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Ao seu redor, o mundo dormia. A cidade em que vivia era feita por ruas,
agora silenciosas, prédios que cercavam essas ruas, uma vegetação falsa os
rondando, e um córrego sujo cortando o espaço, com uma ponte pairando
sobre ele.
Eddie não podia ver o céu noturno sobre a sua cabeça, por conta de existir
um viaduto o tampando. Era como se ele estivesse abaixo da cidade, nas
margens, tentando arranjar algum espaço que já não estivesse no nome de
outra pessoa.
Como ler um livro conhecendo o fato que seu personagem preferido vai
morrer. Todos os momentos em que torce por ele, ri e chora, tornam-se dez
vezes mais dolorosos.
- Tudo bem?
Ela havia sofrido um aborto espontâneo que matara seu bebê no quarto
mês.
Eddie não era o pai. Nenhum dos dois sabia quem era o pai. Quando
começou a morar debaixo do viaduto, Eddie notou que Giovana era mais
perdida que si, e que estava completamente sozinha. Podia ser tanto uma
adolescente de quatorze anos de corpo avançado como uma jovem adulta
de dezoito anos baixinha, assim que não sabia sua idade. Eddie se afeiçoou
por ela da mesma forma que se afeiçoa por uma irmã ou uma filha.
Ela tentou ficar com o bebê. Ela quis ficar com ele. Eddie não entendeu o
porquê, mas ele só pode apoiá-la. Ela parou com as drogas, lutou contra as
crises de abstinência, tinha um cuidado consigo mesma que Eddie não
achava que seria possível de acontecer.
Ele estaria mentindo se dissesse que não esperava por algo do tipo
- Não foi culpa sua. Não tinha nada que podíamos fazer, e mesmo assim
você e Giovana se esforçaram ao máximo para ficar com o bebê.
- Eu sei disso. – Eddie retrucou com a voz sufocada. Ele franziu o cenho,
sentindo pontadas de raiva machucar o peito. – Eu só não aguento vê-la
sofrer.
Nesse momento, sua mão foi automaticamente até o objeto por dentro do
seu bolso do casaco verde militar.
Matheus levou um tempo para responder. O único barulho entre eles era o
da fogueira e o do vento que ainda tentava apaga-la. Todos os outros que
também moravam debaixo do viaduto ou dormiam ou faziam algo que não
tinha nada a ver com Matheus e Eddie.
- Eu estou tentando lembrar o que era que a Vovó Ludmila dizia para você.
– Matheus encara a fogueira enquanto dizia realmente pensativo.
- Isso.
- É a última coisa que eu quero ouvir quando moro na rua.
- Mas é a única coisa que você pode ouvir. Se não começa a escutar os
próprios pensamentos, e eles não dizem nada de bom.
E Eddie ainda era inocente. Ele não havia quebrado por completo ainda. As
melhores inocências nas ruas eram as distorcidas. Cheias de remendos,
difíceis de decifrar. Você não sabe onde começa nem onde termina,
também não sabe se vai durar ou não. A única prova que tem é que existe,
de forma errônea, mas existe.
Ele havia conservado aquilo. E não queria perder por nada, se tornar mais
um número de estatística, um garoto perdido.
Eddie trouxe o objeto que segurava por dentro do seu bolso, e ele se
revelou sobre a luz do fogo: Um relógio de bolso já antigo, dourado.
Quando Eddie o abriu, ele ainda funcionava. Mas Eddie não quis ver as
horas.
- Você sabe que não pode ficar com isso aqui. – Matheus soou um pouco
exasperado, como se já tivesse dito aquilo um bocado de vezes.
- É o que você acha até alguém roubar o seu bem precioso. – Matheus
suspirou. – Você tem uma fibra que eu não tenho Eddie. Se eu fosse um
imigrante ilegal órfão, a primeira coisa que faria seria vender esse relógio.
Matheus assentiu.
O monstro Cativeiro o digeria pelos dias que Eddie passou por dentro dele,
sugando suas energias. Eddie já não tinha mais forças para se mover, para
fazer qualquer coisa.
Eddie revirou os olhos pela reação do Matheus. Não sabia dizer se ele não
havia entendido ou simplesmente o ignorava. De qualquer forma, o homem
possuía um pouco de razão. Eddie estava mesmo grogue de sono, sem total
controle sobre a língua. Ele precisava dormir, pelo menos um pouco, para
conseguir ficar atento no roubo do próximo dia.
Descansando mal ou não, ainda era descansar. Essa era a lei geral nas ruas,
se aplicava em todas as questões praticamente.
Ele olhou para o espaço do viaduto por um instante. Iluminado pelo fogo,
só ficava mais evidente o quanto era vazio. Mesmo com os corpos e os
objetos aleatórios espalhados, evidenciando vida humana, era como se não
houvesse nada.
Eddie continuava no mesmo lugar desde que perdera a mãe, tudo que
mudara era o nome. Mas ele jurava que não havia outra pessoa procurando
a liberdade tanto quanto si.
E ainda queria acreditar que ela iria chegar, mesmo que não fosse à hora.
MILO
RENO
Reno acordou com batidas grosseiras na porta da sua cela. Ao mover a sua
cabeça no susto, o travesseiro que estava sobre si rolou e caiu para fora da
sua cama. Sua visão era como um vidro embaçado, e demorou a se
estabilizar para que ele pudesse reconhecer o mesmo cômodo em que
estava preso todos os dias: Era um espaço pequeno e metálico, com outra
cama do lado oposto à sua, dois armários em cada canto e duas
escrivaninhas. O outro lado estava completamente ocupado. Havia livros,
HQ’s, cadernos, roupas, todo o tipo de coisa que denominava ocupação
humana. E uma ocupação bem bagunçada.
Reno, grogue de sono e irritado pelas batidas incessantes em sua porta,
esticou o braço para alcançar a sua escrivaninha e pegar seus óculos de
armação negra, colocando-a sobre o rosto. Agora sim ele conseguia
enxergar. De forma letárgica e preguiçosa, Reno se ergueu e saiu da sua
cama, bem lentamente.
As batidas continuavam, altas e bruscas.
Reno bufou e foi até a porta da sua cela, olhando pelo o vidro da janela o
que ele já sabia que iria ver: Um Praticante, que assim que notou que ele já
estava acordado, deixou de bater e girou os calcanhares, saindo em seguida.
Assim, sem mais ou nem menos. Reno revirou os olhos, sentindo falta de
ser acordado por robôs naqueles dias.
Era quase um ritual: Uma vez por mês todos tinham que fazer uma
checagem médica, e Reno sempre dormia até tarde e alguém precisava
acordá-lo. Era um dos poucos momentos do mês em que conseguiam o tirar
da cela com sucesso. Se ele não fosse por vontade própria, seria arrastado.
Bem vindo ao Complexo.
O mesmo lugar que te sequestra, te aprisiona e te escraviza, é também o
mesmo lugar que o mantém vivo por o máximo de tempo que puder. Reno
se lembrava de terem dito que ele ia ganhar óculos novos, pois suas lentes
já estavam ultrapassadas, e receber uma nova caixa de bombinhas de asma,
pois a sua já havia acabado.
Isso significava que ele já havia passado mais de seis meses preso naquele
lugar.
Reno tentou não deixar o soco no estômago lhe paralisar, e terminou o que
precisava fazer para acordar no banheiro dentro da cela. Vestiu seus tênis e
pouco se importou com a roupa que usava: Era o mesmo moletom cinza
três vezes o seu tamanho de sempre, e a mesma calça preta.
Arrastando os pés e com a pior postura possível, ele se levou para fora da
cela, a porta abrindo-se automaticamente. No atual momento, o corredor
das celas estava cheio de Legados que se dirigiam ao pátio para pegarem o
elevador. Era uma multidão de jovens em um espaço pequeno, então Reno
nem se atreveu a se locomover muito.
Era sempre o mesmo caos em dias de checagem médica. O Complexo não
foi construído pensando em tais eventos, e quem estava preso ali dentro que
tinha que lidar. Reno só queria desaparecer na multidão e terminar com
aquilo o mais rápido o possível, para que pudesse voltar para a sua cela e
voltar a dormir. Ou ler algo.
Reno queria desaparecer a tanto tempo que não se lembrava de como eram
os dias antes dessa vontade. Começou por motivos pequenos e de forma
momentânea: Ele não se sentia bom o suficiente, carismático o suficiente,
inteligente o suficiente. Depois ele não tinha mais interesse em ser alguma
coisa. E também passou pela a fase em que decidiu que as pessoas
deveriam desaparecer não ele.
Até que “progrediu” para o momento de agora, com dezoito anos, e
cansado de mais para desejar algo além de desaparecer como a brisa. Voar
para longe sem deixar ninguém notar. Se notassem, seria algo passageiro.
Reno não era bobo e nem dramático, ele podia afirmar plenamente que
ninguém sentiria falta dele.
Seria como se nunca tivesse existido. E, com uma vida tão simplória, de
fato não existiu.
Ele era um garoto baixinho que aparentava, no máximo, ter quinze anos em
vez de dezoito. Com a pele pálida, de doente mesmo, olhos cinzentos que
ele fazia questão de esconder por trás dos óculos e cabelos lisos densos e
negros, que haviam crescido demais desde que chegara no Complexo,
agora chegando até a sua nuca. Ele tinha olhos grandes demais, lábios finos
e pequenos demais, nariz de botão e era gordo. Ou nem tão gordo quanto
gostaria, pois a prisão o fez com que ele emagrecesse pelo menos dez
quilos.
Se havia algo que Reno odiava mais que si mesmo, com certeza era aquele
lugar.
Uma das únicas soluções, realmente, para se sair dali seria o
suicídio. Morrer não era desaparecer. Era exatamente o que os criadores do
local estavam querendo quando o criaram e colocaram as crianças ali
dentro, então Reno preferia continuar sofrendo do que entregar exatamente
o que eles queriam. Em qualquer das opções, ele saía perdendo.
Reno só escolhia o que ele iria perder por vez.
Reno odiava ter que esperar, sinceramente. Toda vez sua mente se enchia
com todos os pensamentos que evitava ao se alienar no seguro da sua cela,
lendo alguma coisa. Era algo muito fácil: Se alienar. Deixar que o mundo
ao redor desaparecesse, por mais que fosse um ambiente hostil. Reno não
iria sair. Era melhor que não pensasse muito sobre isso.
Mesmo sendo carregado na maré de pensamentos ruins, ele conseguiu
chegar até o elevador, apertado entre jovens que odiava e era odiado de
volta, e depois do elevador até a enfermaria, onde aconteceria a checagem
médica. A enfermaria era um salão amplo para abrigar tantos Legados,
cheio de macas e completamente branca, tanto nas paredes quanto no chão
ou nos móveis. Exatamente como uma UTI. Nada confortável ou atrativo.
O Complexo tinha seus meios de fazer Reno lembrar em que ainda estava
no Brasil: Ao chegar na enfermaria, os jovens foram separados em filas
para que facilitassem no atendimento individual de cada um deles. Eles
foram separados por Elemento e por gênero, assim, Reno não tinha muitas
pessoas à sua frente.
Mas era sempre um inferno ter que lidar com os outros Legados do Sono.
Eles não podiam realmente lhe dirigir a palavra como gostariam enquanto
estavam sendo vigiado por cientistas e Praticantes por todos os lados, mas
os olhares diziam o suficiente. Com sorte, Reno era imune à esses.
Reno se lembrava da primeira vez que havia visto todos os Legados dentro
do Complexo juntos, no refeitório. .Ele ficou tão zangado, tão ultrajado.
Como poderiam existir tantas crianças como ele e ninguém nem entendia o
que ele era? Nem ele sabia. Depois da raiva, veio o soco da realidade: Eram
por que todas eram presas. Todas foram levadas antes de conseguirem fazer
alguma diferença, e ninguém conseguiu sair. Aquele não era o único
Complexo. Existia na Itália. Na França, nos Estados Unidos, na Espanha,
na Grécia, China, Japão e por ai vai… As vezes crianças eram transferidas
desses países por falta de espaço. Era algo muito maior e terrível do que
parecia.
Milo tinha razão ao dizer que não havia nada para se fazer. Eles eram
formigas sobre os pés de titãs. Nada que tramassem ia alterar o que
realmente acontecia lá em cima, onde não conseguiam ver.
Quando finalmente chegou a vez de Reno, ele foi colocado sentado em uma
maca e uma das cientistas responsáveis por Legados do Sono, que ele
sempre via nas checagens médicas, puxou a cortina ao redor deles para que
ninguém visse o que acontecia ali dentro. Como ele esperava, ela lhe
entregou óculos novos, bombinhas de asma, olhou suas orelhas e boca,
mediu a sua pressão, viu seu batimento cardíaco, coletou seu sangue.
E no final, lhe deu uma injeção com a nova dose de veneno que ele
precisava tomar periodicamente para que, quem havia o prendido no
Complexo, pudesse obter os resultados que precisava. Era um veneno
incrível, na verdade, quase um avanço da humanidade.
Assim como o Complexo e todo o conceito por trás dele poderiam ser
considerados avanços da humanidade, em um sentido.
A questão era: O veneno não causava efeitos colaterais, muito menos lhe
deixava perceber que estava agindo em seu organismo. Ele era um inimigo
invisível, assim como o Complexo e seus criadores. Era impossível
combatê-lo. Eles injetavam nas veias, mas também era possível aspirá-lo
toda vez que respirava o ar fabricado do Complexo, e quando comia a
comida que eles ofereciam.
Eles estavam sendo intoxicados por todos os lados.
Reno deu o melhor de si para sair dali o mais rápido o possível quando foi
liberado, com o intuito de voltar para a sua cela sem ser notado. Era difícil,
sendo abertamente odiado entre praticamente todos, sendo ele mesmo que
havia causado isso, mas ele sempre conseguia de uma forma ou de outra.
Não foi abordado por nenhum Legado do Sono, ou a líder deles.
Até que aquele era um bom dia.
Reno conseguiu voltar para a sua cela, para a cama, para os cobertores,
para a posição fetal que se encontrava perante a vida inteira, e finalmente
pode respirar aliviado.
Agora Reno só precisava curtir o seu ninho confortável entre o caos.
EDDIE
Eddie deitou-se próximo de Giovana, que era o seu lugar de todas as noites.
Ele não tinha um colchão. As únicas que possuíam aquele tipo de conforto
eram Giovana, por estar grávida, então o colchão era recente, e Vovó
Ludmila, que possuía a poltrona. Elas eram também as únicas mulheres
dentro do grupo.
Para Eddie, a pior parte não era ter que dormir no chão todas as noites, com
um cobertor pequeno e puído, isso quando havia um cobertor, pois ele era
obrigado a jogar os muitos sujos quando não era possível lavá-lo. Eddie
realmente conseguia dormir em qualquer lugar. Ele precisava estar
extremamente perturbado para não dormir, mesmo naquelas condições.
A pior parte era todo o resto.
Isso não significava que ele gostava de dormir. Pelo contrário. Passava o
dia todo temendo seus pesadelos durante a noite. O problema era que ele
não acordava, mesmo sendo torturado psicologicamente. Não sem uma
interferência.
Aquela seria uma das raras noites em que isso aconteceria.
Eddie deu um solavanco e ofegou como se estivesse voltando à vida. Uma
mancha negra passou por ele, como um vulto de um animal pequeno. Seus
olhos se tornaram dourados enquanto ele enxergava no escuro da noite,
debaixo do viaduto. Havia um silêncio absoluto além da sua própria
respiração. Eddie não conseguiu evitar estranhar isso. Todos estavam
claramente dormindo, mas sempre havia alguém que roncava ou que falava
ou que se mexia muito durante à noite, então era muito raro, durante à
madrugada, todos estarem quietos dessa forma.
A estranheza começou ai.
Eddie levantou-se vagarosamente, com medo de acordar Giovana. Olhou
para o rosto dela: Ela parecia profundamente adormecida. Havia algo de
estranho nessa imagem. Como se não fosse natural. Isso causou agitação
por dentro de Eddie, como se criasse um rebuliço dentro do seu peito.
Olhou na direção que o vulto que passara por ele foi. O vulto ainda estava
por lá. Era uma mancha negra flutuante sem forma definida. Aos olhos
normais, ela seria apenas parte do breu que impediria de enxergar. Eddie,
ao enxergar no escuro, ele conseguia ver todas as moléculas que o formava:
As sombras.
Ela estava virada exatamente para si.
Não havia engano. Estava o chamando. Eddie conhecia aquelas formas
bem demais para ignorá-las. Não se podia separá-las em algo bom e em
algo ruim, eram todas irracionalmente iguais. Agiam por um único
propósito quando o tinham. Eduardo conhecia aquelas formas desde a
infância. Se houve algo que ele aprendeu sobre elas, é que não se podia
temê-las ou seria dominado. E não era uma opção ser dominado.
Nas poucas vezes que sombras aleatórias apareceram, elas serviram como
setas para guia-lo a qualquer coisa que queriam que fizesse. Era melhor
obedecer até que sumissem. Essa anormalidade não o “incomodava”, mas
com certeza era um pé no saco desnecessário.
Eddie não teve uma reação imediata até que a sombra, muito rapidamente,
se aproximou de Matheus adormecido. Era o corpo mais próximo que ela
havia achado. Ela se enrolou em volta do pulso do homem, como se o
prendesse. Os olhos de Eddie se arregalaram e o seu coração se acelerou na
mesma hora.
Ele entendia aquele sinal. Era uma ameaça.
Eddie correu na direção da sombra, e ela se afastou na mesma hora, como
se não tivesse feito nada de errado. Matheus continuava ressonando, como
todos os outros do viaduto. Eddie pode notar outras manchas negras se
locomovendo, espreitando de forma curiosa o grupo de sem tetos. O garoto
precisava leva-las para longe dali, ou se não…
Ou se não.
Da última vez Eddie havia ficado sem casa, sem mãe e sem irmã mais
nova.
Eddie começou a andar para fora do viaduto, sendo seguido pelas sombras.
Logo elas estavam o guiando e não o contrário. Chegou até o fim do
viaduto, aflição crescendo dentro de si enquanto as esperava darem
direções.
Atravessaram uma rotatória e Eduardo as seguiu certificando-se de manter
distância, por que sombras eram imprevisíveis como animais.
Chegaram à avenida que normalmente era cheia de carros, agora vazia.
Viraram na primeira esquina, avançando e avançando, até que Eduardo
estivesse numa área repleta de lojas sem uma alma viva fora e dentro delas.
Como se tivesse sido sugado para uma cidade completamente diferente.
O vento passou por seu rosto gelando as feições que franzia. Não era
habituado a ir muito naquela área comercial, por que não tinha nada a se
fazer ali e eles sempre roubavam longe do viaduto; mas seu senso comum
gritava que não tinha como uma parte da cidade ser tão vazia.
Se não era uma armadilha, então o que era?
Olhou para as sombras novamente: Elas se separaram em várias pequenas
formas e se enroscaram no exterior das lojas procurando brechas para
entrar e desaparecer. Eddie não teve tempo para digerir a imagem ou voltar
atrás, pois ouviu passos.
Céus, que presa fácil ele era.
Sentiu uma presença sombria com más intenções. Todo o seu corpo se
arrepiou e ele tremeu de leve. Deve ter lembrando um coelho para seu
captor, bobo e inocente atrás de um pedaço de cenoura.
Mas não tinha escolha já que poderia ter sido pior caso não fizesse o que as
sombras queriam. Uma vez tentou ignorar e o resultado foi horrível o
bastante para acabar sem mãe, sem irmã mais nova e sem lugar para dormir
além da calçada.
Pelo menos o grupo de baixo do viaduto estava a salvo.
Fez única coisa que poderia: Correu. Puxou todo o ar em sua volta para
dentro dos pulmões, sendo castigado pelo vento frígido. Ele correu como se
nada mais existisse, movido por um desejo fortíssimo de fugir e continuar
vivo. Não importava o que acontecia ou o que podia acontecer, Eduardo
simplesmente se recusava a perder naquele joguinho de gato e rato.
Claro que não era a primeira vez.
Ele tinha a noção que não era um alvo. Não acreditava ter sorte o suficiente
para sobreviver àquelas perseguições por que simplesmente não
conseguiam pegá-lo. Não tentavam pegá-lo de verdade. Era só uma
brincadeira, mas se o mantinha vivo Eduardo não iria reclamar sobre.
Se Eduardo procurasse um culpado pelas perseguições seriam as sombras.
Elas eram uma maldição e todos conhecem o costume de caçar pessoas
amaldiçoadas, independente de serem perigosas ou não.
Eduardo nem sequer viu a aparência dos perseguidores. Preferia continuar
cego desse jeito, não carregando consigo a sensação de ser observado e que
poderia ser pego a qualquer instante. Então ele não lutava contra, pois não
conhecia seu “inimigo”, tornando-se uma diversão.
Eduardo chegou em um beco sem saída. Deu mais três passos e perdeu o
equilíbrio, inclinando o tronco para frente enquanto ofegava com dor nos
pulmões e em todo o resto. Tentou pensar, mas a mente era um branco
girando como globo de espelhos. Fechou os olhos com o intuito de se
acalmar e sentir.
Não tem como eu continuar correndo. O sangue bombeava de forma
pesada no corpo cansado sem estrutura para aguentar corridas longas. Sua
melhor opção era se esconder no beco escuro e esperar os perseguidores
irem embora, como sempre iam.
Ele grudou na parede, esgueirando-se com o cuidado de analisar tudo para
não se surpreender na escuridão. Pelo menos conseguia enxergar mesmo
sem a falta de luz desde pequeno.
Eduardo sentia uma agitação agonizante que o atrapalhava em sentar e
esperar, como se simplesmente não fosse feito para isso. Apoiou as costas
na parede e dobrou as pernas. Abraçou-se temendo fechar os olhos e, ao
mesmo tempo, querendo.
Não queria abri-los para achar uma realidade completamente diferente. O
escuro não era o problema. O que o torturava era o que não podia ouvir ou
sentir.
O que fariam consigo caso o pegassem?
E por que o queriam?
Eduardo não soube dizer quantos minutos se passaram no silêncio
enlouquecedor quando um toque frio o sobressaltou. Era o mesmo do
viaduto. Pulou de onde estava tocando sua bochecha: Possuía uma marca
de gelo onde sentiu o toque. O ar ficou preso na garganta, mas o medo
subiu e comeu seu cérebro. O pior de tudo?
Não podia correr dessa vez. Sabia que se tentasse não teria saída o
esperando.
O que aconteceu? O que ele fez de errado para ser pego? E o que havia o
pego no final das contas? Por que o jogo terminou?
Eduardo viu palmas reluzentes de tão brancas antes de ter a visão tampada,
mas não sentiu nada contra a pele. Uma brisa gelada passou ao pé do seu
ouvido como hálito. Palavras assustadoras foram sussurradas:
“Você vai até lá, e vai matar antes de ser morto. Eu não vou esperar um
minuto a mais, nem eles. Deixe-me orgulhosa, Legado das Sombras.”
Eduardo abriu os olhos no escuro – normalmente isso não o incomodava.
Ele conseguia ver claramente na escuridão, então não sofria com a mesma
insegurança das pessoas sobre o breu. Mas aquele escuro era diferente.
Eduardo não conseguiu distinguir mais nada além de camadas tenebrosas
de preto que se deslocavam no ar lentamente.
Havia um grande cubo de gelo dentro da garganta, causando dor demais
para se atrever a engolir. Odiava as manhãs que acordava com a garganta
fechada e fria, pois estas eram as que ele tinha muita saliva na boca. Logo
percebeu que não era só a garganta que estava travada.
De forma sonolenta tentou levantar o braço. Não conseguiu. Tentou com
mais força, sentindo algo o prendendo. Fervia de tão quente, acabando por
queimá-lo. Depois de duas tentativas – quando já estava desesperado - o
objeto tornou-se mais apertado. Só podia ser uma amarra pelo o jeito que a
sentia ao redor do braço.
Eduardo grunhiu. A adrenalina substituiu sua razão. Debateu-se
loucamente e, em resposta, se queimou várias vezes enquanto seus
músculos eram comprimidos num agarre forte como ferro.
Notou miserável que não usava mais nada além de uma blusa que não
cobria suas pernas, nem deveria chegar nelas.
Após mais tentativas de se libertar completamente inúteis, as primeiras
lágrimas apareceram. Perguntas começaram a surgir. Que lugar era aquele?
Por que não conseguia enxergar naquela escuridão? E por que ela o
assustava?
Virou a cabeça para os lados procurando alguma brecha no breu que o
consumia e transformava sua sanidade em uma fina névoa que se despedia,
sumindo na escuridão como mais uma das sombras.
Sentia um metal gelado e pouco confortável abaixo do corpo, apoiando-o.
Seus instintos berravam para que tomasse uma atitude – não deixar o medo
o segurar. Como era suposto a fazer isso?
Eduardo fechou os olhos e enxergou uma imagem por um instante. Do
mesmo jeito que apareceu, sumiu. A imagem consistia nele com treze anos
encolhido num lugar apertado e abafado, as sombras do espaço o
envolvendo como braços da mãe que ele perdeu, consolando-o.
Não sabia a quem a agradecer ao ter conseguido lembrar, mas murmurou
um “Obrigado” do mesmo jeito.
MILO
Depois disso, ele foi à direção dos soldados o esperando na porta, antes que
eles o chamassem mais uma vez. Os Praticantes era imprevisíveis, mas uma
coisa era certa sobre eles: Eles eram uma força do Complexo que
controlavam os Legados com todos os meios que precisassem, com força
ou sem força. Milo sabia que o melhor para si era obedecer.
Sua inteira existência se baseava na obediência.
Milo poderia ser visto como um agente duplo. Mas a realidade é que ele faz
o que lhe é pedido não por obediência e sim por sobrevivência. Todos os
Legados do Complexo, mesmo sendo tão jovens, entendem bem sobre
sacrificar suas vontades para continuarem respirando. Por
que viver ninguém conseguia num campo de concentração (prazer,
Complexo).
Não importava o quanto eles se esforçassem para serem felizes de alguma
forma, o conhecimento amargo da liberdade perdida sempre pesaria nos
ombros para estragar tudo.
As celas tinham portas iguais, que iam até próximo do teto branco de metal
e alto do local. Para subir você simplesmente ia na rampa que se elevava, e
para descer ia pela rampa que descia. Cada corredor com cinco celas era
chamado de Setor, e o de Reno era o Setor 1. O mais próximo do chão do
pátio.
Eles desceram e o pátio estava vazio, era uma grande área cinzenta. Os dois
lados eram cobertos por paredes os setores e rampas. No final do pátio
havia um palco e na mesma direção, mas do outro lado, havia um elevador.
Mais nada. Era vazio e grande o suficiente para enlouquecer quem passasse
muito tempo ali. A tristeza e a frieza poderiam congelar alguém. Porém,
graças às drogas que eles tomavam ninguém conseguia notar nada.
Muito facilmente os Legados se perdiam. Os corredores inclinavam para
baixo ou para cima de forma imperceptível. Elevadores foram adicionados
recentemente para que a massa geral de Legados não se perdesse mais.
Nenhum deles tinha a permissão de explorar o Complexo de verdade; então
os elevadores funcionaram perfeitamente no que Milo chamava de Andar
Geral. Milo ia para uma área completamente diferente, seguindo para
baixo.
Todos os corredores do Complexo eram feitos de metal em baixo, dos
lados, em cima. Sem nada além de portas e mais portas. Havia ventilações
por toda a parte. Quanto mais se descia, mais as ventilações diminuíam por
motivos de localidade. O Complexo foi construído de baixo da terra,
descendo várias camadas. Consequentemente os espaços ficavam quentes
como fornos insuportáveis para humanos. Legados entravam nessa
categoria. Milo era um Legado, mas não humano. Sua última preocupação
seria a falta de circulação de ar puro ou calor. Na verdade não se lembrava
das suas preocupações físicas, apenas as emocionais.
Milo estava tão concentrado em andar que perdeu a noção do tempo. Ele
foi escoltado até uma parte do caminho, e depois os Praticantes o deixaram
continuar sozinho. Alguns tinham permissão e outros não. Realmente os
Praticantes pareciam muito jovens. Milo questionava-se o quanto da sua
mente tinha sido lavada e o quanto ainda faltava. Eles costumavam ser
Legados, como todos os outros, logo eles perderiam toda a humanidade
graças ao poder, mas é claro que não sabiam disso. Também, não faria
diferença.
Os Praticantes pararam num corredor gelado. Uma grande porta de metal
automática abriu-se quando se aproximaram. Atrás da porta havia uma
sala muito espaçosa branca de teto baixo como a caixa que Milo usava para
treinar.
Naquele dia a sala estava diferente. Eles entraram em uma pequena cabine
que se estendia pelos lados, cheia de máquinas e computadores. A cabine
era demarcada por uma parede de vidro que ia do teto até o chão. Do outro
lado do vidro não se podia ver mais nada além de um denso breu. A boca
de Milo caiu enquanto um calafrio descia pelas costas.
O breu era formado por nuvens completamente negras. Nada mais
conseguia ser visto do outro lado. Em contrapartida a cabine era bem
iluminada pela mesma luz branca forte que se encontrava em todas as salas
que os Primórdios usavam na parte mais baixa do Complexo.
- Milo!
O homem sorridente não parecia muito um humano. Possuía longos cabelos
negros lisos, assim como os de Milo, porém os seus iam até a cintura. A
pele era branca como giz e os traços eram comuns e finos até chegarem aos
olhos. No lugar deles havia dois buracos preenchidos por magma que
navegava como se fosse o sangue que colore os olhos de coelhos albinos.
Usava um casaco longo vermelho-sangue com desenhos em dourado que se
moviam. Consistiam em monstros, guerreiros, figuras mitológicas em
geral.
Tártaro. E do lado dele Gaia. Uma mulher de pele bronzeada e cabelos
cacheados castanhos que lembravam a juba de um leão. Seus olhos eram
verdes como a campina mais clara, porém perigosos e nublados de más
intenções. Possuía traços fortes e brutos que lutavam uns contra os outros
para ganharem espaço.
- É tão bom te ver novamente, preciso dizer. – Tártaro comentou com o seu
tom irritantemente animado e inocente, como se fosse a merda de um irmão
mais velho ou um tio falando com seu ente querido. – Sei que está se
esforçando muito nos seus treinos diários…
- Corta a baboseira! – Gaia quase gritou. Tártaro abusava dele com uma
doçura doente, mas Gaia preferia a violência. – Agora eu sei por que quis
fazer isso aqui no meu laboratório. Eu juro para você, se ele destruir…
- Bah. – Tártaro desprezou. – Não se incomode Pequeno Mundo. Qualquer
dano feito vai ser reparado e voltar ao que era antes.
- Não vai voltar! Tudo não. Você sabia disso desde o começo. O que mais
pretende tirar de mim?
Tártaro começou a rir, fazendo o rosto de Gaia queimar em ódio e raiva. Os
olhos verdes começaram a brilhar numa cor ácida, parecendo maiores. Milo
recuou e abraçou Mil que sentiu seu medo e se tornou visível. Não queria
ficar perto de Gaia, menos ainda quando ela brigava com os Primórdios.
Ela lembrava um. Agia como um. Mas não era um deles.
- Pequeno Mundo… Você serve para boas risadas, principalmente com esse
jeito irritadinho. – Tártaro franziu o cenho e fez o barulho de um gato
arisco numa tentativa de imitação. – Agora vamos focar no que temos que
fazer, e não nos que atrapalha. – virou para Milo. – Venha. Eu tenho boas
notícias para você: Seus treinos acabam hoje.
- Como?
Tártaro riu e estendeu a mão para Milo. Se Milo pudesse arrancaria o pulso
dele com os dentes. Entretanto tudo que podia fazer era aceitar antes que a
mão dele passasse muito tempo pendurada no ar. Tártaro o puxou para
perto.
- Tente descobrir. Sinta.
Tártaro deu a volta em Milo. Agarrou seus ombros com força e fez silêncio.
Se ele respirasse, Milo conseguiria sentir sua respiração.
Sem opção Milo se concentrou no breu. Sua primeira reação foi uma
palpitação vibrando por todo o corpo. As sombras espasmaram, sorrindo
receptivas para ele. Milo não via tal imagem, mas sentia. Entendeu tudo.
Claro, não era planejamento de momento. Milo sabia daquilo desde que
fora criado. Sua garganta fechou-se como se tivesse engolido um cubo de
gelo, roubando a sua respiração.
Milo não se sentia pronto. Mal via os outros Legados por conta do treino
intensivo, mas ele nunca quis fazer aquilo. Nunca pediu por isso. Parecia
distante demais para se preocupar.
Agora a responsabilidade era como um monstro com incontáveis cabeças
prontas para devorá-lo. Além do mais, Milo não tinha certeza que após
terminar não ia ser jogado fora. Ele representava uma diversão pequena,
nada que Tártaro perderia muito seu tempo com.
Esses pensamentos – que ele tem mesmo não querendo – não servem bem
como incentivo.
Milo não se incomodava realmente em se machucar ou ser jogado fora no
processo. Mas a situação ali envolvia outra pessoa e ele não pretendia lidar
com o assassinato de alguém. Assassinato consistindo em não ajudar
quando se deve.
Porém, não evitava pensar sobre deixar o Legado no meio do breu ser
consumido pela manifestação do seu Elemento. Era morte, só que ainda era
melhor do que viver no Complexo.
Desse jeito soa bastante piedoso. Milo só precisava olhar para Tártaro
esperando ansiosamente para ter certeza que ele não tinha escolha, então
não adiantava perder mais tempo titubeando sobre não querer.
A resposta certa sempre estava em sua mente e aparecia quando
necessitada. Agora havia tantas respostas diferentes que seu cérebro parecia
estar entrando em um curto circuito.
O que Milo conseguia definir entre a maratona de pensamentos? Medo.
O ódio costumeiro que sentia perto de Tártaro. Um ódio quente, sufocante
que tirava seu ar e deixava seus músculos moles de mais para se moverem.
Como se a sua personalidade derretesse ao redor de Tártaro.
Compaixão.
EDDIE
A pressão do ar era diferente.
Quando Eddie voltou, foi a primeira coisa que ele sentiu. Foi como se a
gravidade estivesse tentando expulsá-lo de volta, lutando contra ele.
Eddie jurava que havia morrido.
Havia um buraco enorme desde o momento em que estava preso até agora,
em que acordava. E Eddie não conseguia lembrar-se de algo mais
aterrorizador do que essa falta de informação. Seus sentidos estavam
travando uma batalha para voltarem completamente nesse momento, e
quem sofria mais era ele.
Sua mente parecia estar correndo em círculos por conta do pânico. Era
muita informação ao mesmo tempo. Quase como se ele estivesse dando
erro. Mas sabia que precisava se acalmar e entender melhor, se não seria
pior para si. Quanto mais rápido reagisse, melhor iria resolver.
O problema era entender isso no campo físico, e não só mental.
Depois de algum tempo, que Eddie não faz a menor ideia de quanto tempo
foi, ele finalmente conseguiu se acalmar, pelo menos um pouco. Começou
o reconhecimento aos pouquinhos. Primeiro, onde estava e como estava.
Exatamente, ele se encontrava deitado, numa cama dessa vez. Essa também
era metálica e estava presa na parede.
Eddie sentou-se com cuidado, com dificuldades para voltar a controlar o
corpo. Foi como se ele tivesse se remontado após explodir. Ele grunhiu, e a
dor acabou ajudando-o a desenvolver seu tato. Além da pressão do seu
próprio corpo do colchão, Eddie acabou notando a pressão de outra coisa.
Era… Uma pessoa.
Eddie não podia dizer com certeza se era um garoto ou uma garota, apenas
que era bonito demais. O lembrou dos personagens de contos de fadas,
como as princesas, por exemplo. Se havia alguém real que chegava mais
perto disso, com certeza era a figura adormecida parcialmente apoiada no
colchão.
Antes de pensar direito, Eddie se viu se aproximando da figura. Tinha
cabelos negros e densos até abaixo dos ombros, pele muito pálida e traços
finos e pequenos, apenas os lábios que eram carnudos e pareciam ter um
formato de coração. A figura parecia cansada, assim que nem se movera
com toda a agitação de Eddie.
Mas Eddie não a queria acordada, de qualquer forma.
Ele começou a raciocinar nesse momento, encarando a figura. Ela havia
adormecido apoiada na sua cama, como se estivesse o esperando acordar.
Como se estivesse o vigiando.
Eddie estava livre. Ele já havia notado isso, principalmente por conta das
dores que estava sentindo onde as amarras haviam lhe queimado e
apertado. Mas seu corpo, com certeza, havia se curado. Eddie tinha certeza
que ele havia tido bem mais danos do que os que estavam sentindo naquele
momento.
Também não estava no mesmo lugar de antes. A cama era uma prova disso.
Tinha total certeza que não havia uma parede ao lado dela, se não teria
conseguido sentir enquanto se debatia. Onde se encontrava parecia ser…
Um quarto? Era um espaço pequeno e metálico, com outra cama do lado
oposto à sua, dois armários em cada canto e duas escrivaninhas. O outro
lado estava completamente ocupado. Havia livros, HQ’s, cadernos, roupas,
todo o tipo de coisa que denominava ocupação humana. E uma ocupação
bem bagunçada.
Eddie sentiu-se em outro planeta por um instante.
Ele olhou para cima, deparando-se com um teto alto que era tampado por
canos e ventilações. Tudo era prateado ou branco, demonstrando a falta de
interesse em se criar um ambiente agradável e sim prático. Só havia o
necessário, tanto que o cômodo nem era grande.
Eddie acabou achando a porta. Seu primeiro instinto foi se levantar e ir até
ela. Ele ignorou todas as suas dores e problemas e foi até a mesma, sendo
levado pela forte sensação de curiosidade, medo e estranheza.
Havia uma trava tecnológica pequena que precisava de senha ao lado da
porta. Em seus quatorzes anos de vida, quase quinze, aquela era a primeira
vez que Eddie via aquilo na vida real. Ele quis passar a mão pela trava, mas
se auto repreendeu quando notou que não sabia com o que estava mexendo.
Não era hora para agir como uma criança.
Ele encarou a porta. Havia um visor quadrangular de vidro na porta lisa de
metal, e era a única coisa sobre a superfície. Ele precisava de um código
para abrir? Considerando que ele não fazia ideia que código era, se sequer
precisava de um código, Eddie estava preso.
De novo.
Eddie sentiu o pânico voltando, controlando-o novamente. Ele acabou
tocando a porta, e ela era bem mais pesada do que parecia. Com o seu
pensamento já comprometido, ele começou a bater contra a porta com as
mãos, não causando efeito nenhum. O vidro também era muito resistente
para ser quebrado, e mesmo se Eddie conseguisse nada iria mudar.
Ele conseguia ver coisas que não o ajudavam a decifrar o lugar. Algo como
uma mureta azul, uma rampa e, do outro lado, depois de outra mureta, com
outra rampa, havia outra porta, igualzinha a sua. Isso significava que havia
outras pessoas? Eddie não pode evitar relacionar realmente com uma
prisão. Ele havia sido preso? Pelo quê?
Antes que Eddie notasse ele estava gritando, completamente tomado pela
angústia e o pelo o pânico. Era como se o som reverberasse e voltasse
contra si mesmo. Até o ar naquele lugar estava contra si, e Eddie sentia o
ambiente hostil em ondas violentas. Ondas diretamente em sua mente.
Era tão desesperador só poder ter a visão de uma pequena janela do outro
lado, e ainda assim não saber o que havia do outro lado. O que acontecia, o
que havia aconteceu e por que estava acontecendo. Era como o Cativeiro,
tudo de novo, mas Eddie já havia jurado para si mesmo que não se deixaria
mais ser preso sem ao menos saber do quê.
Então realidade voltava e o fazia entender que ele não tinha controle sobre
nada.
O código. Eddie precisava do código. Até mesmo naquele momento ele
sabia que quebrar a trava não o ajudaria. Eddie virou-se e encarou
a cela por um instante antes de começar a sua procura. Ele nem parou para
olhar, porém a figura continuava adormecida mesmo com toda a agitação
que Eddie estava fazendo.
Eddie derrubou as revistas, os livros e os cadernos, ele olhou em todas as
gavetas, superfícies, ele jogou as roupas longe, tentou procurar por debaixo
das camas e de todos os móveis, num frenesi causado pelo pânico. Não
havia tempo nem para respirar. Ele pegou uma das cadeiras sobre as
escrivaninhas, quando o quarto já estava revirado o suficiente, e a colocou
de frente para o armário, que era alto. Subiu a cadeira, olhando por cima do
armário.
Foi ai que aconteceu.
- Eddie, você… - Eddie levou um susto, caindo da cadeira. – Aaah! Você tá
bem?! Machucou-se?!
Eddie o viu por um segundo. Era a figura adormecida, agora acordada e
agachada perto de si. Ele tinha uma voz masculina, apesar de aguda e
aveludada demais, e seus olhos pareciam duas ametistas, perfeitamente
redondas. Por um instante, foi como se Eddie só conseguisse vê-los e o
resto do mundo desaparecesse.
Isso lhe encheu de medo.
A figura esticou uma mão para lhe tocar, mas foi quando Eddie reagiu. As
costas da figura bateram com força contra o metal da cama e Eddie
pressionou uma lâmina de sombras contra o seu pescoço. A expressão de
Eddie que dominou seu campo de visão era de pura raiva, instinto, defesa.
- Quem é você? – ele sussurrou numa respiração quebrada.
Eddie o empurrou de novo. A lâmina que usava era uma navalha negra
macia e fria como ferro. Boa para fazer um corte rápido no ponto vital da
figura, tirando a sua vida. Eddie rosnou de novo.
Quem é você? Quem é você? QUEM É VOCÊ?!
- Eu sou como você! – a figura gritou, segurando o pulso dele e finalmente
o encarando nos olhos. – Estou tão preso e perdido quanto você! Machucar-
me ou machucar qualquer pessoa não vai te render respostas!
Não havia medo ou incerteza nas palavras dele. Apenas total razão. Ele
sabia do que estava falando, e o que tinha que fazer. Naquele momento tão
crítico para Eddie, onde sua mente se resumia num mar obscuro de pânico,
foi como enxergar uma luz no final do túnel.
O desnorteou.
Eddie o soltou. A navalha negra sumiu como fumaça. Eddie conseguia criar
pequenas formas como lâminas e cordas… Mas não tinha muita
experiência e nem paciência para treinar.
- Preso. – Eddie repetiu em choque, como se a palavra só tivesse surtido
efeito ao dizê-la. O rosto da figura se contorceu em preocupação. Eddie não
conseguia realmente distinguir. Ele estava vendo, mas não entendendo. –
Eu estou preso. Não. Não. Não. Não, não, de novo não, eu… Eu não…
- Respira. – a figura olhava profundamente nos seus olhos, mas sem tocá-lo
dessa vez. Eddie se viu obedecendo, sendo guiado pela luz roxa. Ainda não
era o suficiente. Ainda não estava em terra firme. – Você não está sozinho.
Você precisa ficar estável. Você precisa se acalmar.
- Estável? ‘Me acalmar? – Eddie repetiu cheio de ultraje. – Como? Como
se eu estou preso? Eu não estou entendendo. Isso não pode estar
acontecendo. Como?! Eu não estou entendendo!
- E você não vai entender se continuar assim. Não adianta eu te contar nada
agora, pois nem está me ouvindo. Não vai registrar informação nenhuma.
- Eu não quero! – Eddie acabou gritando como uma criança. – Eu só quero
sair! ‘Me tira daqui!
- Eu não tenho como te tirar. – a figura continuava com a mesma voz
concentrada, a mesma expressão de preocupação, e a mesma postura calma
e reta, como água gelada não perturbada, exercendo uma influência
poderosa. Era uma aura poderosa.
Mas não o suficiente durante o martírio de Eddie.
- Então eu vou sair! Eu vou sair! Eu preciso sair de qualquer forma!
Antes mesmo de a figura ter tempo de lhe responder, Eddie se ergueu num
pulo, sem o menor controle sobre o próprio corpo, e correu em direção à
porta da cela.
Ou pretendia.
Eddie perdeu o equilíbrio ao ser obrigado a ir para trás, caindo no chão com
força em seguida. A dor não foi nada perto do choque e do susto que sofreu
ao ver uma terceira pessoa dentro da cela. Era um garoto baixinho, que não
poderia passar da estatura média, com a pele clara branca e cabelos negros
muito lisos, porém que só iam até o final do pescoço, com uma franja
grossa sobre a testa. Ele usava óculos quadrados negros e grossos, que
ajudavam ainda mais na tarefa de esconder seu rosto pequeno e redondo,
bastante rechonchudo, assim como o resto do seu corpo por baixo do
moletom cinza pesado.
Mesmo com a tentativa de esconder, seus olhos cinzentos ainda brilhavam
contra a luz e sua beleza era realçada. Ele era um garoto, mas poderia não
ser um se não quisesse. Não no nível da figura, mas havia uma certa
semelhança entre os dois nesse ponto.
- Indo a algum lugar?
Eddie deixou a boca cair ao encarar, de baixo, aquele garoto. Ele bloqueava
a porta com o seu corpo, com uma postura furiosa de braços cruzados. Ele
estava irritado. E era com Eddie.
Agora sim Eddie viu como estava preso e perdido.
RENO
A boca de Reno caiu como não fazia há algum tempo. Os móveis que
encheram o espaço dias após o teste estavam caídos no chão, havia folhas
soltas e ainda mais revistas e livros espalhados, danificados de alguma
forma. Milo levantou-se, mas continuou ao lado do garoto. Os olhos
cinzentos de Reno o seguiram nesse momento, mas não se focaram nele.
Reno estava tentando entender como a sua cela havia sido tão destruída em
tão pouco tempo.
- Que… Furacão passou aqui…? – Reno perguntou paralisado na porta por
conta do choque. Suas coisas. As coisas que conseguiam aliená-lo o
bastante para deixa-lo calmo, longe do real lugar que estava. Alguém havia
tentado destruí-las e teria sido menos prejuízo se pisassem nas suas costas.
- Reno. – uma voz muito familiar chamou a sua atenção antes que sua visão
borrasse e o mundo girasse de mais. Olhando na direção que vinha de
forma automática, reconheceu uma figura que sabia lhe acalmar tanto
quanto os livros e as revistas: Milo. Os olhos dele pareciam duas vezes
mais suplicantes, mas Reno não sentiu a menor compaixão na hora.
- Que merda aconteceu aqui?
- Reno, olha… – Milo tocou a nuca, mordendo o lábio. – Esse é o Eddie.
Eddie, Reno. – ele apontou para um garoto encolhido no chão que Reno
não havia notado até agora. O mesmo levantou o rosto ligeiramente,
deixando Reno ver seus olhos.
Uau. Ele tinha o olhar de um demônio, mesmo sendo obviamente mais
novo que Reno. Talvez um pouco mais velho que Milo, no máximo. A pele
era morena escura e os cabelos tinham cachos volumosos, cor de caramelo
torrado. Os olhos que eram grandes, porém puxados lembrando vagamente
um indígena, eram da mesma coloração que o cabelo. Parecia muito jovem,
mas não deixava de ser perigoso por isso.
Ainda mais no Complexo.
- Então você é o Furacão? – Reno falou sem pensar e, antes que percebesse,
sua irritação era plena nas palavras, como se não pudesse contê-las.
- Reno. – Milo o alertou. – Ele vai se responsabilizar por isso.
Reno soltou uma risada forçada pelo nariz.
- Por que diabos você fez isso? – Reno grunhiu.
Eddie a ergueu novamente para responder Reno.
- Eu preciso sair. – Eddie respondeu entre dentes. – E você está bloqueando
a saída.
- Isso só pode ser brincadeira. Puta que pariu, além de destrutivo é idiota! –
Reno exclamou alto, soltando a sua raiva. – Onde você acha que vai?! Não
tem para onde ir! Você realmente achou que ia conseguir liberdade depois
que matasse alguém?
- Eu não matei ninguém! – Eddie gritou sem nem pensar duas vezes, no
automático. Ele ia se erguer para ir contra Reno, perdido demais na sua
histeria para racionalizar, quando Milo o segurou contra o chão com o
Controle. Eddie grunhiu de dor ao sentir a influência de Milo se espalhando
pelo o seu corpo.
- Parem. – Milo olhou para Reno de forma rígida e repreensiva. – Os dois.
- O q-quê? – Reno murmurou. – Como você…? – ele perguntava para
Milo.
Antes mesmo de Milo abrir a boca para responder, Eddie se ergueu
repentinamente. Nesse momento Milo sentiu uma pontada de dor pelo
susto, sem ter notado que havia perdido seu Controle sobre Eddie, mesmo
por um instante. A questão era: Milo não havia perdido.
Eddie que quebrara.
Então ele olhou feio para Reno.
- Eu não acredito que falou com ele desse jeito. É assim que recebe todos
os seus colegas de cela?
- Milo. – Reno andou até si, com um olhar maníaco. – Que porra que
acabou de acontecer aqui? Quem é esse cara? Por que você…?
- Ele é minha responsabilidade. – Milo abaixou o tom de voz, sem querer
que Eddie o ouvisse, mesmo que ele estivesse dentro do banheiro. – E você
vai trata-lo decentemente, eu sei que ele revirou todas as suas coisas e que
você está puto por isso, mas você também teve um surto desse nível
quando chegou aqui. Ele não é perigoso. Ele é diferente dos outros Legados
que você divide o quarto.
Reno deu um passo para trás, com uma expressão que gritava o seu súbito
entendimento.
- Ele não passou pelo teste? – o seu tom era mais de afirmação do que de
pergunta em si.
- Não. – Milo murmurou. – O teste dele foi o meu. Ele é o motivo de eu ter
o Controle, e é por isso que eu devo ajudá-lo.
A boca de Reno caiu enquanto ele digeria as informações.
- Ele é o motivo… Ele é o motivo de você existir?
- Shhh! – Milo colocou o dedo indicador sobre os lábios com urgência. –
Eu não quero sobrecarrega-lo com tudo isso hoje. Ele mal consegue pensar.
O garoto precisa descansar, é sério.
Reno deu uma risada debochada cheia de miséria.
- Você realmente acha que ele vai conseguir dormir bonitinho ainda hoje e
esperar pela a hora de contar histórias amanhã? Poupe-me, Milo. O cara
está ensandecido, e não falar para ele só vai…
- O que?
A conversa dos dois foi cortada por Eddie, agora com o rosto e os cabelos
molhados, como se ele tivesse enfiado o rosto debaixo da água no curto
período de tempo que passou no banheiro.
- Só vai o quê?
Aquele instinto defensivo que Milo havia visto nos olhos de Eddie quando
ele o empurrou contra a cama irradiava do corpo do garoto como se em
ondas. Ele iria lutar qualquer um naquele momento, de tão grande era a sua
agonia.
Só rendeu mais vontade de Milo ajudá-lo.
Encarando-o nos olhos, Milo sentiu que estava lidando com um animal
selvagem assustado. Ele se moveu com cuidado, sendo o mais lento o
possível até chegar à cama mais próxima, a que seria de Eddie, e sentar-se.
Eddie franzia o cenho enquanto o observava, tentando entender suas ações.
Ele estava tão confuso e complexado que não conseguiu dizer nada, apenas
acompanhar.
E, como Milo esperava, Eddie acabou repetindo as suas atitudes. Milo teve
que controlar um sorriso de vitória, sabendo que aquilo irritaria Eddie e
tiraria o efeito que Milo havia conseguido causar nele. Não, ele não estava
usando suas manifestações. Apenas a inteligência que era obrigado a ter e
deveria servir para algo.
- Você já pode ser adestrador de animais de circo.
E claro que Reno teve que quebrar o momento. Milo olhou feio para ele de
novo. Eddie piscou várias vezes, desviando o olhar de Milo agora.
- Eddie, - Milo o chamou. – eu peço desculpa pelas atitudes dele. – apontou
para Reno. – E eu entendo o que fez você revirar a cela, porém isso não te
abstrai da sua responsabilidade de arrumá-la. Essas coisas eram de Reno. E
seria muito bom se você pudesse ajudar a coloca-las de volta no lugar.
- Onde é que eu estou? – Eddie simplesmente rebateu mais confuso
impossível. Agora ele parecia menos raivoso, porém o instinto defensivo
estava lá, esperando para florescer novamente. Ele não confiava em
nenhum dos dois. – Eu não vou fazer nada até você me explicar.
- É mesmo? – Milo contrapôs calmamente. – Você diz isso, mas não é
como se fosse me ouvir.
Milo pode ver Reno fazendo caretas ao reagir à conversa.
- Como?
- Você está muito agitado. Tudo que eu disser para você vai entrar por um
ouvido e sair pelo outro.
- Você só pode estar brincando comigo. – com isso, Milo arqueou a
sobrancelha. – E você quer que eu faça o quê?! Eu preciso saber! Não saber
não vai me deixar mais calmo!
- Na verdade nós temos a noite toda. – Milo rebateu, sem alterar a voz por
um instante. Ele era firme e frio como gelo. Nisso, Reno exclamou.
- Oi? Não temos não.
- Você não ia conseguir dormir de qualquer forma. – Milo respondeu Reno.
– Afinal, os pesadelos dele iam te perseguir.
- Isso não pode ser real. – Eddie se lamentou, erguendo-se da cama
novamente. Reno saiu do caminho dele, sentando-se na cama ao lado de
Milo. Eddie pareceu nem o ver, enfiando as mãos entre os cachos
molhados. Contra a luz forte da cela, Milo pode notar que o cabelo de
Eddie refletia em vinho escuro, chegando ao marrom. – Isso só pode ser um
pesadelo. Isso não está acontecendo de verdade. Não é real, não é real, não
é real…!
- Desculpe. – Milo murmurou. – Mas você não vai acordar daqui.
- Daqui onde?!
- O nome politicamente correto é C.C.L, “Centro de Controle de Legados”,
mas nós chamamos de Complexo. É um campo de concentração para…
Bem, para nós.
- Um campo de concentração?
- Um campo de concentração. – Milo reafirmou. – É por isso que Reno -
ele apontou para Reno ao seu lado. – disse que não tem como sair. Para
fora da cela existe um grande Complexo que você com certeza não iam
conseguir explorar agora. Vê? A história é muito longa. Eu pretendo te
contar tudo, mas eu não acho que adianta agora.
- Por quê? – Eddie acabou se aproximando de onde Milo estava. – Por que
você está me ajudando dessa forma? E como que você sabe o meu nome? E
por que diabos eu estou preso aqui também?
- Você sabe a resposta para metade dessas perguntas. – Milo piscou. –
Você não é como as outras pessoas, assim como eu e Reno. Você consegue
fazer coisas que os outros não podem. E foi por isso que foi perseguido e
colocado aqui.
Eddie não respondeu por um instante. Milo pode ver que ele estava
processando, as ferramentas do seu cérebro trabalhando dobrado e quase
fazendo barulho enquanto isso. Eddie deu um passo para trás, sem
perceber. Não havia muito espaço no chão, assim que havia roupas, livros e
mais livros cobrindo espaço, juntando com HQ’s e outras coisas que Reno
mantinha na sua cela.
- Eu fui… Pego e eu fui levado para um lugar escuro. – Eddie parecia estar
pensando alto, enquanto se lembrava. Milo assentiu.
- Eu te salvei de lá.
- Como?
- Com os mesmos poderes que te tornam diferente.
Milo pode ver o pânico se alastrando pelo o corpo de Eddie mais uma vez,
tomando conta de si ao crescer como um monstro devorador. Eddie estava
tendo dificuldades para respirar, perdendo as forças nas pernas e caindo no
chão mais uma vez em seguida.
- Eu achei que estava morto, - Eddie murmurou contra a respiração,
batalhando com as palavras. Ele também parecia estar lutando para manter
a cabeça firme e levantada, e não deixar o resto do corpo deitar sobre o
chão. – mas isso é muito pior.
- É, entrar em um cenário de dark fantasy moderno com certeza é pior que
a morte. – Reno resmungou ao lado de Milo, recebendo um beliscão por
isso. Reno exclamou alto de dor, dessa vez chamando a atenção do garoto
perturbado no chão à sua frente.
- Eu não posso ficar aqui! – Eddie choramingou, enquanto as lágrimas
ardiam e marcavam a sua expressão torturada pela a sua perturbação
mental. Milo só podia imaginar que tipo de batalha ele travava nesse
momento, lembrando-se de todos os sentimentos ruins que havia sentido
dentro de Eddie ao ter que salvá-lo.
EDDIE
Por um instante ele achou que eram todas as memórias do dia anterior.
Eddie olhou para si mesmo mais uma vez: Estava encharcado de suor. Sem
contar que haviam se passado três anos e meio que ele não tomava um
banho decente, um banho real. Ontem, tudo que ele fez foi jogar água no
rosto e no cabelo. Logo, seus olhos caíram sobre o box fechado no atual
momento, escondendo o chuveiro.
Eddie pegou as roupas e uma toalha, sentindo uma falta aguda do seu
casaco militar sobre os ombros. E de seu relógio dourado. Tentou não
pensar muito nos dois, mas era impossível. Eram seus únicos bens
preciosos que haviam restado da sua antiga vida, antes do primeiro
cativeiro, antes da rua. Sem eles, Eddie realmente não tinha mais nada.
Realmente, ele tinha que admitir: Ficar limitado era seu ponto fraco. Era o
jeito mais fácil de derrubá-lo. Eddie sempre foi um garoto imprudente, uma
pessoa de ações, e não poder fazer nada era como cortar a sua
personalidade pela a metade. Aquilo tudo era tão surreal. Ele queria que
aquela água limpasse as suas ilusões e o salvasse, revelasse que, por trás de
um véu cruel, ele estava em casa com a mãe, são e salvo, vivendo como
deveria viver. Nada do que havia passado tinha sido real.
Porém, a água não iria fazer isso. Eddie deixou as lágrimas se misturarem
com as gotas e fingiu que não estava chorando. Que ele não estava
sofrendo em todos os pontos do seu corpo. Ele olhou para as próprias mãos,
ficando vermelhas sobre o jato quente de água, e viu sombras as rondando,
sempre presentes consigo. Era um constante lembrete do quê havia virado a
sua vida de cabeça para baixo.
Depois que sua crise se aquietou, aconchegando-se nos cantos escuros da
sua mente, sempre em alerta para se apresentar de novo e tomar posse da
situação, Eddie saiu do banho e vestiu a camiseta branca com o jeans azul.
Calçou os tênis que também eram do Complexo, e saiu do banheiro mais
perdido do que quando havia entrado.
Ele não tinha um plano. Não tinha ideia do que deveria fazer. Sabia o que
queria, mas com menos pânico, terror e desespero nublando a sua mente,
conseguia reconhecer que provavelmente não estava em posição de realizar
os seus desejos. Não, Eddie havia sido jogado na posição de vitima, então
alguém realizava seus desejos consigo, independente do quão cruéis eram.
De novo.
Quando voltou a cela, a primeira coisa que viu foi Milo de costas para si, à
frente da cama de Reno. E a primeira reação de Eddie foi:
Milo virou-se lentamente, não parecendo surpreso em nada. Ele era tão
estranho, realmente. Tinha olhos intensos daquela coloração roxa, que
pareciam estar sempre enxergando a alma de alguém. Mesmo assim, era
impossível de lê-los. Ele tinha uma daquelas expressões inexpressíveis e
duras como pedra, que não entregavam nada do que ele estava realmente
pensando. Sua postura era perfeita demais, assim como a sua eloquência na
hora de falar e o extremo tom calmo que ele assumia mesmo quando
parecia impossível.
- Bom dia para você também. – Milo respondeu baixinho, sem parecer
realmente incomodado em nada. – As portas são automáticas. – ele olhou
para a porta da cela ao dizer, e Eddie seguiu os olhos dele, vendo que havia
uma trava tecnológica ao lado da porta ali dentro.
- Como é? – Eddie exclamou na mesma hora. – Ontem você me disse que
estava trancado! Vocês dois nunca me deixaram ver aquela porra ali! –
apontou para a trava, sentindo-se muito perto de furioso. Ele não sabia no
que acreditar no que não acreditar. Eddie estava perdido e não tinha
controle o suficiente para não gastar em alguém. A miséria e a tristeza
rapidamente viravam raiva com ele.
- E estava. – Milo não se alterou. Eddie pode notar Reno, com uma careta
horrível, se movendo atrás de si na cama, sentando-se mais lentamente do
que uma lesma. – Ontem foi o seu primeiro dia. Não era uma boa ideia
deixar que você saísse da cela e visse as outras trezentas crianças como
você do lado de fora, não do jeito que estava.
Milo demorou mais para responder dessa vez. Nesse instante de silêncio,
Eddie acabou notando como não estava respirando e que seus pulmões
começaram a doer. Ele sentia um constante arrepio, uma sensação de
fraqueza e frio, provavelmente por conta daquele ar artificial ao seu redor
causado por aquele cano. O pensamento de nunca mais ter ar puro o
aterrorizou até o último fio do cabelo.
E o enfureceu.
Reno estava encarando com os olhos cinzentos que pareceram mais escuros
naquele momento, sentado na sua própria cama. Ele não era impassível
como Milo. Era claro o seu desgosto e desconforto em toda a sua expressão
corporal, principalmente pelo o seu rosto. Mas realmente Eddie não podia
se importar menos com o que ele sentia.
Eddie olhou para Milo novamente, pronto para falar mais, porém Milo
cortou qualquer tentativa:
- Eu disse um milhão de vezes, Eddie, mas eu vou repetir mais uma: Eu não
sou seu inimigo. Eu sei que eu não te expliquei o que você merece saber,
mas se você consegue lembrar-se disso, deveria lembrar que eu também
disse que, no momento que descansasse; que se acalmasse, eu iria fazer
isso. Eu iria te mostrar o que está do lado de fora dessa cela.
- Sim, se acalmar. – Milo não hesitou. Reno revirou os olhos atrás de si,
sem ter movido ainda. Provavelmente os esperava terminar. – Você me
ouviu? Quando eu disse que existiam trezentas crianças do lado de fora, eu
não estava mentindo. Se você quer sair da cela, você precisa entender que ir
contra elas é ir contra a si mesmo.
- Então esse lugar maldito tem regras? É isso que você quer dizer?
- Eu posso te mostrar tudo e explicar tudo. – Milo voltou a olhar para ele ao
dizer isso. – Eu só... Eu preciso da sua cooperação. Por mais difícil que
seja. – nessa pequena pausa, a voz de Milo quebrou. O tom impassível e
inflexível mudou, e se tornou um pouco inseguro. Um pouco real. A
mudança súbita pegou Eddie.
Isso até mesmo fez Eddie notar que ele estava tão preso quanto si. Mas isso
não respondia as perguntas que o tornavam suspeito. Milo parecia saber
demais, parecia controlado demais, focado demais. Eddie, realmente, não
achava seguro confiar nele. Ou em Reno. Ou em nada ou em ninguém. Ele
estava em um lugar hostil e todos eram seus inimigos.
Mas Eddie não era tão imprudente ou tão mente fechada. Ele sabia que
você mantinha seus amigos perto, e seus inimigos mais perto ainda. Se
Milo seria útil pelo o momento, Eddie deveria aceitar. Era a única coisa que
ele tinha, por mais que odiasse e fizesse seu orgulho queimar.
- Compreensível. E... Sobre a questão da cela, você não iria poder sair
mesmo que eu e Reno deixássemos. Cada dia aqui é separado em horários.
O primeiro horário, quando as celas se abrem, é como se fossem as
manhãs. O segundo horário, é tarde. O terceiro horário é o entardecer, e o
quarto horário é noite. Nesse momento, todas as celas se trancam e você
não pode sair delas.
- Eu fui escoltado para fora, do mesmo jeito que eu fui levado para dentro
depois que eu te salvei. E foi assim que eu consegui o seu casaco. – ele
apontou fracamente. – Ele estava com você quando foi sequestrado, por
isso foi mantido. Eu pedi, e consegui fazer com que me dessem.
- Quem? – Eddie não poderia soar mais confuso, não sabendo nem metade
do que Milo estava se referindo. Nesse momento, foi como se Milo se
reconstruísse, como se notasse que estava deslizando e errando.
Dessa vez, foi um grunhido longo e sofrido que cortou os dois. Milo se
inclinou para o lado para olhar o que era, e viu Reno que parecia estar
ouvindo dois políticos de direita fazendo um discurso, morrendo
lentamente agora que havia saído novamente do banheiro.
Eddie quis abrir a boca e dizer algo bem malcriado para Reno, mas Milo o
cortou ao praticamente o colocar para fora:
Mas Eddie não prestou atenção. Não no momento em que ele finalmente
estava para fora da cela, e dentro da real jarra de pandora. Da real prisão
gigantesca que o cobria por todos os lados. Ele nunca achou que veria uma
construção do tipo, mas ali estava: O teto do Complexo era alto, bem longe
das suas cabeças, cheio de canos e ventilações por cima. As celas tinham
portas iguais, que iam até próximo do teto branco de metal e alto do local.
Para subir você simplesmente ia na rampa que se elevava, e para descer ia
pela rampa que descia.
Eles desceram e o pátio estava vazio, era uma grande área cinzenta. Os dois
lados eram cobertos por paredes os setores e rampas. No final do pátio
havia um palco e na mesma direção, mas do outro lado, havia um elevador.
Mais nada. Era vazio e grande o suficiente para enlouquecer quem passasse
muito tempo ali.
- Você sempre tem que voltar para o pátio durante a terceira hora. – Milo
chamou a atenção de Eddie ao explicar, quando eles atravessavam o pátio.
Eddie olhou para Milo mais uma vez.
- Eu acho que você já percebeu. – Milo apontou para cima. Eddie seguiu o
seu dedo, e pode distinguir câmeras de alta tecnológica junto com os canos
e ventilações. – Tudo que fazemos ou falamos é gravado. Se você
desobedecer, eles vão te achar e te punir.
- “Eles” quem?
- Nós vamos chegar nesse ponto. – Milo chamou o elevador ao dizer isso.
- Eu estou fazendo isso. Mas eu também sei que a explicação que você quer
vai ser muito longa, e não temos muito tempo antes do terceiro horário,
então é melhor que você consiga conhecer tudo do Complexo hoje e, ao
final, eu digo tudo que quer saber.
- Me diga para onde estamos indo, pelo menos. – ele resmungou. – Eu não
sei o que eu estou odiando mais: Isso tudo ou você, o jeito que você decide
as coisas. Sempre odiei depender de qualquer um, e você torna isso cem
vezes pior.
- Isso soa ridículo. O que diabos há com essas salas? “Sala de jogos”?
“Lounge?” Qual é a dessa porra de lugar?
- Eu não posso dizer com certeza que a ideia foi criar o lugar mais
incomodo no planeta terra, mas de qualquer forma, eles conseguiram.
- Eu vou ficar muito irritado o tempo todo nesse lugar, não vou? – ele
murmurou cheio de decepção, ainda de olhos fechados.
- Eu vou te levar para o andar III. Você precisa comer alguma coisa.
Eddie grunhiu.
- Você mesmo disse, - Milo olhou para ele ao dizer, com olhos antinaturais
na coloração roxa brilhando, como duas ametistas na luz forte do
Complexo. – não é possível se consolar nesse lugar. A realidade é essa, e a
tendência é sempre piorar.
Era uma pequena selva de vidro, com o teto alto e abobado brilhando em
luz solar artificial, todas as paredes eram feitas de vidro que refletia metal
por trás, puro e novo, junto com o chão que parecia ser feito de tijolos
brancos, lembrando com os tijolos amarelos do Mágico de Oz, isso aonde
não havia terra ou onde você podia ver.
Eddie sentiu a pressão de ele cair de repente. Era muito surreal. Ele nunca
havia visto uma estufa na vida, e duvidava que elas pareciam dessa forma.
O fato de a sua primeira vez ter sido naquela prisão o chocava e o chateava
em níveis extremos, enquanto tentava entender como era possível um lugar
tão bonito dentro daquela construção opressora de metal e ferro.
O lugar era todo metalizado, grande e impenetrável. Ele notou como tudo
foi perfeitamente construído para guiar os componentes num caminho e
camuflar outros, como o sistema humano. Nenhuma corrente errava seu
caminho, pois se errasse tudo pararia de funcionar. Era realmente um
mundo compacto e sufocante. As paredes davam a sensação de estarem
inclinadas, como se fossem se fechar sobre ele a qualquer instante.
A estufa era completamente diferente disso.
- Milo? – uma terceira voz o despertou do transe pesado que Eddie entrou
por conta do choque e da descrença causados pelo o ambiente. Ele olhou na
direção da voz, encontrando uma figura franzina e magra segurando dois
potes de barro com plantas enormes.
- Oi, Fiona! – Milo exclamou, soando cem vezes mais animado do que
quando estava interagindo com Eddie. Ele sorriu para a figura, que foi até
uma bancada e deixou os dois vasos do lado de outros, finalmente
mostrando a sua aparência: Ela tinha a pele branca cheia de sardas, e cabelo
vermelho claro e escorrido, chegando até o meio da cintura, puxado para
trás para não atrapalhar a sua visão. Usava basicamente uma versão
feminina da roupa de Eddie: Blusa branca e calça jeans azul clara. Eddie
notou que deveria ser uma roupa básica do Complexo. – Elas estão lindas.
– Milo comentou sincero, aproximando-se da bancada e acariciando a folha
do que Eddie tinha quase certeza que era uma samambaia.
A garota parecia ser pacífica e gentil, como uma princesa. Ela se encaixava
no cenário de uma estufa, cercada de plantas, mas não ali dentro. Não
daquela forma. A presença dela foi como um soco na cara de várias formas
e por vários motivos, por ela ser a primeira prisioneira além de Milo e Reno
que Eddie havia conhecido, e ela parecia ser a última pessoa na terra que
merecia sofrer qualquer tipo de abuso. Era a aura, ou parecia estar escrito
na sua testa.
- Esse é o Eddie. – Milo apontou para ele, fazendo Eddie notar que ele
estava respondendo por si por Eddie não ter condições no momento. Ainda
estava em choque, como se a gravidade do Complexo apenas tivesse caído
agora. Estranhamente, a gravidade do Complexo parecia ser normal, o que
apenas tornava o lugar mais estranho. Eddie não sabia onde estava. – Ele
chegou ontem e não comeu nada até agora. Achei melhor trazê-lo aqui
primeiro.
Fiona arqueou uma sobrancelha, mas nem isso a tornou rude. Ela só parecia
curiosa e confusa.
Milo deu o mesmo sorriso que uma criança problemática dá quando ela
sabe que fez algo errado, mas em menor escala.
- Você nem explicou nada? – Fiona soou tanto exasperada com Milo.
- Eu estou explicando aos poucos, para ele absorver melhor e não surtar
tanto. – Milo suspirou ao explicar. Depois, ele se virou para o Eddie
incomodado do seu lado. – Eddie, quando existem muitas crianças de um
mesmo Elemento, eles se tornam grupos. Cada grupo decide uma função
aqui dentro, e cada um tem um líder. Às vezes o líder pode ser o primeiro
Legado que chegou ao Complexo ou simplesmente o primeiro a começar
com a função que o grupo escolheu. Mas nós não chamamos assim de
verdade.
Era a primeira vez que ele via, ao vivo, alguém com os mesmos dons que
ele. Só que no caso, dons positivos usados de uma forma boa.
E isso assustou Eddie. Não queria ficar assim. Nem como Milo,
perfeitamente alienado, e nem como Fiona, perfeitamente conformada.
- Então... Então você plantou tudo isso? Por que isso existe aqui dentro?
Não tem um refeitório?
Fiona olhava para ele como alguém olha um filhote machucado chorando
por ajuda na rua.
- Você entendeu o tipo de rua sem saída que a gente se encontra. – Milo
respirou fundo ao responder, chamando a atenção para si. – Então, Fiona,
você pode abrir uma exceção para Eddie? Se não for possível, eu posso te
pagar...
- Não tem problema. – Fiona acabou o cortando por falar muito rápido. Era
de nervosismo. – Se você quiser, eu posso te dar algo com 50% de taxa de
corrupção, e não falamos sobre isso com ninguém. – ela ofereceu de forma
suave para Eddie, com olhos grandes e esperançosos, esperando poder
ajudar da melhor forma.
Eddie pode ouvir o coração quebrando dentro das costelas e cada pedaço
era feito de vidro, agredindo seu organismo. Raiva, desconsolo e tristeza se
misturaram, e cresciam enquanto planejavam a morte do próprio dono. E
ele tentou ignorar o olhar que Milo lançou sobre si, como se pudesse ver
todo o processo interior de Eddie no momento.
- Eu vou esperar vocês aqui. – Milo disse. Fiona assentiu, e girou nos
calcanhares para começar a andar adentro da estufa. Eddie não teve escolha
a não ser segui-la.
Eddie franziu o cenho, encarando as plantas estranhas que não deveriam
estar ali, o chão coberto por pedras amarelas e depois Fiona, encaixando-se
muito bem na minifloresta, mas completamente deslocada na ruína e
naquele mundo virado de cabeça para baixo.
Quantos anos ela tinha? Dezoito? Parecia mais nova do que ele pela
postura e personalidade, uma garotinha assustada e encolhida. Ela não
possuía esperança, sendo apenas uma casca vazia. Dava para ver nos seus
olhos. Qualquer coisa dentro de Fiona havia sido assassinada.
Fiona simplesmente não era mais nada. Isso o arrepiou. Ele não poderia
ficar assim.
- Acredite ou não, temos acesso à uma cozinha no refeitório. Boa parte dos
Legados do Crescimento gostam de cozinhar.
Quando ele voltou com Fiona, Milo estava os esperando no mesmo lugar,
com o mesmo sorriso sem vida de antes. Depois que eles estavam próximos
novamente, Eddie lembrou-se de guardar o saco de chocolates dentro do
seu casaco, o que acabou causando uma pergunta:
- Você não vai comer? Você não comeu nada até agora.
Com isso, Eddie acabou apenas olhando para Milo. Um dos olhares feios
que ele tinha, que as pessoas normalmente pediam para que evitasse, pois
era altamente agressivo para quem recebia. Milo normalmente era o tipo de
pessoa que Eddie não convivia. Era mais fácil ser moralista e pacifista
quando não se é pobre e de rua.
Eddie não podia simplesmente acreditar que Milo não sofrera nada ou
pouco perto de si, e sabia disso, mas comparar os dois parecia algo
insustentável. E estava sendo difícil conviver, ainda mais por que Eddie
não se dispunha a isso e Milo continuava insistindo, mesmo que fosse
complicado para ambos.
Ele não seria controlado por ninguém. Assim como a mãe. Passou anos na
rua por isso, iria conseguir derrubar aquele lugar a baixo se realmente
quisesse.
Era por isso que ele já via Milo como um problema. Ele tinha poder sobre
si. Era dono daquele tipo de gentileza que Eddie nunca conheceu e sempre
foi atraído por, e suas ideias eram cativantes. Paz, convívio estável,
facilidade. Todos eram desejos íntimos dos humanos. Porém, todos
também eram uma mentira.
- Tudo bem. – ela olhou para ambos. – Só não mencionem para ninguém.
Se isso morrer aqui, não tem nenhum problema.
Eddie assentiu, para que ela soubesse que ele iria ficar quieto sobre. Não se
via falando com ninguém de qualquer forma. Ela acenou para os três
quando eles saíram, sem dizer mais nada. Fiona não gostava de conversar.
Eddie compreendia isso, pois quem queria conversar no Complexo? Era
algo inútil e, provavelmente, Eddie estaria se repetindo por um bom tempo.
- Nós temos mais um lugar para ir antes que eu possa te explicar tudo. –
Milo começou cautelosamente. – Com sorte, vai ser rápido. – ele abaixou a
voz nessa parte.
- O lounge.
- Eu não vou. – Eddie soou duro como rocha fria. Ele machucava as palmas
das mãos enquanto apertava as unhas contra elas, querendo socar pelo
menos uma daquelas paredes idiotas e sufocantes ao redor de si. Queria
destruir aquele lugar até não sobrar nada.
A raiva só se multiplicava.
- Eddie, você precisa ir. – Milo insistiu, franzindo levemente o cenho, sem
se afetar pela a óbvia raiva dele. – Eu não te levaria lá se não fosse de
extrema importância, acredite.
- Não. – Eddie soou definitivo mais uma vez. Um tom que ele nunca
assumia. Eddie era tudo menos autoritário e opressor. – Não. Eu não vou.
Milo engoliu o ar mais ofensivo na face da terra, por que ele deveria estar
tão incomodado quanto Eddie naquele momento. Sua careta gritava isso em
vários níveis. Eddie segurou a barra, determinado como um camelo. Ele
não sabia desistir, e se via que tinha algo que podia fazer, mesmo que
pequeno, iria fazer de tudo para fazer.
- Nós podemos andar enquanto falamos pelo menos? – Milo soou entre
dentes, e ele não estava exatamente perguntando. O tom imperativo ácido
estava claro. – Você não entendeu ainda, mas não temos o dia todo.
- Quem fez a pressão? – Eddie acabou vocalizando a pergunta, mas sua voz
não parecia ser sua, assim que a sua mente flutuava para longe, perdida em
alguns daqueles corredores sufocantes. Eddie sentia-se morrendo mais
rapidamente do que antes ali dentro. Como se ele pudesse sentir cada uma
das suas células morrendo.
- Eu vou te dizer quando explicar tudo por partes. – Milo respondeu, agora
mais calmo e mais baixo, parando à frente de outras duas portas grandes
metálica, após terem pegado pelo menos duas curvas nos corredores que
seguiam. Eddie lembrava-se de Milo ter dito que o lounge ficava no mesmo
andar que a estufa. Ele pode notar que havia uma declinação sutil na
construção, como se eles estivessem em uma descida que não queria ser
descoberta. Ou uma subida. - Agora você precisa ser o mais pacífico
possível. – Milo cruzou os braços olhando para ele. – Me leve em
consideração um pouco, por toda a paciência que eu estou tendo com você,
e por favor não soque a cara de ninguém aqui dentro.
O lounge era uma sala de teto baixo, com a iluminação mais baixa ainda,
com fortes luzes neons em tons de rosa e roxo. Havia três degraus que você
precisava descer para se aproximar do centro, cheio de puffs e poltronas em
tamanho menor, em branco ou rosa ou roxo. Havia colunas ali e aqui, mas
o que chamava atenção mesmo era a grande quantidade de tecnologia
espalhada estrategicamente pelo lounge.
Ela tinha longos cabelos negros como a noite, pele escura e olhos puxados
com uma maquiagem vermelha que terminava no nariz, que era gordo e
cheio na ponta e quase inexistente antes da curva. Seus lábios eram longos
e pouco carnudos. Uma nativa. Eddie não sabia se os seus olhos que eram
muito escuros ou eles simplesmente não se focavam, por que ela parecia
estar olhando para outro plano enquanto falava consigo numa língua que
ele reconheceu como tupi-guarani. Eddie também era nativo, de certa
forma, mas norte americano.
- Natasha. – Milo chamou sua atenção, tão diplomático que Eddie quis
vomitar. – Esse é o Eddie. – ele apontou. – Ele é novo aqui.
- Aaaah. – ela abriu bem a boca, mostrando como era exagerada. Seus
lábios estavam no tom mais escuro de vermelho e seus olhos brilhavam em
azul cristalino, enquanto o cabelo era um loiro sujo. – Entendi. Eu estava
mesmo me perguntando o motivo da honra da sua presença no meu
humilde território, já que você nos evita como se fossemos a praga. –
Natasha falava enfaticamente, quase cantando, de forma muito casual e
enjoativamente carismática. Milo continuou inalterado, sem se deixar afetar
por nada que ela dizia. – É por conta desse bebê assustado aqui. – ela olhou
para Eddie ao dizer isso, com um sorriso cheio de segundas e terceiras
intenções.
- Natasha. – Milo a chamou com tom repreensivo. – Você não pode fazer
isso.
Eddie não tinha resposta. Tudo que ele queria fazer era dar um soco na cara
dela. Porém, ele não moveu um músculo, com todo o autocontrole que
conseguiu desenvolver vivendo na rua, não confiando em si mesmo. Dane-
se Reno. Ele era agradável quando ofendia tudo e todos numa tentativa de
autodefesa, apenas Eddie que não sabia.
- Woah, você é pior do que parece. – ela deu um passo para trás, parecendo
irritada e ofendida, como um animal de orgulho ferido. – Parece que você
não sabe, mas não existem regras aqui. Eu posso dar ou tirar cartas de
alguém quando eu bem entender. – ela passou a língua pelos lábios. – E
pela a sua péssima personalidade, vou ter que dizer que não merece nada
mais que 5 cartas.
- Natasha—
- Boa sorte em sobreviver por aqui. Afinal, eu não te dou mais que três dias
para ser mandado nos Jogos da Meia Noite. E eu vou apostar contra você,
bonitinho.
- Ok, já podemos sair daqui? – Eddie grunhiu. Seu auto controle estava
derretendo àquela altura, queimando-o por dentro como cera, o instigando a
fazer algo em vez de impedi-lo.
Eddie sentia-se ligeiramente melhor por ter saído daquela sala, mas na
verdade, continuava tão mal quanto antes. Ele tinha que forçar a mente a
não analisar de mais os Legados da Figura, se não ia enlouquecer. Iria
voltar lá e socar uma por uma.
- Eu peço desculpa por isso. – Milo torceu os lábios. – Elas eram o grupo
que começou com as apostas. Depois da punição e da pressão, elas são as
responsáveis e ninguém quis mexer com isso para descobrir o que
aconteceria. Ou seja...
- Natasha pode fazer a merda que ela quiser desde que ela continue sendo a
responsável pelas as cartas. – Eddie soou sombrio como os seus
sentimentos estavam nesse momento. Completamente obscuros, indo para
caminhos que ele mesmo nunca quis.
Mas o que o fazia pensar que não era o próprio Governo o culpado de estar
ali?
O que o Mundo tinha se tornado? Eddie nunca se sentiu tão confuso. Era
por isso que ele odiava pensar muito sobre. Eddie também estava alienado.
Ele achava que conhecia a realidade do país e do Mundo por viver na rua,
mas não. Ele não era nada mais que um ingênuo estúpido como as outras
pessoas.
- Com toda a insistência para me trazer até aqui, eu esperava mais. – Eddie
comentou ao se sentar. Milo inclinou o rosto.
- Eu não quis te trazer aqui por conta do lugar em si. O que é útil aqui é que
eu posso fazer isso, – Milo esticou a mão e um livro veio até ele flutuando,
fazendo Eddie arregalar os olhos. – enquanto lhe dou a sua aula de história
e geografia do dia. Também não vamos ser incomodados por ninguém, esse
é um dos lugares mais vazios do Complexo.
- Oi? – Eddie não estava entendendo mais nada. Milo sorriu amarelo.
- Aqui. – Milo apontou para um dos livros abertos na mesa, mostrando uma
página com uma ilustração da anatomia humana superficialmente, sem
mostrar órgãos ou denominar partes em geral. – Esse corpo é um humano.
É só isso que eles são, corpos num ambiente. – ao dizer isso, o dedo de
Milo fez um movimento circular, mostrando o fundo vazio da pagina por
trás do corpo. - Para funcionarem, eles precisam de um espírito e uma
alma. O espírito vai ser o produtor de energia, e alma vai ser a
personalidade e as emoções. Mas até agora, nada disso se conecta com o
ambiente ao redor do corpo. É necessário uma ponte.
- Então... Essas coisas atuam sobre a gente... E não é a gente que atua sobre
elas? – Eddie continuava piscando várias vezes, querendo queimar aqueles
livros confusos sobre a mesa.
- Sim. Sono ou fome não é uma necessidade que nasce dos humanos, é uma
necessidade que aparece sobre nós. Elas já existiam antes das pessoas.
Milo era paciente e explicava bem, mas Eddie não queria se agarrar apenas
ao que ele dizia. Não tinha certeza de mais nada, apesar de estar óbvio que
Milo não tinha motivos para mentir.
- Eu não posso dizer por que nós somos escolhidos. – Milo retomou a falar,
como se tivesse lido a mente de Eddie. – Mas eu posso te dizer que não
somos os únicos que possuem as manifestações elementais, que conseguem
interferir na ordem da realidade das coisas. Antes nós, há muito tempo
atrás, houve os primeiros humanos que descobriram a existência dos
Elementos e conseguiram dominá-los. Isso aconteceu pela a força, por
caminhos que acabaram destruindo tais humanos. Esses são os
Elementistas.
- Destruindo como?
- Eu não entendi a relação que você faz com mídia e informação verdadeira
para a população. – uma terceira voz interrompeu. – Deve ser realmente
inocente se acredita que os únicos monstros se encontram aqui dentro.
Mas o que realmente chamava atenção na menina eram suas roupas: Ela
usava um vestido sem alças branco que não chegava ao joelho, como se
estivesse na porra de um shopping.
- Como é?
- Você realmente não sabe nada. – ela franziu o cenho. – Você chegou hoje
por acaso?
- Electra. – Milo finalmente interviu. – Eu estou tentando ajudar o Eddie a
se familiarizar com tudo. É só por isso que estamos aqui, e não
pretendemos demorar.
- Oh, vocês podem ficar o quanto quiserem. Essa é uma cortesia que eu dei
a você e o ingrato do Reno, para que ele continue a me maldizer sem
motivo. – Milo pareceu engolir um sapo ao ouvi-la. – Como ele está, aliás?
Já mofou na própria cela?
- Então, Eddie, - Electra decidiu ignorar Milo. – eu vou ter compaixão por
você ser um novato e te explicar algumas coisas. Todo grupo tem uma
função, que fica ligada à parte que reside dentro dessa prisão. – ela ergueu
os braços ao ar, apontando de forma geral para biblioteca. – A função do
meu grupo é informação. Então não existe lugar melhor para ficarmos do
que a biblioteca. Eu espero que Milo tenha explicado alguma coisa, mas
nós separamos assim, funções e territórios, para evitar ataques e rebeliões.
Você não pode danificar esse lugar, e não pode danificar um dos meus
Legados. – ela o olhou intensamente ao dizer isso. Queimando sobre o
olhar de ferro de Eddie, ele percebeu que ela estava o ameaçando. A garota
era sútil como uma raposa, mas assassina como um coiote.
- Ótimo. – Electra sorriu pela a primeira vez. O sorriso não alcançava seus
olhos e não combinava com ela. - Se você quiser conversar comigo os
Legados do Sono sempre ficam nos fundos da biblioteca, após da porta
verde. Talvez eu te explique tudo que Milo esteja omitindo.
Agora ela havia conseguido instigar até Milo, mas o garoto não se alterou
nem por um milímetro. Bom, com exceção da curvatura dos seus lábios,
que tremeu bastante. Ela começou a se afastar dos dois com a intenção de
sair, mas antes que pensasse sobre Eddie estava pulando da cadeira que
havia sentado.
- Não era uma resposta. Você começou a dizer antes de eu perguntar. Se for
assim, não deveria me cobrar nada.
Milo arqueou as sobrancelhas com o debate dos dois. Electra deu outro
sorrisinho. Agora ela parecia divertida de verdade, e ficou mais bonita do
que era por um instante. O rosto dela parecia ter sido feito de marfim.
- Inválido, mas fofo. – ela voltou a se aproximar. – Eu vou ser extra gentil
com você, novato. Aparentemente você não tem um grupo, e com essa boca
grande, vai precisar de toda ajuda que puder. – ela estava diretamente o
ofendendo naquele momento. – Esse lugar parece o símbolo da anarquia e
da destruição humana, mas também tem regras. Se você descumprir essas
regras, dependendo do tamanho da burrada que você fez você vai ser
punido. Milo te contou como isso funciona?
- Por que diabos ninguém denuncia? Por que ninguém faz nada?!
Ficar naquele lugar era perder o chão, várias, várias e várias vezes. Um
passe em falso; e ele viria a cair para sempre na vala. Para parar naquele
jogo doentio.
- Obrigado, mas talvez era melhor realmente não ter feito nada. – Milo não
pensou duas vezes antes de responder.
Electra continuou com o desprezo, sem mais nada que quisesse dizer, então
virou-se para ir embora, sem se importar com o estado em pânico que
deixaria Eddie. Só nesse momento que Eddie percebeu que ela tinha um
crisântemo branco sobre o cabelo, no penteado que usava. Ele balançava
junto com ela enquanto a garota se afastava iluminado pela a luz forte
branca do Complexo.
A imagem da flor também serviu para assombrar ainda mais Eddie. Eddie
não conseguia ficar mais enojado.
Eddie quis bater nele. Mas nem com toda a raiva do mundo ele conseguiria.
A tristeza que o menino demonstrava parecia a sua, e por um instante ele
sentiu que os dois não eram tão diferentes assim. Que, pelo menos, Milo o
entendia, mas preferia se distanciar.
- Por isso. Electra não é alguém que você gostaria de ver no primeiro dia.
Ela é chamada de Rainha Vazia por um motivo. – Milo tinha um tom extra
sincero. Eddie olhou para por ele por conta disso.
- Mas ela não disse nenhuma mentira, ou disse? – Milo abaixou a cabeça
com isso, claramente sem querer concordar, mas sem ter como fugir. – O
problema não é ela. O problema é toda essa situação de merda em que eu
estou atolado. É muito ruim para ser verdade. – Eddie falava e respirava
com dificuldade. Seu peito pesava um milhão de toneladas. – E você quer
que eu me torne como eles. – Eddie acusou baixinho, olhando para o teto. –
Domesticado dessa forma.
- Havia um palco lá, você deve ter notado. Eles se utilizam do terceiro
horário inteiramente para uma intervenção naquele palco.
- A cada palavra que sai da sua boca eu só fico mais puto. Intervenção?
Que porra é essa?
Foi a vez de Milo franzir o cenho, quase como uma criança emburrada.
Eddie se perguntava como seria se ele tivesse conhecido Milo fora dali.
Fora de toda a história de Elementos e Legados, longe do Inferno que
estava preso no momento. Talvez ele fosse alguém interessante. Mas não
era essa a realidade e pensar nisso só o fazia perder tempo.
Essa era uma coisa que ele não queria cometer. Por isso, estava passando
por cima dos próprios sentimentos, mesmo que não parecesse muito para
Milo; era muito para Eddie. Sua prioridade era sair e não ficar, não se
acostumar, mas entender. Isso ficava mais claro a cada minuto que passava,
Eddie também se tornava mais lúcido, se controlava e se achava melhor,
mesmo que perdido.
Precisava pensar um pouco se realmente queria sair. Ele não tinha ninguém
para contar além de si mesmo, e não era burro o suficiente para achar que
força bruta o levaria muito longe. Agora ele não estava mais desnorteado e
machucado, apenas raivoso e irritado. Agora ele iria conseguir fazer algo.
Ele estava andando, andando e andando, mas não parecia chegar a lugar
nenhum.
- O que acontece nessa intervenção? E por que todo mundo tem que ver
essa merda? – Eddie acabou perguntando. Milo atravessava o corredor
nesse momento, em direção ao elevador.
Eddie rangeu os dentes, quase colocando fogo nos neurônios de tanto que
pensava, encarando Milo. Milo não pareceu se alterar por ser encarado,
chamando o elevador tranquilamente. Eddie não era burro, pelo o contrário.
Ele era bem sagaz, quando não estava sendo movido por algum sentimento
bruto e duro que fechava os seus sentidos.
Dentro do elevador, havia um garoto com cicatrizes por todo o rosto, longe
dele, mais baixo do que Eddie. Ele não deveria ter mais de quinze anos, e já
conhecia várias formas de dor. E também havia uma menina que tinha o
aspecto de dezoito anos, no máximo, completamente encolhida e abraçando
o próprio corpo, olhando para os lados de forma discreta, como se tudo
fosse uma ameaça ao seu corpo.
Esses eram os casos que tinham uma reação em geral. Boa parte das
crianças ali estavam anestesiadas tanto contra a dor contra a realidade.
E Eddie nunca teve capacidade de lidar com esse tipo de autoridade. Ele
não evitava; precisava ir contra. Precisava se impor como pessoa. O
problema era, no Complexo ele não era uma pessoa. Agora ele fazia parte
do viveiro de pássaros de asas quebradas. E como um pássaro de asa
quebrada, ele era frágil, a ponto que os donos do viveiro poderiam mata-lo
quando bem entendesse.
- Sim. Mas não precisamos participar todos os dias. – Milo suspirou. – Eles
repetem as apresentações para os Legados novos, então é possível se retirar
para a sua cela nesse momento. Mas você só tem duas opções: O pátio ou a
cela. – Milo deu uma pausa. – Sinceramente, eu não sei o que vai acontecer
hoje. Então só acho melhor que você vá.
- Você quer que eu participe de tudo, hem? – Eddie ironizou, mas não
havia energia em sua voz. Ele estava esgotado. Aquele lugar havia roubado
completamente as suas energias, o impedindo de lutar.
O elevador parou.
- Puta merda. – Eddie soltou em pleno choque.
A mão de Milo ainda estava sobre o seu pulso, e foi quando ele apertou os
dedos longos e magros pela a sua pele que Eddie piscou, voltando para a
realidade. A primeira coisa que encontrou foram os olhos escuros de Milo
preocupados na sua direção.
Eddie abaixou os olhos para ver a mão dele apertando seu pulso, e não
demorou muito para que Milo o soltasse e se afastasse.
- Desculpe.
Milo piscou.
- Eddie? Você ainda ‘tá ai? – a voz dele soou suave ao perguntar,
encolhendo-se de leve, claramente desconfortável. Eddie sentiu um choque
pelo o corpo quando percebeu que estava encarando, sem dizer nada.
Quem era o esquisito agora? Céus, ele realmente não estava registrando
mais nada. Corou até as orelhas, agradecendo pelo o cabelo cobri-las, se
sentindo pior do que já estava. - Se você quer perguntar mais alguma coisa,
é melhor fazer logo antes que comece. – apesar de soar rígido, de certa
forma, Milo parecia estar puxando assunto. Ajudando Eddie, tentando
deixa-lo confortável. Eddie o encarou emburrado por isso. Milo deu um
sorriso amarelo.
E tudo que restou para Eddie foi prestar atenção junto com eles.
Ele e Milo estavam bem ao fundo, a baixo das rampas que levavam às
celas, mas Eddie percebeu o quanto ambos eram altos por conseguirem ver
o palco do mesmo jeito, mesmo que relativamente longe. Não era uma
plataforma tão alta, e também não tão extensa. Mediana nos dois quesitos,
ao máximo.
A luz azul o queimou de forma que ele nunca achou possível, fazendo
Eddie notar o quão fraco, dolorido e baqueado ele estava. Aquele palco,
aquelas pessoas sobre ele, aquelas crianças assistindo, as celas e as rampas
e os canos no teto; tudo aquilo formava o monstro que havia o devorado.
Da primeira vez que viu Eddie, ele era uma bomba de raiva e frustração
prestes a explodir, nada diferente da imagem dos outros companheiros de
cela que haviam tido – costume especial dos Primórdios para com o Reno,
ele só ganhava companheiros de cela problemáticos, como um presente
especial para si.
Foi bem fácil para Reno não gostar dele. Ele havia destruído tudo dentro da
cela, e possuía uma presença, uma aura, esmagadora. Mas qualquer
presença é esmagadora para Reno, que prefere morrer sozinho.
- Ele pode se mudar para lá, se quiser. – Reno apontou para a porta com o
dedo indicador. – A banheira é confortável. Eu já testei.
Havia algo de errado com Milo. Quando os dois se conheceram, Reno quis
projetar seu auto ódio nele, como projetava em todas as pessoas, para
mantê-las longe. Mas não conseguiu. E por algum motivo, que nenhum dos
dois sabem explicar, Milo acabou sendo, pelo menos por um por cento,
mais do que a máquina que achava com era com Reno.
- O que?
- Houve derrota se nunca teve luta? – Reno ergueu as mãos no ar, bem
indiferente.
Eddie os interrompeu, com uma voz baixa e fraca. Ele tinha acabado de sair
do banheiro, com o cabelo e o rosto molhados. Ainda não encarava nenhum
dos dois. Não deu mais nem dois passos e logo caiu sentado na sua cama,
como um robô que havia esgotado as energias. Reno ainda estava com as
suas camadas costumeiras, mas acabou se preocupando um pouco,
ligeiramente, com o menino.
- Esse é o desejo maior. Mas você precisa de outros desejos que te façam
continuar a se mover, porque esse te lugar te mata quando você não faz
nada. Não dá para deixar o lugar vencer.
- Mas você passou o dia todo explicando por A mais Z que o lugar também
te mata se você faz qualquer coisa! Parece que você não entende o quão
agressivo é pensar em me adaptar aqui. Aceitar essa merda!
Reno teve que olhar para Milo. Ele olhou dizendo: “Você não disse isso
para ele?” E Milo o olhava de uma forma que, para alguém que não o
conhecia, ele parecia ligeiramente alterado com a conversa, mas para Reno,
que o conhecia bem, ele estava profundamente conflitado com a vontade de
matar Reno, matar a si mesmo ou de gritar e correr bem rápido dali.
Reno pode ver que Eddie começou a trabalhar rápido demais para digerir
aquilo. Ele estava virando o furacãozinho de novo, engolindo tudo que não
havia conseguido pelo o dia, de uma vez. Reno teve que temer pela as suas
coisas mais uma vez, sem saber se esse era o momento em que o gatilho
acionava e o garoto tinha outra crise de raiva e desespero.
- Você fica em uma cela menor. – Eddie soou sufocado, engasgado, quando
falou. – E quando a cela menor te enlouquece você mata alguém, então
você cai aqui.
- Mas eu não...
- Em vez de passar por isso, você passou pela aquela situação horrível
quando sua manifestação foi usada contra você. – Milo interrompeu Eddie,
falando mais rápido que o normal. Provavelmente para não deixar Reno
estragar mais do que ele já havia estragado. – Eddie, é esse o jogo que eles
fazem conosco. O jogo da contrariedade. Quem nos colocou aqui manipula
a nossa existência a ponto de considerarmos que é culpa nossa, por que
estão nos tornando assassinos. Ninguém tem...
- Como assim preso? Quer dizer que não estamos aqui por vontade própria,
como o senhor novato ali gosta de acreditar?
E claro que Milo percebeu todo o esquema, olhando feio para o italiano.
Ele não gostava das suas atitudes, mas não iria impedi-lo. E era por isso
que os dois se davam bem. Reno precisava da contradição, apesar de nunca
admitir: Alguém que se importava, mas que não iria intervir.
Os dois tinham se encontrado por acaso, e Milo não tentou, como ele não
tentava com ninguém, se aproximar de Reno. Isso fez Reno se interessar
por ele, por mais contraditório que pareça. Pode-se dizer que Reno
funciona assim, em boa parte das vezes, aos avessos.
Foi apenas natural, considerando-se que ambos eram Legados mais odiados
que o normal dentro do Complexo. O jeito de Milo contribuiu para que
construíssem a relação que tinham hoje: Milo o entendia bem e não usava
seus defeitos contra ele, ficou difícil, então, para Reno não ceder. Por que
ele gostava, ao mesmo tempo de odiar isso, do fio de sanidade que Milo o
ajudava guardar.
Sem demorar mais, Reno e Milo saíram da cela, deixando Eddie sozinho
dentro dela. Agora havia poucos Legados para fora das suas celas, no
processo de se recolherem para o quarto horário. Os dois seguiram em
silêncio até descerem a rampa das celas, e atravessarem o pátio, chegando
ao elevador quase escondido, próximo do palco, que levava direto ao setor
dos clones.
Reno agradeceu, como era seu costume toda vez que era obrigado a sair da
própria cela, por não ver Electra por perto. Viu apenas alguns Legados do
Crescimento, que também não gostavam de si, e Legados da Ferocidade,
sem sinal das rainhas de ambos. Os Legados do Crescimento lhe odiavam
porquê, sem ele nunca ter pedido ou merecido, Fiona fornecia comida de
graça para si.
Assim, Reno não precisava ir para o refeitório nunca, muito menos lidar
com as pessoas.
Daquela vez havia sido diferente por que Milo voltou com um furacão do
lado. E os dois, realmente, não obtiveram tempo de interagir de verdade
como costumavam fazer. Reno tinha perguntas, e um bom monte delas.
Detalhe sórdido era como eles se referiam ao fato de Milo trabalhar para os
Primórdios. Como se ele tivesse lido a sua mente, o Legado da Sabedoria
desviou das perguntas do porquê, realmente, ele tinha que guiar e ajudar
Eddie dentro do Complexo. Então havia um motivo. Mas Reno só iria saber
quando eles estivessem em um lugar seguro para falar sobre.
- Que isso, eu só queria saber como foi o guia turístico. – Reno transbordou
sarcasmo, olhando em volta. Havia Praticantes por perto, observando os
Legados para pegar os bobos que ultrapassariam dos últimos momentos de
liberdade antes de obedecerem o toque de recolher do quarto horário. A
imagem deles era como a de cães raivosos, mas adestrados, esperando
permissão para matar. – E se eu vou ter que explicar mais alguma coisa
para ele que você decidiu não dizer.
Com isso, Milo fechou a cara para Reno. Parecia que Eddie tinha
conseguido a proeza de esgotar a sua paciência. E isso percorria suas outras
interações, pois era difícil para Milo perder a paciência com Reno. Isso
estava acontecendo nas últimas horas por que ele já estava surtado por
conta de Eddie.
- Eu só preciso que você faça o que sempre faz: Evite contato. Ignorá-lo é a
melhor forma de ajudar o processo que ele tá passando de se... Adequar ao
lugar. Vai ser algo bem lento, e eu estou tentando tornar a experiência a
menos nociva o possível para ele.
Milo pausou nesse momento, arregalando aos olhos. Ele olhou ao redor,
vendo que os Praticantes não se moveram ou deram indícios de se
aproximar deles para separá-los, ou perceberam algo de estranho na
conversa. Os outros Legados na mesma área continuavam inalterados
enquanto conversavam à frente das suas celas.
- Reno, eu realmente mereço isso? – ele soou mais exausto do que antes,
fazendo Reno perder um pouco da energia para questionar. – Eu sofri com
ele o dia todo, e agora preciso sofrer com você também? – então Milo se
aproximou mais uma vez, abaixando ainda mais a voz. – Eu estou fazendo
a coisa certa. O tratando do jeito certo.
- Eu peço perdão, mas eu não posso te mostrar nenhum dos esqueletos que
você quer ver.
Reno ficou ofendido. Ele odiava argumentar com Milo, por isso nunca o
fazia, já que era sempre causa perdida: Milo sempre estava certo e sempre
ganharia. Porém, daquela vez, o ofendeu o fato de que, realmente, Milo
estava errado e não queria ver isso. Que merda Eddie tinha causado?
Milo ficou desarmado com aquilo. Pela primeira vez na relação toda dos
dois, Reno estava certo e isso era indiscutível. Não gostou dessa ideia.
Quando Milo estava certo, sempre era de forma positiva, e por mais que
Reno tentasse fugir, a esperança o invadia. Agora não tinha esperança
nenhuma. Algo estava errado com Milo, tinha a ver com Eddie, e ia piorar.
Poderia destruir ambos Reno e Milo. Eles já estavam jogados naquilo. Não
tinha como voltar.
- Ele vai saber da reunião. – Milo tentou falar, mas saiu estrangulado e
pigarreou no meio da frase, com a garganta seca. – Mas é um processo
lento. É melhor que ele conheça o Complexo aos poucos para não surtar.
Falar disso hoje seria... Seria jogar fósforo aceso na fogueira baixa.
- Milo, nada disso é sua obrigação, eu tenho certeza disso. – Reno
exclamou dessa vez. – Você está indo longe e não é só pela a “coisa certa”
a se fazer não. – Reno franzia ainda mais o cenho. Então, Reno levou um
soco no meio da conversa. – Espera. Vocês dois criaram uma conexão, não
criaram?
- Milo. – Reno mostrou sua preocupação pela primeira vez, só para ele
entender como aquilo era sério. – Até onde isso vai? As memórias dele? Os
sentimentos, os pensamentos... – Milo estava estranhamente quieto. Então
Reno se assustou. – Espera, é tudo isso, não é? É como a merda de um
cordão umbilical!
- Milo, você tem que resolver. – Reno soou ainda mais urgente. – Se não,
vai ser arrastado junto com o furacão para a merda total. Eu não dou muito
tempo para a crise estourar para o nosso lado, afinal eles nos odeiam mais.
Milo abriu a boca para responder, mas os dois foram interrompidos por
passos. Passos que eles já conheciam bem: Os Praticantes, que andavam
sincronizados como robôs.
Milo respirou fundo, fazendo Reno franzir o rosto, sem controlar o arrepio
que sempre tinha perto dos Praticantes. Era um homem e uma mulher,
devidamente trajados e portando armas que se destacavam em suas
cinturas, maiores que pistolas normais. Por que não eram pistolas normais.
Reno ficava hipnotizado pela a imagem das armas, e nunca realmente via
os Praticantes ou ouvia o que eles diziam. O que importava deles eram as
armas, e o que elas poderiam fazer consigo. Tinha sorte de nunca ter sido
acertado por uma, quando metades dos Legados no Complexo já levaram
pelo menos um tiro.
- Eu preciso ir. – Milo virou para Reno mais uma vez, sabendo que ele não
havia ouvido o aviso dos Praticantes sobre o tempo deles acabando. – Mas
antes de ir eu preciso ter certeza que você vai confiar em mim.
- Milo...
- Por favor. – Milo pegou a mão dele, olhando no fundo dos seus olhos. Era
a única pessoa que tinha passe livre para tudo isso. Reno fraquejou, com as
barreiras que criou ao seu redor virando areia e se dissolvendo por conta de
Milo. Ele apertou a mão de Milo de volta, abaixando o rosto ao senti-lo
esquentar por um gesto tão simples. Não estava acostumado com contato.
Muito menos contato afetuoso, fraternal. Sempre fugia de Milo quando ele
tentava, mas o desespero da situação o fez ceder. Estava preocupado, e na
primeira vez há muito tempo, não era por si mesmo. – Por favor. Eu preciso
de você do meu lado.
Depois disso, não houve mais conversa e Milo teve que ir. Reno só
precisou de uma olhada de um dos Praticantes para saber que deveria fazer
o mesmo, observando os Legados que ainda estavam fora da cela se
retirarem de forma obediente, como gado. Provavelmente era assim que os
Primórdios os viam: Como um bando de animais, provavelmente mais ratos
canibais do que gado.
Por Eddie ter desmaiado na noite passada, Reno não interagiu com ele.
Porém, isso não quer dizer que sua noite foi tranquila: Pelo contrário, Reno
passou à noite em agonia e em ansiedade, lutando com a sua manifestação
e o autocontrole para não pregar no sono.
Reno estava nesse ponto, mas ele lutou contra até agora, pois morreu de
medo de se deparar com os pesadelos de Eddie. Não era algo que
controlava: Se dormisse perto de alguém, conseguiria, automaticamente,
entrar nos sonhos dela se a pessoa sonhasse. Controlava isso ao redor das
noites, mas a primeira era sempre a pior.
Percebeu que Eddie não era tão assustador agora. Provavelmente a raiva
havia sido reduzida a pura tristeza. Aquela que todos sentiam ao pensar na
vida que tinham antes do Complexo. O garoto já estava lidando melhor do
que todos os outros companheiros de cela de Reno.
Eddie, por outro lado, encarava o breu do outro lado de forma ofegante.
Reno pensou consigo mesmo: “Eu não vou me envolver. Nuh huh.”
Ele virou para trás, encarando Reno mais uma vez. Reno quis, realmente
quis, ignorá-lo e fingir que não estava ali, mas era impossível. Nunca foi
bom com isso.
Reno deu um sorriso amargo. “Eu digo o mesmo para mim mesmo todo
dia, campeão.”
Eddie bufou mais uma vez, sentando-se em sua cama. Ele olhou para tudo,
menos Reno, por um instante. Reno achou que, finalmente, esse era o
momento que ele iria reconhecer que era melhor ficar quieto e ir dormir, ou
pelo menos tentar.
- Estamos nos questionando a mesma coisa. – Eddie soou seco, sem graça
nenhuma. Parecia que seu sorriso havia morrido para sempre. – A tal de
Electra disse que era de um grupo. E que o grupo dela fornecia informação.
E ela citou você, então...
Eddie pareceu passar por fases emocionais ali enquanto ouvia Reno. A
raiva, já amiga, depois o estranhamento e ai a curiosidade e o interesse. Ele
pareceu ter parado no interesse. Céus. Ele era uma daquelas crianças
irritantes protagonistas de desenho que perguntavam sobre tudo e
argumentavam sobre tudo e Reno já queria mata-lo em menos de uma hora
de divisão do mesmo espaço.
- Mas é isso que acontece normalmente, não é? – Eddie não pareceu mais
estar falando com Reno. Reno o olhou confuso. – Os novatos são obrigados
a pegarem cartas com a Natasha, e depois pedir informações para Electra.
Eles gastam todas as cartas e deve ter outra parte do processo.
- Mas não foi e não está sendo assim comigo. – Eddie concluiu seus
pensamentos. – Por quê? – agora ele voltou a falar com Reno.
Reno queria muito, muito, muito mesmo jogar um dos seus livros capa dura
na cara de Eddie.
- Eu não sei! Eu acabei de dizer para não me questionar! Eu não sei, eu não
vou saber, e eu não ligo. – Reno gritou absoluto. – Isso é com o Milo, não
comigo, mas você já o irritou suficiente e sabe disso. – Reno grunhiu,
possuído pelo o desgosto e o nervosismo. – Desde quando as suas
perguntas eram sobre mim e não sobre o Milo, hem?
Então, ali estava. Bastou só aquela frase para que Reno encontrasse o
furacão novamente, e Eddie encontrasse a sua raiva que o motivaria como
uma máquina de ódio. Reno não queria estar nem perto quando ele
destruísse tudo.
- Eu não vou desistir porra nenhuma. Não vou ficar alienado e domesticado
que nem você. Eu não vou ficar nesse lugar.
- Ai, então tá bom. – Reno bufou alto, sentindo que envelheceu mais
oitenta anos só naquela conversa. – Agora eu vou dormir, então para de me
encher e faça o mínimo de barulho o possível. Inclusive com a respiração,
respira pouco também, quem sabe você se engasga com ela e já adianta
essa fuga que você quer tanto.
Com uma maturidade digna de uma criança mimada de classe média alta de
três anos, Reno jogou o corpo no colchão de forma estrondosa, virando-se
para ficar de costas para Eddie, encarando a parede. Ele fechou os olhos
com força, tentando ignorar o coração que acelerou como sempre acelerava
todas as vezes que encarava um valentão e se arriscava, e fingiu que não se
afetava por nada.
Mas também, não foi como se a noite tivesse sido tranquila. Pelo o
contrário.
- Reno.
Reno ergueu o rosto ao ser chamado, olhando para cima no processo. Seu
coração quase caiu do peito ao identificar quem era, e onde estava. Foi tudo
de uma vez, como um tiro de espingarda: À sua frente, havia um garoto de
pele tom de caramelo e cabelos negros escuros, com olhos da mesma cor.
Ele era alto e magro, e seu nome era Michael. Seu sotaque o entregava
como mexicano, mesmo que já estivesse morando no Brasil há alguns anos.
Reno engoliu a seco, sem acreditar.
Ah não.
- Reno, ei, olha para mim. – Michael andou em sua direção, o segurando
nos braços. Reno o olhou assustado, consumindo os traços do garoto mais
uma vez, assustado com a forma que sua mente o refazia com tanta
precisão. Seu coração doeu de tanta saudade e frustração. Michael havia
sido a última parte doce de Reno. – Está tudo bem. Eu juro, está tudo bem.
- Não. – Reno choramingou. – Não, não, não, você não pode fazer isso. –
Reno balançou a cabeça negativamente, sentindo exatamente o mesmo
desespero que sentiu na época em que aquilo aconteceu. Era horrível. Não,
pior que horrível. Estava dilacerando Reno enquanto ele não tinha o menor
preparo e proteção para isso.
Que Reno não havia sido jogado em uma cela com alguém desconhecido
sendo instigado a mata-lo para sair dali. Apenas para que, quando saísse,
descobrisse que estava preso da mesma forma, só que em um ambiente
maior.
Era mentira, e Reno quis gritar isso, quis impedi-lo, fazer alguma coisa,
qualquer coisa, porém paralisou por conta do choro e do pânico como da
primeira vez. As pessoas pensam que saberiam o que fazer se alguém
pegasse uma faca na frente delas – faca que foi entregue para eles junto
com a comida na cela – e decidisse tirar a própria vida. Na realidade, boa
parte das pessoas não iria conseguir fazer nada.
Com a pele beijada pelo o Sol agora fria e pálida, olhos negros
normalmente pequenos estavam bem abertos na sua última expressão em
vida e os cabelos negros lisos empaparam de sangue graças a Reno. Por
que Reno foi burro o suficiente em retirar a faca que o próprio Michael
cravara no peito e se sujou completamente com o seu sangue, como se a
sua alma já não transbordasse. Ele se lembrava de ter apertado os dedos no
cabelo de Michael enquanto chorava, rezando, desejando com tudo que
possuía para aquilo ser só um sonho ruim. Era como se a faca estivesse
entrando nele também, impossibilitando-o de pensar, de respirar.
O teste de Reno foi inconclusivo. Ele era o único com esse resultado,
nenhum outro Legado ofereceu para tirar a própria vida em troca da
liberdade do parceiro. Porém, Reno foi permitido entrar no Complexo do
mesmo jeito.
E exatamente por isso que ele também foi odiado por todos dentro do
Complexo.
Reno sabia o que acontecia dali. Ele se escondia e surtava na cela enquanto
era paparicado até o momento que caísse de volta na razão até os dias de
hoje. Porém, aquele sonho miserável continuou no quarto branco, que
sempre pareceu muito iluminado para um matadouro. Sabia que todas as
celas eram assim. E ele vomitava quase todas as noites ao se lembrar de
que dormia no quarto onde Michael havia morrido.
Morrido por sua causa. Se não fosse tão pateticamente fraco, Michael não
teria hesitado em lhe matar. Michael poderia ter feito algo no Complexo.
Ajudado os Legados. Tudo que Reno conseguiu foi ódio, e ele nunca tentou
evitar. Se Michael queria que ele fugisse, deveria estar mais que louco
quando cometeu o suicídio. Havia câmeras, soldados que não tinham
problemas em paralisar Legados que são drogados todos os dias – por
qualquer meio.
Mas ele precisava agradecer pelo garoto por ter lhe acordado. Um dos
piores inimigos de Legados do Sono era o pesadelo, e Reno poderia ter
consequências sérias daquela pequena sessão agradável que seu cérebro
havia decidido submetê-lo.
- Sim, é. – soou o mais morto o possível, para que Eddie notasse que ele
não queria conversar sobre. Não sabia o que podia fazer dali, mas qualquer
coisa era melhor que conversar com o colega de cela.
- Você não pode simplesmente controlar? – Reno olhou para ele com a cara
feia. – Os pesadelos. O seu sono em geral.
- Manifestações.
- Tanto faz.
Reno abaixou o rosto, em silêncio por mais alguns minutos, tendo que
aceitar aquela situação em geral. Falar ou não falar. Não era como se Eddie
iria se tornar menos insuportável. Urgh. Reno sabia que era fraco, e ele iria
acabar cedendo. Estava um pouco lento ainda, acostumando à toda a merda
que se encontrava atolado até o pescoço.
Pensaria em Milo. Milo seria seu jeito de lidar. Mas ninguém iria saber
disso.
- É diferente por que não somos mutantes ou merda do tipo. – Reno voltou
a falar, ainda que baixinho, então que Eddie se ferrasse para conseguir
entender. Ele não iria repetir. Infelizmente, Eddie pareceu atento e capaz de
compreender tudo. Reno balançou a cabeça negativamente. – É mais um
lance espiritual.
Eddie o olhou feio, como o real furacão que era. Ele tinha o pavio curto,
somado com o temperamento explosivo. Que gostoso, daria muito certo
com Reno. Mas Reno não podia dizer que não estava acostumado, trocando
de companheiro de cela várias vezes, e todos sendo um pior que o outro.
Até agora não sofreu fisicamente com os companheiros de cela como sofria
com o Complexo. Talvez Eddie não mudasse isso. Mas Reno tinha
dificuldades de acreditar nisso, mesmo que Milo confirmasse o fato, já
que... Bem, Milo nunca fez o teste por que ele nasceu dentro do Complexo,
o teste de Reno deu errado por que seu parceiro se matou, mas Eddie não
precisou fazer o teste.
Isso não deveria significar que ele já era um assassino, e nenhum Primórdio
precisaria criar o instinto nele? Reno não podia evitar não gostar e não
confiar em Eddie. Nunca era difícil para si.
- Eu só fiz isso. – Eddie continuou com a voz tensa, com a raiva do começo
da noite retornando para si. Antes ele parecia apenas fraco e perdido como
todos os outros Legados. Reno olhou o seu relógio eletrônico, que estava
configurado com os horários normais do mundo lá fora: Quatro horas da
manhã. Nossa, que legal! Mais uma noite que ele não dormia nada. – Eu só
decorei. Eu não sei realmente o que eu estou dizendo, eu não entendi. E
isso é outra coisa que me mata.
- Sério?
- Por que você... Espera aí, você nunca foi para a escola? – Reno não
conseguia acreditar em uma só palavra que saía da sua boca, esperando
Eddie lhe cortar e lhe chamar de doido. Era muito distante da sua realidade,
que frequentou escola particular a vida inteira.
Eddie suspirou mais uma vez, perdendo as forças e, com elas, a raiva. Era
isso que Reno fazia de melhor: Ganhava pelo o cansaço. Ninguém que não
era Milo tinha paciência o suficiente para manter uma conversa com ele.
Reno se sentia orgulhoso disso.
Era a forma mais eficaz de afastar as pessoas: Ser alguém horrível. Ele não
precisava se preocupar com nada quando fazia isso. Não tinha forças o
suficiente para se preocupar. Uma parte boa do Complexo? Reno
finalmente pode curar a ansiedade social, a mandando para a casa do
caralho e sendo exatamente o tipo de pessoa que ele mais temia: Alguém
que incomodava e não ajudava.
- Por favor. – ele praticamente implorou, com a voz pequena e frágil. Reno
o encarou surpreso, sem esperar por aquilo. O garoto perdendo o orgulho
desse jeito, no segundo dia? Não podia ser. Aquilo nunca aconteceu antes.
Os outros colegas de Reno nem lhe ouviam. Mas Eddie pareceu só... Ele
pareceu um bom garoto, como Milo, perdido e machucado naquele
momento. – Por favor, eu só... Quero saber e eu te deixo em paz... Foi... –
ele engoliu a seco, desviando o olhar e corando. – Foi bem assustador agora
pouco. Eu não conseguia dormir e quando eu vi as coisas mudando liberou
todo o pânico que eu estava segurando desde ontem. Então... Então... – ele
abaixou ainda mais o rosto. – Então eu...
Percebeu que ele estava com sono e isso o deixava mais frágil, expondo os
sentimentos dessa forma. Eddie assentiu para o que Reno dissera, sem
coragem de abrir mais a boca. Talvez fosse essa a chance que Reno teria
para ignorá-lo de vez, cortar toda e qualquer interação, e voltar a deitar,
mesmo que não fosse fazer mais nada.
Claro que Reno nunca se ajudava e só se contradizia. Reno sempre soube
que havia uma grande diferença entre o que ele queria fazer e o que
acabava fazendo. Quando estava consciente o suficiente para isso, se
martirizava questionando se ele realmente queria o que simulava para si
mesmo na sua cabeça: Desaparecer, exclusão, morte e inexistência.
Eddie pareceu mais confuso, de repente. Reno estava quase desistindo. Ele
não servia para professor. Milo já não havia explicado tudo aquilo? Por que
Reno estava se complicando ali? Se Eddie não entendeu com Milo, não iria
entender consigo.
- Como assim?
- Faz sentido você estar puxando as cordas, por que tem controle sobre... –
ele deu uma pausa, enrolando a língua. – Manifestações do sono. Mas eu...
Eu sempre mexi com as sombras. E eu não posso simplesmente dominá-las,
é um processo longo, doloroso e perigoso. Pode não dar certo. Eu não
tenho cem por cento de certeza que eu vou conseguir controlar as
manifestações.
Não que Reno tivesse vergonha disso. Ele odiava seus poderes. Não iria
mais usá-los.
- Por quê? – Eddie teve que perguntar.
Era assim para todos ali dentro: Era essa a criação de monstros que os
Primórdios faziam. A individualidade morria, só sobrava alienação e
manifestações.
Então, o pesadelo de Reno não foi causado por ele. Também, não tinha
como. Se Reno tivesse ficado preso no pesadelo de Eddie, não seria sobre
si mesmo. Reno não deveria ter pesadelos, mesmo não sendo bom com as
manifestações. Dentro do Complexo, ele ficou livre de pesadelos. Então
por qual motivo...? E como...?
Pela a primeira vez em muito tempo, Reno sentiu pânico. Ele não estava
seguro, se estava tendo pesadelos, era por que não possuía nem mesmo a
sua falta segurança anterior. Seja lá a merda errada que estava acontecendo
com o Complexo agora, Reno estava dentro dela. E foi nesse momento que
ele descobriu.
EDDIE
Eddie ainda estava esperando acordar. Porém, naquelas últimas horas ele
não havia dormido o suficiente para sonhar e como poderia, ninguém
dorme quando o Inferno passa à frente dos seus olhos.
O Complexo não se assemelhava a nada de ruim que ele havia ouvido falar
sobre. Por isso era tão estranho e anormal. Eddie não conseguia aceitar e
ver como as crianças ali estavam acomodadas e tranquilas no meio de uma
teia de caos o deixava furioso o bastante para fazer todas as besteiras que
faltavam na sua vida.
Milo, e Reno, haviam lhe dito para arranjar um plano, algo para fazer, mas
aquilo parecia o mais longe o possível de fácil. Seu primeiro plano deveria
se rebelar até conseguir uma forma de sair, mas até mesmo em toda a sua
raiva e desespero, Eddie conseguia ser inteligente o suficiente para
entender que não era possível.
Esperou os sons que denunciavam que Reno havia saído, pelo menos pela a
primeira e única vez no dia. Esperou estar completamente sozinho, esperou
seus pensamentos se organizarem como crianças obedientes em fila
indiana, e foi analisando cada um deles enquanto chorava. A cada vez mais
que ponderava mais triste e choroso ficava, mais a sua crise que esperava
nos cantos escuros da sua mente se libertava e o possuía. E só se sentiu
livre para isso longe da companhia de Reno.
Provavelmente acham que os Legados são uma ameaça. Por isso queriam
enfraquecê-los, cortar o mal pela raiz, antes de tomarem alguma atitude.
Incriminar todos aqueles jovens... Era algo tão inteligente e perverso ao
mesmo tempo, que tornava a respiração de Eddie entrecortada. Ele estava
certo, no final, em não confiar em ninguém dali. É claro que eles
enlouqueceram... Mataram alguém para ficarem presos no Complexo em
seguida.
Eddie logo estava chorando muito e tentando se fundir com o seu colchão,
pronto para desaparecer de uma vez. Chorava de medo, mas também
chorava de dor por todas aquelas crianças que quebraram de forma tão
cruel. Ao mesmo tempo em que as odiava, Eddie sentia pena delas, e se via
em cada uma delas.
Mas agora ele poderia ocupar o espaço que ela tomou com outra coisa, e
isso o faria funcionar. Eddie percebeu que ele não sabia nada sobre os
Legados ali dentro. Milo contou muito pouco. E se, agora Eddie fazia parte
deles, ele precisava saber. Ele precisa entender tudo, do começo ao fim.
Mas não era o caso, e ele não iria pensar sobre isso se não o ajudaria em
nada.
Seguiu direto para o caminho que percorreu com Milo, indo para a
biblioteca. Surpreendeu-se por ainda lembrar, não tendo notado como a
memória era boa até esse momento. As portas automáticas se abriram para
si, e mais uma vez Eddie estava dentro do ambiente fantasmagórico da
biblioteca. Encarou todos aqueles livros, mais do que pode no dia anterior,
e se questionou se eles realmente tinham alguma informação ou eram todos
de enfeite.
- Por que seria? Ela não vende informação? Ou você fica aqui sem saber o
que acontece?
Rodrigo soltou alguns resmungos, um último olhar feio para Eddie, mas
não demorou em sair dali e deixar os dois, muito obediente e fiel à Electra,
comportamento digno de um cachorro. Electra tomou a sua atenção
parando à sua frente, ela era mais baixa, porém não se tornava menos
imponente por isso. Sabia se carregar muito bem, sem expressar os
sentimentos.
Então, ela sorriu.
- Vejo que você é mais inteligente do que parece. – ela começou. – Fez
muito bem em me procurar. Você sabia que Milo agiu de má fé quando
decidiu fazer o meu trabalho? E de graça, ainda por cima.
Eddie não se surpreendeu por ter deduzido certo. Se não fosse por Milo,
Eddie teria que gastar todas as suas cartas com Electra para conseguir
entender metade do que estava acontecendo.
- Eu não tenho cartas. – Eddie foi curto e grosso, indo direto ao assunto.
Electra arqueou a sobrancelha, cortando o sorriso na hora.
- Isso é impossível. Natasha tem que ter dado cartas a você, se não ela já
teria sido punida.
- E como você pode saber se ela não está sendo punida agora?
Electra sorriu mais uma vez. Mas dessa vez, era um sorriso de escárnio.
- Eu tenho meios. Meios que você, com certeza, têm interesse por. É por
isso que decidiu me procurar. – ela descruzou os braços, balançando a mão
no ar em seguida. – Me siga, vamos falar no lugar certo. Por aqui é
perigoso.
Ela apontou para cima, e Eddie viu a câmera no teto virada na direção
deles. Sentiu o estômago se revirar com a confirmação vivida que era
perseguido e observado vinte e quatro horas por dia. Não teve muita
escolha, assim como ontem com Milo, a não ser Electra para onde ela o
quisesse levar.
Eddie não podia expressar em palavras o quanto ele odiava ser guiado.
O cômodo revelado do outro lado era bem simples e limpo: O teto era mais
baixo que o do resto do Complexo, sem os tubos de ventilação, mas com
canos ainda. Era um espaço pequeno, e as paredes não eram muito
afastadas. Havia vários puffs ali, livros espalhados, e sofás e colchões.
Garotos se espalhavam sobre esses espaços, olhando rapidamente para
Eddie enquanto ele entrava, mas logo o ignorando ao verem que estava
com Electra.
Electra cortou o seu fluxo mental de perguntas ao se virar para si mais uma
vez. Ela esticou a mão no ar.
- Eddie, eu não te dei uma informação de graça na primeira vez que te vi?
Isso não foi o suficiente para te confirmar que eu tenho coisas úteis a dizer?
Além disso, se eu não souber de algo, pode ter certeza que pelo menos uma
pessoa nessa sala, - e ela apontou para o geral, olhando para os Legados
também, desinteressados nos dois. – vai saber. Se você tem tanta
dificuldade de confiar, tudo que precisa fazer é mostrar que está com as
cartas, e eu posso te dar um adiantamento.
- Eu não posso dizer que eu realmente entendi por que cobrar por
informações.
Foi a primeira vez que Electra pareceu ofendida. Porém, ela só ficou mais
séria, perdendo o ar, gélido, mas ainda assim, descontraído que criou ao
redor de Eddie. Eddie conseguiu entender que aquele foi o momento que
ele começou a passar da linha com ela.
- Nós temos documentos. Todos podem achar que são inúteis, mas não são.
Não só isso, para fazermos esses documentos e termos as informações
exatas, arriscamos nosso pescoço mais do que qualquer outro assassino
barato desse lugar lidando diretamente com os Praticantes. Então pronto, -
Electra virou o rosto, mortal. – essa é a sua garantia.
Eddie odiou o jeito que ela falou consigo. Mas ele teria que aceitar as
respostas dela por agora, e por isso acabou mostrando as cinco cartas que
escondia dentro do casaco para a garota. Ela soltou um barulho indignado,
franzindo o cenho.
- Não. – Eddie iria abrir a boca para continuar a falar, explicar de Natasha,
mas foi então que ele percebeu que aquilo também era informação. Do
mesmo jeito que Electra guardava as suas, talvez Eddie devesse começar a
guardar as dele.
- E por que você parece tão irritada falando com um cliente? Tem algo de
errado acontecendo aqui?
Electra revirou os olhos. Nesse momento Eddie notou que entre todas as
crianças do recinto, Rodrigo e aquele tal de Akira eram os únicos que
pareciam ameaçadores em questão física. O resto era franzino e baixinho,
como Reno e Electra. Eddie não pode evitar relacionar os dois como os
guardas costas de Electra, os capangas dela, e ela não poderia estar mais
cansada deles.
Akira deu uma risada debochada, enquanto Electra fechava mais o rosto.
- Ele fala muito para alguém que chegou agora. – Akira comentou como se
Eddie não estivesse ali. Eddie sentiu aquela raiva no seu âmago como uma
fogueira de fogo baixo, ameaçando a crescer e tomar conta de si
novamente. A primeira vítima seria Akira.
- Depois de você ter preterido o Milo, e ter me ofendido por todo o tempo
que esteve aqui? – ela não perdeu um instante antes de retrucar. – Agora,
isso não seria meio ruim para os meus negócios? – cruzou os braços mais
uma vez, sendo uma pose típica. – Ninguém pode me culpar por
negligência por todo o tempo que eu te aguentei. – Electra suspirou
profundamente, parecendo cansada. – Foi como se eu tivesse envelhecido
dois anos.
- Há quanto tempo ele ‘tá aqui? – mais uma vez Akira agiu como Eddie
nem estivesse ali. Electra nem teve tempo de respondê-lo.
- Opa, opa, o rato morde. – Akira estava se divertindo. Não o via como uma
ameaça, pelo o contrário. Eddie deveria ser exatamente isso: Um ratinho
que era engraçado de irritar, e Akira iria continuar fazendo pela a piada. –
Eu estou tentando te ajudar. Aliás, nós dois estamos tentando te ajudar. –
apontou para si e Electra. Ela só revirou os olhos, descruzando os braços
para levar as mãos à cintura. – Nada no mundo é de graça, mano, então por
que você está enchendo o saco? Você era tão questionador assim antes de
entrar aqui também?
Eddie rangeu os dentes, com uma resposta na ponta da língua, pronto para
rebatê-lo e liberar a raiva que queimava para ser liberta, porém a
compreensão o salvou: Akira achava que ele matou alguém. Assim como
Electra. E Milo havia dito que, quando as pessoas soubessem que ele não
tinha passado pelo o mesmo teste, ele iria ser bem mais odiado do que o
normal. Reno também realçou isso.
Não que Eddie ligasse para o que pensavam de si, mas lembrou-se que não
podia fazer nada sozinho. Ele precisava de informações, ou comida não
corrompida, ou cartas. Precisava se adaptar pelo menos o mínimo naquela
sociedade horrível que os Legados criaram, se queria destruí-la para ficar
livre.
- Eu sei que é difícil, se você chegou há pouco tempo, mas pensa com a
cabeça, porra. Se você não tem cartas, faça outro tipo de escambo:
Informação por informação.
- Ele pode trabalhar para gente, para pagar quaisquer perguntas que ele
quiser.
- Não. – Electra foi dura, olhando diretamente para Eddie, sem um pingo de
piedade. Eddie estava em choque pela a situação toda e não conseguiu
reagir. – Nunca. Eu não quero mais um problema. – até mesmo Akira se
surpreendeu com aquilo. Porém, sem deixar o silêncio surpreso se estender
por muito tempo, Electra disse: - O que eu posso fazer por você é fazer
perguntas de volta, e precisa me responder.
Eddie queria dizer que ele não entendia por que Electra estava sendo tão
agressiva, mas ele não conseguia. Entendia muito bem. A garota não era
paciente, não era chamada de Rainha Vazia por nada, e ela não o expulsara
dali até agora. Eddie tinha plena consciência das suas ações.
Ele só não as mudava, quando não achava que precisava. Como agora.
- Mas eu sei que qualquer coisa que você me contar não vai valer o
suficiente pela a resposta. Então, as cartas vão servir como o que faltar. –
ela esticou a mão mais uma vez. – Se você não quiser, muda de pergunta ou
só sai da minha vista logo.
Ela era tão viciosa. Como uma cobra que só sabia se alimentar e se
alimentar, nunca ser a presa. Eddie estava começando a criar a mesma
antipatia que criou por Natasha, e a vontade de soca-la no rosto. Mas a sua
curiosidade precisava ser mais forte naquele momento, e deveria ser o seu
jeito de lidar.
Milo o alertou muito bem disso no dia anterior. Ele já estava um por cento
melhor do que ontem, mas ainda assim: Nada daquilo era bom ou aceitável,
e Eddie não podia evitar o fogo crescer dentro de si, até o momento em que
ele iria explodir em um mar de labaredas.
- Akira, por favor. – Electra pediu ao garoto. Ele não demorou nem um
instante para se afastar dos dois Legados, for até um dos armários, abri-lo e
remexer ali dentro, cobrindo-o de uma forma que Eddie não conseguia ver
o seu conteúdo de onde estava. Akira achou o que queria e fechou o
armário, voltando com uma pilha de papéis arranjados de qualquer jeito em
uma pasta improvisada, entregando para Electra em seguida. Electra olhou
feio para Akira, provavelmente desgostosa com o fato que ele poderia ter
passado para Eddie direto, mas não comentou sobre e fez o trabalho mesmo
assim. Não antes de dizer: - Você tem um dia para ler tudo. Faça qualquer
tipo de dano, e vai ser punido por isso. Eu sou o tipo de garota que gosto de
tudo que é meu organizado, limpo e seguro, então é melhor não me testar.
- Agora, - Electra chamou a sua atenção mais uma vez. – por que você só
tem cinco cartas?
Eddie sabia que seria aquilo. Ele quis muito pegar os papéis e fugir, mas
tinha plena consciência que não iria longe. Seria pego no primeiro passo
que desse, e odiava fugir. Odiava demonstrar fraqueza para quem esperava
e queria isso de si.
- Cala a boca. – Electra o cortou antes que Eddie perdesse todo e qualquer
autocontrole e pulasse em Akira. Aquele era o momento que Eddie decidiu
que Akira não merecia ficar vivo. Ou, pelo menos, ele merecia uma surra
que o impediria de falar para sempre. – Ela está ficando incontrolável.
Você não é o primeiro com uma história dessas, e eu preciso te alertar a me
contar, quando acontecer.
Eddie não respondeu, mas sua expressão gritava que ele não iria dizer nada.
Electra não precisava expulsá-lo do território dos Legados do Sono: Eddie
não estaria voltando para lá nunca mais, pois se voltasse, não seria nada
pacífico e comportado como estava sendo agora.
- É só isso? – Electra perguntou mais uma vez, e Eddie percebeu que ela
sabia que não era só isso.
Eddie teve que morder a própria língua para não deixar a sua ironia
costumeira transbordar.
- Eu não—
- Eu vou te dizer por que eu sou bem mais gentil do que você realmente
acha. E, - ela deu outro passo à frente, aproximando-se de Eddie de uma
forma que atravessou o espaço pessoal de Eddie. Não era a primeira vez
que fazia isso na conversa. Mas agora, ela estava mais intimidadora. – eu
quero respostas tão elaboradas quanto as que eu estou te dando. – ela
avisou baixinho, dura e intensa. Eddie não pode evitar o arrepio que lhe
causou. – O nome dele é Laz. Eu posso te passar a sala que você
normalmente o encontra, e é a sua responsabilidade conseguir acha-lo.
Agora, antes disso, eu quero a minha resposta. – Eddie franziu o cenho para
ela, ansiando pelo o momento que a garota iria finalmente se afastar e o
deixar respirar normalmente de novo. – Por que Milo adotou você, sendo
que ele nunca fez isso por ninguém?
O estômago de Eddie se revirou mais uma vez, com força. Ele acreditava
que, se tivesse comido naquele dia, já teria vomitado. Pelo menos estava
acostumado à fome e a fraqueza. Mas não com toda aquela reviravolta
emocional, aquele tumor que não parecia ter fim. Até mesmo seu coração
apertou de leve naquele momento.
- E é só isso que você sabe? – Electra arqueou uma das sobrancelhas. Eddie
assentiu, sentindo-se julgado em todos os ossos do seu corpo, até a alma.
Mentir para ela era como um teste de estresse cardíaco: Eddie ficou
surpreso por não ter tido um infarto ainda. – Ok. – ela finalmente disse,
afastando-se de si. Foi só nesse momento que Eddie pode respirar aliviado,
desesperado por ar. Electra estava o causando pânico naqueles momentos
tensos, Eddie que não havia percebido por questões de sobrevivência. –
Mais uma coisinha, Eddie, - a garota chamou a sua atenção mais uma vez,
fazendo Eddie entrar em pânico de novo. Ele a olhou, tentando não parecer
tão desesperado como realmente se sentia, e despreparado. Então, Electra
sorriu. – é melhor não mentir para mim. A coisa que eu mais detesto nesse
mundo inteiro é a mentira. – ela soou doce, com um sorriso meigo. – E eu
sempre descubro quando mentem.
O chão de Eddie foi retirado novamente, e ele teve certeza que aquele era o
primeiro pacto com o Diabo que faria repetidamente pelo o tempo que
passasse dentro daquele Inferno.
MILO
- Nem brinca Capitão Óbvio. – Reno deixou o rosto cair novamente sobre
os joelhos, com a voz engrossando enlaçada de fadiga. Nesse momento,
Milo percebeu que algumas partes da ilusão de Reno começaram a falhar
até se tornarem menos complexas. Era melhor assim: Criar imagens
realistas apenas gastaria as suas energias, e não era isso que Reno precisava
no momento.
Reno respirou fundo, erguendo o rosto amassado mais uma vez, para olhar
feio para Milo.
- Temos mesmo? Você não vai ter que ser convocado de novo?
Milo foi quem abaixou os olhos dessa vez, apertando os dedos uns contra
os outros, encarando o tecido falso do sofá falso. Ele e Reno se
encontravam naquela sala desde o começo da sua relação. Não era um
fliperama, na verdade era uma sala vazia, que Reno sempre alterava por
meio das suas ilusões. O nível de mudança que Reno causava na imagem
da sala dependia do quão triste, irritado ou cansado ele estava no dia.
- Eu não sei. – Milo foi sincero, como sempre era com Reno. –
Supostamente Tártaro já me convocou essa semana, mas... Eu não sei como
vai ser agora. Eu não sei o que ele vai fazer.
- Você não vai mais ficar desaparecido por meses, né? – Reno franziu o
cenho ao questionar. – Eu deveria ter perguntado isso antes.
- Como?
- No Eddie. – a voz de Milo era tão baixa quando ele disse isso que poderia
ter sido apenas um pensamento. – Tártaro quer que eu controle o Eddie.
- Milo...
O Controle era a mesma coisa que uma bomba sem timing dentro de Milo.
Não conseguia ver de outra forma. Era a representação mais clara que ele
era uma boneca em formato de arma. Quando Tártaro o criou
artificialmente, ele queria que a manifestação de Milo fosse a de controlar
outros Legados. E ele também queria total controle sobre a arma com essa
capacidade.
Milo era uma das piores criações do Complexo e sempre esteve ciente
disso.
- É claro que não! – Milo exclamou mais uma vez. – Por que acha que
estou o ignorando agora? Eu realmente... – Milo se perdeu de repente,
como se perdendo as forças. – Eu realmente... Só quis ajudá-lo. Mais nada.
- O que você—
Claro que Milo entendia. Ele era um Legado da Sabedoria. Desde quando
Reno agia assim?
- Essa situação ‘tá te afetando mais do que você quer admitir. – Milo
automaticamente abriu a boca para contra argumentar, mas Reno
continuou: - Você está fazendo coisas por ele que eu acho que não fez por
ninguém, por mais culpado que você se sinta com tudo aqui dentro.
- Reno. – Milo tentou soar repreensivo, sem entender exatamente o que era
que fervia dentro de si a cada palavra que saía da boca do irmão. E por que
estava tão fortemente ligado com o impulso de calar a sua boca. – Eu não
fiz e eu não sei nada dessas coisas por que eu quero.
- Ainda assim, ficar próximo só vai piorar tudo.
Isso fez com que Milo parasse por um instante, encarando os orbes
cinzentos intensos de Reno por trás das lentes dos seus óculos de armação
grossa. Foi como se a afirmação fosse anestesia no seu organismo, o
paralisando, mas o revirando ao mesmo tempo. Foi só nesse momento, algo
tão curto, que Milo percebeu como a sua mente estava virando uma
bagunça.
Ele nunca foi assim. Ele era a representação mais fiel de gelo em uma
pessoa. Seus pensamentos eram calculados, com uma grande porcentagem
de respostas e perguntas certas, com nenhum espaço para sentimentos e
atitudes impensadas. Controlava as próprias sensações da mesma forma
que alguém abaixa ou aumenta o volume de uma televisão.
Porém, quando decidiu ajudar Eddie, quando decidiu fazer a coisa certa,
Milo não estava seguindo nenhuma da programação de pensamentos
corretos da sabedoria causada pelo o seu elemento, pela a sua
artificialidade orgânica, como imitador de humanos. Quase como se só
tivesse seguindo os seus instintos, fazendo algo que queria fazer e não que
precisava.
E Milo nem poderia mentir e dizer que estava só notando agora, pois ele
estava consciente desde o primeiro momento. Só continuou mentindo e
mentindo e desviando desses fatos, para não torna-los reais e assustadores
como estavam sendo agora, quando Reno, e repito, Reno, forçava para que
lidasse com eles.
- Você mesmo disse: Tártaro e Gaia vão te punir de uma forma ou de outra,
eles sempre acham um motivo. Se você não quer mais participar dos
esquemas desses caras, então não participe.
- Você se importa?
- Não. – Milo não tinha que pensar para responder àquela pergunta. – Não.
Eu não sou um humano, e mesma que eu sinta a dor, eu não lido com ela do
mesmo jeito que vocês. – Milo começou a encarar o chão, levando as mãos
eternamente frias ao rosto. Ele não conseguia se esquentar, ele não possuía
peso como os humanos.
- Você tem razão. Em tudo. – a voz de Milo saiu dura quando ele falou
novamente. – É melhor eu ser quem sangra do que fazer as outras pessoas
sangrarem.
Então, Reno pareceu dolorido e cansado e pequeno como o jovem que ele
realmente era, machucado e quebrado, talvez além de reparos. Ele com
certeza não se reparavam, e apenas contribuía para abrir mais as próprias
feridas.
- A gente é tão fudido. – a voz dele saiu chorosa e fraca, entrecortada por
respiração. – Eu queria muito não ter que dizer nada disso para você. Puta
merda, como eu queria não estar nessa situação de merda. Eu sinto muito.
- Ah, Reno. – Milo exclamou emocionado, aproximando-se na hora de
Reno e encostando-se ao corpo dele, abraçando-o de lado. – Você não tem
culpa de nada.
- Então vamos tentar não nos machucar mais que o necessário. – Milo
concluiu dando um sorrisinho amarelo e machucado, fazendo Reno apenas
balançar a cabeça negativamente, lutando ao máximo contra as lágrimas. –
É a única coisa que podemos fazer. – Milo fez carinho nele. – Mas sobre o
que você disse sobre pressentimento... – Milo precisava perguntar se
corroendo de curiosidade. – O que isso quer dizer? Aliás, por que você está
tão mal, mais que o normal?
Mas agora ele parecia mais com ele mesmo: Raivoso e indignado.
- Ele não é uma pessoa ruim, eu posso admitir isso. – Reno grunhiu. – Mas
isso não quer dizer que o filho da puta não representa coisas ruins, e não vá
fazer coisas ruins. Se eu estou cansado assim agora, é por conta dele. Eu
não sei todos os detalhes da vida dele para gostar dele, como você. Eu não
crio empatia tão fácil. – Milo não gostou do comentário, remexendo-se em
seu lugar. Mas não conseguia contrariá-lo. Então, óbvio, a verdade doía.
Tinha plena consciência disso. – Então é óbvio que eu estou com um
pressentimento ruim, e óbvio que eu quero você longe.
- Por acaso você... Sonhou? Por conta dele? – Milo teve que perguntar
cuidadoso e lento, falando com um animal arisco. Reno só o encarou, e
Milo não precisou da resposta verbal, não àquela altura da relação dos dois.
Legados do Sono não sonhavam, não aleatoriamente. Eles escolhiam em
que tipo de fantasia teria durante o próprio sono, como um refúgio, um
mundo onde tivessem total controle. Se acontecia um sonho de fato, era um
pesadelo, uma prisão criada para si ou algum tipo de previsão. Reno
costumava ter os dois, mas fora do Complexo. – E foi uma previsão?
Milo tinha que insistir. Era curioso demais para não perguntar e tentar
arranjar respostas de algum jeito. Tornava-se impressionante como ele não
ultrapassava os limites impossíveis de Reno, e não o irritava com o seu
jeito. Com eles era diferente, por quase razão nenhuma. Funcionava por
que decidiram assim, e agora iria continuar assim.
Milo assentiu, sabendo que o mais sábio a se fazer era parar e respeitar os
limites dele. Iria saber uma hora ou outra. Também acredita que, no
momento que Reno tentasse ocultar algo importante, Milo iria saber. Não
parecia ser o caso agora, então Milo deixou passar.
Mas era apenas o seu carma agindo: Afinal, ninguém estaria ali e o
Complexo não teria sido criado se não fosse por sua existência. Milo
aceitava e não lutava contra: Não tinha esse direito e tinha consciência. Não
quando não passava de um espião sujo, e continuava traindo todos ali
dentro, enquanto era o real motivo de ficarem.
Mas o que ele poderia fazer? Não havia como levar os Legados normais
para onde os Primórdios ficavam. Não possuía nenhuma informação que os
ajudasse a ganhar uma luta contra Tártaro ou Gaia, ou que realmente
destruísse o lugar. Milo estava tanto no escuro quanto os outros, mas em
uma posição diferente.
E isso só ficava mais evidente toda vez que interagia com Eddie. Ele era
seu oposto: Recém-chegado, ingênuo, esperançoso e efusivo. Apesar o
atrair, Milo não deveria chegar perto. Por isso não se surpreendeu ou lutou
contra quando Reno constatou apenas o óbvio. Milo precisava ser
inteligente, precisava fazer a coisa: E era isso que iria acontecer
independente de qualquer conselho.
- O que houve? – Milo teve questionar, sabendo que Reno não iria falar
caso não especificasse. O sorriso irônico de Reno morreu, assim como sua
energia.
- Como é?
- É isso que você ouviu, não sou eu inventando. A reunião dele vai fazer
um concurso em que a apresentação mais aplaudida vai ganhar cinquenta
cartas, e é claro que quem está desesperado se vê obrigado a participar de
um esquema merda desses. Se ele não cobra extras para ajudar a pessoa
com a apresentação, ela ganha a confiança, mão de obra de graça e
influência.
- Esse é o maior problema: Não se sabe ninguém disse, mas eu sei que a
Electra o apoia. Ela vai usar da desculpa para extorquir as pessoas, como
ela sempre faz. – era impossível medir o nível de desgosto que Reno
expressava naquele momento. – Então ou ninguém quer se envolver com o
problema ou ninguém a enxerga. Todas as opções são uma merda. – ele
bufou.
Houve um momento de silêncio, enquanto Milo digeria as informações
novas. Mas ele ainda tinha uma pergunta entalada na garganta, o que
normalmente nunca acontecia. Possuía poucos complexos em relação à
vocalizar os pensamentos, pois sabiam que estavam certos maior parte do
tempo. Normalmente eram as pessoas que tinham dificuldades para falar
consigo.
- Eu adoraria te dizer que ele deixou de ser controlado por nós, mas isso é
mentira. – Reno simplesmente o olhou, a voz com falsa neutralidade, os
olhos opacos e vazios para que não quebrassem. – As apostas continuam, e
continuam piores, e ter informação em todo mundo só vai ajudar nos
principais apostadores.
- Electra e Diego.
- Yep. Eles são os mais perigosos no atual momento, com a querida ajuda
da Natasha, e eu acho impossível o seu furacão em formato de gente não se
envolver com eles. Ou, sinceramente, não ir direto para os Jogos da
Punição.
Era por isso que se martirizava tanto e esse martírio se estendia por toda a
sua existência, nunca o dava paz. Milo era um escravo para o próprio
conceito que o concebera. Assim como ele era um escravo para todo o
resto: Tártaro e o Complexo, que delimitavam o seu mundo. Não havia
mais nada atrás dessas duas figuras enormes, obscurecendo sua visão.
- Não dá para evitar que o Eddie conheça da reunião para sempre, Milo.
Milo apenas o olhou, aproveitando-se bem do fato de ser uma vida artificial
para não registrar nenhuma das suas palavras e nem leva-las em conta. Ele
sabia que estava certo, mas Milo também não estava errado: Ele estava
criando desculpas para um processo, porém essas desculpas não deixavam
de serem válidas e verdadeiras.
O único meio dele se incomodar com o que Reno dizia era perder para os
próprios sentimentos, que ficavam enterrados no fundo da mente, trancados
a sete chaves, e quase nunca reagiam com as pessoas. Ou não deveriam,
pelo menos.
O fato de eles estarem reagindo tanto nas últimas quarenta e seis horas,
ressurgindo do nada, o deixava confuso e inseguro.
Reno o olhou feio, mas antes que pudesse criticá-lo por suas atitudes, o
sinal do Complexo tocou sobre os dois, praticamente estourando seus
tímpanos. Ambos estavam acostumados. Agora era o terceiro horário, e
eles precisavam retornar.
- Nós temos que ir. – Milo murmurou, erguendo do sofá com movimentos
letárgicos, odiando a ideia de se levantar do lugar confortável e deixar a
bolha segura que criou com Reno. Reno era do mesmo jeito, ou até mesmo
pior, demorando para se levantar, apenas o fazendo quando Milo lhe
ofereceu à mão. – Você não vai jantar?
- Você é um poeta quando quer desmotivar alguém. – Milo deu uma leve
risadinha. Reno pareceu orgulhoso ao ouvir isso. – Eu não tenho certeza. –
Milo foi sincero, como Reno sabia que faria. – Mas nós temos que tentar do
mesmo jeito. E se não der certo, morrer tentando nunca foi estranho para
nós, não é assim?
EDDIE
Eddie estava tendo dificuldades para acreditar no que estava lendo naquele
arquivo oferecido por Electra. Eram relatos completamente realistas, e por
isso tornava tão difícil de acreditar neles. Pelos os seus cálculos, foram
mais que dez rebeliões em um curto período de tempo. Isso significava que
nem mesmo os Legados estavam presos no Complexo há muito tempo.
As rebeliões serviam mais como lições de como não fugir. Não adiantava
quebrar as luzes, os canos no teto ou as ventilações para que o Complexo
parasse de funcionar. A escuridão não tornava mais fácil escapar. Não
adiantava fazer greve de fome, pois alguém sempre cedia e se ninguém
cedesse, iria ser forçados a ingerir alimentos uma forma ou de outra. Não
adianta tentar quebrar as paredes, pois elas possuíam várias camadas e
demoraria muito para que você chegasse do outro lado. O outro lado era
apenas terra, já que estavam debaixo da terra. Não adiantava quebrar as
câmeras, pois para cada câmera quebrada havia um Praticante próximo de
onde você estava. Não adiantava quebrar nada do Complexo, basicamente.
Não os levava à algum nenhum, e dependendo do que era quebrado, não
rendia nem mesmo punição.
Hoje em dia, eles sabiam que existia uma parte do Complexo que remetia à
sua primeira construção, que não pode ser destruída por ajudar a sustentar o
ambiente debaixo da terra. Mas só tinham acesso ao começo dessa parte, e
não havia nenhuma resposta ou modo de fuga por lá. Eddie não deixou de
marcar a informação, a considerando importante de qualquer jeito.
As rebeliões sobre as quais Milo havia lhe contado estavam ali: Quando
eles não tinham um sistema de relações, e estavam agindo por contra
própria, sem se preocupar com os outros. Os genocídios eram muitos para
que Eddie conseguisse contar. A lista de nome de crianças mortas o deixou
enjoado e em pânico, e ele teve que lutar mais uma vez para não vomitar de
barriga vazia, ficando mais fraco a cada instante que passava. Mais fraco
fisicamente e emocionalmente, naquele inferno que sugava a sua energia
vital, praticamente.
Mas Eddie nem estava pensando em como iria fazer para conseguir comida.
Não era uma das suas preocupações.
Eddie conseguia dizer que eles queriam criar assassinos. Mas quando os
Legados se matavam, eram punidos. Não fazia sentido. Nos relatórios
também estavam escrito que as épocas de rebeliões eram as de temporadas
de Jogos de Punição mais longas: Aqueles que se destacavam nas rebeliões
morriam de forma escandalosa nos Jogos da Punição.
Outro motivo deles desistirem das rebeliões, também. Até mesmo quem
não se envolvia acabada sendo punido, indo para os Jogos da Punição
também. Houve tentativas de escapar pelos os Jogos da Punição, pois
ninguém sabia dizer se ele acontecia dentro do Complexo ou não. Não
funcionaram, nem mesmo durante o jogo e nem mesmo fora dele.
Faziam pelo menos seis meses desde a última rebelião, contra o Complexo
ou contra si mesmos. Desde então, os Legados estavam se forçando a se
acostumarem com o sistema de relações que foi designado para si. Os
relatórios de Electra eram muito completos: Ela tinha nomes, descrições
curtas, mas com todas as informações importantes, datas e números. Não
parava só nas rebeliões em si, e sim no que acontecia depois delas também:
Nas punições, nos assassinatos para formar exemplos, na tortura pública.
A violência naqueles papéis era pior do que toda a violência que Eddie
experimentou e viu na rua. Era a violência que vinha com subsídio
tecnológico, ideológico e físico. Era a violência que você não conseguia
quebrar, como o Complexo inteiro: Um monstro gigantesco com várias
cabeças que, toda vez que se cortava uma, crescia outra maior. Chegava a
um ponto que não era mais possível enxergar o rosto desse monstro, de tão
grande e monstruoso.
Eddie levou um susto e teve que parar de ler quando um objeto não
identificado caiu à sua frente com um barulho terrível. Que, parando para
analisar melhor, parecia até humano?
Eddie olhou para cima, para tentar identificar o que estava acontecendo, e
acabou achando um túnel de ventilação aberto. Era grande o suficiente para
abrigar uma pessoa pequena, e foi isso que achou ao abaixar o rosto para
identificar quem havia caído: Um garoto baixinho, gorducho e negro de
cabelos lisos da mesma cor que iam até a sua nuca, machucado e
resmungando de dor enquanto se sentava.
O garoto deveria ter, pelo menos, quebrado o pescoço pelo o jeito que caiu.
Se Eddie conseguiu entender direito o que havia acabado de ver em alta
velocidade, a cabeça do garoto foi a primeira a entrar em contato com o
chão de metal, e seu pescoço entortou enquanto o resto do seu corpo
chegava ao chão.
- Desde que você quebrou o pescoço caindo dali. – apontou para o túnel
aberto da ventilação. O rosto do garoto se avermelhou. – Que porra foi
essa? – Eddie não achou outra forma melhor de questionar.
O garoto se ergueu, mostrando que era bem mais baixo e que, realmente,
não havia quebrado nada. Nem um braço, nem uma perna. Estava
perfeitamente bem. Eddie franziu o cenho, sentindo que iria começar a
tentar adivinhar que tipo de Legado as pessoas eram, e que não iria
conseguir, toda vez.
Ele tinha certeza que não conseguiria sobreviver àquele tipo de coisa.
- Você é um Praticante?
- O quê? Não! Claro que não! – ele pareceu ofendido com a pergunta. – Eu
nem tenho uma arma!
- Sim.
Isso fez o garoto arregalar os olhos. Eddie percebeu que dizer que era novo
para qualquer criança presa no Complexo significava que ele havia matado
alguém há pouco tempo. E isso assustou o garoto. Eddie franziu o cenho,
questionando-se aquele garoto também não havia matado alguém. Milo
deixou a entender que ele era um dos únicos não assassinos, mas será que
aquilo era verdade?
- B-Bom, - o garoto chamou a sua atenção mais uma vez. Foi só nesse
momento que Eddie percebeu que eles estavam em um silêncio tenso, sem
saber mais o que dizer. – meu nome é Lázaro, todo mundo me chama de
Laz, e eu faço umas coisas aqui e ali, eu não sei o quanto você já sabe, mas
é isso, gostaria muito que não contasse para ninguém de eu caindo e
quebrando dessa ventilação, se puder fazer isso vou te agradecer muito,
agora eu preciso ir obrigado pela a atenção, tchau, tchau!
Foi só quando ele se virou para ir embora que Eddie conseguiu reagir:
- Espera. – Eddie teve que exclamar. O garoto parou, mesmo não querendo,
e Eddie agradeceu por não ter que correr atrás dele. – Qual o nome que
você acabou de dizer?
Eddie piscou.
Olhou ao redor, e percebeu que estava ali. Foi sorte, pois andava
completamente distraído enquanto devorava os papéis que Electra o
entregara sedento e faminto por respostas. Se, pelo menos, sua fome fosse
só disso.
- Só que não! Têm ‘um ‘monte de ‘gente sem grupo, e eles não são
chamados de Coringas. Eu sou chamado de Coringa por que me fazem de
palhaço. – bufou ao final da frase. – Muito bom quando deixam bem claro
para todo mundo.
Foi nesse momento que Laz percebeu que Eddie estava confuso e falava
sério. Laz abriu a boca para responder, provavelmente ter outra hemorragia
verbal, mas ele se cortou ao olhar para trás de Eddie. Ao se virar, Eddie
também começou a ouvir os passos de Praticantes que rondavam a área,
aproximando-se dos dois. Laz abaixou a cabeça, e depois fez um sinal para
que Eddie o seguisse, sem falar nada.
Uma coisa todo mundo tinha razão: Eddie ficaria marcado facilmente pelo
o jeito que agia.
Então, se aquele garoto se preocupava com isso, Eddie não iria contra ele.
E ele estava curioso para entender quem Laz era, o que ele fazia, e por que
diabos ele seria considerado um palhaço. E se esse era o caso, se Laz era
um peão e nada mais que isso, Electra queria que Eddie fosse o mesmo. Ou
já o via como o mesmo.
O que não fazia muito sentido, considerando que Electra rejeitou a ideia de
ele trabalhar consigo. Eddie precisava começar a prestar mais atenção e ser
mais sagaz, pois não sabia realmente a intenção de ninguém, e isso abria a
abertura para que as pessoas fizessem o que queriam consigo. Não iria
deixar ninguém usá-lo, ou fazê-lo de idiota.
Eddie se forçou a andar em um ritmo normal atrás de Laz. Ele não olhou
mais para trás, provavelmente para não levantar suspeita. Eddie olhou para
cima discretamente, vendo um número alarmante de câmeras os
observando naquele momento. Será que o jeito que já o vigiavam não era o
suficiente? Por que eles precisavam de tantas coisas?
Não teve tempo para desmaiar por anemia como queria, pois os passos
continuavam se aproximando, mesmo que na mesma velocidade, era o
suficiente para disparar pânico e adrenalina por ele e, como pode perceber,
por Laz também. Ele estava completamente arrepiado e tremia, com passos
desengonçados, como se tivesse esquecido como andar.
- Vem para cá. – Laz perdeu todo o autocontrole que conseguiu reunir na
caminhada do corredor, puxando Eddie para à parede ao lado da porta,
longe do visor de vidro que ela tinha. Eddie não teve tempo de questionar,
pois Laz colocou o dedo sobre os lábios e lhe pediu silêncio com urgência.
Eddie pode ver, com dificuldade de onde estava contra à parede, pelo o
visor da porta a silhueta dos dois Praticantes de uniforme escuro passando.
Porém, eles pararam à frente da porta, e isso fez com que seu coração
perdesse uma batida.
Eddie demorou um pouco para responder, em seguida. Laz ficou cada vez
mais desconfortável, não parecendo saber lidar muito bem com silêncio.
Mas Eddie gostava de organizar os pensamentos antes de falar, quando não
estava raivoso, e estava sendo difícil por conta da anemia que sentia. Não
sabia quanto tempo havia passado, mas tinha certeza que haviam sido horas
desde a última refeição que tivera.
Eddie imaginou que ele tinha pensado em si mesmo, mas ainda assim.
Duvidava que o pensamento inicial de Laz fosse em si, e não nos outros,
quando queria ajudar. Se fosse, por que as pessoas, supostamente, o fariam
de palhaço? Ele tinha a aura de alguém que era mais abusado do que
conseguia abusar, e por isso Eddie acabou gostando dele um por cento a
mais do que todo mundo que conheceu até agora.
Com todo mundo, Eddie estava tenso e tinha que se segurar para não
cometer um homicídio ou atravessar os direitos humanos de alguma forma.
Com Laz, Eddie precisava tomar cuidado para não assustá-lo. Parecia cem
vezes mais fácil. Só Fiona, até agora, tinha sido uma experiência parecida.
E Milo, dependendo do momento.
- Ah. – Laz coçou a nuca, nervoso. – Elas são salas muito aleatórias, na
verdade. Não tem nada aqui, certo? – a pergunta era retórica, por isso Eddie
não o respondeu, até o momento que Laz se ergueu e bateu com o punho de
leve em uma parte da parede. – Mas não é uma condição permanente. Não
aqui dentro.
Eddie teve que obedecer, por que realmente iria ter um ataque se
continuasse ofegante do jeito que se encontrava.
Laz pareceu meio confuso com a lógica de Eddie: Ele estava assustado,
mas ainda assim queria saber mais.
- Tem uma série de códigos que você coloca aqui. – apontou para a trava
tecnológica. – Cada código é um objeto. Quando você o coloca certo, uma
das partes das paredes se abre e o colocam aqui dentro.
- Isso é loucura. – Eddie estava em choque. – Isso não pode ser real. Como
diabos isso funciona?
- Ei! – Laz exclamou ofendido. – Eu sei muita coisa para alguém que não
tem recursos nenhum! Eu sou um Legado da Construção, me respeita!
- Quem não sabe nada? – Laz resmungou em um fio de voz, com medo de
Eddie o ouvi-lo. Eddie o ouviu, mas não achou necessário comentar sobre.
– É o meu elemento: A Construção. O que permite as pessoas usarem o
ambiente em que elas vivem para construírem coisas. Mas eu sou o único
nesse lugar inteiro, e vendo pelo o jeito que você ‘tá confuso, eu vou
continuar sendo o único.
- E-e d-dai? Foi a única solução lógica que eu achei para alguém te mandar
falar comigo.
- Electra.
- Ah, claro. – Laz deu outro suspiro longo e sofrido, descruzando os braços.
– Olha, eu não tenho grupo como muitos Legados aqui. Mas eu dei sorte
por que eu consigo ser útil por conta do meu Elemento. Eu consigo
construir coisas, o que é meio óbvio, e também consigo entender como as
coisas funcionam. Quando eu entendo como algo funciona, eu posso imitar
perfeitamente. Ah, eu também sou muito resistente, o que explica eu não
ter quebrado o meu pescoço naquela hora. – Laz piscou, tomando um susto
com nada, quando percebeu que estava falando demais. – Enfim, ok, você
não quer saber da minha lista de manifestações. – Eddie o estranhou. – A
questão é: Já fazem meses que eu comecei a tentar entender como o
Complexo funciona, e apesar disso não ter dado tão certo quando eu queria,
os outros grupos se interessaram por isso. Eu sei todos os códigos que você
pode colocar nas salas, por exemplo, já que eles não disponibilizam para a
gente, só da para saber se você for ‘nas apresentações dos Praticantes. E eu
estou mapeando o lugar, também. Ou tentando. – Laz se pegou tagarelando
mais uma vez, e deu uma pausa, mordendo o lábio, olhando para Eddie
assustado. Eddie não fez nada, o esperando terminar, mesmo que sem
paciência. Laz continuou, mas inseguro: - Eu faço algumas coisas para
grupos em troca de cartas, ou passo algumas informações. Mas eu não
tenho a proteção de ninguém, eu não trabalho para ninguém. E “Coringa” é
só uma piada sem gosto.
Eddie piscou.
- O-oi? – Laz ficou confuso. Ele esperava bem mais perguntas ou qualquer
outra reação de Eddie além daquela. Eddie insistiu na pergunta:
- Como você faz em relação aos Praticantes? – tentou não soar muito
raivoso, mas era impaciente e odiava repetir o que dizia.
- Hãã... Eu... Eu tenho que obedecer aos caras, para não dar problema para
mim. Eu os evito o máximo que eu posso, mas quando eles aparecem, eu já
sei que vou ser proibido de alguma coisa. Pelo menos eles nunca me
puniram então me acham inofensivo. Eu não... – Laz engoliu à seco,
parecendo prestes à falar algo difícil. – Eu não faço nada muito útil. –
parecia que o motivo principal de falar aquilo era se machucar, e Eddie
quis soca-lo por o garoto fazer isso consigo mesmo. Por que ele se
machucava na frente das pessoas? O instinto natural de Eddie foi o de
ajudá-lo.
- Por que você acha que a Electra me mandou falar contigo, se não existe
mesmo um sistema de coringa?
- Eu não entendo nem a mim mesmo, nunca iria entender a Electra. – Laz
foi super sincero, abraçando o tronco. – Eu gostaria de poder te ajudar, mas
eu não posso. Se você for ficar sem grupo, precisa fazer alguma coisa que
te torne útil e que te faça ganhar cartas. Não dá para juntar comigo, pois eu
não posso te garantir proteção nenhuma, e você também não vai conseguir
me acompanhar no que eu faço, então—
Laz não sabia que, para Eddie, tudo que ele fazia era perfeito. Sempre
ouviu dos seus professores particulares (quando pode estudar) que tinha
aptidão natural para construir e entender o sistema das coisas, e por isso seu
maior sonho era fazer engenharia. Era por isso que estava tão curioso em
relação ao funcionamento do Complexo, e se pudesse estuda-lo junto com
Laz, poderia achar um meio de fugir.
Era verdade que não tinha a mesma resistência de Laz, mas acreditava que
saberia ser cuidadoso. Realmente não poderia garantir se lidaria bem com
os Praticantes ou os grupos, mas Laz não precisava saber disso, e Eddie
poderia ignorar essa parte. Como as cartas. Sinceramente, não ligava para
elas. Queria ajudar mesmo que Laz não dividisse carta nenhuma consigo.
O mundo ficou preto, de uma forma que ele não conseguia enxergar, e
Eddie ficou fora por alguns instantes até conseguir retomar a consciência,
encarando o teto acima da sua cabeça, com canos e uma brancura doente, a
luz forte demais machucando seus olhos.
Tudo era pior naquele lugar. Eddie não deveria estar surpreso.
- Eu sou acostumado com fome. – Eddie resmungou. – Não sei por que
estou reagindo assim.
- Por que ninguém deveria passar fome, de nenhum jeito? – Laz retrucou
com tom óbvio. Eddie parou de abrir o saco para o olhar feio. Laz se
arrepiou e ficou nervoso novamente, perdendo a confiança. – Hãããã... S-só
que... Se você está com fome, não deveria ficar bravo consigo mesmo, e
sim por não ter comida.
- Eddie. – resmungou após engolir outra batata. Comia de vagar, pois sabia
que seu estômago precisava se acostumar: Não era bom se encher de
comida após passar fome. – E eu também não quis dizer.
- Uma hora todos nós voltamos. – Laz não pode lhe oferecer muito consolo.
– Eu também tenho que ir. Do jeito que você ‘tá mal, é melhor que volte
para a cela antes que te forcem a ir para a enfermaria.
- Eu não quero estar aqui. E se for para ficar aqui, eu também preferia nem
estar vivo. – Eddie resmungou. Laz ficou quieto, e isso fez Eddie olhar para
ele, não esperando o silêncio. O garoto parecia chocado e... Preocupado ao
mesmo tempo. Como se tivesse visto um ato de crueldade.
Laz não respondeu, mas Eddie pode perceber que ele não concordava sobre
não precisar. Isso o fez lembrar-se de Milo, e do jeito que ele era
responsável. Então ele não era o único. Na verdade, as pessoas decentes
daquele lugar ajudavam umas às outras.
Era difícil acreditar que havia crianças não insanas ali dentro o suficiente
para serem altruístas.
Eddie queria voltar. Queria voltar desesperadamente. Ele nunca achou que
o viaduto podia ser melhor do que qualquer lugar, mas ele era. Lá ele tinha
um grupo e sabia o que estava fazendo, o que podia acontecer ou para onde
poderia ir. Tudo era melhor do que ficar preso com crianças insanas, assim
como ele.
E não teria nada a se fazer contra, basicamente. Eddie estava preso e, por
mais que demorasse logo a ficha iria cair cem por cento e não teria outra
coisa a fazer além de aceitar.
RENO
Reno grunhiu.
- Milo, a única coisa que eu fiz desde o começo do mês foi à checagem
médica obrigatória. Eu nem vi se eu preciso reabastecer a minha comida ou
não.
- É melhor você olhar isso, então. – Milo chamou a sua atenção ao dizer. O
pátio das celas estava relativamente cheio de Legados, nas rampas e no
espaço grande. Logo o elevador atrás deles se fechou e foi para outro andar,
nunca parando de funcionar com o tanto de pessoas que precisava
transportar. – Compre comida o suficiente e me diga quantas cartas você
tem.
- Mais alguma coisa, mamãe? – Reno ironizou, fazendo uma voz nasal para
dizer a palavra “mamãe”, soando mais como um babãe. Milo abriu um
sorriso, e empurrou Reno de leve pelo o garoto o divertir até mesmo
naquelas situações.
Reno se lembrou daquele dicionário merda que leu uma vez em sua vida
sobre as cores: Amarelo representa euforia, e quão mais claro fica, mais
eufórico ele é. Fechou a cara, mais do que já estava, para a garota por isso.
Uma merda. Não era útil em nada. Se Reno tivesse algo do tipo, rasparia.
Reno pulou, desviando no tempo certo de ser tocado pela a raposa sagaz
que tentou emboscá-lo por trás: Ao olhar, ele viu um garoto que não era
muito alto, e sabia que ele já tinha vinte e sete anos, mas parecia ter
dezessete. Tinha covinhas proeminentes, olhos vivazes em verde e cabelo
castanho que cobria a testa.
Ele sorriu, mostrando os dentes, para Reno ao trocar olhares com ele. Tinha
caninos afiados, que reluziam à luz do Complexo por serem muito brancos.
Tudo naquele garoto gritava galã de cinema, um James Dean mais bonito e
mais carismático. Mas era apenas uma imagem bonita, pois Reno podia
comprovar que aquele era um dos Legados mais podres do Complexo.
- Como é?! – do jeito que Fernanda se virou raivosa para ele, ela ouviu e
muito bem sim. Diego cortou o momento mais uma vez rindo: Sua risada
era contagiante e animada, como a de uma criança inocente. Era tudo
treinado. Reno sabia e isso apenas o enjoava.
Diego era um panaca que não se ofendia com praticamente nada, então era
a única parte boa de interagir com ele: Reno sempre podia gastar os seus
sentimentos à vontade sem se preocupar com nada. Ele que não iria perder
a oportunidade, se iria ser torturado de qualquer jeito.
- Ahh, - ele fez decepcionado. – mas você não toca super bem? Eu
realmente queria te ouvir tocar, Milo... Para matarmos as saudades.
- Ah, vai se fuder! – Reno realmente tentou, mas ele não nasceu para não
reagir que nem Milo. Sabia que dava exatamente o que Diego queria: O
drama. Ele era como um verme que se alimentava das brigas entre as
pessoas. – Como diabos você sabe que o Milo toca? Se ele disse não, então
é não, porra, e para de encher o nosso saco!
Era claro que ela defendia. Aceitar que a reunião não era boa, era aceitar
que ela não era boa e nem fazia nada de útil: Fernanda era uma Legado da
Expressão e ajudava com exatamente tudo dentro da maldita reunião que
eles promoviam cada vez há duas semanas. Era, basicamente, um momento
de confraternização em que ocorriam apresentações artísticas, em que todos
poderiam participar.
Era horrível. Coisa de filme de terror ocultista dos anos oitenta, só que com
menos gore explicito e mais vergonha descabida, vergonha de quem fazia e
vergonha de quem era obrigado a ver, tortura do fim até o final.
E Milo não oferecia, pois sabia que não era sábio, não na situação que se
encontrava. Mas com ele, ofereceu e até o aceitou a aceitar. Milo tinha que
se forçar, na verdade, para se afastar de Eddie e não continuar o ajudando.
Enquanto com que Fernanda, seu lado racional vencia e ele tentava se
afastar várias vezes, mas não conseguia totalmente, pois não queria quebrar
mais a garota, culpando-se por todos os machucados dela.
- Bem, já que você não vai poder ir, - Diego interrompeu a fuga dos dois,
com a voz pensativa. – você pode chamar o garoto novo que chegou ao seu
lugar? – ele riu ao questionar por fim.
- O quê? – Milo teve que perguntar. Reno sentiu medo de ele estar sem
reação. Se Milo não sabia como lidar, eles estavam ferrados.
- Olha, ele ficou sem palavras. – Diego comentou vitorioso, mas divertido
de forma leve e casual. Fernanda também estava surpresa e confusa, com
mexas do cabelo se tornando amarelas, provavelmente por conta do alarme
e curiosidade que sentia. – O garoto que você está cuidando desde ontem.
Você sabe que ele precisa vir para a reunião, certo? Ele vai ficar marcado
se não for.
Reno estava lutando muito contra o pânico ali. Olhava para Milo
desesperado, esperando alguma resposta inteligente. Mas Milo não
retribuiu o olhar, mesmo que o sentisse. Ele se virou novamente na direção
de Diego, mas sem se aproximar, tentando produzir compostura para
encará-lo.
Então Reno se lembrou dele dizendo: Eu não vou deixar que Diego chegue
perto dele também.
- Eu não vou ser o seu garoto de recados. – foi sucinto e direto, com a voz
firme e os olhos sérios, sem demonstrar nada que Diego queria. –
Esqueceu-se de como as pessoas chegam aqui? Você não quer um
assassino novato na reunião.
- Mas nós somos todos iguais. – Diego o olhou confuso dessa vez. – Ele já
deveria ter se acostumado. Se não, a reunião vai ser um bom exercício de
convivência! Se você se importa com ele, já que decidiu roubar o trabalho
de Electra, então por que não pode fazer isso? Eu preciso dizer, eu
esperava isso mais do Reno do que de você, se importar tanto com alguém
assim... Nem parece natural.
Se você prestasse atenção aos detalhes do que Diego dizia, pois tudo que
ele falava era friamente pensado e calculado, poderia notar várias piadinhas
sem gosto ali e aqui e, infelizmente, Reno sempre foi bom em ler as
pessoas e ler entre as informações. Por isso, interagir com Diego por tanto
tempo estava o matando.
Eles precisavam sair logo dali. Milo tinha que sentir a sua ansiedade àquela
altura.
Milo fez o mais sábio: Pegou o pulso de Reno, que já estava ao seu lado
àquela altura, e o levou para longe dali, em direção à cela de Reno e Eddie.
Reno não reclamou, seguindo-o de perto, sem conseguir evitar olhar para
trás, vendo um Diego com um sorriso digno de vilão de novela os
encarando fixamente, e uma Fernanda assustada, confusa e desapontada ao
seu lado, deixada para trás.
Foi só quando eles chegaram à cela, de fato, e a porta fechou-se atrás deles
que Milo soltou Reno. Ele caiu no chão logo em seguida, com as costas na
parede. Levou as mãos ao rosto, a expressão da pura confusão e herói
trágico. Reno só voltou a respirar quando teve certeza que estava seguro em
um lugar pequeno e mais confortável, vazio a não ser por ele e Milo.
- Você o conhece?
Laz apertou os lábios nessa hora, com uma expressão conflitada. Ele
enterrou as mãos nos bolsos do casaco que usava, parecendo nervoso.
Eddie percebeu que Laz estava sempre nervoso, e ele sempre colocava as
mãos para dentro do casaco. Provavelmente para que ninguém notasse o
jeito que mexia com elas, quase sem controle.
Eddie não sentiu tanta curiosidade, como costumava ter para tudo, em
relação a Reno com os outros. Sentia que iria acabar descobrindo por ele
mesmo, uma hora ou outra, e não tinha pressa para isso. Não parecia
importante. Ou talvez estivesse pensando totalmente com a sua anemia, e
não com um processo razoável de ideias.
- Bom, é melhor você ir antes que o sinal do quarto horário toque. – Laz o
trouxe de volta para a realidade, ansioso. Quase não havia mais Legados
pelo o pátio, o que era muito bom. Eddie não viu ninguém conhecido, e
nem um Praticante, e se sentiu mais tranquilo. Não muito, mas ainda assim.
- Valeu. Por tudo. – murmurou, segurando os papéis que Electra havia lhe
dado com força contra o corpo. Laz só pareceu ter percebido os papéis na
mão do garoto naquele momento.
- O que é isso? – questionou curioso, apontando, após assentir em resposta
ao agradecimento de Eddie.
- Ah, você vai ter que devolver amanhã, não é assim? – Laz piscou e Eddie
assentiu. – Eu posso fazer isso por você. Eu vou ter que ver a Electra de
qualquer jeito.
Eddie não era bom com interação humana. Nunca soube fazê-la, então
precisava das desculpas. Se ele tivesse sorte, conseguiria encontrar Laz ao
mesmo tempo na biblioteca, e poderia tentar conversar com ele novamente
sobre ajudá-lo. Se tornar um Coringa. No atual momento, era a única coisa
que conseguia pensar que queria fazer: Mapear e conhecer o Complexo,
entender como ele funcionava.
- Bom, se você insiste. – Laz desistiu facilmente, o olhando mais uma vez
com olhos negros curiosos, antes de se virar e ir pelo o outro lado da
rampa, subindo os andares de cela em seguida. Eddie o observou ir até o
momento que começou a ter vertigem novamente por levantar a cabeça
para o alto, decidindo que aquele era o momento que ele deveria entrar.
Aquele dia havia acabado, pareceu ser super-rápido, mas era melhor que
Eddie não pensasse assim. Havia sobrevivido o primeiro dia e feito
progresso, de certa forma.
Eddie não estava preparado para entrar na cela novamente e ver tanto Reno
quanto Milo encolhidos, sentados no chão como dois fantasmas, perto da
porta. Eles olharam para Eddie na hora que entrou como se acordassem do
torpor. Eddie arqueou as sobrancelhas, confuso. Não iriam culpa-lo por
mais alguma coisa, ou iriam?
Pior, lhe contariam alguma informação nova que ficou faltando do dia
anterior.
Milo pulou para ficar em pé, levando um Reno letárgico e não tão
responsivo consigo. Eddie arregalou os olhos para a cena, e se não
estivesse tão fraco, irritado e perturbado, teria rido. Foi engraçado. Eddie
era quem não podia rir.
- Bom te ver, Eddie. Tchau, Eddie. – Milo exclamou de uma vez só, sem
respirar, virando-se apenas para Reno mais uma vez, dando-lhe um olhar
significativo, e saindo em seguida. Passou por Eddie por uma velocidade
incrível para alguém que Eddie só viu andando delicadamente, e logo
Eddie nem pode ver mais a silhueta dele pelo o visor da porta.
- Eu não sei quais são. – tentou novamente, com uma paciência que deixou
Eddie curioso para saber por que ele estava tentando. Tinha algo por trás,
certeza que tinha.
Eddie se lembrou do jeito que Electra agiu consigo naquele dia, e decidiu
que tudo deveria servir como um ensinamento. Que todos os jogos mentais
e físicos do Complexo servissem para que ele os virasse contra os próprios
donos, e os enrolasse de forma que não poderiam sair, assim como
desejavam.
- Então pergunta.
- Foi o que eu acabei de dizer, não foi? – Reno grunhiu, trocando o peso do
corpo para uma perna e outra, ansioso. – Só pergunta logo, porra.
Alguém realmente precisava avisar Reno que aquelas analogias não eram
nada boas. Eddie abriu a boca para perguntar mais, entender aquela
história, então Reno o cortou, como se tivesse um sexto sentido que o
permitia detectar quando Eddie iria dificultar para ele:
Por que diabos ele queria saber, sinceramente? Não parecia algo que Reno
perguntaria normalmente. Ele precisava de um bom motivo para se
importar, até mesmo com um tom de urgência na voz. Eddie franziu mais o
cenho, olhando-o feio.
- Então você foi para a Electra. – Reno semicerrou os olhos para ele, como
se estivesse procurando por mentiras, o analisando crucialmente. Eddie
fechou ainda mais à cara. – Mesmo depois de terem te avisado que ela é
perigosa.
- É claro que não. Você é do tipo que precisa ver para crer. – Reno
balançou a cabeça negativamente. – Eu nem deveria perder meu tempo
tentando.
Não viu nada do outro lado. Na verdade, seria impossível ver com um vidro
tão embaçado. Eddie enfiou uma mão no cabelo, já se sentindo alterado
pelo ambiente do lugar. Ele não podia perder a cabeça. Se começasse com
aquela paranoia ridícula de alguém que havia acabado de ver um filme de
terror, era uma certeza que não iria dormir. Ou fazer qualquer outra coisa.
Mas ele não pensou em nada disso quando entendeu a imagem à sua frente.
Eddie arregalou os olhos ao notar que, do mesmo jeito que ele ignorava
Reno, Reno iria ignorá-lo de volta. E ele estava completamente sozinho,
sem ninguém para contar com ou comentar.
Se concentrar, porém, não era uma tarefa fácil. Por que toda vez que
piscava lembrava-se da imagem das mãos arranhando e batendo no vidro,
tentando quebra-lo, tentando chegar nele de alguma forma. Elas estavam
tão perto. Lembrou-se de quando foi pego, no beco escuro, quando
tamparam seus olhos e murmuraram obscenidades para ele.
Eddie percebia que seria assim toda noite: Durante o dia ele segurava, à
noite desmanchava.
Mas tinha que manter algum tipo de foco, por isso se esforçou ao máximo,
e conseguiu visualizar a parte boa da sua vida, a parte que nunca deveria ter
acabado, quando sua mãe estava viva, os dois estavam juntos, em um
abrigo para mães solteiras, Eddie podia estudar com uma professora
particular voluntária do abrigo, e não conseguia achar nada para reclamar
sobre.
Tudo isso foi antes do seu pai. Quando ele chegava, tudo que Eddie
conhecia desintegrava.
Eddie foi mais inteligente do que o dia anterior e guardou o saco de batatas
que Laz lhe deu, comendo-o durante o primeiro horário quando sentiu
fome. Não conseguiu guardar mais ainda, e acabou com o saco. Não tinha
jeito, não dava para racionar como ele fazia na rua.
Milo deixou bem claro que o primeiro horário só servia para o café, algo
como a porra da manhã, e Eddie não queria testar para saber se seria
escoltado direto para o refeitório. Iria evitar pisar lá o máximo que podia.
Independentemente do quão difícil fosse.
Não havia mais informações ali além das que já sabia, sobre os diferentes
métodos que não funcionaram de sair do Complexo, sobre os genocídios e
sobre as brigas internas. Acabou percebendo que as Legado da Aparência
foram a que mais morreram antes e depois que começaram a usar as cartas,
e Eddie se odiou por não ficar surpreso.
Porém, não conseguia nunca matar as suas faíscas de esperança, pois tinha
sido o primeiro a falar com Electra no dia anterior, então talvez pudesse ter
a mesma chance. E essas faíscas só cresceram quando conseguiu, mais uma
vez, evitar praticamente todos no caminho da biblioteca, chegando mais
rápido do que no dia anterior, por saber melhor o caminho.
Mas qualquer sensação boa que ele estava sentindo rapidamente morreu ao
ver quem o esperava na biblioteca: Não era nem Rodrigo, era Akira. Ele
deu o seu sorriso de raposa, o mais irritante o possível, quando viu Eddie e
se aproximou na hora, sem nem dar tempo para Eddie pensar em reagir.
- E ai, ratinho! – Akira exclamou como se eles fossem amigos. Eddie não
poderia o fuzilar mais com os olhos. – Estou vendo que está em um ótimo
humor logo cedo.
- Eu repasso para ela, óbvio. A gente prefere que não fique invadindo o
nosso território, sabe.
Eddie abriu a boca para retrucar, e tentar entrar de alguma forma, pois
havia a chance de Laz estar ali. Mas ele a fechou na hora, notando
rapidamente que era um caso perdido. Não iria simplesmente arrombar a
porta, apesar de querer, e não queria falar com Electra, de qualquer forma.
- Vai se fuder.
Eddie achou melhor não elaborar mais do que isso. Mostrou os dois dedos
médios para Akira e saiu em seguida, pisando fundo, sentindo-se tão
patético quanto sabia que parecia. Não existiam formas não humilhantes de
perder em uma situação, e apesar de ser um grande perdedor, nunca ficava
mais fácil para Eddie.
Eddie odiou muito o fato de ficar desapontado. Ele tinha tanta energia
acumulando, ele só queria gastar em alguém ou em algo. Apertou as mãos
em punho, sentindo-as estranhamente vazias. De propósito, provavelmente.
Era difícil lutar contra aquele sentimento profundo de não saber o que
fazer ou como fazer. Estava o machucando tanto, que Eddie se sentia em
um escuro que não era reconfortante para si.
- Até agora todo mundo que eu conheço diz que o meu Elemento é
esquisito, e eu não sei qual foi o parâmetro para isso. Mas de qualquer
forma, é, eu estou fudido sobre essa parte de grupo também.
- Até onde eu sei Sombras. – Eddie olhou para ele, queria ver a sua reação.
Como esperava Laz o estranhou. – Ele não bate com nenhum dos outros
Elementos que eu vi até agora. Vocês, pelo menos, têm a mesma linha
filosófica ou alguma merda do tipo.
- Eu não colocaria assim, mas é. – Laz deu outra pausa, abaixando o rosto.
– Desculpe. Eu não o ajudei nada com isso, não é?
Por qual motivo ele pedia desculpa se não tinha merda nenhuma de ele
fazer para ajudar? Não foi como se ele tivesse agido como Electra ou
Natasha, pelo o contrário. Ele, Fiona e Milo pareciam ser bons demais para
aquele lugar. Eddie sentia-se um bebê sendo repassado em colo e colo.
- Como diabos não? Até agora tudo que eu tenho feito é depender das
pessoas. – ele bateu a cabeça de leve na parede atrás de si. – E eu odeio isso
com todas as minhas forças.
- Eddie, foi mal... – Laz abriu a boca e fechou várias vezes, tentando
formular frases, mas sem sucesso algum. Eddie apenas o olhava triste
demais para interrompê-lo ou apressá-lo, sem realmente querer saber o que
ele tinha para dizer. Não se seria mais uma recusa, dessa vez direta e clara.
– Eu não considerei isso, por que nunca aconteceu antes. Mas, assim, o que
eu faço é... É complicado para alguém de um Elemento diferente do meu.
Laz arregalou os olhos, sem esperar por essa resposta. Eddie não poderia
ser mais sincero – e Laz percebeu isso. Dava para sentir no tom de voz do
Legado das Sombras. Laz precisou de um tempo para digerir a situação,
parecendo estar tendo muitas reações ao mesmo tempo para que
conseguisse agir de fato.
- Mas é o que eu acho. – Eddie contra argumentou. – E isso não vai mudar.
E eu não sei, me conhecendo eu acho que vou tentar fazer o que você faz,
mesmo que você diga não.
- Eu não ligo para cartas! – Eddie exclamou, assustando Laz. – Você pode
ficar com todas as cartas. E eu não quero trabalhar para ninguém, aliás, não
aqui dentro. Eu quis saber sobre esse negócio de Coringa para ver se tinha
algo viável e porque eu quero entender o máximo que eu posso, mas se eu
não tivesse conhecido você, eu nunca insistiria para ser um.
- Mas... Ainda tem coisas que eu não sei se... Quer dizer, o seu Elemento
não vai te ajudar em nada. Só se você disser que cria tentáculos de sombras
e consegue usar eles.
Eddie apenas o olhou, para não dar um tapa na testa de Laz. Quando a
conversa deixou de ser séria? Ele perdeu alguma parte?
- Não. – Eddie não queria brincar com ele. – Não, eu não faço isso. E eu
gosto de engenharia, eu não posso dizer que sei muito, mas eu já estudei
sobre e eu tenho aptidão. Eu posso tentar, e posso aprender. Vai demorar
menos do que as outras pessoas.
- Em que ponto você deixou de ser patético e começou a se gabar? – Laz
permitiu um sorrisinho, fazendo Eddie retornar ao estado inicial: Raiva. E
vontade de socar alguém.
- Me poupe.
- É. Hoje mesmo. – Laz se ergueu, oferecendo uma mão para Eddie. Eddie
não quis aceitar, para que eles não se tocassem, e se levantou sozinho. Laz
pareceu o homem mais desconfortável do mundo ao colocar sua mão de
volta no bolso. Eddie acabou sentindo dó dele por isso, mas já era muito
tarde. – Eu tinha que falar com a Electra por que repassam alguns pedidos
para mim por ela. Eu tenho que ir passar os códigos de uma das salas
especializadas para um grupo agora, e se você conseguir vir comigo e der
tudo certo, a gente pode tentar. Mas tentar. Não tem muita certeza de nada.
- Valeu, Eddie. – Laz deu outro sorriso, amarelo e machucado, mas era um
sorriso.
- Por nada. Juro. Bem, é melhor a gente ir indo. Eu adiei por um tempão
encontrar ‘esses caras, e ‘tô sem tempo hoje.
- Por quê?
- Você vai descobrir. Se conseguir lidar com eles, você vai lidar com
qualquer um nesse lugar. – a resposta de Laz o fez ter um arrepio, sem
evitar pensar que não iria conseguir passar.
Laz e Eddie não conversaram muito mais enquanto andavam pelos os
corredores frios do Complexo, não de forma mútua: Laz parecia incapaz de
parar de falar, sem se importar de criar monólogos, provavelmente por
conta do seu eterno nervosismo, e o silêncio deveria ser um gatilho. Então
ele preferia falar sozinho a não falar.
Ele era como uma bolinha hiperativa em formato de garoto. Quanto mais o
observava e passava tempo com ele, Eddie se questionava como diabos ele
matou alguém, sendo tão inofensivo e desajeitado e inocente. Sua noção
social era baixíssima, e Laz parecia acostumado com ela, sem saber como
agir quando era obrigado a interagir com alguém.
Mas ele queria muito que aquilo desse certo. Não queria Laz como o seu
inimigo ou desafeto. E sabia que, se não desse certo, os dois não ficariam
como amigos depois. Será que era possível fazer amigos naquele lugar? Ou
só capachos, como os Legados do Sono para Electra, ou companheiros de
miséria, como as Legados da Aparência?
Laz respirou fundo, sem conseguir encarar o garoto nos olhos. Eddie ficou
preocupado com ele, mas em vez de responder, Laz simplesmente se virou
para à porta da sala especializada e digitou um código na trava tecnológica,
a abrindo em seguida. Os garotos comemoraram, começando a se mover,
quase todos de uma vez, para entrar quando o gêmeo de cabelo mais escuro
se ergueu e olhou para eles, parando-os na hora.
Os garotos exclamaram alto nessa hora, entretidos pela a cena. Eddie podia
jurar que alguém falou consigo, mas ainda só ouvia balbucios. Não teria
como responder nem se quisesse, havia a barreira da língua.
- Olha sóó, ‘tá ficando corajoso agora! – o tal de Rafael respondeu com
deboche, em vez de reagir com mais raiva como Eddie esperava. – Gostei.
Já te disse mil vezes para se defender mais, cara. Ninguém vai mexer com
você.
Laz optou por ignorá-lo dessa vez, entrando na sala de cabeça baixa. Eddie
ficou sozinho do lado de fora, e exatamente nessa hora Rafael virou o rosto
para ele, com um sorriso. Eddie entrou em pânico por conta disso, mas o
engoliu do mesmo jeito que você engole um remédio amargo. Lidaria
depois.
Aquele garoto o lembrou de Natasha pela a forma que era instável, e era
melhor Eddie ficar mais esperto daquela vez.
- E você, quem é?
Foi nesse momento que Eddie percebeu que Rafael tinha um sotaque
carioca. O seu gêmeo não tinha dito uma palavra ainda, apenas o olhando.
Eddie se questionou se ele não falava ou optava assim, pois sabia que
ficaria mais assustador. Eddie engoliu à seco, dando o melhor de si para
não sucumbir aos instintos e responder Rafael da forma que queria.
- Eddie. Eu ‘tô com o Laz. – tentou ser o mais curto e rápido o possível,
para que Rafael notasse que não queria interagir.
- Vocês podem entrar, cambada. – Rafael riu olhando para os garotos, e foi
só nesse momento que Eddie percebeu que eles reclamavam sobre isso.
Entraram sem decoro nenhum, quase todos de uma vez. – Vai lá Daniel.
Pega os códigos para mim. – agora ele falava com o gêmeo.
Daniel assentiu, sem trocar mais uma palavra com Rafael, e entrou logo em
seguida, deixando Eddie e o tal de Rafael sozinho no corredor. Aquilo só
poderia ser brincadeira. Eddie olhou ao redor, para se certificar que eles
estavam sozinhos mesmo.
Laz disse que ia ser um teste, nunca disse que ia ser fácil. Muito menos que
ia ser tão difícil.
- Você disse que ‘tá com o Laz. – Rafael comentou mais interessado do que
Eddie gostaria. – Sabe o que ele ‘tá fazendo agora?
- Tem uma impressora 3D por trás das paredes das salas especializadas. –
Rafael começou a explicar, apontando para dentro. – Você coloca o código
certo, ela cria o modelo do objeto que você quer, e ‘dai ela coloca para
fora, abrindo a parede. Esses lugares são um máximo, por que não tem
câmeras e dá para pedir quase qualquer coisa. Todo grupo grande fica em
uma sala especializada. – Rafael deu um sorriso de todos os dentes,
mostrando caninos brancos e afiados, como um predador. Eddie se lembrou
de um canino, talvez um lobo. – E o meu grupo cresceu o suficiente para
ganhar uma. Por isso eles estão todos animadinhos daquele jeito.
- Impressora 3D?
- Você não sabe o que é? – Rafael arqueou as sobrancelhas, ainda sorrindo.
– Quantos anos você tem?
Eddie fechou a cara na mesma hora. Ele parecia tanto a sua idade assim?
Fora daquele lugar, sempre ouvia que era muito grande ou muito maduro
para a idade. Acabou ficando super consciente, e odiava aqueles
comentários, ou a simples pergunta. Sem falar que ele não estava gostando
do tom super casual e próximo de Rafael, como se estivesse fazendo um
amigo na escola.
Ele era falso e Eddie queria destruir a cara falsa dele em vários pedacinhos.
- Claro, cara. Mas para isso, você precisa de cartas. – Rafael inclinou a
cabeça para o lado. – Ei, se você se interessar, vamos fazer um negócio que
vai render cartas para todo mundo. E vai ser um ótimo jeito para você
liberar toda essa raiva que você ‘tá sentindo.
- O quê?
Mas para a sua, e a sorte de Rafael, Laz saiu da sala nesse momento,
tirando Eddie da sua tortura ao dizer que tinha terminado de passar os
códigos e que eles poderiam ir. Eddie não percebeu que os dois
conversaram por tanto tempo assim, ou talvez o processo fosse mais rápido
do que imaginava. Ele pegou uma quantia de cartas de Rafael, e depois
disso os dois puderam sair dali.
- Quem é esse merda?! – foi a primeira coisa que saiu da sua boca em uma
velocidade incrível, enquanto Eddie corava de raiva e controlava os dedos
para não socar a parede. – Quem ele acha que é?!
- Eu não lembro!
- Foi agora. – Laz deu um suspiro. – Legal você começou não ouvindo uma
palavra do que eu disse. – nesse momento Eddie percebeu que fudeu com o
seu teste. Antes que eles pudessem continuar, o sinal do terceiro horário
tocou, agredindo as orelhas de Eddie mais uma vez. Ele nunca iria se
acostumar. – Bom, é isso por hoje.
- Eu não faço ideia do que um Legado do Conflito faz, mas não deve ser
coisa boa.
- Ei. – Laz o tocou no braço, para não deixar Eddie sair andando, e Eddie
não ficou irritado como quando Rafael o tocou. Por que Laz o tocou de
forma muito suave, quase impossível de notar, como se tivesse notado que
Eddie não sabia lidar com toques, e por que ele realmente queria chamar a
sua atenção. Como quando Milo pegou o seu pulso. – Eu nunca disse isso,
cara.
- Não, não mesmo. – Laz o olhou com compaixão, mas tirando sarro dele
ao mesmo tempo. – Você distraiu o Rafael. Ele é o único que realmente me
irrita do bando de idiotas, então foi bem. Mas se continuar distraído assim,
vai acabar decepando um membro quando estivermos juntos.
- Obrigado, Laz. – Eddie quase não se conteve por ter dado certo. Não ter
estragado tudo como sempre. – Obrigado mesmo. – era tão bom sentir que
era capaz, para variar.