

– Se você podia escolher para quem poderia dar entrevista, por que escolheu o Marco Lahny
antes de mim?

Foi a vez de David fazer uma pausa.

– Não sei o que lhe dizer, Letícia. Quem arrumou a entrevista foi o Adalberto, aquele que você
conheceu em Lisboa.

– O mal-educado? Lembro-me muito bem dele.

– Ele é uma boa pessoa. Mas, de qualquer maneira, estou disponível para a entrevista –, disse
David.

– Então. É por isso que estou retornando seus telefonemas. Não vou mais entrevista-lo. Você
escolheu o meu concorrente para dar a primeira entrevista e isso me chateou muito.

– Mas, linda... quer dizer, Letícia.

Os dois sentiram um calafrio com o equívoco de David.

– Do que você me chamou?

– Letícia.

– Não, antes. Você me chamou de linda. Isso me soou muito familiar. – A voz dela era trêmula
como no dia da entrevista.

– Não, Letícia. Não leve isso a mal. Foi um ato falho. Foi falta minha. Desculpe.

Houve uma pausa mais demorada que as anteriores.

– Letícia?

– Estou aqui, David – ela estava com a voz determinada. – Como estava lhe dizendo, você fez
a sua escolha. Peço-lhe que não volte a ligar para a emissora ou mesmo para o meu telefone
particular, caso venha a encontrá-lo.

– Não, Letícia. Não fique brava comigo. Tenho certeza de que poderemos conversar...

Letícia desligou o telefone e David sentou-se em sua cama enquanto sentia o mundo rodar ao
seu redor.

Após alguns minutos ele saiu, pegou a motocicleta e ficou pilotando sem rumo enquanto
pensava com mais clareza no que acabara de acontecer:

“Foi melhor terminar assim. O Adá tem razão. O que eu quero com uma mulher casada e com
um filho pequeno? Isso deve ser alguma obsessão e talvez eu tenha que me tratar”.

David pilotou pela cidade a tarde toda, até ter seus pensamentos arranjados e a cabeça fria.
Então voltou para casa, ligou uma música e deitou-se na cama para dormir. Mas, antes, decidiu
que iria colocar em prática o que aprendera e iria procurar conhecer novas mulheres. Assim ele
poderia esquecer Letícia de vez.

***

Adalberto telefonou para Morrison:

– Olá, Morrison. Você tinha razão quanto a Letícia.

– Deu certo?

– Sim. A escuta que colocamos no telefone do menino nos mostrou que ela o dispensou de vez.

– Então a estratégia de levá-lo ao Marco Lahny para aquela entrevista resultou em um atrito?

– Sim, Morrison. E esse me pareceu definitivo.

– Muito bem. Parece que conseguimos. Mas peço que continue monitorando as conversas do
David. Não quero ele perto daquela mulher.

Adalberto fez uma pequena pausa, respirou fundo e tomou coragem para perguntar:

– Morrison, eu sei que você sempre tem suas razões, mas nunca entendi a sua obsessão em
afastar David de Letícia.

Adalberto pôde sentir a respiração pesada de Morrison do outro lado da linha.

– Você sabe, meu querido, que eles não podem ficar juntos. Um Igual não tem o direito de ter
uma vida conjugal. Isso atrapalha as suas ações.

– Mas eu nunca vi você interferir dessa forma na vida dos outros Iguais. Você sempre os
aconselhou, mas nunca chegou a atos extremos como neste caso. Juan e Ingrid até chegaram a
viver juntos.

– Esse é um caso à parte. Os dois são Iguais. Dessa forma eles não se prejudicam.
– E o meu caso com a Rose? Nós ficamos juntos dois anos e você nem chegou a me procurar
para pedir que me afastasse dela.

– Todos são casos diferentes. – Morrison estava nervoso. – E quem decide isso sou eu. Como
você mesmo disse, eu tenho as minhas razões e, sendo assim, não preciso ficar lhe dando
explicações. Faça o que eu ordenei e não venha com mais perguntas. Ou vou precisar assumir
esse caso pessoalmente?

– Não, senhor. Deixe que eu cuido de tudo. Continuarei vigiando os passos de David.

Adalberto sentiu que tocou em um assunto que incomodava muito Morrison. E temia pelo que
poderia acontecer a David ou a Letícia. Já tinha uma grande amizade com o menino e não
queria que seu chefe tivesse atitudes extremas contra ele.

“Isso está sendo mais difícil do que eu havia imaginado. Preciso me aconselhar com alguém.
Mas em quem eu posso confiar? Talvez a Ingrid ou o Juan.”

Adalberto repousou o telefone na bancada, ao lado de um sofisticado equipamento de escuta


que ele havia subtraído do governo de um país que se dizia aliado do dele.
CAPÍTULO IX

Pouco mais de um ano havia se passado desde que David ficara impedido de procurar Letícia,
coisa que ela fez questão de deixar bem clara naquele telefonema que quase acabou com a vida
dele.

Porém os dias de mágoa haviam ficado para trás e a vida de David tinha mudado
completamente.

Desde aquele fatídico dia, David afundou-se no trabalho, e nas horas vagas dedicou–se a
conquistar mulheres. O resultado foi a publicação de mais três livros, todos romances, cinco
namoradas e algumas companheiras de ocasião. Ele havia se tornado um conhecido
conquistador, e sua fama estava se espalhando rapidamente, sobretudo nos programas de
fofoca da tarde.

Sabrina, sua mais recente namorada, estava com ele já havia dois meses, o que era um recorde,
pois as outras quatro não conseguiram chegar a trinta dias na companhia de David.

O primeiro livro que David escreveu e lançou em Lisboa, Sentimentos Ocultos, foi traduzido
para o Inglês e ele já o havia lançado no Canadá e na Austrália, estando com viagem marcada
para os Estados Unidos no próximo final de semana para o maior lançamento de sua vida.

Adalberto passava mais tempo trabalhando como agente dele do que produzindo suas obras de
arte. A última havia sido produzida havia mais de três meses. Mas ele não se importava. O
dinheiro para a sua sobrevivência vinha da empresa Time Same, a qual David havia conhecido
quando estivera no Canadá.

Já passava do meio–dia. David estava enrolado em dois lençóis, deitado na cama. Havia
chegado em casa por volta das seis horas da manhã, após uma noitada incrível. Salvara duas
pessoas e ainda fora para a festa do seu amigo Jorge acompanhado de Sabrina.

Sua mãe, Sara, já não perdia tempo mandando acordá-lo, e seu pai, Matias, saía cedo para
trabalhar. Muitas vezes David nem havia chegado quando seu pai já estava no escritório. Mas
quase nunca ele estava em festas, e sim fazendo rondas com sua motocicleta, esperando
encontrar alguém em perigo. Gostava muito de sua atividade.

David já havia pedido ao seu pai para se aposentar, pois não precisaria mais trabalhar com o
dinheiro que já havia ganhado com as vendas dos livros. Porém Matias era teimoso e gostava
muito do que fazia. Era administrador de uma empresa de pequeno porte no centro da cidade.
– Levante-se, preguiçoso!

Uma voz familiar entrou pelos ouvidos de David.

– Vamos, já passa do meio-dia.

David pegou o travesseiro e o colocou sobre o seu rosto a fim de diminuir a luz que entrava
pela janela que Adalberto havia acabado de abrir.

– Até quando você vai fazer isso, Adá? Eu nunca vou ter privacidade?

– Temos muito a fazer. Hoje é dia de ir ao Consulado Americano pegar o seu passaporte com o
visto de entrada.

– Até que horas posso fazer isso?

– Até as quatro da tarde.

– Então ainda tenho mais de três horas.

David virou-se de costas para Adalberto, que, inconformado, puxou os lençóis com tamanha
força que o derrubou da cama.

Ao se levantar, enquanto Adalberto ria, David passou as mãos nos olhos repetidas vezes, na
tentativa de enxergar com maior nitidez.

– Não adianta, meu amigo. Eu parei o tempo para entrar aqui.

– Ah... Entendo. Então faça o tempo andar novamente, mas antes vá lá para fora e toque a
campainha como se fosse uma pessoa normal.

– Você está de ressaca?

– Você sabe que não bebo, não fumo e não uso drogas, Adá. Posso ter vários defeitos, mas
mantenho minha saúde perfeita.

– Não entendo como alguém se diverte à noite sem ao menos beber.

– Você deveria experimentar. É muito melhor. – David sorriu para ele.

– Certo. Vou lá para fora. Vista uma roupa social. Não quero ser barrado na entrada do
Consulado.

David se levantou da cama onde se havia sentado e foi até seu armário procurar uma roupa
social. Tinha algumas, mas não eram muitas, já que gostava de usar calças jeans estonadas com
camiseta branca e um blazer preto. Chamava essa maneira de se vestir de sua marca registrada.
Era o seu estilo.

– Mãe, você está aí?

– Sim. Já acordou, meu filho?

– Vou sair com o Adá. Vamos ao Consulado.

– Outra vez vai sair com ele? Você sabe que não gosto desse sujeito.

– Mas foi ele que me tornou um escritor, mãe. Deveria gostar dele. O que houve? A senhora
gostava antes.

– Isso foi antes dele interferir tanto na sua vida. Veja o que se tornou. Um boêmio sem rumo. É
escritor? Sim. Ganha bastante dinheiro? Sim. Mas não tem horário para nada, nem para
trabalhar.

David saiu enquanto sua mãe falava e não escutou a última frase.

– Sabe aquela apresentadora da TV? Ela ligou hoje cedo no seu telefone para falar com você...
David? David? Ora, já saiu e nem se despediu. – Ela voltou para os fundos da casa para cuidar
dos cães.

***

Os dois chegaram ao Consulado e somente David entrou, já que Adalberto não precisava de
visto por ter o Green Card.

Lá dentro, David foi reconhecido e tratado de forma diferenciada. Por ser um escritor agora
famoso, foi levado até uma sala onde fora recebido pelo cônsul, que fez questão de lhe entregar
pessoalmente o passaporte.

Normalmente os passaportes eram enviados pelos Correios, mas nessa época estavam sendo
entregues pessoalmente por um problema de logística que tiveram no mês anterior.

David sentiu seu telefone vibrar no bolso, mas não quis atender por estar conversando com o
cônsul.

A conversa durou quinze minutos e ele saiu do prédio para se encontrar com Adalberto. E, ao
chegar à padaria onde seu amigo estava tomando um café expresso, sentiu seu telefone vibrar
novamente.

– Nossa! Alguém está mesmo querendo falar comigo, Adá.

– Atenda, David. Pode ser importante.


David pegou o telefone e viu um número desconhecido. Pensou um pouco se deveria atender,
pois poderia ser um fã que havia conseguido o seu telefone em alguma lista pirata na Internet.

– Vamos, amigo. Atenda. Se for um fã, converse amigavelmente e dispense na primeira


oportunidade.

David resolveu seguir o conselho de Adalberto.

– Boa tarde.

– Alô. David?

Há muito tempo ele não sentia seu coração subir até a boca e tentar pular para fora. Suas
pernas tremeram e ele sentiu o suor frio apoderar-se de sua mão. Sua face ficou branca e o
chão pareceu sair debaixo de seus pés.

– Letícia? Letícia Lira?

Adalberto olhou repentinamente para ele e fez menção de pegar o telefone, mas David se
esquivou com um empurrão e continuou falando.

– É você?

– Sim David. Quanto tempo, não?

– Sim, treze meses.

A voz de Letícia era amigável e ele pôde perceber que ela sorria do outro lado da linha. Até
conseguiu imaginar aquele belo sorriso iluminando o ambiente.

– Você pode falar agora?

– Si...sim, como não!

– Como você está? Eu li a seu respeito e soube que lançou mais três livros.

Ela tentava ser simpática com ele, parecendo interessada em sua carreira.

– Estou bem. Atualmente escrevo o quarto livro. Uma continuação do último. Farei uma
trilogia.

– Que interessante.

– Estou surpreso em receber o seu telefonema. Para ser sincero, não esperava voltar a falar
com você.
– Muita coisa mudou, David. Você ficou muito famoso e com uma vida interessante. A
emissora quer que eu o entreviste.

– A emissora?

– Sim.

– E você, não quer?

Letícia fez uma breve pausa.

– Quer saber? Vou ser sincera. Não é a emissora. Eu quero entrevistar você e aproveitar para
pedir desculpas pela maneira como o tratei da última vez que nos falamos.

– Desculpas aceitas. Basta me dizer quando e eu estarei aí.

– Não sei como agradecer a você por ter aceitado o convite depois de tudo. Na próxima
semana está bom? Segunda-feira pela manhã?

– Ops. Infelizmente não. Estarei nos Estados Unidos para lançar o meu livro em inglês.

– Parabéns, David. Eu soube dos lançamentos no Canadá e na Austrália.

David fez uma pausa enquanto pensava: “Será que ela andou acompanhando todas as notícias
sobre mim?”

– David?

– Sim, Letícia. Ainda estou aqui.

– Então você poderia vir depois de amanhã? Eu iria entrevistar um economista, mas ele pode
esperar até a próxima semana. Não suporto falar sobre economia. – E ela sorriu.

– Para mim está ótimo.

– Você sabe onde é a emissora, não sabe?

David lembrou que já a conhecia até por dentro e sorriu.

– Sim. Eu estive aí para tentar falar com você.

– Então ótimo. Venha às oito horas. Pode ser?

– É muito cedo, mas farei um esforço. – Ele sorriu novamente.

– Este número que você usou para me ligar é o seu telefone...


– Particular. – Ela respondeu antes que ele terminasse a pergunta.

– Ótimo. Posso gravá-lo em meus contatos? Se precisar, posso usar?

– Claro, David. Fique à vontade. Não vá perder dessa vez.

Os dois desligaram e ele começou a sambar em plena rua em frente ao Consulado Americano.
Quem viu não acreditou na cena. Mas o que ele não sabia era que sua futura entrevistadora
estava angustiada, pois ela mesma não sabia por que não tinha conseguido esquecer David
durante aquele ano que passara.

Letícia acompanhou todas as notícias a respeito de David, pediu para seu assessor pesquisar
um pouco mais sobre sua carreira e ainda se sentia mal quando ficava sabendo que ele estava
namorando. Muitas vezes, ao chegar em casa, não teve coragem de encarar seu marido, como
se o estivesse traindo. Seu filho foi sua fuga durante o ano inteiro, e seu casamento ia muito
mal.

Adalberto olhou para David com uma expressão muito séria.

– Você não vai, David!

– Como assim?

– A editora não vai permitir.

– Opa, meu amigo. Eu também sou dono da editora.

– Mas somos em vinte e dois.

– Ótimo. Entre com um processo contra mim. Eu vou de qualquer jeito.

David virou as costas para Adalberto e caminhou em direção ao táxi que tomou para voltar
para casa. Ele estava muito feliz para perceber o quão sério fora a atitude do amigo e sócio
quando o deixou falando sozinho no meio da rua.

***

Adalberto saiu de lá e foi direto para sua casa, onde sabia que Morrison o estava esperando,
recém-chegado do Canadá, e ali chegando encontrou o seu chefe dormindo no sofá enquanto
Juan estava sentado na poltrona vendo TV. Não era comum ele acompanhar Morrison nessas
viagens.

– Olá, Juan, que bom ver você aqui.

– Como está, amigo?


– Bem.

Nesse momento, Morrison acordou. Sua expressão logo se tornou a de um homem de


negócios. Um verdadeiro líder.

– Boa tarde, Adá. Sabe por que estamos aqui?

– Imagino que seja por causa do David.

– Acertou. Temos que conversar a respeito do menino.

– Quando ele viaja para os Estados Unidos?

– Na próxima segunda-feira.

– Está na hora. Ele precisa se tornar um mensageiro.

Juan observava a conversa sem dizer uma palavra.

– Vamos deixar David fora dessa atividade, Morrison.

– Não há como. Todos temos que participar.

– Não acho que seja necessário. Eu posso fazer o serviço.

– O menino é um Igual e precisa participar das atividades da Time Same. Qual seria o
propósito de torná-lo sócio se não fosse por isso?

– Poupe o rapaz. Eu posso fazer a parte dele. Faço o dobro das viagens e levo a carga.

Juan se manifestou nesse momento.

– Acho que o Adá pode assumir a parte do David, Morrison. Não acredito que ele já esteja
pronto.

– Você acha? Quem é você para achar alguma coisa? Eu já mandava nesta organização antes
de você descobrir que era um Igual como nós.

– Pense, Morrison. – emendou Adalberto. – Eu só preciso pintar alguns quadros e viajar pelo
mundo com o pretexto de entregá–los. O David precisa escrever um livro inteiro. Isso demanda
muito tempo.

– Que ele faça mais livros, então. Não me interessa como ele fará para viajar. Temos entregas a
fazer e ele vai ser iniciado como mensageiro sim. Ou você já se esqueceu do que acontece com
um Igual que não quer participar?
Adalberto abaixou a cabeça.

– Não, Morrison, não esqueci. Deixe comigo. Eu conto tudo para ele.

– Faça isso e não erre. Não quero ter que agir com você. – Morrison estava com a expressão de
ira no rosto.

***

Naquele dia David acordou seis horas da manhã. Seria o seu grande momento. Estaria frente a
frente com Letícia Lira após mais de um ano.

Sabrina, sua namorada, o havia procurado na noite anterior, mas, com uma desculpa pouco
convincente, ele a dispensou. Queria dormir cedo, pois sabia que seria difícil pregar os olhos
naquela noite. E foi uma noite muito longa.

David vestiu sua roupa mais nova, uma calça jeans azul-escura desbotada e estonada, uma
camiseta branca com a imagem de seu último livro estampada e seu blazer preto. Penteou os
cabelos por muito tempo, mesmo sabendo que colocaria sobre eles o capacete da motocicleta.
Como alguns fios insistiam em sair do lugar, resolveu passar gel na cabeça inteira.

Faltando uma hora para o encontro, ele saiu de sua casa com sua motocicleta brilhando e
pilotou pelas ruas da cidade em direção à emissora, que ficava em uma avenida arborizada com
um grande ginásio de esportes do outro lado.

O lugar era muito bonito e inspirou o humor de David, que já estava muito elevado, mas a
ansiedade começou a dominar o seu corpo e ele sentiu vontade de ir ao banheiro.

“Acho que estou nervoso. É melhor entrar logo e me sentar para esperá-la enquanto me
acalmo.”

A portaria da emissora estava à sua frente e ele aproveitou para ser irônico e se vingar do
segurança.

– Olá, querido segurança. Lembra–se de mim? Pois é. Agora eu tenho uma hora marcada com
a senhora Letícia. Pode confirmar? David Leniz.

– Bom dia, senhor Leniz. Seja bem-vindo à nossa emissora. Espero que tenha uma boa
gravação com a senhora Lira.

O segurança abriu a cancela e pela primeira vez David entrou legalmente nos estúdios da
televisão.

Ultrapassou um grande portão colonial na entrada do prédio e dirigiu-se ao balcão da


recepcionista, que o recebeu com um largo sorriso.
– Senhor Leniz! Seja bem-vindo!

– Muito obrigado.

– Senhor Leniz, por favor, pode autografar este livro para mim?

A garota retirou da bolsa o livro Sentimentos Ocultos e o entregou a David com as mãos
trêmulas.

– Qual o seu nome, querida?

– Ana Bela.

David fez uma dedicatória e assinou com o seu autógrafo, que ele passara muito tempo
treinando.

“À bela Ana Bela, de seu amigo David Leniz”

– O senhor pode ir para aquela sala e aguardar a senhora Lira? Ela ainda não chegou, mas não
costuma se atrasar.

David se dirigiu à sala, sentou-se e começou a pensar.

“Que dia maravilhoso. Sou reconhecido por onde ando, dou autógrafos e ainda estou
esperando para ser entrevistado pela Letícia. Vou gravar bem este dia e horário.” Olhou para o
relógio para saber a data. “O que pode dar errado? Nada. Absolutamente nada. É um dia muito
feliz.”

David sorriu enquanto balançava o capacete em uma das mãos. Porém pensou cedo demais que
seria um ótimo dia.

Letícia entrou sorrindo na sala e caminhou em direção a David estendendo-lhe a mão. Ele viu a
imagem dela e sentiu novamente o coração bater forte no peito. Abriu um grande sorriso e
caminhou na direção dela. Mas, para sua surpresa, um homem moreno, alto e com olhos verdes
penetrantes entrou pela mesma porta carregando uma criança no colo.

– Olá, David. Esperou muito?

– Olá, Letícia. Não esperei quase nada. – Falava com ela e olhava com o canto do olho para
aquele homem.

– Quero lhe apresentar meu marido, Willian.

David tentou sorrir, mas o sorriso saiu amarelo. Estendeu a mão para o marido de Letícia
tentando disfarçar a decepção que fora percebida imediatamente por ela.
– Prazer. David.

– O prazer é meu. – Willian segurou a criança mais firme com o braço esquerdo para estender
a mão direita para ele. – Não é todo dia que conheço um fenômeno da literatura. – E sorriu.

David olhou para a criança e para Letícia.

– Esse é o seu filho?

– Sim.

Ele olhou para a criança novamente e ficou imediatamente encantado. Era uma criança muito
sorridente e havia herdado o lindo sorriso da mãe.

– Como ele se chama?

– Você não vai acreditar na coincidência. Ele também se chama David.

Por um momento ele não sabia o que falar, mas logo pensou e respondeu:

– Que nome lindo. Esse garoto terá muita sorte na vida. – David sorriu para os três.

Letícia apontou para uma porta na sala em que eles estavam e falou: – Você vai para aquele
local para maquiarem. Eu vou para o outro lado. As assistentes vão lhe indicar para onde ir
depois. Vejo você em meia hora na sala de gravação.

Letícia sorriu para ele. Foi quando David notou que ela praticamente não olhou para o marido
enquanto eles estavam conversando.

Ao entrar na sala de maquiagem, uma senhora de mais ou menos sessenta anos veio recebê-lo
com um grande sorriso, colocou-o na cadeira e o maquiou durante vinte minutos.

“Ela tinha que trazer o marido e o filho justamente hoje?”, pensou ele. – “Poderia trazer
somente o filho, que é uma gracinha de criança, mas não gostei nada de conhecer o Willian.”

***

Adalberto sabia que precisava conversar com David o mais rápido possível. Procurou várias
alternativas. Pensou em falar com os outros Iguais, mas logo percebeu que não teria nenhuma
chance. Morrison dominava a todos.

“Como vou falar com ele? Preciso convencê-lo a entrar no esquema, caso contrário será
trágico para David.”

O único pensamento que dominava a mente de Adalberto era o que ele precisava falar para
David, e com isso acabou esquecendo que aquele seria o dia da gravação da entrevista com
Letícia.

“Vou ligar para ele e pedir que venha até aqui. Vou acabar logo com isso. Não posso me sentir
culpado por uma decisão que será somente dele.”

Adalberto ligou, mas o telefone não dava nem sinal. Após mais de dez ligações, lembrou-se da
gravação e disse em voz alta:

– Ainda bem que Morrison não sabe disso. Ele poderia impedir e seria muito difícil explicar
novamente.

***

A gravação da entrevista correu bem. No início Letícia demonstrou certo nervosismo,


principalmente pela presença do marido na sala, mas após duas interrupções de Souza, seu
assessor, a entrevista deslanchou e os dois até esqueceram que estavam gravando. Foi mais um
bate-papo entre dois velhos amigos do que uma entrevista.

– Parabéns, Letícia. Esta foi, se não a melhor, uma das melhores entrevistas que você já
realizou – Souza sorriu para ela.

– Obrigada. Devo isso ao David, que é uma simpatia. – Olhou para David e, mais uma vez,
abriu o seu largo sorriso.

O marido dela nada percebeu, pois confiava muito em Letícia, que sempre se mostrara uma
mulher fiel e companheira.

David se despediu dos dois e saiu sentindo a alma mais leve. “Não importa que ela seja casada.
Que seja feliz. Mas eu quero ser amigo, quem sabe um grande amigo. Nós temos muito em
comum e vou tentar não perder o contato.”

A sensação de Letícia era a mesma de David. Sentia que os dois combinavam muito e o queria
como amigo. Enquanto se dirigiam para o carro, chegou a comentar isso com o marido, que
assentiu prontamente. Ele nem desconfiava dos sentimentos de David por sua esposa.

David saiu da emissora com sua motocicleta e lembrou que não fora ao banheiro durante todo
o período de gravação. Como ficou com vergonha de voltar lá somente para utilizar o sanitário,
parou em um bar próximo e aproveitou para comer um pastel de queijo e um rissole de carne,
já que havia passado da hora do almoço e ele sentia muita fome.

David ficou no bar durante vinte minutos, o suficiente para ver Letícia saindo da emissora com
o marido dentro de um carro preto.

Após encher a barriga, pagou a breve refeição, colocou o capacete e pegou a motocicleta para
seguir pela avenida arborizada. Virou à direita para entrar em outra avenida e seguiu em frente.

Repentinamente, o trânsito parou e ele pôde ouvir gritos de mulher ao longe. Acelerou sua
moto no meio dos carros com a grande agilidade que havia adquirido no último ano e, ao sair
de trás do último carro parado, avistou uma mulher com as mãos ensanguentadas, andando de
um lado para o outro e gritando por socorro. Um corpo inerte estava no chão coberto de
sangue.

David logo reconheceu o carro e a mulher. Era Letícia. Acelerou a motocicleta em sua direção
e, ao chegar perto, pulou mesmo antes que ela parasse. Correu ao encontro de Letícia, abraçou-
a enquanto olhava para o corpo no chão. Era Willian.

– Calma, Letícia, sou eu, David. O que aconteceu?

– Eles... Eles...

Ela não conseguia falar.

– Eles... Ele reagiu... Eu falei... Implorei. Eu atirei nele...

– Eles quem, Letícia? Onde está o seu filho?

David segurou-a pelos ombros enquanto olhava firme para seus olhos cheios de lágrimas.

– Eles o levaram.

David reparou que o carro tinha alguns furos de bala.

– Eles a acertaram?

– Não. Eu estou bem, mas eu o matei.

– Eles estavam de carro? Você sabe me dizer qual?

– Era um carro preto. Grande, tipo SUV. A placa começava com WAL. Não gravei o resto dos
números.

– Para onde eles foram?

– Seguiram a avenida em frente. – As mãos dela tremiam muito enquanto ela apontava.

– Eu vou trazer o seu filho de volta. Confie em mim.

David colocou o capacete e subiu na motocicleta. Saiu em disparada seguindo a avenida


quando parou o tempo. Foi olhando cada carro preto, suas placas e seu interior.
***

Três homens haviam cercado o carro onde Letícia estava. Suas armas eram metralhadoras de
grande calibre. Mandaram Willian e Letícia descerem do carro, enquanto um deles entrou e
pegou o pequeno David para levá-lo. Ao ver aquilo, Willian reagiu, enquanto Letícia
implorava aos gritos para ele não fazer aquilo e para soltarem seu filho. Um dos homens foi na
direção de Letícia para derrubá-la no chão, na tentativa de calá–la, porém a sua arma lhe
escapou da mão e caiu perto dela, que não pensou duas vezes e a pegou para apertar o gatilho.
O resultado não foi o esperado e ela acertou seu próprio marido no peito. Os sequestradores
atiraram em sua direção, entraram no carro e saíram em fuga.

***

A quatro quilômetros dali, David avistou o que parecia ser o carro certo. Chegou perto e
constatou que três homens armados estavam em seu interior com uma criança. Era o filho de
Letícia.

Aproximou-se do carro, abriu a porta, pegou a criança, colocou-a no canteiro central, a mais ou
menos dez metros de uma grande árvore, voltou para o carro, pegou todas as armas e uma
mochila, colocou as armas dentro daquela bolsa, subiu em sua moto e seguiu em direção ao rio
que ficava próximo. Jogou as armas no rio e voltou para entrar no carro, soltar o cinto de
segurança dos três ocupantes, virar o volante em direção à árvore e fixar o pé do motorista no
acelerador, empurrando bem fundo.

David se afastou do carro e se escondeu. Nesse instante, fez com que o tempo voltasse e
assistiu ao violento acidente dos bandidos contra a árvore. Parou novamente o tempo, pegou
sua motocicleta e se afastou. Tendo a certeza de que nenhuma câmera o filmava, retomou o
tempo e correu para o local do acidente, onde pôde ver dois dos sequestradores no chão e outro
dentro, todos inconscientes, enquanto a criança estava próxima do carro, chorando.

David tornou a parar o tempo, dirigiu-se aos três homens, mexeu–lhes nos bolsos e só
encontrou os aparelhos telefônicos.

“Não sei quem são, mas vou tentar descobrir o que queriam. Pode ser útil para tentar evitar um
futuro sequestro.”

David pegou o filho de Letícia, colocou–o sentado sobre o tanque da motocicleta e voltou para
onde ela estava.

– Você o trouxe!

Letícia correu na direção dos dois.

– Ele está bem. Nada sofreu.


David viu que o corpo de Willian já fora coberto no chão pela polícia que havia chegado.

Letícia pegou o filho nos braços e o abraçou bem forte.

– Não sei como lhe agradecer, David. Como conseguiu?

– Os canalhas bateram em uma árvore quando eu os estava perseguindo. Seu filho caiu fora do
carro, mas não teve nem um arranhão.

– Foi um milagre. – E abraçou o filho mais forte.

– Sim, foi.

David ficou ao lado de Letícia durante todo o tempo em que ela esperou pela perícia e durante
o depoimento na delegacia. Mesmo sem intenção, ela havia disparado um tiro fatal contra o
marido.

Antes de ir para a delegacia, ele pediu para seu amigo Jorge ir até o local e pegar o pequeno
David para levá-lo à casa dos pais de Letícia em segurança, e ele assim o fez.

Letícia estava muito nervosa durante o depoimento e pensava no marido, em como seria a vida
dela com um filho de dois anos sem o pai. Sua consciência estava muito pesada pelo que havia
feito.

***

Adalberto estava em sua casa, próximo ao local onde houvera a tentativa de sequestro, e ouviu
o barulho de helicópteros sobrevoando a cena do crime, mas não sabia do que se tratava. Então
ligou a televisão e teve uma grande surpresa. David estava dando uma entrevista detalhando o
que havia acontecido.

“David na TV? O que houve?”

Muito surpreso, ouviu toda a história sobre a morte do marido de Letícia Lira. Bastava mudar
de canal e via a mesma história. A repercussão foi muito grande, já que ela era muito famosa e
querida do público.

Nesse momento, seu telefone tocou e ele viu a imagem de Morrison na tela.

– Olá – disse Adalberto, já esperando o que iria ouvir.

– Seu imbecil. Imbecil, imbecil, imbecil. Não consigo pensar em outra coisa para qualificar
você.

– Calma, Morrison. Do que está falando?


– Você ligou a televisão? Aqui no hotel não se fala de outra coisa. A queridinha Letícia sofreu
um atentado!

– Eu acabei de ver. Mas por que está com raiva de mim?

– Tenho certeza de que você sabia que David iria dar uma entrevista para ela hoje, não sabia?

Adalberto fez uma pausa.

– Sabia sim, mas esqueci de lhe falar, pois você veio com aquela ordem terrível para mim.

– Você achou que não tinha importância?

– Não. Não pensei isso. Eu sei que é importante. Eu o acompanho há anos e participei de tudo.
Sei o quanto é importante.

– Mas não percebeu que ele poderia se envolver em tudo isso?

– Não sabia que isso aconteceria. Volte no tempo e impeça. Você é bom nisso.

– Não creio que seja necessário. Podemos contornar sem voltar no tempo. Você sabe que
sempre tem consequências, e não quero correr o risco.

– Sei sim.

– Então, preste atenção. Não seja idiota dessa vez. Lembra-se do que falamos em sua casa?

– Claro que me lembro. Não me esqueceria.

– Já falou com ele?

– Não, eu iria falar hoje, mas tudo isso aconteceu.

– Então aborte.

– Abortar?

– Sim. Abortar. Vamos aguardar o momento certo. Se o envolvermos nisso hoje, poderá ficar
revoltado com tudo e perderemos o menino.

– Certo. Fico mais aliviado.

– E tem mais. Vigie-o de perto. Tenho certeza de que agora ele grudará na Letícia Lira.

– Não se preocupe. Não falharei novamente. Farei um relatório a cada dia.


Morrison desligou o telefone sem se despedir.

***

Morrison tinha razão quanto às suas desconfianças. A vontade de David era não desgrudar de
Letícia. Queria confortá–la e ajudá-la em tudo o que ela precisasse. Mas sua consciência estava
em conflito, pois ele queria mais e sabia que isso seria impossível e cruel com ela. Letícia
acabara de perder o marido e ainda nem o havia enterrado. Sua vida virou um caos em poucas
horas, e David estava ao lado dela admirando sua beleza. Sentiu mal com esses pensamentos.

A equipe de Letícia também estava na delegacia e Souza tentou dispensá-lo.

– Você pode ir para sua casa. Nós cuidamos dela. Não se preocupe. – falou baixo ao seu
ouvido.

– O quê? – David estava imerso em seus pensamentos e foi pego de surpresa pela afirmativa de
Souza.

– Não precisa ficar aqui com Letícia. Nós estamos com ela e podemos cuidar de tudo. Vá
descansar.

Letícia olhou para Souza ainda com os olhos vermelhos.

David olhou para ela e respondeu para o assessor.

– Eu gostaria de ficar com a Letícia. Estive no local e quero dar o meu apoio. Acredito que
posso ajudar.

Souza olhou para ele admirado e desconfiado. Ele não havia chegado a assessor de uma
celebridade à toa.

Letícia pegou a mão de David e disse:

– Você não precisa ficar aqui. Deve estar cansado. Vá para casa descansar.

– Não, Letícia. Não estou cansado e quero ficar para ajudar você.

Ela esboçou um sorriso, olhou para o Souza e avisou que David ficaria.

Ele acompanhou sua nova amiga durante todo o depoimento, foi junto organizar o funeral com
a equipe e ficou toda a noite no velório. Também ligou para o Jorge para saber se ele tinha
deixado o filho dela com os avós e se o pequeno David estava bem. Com a resposta afirmativa,
transmitiu as informações para Letícia, que lhe ficou muito grata pela atenção.
CAPÍTULO X

Os dias se passaram e David trocou alguns telefonemas com Letícia. Conversaram bastante
sobre a vida e ele se mostrava sempre disposto a ajudá-la no que fosse preciso.

A vida de Letícia havia mudado muito. Antes do sequestro, ela tinha uma rotina de trabalho
muito apertada. De segunda a sábado estava na emissora gravando durante todo o dia e só
tinha férias em janeiro. Isso aconteceu ao longo de anos, e naquele momento ela estava em
casa, parada, sem conseguir trabalhar. David era seu principal confidente. Um amigo
inesperado e muito bem-vindo.

Nos primeiros dias o noticiário deu grande destaque ao que havia ocorrido. Todos procuravam
respostas, e um vídeo gravado com o carro batendo na árvore era exaustivamente repetido.
Ninguém entendia como ele havia feito uma curva tão fechada repentinamente, e a polícia não
tinha muitas respostas para o que motivou os três homens a sequestrar o filho de Letícia Lira,
pois estavam em estado de coma na UTI de um hospital e não tinham nenhuma identificação.

Com o passar dos dias, a notícia tomou menos importância e foi sumindo das televisões e do
rádio.

Após duas semanas, David resolveu que deveria visitar Letícia. Pegou o telefone, ligou para
ela e combinou de passar em sua casa depois do almoço para conversarem um pouco e se
distraírem. Ela achou uma ótima ideia, já que passava o tempo todo somente pensando no que
havia acontecido e preocupada com o que poderia ficar na lembrança de seu filho, apresar de
ter apenas dois anos.

Repentinamente seu telefone tocou. Era Adalberto.

– Olá, David. Tudo bem com você?

– Eu vou levando.

– Você cancelou a viagem para os Estados Unidos e tivemos um grande prejuízo. Temos que
retomar o lançamento do seu livro.

– Não estou com cabeça para isso. Além do quê, não vou me ausentar agora que Letícia
precisa de mim.

– Que pretensão, meu amigo. Ela não precisa de você. A Letícia tem sua equipe, seus próprios
amigos e a família.
– Você está enganado. Estou indo para lá neste momento. Combinamos de nos encontrar.

– Ora, amigo, deixe o defunto esfriar.

– O quê? – David ficou furioso.

– Você já está com segundas intenções com ela? O marido ainda nem morreu direito. Não vou
deixar você fazer isso.

– Vejo que você não me conhece. Eu jamais faria isso. Vou à casa dela como amigo.

– Estou indo aí. Precisamos conversar pessoalmente.

***

Letícia estava em casa olhando algumas fotos impressas dentro de uma caixa de Willian,
tentando distrair-se com os momentos alegres que passou ao lado do marido, quando encontrou
um papel anotado a mão. Parecia letra de mulher, por ser arredondada e precisa.

“Depois de Lisboa vou para o Chile e lá ficarei uma semana. Não quer se encontrar comigo
lá?”

Ela continuou vasculhando a caixa com várias fotos e percebeu que no final havia um Pen
Drive que não lhe pertencia. Olhou um momento para o dispositivo e resolveu colocá–lo em
seu computador.

Ao abrir o arquivo que havia dentro do Pen Drive, percebeu que se tratava de algumas fotos e
de alguns filmes.

“Meu Deus, o que é isso? – E começou a chorar.

***

Adalberto chegou à casa de David e entrou direto, pois havia parado o tempo.

– David, precisamos conversar – seu tom era sério.

– Deve ser algo sério. Você nem sorriu.

Adalberto foi direto ao assunto.

– Quero que você se afaste de Letícia.

– O quê? Está louco? Sou apenas um amigo.

– Deixe de ser hipócrita. Nós sabemos que não é somente isso. Afaste–se dela.
– Por quê? Está apaixonado por ela?

– Não seja idiota. Sou seu amigo há bastante tempo. Confie no meu conselho. Tem mais gente
que quer você longe dela.

– Quem?

– Todos os Iguais.

– Por quê? O que há de mal em sermos amigos?

– Vocês não podem ficar juntos. Não faça isso. Por algum motivo, Morrison não quer.

– Adá, eu nunca o vi tão estranho. Você está me dando medo.

– Tenha muito cuidado. Fique longe dela.

– Não, meu amigo. Não vou ficar. – David estava determinado.

– Você vai estragar tudo.

– Estragar o quê? Seja mais específico. Fica aí cheio de enigmas. O que vocês estão
escondendo? Por que Morrison se preocupa tanto com isso?

– Afaste–se dela. Só isso. – O tom da voz de Adalberto subiu e ele aparentava nervosismo nos
olhos.

– Não, Adá. Vocês não vão mandar em mim.

Adalberto deu um soco em um vaso que estava sobre um móvel, o vaso caiu no chão e se
despedaçou. Então ele gritou:

– Você vai estragar tudo. Vai estragar tudo. Eu não tive todo aquele trabalho para você
estragar. Eu não voltei... – Adalberto parou de falar repentinamente, querendo segurar algo que
quase lhe saíra da boca e parecia bastante comprometedor.

David olhou para ele com a cabeça pendendo para o lado esquerdo e os olhos começando a se
cerrar.

– Voltou o quê? Voltou para onde? Responda–me. – Estava muito nervoso.

– Nada, David. Esqueça. Não é importante.

Sem que os dois percebessem, o tempo voltou ao normal e o telefone de David tocou. Era
Letícia e ele atendeu.
– Oi, Letícia, não posso falar agora.

– Eu preciso... preciso falar com você.

– Aconteceu algo?

Ela estava soluçando.

– Sim...

– Com o seu filho?

– Não. Por favor, você pode vir agora?

– Claro que sim. Chegarei em vinte minutos.

– Obrigada. Você é um bom amigo.

David colocou o telefone no bolso e olhou para Adalberto, que estava surpreso.

– David, o tempo voltou a correr e não fui eu. O que aconteceu? Será que foi o Morrison?

– O Morrison? O que ele tem com isso?

– Nada. Foi só um pensamento em voz alta. Eu sei quando ele faz isso. Eu sinto. Não foi ele.
Dessa vez foi diferente.

– Depois discutimos isso. Pare o tempo novamente e saia daqui antes que minha mãe o veja.
Preciso me encontrar com Letícia.

Adalberto, ainda surpreso, consentiu e foi embora.

***

David chegou à casa de Letícia, uma linda mansão em um bairro nobre da cidade. Tocou a
campainha, e para sua surpresa ela mesma atendeu pelo interfone.

– Oi, David. Já abri o portão. Entre, por favor. – Sua voz era fraca, denunciando que ainda
estava abalada.

Ao entrar, David a encontrou na sala e logo percebeu que algo muito ruim havia acontecido. –
“Seria algum familiar? Ela não aguentaria mais um luto”, pensou.

– O que houve, Letícia?

– Sente–se, meu amigo, por favor.


David se sentou em uma poltrona próxima ao sofá onde ela estava sentada.

– Descobri algo terrível sobre o meu marido. Todos os homens são assim?

– Não estou entendendo. Assim como? O que você descobriu.

– Ele me traía. Tinha uma amante.

David pensou que aquilo não poderia ser possível. Como alguém que consegue casar com
Letícia a trairia?

– Tem certeza? Você pode estar enganada ou pode ser alguém tentando somente lhe tirar uma
parte do dinheiro.

– Não. Eu tenho certeza. Encontrei isto. – E mostrou-lhe o Pen Drive.

– Um Pen Drive? E o que isso prova?

– Fotos e filmes. Ele filmava tudo.

David entendeu a gravidade da situação.

– Acho que você não deve pensar nisso. Ele já se foi. Esqueça esse Pen Drive. Jogue–o no lixo
e continue sua vida. Guarde somente as boas lembranças.

– Tem mais. Ele viajava com ela. Como eu me ausentava muito, ele aproveitava isso e o nosso
casamento estava em crise durante o último ano.

– Como você sabe que ele viajava com ela?

– Lembra-se de quando o conheci em Lisboa?

– Não esqueceria.

– Então, eu recebi um recado dizendo que ele havia ido para o Chile em viagem de negócios.
Veja quais eram os negócios.

Mostrou-lhe o recado que havia encontrado.

David sentiu um calafrio.

– Essa é a letra dela?

– Sim. Por quê? Você conhece essa letra?

– Estou na dúvida. Tem alguma foto da mulher? Vestida, é claro.


Letícia recolocou o Pen Drive no computador, vasculhou muito a contragosto as fotos até
achar uma onde a mulher aparecia nitidamente.

– É esta.

David olhou a foto por alguns segundos e sentiu o coração gelar. Ele a conhecia.

– É a Ingrid!

– Você a conhece?

– Ela é minha... é uma das donas da editora.

– Mas como ela conheceu o meu marido?

– Não sei. Eu nunca iria desconfiar que ela tinha um amante, e que ele seria o seu marido.
Porém algo faz sentido. Quando estava em Lisboa eu a ouvi falando para Juan que iria direto
para o Chile encontrar com alguém.

– Acho que eles só não se encontraram em Lisboa porque eu estava lá – Letícia concluiu.

– Pode ser.

– É, meu amigo. Acho que vou ter que conviver com isso o resto da vida. Pelo menos ela é
bonita. Não fui trocada por qualquer uma.

– A beleza dela nem chega aos seus pés. E, respondendo à sua pergunta: não.

– Não o quê?

– Não, os homens não são todos iguais. Esqueça tudo isso.

Letícia sorriu pela primeira vez desde o sequestro. Percebeu que algo estranho havia entre eles.

Passaram o resto da tarde conversando. Falaram sobre vários assuntos e Letícia voltou a sentir-
se bem. Gostava muito de conversar com David e não queria que aquele dia acabasse. Quase se
esqueceu do que o seu falecido marido havia feito.

No final da noite, David saiu da casa de Letícia e foi direto para a sua. Ao chegar, sentou-se no
sofá, pegou o telefone e ligou para Ingrid.

– Olá, David. Que surpresa me ligar a essa hora.

– Como você conheceu Willian?

Ingrid se assustou.
– Que Willian?

– Você sabe de quem estou falando. O marido da Letícia.

– Isso não é assunto para você, David. Não se intrometa nisso.

– Por quê?

– Siga o meu conselho. Finja que não está sabendo de nada. Esqueça totalmente. Não deixe
que os outros Iguais saibam que você descobriu o meu romance com Willian.

– Por quê? O que eles irão fazer?

– Não sei, David. Temo pela sua integridade. Fique de boca calada. Existe algo muito maior do
que você imagina. Permaneça quieto, entendeu?

– Certo, Ingrid. Mas você me deve explicações.

– Não por telefone. Quando nos encontrarmos a sós, poderemos conversar.

David desligou o telefone sem se despedir de Ingrid.

“O que será que está acontecendo? Primeiro o Adá, depois a Ingrid me dando conselho para
ficar quieto. Afinal não somos os mocinhos, como a Ingrid gosta de falar?”

***

Adalberto estava sentado no sofá de sua casa ouvindo as gravações das conversas de David.

– Nossa! Ele está sabendo – observou em voz alta

Levantou-se do sofá e começou a andar de um lado para o outro no salão enquanto pensava:

“Ele está se enroscando muito. É mais esperto do que imaginamos. Se Morrison ficar sabendo
disso, David estará encrencado”.

Adalberto andou mais um pouco pelo salão até tomar uma decisão.

“É isso. Se David continuar assim, o Morrison vai pegá-lo. Vou me encontrar com ele e contar
tudo. Não vou esconder nada. Se ele souber o lugar onde está pisando, poderá ter mais
cuidado.”

Adalberto voltou até o aparelho de escuta e apagou toda a gravação da conversa entre David e
Ingrid.
CAPÍTULO XI

Adalberto chegou cedo à casa do David. Sabia que aquele não seria um dia normal e não
queria revelar a verdade lá.

– Bom dia, David. Precisamos conversar.

– Bom dia, Adá. Eu quero mesmo ter uma conversa com você. – David respondeu
determinado.

– Não aqui. Não tive controle total sobre o tempo na última vez e tenho receio que aconteça
novamente. Vamos à minha casa. Lá teremos mais privacidade.

– Sem problemas. Você pode voltar para lá que logo chegarei. Vou com minha motocicleta.
Tenho alguns compromissos depois.

Adalberto achou estranho ele ter compromissos de que não estava ciente, mas deveria ser com
Letícia, pois nos últimos dias ele não fazia outra coisa que não fosse ter contato com ela.

David chegou à casa de Adalberto e entrou sem avisar. Seu amigo estava sentado no sofá e
puxou uma poltrona para perto dele.

– Sente-se amigo. Preciso falar muito sério com você.

David olhou ao redor e não percebeu nada estranho. Somente o comportamento de Adalberto
lhe chamava a atenção.

Assim que David se sentou, Adalberto curvou-se para frente com as mãos juntas e começou a
falar.

– David, você é um rapaz esperto e muito inteligente. E isso o está prejudicando.

– Não estou entendendo. – David ficou confuso com o início da conversa

– Tenho muitas coisas para lhe falar, mas tente enxergar com a mente aberta. Tente entender o
porquê de eu ter feito o que fiz.

– Você está me assustando, Adá.

– Mas é por isso que vamos conversar. Se você continuar no mesmo rumo, vai correr riscos
inevitáveis.
– Tem algo a ver com Letícia Lira? Parece que ultimamente vocês estão com uma fixação nela.

– Sim, garoto. Ela está envolvida nessa história.

– Como assim? Ela sabe de algo. Que história é essa para ser tão séria?

– Não, David, ela não sabe de nada. Pelo menos nós entendemos assim, mas parece que ela
sente que algo ocorreu.

– Conte-me, Adá. Não esconda nada.

– Vou começar do início, já derrubando um conceito que você tem de nós, os Iguais. Nós não
somos os mocinhos nessa história, pelo menos não somos tão bons como você imaginou no
começo.

– Eu já percebi que algo mudou desde que conheci a organização. Ontem eu descobri uma
coisa que me deixou muito triste e desconfiado.

– David, espero que você entenda o meu lado e não fique com raiva de mim. O que vou lhe
contar é grave, mas não tive alternativa.

– Conte logo, Adá. Chega de suspense.

– Certo. Vamos começar.

Adalberto se ajeitou melhor em seu assento para relaxar antes de começar.

– Você se lembra de quando tinha dezoito anos e comprou o seu primeiro carro?

– Sim, é o mesmo que eu tinha quando conheci você.

– Pois bem. Lembra-se de que estava com seu amigo Jorge indo para uma danceteria se
divertir e um garoto atravessou na sua frente?

– Claro que me lembro. Foi quando percebi com clareza que eu era diferente dos demais. Que
eu tinha um poder que os outros não possuíam.

– Você chegou à danceteria?

– Não, Adá. Logo depois que salvei aquele garoto, meu carro quebrou. Um cabo da bobina se
partiu e eu não pude seguir em frente. Foi uma noite perdida. Mas é estranho, porque,
pensando bem, eu tenho uma vaga sensação de que estive nessa danceteria.

– Sim, David. Você chegou lá. Seu carro não quebrou e você se divertiu muito.

– Mas como assim? Lembro-me claramente de o carro ter quebrado. Até chamei o pai do Jorge
para consertá–lo. Ele guinchou o carro e o devolveu no dia seguinte. Era mesmo o cabo da
bobina que estava corroído. Ele me disse que parecia serviço de algum roedor.

– Preste atenção. Você chegou lá na danceteria sim, divertiu-se muito e conheceu alguém.

– Conheci?

– Sim, uma garota. Você se apaixonou por ela e a namorou.

– Adá, você está louco ou usou algum tipo de entorpecente? Acha que eu esqueceria isso?

– Eu fiz você esquecer. – Adalberto falava com determinação.

– O quê? Como? Quem era essa garota? Por que e como você fez isso? Eu a conheço?

A cabeça de David estava rodando com tantas perguntas sem respostas. Ele estava apreensivo
e aguardava uma explicação de Adalberto.

– Sim, David. Você a conhece muito bem.

– Quem é? Vamos, fale logo.

– Letícia.

– Le.. Letícia? A Letícia Lira? Não é possível. Eu só a conheci pessoalmente em Lisboa.

– Você pensa assim, mas eu sei que não.

David levantou-se da poltrona, pois não aguentava mais ficar sentado.

– Explique tudo isso, Adá. Não estou entendendo nada...

Fez uma pausa e arregalou os olhos como alguém que acaba de descobrir algo grave.

– Caramba! Você voltou o tempo?

Adalberto tentou acalmar David.

– Sente-se, meu amigo. Não se exalte. Vamos conversar com calma. O mais importante é você
entender tudo.

– Você me deve essa explicação.

David se sentou.

– Eu sei disso. Eu lhe devo mesmo essa explicação. Naquele dia, você foi até a danceteria e, no
final da noite, conheceu a Letícia Lira. Ela ainda não era famosa e tinha saído com as amigas
pela primeira vez para uma casa noturna. Mesmo não sendo conhecida, ela já estava
trabalhando na televisão, mas como trainee.

– Sim, vamos, continue. Preciso muito saber.

David fazia gestos com as mãos, incentivando Adalberto a falar.

– Vocês se apaixonaram rapidamente e ela teve uma ascensão vertiginosa na carreira. Passou
para apresentadora de telejornal e, por sua beleza, inteligência, simpatia e desenvoltura, logo
foi convidada para substituir um apresentador que estava se aposentando.

– Sim, Adá. Essa é a história dela que todos conhecemos. Houve até um programa especial
contando sobre a carreira dela recentemente.

– Isso mesmo, mas a história que você conhece aconteceu sem a sua presença. Na primeira
você estava muito presente.

– E como nos separamos?

– Quem falou que vocês se separaram? Vocês eram muito grudados. Você a acompanhava até
o estúdio e ficava em uma pequena sala nos fundos escrevendo seus livros.

– Livros? Eu era escritor?

– Sim, meu amigo. Por que você acha que eu o incentivei a escrever o primeiro livro. Você
tem muito talento e já vendia muito bem quando eu interrompi a sua história.

– Por que você fez isso?

– Você sabe que os Iguais não podem casar. É a nossa regra.

– Uma regra estúpida.

– Pode parecer para você, mas nós temos os nossos motivos para isso. E você iria casar com
Letícia.

– Casar? Por quanto tempo nós namoramos?

– Cinco anos.

– Cinco anos? Você roubou cinco anos da minha vida e o meu grande amor?

– Não fui eu. E não roubei esses cinco anos. Você os viveu novamente. No começo eu fui
contra, mas de alguma maneira isso incomodava muito o Morrison e percebi que você corria
perigo.

– Você está certo. Eu vivi os cinco anos novamente, mas atormentado por uma sombra. Por um
amor que não me largou. Você sabe por quantas mulheres eu me interessei nesse tempo? Você
sabe quantas vezes eu assistia a cada programa da Letícia?

– Sei sim, David. Eu o vigiei de perto. Foram poucas mulheres e muitas noites na frente da
televisão. Também foram ordens do Morrison para vigiar você.

– Sempre ele. Por que vocês o mantêm como líder?

– Isso é outra história. No momento, o que interessa é a sua.

– Sim. Continue.

David parecia muito interessado, mas ainda estava nervoso.

– Nós tentamos interferir no seu relacionamento. Até pedimos que a Ingrid procurasse
conquistar você. Mas você era muito fiel a Letícia e estava muito apaixonado.

– E sou apaixonado por ela até hoje.

– É o que me parece. Eu voltei, sim, o tempo. Você tem razão. Voltei para o passado no
momento em que você se dirigia para a danceteria. Quando você saiu da cena do perigo de
atropelamento, eu parei o tempo novamente e, com uma pedra, cortei o fio da bobina. Assim
eu garanti que você não a conheceria. Foram ordens do Morrison.

– E se você não as cumprisse?

– Algo muito ruim poderia acontecer com um de vocês. Eu fiz isso para evitar.

– Como assim? O que aconteceria?

– Eu não sei, mas não seria bom. Porém algo que não consigo entender saiu errado. Apesar de
não ser nem aprendiz de Igual, você guardou lembranças que não deveria e eu percebi isso
quando li o seu livro Sentimentos Ocultos. Você narrou detalhes da história. Só se perdeu a
partir do momento que eu interferi. Parece que uma sombra acompanhou a sua alma nestes
últimos anos.

– Isso explica a paixão que eu sinto por ela. Explica até os meus sentimentos quando achava
que não a conhecia. Minha nossa, o que você fez comigo! Acabou com a minha vida e com a
dela. Cheguei a pensar que precisava de tratamento psicológico. Ela também guardou algo do
passado. Posso sentir isso nos seus atos.

– Eu percebi isso também. Ela lhe deu seu telefone particular lá em Lisboa. Uma mulher
casada, fiel como ela era, jamais faria isso se não tivesse uma ligação muito forte com você.

– Como você sabe do telefone?

Adalberto olhou para ele como quem está resolvido a contar toda a história.

– Eu o furtei do seu bolso enquanto você dormia no avião.

– O quê? Por que você fez isso?

– Não está claro? Para afastá–lo dela novamente. Eu tinha que impedir que vocês começassem
uma nova história.

– Por que está me contando tudo isso?

– Você está descobrindo muitas coisas e pode correr um grande perigo por isso. Não só você,
mas a Letícia também. Além disso, parece que o destino insiste em unir os dois.

– E você espera que eu me afaste dela depois de saber tudo o que me contou?

– Sim. Espero que pare de buscar evidências do passado e se afaste dela para o bem dos dois.
Esqueça o que viveu. Você é jovem e tem uma vida inteira pela frente. Procure outras
mulheres e volte a ser feliz.

– Você é um canalha!

– Não me tome por vilão, meu amigo. Só estou tentando ajudá-lo. Não há como se afastar do
perigo estando com Letícia.

David fez uma longa pausa, pensando em tudo o que Adalberto lhe relatou. Cada detalhe
percorria a sua mente e a revolta era muito fácil de ser notada.

– Adá, por favor, levante-se.

Adalberto levantou-se junto com David e só teve tempo de iniciar uma pergunta.

– O quê...?

David desferiu um soco muito forte no rosto de Adalberto, que caiu deitado no sofá com as
mãos no rosto. Foi um golpe inesperado.

– Isso é pelo que você fez com a minha vida e com a de Letícia. É pelos anos que me roubou e
por tudo o que tem feito fingindo ser meu amigo.

Adalberto gemia no sofá enquanto pressionava a boca, que sangrava muito.


David continuou a falar com muita raiva.

– Não pense que vou me afastar dela. Agora é que vou ficar mais próximo. Ninguém irá nos
separar dessa vez. Eu a amo e trouxe isso comigo do passado. Vocês perderam esse jogo!

Com muita dificuldade, Adalberto virou-se para David, ainda com sangue escorrendo da boca,
e respondeu:

– Isso não é um jogo, David. O Morrison não vai admitir.

– Ele que tente interferir.

David pegou seu capacete, saiu da casa de Adalberto, montou em sua motocicleta e pilotou
sem rumo pela cidade, pensando em tudo o que lhe havia sido revelado.

“Eu ia me casar com ela. Eu era escritor. Nós éramos felizes e eles interferiram. Acabaram
com a minha vida, e veja como está a dela. Que bando de estúpidos!”

Pilotou o dia inteiro pela cidade. Passou por todos os locais que poderiam trazer alguma
lembrança de Letícia. Procurou no fundo de sua memória qualquer resquício de recordação que
pudesse ajudá-lo. Porém, por mais que pensasse, não conseguia se lembrar de nada. Tudo
vinha em forma de sentimentos.

Por algum motivo, sua jornada pela cidade o levou até a frente de uma pequena casa, um
sobradinho de classe média baixa, mas muito bem conservado. Parou na frente da casa e ficou
olhando por algum tempo, sentindo uma sensação muito boa, como se aquela residência
tivesse feito parte de um passado feliz.

Após alguns minutos parado na frente do sobrado, resolveu voltar para sua casa a fim de
descansar e pensar em como iria agir dali para frente, mas um garoto na rua o chamou.

– Senhor? Está interessado em saber a história da apresentadora Letícia Lira? Eu posso contar
em troca de um troco.

– O quê? Por quê...

– Acho que o senhor gostaria de ouvir a história dela, já que está parado na frente da casa onde
ela nasceu e foi criada.

David sentiu um frio na barriga, ao mesmo tempo que começou a perceber que algumas
lembranças tomavam força na sua cabeça. Olhou para o garoto, sorriu e disse:

– Tome aqui o seu troco para comprar um sorvete e não precisa me contar a história dela. Eu
conheço cada detalhe.
– Ela é linda, o senhor não acha?

– É a mulher mais bonita e doce que eu já conheci. – Sorriu novamente para o garoto, acelerou
a motocicleta e voltou para casa.

***

Adalberto estava no banheiro lavando o rosto e observando um corte profundo dentro da boca
que insistia em sangrar mesmo com ele utilizando um pano para a comprimir.

Por mais de dez minutos, a preocupação dele era estancar aquele sangue e se recompor, pois
não queria parar o tempo para não chamar a atenção dos outros Iguais.

“Preciso proteger aquele garoto”, pensou – “Morrison vai acabar com ele e com ela. David não
sabe com quem está lidando.”

Após mais alguns minutos, Adalberto conseguiu estancar o sangue e foi até a sala com a
intenção de telefonar para Ingrid, mas pensou que seria melhor encontrar-se com ela
diretamente, pois sabia onde achá-la e não tinha certeza de que seu líder não estava escutando
suas ligações.

Ingrid estava hospedada na mesma cidade desde antes da morte de Willian. Todos os Iguais
estavam lá, pois pretendiam realizar uma convenção com o fim de discutir novos rumos para o
grupo.

Ele pegou sua motocicleta e pilotou até a porta de um luxuoso hotel no centro da cidade, na
frente do qual estacionou, e seguiu para o saguão.

Ao entrar, Adalberto se dirigiu para a recepção e pediu para ser anunciado.

Após alguns minutos, Ingrid pediu que ele subisse e Adalberto o fez.

Ela o recebeu na porta com um belo sorriso.

– Que surpresa, Adá. A convenção não era amanhã?

Ele não sorriu.

– Temos que conversar. Posso entrar?

– Claro. Entre.

Ingrid olhou para ele espantada.

Adalberto entrou pelo quarto e notou que o chuveiro estava ligado e do banheiro saía vapor de
água.

– Você estava tomando banho, Ingrid?

– Não. Juan está comigo.

– Melhor assim. Dessa maneira posso conversar com os dois sem perder muito tempo.

Juan saiu do banho e após a surpresa por encontrar Adalberto, os três conversaram durante
algum tempo e toda a história foi exposta. O casal teve ciência de tudo o que estava ocorrendo
com David e da parte da história que Adalberto havia contado para ele.

Ingrid se levantou, pegou um copo com gelo, colocou dentro um pouco de uísque e tomou um
gole.

– Seu amigo corre grande perigo! – exclamou ela. – Precisamos fazer alguma coisa.

Juan puxou sua cadeira para mais perto de Adalberto, olhou-o nos olhos e disse:

– Conte conosco, Adá. Há muito tempo que não concordamos com o rumo que o grupo tomou.

– Sim, Adá. E não somos só nós dois. Susan, Alan e todos os outros, com exceção do Shang,
pensam da mesma forma.

– O Shang nunca me pareceu confiável mesmo. Mas gostaria de reunir todos os outros para
conversarmos.

– Não vai ser difícil, Adá – respondeu Juan. – Estamos hospedados em três hotéis diferentes e
você, como organizador, conhece todos. Vamos pegar um carro e procurá-los. Não quero falar
nada disso pelo telefone.

Os três saíram e foram ao encontro dos integrantes do grupo e, em pouco tempo, estavam na
sala de reuniões do último hotel a que chegaram. Não pararam o tempo para que Morrison não
percebesse que algo estava ocorrendo, já que ele também estava na mesma cidade.

Adalberto pediu que todos se sentassem e ele próprio ficou em pé, na frente do grupo, para
esclarecer a situação.

Falou durante alguns minutos e logo percebeu que a história de David estava servindo somente
como um pretexto para que eles se revoltassem contra Morrison.

Lee, um chinês de estatura baixa, magro e muito tímido, levantou-se e pediu, com a voz quase
inaudível, que os outros o ouvissem.

Com o olhar voltado para baixo, dirigiu-se até à frente do grupo e falou, olhando para o chão,
enquanto esfregava as unhas da mão esquerda com a direita. Era uma característica de Lee não
olhar diretamente nos olhos das pessoas.

– Bem, meus amigos, eu não costumo falar muito, mas acho que o momento é de reflexão. Não
suporto mais trabalhar da forma que estamos trabalhando. Não quero mais ser mensageiro e
não aceito os métodos do Morrison. Não podemos permitir que ele faça algo de ruim para o
novo Igual. Isso poderia acontecer com qualquer um de nós. Eu mesmo tenho uma paixão por
uma garota e nunca pude demonstrá-la. – Levantou a cabeça e olhou para uma chinesa
chamada Kai que estava sentada ao lado de Susan. – Sugiro que conversemos com Morrison e
deixemos bem claro que, se ele não mudar os métodos, nós o abandonaremos.

– Ele vai nos ameaçar! – exclamou Paul.

– Sim – respondeu Lee olhando firme para ele. – E o que vai fazer? Nos matar? Ele poderia
ficar sem a nossa mão de obra? Todos aqui sabemos que ele precisa dos vinte Iguais. Morrison
é inteligente e não vai confrontar a todos nós de uma só vez.

Lee parou de falar repentinamente. Seu olhar fixou-se na porta de entrada que estava atrás dos
outros integrantes do grupo. Todos puderam perceber que suas pernas tremiam.

– Vejo que vocês começaram uma convenção antes da hora e sem mim. Espero que tenham um
bom motivo para isso.

Todos os integrantes do grupo sentiram um frio na barriga ao mesmo tempo, ao escutar a voz
de Morrison.

Adalberto, que se havia sentado para ouvir o que Lee tinha para falar, levantou-se rapidamente,
sem demonstrar medo pela presença do líder que estava excluído.

– Morrison, temos um bom motivo sim. Por favor, sente-se que gostaríamos de conversar um
pouco.

Morrison sentou-se e não percebeu que Adalberto estava nervoso, quase perdendo o controle.
Essa seria a primeira vez que ele enfrentaria o chefe do grupo, e poderia ser a última.

– Sou todo ouvidos, Adá. Pode começar a falar.

Adalberto respirou fundo, olhou para os outros Iguais e começou:

– Morrison, você tem sido um bom líder há anos, mas estamos descontentes com os rumos que
a nossa organização vem tomando.

– Sim, continue.

– A organização ficou violenta, e nos últimos anos vivemos sob o regime do medo. Nós
obedecemos a você e fazemos os carregamentos, além de outros serviços, contra a nossa
vontade.

– Adá, meu amigo. Você, mais do que ninguém nesta sala, sabe o quanto a organização precisa
das nossas ações para sobreviver. Ou acha que os seus quadros, as plantas de engenharia do
escritório ou mesmo os livros do menino nos garantem o dinheiro necessário?

– Mas não há necessidade de nos ameaçar. Não há necessidade de fazermos tantas coisas
erradas como estamos fazendo nos últimos anos.

– Todos aqui concordam com o Adá? – Morrison estava arrogante. – Vocês não gostam da
vida que levam? Do dinheiro que possuem?

– Não, Morrison. – gritou Susan. – Eu estou cheia de tudo o que venho fazendo pela
organização.

– Ela tem razão – foi a vez de Juan. – Se você quer continuar assim, fique sozinho.

Paul se levantou, caminhou até a frente de Morrison e, com a voz alterada, disparou.

– Não quero mais que continue como está. Se você não modificar a sua maneira de liderar,
todos nós vamos sair da organização. Se quiser acabar conosco, fique à vontade. Que fique
sozinho para levar a Time Same. Você sabe que não é possível.

– Desde quando vocês estão sentindo isso? – perguntou Morrison a Adalberto.

– Nós percebemos que você mudou muito desde que descobrimos David. Você tem uma
preocupação muito grande com ele e, principalmente, com a aproximação do rapaz com a
apresentadora. A partir de então, todas as nossas ações ficaram voltadas para esse assunto.
Parece uma fixação sua.

Morrison sentiu que a revolta dos Iguais estava saindo do controle, pois Adalberto, Susan,
Ingrid e Paul eram os maiores líderes depois dele. Se eles estavam revoltados com sua atuação,
os outros também estavam. Sendo assim, resolveu conciliar.

– Calma, meus amigos – levantou as mãos. – Percebo que tudo aqui gira em torno de David.
Vocês estão com medo de que eu faça alguma coisa com o rapaz ou com a garota?

Susan respondeu que era uma de suas preocupações e foi seguida por Kai e Adalberto.

– Pois bem. Eu não tenho interesse nele. Até o momento ele não se mostrou um mensageiro
potencial e nem mesmo um membro que poderia somar algo ao grupo.

Enquanto falava, lembrava-se da conversa entre David e Adalberto que ele ouvira através de
uma escuta que colocou na casa deste último havia mais de um ano.
– Então sugiro que o garoto entre para o congelamento.

Todos os Iguais presentes na sala se entreolharam admirados. O congelamento significava


deixá-lo longe das atividades principais do grupo, sem interferência de nenhum membro.
Literalmente, significava tranquilidade total para David. E isso acalmou a todos.

– Sugiro também a diminuição de nossas atividades. A Time Same está com um bom dinheiro
em caixa e podemos sobreviver por um longo período sem as nossas ações. O que for
necessário eu mesmo faço, e se for preciso peço que alguém seja voluntário. Nenhum de vocês
será forçado a nada. Entendem o que eu quero dizer? O que acham disso?

Esse discurso era tudo o que eles queriam ouvir. Não havia argumento contra Morrison no
momento. Somente Adalberto desconfiou dele.

– Morrison, temos a sua palavra de que assim será?

– Minha palavra, minha honra, Adá.

– Você vai mesmo deixar o David no congelamento?

– Sim, até que vocês mesmos decidam que ele está pronto para nos acompanhar. – Morrison
olhou para o rosto de Adalberto e fingiu não saber a origem daquela lesão.

– Meu Deus, Adá. O que é isso no seu rosto?

– Um pequeno acidente doméstico que não vem ao caso. Acredito que da maneira como foi
prometido está ótimo para nós, não é mesmo? – perguntou Adalberto para os outros integrantes
da comissão, e teve a assertiva deles.

Todos sentiram um grande alívio pela maneira como a reunião havia terminado. Morrison
levantou–se, sorriu para os integrantes e apertou a mão de cada um com um abraço. Saiu pela
porta antes dos outros e seguiu rumo ao aeroporto, onde pretendia tomar um avião de volta a
Toronto para a sede da Time Same.

– Adá – Ingrid o chamou cochichando.

– Sim?

– Como ele soube que nós estávamos aqui?

– Prefiro não pensar nisso. Você sabe que ele tem mais poderes que nós.
CAPÍTULO XII

No aeroporto, ainda na sala de embarque, Morrison pegou o seu telefone para fazer uma
chamada. O objetivo para tal era afastar algumas pessoas de David. A sugestão era deixá-lo em
paz por pelo menos seis meses. Pediu também que recolhesse o aparelho de escuta que estava
na casa de Adalberto, o mesmo utilizado para ouvir os telefonemas de David, e o levasse para
Toronto na próxima viagem.

Seu interlocutor perguntou se seria necessário solicitar a retirada dos microfones da casa de
Adalberto, e a resposta foi negativa. Morrison queria concentrar todas as escutas somente em
seu escritório central.

Seu objetivo era somente deixar o tempo passar e a história esfriar antes de agirem novamente.

***

Quatro meses se passaram e David aproveitou esse tempo para refletir melhor sobre tudo o que
havia acontecido.

Durante esse período, passou a procurar locais que poderiam ter feito parte de seu passado
apagado. A cada local que visitava, um fragmento da sua memória esquecida era recuperado.

David já conseguia lembrar-se de grande parte da história, e isso era muito doloroso para ele,
pois recordava os beijos perdidos, as juras de amor e todos os planos feitos com Letícia.

Porém o que mais doía em seu coração era saber que, apesar de a história haver existido e de
ter sido muito bonita, somente ele se lembrava de alguma coisa. Letícia jamais se lembraria,
pois para ela esse tempo não existira.

Como sentia falta da companhia de Adalberto e dos seus conselhos como mentor, David voltou
a procurá-lo. Seu maior temor era descobrir o que poderia acontecer com ele ou com Letícia se
não se afastassem definitivamente.

Por muitas vezes ele teve medo da própria sombra, literalmente, pois sempre tinha a impressão
de estar sendo seguido e estava na hora de procurar o seu amigo.

David parou a motocicleta na frente do prédio onde morava Adalberto e ficou lá por alguns
minutos, pensando se estava fazendo a coisa certa.

Passado algum tempo, deixou o capacete sobre o guidão da moto e subiu para bater à porta.
Adalberto a abriu com cara de surpresa e um sorriso se formou em seu rosto.

– David! Que bom ver você!

– Bom dia, Adá.

– Bom dia, meu amigo. Posso chamá-lo de amigo? Entre, por favor.

David entrou e se sentou no mesmo sofá onde havia derrubado Adalberto quatro meses antes.

– Você me deu um belo soco, David – Adalberto sorriu.

– Quebrou alguma coisa?

– Não. Somente um corte profundo no interior da bochecha. Bastou parar o tempo e voltar para
ele desaparecer.

– Que pena – David sorriu. – Você merecia uns dentes a menos, meu amigo.

Essas palavras serviram para quebrar o gelo e os dois conversaram de forma despretensiosa por
mais de duas horas, como velhos amigos. Porém David estava esperando o momento certo para
perguntar sobre o grupo e sobre sua situação nele.

– Como estão Ingrid e Juan?

– Eles estão bem. Neste momento, na África do Sul. Os dois voltaram a namorar.

– Que boa notícia!

– Lembra-se do Lee?

– Claro que me lembro. O chinês tímido.

– Esse mesmo. Está namorando com a Kai.

– A Kai? Aquela chinesinha linda?

– Ela mesma. Começaram o namoro logo após a reunião que fizemos no dia em que você me
bateu.

– Vocês fizeram uma reunião naquele dia? – A barriga de David gelou e seu coração começou
a bater muito forte e rápido, enquanto suas pupilas se dilatavam. Aquilo não deveria ser uma
boa notícia.

– Fizemos, sim. Eu convoquei a reunião com o Iguais. Inclusive, estava para procurar você.
Precisava lhe falar sobre o que foi acordado naquele dia. Mas fiquei esperando sua cabeça
esfriar. Não queria outro corte na boca. O tempo passou e acabei aguardando que você me
procurasse.

– E o que vocês decidiram? – David estava muito apreensivo.

– Na realidade, nós nos rebelamos contra o Morrison. Praticamente exigimos que ele deixasse
você em paz e ele decidiu colocá-lo no congelamento.

– Congelamento? – David estava surpreso com a expressão. – E o que significa isso?

– Não poderia ser melhor para você. O congelamento significa que ninguém mais irá interferir
em sua vida. Você deverá continuar escrevendo os seus livros, a editora vai publicá-los e você
terá a sua vida normal.

– E os meus relacionamentos?

– Você está com alguém no momento?

– Não. Nós terminamos.

Adalberto sentiu um grande alívio. Se havia entendido bem, David não estava mais com
Letícia.

– Você e Letícia?

– O quê? Como assim? De onde você tirou isso? Eu estava namorando com a Sabrina e nós
terminamos dois dias depois que você me contou sobre Letícia. Assim que a encontrei, dei fim
ao relacionamento.

De qualquer maneira, Adalberto não precisava se preocupar, pois David estava no


congelamento e isso o colocava a salvo das ações de Morrison. Pelo menos era o que ele
imaginava.

– E você e Letícia?

– Somos ótimos amigos. Falamo-nos por telefone quase todos os dias e nos encontramos para
almoçar ou jantar pelo menos duas vezes por semana.

– Vejo que você não a esqueceu.

– Jamais, Adá, jamais.

– E então, não vai rolar nada?

– Você está louco. Faz pouco tempo que o marido dela morreu. Eu sou um estranho para ela.
Estou pisando em ovos por enquanto.

David sabia que não poderia se precipitar. Por maiores que fossem os sentimentos dele por
Letícia, deveria respeitar o luto dela, e isso poderia demorar até um ano. Mas estava munido de
paciência, pois sabia que tê-la nos seus braços era uma questão de tempo. E tempo era
justamente o que ele sabia controlar.

Adalberto sabia que David estava lá justamente para ter a informação que ele havia acabado de
passar, mas queria dizer mais alguma coisa.

– David, como você está no congelamento, não tem como participar das convenções. Porém eu
vou sempre deixá-lo a par do que for conversado e decidido nelas. Se algo mudar, você saberá
imediatamente. Mas podemos ser amigos? Voltar aos velhos tempos?

– Veja, Adá. Eu não o perdoei pelo que fez comigo, mas entendi que você foi obrigado. E nós
sabemos que os amigos têm falhas com as quais precisamos aprender a conviver. Caso você
concorde em ficar me devendo uma, mas uma bem importante, nós poderemos ser amigos
como nos velhos tempos. – David sorriu para ele e estendeu a mão. Adalberto retribuiu o gesto
com um aperto demorado.

– Volto a insistir em que tudo o que eu fiz foi para proteger você e Letícia.

– Você não me disse o que Morrison poderia fazer conosco naquele dia. Só falou que seria
algo ruim. O que poderia ser?

– Quer mesmo saber? Algo entre machucar você e matá-lo.

David engoliu em seco. Sabia que os Iguais não eram os mocinhos como Ingrid falava, mesmo
pelo comportamento dela e de Morrison, mas pensava que eram honestos e não imaginava que
poderiam matar alguém.

– Matar?

– Não se preocupe, David. Para machucar você, ele precisaria passar por nós e não vai fazer
isso, pois iremos defendê–lo.

David saiu da casa de Adalberto aliviado por saber que não corria mais nenhum risco, mas
apreensivo por saber que estava ligado à uma organização capaz de lhe fazer mal. Porém
confiava em que poderia se defender de qualquer ameaça, mesmo não sabendo por quê, mas se
sentia mais poderoso que os outros integrantes do grupo.

***

O telefone de Letícia tocou na hora do almoço, como acontecia quase todos os dias. Ela olhou
para a tela, viu a foto de quem estava ligando, abriu o seu largo sorriso e atendeu à chamada
com voz suave.

– Olá. Tudo bem com você, David?

– Estou ligando para ver se você terá tempo de almoçar comigo.

– Não, David. Hoje não almoçaremos juntos. Inclusive precisamos conversar – sua voz era
doce, porém séria –, pois faz pouco tempo que o meu marido morreu e as fofocas já
começaram na emissora. Hoje eu ouvi de meu assessor que estão falando que nós estamos
namorando, que já estávamos juntos antes do meu marido falecer e outras bobagens que você
sabe que os fofoqueiros são capazes de dizer.

– Não acredito! – exclamou David. – Esse pessoal é muito maldoso. Eles não acreditam em
amizade?

Nesse momento ele percebeu que estava cometendo um grande erro. Lembrou que um homem,
durante a conquista, deve tomar muito cuidado para que a mulher não o encare somente como
amigo. Como estava acostumado com as técnicas, pois usara todas durante o ano em que
tentou esquecer Letícia, compreendeu que aquela era a hora de mudar a abordagem com ela e
continuou a falar:

– Você está certa. Devemos tomar mais cuidado com isso. Ainda é muito cedo. Eu ligo para
você amanhã à noite, fora do expediente – e desligou o telefone.

Letícia olhou para o aparelho que, emitiu um sinal indicando que a ligação havia terminado. A
foto de David continuou na tela por algum tempo, enquanto ela imaginava o que ele quisera
dizer com ainda ser cedo. Seu coração bateu mais rápido e ela esboçou um sorriso. Mas isso a
fez sentir-se culpada. Por mais desleal que seu marido tivesse sido com ela no final do
casamento, o pai do seu filho só estava morto porque ela havia puxado aquele gatilho no
momento errado.

***

David era um hábil conquistador, mas havia prometido a si mesmo que não utilizaria nenhuma
técnica desleal com Letícia. Queria conquistá-la como havia feito da primeira vez e esperava
que ela gostasse dele pelo que era e não pelo que podia parecer. Mas aproximar–se como
amigo poderia trazer-lhe prejuízos.

Seu temor era que, caso se tornasse confidente dela, como já estava prestes a acontecer,
poderia ouvi-la falando sobre algum outro homem pelo qual se havia interessado. E isso seria a
morte para ele. Sendo assim, resolveu afastar-se de Letícia por algum tempo para provocar
nela a saudade. E foi esse o tom da visita que lhe fez naquela noite.

Letícia o recebeu na porta de sua casa com o costumeiro sorriso branco e largo. Ele entrou,
sentou-se e foi direto ao assunto:
– Vou viajar.

– O quê? Para onde?

– Pretendo escrever um livro sobre um romance que vai se passar em Paris. Por isso quero ir
para lá e viver um pouco o clima da cidade antes de começar a produzi-lo.

Letícia olhou para ele por alguns segundos com os olhos correndo de um lado para o outro,
demonstrando que estava pensando rapidamente, mas contrariada.

– Quando você vai, David?

– Depois de amanhã.

A decepção estampou-se no rosto dela.

– Depois de amanhã? Mas você resolveu isso de repente ou já o vinha planejando?

David sentiu uma gostosa sensação ao perceber que ela estava frustrada por sua viagem.

– Não, Letícia. Eu sou escritor. E, como todo escritor, tenho que aproveitar os momentos de
inspiração. Sonhei com o enredo do livro antes de ontem e resolvi viajar ontem. Já comprei as
passagens.

– Quanto tempo pretende ficar?

– Não sei ainda. Vinte dias, talvez um mês...

– Um mês? Você é louco! – ela esboçou um sorriso meio sem jeito.

– Que escritor não é? – David também sorriu.

– O que eu posso fazer para você desistir da viagem? Vou ficar sem o meu amigo.

Ele sentiu que realmente era hora de se afastar um pouco, pois já estava ficando frequente
escutar que era amigo dela e isso o estava incomodando.

– Você sabe que sou decidido. Não vou voltar atrás. Paguei uma fortuna pela passagem, pois
comprei em cima da hora.

– Já arrumou as malas?

– Sim. Estão prontinhas na minha sala.

– Então você pode ficar aqui e jantar comigo, não pode?


Aquele convite soou como música suave aos ouvidos de David. Ele não podia recusar e ficou
na casa dela até meia noite. Jantaram, conversaram e deram muitas risadas, como sempre
faziam quando se encontravam.

A sensação para David era a de que o tempo havia passado muito rápido. Não queria ir embora
e o mesmo parecia se passar na cabeça de Letícia.

Os dois caminharam até a porta. Ela estava na frente e a abriu dizendo que fazia aquilo para
que ele voltasse outras vezes.

David sorriu e retribuiu com um abraço apertado seguido de um beijo mais demorado no rosto
dela.

– Sentirei saudades, Letícia – olhou para ela com tristeza, na esperança de demonstrar que
aquilo não era somente amizade.

– Você precisa mesmo ir?

– É o meu trabalho.

– Eu também terei saudades.

– Tchau, linda.

Letícia fez uma pequena pausa, mas respondeu:

– Tchau, Dê. Boa viagem.

David saiu pela porta e entrou no carro que usara em vez da motocicleta para ir à casa dela,
pois queria estar bem penteado e sabia que não sairia em ronda naquela noite.

“Ele me chamou de linda novamente” Letícia estava com um sorriso de adolescente no rosto.
“Que sensação boa isso me dá!”

David entrou no carro, fechou a porta, ligou a chave no contato e de súbito algo lhe veio à
mente.

“Ela me chamou de Dê? Ela me chamava assim no passado!”

David abriu um grande sorriso, balançou a cabeça e saiu, não sem antes perceber que Letícia
olhava pela janela, atrás das cortinas.

***

David não conhecia Paris e aproveitou para passear pelos pontos turísticos da cidade nos seus
primeiros cinco dias de estadia. Pensou que assim Letícia sairia de sua mente por algum
tempo. Mas não foi o que aconteceu.

Além de ele não conseguir escrever uma só linha de um livro, a saudade era imensa e, mesmo
sabendo que estava contrariando todas as regras da conquista, voltou para o hotel na quinta
noite determinado.

Sabia que havia uma diferença de cinco horas entre a França e o Brasil. Então, esperou até uma
hora da manhã e telefonou para ela sem se preocupar com o que Letícia pensaria, pois aquela
não era uma conquista comum. Ele já a havia conquistado no passado e confiava em que não
seria diferente dessa vez.

“Talvez eu tenha errado vindo para cá”, pensou.

O telefone tocou várias vezes e ninguém atendeu. De início, David ficou preocupado, pois
achou que poderia ter acontecido algo com ela. Depois, uma sensação ruim de ciúme
apoderou-se da sua mente.

“Será que ela saiu?”, pensou. “Se saiu, foi com quem? Alguém da emissora que aproveitou a
minha viagem?”

Sua cabeça estava borbulhando com tantos pensamentos negativos e ele começava a ficar
aflito, pois não estava próximo o suficiente para se encontrar com ela. Foi então que sentiu que
aquela estratégia de provocar a saudade não estava dando certo, pois ele era o maior
prejudicado e seria o primeiro lado a ceder.

Tentou ligar mais uma vez, mas de novo ela não atendeu.

Deitou–se na cama e ficou mais de uma hora olhando para o teto, sem conseguir pregar os
olhos. O sono havia fugido de seu corpo e a ansiedade tomara seu lugar.

O cansaço invadiu-o após mais uma hora e David acabou sucumbindo ao sono.

No meio da noite, um som familiar começou a povoar os seus sonhos. Por alguns momentos
ele não percebeu o que era. Mas, repentinamente, um clique fez com que acordasse.

– O telefone!

David correu, todo desajeitado, até a mesa onde estava o aparelho e viu a foto de Letícia na
tela. Respirou fundo, pensou que não poderia demonstrar ciúme ou possessividade e atendeu
com a voz rouca de sono.

– Alô.

– Alô, David. É Letícia.


– Oi, Letícia. Que bom que você retornou o meu telefonema.

– Cheguei agora em casa e havia esquecido o telefone aqui. Vi que você ligou e estou
retornando. Desculpe pela hora.

– Não tem problema. –“Você pode ligar a qualquer hora”, pensou.

David só conseguia pensar onde ela estaria àquela hora. Em uma conta rápida, percebeu que
eram onze da noite no Brasil e imaginou que não deveria ser um jantar com outro homem. Não
terminaria tão cedo. Sentiu vontade de perguntar, mas se segurou.

– Liguei para saber como você está.

– Estou bem. Vou levando, não é? Estava sozinha e saí um pouco para refrescar a mente.

David se segurou mais uma vez.

– Que bom que saiu. Você tem que se divertir. – Ele apertava um dente contra o outro
instintivamente. Estava muito nervoso, mas não podia deixar transparecer.

– O que você queria, David?

– Nada. Somente conversar. Queria lhe contar os locais que visitei. Você conhece Paris?

– Sim. Já estive aí uma vez.

David pensou que não poderia perguntar com quem, pois a resposta seria: Willian.

– Aqui é muito bonito. – David resolveu usar uma de suas técnicas. – Quando você vier aqui
comigo, vou lhe mostrar uns locais diferentes que conheci.

Jogou a isca e esperou que ela fosse mordida, mas isso não aconteceu.

– Não gostaria de retornar a Paris.

David fez uma pausa enquanto pensava: “Seu burro. Você fez com que ela se lembrasse do
marido. Ou será que ela não quer vir comigo porque saiu com alguém hoje?”.

A curiosidade dele era muito grande, mas continuava se segurando e aquilo era uma grande
tortura para a sua mente.

– David, eu estive aí com o Willian. Não posso retornar. Mas poderemos ir a outros locais que
não conheço. Basta me convidar.

Um grande sorriso se abriu no rosto de David, que percebeu que estava perdendo tempo
naquela cidade. Nem poderia comentar com ela por onde havia passado. Paris jamais poderia
voltar a ser assunto na conversa deles. Uma escolha infeliz. Então resolveu abrir seu coração.

– Letícia, eu não fui honesto com você.

Ela gelou. Pensou que alguma notícia ruim viria depois daquela introdução. Talvez outra
mulher.

– Não?

– Não. Eu disse que liguei para conversar sobre os locais que visitei, mas na verdade eu estou
com saudades de você e quero voltar para o Brasil.

Ela fez uma longa pausa que o incomodou muito.

– Você está aí?

– Sim, David. Desculpe. É que estou surpresa com a sua sinceridade. Quando você pretende
regressar?

David resolveu ser mais ousado.

– Não sei. Me convide para jantar amanhã à noite. Quem sabe eu consigo chegar.

Ela deu uma risada que ele pôde perceber do outro lado da linha. Então continuou:

– Basta fazer o convite, eu escolho o restaurante.

Enquanto falava com Letícia, ele estava navegando no site da companhia aérea para ver se
havia passagem para o outro dia pela manhã. E, para sua sorte, um assento estava vago. Era
perto do banheiro, na cauda, mas não importava.

– Certo, David, então vou convidá-lo. Quer jantar comigo amanhã à noite?

– Estarei aí sem falta. Pego você em sua casa às sete. Pode ser?

– Você não vai estar cansado?

– Vou, sim, mas não tem importância.

David sabia que aquele era um grande passo, mas o tempo estava tramando contra ele. Não
poderia deixar passar nenhuma oportunidade.

– Combinado, David. Espero você amanhã.

Ele já estava quase esquecendo que ela havia saído, quando Letícia continuou a falar:
– Você não vai perguntar onde eu estive?

Ele se fez de esquecido.

– Do que você está falando?

– Não está curioso para saber aonde eu fui?

– Se você quiser me dizer... – David estava quase atravessando pelo telefone para sair na casa
dela.

– Fui à casa dos meus pais, bobinho. Sei que você ficou com ciúmes. – Letícia sorriu como
uma adolescente e desligou o telefone.

“Que danada! Ela é muito esperta. Tenho certeza de que não atendeu ao telefone de propósito,
só para me deixar ansioso.”

David deitou-se na cama tendo na face um sorriso que até provocava dor na musculatura, de
tão grande que era. Ficou assim por algumas horas e não conseguiu dormir. Estava tão ansioso
que até esqueceu que poderia parar o tempo para descansar. Porém sabia que poderia dormir
no avião durante o voo de volta.

Era hora de arrumar as malas e voltar para o Brasil. Hora de ver Letícia, e David sentia que o
mundo voltara a sorrir para ele.
CAPÍTULO XIII

A viagem de volta foi tranquila. O avião pousou no aeroporto às cinco horas da tarde, e com
isso David sabia que teria tempo para ir à sua casa e se arrumar antes de encontrar com Letícia.

Pegou um taxi e seguiu direto para casa, que já não era a mesma onde sua mãe e seu pai
moravam. David havia comprado um apartamento em um bairro próximo à casa de Letícia
dois meses antes e ainda estava terminando de mobiliá-lo.

Ao entrar, depositou a mala maior no chão e jogou a pequena sobre o sofá. Porém alguma
coisa caiu daquele móvel no chão. Era um objeto preto e pequeno, com algumas partes que
chegavam a refletir a luz com um brilho não muito intenso.

O objeto chamou a atenção de David, que o apanhou e olhou-o mais de perto. Era um
sofisticado microfone de escuta.

Sentou–se no mesmo sofá e ficou pensando no que aquilo significava. Estava muito claro que
os Iguais o estavam vigiando. Mas ele não sabia se seriam todos os membros do grupo ou
somente Morrison.

Então, parou o tempo e passou a vasculhar a área minuciosamente, mas não encontrou mais
nada.

Para não despertar suspeita, recolocou o microfone no mesmo lugar de onde havia caído, mas
sabia que a sala seria um local proibido para conversas que não fossem triviais.

Após retornar ao tempo normal, tomou um banho quente, passou o melhor perfume que havia
trazido de Paris, pois sabia que era o preferido de Letícia, e se vestiu com o seu pretenso
uniforme tradicional para essas ocasiões. Uma camiseta, o blazer e uma calça jeans estonada.

David desceu de elevador até a garagem, onde avistou as quatro vagas a que o seu apartamento
tinha direito. Uma estava ocupada por sua motocicleta, outras duas por carros esportivos e a
quarta por seu primeiro carro, que ele localizara, comprara de volta e mandara reformar
totalmente, trazendo-o à originalidade, como se tivesse acabado de sair da fábrica.

Esse foi o carro escolhido para ir até a casa de Letícia.

Ao tocar a campainha, pôde perceber que ela olhava pela janela. Após algum tempo, a porta se
abriu.
A imagem de Letícia ficou guardada na memória dele por muito tempo. Estava mais linda do
que de costume. Seu perfume invadiu rapidamente as narinas de David e provocou a
lembrança do passado, pois era o mesmo que ela costumava usar. O tradicional sorriso estava
mais largo e brilhante, e seus olhos pareciam cheios de lágrimas, exibindo um brilho que ele
não se lembrava de ter visto anteriormente.

Antes que David falasse algo, ela lhe deu um abraço e um beijo no rosto.

– Que bom que você veio.

– Como você conseguiu, Letícia?

– Conseguiu o quê?

– Ficar ainda mais linda?

Letícia ficou visivelmente envergonhada, mas seu sorriso tornou-se mais brilhante.

– Já escolheu o restaurante?

David respondeu afirmativamente, enquanto fazia uma busca rápida em sua mente por um
restaurante romântico. Por sorte, lembrou-se de um muito bonito, que não ficava longe dali e
aonde ele a levara no passado diversas vezes, pois ela gostava muito da comida.

– Vamos ao meu preferido.

– Qual?

– Surpresa.

Letícia continuou a sorrir.

– Hoje eu vim com o meu melhor carro – apontou para o seu automóvel e ela sorriu.

– Esse é o seu melhor?

– O melhor não é o mais bonito, o mais caro ou o mais veloz. Posso comprar qualquer um, mas
o melhor é aquele de que a gente gosta. E é nesse que eu quero levar você para jantar, pois foi
meu companheiro durante muitos anos. Foi meu primeiro carro.

O que David pretendia era recordar os momentos felizes que passara com ela naquele
automóvel. Queria que a noite fosse perfeita e, sem perceber, mostrou a ela que dava mais
importância aos sentimentos do que às coisas materiais.

Chegaram a um pequeno restaurante na zona oeste da cidade, onde um músico tocava piano à
meia-luz e a comida era servida ainda sobre o fogo em uma mesa que era colocada na lateral
da mesa principal. A iluminação era feita por arandelas do século XIX, e toda a decoração
trazia material musical antigo.

– Que lindo, David! Você caprichou na escolha.

– Espere só até experimentar a comida. Tenho certeza de que você vai adorar.

Sentaram-se na mesa, ele na frente dela, tomando cuidado para que nenhum dos dois ficasse de
costas para a porta. Tudo tinha que ser perfeito. Até o canto onde a mesa estava fora escolhido
por David.

Apesar de estar muito feliz com o encontro, Letícia estava visivelmente incomodada.

– Você não gostou de alguma coisa, Letícia?

– Não. Adorei tudo até agora. Só estou um pouco nervosa porque sempre tem algum fotógrafo
por perto.

– Entendo. Espere um pouco.

David se levantou e dirigiu-se ao gerente do restaurante. Ela pôde vê-lo pegando alguma coisa
do bolso e entregando-a àquele homem antes de retornar à mesa.

– O que foi isso?

– Acabei de comprar o nosso sossego. Dei uma boa gorjeta ao gerente e aos garçons e pedi
para que nos avisem caso vejam algum fotógrafo por aqui. O gerente falou que isso não é
comum, então poderemos ficar tranquilos.

Letícia sorriu novamente e lembrou que nessa noite já havia sorrido mais do que nos últimos
cinco meses.

– Posso pedir o seu prato?

– Você fará o pedido? Não posso escolher?

– Vamos fazer o seguinte: eu peço e, se você não quiser, nós pedimos outro. Tenho certeza de
que vou acertar.

– Você sabe do que eu gosto?

– Pode apostar que sim.

David abriu um sorriso, chamou o garçom e pediu exatamente o prato que ela sempre pedia
quando iam àquele restaurante, assim como o vinho que ela tanto apreciava.

Assim que o prato chegou, Letícia olhou para David surpresa, abriu o cardápio para conferir e
olhou para seu prato.

– Como você sabia do que eu mais gostei no cardápio? É algum tipo de mago?

David sorriu e respondeu:

– Intuição. Eu percebi que você é uma pessoa delicada e que gosta de carne, por isso pedi esse
prato, que tem o melhor corte de carne da casa e um tempero suave. O vinho foi consequência,
já que é o que mais se harmoniza com o seu prato.

“Se ela soubesse, acho que eu apanharia aqui mesmo”, pensou ele, sorridente. “Algum dia lhe
contarei a verdade.”

– Você não existe, querido.

“Querido? Uau!”

Não cabia em si de tanta felicidade. Parecia que finalmente o seu sonho se realizaria. Todos os
acontecimentos passavam por sua mente, desde a descoberta de suas habilidades até a
interferência que quase lhe arruinara a vida. Mas naquele momento tudo estava entrando nos
devidos lugares. Ele estava prestes a recuperar Letícia e se controlava para não demonstrar sua
ansiedade.

Letícia praticamente devorou o seu prato. Achou-o delicioso, mas também estava ansiosa.

David comeu mais devagar, pois parou várias vezes para prestar atenção ao que ela dizia, e
sabia o quanto era importante dar atenção a uma mulher.

Ao terminar, levantou-se e se dirigiu ao pianista. Ela somente o observou voltar com cara de
criança que aprontou uma.

O piano começou a tocar a música que eles costumavam dançar no passado. David se levantou
e estendeu a mão a Letícia.

– Você me daria a honra desta dança?

Letícia ficou envergonhada e feliz ao mesmo tempo.

– Você não existe, David. – Fingindo reclamar, ela se levantou, dirigiu-se a um pequeno canto
do salão do restaurante e os dois dançaram abraçados sem proferir uma única palavra. Somente
uma troca de olhares e sorrisos.
A música acabou e eles retornaram à mesa para continuar a conversa anterior à dança.

Após meia hora de conversa, David achou que já era hora de agir. Pegou a mão dela e disse:

– Você é corajosa?

– O quê?

– Teria coragem de jogar um jogo da minha infância?

– O que você está tramando, David?

– Nada. Só quero saber se você é corajosa.

– Que jogo? Pega-pega, queimada ou pula-cela? – Letícia sorriu da própria ironia.

– Não, Letícia, é um jogo muito mais sério e perigoso. – Foi a vez dele sorrir.

– Está certo. Eu topo o desafio. O que é?

David pegou uma das velas que estavam iluminando a mesa, apagou-a, atravessou um palito
no centro dela e a rodou sobre um prato virado ao contrário.

– Veja. Cada um poderá rodar esta vela. O pavio será a seta. Quem ele apontar terá a obrigação
de responder, com sinceridade e sem mentira, à pergunta do outro.

Letícia sentiu um frio na barriga, mas sabia que nada de mal poderia vir de David. Já confiava
muito nele.

– Posso começar, querido?

“Novamente querido? Uau de novo”, pensou David.

– Claro que pode. As mulheres sempre em primeiro lugar.

Letícia rodou a vela que, após duas voltas, parou com o pavio apontando para David.

– Aha! É minha vez de perguntar. – Ela começou com uma pergunta inocente. – Qual é a sua
cor preferida?

– Azul. Agora é minha vez de rodar a vela.

– Não. Vamos fazer de maneira mais justa – disse Letícia, enquanto segurava a mão dele. –
Estamos somente em dois. Cada um responde a uma pergunta do outro para o jogo ficar mais
equilibrado.
David gostou da iniciativa dela.

– Está certo. Então, eu não vou ser bonzinho. Você está interessada em alguém?

– Sim – ela respondeu sem hesitar.

– Quem?

– Duas perguntas? Você está roubando. Essa pergunta está anulada e você não poderá mais
fazê–la. – Letícia apertou a mão dele e riu como uma criança.

– Está bem. A sua vez agora.

– Eu também não vou ser boazinha então. Você saiu com alguém em Paris?

David olhou para ela espantando.

– Claro que não!

– Claro que não? Mas você não é comprometido, ou é?

– Claro que não pela segunda vez. Não gostei dessa pergunta. Agora é a minha vez e vou me
vingar. Qual é o seu tipo de homem?

Letícia foi pega de surpresa e pensou por algum tempo. Não poderia dar características físicas.

– Para mim o homem deve ser gentil, saber do que a gente gosta, prestativo, ousado,
engraçado...

– Um príncipe encantado?

– É. Pode pensar assim.

– Eles não existem. – David sorriu para ela.

– Existem sim. Um dia irei lhe provar. – Ela também sorriu.

– Sua vez, Letícia.

– Muito bem. Vou devolver o abacaxi. Qual o seu tipo de mulher?

Era o momento que David esperava e pelo qual ele iniciou o jogo. Parou, olhou para ela, fez
suspense e perguntou sério.

– Posso pensar um pouco?


– Não. É um jogo aberto. Se até agora você não sabe qual é o seu tipo de mulher, jamais
saberá.

– Bom, deixe-me ver. Uma mulher deve ter beleza, inteligência, simpatia e desenvoltura. Além
disso, sou muito exigente nos atributos físicos. Se não for como eu penso, não tem nenhuma
chance comigo.

Letícia estranhou a resposta.

– Mas como seriam esses atributos físicos – ela estava apreensiva e curiosa.

– É difícil de explicar. São detalhes que chamam a atenção de um homem. Todos eles juntos
fazem de uma mulher a mulher perfeita.

– Você está me deixando curiosa. Como seria isso? – Ela já estava se sentindo excluída da lista
dele.

– Não consigo explicar. Mas tem uma atriz que tem todos os atributos que eu adoro. Por ela eu
faria qualquer coisa. Deixe lhe mostrar uma foto que tenho dela no meu celular.

– Você anda com uma foto dela no seu aparelho?

Enquanto fingia procurar a foto no aparelho, ele disse em voz mais baixa e descompromissada:

– Claro que sim. Se eu pudesse passaria todos os dias da minha vida olhando para o rosto dela.
É a mulher mais perfeita que conheço.

Letícia se sentiu uma carta fora do baralho. “Ele é apaixonado por uma atriz. Caramba! Todo
esse tempo era só amizade mesmo?”, pensou, desiludida com os fatos.

David ligou a câmera frontal do seu celular e entregou–o a ela, dizendo:

– É esta. A mulher mais linda da face da terra.

Ao pegar o aparelho na mão, Letícia viu nele a sua própria imagem. O alívio foi tão grande que
ela não se segurou.

– Você me assustou, David!

Letícia nem percebera que ele pegara a sua cadeira e se sentara ao seu lado enquanto ela
olhava o aparelho.

– Letícia. – A voz dele soou pausadamente no ouvido dela. – Um pássaro não voa. O céu o
levita. É assim que eu me sinto quando estou ao seu lado.
Ela ouviu as palavras dele com um olhar sério e os olhos correndo de um lado para o outro. Ao
fim, abriu o seu grande e alvo sorriso, que, para David, iluminou todo o salão do restaurante.

Ele aproximou sua boca da dela e, no momento em que ia lhe dar um beijo, Letícia virou o
rosto.

O mundo desabou naquele momento para David. “O que eu fiz de errado?”, pensou.

– Aqui não, Dê. Alguém pode fotografar e amanhã estará em todos os jornais.

Então David descobriu onde havia errado. Mas pensou rapidamente e logo consertou a
situação. Deu um sorriso, levantou-se e voltou para o seu lugar. Pegou um guardanapo e
escreveu algo.

– Quero que você assine isto para mim.

Ela achou estranha a atitude dele, mas pegou o papel para ler o que estava escrito.

“Vale um beijo”.

Letícia olhou para ele fixamente, pegou o guardanapo, levou-o lentamente à boca e imprimiu
nele o seu batom.

– Esta assinatura vale para você?

– Com certeza!

Letícia pegou na mão de David e disse que estava tudo ótimo, que finalmente ela voltara a ser
feliz, mas estava na hora de ir embora, pois tinha um filho pequeno que havia ficado com a
babá e ela não podia se ausentar tanto tempo.

Os dois saíram do restaurante e David dirigiu vagarosamente até a casa dela. Queria que esse
momento não terminasse jamais.

Ao chegar, ela o convidou para entrar e tomar um último café.

– Mas será somente um café. Você aceita?

– Por que eu recusaria?

Entraram e, ao chegar à sala, David olhou para os lados a fim de observar se havia alguém.
Então, colocou a mão no bolso e retirou um papel.

– Tome, Letícia. É seu.

Ela pegou o papel. Era o guardanapo do restaurante.


– Dívida é dívida.

David aproximou-se dela. Letícia não esperou e tomou a iniciativa do beijo.

Para David, aquele foi um momento de recordação único. Conseguiu se lembrar de todo o
passado, dos bons e os maus momentos, e sentiu seu corpo levitar como um pássaro no céu.

Ficaram juntos por mais uma hora, até a babá notar que já tinham chegado e avisar que o
pequeno David havia dormido havia duas horas.

Letícia o acompanhou até a porta, e antes do último beijo lhe disse como seria o
relacionamento dos dois.

– Dê, você sabe que não posso me expor agora, não sabe?

– Eu imagino. A imprensa sempre está em cima para qualquer furo de reportagem. E no nosso
caso somos dois perseguidos por eles, sempre à procura de novidades.

– Nos próximos meses vamos ter de nos comportar como adolescentes que os pais proibiriam
de namorar. – Ela sorriu como uma criança.

– Não se preocupe, linda. Ninguém ficará sabendo. Nem mesmo os meus amigos.

– Principalmente eles, Dê. Finja que é somente meu amigo, que tudo continua como antes.

David deu mais um beijo em Letícia, que abriu a porta para que ele se retirasse.
CAPÍTULO XIV

Adalberto estava na sala de embarque internacional do aeroporto com uma passagem de ida e
volta para Toronto. Seu destino era o centro financeiro, onde ficava a sede da Time Same.

Ele sabia que Morrison estava em missão de carregamento como um mensageiro comum em
uma viagem para a Austrália e que demoraria pelo menos uma semana para retornar. Essa era a
sua oportunidade.

Enquanto estava sentado, uma mulher se aproximou dele e o reconheceu.

– O senhor não é o pintor A. de Sá?

– Sim, em pessoa. – Ele sorriu amigavelmente.

– Sou colecionadora de seus quadros e uma grande fã sua.

Adalberto estava beirando os cinquenta anos, e aquela mulher lhe pareceu ter por volta de
quarenta. Era muito bonita, pele morena, cabelos encaracolados, olhos negros que
contrastavam com os grandes lábios vermelhos. Seu sorriso imediatamente chamou a atenção
dele.

– Fico muito feliz em conhecer uma fã. Gosto muito de minhas pinturas e meu objetivo é que
os outros também as apreciem.

– O senhor também vai para o Canadá neste voo? – Ela mostrou sua passagem e recebeu uma
resposta inesperada dele.

– Espero que o Senhor vá conosco sim, pois eu também vou e gostaria de estar protegido.

Sorridente, Adalberto esbanjou simpatia com aquela mulher. O sorriso permaneceu em seu
rosto durante os vinte minutos que conversaram. Seu nome era Meire e ele olhou várias vezes
para a mão dela a fim de se certificar de que não havia nenhuma aliança.

Após embarcarem, descobriram que sentariam em assentos muito distantes e isso deixou
Adalberto triste.

Mas ele não se deu por vencido. Levantou-se, dirigiu-se a um senhor que estava sentado ao
lado de Meire e observou que ele tinha uma grande aliança na mão esquerda.

– Senhor.
– Pois não, meu jovem.

– Como o senhor conheceu sua esposa?

– Não entendi a sua pergunta. Qual é a sua dúvida? – Aquele senhor chegou a se assustar um
pouco com a pergunta de Adalberto.

– Simples curiosidade. Ela – apontou para Meire – me disse que o senhor a teria conhecido em
um salão de baile e eu disse que fora em seu trabalho. Sendo assim, fizemos uma aposta. Qual
dos dois acertou?

Meire olhou para Adalberto espantada e sorriu.

– Meu jovem, esta bela moça acertou. Eu conheci minha esposa em um salão de baile numa
cidade do interior.

– Vejo que o senhor quase não a conheceu. – Adalberto sorriu.

– Como assim?

– Já imaginou se não tivesse ido ao baile? Ou se lá no baile não a visse do outro lado do salão e
não a tirasse para dançar?

O homem sorriu.

– Tem razão, meu jovem. Minha vida teria sido triste. Minha esposa e meus filhos são tudo
para mim.

– Veja, meu senhor. Eu conheci esta moça hoje na sala de embarque – apontou novamente para
Meire. – Mas, se o senhor não trocar de lugar comigo, pois tive o azar de sentar longe dela,
talvez eu esteja perdendo a grande oportunidade de conhecer minha futura esposa. O senhor
faria essa gentileza?

Meire e o senhor ao seu lado riram muito da ousadia de Adalberto e o homem levantou-se do
assento.

– Eu jamais iria impedir você de conhecer sua futura esposa. Fique à vontade. Vamos trocar de
assento. – E saiu balançando a cabeça negativamente e sorrindo.

Adalberto sentou-se ao lado de Meire, afivelou o cinto de segurança, ajeitou a camisa e o


cabelo, e só então olhou para ela, estendendo-lhe a mão.

– Prazer. A. de Sá.

Meire riu bastante de sua atitude e eles conversaram durante todo o voo de ida.
Ao saírem da sala de desembarque, Adalberto já sabia que Meire trabalhava no Brasil em uma
empresa canadense e que, a cada dois meses, passava uma semana no Canadá treinando o
pessoal de base. Descobriu também que ela tinha quarenta e um anos e havia sido casada por
dez, tendo um filho de nove anos e outro de oito. Muitas outras informações foram trocadas,
mas as mais importantes foram as que ele gravou na memória.

Adalberto se despediu de Meire no aeroporto e eles combinaram de jantar juntos dentro de


uma semana. Ele iria voltar no dia seguinte e ela não teria tempo para isso enquanto estivesse
no Canadá.

A noite passou rápido para Adalberto, que ficou no hotel aguardando o dia seguinte, quando
iria para a sua empresa.

Às seis horas, Adalberto já estava acordado e tomando banho. Tomou o café da manhã cedo e
se dirigiu para a sede da Time Same, um prédio imponente no centro empresarial de Toronto.

– Bom dia, senhor Adalberto – disse a recepcionista da empresa.

– Bom dia, Hellen. Morrison está? – Ele já sabia a resposta.

– Não. Ele está em viagem para nossa filial na Austrália.

– Certo. Vou até a minha sala para ver alguns papéis. Faz tempo que não venho aqui. Tem
alguma coisa para mim aí? – apontou para a caixa de correspondência.

– Não senhor – respondeu Hellen.

A sala de Adalberto ficava ao lado da de Morrison. Porém ele quase não ia lá. No máximo uma
vez a cada dois meses fazia uma visita à empresa para ver como as coisas estavam andando e,
porventura, assinar algum contrato.

Dessa vez era diferente. Ele não estava preocupado em entrar na sua sala, mas na vizinha.

Adalberto cruzou a porta da sala de Morrison olhando para os lados. Sabia que naquele
corredor não havia câmeras, pois o seu chefe queria assim para que tivesse um local onde
pudesse parar o tempo sem ser filmado. A privacidade para os Iguais era muito importante.

No fundo da sala havia um piso falso que Adalberto conhecia. Ele o havia visto certa vez por
um descuido de Morrison, que o deixara aberto, e sabia que embaixo do piso havia um cofre
com uma combinação numérica.

“Vamos ver se foi útil decorar a senha de desbloqueio do aparelho telefônico e a do cartão de
crédito dele.” – Sabia que poderia usar isso no futuro, por isso sempre olhava com o canto dos
olhos quando Morrison desbloqueava alguma senha ou pagava algo com o cartão.
Primeiro ele tentou a senha do desbloqueio do aparelho, mas ela não funcionou. Uma
mensagem apareceu dizendo que a senha estava incorreta e que ele deveria digitar novamente.
E foi o que Adalberto fez. Utilizou a senha do cartão de crédito e, para seu espanto, o cofre se
abriu.

“Ele é o terror dos hackers” – ironizou em pensamento.

No interior do cofre havia muitos papéis. A maior parte se relacionava com a empresa, com
planos de entregas de materiais que ele mesmo levara várias vezes para outros países ou
mesmo alguns com planos estranhos. Adalberto não deu muita importância a esses papéis e até
parou de olhá-los na metade do bolo. Mas uma mídia de armazenamento externo chamou-lhe a
atenção.

“Pode estar aqui.”

Pegou-a, levou-a à sua sala e colocou-a em seu computador. Ao abrir os arquivos, ficou
espantado. Havia ali muitas informações, justamente as que ele procurava.

“Vou copiar isto para mim e devolver a mídia ao cofre. Não quero que ele desconfie de nada.”

Passou mais de uma hora copiando os arquivos. Não parou o tempo em nenhuma ocasião,
porque não queria que Morrison sentisse que ele havia feito isso em Toronto. Teria que se
explicar e não acharia uma boa desculpa.

Com os arquivos copiados, devolveu a mídia ao cofre e o trancou, tomando o cuidado de


deixar tudo como antes; e, para que ninguém na empresa achasse suas atitudes estranhas,
passou o resto do dia visitando os funcionários, lendo memorandos, assinando tudo o que
precisava de sua assinatura e mantendo a rotina que sempre seguia quando estava lá.

Voltou então ao hotel e passou a noite lendo o que mais lhe interessava. Percebeu que muitas
ações do Morrison eram explicadas ali nos arquivos.

“O Morrison me disse que não existiam registros que explicassem o que somos e porque
somos assim. Porém isto explica tudo. É muito interessante.”

No dia seguinte, após uma noite em claro, Adalberto deletou todos os arquivos de sua mídia
para que não ficassem provas de que os havia copiado. Não havia necessidade. Estavam todos
em sua mente e eram muito fáceis de memorizar.

Dirigiu-se para o aeroporto e embarcou normalmente no avião, como sempre fazia quando ia a
Toronto. Fez questão de seguir os mesmos passos de sempre. Qualquer mudança despertaria
suspeitas. A única diferença era que dessa vez não tinha nenhum pacote para levar ao Brasil.
Isso estava a cargo de seu chefe, conforme ele mesmo prometera, e era um grande alívio para
Adalberto.
Dentro do avião, vários pensamentos lhe passaram pela cabeça. Sabia que deveria contar o seu
segredo com relação a Morrison aos Iguais que lhe fossem mais próximos, e um desses
integrantes era o David, principalmente porque ele e Letícia corriam perigo e ele já sabia por
quê.

Adalberto recostou sua poltrona quando o avião estava em voo de cruzeiro e continuou
pensando, mas já não era mais nos Iguais nem em David. Estava imaginando como seria a vida
de casado, com filhos e a rotina de uma pessoa normal. Antes de dormir, pensou que tudo isso
seria muito bom se fosse com Meire.

Pela primeira vez Adalberto sentiu algo diferente por uma mulher. Uma atração muito forte
que ele não costumava ter por suas conquistas. E essa sensação o acompanhou até a chegada
ao Brasil.

“Faltam quatro dias para a Meire voltar. Não vou deixar que isso esfrie. Assim que ela chegar,
ligarei convidando-a a sair comigo. Espero que ela aceite.” – Adalberto mostrava um leve
sorriso na face enquanto carregava as malas para fora do aeroporto.

***

Morrison estava na Austrália e quem o acompanhava era Shang, um chinês com os cabelos
sempre despenteados e o olhar nervoso.

– Shang, você nunca relaxa?

– Mesmo sabendo que não há perigo de sermos pegos nessas viagens, sempre fico nervoso. Por
isso, prefiro que você as faça ou os outros integrantes.

– Não há motivo, Shang. Você viu como passamos facilmente pela alfândega sem sermos
incomodados. Você mesmo já fez isso algumas dezenas de vezes.

Morrison se referia ao carregamento que, durante um bom período de tempo, os Iguais foram
obrigados a cumprir. Ele os denominou mensageiros e exigia que levassem pacotes para outros
países e se encontrassem com outras pessoas, não Iguais, denominadas coletores.

E dessa vez não foi diferente. Os dois chegaram a uma casa em um bairro menos abastado de
Sydney e se encontraram com John, um coletor.

– Como está, John. – Morrison o saudou com um aperto de mãos seguido de um abraço.

– Você trouxe quanto?

– Cinco quilos, conforme combinado.

– Concentrada?
– Foi o prometido, não foi? Minha palavra, minha honra. Você sabe disso.

– Quem é esse chinês com você?

– Ora, este é meu braço direito, o Shang. E está me auxiliando nos carregamentos.

John retirou um pequeno estilete do bolso, fez um corte transversal no pacote, de onde retirou
um pouco de pó branco, e o experimentou.

– Certo, Morrison. A qualidade está boa. Continue trazendo esses carregamentos regularmente.
Mande os seus meninos. Mas não traga somente cinco quilos. Se é para se arriscar com
cocaína, traga pelo menos o dobro.

– Por enquanto seremos somente o Shang e eu. Os outros não participarão.

– Isso é com vocês. Devo depositar o dinheiro naquela mesma conta?

– Isso continua igual. Quando os meninos voltarem à ativa, eu lhe aviso. Porém gosto de
lembrar aos meus clientes: sua palavra, sua honra. Espero o dinheiro depositado até amanhã.

Morrison e Shang saíram da casa e seguiram para o hotel, enquanto John pensava consigo:

“Eu não atrasaria o pagamento. Até hoje me lembro de como encontraram o corpo de Antony
depois que ele tentou dar um golpe nesse grupo.”

***

Cinco dias se passaram e Adalberto estava impaciente. Já era hora do almoço quando ele
pegou o telefone e ligou para Meire a fim convidá-la a jantar.

– Olá, Meire. Lembra-se de mim? Aquele pintor maluco do avião.

– Como iria me esquecer? Como você está?

Ele pode sentir, pela voz, que ela sorria.

– Estou bem e quero convidá-la para um jantar esta noite. Você gostaria de continuar a
conversa do avião?

– Claro que sim. Você tem o meu endereço no cartão que lhe dei. A que horas me pega?

– Posso passar na sua casa às 8h30. Está bem para você?

– Combinado.

Ela não estava tão apreensiva com o encontro como Adalberto. Porém tinha as suas razões, que
eram dois filhos pequenos e uma grande desilusão amorosa com o ex-marido. Havia muito
tempo que ela não acreditava mais em amor. Além disso, havia algo maior que Adalberto não
estava sabendo.

Os dois se encontraram e foram a um restaurante italiano simples, já que ela havia dito que
gostava muito de massa, oportunidade para um elogio de Adalberto perguntando como uma
mulher que gostava tanto de comida italiana conseguia manter um corpo tão em forma como o
dela.

A noite foi muito boa. Os dois se divertiram, contaram fatos engraçados de suas vidas e
aproveitaram para se conhecerem melhor. E Adalberto sabia como conquistá-la. Além de
manter os olhos sempre atentos ao que ela falava, fazia perguntas sobre sua vida e seus filhos,
o que para uma mãe é muito importante. Ela pensou que aquele talvez pudesse ser o começo de
um relacionamento duradouro, apesar de saber que existia algo que poderia impedi-lo.

Adalberto levou-a para casa e Meire o convidou para entrar e ver os quadros expostos em sua
sala. Ele entrou e ficou muito lisonjeado ao saber que ela possuía uma boa coleção das suas
obras. Era uma verdadeira fã de seu trabalho. E ficou mais feliz ainda ao saber que o ex-
marido de Meire os odiava.

Adalberto foi para casa pensando que talvez estivesse na hora de mudar de vida. Talvez essa
fosse a mulher que ele havia procurado por tanto tempo e pela qual ele estava disposto a lutar
contra a organização. Estava somente procurando a felicidade, que na realidade nunca fizera
parte de sua vida, apesar de ser um grande conquistador.
CAPÍTULO XV

David estava vivendo os melhores dias de sua vida após a interferência do grupo, que mudou a
sua história.

Podia sentir que Letícia estava apaixonada, e os dois se comportavam como adolescentes,
sempre se encontrando escondidos dos amigos e pais. Ela ainda tinha que esconder o
relacionamento da babá de seu filho, que já estava estranhando a quantidade de vezes que
Letícia saía com David.

Apenas uma semana se havia passado, mas os encontros eram tão intensos que Letícia tinha a
impressão de que eles já estavam juntos havia anos.

Naquele dia, porém, à hora do almoço, David não telefonou para ela. Estava ocupado com a
visita do amigo Adalberto.

– Olá, David. – disse Adalberto quando ele atendeu a porta.

– Olá, Adá. O que faz aqui?

– Precisamos conversar.

David fez um gesto para ele ficar em silêncio e apontou para o sofá da sala. Então saiu de casa
e, quando já estava a alguns metros da porta, falou:

– Tem uma escuta em minha casa. Achei-a há uma semana e não a retirei para não despertar
suspeitas.

– Eu sei, David. Eu a havia colocado.

– O quê? Você?

David olhou para ele com raiva e pensou por um momento.

– Já sei. Foi Morrison que mandou, não foi?

– Sim. Foi ele, e por isso que precisamos conversar. Vamos até uma praça ou um parque onde
não há problemas com escutas. Tenho algo grave a lhe contar.

– Mais coisas? Isso não acaba nunca?


Os dois montaram em suas motos e foram até um grande parque que ficava na zona oeste da
cidade.

Chegando lá, desceram e caminharam até um banco que ficava em um local visível, na beira de
um grande lago, porém longe dos ouvidos de curiosos.

– Aqui estamos, Adá. O que você tem para me contar?

– Tudo. Quando eu lhe falei sobre Letícia, achei que estava contando metade da história, mas
era muito menos que isso. Eu descobri tudo a nosso respeito.

– Descobriu tudo? Como descobriu?

– Fui até a Time Same e abri um cofre do Morrison. Sabia que ele tinha informações
importantes que estava escondendo de nós. Mas não sabia quais eram. E essas informações
explicam por que ele não queria ver você e Letícia juntos.

– Pelo mesmo motivo que não quer ver nenhum de nós namorando sério ou casando, não é?

– Não, David. É outro problema que lhe vou contar. Mas, continuando, eu peguei uma mídia
que tinha muitos arquivos e os copiei. Depois fui para o hotel e passei a noite lendo tudo. Era
sobre a nossa origem. Explicava por que somos assim.

– Você sabe por quê?

– Sei sim, e é genético.

– Genético? Explique-se melhor. – David estava impaciente.

– Sabe, David, desde o começo a raça humana é dividida basicamente em duas linhagens.
Hoje, praticamente todos os humanos são misturados, mas alguns não.

– Nós?

– Nós e muitos outros, mas somos uma pequena porcentagem.

– Como assim? – A curiosidade de David estava se transformando em ansiedade.

– Deixe-me explicar com calma para você entender, mas é simples. As duas linhagens se
misturaram ao longo dos tempos mas, como é uma diferença genética, de vez em quando um
humano nasce puro para uma das linhagens. No documento eram chamadas de linhagem “S” e
linhagem “M”.

– Interessante. E a qual delas pertencemos?


– Somos pertencentes à linhagem “S”.

– Mas, se existem outros puros, por que não são todos Iguais como nós?

– Essa é a questão a que os nossos antepassados demoraram para responder, mas chegaram à
conclusão de que, quando há a coincidência de ocorrerem dez cruzamentos consecutivos entre
linhagens “S” puras, os Iguais nascem.

– Somos a décima geração consecutiva da linhagem “S”?

– Sim e não. Eu sou. Você é da décima primeira. Estava nos documentos.

– E todos temos as mesmas habilidades?

– Também não. Os filhos da décima primeira têm mais habilidades que os da décima. E o
Morrison também é da décima primeira.

– Como assim?

– Eu consigo parar o tempo e voltar no tempo. Porém vocês, conseguem retomar o tempo que
nós paramos, como você fez em sua casa certa vez. Têm sensibilidade para sentir quem parou
o tempo e ainda, conseguem voltar no tempo sobre o tempo.

– Hã? O que é isso?

– Se eu voltar no tempo, você consegue ir atrás de mim e, se quiser, pode até voltar antes de
mim. Para vocês, é como se fosse um corredor onde ambos entram e cada um corre para onde
quiser.

– São essas as diferenças?

– Tem mais uma. Se eu parar o tempo, você consegue me parar dentro dessa pausa. Você pode
parar o tempo dentro da pausa do tempo.

– Nós sobrepomos os poderes, não é? Mas por que eu não consigo fazer isso?

– Porque eu não sabia que você poderia fazer e não lhe ensinei.

– E o Morrison usa isso para controlar vocês.

– Ele controla mais do que você imagina.

– Como ele os controla? O que mais ele faz com os membros do grupo?

– O Morrison é um problema à parte. Como ele tem mais poderes que nós, consegue eliminar
um Igual com muita facilidade. Pense bem. Se ele quiser, aproveita quando eu parei o meu
tempo e para sobre ele. Com isso eu fico imobilizado e ele pode fazer o que quiser. Inclusive
me matar.

– Mas o que ele quer de vocês? Por que os controla dessa maneira e por que não tentou me
controlar?

– Ele pensou em envolver você nos negócios. Mas nós conseguimos adiar essa ideia. E, depois
que nos rebelamos, ele desistiu de você porque percebeu que era a única maneira de não perder
todo o grupo.

David ficou olhando para Adalberto tentando ligar todos os fatos.

– Você ainda não me falou que negócios são esses de que vocês participam.

– David. Preste atenção. Nós não somos mesmo os mocinhos. Somos os bandidos dessa
história. Antes havia vários de nós. Talvez uma centena, e nós fundamos a Time Same como
fachada. Todos trabalhavam pelo bem da humanidade. Sabíamos que deveríamos usar as
nossas habilidades para o bem.

– Uma centena? E o que aconteceu com os outros?

– Todos mortos.

– Como?

– Depois que fundaram a Time Same, o Morrison apareceu e começou a assumir o controle de
tudo. Ele é muito persuasivo e conseguia sempre convencer a todos que seria o melhor
presidente da organização. Mas eu nunca concordei com isso.

Adalberto fez uma pausa, esfregou as mãos e respirou fundo para continuar sua explanação.

– Nessa época a Time Same estava muito bem de finanças. Mas ele achou que nós estávamos
ganhando pouco dinheiro pelo que fazíamos. Morrison sempre pareceu muito ambicioso.
Então resolveu fazer retiradas mensais maiores do que a capacidade da empresa permitia.

– Nenhuma empresa aguenta isso – observou David.

– Não mesmo. As contas começaram a se acumular e estávamos prestes a tirar Morrison do


poder quando ele apareceu com uma quantidade enorme de dinheiro para a Time Same.
Ninguém sabia a origem, mas aceitaram. Depois ficamos sabendo que havia sido furtada do
banco central de uma ilha, de um paraíso fiscal.

– E ele usou o argumento de que esse dinheiro já era roubado, não foi isso?

– Exatamente isso, David. Ele convenceu alguns de que poderíamos fazer coisas desse tipo que
seríamos como Robin Hood, roubando dos ricos para dar aos pobres. Mas os pobres éramos
nós mesmos. E muitos de nós passamos a não concordar. Um a um, eles foram sumindo e, não
raro, seus corpos eram achados com um tiro na cabeça.

– Impressionante! – David estava com a mão no queixo, pensando para processar todas as
informações.

– Como os bancos desses locais estavam sofrendo furtos sucessivos e inexplicáveis, seus
diretores se uniram e montaram uma força de segurança nunca vista antes no setor. Os cofres
passaram a ter cinco níveis de portas e cada uma deveria ser aberta em um tempo
predeterminado por duas pessoas diferentes.

– Eles complicaram a vida do Morrison.

– Isso mesmo. Então ele percebeu que transportar drogas era muito mais simples e gerava uma
receita muito maior. Foi assim que ele conheceu o mundo do crime e passou a fazer parte dele.

– Então aquele pacote que você trouxe de Lisboa alegando ser eletrônicos era na verdade droga
ilícita?

– Eu não me orgulho disso. – Adalberto olhou para o chão e seus olhos se encheram de
lágrimas. – Eu sei que as drogas prejudicam muitas famílias e não queria participar disso.

– E por que participou?

– Medo, David. Morrison me chamou em uma sala isolada na Time Same e perguntou se eu
queria continuar vivo. Disse que, se eu não quisesse, ele resolveria ali mesmo. Mas, se eu
desse valor à minha vida, serviria de mensageiro para ele sem reclamar. Por isso eu aceitei.

David olhou para ele e colocou a mão esquerda sobre seu ombro direito.

– É, Adá. Eu mesmo não sei o que teria feito. Não o culpo. Mas vocês participam de mais
algum tipo de crime?

– Não. Nós não. Porém sabemos que o Morrison anda com pessoas envolvidas em crimes
grandes. Provavelmente ele participa deles. E o Shang é seu braço direito. Está sempre com ele
nas viagens mais estranhas.

– Tem razão. Ele parece meio esquizofrênico, não parece?

– Ele é o Igual mais estranho de todos. – Adalberto conseguiu esboçar um sorriso.

– Então o Morrison não quer que os Iguais tenham envolvimento emocional para que seus
pares não atrapalhem os negócios, não é mesmo?
– No nosso caso, sim.

– E no meu caso? O que ele tem contra Letícia?

– Lembra-se do que eu lhe falei das linhagens?

– Sim. A linhagem “S” e a “M”. Espera um pouco. A Letícia é uma Igual também?

– Não. Ela não. Caso contrário, você já teria percebido. Ela jamais conseguiria esconder algo
assim de você. Letícia nem sabe que ela é pura e nem imagina que existam duas linhagens.

– Não estou entendendo. Então, por que o Morrison tem essa fixação com ela. Será que está
apaixonado?

Adalberto deu uma gargalhada.

– Claro que não, meu amigo. Aquele coração frio só gosta de poder. Eu nunca o vi com
alguém mais do que três dias. E, se estivesse apaixonado por ela, já teria investido sobre
Letícia.

– Então o que pode ser?

– A linhagem “M” produz humanos muito inteligentes, e ela é uma pura de linhagem “M”.

– Eu já havia notado que sua inteligência é acima da média.

– E não é só isso. No documento havia um relatório sobre ela. Sua árvore genealógica... eu não
lhe disse. Ele tem a árvore genealógica de todos nós. Mas, voltando, sua árvore genealógica
mostra que ela é uma linhagem “M” pura de décima geração. Ela é muito inteligente.

– Assim você me deixa mais feliz. – David sorriu.

– Mas esse é o problema. O Morrison tinha planos de deixá–lo sem desenvolver seus poderes,
assim poderia controlá-lo e você não seria uma ameaça. Por isso me colocou como mentor.
Mas, quando você se aproximou de Letícia, ele percebeu que vocês poderiam ter um filho, e
esse filho seria a mistura de dois puros de décima e décima primeira geração.

– E daí?

– Havia um relatório de casos assim que aconteceram no passado. O resultado é uma união das
habilidades além da soma de gerações. Ou seja, seu filho teria a união das habilidades do
tempo e da inteligência e seria de décima segunda geração. Seu poder sobrepujaria o de
Morrison e isso seria uma grande ameaça para ele.

– Ele vai ser muito poderoso.


– Vai?

– Sim. Eu vou ter esse filho.

– Você vai desafiar o Morrison?

– Eu não vou desistir do meu amor por Letícia e, se ela quiser outro filho, nós o teremos...
Espere um pouco. Eu não entendi uma coisa. Meus irmãos também são de décima primeira
geração, mas não têm o meu poder.

– Como eu lhe disse, é genético. Mesmo sendo de gerações puras e estando na etapa certa, os
filhos podem não ter o poder. É como duas pessoas de olhos castanhos terem um filho de olho
azul. Entendeu?

– Entendi. E minha mãe ou meu pai? Um deles é de décima geração.

– Os dois. Mas eles não tem as habilidades.

– Por que você está me contando tudo isso, Adá?

– Não está claro? Para você saber que corre perigo. Não só você, mas a Letícia também.

– Adá, essa história tem um furo.

– Qual? – Adalberto ficou curioso.

– Se eu fosse o Morrison, simplesmente voltaria no tempo e mataria a Letícia ou mesmo a


mim.

– Eu também pensei nisso, mas os arquivos também revelavam essa parte do problema. Se um
Igual voltar em um tempo muito distante para eliminar alguém, o distúrbio que ele vai causar
no equilíbrio pode ser tão grande e imprevisível que ele mesmo poderá ser eliminado. Existem
relatos a esse respeito, e por isso o Morrison nunca arriscou.

– Mas ele poderia mandar alguém fazer o serviço.

– A mudança no futuro seria imprevisível e ele mesmo poderia não estar aqui ou não participar
do grupo. É muito arriscado modificar tanto assim o passado.

– Mas ele pode voltar em um tempo mais recente e fazer isso, não pode?

– É impressionante como pensamos as mesmas coisas, mas em um tempo mais recente sua
amada já seria uma celebridade. A morte dela seria investigada ao máximo, várias câmeras de
segurança poderiam ser vistoriadas e tudo isso se mostraria muito arriscado. Se fosse para
fazer isso, ele não precisaria voltar no tempo. Poderia fazer agora mesmo.
– Então você acha que corremos riscos?

– Pode ser que o Morrison desista de tudo isso. Mesmo porque seu filho somente o ameaçaria
quando ele já estivesse muito velho.

– Quantos anos ele tem?

– Não sabemos. Ele aparenta uns sessenta anos, mas pode ter muito mais. Temos relatos de
Iguais que viveram mais de cento e vinte anos.

David levantou-se do banco e andou um pouco enquanto pensava em tudo o que Adalberto
havia lhe falado. Por duas vezes olhou para o seu amigo com pena de tudo o que ela havia
passado e, quando voltou a sentar-se, avisou Adalberto de sua decisão.

– Eu não vou me preocupar com ele. É certo que não baixarei a guarda, mas não posso desistir
de Letícia. Não agora.

Adalberto olhou para ele com desconfiança e sorriu.

– Vocês estão namorando, não estão?

David não respondeu. Em vez disso, fez outra pergunta.

– Adá, eu sei que você está me contando tudo isso para me ajudar. Mas também sei que é
muito arriscado para você. Então, o que mais tem por trás disso? Por que realmente você está
me contando toda essa história?

– Vou ser sincero com você, David. Eu quero que tudo isso termine. No voo para Toronto eu
conheci uma garota. Ela é a garota dos meus sonhos. É a minha Letícia Lira. – Ele sorriu junto
com David?

– Você está apaixonado? Caramba! Você está apaixonado!

Adalberto demonstrou vergonha pela revelação. Seu rosto ficou vermelho e ele respondeu que
acreditava que estava apaixonado sim.

– Sabe, David, eu estou cansado de tudo isso. Estou com quase cinquenta anos e ainda não
tenho ninguém. Já tive mais mulheres do que tenho pelos no corpo, mas nenhuma me agradou
verdadeiramente, sobretudo porque eu estava envolvido em tudo isso e era imaturo. Mas a
Meire... Eu já lhe disse que o seu nome é Meire? Ela é diferente. Eu consigo me imaginar
envelhecendo com ela, cuidando dos filhos dela, ficando doente e morrendo como um ser
humano normal. É isso que eu quero. E só o vou conseguir se unirmos forças para escaparmos
de tudo isso em que estamos metidos.

– E você quer a minha ajuda?


– Não, meu amigo. Acho que já lhe fiz muito mal. Não quero que você se arrisque. Se o
Morrison o esqueceu, que continue assim.

– Então, por quê...?

– Eu não gostaria de ir sem que você soubesse o motivo.

– Ir?

– Se nós, os integrantes do grupo, realmente enfrentarmos o Morrison, muitos vão morrer e eu


posso ser um deles.

– Veja, Adá. Eu aprendi ao longo da vida que uma conversa vale mais do que mil socos. Então,
se vocês realmente querem sair da organização, tentem primeiro falar com o Morrison. Não o
enfrentem. Existe uma chance de ele entender.

– Você acredita nisso?

– Nós temos que acreditar no melhor sempre, Adá.


CAPÍTULO XVI

Três meses depois da conversa com Adalberto, David estava em casa escrevendo um livro
quando resolveu retirar a escuta que estava debaixo do sofá. Sabia que Morrison poderia
pensar que o dispositivo se havia quebrado ou que sua bateria tivesse acabado.

Foi até a cozinha, pegou um fósforo e voltou para o sofá. Mirou o fogo no dispositivo e o
deixou queimar-se até ter certeza de que estava sem funcionalidade. Então, pegou o aparelho e
o jogou no lixo no mesmo momento em que o telefone tocou.

“Letícia”, pensou.

– Olá, meu amor. – Ele atendeu o telefone de maneira descompromissada, tentando esconder
que se havia esquecido de ligar para ela na hora do almoço porque estava concentrado
escrevendo. Porém mulher jamais esquece.

– Olá, David, onde você estava que não me ligou?

– Desculpe-me, linda. Estava escrevendo e o tempo passou. Sabe, faz tempo que não produzo
nenhum livro e o editor está me cobrando.

Letícia fez uma pausa e depois falou com a doçura de quem aceitou as desculpas.

– Acho que é porque está me vendo muito, não é mesmo?

– Isso é muito para você? Se o dia tivesse trinta horas e eu passasse todas com você, ainda
assim seria pouco.

Ela sorriu do outro lado da linha e David pôde escutar. Seu coração bateu mais forte, como
fazem os corações apaixonados, e ele sabia que tinha marcado mais pontos com ela.

O que Letícia não sabia era que David agora escrevia os livros sem parar o tempo para não
chamar a atenção de Morrison. Fazia-o para que o chefe da organização se esquecesse dele
definitivamente, e essa nova maneira de produzir estava tomando muito de seu tempo.

– Poxa, Dê. Hoje eu queria ter almoçado com você.

– Almoçado? – David estranhou, porque eles não almoçavam juntos desde que começaram a
namorar.

– Sim, meu amor. Acho que está na hora.


– Na hora de quê?

– De falarmos para o mundo. De revelarmos a nossa relação.

David sentiu um frio na barriga. Isso sim poderia chamar a atenção de Morrison. Mas ele
jamais negaria para ela. Seria sua primeira briga, com certeza.

– Você não acha que está cedo ainda?

– Um pouco cedo, mas somos figuras públicas e logo descobrirão o nosso segredo. Acho
melhor mostrarmos a eles antes que vire fofoca.

– Você sabe que de minha parte não há nenhum problema. – Pensou na mesma hora que essa
era uma grande mentira, mas como iria dizer-lhe a verdade? Jamais.

– Então vamos almoçar amanhã?

– Precisamos de um restaurante frequentado por alguns fotógrafos, os famosos paparazzi.

– Não se preocupe. Eu sei aonde vamos. Será aqui perto da emissora. Todos verão e logo
estará nos jornais.

“Nos jornais?”, pensou ele. “Não há chance de o Morrison deixar de ver isso. Mas não vou me
preocupar. Ele nos deixou em paz até hoje e acredito que não fará nada.”

– Combinado, linda.

– Você vai à minha casa hoje?

– Só se eu puder passar a noite lá. – David sorriu.

– Então não se esqueça de trazer o pijama. Aquele ridículo de listras azuis. – Ela também
sorriu.

David estava iniciando uma forte amizade com o filho de Letícia. O pequeno David era muito
alegre e brincalhão. Além disso, para sorte dos dois, sempre dormia cedo.

O fato de estar com essa criança fez com que David descobrisse um lado seu que desconhecia.
Ele gostava muito de crianças e sabia dar-lhes atenção na hora certa, fazer as perguntas que os
pequenos estavam esperando e ainda ser muito engraçado para eles. E, como não poderia
deixar de ser, Letícia adorava essa qualidade nele.

A noite para os dois foi como várias outras durante esses meses de namoro, muito intensa e
cheia de paixão. E, assim que David despertou, notou que Letícia não estava mais em casa.
Havia saído para trabalhar.
David se levantou da cama e percebeu que havia um guardanapo em cima do criado-mudo.
Abriu-o e viu que tinha uma mensagem com a marca de batom da boca de Letícia.

“Vale um beijo. Cobre na hora do almoço.”

David sorriu. Estava tomado por uma intensa felicidade e já havia esquecido tudo o que tinha
se passado nesses últimos tempos. Esquecera-se de sua aflição ao ver Letícia na televisão e não
saber por que nutria uma paixão tão grande por ela, esqueceu também os problemas com os
Iguais e suas interferências na vida dele; e, principalmente, esquecera que Morrison era uma
ameaça.

Durante todo esse tempo em que esteve afastado do grupo de Iguais, não fez rondas noturnas
nem utilizou os seus poderes para deter o tempo, seja qual fosse a dificuldade que enfrentava,
pois mantinha a sua determinação de fazer com que Morrison o esquecesse.

David se trocou e foi para sua casa tomar um banho, escrever um pouco o seu novo livro e,
depois, encontrar-se com Letícia na emissora.

Mais uma vez, utilizou o seu antigo carro. As lembranças que ele trazia eram muito fortes, e
David gostava de utilizá-lo sempre em ocasiões especiais.

Ao parar em frente à emissora, o mesmo segurança veio ao seu encontro, mas dessa vez de
forma amistosa, com um grande sorriso.

– Boa tarde, senhor David Leniz. O seu nome encontra-se na portaria. A senhora Letícia
autorizou a sua entrada.

– Boa tarde. Você sabe se ela está gravando ou se já terminou?

– Já terminou sim, senhor. Ela me pediu que dissesse ao senhor para se dirigir ao estúdio dois.
A senhora Letícia está com toda a sua equipe lá.

“A equipe? O que será que ela quer me levando até eles?”, pensou ele, apreensivo como no
primeiro dia em que fora lá para uma entrevista com ela.

David dirigiu-se ao estúdio dois, que por coincidência era o mesmo onde ele ficava com
Letícia quando namoraram a primeira vez, antes da intervenção de Adalberto.

Ao entrar, percebeu que ela conversava alegremente com seu assessor e sua maquiadora, muito
descontraída, a ponto de não perceber a presença dele.

Aproximou-se e aguardou um pouco antes de chamá-la pelo nome.

– Letícia!
Ela virou-se para ele e mais uma vez o seu sorriso iluminou todo o ambiente.

Oi, Dê. Eu pedi que minha equipe ficasse aqui para comunicar a eles antes de sairmos para
almoçar.

– Comunicar o quê? – Souza perguntou apreensivo, já percebendo que algo de anormal


aconteceria naquele local.

– Gente, por favor, prestem atenção! – Letícia falou alto para todos ouvirem. – Todos vocês
conhecem este meu amigo, o escritor David Leniz, não é? – Apontou para ele enquanto o
chamava para pegar em sua mão.

Alguns membros da equipe assentiram com a cabeça, enquanto outros simplesmente falaram
que sim.

– Então, vocês também sabem que passei por algo terrível em minha vida.

Souza interveio, sorridente:

– Não, Letícia. Você não vai falar o que estou imaginando, vai?

– Sim, Souza. Acho que eu mereço ser feliz.

– Eu já sabia! – exclamou a camareira.

– Já sabia? – Letícia estava curiosa com a reação.

– Sim, dona Letícia. Uma mulher não consegue esconder de outra quando está feliz, e você
estava muito feliz nestes últimos tempos. Aliás, todas nós já sabíamos. Só não sabíamos que
era ele o sortudo.

Letícia sorriu espantada.

– Vocês sabiam e não me disseram nada?

– Dona Letícia, me desculpe, mas ninguém ousaria se intrometer em sua vida.

– Letícia – Souza chamou-lhe a atenção. – Seja muito feliz. Você é uma das melhores pessoas
que já conheci e não mereceu nada do que aconteceu. E esse rapaz parece ser boa pessoa.

Virou-se para David sorrindo.

– Se você fizer ela infeliz, eu arranco seu couro e jogo sal com vinagre no que sobrar.

David soltou uma risada amarela. Não sabia se aquilo havia sido uma brincadeira ou uma
ameaça real.
Os dois ficaram felizes com a reação da equipe e saíram de mãos dadas. A intenção era que
todos na emissora vissem a cena, principalmente Johnny Ley, o apresentador do programa de
fofocas da tarde da emissora.

O restaurante ficava a poucos metros dos estúdios e eles foram a pé sob os olhares curiosos de
todos. Afinal, eram duas celebridades que estavam começando um relacionamento.

Ao entrarem no estabelecimento, um flash os saudou. Era um fotógrafo que não perdera a


oportunidade de ser o primeiro a registrar o momento.

Várias fotografias foram tiradas enquanto eles almoçavam, até que David retirou o guardanapo
do bolso e o mostrou a ela.

– É, linda. Dívida é dívida e eu faço questão de cobrar esta.

Os dois sorriram e, para delírio dos fotógrafos de plantão, se beijaram longamente enquanto
uma saraivada de flashs iluminava o ambiente.

Johnny Ley abriu seu programa da tarde com aquela notícia especial. Primeiro fez um pequeno
suspense em torno de quem estava de namorado novo, depois apresentou as fotos do David
Leniz como o sortudo que havia fisgado o coração da viúva.

O programa não tinha uma grande audiência, mas costumava provocar uma tempestade
popular quando soltava uma notícia como essa. E o fato não demorou a chegar aos ouvidos de
Morrison pela boca de Shang.

– Você acha que devemos fazer algo a respeito, Morrison? – Shang estava ansioso para agir.

– Se me permite, agora não, Shang. Ela é uma celebridade e isso chamaria muito a atenção.
Vamos esperar e ver como isso tudo evolui.

– Mas nós poderíamos acertá-la com o tempo parado.

Morrison soltou uma grande gargalhada.

– Você não imagina que David seja um adversário à altura, não é? Ele pode não estar
treinando, mas em um momento de raiva misturado com a defesa de sua mulher, no mínimo
lhe daria muito trabalho.

– Mas você sabe que...

– Aconselho-o a esperar o tempo que julgar necessário. Não acho interessante falar mais sobre
isso.
Morrison pensou que havia ganho mais tempo.

***

Adalberto estava em sua casa e resolveu ler as notícias do dia em seu computador. Ao abrir um
site de notícias, viu na primeira página o início do romance entre David e Letícia.

Leu tudo a respeito, trocou de site e foi seguindo todos os detalhes que os repórteres haviam
conseguido apurar. Os maiores estavam mesmo na página do programa de Johnny Ley, como
não poderia deixar de ser, pois era o fofoqueiro da emissora.

– Esse menino não tem medo de nada mesmo. Está brincando com fogo – disse em voz alta. –
Espero que David saiba o que está fazendo e não coloque a vida da Letícia em perigo.

***

A reação à notícia entre os conhecidos do casal foi a mais diversa possível.

Chico, o irmão de David, ligou apenas para brincar com ele e falar que era um safado e esperto
e que isso não ia durar muito porque ela era bonita e logo compraria um par de óculos. Sua
mãe ficou muito feliz e queria fazer logo um jantar para Letícia a fim de conhecê-la melhor. E
Jorge, seu amigo, ficou furioso por descobrir somente pela imprensa esse romance.

Do lado de Letícia, que não tinha tantos amigos devido ao trabalho e era filha única de um
casal de filhos únicos também, apenas seus pais ligaram para a aconselhar.

– Filha – disse seu pai –, tome cuidado com esse rapaz. Ele é escritor. Esse tal de David tem
algum estudo?

Letícia sorriu e contou ao seu pai que ele era engenheiro, mas tornara-se um escritor muito
famoso, inclusive fora do país. E aproveitou para falar que gostava muito dele, que isso era
recíproco e que esperava a aprovação deles.

***

Os dois estavam juntos na casa de Letícia, curtindo aquele momento, quando Souza ligou para
ela.

– Sim, Souza. O que você quer?

– Como seu assessor, tenho a obrigação de lhe avisar que as publicações estão começando a
especular algo muito desagradável a seu respeito.

Letícia gelou.
– O que estão falando? – perguntou ela com as mãos tremendo.

– Não leve a sério. Somente algumas publicações sensacionalistas estão falando sobre isso,
mas acho que você deveria acompanhar e, se for necessário, eu solto uma nota na imprensa
séria a respeito do assunto.

– Mas qual é a especulação?

– Tudo começou com aquele blog de fofoca que já havia especulado isso uma vez, mas agora
eles vieram com força e outras publicações de fofoca também aderiram. Estão dizendo que a
polícia investiga a possibilidade de seu envolvimento na morte de Willian. Dizem que eles
desconfiam que você armou o sequestro e a morte de seu marido somente para ficar com
David.

– O quê? Isso é loucura! – Letícia estava muito nervosa.

– Até o Johnny Ley queria falar sobre isso no programa que vai ao ar no final da noite, mas o
tapa que ele recebeu foi tão forte que as maquiadoras estão com dificuldades para esconder.

– Mas, Souza, o processo já foi finalizado e não há nenhuma suspeita sobre mim. Vou ligar
para o delegado Matias.

Letícia desligou o telefone sem se despedir e olhou em desespero para David

– O que houve, linda?

– Esses canalhas – estava muito nervosa. – Essas publicações baratas. Estão dizendo que eu
matei o Willian para ficar com você.

David parou por um momento, segurou firme a mão dela e falou:

– Não se preocupe. Isso não aconteceu. Você não deve satisfações para essa imprensa marrom.

– Mas, David, não se esqueça que eu apertei o gatilho. Ainda sonho com isso e só a sua
presença me faz esquecer aquele pesadelo.

David a abraçou bem forte, deu-lhe um beijo na cabeça e aguardou alguns segundos antes de
falar.

– Você não deve pensar nisso. Procure esquecer tudo. Estarei sempre ao seu lado para protegê-
la de qualquer coisa que possa acontecer. – A imagem de Morrison lhe veio à cabeça.

Letícia ficou abraçada com David em silêncio por mais alguns minutos. Ela tremia e sua
respiração estava forte e profunda. David pensou que Letícia começaria a chorar, mas isso não
aconteceu. Ela era muito forte e determinada.
O telefone de Letícia tocou alguns minutos após ela se acalmar. Era o delegado Matias.

– Boa noite, senhora Letícia.

– Boa noite, delegado.

– Não se assuste. Estou ligando somente para dizer que li algumas notícias que envolviam meu
nome em algumas publicações baratas por aí.

– Sim, eu estou sabendo. – Seus olhos estavam vermelhos e começavam a lacrimejar.

– Estou ligando para lhe informar que em nenhum momento fui entrevistado e que jamais dei
declarações suspeitando da senhora.

– Obrigada, doutor Matias.

– Não se preocupe. O próprio Ministério Público pediu arquivamento do processo por você ter
agido em legítima defesa. No entanto, caso a senhora veja mais alguma notícia que me
envolva, por favor, ligue para mim antes de qualquer coisa. Você tem o meu número particular
que lhe dei naquele dia. Não hesite em usá-lo. Se for necessário, irei à imprensa para esclarecer
os fatos.

– Eu agradeço do fundo do coração, doutor Matias. Essas notícias foram muito terríveis para
mim e acabaram com um momento muito feliz.

– Eu imagino.

Despediram e Letícia deitou-se no colo de David e adormeceu enquanto ele procurava não se
movimentar para que ela pudesse descansar e esquecer aqueles seres que insistiam em ganhar
dinheiro denegrindo a imagem das pessoas públicas.
CAPÍTULO XVII

Adalberto estava em um relacionamento sério com Meire e já se sentia um membro da família.

Alguns dos seus materiais de pintura estavam na casa de sua namorada em uma garagem que
ficava no subsolo, onde ele costumava passar algumas horas do dia produzindo suas obras.

Uma promessa que fizera a ela era a de que cada cinco obras que produzisse em sua garagem,
uma ficaria na casa para decoração. Contudo, naquele dia ela desceu até onde ele estava para
conversarem.

– Adá, preciso falar com você.

Ele sorriu:

– Nossa. Quando devo pegar minhas coisas e partir?

– Como assim?

– Mulher quando diz que precisa conversar vai mandar o marido embora, não é mesmo?

– Não posso fazer isso. – foi a vez dela sorrir. – Você não é meu marido.

– Então, o que eu fiz de errado, amor?

– Nada. É que você sabe que adoro suas obras e por isso fiz aquele trato de ficar com uma em
cada cinco produzidas aqui. Mas eu não sei se você percebeu que não temos mais paredes para
pendurar quadros.

– Sim, eu percebi. Mas não poderia falar com você sobre isso sem a magoar. Estava esperando
que você tomasse a iniciativa.

– Parece que você está produzindo muitos quadros.

– Eu estou vendendo muito bem, principalmente para Nova York.

– Então, vamos combinar de vender todos os que você produzir. Agora vem jantar. Larga isso
aí.

– Eu já vou subir. Assim que terminar esta tinta que preparei, caso contrário ela vai estragar.
Meire subiu a escada e Adalberto pôde ver suas pernas morenas sumirem no vão do piso
superior quando a imagem perdeu um pouco do contraste.

“Meu Deus, que não seja ele”, pensou.

Adalberto virou-se ao ouvir um barulho de metal caindo e seus temores se concretizaram.

– Olá, Morrison. – Adalberto saudou-o amistosamente.

– Como vai o casal?

– Estamos bem. E você, o que tem feito? Faz tempo que não convoca uma convenção.

– Não vejo necessidade. Vocês decidiram não colaborar e estou tocando nossos negócios
somente com o Shang.

– É, eu soube que ele o está ajudando nos carregamentos.

– Vamos ao que interessa, Adá. Qual é a sua intenção com essa moça?

– Morrison, precisamos muito conversar.

– Você não respondeu. Pretende largá-la quando? Eu nunca vi você namorar tão sério com
alguém e ainda praticamente mudar para a casa dela. O que a Meire tem de especial?

“Ele sabe o nome dela.” Adalberto ficou gelado ao imaginar como ele estava sabendo o nome
de sua companheira.

– Tudo, Morrison. Eu gosto muito dela, como não gostei de nenhuma outra namorada. Até
estou fiel. – E sorriu.

– Então é sério?

– Sim. Creio que seja. Espero que isso não o incomode. Quero ter uma família.

– Você está disposto a quebrar nossa regra? – Morrison coçou o queixo como quem analisa a
situação.

– Não se trata de quebrar regras, já que elas nunca existiram de fato. Estou apenas deixando de
cumprir um acordo. Você acha isso errado?

– Não, meu amigo. Você sabe que os tempos mudaram. Não vou interferir nisso. Quebre a cara
sozinho. Você sabe que os relacionamentos costumam não dar certo, mas vá em frente. – O
sorriso de Morrison ficou mais evidente.

Adalberto deu de ombros.


– Não tenho nada a perder. Se quebrar a cara, posso chorar no seu ombro?

Os dois deram uma risada e o clima ficou mais descontraído.

– Você viu o aprendiz? Ele finalmente começou a namorar com a apresentadora.

– Não fale assim, Morrison. Ele não é mais aprendiz. Inclusive, pelo que sei, ele desistiu de ser
um Igual. Não está nem praticando.

– Tem razão. Ele não para o tempo desde que eu o coloquei no congelamento. Mas você está
certo, ele não é aprendiz. Passei aqui só para lhe dar um abraço porque estou no Brasil e vou
ficar até o final de semana. Depois tenho um jantar com a Ingrid e com o Juan lá na África do
Sul.

– Você está visitando os membros do grupo?

– Sim. Somente fazendo alguns carregamentos e aproveitando para rever o pessoal.

– Por que não paramos com esses carregamentos? Não precisamos mais de dinheiro. Todos
têm o suficiente para viver muito bem pelo resto da vida.

– Quem sabe, Adá. Quem sabe.

Morrison saiu pelo mesmo caminho que Meire fez após conversar com ele e o tempo retornou
ao normal.

“Que visita mais estranha! O que será que ele queria saber? Era sobre mim ou sobre David?” –
Adalberto começou a pensar em todas as possibilidades quando ouviu a voz de Meire.

– Você vem ou não vem? As crianças já estão comendo.

– Estou indo, amor. – E subiu apressado para jantar com sua nova família.

***

David chegou cedo à emissora de TV porque sabia que Letícia iria gravar um programa com
um político candidato à presidência da República após as nove horas.

Não tinha passado a noite na casa dela porque precisava terminar um livro que estava atrasado
e o pequeno David estava inquieto e barulhento.

David ficou esperando que Letícia aparecesse na porta do estúdio com sua equipe de gravação
para lhe fazer uma surpresa que havia planejado dias antes. A plateia já estava lotada com os
participantes do programa, e um barulho de conversa alta repercutia nas paredes.
Ao entrar pela porta, Letícia viu seu namorado parado em pé no meio do estúdio, esperando
por ela. Muito surpresa por vê-lo ali, dirigiu-se a ele, curiosa.

– Aconteceu alguma coisa, David? – perguntou, preocupada.

– Sim, Letícia. – Eles evitavam se tratar pelos nomes carinhosos na frente de toda a equipe. –
Mas já faz muito tempo e eu estou aqui para resolver isso de uma vez.

– Você está me assustando, David. O que houve? – Letícia olhava para ele, esperando que
elucidasse aquele mistério.

Souza era muito perspicaz e, ao olhar para David e perceber o seu nervosismo, logo deduziu do
que se tratava e sentou-se com um sorriso no rosto para assistir àquela cena interessante.

– Há muito tempo – começou David – conheci uma mulher muito linda, inteligente e amável.
O resultado foi que me apaixonei por ela. Porém essa paixão cresceu, cresceu e cresceu cada
vez mais, e hoje eu a amo no limite do que o meu coração pode suportar.

Os olhos de Letícia se encheram de lágrimas quando David se ajoelhou e abriu uma pequena
caixa que estava em suas mãos.

– Letícia Lira, você se casaria comigo? – suas mãos tremiam, pois ele estava na frente de uma
plateia com pelo menos duzentas pessoas estranhas que guardavam silêncio absoluto.

– David, você é mesmo maluco. Como eu iria recusar isso? É claro que me caso com você,
meu amor. – O sorriso em seu rosto era maior do que de costume.

Eles não sabiam, mas Johnny Ley estava ao lado do câmera e pediu que ele gravasse tudo
assim que percebeu que algo diferente aconteceria naquele estúdio.

Assim que a plateia entendeu o que estava acontecendo, levantou-se, bateu palmas para o casal
e David pôde finalmente relaxar, pois suas costas doíam mais do que se ele tivesse levado uma
surra.

Letícia não ligou para o fato de estar sendo gravada ou para tanta gente ali a observá-los.
Enlaçou o pescoço de David com os dois braços e lhe deu um grande beijo, para delírio de
todos os presentes, principalmente Johnny Ley, que teria matéria para a semana inteira em seu
programa.

***

O pedido de casamento inusitado não demorou muito para estar no programa de Johnny Ley e
depois se espalhar pela Internet. Mas o casal não ligava para aquilo. A felicidade era tamanha
por uma relação perfeita que o resto do mundo poderia acabar para eles.
Shang estava assistindo ao programa de fofocas sentado no quarto de um hotel médio no
centro da cidade e comendo as batatas fritas que sempre o acompanhavam. Seus olhos estavam
mais arregalados do que de costume naquele momento e seu cabelo parecia um ninho de
passarinhos desajeitados.

“Muito bem. Agora basta saber quando eles se casam e quando viajam para executar o
serviço.”

Uma batata frita caiu no chão, ele olhou para aquele pedaço de comida inerte no solo, levantou
sua pesada bota de couro e pisou em cima fazendo movimentos circulares raivosos,
transformando tudo em farelos.

***

Meire encontrou-se com Adalberto na hora do almoço. Normalmente tinha apenas meia hora
para comer um lanche rápido com ele, e isso costumava incomodá-lo.

A lanchonete estava cheia e Adalberto já estava na fila quando ela chegou. Porém o
comportamento sério de sua namorada lhe chamou a atenção. Ela costumava ser mais bem
humorada e jamais havia se encontrado com ele sem um sorriso.

– Olá, Adá. Já escolheu o que vai pedir?

– Existe algo além de um pedaço de boi dentro do pão com alguns acompanhamentos para se
comer aqui? – ele sorriu. – Vou pedir o de sempre. E você?

Meire continuou séria.

– Eu também. Peça sem cebola, por favor.

Os dois se abraçaram enquanto estavam na fila.

– Você viu o noticiário, Adá?

– Não. Houve alguma coisa?

– Sabe aquele escritor que ficou famoso rapidamente? O David Leniz?

– Sim – Adalberto tentava mostrar indiferença, mas estava preocupado.

– Hoje ele fez algo muito romântico. Você sabia que ele estava namorando a apresentadora
Letícia Lira?

– Eu ouvi algo a respeito.


– Ele a pediu em casamento. E isso foi no meio do programa dela, com plateia e tudo.

Adalberto não conseguiu disfarçar o nervosismo, pois sabia que uma notícia dessas logo
chegaria aos ouvidos de Morrison.

– Quando foi isso?

– Hoje de manhã. Eu vi na televisão do elevador quando vinha para cá.

– Não acredito que ele fez isso. Poderia ser um pouco mais discreto.

Meire estranhou o comentário de Adalberto e ficou desconfiada de sua reação, mas procurou
não demonstrar.

– O que houve, Adá? Você conhece esse tal de David?

Adalberto fez silêncio por alguns segundos.

– Sim, meu amor. Somos conhecidos. Você sabe, nesse meio artístico todos costumam se
encontrar em festas ou premiações.

– Onde você o conheceu?

– Foi antes de ele ser famoso. A editora dele pertence ao mesmo grupo da galeria que expõe os
meus quadros pelo mundo.

– Qual grupo? Você nunca me falou dele.

– Chama-se Time Same.

– Já ouvi falar. É uma empresa canadense, não é?

– É uma multinacional com base no Canadá, em Toronto.

– Coincidência nós nos conhecermos indo para lá, não é? Você sabe alguma coisa mais sobre
essa empresa?

– Não muito, somente o contrato que tenho com eles e sei que me pagam muito bem. –
Adalberto começou a achar aquele interrogatório estranho.

– Você viaja muito para o Canadá?

– Algumas vezes, mas não muito.

– Mas você fez várias viagens pelo mundo nos últimos anos, não fez?
Meire olhou para Adalberto enquanto ele assentia com a cabeça tendo os olhos fixos nela.

A vez de eles pedirem chegou e foram obrigados a fazer uma pausa na conversa. Pegaram os
lanches e se dirigiram para a mesa, mas Adalberto estava muito desconfiado do repentino
interesse de Meire por sua empresa e pelas suas viagens. Estavam juntos havia bastante tempo
e ela sempre se mostrara indiferente a isso.

Meire estava visivelmente incomodada enquanto comia. Olhava para os lados, mexia na roupa,
demonstrava nervosismo com o molho do sanduíche e não conversava muito.

– O que você tem, meu amor. Está inquieta hoje.

– Adá... Eu... Quer saber, tenho que falar com você em outro local. Vamos a um parque
público. Aqui não podemos conversar.

Adalberto logo relacionou a ida a um parque para conversar com algo que deveria ser
escondido de uma possível escuta.

Os dois saíram da lanchonete e caminharam de mãos dadas por uns duzentos metros. E então
ela falou.

– De um abraço em mim, Adá. Vamos caminhar como um casal de namorados comum.

A barriga de Adalberto se transformou em um frigorífico.

“O que será que ela sabe? Devo perguntar? Não, acho melhor deixar para perguntar no
parque”. – Sua cabeça rodava com tantas perguntas e observações.

Caminharam até um parque muito frequentado por esportistas, todos correndo com roupas de
ginástica, utilizando bicicletas, patins e outros aparatos esportivos.

Meire se aproximou de um banco e, antes de se sentar, deu um beijo demorado em Adalberto


enquanto passava a mão por todo o seu corpo.

“Nossa!” pensou ele; “Assim em público?”

– Você não tem nenhuma escuta. Está limpo. Podemos nos sentar neste banco.

– O que? O que significa isso, amor?

– Para ser direta, sou agente de segurança especial. Faço parte da divisão de crimes mundiais.

Sua barriga gelou novamente.

– Como você nunca me falou isso? E o que você quer comigo? – A desilusão de Adalberto
estava estampada no seu rosto. Aquela mulher por quem ele estava apaixonado não era a
mesma que conhecera no aeroporto.

– Adá, preste atenção. Nós somos um grupo internacional e estamos vigiando vocês há muito
tempo.

Adalberto estava espantado.

– E o que vocês querem comigo? Você está comigo só por causa disso? Você...

– Calma, Adá. Vou responder tudo. Não, eu não estou com você por causa disso. Quer dizer...
no início sim, mas depois não.

– Como assim. Me explique isso.

– Nós estamos monitorando vocês, mas eu nunca tive contato com os diretores da Time Same.
Somente meus superiores sabiam quem vocês eram. Contudo, recebi uma missão há algum
tempo e era justamente a de me aproximar de você.

– Por que eu?

– Simples, Adá. Com exceção de David, que não participou do grupo de forma intensa, você
sempre foi o mais honesto e o que mais se contrapunha ao Morrison.

– Co... como vocês sabem todos os nomes?

– Somos um grupo de inteligência, você se esqueceu?

“Será que ela sabe de minhas habilidades?” Adalberto estava muito nervoso.

– Nossa! Minha vida acabou de virar de ponta cabeça. Até alguns minutos atrás eu era feliz e
tinha uma namorada maravilhosa.

– Calma, Adá. Eu já o conheço o suficiente para saber que você foi forçado a tudo o que fez.

– Mas você era minha namorada, a mulher que eu amo. Como pôde fazer isso comigo?

– Era? Não, Adá, não pense assim. Eu ainda sou.

O coração de Adalberto bateu forte.

– Eu me aproximei de você como uma missão qualquer. Mas algo saiu do meu controle e me
apaixonei rapidamente. O resto você já sabe. Ficamos juntos. Depois disso, enfrentei muitas
barreiras no grupo, tudo por você.

– Então, você gosta de mim?


– Claro que sim. Quero ficar com você o resto da vida, por isso estou lhe contando tudo.

– Então me conte mais a seu respeito, pois você já sabe tudo sobre mim.

– Eu realmente trabalho na empresa Moletcop, mas ela é uma fachada, assim como a Time
Same. Sou uma agente especial, membro da divisão de casos singulares, DCS. Sou realmente
colecionadora dos seus quadros e sou apaixonada por um pintor que se meteu em enrascada.

– Você vai me prender? – Adalberto não acreditava no que estava ouvindo.

– Jamais. Você foi escolhido para colaborar. Queremos pegar o seu chefe e os outros
criminosos.

– Mas são os membros do grupo. São meus amigos. Eu não posso delatá-los.

– Você não sabe nem da metade. A Time Same é só uma divisão do mundo de crimes que o
Morrison comanda. Ele tem outras pessoas sob suas ordens. Os vinte que pertencem à sua
empresa somente carregavam drogas, pelo menos é o que pensamos.

– Estou espantado. Nunca vi algo diferente acontecendo, somente os carregamentos, com o


que, por sinal, eu não concordava.

– Sabemos disso e a DCS não tem interesse nos carregamentos, e sim na rede que ele criou.
Para ser sincera, nós nunca conseguimos produzir uma prova sequer contra vocês,
mensageiros. Nunca entendemos como passam pelas alfândegas sem as drogas e depois as têm
novamente. E estou aliviada agora que lhe contei toda a verdade. Era um peso que eu
carregava nas costas. Vamos.

Adalberto estava tonto com tantas revelações.

– Vamos para onde?

– Para a DCS. Meu chefe quer falar com você. Por isso estou nervosa. Vamos interrogá-lo,
mas fique tranquilo que não sairei do seu lado. A DCS o está considerando um amigo
colaborador. Eu me encarreguei de colocar você bonito na foto.

Pela primeira vez Adalberto viu o sorriso de Meire naquele dia.

Os dois se dirigiram para o prédio da Moletcop, onde Adalberto foi apresentado a Peter, o
diretor de Meire, um senhor de estatura média, com poucos cabelos, todos grisalhos, e uma
barriga que chamava a atenção de tão protuberante que era.

Adalberto sentou-se em uma cadeira confortável na frente da mesa de Peter e ao lado de Meire.
Os três conversaram por quatro horas e Adalberto expôs tudo o que sabia sobre a Time Same e
seus sócios, somente tomando muito cuidado para não revelar as habilidades de seus
integrantes.

Após o interrogatório, foi liberado e seguiu para a casa de Meire, que, ainda dentro do prédio
da Moletcop, pediu-lhe que eles levassem a mesma vida que estavam levando antes, reiterando
o quanto gostava dele e que nada iria mudar.
CAPÍTULO XVIII

David se sentia muito nervoso naqueles dias. O dia do seu casamento estava chegando e os
preparativos consumiam muito do seu tempo.

Letícia lhe pedira que a ajudasse a organizar as coisas e queria que o casamento fosse muito
simples, só para os parentes mais próximos, pois ela não queria ter outro como o primeiro, com
imprensa e muitos convidados. Foram mais de quinhentos no casamento com Willian.

Mesmo contra a vontade de Letícia, a imprensa noticiava amplamente seu matrimônio, que se
realizaria em uma pequena capela próxima ao centro da cidade.

David teve sua primeira briga com Letícia devido ao estresse por que estava passando.
Precisava terminar o seu livro para enviá-lo à editora antes do casamento e ela, como não
podia deixar as gravações do programa, pedia que ele visitasse os locais onde seriam
realizados o casamento e a festa para falar com os fornecedores e ter certeza de que tudo estava
correto, o que ele não achava necessário.

Letícia estava fazendo jornada dupla para gravar programas extras que iriam ao ar durante sua
lua-de-mel, por isso mal via David, que apesar de entender a situação se sentia excluído da
vida dela.

Mas ele sabia que tudo iria mudar em breve. A lua-de-mel em Amsterdam havia sido escolhida
por Letícia e planejada por ele. Passariam apenas uma semana lá, mas para os dois seria o
suficiente, pois estariam juntos após o casamento e era isso que importava para ambos.

Adalberto foi o único Igual convidado por David, que teve dificuldades em explicar para
Letícia esse convite, mas a convenceu de que ele era um grande amigo de infância e um pintor
muito influente que o havia ajudado no início de carreira.

Adalberto ligou para a sua namorada:

– Meire, o David me ligou hoje pela manhã avisando que seríamos convidados para o seu
casamento. Acho que é uma ótima oportunidade de você conhecer outro membro da Time
Same e ver que ele não tem nenhuma ligação com as coisas erradas que aconteceram.

– Que ótimo, Adá! Vou gostar de participar desse casamento, mas nós já temos a ficha
completa do David e sabemos que ele não atua na empresa há muito tempo. Além disso, jamais
fez um carregamento.
– Então confirmarei a nossa presença e a de seus filhos.

– Você estará em casa hoje quando eu chegar?

– Estarei sim. Para mim, nada mudou.

***

O grande dia para David chegou. Estava vestindo um smoking preto muito alinhado, mas
sentindo muito calor, não só por estar nervoso mas por ser verão e o casamento ser realizado
ainda com sol.

Seus pais estavam no altar, assim como seus irmãos e a mãe de Letícia. O pai ficara fora da
capela esperando por sua chegada para levá-la ao altar.

A música começou a tocar e David sentiu as pernas tremerem. Ao se abrirem, as portas


revelaram seu sonho. Letícia estava mais que linda naquele vestido de noiva branco com seu
rosto reluzindo à luz e um sorriso enorme nos lábios.

A caminhada até o altar pareceu uma eternidade para David, que queria estar logo ao lado dela
para fazer os votos e viajar em lua-de-mel.

O casamento foi realizado com tranquilidade, dentro dos padrões normais, e os dois saíram da
capela de braços dados. Para David, ele estava indo rumo à felicidade, e o mesmo se passava
na cabeça de Letícia, que nunca conseguira entender como se apaixonara tão rápido por aquele
homem que havia pouco tempo era um completo desconhecido para ela.

O carro, uma limusine branca, os estava esperando para levá-los até o salão onde a festa se
realizaria.

Alguns curiosos estavam parados do outro lado da rua, além de repórteres com suas câmeras
funcionando no limite. Todos queriam ver e registrar aquele momento. Afinal, Letícia Lira era
uma celebridade muito adorada por seus fãs, em sua maioria homens.

Assim que entraram na limusine, esta iniciou a sua jornada rumo ao salão que ficava a algumas
quadras dali e David, olhando para os curiosos, pôde notar um rosto familiar.

Olhou novamente para aquela figura alta no meio da multidão, passou a mão no vidro como se
o limpasse para enxergar melhor e ter certeza do que estava vendo.

Do outro lado da rua, em pé, com as mãos para trás e olhando firme para a limusine de David,
estava Morrison.

“Meu Deus, o que ele está fazendo aqui?”


David ficou apreensivo e acompanhou Morrison com o olhar enquanto o carro se deslocava.

– O que foi, meu amor? Você parou de falar e ficou olhando para fora espantado?

– Nada, linda, eu só pensei ter visto alguém conhecido. Nada de mais.

A visão de Morrison assombrou os pensamentos de David durante toda a festa, mas Letícia não
percebeu nada, pois estava muito feliz com aquele momento e quase não teve tempo de olhar
para o marido.

“Esposa!” – pensou David. – “Agora ela é minha esposa. Poderia ser melhor?”

As horas se passaram e os convidados começaram a se despedir para ir embora. Era o fim da


cerimônia e o começo de uma nova vida. Eles se dirigiram para a casa de Letícia, onde haviam
combinado de morar, e David venderia o apartamento.

Os dois dormiram exaustos, apenas esperando o novo dia começar, pois iriam pegar o voo para
a Europa, com escala em Frankfurt antes de chegarem em Amsterdam.

David foi o primeiro a acordar e, como sempre fez durante o namoro, preparou o café da
manhã com tudo o que Letícia mais gostava. Aquela manhã deveria ser perfeita e as brigas pré-
casamento deveriam ser esquecidas para sempre.

As malas já estavam prontas no andar de baixo e somente esperando o táxi que ele mesmo já
havia chamado.

Letícia acordou com o costumeiro sorriso enorme e brilhante, deu um beijo no seu novo
marido e desceu para tomar o café da manhã, onde eles conversaram longamente sobre a
decoração que fariam na casa e onde seria o escritório que David ocuparia para escrever seus
livros.

Ele não exigia espaço para isso, mas queria que fosse um local da casa mais retirado e que não
houvesse muito barulho, pois qualquer som poderia atrapalhar sua concentração.

Letícia subiu para tomar um banho antes de seguirem para o aeroporto e David foi checar seu
telefone para saber se alguém havia ligado.

Ao se aproximar do aparelho, teve uma grande surpresa. Haviam cinco chamadas perdidas.
Então olhou para o número que havia efetuado todas as chamadas e constatou que era o mesmo
que Morrison usava quando estava no Brasil.

“O que ele quer? Será que quer me perturbar hoje?”

David desligou o aparelho telefônico para não ser mais perturbado, mas o que ele não percebeu
é que havia também uma mensagem de texto do mesmo número. E, como ele iria pegar o voo
em breve, não ligou mais o aparelho.

O táxi chegou e buzinou para avisar que já estava lá embaixo esperando.

O primeiro a aparecer foi David, carregando duas malas maiores, seguido por Letícia com uma
mala pequena.

O caminho para o aeroporto foi tranquilo. David olhava para os lados, pois o telefonema e a
presença de Morrison no casamento não saíam de sua cabeça. Porém nada interferiu em sua
viagem até o aeroporto.

A manhã estava fria, em contraste com o local do casamento, onde David passou muito calor.
Os dois ficaram abraçados na cadeira de espera do aeroporto aguardando o momento do
embarque. E, sempre que se olhavam, o sorriso imperava. Estavam muito felizes com o
momento.

O sistema de som anunciou o voo para Frankfurt e os dois entraram na sala de embarque para
aguardar na fila a fim de entrarem e se sentarem logo, com o objetivo de ficarem mais tempo
juntos. A previsão de voo era de doze horas.

Ao entrarem no avião, na primeira classe, notaram que se sentariam na frente, próximo à


cabine de comando, e Letícia sentiu-se incomodada.

– David, eu esqueci de lhe falar. Como a frente balança mais e tem uma parede branca como
anteparo, eu costumo passar mal.

Tudo o que David não queria ver era sua mulher passando mal na lua-de-mel.

– Vou ver o que consigo.

David andou para trás e encontrou um casal jovem, muito divertido, conversando alto.

“Acho que esses serão perfeitos.” Lembrou-se de como Adalberto conheceu Meire e pensou
em usar uma tática parecida.

– Por favor. Ela é sua namorada?

O rapaz olhou admirado para ele.

– Sim – respondeu.

– Você tem muita sorte, pois ela não passa mal em voo.

– Como você sabe?


– Estou só deduzindo, pois ela está muito feliz.

– E o que você tem com isso... Espere, você não e o David Leniz, o escritor?

David pensou que finalmente ser conhecido valeria alguma coisa para ele.

– Sou eu mesmo. Prazer. – Estendeu a mão.

O rapaz se apresentou como um fã de seus livros e a garota o seguiu.

– Então, vocês sabem que acabei de me casar?

– Sim – respondeu o rapaz. – Com a Letícia Lira. Ela está aqui?

– Está sim. Vamos para Amsterdam em lua-de-mel.

– Parabéns, David! – exclamou a garota.

– Pois é. Quando comprei as passagens eu não sabia que ela passava mal com o balanço do
avião, então pedi assentos próximo à cabine. E, como vocês sabem, balança um pouco mais.

– Você quer trocar conosco?

– Eu adoraria. E Letícia também vai ficar muito grata.

– Mas tem um preço – a garota sorriu enquanto falava.

– Preço?

– Sim. Eu quero uma fotografia com os dois.

David ficou aliviado.

– Claro. Vou chamar a Letícia.

Os dois voltaram, tiraram a fotografia com o simpático casal antes de se sentarem no lugar
deles e aguardar a decolagem, que ocorreu no horário marcado.

Letícia reclinou o assento e tentou se ajeitar para assistir a um filme juntamente com David.
Mas estava cansada, com muito sono devido ao dia anterior. Então, desafivelou o cinto de
segurança e deitou-se no colo do marido, que continuou com o seu afivelado.

Ela estava em um sono profundo e David assistia a um filme romântico, muito propício para a
ocasião, quando olhou para ela, retirou o seu fone e começou a passar as mãos em seu cabelo.

“Tudo o que passamos, tudo o que fizeram conosco, agora está em seu lugar. Estamos casados
como deveríamos estar há muito tempo e vou me dedicar à felicidade dela.”

Os olhos de David se encheram de lágrimas de emoção e ele procurou se ajeitar melhor no


assento para que ela ficasse mais bem posicionada e tivesse um sono tranquilo durante a
viagem, que foi interrompida repentinamente.

Um ensurdecedor estrondo deixou David tonto e ele sentiu o vento forte passando por detrás
de sua cabeça e dirigindo-se para um rombo na fuselagem lateral à sua frente. Várias pessoas
gritavam e se seguravam umas nas outras quando ele sentiu Letícia saindo de seu colo e
começando a flutuar.

"Ela está sem cinto de segurança." - pensou.

David a agarrou forte pela mão e pôde ver o horror em seu rosto enquanto observava que os
passageiros que lhes haviam cedido seus lugares não estavam mais no avião. Seus assentos
foram sugados para fora e David sentiu a aeronave se curvar em direção ao solo em queda
livre. Somente o cinto de segurança garantia que ele não saísse voando e lhe dava suporte para
manter Letícia perto de seu corpo em segurança pelo menos por enquanto.

– David, Estamos caindo! – ela gritava.

David olhava para ela horrorizado, enquanto percebia que o sangue começava a sair por seu
nariz.

A cabeça de David começou a girar e ele estava prestes a desmaiar. Então veio em sua mente a
imagem de Adalberto falando para ele quando era aprendiz: “Você nunca pode perder a
consciência”. Fez um grande esforço para se manter acordado, apesar do barulho intenso e da
tontura que lhe invadia a cabeça.

Naquele momento, a imagem de Letícia gritando começou a se misturar com uma névoa
branca que começou a rodar e as imagens ao redor foram perdendo o contraste, mas Letícia
continuava nítida para ele. Olhou-a nos olhos e falou alto:

– Calma, linda. Você não vai morrer. Apenas feche os olhos. Confie em mim.

Ela assim o fez e, quando os abriu, estava novamente no aeroporto, sentada com ele na mesma
cadeira e fortemente abraçada ao seu corpo.

David se levantou rapidamente.

– Venha comigo, Letícia! – gritou ele, enquanto a puxava pelo braço.

– O que é isso, David. O que aconteceu?

O pavor estava estampado em seus olhos e ela não conseguia entender se ainda estava viva ou
se aquilo que ela via era outro mundo após a vida.

– Por que as pessoas estão paradas?

– Agora não, linda. Apenas venha comigo. Confie em mim.

– Pare, David. Me explique o que está acontecendo. Nós estamos mortos?

Letícia o puxou pelo braço e fez com que ele parasse e olhasse para ela.

David então a segurou nos ombros, olhou-a nos olhos:

– Linda, respire fundo. Você não está morta. Eu a salvei. Eu a trouxe para o passado.

– O que? O que é isso? Por que estão todos parados?

Letícia estava muito nervosa e seus olhos corriam de um lado para o outro enquanto os
pensamentos borbulhavam em sua mente tentando entender o inexplicável.

– Você confia em mim? – David perguntou calmamente.

– Sim, meu amor – respondeu ela, mais calma.

– Então venha comigo. Eu a protejo. Eu tirei você daquele voo e não vou deixar mais nada
acontecer com você. Venha. Precisamos salvar os outros.

Letícia foi com ele até o posto da polícia federal que ficava do outro lado do aeroporto,
enquanto ela observava que todas as pessoas estavam imóveis e as imagens não tinham muito
contraste.

David entrou no posto, afastou a mão de um policial de cima da mesa e pegou uma caneta e
um pedaço de papel.

Rabiscou o papel, escreveu rapidamente uma mensagem em letras de forma grandes e colou o
bilhete na tela do computador do agente. Pegou outro papel, rabiscou novamente e colocou na
tela do computador do outro agente. Repetiu isso mais três vezes e, quando ia sair da sala,
Letícia voltou para ler o que estava escrito.

“Colocaram uma bomba no assento dois do voo número 29976 para Frankfurt. Acreditem em
mim. Ninguém pode embarcar naquele avião.”

Os dois saíram do posto e se afastaram para sentar-se na mesma cadeira em que estavam
anteriormente, quando David fez o tempo retornar ao normal e todas as pessoas começaram a
se movimentar exatamente no ponto onde pararam.
– Dê, aquele não é o casal que nos cedeu o lugar?

– São eles mesmos, linda.

Letícia estava admirada.

– Eles não morreram?

– Ninguém morreu, linda. Eu acabei de salvar todos.

Quando estavam caminhando pelo aeroporto, uma sirene alta começou a soar e um aviso de
evacuação do prédio foi acionado.

– Deu certo, linda.

– O que deu certo?

– Eles vão cancelar todos os voos e achar a bomba. Vamos para casa.

– Dê, o que aconteceu aqui? Você não vai me explicar?

– Vou sim, linda, com certeza. Mas quero que seja em casa, e não aqui. Ninguém deve ouvir.
O que você deve saber por hora é que está segura, salva e nada vai lhe acontecer.

– Mas como aquelas pessoas que estavam no avião voltaram aqui para o saguão? E nós, como
retornamos?

– Eu lhe disse, linda, não quero falar aqui, mas – abaixou-se para lhe cochichar ao ouvido – o
que posso dizer agora é que voltamos ao passado, no momento anterior ao nosso embarque.
Aquela aeronave nunca levantou voo com a bomba.

– Isso é possível? – ela estava pasma.

– Sim, meu amor. Não me pergunte nada no caminho de volta. Vou lhe explicar tudo quando
chegarmos em casa.

Ao saírem do aeroporto para pegarem o táxi, David viu uma figura conhecida subindo em uma
motocicleta. E, antes que ele colocasse o capacete, David viu claramente que se tratava de
Shang.
CAPÍTULO XIX

Meire ligou para Adalberto, que estava com as mãos cheias de tinta e demorou a limpá-las para
atender o telefone.

– Olá, Meire.

– Adá. Eu provavelmente vou chegar muito tarde hoje. Você ligou a televisão?

– Televisão? Não. Estou criando no momento.

– Então ligue. O aeroporto está isolado e encontraram uma bomba no avião que ia para
Frankfurt.

– Bomba?

– Sim. Fui destacada para acompanhar o caso de perto, pois a bomba foi colocada no mesmo
voo em que David estava.

– David? O meu amigo?

– Sim. E você não vai adivinhar em que assento estava.

“Meu Deus”, pensou Adalberto. “No assento de David!”

– Não, meu amor, não faço ideia.

– No assento de David. Nós puxamos no sistema e era o assento reservado para ele e para
Letícia Lira.

– Mas quem faria isso? – perguntou Adalberto, pensando em disfarçar o que já sabia.

– É por isso que fui destacada. Pode ter algum envolvimento de integrantes da organização de
Morrison.

– Você acha possível?

Adalberto estava muito preocupado e sabia que Morrison poderia, sim, estar envolvido em
tudo isso, e não seria nada difícil para ele colocar uma bomba dentro do avião. Bastava parar o
tempo e passar por toda a segurança.
– É isso que vou investigar.

***

O caso repercutiu muito rápido na imprensa. Um funcionário da empresa aérea havia vendido
uma lista com os nomes dos passageiros que estariam dentro daquele voo e não tardaram a
perceber que a apresentadora e seu marido tinham vaga reservada na primeira classe.

Apesar de a polícia não revelar a poltrona onde a bomba se encontrava, nem informar como
ficou sabendo do atentado, todos sabiam que ela estava na primeira classe e que Letícia só
viajava nesse setor em longas distâncias.

O primeiro a tentar um contato com Letícia foi Johnny Ley, mas o seu telefone estava
desligado, assim como o de David. Porém, apesar de não ter notícias sobre o casal, todo o
programa da tarde foi dedicado ao atentado, e a imprensa sensacionalista levantou diversas
hipóteses, até uma, absurda para o público, sobre uma organização secreta de traficantes de
drogas na qual algum passageiro poderia estar envolvido.

Na polícia federal, o cadastro de todos os passageiros e tripulantes já estava no computador dos


investigadores e uma minuciosa varredura foi feita, em apenas duas horas, na vida de todos,
inclusive David e Letícia.

O delegado geral convocou uma entrevista coletiva para afirmar que ainda não tinham
nenhuma pista de quem havia colocado a bomba no avião ou mesmo de quem os havia alertado
sobre o atentado.

– Estamos trabalhando com as evidências, mas ainda não temos pistas concretas do autor.
Todas as filmagens de câmeras do aeroporto foram entregues para nós, e passaremos os
próximos dias analisando minuciosamente as imagens.

– Haveria uma organização criminosa de tráfico internacional de drogas envolvida no


atentado? – perguntou um repórter.

– Não sabemos, mas não descartamos nenhuma hipótese. Em breve teremos a resposta.

***

David estava em casa com Letícia. O pequeno David estava na casa dos avós de modo que eles
tinham toda a liberdade para conversar sem interrupções.

Letícia iniciou a conversa:

– David, vai me explicar o que aconteceu?

– Vou, meu amor. Mas você terá que confiar em mim. Vou lhe contar coisas incríveis que você
não sabia que existiam.

– Então comece pelo atentado no avião. Como você voltou o tempo? Pelo menos foi isso que
você afirmou, não foi?

David olhou para ela e esboçou um sorriso.

– Não vou esconder nada, linda. Eu deveria ter contado antes.

– Conte agora, por favor.

– Eu consigo voltar o tempo. Consigo viajar para o passado. É uma viagem só de ida. Não
consigo voltar para o ponto em que estava.

– David... – Letícia fez uma pausa. – Eu só acredito nisso porque vi acontecendo. Mas não
consigo entender.

– É um dom que tenho desde pequeno e que o meu amigo Adalberto me ajudou a desenvolver.

– Adá? O A. de Sá que estava em nosso casamento?

– Sim. Ele também consegue voltar ao passado.

– Então, neste momento, estamos no passado?

– Isso mesmo. Mas esse é o nosso presente daqui para frente. Aliás, no outro presente o avião
iria explodir em vinte minutos, mas isso não vai acontecer porque eu modifiquei o passado e o
futuro com aquelas mensagens.

– Tudo está mais claro agora. Mas por que as pessoas estavam imóveis? Você viu no aeroporto
que ninguém se mexia, não viu?

David pegou na mão dela para dizer que havia mais ainda em suas habilidades.

– Eu consigo parar o tempo, também.

– Parar o tempo? Como isso é possível?

– Eu não sei, mas posso provar.

– Pode?

– Sim. Veja este papel. Você não vê nada escrito, vê?

Ela olhou e respondeu que não havia nada lá.


– Espere um pouco e olhe firme para o papel.

Uma mensagem apareceu:

“Te amo no limite do que meu coração pode suportar”

Ela sorriu.

– Como você fez isso?

– Parei o tempo, escrevi e o fiz retornar.

Letícia ficou olhando para o papel, espantada.

– Agora segure na minha mão e olhe para aquele relógio.

O relógio na parede parou de funcionar e as imagens perderam o contraste.

– Viu? Eu parei o tempo junto com você. Vá até a janela e dê uma olhada.

Letícia foi até sua janela, afastou a cortina e percebeu que tudo estava estático, os carros, as
pessoas e até os cachorros.

– Você acredita em mim agora?

– Nossa, David. Isso é um dom maravilhoso. Por que você não me contou ou contou para os
outros?

– O que aconteceria comigo? Eu seria tratado como uma aberração. Viraria um animal de
laboratório para estudos.

Letícia pensou por alguns segundos antes de continuar a conversa.

– Você tem razão, David.

Então Letícia fez uma pausa com cara de desconfiada enquanto olhava para ele.

– Você já usou isso comigo?

David sentiu que era o momento de contar toda a história.

– Eu jamais faria isso com você. Inclusive, havia prometido para mim mesmo que jamais
usaria as habilidades novamente depois do que fizeram conosco.

Pegou as duas mãos de Letícia, que estava sentada na frente dele, muito próxima, enquanto
conversavam.
– Nos prejudicaram no passado. Eu não queria ter esses dons, mas tenho e preciso conviver
com eles.

– Nos prejudicaram?

– Letícia, linda, preste atenção no que vou lhe contar. Nós nos conhecemos muito tempo atrás,
fomos namorados e quase nos casamos.

– Você está louco? Eu não o conhecia antes da entrevista em Lisboa.

– Não? Então por que sentiu uma atração tão forte por mim mesmo sendo casada?

– Isso eu jamais saberei explicar, e ainda hoje tem um peso muito grande na minha
consciência.

– Eu conheci você em uma danceteria quando tinha dezoito anos. Namoramos durante cinco
anos e marcamos casamento. Então, Adá voltou ao passado para interferir no nosso futuro e
impediu que eu a conhecesse, causando uma falha mecânica no meu carro justamente no dia
em que nos encontraríamos pela primeira vez.

– Que loucura, isso, Dê. É muito difícil de acreditar. Então nós fomos namorados?

– Sim, linda. Namoramos muito tempo.

– E você se lembra desse período?

– Eu não me lembrava, mas os fatos foram voltando à minha mente aos poucos.

– Isso explica tudo. Eu não conseguia parar de pensar em você depois que o conheci em
Lisboa.

David sorriu e brincou:

– É o meu magnetismo.

– Mas, por que Adá interferiu?

– É muito complicado, mas não queriam que nos casássemos. Nosso filho pode ser uma
ameaça para os outros.

– Outros? – a cabeça de Letícia rodava.

– Somos em vinte e dois com essas habilidades. Mas quem tem mais interesse em impedir o
nosso casamento é o Morrison, o chefe do grupo.

– Você já sabia de tudo isso quando me conheceu?


– Não. Minha memória foi apagada quando Adá voltou no tempo, e era para ficar assim. Mas,
nem eles sabem direito o que ocorreu, ela foi voltando aos poucos. Para ser sincero, eu me
lembrei de tudo no momento em que lhe dei o primeiro beijo. Até então, eu ficava assistindo
aos seus programas e me derretendo de paixão na frente da televisão sem saber por quê.
Cheguei a pensar em terapia.

– Explique melhor tudo isso.

– Acho melhor começar do início para que você entenda tudo o que ocorreu conosco e até
saiba como fiquei ciente de minhas habilidades.

David começou a contar a Letícia toda a sua história desde a primeira vez em que percebeu
que era diferente. Falou sobre o primeiro encontro com Adalberto, sobre o início de sua
carreira como escritor, sobre a felicidade de conhecê-la em Lisboa, sobre sua entrada para a
organização e direção da Time Same, assim como sua saída e desistência de utilizar suas
habilidades.

Letícia escutou tudo atônita, muito curiosa, querendo saber detalhes da história, principalmente
da que envolvia o nome dela, e pôde perceber que a vida de David após a intervenção girou em
torno dela, o que a deixou de certa forma feliz.

– Mas David, então aquela bomba no avião era direcionada para nós dois?

– Não posso afirmar, mas tudo leva a crer que sim. Inclusive, eu vi o Morrison na porta do
nosso casamento e, no aeroporto, depois que nós saímos de lá, vi o Shang pegando a sua
motocicleta.

– Então ainda corremos risco, não corremos?

– De certa forma, sim. Mas eu tenho os mesmos poderes do Morrison, e não deixarei que nada
de mal lhe aconteça. Eu a salvei hoje e vou salvá-la sempre.

– Sempre que você puder, mas não é certeza, não é?

– Eu garanto que vou fazer o máximo.

Letícia ficou olhando para David por algum tempo, tentando processar toda a informação que
ele tinha lhe passado. Não havia como duvidar de suas habilidades e de toda a sua história, já
que ela havia vivido parte dela e ele contou tudo detalhadamente. Seria impossível alguém
inventar uma história tão fantástica com tantos detalhes.

– Dê, você acha que o nosso amor sobreviveu à volta ao passado? Acha que de alguma forma
carregamos isso conosco?
– Acho que sim, amor. Acho que carregamos uma sombra na nossa alma quando voltamos ao
passado.

– David, logo teremos um batalhão de repórteres na nossa porta. Todos vão querer saber sobre
a nossa lua-de-mel frustrada. O que faremos?

– Acho melhor pedir ao seu assessor para divulgar uma nota na imprensa dizendo que
agradecemos todo o apoio e solidariedade e que desejamos descansar. O que você acha?

– Boa ideia. Vou ligar para ele. Tenho um aparelho com outro número que guardo aqui em
casa para quando não quero deixar o meu ligado. Também vou ligar para meus pais. Você
devia ligar para os seus. Eles provavelmente estão preocupados.

David estava constrangido com tudo o que havia contado a Letícia, pois nunca encarou suas
habilidades como grandes qualidades, mas sim como algo que o tornava diferente dos outros. E
estava feliz por ver que Letícia havia encarado tudo de maneira satisfatória, pois não suportaria
separar-se dela novamente.

***

Adalberto tentou ligar para David várias vezes, mas seu telefone estava desligado e ele não
sabia o que havia acontecido com o amigo. Por isso foi à casa de David, parou o tempo e
entrou.

– Olá, David.

– Adá? O que faz aqui? – David estava desconfiando de todos os Iguais.

– Tentei falar com você. Precisava saber como estava.

– Eu estou bem. Mas não sei se estarei na próxima. Você acha que foi o Morrison?

– Olhe, David, tenho informações seguras de que a bomba estava sob o seu assento. Você não
iria sentar-se no número dois?

– Sim. Eu sei que estava lá. Por isso desconfio do Morrison.

– Eu também. Mas não foi falta de aviso. Você sabia que ele poderia tentar alguma coisa.

– Foi sorte eu ter trocado de assento. Se a bomba estourasse sob mim, eu não teria consciência
para voltar ao passado.

– Então ela chegou a explodir. Por isso senti que voltamos ao passado por um curto período.

– Sim. E eu quase não voltei. Cheguei a ficar tonto e quase perdi a consciência.
– E Letícia?

– Já sabe de tudo.

– Você contou?

– Como eu iria explicar o que houve? Eu a estava segurando, para não sair voando pelo orifício
que se formou no avião, quando voltei no tempo. Ela viu tudo e ainda ficou comigo até eu
conseguir plantar a mensagem na polícia.

– Entendo. Não teria como esconder. E ela aceitou bem?

– Aparentemente sim. Mas tenho que esperar tudo esfriar para ver como ela vai reagir.

– David, preste atenção. Ninguém, mas ninguém mesmo, pode saber que você contou a ela. Se
o Morrison souber, ele não vai esperar outra ocasião como essa. Vai apagá-los em plena luz do
dia, sem se preocupar com a repercussão.

– Você acha que ele seria capaz de matar mais de duzentas pessoas somente para manter o seu
poder?

– Antes eu duvidava, mas as evidências dizem que sim. Acho que ele está ficando alucinado
com a ideia de você ter um filho mais poderoso que ele. Tome muito cuidado.

– Vou tomar. E você e Meire, estão bem?

Adalberto fez uma pausa.

– Tivemos algumas brigas, mas estamos muito bem. O Morrison me procurou e disse que não
iria interferir no meu relacionamento. Chegou a falar de você, mas me pareceu que não estava
muito preocupado. Por isso, ainda tenho algumas dúvidas quanto à autoria do atentado.

– Eu o vi na saída do meu casamento e vi o Shang no aeroporto.

Adalberto arregalou os olhos.

– Você tem certeza disso? Eram eles mesmo?

– Eu não me enganaria com isso. Tenho certeza.

– Então não resta dúvida. Foram eles.

– Por que tanta maldade? Eu só quero ser feliz ao lado da mulher que amo.

– Eu passei a entender você depois que comecei o meu relacionamento com a Meire, meu
amigo. Nós só queremos paz, não é mesmo?
CAPÍTULO XX

Meire não dormiu em casa. Passou a noite toda na sede da DCS, na Moletcop. Os agentes
especiais estavam ajudando a polícia federal a analisar todas as imagens que poderiam mostrar
o suposto terrorista que havia atentado contra o voo 29976 e ela havia assistido a mais de doze
horas de filmagens sem obter nenhuma pista.

Por diversas vezes ela voltou o filme em uma falha de imagem que havia quando David e
Letícia estavam sentados na cadeira esperando o voo, mas concluiu que aquilo teria sido uma
interferência na gravação, sem maiores comprometimentos para a investigação.

Meire chegou à sua casa às sete horas da manhã e encontrou Adalberto pintando um quadro
sem formas nítidas.

– Olá, meu amor. O que você está pintando... Nossa! O que é isso? Nunca vi uma pintura sua
nesse estilo.

– É como estou me sentindo. Tem muita coisa acontecendo e não sei se estou no caminho
certo.

– O que você está falando? Da organização?

– Sim. Ou você tem alguma dúvida de que aquela bomba era direcionada ao David? Se
tentaram matá-lo, poderão fazer o mesmo conosco, principalmente se descobrirem que você é
uma agente especial.

– Nós estamos protegidos. Pedi um reforço na segurança em nossa casa e ninguém poderá
entrar aqui sem ser convidado.

– Você é muito inocente, Meire. Nem imagina o que eles são capazes de fazer. Ou conseguiu
alguma pista de como eles colocaram aquela bomba no avião do David?

– Nenhuma – ela afirmou pensativa, pois realmente não havia nenhuma evidência de que
alguém tivesse passado pela segurança desde o pouso da aeronave até a decolagem.

– Está vendo? Eu quero que você entenda que, se eles quiserem, vão entrar aqui. Mas não
deixarei acontecer nada a você nem às crianças.

Repentinamente, tudo perdeu o contraste e Meire parou no tempo. Adalberto sabia que
receberia uma visita.
Morrison entrou pela porta da frente, com o olhar demonstrando ansiedade.

– Adá. – Morrison começou a falar antes mesmo de terminar de entrar. – Vocês estão fazendo
tudo errado. Afaste-se de Meire. Faça com que o David se afaste de Letícia. Todos vão morrer
se não fizerem isso.

– Como assim, Morrison. Pensei que estava tudo certo, que você nos deixaria em paz.

– Você não sabe da metade do que está acontecendo.

– Não estou entendendo. – Adalberto estava muito nervoso com a presença do Morrison na
casa de Meire.

– Você sabe que ela é uma agente especial? – Apontou para Meire, que estava inerte a mais ou
menos dois metros deles.

Adalberto sentiu o chão lhe faltar embaixo dos pés.

– Responda, Adá. Você sabe, não é?

– Por que, Morrison. Você vai eliminá-la? Isso não resolveria nenhum de nossos problemas.
Existe toda uma divisão atrás dela. Você vai ser pego mais cedo ou mais tarde.

– Você é muito inocente, Adá. Nunca conseguiu entender no que estávamos metidos. Não sabe
o perigo que está correndo.

Adalberto estava furioso e, devido a isso e à ameaça iminente à sua namorada, resolveu
enfrentar Morrison.

– Preste atenção. Se alguma coisa acontecer com Meire, eu vou caçar você até o fim do
mundo, e, quando o pegar, você sofrerá muito antes de morrer, seu canalha. Pode ter certeza de
que farei isso.

– Você não sabe de nada, Adá. Não depende de mim. Afaste-se, que ela ficará em segurança.

– Jamais. Vou protegê-la. Se eu me afastar, ela morre. Vou lutar por Meire até o fim.

Morrison virou as costas e saiu pela porta, mas antes disse algumas palavras.

– Pense no que eu falei. O fim pode estar próximo e eu nada poderei fazer.

Adalberto viu Morrison sair pela mesma porta por onde entrou e o tempo retornar ao normal.
Seu coração pulava forte no peito e seu rosto estava vermelho, com os olhos saltando da cara.

– Nossa, Adá. Você está bem?


Era a voz de Meire invadindo seus ouvidos.

– Estou. Estou sim. Só engasguei. – Fez um grande esforço para se acalmar e esconder a
recente visita de Meire.

***

Letícia ainda estava dormindo enquanto David, sentado na cama, pensava em todo o perigo
que a havia envolvido.

Estava muito preocupado com a segurança dela porque sabia que, caso Morrison resolvesse,
ele entraria facilmente naquela residência e a assassinaria.

A preocupação de David com a segurança de sua esposa era evidente, mas naquele momento
ele não conseguia pensar em nada que pudesse ajudá-la ou mesmo protegê-la integralmente.

Ainda estava pensando na segurança de Letícia quando ela acordou e lhe deu um abraço muito
apertado.

Os dois desceram para tomar o café da manhã sem conversar muito. Estavam pensativos, cada
um imerso em suas próprias conclusões, quando Letícia quebrou o gelo.

– David, precisamos conversar. O que tenho para falar é muito sério. Podemos voltar ao
quarto?

– É sobre o atentado, não é? Ele não me sai da cabeça.

– É sobre tudo, meu amor. Mas não quero conversar aqui na frente dos empregados. Vamos
subir?

– Vamos – David respondeu, apreensivo.

Caminharam para o quarto. Trinta e seis degraus separavam o piso térreo da casa do primeiro
andar, mas para David eles pareceram mais de cem.

Letícia entrou no quarto, trancou a porta e pediu para ele se sentar na cama, enquanto ela se
mantinha em pé.

– David, meu amor, você sabe o quanto gosto de você e o quanto você me poderia fazer feliz.

David sentiu a barriga gelar. Era um prenúncio de separação.

– Sei, linda. E você sabe que sou louco por você.

– Dê, eu também sofri demais quando perdi meu marido. Além de não o conhecer direito e de
tê-lo como minha base, meu alicerce, fui eu que apertei aquele gatilho. Foi a passagem mais
horrível de minha vida.

– Você não pode se sentir culpada, linda. Foi um acidente e você estava apenas se protegendo
e tentando protegê-lo, assim como ao seu filho.

– Eu sei disso, mas não se passa uma só noite em que eu não sonhe com aquele momento. Eu
matei uma pessoa. Eu matei o meu marido.

David começou a se sentir incomodado com aquela situação e chegou a pensar em responder
que ele era o seu marido agora, mas procurou segurar seu ímpeto, uma vez que entendia o
sofrimento de sua esposa.

Letícia continuou a falar:

– Diga uma coisa, David. Se voltar no tempo, você se lembrará de tudo o que aconteceu até
agora?

– Aonde você quer chegar, linda?

Ela foi um pouco ríspida com ele: – Responda, por favor.

– Sim, vou me lembrar de tudo, pois estarei no controle, assim como lembrava o que havia
acontecido quando retornamos ao saguão do aeroporto.

– Foi o que pensei. Então, se você voltasse no tempo para o momento em que nos conhecemos,
saberia que Adá iria interferir e conseguiria impedi-lo, não é?

– Não é tão simples de ser feito, mas acho que eu seria capaz disso sim.

– Essa é a solução. Você pode voltar no tempo, me conhecer, me conquistar, o que não vai ser
difícil – ela sorriu –, e eu não vou conhecer o Willian e não o matarei. Minha consciência
estará tranquila. O que você acha?

– Acho que você fez um plano muito bom, mas com uma grande falha. Você se esqueceu do
pequeno David. Se eu voltar no tempo e você não conhecer o Willian, o seu filho jamais
nascerá.

Letícia sentiu seu coração palpitar no peito, suas mãos ficaram geladas e suas pupilas
dilataram.

– Meu Deus, eu não havia pensado nisso. Não podemos voltar, então. Estamos presos aqui.

David pegou a mão dela e olhou-a nos olhos enquanto pensava:


“Sei que vou me arrepender muito disso, mas tenho que falar.”

– Não se quisermos ficar juntos.

– Como assim?

– Eu poderia voltar no tempo no momento do sequestro e impedi-lo. Você continuaria casada e


eu seguiria minha vida.

– Não, David. Isso não é possível. Eu não quero ficar sem você. Também não quero ficar com
o Willian. Ele estava me traindo e você é o meu real amor.

Letícia ficou pensativa por um momento, com os olhos em nistagmo enquanto olhava para o
chão. Ela sentou-se ao lado dele, ainda pensando nas possibilidades quando teve a solução em
sua cabeça.

– Já sei, meu amor. Temos como voltar e ficarmos juntos. Mas você vai ter que trabalhar para
me conquistar novamente.

– O que você tem em mente, linda?

Letícia sorriu docemente para ele.

– É muito simples e não sei como não pensamos nisso antes. Você volta no passado, no
momento do sequestro, e me salva. Então, você vai ser meu herói sem nem ao menos eu saber.

– Mas e depois? Você estará casada e é muito fiel. Eu não poderia me aproximar, e também
não iria querer estragar seu casamento, afastar você do pai de seu filho. Não acredito que isso
seja correto.

– O ponto é justamente esse, fidelidade. Você para o tempo, entra na minha casa já sabendo
onde o Pen Drive está e o deixa com uma carta explicando a traição do Willian para que eu a
encontre. O resto será somente consequência.

– Mas você vai sofrer com isso.

– E não vai valer a pena? Você espera a nossa separação e se aproxima de mim. Tenho certeza
de que me conquistará com todo o seu charme. Você sabe como conquistar uma mulher. Além
disso, eu posso levar esse amor que sinto comigo, assim como levei da primeira vez. Não vai
ser difícil para você.

– É a maneira perfeita para ficarmos juntos sem nenhum peso na consciência. Eu poderia livrá-
la disso, meu amor.

– Você faria isso por mim? Teria todo esse trabalho novamente?
– Eu faria qualquer coisa por você, linda. Qualquer coisa mesmo. – David sabia que havia
outra maneira, mas não quis revelar a ela.

– Eu não estou conseguindo conviver com a morte de Willian e tenho procurado esconder isso
de você. Mas isso me atormenta muito e vai nos atrapalhar no futuro. Acho que é o melhor a
fazer. Será nossa terceira chance.

– Você tem razão. – Seu coração dizia o contrário.

David abraçou Letícia e ficou olhando para longe, pensativo. Seus olhos se encheram de
lágrimas. Sabia que nem tudo seria como sua esposa estava planejando.

Os dois ficaram abraçados por alguns minutos, sabendo que a hora de se despedirem estava
chegando. E, quando se separaram, David levantou-se da cama olhando firme para Letícia.

– Você tem certeza de que quer isso? – David tinha esperança de ouvir um não.

– Sim. Tenho certeza.

– Se vamos voltar no tempo, que seja logo.

Ele se afastou dela, ficou olhando fixamente em seus olhos, que estavam cheios de lágrimas, e
as cores começaram a perder o contraste. Enquanto uma névoa circular invadiu o quarto do
casal. As imagens começaram a se torcer ao redor da névoa e no centro dela estava Letícia, que
pensou em outra maneira de voltar ao passado.

– Espere David. Pegue na minha mão assim lembrarei de tudo quando voltarmos.

Mas, era tarde e ele não queria dessa maneira. Somente falou para ela:

– Linda, eu nunca vou te esquecer. Vou te levar comigo pelo resto da vida. Para sempre vou te
amar.

Estava desesperado em perder Letícia, mas sabia que aquilo era necessário, pois não havia
outra saída. Para ele, aquele momento em que voltava no tempo foi o mais longo, demorado e
sofrido de sua vida.

David ainda pôde ouvir a voz de Letícia dizendo que o veria em breve, mas as palavras dele
foram decisivas e ela pôde escutá-las antes de encontrar-se sentada no banco de trás de seu
carro, com seu filho no colo e seu marido Willian dirigindo.

– Adeus, linda. Vou levar esse amor em minha alma.

David estava no bar com sua motocicleta parada em frente e o capacete na mão quando viu
Letícia saindo da emissora com seu marido. Aquela cena doeu forte em seu coração.
“Tenho que agir rápido”, pensou David, enquanto olhava para os lados tentando identificar o
carro dos criminosos.

Um carro preto, com as mesmas características que ele conseguia recordar, saiu de uma
pequena viela próxima e começou a seguir o veículo onde a família de Letícia estava.

David colocou o capacete, subiu em sua motocicleta e começou a seguir o carro com os
marginais dentro.

Ao entrarem na avenida à direita, David parou o tempo e utilizou-se da mesma abordagem que
fizera antes, só que dessa vez antes de conseguirem efetuar o sequestro, para garantir que nada
saísse errado.

Abriu a porta do carro, pegou as armas, pilotou até o rio próximo e as jogou dentro, voltou
para a cena anterior e virou a direção do carro, mas dessa vez mirando um poste, soltou o cinto
de segurança dos ocupantes, colocou uma mochila entre o pé do motorista e o acelerador, de
modo que ela acelerasse o carro ao máximo, impedindo que ele conseguisse utilizar os freios.
Então, fechou a porta do carro com os três bandidos dentro, voltou para sua motocicleta,
montou-a e ficou na mesma posição em que estava antes de parar o tempo.

Ao retornar o tempo, a cena já era conhecida dele, mas com a mudança de alguns detalhes.
David assistiu àquilo impassível, sem nenhum remorso. Seu coração doía por outro motivo, e
ele somente conseguia sentir muita raiva daqueles marginais.

O carro dirigiu-se em alta velocidade na direção do poste e se chocou com ele, produzindo um
grande estrondo e fazendo com que um de seus ocupantes atravessasse o vidro do para-brisa e
batesse com seu corpo desgovernado contra aquele obstáculo.

Após o forte impacto, David parou o tempo novamente, foi até o carro, vistoriou o bolso dos
marginais, que estavam muito machucados, e retirou de cada um seu aparelho telefônico.

“Vou fazer como da outra vez. Esses aparelhos podem conter informações preciosas e preciso
delas para impedir que isso aconteça novamente. Tenho que proteger Letícia a qualquer custo”
pensou ele enquanto se aproximava do ocupante que havia sido jogado contra o poste.

“Esse não sobreviveu.”

David observou que as lesões eram muito importantes e que ninguém sobreviveria àquilo. “Ele
vai ocupar o lugar que seria do marido de Letícia e o tempo vai se equilibrar. Ótimo.”

Retornou à sua motocicleta e fez com que o tempo voltasse ao normal para continuar em
frente, em direção ao carro de Letícia Lira.

Assim que a motocicleta se emparelhou com o carro, na altura da janela em que ela estava com
o filho, David olhou em seu rosto com os olhos contendo tantas lágrimas que não pôde
observar sua feição. Letícia também tinha lágrimas nos olhos.

– Adeus, meu amor – disse David, enquanto acelerava a motocicleta e sumia no horizonte.
CAPÍTULO XXI

O tempo parou e Adalberto entrou furioso na casa de David.

– Você voltou o tempo?

Seus olhos estavam vermelhos.

David olhou para baixo com o olhar muito triste.

– Voltei.

– Você sabe o que fez?

– Não estou a fim de conversar, Adá.

– Eu estava quase entrando em sua casa para conversarmos quando você voltou o tempo. Foi
cruel de sua parte, porque eu tinha muita coisa para falar antes de você decidir algo tão radical.

– Calma, Adá.

– Não, não vou ficar calmo. Você sabe o que fez? Eu não conheço a Meire. Ela é uma estranha
para mim.

David foi irônico:

– Então estamos quites, não é?

– Como assim? – Adalberto parou repentinamente e olhou curioso para David.

– Você arruinou a minha vida voltando o tempo e eu lhe devolvi isso. Foi sem querer, mas não
me arrependo.

– Grande amigo, você!

David segurou os ombros de Adalberto enquanto olhava para seus olhos e falava:

– Pense comigo, Adá. Você vai conhecê-la novamente e vai poder evitar alguns erros e manter
os acertos. É uma conquista garantida. Além disso, teremos tempo para agir.

– Agir? – Adalberto não estava entendendo.


– Letícia estava em perigo. Era questão de tempo para Morrison matá-la ou a nós dois. E você
acha que seria muito diferente com Meire? Ela também estava com os dias contados.

– E quais são os seus planos? Deixar Letícia com o marido até conseguir se livrar de
Morrison?

David demonstrou tristeza no olhar. – Mais ou menos. Eu não vou mais procurar Letícia. Não
quero mais que ela corra riscos por minha causa. Nós escapamos do atentado por muito pouco.
Foi somente obra do destino: trocarmos de lugar naquele avião.

– Você tem razão. – Adalberto estava mais calmo e pensativo. – Talvez fosse bom não me
aproximar de Meire antes de ter tudo resolvido, não é?

– Pode apostar que é o melhor a fazer.

– Você estava segurando na mão dela quando voltou ao passado?

– Não – respondeu David, pensativo.

– Ainda bem que fez assim. Dessa maneira ela não vai se lembrar de nada e fica mais fácil
você se afastar.

– Foi proposital. – David tinha os olhos mareados e a voz embargada.

– Mas você ainda é conhecido. E se Letícia o procurar por algum motivo, seja pelo que ela
pode ainda sentir por você ou para uma simples entrevista no programa dela? E tem mais.
Vocês vão fatalmente se encontrar em festas de premiação ou em eventos sociais.

– Não, Adá. Eu não vou me encontrar com ela. Vou evitá-la. Serei um escritor recluso daqui
para frente.

– Mas Letícia tem seu telefone. Você acabou de voltar de uma entrevista com ela, não se
esqueça.

– Não. Ela não tem meu telefone. Eu acabei de trocá-lo. Aquele número não existe mais.

Adalberto olhou para David incrédulo. Não podia acreditar que aquele era o mesmo garoto
perdidamente apaixonado que ele havia visto poucos dias antes.

“Minha nossa! Esse cara gosta tanto dela que vai se sacrificar para mantê-la em segurança.”

David pediu a Adalberto que esperasse um pouco porque gostaria de lhe mostrar algo.

Adalberto esperou David entrar em um quarto e voltar com três aparelhos na mão.
– Veja, Adá, estes são os telefones dos bandidos que sequestraram o filho da Letícia, ou
melhor, bandidos que não conseguiram sequestrar o menino.

– Você pegou?

– Sim, Adá. Acho que podemos encontrar informações úteis aqui.

– Que tipo de informação? – Adalberto estava curioso com o comportamento de David.

– Não sei. Mas alguma pista que mostre quem são, de onde eles vêm e o mais importante: se
têm um chefe porque, se esse líder existir, eles tentarão novamente o sequestro.

– Você sabe que um deles morreu e os outros estão em estado gravíssimo no hospital?

– O que morreu eu vi na hora. Não sabia dos outros, mas eles mereceram. Não sinto nenhum
remorso, somente raiva.

– Nossa, David. Não sei se eu teria coragem de fazer o que você fez.

– Se a Meire estivesse em perigo, você faria. Pode ter certeza. E eu quero fazer isso para deixar
a Letícia fora de qualquer risco definitivamente.

Adalberto pegou um dos aparelhos da mão de David e começou a examiná-los para ver se
encontrava algo que pudesse levar a alguma pista de quem eram aqueles homens e por que
haviam escolhido o filho de Letícia para sequestrar.

– Veja nas ligações recentes, Adá.

– Isso. Vamos dar uma olhada.

Adalberto abriu a lista de ligações e viu diversos números desconhecidos. Nenhum trazia o
nome do contato. Inclusive, a lista de contatos desse telefone era vazia, demonstrando que o
aparelho era recente e estava sendo usado somente para aquele momento.

David examinou os outros aparelhos e percebeu que estavam nas mesmas condições.

– Adá, se esses aparelhos são recentes e foram utilizados somente para o sequestro, então todos
os telefones registrados aqui devem estar envolvidos no crime.

– Tem razão. Será que nós conhecemos alguém desta lista?

– Veja este número. Ele aparece diversas vezes neste telefone e também nos outros. Eles se
comunicaram bastante com essa pessoa alguns instantes antes do sequestro.

– David, não sei lhe dizer com certeza, mas acho que conheço esse número ou um muito
semelhante.

Adalberto pegou o seu aparelho e começou a digitar o número suspeito como se fosse efetuar
uma ligação. E, para surpresa dos dois, um nome conhecido apareceu automaticamente na tela,
com a fotografia de seu dono.

– É o Shang!

Os dois falaram ao mesmo tempo.

– O que ele queria com o filho de Letícia? Por que está envolvido nisso? – David perguntou,
muito nervoso.

– Sabe o que isso significa, não é, David?

– Sim. Não acabou. Eles ainda vão atrás dela e não darão sossego. O Morrison não nos vai dar
paz.

– Agora sim eu entendo que você fez o melhor. A Meire estava correndo um grande risco. Vou
ficar longe dela.

– Adá, temos que tomar providências.

– Você realmente acha que pode com o Morrison, David?

– Tenho que tentar. É a Letícia que está em perigo.

– Pense, amigo. Você nunca treinou suas habilidades especiais e o Morrison, que tem talvez
três vezes a sua idade, já as treinou muito. Se você parar o tempo, ele lhe para dentro do seu
tempo. Morrison vai sobrepor as habilidades.

David ficou pensativo durante algum tempo, olhando para Adalberto e tentando achar uma
solução.

– Adá, eu tenho que tentar. Não tenho o treino das habilidades, mas tenho inteligência e
criatividade, e posso usar isso.

– Eu vou me arrepender do que vou dizer, mas pode contar comigo, amigo. Vamos resolver
isso juntos. Você acha melhor falar com os outros Iguais?

– Não, Adá. De maneira nenhuma. Não sabemos quem está do lado deles e quem é a nosso
favor. Seria muito arriscado. Vamos fazer isso sozinhos.

– Mas e Ingrid? Ela sempre esteve ao meu lado.


– Ingrid tem um caso amoroso com Willian, o marido da Letícia. – Essas palavras doeram no
coração de David.

– Você está se esquecendo de que ela está com o Juan. Quando você voltou o tempo não
apagou a lembrança dos dois, somente dos que não fazem parte do nosso grupo.

– Espere.

David usou o gancho para perguntar sobre uma curiosidade dele.

– Por que minha memória foi apagada da primeira vez que você voltou no tempo? Por que eu
nunca percebi os outros voltando o tempo antes de você aparecer.

– Isso é simples, amigo. Você ainda não estava treinado e, nessas condições, ninguém tem a
memória preservada. Mas, daqui por diante, você sempre saberá quando algum dos Iguais
voltar o tempo.

– Entendo, mas voltando ao assunto da Ingrid, ela está com um grande problema, pois para
Willian eles ainda são amantes.

David sorriu como se aquilo representasse uma pequena vitória na guerra em que ele fora
derrotado.

– Acredito que temos de falar com ela para saber como se aproximou dele e qual era o
objetivo. Não pode ser somente uma coincidência.

David ficou pensativo por alguns segundos. Estava procurando alguma conexão entre o grupo
e Willian.

– Adá, será que ela estava envolvida no sequestro, como o Shang?

– Não acredito. Ela sempre foi o lado bom da organização. Eu a observei durante muito tempo.
Inclusive, o namoro dela com Juan terminou porque ela não queria seguir os mesmos passos
dele e de Morrison.

– Você sabe onde ela está nesse momento?

– Não, David, mas não é difícil descobrir.

Adalberto tirou o telefone do bolso e, no menu favoritos, buscou o telefone de Ingrid e ligou.

– Olá, Ingrid. É o Adá.

– Adá, que surpresa. Temos mais alguma convenção agendada? Eu não me lembro de termos
uma este mês.
– Não, Ingrid. Eu e David gostaríamos de falar com você. Você está na África do Sul?

– Não. Estou no Brasil.

– Fale para ela nos encontrar no parque central em uma hora – David cochichou ao ouvido de
Adalberto.

Assim Adalberto o fez e Ingrid concordou.

***

Ingrid estava esperando sozinha em um banco no parque próximo ao Planetário da cidade.


Esse era o ponto de encontro e ela sabia que aquele local ficava na sombra, onde eles poderiam
conversar em paz longe do sol forte que fazia naquele dia.

Adalberto chegou andando na frente com David logo atrás. Ele estava mais determinado que
seu amigo a ter aquela conversa com Ingrid. Pontos muito importantes necessitavam de
esclarecimentos urgentes.

– Olá, Ingrid.

– Olá, Adá.

David também se aproximou e a beijou no rosto como forma de cumprimento.

– Precisamos muito falar com você. É sobre Willian e Morrison.

Ingrid olhou para David.

– Foi você quem voltou o tempo, não foi?

– Foi necessário – respondeu David, sem deixar um intervalo entre a fala dela e a dele.

– Seja como for, já está feito e eu até gosto de reviver o passado – Ingrid deu de ombros.

– Seja como for – Adalberto continuou –, David me lembrou sobre o Willian e você. Também
sabemos que isso deve ter sido algo ordenado por Morrison, não é?

– Vocês não sabem da metade. Eu não fui obrigada a me aproximar de Willian.

– Como não? – David estava admirado.

– Não. Eu combinei isso com o Morrison.

Nesse momento, David acreditou estar cometendo um grande erro, pois ela estava
demonstrando ser do lado de Morrison e não uma aliada deles.
– Chega, Adá. Vamos embora. Não conseguiremos nada aqui.

– Não, David. Ela vai nos dizer o que está acontecendo. – Adalberto olhava para ela com raiva
nos olhos.

– Vocês querem saber a verdade? Então é melhor se sentarem. Mas antes terão que me dizer
qual é o objetivo. Principalmente, por que o David voltou o tempo.

– Isso é simples. Eu precisava para proteger Letícia. Atentaram contra nós e não iria parar por
aí. Além disso, ela carregava a morte do marido na consciência. Voltando o tempo eu posso
me afastar dela e preservá-la. Não vou mais procurá-la.

Ingrid olhou para ele admirada e feliz com o que estava escutando.

– Isso é que é amor, menino. Espero que algum dia alguém me ame tanto para se sacrificar
dessa maneira.

– Você tem o Juan e não lhe dá valor.

– Não é bem assim. Nós não combinamos. Temos pensamentos diferentes e, por isso, nos
separamos na primeira vez.

– Você acabou de dizer que entrou em acordo com o Morrison para se aproximar do Willian.

– Isso mesmo. Fiz isso porque faço parte dos mocinhos da história, como sempre lhe disse.

– Você está me confundindo – Adalberto não estava entendendo tamanha contradição.

– Vocês dois ainda não me disseram qual é o objetivo de procurarem essas informações.

– Vamos resolver tudo isso. Tirar o poder de Morrison.

Ingrid soltou uma gargalhada enquanto olhava para os dois.

– Vocês realmente não sabem de nada. Acredito que não seja interessante lhes passar essa
informação, pois poderão se meter em encrenca. Eu os aconselho a ficarem longe do Morrison.

– Você não nos ajudará em nada e ainda se diz a mocinha. Você fala isso desde que nos
conhecemos. – David estava furioso.

– Olha, David, eu vou ajudar sim. Mas preciso falar com as pessoas certas antes. Não vou me
precipitar. A única coisa que posso falar agora é que eu me aproximei do Willian justamente
para proteger a família dele, ou seja, Letícia e o filho. Mas deu tudo errado e eu me apaixonei
por aquele homem. O resto vocês já sabem.
– Não acredito em você, Ingrid. Você não está dizendo toda a verdade. – Adalberto também
estava nervoso com a omissão dela.

– Não, Adá. Não estou dizendo tudo, mas o que digo é a mais pura verdade e também posso
completar dizendo que tem mais gente querendo reorganizar o grupo e tirá-lo da criminalidade.
Quando for a hora, nós os procuraremos.

Ingrid levantou-se e saiu sem ao menos se despedir dos dois, que ficaram olhando para ela
enquanto se afastava.

– O que você achou, Adá?

– Ela está dizendo a verdade, mas a história está muito confusa.

– Por que ela se aproximou de Willian para proteger Letícia com o consentimento de
Morrison?

– Não sei, David. A única história que teria lógica seria se ela se aproximasse dele para
protegê-lo do Morrison e não junto com ele.

David levantou-se, andou um pouco ao redor do banco, pegou algumas pedras e as atirou em
um lago que havia não muito longe dali. Estava pensando em uma maneira de desvendar o
mistério. David queria descobrir quem eram os Iguais que queriam reorganizá-los e quais
estavam contra eles. Então um pensamento lhe clareou repentinamente a cabeça.

– É isso, Adá. Temos que provocá-los.

– Provocar? Provocar quem?

– Pense comigo. A organização está dividida. Temos um lado mal e um lado bom. Se
provocarmos o lado mal, eles virão para cima de nós e logo saberemos quem é quem. Podemos
nos unir aos integrantes bons.

– Você bebeu? É louco? Em que momento parou de escutar quando eu lhe disse que o
Morrison era perigoso?

David ainda estava em pé quando Adalberto lhe respondeu. Então, David sentou-se ao lado de
seu aliado e começou a falar calmamente:

– Faça uma força para entender. Deixe sua mente aberta. Eu não tenho mais nada a perder. Já
perdi Letícia, a editora de meus livros é uma empresa de fachada para o crime e nem fiz muitos
amigos durante todo esse tempo, com exceção de você, que por sinal me traiu uma vez.

Adalberto olhava para David com muita atenção e uma curiosidade maior ainda.
– Continue, David. Quero ver aonde você vai chegar.

– E você? O que tem a perder? Já perdeu a Meire e nunca pôde ter uma namorada por muito
tempo. Se você continuasse com ela, fatalmente já a teria perdido tragicamente.

– Eu esqueci de lhe falar, David. Antes de você voltar no tempo, o Morrison me visitou e
mandou que me afastasse dela. Disse que algo muito ruim poderia acontecer.

– Ele o ameaçou?

– Não. Aquilo me pareceu mais um aviso do que uma ameaça. Se ele quisesse fazer alguma
coisa com ela, teria feito naquele instante. Pensando bem, parece que ele estava querendo nos
proteger.

– Proteger? De quem? Ele mostrou algum motivo concreto para dizer que vocês corriam perigo
ou algo assim?

Adalberto sentiu que era a hora de contar a verdade.

– Sim, David. Ele falou o que eu já sabia. Meire é uma agente especial de uma divisão que está
nos monitorando. Eles sabem que fazemos carregamentos e querem pegar os maiores do
grupo. Ela se aproximou de mim por causa disso.

– Nossa! Isso é chocante. Então você não a perdeu. Você nunca a teve.

– Você se engana, David. Ela se aproximou para isso, mas se apaixonou por mim e me contou
tudo. Se Morrison, que sabia disso tudo, não a matou naquele dia, pode ser que ele estava, na
verdade, tentando nos proteger.

David estava processando todas as informações e fazendo ajustes finos aos seus planos quando
falou para Adalberto:

– Vou escrever um livro.

– O quê? É assim que você vai provocá-los. – Adalberto começou a rir. – Seus livros não são
tão ruins.

– Não ria antes de saber meus planos. Primeiro, vou quebrar o contrato com a editora da Time
Same. Não quero mais escrever por lá. Eles jamais lançariam o livro que vou escrever. Depois,
vou procurar outra editora grande, com capacidade para lançar minha obra mundialmente.

– Ainda não estou entendendo aonde você quer chegar. Como escrever um livro vai provocá-
los? Como os atrairá para nós? Se é que estamos falando de mais de um.

– Eu vou contar tudo. – David olhou sério para Adalberto, que ficou parado, atônito, vendo
aquele garoto determinado.

– Você vai o quê?

– Contar a nossa história. Contar a minha história com Letícia, falar das nossas habilidades e
de toda a trama da qual participamos. Não deixarei escapar nenhum detalhe.

– Agora sim, eu tenho certeza de que você é louco. – Adalberto estava chocado com a ideia de
David. – Você caiu da motocicleta e bateu a cabeça?

Adalberto estava com um sorriso forçado na face, mas seu coração batia forte no peito. Aquela
era uma situação muito estressante para ele.

– Não, Adá. Não pense que vou fazer uma biografia. Vou contar como se fosse um livro de
ficção, ou melhor, um romance de ficção. Não usarei o nome verdadeiro das pessoas
envolvidas, mas o livro será repleto de detalhes.

– Você tem razão. Vai deixar muitos Iguais irados e vai ser caçado por aqueles que estão do
lado mal. Caramba! Você tem coragem mesmo.

– Você está comigo nessa?

– Claro que sim, David. Como você mesmo disse, não tenho nada a perder, só a ganhar. Se
tivermos sucesso, eu poderei procurar Meire; se não, apenas morrerei em meio a alguma sessão
de tortura – esboçou um sorriso.

David sorriu, pensando na felicidade do amigo, que ele tinha uma chance de ter uma bela
esposa e cuidar dos filhos dela.

– E você, David, Vai procurar por Letícia?

– Não, Adá. Essa vida que levamos sempre a colocará em risco. Além disso, como ela não
sabe de nada, ficará com o seu marido para criar o filho. Eu vou me encarregar de afastar
Ingrid do Willian, se é que ela já não fez isso por conta própria.

Adalberto olhava para aquele garoto que havia se tornado um homem maduro. Gostaria que a
história de David tivesse um final feliz, mas sabia que isso seria impossível, uma vez que ela
havia se desenrolado dessa maneira. E se sentiu culpado por ter interferido na primeira vez.
CAPÍTULO XXII

David sabia que precisaria ficar em segurança para escrever o seu livro e, por isso, resolveu
pegar sua motocicleta, parar o tempo e viajar para uma pequena cidade que ficava dentro da
floresta amazônica. Queria ficar isolado do mundo, num lugar onde não houvesse televisão,
rádio, jornais e nem mesmo seu telefone funcionasse.

Sabia que, isolando-se do mundo, além de poder escrever o livro mais rapidamente, não veria o
programa da Letícia Lira na televisão ou mesmo escutaria qualquer notícia a seu respeito. Isso
poderia ajudar a diminuir a sua dor, que lhe apertava cada vez mais o coração.

Ele chegou a uma pequena cidade com aproximadamente cem casas e trezentos habitantes. Era
como uma grande praça com uma prefeitura, uma capela e um mercadinho no meio.

O mercado central era abastecido uma vez a cada mês e era o único contato que essa cidade
tinha com o mundo exterior. Por isso ele a achou perfeita.

Aquela localidade havia sido formada por antigos trabalhadores de uma rodovia que fora
aberta no meio da floresta muitos anos antes e já havia sido consumida, em grande parte, pela
vegetação implacável com as construções humanas. Um grande erro de engenharia e
planejamento.

David entrou vagarosamente com sua motocicleta na cidade e todos o olharam como um
invasor. Ele parou no mercado e contou o motivo de estar lá. Disse que era um escritor famoso
da cidade grande, que precisava de muito sossego para escrever o seu livro, e perguntou se
havia alguém que poderia abrigá-lo em sua casa em troca de um bom pagamento.

Uma senhora conhecida por ser curandeira e parteira da cidade, ofereceu sua casa.

– Eu tenho um quarto sobrando em minha casa, já que meu filho foi para a cidade grande
quando completou dezoito anos. Se o senhor quiser, pode ficar lá comigo, desde que não faça
muito barulho e me ajude com alguns afazeres da casa.

A oferta lhe pareceu muito tentadora, já que a senhora explicou que os tais afazeres eram
buscar água no poço e alimentar as galinhas e porcos, que proporcionavam uma boa fonte de
proteína para eles.

– Eu vou adorar, senhora. E deixarei uma boa recompensa por sua hospitalidade.

Apesar de o dinheiro não ser o mais importante naquela comunidade, a senhora sentiu que
poderia comprar algum conforto para sua filha, que tinha vinte anos e não possuía sequer um
sapato que lhe coubesse confortavelmente nos pés.

David conheceu a casa onde moraria nos próximos meses. Era uma pequena moradia com
cinco cômodos: uma sala, uma cozinha, o banheiro e dois dormitórios.

– Senhor, este será o seu quarto. Hoje minha filha o utiliza, mas terá prazer em cedê-lo. Ela
dormirá comigo.

David sabia que iria incomodar a garota, mas precisava de um canto para se concentrar e ela
precisava de dinheiro para comprar as roupas e, principalmente, um sapato bom. Ele também
viu algo muito importante: havia energia elétrica na casa, que era produzida por um gerador
comunitário.

– Vou me sentir bem aqui. Muito obrigado.

David se instalou no quarto, colocou suas poucas roupas em um varal com cabides que havia lá
e montou seu computador sobre uma mesa confortavelmente.

A noite passou rapidamente, já que David estava cansado da longa viagem que fizera e a
senhora o acordara às cinco da manhã.

– Aqui se acorda tão cedo, dona Elisa?

– Temos que acordar com o sol. Temos que aproveitar a luz do dia ao máximo para gastarmos
menos diesel do gerador à noite.

– Então, vejo que terei de escrever o meu livro durante o dia. – Ele sorriu.

David ajudou Elisa e sua filha Meg a montar a mesa para o café, tirou água do poço, lavou a
louça e as roupas que havia utilizado no dia anterior, além de alimentar as galinhas e os porcos
que ficavam no fundo do quintal da residência.

– Acho que é só, não, dona Elisa?

– Preciso somente que me ajude a consertar um vazamento no telhado. Aquele furo ali – ela
apontou para o alto.

David sorriu para a senhora.

– Vejo que isso vai levar mais tempo de que imaginei. Mas terei prazer em ajudar.

Após terminar todos os afazeres da casa, consertar o telhado que não via um reparo havia
muitos anos, ajudar a reparar uma tomada que estava com mal contato, David pôde finalmente
sentar-se em frente ao seu computador.
“Bom. Agora vai. Estou cansado mas feliz por estar aqui. Ajudar essas pessoas me faz muito
bem” pensou ele, sorrindo. – Vamos lá, David – começou ele a falar em voz alta. – Vamos
pensar em um título.

David começou a pensar e, a cada título que imaginava, falava em voz alta para ver como
soava. Nenhum o convencia. Afinal, aquela seria a sua história com Letícia e deveria exprimir
os seus sentimentos mais profundos logo no início, mais precisamente, na capa do livro.

Ao perceber que estava tentando dar um título ao livro, Meg pediu licença para entrar
timidamente no quarto.

– O senhor está com dificuldade em conseguir um título para o seu livro?

– Você nem imagina. – David fez sinal negativo com a mão. – Minha imaginação não está me
ajudando muito hoje.

– Eu leio bastante. Já li dois livros seus que meus amigos emprestaram e posso ajudar.

Não era má ideia. Já que ele não conseguia um título, não atrapalharia em nada deixar que ela
tentasse ajudá-lo. O que ele teria a perder?

– Conte um pouco da história para que eu pense em algo, senhor David.

David fez um resumo da história que viveu com Letícia e, como sempre acontecia quando se
lembrava, isso o consumia por dentro e seus olhos ficavam marejados.

– Já sei, senhor David. Não há outro título para o seu livro que não seja A Sombra da Alma. –
Ela movimentou as mãos como alguém que está lendo um letreiro ao alto.

David olhou para ela admirado.

– Caramba! Você é boa nisso. Vai se chamar A Sombra da Alma sim. É um nome perfeito para
meu livro.

Meg sorriu envergonhada e feliz por tê-lo ajudado, além de imaginar que assim que lesse
aquele livro poderia ficar orgulhosa por ser a responsável pelo título.

– E tem mais, garota. Como me ajudou, vou fazer uma homenagem a você. A personagem
principal do livro vai se chamar Meg. Você quer me ajudar a encontrar o nome do moço que
faz par romântico com ela?

– Pode ser Bill? É o nome do rapaz que eu gosto da outra cidade. Ele é filho de americanos que
estão aqui para trabalhar com minérios.

– Ótimo. Vai ser Bill e Meg.


David estava descontraído. Aquela menina era muito simpática e sua mãe muito atenciosa. Ele
se sentiu em casa por alguns momentos. Foi então que pensou que deveria ajudar mais aquela
família. A Meg era muito inteligente e estava desperdiçando isso naquele fim de mundo sem
muita estrutura para viver.

– Meg, chame sua mãe.

– Por quê? Eu fiz alguma coisa errada? – Ela ficou com medo.

– Não, querida. Você me ajudou tanto que não preciso mais escrever hoje. Vamos até o
mercado comprar algumas roupas e sapato para você. Será o meu pagamento pelo título. O que
você acha disso?

Os olhos de Meg brilharam. Ela sonhava com um par de sapatilhas que estavam à venda havia
um mês no mercado. O sorriso dela iluminou o ambiente e lembrou imediatamente o de
Letícia.

O resto do dia foi utilizado para compras, tanto de roupas como de comida. Aquela família
estava necessitada e David sabia que poderia ajudar com muito pouco.

Pela primeira vez, desde a separação, ele se viu feliz e foi dormir se sentindo muito leve.

Um último pensamento povoou sua mente antes de dormir com um sorriso no rosto:

“Como é bom fazer o bem!”

***

David passou vários dias escrevendo seu livro naquela cidade onde as manhãs eram sempre
rotineiras, com os afazeres da casa, a ajuda no almoço, e somente depois disso ele podia se
fechar no quarto para produzir várias páginas por dia.

Meg sempre escutava o som do teclado do escritor no quarto e ficava tentando imaginar o que
ele estava colocando naqueles textos. A curiosidade dela era muito grande, e histórias de amor
sempre a atraíam.

Certo dia, Meg bateu na porta do quarto de David para avisar que tinha feito um chá quente
com bolachas que havia assado no forno à lenha de sua mãe. E, ao abrir a porta, David estava
com os olhos cheios de lágrimas.

– Senhor David, o que houve?

– Me chame de David, por favor. Já somos amigos há bastante tempo.

– Por que você está com os olhos vermelhos?


– Eu estou em uma parte triste do livro.

– Já sei. É quando eles se separam, não é?

David ficou olhando para aquela bela moça pensando no desperdício que era ela ficar
enfurnada naquele fim de mundo.

– É sim, querida. É muito triste.

Ela pegou um pedaço de papel que estava perto da mesa de David e enxugou uma lágrima que
escorria no rosto dele.

– Foi muito difícil para você?

– O quê? O que foi difícil?

David percebeu que ela era esperta o suficiente para entender tudo o que acontecera.

– A sua separação. Ficar sem ela foi muito difícil?

Davi respirou fundo, pegou as mãos de Meg e olhou nos olhos dela antes de responder:

– Não foi. Está sendo. Eu perco um pedaço de mim a cada pôr do sol.

– Então coloque tudo isso no livro. Assim que ela ler, verá que você ainda é apaixonado por
ela e voltará.

– Não existe possibilidade, querida. Ela não se lembra de nada.

Meg olhou para ele curiosa.

– Ela sofreu um acidente ou algo assim?

– Sim, foi algo parecido. Sua memória não existe mais.

– Ela morreu? – Meg estava assustada.

– Não, mas não se lembra de nada que houve entre nós.

Meg olhou nos olhos de David firmemente antes de falar:

– Se não for a morte, nada é irreversível. Vocês vão voltar. Eu sinto isso. E eu nunca erro. –
Soltou as mãos de David, virou as costas e foi para a cozinha ajudar a mãe.

Apesar de não acreditar na possibilidade de voltar com Letícia e também não crer em previsões
como aquela que Meg acabara de fazer, David sentiu uma grande esperança de voltar a ser
feliz algum dia. Abriu um grande sorriso para Meg, que já havia saído do alcance de sua visão.

– A morte pode ser revertida sim – ele falou baixo antes de voltar ao teclado.

***

Adalberto tentou estabelecer contato com David várias vezes. Ligava para o telefone novo
todos os dias pelo menos duas vezes, sendo uma pela manhã e outra a noite. Mas nada de
conseguir contar as novidades para o amigo. E eram muito boas.

Ele sabia que David iria procurar um local tranquilo e afastado para escrever o seu livro, mas
não havia dito para que lado iria ou em que cidade pretendia estabelecer moradia até o final da
obra.

Como não tinha notícias de David, logo Adalberto começou a se esquecer do plano de tentar
reorganizar os Iguais e descobrir quais eram bons e quais eram maus. Tentava levar a vida
normalmente, produzindo alguns quadros e expondo em galerias, mas mantendo-se afastado
dos outros integrantes do grupo.

Os dias se passaram, mas para ele estavam se arrastando, pois ainda faltava muito tempo para
que Meire o abordasse no aeroporto ou em qualquer outro local, já que eles haviam modificado
o passado e, com isso, o futuro se tornara incerto.

“Será que algum dia ela virá me procurar?” – esse era o pensamento que mais habitava a mente
de Adalberto enquanto ele estava pintando os quadros.

Expor somente em galerias próximas era a estratégia que ele havia adotado para atrair Meire,
pois sabia que ela realmente gostava de suas obras e não seria uma surpresa entrar pela porta
para comprar uma. Por isso, durante as exposições, ele ficava em tempo integral na galeria e
passava a maior parte do tempo olhando para a porta.

“Que saudade eu sinto dela. Será que ela está bem? E as crianças? Tenho saudades de todos.”

Adalberto conseguia entender como David se sentia durante todo o tempo que estava afastado
de Letícia.

***

O livro de David estava quase terminado e ele fazia apenas algumas revisões. E não se
esqueceu de nenhuma frase que disse à Letícia, somente as modificou um pouco, como a frase
em que diz que os pássaros não voam, o céu os levita. Ele escreveu:

“Os pássaros levitam no céu e é assim que me sinto ao seu lado”.

Com isso ele achou que ficaria mais realista no contexto do livro.
O final era muito triste, com a separação dos dois e Bill entrando em profunda depressão, indo
morar em um vilarejo distante, enquanto Meg ficara casada com seu marido infiel.

A fim de ter uma opinião sobre a escrita, David pediu que Meg lesse o livro para lhe dizer se
deveria trocar alguma coisa ou corrigir algum erro que ele não tivesse percebido.

Meg assim o fez. Leu o livro no computador em apenas dois dias, enquanto David ajudava sua
mãe. Ela fez algumas anotações ajudando a corrigir os erros gramaticais e escreveu uma
observação no final do livro.

– Toma, David. Aqui está o livro como deve ser. – Entregou o computador para ele que o
guardou para ler mais tarde.

Após a janta, David pediu licença, como fazia sempre, dirigiu-se ao banheiro para um banho
quente, vestiu o pijama e foi para a cama. Porém se lembrou das correções de Meg e resolveu
dar uma olhada no que ela havia encontrado de erros.

“É impressionante como a gente deixa passar erros enquanto está escrevendo”, pensou.

David rolou as páginas até o final, procurando observar rapidamente os comentários de Meg, e
percebeu o quanto ela era boa nisso. Reconheceu que ela havia feito uma revisão perfeita do
texto.

“Essa menina seria uma ótima revisora ou mesmo escritora. Não posso deixá-la desperdiçando
o talento nesta cidade.”

Ao chegar ao final, David viu que havia um comentário maior. E o leu com espanto.:

“Caro David, você deverá continuar a escrever este livro em breve. Eu sugiro que para a
continuação você adote o título A Luz na Escuridão”.

– Meg! – gritou.

Ela entrou correndo no quarto de David, assustada e preocupada, pois não sabia o que havia
acontecido. Sua mãe a acompanhou.

– O que houve?

David estava deitado na cama com o computador no colo. Ele sorriu quando percebeu que
assustou as duas.

– Desculpe se as assustei. Não aconteceu nada. Somente quero saber o que Meg quis dizer com
este comentário no final do meu livro.

– Você não percebe? Pense um pouco e irá descobrir.


Meg sorriu e virou as costas para ele enquanto saía do quarto.

– Vamos, mãe. Ele precisa dormir.

***

Chegou o momento da despedida e a motocicleta de David estava na frente da casa, com sua
mala e seu computador presos na parte de trás, no local que seria destinado a um passageiro.

Ele se encontrava fora da motocicleta e foi se despedir de todos os moradores com os quais
havia feito amizade. E esses eram praticamente os trezentos do vilarejo.

Ao retornar para perto de seu veículo, viu que Elisa e Meg estavam muito tristes com sua
partida. Os laços que se haviam formado entre eles eram muito fortes e seria difícil de serem
quebrados.

– Não quero encarar esta despedida como um adeus, mas sim como um começo. – David
estava visivelmente emocionado. – Tenho vários assuntos para resolver em minha cidade e
prometo que voltarei assim que estiverem solucionados.

– Você nos visitará? – Meg perguntou sorrindo, feliz com a possibilidade de vê-lo novamente.

– Sim.

– Então traga ela.

– Você sabe que ela não virá. Mas prometo que retorno assim que puder.

David subiu em sua motocicleta, ligou-a e saiu olhando para as duas que não sabiam que ele
tinha planos de voltar em breve para oferecer algo maior para Meg e sua mãe.
CAPÍTULO XXIII

Apesar de estar envolvido com suas obras de arte, as vendas e a esperança de encontrar Meire
antes do tempo esperado, Adalberto continuava a tentar entrar em contato com seu amigo.

Além de estar curioso para saber se ele estava mesmo escrevendo o livro que poderia cair
como uma bomba no colo dos Iguais, estava preocupado com a calmaria que vivera nos
últimos tempos.

Morrison não importunava nenhum dos integrantes do grupo havia bastante tempo. Ingrid
seguia sua vida, agora tentando manter seu relacionamento com Juan, principalmente após
terminar de forma inesperada para Willian o caso que matinha com ele. Susan estava na
Inglaterra cuidando de seus negócios como empresária de grupos de rock, Lee vivia um grande
amor com Kai e os outros integrantes do grupo cuidavam de seus negócios particulares.

Adalberto pegou o aparelho naquela manhã na esperança, mais uma vez, de conseguir falar
com David. Marcou o número de seu telefone, acionou a chamada e, para sua surpresa, o
telefone estava funcionando.

– Adá, é você?

Uma voz conhecida atendeu do outro lado da linha.

– Sou eu mesmo, amigo. Há quanto tempo! Por onde você andou?

– Eu lhe avisei que iria escrever o livro. Fiquei em uma cidade isolada todo esse tempo e
conheci pessoas maravilhosas. Você nem imagina a hospitalidade deles e como foi bom para a
minha alma ficar naquele local.

David pareceu uma nova pessoa para Adalberto. Estava renovado. Sua voz não era mais
depressiva.

– Que ótimo, amigo. Podemos nos encontrar?

– Agora não. Vou à minha nova editora daqui a pouco para assinarmos o contrato do novo
livro.

– Você já rescindiu com a nossa editora?

– Ontem mesmo mandei uma carta registrada em cartório rescindindo o contrato. Vou pagar a
multa e estarei livre.

– Mas quando você chegou?

– Ontem. Pilotei por dois dias seguidos. Foi uma loucura. Só parei para dormir.

– Que saúde, amigo! Chegou e já foi resolver as pendências?

– Sim, Adá. Nos falamos mais tarde. Passo em sua casa depois.

David desligou o telefone, pegou o arquivo com seu livro e se dirigiu à Zenin, sua nova
editora.

O contrato foi assinado sem nenhum problema entre as partes, pois o acordo já havia sido feito
por telefone e David não estava pedindo muito pela publicação. Assim como a editora, ele
sabia que o livro venderia muito bem, mas seu interesse a essa altura não era o dinheiro e sim a
divulgação. E foi isso que ele fez questão que constasse muito claro no contrato.

***

No final da tarde, David chegou à casa de Adalberto para conversar com ele e lhe contar tudo o
que havia vivido naqueles dias que ajudaram a diminuir a dor em seu coração.

Ao entrar, seu amigo lhe deu um forte abraço com o sorriso estampado no rosto. Adalberto
realmente gostava de David e queria que tudo terminasse bem para ele.

– Olá, meu amigo. – Adalberto estava muito contente em vê-lo.

– Olá, Adá. Alguma novidade de Morrison ou dos Iguais?

– Nada, David. Tudo ficou muito calmo repentinamente. Isso até me preocupou no começo,
mas depois relaxei. Porém tenho notícias sobre Letícia.

David olhou sério para Adalberto, fez sinal para que ele ficasse calado e começou a falar:

– Adá, vou ser bem claro com você. Eu fiquei em um local isolado. Lá não havia televisão,
rádio, Internet nem sinal de fumaça. Eu não tinha como saber nada que estava ocorrendo aqui e
esse era o meu desejo. Ontem mesmo doei a minha televisão e não pretendo assistir a nenhum
tipo de noticiário que possa me lembrar de Letícia.

– Mas David, são boas notícias. – Adalberto estava ansioso.

– Adá, só me fale se ela estiver em perigo ou estiver precisando de mim. Se ela estiver bem,
não diga nada. Não quero ouvir.
Adalberto olhou para o lado, passou a mão no rosto, nervoso como alguém que quer muito
contar algo, mas não pode.

– Está bem, David. Você é quem manda. Não falarei nada. Mas, se mudar de ideia, posso lhe
contar todos os detalhes.

David contou a Adalberto tudo o que vivera naquela pequena aldeia de trezentos habitantes.
Falou-lhe sobre Meg e sua mãe Elisa. Sugeriu que as duas fossem aproveitadas em algo no
futuro e demonstrou bastante vontade de ajudar todo o povo daquele local.

Adalberto ouviu tudo com muita atenção, mas estava preocupado com o livro. Quando seria o
lançamento e qual seria o plano deles.

– Quanto tempo vai demorar para seu livro ser lançado, David?

– Eu exigi no contrato que ele fosse lançado em no máximo duas semanas. Será um tempo
recorde, mas eles disseram que podem produzir o livro nesse tempo.

– Você vai fazer o lançamento?

– Não, Adá. Eu não quero mais aparecer em público. O livro será lançado somente pela editora
com uma grande campanha de marketing na TV.

– Já sei. Você não quer que ela vá ao lançamento e o encontre, não é mesmo?

– Eu tenho que esquecê-la em definitivo. E ela tem que seguir sua vida com a família. Não
quero atrapalhar.

Adalberto se mexeu no sofá como se estivesse sentado sobre espinhos. Sua vontade era falar,
mas havia prometido ao amigo que não tocaria mais no assunto.

– Está certo, David. Faça assim. Tenho certeza de que vai dar certo. E quanto à estratégia com
o grupo?

– Não tenho.

– Como? Você não pensou em nada? Está louco? Eles vão nos picotar e jogar para os porcos.

– Não, Adá. Vamos esperar. Eles vão nos procurar e então nos juntaremos aos bons e os
enfrentaremos. Será uma batalha de vida e morte, onde somente um lado será vencedor.

– Espero que seja o nosso. – Adalberto estava olhando para o chão, temeroso.

– É na cabeça que tem que acertar, não é, Adá?


Adalberto olhou espantado para David.

– É sim, David – respondeu hesitando.

Adalberto ficou pensando em como seu amigo havia mudado. E, após algum tempo em
silêncio, quebrou o gelo.

– Você foi ver sua família?

– Não. Não vou vê-los até tudo isso terminar. Eu falei que estava em viagem ao exterior a fim
de realizar uma pesquisa para meu próximo livro e não sabia quando voltaria.

– Acha que assim os protegerá?

– Sim. Depois que tudo terminar, se der certo, vou procurá-los para me despedir.

– Despedir? Você vai viajar?

– Pretendo ir para algum lugar como aquele onde estive. Quero viver isolado do mundo, sem
notícias e somente escrevendo meus livros e os enviando para a editora.

Adalberto olhou para David pensando que ele o surpreendia a cada dia, ou melhor, a cada
minuto. E foi então que seu remorso por ter interferido na vida daquele rapaz veio à tona e fez
com que seu coração lhe doesse forte no peito.

***

O livro de David foi lançado com uma grande campanha de marketing. Ele estava presente no
horário nobre de todos os canais de TV, nos jornais, em campanhas publicitárias de rua e na
Internet.

A editora investiu muito dinheiro por saber que o retorno seria certo e rápido. David era um
jovem escritor que havia esgotado diversas edições de todos os seus títulos e não seria
diferente dessa vez.

Adalberto viu todo aquele estardalhaço em torno do livro com apreensão e ansiedade, mas
sabia que aquilo era necessário.

Em apenas um dia, muitos livros foram vendidos e a mídia digital não dava conta de
contabilizar quantos saíam a cada minuto. Foi o maior sucesso de vendas do país e a editora
ligou para David a fim de avisar que estava pensando em já mandar imprimir a segunda
edição.

Letícia Lira viu o comercial sobre a obra de David Leniz ainda no estúdio. Johnny Ley estava
anunciando o lançamento ao vivo em seu programa e falando que representava uma ficção que
poderia ser verdadeira. Bastava o leitor acreditar. Essa era a chamada do livro que o marketing
da editora havia pago para ser utilizada. Ele aproveitou para contar trechos do livro e até leu o
primeiro capítulo para seu público.

– Souza! – Letícia gritou para seu assessor.

Ele veio correndo do fundo do corredor e entrou em sua sala ofegante.

– Aconteceu alguma coisa, Letícia?

– Quero uma entrevista com David Leniz. – Ela estava com o olhar determinado. – E quero um
livro dele agora.

– Não sei se consigo o livro. Parece que já se esgotou.

– Então me traga um digital. Vire-se!

Letícia estava amarga. Muito diferente do que era antes. Todos comentavam que ela já não era
mais simpática como em outros tempos e estava tratando mal toda a sua equipe, com respostas
negativas e brutas fora de hora. E Souza fora quem mais sentira, pois estava em contato direto
com ela todos os dias, mesmo fora do horário de gravação.

– Mas, você sabe que não conseguimos falar com ele no número antigo das outras vezes que
me pediu. E não foram poucas. De acordo com a empresa de telefonia, ele mudou seu número.
Lembra que você me pediu que entrasse em contato com a empresa há um mês e eu nada
consegui?

– Não me interessa. Eu sei que você pode e vai conseguir. Você é pago para isso.

– Por favor, Letícia, veja as matérias a respeito desse escritor. Todas falam que ele sumiu e não
quer mais contato com a imprensa. Ele se tornou recluso. Até corre o boato de que ele morreu
e de que o substituíram por um grupo de escritores. Nosso Johnny Ley deu essa notícia em seu
programa.

– Eu lhe perguntei alguma coisa, Souza? Acho que não, não é? Pelo que me lembro, eu lhe dei
uma ordem.

Souza abaixou a cabeça contrariado e muito triste com o comportamento de Letícia.

“Ela era um amor de pessoa. Como isso foi acontecer?”

– Souza, você não escutou? – Letícia continuava brava.

– Sim, Letícia. Vou fazer o possível.


– E o impossível – completou ela, enquanto Souza saía da sala.

***

O telefone da mãe de David tocou e ela correu à sala para atender, achando que era o filho.

– Dona Sara? – Uma voz desconhecida estava do outro lado da linha.

– Quem deseja?

– Meu nome é Souza. Sou assessor de Letícia Lira e estou falando diretamente da emissora. É
a senhora?

– Sim. Pode falar.

– A senhora tem o novo telefone de David Leniz? Não consigo falar com ele no antigo e a
apresentadora Letícia Lira gostaria de convidá-lo para uma nova entrevista.

– Ter o telefone dele, eu tenho, mas não sei se estou autorizada a passar para você. Nem o
conheço! – Ela estava temerosa. David havia recomendado para não dar o novo número a
ninguém quando o entregou à sua mãe.

– Eu sei que ele é um grande escritor e a senhora deve ser duramente assediada para ceder esse
número, mas pense comigo: ele jamais ficará bravo com a senhora por passar o telefone para
nossa emissora, pois será para promover o novo livro dele.

– Olhe, senhor Santos...

– Souza, senhora.

– Sim, senhor Souza. Eu acho que ele não precisa de publicidade. E se quisesse teria feito o
lançamento do livro com autógrafos, festa e tudo o mais, não teria?

Souza ficou calado, sem argumento.

– E tem mais. Ele não está no Brasil. Foi para outro país.

– A senhora sabe em que país ele está?

– Ele não me disse. Na verdade, falou que não iria contar para que eu não falasse sem querer
para os outros. Ele quer sossego para produzir um novo livro.

Souza agradeceu e desligou o telefone pensando em qual seria a reação de Letícia ao saber que
ele fracassara. Porém se lembrou de alguém que poderia ajudá-lo.

“O Matheus. Ele trabalha na editora Zenin e seu pai me deve um favor. Vou procurá-lo.”
Souza passou o resto do dia tentando conseguir o telefone de David Leniz. Não queria voltar
com as mãos abanando para Letícia. Não gostaria de enfrentá-la com o seu atual mal humor.

Já passava das cinco da tarde quando recebeu um telefonema. Era seu amigo Matheus.

– Olá, Matheus, tem novidades?

– Está com papel e caneta?

O coração de Souza bateu mais forte.

– Você conseguiu o precioso?

– Anota aí. – E Matheus passou o número para ele.

Souza olhou para suas anotações e não acreditou. Após desligar o telefone, pensou em correr
para a sala de Letícia e contar a novidade. Mas percebeu que ainda não havia conseguido nada.
O número de David não significava uma entrevista e ele também não sabia se era o verdadeiro.
Então, Souza pegou o telefone e ligou.

O aparelho de David vibrou em seu bolso enquanto ele dormia. Porém ele acordou, pois o
telefone vibrava insistentemente, o que fez com que atendesse à chamada sem nem ao menos
olhar o número de quem estava ligando.

– Alô.

– David? David Leniz?

David sentiu um calafrio. Poderia ser qualquer um, inclusive uma reação dos Iguais que
estavam do outro lado.

– Quem gostaria?

– Sou eu, David, o Souza.

O coração de David bateu forte e suas pernas tremeram enquanto seu estômago se congelava.

– O que você deseja, Souza? – Ele sabia de quem se tratava. Era o assessor de Letícia.

– A senhora Letícia Lira gostaria de entrevistá-lo novamente...

Souza nem terminou a frase e David o interrompeu.

– Diga à senhora Letícia que não estarei disponível nos próximos meses. Quem sabe no
próximo ano, mas não prometo.
Souza ficou calado por um momento e sentiu tudo ruir.

“O que será que aconteceu? Por que ele não quer dar a entrevista?” – Sua cabeça girava
tentando achar uma resposta e algo para falar a David.

– Mas, senhor Leniz. Ela... – Souza pensou se seria prudente contar e decidiu que sim. – Ela
está muito brava comigo. Se eu não conseguir essa entrevista, vou ser mandado embora.

David respirou fundo e pensou por algum momento, mas decidiu que seria muito doloroso
encontrá-la e não faria isso apesar de estar com pena de Souza.

– Não há nada que eu possa fazer. Não tenho como participar do programa dela nesse
momento.

Souza agradeceu e desligou o telefone pensando em como falaria com ela. Dirigiu-se à sala de
Letícia para contar o que havia acontecido.

Letícia olhou para ele furiosa.

– Dê o número dele para mim que eu mesma resolvo isso. Quem ele pensa que é?

O telefone de David tocou novamente e, por reconhecer o número de Letícia, não quis atender.

O telefone tocou insistentemente enquanto ele pensava se atenderia ou não, mas resolveu que
não aguentaria falar com ela. Não naquele momento.

A noite foi longa para David, que não conseguiu pregar os olhos. Todas as lembranças lhe
voltaram à mente.

“Preciso esquecer Letícia. Existem várias mulheres no mundo pelas quais eu posso me
apaixonar. Deixe ela com seu marido e que crie seu filho com um bom lar.”

Levantou-se da cama, pegou o aparelho e viu o número de Letícia gravado nele. Foram sete
ligações. E por um momento ele quase fraquejou.

“Não. Não vou ligar. Mesmo que eu a conquistasse, ela correria muito perigo. Não posso
submetê–la a isso.”

***

O dia clareou e David resolveu que não iria mais dormir, pelo menos naquela manhã. O sono
havia fugido de seu corpo e ele precisava pensar em tudo o que estava acontecendo.

Seu telefone tocou novamente. Era o número de Souza e isso o deixou muito irritado. Então ele
atendeu gritando.
– Já falei para você que não vou ser entrevistado por ela. Se ela mandar você embora o
problema será seu e não meu...

– David?

Era a voz de Letícia e ele quase desabou no chão. Aquilo o pegou de surpresa e David ficou
sem nenhuma reação. Não emitiu nenhum som por algum tempo.

– David? É você? – Letícia insistiu.

– Quem gostaria? – David tentou disfarçar e demonstrar que não reconhecera a voz.

– David, sou a Letícia Lira do talk show. Você se lembra de mim?

– Sim, Letícia. Eu não esqueceria. Como vai? – A voz dela trouxe ótimas lembranças para
David, que se acalmou.

– Eu... Eu gostaria que você participasse do meu programa para falar de seu novo livro. É um
grande sucesso e não posso deixar que isso passe em branco.

David pôde notar que a voz dela estava saindo daquele lindo sorriso a que ele tanto se
acostumara. – “Que voz doce!”, pensou.

– Eu não posso. – David respondeu com muito pesar na alma.

– Souza me disse que você não quer dar entrevista. É algo pessoal? Eu fiz algo de errado na
última?

– Não. Não é isso. – David procurava uma boa desculpa para dar a ela.

– Então o que é? Não quer publicidade para seu livro?

– Eu não preciso. A primeira edição praticamente se esgotou ontem. Imagina se eu for ao seu
programa.

– Não vejo nenhum problema. Basta imprimir mais livros, não é assim que funciona?

David ficou mudo.

– David? David Leniz?

Doía em David ouvi-la chamá-lo pelo nome completo. Ele respondeu baixo:

– Estou aqui ainda... – E quase a chamou de linda.

– Então. Quando posso contar com você em nossos estúdios?


Letícia sabia ser persuasiva. Ele percebeu que não conseguiria declinar desse convite e que
seria melhor aceitar. Pensou que poderia reforçar a provocação aos integrantes do grupo
comparecendo ao programa dela.

– Está certo, Letícia. Eu vou ao seu programa. Quando podemos combinar?

– Amanhã às onze horas está bem para você? Tenho uma entrevista antes e não a posso
cancelar.

– Combinado. Amanhã estarei aí antes das onze.

Ao desligar o telefone, David estava inseguro. – “E se eles acharem que estou me aproximando
dela novamente? E se lhe fizerem mal? Foi por isso que me afastei.” – Ele pensava
freneticamente: “Vou procurar o Adá. Ele pode me aconselhar”.

***

Adalberto estava em sua casa tentando esquecer que a pedra havia sido jogada para cima e
estava prestes a cair sobre suas cabeças. Já era noite quando David chegou com sua
motocicleta. Adalberto olhou pela janela e viu seu amigo entrando apressadamente sem retirar
o capacete. Então, correu e abriu a porta para que David entrasse.

– O que houve, David. Por que não retirou o capacete? – Adalberto estava espantado com
aquela chegada.

– Eu não quero ser reconhecido. As pessoas lembraram que eu existo novamente.

– Entre, sente-se e respire um pouco.

David sentou-se no sofá e retirou o capacete. Estava suado apesar de estar uma noite fria.

– Ela me ligou.

– Ela quem? Ingrid? – Adalberto nem pensou em Letícia porque ela não tinha o número de
David.

– Não, Adá. Foi a Letícia.

Adalberto ficou olhando para David sem nada falar.

– Você não vai falar nada, Adá?

– Não. Você me proibiu. Isso é problema seu. Foi você que deu o seu telefone a ela?

– Não. O assessor dela o conseguiu em algum lugar. Eu preciso do seu conselho. Ela queria
que eu participasse do programa.

– E você? O que respondeu?

– Eu tentei negar, mas não consegui. Foi mais forte do que eu.

Adalberto ficou calado novamente.

– Você não vai me ajudar?

– Eu? Desde que eu o conheço, você só pensa com o coração e esquece que tem um cérebro.
Nunca vi um cara tão apaixonado a ponto de fazer tantas besteiras.

– Eu só queria escutar que estava fazendo o certo. Eu vou lá para colocar uma pedra definitiva
nesse relacionamento. Quero mostrar a ela que sou somente um estranho. Também quero me
convencer disso.

Adalberto sorriu enquanto pensava:

“Se ele soubesse não estaria pensando assim”.

– O que foi, Adá. Não vai dizer nada? Não vai me aconselhar? Você é o meu amigo mais
velho.

– Não tenho muito a dizer. Acho que você está no caminho certo. Não deixe de comparecer.

– Você não acha que vou colocá-la em risco?

– Por uma entrevista? Você contou toda a história em um livro e agora acha que uma entrevista
vai fazer diferença? Não. Vá lá, participe do programa e volte feliz para casa.

– Era o que eu precisava escutar. Estou sem dormir desde ontem e não estou raciocinando
direito. Precisava de seu apoio.

– Mudando de assunto, alguém procurou você?

– Não. E a você?

– Também não. Essa calmaria está me matando.

– Quem sabe eles desistiram de tudo e nos deixarão em paz.

Adalberto riu das últimas palavras de David.

– Da última vez que você pensou isso seu avião explodiu. Lembra ou já esqueceu?
– Você tem razão. Temos que tomar muito cuidado.

David voltou para casa e teve dificuldade para pegar no sono, mas estava tão cansado que nem
se virou na cama durante a noite.

***

Morrison estava na sede da Time Same no Canadá, em seu escritório. Sua secretária havia
acabado de sair com os papeis que ele assinara. Eram papéis de rotina do funcionamento da
empresa e ele se viu sem nada para fazer.

Então, resolveu abrir um site de notícias na Internet que trazia reportagens de diversos países
para se inteirar do que estava acontecendo no mundo.

Uma pequena nota na parte brasileira lhe chamou a atenção. Era sobre o lançamento de um
livro que havia sido um fenômeno de vendas no primeiro dia do lançamento, e o escritor tinha
um nome familiar.

“Então é por isso que ele rescindiu o contrato com a nossa editora. Estava lançando um livro
por outra.” A sinopse do livro estava disponível através de um link para outro site e Morrison
teve a curiosidade de ler.

– Não acredito nisso! – Ele falou em voz alta e chamou a atenção de sua secretária.

– O que houve, senhor?

– Nada, Shelly. Volte ao seu trabalho.

Continuou lendo a sinopse até o final e então procurou os locais que continham mais
informações sobre o livro e as leu minuciosamente até que tomou uma decisão.

– Shelly, venha até aqui, por favor.

– Senhor?

– Vou para o Brasil no primeiro voo. Veja se tem algum que parta ainda hoje.
CAPÍTULO XXIV

David acordou em sobressalto. Eram nove e meia da manhã e ele pensou que havia perdido a
hora. Levantou-se correndo, tomou um banho, passou seu melhor perfume, engoliu um rápido
café, pegou sua motocicleta e foi ao encontro de Letícia.

Ao chegar à emissora, a rotina foi a mesma da última vez. O segurança já tinha seu nome na
relação de convidados e abriu a cancela perguntando se ele sabia onde ficavam os estúdios.

David foi em direção ao prédio onde sabia que Letícia estaria. Seu coração batia forte quando
ele se lembrou de que provavelmente se encontraria com o marido dela. Afinal, já estava quase
na hora do almoço e ele poderia estar por lá. Essa lembrança foi como um balde de água fria
em sua cabeça.

“Eu vim fazer o certo. Colocar uma pedra nessa história e sair daqui para viver a minha vida”,
pensou.

A sala de espera estava cheia e David entrou direto para a maquiagem, onde encontrou a
mesma mulher, que o maquiou novamente enquanto falava com ele.

– Seu David, é a primeira vez que vejo a dona Letícia repetir uma entrevista em tão pouco
tempo. O senhor deve ser muito importante para ela.

– Não creio. Foi o sucesso do meu último lançamento. Ela só quer lucrar em cima disso. É o
mundo dos negócios. – David realmente acreditou em suas palavras enquanto elas lhe saíam da
boca.

A camareira indicou uma antessala que ele deveria usar para esperar o fim da outra entrevista.
Assim que terminasse, alguém o chamaria e ele deveria entrar direto, pois seria a continuação
do programa.

David estava aliviado, pois não vira o marido de Letícia em nenhum local. Porém ele ainda
poderia estar na plateia.

“Vou observar quando entrar.”

Pôde ouvir as pessoas presentes batendo palmas, o que significava que o primeiro entrevistado
estava saindo e que logo ele entraria para se encontrar com Letícia. E, devido a esse
pensamento, o coração lhe começou a bater mais forte e suas mãos suaram como na primeira
vez em que a viu, após a interferência de Adalberto.
O entrevistado saiu pela mesma porta pela qual David entraria. Era um ator de teatro que
estava lançando uma nova peça. Ele parou e cumprimentou David ao reconhecê–lo.

– Nossa, David. Ela é um amor. E está de ótimo humor. Você vai gostar muito dela.

– Tenho certeza.

David sorriu e sua ansiedade aumentou.

– Senhor David. – Era Souza correndo. – Está na hora de entrar. Venha comigo. Ah... antes de
mais nada, muito obrigado por ter vindo.

Souza o acompanhou até a porta e deixou que ele seguisse resto do caminho sozinho.

David achou que não conseguiria chegar até o sofá que ficava ao lado da poltrona de Letícia,
pois suas pernas estavam fraquejando. Porém conseguiu, cumprimentou-a e sentou-se ao seu
lado com um sorriso um pouco forçado, tentando disfarçar o nervosismo.

– Amigos, estou recebendo mais uma vez este valoroso escritor, David Leniz. – Ela começou a
bater palmas enquanto olhava fixamente para ele.

O público aplaudiu David, enquanto uma luz em sua direção ficou mais forte para ressaltá-lo.

– Obrigado pela oportunidade, Letícia.

– Sabe, David – Letícia iniciou a entrevista –, estou com o seu mais recente livro. Eu o li entre
ontem e hoje e achei-o maravilhoso.

Mostrou a capa do livro para a câmera.

– Obrigado. É sempre bom saber que uma moça tão inteligente gosta do que eu escrevo.

– Eu já li todos os seus livros, David. São muito bons. Mas me diga uma coisa. Ao ler a
história, ela me pareceu muito real, com vários detalhes que não parecem fruto de imaginação,
apesar de ser um livro de ficção. Como você conseguiu isso?

David sentiu-se desconfortável com o comentário dela, mas parecia sincero.

– Eu escrevo o que imagino. Conforme a ideia vem à mente eu a passo para o teclado. É
automático. Mas essa história é só uma fantasia da minha cabeça. Nada além disso.

– Não parece. Os detalhes são muito interessantes. Não seria alguma história de amor que você
viveu?

– De maneira nenhuma. Só imaginação.


David tentou esboçar um sorriso, mas o nervosismo começou a tomar conta de seu corpo e sua
mão tremia visivelmente.

– Aproveitando o gancho, querido, como está a sua vida amorosa? – Ela continuava olhando
para ele fixamente.

Ele estranhou a pergunta:

– Não está. Mas não gostaria de falar de minha vida e sim de meus livros.

Letícia ignorou a observação de David.

– Você está sozinho? Como um homem tão bonito e famoso fica sozinho? Tem certeza de que
não há ninguém em seu coração?

O nervosismo de David aumentou.

– Você quer falar mesmo da minha privacidade? Então vamos falar. Eu tive uma grande
desilusão amorosa, um grande amor que despedaçou meu coração. Eu a perdi para sempre e
resolvi ficar sozinho. É só isso.

– Você gostava muito dela?

David olhou para o fundo dos olhos de Letícia para responder.

– Mais do que você imagina. No limite do que o meu coração pode suportar.

Letícia piscou nervosamente, mas insistiu na vida particular de David.

– E por que não a procura novamente? Você é tão bonito e famoso...

Ele ficou muito nervoso com a pergunta, olhou para o Souza e gritou:

– Corta!

– O que houve? – Letícia não pareceu assustada com a reação, mas perguntou assim mesmo.

– Preciso tomar alguma coisa. Estou muito nervoso e gostaria de começar a gravação
novamente.

Ele se levantou e foi para a antessala, onde havia um bebedouro e uma máquina de café.

David pegou uma xícara, apertou o botão do café duplo e esperou que ela se enchesse antes de
pegá-la.

Letícia entrou na sala com o livro na mão e trancou uma das portas, enquanto David a
observava curioso. Então ela se dirigiu à outra porta e também a trancou.

David ficou olhando para ela tentando entender a sua atitude.

Letícia parou na frente dele e começou a falar com o olhar sério.

– David, eu li o seu livro inteiro ontem à noite. Ele contém um erro e quero que você o corrija.

– O quê? Não entendi. Você acha mesmo que o meu livro contém um erro? Mas foi revisado
três vezes!

– Veja – ela abriu em uma página que já estava marcada. – Aqui o Bill fala para a Meg:

“Os pássaros levitam no céu e é assim que eu me sinto ao seu lado”

Ela o olhou nos olhos e fechou o livro.

– Mas o certo seria:

“Os pássaros não voam. O céu os levita. E é assim que me sinto quando estou ao seu lado”.

A mão de David começou a tremer e a xícara bateu no pires com tanta força que caiu de sua
mão no chão para se despedaçar.

– Foi isso que você me disse no restaurante, David – completou ela.

Os olhos de David se encheram de lágrimas.

– Você se lembra, linda?

– Por que eu me lembro de tudo, Dê? Eu não deveria ter esquecido?

David procurava uma resposta e a encontrou rapidamente.

– Só pode ser porque você voltou comigo no tempo depois do atentado. Estávamos de mãos
dadas e, de alguma forma, isso ficou em você e...

Não terminou a frase.

– Por que você não escreveu a carta para me avisar como prometeu? Eu fiquei esperando. Não
foi o combinado? – Ela estava cada vez mais exaltada. – Você não me procurou.

– Eu não podia. Você sabe que iria correr riscos comigo e não posso fazer isso. Não, eu não
posso.

Letícia ficou nervosa com a resposta e se aproximou de David para bater com força em seu
peito com as mãos repetidamente enquanto falava em voz alta:

– Você não podia ter feito isso comigo. Eu sofri demais esperando por você. Procurei-o todo
esse tempo. Diziam até que você havia morrido.

– Calma, Letícia. – David não reagia aos socos em seu peito.

– Eu me separei dele logo que voltamos no tempo e fiquei esperando por você. Por quê? Por
quê?

– Você se separou? – David sorriu.

Letícia parou de bater nele.

– E você não pensou em perguntar para mim o que eu queria? Eu prefiro me arriscar a ficar
sem você.

– Eu...

– Nunca mais faça nada sem me consultar, seu idiota!

Letícia pegou a cabeça de David, baixou-a em direção ao seu rosto e lhe deu um beijo forte e
demorado.

David a abraçou forte enquanto a beijava, sentindo seu agradável perfume.

Durante o beijo, os dois ouviram um barulho leve e repetido. Era Souza batendo à porta.

– Letícia, aconteceu alguma coisa?

Letícia abriu a porta como se tivesse se trancado sozinha.

– Não sei o que aconteceu, Souza. A porta não queria abrir.

David sorriu por dentro sem demonstrar para o assessor de Letícia o que havia acontecido
entre os dois.

– Vamos voltar para a gravação? – Souza perguntou. – O senhor David já tomou algo para se
acalmar?

David lhe respondeu prontamente:

– Já estou melhor. Muito melhor. Vamos voltar sim.

Letícia pediu que David esperasse na sala para anunciá-lo novamente. Queria recomeçar a
gravação, e com outras perguntas, todas sobre o livro.
A gravação foi realizada com rapidez, já que tanto a entrevistadora quanto o entrevistado
estavam em sintonia naquele momento. E Souza percebeu que algo havia mudado desde que os
dois entraram naquela sala e se trancaram. Mas pensou que aquilo não era da conta dele e que
o importante seria Letícia voltar a ser amável como antes. Por isso, sorriu.

Após a gravação, David e Letícia se dirigiram a um estúdio separado daquele, que não estava
sendo usado, e ficaram em uma sala privada para conversarem melhor sobre tudo o que havia
acontecido até aquele momento.

David contou-lhe os seus receios, todos os detalhes da organização, suas conversas com
Adalberto e o objetivo principal de ter lançado o livro contando toda a história.

Pensou que Letícia não o apoiaria ou acharia a ideia muito arriscada, mas, para sua surpresa,
Letícia achou tudo tão perfeito que quis conversar com Adalberto a respeito.

– David, quero que você saiba que, aconteça o que acontecer conosco, sempre estarei do seu
lado. Este nosso retorno tem que ser definitivo.

David concordou com ela, mas sem deixar de pensar na possibilidade de colocá-la em risco. E
questionou-a sobre isso.

– Linda, você vai entrar em uma batalha sem nenhuma arma. Muito diferente de nós. Eu e Adá
temos as nossas habilidades e eu tenho mais poderes que ele. Os meus equivalem aos de
Morrison.

– Dê, você mesmo disse que eu venho de uma linhagem de inteligência. Então talvez eu possa
ajudá-los. Essa será a minha arma. E de que valeria me preservar se eu ficasse sem você? Já
experimentei isso nos últimos meses e foi horrível, mesmo sabendo que você estava bem.
Imagine se não estivesse.

Enquanto Letícia falava, David só conseguia pensar em quanto a sorte lhe havia sorrido. Ele
perdera a Letícia duas vezes, mas a recuperara, e era isso que importava.

***

O telefone de Adalberto tocou. Era David.

– Olá, Adalberto. Tenho grandes novidades. – Ele sorria ao telefone.

– Nem precisa me contar. Letícia se separou do marido e vocês voltaram.

David fez uma pausa.

– Como você sabe? – Estava surpreso.


– Ora, era isso que eu queria lhe contar. Não se falava outra coisa no noticiário de fofoca que
não fosse a separação de Letícia.

– E por que você não me contou?

– Vou fingir que nem ouvi. Eu teria que lhe dar uma surra, e não estou com vontade de fazer
isso.

David sorriu:

– Estou com ela aqui na emissora e gostaríamos de ir à sua casa após o jantar. O que você
acha?

– Vocês viriam aqui para quê? – Adalberto estava surpreso com o autoconvite.

– Agora somos um time de três. Letícia está conosco. Ela não se esqueceu de nada. Acho que
foi porque eu voltei no tempo segurando a mão dela na primeira vez.

– Pode ser, mas não fale mais nada, David. Venha para cá assim que puder.

Adalberto ficou exaltado enquanto olhava para os lados pensando que poderia haver alguma
escuta em sua casa. Porém ficou tranquilo ao lembrar que havia vistoriado o apartamento três
vezes no último mês e não havia achado nada. Tinha utilizado um aparelho localizador de
escuta que também furtara do mesmo governo onde pegou o aparelho de escuta.

Adalberto entrou em desespero ao ver o estado de sua casa. Era uma bagunça só. Começou a
tentar arrumar tudo, afinal receberia a visita de Letícia Lira e não queria que ela ficasse com
má impressão.

Começou a ajeitar tudo, empurrando quadros e tintas para dentro do armário e deixando
somente os que estava terminando. Jogou fora a comida velha que estava sobre a pia e lavou a
louça, assim como arrumou a cama. Ao se sentar no sofá, percebeu que ainda haviam tubos de
tinta sobre ele e os guardou no mesmo armário que os outros.

– Eu poderia parar o tempo e fazer isso com calma, – disse consigo mesmo – mas não quero
chamar a atenção dos outros.

Adalberto continuou arrumando a casa e tentando lembrar havia quanto tempo uma mulher não
pisava naquela sala. A última foi Meire, mas ela nem se lembrava disso.

A campainha tocou, ele abriu a porta e pôde ver que David estava acompanhado de Letícia.
Atendeu-os sorridente:

– Entrem.
Os dois entraram e David estranhou a limpeza do local enquanto olhava ao redor.

– Sente-se aqui no sofá, linda. – David sentou-se ao lado dela e Adalberto na poltrona que
estava próxima.

– Então, Adá – Letícia começou a falar –, alguém já o procurou?

– Não, Letícia. Estou estranhando essa calmaria. Com o livro do David vendendo dessa
maneira, as notícias publicadas, Morrison já deve estar sabendo de seu conteúdo.

– O plano é descobrir, pela reação deles, quais estão do nosso lado e quais são contra nós.
Depois, vamos nos unir aos que estão do nosso lado. Juntando forças talvez possamos
intimidar os outros. Só temos de torcer para que sejam em menor número. Vamos fazer como
os cachorros. O David terá de se tornar o alfa e os outros o respeitarão. Espero que dê certo.

– E se eles não aceitarem nos deixar em paz?

– Usaremos a força bruta. Será uma guerra, não é essa a ideia, David?

– Sim. Temos de ficar juntos nos próximos dias, esperando que alguém apareça
repentinamente e... David não terminou a frase antes de ver um conhecido entrando pela porta.

– Morrison! – Adalberto estava assustado.

Letícia levantou-se do sofá e David, assustado, se pôs na frente dela a fim de protegê-la.

– Morrison – gritou David –, não vamos nos curvar a você. – Andou na direção do Morrison:

– Pense que tenho as mesmas habilidades.

– Não vou fazer nada com você – Morrison olhou para Letícia.

David viu que a atenção de Morrison estava em sua namorada e partiu para cima dele, mas
Morrison o segurou com força.

– Não vim aqui fazer nada a vocês. Não vim brigar.

– Não quero você perto dela. Deixe-a em paz. – David continuava gritando.

– Não seja imbecil, David. Estou aqui para protegê-los. Vim ajudar a todos.

– O quê? – Adalberto estava surpreso.

– Posso soltar você, David? Vai se acalmar?

David olhava Morrison nos olhos com raiva, mas estava curioso para escutar o que ele tinha a
dizer. Então, se afastou.

– Você tentou derrubar o nosso avião e agora vem me dizer que quer nos proteger?

– Derrubar o avião? Você realmente acha que fui eu?

– Se não foi você, quem foi? – David esperava qualquer desculpa.

– Vocês realmente não sabem de nada. Estão mexendo com fogo e vão se queimar.

– Quem foi, Morrison? – Adalberto entrou na discussão.

– Shang.

Todos ficaram calados, pensando no que Morrison havia dito.

– Quem é Shang, David?

– No livro ele é o Lao – David respondeu.

Adalberto se aproximou de Morrison.

– Isso não tem sentido. Você é o chefe da organização e tem os poderes de décima primeira
linha. Shang é só um integrante como eu, sem muitas habilidades.

– É o que você pensa. Ele tem os mesmos poderes que eu e o David. – Morrison olhou para
todos na sala e juntou as mãos enquanto respirava fundo: – Eu sou apenas um boneco nas mãos
dele.

– Como assim? – Letícia queria entender toda a história.

– Shang tem as nossas habilidades, mas treinou muito desde pequeno. Teve um mestre muito
bom, o mestre Ming, que não sabia que ele usaria os conhecimentos para o mal e acabou sendo
morto por seu aprendiz.

– Você é apenas um boneco? – Adalberto estava admirado. – Quer dizer que tudo o que fez até
hoje foi ordenado por Shang?

– Sim. A ideia dele era justamente estar infiltrado entre os outros integrantes para os conhecer
um a um, suas qualidades e fraquezas. Dessa maneira poderia manipular a todos sem
desconfiarem que ele era o verdadeiro chefe.

– E por que você aceitou tudo isso?

– Fraqueza, Letícia. Sou um covarde. Fiquei com medo do que ele poderia fazer comigo. Vi o
que fez com os outros dois integrantes que não o aceitaram. Também vi o que fez com vários
Iguais que vocês nunca conheceram.

– Existiam outros?

– Muitos. Shang eliminou todos os que eram ameaça para ele.

David olhou para Adalberto e iniciou uma conversa paralela.

– Você acredita nele?

– Não sei. A história é meio estranha, mas faz algum sentido.

– Faz sentido mesmo. Lembro que vi o Shang aquele dia no aeroporto. Ele colocou a bomba
no avião, mas pensei que tivesse sido a mando de Morrison.

Morrison se intrometeu:

– Eu jamais mataria trezentas pessoas só para eliminar dois inimigos. E vocês não eram meus
inimigos. Além disso, se eu quisesse eliminá-los, já o teria feito. Não, David, o que eu quero é
ajudar, me redimir do que tenho aprontado por causa do medo.

David olhou para Morrison e sentiu que poderia começar a acreditar em sua história.

– Então nós não temos vários inimigos, e sim somente um, que controla os outros, não é? Ou
temos mais Iguais que estão do lado de Shang?

– Todos sempre cumpriram as ordens por receio de serem excluídos ou eliminados. O Adá está
aqui para confirmar. Ninguém está do lado dele, nem mesmo eu.

Adalberto assentiu com a cabeça confirmando que também fazia os carregamentos por medo,
mas de Morrison.

– Então a estratégia de lançar o livro não funcionou. – David estava frustrado.

– Como não? – Letícia entrou novamente na conversa. – Se o Morrison está aqui nos falando
tudo isso, é sinal de que a sua estratégia teve sucesso.

– Tem razão, amor.

– Vocês estão juntos novamente, não é? – Morrison apontou para David e Letícia. – Tomem
cuidado. O Shang tem obsessão por impedir que vocês tenham um filho mais poderoso que ele.

– Como podemos impedi-lo? – Adalberto perguntou a fim de iniciar uma nova estratégia.

– Como impedi-lo eu não sei, mas acho que devo lhe falar sobre suas habilidades, David.
Assim você poderá saber em que momento utilizá-las.
Adalberto interveio e cortou a vez de Morrison.

– Não há necessidade, Morrison, eu já passei para ele tudo.

– Nem tudo. Ou você pensa que os documentos que pegou no meu cofre estavam completos?

– Você sabe que estive lá?

– Claro que sim. E eu não o impedi porque queria que vocês tivessem acesso à informação sem
que Shang desconfiasse de que eu as passei para os dois.

– Então você sabia e não me impediu. Por quê?

– Para ajudá-los. Essa era a única maneira de informá-los sobre o motivo de estarem sendo
perseguidos. E tenho certeza de que isso os ajudou, não foi?

– Sim, Morrison – disse David. – Foi-nos de grande valia.

– O único problema foi que Adalberto não pegou justamente os documentos que deixei lá
propositalmente. Eram aqueles que falavam de todo o esquema criminoso de Shang. Ele não
está envolvido somente com o tráfico de drogas. Esse é o esquema que lhe dá menos dinheiro.

– Então por que ele nos envolveu no tráfico? – Adalberto estava curioso com toda essa
revelação.

– Para vocês serem cúmplices e terem motivos fortes para não denunciá-lo.

– Esse esquema criminoso do Shang, o que envolve?

– Muita coisa, Letícia. Assaltos, espionagem industrial, estelionato, sequestros e muito mais.
Tudo o que você puder imaginar de crime, ele está envolvido ou pretende se envolver.

Assim que Morrison falou de sequestro, uma luz se acendeu na cabeça de David, que lembrou
ter visto o número de Shang nos aparelhos telefônicos dos sequestradores.

– Então ele estava envolvido no sequestro do filho de Letícia? Por que ele fez isso?

– Somente por dinheiro. Não tinha nada a ver com o fato de vocês terem ficado juntos no
passado. Por investigar Letícia, ele descobriu que ela tinha muito dinheiro e queria uma fatia
disso. Por isso mandou sequestrar o filho dela.

– Morrison – Letícia começou a falar –, a Ingrid, que faz parte do grupo, era amante do
Willian. Então ela estava envolvida no sequestro? Ela se aproximou dele somente para dar
informações ao Shang?
– Não. Não pense mal da Ingrid, se é que isso é possível para você. Ela se aproximou dele para
proteger vocês.

– Como assim? – Adalberto estava confuso.

– Eu e a Ingrid sempre fomos muito próximos. Em determinado momento lhe contei tudo, ela
virou uma aliada e, assim que Shang me contou sobre os planos dele para sequestrar seu filho,
Letícia, eu pedi que ela se aproximasse de seu marido, que era mais acessível que você. E
dessa maneira ela poderia me deixar informado sobre seus passos e sua rotina. Nossa
esperança era conseguir, de alguma maneira, convencê-lo a não ter rotina e aumentar a
segurança. Mas deu tudo errado.

– Sim. A criança foi sequestrada e ela virou amante de Willian.

– Isso mesmo, David. Ela se aproximou dele com as melhores das intenções, mas acabou se
apaixonando e os dois tiveram um caso. Além disso, Willian era muito teimoso e jamais
aceitou aumentar a segurança ou mesmo modificar sua rotina. Deu no que deu. Espero que
você não fique brava com isso, Letícia.

Morrison olhou para ela com tristeza, pois sabia que sua intenção era boa, mas prejudicou a
família dela.

Letícia sorriu:

– De maneira nenhuma, Morrison. Essa foi a desculpa que consegui para me separar dele e
estar com o David hoje. Talvez eu deva agradecer a ela.

Adalberto estava incomodado, pois queria voltar a um assunto que Morrison já havia deixado
para trás sem explicar. As habilidades de David.

– Morrison, você disse que deveria nos falar sobre as habilidades de David, mas mudamos de
assunto.

– Sim, tem razão. Vamos ver se isso o ajudará de alguma maneira.

David olhou para ele com atenção.

– As suas habilidades já são conhecidas. Mas você não sabe como elas funcionam, assim como
o Adá também não sabe. Somente eu e Shang, entre os Iguais que ainda estão vivos,
conhecemos o sistema.

Morrison pediu um papel e um lápis para que pudesse ilustrar a sua conversa. E isso era o que
não faltava na casa de Adá, que era um artista.

– Vejam – Morrison desenhou uma mola no papel. – O tempo corre dessa forma, de maneira
circular e avançando sempre.

Todos olhavam curiosos para ele, enquanto um esboço de gente era desenhado em um dos
pontos daquela mola.

– Este representa um de nós. Sempre ficamos parados neste ponto, enquanto o tempo passa por
nós. Ou seja, o tempo corre enquanto ficamos parados, e é isso que acontece com todos os que
não têm o poder de parar o tempo.

– E como nós o paramos? – perguntou David.

– Na realidade, nós não o paramos, nós voltamos repetidamente. De alguma forma, nós vamos
para uma outra dimensão do tempo e desse modo ele não passa para os Iguais, pois corremos
junto com ele. É como se ficássemos fora do mundo temporal. É mais ou menos como se
estivéssemos saltando a cada microssegundo para o passado. Assim, estamos sempre na
mesma data e hora.

– Incrível! – Letícia estava maravilhada com a explicação e com os poderes de David.

– Então nós saímos deste ponto e nos mantemos juntos com o tempo, não é isso? – Adalberto
colocou o dedo sobre o papel para demonstrar o que perguntava.

– Isso mesmo, Adá.

– E como voltamos no tempo?

– É simples, David. Saltamos para trás nesta mola. Ou damos pequenos saltos acompanhando
o percurso do tempo, ou passamos de uma região para outra. É como se saltássemos em linha
vertical por uma mola que está em pé.

– E podemos ir para o futuro?

– Não. Não tem como ir a um lugar que nunca existiu. Somente para o passado e modificá-lo,
mas saltar para cima é impossível.

Letícia estava muito curiosa com uma coisa:

– Mas, se vocês podem voltar ao passado, por que os crimes? Basta voltar e utilizar o que já
aconteceu para ganhar dinheiro, não é? Por exemplo, vocês poderiam aplicar na Bolsa, jogar
em loterias, apostar com esportes etc.

– Não, Letícia – respondeu Morrison. – Não funciona dessa forma. Quando voltamos ao
passado, sempre causamos algum distúrbio temporal, e isso muda tudo. Os números que foram
sorteados hoje na loteria, por exemplo, não serão sorteados novamente se voltarmos ao
passado, mesmo que seja imediatamente antes do sorteio.
– Entendo. – Letícia percebeu que não era algo simples voltar ao passado e que isso poderia
gerar muitas consequências.

– E é por isso – Morrison continuou – que eu tinha um projeto de só permitir voltas ao passado
por Iguais se isso fosse aprovado pela convenção.

– E como isso tudo pode me ajudar?

– Você, David, consegue parar o tempo do tempo parado. Ou seja, se eu parar o tempo agora,
você consegue parar essa nova realidade. Também consegue voltar no tempo sobre a volta no
tempo de algum de nós. Você pode, por exemplo, voltar um minuto atrás e nos surpreender
antes que algum de nós perceba. São coisas que Adá, por exemplo, não consegue fazer ou
prever, mas Shang é perito nisso. Por isso, tome muito cuidado.

– Entendo.

– Mas acho que tudo o que lhe falei vai mais servir como aviso do que como estratégia. Ou
seja, como vocês dois têm essa habilidade, não adianta tentarem duelar utilizando isso, pois
ninguém sairá vencedor. Mas fique de olho para saber se ele não a utiliza, pois você pode
rapidamente neutralizar a tentativa.

– Morrison – David olhava no fundo dos olhos dele enquanto lembrava que Letícia havia dito
que deveria se colocar na liderança –, agradeço o seu empenho em nos ajudar e fico feliz em
saber que está deste lado e não do outro. Porém você já demonstrou extrema fraqueza
aceitando o que Shang ordenava. Acredito que seja hora de eu assumir o comando dessa nossa
missão. O que você acha?

– Não tenho dúvida de que será melhor para todos.

– Então, temos que nos reunir com os outros dezoito Iguais e juntar as forças para derrotar o
Shang. Vamos chamá-los ao Brasil para que...

Morrison não deixou David terminar a frase.

– Eu já fiz isso. Ontem, antes de sair do Canadá, enviei um comunicado a todos, menos ao
Shang, avisando que teríamos uma convenção aqui e que eles deveriam largar tudo o que
estavam fazendo e vir imediatamente. Também ordenei que cada um ficasse em um hotel
diferente e não utilizasse suas habilidades para que não chamasse a atenção do nosso opositor.
Quem ainda não estiver aqui deve chegar em breve.

– Então vamos nos reunir amanhã no parque. Que tal oito da manhã?

– Acho perfeito – observou Adalberto.

– Também concordo. – Morrison parecia outra pessoa.


Letícia viu toda a agitação dos integrantes do grupo e quis fazer parte.

– Posso participar da convenção?

Os três se olharam e David respondeu.

– Sim. Você faz parte do grupo agora.


CAPÍTULO XXV

Naquela manhã, David havia combinado encontrar-se com Letícia em sua casa. Ele iria de
motocicleta, pois achou que seria mais seguro mantê-la como seu veículo principal até tudo
acabar. Seria mais fácil escapar de uma perseguição se estivesse com ela.

Como os dois precisavam voltar à época onde namoraram escondidos por algum tempo, David
dormiu em sua casa enquanto Letícia ficou na dela.

Após um café da manhã reforçado, David pegou uma arma que Morrison lhe havia dado para
que se protegesse. A arma estava sob o console em sua sala. Colocou-a na cintura, pôs o
capacete na cabeça, saiu de casa, subiu na motocicleta, deu a partida e saiu de sua garagem em
direção à casa de Letícia.

O caminho para a casa dela não era muito longo, cerca de três quilômetros através de uma
avenida e de poucas ruas pequenas por onde ele sempre pilotava com cuidado, mesmo quando
estava em ronda para ajudar as pessoas.

O semáforo estava verde e David, como sempre fazia, olhou para os dois lados enquanto
atravessava o cruzamento com alguns carros parados na transversal, mas com uma fileira vazia
do lado direito.

No momento em que passava pelo cruzamento, percebeu que o tempo parou e, repentinamente,
sem que conseguisse ver de onde estava vindo, um carro tipo SUV preto acertou em cheio a
lateral de sua moto, esmagando-lhe a perna e arrastando-o até um poste, contra o qual seu
corpo foi jogado violentamente.

David sentiu uma dor intensa e sua cabeça começou a girar. Estava perdendo muito sangue,
mas teve forças para ver o motorista descer do carro e caminhar em sua direção.

“Não posso perder a consciência”, pensou, enquanto tentava se manter acordado.

O homem continuava caminhando direto para ele quando David percebeu que o conhecia.

– Shang! – David gritou antes de parar o tempo sobre o tempo e fazer com que ele retornasse
ao normal. A partir disso, ele estava totalmente recuperado e começou a correr em direção
contrária à de Shang.

– Você pensa que pode comigo? – Shang gritou, enquanto corria atrás de David com uma arma
na mão.
David procurava se esconder, mas não encontrava nenhum local seguro e começou a ouvir
tiros que pareciam ser em sua direção.

Então, passou a correr em ziguezague quando sentiu um tranco em seu ombro. Foi como um
soco forte vindo de trás. Era um tiro da potente arma de Shang.

David caiu no chão, mas conseguiu parar e retornar o tempo. Com isso, estava novamente
pronto para correr, porém com seu caçador mais próximo do que antes.

Um beco estreito pareceu um ótimo local para ele se esconder e foi onde David entrou
correndo. O beco pertencia a um cortiço com várias famílias e suas crianças por todos os lados.
No final do corredor havia uma bifurcação na qual um dos lados ia direto para outras moradias
pobres com ruas finas montando um labirinto muito difícil de ser decifrado por qualquer
pessoa que não tivesse nascido naquele local.

“Isso é perfeito”, pensou David enquanto procurava um ponto alto para se guiar, assim não
ficaria dando voltas em círculo, com o risco de dar de encontro com Shang.

Uma antena de emissora de televisão ao longe lhe serviu de guia. David passou a correr
desenfreadamente pelos estreitos becos, muitas vezes se enroscando em roupas que secavam
ao varal e outras vezes tropeçando em brinquedos deixados pelas crianças que usavam aqueles
caminhos estreitos como seu quintal.

O tempo não estava mais parado, pois David havia feito com que ele retornasse ao normal. Por
isso algumas pessoas em seu caminho atrapalhavam sua fuga, mas também o ajudavam a se
esconder.

O caminho que David tomou se mostrou um erro, pois terminava de frente para uma pequena
casa sem muros e um telhado baixo. Ele não teve dúvida e pulou com toda a sua força para se
segurar na calha e escalar até o telhado, onde continuou sua corrida desenfreada.

David sabia que precisaria se esconder ou encontrar outros Iguais para somar forças. Não
deveria em hipótese alguma enfrentar Shang sozinho, pois sabia de suas habilidades e do
treinamento dele com o mestre Ming. Por isso sua busca por um abrigo era frenética.

Ainda estava pulando pelos telhados quando percebeu que estava vulnerável e muito fácil de
ser encontrado se continuasse ali em cima. Então, pulou para um quintal que dava em outros
caminhos mais entrelaçados que os anteriores. A antena continuava como seu guia.

Repentinamente, David sentiu uma forte dor na cabeça e sua consciência se foi.

***

Letícia estava preocupada porque David nunca se atrasava, mesmo porque, se estivesse com
pressa, ele simplesmente parava o tempo e fazia o que fosse necessário para poder ir encontrar-
se com ela no horário certo.

Por isso, ela pegou o telefone e ligou para Adalberto a fim de saber se seu namorado havia
resolvido passar primeiro por lá antes de pegá-la. Mas a resposta foi negativa e ela ficou mais
preocupada.

O próximo telefonema foi para Morrison, que havia deixado seu número com ela na noite
anterior para uma emergência.

– Olá Morrison, você está com o David?

– Não. Ontem ele disse que a pegaria primeiro e depois se encontraria conosco. Eu já estou
aqui e quase todos chegaram. Você tentou ligar para ele?

– Sim. O telefone toca e ninguém atende.

– Vou ver se consigo entrar em contato com ele.

Morrison desligou o telefone, tentando não mostrar preocupação para ela. Porém ele sabia que
algo mais grave poderia ter ocorrido.

Adalberto chegou ao encontro e também se mostrou preocupado com David. Morrison, então,
pediu a motocicleta dele emprestada, pegou uma grande mochila que carregava consigo e saiu
para refazer o provável caminho que David faria entre sua casa e a de Letícia.

Logo no início ele viu uma multidão aglomerada, parou sua motocicleta e se infiltrou pelo
meio do povo para saber o que havia acontecido.

Morrison ficou estarrecido com a cena. A motocicleta de David estava totalmente destruída
contra um poste, com uma SUV muito amassada próximo da cena e bastante sangue no chão.

– Ei, garoto – Morrison chamou um rapaz que estava na multidão. – Você viu o que
aconteceu? Sabe onde está o piloto desta motocicleta?

– Sim. Eu não vi tudo, mas não acreditei no que vi. Esse carro bateu tão forte na moto que
jogou o piloto contra o poste. Quando cheguei, ele ainda estava aqui.

– E o piloto, onde está? – Morrison estava muito preocupado.

– Você não vai acreditar. Ele se levantou e saiu correndo. Eu podia jurar que o carro havia
esmagado sua perna. O senhor viu quanto sangue tem no chão?

– E o dono do carro? – A essa altura, Morrison tinha certeza de que se tratava de Shang.

– Saiu correndo atrás dele. Acho que ficou nervoso, mas o motociclista estava certo. Dizem
que passou no sinal verde.

– Sabe para onde eles foram?

– Sim. O motociclista entrou lá – apontou para os cortiços – e o motorista foi correndo atrás.

***

David estava com muita dor de cabeça, mas recobrava a consciência lentamente até perceber
que estava em uma pequena casa, deitado em uma cama muito dura.

Parou o tempo e voltou rapidamente somente para poder se recuperar. Sua cabeça não doía
mais e ele pôde ver a seu lado um senhor de estatura média e barba branca.

David sentou-se na cama e percebeu que havia mais uma pessoa no quarto. Era um jovem que
trajava uma roupa diferente, assim como o velho ao seu lado, os dois com um manto bege,
muito simples.

“Talvez alguma religião”, pensou.

O jovem sorriu para ele e disse que estava tudo bem, que ele estava seguro ali.

– O que aconteceu? – David perguntou. – Onde estou?

O velho começou a contar o que havia acontecido.

– Você estava correndo como um alucinado, olhando para trás como se estivesse fugindo de
alguém. Foi quando bateu com a cabeça em um pedaço de ferro que saía de uma casa
inacabada e caiu no chão.

– E nós o trouxemos aqui para dentro para cuidar de você. Mas parece que se recuperou
rápido. – disse o jovem que acompanhava o velho.

– Eu preciso ir. Shang vai se encontrar com os outros e eu preciso avisá-los.

– Tem certeza de que não é perigoso? Alguém o estava perseguindo, não estava?

– Por isso mesmo é que tenho de ir. Outras pessoas estão em perigo.

David se levantou e caminhou até a janela, por onde olhou demoradamente para observar se
Shang ainda se encontrava nas redondezas. Após ter certeza de que era seguro sair, abriu a
porta e começou a caminhar para fora, mas antes de deixar a casa se virou para o velho e
perguntou:

– Qual o seu nome, meu bom senhor?


– Dagolotis*.

---

* Ler a trilogia Os Sete Mundos, de Sidney Piesco, Editora Vilesi.

---

– Muito obrigado, Dagolotis. Provavelmente salvou minha vida.

David saiu pelos caminhos tortuosos, tentando encontrar a antena que lhe servira de guia.

***

Ao perceber que não encontraria David naquele emaranhado de caminhos e casas inacabadas,
Shang resolveu mudar sua estratégia e dirigiu-se diretamente à casa de Letícia.

Procurou um caminho que o levasse para fora daquilo que estava encarando como um
verdadeiro labirinto, o que não foi fácil, mas conseguiu-o após alguns minutos.

Ao sair de lá, procurou alguém que estivesse passando com uma motocicleta potente e avistou
um policial. Não teve dúvidas quanto ao que deveria ser feito. Parou o tempo, jogou o policial
para fora da motocicleta, subiu nela e partiu até estar fora da vista de sua vítima, quando fez
com que o tempo retornasse.

O caminho para a casa de Letícia não era longo e ele logo chegou lá, parando na frente e
observando enquanto esperava que David percebesse que ele havia tomado esse rumo.

***

David continuou seguindo a antena, utilizando-a como guia para encontrar uma saída daquele
local, até que chegou à mesma avenida que Shang havia encontrado poucos minutos antes.

Um carro de polícia estava parado junto a um policial e, quando ele chegou perto, pôde ouvir
que o agente estava pasmo, relatando que sua motocicleta simplesmente sumira debaixo dele,
que não conseguia lembrar exatamente o que havia acontecido, enquanto os outros policiais
olhavam para ele com desconfiança.

“Shang”, David logo deduziu. “Ele foi ao encontro dos outros Iguais. Preciso ir para lá.”

Esse foi seu erro, pois Shang não pretendia lutar contra todos, e sim somente contra ele. O
objetivo de Shang era eliminá-lo por representar a maior ameaça. Além de poder ter um filho
que faria frente a ele no futuro, ainda estava incitando os outros Iguais a se rebelarem.

David caminhou até um quarteirão próximo e avistou uma motocicleta parada na calçada com
as chaves penduradas no guidão. Era de um entregador que estava deixando uma pizza num
prédio em frente.

Ele não pensou se seria certo ou errado, simplesmente pegou a motocicleta forçadamente
emprestada e saiu a toda velocidade possível, pois era um veículo de baixa cilindrada, mas
suficiente para levá-lo ao seu destino.

Ao chegar ao local da convenção, notou que todos estavam presentes, menos Morrison e
Shang, e foi quando seu telefone tocou e David atendeu. Era Morrison ligando:

– David – Morrison começou a falar. – Você está bem? Venha rápido.

– Para onde, Morrison? Eu estou bem.

– Para a casa de Letícia. Eu segui o Shang até aqui e ele está entrando nesse momento.

David sentiu um frio percorrer sua espinha. Estava longe e Letícia estava sozinha esperando
por ele.

Então, perguntou em voz alta aos integrantes do grupo:

– Quem está com uma motocicleta boa para deixar comigo?

Lee se apresentou com as chaves na mão e David as pegou rapidamente, subiu na motocicleta,
parou o tempo e saiu a toda velocidade, virando o acelerador até o máximo de seu percurso,
quase o arrancando do guidão.

A corrida para a casa de Letícia foi a mais alucinante na vida de David. Sua amada estava
sozinha, nas mãos de seu maior inimigo, e ele não conseguia imaginar o que Shang poderia
fazer em apenas alguns segundos.

Enquanto corria com a motocicleta, percebeu que o tempo retornara ao normal e então o parou
novamente, pois precisava das pessoas e dos veículos estáticos para imprimir aquela
velocidade e se desviar dos obstáculos sem risco de um acidente grave.

“Shang está fazendo isso.”

Até chegar à casa de Letícia, parou o tempo mais três vezes e o mesmo retornou quase que
imediatamente. Por isso decidiu terminar o percurso sem interferir no tempo novamente.

David chegou à casa de Letícia e procurou por Morrison, mas não o encontrou. Mesmo assim,
decidiu entrar sozinho, pois não poderia deixá-la à mercê de Shang, que já se mostrara
sanguinário e poderia matá-la sem piedade.

Dentro da casa estava tudo silencioso e ele caminhou tentando não fazer nenhum tipo de
barulho para não chamar a atenção do inimigo que poderia estar à espreita em qualquer local.

Porém David conhecia aquela casa muito bem, ao contrário de Shang, que estava entrando lá
pela primeira vez.

Caminhou pela casa procurando se esgueirar pelos cantos, a fim de não ficar exposto, o que
poderia ser um erro fatal.

Pegou a arma que ainda estava em sua cintura e, apesar de não saber usá-la direito, pois nunca
havia atirado antes, se sentiu mais seguro e confiante.

“Este é o quarto de Letícia.”

Entrou rapidamente e, para sua surpresa, encontrou-a amarrada e amordaçada em uma cadeira.
Correu em sua direção e notou seus olhos se arregalarem enquanto olhavam por cima de seus
ombros, como quem quer avisar de algo.

Então ele se virou e percebeu que a porta do banheiro da suíte estava aberta; e, ao dar um passo
para trás na tentativa de proteger Letícia, percebeu que o tempo parara. Era Shang, com uma
arma apontada para a sua cabeça.

– Largue a arma, David.

David levantou as mãos, curvou-se para o chão e largou a arma, empurrando-a para Shang
enquanto erguia as mãos e parava o tempo sobre o tempo, na tentativa de deixar Shang estático
para atacá-lo. Porém este impediu seu intento, retomou o tempo normal e o parou novamente.

David tentou mais duas vezes sem sucesso, mas o tempo sempre retornava ao normal, sem que
Shang ficasse estático. Foi quando resolveu voltar o tempo para antes de entrar na casa de
Letícia, mas não o conseguiu.

– Não adianta, David. Nós temos os mesmos poderes e não vamos conseguir brigar utilizando-
os. Seremos só nós dois.

– Deixe Letícia fora disso! – David gritou.

– Ela não me interessa, David. Não adianta eliminá-la sem que acabe com você, pois você
voltaria o tempo para tê-la viva novamente. O meu alvo é você mesmo, por isso vim aqui, só
para usá-la como isca. Depois eu penso o que farei com sua namorada.

Shang sorriu e mostrou os dentes amarelados e maltratados pelo tempo.

– O que você quer de mim? Eu não era uma ameaça para você. Fui transformado em uma
quando começou a me perseguir.
– Seja como for, garoto, agora você me ameaça e preciso tirá-lo do caminho para continuar
com minhas ações. Os integrantes do grupo começam a vê-lo como um líder e não posso
permitir isso.

David sentiu que não conseguiria combatê-lo e pensou no pior. Se sucumbisse, Letícia seria a
próxima, pois seria testemunha do ato de Shang. Os outros também poderiam morrer para não
voltar no tempo e salvá-lo. Por isso resolveu estender a conversa para ganhar tempo e pensar
em algo.

– Não faça isso, Shang. Nós podemos trabalhar em conjunto. Por que você pensa que eu não
seria um bom parceiro? Eu poderia assumir o lugar de Morrison e ajudá-lo mais do que você
pensa.

– Morrison? Ele é apenas um boneco em minhas mãos, e você não vai assumir o lugar dele.
Vou eliminá-lo também e tomarei conta de toda a organização, como deveria ter feito desde o
começo.

David procurava algo em sua mente que pudesse ajudá-lo, mas a arma estava apontada para a
sua cabeça e ele sabia que um tiro nessa direção seria fatal. E bastava Shang apertar o gatilho.

– Pense comigo, Shang. Nós dois somos muito poderosos, mas os Iguais não gostam de você.
Eu posso assumir como seu braço direito e você some por uns tempos. Depois eu o coloco
novamente dentro do grupo para assumir de vez a liderança.

– Você acha que sou otário, David? Você tem um coração muito bom. Jamais mataria uma
pessoa.

Shang esticou o braço mirando bem na cabeça de David, que fechou os olhos.

– Prepare-se para morrer, garoto.

David fechou os olhos e só teve tempo para escutar uma voz familiar:

– Não, Shang. Deixe comigo.

David abriu os olhos e, para sua surpresa, Morrison estava apontando um fuzil para sua cabeça.

– Deixe comigo – continuou Morrison. – Eu quero ter esse prazer. Você me deve isso. O David
já me atrapalhou muito e agora queria assumir o meu lugar. Eu mesmo quero arrebentar a
cabeça desse garoto.

Shang olhou para trás e sorriu para o Morrison.

– Como você prefere dar cabo dele pessoalmente, eu não vou interferir. Prove para mim que
realmente merece minha confiança. – Abaixou a arma.
David não podia acreditar no que estava ouvindo. Havia confiado em Morrison e achava que
ele realmente estava do lado bom dos Iguais. Mas não era assim. O que ele via naquele
momento era que Morrison estava enganando a todos os integrantes do grupo, principalmente a
ele e Adalberto.

– David, feche os olhos. Não quero que você veja isso. Pode não parecer, mas gosto de você,
moleque.

David obedeceu e contraiu todos os músculos do corpo virando sua cabeça levemente para o
lado esquerdo, esperando a morte chegar.

“Se houver vida após a morte, ainda posso me encontrar com Letícia” pensou.

Antes de ouvir o tiro, David sentiu que o tempo parou sobre o tempo e, então, veio um grande
estrondo.

Ao abrir o olho com o rosto cheio de sangue que não era seu, David viu que na cabeça de
Shang havia um grande orifício vindo da nuca esquerda e saindo pela fronte direita.

O corpo de Shang caiu no chão e David pôde ver atrás dele o fuzil ainda soltando fumaça nas
mãos de Morrison.

– Morrison, eu pensei... – David estava surpreso e aliviado.

Morrison sorriu.

– Eu jamais deixaria que ele fizesse mal a vocês. Eu gosto de você, garoto, e essa é a forma
como consegui demonstrar isso. Sei que você falou tudo aquilo somente para ganhar tempo,
mas se eu não enganasse o Shang jamais conseguiria pegá-lo distraído. Ele nem percebeu que
parei o tempo sobre o tempo.

– Graças a Deus você apareceu, Morrison. Pensei que seria o meu fim.

– Vamos, David. Precisamos limpar essa sujeira toda antes de retomar o tempo. Não quero que
Letícia veja esta cena horrível. Depois você conta para ela como tudo terminou.

– O que vamos fazer com ele?

– Deixe comigo, David. Vou colocá-lo em um carro e jogar o corpo em algum lugar onde
ninguém possa encontrá-lo. Só peço que não retorne o tempo. Deixe que eu faço isso quando
terminar tudo. Ninguém vai procurá-lo. Ele não tem família na China e nenhum amigo pelo
mundo.

– Certo. E quanto a você?


– Não vou lhe dizer para onde vou, mas deixarei os Iguais e ficarei longe de toda essa
criminalidade. Vou viver o resto da minha vida como um milionário excêntrico, ou quem sabe
como um barqueiro sem muitos compromissos e rodeado de mulheres. – Morrison sorriu
enquanto pegava Shang pelas pernas para arrastá-lo dali.

– O que eu falo para os outros?

– Conte a verdade. Só isso. Ah... Mais uma coisa, eu deixei no quarto do hotel todos os
documentos que mostram o esquema da quadrilha que Shang montou. Lá tem muitos nomes,
inclusive de gente muito importante, e isso vai colocar essas pessoas na cadeia. Aqui está o
endereço e as chaves. – Morrison entregou um pequeno papel com as chaves para David. –
Entregue ao Adá, que ele saberá o que fazer.

– Pode deixar comigo.

David estava muito agradecido a Morrison por ter salvado sua vida e torcia para que ele
conseguisse mesmo viver como desejava. Ele imaginava que a vida de seu salvador havia sido
horrível até aquele momento e que ele estava aliviado por acabar com seu algoz.

– Deixe que eu o ajudo a levar o corpo até o carro, Morrison. Acho melhor pegarmos um que
esteja longe daqui e depois devolvê-lo ao mesmo local antes de darmos tudo por encerrado.

– Sim. Essa será uma maneira de despistar e esconder a cena do crime. Nunca investigarão a
casa de Letícia, e se algum dia encontrarem esse corpo será mais um caso não elucidado. Mas
deixe que eu o levo a partir do carro. Não quero envolvê-lo nesse crime. Só me ajude até lá.

Os dois saíram carregando Shang rua acima, até encontrarem um utilitário pickup que estava
fácil de ligar.

Após colocarem o corpo na caçamba do automóvel, Morrison o ligou e, antes de sair, colocou
a cabeça para fora.

– Adeus, David. Seja muito feliz com a Letícia. Não deixe que nada os atrapalhe. Se tudo
correr bem, você nunca mais me verá.

– Adeus, Morrison. Procure ser feliz também.

Morrison sorriu, e essa foi a última vez que David o viu.


CAPÍTULO XXVI

Era dezembro e uma escuna preta e azul estava partindo de Marigot Bay, o lado francês da ilha
de Saint Martin, rumo à ilha de Anguilla

Os turistas se amontoavam no porto, tentando conseguir um lugar naquela que era uma das
embarcações mais famosas de Saint Martin, pois o capitão passava toda a viagem contando
histórias inacreditáveis sobre um grupo de pessoas especiais capazes de voltar no tempo e
sobre um amor tão grande que venceu todas as barreiras impostas pelas intervenções no
destino.

As histórias eram contadas tanto em Inglês como em espanhol e, não raro, um turista
identificava a narrativa como sendo a do livro A Sombra da Alma, de David Leniz.

Sempre que o livro era citado, o capitão concordava em que as histórias eram tão semelhantes
que ele mesmo se identificava com um dos personagens, um tal de Mark. Mas sempre frisava
que o final que ele contava era muito diferente do final do escritor David Leniz.

Porém aquela foi uma viagem especial, pois uma turista americana se encantou com aquele
homem charmoso, queimado pelo sol, mas com um sorriso penetrante e uma cultura
impressionante. E foi assim que combinaram o primeiro encontro em um restaurante francês à
beira-mar em Friar’s Bay. Seu nome era Mary e o casamento dela com Morrison aconteceu sob
o luar nas areias da praia, com trinta convidados, seis meses após aquele primeiro jantar.

***

Adalberto estava com seu carro esporte branco conversível parado em frente àquela casa. Seus
pensamentos estavam voltados para tudo o que havia acontecido. As mortes não saíam de sua
cabeça e ele pensava que poderia ter evitado muitas se tivesse tomado alguma atitude
diferente.

Mas aquilo deveria ficar no passado e ele deveria pensar somente no seu futuro.

No banco de trás do conversível havia uma caixa de papelão grande, com diversos documentos
e mídias contendo muitas informações. E, ao lado dessa caixa, um de seus melhores quadros.
Aquele que ele chamava de sua obra-prima, com um metro e meio de comprimento por um
metro de altura, pintado com muito carinho e boas lembranças.

O quadro de Adalberto representava uma passagem de sua vida que ele jamais esqueceria, mas
que havia ficado em um futuro que não aconteceu. Retratava um casal em um aeroporto cheio
de pessoas andando de um lado para o outro. Porém A. de Sá era considerado um gênio da
perspectiva e, nessa obra em particular, apesar da multidão que povoava o quadro, para onde
você olhasse veria o casal em destaque.

Adalberto ficou parado por mais de uma hora na frente daquela casa, tomando coragem para
tocar a campainha e se apresentar. Mas a coragem faltava e ele precisou se acalmar antes de
deixar o carro e pegar a caixa com uma mão e o quadro com a outra.

Subiu as escadas e tocou a campainha como um adolescente que está tentando decidir o seu
futuro.

Por alguns instantes, Adalberto pensou que não havia ninguém em casa, mas percebeu uma
sombra que se aproximava da porta.

A pessoa que estava do outro lado olhou pelo olho mágico para tentar ver quem era, pois já era
noite e aquela casa não costumava receber visitas a essa hora.

– Mãe, tem um homem aqui fora – a criança gritou.

– Já vou, filho – a mãe respondeu.

Adalberto sentiu um frio invadir-lhe o estômago e precisou fazer força para não fraquejar com
as pernas enquanto percebia que a mulher também olhava pelo olho mágico.

Ela abriu a porta, que estava segura por um ferrolho, e olhou curiosa e assustada ao mesmo
tempo.

– Pois não? – perguntou.

– Boa noite, Meire – Adalberto estava nervoso. – Sou o pintor A. de Sá e soube que você
admira muito minhas obras. Por isso resolvi trazer esta especialmente para você.

Ele sorriu e mostrou uma parte de sua pintura através do vão da porta para Meire logo
reconhecer os traços. Então ela voltou a olhar para aquele homem e o reconheceu.

– A. de Sá? É você mesmo! – ela sorriu. – Mas que surpresa! Entre. – ela abriu a porta. – O
que você faz aqui?

Adalberto sorriu e se acalmou.

– Meus clientes me chamam assim. Mas meu nome é Adalberto e meus amigos me chamam de
Adá. Então, para você, Adá. E, como já lhe disse, vim trazer este quadro. Mas não é só isso.

Mostrou a ela a caixa com todos os documentos que, a essa altura, já estava no chão, próximo
de seus pés.
– Sei que você está investigando uma organização e esses documentos vão ajudá-la muito,
Meire.

Meire estava mais curiosa do que assustada. Queria saber como ele descobrira que ela era uma
agente e estava investigando aquela organização. Mas preferiu olhar os documentos antes de
falar algo e fazer qualquer pergunta a esse respeito.

– Adá, isso é muito importante. Estamos investigando essa organização há pelo menos três
anos e o que você me trouxe esclarece todas as nossas dúvidas. Também, vejo aqui as relações
de todas as pessoas que dela participam, inclusive políticos e grandes empresários. Como você
conseguiu?

– Um amigo me deu. Ele fazia parte do esquema, mas resolveu desaparecer e me deixou esse
presente.

– E quem era o seu amigo?

– Você o conhece. O Morrison.

Meire olhou para ele admirada. Ele estava entregando provas incontestáveis que iriam colocar
muita gente na cadeia e desmantelar uma das maiores organizações criminosas mundiais.

– Adá, você sabe que está envolvido nisso, mesmo assim me trouxe os documentos?

– Eu tenho motivos fortes para isso.

– Eu estava incumbida de investigar você, mas acho que, se você entrar como testemunha no
caso, não será punido ou terá uma pena branda, já que as provas contra você são muito
superficiais. Na verdade, as provas contra os diretores da Time Same são muito inconsistentes,
quase inexistentes. Acho que ninguém vai ser punido, a não ser Morrison e Shang, mas eles
estão foragidos. Vou ver isso com o promotor depois que analisar todos esses papéis.

– Eu agradeceria, Meire. – Adalberto sorriu.

– Mas eu preciso lhe perguntar. Como você sabia quem eu era e onde trabalhava? E como
sabia que eu admirava seus quadros?

– Você me contou. – Adalberto esboçava um pequeno tremor nas mãos, causado pela
ansiedade.

– Como assim? Nós nunca nos encontramos – ela estava com receio do que iria escutar e
preparada para qualquer reação daquele estranho conhecido, inclusive com a mão próxima da
arma que ficava embaixo do sofá.

– A história é muito longa e eu vou ter que lhe contar com muita calma. E já adianto que você
não vai acreditar em quase nada, mas vou provar cada coisa que lhe falar. Inclusive, não pegue
essa arma, por favor. Eu sei que ela está aí. Você mesma me mostrou. Eu não vou esconder
nada.

Após os primeiros sustos e desconfianças de Meire, Adalberto contou toda a história dos Iguais
e os dois conversaram a noite toda. Adalberto mostrou-lhe as suas habilidades enquanto falava
toda a verdade, provou com gestos tudo o que relatava e, após algumas horas, eles se
divertiram como nos velhos tempos, marcando o reinício do relacionamento.

***

Uma revista americana, conhecida por mostrar grandes administradores e empreendedores,


trouxe em sua capa a foto de David com o seguinte título.

“A carreira meteórica do jovem escritor que virou presidente da Time Same"

Letícia trouxe a revista para ele no café da manhã e sorriu como de costume, iluminando o
ambiente.

– Veja, David. Agora você é mais famoso do que eu.

David olhou para ela e se lembrou de tudo o que eles passaram juntos até chegarem àquele
momento.

– Não sei o quanto isso é bom, mas estar ao seu lado é o que vale a pena para mim.

– E como estão os preparativos para a inauguração? Você vai mesmo lançar o livro A Luz na
Escuridão durante a inauguração?

– Vou lançá-lo, sim. Já está tudo pronto. Hoje, finalmente, a sede da Time Same será
totalmente transferida para a nossa cidade. Assim eu poderei ficar mais tempo com vocês. E,
agora que o nosso filho já está com um ano, quero passar os fins de semana com ele e com o
pequeno David.

– E a Meg, ela vem para o Brasil?

– A Meg é uma das poucas funcionárias que não ficarão no Canadá. Não posso ficar sem o
meu braço direito. Eu levo a fama, mas é ela quem realmente administra a nossa empresa.

– Quem diria que ela veio de um pequeno vilarejo no meio da Amazônia. Incrível como temos
potenciais perdidos por esse país.

– Tem razão. Ela ainda auxilia na editora fazendo algumas revisões, principalmente dos meus
livros.
– E os Iguais aproveitarão essa inauguração para fazer uma convenção?

– Sim. Daqui por diante as convenções serão sempre em nossa sede. Não viajaremos mais.

Um choro leve pôde ser ouvido no quarto de Enzo, o filho de David e Letícia. Ela se levantou
e foi para lá a fim de amamentá-lo.

David continuou tomando o seu café, pensando que já iria para o quarto para ajudar a trocar a
fralda do seu filho. Porém ele tomou um grande susto quando percebeu que as cores perderam
o contraste. O tempo havia parado.

“O que será que aconteceu?”

Correu para o quarto e, quando chegou lá, deparou com uma cena que o assustou no início,
mas depois se tornou divertida.

Enzo havia parado o tempo e estava rindo e brincando com os lábios de Letícia, que estava
estática.

David sorriu e pôde perceber o grande potencial que aquele menino tinha. Bastava fazer a sua
parte e educá-lo corretamente.
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