Você está na página 1de 189

EDDIE

Eddie só queria se esquentar.

Lutando contra o vento impiedoso que chegava à cidade grande durante a


noite, as brasas crepitavam a sua frente. Sombras dançavam perante aos
seus olhos, causadas pelo fogo. Sempre que faziam uma fogueira, Eddie
sentia-se atraído por ela como insetos eram atraídos para a luz. No seu
caso, estava desesperado para aumentar a temperatura do seu corpo magro
e desnutrido de um garoto de rua de apenas quatorze anos.

Ao seu redor, o mundo dormia. A cidade em que vivia era feita por ruas,
agora silenciosas, prédios que cercavam essas ruas, uma vegetação falsa os
rondando, e um córrego sujo cortando o espaço, com uma ponte pairando
sobre ele.

Eddie não podia ver o céu noturno sobre a sua cabeça, por conta de existir
um viaduto o tampando. Era como se ele estivesse abaixo da cidade, nas
margens, tentando arranjar algum espaço que já não estivesse no nome de
outra pessoa.

Mas ele não reclamava sobre isso.

Conhecera crianças na rua que não possuíam literalmente nada, nem


mesmo um viaduto. Algumas mal sabiam seus nomes. Por isso, Eddie
agradecia por saber toda a sua história até aquele momento, mesmo que não
tivesse um final feliz.

Será sempre um desafio difícil lidar com as memórias boas enquanto se


sabe que elas vão ser destruídas alguma hora.

Como ler um livro conhecendo o fato que seu personagem preferido vai
morrer. Todos os momentos em que torce por ele, ri e chora, tornam-se dez
vezes mais dolorosos.

- Tudo bem?

Uma voz chamou a atenção de Eddie. Era Matheus sentando-se ao seu


lado, um homem de meia idade com os óculos caindo no rosto, que já não o
ajudavam a enxergar como antes. Emagrecera cinco quilos desde que parou
nas ruas, sua pele tinha um aspecto sujo e seus olhos eram rasos, cor de
vala.

- O que você acha? – Eddie respondeu baixinho, olhando rapidamente para


o amigo.

Os dois se encontravam no chão, sentados um do lado do outro. Perto de


onde estavam, havia uma poltrona velha e puída com uma senhora já de
idade sentada. Era a vovó Ludmila. Ela estava num transe, encarando uma
das paredes do viaduto iluminada pelo fogo, sem realmente vê-la. Suas
mãos fechavam vagarosamente em punhos sobre o apoio da poltrona, assim
como as pálpebras enquanto o sono a abatia.

- Eu sinto muito pelo bebê da Giovana. – Matheus disse realmente


sensibilizado. – Mas, pelo menos, vamos sair para conseguirmos as coisas
amanhã. Assim você pode trocar o lençol dela.

- Sim. – Eddie abraçou os joelhos, trazendo as pernas para o peito e se


encolhendo todo. Sentia a ausência de Giovana nos braços como se ela
fosse o filho que ele perdeu.

A garota em questão estava, nesse momento, deitada sobre o único colchão


do espaço, em lençóis sujos de sangue. Giovana lembrava um zumbi. Se
não fosse por Eddie, ela teria passado os dias estagnada, tentando se afastar
do sangue sem realmente se esforçar para isso, sem nem criar vontade para
se trocar ou comer. A única coisa que fazia era dormir.

Ela havia sofrido um aborto espontâneo que matara seu bebê no quarto
mês.

Eddie não era o pai. Nenhum dos dois sabia quem era o pai. Quando
começou a morar debaixo do viaduto, Eddie notou que Giovana era mais
perdida que si, e que estava completamente sozinha. Podia ser tanto uma
adolescente de quatorze anos de corpo avançado como uma jovem adulta
de dezoito anos baixinha, assim que não sabia sua idade. Eddie se afeiçoou
por ela da mesma forma que se afeiçoa por uma irmã ou uma filha.

Ela tentou ficar com o bebê. Ela quis ficar com ele. Eddie não entendeu o
porquê, mas ele só pode apoiá-la. Ela parou com as drogas, lutou contra as
crises de abstinência, tinha um cuidado consigo mesma que Eddie não
achava que seria possível de acontecer.

E mesmo assim o bebê morrera.

Ele estaria mentindo se dissesse que não esperava por algo do tipo

- Não foi culpa sua. Não tinha nada que podíamos fazer, e mesmo assim
você e Giovana se esforçaram ao máximo para ficar com o bebê.
- Eu sei disso. – Eddie retrucou com a voz sufocada. Ele franziu o cenho,
sentindo pontadas de raiva machucar o peito. – Eu só não aguento vê-la
sofrer.

- Você é assim com todos.

Sim, ele era.

Eddie olhou feio para Matheus em resposta. Matheus não parecia


arrependido do que havia dito. Os dois nunca seriam amigos antes de
chegarem às ruas. Matheus era o típico velho cheio de contas na cabeça e
nos braços, nenhum assunto interessante para compartilhar com um
adolescente tão jovem.

- Isso foi um elogio ou uma ofensa?

- Um elogio. – Matheus sorriu.

- Eu não me sinto muito lisonjeado. – Eddie resmungou de volta,


começando a encarar o concreto em que estava sentado. – Não adianta
muito eu me preocupar, se ainda não consigo resolver nada.

Nesse momento, sua mão foi automaticamente até o objeto por dentro do
seu bolso do casaco verde militar.

Matheus levou um tempo para responder. O único barulho entre eles era o
da fogueira e o do vento que ainda tentava apaga-la. Todos os outros que
também moravam debaixo do viaduto ou dormiam ou faziam algo que não
tinha nada a ver com Matheus e Eddie.

Eles eram um grupo, sim. Um grupo que se organizava na hora de roubar


para se ter suprimentos, um grupo que se organizava para discutir a questão
de tais suprimentos, e um grupo que se organizava para brigar. Porém, de
forma nenhuma, se organizavam para ser um grupo de suporte. Uma
família.

- Eu estou tentando lembrar o que era que a Vovó Ludmila dizia para você.
– Matheus encara a fogueira enquanto dizia realmente pensativo.

- Os planos de Deus são sempre bondosos, mesmo que machuquem.

- Isso.
- É a última coisa que eu quero ouvir quando moro na rua.

- Mas é a única coisa que você pode ouvir. Se não começa a escutar os
próprios pensamentos, e eles não dizem nada de bom.

Eddie sentiu-se frustrado ao ouvir aquilo.

Os sem casa se incomodavam com a sujeira. Incomodavam-se em não ter


um lugar confortável para dormir. Mas se engana quem pensa que esse é
incômodo que os corrói. O pensamento que o incomodo traz se encarrega
disso. Quanto mais eles pensam sobre não terem lar e uma família, que os
outros os desprezam e que ninguém iria sentir falta deles mais acabam
chegando à um caminho ruim.

E os caminhos ruins se multiplicam por todos os lados.

Em sua linha de pensamentos, Eddie chegava ao futuro e sentia medo


misturado com negação. Não via como poderia estar vivo daqui a três ou
quatro anos. Desaparecia como névoa, ninguém estando são o suficiente
para se lembrar dele.

E Eddie ainda era inocente. Ele não havia quebrado por completo ainda. As
melhores inocências nas ruas eram as distorcidas. Cheias de remendos,
difíceis de decifrar. Você não sabe onde começa nem onde termina,
também não sabe se vai durar ou não. A única prova que tem é que existe,
de forma errônea, mas existe.

Ele havia conservado aquilo. E não queria perder por nada, se tornar mais
um número de estatística, um garoto perdido.

Eduardo só não tinha escolha caso quisesse sobreviver de verdade. Pedir


esmola é perda de tempo de tão pouco que rende. Nunca seria o bastante.
Para as pessoas que possuem tudo e não sabem os moradores de rua sempre
serão merecedores do que passam por que não trabalharam o suficiente.
Porque gastam o dinheiro suado com coisas inúteis. Porque são burros.
Porque só continuamos pobres por que queremos. Porque as pessoas não
tinham dinheiro nem para elas, então como iriam dar a alguém que não
conheciam?

Após dias inteiros de pedidos e nenhuma reposta, o roubo começou a ser a


melhor alternativa. Roubavam apenas o que era estritamente necessário, e
outras coisas recebiam por doações – engraçado como as pessoas doam
coisas para os sem casa, mas não podem doar um espaço para viverem.

(Uma mão, mas não um braço).

Eddie trouxe o objeto que segurava por dentro do seu bolso, e ele se
revelou sobre a luz do fogo: Um relógio de bolso já antigo, dourado.
Quando Eddie o abriu, ele ainda funcionava. Mas Eddie não quis ver as
horas.

Ele só queria segurar a sua âncora por alguns segundos.

- Você sabe que não pode ficar com isso aqui. – Matheus soou um pouco
exasperado, como se já tivesse dito aquilo um bocado de vezes.

Eddie passou os dedos pelas gravuras no dourado do relógio, e depois no


vidro que conservava os ponteiros e os números por dentro.

- Todo mundo está dormindo.

- É o que você acha até alguém roubar o seu bem precioso. – Matheus
suspirou. – Você tem uma fibra que eu não tenho Eddie. Se eu fosse um
imigrante ilegal órfão, a primeira coisa que faria seria vender esse relógio.

- Eu já pensei sobre isso. – Eddie murmurou de volta. – É normal delirar


quando se passa muitos dias sem comer. – ao terminar de dizer isso ele
fechou o relógio com um ruído sonoro, guardando-o no bolso do casaco
militar mais uma vez. – É a última coisa que restou da minha mãe.

Matheus assentiu.

- Eu já te contei como ela morreu?

Matheus negou com a cabeça.

- Não é algo que se conversa todo dia.

- No nosso caso, achei que era. – Eddie se remexeu. – Eu não vi acontecer.


Eu estava preso dentro de um porão enquanto ela era assassinada.

Quando tinha treze anos, Eddie considerou o cativeiro um monstro.


Dentro do monstro havia o porão, que era o seu sistema digestório. O porão
era como um buraco negro onde não existia nada além de umidade e
escuridão.

O monstro Cativeiro o digeria pelos dias que Eddie passou por dentro dele,
sugando suas energias. Eddie já não tinha mais forças para se mover, para
fazer qualquer coisa.

Eddie tinha certeza que iria morrer ali.

- Eu consegui ouvir os gritos dela. – Eddie continuou. – Ela desceu até o


porão e o abriu para mim, mesmo ferida. Depois disso ela caiu no chão.

Houve um pequeno silêncio, e Matheus encarou Eddie de forma ansiosa e


preocupada.

- E ai? O que foi que houve? – ele quis saber.

- Ela me deu o relógio antes de morrer. – Eddie murmurou. Seus olhos


ardiam muito. Pareciam estar incomodados com poeira. Seu peito se
tornara um nó apertado, dificultando-o na hora de formular as palavras. – E
quando eu dei por mim, eu estava na rua.

- Eddie... – Matheus soou surpreso. – Então a noite que você chegou...

- Já faz um ano. – Eddie praticamente grunhiu, limpando uma lágrima


teimosa que escorreu pelo seu rosto. – Eu estou falando disso porque se não
for agora, nunca vai acontecer. Eu nunca vou superar. – ele sentia a raiva
crescendo a cada frase. – Eu nunca vou ser forte o suficiente.

- Você se cobra demais. – Matheus disse de forma repreensiva. – Não jogue


o peso do mundo nas costas, ou então não vai conseguir sobreviver.

- Eu estou cansado de sobreviver, Matheus, para ser sincero. Eu estou


muito cansado disso tudo.

Houve outro momento de silêncio. Eddie escondeu o rosto entre os braços


sobre os joelhos, encolhendo-se mais ainda. Nesses momentos, sentia-se
conflitado entre querer desaparecer ou simplesmente viver uma vida
melhor. Uma nova vida, completamente diferente. Nessa vida, ele poderia
estudar, poderia construir coisas. Coisas de verdade e não apenas bobeiras
com legos. Poderia ver outras crianças, ouvir música, comer comida boa e
receber abraços amorosos, não os sofridos em momentos de desespero. Ah,
poderia tomar um banho de verdade.

Nessa vida alternativa, ninguém moraria mais debaixo do viaduto e


ninguém mais passaria fome.

- Você deveria ir dormir Eddie.

Eddie revirou os olhos pela reação do Matheus. Não sabia dizer se ele não
havia entendido ou simplesmente o ignorava. De qualquer forma, o homem
possuía um pouco de razão. Eddie estava mesmo grogue de sono, sem total
controle sobre a língua. Ele precisava dormir, pelo menos um pouco, para
conseguir ficar atento no roubo do próximo dia.

Descansando mal ou não, ainda era descansar. Essa era a lei geral nas ruas,
se aplicava em todas as questões praticamente.

- Boa noite. – Eddie murmurou ao se levantar, recebendo um “Noite”


desanimado de Matheus.

Ele olhou para o espaço do viaduto por um instante. Iluminado pelo fogo,
só ficava mais evidente o quanto era vazio. Mesmo com os corpos e os
objetos aleatórios espalhados, evidenciando vida humana, era como se não
houvesse nada.

Era um grande buraco negro também, assim como o porão.

Eddie continuava no mesmo lugar desde que perdera a mãe, tudo que
mudara era o nome. Mas ele jurava que não havia outra pessoa procurando
a liberdade tanto quanto si.

E ainda queria acreditar que ela iria chegar, mesmo que não fosse à hora.

MILO

Milo abriu os olhos no mesmo momento em que as luzes da sala se


acenderam, quase em sincronia. Não era realmente possível de classificar o
lugar como uma sala, com um espaço retangular, paredes e chão brancos,
sem nenhum tipo de móvel e com o teto baixo, era como uma caixa de
sapatos muito limpa e muito branca em que Milo havia sido jogado. 
Ou uma caixa de bonecas, em que se encaixaria mais. 
Milo virou o rosto na direção da parede à sua frente, ainda deitado no chão,
vendo-a se mover sozinha, abrindo espaço em sua superfície para que uma
grande janela de vidro se mostrasse: Um observatório. Do outro lado, Milo
pode ver o mesmo grupo de cientistas que cuidavam dos seus treinos, com
quem ele já estava habituado. 
Milo estava, de fato, muito habituado com toda a situação. Que é o que
costuma acontecer quando vive algo desde o nascimento. No caso de Milo,
criação. 
Não havia nenhuma necessidade, e todos sabiam disso, mas ainda assim
Milo pode ouvir a voz de Gaia nos auto falantes embutidos dentro da caixa,
enquanto ela falava no microfone na cabine mostrada pelo o observatório. 
- Milo, acorde. A sua sessão de treinamento já começou. 
Milo foi obrigado a controlar o suspiro de respiração profunda que sentiu o
instinto de fazer ao ouvir a voz grossa dela. Ela sabia que ele já estava
acordado, e ela também sabia que não precisava dizer a ele. Mas Gaia
parecia insistir em manter hábitos inúteis, e claro que Milo não poderia
fazer nada se não obedecê-los. 
Ele se ergueu como era suposto, ficando em pé. Seu cabelo longo negro se
encontrava uma bagunça por ter dormido sobre ele, mas Milo nem sequer
considerou arrumá-lo ou passar as mãos pelo o rosto de semblante cansado,
de energias sugadas. Sentia que ficava cada vez mais branco a cada dia que
ficava preso na caixa para os seus treinos diários, e até mesmo seus lábios,
que já foram de um vermelho vivo naturalmente, estavam se tornando
brancos como o resto da sala. 
As únicas cores em que ficavam eram o negro, do seu cabelo, e o roxo dos
seus olhos perfeitamente redondos, as duas que ele odiava. As duas que o
lembrariam para sempre, e o sempre significava até onde sua existência
durasse, de quem havia o criado e de quem o fazia permanecer vivo, sem se
importar com a sua permissão para isso. Quem iria usá-lo até que não
restasse mais nada de Milo para se oferecer. 
Esse criador não era nenhum dos cientistas que Milo observava agora. Não
haviam apenas cientistas na cabine, mas sim também alguns soldados
uniformizados com fardas negras, em que você acharia em todo lugar e não
só onde Milo era confinado para treinar. Este eram os Praticantes, e sua
líder era Têmis, uma figura que aparentava ser uma mulher que não
passava dos vinte anos, com cabelos longos que mudavam do preto quase
roxo para o castanho arruivado claro. Os olhos não eram nem pequenos e
nem grandes, caindo mais para os lados. As íris passavam pela mesma
transformação que o cabelo, e seu rosto e corpo ostentava traços fortes de
uma mulher bem desenvolvida. 
Era uma cabine grande para caber todos eles. 
Não havia nenhuma necessidade dos soldados. Milo não era e nunca foi
perigoso. Ele nunca deixou de colaborar, não sabendo que era coagido por
forças maiores. Sua existência inteira poderia ser resumida em: Coagido
por forças maiores. Ele também não tinha nenhuma chance de fugir ou de
reagir, e sabia muito bem disso. Entendia isso. Sentia isso. Ele só sairia
quando o permitissem. 
Ele e a caixa já haviam se tornado um. Provavelmente ele a conhecia
melhor até mesmo de quem era a dona do lugar, no caso, Gaia. Ela era a
líder entre os cientistas, e responsável por guiar todas as suas sessões de
treinamento. Milo não gostava dela de forma nenhuma. Ele não gostava de
ninguém, mas com Gaia era diferente. 
Milo tinha medo dela. 
E não havia nenhuma necessidade de amedrontar Milo quando já era
entendível que ele iria obedecer.
Uma mulher de pele bronzeada e cabelos cacheados castanhos que
lembravam a juba de um leão. Seus olhos eram verdes como a campina
mais clara, porém perigosos e nublados de más intenções. Possuía traços
fortes e brutos que lutavam uns contra os outros para ganharem espaço. Ela
era intimidante tanto na postura quanto na aparência, e com Milo ela não
pensava duas vezes antes de ser agressiva. 
Ela descontava tudo que sentia negativo nele, e Milo até mesmo entendia o
porquê. 
- Como estão os níveis de intensidade dele? - Gaia questionou longe do
microfone, para um homem sentado que digitava à frente de um monitor na
escrivaninha à baixo do observatório, encostada na parede. Ela apoiava as
mãos nessa escrivaninha, fazendo seu tronco ficar inclinado, e deixava a
sua boca na visão de Milo. Assim, ele podia ler o que ela dizia. 
- Definitivamente maiores do que os da semana passada. - ele olhou para
Gaia para continuar. - Se ele conseguir hoje, é muito possível que nos
próximos dias já esteja pronto.
Antes de Gaia conseguir responder, uma jovem de jaleco, claramente outra
cientista pesquisadora lhe abordou com uma prancheta em mãos, parecendo
apressada e afobada. 
- Senhorita Gaia, senhorita! - a jovem chamou afobada. - Hoje vai ser a
checagem médica dos Legados, e esqueceram de te perguntar sobre a dose
de veneno dessa vez. 
Gaia olhou de cenho franzido para a garota. 
- Por acaso algum de vocês esquece de respirar? 
- Não, senhorita. - ela abaixou a cabeça. 
- Então como diabos esquecem do básico do trabalho? - Gaia grunhiu,
arrancando a prancheta das mãos da garota com brutalidade. Ela pegou
uma caneta no bolso do seu jaleco e começou a escrever algo no papel.
Milo tinha certeza que estava assinando o documento que eles teriam que
mandar para o o Governo mais tarde, que era como um relatório de tudo
que faziam, principalmente em relação ao “veneno”. Milo leu o movimento
de mãos de Gaia, e notou que depois que ela terminou de assinar, ela
também tinha que escrever mais alguma coisa. Deveria ser a dosagem do
dia. 
“Com sorte, ela não aumenta mais do que no mês passado.” 
- Então temos que triplicar? - a garota exclamou ao receber a prancheta de
volta. Milo teve que controlar a vontade de vaiar a atitude. Merda. Ele só
podia desejar do fundo do coração que os garotos que recebessem o veneno
na veia, além de o ingerir todos os dias na comida, não sofressem mais do
que já estavam. Pelo menos, eles não estavam matando entre si… Não nas
horas erradas. 
- Agora você não sabe ler? - Gaia retrucou. A garota se encolheu tanto que
se ela pudesse, ela teria desaparecido. Gaia fez um som do fundo da sua
garganta, suspirando no processo. - Urgh. Têmis, a acompanhe para ter
certeza que ela e a equipe não façam merda de novo. Vocês têm sorte que
eu não dou a mínima para esse trabalho, se não… - ela caçou os olhos da
garota com os seus verdes ácidos e radioativos, forçando-a corresponder.
Era uma situação de “faça o que eu mando, ou é despedida”, que Gaia
colocava com todos no laboratório, para que se sentisse melhor consigo
mesma e todos seus sentimentos negativos transbordando em si. Ela era
como uma bomba sempre explodindo, sem controle sobre o pino. - Eu
provavelmente teria os dado para os cachorros do Complexo. Agora saía da
minha vista, porra. 
A garota não passou dois segundos a mais ali depois daquilo. Ela saiu
correndo, até um pouco grata por poder fazer isso. Milo a compreendia. Se
ele pudesse, ele estaria correndo também. Mas correr com Gaia só a
deixava mais irritada, e quando ele caísse no beco sem saída, a punição
seria a pior. Gaia só não era fisicamente agressiva com os cientistas, pois
não havia ganhado a chance. 
Agora a bomba estava olhando para si novamente. Era a sua vez. 
- Coloque a porra do cubo logo. - Gaia disse para o cientista que ainda
digitava. Ele assentiu rapidamente e pareceu começar a digitar mais
rápido. 
Milo notou que estava exatamente aonde o cubo desceria, por isso deu um
passo para trás e olhou para cima. Uma parte do tetos se abriu e dele
desceram duas garras metálicas que carregavam um cubo também de metal,
sem adornos, além de duas esferas roxas que brilhavam em neon de apenas
dois lados, na esquerda e na direita. O cubo desceu até o seu nível, e Milo
se aproximou de volta. 
Ele colocou as mãos em volta do cubo, como deveria fazer. Não o pegou,
deixando-o entre as garras. Suas mãos estavam curvadas em conchas, e se
aproximaram o máximo o possível até finalmente se conectar com as
manifestações dentro do cubo. Isso era possível graças às duas esferas
roxas de cada lado. 
Milo sempre sentia um tipo de choque térmico que arrepiava os seus pelos
quando se conectava com as manifestações. Tudo que precisava fazer em
cada sessão de treinamento era teoricamente simples: Milo possuía a
capacidade de controlar outras manifestações, por isso precisava se
conectar com elas, presas dentro de cubos, e dominá-las até que fossem
completamente suas. Assim, aquelas manifestações fariam tudo que ele
comandasse. 
Mas na prática, isso demorava horas, sugava as suas energias e quebrava
sua mente toda vez que fazia. 
Que bom que Milo havia sido criado como uma boa boneca, que poderia
ficar dias sem comer, sem beber e sem nenhuma outra necessidade física,
apenas se colocando para dormir para restaurar as energias e a mente,
pronto para outra sessão de treinamento enquanto estava confinado. O
confinamento servia para concentrá-lo, e facilitava muito mais que ele
fosse auto suficiente o bastante para não precisar nem comer. 
Milo era uma boneca de dar corda: Quando eles acendiam as luzes, sua
corda havia sido puxada e ele precisava funcionar. Quando eles apagavam
as luzes, sua corda havia voltado e ele precisava alguém puxá-la
novamente. Esse ciclo infinito era a sua existência. 
Após combinar com a manifestação, Milo fechou os olhos para se
concentrar em encontrar o centro dela para que pudesse dominá-la. Tudo
que estava dentro daquele cubo já havia sido de uma pessoa viva. Não era
seu coração ou o seu cérebro, eram as habilidades que o tornavam um
Legado. Sua essência. Milo tentava não pensar muito sobre isso, não viver
a culpa que o causava, mas era impossível quando podia ver todas as
memórias que vinham junto com as manifestações, todos os momentos de
uma individuo, incluindo a sua morte antinatural. 
Assassinato. Para que Milo pudesse treinar naquele momento. 
Havia um padrão: A cada sessão de treinamento, as manifestações ficavam
mais difíceis de se lidar. Mas os efeitos colaterais variavam. Milo os sentia
de forma muito física dessa vez, cerrando os olhos enquanto lutava para se
manter firme em pé e terminar com o que havia começado, mesmo que
contra a sua vontade. Sentia suas mãos sendo cortadas, como se houvesse
uma faca o atingindo várias vezes em suas palmas, mas era psicológico, e
seu intestino se revirava e se fechava com força, causando-o um impulso
forte de vomitar. 
Milo engoliu a bile e suportou a dor e a ardência dos cortes. Ele não ousou
abrir os olhos, sabendo agora que tampar um dos seus sentidos durante
aqueles momentos o ajudava a não desistir. Mesmo que não ver só
aumentasse o que sentia, e o que sentia eram vários ataques contra si, para
que não conseguisse controlar a manifestação. Ela era forte, ela era
resistente, e o mais importante de tudo ela não sabia que havia morrido. Ela
ainda seria passada para outro Legado, e não iria desaparecer se ninguém
interferisse com o seu processo natural. 
Mas é claro que os criadores de Milo interferiam. 
Milo nunca saberia dizer quanto tempo se passou, mas foi como conter uma
explosão pequena apenas com as mãos. Quando ele finalmente conseguiu,
toda a força do seu corpo havia se perdido, e ele acabou caindo no chão,
machucando-se no processo. Estava simplesmente muito drenado para
controlar as próprias sensações, deixando seu corpo latejar e arder, assim
como o corpo de qualquer outro humano normal faria. 
Antes de usar suas últimas forçar para se colocar a dormir novamente, para
se restaurar, seus olhos se ergueram praticamente sozinhos, em instinto, na
direção do observatório onde Gaia e todos os cientistas o observavam em
uma confusão e surpresa muda. 
Então ele pode ler os seus lábios:
- Ele está pronto.
E foi tudo que entendeu antes de apagar as próprias luzes. 

RENO

Reno acordou com batidas grosseiras na porta da sua cela. Ao mover a sua
cabeça no susto, o travesseiro que estava sobre si rolou e caiu para fora da
sua cama. Sua visão era como um vidro embaçado, e demorou a se
estabilizar para que ele pudesse reconhecer o mesmo cômodo em que
estava preso todos os dias: Era um espaço pequeno e metálico, com outra
cama do lado oposto à sua, dois armários em cada canto e duas
escrivaninhas. O outro lado estava completamente ocupado. Havia livros,
HQ’s, cadernos, roupas, todo o tipo de coisa que denominava ocupação
humana. E uma ocupação bem bagunçada.
Reno, grogue de sono e irritado pelas batidas incessantes em sua porta,
esticou o braço para alcançar a sua escrivaninha e pegar seus óculos de
armação negra, colocando-a sobre o rosto. Agora sim ele conseguia
enxergar. De forma letárgica e preguiçosa, Reno se ergueu e saiu da sua
cama, bem lentamente. 
As batidas continuavam, altas e bruscas. 
Reno bufou e foi até a porta da sua cela, olhando pelo o vidro da janela o
que ele já sabia que iria ver: Um Praticante, que assim que notou que ele já
estava acordado, deixou de bater e girou os calcanhares, saindo em seguida.
Assim, sem mais ou nem menos. Reno revirou os olhos, sentindo falta de
ser acordado por robôs naqueles dias.
Era quase um ritual: Uma vez por mês todos tinham que fazer uma
checagem médica, e Reno sempre dormia até tarde e alguém precisava
acordá-lo. Era um dos poucos momentos do mês em que conseguiam o tirar
da cela com sucesso. Se ele não fosse por vontade própria, seria arrastado. 
Bem vindo ao Complexo. 
O mesmo lugar que te sequestra, te aprisiona e te escraviza, é também o
mesmo lugar que o mantém vivo por o máximo de tempo que puder. Reno
se lembrava de terem dito que ele ia ganhar óculos novos, pois suas lentes
já estavam ultrapassadas, e receber uma nova caixa de bombinhas de asma,
pois a sua já havia acabado. 
Isso significava que ele já havia passado mais de seis meses preso naquele
lugar. 
Reno tentou não deixar o soco no estômago lhe paralisar, e terminou o que
precisava fazer para acordar no banheiro dentro da cela. Vestiu seus tênis e
pouco se importou com a roupa que usava: Era o mesmo moletom cinza
três vezes o seu tamanho de sempre, e a mesma calça preta. 
Arrastando os pés e com a pior postura possível, ele se levou para fora da
cela, a porta abrindo-se automaticamente. No atual momento, o corredor
das celas estava cheio de Legados que se dirigiam ao pátio para pegarem o
elevador. Era uma multidão de jovens em um espaço pequeno, então Reno
nem se atreveu a se locomover muito. 
Era sempre o mesmo caos em dias de checagem médica. O Complexo não
foi construído pensando em tais eventos, e quem estava preso ali dentro que
tinha que lidar. Reno só queria desaparecer na multidão e terminar com
aquilo o mais rápido o possível, para que pudesse voltar para a sua cela e
voltar a dormir. Ou ler algo. 
Reno queria desaparecer a tanto tempo que não se lembrava de como eram
os dias antes dessa vontade. Começou por motivos pequenos e de forma
momentânea: Ele não se sentia bom o suficiente, carismático o suficiente,
inteligente o suficiente. Depois ele não tinha mais interesse em ser alguma
coisa. E também passou pela a fase em que decidiu que as pessoas
deveriam desaparecer não ele.
Até que “progrediu” para o momento de agora, com dezoito anos, e
cansado de mais para desejar algo além de desaparecer como a brisa. Voar
para longe sem deixar ninguém notar. Se notassem, seria algo passageiro.
Reno não era bobo e nem dramático, ele podia afirmar plenamente que
ninguém sentiria falta dele.
Seria como se nunca tivesse existido. E, com uma vida tão simplória, de
fato não existiu. 
Ele era um garoto baixinho que aparentava, no máximo, ter quinze anos em
vez de dezoito. Com a pele pálida, de doente mesmo, olhos cinzentos que
ele fazia questão de esconder por trás dos óculos e cabelos lisos densos e
negros, que haviam crescido demais desde que chegara no Complexo,
agora chegando até a sua nuca. Ele tinha olhos grandes demais, lábios finos
e pequenos demais, nariz de botão e era gordo. Ou nem tão gordo quanto
gostaria, pois a prisão o fez com que ele emagrecesse pelo menos dez
quilos. 
Se havia algo que Reno odiava mais que si mesmo, com certeza era aquele
lugar. 
Uma das únicas soluções, realmente, para se sair dali seria o
suicídio. Morrer não era desaparecer. Era exatamente o que os criadores do
local estavam querendo quando o criaram e colocaram as crianças ali
dentro, então Reno preferia continuar sofrendo do que entregar exatamente
o que eles queriam. Em qualquer das opções, ele saía perdendo. 
Reno só escolhia o que ele iria perder por vez.
Reno odiava ter que esperar, sinceramente. Toda vez sua mente se enchia
com todos os pensamentos que evitava ao se alienar no seguro da sua cela,
lendo alguma coisa. Era algo muito fácil: Se alienar. Deixar que o mundo
ao redor desaparecesse, por mais que fosse um ambiente hostil. Reno não
iria sair. Era melhor que não pensasse muito sobre isso. 
Mesmo sendo carregado na maré de pensamentos ruins, ele conseguiu
chegar até o elevador, apertado entre jovens que odiava e era odiado de
volta, e depois do elevador até a enfermaria, onde aconteceria a checagem
médica. A enfermaria era um salão amplo para abrigar tantos Legados,
cheio de macas e completamente branca, tanto nas paredes quanto no chão
ou nos móveis. Exatamente como uma UTI. Nada confortável ou atrativo. 
O Complexo tinha seus meios de fazer Reno lembrar em que ainda estava
no Brasil: Ao chegar na enfermaria, os jovens foram separados em filas
para que facilitassem no atendimento individual de cada um deles. Eles
foram separados por Elemento e por gênero, assim, Reno não tinha muitas
pessoas à sua frente. 
Mas era sempre um inferno ter que lidar com os outros Legados do Sono.
Eles não podiam realmente lhe dirigir a palavra como gostariam enquanto
estavam sendo vigiado por cientistas e Praticantes por todos os lados, mas
os olhares diziam o suficiente. Com sorte, Reno era imune à esses. 
Reno se lembrava da primeira vez que havia visto todos os Legados dentro
do Complexo juntos, no refeitório. .Ele ficou tão zangado, tão ultrajado.
Como poderiam existir tantas crianças como ele e ninguém nem entendia o
que ele era? Nem ele sabia. Depois da raiva, veio o soco da realidade: Eram
por que todas eram presas. Todas foram levadas antes de conseguirem fazer
alguma diferença, e ninguém conseguiu sair. Aquele não era o único
Complexo. Existia na Itália. Na França, nos Estados Unidos, na Espanha,
na Grécia, China, Japão e por ai vai… As vezes crianças eram transferidas
desses países por falta de espaço. Era algo muito maior e terrível do que
parecia. 
Milo tinha razão ao dizer que não havia nada para se fazer. Eles eram
formigas sobre os pés de titãs. Nada que tramassem ia alterar o que
realmente acontecia lá em cima, onde não conseguiam ver. 
Quando finalmente chegou a vez de Reno, ele foi colocado sentado em uma
maca e uma das cientistas responsáveis por Legados do Sono, que ele
sempre via nas checagens médicas, puxou a cortina ao redor deles para que
ninguém visse o que acontecia ali dentro. Como ele esperava, ela lhe
entregou óculos novos, bombinhas de asma, olhou suas orelhas e boca,
mediu a sua pressão, viu seu batimento cardíaco, coletou seu sangue. 
E no final, lhe deu uma injeção com a nova dose de veneno que ele
precisava tomar periodicamente para que, quem havia o prendido no
Complexo, pudesse obter os resultados que precisava. Era um veneno
incrível, na verdade, quase um avanço da humanidade.
Assim como o Complexo e todo o conceito por trás dele poderiam ser
considerados avanços da humanidade, em um sentido.
A questão era: O veneno não causava efeitos colaterais, muito menos lhe
deixava perceber que estava agindo em seu organismo. Ele era um inimigo
invisível, assim como o Complexo e seus criadores. Era impossível
combatê-lo. Eles injetavam nas veias, mas também era possível aspirá-lo
toda vez que respirava o ar fabricado do Complexo, e quando comia a
comida que eles ofereciam. 
Eles estavam sendo intoxicados por todos os lados. 
Reno deu o melhor de si para sair dali o mais rápido o possível quando foi
liberado, com o intuito de voltar para a sua cela sem ser notado. Era difícil,
sendo abertamente odiado entre praticamente todos, sendo ele mesmo que
havia causado isso, mas ele sempre conseguia de uma forma ou de outra.
Não foi abordado por nenhum Legado do Sono, ou a líder deles.
Até que aquele era um bom dia. 
Reno conseguiu voltar para a sua cela, para a cama, para os cobertores,
para a posição fetal que se encontrava perante a vida inteira, e finalmente
pode respirar aliviado.
Agora Reno só precisava curtir o seu ninho confortável entre o caos.

EDDIE

Eddie deitou-se próximo de Giovana, que era o seu lugar de todas as noites.
Ele não tinha um colchão. As únicas que possuíam aquele tipo de conforto
eram Giovana, por estar grávida, então o colchão era recente, e Vovó
Ludmila, que possuía a poltrona. Elas eram também as únicas mulheres
dentro do grupo.
Para Eddie, a pior parte não era ter que dormir no chão todas as noites, com
um cobertor pequeno e puído, isso quando havia um cobertor, pois ele era
obrigado a jogar os muitos sujos quando não era possível lavá-lo. Eddie
realmente conseguia dormir em qualquer lugar. Ele precisava estar
extremamente perturbado para não dormir, mesmo naquelas condições.
A pior parte era todo o resto.
Isso não significava que ele gostava de dormir. Pelo contrário. Passava o
dia todo temendo seus pesadelos durante a noite. O problema era que ele
não acordava, mesmo sendo torturado psicologicamente. Não sem uma
interferência.
Aquela seria uma das raras noites em que isso aconteceria.
Eddie deu um solavanco e ofegou como se estivesse voltando à vida. Uma
mancha negra passou por ele, como um vulto de um animal pequeno. Seus
olhos se tornaram dourados enquanto ele enxergava no escuro da noite,
debaixo do viaduto. Havia um silêncio absoluto além da sua própria
respiração. Eddie não conseguiu evitar estranhar isso. Todos estavam
claramente dormindo, mas sempre havia alguém que roncava ou que falava
ou que se mexia muito durante à noite, então era muito raro, durante à
madrugada, todos estarem quietos dessa forma.
A estranheza começou ai.
Eddie levantou-se vagarosamente, com medo de acordar Giovana. Olhou
para o rosto dela: Ela parecia profundamente adormecida. Havia algo de
estranho nessa imagem. Como se não fosse natural. Isso causou agitação
por dentro de Eddie, como se criasse um rebuliço dentro do seu peito.
Olhou na direção que o vulto que passara por ele foi. O vulto ainda estava
por lá. Era uma mancha negra flutuante sem forma definida. Aos olhos
normais, ela seria apenas parte do breu que impediria de enxergar. Eddie,
ao enxergar no escuro, ele conseguia ver todas as moléculas que o formava:
As sombras.
Ela estava virada exatamente para si.
Não havia engano. Estava o chamando. Eddie conhecia aquelas formas
bem demais para ignorá-las. Não se podia separá-las em algo bom e em
algo ruim, eram todas irracionalmente iguais. Agiam por um único
propósito quando o tinham. Eduardo conhecia aquelas formas desde a
infância. Se houve algo que ele aprendeu sobre elas, é que não se podia
temê-las ou seria dominado. E não era uma opção ser dominado.
Nas poucas vezes que sombras aleatórias apareceram, elas serviram como
setas para guia-lo a qualquer coisa que queriam que fizesse. Era melhor
obedecer até que sumissem. Essa anormalidade não o “incomodava”, mas
com certeza era um pé no saco desnecessário.
Eddie não teve uma reação imediata até que a sombra, muito rapidamente,
se aproximou de Matheus adormecido. Era o corpo mais próximo que ela
havia achado. Ela se enrolou em volta do pulso do homem, como se o
prendesse. Os olhos de Eddie se arregalaram e o seu coração se acelerou na
mesma hora.
Ele entendia aquele sinal. Era uma ameaça.
Eddie correu na direção da sombra, e ela se afastou na mesma hora, como
se não tivesse feito nada de errado. Matheus continuava ressonando, como
todos os outros do viaduto. Eddie pode notar outras manchas negras se
locomovendo, espreitando de forma curiosa o grupo de sem tetos. O garoto
precisava leva-las para longe dali, ou se não…
Ou se não.
Da última vez Eddie havia ficado sem casa, sem mãe e sem irmã mais
nova.
Eddie começou a andar para fora do viaduto, sendo seguido pelas sombras.
Logo elas estavam o guiando e não o contrário. Chegou até o fim do
viaduto, aflição crescendo dentro de si enquanto as esperava darem
direções.
Atravessaram uma rotatória e Eduardo as seguiu certificando-se de manter
distância, por que sombras eram imprevisíveis como animais.
Chegaram à avenida que normalmente era cheia de carros, agora vazia.
Viraram na primeira esquina, avançando e avançando, até que Eduardo
estivesse numa área repleta de lojas sem uma alma viva fora e dentro delas.
Como se tivesse sido sugado para uma cidade completamente diferente.
O vento passou por seu rosto gelando as feições que franzia. Não era
habituado a ir muito naquela área comercial, por que não tinha nada a se
fazer ali e eles sempre roubavam longe do viaduto; mas seu senso comum
gritava que não tinha como uma parte da cidade ser tão vazia.
Se não era uma armadilha, então o que era?  
Olhou para as sombras novamente: Elas se separaram em várias pequenas
formas e se enroscaram no exterior das lojas procurando brechas para
entrar e desaparecer. Eddie não teve tempo para digerir a imagem ou voltar
atrás, pois ouviu passos.
Céus, que presa fácil ele era.
Sentiu uma presença sombria com más intenções. Todo o seu corpo se
arrepiou e ele tremeu de leve. Deve ter lembrando um coelho para seu
captor, bobo e inocente atrás de um pedaço de cenoura.
Mas não tinha escolha já que poderia ter sido pior caso não fizesse o que as
sombras queriam. Uma vez tentou ignorar e o resultado foi horrível o
bastante para acabar sem mãe, sem irmã mais nova e sem lugar para dormir
além da calçada.
Pelo menos o grupo de baixo do viaduto estava a salvo.
Fez única coisa que poderia: Correu. Puxou todo o ar em sua volta para
dentro dos pulmões, sendo castigado pelo vento frígido. Ele correu como se
nada mais existisse, movido por um desejo fortíssimo de fugir e continuar
vivo. Não importava o que acontecia ou o que podia acontecer, Eduardo
simplesmente se recusava a perder naquele joguinho de gato e rato.
Claro que não era a primeira vez.
Ele tinha a noção que não era um alvo. Não acreditava ter sorte o suficiente
para sobreviver àquelas perseguições por que simplesmente não
conseguiam pegá-lo. Não tentavam pegá-lo de verdade. Era só uma
brincadeira, mas se o mantinha vivo Eduardo não iria reclamar sobre.
Se Eduardo procurasse um culpado pelas perseguições seriam as sombras.
Elas eram uma maldição e todos conhecem o costume de caçar pessoas
amaldiçoadas, independente de serem perigosas ou não.
Eduardo nem sequer viu a aparência dos perseguidores. Preferia continuar
cego desse jeito, não carregando consigo a sensação de ser observado e que
poderia ser pego a qualquer instante. Então ele não lutava contra, pois não
conhecia seu “inimigo”, tornando-se uma diversão.
Eduardo chegou em um beco sem saída. Deu mais três passos e perdeu o
equilíbrio, inclinando o tronco para frente enquanto ofegava com dor nos
pulmões e em todo o resto. Tentou pensar, mas a mente era um branco
girando como globo de espelhos. Fechou os olhos com o intuito de se
acalmar e sentir.  
Não tem como eu continuar correndo. O sangue bombeava de forma
pesada no corpo cansado sem estrutura para aguentar corridas longas. Sua
melhor opção era se esconder no beco escuro e esperar os perseguidores
irem embora, como sempre iam.
Ele grudou na parede, esgueirando-se com o cuidado de analisar tudo para
não se surpreender na escuridão. Pelo menos conseguia enxergar mesmo
sem a falta de luz desde pequeno.
Eduardo sentia uma agitação agonizante que o atrapalhava em sentar e
esperar, como se simplesmente não fosse feito para isso. Apoiou as costas
na parede e dobrou as pernas. Abraçou-se temendo fechar os olhos e, ao
mesmo tempo, querendo.
Não queria abri-los para achar uma realidade completamente diferente. O
escuro não era o problema. O que o torturava era o que não podia ouvir ou
sentir.
O que fariam consigo caso o pegassem?
E por que o queriam?
Eduardo não soube dizer quantos minutos se passaram no silêncio
enlouquecedor quando um toque frio o sobressaltou. Era o mesmo do
viaduto. Pulou de onde estava tocando sua bochecha: Possuía uma marca
de gelo onde sentiu o toque. O ar ficou preso na garganta, mas o medo
subiu e comeu seu cérebro. O pior de tudo?
Não podia correr dessa vez. Sabia que se tentasse não teria saída o
esperando.  
O que aconteceu? O que ele fez de errado para ser pego? E o que havia o
pego no final das contas? Por que o jogo terminou?
Eduardo viu palmas reluzentes de tão brancas antes de ter a visão tampada,
mas não sentiu nada contra a pele. Uma brisa gelada passou ao pé do seu
ouvido como hálito. Palavras assustadoras foram sussurradas:
“Você vai até lá, e vai matar antes de ser morto. Eu não vou esperar um
minuto a mais, nem eles. Deixe-me orgulhosa, Legado das Sombras.”
 Eduardo abriu os olhos no escuro – normalmente isso não o incomodava.
Ele conseguia ver claramente na escuridão, então não sofria com a mesma
insegurança das pessoas sobre o breu. Mas aquele escuro era diferente.
Eduardo não conseguiu distinguir mais nada além de camadas tenebrosas
de preto que se deslocavam no ar lentamente.
Havia um grande cubo de gelo dentro da garganta, causando dor demais
para se atrever a engolir. Odiava as manhãs que acordava com a garganta
fechada e fria, pois estas eram as que ele tinha muita saliva na boca. Logo
percebeu que não era só a garganta que estava travada.
De forma sonolenta tentou levantar o braço. Não conseguiu. Tentou com
mais força, sentindo algo o prendendo. Fervia de tão quente, acabando por
queimá-lo. Depois de duas tentativas – quando já estava desesperado - o
objeto tornou-se mais apertado. Só podia ser uma amarra pelo o jeito que a
sentia ao redor do braço.  
Eduardo grunhiu. A adrenalina substituiu sua razão. Debateu-se
loucamente e, em resposta, se queimou várias vezes enquanto seus
músculos eram comprimidos num agarre forte como ferro.
Notou miserável que não usava mais nada além de uma blusa que não
cobria suas pernas, nem deveria chegar nelas.
Após mais tentativas de se libertar completamente inúteis, as primeiras
lágrimas apareceram. Perguntas começaram a surgir. Que lugar era aquele?
Por que não conseguia enxergar naquela escuridão? E por que ela o
assustava?
Virou a cabeça para os lados procurando alguma brecha no breu que o
consumia e transformava sua sanidade em uma fina névoa que se despedia,
sumindo na escuridão como mais uma das sombras.
Sentia um metal gelado e pouco confortável abaixo do corpo, apoiando-o.
Seus instintos berravam para que tomasse uma atitude – não deixar o medo
o segurar. Como era suposto a fazer isso?  
Eduardo fechou os olhos e enxergou uma imagem por um instante. Do
mesmo jeito que apareceu, sumiu. A imagem consistia nele com treze anos
encolhido num lugar apertado e abafado, as sombras do espaço o
envolvendo como braços da mãe que ele perdeu, consolando-o.
Não sabia a quem a agradecer ao ter conseguido lembrar, mas murmurou
um “Obrigado” do mesmo jeito.  

Essas sombras não são normais. Você já notou Eddie. Aquela vozinha no


fundo da mente sussurrou. A respiração de Eduardo quebrou por um
instante. O escuro não seria a sua vantagem e sim a sua jaula.
Quem o prendera havia virado a única coisa que tinha como defesa contra
si.
Enquanto Eduardo olhava para a penumbra, monstros tomavam formas. Ele
podia sentir as respirações grotescas se aproximando sem pressa,
saboreando o seu desespero. Queriam deixa-lo louco, pois fazia parte do
espetáculo. A diferença daquele escuro é que iria devorá-lo.
Eduardo sabia dominar sombras desde criança, nunca pode temê-las como
a mãe temeu. Tinha escutado várias crianças falarem sobre pessoas como
ele, com dons especiais que ninguém conseguia imitar.
Alguns podiam adivinhar o pensamento de alguém, fazer a luz piscar,
erguer objetos apenas com o poder da mente.
Eduardo transformava a luz em sombras e as comandava.
Não importava a quem ele perguntasse ninguém conhecia um dom como o
seu. Até que sua mãe o proibira estritamente de falar o que podia fazer ou
comentar sobre o assunto.
Agora que ela estava morta, Eduardo tentava não sentir culpa enquanto
usava as sombras em situações necessárias. Não considerava mais a
habilidade como um dom, e sim como uma maldição.
Ele forçou a respiração voltar para um ritmo normal, tomando controle do
corpo machucado. Claro que doía. Mas a dor o deixava acordado, então
Eduardo só podia se acostumar. Era um instinto natural seu não desistir.  
Eduardo sobreviveu à pobreza, riqueza, o cativeiro e a total falta dos três;
tudo com pouca idade. Negava-se deixar sua história terminar dessa forma,
por mais assustado e fraco que estivesse.
Cerrou os olhos com força tentando sentir a penumbra. Não iria conseguir
controlá-la se não a aceitasse, perdendo o medo. Precisava dominar
completamente as sombras até que elas desistissem de terem “vontades”.
Uma tarefa nada fácil, principalmente na sua atual situação.
O frio na garganta espalhou-se pelo o corpo, fazendo-o parar no mesmo
instante. Ok, agora era uma certeza: Havia algo modificado nessas
sombras. Tentar alcança-las era como alcançar o próprio abismo: Eduardo
só iria cair sem ter como voltar.  
As lágrimas arderam. Ele não achou mais nada para fazer. Enlouqueceria
ou morreria queimando, sem nunca saber o que causou o fim.
Eduardo berrou. Rugiu como um animal raivoso, não ouvindo e sentindo
mais nada além da própria voz. Continuou gritando e gritando até que
perdesse a capacidade, a dor que falhou em sentir antes o cobriu quando
terminou de se mexer.
Mas ele não parou por conta da dor.
Os olhos de Eduardo dilataram e o maxilar travou. Arqueou as costas, o
calor destruindo o que restava da blusa. Seus ossos se deslocaram
lentamente por conta do aperto, as camadas de pele rompendo no processo.
Eduardo não sentiu nada. Sombras forçavam caminho para dentro dele pela
a boca como se roubassem o ar que respirava.
Os seus olhos tornaram-se buracos negros. Sua resistência morreu e as
costas encostaram novamente a superfície metálica. Sua alma pareceu ter
sido substituída pelas sombras, deixando apenas um corpo.

MILO
Depois disso, ele foi à direção dos soldados o esperando na porta, antes que
eles o chamassem mais uma vez. Os Praticantes era imprevisíveis, mas uma
coisa era certa sobre eles: Eles eram uma força do Complexo que
controlavam os Legados com todos os meios que precisassem, com força
ou sem força. Milo sabia que o melhor para si era obedecer.
Sua inteira existência se baseava na obediência.
Milo poderia ser visto como um agente duplo. Mas a realidade é que ele faz
o que lhe é pedido não por obediência e sim por sobrevivência. Todos os
Legados do Complexo, mesmo sendo tão jovens, entendem bem sobre
sacrificar suas vontades para continuarem respirando. Por
que viver ninguém conseguia num campo de concentração (prazer,
Complexo).
Não importava o quanto eles se esforçassem para serem felizes de alguma
forma, o conhecimento amargo da liberdade perdida sempre pesaria nos
ombros para estragar tudo.
As celas tinham portas iguais, que iam até próximo do teto branco de metal
e alto do local. Para subir você simplesmente ia na rampa que se elevava, e
para descer ia pela rampa que descia. Cada corredor com cinco celas era
chamado de Setor, e o de Reno era o Setor 1. O mais próximo do chão do
pátio.
Eles desceram e o pátio estava vazio, era uma grande área cinzenta. Os dois
lados eram cobertos por paredes os setores e rampas. No final do pátio
havia um palco e na mesma direção, mas do outro lado, havia um elevador.
Mais nada. Era vazio e grande o suficiente para enlouquecer quem passasse
muito tempo ali. A tristeza e a frieza poderiam congelar alguém. Porém,
graças às drogas que eles tomavam ninguém conseguia notar nada.
Muito facilmente os Legados se perdiam. Os corredores inclinavam para
baixo ou para cima de forma imperceptível. Elevadores foram adicionados
recentemente para que a massa geral de Legados não se perdesse mais.
Nenhum deles tinha a permissão de explorar o Complexo de verdade; então
os elevadores funcionaram perfeitamente no que Milo chamava de Andar
Geral. Milo ia para uma área completamente diferente, seguindo para
baixo.
Todos os corredores do Complexo eram feitos de metal em baixo, dos
lados, em cima. Sem nada além de portas e mais portas. Havia ventilações
por toda a parte. Quanto mais se descia, mais as ventilações diminuíam por
motivos de localidade. O Complexo foi construído de baixo da terra,
descendo várias camadas. Consequentemente os espaços ficavam quentes
como fornos insuportáveis para humanos. Legados entravam nessa
categoria. Milo era um Legado, mas não humano. Sua última preocupação
seria a falta de circulação de ar puro ou calor. Na verdade não se lembrava
das suas preocupações físicas, apenas as emocionais.
Milo estava tão concentrado em andar que perdeu a noção do tempo. Ele
foi escoltado até uma parte do caminho, e depois os Praticantes o deixaram
continuar sozinho. Alguns tinham permissão e outros não. Realmente os
Praticantes pareciam muito jovens. Milo questionava-se o quanto da sua
mente tinha sido lavada e o quanto ainda faltava. Eles costumavam ser
Legados, como todos os outros, logo eles perderiam toda a humanidade
graças ao poder, mas é claro que não sabiam disso. Também, não faria
diferença.
Os Praticantes pararam num corredor gelado. Uma grande porta de metal
automática abriu-se quando se aproximaram. Atrás da porta havia uma
sala muito espaçosa branca de teto baixo como a caixa que Milo usava para
treinar.
Naquele dia a sala estava diferente. Eles entraram em uma pequena cabine
que se estendia pelos lados, cheia de máquinas e computadores. A cabine
era demarcada por uma parede de vidro que ia do teto até o chão. Do outro
lado do vidro não se podia ver mais nada além de um denso breu. A boca
de Milo caiu enquanto um calafrio descia pelas costas.
O breu era formado por nuvens completamente negras. Nada mais
conseguia ser visto do outro lado. Em contrapartida a cabine era bem
iluminada pela mesma luz branca forte que se encontrava em todas as salas
que os Primórdios usavam na parte mais baixa do Complexo.
- Milo!
O homem sorridente não parecia muito um humano. Possuía longos cabelos
negros lisos, assim como os de Milo, porém os seus iam até a cintura. A
pele era branca como giz e os traços eram comuns e finos até chegarem aos
olhos. No lugar deles havia dois buracos preenchidos por magma que
navegava como se fosse o sangue que colore os olhos de coelhos albinos.
Usava um casaco longo vermelho-sangue com desenhos em dourado que se
moviam. Consistiam em monstros, guerreiros, figuras mitológicas em
geral.
Tártaro. E do lado dele Gaia. Uma mulher de pele bronzeada e cabelos
cacheados castanhos que lembravam a juba de um leão. Seus olhos eram
verdes como a campina mais clara, porém perigosos e nublados de más
intenções. Possuía traços fortes e brutos que lutavam uns contra os outros
para ganharem espaço.
- É tão bom te ver novamente, preciso dizer. – Tártaro comentou com o seu
tom irritantemente animado e inocente, como se fosse a merda de um irmão
mais velho ou um tio falando com seu ente querido. – Sei que está se
esforçando muito nos seus treinos diários…
- Corta a baboseira! – Gaia quase gritou. Tártaro abusava dele com uma
doçura doente, mas Gaia preferia a violência. – Agora eu sei por que quis
fazer isso aqui no meu laboratório. Eu juro para você, se ele destruir…
- Bah. – Tártaro desprezou. – Não se incomode Pequeno Mundo. Qualquer
dano feito vai ser reparado e voltar ao que era antes.  
- Não vai voltar! Tudo não. Você sabia disso desde o começo. O que mais
pretende tirar de mim?
Tártaro começou a rir, fazendo o rosto de Gaia queimar em ódio e raiva. Os
olhos verdes começaram a brilhar numa cor ácida, parecendo maiores. Milo
recuou e abraçou Mil que sentiu seu medo e se tornou visível. Não queria
ficar perto de Gaia, menos ainda quando ela brigava com os Primórdios.
Ela lembrava um. Agia como um. Mas não era um deles.
- Pequeno Mundo… Você serve para boas risadas, principalmente com esse
jeito irritadinho. – Tártaro franziu o cenho e fez o barulho de um gato
arisco numa tentativa de imitação. – Agora vamos focar no que temos que
fazer, e não nos que atrapalha. – virou para Milo. – Venha. Eu tenho boas
notícias para você: Seus treinos acabam hoje.
- Como?  
Tártaro riu e estendeu a mão para Milo. Se Milo pudesse arrancaria o pulso
dele com os dentes. Entretanto tudo que podia fazer era aceitar antes que a
mão dele passasse muito tempo pendurada no ar. Tártaro o puxou para
perto.
- Tente descobrir. Sinta.
Tártaro deu a volta em Milo. Agarrou seus ombros com força e fez silêncio.
Se ele respirasse, Milo conseguiria sentir sua respiração.
Sem opção Milo se concentrou no breu. Sua primeira reação foi uma
palpitação vibrando por todo o corpo. As sombras espasmaram, sorrindo
receptivas para ele. Milo não via tal imagem, mas sentia. Entendeu tudo.
Claro, não era planejamento de momento. Milo sabia daquilo desde que
fora criado. Sua garganta fechou-se como se tivesse engolido um cubo de
gelo, roubando a sua respiração.
Milo não se sentia pronto. Mal via os outros Legados por conta do treino
intensivo, mas ele nunca quis fazer aquilo. Nunca pediu por isso. Parecia
distante demais para se preocupar.
Agora a responsabilidade era como um monstro com incontáveis cabeças
prontas para devorá-lo. Além do mais, Milo não tinha certeza que após
terminar não ia ser jogado fora. Ele representava uma diversão pequena,
nada que Tártaro perderia muito seu tempo com.
Esses pensamentos – que ele tem mesmo não querendo – não servem bem
como incentivo.
Milo não se incomodava realmente em se machucar ou ser jogado fora no
processo. Mas a situação ali envolvia outra pessoa e ele não pretendia lidar
com o assassinato de alguém. Assassinato consistindo em não ajudar
quando se deve.

Porém, não evitava pensar sobre deixar o Legado no meio do breu ser
consumido pela manifestação do seu Elemento. Era morte, só que ainda era
melhor do que viver no Complexo.
Desse jeito soa bastante piedoso. Milo só precisava olhar para Tártaro
esperando ansiosamente para ter certeza que ele não tinha escolha, então
não adiantava perder mais tempo titubeando sobre não querer.
A resposta certa sempre estava em sua mente e aparecia quando
necessitada. Agora havia tantas respostas diferentes que seu cérebro parecia
estar entrando em um curto circuito.
O que Milo conseguia definir entre a maratona de pensamentos? Medo.
O ódio costumeiro que sentia perto de Tártaro. Um ódio quente, sufocante
que tirava seu ar e deixava seus músculos moles de mais para se moverem.
Como se a sua personalidade derretesse ao redor de Tártaro.

Compaixão.

Existia uma criança no meio daquele breu, e Milo podia salvá-la. Na


verdade, era o único com os poderes para tal. Se Milo o deixasse para
morrer – sofrer – ele não teria paz. Viraria uma Entidade: Legado morto
pelo o próprio Elemento. As almas não descansavam, ficavam presas na
Terra como fantasmas.

Ninguém merecia esse destino. Milo tinha uma reponsabilidade e não podia


fugir. Treinou para esse momento, então precisava mostrar o que podia
fazer. Não por ele, mas pelo o Legado.
Esse era o certo e o racional.
Umedeceu os lábios e assentiu, abrindo um sorriso no rosto de Tártaro.
Gaia soltou um suspiro de exasperação. Sentou-se para operar uma das
máquinas e Tártaro o guiou pelos ombros até chegar de frente para uma
parte do vidro com traços de uma porta.
- As sombras podem me machucar? – Milo perguntou mais por curiosidade
do que por preocupação com o próprio bem estar.
Tártaro balançou a cabeça negativamente, encarando-o com aquele sorriso
odiável.
- Mas o Legado pode. Quando fizer contato com a manifestação do
Elemento dele, vai sentir todos os sentimentos negativos. – Tártaro riu. –
O monstro pode tentar te matar.
Milo engoliu a seco. Muito bom saber que o símbolo que o Legado tinha
era um monstro feito de escuridão. Respirou fundo mesmo não precisando
do ar. A porta de vidro se abriu e, sem aviso prévio, Milo foi empurrado
para dentro.
Curvou-se numa bola para se proteger das sombras. Elas eram raivosas e
passavam por todos os lados, encontrando-se e colidindo como búfalos
loucos por espaço.
Passavam com brutalidade, mas não o machucavam. Soltou uma respiração
aliviada e se esforçou para levantar. Quando ficou de pé soube que não
podia voltar. Apenas precisava pensar no Legado sendo consumido e
afastar a hesitação e o medo ao máximo.
O espaço era quente de verdade, a ponto de incomodar Milo. Sua pele
coçava ao andar na direção que julgava ser uma linha reta. Sentia uma
pulsação forte enquanto avançava, acreditando que viesse do Legado. A
pulsação o comprimiu, espalhando uma vibração pelo seu corpo.
Milo estava tão concentrado em andar que perdeu a noção do tempo. Antes
que percebesse conseguiu achar o Legado. Era um garoto de cabelo cor-de-
mel cacheado e pele morena. A cabeça abaixada impedia Milo de ver seu
rosto. Tinha duas sombras grossas em formato de algemas ao redor dos
pulsos, mãos bem presas no chão. A roupa que usava foi queimada e
mostrava a pele machucada, cheia de marcas e queimaduras.
Parecia tão indefeso, perdido e machucado. Milo se ajoelhou na sua frente,
em parte por perder a força nas pernas e em parte por que precisava. Viu
veias negras aparecendo na pele frágil do garoto, prontas pra se romperem
a qualquer momento. Também viu sombras tomando seu caminho para fora
pelas suas costas, como se saíssem de um buraco negro.
Milo já sabia onde tocar.
Colocou suas mãos no peito do garoto, tateando um pouco para achar
exatamente o mesmo ponto do buraco nas costas. Contra os seus dedos um
coração forte e desesperado se fez presente. Fechou os olhos e respirou
fundo, focando-se em sentir e Controlar.
Dobrou os dedos ao redor do tecido fino que restou da blusa, sentindo
como se eles afundassem até encostarem-se ao coração. Desviou do órgão e
procurou mais fundo até achar uma esfera. Apertou-a em mãos, podendo
vê-la através das pálpebras fechadas. Brilhava com uma cor cinza
enfraquecida, cheia de espinhos dolorosamente cravados.
Todas essas sombras só estavam ali por conta dessa esfera maltratada
dentro da alma do garoto. Era o legado de fato que um Elemento deixou
nele, como um portal para suas manifestações. Os humanos chamam as
manifestações de poderes e nem imaginam o que sejam Elementos além
dos típicos “Água, Fogo, Terra e Ar”.

A missão de Milo era tomar controle da esfera e retirar os espinhos. O


processo doía. Sua consciência começou a falhar como uma lâmpada
avisando que iria pifar. Os espinhos tentavam perfurá-lo e desviar deles era
um esforço a mais. Queriam enchê-lo com os sentimentos e memórias ruins
que passavam como flashs na mente de ambos, semeando mais e mais
sombras. Elas estavam ligadas diretamente com o que havia de ruim no
garoto.
Assim acabou conhecendo mais do Legado. Com muito trabalho ainda
dava para ver a memória boa escondida atrás da ruim. Descobriu que o
nome era Eduardo e ele preferia Eddie. Quando pequeno gostava de brincar
na rua, mas parou ao acabar tendo que viver nela. Ajudava a mãe num
centro para pessoas carentes. Chorou com ela quando descobriu que tinha
uma irmã e sofreu com ela e por ela quando ambas morreram. Uma vida
feliz era destruída a cada memória, sem explicação ou aviso. Os “poderes”
sempre presentes, como assombrações em suas costas enquanto a mãe dizia
para ignorá-los.
Milo não sabia mais como respirar e feridas se abriam nele sangrando e
ardendo como o inferno. Continuou tentando, faltando poucos espinhos
para retirar. Não podia desistir, Eduardo dependia de si. Perto de terminar,
tão perto, tão perto. Quando percebeu que ia quebrar, ele conseguiu.
Milo necessitava aprender a não se misturar tanto com a pessoa, se não os
dois não sobreviveriam. Agora a sua mente era uma bagunça formada por
memórias e emoções que não eram suas. Ia acabar sucumbindo enterrado
abaixo de tantas informações.
Antes de cair na vala da inconsciência, um tiro de racionalidade o atingiu e
sua visão voltou num estralo junto com a audição.
O corpo de Eduardo inclinou para frente e ele vomitou sangue. As algemas
desapareceram de forma lentamente dolorosa. O buraco formado de
sombras puxou todas para dentro, fechando-se enquanto Eduardo vomitava
ainda mais.
Milo forçou o rosto dele para cima e limpou o que podia de sangue na sua
boca com a manga da sua camisa.
No lugar dos olhos havia um preto assustador, até que foi puxado pelo ar
como as outras sombras mostrando seus olhos novamente, mas que não
eram muito normais quando as íris brilhavam em ouro desse jeito.
- Não abaixe a cabeça, continue são. Olhe pra mim. – Milo murmurou.
Eduardo fechou os olhos como se as últimas energias tivessem sido
drenadas e caiu para frente. Milo o segurou, deixando que apoiasse a
cabeça no seu peito.
As sombras desapareceram completamente. Olhando ao redor, Milo achou
vários objetos que Gaia considerava preciosos quebrados e, entre eles, uma
maca sem colchão caída no chão. Virando o rosto, Milo pode ver o sorriso
satisfeito de Tártaro da cabine e a expressão perplexa de Gaia. E ele soube
que, segurando aquele garoto agora, o jogo só começava.

EDDIE
A pressão do ar era diferente.
Quando Eddie voltou, foi a primeira coisa que ele sentiu. Foi como se a
gravidade estivesse tentando expulsá-lo de volta, lutando contra ele.
Eddie jurava que havia morrido.
Havia um buraco enorme desde o momento em que estava preso até agora,
em que acordava. E Eddie não conseguia lembrar-se de algo mais
aterrorizador do que essa falta de informação. Seus sentidos estavam
travando uma batalha para voltarem completamente nesse momento, e
quem sofria mais era ele.
Sua mente parecia estar correndo em círculos por conta do pânico. Era
muita informação ao mesmo tempo. Quase como se ele estivesse dando
erro. Mas sabia que precisava se acalmar e entender melhor, se não seria
pior para si. Quanto mais rápido reagisse, melhor iria resolver.
O problema era entender isso no campo físico, e não só mental.
Depois de algum tempo, que Eddie não faz a menor ideia de quanto tempo
foi, ele finalmente conseguiu se acalmar, pelo menos um pouco. Começou
o reconhecimento aos pouquinhos. Primeiro, onde estava e como estava.
Exatamente, ele se encontrava deitado, numa cama dessa vez. Essa também
era metálica e estava presa na parede.
Eddie sentou-se com cuidado, com dificuldades para voltar a controlar o
corpo. Foi como se ele tivesse se remontado após explodir. Ele grunhiu, e a
dor acabou ajudando-o a desenvolver seu tato. Além da pressão do seu
próprio corpo do colchão, Eddie acabou notando a pressão de outra coisa.
Era… Uma pessoa.
Eddie não podia dizer com certeza se era um garoto ou uma garota, apenas
que era bonito demais. O lembrou dos personagens de contos de fadas,
como as princesas, por exemplo. Se havia alguém real que chegava mais
perto disso, com certeza era a figura adormecida parcialmente apoiada no
colchão.
Antes de pensar direito, Eddie se viu se aproximando da figura. Tinha
cabelos negros e densos até abaixo dos ombros, pele muito pálida e traços
finos e pequenos, apenas os lábios que eram carnudos e pareciam ter um
formato de coração. A figura parecia cansada, assim que nem se movera
com toda a agitação de Eddie.
Mas Eddie não a queria acordada, de qualquer forma.
Ele começou a raciocinar nesse momento, encarando a figura. Ela havia
adormecido apoiada na sua cama, como se estivesse o esperando acordar.
Como se estivesse o vigiando.
Eddie estava livre. Ele já havia notado isso, principalmente por conta das
dores que estava sentindo onde as amarras haviam lhe queimado e
apertado. Mas seu corpo, com certeza, havia se curado. Eddie tinha certeza
que ele havia tido bem mais danos do que os que estavam sentindo naquele
momento.
Também não estava no mesmo lugar de antes. A cama era uma prova disso.
Tinha total certeza que não havia uma parede ao lado dela, se não teria
conseguido sentir enquanto se debatia. Onde se encontrava parecia ser…
Um quarto? Era um espaço pequeno e metálico, com outra cama do lado
oposto à sua, dois armários em cada canto e duas escrivaninhas. O outro
lado estava completamente ocupado. Havia livros, HQ’s, cadernos, roupas,
todo o tipo de coisa que denominava ocupação humana. E uma ocupação
bem bagunçada.
Eddie sentiu-se em outro planeta por um instante.
Ele olhou para cima, deparando-se com um teto alto que era tampado por
canos e ventilações. Tudo era prateado ou branco, demonstrando a falta de
interesse em se criar um ambiente agradável e sim prático. Só havia o
necessário, tanto que o cômodo nem era grande.
Eddie acabou achando a porta. Seu primeiro instinto foi se levantar e ir até
ela. Ele ignorou todas as suas dores e problemas e foi até a mesma, sendo
levado pela forte sensação de curiosidade, medo e estranheza.
Havia uma trava tecnológica pequena que precisava de senha ao lado da
porta. Em seus quatorzes anos de vida, quase quinze, aquela era a primeira
vez que Eddie via aquilo na vida real. Ele quis passar a mão pela trava, mas
se auto repreendeu quando notou que não sabia com o que estava mexendo.
Não era hora para agir como uma criança.
Ele encarou a porta. Havia um visor quadrangular de vidro na porta lisa de
metal, e era a única coisa sobre a superfície. Ele precisava de um código
para abrir? Considerando que ele não fazia ideia que código era, se sequer
precisava de um código, Eddie estava preso.
De novo.
Eddie sentiu o pânico voltando, controlando-o novamente. Ele acabou
tocando a porta, e ela era bem mais pesada do que parecia. Com o seu
pensamento já comprometido, ele começou a bater contra a porta com as
mãos, não causando efeito nenhum. O vidro também era muito resistente
para ser quebrado, e mesmo se Eddie conseguisse nada iria mudar.
Ele conseguia ver coisas que não o ajudavam a decifrar o lugar. Algo como
uma mureta azul, uma rampa e, do outro lado, depois de outra mureta, com
outra rampa, havia outra porta, igualzinha a sua. Isso significava que havia
outras pessoas? Eddie não pode evitar relacionar realmente com uma
prisão. Ele havia sido preso? Pelo quê?
Antes que Eddie notasse ele estava gritando, completamente tomado pela
angústia e o pelo o pânico. Era como se o som reverberasse e voltasse
contra si mesmo. Até o ar naquele lugar estava contra si, e Eddie sentia o
ambiente hostil em ondas violentas. Ondas diretamente em sua mente.
Era tão desesperador só poder ter a visão de uma pequena janela do outro
lado, e ainda assim não saber o que havia do outro lado. O que acontecia, o
que havia aconteceu e por que estava acontecendo. Era como o Cativeiro,
tudo de novo, mas Eddie já havia jurado para si mesmo que não se deixaria
mais ser preso sem ao menos saber do quê.
Então realidade voltava e o fazia entender que ele não tinha controle sobre
nada.
O código. Eddie precisava do código. Até mesmo naquele momento ele
sabia que quebrar a trava não o ajudaria. Eddie virou-se e encarou
a cela por um instante antes de começar a sua procura. Ele nem parou para
olhar, porém a figura continuava adormecida mesmo com toda a agitação
que Eddie estava fazendo.
Eddie derrubou as revistas, os livros e os cadernos, ele olhou em todas as
gavetas, superfícies, ele jogou as roupas longe, tentou procurar por debaixo
das camas e de todos os móveis, num frenesi causado pelo pânico. Não
havia tempo nem para respirar. Ele pegou uma das cadeiras sobre as
escrivaninhas, quando o quarto já estava revirado o suficiente, e a colocou
de frente para o armário, que era alto. Subiu a cadeira, olhando por cima do
armário.
Foi ai que aconteceu.
- Eddie, você… - Eddie levou um susto, caindo da cadeira. – Aaah! Você tá
bem?! Machucou-se?!
Eddie o viu por um segundo. Era a figura adormecida, agora acordada e
agachada perto de si. Ele tinha uma voz masculina, apesar de aguda e
aveludada demais, e seus olhos pareciam duas ametistas, perfeitamente
redondas. Por um instante, foi como se Eddie só conseguisse vê-los e o
resto do mundo desaparecesse.
Isso lhe encheu de medo.
A figura esticou uma mão para lhe tocar, mas foi quando Eddie reagiu. As
costas da figura bateram com força contra o metal da cama e Eddie
pressionou uma lâmina de sombras contra o seu pescoço. A expressão de
Eddie que dominou seu campo de visão era de pura raiva, instinto, defesa.
- Quem é você? – ele sussurrou numa respiração quebrada.
Eddie o empurrou de novo. A lâmina que usava era uma navalha negra
macia e fria como ferro. Boa para fazer um corte rápido no ponto vital da
figura, tirando a sua vida. Eddie rosnou de novo.
Quem é você? Quem é você? QUEM É VOCÊ?!
- Eu sou como você! – a figura gritou, segurando o pulso dele e finalmente
o encarando nos olhos. – Estou tão preso e perdido quanto você! Machucar-
me ou machucar qualquer pessoa não vai te render respostas!  
Não havia medo ou incerteza nas palavras dele. Apenas total razão. Ele
sabia do que estava falando, e o que tinha que fazer. Naquele momento tão
crítico para Eddie, onde sua mente se resumia num mar obscuro de pânico,
foi como enxergar uma luz no final do túnel.
O desnorteou.
Eddie o soltou. A navalha negra sumiu como fumaça. Eddie conseguia criar
pequenas formas como lâminas e cordas… Mas não tinha muita
experiência e nem paciência para treinar.
- Preso. – Eddie repetiu em choque, como se a palavra só tivesse surtido
efeito ao dizê-la. O rosto da figura se contorceu em preocupação. Eddie não
conseguia realmente distinguir. Ele estava vendo, mas não entendendo. –
Eu estou preso. Não. Não. Não. Não, não, de novo não, eu… Eu não…
- Respira. – a figura olhava profundamente nos seus olhos, mas sem tocá-lo
dessa vez. Eddie se viu obedecendo, sendo guiado pela luz roxa. Ainda não
era o suficiente. Ainda não estava em terra firme. – Você não está sozinho.
Você precisa ficar estável. Você precisa se acalmar.
- Estável? ‘Me acalmar? – Eddie repetiu cheio de ultraje. – Como? Como
se eu estou preso? Eu não estou entendendo. Isso não pode estar
acontecendo. Como?! Eu não estou entendendo!
- E você não vai entender se continuar assim. Não adianta eu te contar nada
agora, pois nem está me ouvindo. Não vai registrar informação nenhuma.
- Eu não quero! – Eddie acabou gritando como uma criança. – Eu só quero
sair! ‘Me tira daqui!
- Eu não tenho como te tirar. – a figura continuava com a mesma voz
concentrada, a mesma expressão de preocupação, e a mesma postura calma
e reta, como água gelada não perturbada, exercendo uma influência
poderosa. Era uma aura poderosa.
Mas não o suficiente durante o martírio de Eddie.
- Então eu vou sair! Eu vou sair! Eu preciso sair de qualquer forma!
Antes mesmo de a figura ter tempo de lhe responder, Eddie se ergueu num
pulo, sem o menor controle sobre o próprio corpo, e correu em direção à
porta da cela.
Ou pretendia.
Eddie perdeu o equilíbrio ao ser obrigado a ir para trás, caindo no chão com
força em seguida. A dor não foi nada perto do choque e do susto que sofreu
ao ver uma terceira pessoa dentro da cela. Era um garoto baixinho, que não
poderia passar da estatura média, com a pele clara branca e cabelos negros
muito lisos, porém que só iam até o final do pescoço, com uma franja
grossa sobre a testa. Ele usava óculos quadrados negros e grossos, que
ajudavam ainda mais na tarefa de esconder seu rosto pequeno e redondo,
bastante rechonchudo, assim como o resto do seu corpo por baixo do
moletom cinza pesado.
Mesmo com a tentativa de esconder, seus olhos cinzentos ainda brilhavam
contra a luz e sua beleza era realçada. Ele era um garoto, mas poderia não
ser um se não quisesse. Não no nível da figura, mas havia uma certa
semelhança entre os dois nesse ponto.
- Indo a algum lugar?
Eddie deixou a boca cair ao encarar, de baixo, aquele garoto. Ele bloqueava
a porta com o seu corpo, com uma postura furiosa de braços cruzados. Ele
estava irritado. E era com Eddie.
Agora sim Eddie viu como estava preso e perdido.
RENO
A boca de Reno caiu como não fazia há algum tempo. Os móveis que
encheram o espaço dias após o teste estavam caídos no chão, havia folhas
soltas e ainda mais revistas e livros espalhados, danificados de alguma
forma.  Milo levantou-se, mas continuou ao lado do garoto. Os olhos
cinzentos de Reno o seguiram nesse momento, mas não se focaram nele.
Reno estava tentando entender como a sua cela havia sido tão destruída em
tão pouco tempo. 
- Que… Furacão passou aqui…? – Reno perguntou paralisado na porta por
conta do choque. Suas coisas. As coisas que conseguiam aliená-lo o
bastante para deixa-lo calmo, longe do real lugar que estava. Alguém havia
tentado destruí-las e teria sido menos prejuízo se pisassem nas suas costas. 
- Reno. – uma voz muito familiar chamou a sua atenção antes que sua visão
borrasse e o mundo girasse de mais. Olhando na direção que vinha de
forma automática, reconheceu uma figura que sabia lhe acalmar tanto
quanto os livros e as revistas: Milo. Os olhos dele pareciam duas vezes
mais suplicantes, mas Reno não sentiu a menor compaixão na hora.
- Que merda aconteceu aqui?
- Reno, olha… – Milo tocou a nuca, mordendo o lábio. – Esse é o Eddie.
Eddie, Reno. – ele apontou para um garoto encolhido no chão que Reno
não havia notado até agora. O mesmo levantou o rosto ligeiramente,
deixando Reno ver seus olhos.
Uau. Ele tinha o olhar de um demônio, mesmo sendo obviamente mais
novo que Reno. Talvez um pouco mais velho que Milo, no máximo. A pele
era morena escura e os cabelos tinham cachos volumosos, cor de caramelo
torrado. Os olhos que eram grandes, porém puxados lembrando vagamente
um indígena, eram da mesma coloração que o cabelo. Parecia muito jovem,
mas não deixava de ser perigoso por isso.
Ainda mais no Complexo.
- Então você é o Furacão? – Reno falou sem pensar e, antes que percebesse,
sua irritação era plena nas palavras, como se não pudesse contê-las.
- Reno. – Milo o alertou. – Ele vai se responsabilizar por isso.
Reno soltou uma risada forçada pelo nariz.
- Por que diabos você fez isso? – Reno grunhiu. 
Eddie a ergueu novamente para responder Reno.
- Eu preciso sair. – Eddie respondeu entre dentes. – E você está bloqueando
a saída.
- Isso só pode ser brincadeira. Puta que pariu, além de destrutivo é idiota! –
Reno exclamou alto, soltando a sua raiva. – Onde você acha que vai?! Não
tem para onde ir! Você realmente achou que ia conseguir liberdade depois
que matasse alguém?
- Eu não matei ninguém! – Eddie gritou sem nem pensar duas vezes, no
automático. Ele ia se erguer para ir contra Reno, perdido demais na sua
histeria para racionalizar, quando Milo o segurou contra o chão com o
Controle. Eddie grunhiu de dor ao sentir a influência de Milo se espalhando
pelo o seu corpo.
- Parem. – Milo olhou para Reno de forma rígida e repreensiva. – Os dois.
- O q-quê? – Reno murmurou. – Como você…? – ele perguntava para
Milo.
Antes mesmo de Milo abrir a boca para responder, Eddie se ergueu
repentinamente. Nesse momento Milo sentiu uma pontada de dor pelo
susto, sem ter notado que havia perdido seu Controle sobre Eddie, mesmo
por um instante. A questão era: Milo não havia perdido.
Eddie que quebrara.
Então ele olhou feio para Reno.
- Eu não acredito que falou com ele desse jeito. É assim que recebe todos
os seus colegas de cela?
- Milo. – Reno andou até si, com um olhar maníaco. – Que porra que
acabou de acontecer aqui? Quem é esse cara? Por que você…?
- Ele é minha responsabilidade. – Milo abaixou o tom de voz, sem querer
que Eddie o ouvisse, mesmo que ele estivesse dentro do banheiro. – E você
vai trata-lo decentemente, eu sei que ele revirou todas as suas coisas e que
você está puto por isso, mas você também teve um surto desse nível
quando chegou aqui. Ele não é perigoso. Ele é diferente dos outros Legados
que você divide o quarto.
Reno deu um passo para trás, com uma expressão que gritava o seu súbito
entendimento.
- Ele não passou pelo teste? – o seu tom era mais de afirmação do que de
pergunta em si.
- Não. – Milo murmurou. – O teste dele foi o meu. Ele é o motivo de eu ter
o Controle, e é por isso que eu devo ajudá-lo.
A boca de Reno caiu enquanto ele digeria as informações.
- Ele é o motivo… Ele é o motivo de você existir?
- Shhh! – Milo colocou o dedo indicador sobre os lábios com urgência. –
Eu não quero sobrecarrega-lo com tudo isso hoje. Ele mal consegue pensar.
O garoto precisa descansar, é sério.
Reno deu uma risada debochada cheia de miséria.
- Você realmente acha que ele vai conseguir dormir bonitinho ainda hoje e
esperar pela a hora de contar histórias amanhã? Poupe-me, Milo. O cara
está ensandecido, e não falar para ele só vai…
- O que?
A conversa dos dois foi cortada por Eddie, agora com o rosto e os cabelos
molhados, como se ele tivesse enfiado o rosto debaixo da água no curto
período de tempo que passou no banheiro.
- Só vai o quê?
Aquele instinto defensivo que Milo havia visto nos olhos de Eddie quando
ele o empurrou contra a cama irradiava do corpo do garoto como se em
ondas. Ele iria lutar qualquer um naquele momento, de tão grande era a sua
agonia.
Só rendeu mais vontade de Milo ajudá-lo.
Encarando-o nos olhos, Milo sentiu que estava lidando com um animal
selvagem assustado. Ele se moveu com cuidado, sendo o mais lento o
possível até chegar à cama mais próxima, a que seria de Eddie, e sentar-se.
Eddie franzia o cenho enquanto o observava, tentando entender suas ações.
Ele estava tão confuso e complexado que não conseguiu dizer nada, apenas
acompanhar.
E, como Milo esperava, Eddie acabou repetindo as suas atitudes. Milo teve
que controlar um sorriso de vitória, sabendo que aquilo irritaria Eddie e
tiraria o efeito que Milo havia conseguido causar nele. Não, ele não estava
usando suas manifestações. Apenas a inteligência que era obrigado a ter e
deveria servir para algo.
- Você já pode ser adestrador de animais de circo.
E claro que Reno teve que quebrar o momento. Milo olhou feio para ele de
novo. Eddie piscou várias vezes, desviando o olhar de Milo agora.
- Eddie, - Milo o chamou. – eu peço desculpa pelas atitudes dele. – apontou
para Reno. – E eu entendo o que fez você revirar a cela, porém isso não te
abstrai da sua responsabilidade de arrumá-la. Essas coisas eram de Reno. E
seria muito bom se você pudesse ajudar a coloca-las de volta no lugar.
- Onde é que eu estou? – Eddie simplesmente rebateu mais confuso
impossível. Agora ele parecia menos raivoso, porém o instinto defensivo
estava lá, esperando para florescer novamente. Ele não confiava em
nenhum dos dois. – Eu não vou fazer nada até você me explicar.
- É mesmo? – Milo contrapôs calmamente. – Você diz isso, mas não é
como se fosse me ouvir.
Milo pode ver Reno fazendo caretas ao reagir à conversa.
- Como?
- Você está muito agitado. Tudo que eu disser para você vai entrar por um
ouvido e sair pelo outro.
- Você só pode estar brincando comigo. – com isso, Milo arqueou a
sobrancelha. – E você quer que eu faça o quê?! Eu preciso saber! Não saber
não vai me deixar mais calmo!
- Na verdade nós temos a noite toda. – Milo rebateu, sem alterar a voz por
um instante. Ele era firme e frio como gelo. Nisso, Reno exclamou.
- Oi? Não temos não.
- Você não ia conseguir dormir de qualquer forma. – Milo respondeu Reno.
– Afinal, os pesadelos dele iam te perseguir.
- Isso não pode ser real. – Eddie se lamentou, erguendo-se da cama
novamente. Reno saiu do caminho dele, sentando-se na cama ao lado de
Milo. Eddie pareceu nem o ver, enfiando as mãos entre os cachos
molhados. Contra a luz forte da cela, Milo pode notar que o cabelo de
Eddie refletia em vinho escuro, chegando ao marrom. – Isso só pode ser um
pesadelo. Isso não está acontecendo de verdade. Não é real, não é real, não
é real…!
- Desculpe. – Milo murmurou. – Mas você não vai acordar daqui.
- Daqui onde?!
- O nome politicamente correto é C.C.L, “Centro de Controle de Legados”,
mas nós chamamos de Complexo. É um campo de concentração para…
Bem, para nós.
- Um campo de concentração?
- Um campo de concentração. – Milo reafirmou. – É por isso que Reno -
ele apontou para Reno ao seu lado. – disse que não tem como sair. Para
fora da cela existe um grande Complexo que você com certeza não iam
conseguir explorar agora. Vê? A história é muito longa. Eu pretendo te
contar tudo, mas eu não acho que adianta agora.
- Por quê? – Eddie acabou se aproximando de onde Milo estava. – Por que
você está me ajudando dessa forma? E como que você sabe o meu nome? E
por que diabos eu estou preso aqui também?
- Você sabe a resposta para metade dessas perguntas. – Milo piscou. –
Você não é como as outras pessoas, assim como eu e Reno. Você consegue
fazer coisas que os outros não podem. E foi por isso que foi perseguido e
colocado aqui.
Eddie não respondeu por um instante. Milo pode ver que ele estava
processando, as ferramentas do seu cérebro trabalhando dobrado e quase
fazendo barulho enquanto isso. Eddie deu um passo para trás, sem
perceber. Não havia muito espaço no chão, assim que havia roupas, livros e
mais livros cobrindo espaço, juntando com HQ’s e outras coisas que Reno
mantinha na sua cela.
- Eu fui… Pego e eu fui levado para um lugar escuro. – Eddie parecia estar
pensando alto, enquanto se lembrava. Milo assentiu.
- Eu te salvei de lá.
- Como?
- Com os mesmos poderes que te tornam diferente.
Milo pode ver o pânico se alastrando pelo o corpo de Eddie mais uma vez,
tomando conta de si ao crescer como um monstro devorador. Eddie estava
tendo dificuldades para respirar, perdendo as forças nas pernas e caindo no
chão mais uma vez em seguida.
- Eu achei que estava morto, - Eddie murmurou contra a respiração,
batalhando com as palavras. Ele também parecia estar lutando para manter
a cabeça firme e levantada, e não deixar o resto do corpo deitar sobre o
chão. – mas isso é muito pior.
- É, entrar em um cenário de dark fantasy moderno com certeza é pior que
a morte. – Reno resmungou ao lado de Milo, recebendo um beliscão por
isso. Reno exclamou alto de dor, dessa vez chamando a atenção do garoto
perturbado no chão à sua frente.
- Eu não posso ficar aqui! – Eddie choramingou, enquanto as lágrimas
ardiam e marcavam a sua expressão torturada pela a sua perturbação
mental. Milo só podia imaginar que tipo de batalha ele travava nesse
momento, lembrando-se de todos os sentimentos ruins que havia sentido
dentro de Eddie ao ter que salvá-lo.

O Legado dele se alimenta do negativo que está dentro do garoto.


Milo não pode controlar o calafrio que ouvir a voz de Tártaro em sua
cabeça causou.
- Eu não posso… Eu não posso… – o corpo de Eddie começou a balançar,
e Milo sentiu medo de ele vomitar mais uma vez. Há poucos minutos atrás,
depois que Milo o salvou, Eddie vomitou muito sangue. Ele estava fraco,
desnorteado e em choque. Ele precisava descansar urgentemente. Sabendo
disso, Milo não poderia realmente jogar um monte de informações nele e
achar que ele saberia lidar ou entenderia. Mas não havia forma fácil de
lidar com aquela situação. Em todas as maneiras que escolhesse Eddie não
iria entender as suas intenções. E, sinceramente, Milo não conseguia culpa-
lo. – Eu preciso sair. Eu não posso ficar aqui. Não posso, não posso, não
posso… – ele continuou repetindo, a cabeça caindo para frente enquanto
apoiava as mãos no chão juntas à frente do seu corpo, perdendo o total
controle.
Milo não sabia explicar o tamanho da piedade que ele estava sentindo. Ele
sabia que era irracional nesse nível, porém estava ignorando isso
prontamente, utilizando da sua habilidade como Legado da Sabedoria para
se focar em um ponto só, e trabalhar o melhor que podia com esse foco.
Primeiro, a razão, e depois, só depois no fundo da sua mente, quase
inaudível, existe o que ele sente.
Mesmo que ele não pensasse com as emoções era obrigado a lidar com elas
em qualquer atitude que tomasse. Uma tarefa bem árdua quando se vive
num campo de concentração que prende crianças “diferenciadas” sendo o
brinquedinho dos criadores do lugar.
- Eu sinto muito mesmo, Eddie. – Milo soou baixinho, sem se aproximar
demais, sabendo que a última coisa que deveria fazer naquele momento era
sufocar Eddie tentando tocá-lo ou alcança-lo. – Mesmo assim, você não
tem como. Não somos nós que decidimos isso. Estamos todos presos no
mesmo lugar.
Reno ficou quieto os observando, como se soubesse que aquele era um dos
raros momentos que ele realmente não podia interromper. Milo sentiu-se
grato por isso. Eddie não iria sobreviver muito com gatilhos para a sua
raiva. Ele precisava ficar estável, e começar a pensar coerentemente. Não
era nada fácil, mas ele poderia.
Todos os Legados do Complexo, mesmo sendo tão jovens, entendem bem
sobre sacrificar suas vontades para continuarem respirando. Por que viver
ninguém conseguia num campo de concentração (prazer, Complexo).
Não importava o quanto eles se esforçassem para serem felizes de alguma
forma, o conhecimento amargo da liberdade perdida sempre pesaria nos
ombros para estragar tudo.
Eddie levou um tempo para responder.
- Por quê? – Eddie ergueu o rosto vagarosamente, olhando diretamente para
Milo agora. Havia muita dor, medo e agonia estampada na junção dos seus
traços torcidos, como componentes de uma arte. Uma pintura, viva e
turbada, olhando diretamente para si. – Por que você está fazendo isso?
- Ajudando você? – Milo arqueou a sobrancelha. Eddie não o respondeu,
mas sua expressão concordava. Milo aceitou isso. – Eu não acho que
ninguém sobrevive sozinho. Principalmente aqui.
- Eu preferia ter morrido. – Eddie grunhiu, soando raivoso novamente.
- Essa não é uma opção, infelizmente. – Milo respondeu sincero,
compreendendo o que ele dizia. – Agora, tudo que resta para você fazer é
descansar. Para continuar vivo. A cela está trancada, e só vai abrir
novamente daqui a um bom tempo. – Eddie olhou para ele novamente,
parecendo pronto para rebater e teimar. – Quando ela abrir, eu juro te levar
pelo o Complexo. Você tem o direito de entender tudo que está
acontecendo, e onde está. É que agora não tem condições nenhuma de fazer
isso agora, e eu gostaria que não insistisse.
Eddie engoliu a seco, ainda chorando, porém de forma bem mais contida
do que antes. Ele estava engolindo as próprias lágrimas, se afogando nelas.
Milo sentia como se estivesse vendo uma fênix violenta morrendo várias
vezes e renascendo das cinzas repetidamente.
- Por que eu confiaria em você? – Eddie questionou com a voz retida,
tensa, dura.
- Eu sou o menor dos seus problemas. – Milo respondeu. – Além do mais,
você não tem escolha, tem? – com isso, Eddie ficou completamente tenso,
olhando para Milo como se ele tivesse se tornado um dos monstros que
haviam o colocado ali dentro. Milo era, na verdade. – Eu vou te ajudar do
jeito que for possível. Você precisa ser esperto nesse momento para aceitar,
por mais difícil que seja. – por fim, Milo balançou a cabeça. – Eu não vou
oferecer outros argumentos além desses. Afinal, a decisão é sua, e retórica
não é exatamente a minha praia.
- Eu nem sei quem você é.
Milo ficou quieto por um instante, retribuindo o olhar de Eddie.
- Meu nome é Milo Levesque. – depois, ele engoliu à seco. – Um Legado
da Sabedoria.
- O que isso significa?
- De forma curta? – Reno interrompeu. – Basicamente é sua sentença de
morte. Passagem só de ida para a viagem inesquecível do Complexo. Ou a
sua morte no Complexo. Depende de como for ver.
- Reno! – Milo exclamou, indignado com as atitudes dele. Ele sabia que
Reno não era uma pessoa colaborativa, e que ele sempre optava pelo
caminho mais difícil, mas com Eddie, naquele momento, Milo realmente
precisava de ajuda, pois era o último ser vivo que saberia lidar com a mente
humana, ainda mais tão sensibilizada, sem estraga-la.
Reno também era humano, ele deveria ajudá-lo. Milo não era, e esse é só o
começo dos seus problemas.
- A gente fez alguma coisa?
A pergunta de Eddie confundiu Milo, deixando-o perdido.
- Como assim?
- Nós realmente fizemos algo para estarmos aqui? Isso é merecido? Ser
tratado como monstros dentro de uma jaula. – Eddie dizia entre as
lágrimas, as enfrentando para isso. Sua voz era forte da mesma forma, e seu
tom incisivo. Ele era difícil de domar, e ele era completamente de Milo
para se lidar com.
Que ótimo.
Mas Milo estaria mentindo se dissesse que não havia gostado daquela
pergunta. Era uma pergunta inteligente, que fazia total sentido na atual
situação. E Eddie estava trabalhando para conseguir se estabilizar, apenas
do seu próprio jeito.

- Nós Legados somos humanos em todos os aspectos. – “Vocês, não


eu.” Milo pensou, mas não disse. Por hora, seria melhor omitir. – Não
monstros. Não merecemos isso. É por isso que isso aqui é um campo de
concentração, e não uma prisão.
Eddie parecia estar se revirando em seus sentimentos. Ele olhou para cima,
e arrastou os dentes pelo lábio inferior, tentando reunir auto controle
durante esse momento. Milo podia, literalmente, sentir todo esse processo
de se encontrar em um lugar perdido, para conseguir lidar com ele. Ele
precisava de coragem, e o mínimo de sanidade.
- Por quê…? – Eddie começou, com dificuldades. – Por que, então, somos
perseguidos e presos? Quem diabos faz isso conosco?
- Eu posso te explicar tudo isso depois que você arrumar a cela e descansar.
Não adianta falar muito agora, e te sobrecarregar quando não vai
compreender cem por cento. É complicado do começo ao fim. – Milo foi
objetivo ao responder, mas seu tom era doce. Reno olhou para si nesse
momento, voltando a ser pego pela a conversa. Depois de ser chamado
atenção, Milo pode ver que ele fez o melhor para não participar e muito
menos ouvir, mas ele não tinha como fugir por muito tempo.
Milo jurava que ele não sabia que Eddie iria ser mandado para a cela de
Reno. Era quase como uma piada de mau gosto de Tártaro, e o conhecendo
como conhecia, poderia muito bem ser. Aquela situação toda poderia ser
uma piada, e Milo seria o principal palhaço. Como sempre.
Eddie, repentinamente, se ergueu. Milo se esforçou para poder olhar o rosto
dele, e viu que ele estava no processo de se fortificar, e muito
provavelmente iria começar fazendo aquilo que havia sido dito. Milo sabia
que não era por conta do que ele estava dizendo. Eddie não era obrigado a
ouvi-lo, mas seria mais fácil para si se o fizesse.
E Milo percebia que ele sabia disso.
Ele precisava de tempo. Milo entendia isso. Não queria aceitar esses
sentimentos, mas não podia mentir para si mesmo sabendo que acreditava
em Eddie. Esperava coisas boas dele. A explicação disso não era nada boa,
e Milo estava evitando o máximo o possível analisar os seus problemas no
momento, focado em ajudar e resolver.
Reno olhou desconfiado para Milo, e Milo simplesmente revirou os olhos,
saindo de perto dele para ajudar Eddie a guardar o que ele havia derrubado.
Com mais pessoas, mais rápido seria. Milo não esperava que Reno viesse
ajudar, e ele realmente não se moveu mais do que sentar-se em sua cama.
Milo também não iria culpa-lo.
Eddie pareceu ter entrado em algum tipo de automático, e ele nem olhava
para o lado enquanto consertava o que havia feito em seu surto alguns
momentos atrás. Milo também sabia que ele tinha um sistema de
recuperação muito forte, mas que não era cem por cento confiável. Eddie
precisava seguir em frente constantemente. Ele não conseguia ficar parado
ou preso no mesmo lugar por muito tempo, ávido por liberdade de escolha,
e por isso o Complexo seria o seu maior inimigo. Milo sabia que ele já
estava pensando em diversas formas para causar estragos, e era isso que o
motivava a funcionar e continuar presente, para conseguir o que queria
depois.
- Quanto tempo eu tenho que esperar? – Eddie murmurou para Milo,
entregando alguns livros para si, para serem colocados sobre a
escrivaninha, onde estavam anteriormente. – Até você dizer o que eu tenho
que saber.
- O tempo suficiente para você descansar. – Milo teve que soar mais
repreensivo para que Eddie entendesse que estava falando sério sobre isso.
- Você realmente acha que eu consigo dormir? – Eddie já estava
esbravejando. – Eu desmaiei várias vezes, e acordei em um lugar pior em
todas elas. Eu não vou baixar a minha guarda de novo.
- Você não tem isso. – Reno soou entediado atrás deles.
- O quê?!
Eddie se virou na direção dele. O garoto deu de ombros.
- Ninguém aqui tem proteção. Guarda. Chame do que quiser. Existem
câmeras em todos os lugares, opressores em todos os lugares. Nós fazemos
o que eles esperam de nós, e agora é o horário de dormir.
Eddie parecia pronto para voar no pescoço de Reno em resposta. Agora
Milo tinha certeza que não podia largar os dois sozinhos, sinceramente. Ele
nem conseguia culpar Eddie. A situação já era difícil o suficiente sem os
comentários brilhantes e empáticos de Reno. Se Milo fosse humano, ele
teria voado no pescoço de Reno também.
Mas Eddie estava realmente se segurando. Como se soubesse que machucar
Reno não agregaria nada para si, mesmo queimando em raiva. Ele tinha um
bom julgamento, no final das contas. Um bom coração. Só que Milo não
fazia ideia se bons corações tinham data de validade, e quando era a de
Eddie. Ele era uma bomba prestes a explodir. E Milo teria que apaziguar a
situação quando ela chegasse. Poderia ser agora, e disso Milo temia muito.
- Eu só vou ter descanso quando eu sair daqui. – Eddie resmungou
limpando o rosto, os vestígios das suas lágrimas e o descontrole. Mas ele
passou muito tempo esfregando a pele, e isso fez com que Milo notasse que
ele estava chorando de novo. Milo sentiu uma extrema compaixão pelo
pobre garoto de quatorze anos. Ele não tinha maturidade para lidar, não era
surpreendente.
Pela a primeira vez, Milo sentiu que precisava ajudá-lo. Era uma sensação,
quase ultrapassando as barreiras metálicas do seu pensamento racional,
como se fosse forte o suficiente para conseguir sair do fundo da mente e
dominar as suas atitudes. Aquilo não acontecia, ou não deveria acontecer,
com um Legado da Sabedoria.
Principalmente um que não era humano.
- Senta um pouco, Eddie. – Milo pediu o mais doce possível, enlaçando a
sua voz com Controle. Tentou não se sentir muito culpado por isso. Eddie o
obedeceu, por conta do Controle. Ele começou a tampar o rosto com os
dois braços, aumentando o choro. Milo tinha certeza que os olhos dele
deveriam estar inchados e doendo. Seria melhor se ele dormisse. Eddie
estava lutando contra isso, mas Milo não podia deixar.
Não sendo responsável por ele.
Milo se inclinou à frente de Eddie, sentado na cama, ainda sem vê-lo. Milo
aproximou o rosto dos seus braços, e trouxe as mãos fechadas em punho
para perto do seu próprio peito, sussurrando em seguida:
- Durma, Eddie. Descanse até o seu choro secar.
Milo acabou cambaleando quando Eddie finalmente caiu para o lado na
cama e dormiu. Ele não estava acostumado a usar tanto em Controle dessa
forma, apenas treinando com os poderes antes de Eddie aparecer, nunca os
colocando em prática. E Milo já havia usado muito para salvar Eddie,
quando ele estava sendo consumido pelas próprias sombras.
Longa história.
Milo não sabia muito bem qual era a sua relação com o Controle. Onde ele
terminava e o Controle começava. Afinal, Milo havia sido criado em
função do Controle. E, muito provavelmente, para usá-lo naquele dia, com
Eddie.
Assim acabou conhecendo mais do Legado. Com muito trabalho ainda
dava para ver a memória boa escondida atrás da ruim. Descobriu que o
nome era Eduardo e ele preferia Eddie. Quando pequeno gostava de brincar
na rua, mas parou ao acabar tendo que viver nela. Ajudava a mãe num
centro para pessoas carentes. Chorou com ela quando descobriu que tinha
uma irmã e sofreu com ela e por ela quando ambas morreram. Uma vida
feliz era destruída a cada memória, sem explicação ou aviso. Os “poderes”
sempre presentes, como assombrações em suas costas enquanto a mãe dizia
para ignorá-los.
Milo necessitava aprender a não se misturar tanto com a pessoa, se não os
dois não sobreviveriam. Agora a sua mente era uma bagunça formada por
memórias e emoções que não eram suas. Ia acabar sucumbindo enterrado
abaixo de tantas informações.
- Você realmente é bom em piorar uma situação ruim. – Milo suspirou ao
olhar para Reno novamente, depois que Eddie estava ressonando na cama.
Milo ergueu suas pernas, o ajeitando na cama para que ficasse confortável e
conseguisse descansar, cobrindo-o em seguida.
- E você está parecendo uma babá psicótica.
- Reno. – Milo alertou mais uma vez, olhando feio para ele. – Eu não
escolhi isso.
- ‘Tá, eu sei, mas eu realmente tenho que ficar calmo? Sério? Depois que
ele praticamente destruiu o meu quarto, e provavelmente vai destruir você?
Milo alongou os olhos.
- O que você quer dizer com isso?
- Milo… – Reno pareceu estar encontrando palavras para colocar em uma
frase, lutando por um momento. – Se ele está aqui, então como você vai
continuar vivo?
Então Milo finalmente entendeu.
Até agora, ele nem havia parado para pensar nisso, nunca realmente se
preocupando com a sua existência ou dando-lhe importância. Mas fazia
total sentido, e Milo entendia o medo de Reno. Não tinha certeza que após
utilizar o seu poder em Eddie não ia ser jogado fora. Ele representava uma
diversão pequena, nada que Tártaro perderia muito seu tempo com.
Milo não teve tempo de dizer nada sobre isso, porque a cela de Reno abriu
nesse momento. Ninguém podia transitar no Complexo naquele horário,
ninguém menos os Praticantes. E eram esses que estavam parados na porta
da cela, com suas fardas militares negras, postura rígida de robôs, apesar de
ainda serem humanos, sem nenhuma emoção nos olhos.
- Milo Levesque. – uma deles chamou, olhando diretamente para si. –
Tártaro te requisita nesse exato momento.
Reno olhou com pânico para Milo. O garoto só pode ficar exasperado. Não
tinha como fugir. Milo já havia ido tão longe, fazendo exatamente tudo que
queriam, não podia parar agora. Era só difícil olhar para Reno, a única
pessoa que ele havia se aproximado desde o começo da sua existência, e
deixa-lo em seguida.
Milo sabia que ele merecia mais. Mas aceitou que nunca poderia dar, há
muito tempo atrás. Era trágico, mas era a realidade. E como Legado da
Sabedoria, ele nunca conseguia ignorar a realidade. Seus sentimentos nunca
o nublavam e ganhavam a luta contra a razão e a emoção. Só existia a
razão, em todas as situações.
Esse era o preço de ter sempre a resposta certa em mente.
- Vai ficar tudo bem. – Milo murmurou para Reno ao passar por ele,
segurando o braço do garoto por um instante.
- Então diga que vai voltar. – Reno respondeu no mesmo tom, mas
desesperado e nervoso. – Por favor. – ele disse mais baixo ainda, se
deixando ser frágil dessa forma.
Milo realmente queria dizer, para acalmá-lo. Era horrível vê-lo dessa
forma, principalmente por sua culpa. Mas… Ele não tinha essa resposta.
Tudo dizia que ele iria ser executado ao ser levado de volta, e as chances de
continuar vivo eram minúsculas.
- Eu te direi quando voltar. – Milo acabou dizendo, não contando uma
mentira, e sim uma meia verdade.
Depois disso, ele foi à direção dos soldados o esperando na porta, antes que
eles o chamassem mais uma vez. Os Praticantes era imprevisíveis, mas uma
coisa era certa sobre eles: Eles eram uma força do Complexo que
controlavam os Legados com todos os meios que precisassem, com força
ou sem força. Milo sabia que o melhor para si era obedecer.

EDDIE

Eddie acordou em um solavanco, procurando desesperadamente por ar. Ele


estava sufocando durante algum pesadelo terrível, mas não importava o que
fizesse, nos minutos que passou sentado tentando acordar de verdade e se
acostumar com a realidade ao redor de si, Eddie não conseguia se lembrar
qual foi o pesadelo que quase o matou durante o sono.

Por um instante ele achou que eram todas as memórias do dia anterior.

O seu corpo caiu novamente no colchão da cama que estava, encaixando a


cabeça em um travesseiro macio demais e um colchão claramente
ortopédico confortável demais, deixando Eddie extra incomodado, sentindo
suas roupas grudarem no seu corpo por conta de estar suando frio.

Sua visão se estabilizou, deixando que ele finalmente reconhecesse o


ambiente. Ele já sabia, instintivamente, que não havia sido um pesadelo.
Mas ver a mesma cela do dia anterior fez seu estômago se revirar com
força. Ele segurou a vontade de vomitar, fraco demais para isso. Sentia
como se estivesse em um ciclo infinito de acordar em lugares piores, e
sabia que era verdade.

A realidade de Eddie sempre foi essa.

Não é a primeira vez na vida do garoto que ele é sequestrado e mantido em


cativeiro. É triste e doentio afirmar isso, mas é a verdade. Eddie sentia isso
em todos os seus ossos, e logo um temporal de sentimentos dentro de si fez
com que ele sentisse vontade de chorar. Mas se segurou. Ele não choraria
mais. Ele sabia que não era isso que deveria fazer.

Em vez disso, Eddie levantou-se da cama em um pulo e foi até o banheiro


que havia utilizado no dia anterior. Ele também não se lembrava em que
ponto havia ido dormir, com certeza deve ter desmaiado para poupar o seu
cérebro de todo o estresse emocional que estava passando. Agora, não se
sentia uma pilha de nervos, prestes a explodir. Mas isso não quer dizer que
ele estava bem.

Provavelmente nunca ficaria até sair daquele lugar.

Havia um armário dentro do banheiro. Eddie não havia o notado de verdade


antes, então ele foi até o objeto, tocando em uma madeira fria pintada de
cinza. Ela quase se camuflava no banheiro que, diferente do resto da cela
branca, era cinza de mais. Era um armário de porte médio, colocado ao
lado da piada rente à parede, que não tinha vidros, por isso o único jeito de
saber o que ele continha era o abrindo.
Eddie esperou que ele estivesse trancado, assim como tudo naquele lugar
maldito, mas acabou o abrindo com facilidade. Havia toalhas e roupas ali
dentro. Eram basicamente as mesmas roupas que usava no atual momento,
em que não se lembrava de ter colocado. Ele se perguntou se haviam mais
dentro do armário que estava do seu lado na cela.

Eddie olhou para si mesmo mais uma vez: Estava encharcado de suor. Sem
contar que haviam se passado três anos e meio que ele não tomava um
banho decente, um banho real. Ontem, tudo que ele fez foi jogar água no
rosto e no cabelo. Logo, seus olhos caíram sobre o box fechado no atual
momento, escondendo o chuveiro.

Eddie pegou as roupas e uma toalha, sentindo uma falta aguda do seu
casaco militar sobre os ombros. E de seu relógio dourado. Tentou não
pensar muito nos dois, mas era impossível. Eram seus únicos bens
preciosos que haviam restado da sua antiga vida, antes do primeiro
cativeiro, antes da rua. Sem eles, Eddie realmente não tinha mais nada.

Nem um resquício para provar que os De La Mena existiram.

Quando Eddie sentiu a água morna, irritantemente agradável em seus


músculos tensos, foi como se cada gota estivesse laçada com miséria. Era
tudo que ele conseguia sentir, conseguia identificar. Sentiu o mesmo
sentimento lá pelo seu terceiro dia de cativeiro, dentro do porão.

Realmente, ele tinha que admitir: Ficar limitado era seu ponto fraco. Era o
jeito mais fácil de derrubá-lo. Eddie sempre foi um garoto imprudente, uma
pessoa de ações, e não poder fazer nada era como cortar a sua
personalidade pela a metade. Aquilo tudo era tão surreal. Ele queria que
aquela água limpasse as suas ilusões e o salvasse, revelasse que, por trás de
um véu cruel, ele estava em casa com a mãe, são e salvo, vivendo como
deveria viver. Nada do que havia passado tinha sido real.

Porém, a água não iria fazer isso. Eddie deixou as lágrimas se misturarem
com as gotas e fingiu que não estava chorando. Que ele não estava
sofrendo em todos os pontos do seu corpo. Ele olhou para as próprias mãos,
ficando vermelhas sobre o jato quente de água, e viu sombras as rondando,
sempre presentes consigo. Era um constante lembrete do quê havia virado a
sua vida de cabeça para baixo.
Depois que sua crise se aquietou, aconchegando-se nos cantos escuros da
sua mente, sempre em alerta para se apresentar de novo e tomar posse da
situação, Eddie saiu do banho e vestiu a camiseta branca com o jeans azul.
Calçou os tênis que também eram do Complexo, e saiu do banheiro mais
perdido do que quando havia entrado.

Ele não tinha um plano. Não tinha ideia do que deveria fazer. Sabia o que
queria, mas com menos pânico, terror e desespero nublando a sua mente,
conseguia reconhecer que provavelmente não estava em posição de realizar
os seus desejos. Não, Eddie havia sido jogado na posição de vitima, então
alguém realizava seus desejos consigo, independente do quão cruéis eram.

De novo.

Quando voltou a cela, a primeira coisa que viu foi Milo de costas para si, à
frente da cama de Reno. E a primeira reação de Eddie foi:

- Como caralhos você entrou aqui? – Eddie franziu o cenho, odiando a


confusão que tomou força em si. Ele lembrou-se que não sabia de nada que
estava acontecendo, e lembrou-se que Milo havia se negado a explicar para
si quando pediu.

Milo virou-se lentamente, não parecendo surpreso em nada. Ele era tão
estranho, realmente. Tinha olhos intensos daquela coloração roxa, que
pareciam estar sempre enxergando a alma de alguém. Mesmo assim, era
impossível de lê-los. Ele tinha uma daquelas expressões inexpressíveis e
duras como pedra, que não entregavam nada do que ele estava realmente
pensando. Sua postura era perfeita demais, assim como a sua eloquência na
hora de falar e o extremo tom calmo que ele assumia mesmo quando
parecia impossível.

Toda a figura de Milo deixava Eddie desconfortável, confuso e


incomodado, quando colocada no atual lugar que eles estavam. Como ele
havia chamado? Complexo? Não fazia diferença. Era apenas uma prisão,
como todas as outras. Não merecia um nome.

- Bom dia para você também. – Milo respondeu baixinho, sem parecer
realmente incomodado em nada. – As portas são automáticas. – ele olhou
para a porta da cela ao dizer, e Eddie seguiu os olhos dele, vendo que havia
uma trava tecnológica ao lado da porta ali dentro.
- Como é? – Eddie exclamou na mesma hora. – Ontem você me disse que
estava trancado! Vocês dois nunca me deixaram ver aquela porra ali! –
apontou para a trava, sentindo-se muito perto de furioso. Ele não sabia no
que acreditar no que não acreditar. Eddie estava perdido e não tinha
controle o suficiente para não gastar em alguém. A miséria e a tristeza
rapidamente viravam raiva com ele.

- E estava. – Milo não se alterou. Eddie pode notar Reno, com uma careta
horrível, se movendo atrás de si na cama, sentando-se mais lentamente do
que uma lesma. – Ontem foi o seu primeiro dia. Não era uma boa ideia
deixar que você saísse da cela e visse as outras trezentas crianças como
você do lado de fora, não do jeito que estava.

- Meu primeiro dia. – Eddie repetiu incrédulo e furioso. – O que é isso?


Ensino Médio? Vai se fuder. Você me prendeu também. Que porra é você,
afinal? E o que diabos eu estou fazendo nessa merda de lugar?

Milo demorou mais para responder dessa vez. Nesse instante de silêncio,
Eddie acabou notando como não estava respirando e que seus pulmões
começaram a doer. Ele sentia um constante arrepio, uma sensação de
fraqueza e frio, provavelmente por conta daquele ar artificial ao seu redor
causado por aquele cano. O pensamento de nunca mais ter ar puro o
aterrorizou até o último fio do cabelo.

E o enfureceu.

Reno estava encarando com os olhos cinzentos que pareceram mais escuros
naquele momento, sentado na sua própria cama. Ele não era impassível
como Milo. Era claro o seu desgosto e desconforto em toda a sua expressão
corporal, principalmente pelo o seu rosto. Mas realmente Eddie não podia
se importar menos com o que ele sentia.

- Você não me responde, desde ontem. Apenas com respostas malfeitas e


fudidas. – Eddie continuou, sem conseguir parar. – Você disse que estava
me ajudando, mas não é isso que parece. Que porra que você está
esperando de mim? O que quer que eu faça?

Com isso, Milo respirou.

- Eu trouxe isso para você.


Só nesse momento Eddie notou que ele carregava algo nos braços. Era o
seu casaco militar, dobrado perfeitamente. Eddie correu para pegá-lo, sem
nem mesmo pensar duas vezes. Foi instintivo. Ele praticamente arrancou o
casaco das mãos de Milo, sendo abatido por um alívio enorme ao sentir o
tecido mais uma vez.

Eddie o colocou na hora, diminuindo quase imediatamente a sensação de


fraqueza e frio que sentia antes. Ele enfiou as mãos nos bolsos, e teve que
se controlar muito para não cair no chão e chorar de alegria ao sentir o
relógio de bolso dos De La Mena. Era tão bom que nem parecia ser real.
Mas pensar isso o fez voltar para a realidade. Para o que estava
acontecendo naquele exato momento.

Eddie olhou para Milo novamente, pronto para falar mais, porém Milo
cortou qualquer tentativa:

- Eu disse um milhão de vezes, Eddie, mas eu vou repetir mais uma: Eu não
sou seu inimigo. Eu sei que eu não te expliquei o que você merece saber,
mas se você consegue lembrar-se disso, deveria lembrar que eu também
disse que, no momento que descansasse; que se acalmasse, eu iria fazer
isso. Eu iria te mostrar o que está do lado de fora dessa cela.

As memórias estavam todas estremecidas pelo o ataque de pânico e


ansiedade que ele havia tido, mas ele conseguia lembrar-se de Milo
dizendo isso.

- Me acalmar? – Eddie murmurou.

- Sim, se acalmar. – Milo não hesitou. Reno revirou os olhos atrás de si,
sem ter movido ainda. Provavelmente os esperava terminar. – Você me
ouviu? Quando eu disse que existiam trezentas crianças do lado de fora, eu
não estava mentindo. Se você quer sair da cela, você precisa entender que ir
contra elas é ir contra a si mesmo.

- Então esse lugar maldito tem regras? É isso que você quer dizer?

- Uma desculpa esfarrapada de regras. – Reno grunhiu, perdendo a sua


paciência. Ele se levantou com certa dificuldade, parecendo tonto e frágil.
Ele era muito baixo e tinha a aparência de alguém gripado, sofrendo de
febre e indisposição. Mesmo assim, ele passou por Eddie com certa
agressividade, mas foi rápido demais para Eddie sequer pensar em reagir.
Ele se trancou no banheiro em seguida.

Milo observou a porta fechada por mais alguns segundos.

- Eu posso te mostrar tudo e explicar tudo. – Milo voltou a olhar para ele ao
dizer isso. – Eu só... Eu preciso da sua cooperação. Por mais difícil que
seja. – nessa pequena pausa, a voz de Milo quebrou. O tom impassível e
inflexível mudou, e se tornou um pouco inseguro. Um pouco real. A
mudança súbita pegou Eddie.

Milo estava se esforçando também...?

Isso até mesmo fez Eddie notar que ele estava tão preso quanto si. Mas isso
não respondia as perguntas que o tornavam suspeito. Milo parecia saber
demais, parecia controlado demais, focado demais. Eddie, realmente, não
achava seguro confiar nele. Ou em Reno. Ou em nada ou em ninguém. Ele
estava em um lugar hostil e todos eram seus inimigos.

Mas Eddie não era tão imprudente ou tão mente fechada. Ele sabia que
você mantinha seus amigos perto, e seus inimigos mais perto ainda. Se
Milo seria útil pelo o momento, Eddie deveria aceitar. Era a única coisa que
ele tinha, por mais que odiasse e fizesse seu orgulho queimar.

- Ok. – Eddie finalmente respondeu, vendo a expressão de Milo mudar para


uma de pequeno alívio. - Eu só quero entender que porra que tá
acontecendo.

Milo soltou uma respiração.

- Compreensível. E... Sobre a questão da cela, você não iria poder sair
mesmo que eu e Reno deixássemos. Cada dia aqui é separado em horários.
O primeiro horário, quando as celas se abrem, é como se fossem as
manhãs. O segundo horário, é tarde. O terceiro horário é o entardecer, e o
quarto horário é noite. Nesse momento, todas as celas se trancam e você
não pode sair delas.

- Mas você saiu. – Eddie apontou arqueando as sobrancelhas.

- Eu fui escoltado para fora, do mesmo jeito que eu fui levado para dentro
depois que eu te salvei. E foi assim que eu consegui o seu casaco. – ele
apontou fracamente. – Ele estava com você quando foi sequestrado, por
isso foi mantido. Eu pedi, e consegui fazer com que me dessem.

- Quem? – Eddie não poderia soar mais confuso, não sabendo nem metade
do que Milo estava se referindo. Nesse momento, foi como se Milo se
reconstruísse, como se notasse que estava deslizando e errando.

- Desculpe. Eu devo parecer estar me comunicando por códigos. Vamos


começar a andar e eu te explico no caminho. O primeiro e o segundo
horário são curtos, considerando tudo que você vai precisar ver.

Dessa vez, foi um grunhido longo e sofrido que cortou os dois. Milo se
inclinou para o lado para olhar o que era, e viu Reno que parecia estar
ouvindo dois políticos de direita fazendo um discurso, morrendo
lentamente agora que havia saído novamente do banheiro.

- Só saíam da minha cela. Os dois. – ele alongou as palavras quando elas


saíram da sua boca. – Eu não aguento mais as vozes de vocês. Acabei de
acordar, e para começo de conversa eu costumo nem acordar.

Eddie quis abrir a boca e dizer algo bem malcriado para Reno, mas Milo o
cortou ao praticamente o colocar para fora:

- Tudo bem. Nós vemos mais tarde.

A resposta de Reno foi só um grunhido alto.

Mas Eddie não prestou atenção. Não no momento em que ele finalmente
estava para fora da cela, e dentro da real jarra de pandora. Da real prisão
gigantesca que o cobria por todos os lados. Ele nunca achou que veria uma
construção do tipo, mas ali estava: O teto do Complexo era alto, bem longe
das suas cabeças, cheio de canos e ventilações por cima. As celas tinham
portas iguais, que iam até próximo do teto branco de metal e alto do local.
Para subir você simplesmente ia na rampa que se elevava, e para descer ia
pela rampa que descia.

Eles desceram e o pátio estava vazio, era uma grande área cinzenta. Os dois
lados eram cobertos por paredes os setores e rampas. No final do pátio
havia um palco e na mesma direção, mas do outro lado, havia um elevador.
Mais nada. Era vazio e grande o suficiente para enlouquecer quem passasse
muito tempo ali.
- Você sempre tem que voltar para o pátio durante a terceira hora. – Milo
chamou a atenção de Eddie ao explicar, quando eles atravessavam o pátio.
Eddie olhou para Milo mais uma vez.

- O que acontece se eu não quiser?

- Eu acho que você já percebeu. – Milo apontou para cima. Eddie seguiu o
seu dedo, e pode distinguir câmeras de alta tecnológica junto com os canos
e ventilações. – Tudo que fazemos ou falamos é gravado. Se você
desobedecer, eles vão te achar e te punir.

- “Eles” quem?

- Nós vamos chegar nesse ponto. – Milo chamou o elevador ao dizer isso.

- Não é melhor já dizer agora? Você disse que ia responder as minhas


perguntas.

- Eu estou fazendo isso. Mas eu também sei que a explicação que você quer
vai ser muito longa, e não temos muito tempo antes do terceiro horário,
então é melhor que você consiga conhecer tudo do Complexo hoje e, ao
final, eu digo tudo que quer saber.

Eddie grunhiu alto, afundando as mãos nos cabelos por um momento em


pura frustração. Após isso, o elevador finalmente chegou, e Milo não
perdeu tempo em entrar. Para o seu alívio, Eddie o seguiu, mesmo que
contrariado.

- Me diga para onde estamos indo, pelo menos. – ele resmungou. – Eu não
sei o que eu estou odiando mais: Isso tudo ou você, o jeito que você decide
as coisas. Sempre odiei depender de qualquer um, e você torna isso cem
vezes pior.

- Obrigado. – Milo respondeu simplesmente, fazendo Eddie cerrar os


dentes para si. – Olha, desculpa. Desculpa por tudo isso, mas eu ainda sou
muito gentil comparado com os outros aqui. Você realmente precisa
aprender a lidar.

- Você quer que eu lide com porra nenhuma.

- Basicamente, sim, é assim que funciona no Complexo. – Milo assentiu. - ,


Esse é o andar I. Ele é o único especificamente para um só objetivo: Os
quartos. No andar II tem o refeitório e a enfermaria. No andar III, tem a
estufa, o lounge e a sala de jogos. No andar IV, é onde fica a biblioteca.

Esse foi o momento em que Eddie ficou mais ultrajado, confuso e


incomodado desde que chegou.

- Isso soa ridículo. O que diabos há com essas salas? “Sala de jogos”?
“Lounge?” Qual é a dessa porra de lugar?

- Eu não posso dizer com certeza que a ideia foi criar o lugar mais
incomodo no planeta terra, mas de qualquer forma, eles conseguiram.

Eddie se deixou encostar-se à parede do elevador, que era bem amplo, já


que tinha que oferecer espaço para trezentos Legados de uma vez. Ele
havia parado de respirar há algum tempo, e se forçou a fazer isso.

- Eu vou ficar muito irritado o tempo todo nesse lugar, não vou? – ele
murmurou cheio de decepção, ainda de olhos fechados.

- Vai. – Milo murmurou em resposta. – Me desculpe.

- Não é sua culpa. – Eddie soou estrangulado, apoiando as costas


completamente na parede do elevador, escorregando até cair no chão. –
Não é... Não é sua culpa. Eu só... Eu só... Eu só tenho que entender isso.

- Eu vou te levar para o andar III. Você precisa comer alguma coisa.

- Eu achei que o refeitório ficasse no andar II.

Milo revirou os olhos.

- Acredite em mim, não vai querer ir lá agora.

Quando Eddie finalmente levantou, o elevador havia parado no terceiro


andar e suas portas se abriram, revelando um corredor extenso, tão cinza,
metálico e vazio quanto o resto do Complexo que Eddie havia conhecido
até agora.

- Onde nós estamos indo agora, então? – Eddie perguntou

- E você também não vai gostar da resposta. – Milo respondeu sincero.

Eddie grunhiu.

- É uma das salas escrotas que você acabou de listar, não é?


- Claro. – Milo gesticulou com a mão no ar ao dizer. – Essas são todas as
salas do Complexo.

- Ótimo. Eu me sinto consolado e encorajado.

- Você mesmo disse, - Milo olhou para ele ao dizer, com olhos antinaturais
na coloração roxa brilhando, como duas ametistas na luz forte do
Complexo. – não é possível se consolar nesse lugar. A realidade é essa, e a
tendência é sempre piorar.

Eddie arqueou as sobrancelhas, mesmo com a expressão conflitada e com


os traços aflitos que trazia desde que acordara na sua cela, com o rosto
úmido por conta do choro. Ele parecia ser capaz de utilizar da ironia
mesmo em seus piores momentos de agonia, como um mecanismo de
defesa.

As portas do elevador se abriram e mostraram os corredores do terceiro


andar que eram bem maiores do que os que Eddie havia visto, mas não
havia nada de diferente neles. O Complexo realmente seguia o padrão.
Chegaram às portas de vidro automáticas grandes e transparentes, e a boca
de Eddie caiu mais uma vez.

Era uma pequena selva de vidro, com o teto alto e abobado brilhando em
luz solar artificial, todas as paredes eram feitas de vidro que refletia metal
por trás, puro e novo, junto com o chão que parecia ser feito de tijolos
brancos, lembrando com os tijolos amarelos do Mágico de Oz, isso aonde
não havia terra ou onde você podia ver.

Eddie sentiu a pressão de ele cair de repente. Era muito surreal. Ele nunca
havia visto uma estufa na vida, e duvidava que elas pareciam dessa forma.
O fato de a sua primeira vez ter sido naquela prisão o chocava e o chateava
em níveis extremos, enquanto tentava entender como era possível um lugar
tão bonito dentro daquela construção opressora de metal e ferro.

O lugar era todo metalizado, grande e impenetrável. Ele notou como tudo
foi perfeitamente construído para guiar os componentes num caminho e
camuflar outros, como o sistema humano. Nenhuma corrente errava seu
caminho, pois se errasse tudo pararia de funcionar. Era realmente um
mundo compacto e sufocante. As paredes davam a sensação de estarem
inclinadas, como se fossem se fechar sobre ele a qualquer instante.
A estufa era completamente diferente disso.

- Milo? – uma terceira voz o despertou do transe pesado que Eddie entrou
por conta do choque e da descrença causados pelo o ambiente. Ele olhou na
direção da voz, encontrando uma figura franzina e magra segurando dois
potes de barro com plantas enormes.

- Oi, Fiona! – Milo exclamou, soando cem vezes mais animado do que
quando estava interagindo com Eddie. Ele sorriu para a figura, que foi até
uma bancada e deixou os dois vasos do lado de outros, finalmente
mostrando a sua aparência: Ela tinha a pele branca cheia de sardas, e cabelo
vermelho claro e escorrido, chegando até o meio da cintura, puxado para
trás para não atrapalhar a sua visão. Usava basicamente uma versão
feminina da roupa de Eddie: Blusa branca e calça jeans azul clara. Eddie
notou que deveria ser uma roupa básica do Complexo. – Elas estão lindas.
– Milo comentou sincero, aproximando-se da bancada e acariciando a folha
do que Eddie tinha quase certeza que era uma samambaia.

- Obrigada. – a tal de Fiona deu um sorriso envergonhado. Então, ela


respirou fundo e se atreveu a olhar na direção de Eddie, que estava sem
palavras naquele momento bizarro. – Posso ajudar vocês?

A garota parecia ser pacífica e gentil, como uma princesa. Ela se encaixava
no cenário de uma estufa, cercada de plantas, mas não ali dentro. Não
daquela forma. A presença dela foi como um soco na cara de várias formas
e por vários motivos, por ela ser a primeira prisioneira além de Milo e Reno
que Eddie havia conhecido, e ela parecia ser a última pessoa na terra que
merecia sofrer qualquer tipo de abuso. Era a aura, ou parecia estar escrito
na sua testa.

Era fácil olhar para Fiona e gostar dela. Não só fisicamente.

Não sabia o que era pior: Estar lá ou encontrar outros.

E isso foi o que mais doeu em Eddie.

- Esse é o Eddie. – Milo apontou para ele, fazendo Eddie notar que ele
estava respondendo por si por Eddie não ter condições no momento. Ainda
estava em choque, como se a gravidade do Complexo apenas tivesse caído
agora. Estranhamente, a gravidade do Complexo parecia ser normal, o que
apenas tornava o lugar mais estranho. Eddie não sabia onde estava. – Ele
chegou ontem e não comeu nada até agora. Achei melhor trazê-lo aqui
primeiro.

Fiona arqueou uma sobrancelha, mas nem isso a tornou rude. Ela só parecia
curiosa e confusa.

- Ele já tem cartas?

Milo deu o mesmo sorriso que uma criança problemática dá quando ela
sabe que fez algo errado, mas em menor escala.

- Do que vocês estão falando? – Eddie interrompeu, sentindo a ansiedade


crescer de forma torturante por não estar acompanhando. Fiona olhou para
si. Ela parecia preocupada e um pouco contrariada, no máximo. Suas
feições pareciam ser mais indicadas a se contorcerem em uma expressão de
tristeza do que de raiva.

- Você nem explicou nada? – Fiona soou tanto exasperada com Milo.

- Eu estou explicando aos poucos, para ele absorver melhor e não surtar
tanto. – Milo suspirou ao explicar. Depois, ele se virou para o Eddie
incomodado do seu lado. – Eddie, quando existem muitas crianças de um
mesmo Elemento, eles se tornam grupos. Cada grupo decide uma função
aqui dentro, e cada um tem um líder. Às vezes o líder pode ser o primeiro
Legado que chegou ao Complexo ou simplesmente o primeiro a começar
com a função que o grupo escolheu. Mas nós não chamamos assim de
verdade.

Fiona cruzou os braços ao ouvir isso, parecendo o máximo de incomodada


que ela conseguia.

- E como vocês chamam? – Eddie se viu perguntando como um idiota,


sedento por respostas, quaisquer que fossem. Ele estava caindo no jogo de
Milo, não estava? Até agora o garoto só tentava distraí-lo para acalmá-lo, e
estava conseguindo.

- Nós apelidamos de reis e rainhas, como cartas de baralho. O motivo é por


que temos um grande número de cartas aqui dentro, e usamos como
escambo. No caso, a Fiona é a Rainha Amorosa dos Legados do
Crescimento. – a cara dela fechou mais ainda ao ouvir o rótulo. Suas
bochechas também coraram.
- Crescimento?

Em resposta a pergunta de Eddie, Fiona ergueu a mão e tocou em uma


plantinha dentro de um vaso, fazendo-a crescer instantemente e ficar adulta
e madura. Os olhos de Eddie se arregalaram em surpresa, realmente pego
desprevenido com a habilidade. Era basicamente a solução de todos os
problemas gastronômicos, mas esse nem era o ponto principal ali.

Era a primeira vez que ele via, ao vivo, alguém com os mesmos dons que
ele. Só que no caso, dons positivos usados de uma forma boa.

- Eu posso fazer qualquer um e qualquer coisa crescer. – ela murmurou


ainda vermelha de vergonha. – Por isso que eu decidi ficar na estufa. Mas
nem todos os Legados do Crescimento são como eu. – Fiona deu de
ombros. – E eu não me sinto a líder ou a rainha de ninguém. – nesse
momento, ela deu o melhor de si para olhar de forma repreensiva para
Milo. Saiu apenas chateada.

Milo continuou sorrindo na direção dela, sem se afetar em nada. Na


verdade, era um sorriso educado, mas longe de emotivo. Era o sorriso mais
seco que Eddie já havia visto na vida. Como se ele não sorrisse por
felicidade, ou não soubesse como isso funcionava. Apenas que tinha a sorte
de ter uma cara bonita o suficiente para torna-lo bonito mesmo com o
sorriso morto.

E isso assustou Eddie. Não queria ficar assim. Nem como Milo,
perfeitamente alienado, e nem como Fiona, perfeitamente conformada.

- Então... Então você plantou tudo isso? Por que isso existe aqui dentro?
Não tem um refeitório?

- Eu não plantei tudo. – Fiona respondeu Eddie. – Algumas coisas já


estavam aqui, tipo os coqueiros. – ela apontou com uma careta, claramente
tão incomodada quanto ele com o fato de que, naquele lugar, coqueiros
sobreviviam dentro de estufas e se tornavam enormes. A careta de Eddie só
piorava, e ele já começava a sentir dor nos traços. – E sinceramente,
ninguém sabe por que o Complexo tem as salas que têm. Provavelmente
nem o dono do lugar deve saber.
- O aleatório é frustrante para quem convive não para quem cria. – Milo
disse. – De qualquer forma, a Fiona consegue produzir alimentos aqui que
não possuem uma taxa de corrupção tão alta quanto a do refeitório.

- Taxa de corrupção? Vocês estão falando de drogas? – Eddie arqueou as


sobrancelhas.

- Estamos de baixo da terra. – Milo respondeu. – O ar é superficial, e nesse


ar superficial existe um tipo de substância que nos droga constantemente. A
comida no refeitório é só uma reafirmação dessa droga. Porém, aqui na
estufa, a Fiona consegue plantar alimentos que não possuem tantos venenos
quanto os do refeitório. Chamamos isso de taxa de corrupção.

- Mas existe uma taxa de corrupção em tudo. – Eddie murmurou. –


Principalmente por que é o próprio lugar que te dá o que você precisa para
cultivar os alimentos.

Fiona olhava para ele como alguém olha um filhote machucado chorando
por ajuda na rua.

- Você entendeu o tipo de rua sem saída que a gente se encontra. – Milo
respirou fundo ao responder, chamando a atenção para si. – Então, Fiona,
você pode abrir uma exceção para Eddie? Se não for possível, eu posso te
pagar...

- Não tem problema. – Fiona acabou o cortando por falar muito rápido. Era
de nervosismo. – Se você quiser, eu posso te dar algo com 50% de taxa de
corrupção, e não falamos sobre isso com ninguém. – ela ofereceu de forma
suave para Eddie, com olhos grandes e esperançosos, esperando poder
ajudar da melhor forma.

Eddie pode ouvir o coração quebrando dentro das costelas e cada pedaço
era feito de vidro, agredindo seu organismo. Raiva, desconsolo e tristeza se
misturaram, e cresciam enquanto planejavam a morte do próprio dono. E
ele tentou ignorar o olhar que Milo lançou sobre si, como se pudesse ver
todo o processo interior de Eddie no momento.

- Ok. – Eddie murmurou, soando exausto e irritado.

- Eu vou esperar vocês aqui. – Milo disse. Fiona assentiu, e girou nos
calcanhares para começar a andar adentro da estufa. Eddie não teve escolha
a não ser segui-la.
Eddie franziu o cenho, encarando as plantas estranhas que não deveriam
estar ali, o chão coberto por pedras amarelas e depois Fiona, encaixando-se
muito bem na minifloresta, mas completamente deslocada na ruína e
naquele mundo virado de cabeça para baixo.

Quantos anos ela tinha? Dezoito? Parecia mais nova do que ele pela
postura e personalidade, uma garotinha assustada e encolhida. Ela não
possuía esperança, sendo apenas uma casca vazia. Dava para ver nos seus
olhos. Qualquer coisa dentro de Fiona havia sido assassinada.

Fiona simplesmente não era mais nada. Isso o arrepiou. Ele não poderia
ficar assim.

Eles chegaram até uma pequena construção de madeira em formato de


casa, com uma portinha vermelha que ela abriu com facilidade, estando
destrancada. A porta era normal, sem trava tecnológica, e Fiona teve que
acender a luz dentro do canto claustrofóbico com o interruptor ao entrar,
diferente da cela de Eddie que não possuía interruptor, com luzes
automáticas, e o resto do Complexo em si. O canto claustrofóbico estava
cheio de estantes, e por isso conseguia ficar ainda menor.

O que ele tinha visto até agora do monstro bizarro.

- Toma. – Fiona lhe jogou um saquinho transparente de plástico. Dentro,


ele viu vários chocolates diferentes, deixando o saco pesado e fazendo com
que Eddie tivesse dificuldade para segurá-lo de primeira. Com isso, ele
notou o quão fraco estava.

- Você fez isso? – ele examinou os chocolates, completamente


impressionado. Fiona assentiu. – Como?

- Acredite ou não, temos acesso à uma cozinha no refeitório. Boa parte dos
Legados do Crescimento gostam de cozinhar.

- Então você planta... E eles cozinham?

- Basicamente, algo do tipo. – Fiona respondeu saindo do canto


claustrofóbico, fazendo Eddie ir consigo. Ele ainda estava estupefato.

Há quanto tempo Eddie não comia aquilo? Qualquer coisa minimamente


decente? Ele preferia nem pensar nesse tipo de coisa, para não sofrer.
Comparar o fato que ele não tinha como nem pensar em conseguir e como
outras pessoas deveriam comer todos os dias comidas diferentes, deveria
ser o começo do caminho para se perder.

Quando ele voltou com Fiona, Milo estava os esperando no mesmo lugar,
com o mesmo sorriso sem vida de antes. Depois que eles estavam próximos
novamente, Eddie lembrou-se de guardar o saco de chocolates dentro do
seu casaco, o que acabou causando uma pergunta:

- Você não vai comer? Você não comeu nada até agora.

Com isso, Eddie acabou apenas olhando para Milo. Um dos olhares feios
que ele tinha, que as pessoas normalmente pediam para que evitasse, pois
era altamente agressivo para quem recebia. Milo normalmente era o tipo de
pessoa que Eddie não convivia. Era mais fácil ser moralista e pacifista
quando não se é pobre e de rua.

Eddie não podia simplesmente acreditar que Milo não sofrera nada ou
pouco perto de si, e sabia disso, mas comparar os dois parecia algo
insustentável. E estava sendo difícil conviver, ainda mais por que Eddie
não se dispunha a isso e Milo continuava insistindo, mesmo que fosse
complicado para ambos.

Ele não seria controlado por ninguém. Assim como a mãe. Passou anos na
rua por isso, iria conseguir derrubar aquele lugar a baixo se realmente
quisesse.

Era por isso que ele já via Milo como um problema. Ele tinha poder sobre
si. Era dono daquele tipo de gentileza que Eddie nunca conheceu e sempre
foi atraído por, e suas ideias eram cativantes. Paz, convívio estável,
facilidade. Todos eram desejos íntimos dos humanos. Porém, todos
também eram uma mentira.

Fiona cortou o momento quando pigarreou claramente nervosa com a


tensão que se instalou entre os dois. O sorriso de Milo finalmente morreu, e
Eddie sentiu-se um pouco melhor por isso. Mas ele não parecia irritado, e
sim compreensível. Como se ele tivesse entendido na hora que estava
agindo errado. E em que sentido estava errado.

- Vocês dois precisam de mais alguma coisa? – Fiona soou baixinho,


estrangulada mais uma vez. Milo olhou para ela nesse momento, parecendo
um pouco até aliviado.
- Não, Fiona, obrigado. – ele respondeu em tom sincero. – Você ajudou
muito.

- Tudo bem. – ela olhou para ambos. – Só não mencionem para ninguém.
Se isso morrer aqui, não tem nenhum problema.

Eddie assentiu, para que ela soubesse que ele iria ficar quieto sobre. Não se
via falando com ninguém de qualquer forma. Ela acenou para os três
quando eles saíram, sem dizer mais nada. Fiona não gostava de conversar.
Eddie compreendia isso, pois quem queria conversar no Complexo? Era
algo inútil e, provavelmente, Eddie estaria se repetindo por um bom tempo.

Eles passaram pelas as mesmas portas automáticas de metais para sair da


estufa, e foi em algum momento de silêncio tenso e duro como pedra nos
corredores frios e metálicos do Complexo que Milo acabou respirando
fundo, chamando a atenção para si mesmo. Eddie o olhou de forma
incomodada, sem saber o que ele pretendia.

- Nós temos mais um lugar para ir antes que eu possa te explicar tudo. –
Milo começou cautelosamente. – Com sorte, vai ser rápido. – ele abaixou a
voz nessa parte.

- É mais um lugar desagradável, não é? – Eddie semicerrou os olhos. –


Pode dizer.

Milo o olhou por um instante inteiro antes de responder:

- O lounge.

- Que. Porra. É. Essa?

Milo suspirou com o linguajar do garoto.

- É literalmente o que o nome sugere: Um ambiente de lazer. Tem jogos e


sofás e coisas do tipo... – Milo parou de falar quando notou que Eddie
havia parado de andar, o fuzilando com os olhos, com a mente, com o
corpo inteiro. Pegando fogo por dentro. Era como uma piada. Tinha que ser
uma piada.

Por que um ambiente de lazer dentro de uma prisão? De um campo de


concentração? Para eles ficarem confortáveis? Felizes? Alienados? Eddie
não conseguia aceitar aquilo de boca fechada. Seus limites para ser feito de
idiota eram bem estreitos. E pessoas ficavam lá. Claro que ficavam lá, claro
que eles iriam!

- Eu não vou. – Eddie soou duro como rocha fria. Ele machucava as palmas
das mãos enquanto apertava as unhas contra elas, querendo socar pelo
menos uma daquelas paredes idiotas e sufocantes ao redor de si. Queria
destruir aquele lugar até não sobrar nada.

A raiva só se multiplicava.

- Eddie, você precisa ir. – Milo insistiu, franzindo levemente o cenho, sem
se afetar pela a óbvia raiva dele. – Eu não te levaria lá se não fosse de
extrema importância, acredite.

- Não. – Eddie soou definitivo mais uma vez. Um tom que ele nunca
assumia. Eddie era tudo menos autoritário e opressor. – Não. Eu não vou.

- Eddie, por favor! – Milo exclamou, dando um passo tentador na direção


de Eddie. Ele não se moveu. Os dois tinham a mesma altura, sendo ambos
altos para as idades. – Lembra-se do que a Fiona disse? Sobre as cartas?
Todo Legado novo precisa ir lá pegar vinte cartas para sobreviver por aqui.

- Por que diabos tem que ser lá?!

- Eddie... – Milo respirou fundo, enquanto seus traços se afetavam


ligeiramente enquanto sentimentos passavam por eles. Foi a primeira vez
que Eddie viu o misto de mais do que alguma coisa, e alguma coisa fria no
caso, nos olhos de Milo. Como se ele tivesse tirado as mãos do próprio
controle por dez segundos, mas agora já havia recuperado, pois já havia
passado. Mas foi o suficiente para amolecer Eddie, pelo menos um pouco.

Ele nunca serviu para o papel de qualquer jeito.

- Essa é uma longa história. – Milo continuou. – Em termos leigos, um


grupo é responsável por todas as cartas, e você precisa ir até esse grupo
para ganha-las.

- Você não me explica porra nenhuma. E você realmente espera que eu te


siga para todos os lugares que vá, jogando todos esses termos na minha
cara, com essa merda de fala de que vai me explicar na hora certa. Eu não
posso dizer em voz alta o que eu quero fazer em resposta.
- Nós temos pouco tempo! – Milo finalmente alterou a voz de verdade,
exclamando as palavras. – É por isso! Eu já te disse que eu vou sentar com
você e explicar tudo com os mínimos detalhes, mas para isso eu preciso
que você colabore e entenda! Eu não estou te dando um tour turístico
porque eu quero ou eu por que eu não tinha nada para fazer.

- Eu só vou quando você disser o porquê eu tenho que ir.

- Eddie. – Milo soou o mais exasperado que um ser humano conseguiria


soar.

- Nós vamos ficar parados nesse corredor pelo o resto do dia.

Milo engoliu o ar mais ofensivo na face da terra, por que ele deveria estar
tão incomodado quanto Eddie naquele momento. Sua careta gritava isso em
vários níveis. Eddie segurou a barra, determinado como um camelo. Ele
não sabia desistir, e se via que tinha algo que podia fazer, mesmo que
pequeno, iria fazer de tudo para fazer.

Ficar impotente era o seu pior medo e a sua pior fraqueza.

- Nós podemos andar enquanto falamos pelo menos? – Milo soou entre
dentes, e ele não estava exatamente perguntando. O tom imperativo ácido
estava claro. – Você não entendeu ainda, mas não temos o dia todo.

Eddie simplesmente assentiu, e Milo não esperou nem um segundo a mais


depois da sua resposta antes de girar nos calcanhares usando certa força,
fazendo com que seus cabelos negros voassem e batessem em Eddie. Ele se
virou e começou a andar, deixando a escolha para Eddie bem fácil: Ou ele
acompanhava, ou ele acompanhava.

De repente Eddie sentiu que ele não venceu argumento nenhum.

- As cartas foram encontradas no lounge. Por que como eu disse, existem


jogos lá. – Milo começou a falar, ainda incomodado, mas em um nível bem
menor do que antes. Ele recuperava a compostura muito rápido, isso
quando sequer a perdia. – Mas elas não foram importantes por um bom
tempo. Você se engana quando pensa que os grupos são todos pacíficos e
nunca tentaram sair daqui. Que desde o começo somos conformados como
agora. – Milo o chamou, sem deixar de olhar para Eddie com as ametistas
penetrantes que possuía. – Aprendemos do pior jeito que não podíamos
fazer nada que não nos fosse permitido. Mas as piores rebeliões foram as
da época em que estávamos uns contra os outros. Eddie, este lugar não foi
criado ontem. As crianças apodrecendo aqui dentro não chegaram há pouco
tempo como você. Muitos morreram até que aprendêssemos que não
podíamos fugir por rebeliões. Cada parte do sistema que você for aprender
agora foi imposto a nós. Era uma questão de se adaptar ou se adaptar,
mesmo que só estivéssemos adornando as nossas celas. No caso das cartas,
o grupo que fica no lounge estava fazendo jogos de apostas para
conseguirem coisas e isso causou a raiva de outros grupos que não sabiam
o que estava acontecendo, não sabiam desse contato. O jeito que esses
grupos incomodados acharam de resolver foi pela a violência e a matança,
como todos se comportam quando chegam aqui. – houve uma pausa no
discurso de Milo. – Esse comportamento, apesar de incentivado, é punido.
Essa é a lei contraditória do Complexo. E depois da punição, houve uma
pressão para que criássemos um sistema de escambo que englobasse todos
os Legados do Complexo.

- Quem fez a pressão? – Eddie acabou vocalizando a pergunta, mas sua voz
não parecia ser sua, assim que a sua mente flutuava para longe, perdida em
alguns daqueles corredores sufocantes. Eddie sentia-se morrendo mais
rapidamente do que antes ali dentro. Como se ele pudesse sentir cada uma
das suas células morrendo.

- Eu vou te dizer quando explicar tudo por partes. – Milo respondeu, agora
mais calmo e mais baixo, parando à frente de outras duas portas grandes
metálica, após terem pegado pelo menos duas curvas nos corredores que
seguiam. Eddie lembrava-se de Milo ter dito que o lounge ficava no mesmo
andar que a estufa. Ele pode notar que havia uma declinação sutil na
construção, como se eles estivessem em uma descida que não queria ser
descoberta. Ou uma subida. - Agora você precisa ser o mais pacífico
possível. – Milo cruzou os braços olhando para ele. – Me leve em
consideração um pouco, por toda a paciência que eu estou tendo com você,
e por favor não soque a cara de ninguém aqui dentro.

Eddie sentiu algo revirar dentro de si em revolta enlaçada com birra


infantil, traços de imaturidade que ainda haviam sobrado por conta da sua
inocência distorcida, querendo fazer exatamente o contrário de tudo que
Milo dizia. Mas ele se controlou e acabou assentindo lentamente e em
movimento pequeno e contrariado.
O tal lounge. Eddie não fazia ideia de como seria a sala, até a porta
automática se abrir.

O lounge era uma sala de teto baixo, com a iluminação mais baixa ainda,
com fortes luzes neons em tons de rosa e roxo. Havia três degraus que você
precisava descer para se aproximar do centro, cheio de puffs e poltronas em
tamanho menor, em branco ou rosa ou roxo. Havia colunas ali e aqui, mas
o que chamava atenção mesmo era a grande quantidade de tecnologia
espalhada estrategicamente pelo lounge.

E também a quantidade enorme de garotas.

- Natasha, olha. – uma ruiva de cabelo cortado chamou a atenção da figura


loira ao seu lado, deitada de ponta cabeça numa poltrona. Olhando para
elas, na verdade perdido para onde olhar, Eddie não notou a garota que se
aproximou de mais de si, quase grudou nele.

Ela tinha longos cabelos negros como a noite, pele escura e olhos puxados
com uma maquiagem vermelha que terminava no nariz, que era gordo e
cheio na ponta e quase inexistente antes da curva. Seus lábios eram longos
e pouco carnudos. Uma nativa. Eddie não sabia se os seus olhos que eram
muito escuros ou eles simplesmente não se focavam, por que ela parecia
estar olhando para outro plano enquanto falava consigo numa língua que
ele reconheceu como tupi-guarani. Eddie também era nativo, de certa
forma, mas norte americano.

- Opa. – a garota loira que deveria se chamar Natasha se intrometeu,


puxando a nativa para longe de Eddie. – Foi mal. A Uyara gosta de fumar
um pouquinho de mais.

- Natasha. – Milo chamou sua atenção, tão diplomático que Eddie quis
vomitar. – Esse é o Eddie. – ele apontou. – Ele é novo aqui.

- Aaaah. – ela abriu bem a boca, mostrando como era exagerada. Seus
lábios estavam no tom mais escuro de vermelho e seus olhos brilhavam em
azul cristalino, enquanto o cabelo era um loiro sujo. – Entendi. Eu estava
mesmo me perguntando o motivo da honra da sua presença no meu
humilde território, já que você nos evita como se fossemos a praga. –
Natasha falava enfaticamente, quase cantando, de forma muito casual e
enjoativamente carismática. Milo continuou inalterado, sem se deixar afetar
por nada que ela dizia. – É por conta desse bebê assustado aqui. – ela olhou
para Eddie ao dizer isso, com um sorriso cheio de segundas e terceiras
intenções.

– Eddie, essa é Natasha, Legado da Aparência, a Rainha Louca. Elas são as


responsáveis por todas as cartas.

- Aparência? – Eddie arqueou ainda mais as sobrancelhas, ignorando


prontamente tudo que ela dizia e representava para não pular em cima dela
ali mesmo.

Natasha revirou os olhos.

- Eu sou a porra do Legado da Beleza. Na verdade, a líder delas. – ela


esticou o braço na direção do lounge, apontando para todas as garotas.

– O Elemento dela representa a imagem e a figura que os humanos tentam


criar no próprio corpo. Não é realmente “beleza”. - Milo a interrompeu,
viciado em explicar tudo certinho.

Natasha revirou os olhos na direção dele.

– Então bonitinho, - ela se aproximou como Uyara, porém mais consciente


dos seus movimentos. – eu tenho que dar vinte cartas a todo Legado novo,
maaas... Como eu estou me sentindo extra caridosa hoje, apenas por você,
eu posso te dar quarenta cartas se me der um beijo.

- Natasha. – Milo a chamou com tom repreensivo. – Você não pode fazer
isso.

- Disse quem? – Natasha cruzou os braços e arqueou as sobrancelhas. – Por


que você não deixa o seu bebezinho responder, hem Milo?

Eddie não tinha resposta. Tudo que ele queria fazer era dar um soco na cara
dela. Porém, ele não moveu um músculo, com todo o autocontrole que
conseguiu desenvolver vivendo na rua, não confiando em si mesmo. Dane-
se Reno. Ele era agradável quando ofendia tudo e todos numa tentativa de
autodefesa, apenas Eddie que não sabia.

Essas meninas eram o principal motivo de ele querer explodir tudo.


Alienadas, estúpidas, drogadas. Se os outros Legados eram assim, oh céus,
Eddie não estava disposto para aquilo. Simplesmente não estava.
- Nem por todas as cartas do mundo. – Eddie semicerrou os olhos, falando
entre dentes. Ele sabia que sua expressão se encontrava sombria, mas não
se importou nem um pouco, querendo intimidar Natasha o máximo que
conseguia. Nunca se deu bem com personalidades opressoras,
principalmente as que viam graça em oprimir. – Você pode me pedir algo
mais fácil, como arrancar a minha própria boca.

Natasha teve várias reações em um curto período de tempo: Primeiro raiva.


Depois desconcerto, e por fim ela acabou notando que brincar com Eddie
era como brincar com um predador de tolerância curta. Milo o olhava de
uma forma que só poderia descrita como: “Não estou surpreso, mas com
certeza estou desapontado.”

- Woah, você é pior do que parece. – ela deu um passo para trás, parecendo
irritada e ofendida, como um animal de orgulho ferido. – Parece que você
não sabe, mas não existem regras aqui. Eu posso dar ou tirar cartas de
alguém quando eu bem entender. – ela passou a língua pelos lábios. – E
pela a sua péssima personalidade, vou ter que dizer que não merece nada
mais que 5 cartas.

- Natasha—

- Ótimo. O que me levar para longe de você mais rápido. – Eddie


respondeu tenso, cortando o que Milo pretendia dizer. Eddie estava virando
profissional, em pouco tempo de interação, de ignorar Milo de forma
efetiva enquanto o garoto o fuzilava ou o repreendia.

Natasha assentiu, agora irônica de forma amarga, e estendeu a mão na


direção atrás de si. A garota ruiva que estava por perto correu para pegar as
cartas e voltar, entregando-lhe. Eddie só pode analisa-las quando as
recebeu: Dois valetes de copas, uma dama de espadas e dois coringas.

- Boa sorte em sobreviver por aqui. Afinal, eu não te dou mais que três dias
para ser mandado nos Jogos da Meia Noite. E eu vou apostar contra você,
bonitinho.

- Isso foi o bastante. – Milo finalmente conseguiu interromper. – E


completamente desnecessário. Você prometeu não fazer mais esses tipos de
apostas, Natasha.
- Como Diego disse? Não perca seu tempo com a Marilyn. – Natasha
levantou as mãos para o alto, nada culpada. – Você já deveria ter aprendido
isso, Milo. Desiste de tentar controlar qualquer coisa aqui dentro.

- Ok, já podemos sair daqui? – Eddie grunhiu. Seu auto controle estava
derretendo àquela altura, queimando-o por dentro como cera, o instigando a
fazer algo em vez de impedi-lo.

- Infelizmente já. – Milo respirou fundo ao responder, olhando para


Natasha por todo o tempo. A loira pouco se preocupou e terminou a
conversa de uma vez ao girar os calcanhares e dar as costas aos dois, saindo
andando de volta ao lounge.

Os dois não tiveram outra escolha se não sair depois disso.

Eddie sentia-se ligeiramente melhor por ter saído daquela sala, mas na
verdade, continuava tão mal quanto antes. Ele tinha que forçar a mente a
não analisar de mais os Legados da Figura, se não ia enlouquecer. Iria
voltar lá e socar uma por uma.

- Eu peço desculpa por isso. – Milo torceu os lábios. – Elas eram o grupo
que começou com as apostas. Depois da punição e da pressão, elas são as
responsáveis e ninguém quis mexer com isso para descobrir o que
aconteceria. Ou seja...

- Natasha pode fazer a merda que ela quiser desde que ela continue sendo a
responsável pelas as cartas. – Eddie soou sombrio como os seus
sentimentos estavam nesse momento. Completamente obscuros, indo para
caminhos que ele mesmo nunca quis.

- Basicamente. – Milo o observava ao dizer. – A única forma de destrona-


las seria pela a força. E aprendemos pelos os piores jeitos que isso não
funciona. – Milo suspirou. – Eu vou te explicar tudo agora, na biblioteca.

- Ah, finalmente porra, a maldita biblioteca. – Eddie teve que exclamar.


Milo lhe lançou o mesmo olhar que ele havia lançado à Natasha. Milo
provavelmente ficaria com dor no rosto depois daquele dia com Eddie.

Milo apertou o botão do quarto andar quando eles entraram no elevador, ao


final do corredor que atravesseram. Continuava vazio. Eddie não fazia ideia
de quantas pessoas estavam presas no Complexo, mas havia mais que uma
dúzia de meninas naquele lounge. Fiona sempre falava dos Legados do
Crescimento como se fosse um grupo grande, dava para notar no jeito dela.

Olhando em volta, o Complexo era bem construído e estruturado, algo que


não pode ter sido pensado de uma hora para a outra, e mesmo que Eddie
não soubesse sua locação, ele deveria estar o mais camuflado possível.
Ninguém conhecia ou ouvira falar sobre aquela loucura.

Apenas das crianças dotadas.

Eddie finalmente notou: As crianças da televisão, que eram consideradas o


futuro do Mundo, eram uma forma de cobrir. Elas eram Legados como ele,
mas ninguém deveria saber. Ninguém... Menos o Governo. Obviamente ele
estaria envolvido em algo de um tamanho tão grande. Ele podia até ter
financiado o Complexo.

Mas o que o fazia pensar que não era o próprio Governo o culpado de estar
ali?

O que o Mundo tinha se tornado? Eddie nunca se sentiu tão confuso. Era
por isso que ele odiava pensar muito sobre. Eddie também estava alienado.
Ele achava que conhecia a realidade do país e do Mundo por viver na rua,
mas não. Ele não era nada mais que um ingênuo estúpido como as outras
pessoas.

- Aqui. – Milo chamou a sua atenção.

Nesse momento, Eddie notou que havia se perdido em seus próprios


pensamentos. Eddie piscou e reconheceu o lugar: Era um salão amplo todo
cinza metálico com prateleiras de madeira cheias de livros por quatro
corredores, mais livros numa estante embutida na parede da esquerda e a
direita não podia ser vista. Eles entraram logo em seguida, atravessando as
estantes para acharem mesas do outro lado, também cinzas. O lugar tinha
fixação por cores monótonas. E as mesas e as cadeiras eram de plástico, o
que demonstravam a preocupação de as quebrarem.

Não que Eddie conseguisse acreditar em Legados raivosos na biblioteca de


todos os lugares...

- Com toda a insistência para me trazer até aqui, eu esperava mais. – Eddie
comentou ao se sentar. Milo inclinou o rosto.
- Eu não quis te trazer aqui por conta do lugar em si. O que é útil aqui é que
eu posso fazer isso, – Milo esticou a mão e um livro veio até ele flutuando,
fazendo Eddie arregalar os olhos. – enquanto lhe dou a sua aula de história
e geografia do dia. Também não vamos ser incomodados por ninguém, esse
é um dos lugares mais vazios do Complexo.

Milo esticou os dedos longos na direção da mesa, e o livro pousou


delicadamente sobre a superfície. Assim foram com outros três, todos
sendo pesados e grossos de capa dura, antigos, levantando cortinas de
poeira.

- É isso que você faz? O seu negócio de Legado? Telecinese? – Eddie


piscou apontando para os livros que tinham chegado à mesa por flutuação,
aproveitando o momento das perguntas.

- É uma manifestação minha, sim. Mas não é telecinese. Eu não posso


erguer essa cadeira com o poder da mente. – ele apontou para uma cadeira
ao seu lado, ainda em pé. – Eu apenas controlo as coisas ligadas ao
conhecimento. Então eu posso extrair e mover o que tem dentro desse livro,
já que ele veio da mente de alguém, do seu conhecimento.

- Oi? – Eddie não estava entendendo mais nada. Milo sorriu amarelo.

- Aqui. – Milo apontou para um dos livros abertos na mesa, mostrando uma
página com uma ilustração da anatomia humana superficialmente, sem
mostrar órgãos ou denominar partes em geral. – Esse corpo é um humano.
É só isso que eles são, corpos num ambiente. – ao dizer isso, o dedo de
Milo fez um movimento circular, mostrando o fundo vazio da pagina por
trás do corpo. - Para funcionarem, eles precisam de um espírito e uma
alma. O espírito vai ser o produtor de energia, e alma vai ser a
personalidade e as emoções. Mas até agora, nada disso se conecta com o
ambiente ao redor do corpo. É necessário uma ponte.

- Tá... Isso é mais abstrato do que eu imaginei... – Eddie resmungou,


olhando para aquela maldita figura, esperando as respostas aparecerem de
forma mais fácil, odiando ter que sentar e esperar uma explicação longa e
expositiva.

- Existem várias pontes diferentes. Nós as chamamos de Elementos.


Elementos são energias, ondas vibratórias, que não podem ser vistas,
apenas sentidas quando ligam o corpo humano ao ambiente em que ele
está. Esses conceitos realmente são muito abstratos, então eu vou tentar por
um exemplo: O Elemento Sono. Ele é o elemento que leva uma pessoa a
dormir e, portanto, descansar. Tudo isso vai depender de uma série de
processos até que a pessoa possa dormir de fato. Se não existisse o
Elemento Sono, as pessoas morreriam por não descansarem, entende? Eles
são as forças base de nossas atitudes relacionadas ao lugar que estamos.

- Então... Essas coisas atuam sobre a gente... E não é a gente que atua sobre
elas? – Eddie continuava piscando várias vezes, querendo queimar aqueles
livros confusos sobre a mesa.

- Sim. Sono ou fome não é uma necessidade que nasce dos humanos, é uma
necessidade que aparece sobre nós. Elas já existiam antes das pessoas.

Milo era paciente e explicava bem, mas Eddie não queria se agarrar apenas
ao que ele dizia. Não tinha certeza de mais nada, apesar de estar óbvio que
Milo não tinha motivos para mentir.

Na verdade ele não queria participar de nada que estava acontecendo


exatamente ao redor de si, tentando lhe afogar. Eddie temia não conseguir
sair e não ia aceitar isso.

- Os elementos atuam sobre todas as pessoas, mas conosco é diferente. –


Milo sentou-se também. – Todo mundo precisa de uma dose certa de todos
os Elementos, para que se relacionem com a realidade. Conosco, um dos
Elementos deixa uma dose elevada, a ponto de formar um símbolo dentro
da nossa alma. Um legado. É esse legado, essa conexão com um Elemento
acima dos outros, que faz com que tenhamos manifestações. – Milo se
forçou a parar para respirar, engolindo à seco. – A manifestação do
Elemento é a forma que a energia vai alterar a nossa realidade. Os poderes
deles. E quando recebemos o legado na nossa alma, ganhamos esses
mesmos poderes. É por isso que você controla as sombras e a Fiona
consegue fazer as coisas crescerem.

Eddiu franziu o cenho por instante, começando a entender, aos poucos,


como as coisas se relacionavam e ao mesmo tempo não. Eram conceitos
abstratos que ele nunca havia parado para pensar antes. Olhou para as
próprias mãos, lembrando-se das sombras que passavam por elas quando as
invocava.
Mesmo vivendo aquilo todo dia, ele precisaria de tempo para se acostumar
com os nomes dados aos bois. Saber que havia algo dentro da sua alma que
o permitia a interagir com sombras, e transformar luz em sombras, era
assustador o suficiente sem a adição que estava sendo preso e controlado
por isso.

Mas por quê?

- Eu não posso dizer por que nós somos escolhidos. – Milo retomou a falar,
como se tivesse lido a mente de Eddie. – Mas eu posso te dizer que não
somos os únicos que possuem as manifestações elementais, que conseguem
interferir na ordem da realidade das coisas. Antes nós, há muito tempo
atrás, houve os primeiros humanos que descobriram a existência dos
Elementos e conseguiram dominá-los. Isso aconteceu pela a força, por
caminhos que acabaram destruindo tais humanos. Esses são os
Elementistas.

- Destruindo como?

- Eles perderam a humanidade no momento em que começaram se


relacionar mais com um Elemento do que com os outros, pois tudo dentro
deles entrou em desequilíbrio em troca da capacidade de alterar a realidade.
Eles se tornaram imortais, e não o bastante começaram a desenvolver
ciência a partir dos Elementos. Os Elementistas se sentiram ameaçados
pelos Legados quando estes começaram a nascer, pois os Legados tinham
tudo que os Elementistas queriam sem terem feito o mesmo esforço para
isso. Além do mais, os Elementistas já haviam aprendido os seus próprios
limites. Mas não faziam ideia quais eram os dos Legados. Até então, tudo
que sabiam é que os Legados tinham toda a capacidade e chance de superá-
los. – Milo pigarreou e se remexeu. – Existe... Existe um grupo que pode
ser considerando o representante dos Elementistas, chamado Primórdios.
Os Primórdios fizeram um acordo com governos ao redor do mundo. –
Eddie se arrepiou ao ouvir a palavra. – Eles não ganham dinheiro, mas total
apoio. Apoio no projeto do Centro de Controle de Legados. CCL, ou
Complexo para quem está aqui dentro. – Milo apertou os dedos ao redor da
mesa.

Afinal, de onde os tais Primórdios tiravam verba para tudo aquilo?


- Nós estamos debaixo da superfície aqui. – Milo começou a falar em tom
sombrio, obviamente odiando falar sobre aquilo. – Na verdade, muitas
camadas abaixo da terra, quase perto de magma. Isso só é possível por
conta da ciência que os Elementistas desenvolveram. Mas não estamos
abaixo da sociedade apenas fisicamente. Como você deve ter notado
ninguém sabe da nossa existência. O que as pessoas conseguem saber, no
máximo, são informações como o aumento de “crianças dotadas”. Tudo
isso, até mesmo essa imagem, é meticulosamente controlada pelos os
Primórdios. É mostrar um pouco, nada da realidade, e assim satisfazer
quem é ignorante.

- Milo, - Eddie estava perdendo a paciência. – o que eles fazem? Se existe


mídia, como nenhuma informação é passada?

- Eu não entendi a relação que você faz com mídia e informação verdadeira
para a população. – uma terceira voz interrompeu. – Deve ser realmente
inocente se acredita que os únicos monstros se encontram aqui dentro.

Eddie se assustou, virando-se rapidamente na direção da voz. Achou uma


garota asiática e baixinha, até mesmo mais baixa do que Reno, com olhos
cinzentos tempestuosos, pele clara e cabelo negro liso que ia até um pouco
depois dos ombros. Algumas madeixas ligadas à sua franja estavam presas
no meio da sua cabeça, sobrepondo-se ao resto do cabelo.

Mas o que realmente chamava atenção na menina eram suas roupas: Ela
usava um vestido sem alças branco que não chegava ao joelho, como se
estivesse na porra de um shopping.

- Que porra é você? – Eddie exclamou em surpresa, fazendo a garota fazer


uma careta para ele, nada impressionada.

Milo suspirou, olhando repreensivamente para Eddie. A garota ignorou


Eddie para dizer à Milo:

- Ele é charmoso. – ela transbordava sarcasmo, sem nem mesmo alterar os


traços faciais. – Electra En. Líder dos Legados do Sono, e você está no meu
território, novato.

- Como é?

- Você realmente não sabe nada. – ela franziu o cenho. – Você chegou hoje
por acaso?
- Electra. – Milo finalmente interviu. – Eu estou tentando ajudar o Eddie a
se familiarizar com tudo. É só por isso que estamos aqui, e não
pretendemos demorar.

- Oh, vocês podem ficar o quanto quiserem. Essa é uma cortesia que eu dei
a você e o ingrato do Reno, para que ele continue a me maldizer sem
motivo. – Milo pareceu engolir um sapo ao ouvi-la. – Como ele está, aliás?
Já mofou na própria cela?

- Eu não saberia dizer. – Milo se recusou veemente à dar qualquer coisa


para ela. Electra não pareceu surpresa, mas eternamente decepcionada. E
ela era viciosa. Exalava veneno e toxicidade, sendo claramente alguém que
você não queria ter como inimigo, mesmo parecendo tão indefesa. A
decepção dela levava à sentimentos sórdidos, e com certeza ela causava
estragos.

- Então, Eddie, - Electra decidiu ignorar Milo. – eu vou ter compaixão por
você ser um novato e te explicar algumas coisas. Todo grupo tem uma
função, que fica ligada à parte que reside dentro dessa prisão. – ela ergueu
os braços ao ar, apontando de forma geral para biblioteca. – A função do
meu grupo é informação. Então não existe lugar melhor para ficarmos do
que a biblioteca. Eu espero que Milo tenha explicado alguma coisa, mas
nós separamos assim, funções e territórios, para evitar ataques e rebeliões.
Você não pode danificar esse lugar, e não pode danificar um dos meus
Legados. – ela o olhou intensamente ao dizer isso. Queimando sobre o
olhar de ferro de Eddie, ele percebeu que ela estava o ameaçando. A garota
era sútil como uma raposa, mas assassina como um coiote.

- Eu não estou interessado em nenhum dos dois. – Eddie grunhiu,


controlando a vontade enorme de brigar com aquela garota. Ele não tinha
motivos, sabia que estaria apenas gastando sentimentos inválidos nela, e
por isso controlava a vontade que gritava por de baixo da pele. Ela, apesar
do comportamento frigido e arrogante, havia sido útil e respondido
perguntas. Sem falar que ele sentia que iria precisar das informações que
Electra poderia oferecer mais tarde. Não era bom criar inimizade com ela.

- Ótimo. – Electra sorriu pela a primeira vez. O sorriso não alcançava seus
olhos e não combinava com ela. - Se você quiser conversar comigo os
Legados do Sono sempre ficam nos fundos da biblioteca, após da porta
verde. Talvez eu te explique tudo que Milo esteja omitindo.
Agora ela havia conseguido instigar até Milo, mas o garoto não se alterou
nem por um milímetro. Bom, com exceção da curvatura dos seus lábios,
que tremeu bastante. Ela começou a se afastar dos dois com a intenção de
sair, mas antes que pensasse sobre Eddie estava pulando da cadeira que
havia sentado.

- Espera. – Eddie exclamou. – O que você disse antes sobre os monstros


não estarem só aqui dentro. Não vai explicar isso?

- As minhas respostas custam dinheiro, geralmente. – Electra respondeu


simplista.

- Não era uma resposta. Você começou a dizer antes de eu perguntar. Se for
assim, não deveria me cobrar nada.

Milo arqueou as sobrancelhas com o debate dos dois. Electra deu outro
sorrisinho. Agora ela parecia divertida de verdade, e ficou mais bonita do
que era por um instante. O rosto dela parecia ter sido feito de marfim.

- Inválido, mas fofo. – ela voltou a se aproximar. – Eu vou ser extra gentil
com você, novato. Aparentemente você não tem um grupo, e com essa boca
grande, vai precisar de toda ajuda que puder. – ela estava diretamente o
ofendendo naquele momento. – Esse lugar parece o símbolo da anarquia e
da destruição humana, mas também tem regras. Se você descumprir essas
regras, dependendo do tamanho da burrada que você fez você vai ser
punido. Milo te contou como isso funciona?

- Electra. – Milo chamou em tom de aviso, erguendo-se também. Electra


continuou sorrindo, cruzando os braços com ares de desafio. Ela queria que
alguém tentasse calá-la agora que havia começado a falar.

- Não. – Eddie foi cauteloso em responder, esforçando-se para falar e não


rosnar.

- A punição é bem simples, na verdade. Se você machucar alguém, como


um Legado do Sono, em um exemplo hipotético, vai acabar nos Jogos da
Punição. Esses são... Batalhas até a morte entre dois Legados.

- Como? – Eddie sentiu que havia perdido o chão de repente.

- É um show. – Milo respirou fundo, sendo ele quem havia respondido


dessa vez. – Eles passam esse show em alguma camada obscura da internet,
e ganham dinheiro em cima. É sempre no meio da madrugada, e não é
identificável.

- Por que diabos ninguém denuncia? Por que ninguém faz nada?!

- As pessoas que assistem, consentem. Elas querem ver o pornô de tortura


em paz sem correrem o risco de serem presas. – Electra parecia estar rindo
da inocência de Eddie. – As pessoas que investigam demais, sempre
desaparecem quando envolvemos o governo no meio. Eles dizem que se
você sobreviver todos os jogos de uma temporada, sabe-se lá o quanto isso
dura, ganha um prêmio. Mas ninguém sobreviveu o suficiente para dizer se
era a liberdade ou não. – Electra deu de ombros. – Vê? Nós nos tornamos
monstros, mas não somos os primeiros.

Sim, se elas se tornaram monstros, você também vai.

Eddie já podia ver sua mente escorrendo entre seus dedos.

Era difícil lidar com a troca de emoções, a inconsistência da prisão. No


início eram sentimentos doloridos e depressivos, depois se tornou cólera e
ambição, e agora era apenas desconsolo. Tontura. Perda de sentidos.

O que ele podia fazer?

Ficar naquele lugar era perder o chão, várias, várias e várias vezes. Um
passe em falso; e ele viria a cair para sempre na vala. Para parar naquele
jogo doentio.

- Isso é um aviso. – Electra continuou, chamando a atenção de Eddie em


meio ao seu pânico. – Lembre-se disso quando for fazer qualquer coisa: É
muito fácil cair nos Jogos da Punição. E uma vez que cair, se você não
virar o assassino que esperam de você, não vai sobreviver. – então, ela
arrumou a postura novamente, mesmo que não precisasse, e sorriu daquela
forma seca e morta de antes. – Seja bem vindo ao Complexo.

- Você realmente não precisa assustá-lo assim, Electra. – Milo grunhiu,


aproximando-se dos dois enquanto olhava feio para ela. Electra revirou os
olhos.

- É isso que eu recebo por ajudar. – ela resmungou. – De qualquer forma, o


sinal vai tocar e é melhor os dois se apressarem para ir para o pátio. – ela
deu mais um olhar de desprezo para Milo. – Nunca diga que eu nunca fiz
nada por você.

- Obrigado, mas talvez era melhor realmente não ter feito nada. – Milo não
pensou duas vezes antes de responder.

Electra continuou com o desprezo, sem mais nada que quisesse dizer, então
virou-se para ir embora, sem se importar com o estado em pânico que
deixaria Eddie. Só nesse momento que Eddie percebeu que ela tinha um
crisântemo branco sobre o cabelo, no penteado que usava. Ele balançava
junto com ela enquanto a garota se afastava iluminado pela a luz forte
branca do Complexo.

A imagem da flor também serviu para assombrar ainda mais Eddie. Eddie
não conseguia ficar mais enojado.

- Eddie. – Milo o chamou, olhando-o preocupado. Eddie sentiu sangue


contra a língua quando a passou pelos lábios. Bom, Eddie pensou, se eu não
me machucar, eu com certeza vou machucar todos aqui. – Eddie, eu sinto
muito. – Milo decidiu dizer, sofrendo com falta de palavras.

Eddie quis bater nele. Mas nem com toda a raiva do mundo ele conseguiria.
A tristeza que o menino demonstrava parecia a sua, e por um instante ele
sentiu que os dois não eram tão diferentes assim. Que, pelo menos, Milo o
entendia, mas preferia se distanciar.

- Pelo o quê? – Eddie ofegou para responder.

- Por isso. Electra não é alguém que você gostaria de ver no primeiro dia.
Ela é chamada de Rainha Vazia por um motivo. – Milo tinha um tom extra
sincero. Eddie olhou para por ele por conta disso.

- Mas ela não disse nenhuma mentira, ou disse? – Milo abaixou a cabeça
com isso, claramente sem querer concordar, mas sem ter como fugir. – O
problema não é ela. O problema é toda essa situação de merda em que eu
estou atolado. É muito ruim para ser verdade. – Eddie falava e respirava
com dificuldade. Seu peito pesava um milhão de toneladas. – E você quer
que eu me torne como eles. – Eddie acusou baixinho, olhando para o teto. –
Domesticado dessa forma.

- Não. – Milo franziu o cenho, ofendido. – Não, isso nunca foi—


Um sinal estridente ressoou pelas áreas metálicas e frias do Complexo
cortou Milo. Eddie se afastou de Milo nessa hora, sem notar o próprio
movimento, tampando os ouvidos para protegê-los do barulho agressivo o
suficiente que parecia estar exatamente dentro da sua cabeça, grunhindo no
processo.

- Que porra de barulho é esse? Isso tocou antes?

- É o toque do terceiro tempo. – Milo respondeu desanimado, olhando para


o teto em seguida. - Tocou, mas você estava dormindo. - Milo cruzou os
braços ao responder.

Eddie arregalou os olhos de raiva.

- Que isso, a porra de uma escola?

- Se você prestar atenção é o mesmo sinal de prisões. Que funcionam de


forma parecida. - Milo explicou, nem com tanta paciência assim. – Era por
isso que eu estava te apressando. – Milo suspirou após o sinal cessar. – Os
tempos são curtos quando se tem muito para fazer. Agora, nós precisamos
voltar para o pátio.

Eddie pensou por um instante, inclinando a cabeça e franzindo o rosto.

- Você fala daquele espaço grande entre as rampas e as celas? – Milo


assentiu. Isso deixou Eddie mais incomodado, se é que era possível. – Por
quê?

- Havia um palco lá, você deve ter notado. Eles se utilizam do terceiro
horário inteiramente para uma intervenção naquele palco.

- A cada palavra que sai da sua boca eu só fico mais puto. Intervenção?
Que porra é essa?

Foi a vez de Milo franzir o cenho, quase como uma criança emburrada.

- Você tem sorte de eu continuar falando e não ter te deixado a própria


sorte. – Milo girou nos calcanhares mais uma vez, fazendo seu cabelo
esvoaçar e bater em Eddie. O mexicano resmungou baixinho. – Você
decide se vai ou não, eu não vou te obrigar.

Eddie piscou ao perceber que agora Milo realmente havia perdido a


compostura. Ele estava irritado, não só exasperado, e não tentou esconder.
O olhar que lançou para Eddie, por cima do ombro, deixou isso bem claro.
Eddie se surpreendeu com a sua grande capacidade de irritar alguém, até
mesmo Milo. Bom, pelo menos ele demonstrava alguma coisa. O tornava
mais humano.

Eddie se perguntava como seria se ele tivesse conhecido Milo fora dali.
Fora de toda a história de Elementos e Legados, longe do Inferno que
estava preso no momento. Talvez ele fosse alguém interessante. Mas não
era essa a realidade e pensar nisso só o fazia perder tempo.

Essa era uma coisa que ele não queria cometer. Por isso, estava passando
por cima dos próprios sentimentos, mesmo que não parecesse muito para
Milo; era muito para Eddie. Sua prioridade era sair e não ficar, não se
acostumar, mas entender. Isso ficava mais claro a cada minuto que passava,
Eddie também se tornava mais lúcido, se controlava e se achava melhor,
mesmo que perdido.

Precisava pensar um pouco se realmente queria sair. Ele não tinha ninguém
para contar além de si mesmo, e não era burro o suficiente para achar que
força bruta o levaria muito longe. Agora ele não estava mais desnorteado e
machucado, apenas raivoso e irritado. Agora ele iria conseguir fazer algo.

Então, Eddie acabou seguindo Milo.

Ele olhou para o que conseguia ver do teto, e as paredes, e os corredores,


todos metálicos e metódicos, respirou o ar superficial que entrava pelos
viadutos e nunca se sentiu tão corrompido antes.

Ele estava andando, andando e andando, mas não parecia chegar a lugar
nenhum.

- O que acontece nessa intervenção? E por que todo mundo tem que ver
essa merda? – Eddie acabou perguntando. Milo atravessava o corredor
nesse momento, em direção ao elevador.

- Se eu te contar, você pretende se comportar?

- Que tipo de lógica é essa? Eu não tenho mais cinco anos.

Milo arqueou a sobrancelha para si.


- Você tem duas opções: Não saber, e fazer um escândalo por não estar
preparado, ou saber, e usar a informação para o seu próprio bem, que é não
se manifestar sobre. Chamar a atenção não é uma boa ideia, Eddie.

Eddie rangeu os dentes, quase colocando fogo nos neurônios de tanto que
pensava, encarando Milo. Milo não pareceu se alterar por ser encarado,
chamando o elevador tranquilamente. Eddie não era burro, pelo o contrário.
Ele era bem sagaz, quando não estava sendo movido por algum sentimento
bruto e duro que fechava os seus sentidos.

- Eu vou tentar. – Eddie murmurou claramente contrariado. – O que é, uma


demonstração ao vivo daquela luta de punição? Ou punição em massa? Se
você me disser que sofrem genocídios diariamente, eu não vou ficar
surpreso.

- Pior. – Milo respondeu quando o elevador chegou. Apenas quando suas


portas se abriram, mostrando o tanto de pessoas ali dentro, que ele
continuou: - Doutrinação.

Dentro do elevador, havia um garoto com cicatrizes por todo o rosto, longe
dele, mais baixo do que Eddie. Ele não deveria ter mais de quinze anos, e já
conhecia várias formas de dor. E também havia uma menina que tinha o
aspecto de dezoito anos, no máximo, completamente encolhida e abraçando
o próprio corpo, olhando para os lados de forma discreta, como se tudo
fosse uma ameaça ao seu corpo.

Esses eram os casos que tinham uma reação em geral. Boa parte das
crianças ali estavam anestesiadas tanto contra a dor contra a realidade.

- Como assim...? – Eddie perguntou não querendo perguntar. As almas


penadas no elevador não o notaram, não comentaram sobre. Pareciam
figuras presas em seus devidos espaços, feitas de mármore. Aquelas
crianças não podiam ser reais.

- Os Primórdios possuem representantes dentro do Complexo. – Milo


continuou explicando, mas agora baixinho para que apenas Eddie o ouvisse
no elevador. – É uma força de guardas chamada Praticantes. Eles eram
Legados que sofreram mais lavagem cerebral que o normal, e por isso
trabalham para os Primórdios. Não passam de robôs, ou cachorros
treinados. – Milo o observou. – Eles são muito perigosos, Eddie. E são eles
que dão essa... Apresentação, agora.
Depois de um dia inteiro, Eddie já estava pegando os avisos. Milo era bem
explícito. Além de serem Legados, ou seja, terem tanto poder quanto Eddie
ou Milo, ou qualquer criança assustadora dentro daquele elevador apertado,
eles também tinham a tecnologia usada no Complexo e para o Complexo.
Eles eram as representações físicas dos monstros de terror.

E Eddie nunca teve capacidade de lidar com esse tipo de autoridade. Ele
não evitava; precisava ir contra. Precisava se impor como pessoa. O
problema era, no Complexo ele não era uma pessoa. Agora ele fazia parte
do viveiro de pássaros de asas quebradas. E como um pássaro de asa
quebrada, ele era frágil, a ponto que os donos do viveiro poderiam mata-lo
quando bem entendesse.

Era impossível ficar tranquilo ali. Para isso você, automaticamente,


ignorava os problemas e simplesmente se acomoda.

- Isso acontece todo dia? – Eddie resmungou baixinho, controlando-se


dobrado. Milo pareceu ter compaixão com ele mais uma vez nesse
momento.

- Sim. Mas não precisamos participar todos os dias. – Milo suspirou. – Eles
repetem as apresentações para os Legados novos, então é possível se retirar
para a sua cela nesse momento. Mas você só tem duas opções: O pátio ou a
cela. – Milo deu uma pausa. – Sinceramente, eu não sei o que vai acontecer
hoje. Então só acho melhor que você vá.

- Você quer que eu participe de tudo, hem? – Eddie ironizou, mas não
havia energia em sua voz. Ele estava esgotado. Aquele lugar havia roubado
completamente as suas energias, o impedindo de lutar.

- Existe uma hierarquia. Um sistema de grupos e relações de poder. – Milo


começou com a voz mais tensa novamente. – Se você não participa, não
sabe o que está acontecendo ou fica excluído, você morre bem mais rápido.
E você percebeu, morrer aqui é bem fácil. Então não me culpe se eu decidi
te ajudar para que você tivesse uma chance.

Milo estava certo. Claro que estava.

Mas a situação era muito errada.

O elevador parou.
- Puta merda. – Eddie soltou em pleno choque.

Ele havia visto um grupo grande de garotos naquele elevador, e um grupo


grande no lounge, mas havia sido isto. Quase ninguém nos corredores,
apenas Fiona na estufa, apenas Electra na biblioteca. Então, de repente, a
imagem que via era como um soco na sua cara: O pátio estava lotado de
jovens diferentes, havia uma diversidade incrível ali, espalhados e sentados
quase que de forma comportada à frente da grande e alta plataforma que era
o palco. Havia mais jovens pelos corredores das celas, em cima e em baixo,
apoiando-se nas muretas ou sentados apoiados pelas paredes.

Era muita informação para os olhos acompanharem.

Eddie provavelmente iria continuar estagnado no tempo se não fosse por


Milo o puxando pelo pulso, forçando-o a sentar-se no chão. Eddie olhou
para cima e para os lados, tentando entender o que estava acontecendo. Era
tudo muito estranho para ele. Nunca havia ficado em meio a tantos jovens
assim, ele nunca tinha ido à escola ou qualquer evento do tipo.

A mão de Milo ainda estava sobre o seu pulso, e foi quando ele apertou os
dedos longos e magros pela a sua pele que Eddie piscou, voltando para a
realidade. A primeira coisa que encontrou foram os olhos escuros de Milo
preocupados na sua direção.

Eddie abaixou os olhos para ver a mão dele apertando seu pulso, e não
demorou muito para que Milo o soltasse e se afastasse.

- Desculpe.

Eddie arqueou as sobrancelhas. Não havia outra palavra além de estranho


para descrever o momento. Com os outros Legados ele não se alterava por
nada que fizessem. Mas com Eddie ele tentava de mais, e era como se
Eddie estivesse vendo duas reflexões diferentes da mesma coisa, ao mesmo
tempo. Não conseguiria entende-lo totalmente mesmo se quisesse.

- Milo. – Eddie o chamou, estranhando o nome na boca. Não sabia bem o


que estava fazendo, mas sentia que precisava fazer algo. Milo ergueu o
rosto, olhando-o surpreso e... Com expectativa. Ele tinha olhos grandes.
Redondos e discretos, mas grandes. Eddie queria entender por que diabos
eles eram roxos, mas ao mesmo tempo não sentia que precisava. Na
loucura da situação, a coloração dos olhos de Milo era a parte menos
assustadora. Mas não menos confusa. Acho que era uma boa descrição de
como estava sendo a companhia de Milo. E Eddie não sabia definir se era
bom ou ruim.

Mas também, ele não deveria estar pensando nisso.

Milo piscou.

- Eddie? Você ainda ‘tá ai? – a voz dele soou suave ao perguntar,
encolhendo-se de leve, claramente desconfortável. Eddie sentiu um choque
pelo o corpo quando percebeu que estava encarando, sem dizer nada.
Quem era o esquisito agora? Céus, ele realmente não estava registrando
mais nada. Corou até as orelhas, agradecendo pelo o cabelo cobri-las, se
sentindo pior do que já estava. - Se você quer perguntar mais alguma coisa,
é melhor fazer logo antes que comece. – apesar de soar rígido, de certa
forma, Milo parecia estar puxando assunto. Ajudando Eddie, tentando
deixa-lo confortável. Eddie o encarou emburrado por isso. Milo deu um
sorriso amarelo.

Antes mesmo de Eddie pensar em contestar, as luzes do ambiente trocaram


de cor. Elas se tornaram azuladas, nublando a visão de Eddie de leve. Ele
teve que piscar, para conseguir enxergar os arredores: O ambiente
continuava cheio, e agora os sons haviam cessado, como se a troca de luz
houvesse causado isso. Os Legados estavam prestando atenção.

E tudo que restou para Eddie foi prestar atenção junto com eles.

Ele e Milo estavam bem ao fundo, a baixo das rampas que levavam às
celas, mas Eddie percebeu o quanto ambos eram altos por conseguirem ver
o palco do mesmo jeito, mesmo que relativamente longe. Não era uma
plataforma tão alta, e também não tão extensa. Mediana nos dois quesitos,
ao máximo.

Os Praticantes a ocuparam com movimentos robóticos e sincronizados,


como se eles fossem controlados por alguém com ótimo ritmo. Eles
usavam uniformes militares em tons escuros de azul, e por algum motivo
Eddie acabaram os considerando todos parecidos. Não conseguia distinguir
as aparências entre eles, pois não havia mudanças corporais como altura e
peso, e os traços acabavam ao mesmo jeito.
Eddie não conseguia ver pessoas. Ele também não as ouviu. Graças às
luzes azuis, que ele não conseguia compreender, parecia que estava no
fundo do mar. Não havia som lá em baixo. Eddie sentiu-se completamente
fora de órbita, de tudo que ele conheceu e em vida, e finalmente no
Complexo. Os Praticantes, os soldados, falavam, mas Eddie não os
registrava.

Então, a ficha finalmente caiu: Ele estava preso. Aqueles eram os


carcereiros, o ensinando como deveria se comportar agora que havia se
tornado propriedade de estudo deles. E objetos de estudo são apenas
estudados até serem jogados fora.

A luz azul o queimou de forma que ele nunca achou possível, fazendo
Eddie notar o quão fraco, dolorido e baqueado ele estava. Aquele palco,
aquelas pessoas sobre ele, aquelas crianças assistindo, as celas e as rampas
e os canos no teto; tudo aquilo formava o monstro que havia o devorado.

E não havia saída.


RENO

Era quase engraçado. Claro, se ele gostasse de humor obscuro.

Da primeira vez que viu Eddie, ele era uma bomba de raiva e frustração
prestes a explodir, nada diferente da imagem dos outros companheiros de
cela que haviam tido – costume especial dos Primórdios para com o Reno,
ele só ganhava companheiros de cela problemáticos, como um presente
especial para si.

Foi bem fácil para Reno não gostar dele. Ele havia destruído tudo dentro da
cela, e possuía uma presença, uma aura, esmagadora. Mas qualquer
presença é esmagadora para Reno, que prefere morrer sozinho.

Porém, quando Reno viu Eddie novamente, durante o final do terceiro


horário, Reno viu um garoto traumatizado, no máximo. Milo estava
praticamente o levando, mesmo que não tocasse nele. Ele tremia seus olhos
não focavam em nada, grandes e assustados demais, com lágrimas
ameaçando cair a qualquer momento. De repente, ele pareceu mais novo do
que a idade que Reno havia lhe atribuído inicialmente.

E foi quase engraçado, quando Reno pensou “o que um dia no Complexo


não faz com alguém”. Mas por pior que Reno seja, se reconhecendo tanto
no garoto, ele não conseguiu se relacionar com a graça. Esperava que Eddie
se tornasse mais raivoso, como seus companheiros de cela, mas o garoto
parecia ter mais camadas do que isso.

- Essa é claramente a imagem de alguém que conheceu o Complexo.

- Reno. – Milo o alertou, como sempre. Eddie o olhou, como se só o tivesse


notado agora. Ele olhou ao redor, como se só notasse que estava na cela
agora. Reno franziu o cenho.

Então, Eddie acabou correndo para o banheiro.

- Ele pode se mudar para lá, se quiser. – Reno apontou para a porta com o
dedo indicador. – A banheira é confortável. Eu já testei.

Milo revirou os olhos.


- Ele está em choque. Como se você não lembrasse como foi isso.

- Eu ainda estou em choque, Milo.

Milo balançou a cabeça negativamente.

- Isso é uma derrota. – ele murmurou. Isso surpreendeu Reno.

Havia algo de errado com Milo. Quando os dois se conheceram, Reno quis
projetar seu auto ódio nele, como projetava em todas as pessoas, para
mantê-las longe. Mas não conseguiu. E por algum motivo, que nenhum dos
dois sabem explicar, Milo acabou sendo, pelo menos por um por cento,
mais do que a máquina que achava com era com Reno.

Então eles se davam bem. Eles se gostavam. Reno realmente o considerava


família, tão família quanto seu irmão mais velho havia sido. A miséria
realmente une as pessoas.

Então, Reno afastou a sua HQ, a deixando sobre a cama, e abaixou as


pernas, indo até a beirada da cama, para olhar melhor para Milo e pegar a
sua atenção.

- O que?

- Passar o dia como guia turístico do Complexo. Fazer alguém se acostumar


com isso. – Milo deu uma pausa, respirando fundo. – Mesmo que eu saiba
que foi a coisa certa, foi uma derrota.

- Houve derrota se nunca teve luta? – Reno ergueu as mãos no ar, bem
indiferente.

- O nome disso é nocaute.

Eddie os interrompeu, com uma voz baixa e fraca. Ele tinha acabado de sair
do banheiro, com o cabelo e o rosto molhados. Ainda não encarava nenhum
dos dois. Não deu mais nem dois passos e logo caiu sentado na sua cama,
como um robô que havia esgotado as energias. Reno ainda estava com as
suas camadas costumeiras, mas acabou se preocupando um pouco,
ligeiramente, com o menino.

- Eu não estava acreditando. – Eddie piscava várias vezes. – Eu não estava


entendendo. Eu não posso dizer que estou menos em pânico do que antes,
mas eu finalmente percebi o quanto isso é real.
- Aproveitou o show de horrores? O ingresso só custou a sua vida.

- Reno. – Milo o alertou mais uma vez, já exasperado. Eddie franziu o


cenho. – Você não quer ouvir isso agora, Eddie. – Milo se virou para ele. –
Mas... A partir de agora, é assim que vai ser. – ele apontou para a porta. – É
assim que as coisas funcionam por aqui, e você precisa decidir o que fazer
o mais rápido que puder.

- O que eu quero fazer? Eu quero sair, porra! – Eddie exclamou em tom de


obviedade. – Eu não deveria querer mais nada! Vocês também não!

- Oh céus. – Reno revirou os olhos. Novatos.

- Esse é o desejo maior. Mas você precisa de outros desejos que te façam
continuar a se mover, porque esse te lugar te mata quando você não faz
nada. Não dá para deixar o lugar vencer.

- Mas você passou o dia todo explicando por A mais Z que o lugar também
te mata se você faz qualquer coisa! Parece que você não entende o quão
agressivo é pensar em me adaptar aqui. Aceitar essa merda!

- Você já conheceu alguém que está acostumado a apanhar? – Reno teve


que intervir, era mais forte que ele mesmo. Isso chamou a atenção de
Eddie, finalmente. O garoto piscou várias vezes em sua direção. – Chega
em um ponto em que, não é que você não sente a dor, mas a dor já é
normal. É comum. A surra fica banal. Não é tão difícil de entender. Então
não é como se nós não estivéssemos tão agredidos quanto você. É por que
você está recebendo a sua primeira surra.

- Essa não é a minha primeira surra. – Eddie grunhiu.

- Então você precisa de um plano do que vai fazer. – Milo comentou,


cruzando os braços.

- Eu?! – Eddie exclamou. – Que porra, como eu posso decidir alguma


coisa, eu não sei de nada, eu não posso fazer nada! – então, a raiva de
Eddie se subsidiou tanto para a frustração agoniante quanto para pura
tristeza. – O que a gente fez? – ele quase soluçou. – A gente deve ter feito
alguma coisa para ficar preso aqui.

- Bom, todos nós matamos alguém antes de chegar.


- O quê? – isso fez Eddie erguer o rosto rapidamente, confuso. – Como
assim, antes de chegar?

Reno teve que olhar para Milo. Ele olhou dizendo: “Você não disse isso
para ele?” E Milo o olhava de uma forma que, para alguém que não o
conhecia, ele parecia ligeiramente alterado com a conversa, mas para Reno,
que o conhecia bem, ele estava profundamente conflitado com a vontade de
matar Reno, matar a si mesmo ou de gritar e correr bem rápido dali.

- Eu não matei ninguém. – Eddie pressionou quando Reno e Milo ficaram


em silêncio. – Espera, você disse isso para mim quando eu cheguei. Você
me acusou da mesma coisa. – Eddie lembrou, ficando agitado novamente.

- Existe um teste antes de você entrar no Complexo. – Reno começou, sem


ser cortado por Milo. Talvez tivesse sido mais rápido do que ele. Ou o
garoto estava em choque também para fazer qualquer coisa. Ele deveria
estar assistindo um acidente de carro no momento. - Ninguém quer entrar
aqui, mas eles fazem de qualquer jeito. Os Primórdios pegam dois Legados
que não se conhecem e os jogam numa cela. Eles ficam confinados naquele
espaço pequeno até que um mate o outro, e quando isso acontecer, o
assassino ganha a oportunidade de entrar aqui.

Reno pode ver que Eddie começou a trabalhar rápido demais para digerir
aquilo. Ele estava virando o furacãozinho de novo, engolindo tudo que não
havia conseguido pelo o dia, de uma vez. Reno teve que temer pela as suas
coisas mais uma vez, sem saber se esse era o momento em que o gatilho
acionava e o garoto tinha outra crise de raiva e desespero.

- Você fica em uma cela menor. – Eddie soou sufocado, engasgado, quando
falou. – E quando a cela menor te enlouquece você mata alguém, então
você cai aqui.

- Basicamente, todas as crianças que você viram foram as que


enlouqueceram.

- Não é culpa de ninguém. – Milo finalmente interviu. Reno percebeu que


ele estava o mais perto de pânico, e isso preocupou Reno de verdade. Milo
nunca ficava alterado, nunca de verdade, nunca demais. – É tudo uma
questão de sobrevivência. A gente se reduz a isso aqui dentro.
Eddie abaixou completamente o rosto, deixando o cabelo cobrir a cabeça
baixa.

- Mas eu não...

- Em vez de passar por isso, você passou pela aquela situação horrível
quando sua manifestação foi usada contra você. – Milo interrompeu Eddie,
falando mais rápido que o normal. Provavelmente para não deixar Reno
estragar mais do que ele já havia estragado. – Eddie, é esse o jogo que eles
fazem conosco. O jogo da contrariedade. Quem nos colocou aqui manipula
a nossa existência a ponto de considerarmos que é culpa nossa, por que
estão nos tornando assassinos. Ninguém tem...

- Vontade própria. – Eddie terminou, erguendo o rosto vagarosamente


novamente. Sua feição estava cheia de sombras. Ele parecia muito longe
para a luz da cela alcançar. – Eu iria preferir estar morto do que estar aqui.
– então, Eddie balançou a cabeça negativamente, cortando o silêncio mais
uma vez. – Foi por isso que você me ajudou. – ele falava com Milo.

Milo franziu o cenho.

- Eu já te expliquei: Eu estou te ajudando por que é a coisa certa a fazer.


Ninguém me disse para ir tão longe por você.

Antes que eles continuassem naquela discussão que era, particularmente


para Reno, irritante, o sinal do Complexo tocou mais uma vez. Eddie
grunhiu, tentando proteger as orelhas. Ele ainda não havia se acostumado
com o barulho. Reno nem se o registrava mais, era muito parecido com o
sinal da sua antiga escola.

Tão antiga, parecia ter sido há séculos atrás.

- Esse é o quarto horário. – Milo suspirou ao dizer. – Eu preciso voltar. Se


eu demorar mais, posso ficar preso aqui.

- Como assim preso? Quer dizer que não estamos aqui por vontade própria,
como o senhor novato ali gosta de acreditar?

Milo simplesmente olhou para Reno. Reno sorriu ao se levantar e se


aproximar de Milo. Ignorou Eddie de propósito, sem se importar nem um
pouco com ele naquele momento.
- Eu te acompanho. – Reno ofereceu para Milo. Era uma óbvia desculpa
para passar um tempo com Milo sem Eddie por perto. Não sabia quando
teria isso novamente. Assim, também fugia da cela enquanto Eddie estava
lá. Era o plano perfeito.

E claro que Milo percebeu todo o esquema, olhando feio para o italiano.
Ele não gostava das suas atitudes, mas não iria impedi-lo. E era por isso
que os dois se davam bem. Reno precisava da contradição, apesar de nunca
admitir: Alguém que se importava, mas que não iria intervir.

Os dois tinham se encontrado por acaso, e Milo não tentou, como ele não
tentava com ninguém, se aproximar de Reno. Isso fez Reno se interessar
por ele, por mais contraditório que pareça. Pode-se dizer que Reno
funciona assim, em boa parte das vezes, aos avessos.

Foi apenas natural, considerando-se que ambos eram Legados mais odiados
que o normal dentro do Complexo. O jeito de Milo contribuiu para que
construíssem a relação que tinham hoje: Milo o entendia bem e não usava
seus defeitos contra ele, ficou difícil, então, para Reno não ceder. Por que
ele gostava, ao mesmo tempo de odiar isso, do fio de sanidade que Milo o
ajudava guardar.

Sem demorar mais, Reno e Milo saíram da cela, deixando Eddie sozinho
dentro dela. Agora havia poucos Legados para fora das suas celas, no
processo de se recolherem para o quarto horário. Os dois seguiram em
silêncio até descerem a rampa das celas, e atravessarem o pátio, chegando
ao elevador quase escondido, próximo do palco, que levava direto ao setor
dos clones.

Reno agradeceu, como era seu costume toda vez que era obrigado a sair da
própria cela, por não ver Electra por perto. Viu apenas alguns Legados do
Crescimento, que também não gostavam de si, e Legados da Ferocidade,
sem sinal das rainhas de ambos. Os Legados do Crescimento lhe odiavam
porquê, sem ele nunca ter pedido ou merecido, Fiona fornecia comida de
graça para si.

Assim, Reno não precisava ir para o refeitório nunca, muito menos lidar
com as pessoas.

Pararam à frente um do outro, antes de Milo realmente ir embora, e foi esse


o momento que Reno teve para analisar Milo de verdade e ser analisado de
volta. Reno percebeu Milo encolhido, desconfortável e exausto, da mesma
forma que Milo deve ter percebido, desde o primeiro momento que entrou
na cela dele naquele dia, que Reno estava igualmente exausto e
desconfortável por não ter dormido e lidado com uma noite terrível de ter
que manter o auto controle sobre os poderes para não ser pego nos
pesadelos de Eddie. Um Legado de Sono se conecta com os poderes do
outro quando ele dorme, ou seja, se um Legado sonha o Legado do Sono
perto dele automaticamente é jogado para dentro desse sonho.

E é necessário muito controle para domar manifestações tão perigosas


assim.

Reno notou, de forma emocional, que a primeira vez que se viam em um


mês fora quando Milo trouxe Eddie para a cela. Era normal que Milo
sumisse por longos períodos de tempo por conta do treinamento fudido que
ele precisava fazer dos poderes, que eram tão fudidos quanto ele. Reno
realmente não reclamava sobre – o tempo distante auxiliava na manutenção
da relação dos dois.

Daquela vez havia sido diferente por que Milo voltou com um furacão do
lado. E os dois, realmente, não obtiveram tempo de interagir de verdade
como costumavam fazer. Reno tinha perguntas, e um bom monte delas.

- Eu só quero te lembrar de que, - Milo cortou o silêncio, com as


sobrancelhas arqueadas. Seu tom era sempre baixo e sério. – se for me
perguntar algum detalhe sórdido, eu não posso te dar.

Detalhe sórdido era como eles se referiam ao fato de Milo trabalhar para os
Primórdios. Como se ele tivesse lido a sua mente, o Legado da Sabedoria
desviou das perguntas do porquê, realmente, ele tinha que guiar e ajudar
Eddie dentro do Complexo. Então havia um motivo. Mas Reno só iria saber
quando eles estivessem em um lugar seguro para falar sobre.

Mas Reno conhecia Milo: Se existia um motivo dos Primórdios, Milo já


tinha o ultrapassado.

- Que isso, eu só queria saber como foi o guia turístico. – Reno transbordou
sarcasmo, olhando em volta. Havia Praticantes por perto, observando os
Legados para pegar os bobos que ultrapassariam dos últimos momentos de
liberdade antes de obedecerem o toque de recolher do quarto horário. A
imagem deles era como a de cães raivosos, mas adestrados, esperando
permissão para matar. – E se eu vou ter que explicar mais alguma coisa
para ele que você decidiu não dizer.

Com isso, Milo fechou a cara para Reno. Parecia que Eddie tinha
conseguido a proeza de esgotar a sua paciência. E isso percorria suas outras
interações, pois era difícil para Milo perder a paciência com Reno. Isso
estava acontecendo nas últimas horas por que ele já estava surtado por
conta de Eddie.

Ficava difícil tentar não desgostar do furacão.

- Eu só preciso que você faça o que sempre faz: Evite contato. Ignorá-lo é a
melhor forma de ajudar o processo que ele tá passando de se... Adequar ao
lugar. Vai ser algo bem lento, e eu estou tentando tornar a experiência a
menos nociva o possível para ele.

- Por que está o protegendo? – Reno perguntou na mesma hora, franzindo o


cenho.

Milo pausou nesse momento, arregalando aos olhos. Ele olhou ao redor,
vendo que os Praticantes não se moveram ou deram indícios de se
aproximar deles para separá-los, ou perceberam algo de estranho na
conversa. Os outros Legados na mesma área continuavam inalterados
enquanto conversavam à frente das suas celas.

- Eu não estou o protegendo.

- Milo, você nunca agiu assim com um novato antes.

- É por que eu nunca fui obrigado a cuidar de alguém antes. – Milo


argumentou indignado por ter que argumentar para começo de conversa. –
Assim como?

- ‘Ô puta que pariu. – Reno bufou. – Assim. – apontou de forma


generalizada para Milo. – Preocupado com o “desenvolvimento” dele e a
“adequação lenta e não nociva”, como se ele fosse o seu filho ou qualquer
merda do tipo. Você até fala como pedagoga. – Reno fazia gestos até
agressivos com o tanto de aspas e movimentação de mãos e braços para
realçar o ponto, já que era italiano de primeira geração. – Parece mais
preocupado com a sanidade mental do cara, que, me desculpe, mas ‘cê
precisa saber que não tem forma nenhuma dele manter aqui dentro, do que
o jeito que ele vai se encaixar no coletivo da tragédia.
Milo acabou indo para trás com a cabeça, respirando fundo e apertando os
lábios pequenos e carnudos de coração um contra o outro.

- Reno, eu realmente mereço isso? – ele soou mais exausto do que antes,
fazendo Reno perder um pouco da energia para questionar. – Eu sofri com
ele o dia todo, e agora preciso sofrer com você também? – então Milo se
aproximou mais uma vez, abaixando ainda mais a voz. – Eu estou fazendo
a coisa certa. O tratando do jeito certo.

- “Certo” é um conceito muito subjetivo aqui dentro. – Reno semicerrou os


olhos. – Você sabe que pode admitir para mim. Já passamos da fase de
abrir o armário com esqueletos.

- Eu peço perdão, mas eu não posso te mostrar nenhum dos esqueletos que
você quer ver.

Reno ficou ofendido. Ele odiava argumentar com Milo, por isso nunca o
fazia, já que era sempre causa perdida: Milo sempre estava certo e sempre
ganharia. Porém, daquela vez, o ofendeu o fato de que, realmente, Milo
estava errado e não queria ver isso. Que merda Eddie tinha causado?

Reno iria continuar com a discussão apenas pela a força do ódio.

- Você o apresentou aos Legados da Interpretação? – a questão fez com que


Milo não respondesse. – Não. – Reno leu o silêncio de Milo. – Então, você
também nem sequer comentou da reunião, né?

Milo ficou desarmado com aquilo. Pela primeira vez na relação toda dos
dois, Reno estava certo e isso era indiscutível. Não gostou dessa ideia.
Quando Milo estava certo, sempre era de forma positiva, e por mais que
Reno tentasse fugir, a esperança o invadia. Agora não tinha esperança
nenhuma. Algo estava errado com Milo, tinha a ver com Eddie, e ia piorar.

Poderia destruir ambos Reno e Milo. Eles já estavam jogados naquilo. Não
tinha como voltar.

- Ele vai saber da reunião. – Milo tentou falar, mas saiu estrangulado e
pigarreou no meio da frase, com a garganta seca. – Mas é um processo
lento. É melhor que ele conheça o Complexo aos poucos para não surtar.
Falar disso hoje seria... Seria jogar fósforo aceso na fogueira baixa.
- Milo, nada disso é sua obrigação, eu tenho certeza disso. – Reno
exclamou dessa vez. – Você está indo longe e não é só pela a “coisa certa”
a se fazer não. – Reno franzia ainda mais o cenho. Então, Reno levou um
soco no meio da conversa. – Espera. Vocês dois criaram uma conexão, não
criaram?

Milo abaixou o rosto ao ouvir isso.

- Milo. – Reno mostrou sua preocupação pela primeira vez, só para ele
entender como aquilo era sério. – Até onde isso vai? As memórias dele? Os
sentimentos, os pensamentos... – Milo estava estranhamente quieto. Então
Reno se assustou. – Espera, é tudo isso, não é? É como a merda de um
cordão umbilical!

- Quer falar baixo?! – Milo se aproximou desesperado. – Eu vou aprender a


lidar com isso! Eu sou um Legado da Sabedoria, não vou deixar continuar
desse jeito. Vou resolver.

- Milo, você tem que resolver. – Reno soou ainda mais urgente. – Se não,
vai ser arrastado junto com o furacão para a merda total. Eu não dou muito
tempo para a crise estourar para o nosso lado, afinal eles nos odeiam mais.

Milo abriu a boca para responder, mas os dois foram interrompidos por
passos. Passos que eles já conheciam bem: Os Praticantes, que andavam
sincronizados como robôs.

Milo respirou fundo, fazendo Reno franzir o rosto, sem controlar o arrepio
que sempre tinha perto dos Praticantes. Era um homem e uma mulher,
devidamente trajados e portando armas que se destacavam em suas
cinturas, maiores que pistolas normais. Por que não eram pistolas normais.

Reno ficava hipnotizado pela a imagem das armas, e nunca realmente via
os Praticantes ou ouvia o que eles diziam. O que importava deles eram as
armas, e o que elas poderiam fazer consigo. Tinha sorte de nunca ter sido
acertado por uma, quando metades dos Legados no Complexo já levaram
pelo menos um tiro.

E era assim que ele era cada vez mais odiado.

- Eu preciso ir. – Milo virou para Reno mais uma vez, sabendo que ele não
havia ouvido o aviso dos Praticantes sobre o tempo deles acabando. – Mas
antes de ir eu preciso ter certeza que você vai confiar em mim.
- Milo...

- Por favor. – Milo pegou a mão dele, olhando no fundo dos seus olhos. Era
a única pessoa que tinha passe livre para tudo isso. Reno fraquejou, com as
barreiras que criou ao seu redor virando areia e se dissolvendo por conta de
Milo. Ele apertou a mão de Milo de volta, abaixando o rosto ao senti-lo
esquentar por um gesto tão simples. Não estava acostumado com contato.
Muito menos contato afetuoso, fraternal. Sempre fugia de Milo quando ele
tentava, mas o desespero da situação o fez ceder. Estava preocupado, e na
primeira vez há muito tempo, não era por si mesmo. – Por favor. Eu preciso
de você do meu lado.

Reno assentiu em movimentos pequenos e apressados.

- Ok. – Reno murmurou em respiração. – Eu te vejo lá, amanhã, então.

- Obrigado, Reno. – Milo sorriu. – Tente descansar, pelo menos um pouco.

Depois disso, não houve mais conversa e Milo teve que ir. Reno só
precisou de uma olhada de um dos Praticantes para saber que deveria fazer
o mesmo, observando os Legados que ainda estavam fora da cela se
retirarem de forma obediente, como gado. Provavelmente era assim que os
Primórdios os viam: Como um bando de animais, provavelmente mais ratos
canibais do que gado.

Reno entrou em sua cela, e se deparou com Eddie exatamente no mesmo


lugar que estava quando saiu. Suspirou fundo, tentando controlar o
desgosto que sentiu, pois aquela era a confirmação: Ele era seu colega de
cela e não tinha devolução.

Por Eddie ter desmaiado na noite passada, Reno não interagiu com ele.
Porém, isso não quer dizer que sua noite foi tranquila: Pelo contrário, Reno
passou à noite em agonia e em ansiedade, lutando com a sua manifestação
e o autocontrole para não pregar no sono.

Legados do Sono escolhiam quando dormir ou não, mas eles ainda


precisavam descansar. Uma hora, eles desmaiavam – podia até entrar em
um mini coma.

Reno estava nesse ponto, mas ele lutou contra até agora, pois morreu de
medo de se deparar com os pesadelos de Eddie. Não era algo que
controlava: Se dormisse perto de alguém, conseguiria, automaticamente,
entrar nos sonhos dela se a pessoa sonhasse. Controlava isso ao redor das
noites, mas a primeira era sempre a pior.

Reno não gostava de dividir a cela exatamente por isso, já que


normalmente os Legados do Sono dormiam entre si para evitar esses
conflitos, mas Reno não fazia parte do grupo e os Primórdios gostavam
muito de colocar parceiros cada vez piores para Reno, intencionalmente,
como um castigo eterno.

Percebeu que Eddie não era tão assustador agora. Provavelmente a raiva
havia sido reduzida a pura tristeza. Aquela que todos sentiam ao pensar na
vida que tinham antes do Complexo. O garoto já estava lidando melhor do
que todos os outros companheiros de cela de Reno.

Ouviu-se um barulho metálico nos corredores e as luzes se apagaram,


deixando o vislumbre que a porta de vidro automática dava para o lado de
fora no breu, como se houvesse um vácuo do outro lado. Reno sempre
desviava os olhos, com medo de encarar de mais e encontrar um monstro.

Eddie, por outro lado, encarava o breu do outro lado de forma ofegante.

Reno pensou consigo mesmo: “Eu não vou me envolver. Nuh huh.”

E subiu novamente em sua cama, arrumando no seu ninho pessoal,


preparado para se alienar pelos próximos quatro anos.

Mas é claro que Eddie não o permitiria.

Ele virou para trás, encarando Reno mais uma vez. Reno quis, realmente
quis, ignorá-lo e fingir que não estava ali, mas era impossível. Nunca foi
bom com isso.

- Uma das garotas comentou de você. – Eddie começou. A afirmação sem


pé e nem cabeça fez Reno franzir o cenho, caindo na armadilha e prestando
atenção nele. Droga, agora era muito tarde para fingir que não o escutava e
fugir da conversa. – Electra, eu acho. Ela falou mal de você. – Eddie
arqueou uma sobrancelha ao dizer isso.

- Uau, estou chocado. – Reno transbordou sarcasmo e ironia. – Vou


reclamar no setor de Direitos Humanos. – e revirou os olhos.
- Ok, você realmente é insuportável. – Eddie soou exasperado, bufando alto
e cruzando os braços. – Não me basta ficar preso aqui, eu ainda preciso
ficar preso com você.

Reno deu um sorriso amargo. “Eu digo o mesmo para mim mesmo todo
dia, campeão.”

- Seja bem vindo. – Reno alargou o sorriso, apenas um pouquinho, só para


incomodar mais Eddie. – Quer deixar as coisas claras? Bom, então vamos
deixar as coisas claras. Milo é o policial bom, eu não sou policial.
Entendeu? Ele cuida de você, eu aturo o processo. Falar comigo não vai te
render nada.

- Então a boa convivência com você é não conviver.

- Você até que pega as coisas rápido. – Reno respondeu doce.

Eddie bufou mais uma vez, sentando-se em sua cama. Ele olhou para tudo,
menos Reno, por um instante. Reno achou que, finalmente, esse era o
momento que ele iria reconhecer que era melhor ficar quieto e ir dormir, ou
pelo menos tentar.

Mas não, Eddie não conseguia – ou não sabia – parar.

- Mas eu tenho dúvidas. – Eddie o olhou novamente. – E eu não posso


pergunta-las para Milo, se elas têm a ver com você.

- O que eu fiz para merecer? – Reno bateu as mãos contra o colo,


enfatizando a dor que a conversa lhe causava.

- Estamos nos questionando a mesma coisa. – Eddie soou seco, sem graça
nenhuma. Parecia que seu sorriso havia morrido para sempre. – A tal de
Electra disse que era de um grupo. E que o grupo dela fornecia informação.
E ela citou você, então...

- Os Legados do Sono. – Reno apontou para si mesmo. – Mas desculpe


senhor, você não vai conseguir informação nenhuma comigo. Pois eu não
faço parte do grupo dela. Nunca fiz.

- Mas você é um Legado do Sono? – Eddie franziu o cenho. Reno grunhiu,


perdendo a paciência. Como Milo conseguiu passar o dia com ele?
- Eu sou, mas isso não significa porra nenhuma! Não é por que eu sou o
mesmo Legado que ela eu preciso andar com o clubinho de psicopatas que
ela criou! Eu odeio aquela puta e tudo que ela representa. – estourou de
forma nada sútil. – Se você quer fazer perguntas para ela, vai lá, vai em
frente, mas eu só te aviso que tudo que ela falar custa caro, e não pode ser
cem por cento pertinente.

Eddie pareceu passar por fases emocionais ali enquanto ouvia Reno. A
raiva, já amiga, depois o estranhamento e ai a curiosidade e o interesse. Ele
pareceu ter parado no interesse. Céus. Ele era uma daquelas crianças
irritantes protagonistas de desenho que perguntavam sobre tudo e
argumentavam sobre tudo e Reno já queria mata-lo em menos de uma hora
de divisão do mesmo espaço.

- Mas é isso que acontece normalmente, não é? – Eddie não pareceu mais
estar falando com Reno. Reno o olhou confuso. – Os novatos são obrigados
a pegarem cartas com a Natasha, e depois pedir informações para Electra.
Eles gastam todas as cartas e deve ter outra parte do processo.

- Quer um prêmio, Sherlock?

- Mas não foi e não está sendo assim comigo. – Eddie concluiu seus
pensamentos. – Por quê? – agora ele voltou a falar com Reno.

Reno queria muito, muito, muito mesmo jogar um dos seus livros capa dura
na cara de Eddie.

- Eu não sei! Eu acabei de dizer para não me questionar! Eu não sei, eu não
vou saber, e eu não ligo. – Reno gritou absoluto. – Isso é com o Milo, não
comigo, mas você já o irritou suficiente e sabe disso. – Reno grunhiu,
possuído pelo o desgosto e o nervosismo. – Desde quando as suas
perguntas eram sobre mim e não sobre o Milo, hem?

Eddie suspirou. Naquele momento, foi como se o processo de morrer por


dentro que o Complexo induzia fez com que perdesse a força de lutar e de
ter raiva, pelo menos por um instante. Ele olhou para o chão mais uma vez,
apertou as mãos e mexeu em suas mangas, estragando o tecido já velho da
sua jaqueta militar, e apenas respirou, tentando aceitar que sim, ainda
respirava independente da situação.
- Não adianta. Não adianta o quanto eu tente entender esse lugar e
aprender, nada disso me ajuda. Nada disso me acalma.

- Você notou rápido. – Reno revirou os olhos. – Agora já pode desistir.

Então, ali estava. Bastou só aquela frase para que Reno encontrasse o
furacão novamente, e Eddie encontrasse a sua raiva que o motivaria como
uma máquina de ódio. Reno não queria estar nem perto quando ele
destruísse tudo.

Pois ele iria.

- Eu não vou desistir porra nenhuma. Não vou ficar alienado e domesticado
que nem você. Eu não vou ficar nesse lugar.

- Ai, então tá bom. – Reno bufou alto, sentindo que envelheceu mais
oitenta anos só naquela conversa. – Agora eu vou dormir, então para de me
encher e faça o mínimo de barulho o possível. Inclusive com a respiração,
respira pouco também, quem sabe você se engasga com ela e já adianta
essa fuga que você quer tanto.

Com uma maturidade digna de uma criança mimada de classe média alta de
três anos, Reno jogou o corpo no colchão de forma estrondosa, virando-se
para ficar de costas para Eddie, encarando a parede. Ele fechou os olhos
com força, tentando ignorar o coração que acelerou como sempre acelerava
todas as vezes que encarava um valentão e se arriscava, e fingiu que não se
afetava por nada.

Talvez se continuasse fingindo, iria se tornar real uma hora.

A única coisa se concretizou, na verdade, foi o fato que fechar os olhos e se


encolher na cama o levou direto para o caminho do sono. Não teve como
fugir, assim que o sono que acumulava do último mês que passou acordado
o raptou e o levou consigo, deixando um buraco na sua memória do
momento que deitou até o momento que, de fato, acordou.

Mas também, não foi como se a noite tivesse sido tranquila. Pelo o
contrário.

- Reno.

Reno ergueu o rosto ao ser chamado, olhando para cima no processo. Seu
coração quase caiu do peito ao identificar quem era, e onde estava. Foi tudo
de uma vez, como um tiro de espingarda: À sua frente, havia um garoto de
pele tom de caramelo e cabelos negros escuros, com olhos da mesma cor.
Ele era alto e magro, e seu nome era Michael. Seu sotaque o entregava
como mexicano, mesmo que já estivesse morando no Brasil há alguns anos.
Reno engoliu a seco, sem acreditar.

- Reno, o que foi? – Michael questionou. Exatamente como naquele dia.


Aquele dia.

Ah não.

Rodou ao redor de si mesmo, reconhecendo a cela antes de ter passado pelo


o teste que o fez entrar no Complexo. Ela era vazia com apenas duas camas
presas à parede feitas de metal, com uma luz no teto que parecia bem mais
forte do que a luz atual após o teste.

Era tão... Branco. Como um quarto de hospício.

- Reno, ei, olha para mim. – Michael andou em sua direção, o segurando
nos braços. Reno o olhou assustado, consumindo os traços do garoto mais
uma vez, assustado com a forma que sua mente o refazia com tanta
precisão. Seu coração doeu de tanta saudade e frustração. Michael havia
sido a última parte doce de Reno. – Está tudo bem. Eu juro, está tudo bem.

- Não. – Reno choramingou. – Não, não, não, você não pode fazer isso. –
Reno balançou a cabeça negativamente, sentindo exatamente o mesmo
desespero que sentiu na época em que aquilo aconteceu. Era horrível. Não,
pior que horrível. Estava dilacerando Reno enquanto ele não tinha o menor
preparo e proteção para isso.

Como Reno queria que tivesse sido tudo um sonho.

Que Reno não havia sido jogado em uma cela com alguém desconhecido
sendo instigado a mata-lo para sair dali. Apenas para que, quando saísse,
descobrisse que estava preso da mesma forma, só que em um ambiente
maior.

Mas, infelizmente, o teste de Reno foi diferente.

- Eu preciso. – Michael estava tão desesperado e triste quanto Reno, tendo


apenas dezenove anos, porém ele era diferente. Ele sempre foi diferente. –
Você merece mais do que eu.
Reno apostava tudo que não tinha que os Primórdios nunca cogitaram a
ideia de que até mesmo adolescentes conseguiam ter uma natureza pura.
Reno não tinha forças para encarar a situação, ele nunca havia sido exposto
a tanto desespero e desconsolo antes. A vida dele sempre fora fácil de mais,
fazendo-o sofrer com uma falta de preparo mental que Michael não poderia
lhe dar.

Era mentira, e Reno quis gritar isso, quis impedi-lo, fazer alguma coisa,
qualquer coisa, porém paralisou por conta do choro e do pânico como da
primeira vez. As pessoas pensam que saberiam o que fazer se alguém
pegasse uma faca na frente delas – faca que foi entregue para eles junto
com a comida na cela – e decidisse tirar a própria vida. Na realidade, boa
parte das pessoas não iria conseguir fazer nada.

Exatamente como Reno.

Os próximos segundos foram borrados e confusos, pois Reno não se


lembrava deles. Sua mente traumatizada deve ter os esquecido, os apagado
para conseguir lidar, mesmo que minimamente. Quando Reno finalmente
compreendeu o mundo ao seu redor mais uma vez, possuía um corpo em
mãos.

Com a pele beijada pelo o Sol agora fria e pálida, olhos negros
normalmente pequenos estavam bem abertos na sua última expressão em
vida e os cabelos negros lisos empaparam de sangue graças a Reno. Por
que Reno foi burro o suficiente em retirar a faca que o próprio Michael
cravara no peito e se sujou completamente com o seu sangue, como se a
sua alma já não transbordasse. Ele se lembrava de ter apertado os dedos no
cabelo de Michael enquanto chorava, rezando, desejando com tudo que
possuía para aquilo ser só um sonho ruim. Era como se a faca estivesse
entrando nele também, impossibilitando-o de pensar, de respirar.

O teste de Reno foi inconclusivo. Ele era o único com esse resultado,
nenhum outro Legado ofereceu para tirar a própria vida em troca da
liberdade do parceiro. Porém, Reno foi permitido entrar no Complexo do
mesmo jeito.

E exatamente por isso que ele também foi odiado por todos dentro do
Complexo.
Reno sabia o que acontecia dali. Ele se escondia e surtava na cela enquanto
era paparicado até o momento que caísse de volta na razão até os dias de
hoje. Porém, aquele sonho miserável continuou no quarto branco, que
sempre pareceu muito iluminado para um matadouro. Sabia que todas as
celas eram assim. E ele vomitava quase todas as noites ao se lembrar de
que dormia no quarto onde Michael havia morrido.

Morrido por sua causa. Se não fosse tão pateticamente fraco, Michael não
teria hesitado em lhe matar. Michael poderia ter feito algo no Complexo.
Ajudado os Legados. Tudo que Reno conseguiu foi ódio, e ele nunca tentou
evitar. Se Michael queria que ele fugisse, deveria estar mais que louco
quando cometeu o suicídio. Havia câmeras, soldados que não tinham
problemas em paralisar Legados que são drogados todos os dias – por
qualquer meio.

Estavam cercados como se aquele lugar fosse à jarra de Pandora, que


guardava todos os males. Alguém precisava abri-la, e abri-la com vontade
de muita disposição, para que eles saíssem.

- Reno! Reno! RENO!

Reno sentou-se na cama num solavanco ao acordar, sendo forçado a se


ajustar com a realidade da forma mais bruta. Ele ofegava, batalhando com
seus pulmões para se acostumar ao ar condicionado que precisava respirar,
o coração esmurrando suas costelas como se quisesse sair mais do que
Reno em si.

- Puta merda. – Reno praguejou, tentando ficar numa posição confortável e


se proteger daquela merda toda ao redor dele. Odiava acordar de pesadelos.
Havia tanto tempo que não os tinha que não sabia mais lidar com eles.
Tudo culpa do idiota olhando para si com olhos de cachorrinho preocupado
com o dono, ajoelhado na frente da sua cama.

Mas ele precisava agradecer pelo garoto por ter lhe acordado. Um dos
piores inimigos de Legados do Sono era o pesadelo, e Reno poderia ter
consequências sérias daquela pequena sessão agradável que seu cérebro
havia decidido submetê-lo.

- Desculpa se eu não podia te acordar. – Eddie chamou a sua atenção. –


Mas você estava gritando e se debatendo, e... – ele engoliu a seco,
desviando os olhos.
- As coisas começaram a mudar. – Reno bufou. – Eu sei. Chama-se ilusão.
Quando um Legado do Sono fica emocionalmente irracional, ele começa a
alterar a realidade ao redor de si. Mas é só uma ilusão, não tem nada
realmente acontecendo.

- Ter um pesadelo deve ser a pior coisa para você.

Reno respirou fundo, fechando os olhos por um instante.

- Sim, é. – soou o mais morto o possível, para que Eddie notasse que ele
não queria conversar sobre. Não sabia o que podia fazer dali, mas qualquer
coisa era melhor que conversar com o colega de cela.

Eddie franziu o cenho enquanto o observava, parecendo pensar muito


naquele momento. Reno simplesmente revirou os olhos. Estava exausto de
mais para se importar com aquilo.

- Você não pode simplesmente controlar? – Reno olhou para ele com a cara
feia. – Os pesadelos. O seu sono em geral.

- Por que diabos você quer saber?

Eddie demorou mais para responder. Ele se afastou da cama de Reno,


parecendo nervoso. Sentou-se na própria cama, encarando tudo menos o
Legado do Sono. Então, após alguns momentos, desistiu de fugir e o
encarou, abrindo a boca maldita mais uma vez:

- Eu sou curioso. – Eddie engoliu a seco, parecendo ser torturado pelas as


palavras. – Eu sou muito curioso. Eu quero... Eu preciso entender essa
questão dos poderes, também.

- Manifestações.

Eddie franziu as sobrancelhas.

- Tanto faz.

- É diferente. – Reno fez um som desgostoso. Não acreditava que tentou


fugir do garoto, e ficou preso falando com ele mais uma vez. Também não
havia sido muito inteligente: Dormir na mesma cela que ele? Óbvio que
não iria funcionar.
Como ele queria poder dormir na cela de Milo naqueles momentos.
Infelizmente nenhuma pessoa poderia ir para o setor dos clones.

Reno abaixou o rosto, em silêncio por mais alguns minutos, tendo que
aceitar aquela situação em geral. Falar ou não falar. Não era como se Eddie
iria se tornar menos insuportável. Urgh. Reno sabia que era fraco, e ele iria
acabar cedendo. Estava um pouco lento ainda, acostumando à toda a merda
que se encontrava atolado até o pescoço.

Pensaria em Milo. Milo seria seu jeito de lidar. Mas ninguém iria saber
disso.

- É diferente por que não somos mutantes ou merda do tipo. – Reno voltou
a falar, ainda que baixinho, então que Eddie se ferrasse para conseguir
entender. Ele não iria repetir. Infelizmente, Eddie pareceu atento e capaz de
compreender tudo. Reno balançou a cabeça negativamente. – É mais um
lance espiritual.

- Tipo os Elementos. – Eddie chamou a atenção de Reno. – Eles são os


bagulhos que atuam sobre nós, e não nós sobre eles. Então é como se
controlássemos a manifestações deles dentro do mundo.

Reno encarou Eddie, de sobrancelha arqueada.

- Uau, parabéns, quer uma estrelinha? Você decorou os conteúdos da prova


direitinho.

Eddie o olhou feio, como o real furacão que era. Ele tinha o pavio curto,
somado com o temperamento explosivo. Que gostoso, daria muito certo
com Reno. Mas Reno não podia dizer que não estava acostumado, trocando
de companheiro de cela várias vezes, e todos sendo um pior que o outro.

Até agora não sofreu fisicamente com os companheiros de cela como sofria
com o Complexo. Talvez Eddie não mudasse isso. Mas Reno tinha
dificuldades de acreditar nisso, mesmo que Milo confirmasse o fato, já
que... Bem, Milo nunca fez o teste por que ele nasceu dentro do Complexo,
o teste de Reno deu errado por que seu parceiro se matou, mas Eddie não
precisou fazer o teste.

Isso não deveria significar que ele já era um assassino, e nenhum Primórdio
precisaria criar o instinto nele? Reno não podia evitar não gostar e não
confiar em Eddie. Nunca era difícil para si.
- Eu só fiz isso. – Eddie continuou com a voz tensa, com a raiva do começo
da noite retornando para si. Antes ele parecia apenas fraco e perdido como
todos os outros Legados. Reno olhou o seu relógio eletrônico, que estava
configurado com os horários normais do mundo lá fora: Quatro horas da
manhã. Nossa, que legal! Mais uma noite que ele não dormia nada. – Eu só
decorei. Eu não sei realmente o que eu estou dizendo, eu não entendi. E
isso é outra coisa que me mata.

Reno deu um sorrisinho doce.

- É assim que funciona na escola, então você se daria muito bem.

Eddie franziu o cenho.

- Sério?

Reno teve que parar por um instante.

- Por que você... Espera aí, você nunca foi para a escola? – Reno não
conseguia acreditar em uma só palavra que saía da sua boca, esperando
Eddie lhe cortar e lhe chamar de doido. Era muito distante da sua realidade,
que frequentou escola particular a vida inteira.

Eddie revirou os olhos, exasperado.

- Não, eu nunca fui.

- Uau... – Reno soou realmente surpreso, ficando perdido de repente. Por


que ele estava interagindo com humanos novamente? Obviamente não
sabia como fazer aquilo. – Você não perdeu nada, te garanto.

- Não, só os meus direitos civis mais básicos. – Eddie grunhiu, começando


a ficar irritado de verdade. – Escuta aqui. Eu te fiz uma pergunta, custa
responder? Se você não desse tantas voltas, seria mais fácil.

Reno tinha o ar mais debochado do mundo quando o olhou.

- E eu deveria te responder só por que o senhor quer?

Eddie suspirou mais uma vez, perdendo as forças e, com elas, a raiva. Era
isso que Reno fazia de melhor: Ganhava pelo o cansaço. Ninguém que não
era Milo tinha paciência o suficiente para manter uma conversa com ele.
Reno se sentia orgulhoso disso.
Era a forma mais eficaz de afastar as pessoas: Ser alguém horrível. Ele não
precisava se preocupar com nada quando fazia isso. Não tinha forças o
suficiente para se preocupar. Uma parte boa do Complexo? Reno
finalmente pode curar a ansiedade social, a mandando para a casa do
caralho e sendo exatamente o tipo de pessoa que ele mais temia: Alguém
que incomodava e não ajudava.

Mas se ele queria desaparecer, aquele era o caminho. E no Complexo, não


havia nada a perder. Também não haviam outros meios para conseguir o
que queria: Ignorar não funcionava, encarar não funcionava; tudo que
restou foi se unir com o lugar como se fosse um só.

Então, Eddie lhe chamou a atenção dos próprios pensamentos:

- Por favor. – ele praticamente implorou, com a voz pequena e frágil. Reno
o encarou surpreso, sem esperar por aquilo. O garoto perdendo o orgulho
desse jeito, no segundo dia? Não podia ser. Aquilo nunca aconteceu antes.
Os outros colegas de Reno nem lhe ouviam. Mas Eddie pareceu só... Ele
pareceu um bom garoto, como Milo, perdido e machucado naquele
momento. – Por favor, eu só... Quero saber e eu te deixo em paz... Foi... –
ele engoliu a seco, desviando o olhar e corando. – Foi bem assustador agora
pouco. Eu não conseguia dormir e quando eu vi as coisas mudando liberou
todo o pânico que eu estava segurando desde ontem. Então... Então... – ele
abaixou ainda mais o rosto. – Então eu...

- ‘Tá tentando se distrair de si mesmo. – Reno murmurou, sem saber por


que dizia aquilo. Por que se identificava. Por que abria espaço para o
furacãozinho, sendo que estava o afastando com grande capacidade até
agora, e deveria continuar fazendo isso. Ele ainda sentia irritação e
desânimo com Eddie, mas não conseguiu controlar aquele instinto maldito
humano de compaixão que o atingiu em cheio vendo e interagindo com o
garoto naquele momento.

Percebeu que ele estava com sono e isso o deixava mais frágil, expondo os
sentimentos dessa forma. Eddie assentiu para o que Reno dissera, sem
coragem de abrir mais a boca. Talvez fosse essa a chance que Reno teria
para ignorá-lo de vez, cortar toda e qualquer interação, e voltar a deitar,
mesmo que não fosse fazer mais nada.
Claro que Reno nunca se ajudava e só se contradizia. Reno sempre soube
que havia uma grande diferença entre o que ele queria fazer e o que
acabava fazendo. Quando estava consciente o suficiente para isso, se
martirizava questionando se ele realmente queria o que simulava para si
mesmo na sua cabeça: Desaparecer, exclusão, morte e inexistência.

- Eu penso assim. – Reno começou a falar, chamando a atenção de Eddie. –


Em todos os seres humanos existem uma série de cordas de marionetes.
Mas essas cordas são conduzidas por... Sei lá como chama, donos de
bonecos diferentes? Enfim, são os Elementos. A gente decide o que fazer,
mas são eles que puxam as cordas. É uma relação conjunta: As marionetes
querem fazer algo, e os Elementos puxam as cordas para que esse algo seja
feito. Mas quando você é um Legado... – Reno deu uma pausa, pensando. –
Bem, você consegue ver a corda e você começa a puxar ela para direção
que você quiser. Mas você só vê e mexe em uma das cordas. Mas quando
você mexe nessa corda, você consegue fazer várias coisas ligadas com a
função das cordas. É por isso que são manifestações.

Eddie pareceu mais confuso, de repente. Reno estava quase desistindo. Ele
não servia para professor. Milo já não havia explicado tudo aquilo? Por que
Reno estava se complicando ali? Se Eddie não entendeu com Milo, não iria
entender consigo.

- Eu entendi. – Eddie cortou a trilha dos pensamentos do Legado do Sono.


– Eu entendi bem melhor o conceito agora. Quer dizer, eu entendi quando
Milo explicou, mas eu sou o tipo de pessoa que funciono com exemplos.
Tipo, ver para crer. – ele deu uma pausa para respirar, falando lentamente e
fraco. – Mas ainda não... Não faz sentido para mim. – Eddie ergueu o rosto
novamente. – Não parece se aplicar a mim.

- Como assim?

Reno perguntou, mas se arrependeu pela a pergunta. Não tinha certeza se


queria saber, ou se queria continuar aquela conversa.

- Faz sentido você estar puxando as cordas, por que tem controle sobre... –
ele deu uma pausa, enrolando a língua. – Manifestações do sono. Mas eu...
Eu sempre mexi com as sombras. E eu não posso simplesmente dominá-las,
é um processo longo, doloroso e perigoso. Pode não dar certo. Eu não
tenho cem por cento de certeza que eu vou conseguir controlar as
manifestações.

- Você ‘tá me dizendo que é um Legado das Sombras? – Reno arqueou as


sobrancelhas o máximo que podia, sem controlar a surpresa e o deboche
que fazia parte de si. – Que porra?

- É. Eu acho. – Eddie pareceu concordar com Reno e suas reações pela a


primeira vez no tempo em que se conheciam. – Milo não disse, mas é isso.
Isso não parece...

- Sombras não são a merda de um Elemento que atuam sobre nós.

- Exatamente. – Eddie exclamou. – Então... Então eu estou confuso. E já


percebi que eu sou o único aqui. Único... Legado das Sombras... Eu acho.
Eu não acho que escuridão se encaixa, por que ainda não é um Elemento
sobre nós e eu... Nunca testei. Sei lá, encher um quarto de escuridão. Meu
negócio sempre foi as sombras. Mas... Mas eu não... Eu não pratiquei
muito. Eu não podia.

Reno revirou os olhos, sentindo-se esgotado com aquela conversa toda.


Precisava parar de exercitar tanto a mente, não estava acostumado. Era bem
melhor deixa-la quieta, alienada e confortável, quentinha como um gatinho
enrolado em cobertores.

- Você é estranho para caralho. – Reno foi curto e grosso. Eddie


simplesmente semicerrou os olhos para ele. – E claro que você ‘tá sozinho.
Então é melhor começar a se precaver, por que do jeito que você é, e sem
grupo, vai se fuder muito aqui dentro. Mais do que o normal.

- Você é um raio de esperança. – Eddie transbordou sarcasmo cansado. –


Muito obrigado por isso.

- Não me agradeça. – Reno o ignorou completamente, virando-se em sua


cama mais uma vez. Mas sem a menor menção de dormir. Iria apenas
esperar que Eddie o deixasse em paz. – Em relação à sua primeira pergunta,
eu posso controlar. – não soube porquê respondeu, mas sua boca já estava
se movendo. – Mas eu não quero. Eu não treino as minhas manifestações.
Eu não quero.

Não que Reno tivesse vergonha disso. Ele odiava seus poderes. Não iria
mais usá-los.
- Por quê? – Eddie teve que perguntar.

Reno demorou mais para responder. Deixou o silêncio preencher ambos, e


o recinto entre eles. Pensou se aquela pergunta realmente tinha resposta, e
se era uma tão simples. Era tão estranho. Conhecer pessoas novas dentro do
Complexo, lembrar que existia uma vida lá fora, e que alguns ainda se
lembravam dela.

Reno não conseguia e não queria lembrar-se da vida de fora da prisão. A


prisão era a sua maior proteção durante a vida inteira. Principalmente de si
mesmo, do corpo e da pessoa que odiava. Aquelas manifestações... Aquelas
maldições que possuía... Elas molduravam o seu ódio. Elas o ajudaram a
ser o ser desprezível que era hoje.

Com os malditos olhos cinza, os cabelos negros e a culpa tremenda nas


costas. O medo constante. A névoa que nunca se dissipava, e não permitia
seus sentidos. Era difícil se separar das suas cordas, quem ele era e quem as
cordas eram. Onde um começava e outro terminava.

Era assim para todos ali dentro: Era essa a criação de monstros que os
Primórdios faziam. A individualidade morria, só sobrava alienação e
manifestações.

- Por quê eu não quero mais ser um zumbi.

Foi só depois que eles finalizaram aquela conversa de verdade, quando


Eddie finalmente deitou na cama e a luz da cela pode ser desligada
novamente, que Reno notou algo que não conseguiu até aquele momento:

Eddie havia dito que ele não tinha dormido ainda.

Então, o pesadelo de Reno não foi causado por ele. Também, não tinha
como. Se Reno tivesse ficado preso no pesadelo de Eddie, não seria sobre
si mesmo. Reno não deveria ter pesadelos, mesmo não sendo bom com as
manifestações. Dentro do Complexo, ele ficou livre de pesadelos. Então
por qual motivo...? E como...?

Pela a primeira vez em muito tempo, Reno sentiu pânico. Ele não estava
seguro, se estava tendo pesadelos, era por que não possuía nem mesmo a
sua falta segurança anterior. Seja lá a merda errada que estava acontecendo
com o Complexo agora, Reno estava dentro dela. E foi nesse momento que
ele descobriu.
EDDIE

Eddie ainda estava esperando acordar. Porém, naquelas últimas horas ele
não havia dormido o suficiente para sonhar e como poderia, ninguém
dorme quando o Inferno passa à frente dos seus olhos.

O Complexo não se assemelhava a nada de ruim que ele havia ouvido falar
sobre. Por isso era tão estranho e anormal. Eddie não conseguia aceitar e
ver como as crianças ali estavam acomodadas e tranquilas no meio de uma
teia de caos o deixava furioso o bastante para fazer todas as besteiras que
faltavam na sua vida.

Eles haviam criado uma maldita sociedade em miniatura ali.

E agora Eddie fazia parte dela.

Milo, e Reno, haviam lhe dito para arranjar um plano, algo para fazer, mas
aquilo parecia o mais longe o possível de fácil. Seu primeiro plano deveria
se rebelar até conseguir uma forma de sair, mas até mesmo em toda a sua
raiva e desespero, Eddie conseguia ser inteligente o suficiente para
entender que não era possível.

Não sem um bom plano.

Ele se virou na cama, encarando o teto coberto por encanações e os tubos


de ventilação. O sinal do primeiro horário tinha acabado de tocar. Ele
tentou ignorar Reno, como o Legado do Sono fazia consigo, e fingiu que
não estava com fome o suficiente para se levantar e for até o refeitório que
Milo apenas tinha citado não o levado. Tinha medo de ir lá e soltar a crise
que se esforçou tanto desde o dia anterior em segurar. Lembrava-se de
bem, o refeitório ficava no segundo lugar.

Eddie preferia a sensação de extrema fome se apossando do corpo. Sentia-


se emocionalmente melhor sabendo que seu mental e seu físico
combinavam: Igualmente impotentes, morrendo da mesma medida. Se ele
estava em um cativeiro, ele não deveria comer bem ou transitar, exatamente
como o porão da sua infância em que ficou por um ano antes de parar na
rua.
Eddie tampou os olhos com os braços, encolheu-se no próprio casaco, e
esperou.

Esperou os sons que denunciavam que Reno havia saído, pelo menos pela a
primeira e única vez no dia. Esperou estar completamente sozinho, esperou
seus pensamentos se organizarem como crianças obedientes em fila
indiana, e foi analisando cada um deles enquanto chorava. A cada vez mais
que ponderava mais triste e choroso ficava, mais a sua crise que esperava
nos cantos escuros da sua mente se libertava e o possuía. E só se sentiu
livre para isso longe da companhia de Reno.

Eddie estava pensando sobre a questão dos Elementos. Aquela


organização... Se eles conseguiram controlar os Elementos e uni-los com a
ciência, isso explicava perfeitamente como estavam fazendo o impossível
ali. Isso os proporcionava poder o suficiente para fazer o que quiserem,
mas estavam tão preocupados com os Legados...

Provavelmente acham que os Legados são uma ameaça. Por isso queriam
enfraquecê-los, cortar o mal pela raiz, antes de tomarem alguma atitude.
Incriminar todos aqueles jovens... Era algo tão inteligente e perverso ao
mesmo tempo, que tornava a respiração de Eddie entrecortada. Ele estava
certo, no final, em não confiar em ninguém dali. É claro que eles
enlouqueceram... Mataram alguém para ficarem presos no Complexo em
seguida.

Eddie logo estava chorando muito e tentando se fundir com o seu colchão,
pronto para desaparecer de uma vez. Chorava de medo, mas também
chorava de dor por todas aquelas crianças que quebraram de forma tão
cruel. Ao mesmo tempo em que as odiava, Eddie sentia pena delas, e se via
em cada uma delas.

Era tão dolorosa e perigosa a trilha de pensamentos em que estava


entrando. Era o jogo de contradição que Milo havia citado, e Eddie foi pego
logo no meio, sem condições nenhuma de tentar sair ou saber lidar. O
garoto lembrou-se dos rostos de todas as vítimas do lugar que conheceu, e
estremeceu e se encolheu mais ainda pensando que haveria muito, muito
mais no maldito refeitório. Quando encarasse o monstro gigante de verdade
e reconhecesse todo o seu tamanho.
Foi só quando o sinal do segundo horário tocou que Eddie acordou do
torpor. Como uma epifania que lhe rendeu um choque, fazendo-o arranjar
forças para sair da cama. A sua crise já o deixara à essa altura, deixando-o
apenas fraco e tonto, quieto em sua cama. Ela não terminou por ali: Se
retirava mais uma vez para os confins da sua mente, esperando o momento
para reaparecer.

Mas agora ele poderia ocupar o espaço que ela tomou com outra coisa, e
isso o faria funcionar. Eddie percebeu que ele não sabia nada sobre os
Legados ali dentro. Milo contou muito pouco. E se, agora Eddie fazia parte
deles, ele precisava saber. Ele precisa entender tudo, do começo ao fim.

Acabou sentando-se na cama, percebendo que a cela ainda estava vazia.


Jurava que Reno era do tipo de nunca sair dali, só quando obrigado. Mas
não pensou muito sobre isso e nem reclamou, pelo o contrário, agradeceu
por não ter que lidar com ele. Nem ele e nem Milo. Tinha a impressão, sem
saber exatamente o porquê, que Milo não iria saciar nenhuma das dúvidas
que estava reunindo agora.

Milo era apaziguador demais. Ele conseguia fazer Eddie escutá-lo e


cooperar consigo, e não era disso que Eddie precisava no momento. Não se
significava se acostumar e se adaptar ao local. Se Eddie tivesse o conhecido
fora do Complexo, tinha certeza que os dois teriam se dado bem.

Mas não era o caso, e ele não iria pensar sobre isso se não o ajudaria em
nada.

Eddie se arrumou em poucos instantes, vigiando o corredor da sua cela por


um instante para ter certeza que não iria se deparar com ninguém, mesmo
sabendo que seria obrigado a interagir com pessoas de um jeito ou de outro.
Quando teve certeza que estava seguro, saiu da cela e correu para o
elevador, soltando um suspiro de alívio que não percebeu que segurava até
quando conseguiu entrar no cubículo sozinho.

Ele apertou o botão do quarto andar e esperou da forma mais ansiosa


possível.

Seguiu direto para o caminho que percorreu com Milo, indo para a
biblioteca. Surpreendeu-se por ainda lembrar, não tendo notado como a
memória era boa até esse momento. As portas automáticas se abriram para
si, e mais uma vez Eddie estava dentro do ambiente fantasmagórico da
biblioteca. Encarou todos aqueles livros, mais do que pode no dia anterior,
e se questionou se eles realmente tinham alguma informação ou eram todos
de enfeite.

- Posso te ajudar, guri? – um garoto de sotaque gaúcho carregado


questionou, saindo de onde estava, entre as estantes, para ir até à direção de
Eddie. Ele era alto, mais alto que Eddie, com cabelos castanhos cacheados
curtos e pele morena. Estranhamente, tinha os olhos cinzentos, como Reno
e como Electra. Eddie engoliu a seco.

- Eu queria... – Eddie enfiou a mão no bolso, para se certificar que as suas


únicas cartas estavam ali. Só fazia isso agora, e teve sorte por estarem ali
mesmo. – Falar com uma garota que fica por aqui.

O garoto arqueou a sobrancelha, mas então deu um risinho, claramente


debochando de Eddie. Eddie franziu o cenho, nem tão amigável assim para
babacas.

- Você quer falar com a Electra, novato? Por quê?

Eddie respirou fundo, tentando controlar o próprio temperamento.

- Por que seria? Ela não vende informação? Ou você fica aqui sem saber o
que acontece?

- Ei, que boca grande—

- Rodrigo. – a voz familiar, sempre fria, de Electra chamou a atenção dos


dois, cortando a conversa. Ela estava vestida exatamente como ontem, com
o seu lírio prendendo o seu cabelo. Deveria trocá-lo todos os dias, pois não
tinha como aquele lírio não ter morrido. Ela se aproximou dos dois. – Eu já
disse que não aceito brigas na minha biblioteca. – ela o olhou repreensiva;
com os orbes cinzentos intensos e assustadores. – Ainda mais com os
clientes.

Rodrigo soltou alguns resmungos, um último olhar feio para Eddie, mas
não demorou em sair dali e deixar os dois, muito obediente e fiel à Electra,
comportamento digno de um cachorro. Electra tomou a sua atenção
parando à sua frente, ela era mais baixa, porém não se tornava menos
imponente por isso. Sabia se carregar muito bem, sem expressar os
sentimentos.
Então, ela sorriu.

- Vejo que você é mais inteligente do que parece. – ela começou. – Fez
muito bem em me procurar. Você sabia que Milo agiu de má fé quando
decidiu fazer o meu trabalho? E de graça, ainda por cima.

Eddie não se surpreendeu por ter deduzido certo. Se não fosse por Milo,
Eddie teria que gastar todas as suas cartas com Electra para conseguir
entender metade do que estava acontecendo.

- Eu não tenho cartas. – Eddie foi curto e grosso, indo direto ao assunto.
Electra arqueou a sobrancelha, cortando o sorriso na hora.

- Isso é impossível. Natasha tem que ter dado cartas a você, se não ela já
teria sido punida.

- E como você pode saber se ela não está sendo punida agora?

Electra sorriu mais uma vez. Mas dessa vez, era um sorriso de escárnio.

- Eu tenho meios. Meios que você, com certeza, têm interesse por. É por
isso que decidiu me procurar. – ela descruzou os braços, balançando a mão
no ar em seguida. – Me siga, vamos falar no lugar certo. Por aqui é
perigoso.

Ela apontou para cima, e Eddie viu a câmera no teto virada na direção
deles. Sentiu o estômago se revirar com a confirmação vivida que era
perseguido e observado vinte e quatro horas por dia. Não teve muita
escolha, assim como ontem com Milo, a não ser Electra para onde ela o
quisesse levar.

Eddie não podia expressar em palavras o quanto ele odiava ser guiado.

Eles atravessaram a biblioteca, que se encontrava bastante vazia, até


chegarem a uma parte em que não havia mais nada além de uma porta
verde. A porta possuía uma trava tecnológica, como a da cela de Eddie.
Eddie viu Electra digitando rapidamente uma senha que ele não pode
gravar e logo após isso a porta se abriu com dificuldades, como se já fosse
velha.

O cômodo revelado do outro lado era bem simples e limpo: O teto era mais
baixo que o do resto do Complexo, sem os tubos de ventilação, mas com
canos ainda. Era um espaço pequeno, e as paredes não eram muito
afastadas. Havia vários puffs ali, livros espalhados, e sofás e colchões.
Garotos se espalhavam sobre esses espaços, olhando rapidamente para
Eddie enquanto ele entrava, mas logo o ignorando ao verem que estava
com Electra.

Também havia vários tipos de criados mudos, ou de objetos usados como


criados mudos, e dois armários trancados com cadeado que não era
possível ver o que havia por dentro. Isso fez Eddie franzir o cenho,
principalmente com a adição de outra porta, devidamente trancada sem
trava tecnológica, também ali dentro. Onde mais ele poderia ir? Qual era o
limite do Complexo? O explorando totalmente, Eddie poderia entender
como ele foi construído?

Electra cortou o seu fluxo mental de perguntas ao se virar para si mais uma
vez. Ela esticou a mão no ar.

- Antes de eu te dizer qualquer coisa, eu preciso da garantia.

Eddie arqueou as sobrancelhas.

- E qual a minha garantia?

Electra não pareceu surpresa com o argumento.

- Eddie, eu não te dei uma informação de graça na primeira vez que te vi?
Isso não foi o suficiente para te confirmar que eu tenho coisas úteis a dizer?
Além disso, se eu não souber de algo, pode ter certeza que pelo menos uma
pessoa nessa sala, - e ela apontou para o geral, olhando para os Legados
também, desinteressados nos dois. – vai saber. Se você tem tanta
dificuldade de confiar, tudo que precisa fazer é mostrar que está com as
cartas, e eu posso te dar um adiantamento.

Eddie semicerrou os olhos, sem conseguir se contentar. Era como se algo


dentro dele estivesse agitado e se remexendo, desconfortável até o
momento que soubesse tudo e que tudo estivesse concretizado e entendível.
Era um defeito, ele sabia disso, mas não o controlava. Ou não queria
controla-lo.

- Eu não posso dizer que eu realmente entendi por que cobrar por
informações.
Foi a primeira vez que Electra pareceu ofendida. Porém, ela só ficou mais
séria, perdendo o ar, gélido, mas ainda assim, descontraído que criou ao
redor de Eddie. Eddie conseguiu entender que aquele foi o momento que
ele começou a passar da linha com ela.

Mas não ligava.

- Você acha que o trabalho que eu faço aqui é fácil? – Electra se


aproximou, começando a ficar intimidadora. Suas pupilas se dilataram, e
Eddie percebeu que o temperamento dela era tão curto quanto o seu. Eddie
se perguntou como um corpo tão pequeno podia ter tanta intensidade. E o
que ela poderia fazer consigo, quando irritada. Eddie só tinha uma vaga
ideia do poder dela. Com certeza era mais forte do que Reno, certo?

Mas Eddie não ligava nem um pouco.

- Nós temos documentos. Todos podem achar que são inúteis, mas não são.
Não só isso, para fazermos esses documentos e termos as informações
exatas, arriscamos nosso pescoço mais do que qualquer outro assassino
barato desse lugar lidando diretamente com os Praticantes. Então pronto, -
Electra virou o rosto, mortal. – essa é a sua garantia.

- Vocês fizeram acordos com eles. – Eddie murmurou para compreender. –


Como isso funciona?

- Essa é a sua pergunta? – Electra desviou com maestria, se afastando de


Eddie novamente. – É isso que veio saber?

- Não. – Eddie mordeu o lábio. – Mas minhas perguntas estão criando


perguntas.

- Isso já é problema seu. – Electra jogou o cabelo para trás do ombro. –


Cartas, agora.

Eddie odiou o jeito que ela falou consigo. Mas ele teria que aceitar as
respostas dela por agora, e por isso acabou mostrando as cinco cartas que
escondia dentro do casaco para a garota. Ela soltou um barulho indignado,
franzindo o cenho.

- Só tem isso? Por acaso Milo te cobrou? Se ele fez isso...

- Não. – Eddie iria abrir a boca para continuar a falar, explicar de Natasha,
mas foi então que ele percebeu que aquilo também era informação. Do
mesmo jeito que Electra guardava as suas, talvez Eddie devesse começar a
guardar as dele.

- Quem é o ratinho? – um garoto os interrompeu, sendo o único a se


interessar pela a conversa entre Electra e Eddie. Era um garoto também
alto, um tanto musculoso, como um esportista, com olhos também puxados,
que não eram cinzentos, mas Eddie não fazia ideia qual era a sua etnia, ou a
de Electra. O rosto dele, de certa forma, lembrou Eddie do rosto de uma
raposa.

- Akira. - Electra suspirou ao dizer o seu nome, parecendo um tanto


exasperada. Eddie teve que arquear uma sobrancelha, sem entender a troca.
– Ele é um cliente. – ela foi sucinta, sem parecer querer dizer mais.

Akira se aproximou, começando a sorrir. Eddie sentiu o mesmo incomodo


de quando conheceu Natasha. O garoto parecia claramente perigoso, mais
do que Electra, e Eddie não queria contato. Existia uma diferença entre mal
intencionado e indiferente. Nesse caso, ele preferia ainda mais o
indiferente.

- E por que você parece tão irritada falando com um cliente? Tem algo de
errado acontecendo aqui?

Electra revirou os olhos. Nesse momento Eddie notou que entre todas as
crianças do recinto, Rodrigo e aquele tal de Akira eram os únicos que
pareciam ameaçadores em questão física. O resto era franzino e baixinho,
como Reno e Electra. Eddie não pode evitar relacionar os dois como os
guardas costas de Electra, os capangas dela, e ela não poderia estar mais
cansada deles.

- Escuta Eddie. – Electra ignorou Akira, o fazendo parar de se mover ao


esticar a mão no ar na direção dele. – Cinco cartas não dão para nada,
independentes das perguntas que você tem. O mínimo para qualquer
pergunta, com a resposta longa ou curta, é dez.

- Isso é muito caro. – antes mesmo de Eddie pensar, as palavras já saía da


sua boca. – Você acaba tirando todas as cartas de quem acabou de chegar.

Akira deu uma risada debochada, enquanto Electra fechava mais o rosto.

- Ele fala muito para alguém que chegou agora. – Akira comentou como se
Eddie não estivesse ali. Eddie sentiu aquela raiva no seu âmago como uma
fogueira de fogo baixo, ameaçando a crescer e tomar conta de si
novamente. A primeira vítima seria Akira.

- Esse é o mínimo pelo o trabalho que eu faço. – Electra praticamente


mordeu as palavras. Ela parecia estar exercendo grande paciência lidando
com Eddie. – Mas você realmente precisa começar a pensar antes de falar,
pois para cada Legado novo, nós damos três informações de graça e duas
pagas.

- E você não pode fazer isso por mim?

- Depois de você ter preterido o Milo, e ter me ofendido por todo o tempo
que esteve aqui? – ela não perdeu um instante antes de retrucar. – Agora,
isso não seria meio ruim para os meus negócios? – cruzou os braços mais
uma vez, sendo uma pose típica. – Ninguém pode me culpar por
negligência por todo o tempo que eu te aguentei. – Electra suspirou
profundamente, parecendo cansada. – Foi como se eu tivesse envelhecido
dois anos.

Eddie respirou fundo. A fogueira queimava o seu interior, crescendo aos


poucos. Logo se tornaria um fogaréu.

- Há quanto tempo ele ‘tá aqui? – mais uma vez Akira agiu como Eddie
nem estivesse ali. Electra nem teve tempo de respondê-lo.

- Fala comigo, porra. Eu estou bem à sua frente. – grunhiu. – Há um dia.

- Opa, opa, o rato morde. – Akira estava se divertindo. Não o via como uma
ameaça, pelo o contrário. Eddie deveria ser exatamente isso: Um ratinho
que era engraçado de irritar, e Akira iria continuar fazendo pela a piada. –
Eu estou tentando te ajudar. Aliás, nós dois estamos tentando te ajudar. –
apontou para si e Electra. Ela só revirou os olhos, descruzando os braços
para levar as mãos à cintura. – Nada no mundo é de graça, mano, então por
que você está enchendo o saco? Você era tão questionador assim antes de
entrar aqui também?

Eddie rangeu os dentes, com uma resposta na ponta da língua, pronto para
rebatê-lo e liberar a raiva que queimava para ser liberta, porém a
compreensão o salvou: Akira achava que ele matou alguém. Assim como
Electra. E Milo havia dito que, quando as pessoas soubessem que ele não
tinha passado pelo o mesmo teste, ele iria ser bem mais odiado do que o
normal. Reno também realçou isso.

Não que Eddie ligasse para o que pensavam de si, mas lembrou-se que não
podia fazer nada sozinho. Ele precisava de informações, ou comida não
corrompida, ou cartas. Precisava se adaptar pelo menos o mínimo naquela
sociedade horrível que os Legados criaram, se queria destruí-la para ficar
livre.

Primeiro ele conseguia as informações, depois ele era sincero.

Eddie não precisou falar nada, pois Akira continuou:

- Eu sei que é difícil, se você chegou há pouco tempo, mas pensa com a
cabeça, porra. Se você não tem cartas, faça outro tipo de escambo:
Informação por informação.

Electra olhou para Akira nesse mesmo instante.

- O que pensa que está dizendo?

- Ele pode trabalhar para gente, para pagar quaisquer perguntas que ele
quiser.

- Não. – Electra foi dura, olhando diretamente para Eddie, sem um pingo de
piedade. Eddie estava em choque pela a situação toda e não conseguiu
reagir. – Nunca. Eu não quero mais um problema. – até mesmo Akira se
surpreendeu com aquilo. Porém, sem deixar o silêncio surpreso se estender
por muito tempo, Electra disse: - O que eu posso fazer por você é fazer
perguntas de volta, e precisa me responder.

- Eu... – Eddie precisava reagir, mas estava com sérias dificuldades. – Eu


não tenho... O que te contar.

- Ah, você tem. – Electra continuou dura, em tom de desprezo. Eddie


arregalou os olhos ao perceber que ela sabia. Ela sabia que ele escondia
informações, e que era diferente. Com sorte, ela não sabia como. Ela era
bem mais perigosa do que Eddie havia imaginado. A garota era boa em ler
gestos corporais e deduzir as pessoas, e Eddie sempre foi transparente
demais com os sentimentos. Era seu maior defeito. – É uma troca justa. É
pegar ou largar. Se não, pode sair agora do meu território e eu não quero
ver a sua cara por um bom tempo. É melhor me evitar em todo lugar que
for.

Eddie queria dizer que ele não entendia por que Electra estava sendo tão
agressiva, mas ele não conseguia. Entendia muito bem. A garota não era
paciente, não era chamada de Rainha Vazia por nada, e ela não o expulsara
dali até agora. Eddie tinha plena consciência das suas ações.

Ele só não as mudava, quando não achava que precisava. Como agora.

- Então, sua vez. – Akira retomou a conversa, encarando diretamente


Eddie. – Pergunte antes de ser tarde demais.

Eddie odiou as condições. Odiou ter condições.

- Eu quero saber sobre as rebeliões. Quantas tiveram e como foram. – ele


vocalizou após certo tempo que passou se controlando e se preparando
mentalmente para aquilo. Ficou quase orgulhoso de si mesmo por
conseguir.

- Pergunta grande. – foi à primeira coisa que Electra disse. – Eu respondo


se você me der as suas cinco cartas.

- O quê?! Você disse que ia trocar as informações!

- Mas eu sei que qualquer coisa que você me contar não vai valer o
suficiente pela a resposta. Então, as cartas vão servir como o que faltar. –
ela esticou a mão mais uma vez. – Se você não quiser, muda de pergunta ou
só sai da minha vista logo.

Ela era tão viciosa. Como uma cobra que só sabia se alimentar e se
alimentar, nunca ser a presa. Eddie estava começando a criar a mesma
antipatia que criou por Natasha, e a vontade de soca-la no rosto. Mas a sua
curiosidade precisava ser mais forte naquele momento, e deveria ser o seu
jeito de lidar.

Milo o alertou muito bem disso no dia anterior. Ele já estava um por cento
melhor do que ontem, mas ainda assim: Nada daquilo era bom ou aceitável,
e Eddie não podia evitar o fogo crescer dentro de si, até o momento em que
ele iria explodir em um mar de labaredas.

E Eddie não iria se preocupar em controlar.


Ele entregou as cartas, silenciosamente revoltado, olhando feio para os
dois. Akira sorriu vitorioso para si, um sorriso que Eddie teria tanto prazer
de partir em dois e pintar de vermelho. Alguém que sorria tanto naquele
lugar deveria ser um psicopata de primeira, e só deveria ser civil por conta
do controle de Electra sobre aqueles Legados.

Ela era adestradora de cachorros perigosos. Provavelmente todas as rainhas


eram assim.

- Akira, por favor. – Electra pediu ao garoto. Ele não demorou nem um
instante para se afastar dos dois Legados, for até um dos armários, abri-lo e
remexer ali dentro, cobrindo-o de uma forma que Eddie não conseguia ver
o seu conteúdo de onde estava. Akira achou o que queria e fechou o
armário, voltando com uma pilha de papéis arranjados de qualquer jeito em
uma pasta improvisada, entregando para Electra em seguida. Electra olhou
feio para Akira, provavelmente desgostosa com o fato que ele poderia ter
passado para Eddie direto, mas não comentou sobre e fez o trabalho mesmo
assim. Não antes de dizer: - Você tem um dia para ler tudo. Faça qualquer
tipo de dano, e vai ser punido por isso. Eu sou o tipo de garota que gosto de
tudo que é meu organizado, limpo e seguro, então é melhor não me testar.

Eddie segurou os papéis de forma desengonçada, com dificuldades para


lembrar-se da última vez que segurou uma pilha dessa forma. Com certeza
não era isso que estava esperando, mas talvez fosse melhor do que passar o
dia conversando com Electra. Então, era verdade: A informação dela era
séria, se ela tinha o cuidado de transformá-la em documentos. Todos os
papéis estavam escritos à mão, de forma muito legível.

- Agora, - Electra chamou a sua atenção mais uma vez. – por que você só
tem cinco cartas?

Eddie sabia que seria aquilo. Ele quis muito pegar os papéis e fugir, mas
tinha plena consciência que não iria longe. Seria pego no primeiro passo
que desse, e odiava fugir. Odiava demonstrar fraqueza para quem esperava
e queria isso de si.

- Eu deveria ter ganhado vinte, como qualquer um. – Eddie começou a


murmurar. – Mas a Natasha me propôs... – odiou-se fortemente, de forma
fervorosa, por corar e ficar envergonhado por algo que apenas o deixava
doente. – Ela me propôs para fazer algo, então ela me daria quarenta cartas.
Eu não quis e ela me deu cinco cartas.

Akira estava rindo enquanto Electra fechou completamente a cara,


parecendo nada contente por aquela resposta. Na verdade, ela não poderia
estar mais irritada, com aquela intensidade viciosa que ela liberava. Era
como se o ar ficasse mais pesado toda vez que seus olhos mudavam de
expressão.

- ‘Quê ‘que ela pediu? Um beijo? – Akira continuava rindo, nada


preocupado, tratando como se fosse nada. – Cara. Você deve ser muito
viado para negar.

- Cala a boca. – Electra o cortou antes que Eddie perdesse todo e qualquer
autocontrole e pulasse em Akira. Aquele era o momento que Eddie decidiu
que Akira não merecia ficar vivo. Ou, pelo menos, ele merecia uma surra
que o impediria de falar para sempre. – Ela está ficando incontrolável.
Você não é o primeiro com uma história dessas, e eu preciso te alertar a me
contar, quando acontecer.

Eddie não respondeu, mas sua expressão gritava que ele não iria dizer nada.
Electra não precisava expulsá-lo do território dos Legados do Sono: Eddie
não estaria voltando para lá nunca mais, pois se voltasse, não seria nada
pacífico e comportado como estava sendo agora.

- É só isso? – Electra perguntou mais uma vez, e Eddie percebeu que ela
sabia que não era só isso.

Ele engoliu a seco.

- Sobre as pessoas que não possuem grupos...

- Você pode entrar em qualquer grupo se te permitirem. – ela respondeu


direto. – Mas se não quiser, você fica como um Coringa. Só temos um, e é
melhor não dizer para ele que o chamamos assim. Tudo depende de como
age, Eddie. – ela cruzou os braços mais uma vez. – Se você quiser
cooperar, pode se juntar com o outro Coringa, e basicamente arranjaria
trabalhos de todos os grupos. Ou entra para um grupo. Mas se você não
quiser... – Electra deu uma pausa apenas pela o efeito dramático. – Bom
você vai lidar com as consequências. E eu preciso te avisar que nada aqui é
leviano.
Só a importância das nossas vidas.

Eddie teve que morder a própria língua para não deixar a sua ironia
costumeira transbordar.

- Esse tal de Coringa que você acabou de dizer...

- Você se acha esperto, ou algo do tipo? – Electra virou o rosto,


semicerrando os olhos para Eddie. Eddie a achou cem vezes mais rude
naquele momento. – Continua me fazendo mais de uma pergunta em uma,
achando que eu não vou notar.

- Eu não—

- Eu vou te dizer por que eu sou bem mais gentil do que você realmente
acha. E, - ela deu outro passo à frente, aproximando-se de Eddie de uma
forma que atravessou o espaço pessoal de Eddie. Não era a primeira vez
que fazia isso na conversa. Mas agora, ela estava mais intimidadora. – eu
quero respostas tão elaboradas quanto as que eu estou te dando. – ela
avisou baixinho, dura e intensa. Eddie não pode evitar o arrepio que lhe
causou. – O nome dele é Laz. Eu posso te passar a sala que você
normalmente o encontra, e é a sua responsabilidade conseguir acha-lo.
Agora, antes disso, eu quero a minha resposta. – Eddie franziu o cenho para
ela, ansiando pelo o momento que a garota iria finalmente se afastar e o
deixar respirar normalmente de novo. – Por que Milo adotou você, sendo
que ele nunca fez isso por ninguém?

O estômago de Eddie se revirou mais uma vez, com força. Ele acreditava
que, se tivesse comido naquele dia, já teria vomitado. Pelo menos estava
acostumado à fome e a fraqueza. Mas não com toda aquela reviravolta
emocional, aquele tumor que não parecia ter fim. Até mesmo seu coração
apertou de leve naquele momento.

Lembrou-se do que Milo havia dito para si, e sentiu-se em uma


encruzilhada, só que nenhuns dos caminhos que tomasse seriam bons.
Independente de qualquer coisa odiava prejudicar as pessoas. Mesmo que
Milo o irritasse, ele apenas o ajudou do começo ao fim. Milo não era
alguém ruim. Ele só era alienado como todos dali, mas não de uma forma
nociva como Electra ou Natasha.
Elas se aproveitaram de algum tipo de poder distorcido que o Complexo
produziu.

- Ele... – Eddie mordeu o lábio o suficiente para fazê-lo sangrar, da mesma


forma que sua língua sangrava por ter a mordido mais cedo. – Ele quis. Foi
isso que ele me disse. Ele quer me ajudar. Quis fazer a coisa certa. – deu
uma pausa, batalhando com as palavras, engolindo a saliva da boca seca. –
Foi isso que ele disse.

- E é só isso que você sabe? – Electra arqueou uma das sobrancelhas. Eddie
assentiu, sentindo-se julgado em todos os ossos do seu corpo, até a alma.
Mentir para ela era como um teste de estresse cardíaco: Eddie ficou
surpreso por não ter tido um infarto ainda. – Ok. – ela finalmente disse,
afastando-se de si. Foi só nesse momento que Eddie pode respirar aliviado,
desesperado por ar. Electra estava o causando pânico naqueles momentos
tensos, Eddie que não havia percebido por questões de sobrevivência. –
Mais uma coisinha, Eddie, - a garota chamou a sua atenção mais uma vez,
fazendo Eddie entrar em pânico de novo. Ele a olhou, tentando não parecer
tão desesperado como realmente se sentia, e despreparado. Então, Electra
sorriu. – é melhor não mentir para mim. A coisa que eu mais detesto nesse
mundo inteiro é a mentira. – ela soou doce, com um sorriso meigo. – E eu
sempre descubro quando mentem.

O chão de Eddie foi retirado novamente, e ele teve certeza que aquele era o
primeiro pacto com o Diabo que faria repetidamente pelo o tempo que
passasse dentro daquele Inferno.
MILO

As portas automáticas se abriram, e Milo sentiu uma onda de nostalgia ao


entrar naquela sala novamente. Fazia um mês e pouco que ele não se
encontrava com Reno para passar o dia, muito menos o ver em geral. Era
triste que eles se reencontraram por conta de Eddie, em uma situação tão
tensa.

Pelo menos, agora, eles poderiam tentar retomar o tempo perdido.

Foi com esse pensamento que Milo atravessou o Complexo em uma


rapidez incrível, sem saber se realmente andava ou se corria. Ele evitou o
refeitório, diminuindo a própria fome, e evitou ao máximo interagir com
qualquer pessoa que poderia impedi-lo de ver Reno naquele dia. Também
jogou o seu martírio costumeiro sobre Tártaro (quando iria vê-lo, quando
ele iria chama-lo, e como iria ser) para o fundo da mente, mais
especificamente em um baú, e o trancou a sete chaves.

Sabia sobre todas as consequências, e aceitava os termos.

A sala em si era sempre parecida com o lounge em que as Legados da


Imagem ficavam: Todas as luzes eram tons escuros de néon, e as máquinas
de infinitos jogos, tanto antigos quanto novos, cobriam todos os perímetros.
Era como o lounge com degraus logo na entrada. Em cantos estratégicos,
havia algumas namoradeiras e foi em um canto afastado, contra a parede na
direção esquerda, que ele achou Reno encolhido sobre uma delas.

- Ei. – Milo chamou a atenção do Legado do Sono, que ergueu o rosto em


sua direção. Estava em posição fetal, com os pés sobre o sofá, o rosto
escondido sobre os joelhos. – Você encheu a sala.

Reno alongou os olhos, olhando ao redor rapidamente ao ouvir isso. Então,


ele disse:

- Ah. – como se só tivesse notado agora. – Eu enchi.

Milo franziu o cenho.


- Você deve estar muito mal para isso. – Milo comentou com a voz neutra,
sem se importar com o que dizia, sentando-se ao lado de Reno. O observou
de forma preocupada, o coração doendo um pouco em compaixão por ele.

- Nem brinca Capitão Óbvio. – Reno deixou o rosto cair novamente sobre
os joelhos, com a voz engrossando enlaçada de fadiga. Nesse momento,
Milo percebeu que algumas partes da ilusão de Reno começaram a falhar
até se tornarem menos complexas. Era melhor assim: Criar imagens
realistas apenas gastaria as suas energias, e não era isso que Reno precisava
no momento.

Mas era uma situação delicada: Legados do Sono, quando carregados


demais emocionalmente ou fisicamente cansados, ou, também, à beira da
morte, criavam ilusões ao seu redor. As ilusões eram uma forma de
proteção, no caso de Reno sempre o levavam para um lugar seguro que o
agradasse, mas elas também o cansavam mais do que já estavam. Então o
mais recomendado é que, na verdade, eles nunca usassem da manifestação
de criar de ilusão, até última ordem.

- Bom, nós temos o dia todo para falar sobre isso.

Reno respirou fundo, erguendo o rosto amassado mais uma vez, para olhar
feio para Milo.

- Temos mesmo? Você não vai ter que ser convocado de novo?

Milo foi quem abaixou os olhos dessa vez, apertando os dedos uns contra
os outros, encarando o tecido falso do sofá falso. Ele e Reno se
encontravam naquela sala desde o começo da sua relação. Não era um
fliperama, na verdade era uma sala vazia, que Reno sempre alterava por
meio das suas ilusões. O nível de mudança que Reno causava na imagem
da sala dependia do quão triste, irritado ou cansado ele estava no dia.

E julgando pelo o jeito que as luzes neon queimavam na pele de Milo, e as


máquinas de jogos roubavam o seu olhar várias vezes, por serem
chamativas e não se encaixarem nem um pouco com a realidade que ele
sabia que ainda existia por fora das portas automáticas, que na verdade não
eram duas e sim uma, mas Reno mudou até mesmo isso, criando sons de
fundo, nada muito alto, como um zumbido leve de máquinas funcionando,
a leves canções de jogos que Reno conseguia lembrar, e o cheiro
característico de um lugar novo, limpo, que foi artificialmente perfumado
em, provavelmente, todas as partes: No carpete cinza que era muito fofo,
nas máquinas e principalmente naqueles sofás namoradeiras que eram, na
verdade, muito cafonas e não combinavam em nada com as luzes néon ou
com o carpete ou com as máquinas.

As ilusões de Reno eram tão irregulares quanto ele. Milo já estava


acostumado.

- Eu não sei. – Milo foi sincero, como sempre era com Reno. –
Supostamente Tártaro já me convocou essa semana, mas... Eu não sei como
vai ser agora. Eu não sei o que ele vai fazer.

- Você não vai mais ficar desaparecido por meses, né? – Reno franziu o
cenho ao questionar. – Eu deveria ter perguntado isso antes.

- A gente não teve muita chance. – Milo o tranquilizou. – Não. Meus


treinamentos acabaram. Quer dizer, agora eu já provei que sei usar as
minhas manifestações. – então, Milo deu uma pausa, hiper consciente da
própria respiração. – Agora... Agora eu supostamente tenho que usá-las.

- Como?

- No Eddie. – a voz de Milo era tão baixa quando ele disse isso que poderia
ter sido apenas um pensamento. – Tártaro quer que eu controle o Eddie.

- Milo...

- Nunca é o suficiente para ele, entende? – Milo também não percebeu


quando sua voz se alterou se elevou, e isso assustou Reno. Ele nunca se
alterava dessa forma. Não existia alguém mais controlado do que ele dentro
do Complexo. – Ele vê o que vocês fazem, ele controla vocês, ele culpa
vocês. Ainda assim ele usa um espião e... E agora ele quer que eu faça o
mesmo que ele faz. Ele quer que eu use o Controle em Eddie e reporte tudo
que eu souber.

O Controle era a mesma coisa que uma bomba sem timing dentro de Milo.
Não conseguia ver de outra forma. Era a representação mais clara que ele
era uma boneca em formato de arma. Quando Tártaro o criou
artificialmente, ele queria que a manifestação de Milo fosse a de controlar
outros Legados. E ele também queria total controle sobre a arma com essa
capacidade.
Milo era uma das piores criações do Complexo e sempre esteve ciente
disso.

- E você não quer fazer.

- É claro que não! – Milo exclamou mais uma vez. – Por que acha que
estou o ignorando agora? Eu realmente... – Milo se perdeu de repente,
como se perdendo as forças. – Eu realmente... Só quis ajudá-lo. Mais nada.

- Milo, isso é perigoso para caralho.

- Eu estou completamente consciente disso.

- Eu não acho. – Reno insistiu, fazendo Milo o olhar confuso. – Eu não


acho que você está entendendo a gravidade do que está falando.

- O que você—

Claro que Milo entendia. Ele era um Legado da Sabedoria. Desde quando
Reno agia assim?

- Essa situação ‘tá te afetando mais do que você quer admitir. – Milo
automaticamente abriu a boca para contra argumentar, mas Reno
continuou: - Você está fazendo coisas por ele que eu acho que não fez por
ninguém, por mais culpado que você se sinta com tudo aqui dentro.

- Eu o ajudei durante o teste, eu não iria deixa-lo à própria mercê—

- Eu sei que metade é culpa. – Reno não parecia nada incomodado de


continuar interrompendo Milo, fazendo-o fechar os lábios com força, cerrar
o inferior com o superior, e tentar controlar aquela agitação inesperada e
estranha que se remexia dentro de si. Não era nova, mas nunca saía do
controle. E se saísse agora, Reno só provaria seu ponto. – Por que você
acha que é culpa sua, o fato de você existir, que o furacão ‘tá aqui agora.
Mas tem outra metade. É a outra metade que criou uma ligação com ele,
que provavelmente pode ouvir os pensamentos dele e sabe todas as
memórias dele.

- Reno. – Milo tentou soar repreensivo, sem entender exatamente o que era
que fervia dentro de si a cada palavra que saía da boca do irmão. E por que
estava tão fortemente ligado com o impulso de calar a sua boca. – Eu não
fiz e eu não sei nada dessas coisas por que eu quero.
- Ainda assim, ficar próximo só vai piorar tudo.

- Eu não estou tentando me aproximar!

- Então não o ajude.

Isso fez com que Milo parasse por um instante, encarando os orbes
cinzentos intensos de Reno por trás das lentes dos seus óculos de armação
grossa. Foi como se a afirmação fosse anestesia no seu organismo, o
paralisando, mas o revirando ao mesmo tempo. Foi só nesse momento, algo
tão curto, que Milo percebeu como a sua mente estava virando uma
bagunça.

Ele nunca foi assim. Ele era a representação mais fiel de gelo em uma
pessoa. Seus pensamentos eram calculados, com uma grande porcentagem
de respostas e perguntas certas, com nenhum espaço para sentimentos e
atitudes impensadas. Controlava as próprias sensações da mesma forma
que alguém abaixa ou aumenta o volume de uma televisão.

Milo era algo próximo de um humano, mas completamente artificial.

Porém, quando decidiu ajudar Eddie, quando decidiu fazer a coisa certa,
Milo não estava seguindo nenhuma da programação de pensamentos
corretos da sabedoria causada pelo o seu elemento, pela a sua
artificialidade orgânica, como imitador de humanos. Quase como se só
tivesse seguindo os seus instintos, fazendo algo que queria fazer e não que
precisava.

E Milo nem poderia mentir e dizer que estava só notando agora, pois ele
estava consciente desde o primeiro momento. Só continuou mentindo e
mentindo e desviando desses fatos, para não torna-los reais e assustadores
como estavam sendo agora, quando Reno, e repito, Reno, forçava para que
lidasse com eles.

- Milo, você sabe que eu tenho a capacidade emocional do tamanho de uma


castanha. – Reno retomou, chamando a atenção de Milo. – Por escolha
própria, vale ressaltar. – Milo franziu o cenho para ele. – Enfim, o ponto é:
Eu não me importo, e eu não quero me importar com o que acontece. É por
isso que você pode ser sincero comigo. Mas eu me importo com você, e
isso é algo que nem eu pude evitar. É isso que acontece quando você se
aproxima demais das pessoas, a merda do ser humano que você é vai se
apegar, por que nós precisamos de bandos. – Reno deu uma pausa para
suspirar. – E eu nunca fui um cara de pressentimentos, mas eu tenho um
bem forte sobre o furacãozinho e não é bom. Eu não quero você envolvido
nisso. Na verdade, eu só estou dizendo tudo que você já sabe, mas estava
ignorando. A sua única opção é não se aproximar do mané. Assim, você
não o controla, e também nem comete o erro de se dar bem com ele quando
sabe que ele vai surtar se descobrir quem você é.

- Mas... – Milo se viu falando, como se estivesse soltando todos os


pensamentos sem que passassem pelo o filtro da sua mente antes. –
Tártaro...

Dessa vez, Milo deixou o espaço para Reno interromper.

- Você mesmo disse: Tártaro e Gaia vão te punir de uma forma ou de outra,
eles sempre acham um motivo. Se você não quer mais participar dos
esquemas desses caras, então não participe.

- Só sofra no lugar. – Milo murmurou mais uma vez.

- Você se importa?

- Não. – Milo não tinha que pensar para responder àquela pergunta. – Não.
Eu não sou um humano, e mesma que eu sinta a dor, eu não lido com ela do
mesmo jeito que vocês. – Milo começou a encarar o chão, levando as mãos
eternamente frias ao rosto. Ele não conseguia se esquentar, ele não possuía
peso como os humanos.

Ele era só uma boneca.

- Você tem razão. Em tudo. – a voz de Milo saiu dura quando ele falou
novamente. – É melhor eu ser quem sangra do que fazer as outras pessoas
sangrarem.

Então, Reno pareceu dolorido e cansado e pequeno como o jovem que ele
realmente era, machucado e quebrado, talvez além de reparos. Ele com
certeza não se reparavam, e apenas contribuía para abrir mais as próprias
feridas.

- A gente é tão fudido. – a voz dele saiu chorosa e fraca, entrecortada por
respiração. – Eu queria muito não ter que dizer nada disso para você. Puta
merda, como eu queria não estar nessa situação de merda. Eu sinto muito.
- Ah, Reno. – Milo exclamou emocionado, aproximando-se na hora de
Reno e encostando-se ao corpo dele, abraçando-o de lado. – Você não tem
culpa de nada.

- E nem você. – Reno ergueu o rosto para encará-lo, transbordando


sinceridade de uma forma que ele não deveria fazer com mais ninguém há
anos. O coração de Milo doeu em gratidão, sem saber como merecia tudo
aquilo. – Eu realmente acredito que não é sua culpa.

- Então vamos tentar não nos machucar mais que o necessário. – Milo
concluiu dando um sorrisinho amarelo e machucado, fazendo Reno apenas
balançar a cabeça negativamente, lutando ao máximo contra as lágrimas. –
É a única coisa que podemos fazer. – Milo fez carinho nele. – Mas sobre o
que você disse sobre pressentimento... – Milo precisava perguntar se
corroendo de curiosidade. – O que isso quer dizer? Aliás, por que você está
tão mal, mais que o normal?

Reno balançou a cabeça negativamente mais uma vez.

Mas agora ele parecia mais com ele mesmo: Raivoso e indignado.

- Ele não é uma pessoa ruim, eu posso admitir isso. – Reno grunhiu. – Mas
isso não quer dizer que o filho da puta não representa coisas ruins, e não vá
fazer coisas ruins. Se eu estou cansado assim agora, é por conta dele. Eu
não sei todos os detalhes da vida dele para gostar dele, como você. Eu não
crio empatia tão fácil. – Milo não gostou do comentário, remexendo-se em
seu lugar. Mas não conseguia contrariá-lo. Então, óbvio, a verdade doía.
Tinha plena consciência disso. – Então é óbvio que eu estou com um
pressentimento ruim, e óbvio que eu quero você longe.

- Por acaso você... Sonhou? Por conta dele? – Milo teve que perguntar
cuidadoso e lento, falando com um animal arisco. Reno só o encarou, e
Milo não precisou da resposta verbal, não àquela altura da relação dos dois.
Legados do Sono não sonhavam, não aleatoriamente. Eles escolhiam em
que tipo de fantasia teria durante o próprio sono, como um refúgio, um
mundo onde tivessem total controle. Se acontecia um sonho de fato, era um
pesadelo, uma prisão criada para si ou algum tipo de previsão. Reno
costumava ter os dois, mas fora do Complexo. – E foi uma previsão?

Milo tinha que insistir. Era curioso demais para não perguntar e tentar
arranjar respostas de algum jeito. Tornava-se impressionante como ele não
ultrapassava os limites impossíveis de Reno, e não o irritava com o seu
jeito. Com eles era diferente, por quase razão nenhuma. Funcionava por
que decidiram assim, e agora iria continuar assim.

- Eu não quero falar sobre, na boa. – Reno resmungou, o cortando de vez. –


É gatilho para mim e você sabe.

Milo assentiu, sabendo que o mais sábio a se fazer era parar e respeitar os
limites dele. Iria saber uma hora ou outra. Também acredita que, no
momento que Reno tentasse ocultar algo importante, Milo iria saber. Não
parecia ser o caso agora, então Milo deixou passar.

- E sobre o Complexo... – Milo retomou, piscando em direção a Reno. – O


que está realmente acontecendo?

- Ah. – Reno deu um sorriso irônico, causado pela a histeria de sentir o


perigo perto demais de si. Ele lidava de todas as formas erradas. – Eu
chamo o atual momento de descida lenta até o caos total. Mas eles estão
mais civis do que antes, então isso é um ponto positivo, certo?

Milo começou a ficar temeroso, dobrando a sua atenção à conversa com


Reno. Toda vez que passava muito tempo fora, voltava com novos
problemas para enfrentar. Mesmo que os Legados em geral lhe odiassem e
não gostassem de envolver nem ele, nem Reno, nos assuntos, Milo acabava
sempre no meio e nunca em uma situação favorável.

Mas era apenas o seu carma agindo: Afinal, ninguém estaria ali e o
Complexo não teria sido criado se não fosse por sua existência. Milo
aceitava e não lutava contra: Não tinha esse direito e tinha consciência. Não
quando não passava de um espião sujo, e continuava traindo todos ali
dentro, enquanto era o real motivo de ficarem.

Mas o que ele poderia fazer? Não havia como levar os Legados normais
para onde os Primórdios ficavam. Não possuía nenhuma informação que os
ajudasse a ganhar uma luta contra Tártaro ou Gaia, ou que realmente
destruísse o lugar. Milo estava tanto no escuro quanto os outros, mas em
uma posição diferente.

E isso só ficava mais evidente toda vez que interagia com Eddie. Ele era
seu oposto: Recém-chegado, ingênuo, esperançoso e efusivo. Apesar o
atrair, Milo não deveria chegar perto. Por isso não se surpreendeu ou lutou
contra quando Reno constatou apenas o óbvio. Milo precisava ser
inteligente, precisava fazer a coisa: E era isso que iria acontecer
independente de qualquer conselho.

- O que houve? – Milo teve questionar, sabendo que Reno não iria falar
caso não especificasse. O sorriso irônico de Reno morreu, assim como sua
energia.

- As cartas são motivo de discórdia, como sempre. A Natasha distribui as


cartas à moda caralha, o que ‘tá deixando todo mundo puto da vida. Mas
ela não é pega, porquê óbvio, Legado funcional. – Reno fez uma voz
enjoada e revirou os olhos. – Todo mundo começou a negociar mais entre
si para não ter que depender dela, e fazer render as cartas que já temos, mas
não ‘tá dando certo por que ninguém realmente tem boas ideias.

- E como seria isso? – Milo arqueou as sobrancelhas.

- O Diego é um puta exemplo errado. – Reno exclamou. – Ele ‘tá


praticamente fazendo um show de talentos.

- Como é?

- É isso que você ouviu, não sou eu inventando. A reunião dele vai fazer
um concurso em que a apresentação mais aplaudida vai ganhar cinquenta
cartas, e é claro que quem está desesperado se vê obrigado a participar de
um esquema merda desses. Se ele não cobra extras para ajudar a pessoa
com a apresentação, ela ganha a confiança, mão de obra de graça e
influência.

Milo deu uma respiração profunda.

- É por isso que eu não o vi ainda. Ou Fernanda. – Reno franziu o cenho


feio para demonstrar descontentamento ao ouvir o nome da garota. –
Ninguém está fazendo nada contra? Ninguém?

- Esse é o maior problema: Não se sabe ninguém disse, mas eu sei que a
Electra o apoia. Ela vai usar da desculpa para extorquir as pessoas, como
ela sempre faz. – era impossível medir o nível de desgosto que Reno
expressava naquele momento. – Então ou ninguém quer se envolver com o
problema ou ninguém a enxerga. Todas as opções são uma merda. – ele
bufou.
Houve um momento de silêncio, enquanto Milo digeria as informações
novas. Mas ele ainda tinha uma pergunta entalada na garganta, o que
normalmente nunca acontecia. Possuía poucos complexos em relação à
vocalizar os pensamentos, pois sabiam que estavam certos maior parte do
tempo. Normalmente eram as pessoas que tinham dificuldades para falar
consigo.

- E os Jogos de Punição? – Milo acabou perguntando, odiando a incerteza


que o acompanhava enquanto proferia as palavras. Não era do seu feitio,
não estava certo.

- Eu adoraria te dizer que ele deixou de ser controlado por nós, mas isso é
mentira. – Reno simplesmente o olhou, a voz com falsa neutralidade, os
olhos opacos e vazios para que não quebrassem. – As apostas continuam, e
continuam piores, e ter informação em todo mundo só vai ajudar nos
principais apostadores.

- Electra e Diego.

- Yep. Eles são os mais perigosos no atual momento, com a querida ajuda
da Natasha, e eu acho impossível o seu furacão em formato de gente não se
envolver com eles. Ou, sinceramente, não ir direto para os Jogos da
Punição.

Milo balançou a cabeça negativamente, fechando os olhos por um instante.


Como ele queria ignorar tudo aquilo, não se envolver em nada, fingir que
era realmente neutro e incapaz de alterar os fatos. Mas sua mente
mecanizada nunca o permitiria isso: Fazer a coisa certa era sempre a
resposta sábia, independente do que o certo se torne na hora, e o instinto
natural de Milo era sempre seguir isso.

Era por isso que se martirizava tanto e esse martírio se estendia por toda a
sua existência, nunca o dava paz. Milo era um escravo para o próprio
conceito que o concebera. Assim como ele era um escravo para todo o
resto: Tártaro e o Complexo, que delimitavam o seu mundo. Não havia
mais nada atrás dessas duas figuras enormes, obscurecendo sua visão.

- Pelo menos sabemos que, se Eddie tivesse se encontrado com Diego, o


Complexo já teria se autodestruído. – Milo não acreditava no próprio
otimismo, sentindo palavras falsas e plásticas saírem da sua boca há cada
momento que a movia. Exatamente como ele. Milo passou a mão no rosto.
– Se eu preciso me afastar, não tem muito que eu possa fazer além de tentar
afastar Diego de Eddie também.

- Não dá para evitar que o Eddie conheça da reunião para sempre, Milo.

- Essa não é a minha intenção. – Milo tentou continuar o mais paciente o


possível. – Minha intenção é não o deixar cair nos Jogos da Punição, por
que eu tenho certeza que é isso que o Tártaro quer. E eu já não vou
obedecê-lo, então...

- Então esse é o jeito de um Legado da Sabedoria mentir? – Reno arqueou


as sobrancelhas. – Eu achei que você fosse melhor nisso, já que faz o
tempo todo. Sua intenção é proteger a porra do Eddie, quando ‘tinha
acabado de concordar que não iria se envolver.

Milo apenas o olhou, aproveitando-se bem do fato de ser uma vida artificial
para não registrar nenhuma das suas palavras e nem leva-las em conta. Ele
sabia que estava certo, mas Milo também não estava errado: Ele estava
criando desculpas para um processo, porém essas desculpas não deixavam
de serem válidas e verdadeiras.

O único meio dele se incomodar com o que Reno dizia era perder para os
próprios sentimentos, que ficavam enterrados no fundo da mente, trancados
a sete chaves, e quase nunca reagiam com as pessoas. Ou não deveriam,
pelo menos.

O fato de eles estarem reagindo tanto nas últimas quarenta e seis horas,
ressurgindo do nada, o deixava confuso e inseguro.

- E eu não estou me envolvendo, não com Eddie. – Milo finalmente


respondeu, com a voz inalterada. – Estou agindo como sempre agi em
relação aos problemas dentro do Complexo, e unindo o útil ao agradável.

Reno o olhou feio, mas antes que pudesse criticá-lo por suas atitudes, o
sinal do Complexo tocou sobre os dois, praticamente estourando seus
tímpanos. Ambos estavam acostumados. Agora era o terceiro horário, e
eles precisavam retornar.

- Nós temos que ir. – Milo murmurou, erguendo do sofá com movimentos
letárgicos, odiando a ideia de se levantar do lugar confortável e deixar a
bolha segura que criou com Reno. Reno era do mesmo jeito, ou até mesmo
pior, demorando para se levantar, apenas o fazendo quando Milo lhe
ofereceu à mão. – Você não vai jantar?

No terceiro horário eles poderiam ir até o refeitório jantar. O almoço era


geralmente no segundo horário, mas opcional. No terceiro horário existiam
as duas opções viáveis: O pátio ou o refeitório, apenas. Assim como no
primeiro horário, supostamente só era permitido que fossem ao refeitório
tomar o café da manhã, mas ninguém respeitava isso e não foi uma regra
que os Primórdios se incomodaram de reafirmar.

Mas é uma entre um milhão de outras regras violentas.

- Eu não quero olhar para a cara de ninguém. – Reno resmungou


contrariado. – Quero a minha cama e alguma HQ. Jantar é o caralho.

- Justo. – Milo deu um sorrisinho amarelo, apertando a mão de Reno de


leve. – Reno, - Milo o chamou. – nós vamos sobreviver ok? Como já
fizemos tantas vezes antes.

- Tem certeza, Milo? – Reno arqueou a sobrancelha. – Pois o meu


pressentimento diz ao contrário. Ele ‘tá que nem uma bússola em pânico
quebrada apontando para todos os lados, mas não tem caminho nenhum
para seguir.

- Você é um poeta quando quer desmotivar alguém. – Milo deu uma leve
risadinha. Reno pareceu orgulhoso ao ouvir isso. – Eu não tenho certeza. –
Milo foi sincero, como Reno sabia que faria. – Mas nós temos que tentar do
mesmo jeito. E se não der certo, morrer tentando nunca foi estranho para
nós, não é assim?
EDDIE

Eddie estava tendo dificuldades para acreditar no que estava lendo naquele
arquivo oferecido por Electra. Eram relatos completamente realistas, e por
isso tornava tão difícil de acreditar neles. Pelos os seus cálculos, foram
mais que dez rebeliões em um curto período de tempo. Isso significava que
nem mesmo os Legados estavam presos no Complexo há muito tempo.

As rebeliões serviam mais como lições de como não fugir. Não adiantava
quebrar as luzes, os canos no teto ou as ventilações para que o Complexo
parasse de funcionar. A escuridão não tornava mais fácil escapar. Não
adiantava fazer greve de fome, pois alguém sempre cedia e se ninguém
cedesse, iria ser forçados a ingerir alimentos uma forma ou de outra. Não
adianta tentar quebrar as paredes, pois elas possuíam várias camadas e
demoraria muito para que você chegasse do outro lado. O outro lado era
apenas terra, já que estavam debaixo da terra. Não adiantava quebrar as
câmeras, pois para cada câmera quebrada havia um Praticante próximo de
onde você estava. Não adiantava quebrar nada do Complexo, basicamente.
Não os levava à algum nenhum, e dependendo do que era quebrado, não
rendia nem mesmo punição.

E os Praticantes eram outro ponto assustador. Naqueles papéis em si, não


havia muito sobre eles, mas o suficiente para fazer Eddie se questionar o
quanto Electra sabia e o quanto ela poderia oferecer. Entre os relatórios
estava escrito que os Praticantes possuíam um chip que os ligava com as
câmeras, ou seja, por isso eles eram tão robóticos e apareciam em todos os
lugares: As informações das câmeras estavam dentro de si, e eram
controladas por elas.

Eles realmente não eram mais humanos. Eram escravos tecnológicos.

Não adiantava se rebelar contra eles, pois quando começava um ataque,


mais deles apareciam. Isso fez com que os Legados percebessem que o
Complexo era maior do que parecia, e tinha espaços em que eles não
tinham acesso. Porém, tentar chegar nesses espaços também foi
considerado como rebelião, e muitos morreram antes de conseguirem
descobrir qualquer coisa.

Hoje em dia, eles sabiam que existia uma parte do Complexo que remetia à
sua primeira construção, que não pode ser destruída por ajudar a sustentar o
ambiente debaixo da terra. Mas só tinham acesso ao começo dessa parte, e
não havia nenhuma resposta ou modo de fuga por lá. Eddie não deixou de
marcar a informação, a considerando importante de qualquer jeito.

As rebeliões sobre as quais Milo havia lhe contado estavam ali: Quando
eles não tinham um sistema de relações, e estavam agindo por contra
própria, sem se preocupar com os outros. Os genocídios eram muitos para
que Eddie conseguisse contar. A lista de nome de crianças mortas o deixou
enjoado e em pânico, e ele teve que lutar mais uma vez para não vomitar de
barriga vazia, ficando mais fraco a cada instante que passava. Mais fraco
fisicamente e emocionalmente, naquele inferno que sugava a sua energia
vital, praticamente.

Mas Eddie nem estava pensando em como iria fazer para conseguir comida.
Não era uma das suas preocupações.

Eddie estava começando a entender a lógica perturbadora pela a qual o


Complexo funcionava: Ele tinha ratos de laboratório, ratos que
transformava em canibais, mas quando esses ratos faziam qualquer coisa
fora do que os resultados que eram esperados, seriam eliminados. Porém, o
Complexo nunca especificava cem por cento quais os resultados que
queria.

Eddie conseguia dizer que eles queriam criar assassinos. Mas quando os
Legados se matavam, eram punidos. Não fazia sentido. Nos relatórios
também estavam escrito que as épocas de rebeliões eram as de temporadas
de Jogos de Punição mais longas: Aqueles que se destacavam nas rebeliões
morriam de forma escandalosa nos Jogos da Punição.

Outro motivo deles desistirem das rebeliões, também. Até mesmo quem
não se envolvia acabada sendo punido, indo para os Jogos da Punição
também. Houve tentativas de escapar pelos os Jogos da Punição, pois
ninguém sabia dizer se ele acontecia dentro do Complexo ou não. Não
funcionaram, nem mesmo durante o jogo e nem mesmo fora dele.
Faziam pelo menos seis meses desde a última rebelião, contra o Complexo
ou contra si mesmos. Desde então, os Legados estavam se forçando a se
acostumarem com o sistema de relações que foi designado para si. Os
relatórios de Electra eram muito completos: Ela tinha nomes, descrições
curtas, mas com todas as informações importantes, datas e números. Não
parava só nas rebeliões em si, e sim no que acontecia depois delas também:
Nas punições, nos assassinatos para formar exemplos, na tortura pública.

A violência naqueles papéis era pior do que toda a violência que Eddie
experimentou e viu na rua. Era a violência que vinha com subsídio
tecnológico, ideológico e físico. Era a violência que você não conseguia
quebrar, como o Complexo inteiro: Um monstro gigantesco com várias
cabeças que, toda vez que se cortava uma, crescia outra maior. Chegava a
um ponto que não era mais possível enxergar o rosto desse monstro, de tão
grande e monstruoso.

Eddie levou um susto e teve que parar de ler quando um objeto não
identificado caiu à sua frente com um barulho terrível. Que, parando para
analisar melhor, parecia até humano?

Eddie olhou para cima, para tentar identificar o que estava acontecendo, e
acabou achando um túnel de ventilação aberto. Era grande o suficiente para
abrigar uma pessoa pequena, e foi isso que achou ao abaixar o rosto para
identificar quem havia caído: Um garoto baixinho, gorducho e negro de
cabelos lisos da mesma cor que iam até a sua nuca, machucado e
resmungando de dor enquanto se sentava.

Então, Eddie olhou da ventilação para o chão, a ventilação e o chão.

O garoto deveria ter, pelo menos, quebrado o pescoço pelo o jeito que caiu.
Se Eddie conseguiu entender direito o que havia acabado de ver em alta
velocidade, a cabeça do garoto foi a primeira a entrar em contato com o
chão de metal, e seu pescoço entortou enquanto o resto do seu corpo
chegava ao chão.

Mas ele parecia muito bem, sentando-se sobre as pernas e esfregando as


partes machucadas do seu corpo. O garoto demorou um pouco para notar
Eddie, e quando o fez tomou um susto.

- ‘Quanto tempo você ‘tá ai?!


Eddie foi obrigado a sair do torpor que entrou tentando entender por que
diabos aquele garoto ainda estava vivo.

- Desde que você quebrou o pescoço caindo dali. – apontou para o túnel
aberto da ventilação. O rosto do garoto se avermelhou. – Que porra foi
essa? – Eddie não achou outra forma melhor de questionar.

O garoto se ergueu, mostrando que era bem mais baixo e que, realmente,
não havia quebrado nada. Nem um braço, nem uma perna. Estava
perfeitamente bem. Eddie franziu o cenho, sentindo que iria começar a
tentar adivinhar que tipo de Legado as pessoas eram, e que não iria
conseguir, toda vez.

Ele tinha certeza que não conseguiria sobreviver àquele tipo de coisa.

- Hã... Então, né... – o garoto resmungava envergonhado demais para


conseguir dizer algo coerente. Não conseguia olhar Eddie nos olhos,
também. Eddie percebeu que ele tinha um cinto de utilidades, usava um
casaco pesado e duas vezes maior que o seu tamanho, azul, e seus bolsos
eram largos e fundos, parecendo pesados de coisas, assim como o cinto que
estava prestes a estourar com tantas coisas dentro. O garoto também usava
luvas, que se encontravam sujas e escuras, provavelmente já haviam sido
brancas. – Me desculpe por—

- Você é um Praticante?

Eddie perguntou sem pensar, tentando decifrá-lo pelas as roupas. Seria


alguém que era responsável pela a manutenção do Complexo? Mas isso não
fazia muito sentido. O garoto não era robótico como os outros, e muito
menos parecia ter idade o suficiente. Ele não seguia o padrão dos outros
Praticantes, mas se fosse um diferente...

- O quê? Não! Claro que não! – ele pareceu ofendido com a pergunta. – Eu
nem tenho uma arma!

Era verdade, Eddie deveria ter levado isso em consideração antes de


perguntar. Levou um tempo, mas acabou se convencendo que talvez
devesse pedir desculpa pela a confusão, já que o garoto não gostou nada
daquilo. Mas Eddie tinha dificuldades em dizer “desculpa”, mesmo
sabendo que estava errado.

Antes que conseguisse, o menino o interrompeu:


- Você é novo aqui, por acaso?

- Sim.

Isso fez o garoto arregalar os olhos. Eddie percebeu que dizer que era novo
para qualquer criança presa no Complexo significava que ele havia matado
alguém há pouco tempo. E isso assustou o garoto. Eddie franziu o cenho,
questionando-se aquele garoto também não havia matado alguém. Milo
deixou a entender que ele era um dos únicos não assassinos, mas será que
aquilo era verdade?

Eddie não conseguia ver aquela figura baixinha, assustada e desajeitada


matando alguém. Nem Reno, por mais raivoso e irritante que ele fosse.
Eram criaturas covardes demais para isso. Milo, por outro lado... Eddie não
queria pensar sobre, e não queria aceitar, mas sabia que se fosse a única
forma de sobreviver, ele poderia ver Milo fazer.

Assim como ele mesmo faria.

- B-Bom, - o garoto chamou a sua atenção mais uma vez. Foi só nesse
momento que Eddie percebeu que eles estavam em um silêncio tenso, sem
saber mais o que dizer. – meu nome é Lázaro, todo mundo me chama de
Laz, e eu faço umas coisas aqui e ali, eu não sei o quanto você já sabe, mas
é isso, gostaria muito que não contasse para ninguém de eu caindo e
quebrando dessa ventilação, se puder fazer isso vou te agradecer muito,
agora eu preciso ir obrigado pela a atenção, tchau, tchau!

Eddie arregalou os olhos, sendo atingido pela a hemorragia verbal do


garoto e tendo dificuldades para distingui-la e entende-la de fato. Parecia o
tipo de pessoa que, quando nervosa, falava uma frase por segundo, e ele
parecia estar super nervoso agora, até mesmo tremendo.

Foi só quando ele se virou para ir embora que Eddie conseguiu reagir:

- Espera. – Eddie teve que exclamar. O garoto parou, mesmo não querendo,
e Eddie agradeceu por não ter que correr atrás dele. – Qual o nome que
você acabou de dizer?

- L-Laz... Por quê? – ele gemeu em voz pequena, morrendo de medo da


reação de Eddie. – Você ouviu sobre mim? – choramingou.

- Sim... Você é o Coringa, não é?


Então, Laz deu um longo suspiro sofrido.

- É isso que te contaram? Que eu sou um Coringa? – ele resmungou. – Que


legal muito gentil da parte do pessoal. Isso por que todos me juraram que
tinham parado com essa merda.

Eddie piscou.

Electra passou as informações que Eddie precisava do Coringa, como ela


havia dito: Ele iria se apresentar como Laz e normalmente ficava no quarto
andar, em uma sala especializada. Eddie não fazia ideia o que sala
especializada significava. Electra não o explicou, e simplesmente o ensinou
a como chegar, dizendo que entraria em um corredor cheio de portas, dos
dois lados, iguais.

Olhou ao redor, e percebeu que estava ali. Foi sorte, pois andava
completamente distraído enquanto devorava os papéis que Electra o
entregara sedento e faminto por respostas. Se, pelo menos, sua fome fosse
só disso.

Mas Eddie se focava no mais importante: Quanto mais rápido entendesse


tudo, mais rápido seria para conseguir um plano bom o suficiente para sair
dali, ou destruir tudo. Não se importava com qual das coisas que iriam
acontecer primeiro.

- Me disseram que Coringa é quem não tem grupo.

Laz só olhou feio para Eddie.

- Só que não! Têm ‘um ‘monte de ‘gente sem grupo, e eles não são
chamados de Coringas. Eu sou chamado de Coringa por que me fazem de
palhaço. – bufou ao final da frase. – Muito bom quando deixam bem claro
para todo mundo.

- Como assim feito de palhaço? – Eddie franziu o cenho. – Você não é


alguém que consegue trabalho, e ganha cartas, sem estar no grupo de
ninguém?

Foi nesse momento que Laz percebeu que Eddie estava confuso e falava
sério. Laz abriu a boca para responder, provavelmente ter outra hemorragia
verbal, mas ele se cortou ao olhar para trás de Eddie. Ao se virar, Eddie
também começou a ouvir os passos de Praticantes que rondavam a área,
aproximando-se dos dois. Laz abaixou a cabeça, e depois fez um sinal para
que Eddie o seguisse, sem falar nada.

Laz começou a andar em seguida, e Eddie só o seguiu mesmo quando o


garoto olhou para trás, com grandes olhos pedintes e ansiosos para com a
sua direção. Eddie não teve como ir contra, muito menos pensou em falar e
chamar a atenção dos Praticantes. Sabia que deveria evita-los, por conta do
seu temperamento.

Uma coisa todo mundo tinha razão: Eddie ficaria marcado facilmente pelo
o jeito que agia.

Então, se aquele garoto se preocupava com isso, Eddie não iria contra ele.
E ele estava curioso para entender quem Laz era, o que ele fazia, e por que
diabos ele seria considerado um palhaço. E se esse era o caso, se Laz era
um peão e nada mais que isso, Electra queria que Eddie fosse o mesmo. Ou
já o via como o mesmo.

O que não fazia muito sentido, considerando que Electra rejeitou a ideia de
ele trabalhar consigo. Eddie precisava começar a prestar mais atenção e ser
mais sagaz, pois não sabia realmente a intenção de ninguém, e isso abria a
abertura para que as pessoas fizessem o que queriam consigo. Não iria
deixar ninguém usá-lo, ou fazê-lo de idiota.

Eddie se forçou a andar em um ritmo normal atrás de Laz. Ele não olhou
mais para trás, provavelmente para não levantar suspeita. Eddie olhou para
cima discretamente, vendo um número alarmante de câmeras os
observando naquele momento. Será que o jeito que já o vigiavam não era o
suficiente? Por que eles precisavam de tantas coisas?

Eddie não ficaria surpreso se houvesse câmera nos banheiros. E se sentiu


mais doente do que já estava ao lembrar que não checara.

Não teve tempo para desmaiar por anemia como queria, pois os passos
continuavam se aproximando, mesmo que na mesma velocidade, era o
suficiente para disparar pânico e adrenalina por ele e, como pode perceber,
por Laz também. Ele estava completamente arrepiado e tremia, com passos
desengonçados, como se tivesse esquecido como andar.

Os Praticantes não falaram. Não correram. Não fizeram nenhum som ou


tentativa de alcance além de andar na direção dos dois. Eddie quis olhar
para trás, mas não conseguiu. Seu corpo começou a ficar gelado, seus
dedos formigaram, e seus músculos travam. Ele só conseguiu seguir Laz,
no automático, como uma máquina prestes à parar de funcionar.
Finalmente, Laz se virou em direção à uma porta que abriu
automaticamente para si. Ele entrou, e a segurou aberta até o momento que
Eddie entrou também.

- Vem para cá. – Laz perdeu todo o autocontrole que conseguiu reunir na
caminhada do corredor, puxando Eddie para à parede ao lado da porta,
longe do visor de vidro que ela tinha. Eddie não teve tempo de questionar,
pois Laz colocou o dedo sobre os lábios e lhe pediu silêncio com urgência.

Eddie pode ver, com dificuldade de onde estava contra à parede, pelo o
visor da porta a silhueta dos dois Praticantes de uniforme escuro passando.
Porém, eles pararam à frente da porta, e isso fez com que seu coração
perdesse uma batida.

Passou-se um minuto inteiro naquela tortura indescritível, o silêncio


fazendo com que a situação fosse mais tensa e imprevisível. Eddie só pode
respirar novamente quando os dois Praticantes voltaram a se mover,
afastando-se da porta e seguindo o seu caminho, deixando ele e Laz livres.
Eddie sentiu dor em todo o seu corpo, principalmente nos pulmões. Não
pode ver o rosto dos Praticantes, então não sabia se estava marcado ou não.

- Que porra foi essa? – Eddie resmungou com o coração enlouquecido,


escorregando até cair no chão, com as costas na parede. Pode ver a sala que
estavam nesse momento: Era pequeno, como uma caixa branca graças ao
teto baixo e nenhum tipo de adorno, carpete no chão e paredes de metal que
foram pintadas de branco. Não havia móvel nenhum ali. – Que lugar é
esse? Por que é tão vazio?

- Esses caras estão em todo lugar. – Laz respondeu com as mesmas


dificuldades de Eddie, principalmente para regular a respiração. Sentou-se
à frente dele, mas de uma distância segura. – Supostamente eles não podem
fazer nada com você, se você não está fazendo nada de errado, mas acredite
em mim, nunca é legal ser parado por esses robôs em nenhuma
circunstância.

Eddie demorou um pouco para responder, em seguida. Laz ficou cada vez
mais desconfortável, não parecendo saber lidar muito bem com silêncio.
Mas Eddie gostava de organizar os pensamentos antes de falar, quando não
estava raivoso, e estava sendo difícil por conta da anemia que sentia. Não
sabia quanto tempo havia passado, mas tinha certeza que haviam sido horas
desde a última refeição que tivera.

- Obrigado por me salvar, então.

- Você queria conversar. – Laz disse envergonhado e desajeitado, sem


conseguir encarar Eddie até agora. – Foi... Foi só o mínimo... Ia ser ruim
para mim também se você arranjasse brigar com os Praticantes.

Eddie imaginou que ele tinha pensado em si mesmo, mas ainda assim.
Duvidava que o pensamento inicial de Laz fosse em si, e não nos outros,
quando queria ajudar. Se fosse, por que as pessoas, supostamente, o fariam
de palhaço? Ele tinha a aura de alguém que era mais abusado do que
conseguia abusar, e por isso Eddie acabou gostando dele um por cento a
mais do que todo mundo que conheceu até agora.

Com todo mundo, Eddie estava tenso e tinha que se segurar para não
cometer um homicídio ou atravessar os direitos humanos de alguma forma.
Com Laz, Eddie precisava tomar cuidado para não assustá-lo. Parecia cem
vezes mais fácil. Só Fiona, até agora, tinha sido uma experiência parecida.
E Milo, dependendo do momento.

- Sobre o lugar, ninguém te explicou sobre as salas especializadas? – Laz


retomou a conversa de forma ansiosa, parecendo querer acabar logo. Ele
apontou para a sala em geral. Eddie balançou a cabeça negativamente.

- Me disseram que você fica em uma.

- Ah. – Laz coçou a nuca, nervoso. – Elas são salas muito aleatórias, na
verdade. Não tem nada aqui, certo? – a pergunta era retórica, por isso Eddie
não o respondeu, até o momento que Laz se ergueu e bateu com o punho de
leve em uma parte da parede. – Mas não é uma condição permanente. Não
aqui dentro.

Eddie arregalou os olhos quando a parte na qual Laz bateu na parede se


deslocou, abrindo um buraco na mesma. Do buraco saiu a mesma trava
tecnológica que Eddie viu nas celas, recolocando-se entre a parede como se
sempre esteve ali, enquanto o buraco aberto era fechado novamente.
De repente, Eddie começou a sentir medo do lugar inteiro, da tecnologia
por trás de cada uma daquelas paredes e de cada ladrilho metálico no chão.
Quem poderia garantir que eles não tinham a capacidade de fechar as
paredes sobre os Legados, e muito menos a motivação? Nenhum, nenhum
lugar no Complexo era seguro.

- Hã... D-d-desculpa se eu te assustei... Tipo... Acho que é melhor você


prestar atenção na sua respiração, ou coisa do tipo... – Laz se encolheu,
perdendo toda a mínima confiança que conseguiu por dois minutos antes.

Eddie teve que obedecer, por que realmente iria ter um ataque se
continuasse ofegante do jeito que se encontrava.

- Isso é assustador para um caralho. – Eddie confessou ofegante, se


desencostando da parede, com medo mortal dela se abrir. – Como diabos
essa merda funciona?

Laz pareceu meio confuso com a lógica de Eddie: Ele estava assustado,
mas ainda assim queria saber mais.

- Tem uma série de códigos que você coloca aqui. – apontou para a trava
tecnológica. – Cada código é um objeto. Quando você o coloca certo, uma
das partes das paredes se abre e o colocam aqui dentro.

- Isso é loucura. – Eddie estava em choque. – Isso não pode ser real. Como
diabos isso funciona?

- Eu tenho tentado descobrir. Mas esse lugar inteiro é muito complicado


para entender se você não tiver recursos. – Laz resmungou. – Exatamente o
meu caso.

- Então você não sabe nada?

- Ei! – Laz exclamou ofendido. – Eu sei muita coisa para alguém que não
tem recursos nenhum! Eu sou um Legado da Construção, me respeita!

- Legado da... Construção? – Eddie sentia-se perdendo o fio da meada,


como Alice caindo dentro da toca do coelho, eternamente em queda, sem
entender nada ao seu redor.

- Quem não sabe nada? – Laz resmungou em um fio de voz, com medo de
Eddie o ouvi-lo. Eddie o ouviu, mas não achou necessário comentar sobre.
– É o meu elemento: A Construção. O que permite as pessoas usarem o
ambiente em que elas vivem para construírem coisas. Mas eu sou o único
nesse lugar inteiro, e vendo pelo o jeito que você ‘tá confuso, eu vou
continuar sendo o único.

Eddie parecia incapaz de guardar os pensamentos para si, e acabou os


vocalizando:

- Você estava com esperança de eu ser um também? – e arqueou a


sobrancelha, soando mais irônico do que queria. Não gostava de debochar
das pessoas de forma tão direta, sem motivo. Laz não merecia isso após ter
o ajudado.

Laz ficou emburrado, mais na defensiva do que antes, olhando-o ainda


menos, com os braços cruzados e os ombros encolhidos. Ele era pequeno, e
se fazia ainda menor. Era incrível a capacidade do garoto em se fazer
desaparecer.

- E-e d-dai? Foi a única solução lógica que eu achei para alguém te mandar
falar comigo.

- Eu não sou. – Eddie se ergueu ao responder. – Mas eu não tenho um


grupo, como você. Disseram-me que eu podia virar um Coringa, e para eu
saber mais sobre isso, me mandaram falar contigo.

- Quem disse isso?

- Electra.

- Ah, claro. – Laz deu outro suspiro longo e sofrido, descruzando os braços.
– Olha, eu não tenho grupo como muitos Legados aqui. Mas eu dei sorte
por que eu consigo ser útil por conta do meu Elemento. Eu consigo
construir coisas, o que é meio óbvio, e também consigo entender como as
coisas funcionam. Quando eu entendo como algo funciona, eu posso imitar
perfeitamente. Ah, eu também sou muito resistente, o que explica eu não
ter quebrado o meu pescoço naquela hora. – Laz piscou, tomando um susto
com nada, quando percebeu que estava falando demais. – Enfim, ok, você
não quer saber da minha lista de manifestações. – Eddie o estranhou. – A
questão é: Já fazem meses que eu comecei a tentar entender como o
Complexo funciona, e apesar disso não ter dado tão certo quando eu queria,
os outros grupos se interessaram por isso. Eu sei todos os códigos que você
pode colocar nas salas, por exemplo, já que eles não disponibilizam para a
gente, só da para saber se você for ‘nas apresentações dos Praticantes. E eu
estou mapeando o lugar, também. Ou tentando. – Laz se pegou tagarelando
mais uma vez, e deu uma pausa, mordendo o lábio, olhando para Eddie
assustado. Eddie não fez nada, o esperando terminar, mesmo que sem
paciência. Laz continuou, mas inseguro: - Eu faço algumas coisas para
grupos em troca de cartas, ou passo algumas informações. Mas eu não
tenho a proteção de ninguém, eu não trabalho para ninguém. E “Coringa” é
só uma piada sem gosto.

Eddie piscou.

- Como você faz em relação aos Praticantes?

- O-oi? – Laz ficou confuso. Ele esperava bem mais perguntas ou qualquer
outra reação de Eddie além daquela. Eddie insistiu na pergunta:

- Como você faz em relação aos Praticantes? – tentou não soar muito
raivoso, mas era impaciente e odiava repetir o que dizia.

- Hãã... Eu... Eu tenho que obedecer aos caras, para não dar problema para
mim. Eu os evito o máximo que eu posso, mas quando eles aparecem, eu já
sei que vou ser proibido de alguma coisa. Pelo menos eles nunca me
puniram então me acham inofensivo. Eu não... – Laz engoliu à seco,
parecendo prestes à falar algo difícil. – Eu não faço nada muito útil. –
parecia que o motivo principal de falar aquilo era se machucar, e Eddie
quis soca-lo por o garoto fazer isso consigo mesmo. Por que ele se
machucava na frente das pessoas? O instinto natural de Eddie foi o de
ajudá-lo.

- Por que você acha que a Electra me mandou falar contigo, se não existe
mesmo um sistema de coringa?

- Eu não entendo nem a mim mesmo, nunca iria entender a Electra. – Laz
foi super sincero, abraçando o tronco. – Eu gostaria de poder te ajudar, mas
eu não posso. Se você for ficar sem grupo, precisa fazer alguma coisa que
te torne útil e que te faça ganhar cartas. Não dá para juntar comigo, pois eu
não posso te garantir proteção nenhuma, e você também não vai conseguir
me acompanhar no que eu faço, então—

- Por que eu não iria conseguir?


- Ah! – Laz exclamou nervoso. – Eu não estou dizendo que você é incapaz,
longe disso, juro! É só que... Tipo... Como você viu é um ‘lance bem
perigoso, e eu só consigo por conta do meu Elemento. Em certas partes, o
Complexo fica muito quente, eu mesmo só aguento um pouco. E você tem
que entender de engenharia, e precisa ter muita paciência para lidar com os
Praticantes, com os outros grupos, sem falar que eu precisaria de alguém
para me ajudar a construir coisas se eu fosse dividir as minhas cartas...

Eddie franziu o cenho, sentindo-se bastante emburrado e contrariado. Ele


não conseguia ver intenções ruins em Laz, realmente não conseguia.
Porém, não conseguia evitar se irritar por estar sendo julgado de incapaz,
mesmo que não estivesse tentando lhe ofender.

Laz não sabia que, para Eddie, tudo que ele fazia era perfeito. Sempre
ouviu dos seus professores particulares (quando pode estudar) que tinha
aptidão natural para construir e entender o sistema das coisas, e por isso seu
maior sonho era fazer engenharia. Era por isso que estava tão curioso em
relação ao funcionamento do Complexo, e se pudesse estuda-lo junto com
Laz, poderia achar um meio de fugir.

Era verdade que não tinha a mesma resistência de Laz, mas acreditava que
saberia ser cuidadoso. Realmente não poderia garantir se lidaria bem com
os Praticantes ou os grupos, mas Laz não precisava saber disso, e Eddie
poderia ignorar essa parte. Como as cartas. Sinceramente, não ligava para
elas. Queria ajudar mesmo que Laz não dividisse carta nenhuma consigo.

E não precisava de proteção.

Porém, antes de Eddie conseguir expor esses sentimentos e convencer Laz,


ele teve uma vertigem e caiu no chão.

O mundo ficou preto, de uma forma que ele não conseguia enxergar, e
Eddie ficou fora por alguns instantes até conseguir retomar a consciência,
encarando o teto acima da sua cabeça, com canos e uma brancura doente, a
luz forte demais machucando seus olhos.

Eddie virou o rosto de lado, e pode ver Laz, completamente desesperado


agachado à sua frente.
- Mano do céu! – Laz exclamou, com lágrimas nos olhos. – Não me assusta
assim! Nossa senhora! Eu achei que você tinha morrido ou coisa parecida!
E eu nem sei o seu nome, então ia ficar difícil de explicar isso.

A barriga de Eddie roncou mais alto do que as suas palavras poderiam


elaborar o nível de fome que ele estava passando nesse momento. Laz
arregalou os olhos, começando a procurar desesperadamente em suas
roupas alguma coisa.

Eddie só pode ponderar preso no chão macio e felpudo do carpete cinza


dentro da sala. Ele já havia passado mais de três dias sem colocar
exatamente nada na boca, acostumado pela a fome por morar na rua. Mas
por que não conseguiu aguentar nem um no Complexo? Vertigem era algo
que ele teve duas ou três vezes durante a vida inteira.

Tudo era pior naquele lugar. Eddie não deveria estar surpreso.

- Ei. – Laz chamou a sua atenção, tentando ajudá-lo a se erguer. Ele só


atrapalhou, sendo muito desajeitado e inseguro, e Eddie acabou colocando-
se sentado sozinho, grunhindo pelo o esforço enquanto tudo rodava ao seu
redor, a cabeça leve. – T-toma. – entregou-lhe um saco de batatas,
igualzinho ao saco de chocolates que Fiona havia lhe entrego no dia
anterior. – Pode ficar eu tenho mais comigo. – disse quando Eddie aceitou
o saco de forma hesitante, pálido demais para corar, mas morrendo de
vergonha. – Eu sei que é complicado, mas não deixe de comer por conta
desse lugar fudido.

- Eu sou acostumado com fome. – Eddie resmungou. – Não sei por que
estou reagindo assim.

- Por que ninguém deveria passar fome, de nenhum jeito? – Laz retrucou
com tom óbvio. Eddie parou de abrir o saco para o olhar feio. Laz se
arrepiou e ficou nervoso novamente, perdendo a confiança. – Hãããã... S-só
que... Se você está com fome, não deveria ficar bravo consigo mesmo, e
sim por não ter comida.

Eddie não tinha resposta, então só comeu a batata silenciosamente,


tentando ignorar o corpo agradecendo pelo o alimento, por menor que
fosse. Outro silêncio constrangedor caiu entre os dois, enquanto Eddie
forçava-se a focar no que fazia e se aproveitava de estar fraco para não
pensar muito, nem ajudar Laz com o desconforto.
- Então... – Laz insistiu em retomar a conversa, morrendo de vergonha, mas
fazendo do mesmo jeito. – Como você se chama? Desculpe nem perguntar.

- Eddie. – resmungou após engolir outra batata. Comia de vagar, pois sabia
que seu estômago precisava se acostumar: Não era bom se encher de
comida após passar fome. – E eu também não quis dizer.

- Ok, Eddie, olha... – antes de Laz poder continuar, o sinal do terceiro


horário tocou. Laz olhou para cima, surpreso, mas não afetado pelo o
barulho. Machucou a audição de Eddie como sempre, mas ele não tinha
forças o suficiente para pular de susto ou reagir em geral. – Acho que é
melhor você voltar para a sua cela.

Eddie o olhou indignado.

- Uma hora todos nós voltamos. – Laz não pode lhe oferecer muito consolo.
– Eu também tenho que ir. Do jeito que você ‘tá mal, é melhor que volte
para a cela antes que te forcem a ir para a enfermaria.

- Não poderiam fazer isso.

- Não poderiam? – Laz contra argumentou, e aquela pergunta foi o


suficiente para Eddie entender que, sim, poderiam. – Eu já vi muita gente
sendo alimentado por sondas na enfermaria... Você com certeza não quer
passar por isso.

- Eu não quero estar aqui. E se for para ficar aqui, eu também preferia nem
estar vivo. – Eddie resmungou. Laz ficou quieto, e isso fez Eddie olhar para
ele, não esperando o silêncio. O garoto parecia chocado e... Preocupado ao
mesmo tempo. Como se tivesse visto um ato de crueldade.

- Me... Desculpa. – Laz murmurou. Eddie o olhou confuso.

- Pelo o quê? Você só me ajudou.

Laz balançou a cabeça negativamente, não parecendo em condições de


falar. Ele se ergueu, olhando para o chão, apertando as mãos em punho.
Eddie continuou confuso, mas quando percebeu que Laz não pretendia
sentar mais, entendeu que estava na hora de irem. Eddie conseguiu se
levantar, com certa dificuldade, apesar de não ter nenhuma vontade de
voltar para a sua cela, sabia que Laz estava certo.

- Eu te ajudo. – Laz ofereceu de boa vontade.


- Valeu. – Eddie resmungou, sentindo a palavra estranha em seus lábios,
fazendo um bom tempo desde a última vez que alguém o ajudava tanto para
que Eddie agradecesse. E ajudava sem motivos. – Você realmente não
precisa.

Laz não respondeu, mas Eddie pode perceber que ele não concordava sobre
não precisar. Isso o fez lembrar-se de Milo, e do jeito que ele era
responsável. Então ele não era o único. Na verdade, as pessoas decentes
daquele lugar ajudavam umas às outras.

Era difícil acreditar que havia crianças não insanas ali dentro o suficiente
para serem altruístas.

Eddie queria voltar. Queria voltar desesperadamente. Ele nunca achou que
o viaduto podia ser melhor do que qualquer lugar, mas ele era. Lá ele tinha
um grupo e sabia o que estava fazendo, o que podia acontecer ou para onde
poderia ir. Tudo era melhor do que ficar preso com crianças insanas, assim
como ele.

Sim, se elas se tornaram monstros, você também vai.

E não teria nada a se fazer contra, basicamente. Eddie estava preso e, por
mais que demorasse logo a ficha iria cair cem por cento e não teria outra
coisa a fazer além de aceitar.
RENO

- Você já foi à estufa?

Reno grunhiu.

- Milo, a única coisa que eu fiz desde o começo do mês foi à checagem
médica obrigatória. Eu nem vi se eu preciso reabastecer a minha comida ou
não.

Milo suspirou, simplesmente o olhando. O sinal do terceiro horário tocou e


os dois foram obrigados a saírem da sala específica que sempre se
encontravam que Reno alterava quando estava muito sobrecarregado
emocionalmente e suas manifestações agiam por conta própria. Até o
momento que saíram do elevador para o pátio das celas, havia um silêncio
incomum entre os dois, não necessariamente desconfortável, mas incomum.

Milo estava de cabeça baixa e com movimentos letárgicos pensando em


tudo menos Reno. O italiano não o culpava. Se Milo precisava não
conversar, Reno seria o primeiro a acatar. Mas Milo nunca era assim: Ele
sempre tentava quebrar o silêncio, e conseguia, por que Reno não tinha
forças o suficientes para cortar o garoto.

- É melhor você olhar isso, então. – Milo chamou a sua atenção ao dizer. O
pátio das celas estava relativamente cheio de Legados, nas rampas e no
espaço grande. Logo o elevador atrás deles se fechou e foi para outro andar,
nunca parando de funcionar com o tanto de pessoas que precisava
transportar. – Compre comida o suficiente e me diga quantas cartas você
tem.

Reno revirou os olhos, odiando o tom maternal que, infelizmente, já estava


acostumado receber de Milo. Odiava as pessoas cuidando de si, desde
quando ele merecia algo do tipo? Era armadilha para fazê-lo mal consigo
mesmo, isso sim.

- Mais alguma coisa, mamãe? – Reno ironizou, fazendo uma voz nasal para
dizer a palavra “mamãe”, soando mais como um babãe. Milo abriu um
sorriso, e empurrou Reno de leve pelo o garoto o divertir até mesmo
naquelas situações.

- Rude. – resmungou, com um rosa suave nas bochechas. Reno acabou


sorrindo de volta, sentindo-se um por cento melhor enquanto olhava para o
irmão mais novo. Mas esse momento acabou tão rápido quanto começou.

- Milo! – uma voz feminina interviu os dois, correndo na direção deles.


Reno sentiu o estômago embrulhar e a boca azedar ao reconhecer à voz: A
garota tinha a pele branca, com os olhos castanhos claros brilhando na luz
forte do Complexo. Seu cabelo era uma bagunça repicada e arrepiada que
ia até o final do pescoço, atualmente em um amarelo néon que deixou Reno
com vontade de vomitar. – Eu nem acredito que voltou! Você sumiu por
muito tempo dessa vez.

Reno se lembrou daquele dicionário merda que leu uma vez em sua vida
sobre as cores: Amarelo representa euforia, e quão mais claro fica, mais
eufórico ele é. Fechou a cara, mais do que já estava, para a garota por isso.

- Nanda. – Milo a cumprimentou, claramente nem perto de ficar contente


como ela. Reno sabia que Milo estava como ele: Procurando, esperando,
tentando se preparar para a figura que sempre a seguia.

Reno começou a perceber que os fios de Fernanda já estavam mudando de


cor, tornando-se azulados enquanto ela encarava Milo com aqueles grandes
olhos pidões que Reno queria chutar. Todos os Legados possuíam um
símbolo e, para a sorte de Fernanda, o seu era o seu cabelo: Ele adotou a
psicologia das cores para expressar o que ela sentia, alterando-se de acordo
com a intensidade dos sentimentos que ela tinha.

Uma merda. Não era útil em nada. Se Reno tivesse algo do tipo, rasparia.

- Você... Não vai dizer nada...? – ela parecia constrangida e desconfortável,


e Reno teve que se segurar para não se intrometer. – É isso? Você não tem
nada para me dizer depois do que aconteceu e passar um mês
completamente desaparecido desse jeito?

Reno não aguentou. Ele acabou bufando, cruzando os braços e olhando


para qualquer outra coisa se não aquele projétil de vadia dramática e o
maldito cabelo metade azulado e metade amarelado dela. Fernanda era
mais baixa que si, com certeza era mais fraca. Reno poderia só beliscá-la,
só para assustar...

- Gente, que clima ruim aqui.

Reno pulou, desviando no tempo certo de ser tocado pela a raposa sagaz
que tentou emboscá-lo por trás: Ao olhar, ele viu um garoto que não era
muito alto, e sabia que ele já tinha vinte e sete anos, mas parecia ter
dezessete. Tinha covinhas proeminentes, olhos vivazes em verde e cabelo
castanho que cobria a testa.

Ele sorriu, mostrando os dentes, para Reno ao trocar olhares com ele. Tinha
caninos afiados, que reluziam à luz do Complexo por serem muito brancos.
Tudo naquele garoto gritava galã de cinema, um James Dean mais bonito e
mais carismático. Mas era apenas uma imagem bonita, pois Reno podia
comprovar que aquele era um dos Legados mais podres do Complexo.

- Diego. – Milo chamou a atenção dele, olhando feio para o garoto.


Fernanda o encarou com um bico nos lábios, agora com o cabelo
completamente azul, mas já tinha alguns fios seus que começaram a
avermelhar. Diego riu, como se a situação fosse engraçada.

Aquele era o Rei Trágico, líder dos Legados da Expressão. Também


conhecidos como Legados da Arte, vulgarmente. Reno não sabia quem ele
odiava mais: Os Legados do Sono, os Legados do Conflito, ele mesmo ou
os Legados da Expressão.

- Seja bem vindo de volta, Milo! – Diego exclamou, e se Reno não o


conhecesse, e soubesse do seu Elemento, nunca iria dizer que era teatro da
sua parte. Qualquer um se sentiria realmente bem recebido por ele. – Foi
um bom tempo dessa vez, você deve estar morrendo de curiosidade para
saber tudo que aconteceu enquanto estava fora.

- Já me contaram o que eu precisava saber. – Milo não entrava no jogo


dele, como não entrava no jogo de ninguém. A única que ele deu um pouco
de atenção foi Fernanda, e isso se provou muito errado.

- Ah! Então já sabe da reunião de semana que vem? – Diego continuou


animado, ignorando Reno quase que completamente ali, mesmo que tenha
tentado tocar nele no início. Seu foco era sempre em Milo. – Você precisa
vir. Na verdade, eu queria muito te pedir...
- Diego! – Fernanda praticamente gritou, afinando a voz de tão alterada,
agora com metade do cabelo vermelho. Um dos maiores problemas de
Fernanda, que sempre fez Reno odiá-la desde a primeira vez que a viu, era
que ela sentia demais e rápido demais. Ela desistiu de esconder os
sentimentos, sempre estampados no cabelo, e simplesmente forçava às
pessoas lidarem com ela. – Por que você é sempre assim?! Eu estava
tentando falar com o Milo, e você...

- Não que ele realmente quisesse falar contigo, né querida. – Reno


resmungou sem a intenção de ser ouvido.

- Como é?! – do jeito que Fernanda se virou raivosa para ele, ela ouviu e
muito bem sim. Diego cortou o momento mais uma vez rindo: Sua risada
era contagiante e animada, como a de uma criança inocente. Era tudo
treinado. Reno sabia e isso apenas o enjoava.

- Eu tinha esquecido o quão engraçado são vocês dois brigando. – Diego


cruzou os braços, completamente descontraído e divertido, inalterado pelo
o clima tenso da situação. – Você deveria sair da cela mais vezes, Reno.
Não só quando o Milo está aqui.

- Eu preferia enfiar um cacto no meu cu do que interagir contigo, na boa. –


Reno foi curto e direto. Milo só o olhou, expressão de forma muito eficaz o
quanto ele odiava aquele comportamento e dialeto. Reno não pode ligar
menos.

Diego era um panaca que não se ofendia com praticamente nada, então era
a única parte boa de interagir com ele: Reno sempre podia gastar os seus
sentimentos à vontade sem se preocupar com nada. Ele que não iria perder
a oportunidade, se iria ser torturado de qualquer jeito.

- Eu não vou à reunião. – Milo cortou o assunto da única forma plausível,


sem querer entrar demais no assunto de Fernanda ou entreter Diego como
ele queria. O sorriso de Diego morreu.

- Ahh, - ele fez decepcionado. – mas você não toca super bem? Eu
realmente queria te ouvir tocar, Milo... Para matarmos as saudades.

- Ah, vai se fuder! – Reno realmente tentou, mas ele não nasceu para não
reagir que nem Milo. Sabia que dava exatamente o que Diego queria: O
drama. Ele era como um verme que se alimentava das brigas entre as
pessoas. – Como diabos você sabe que o Milo toca? Se ele disse não, então
é não, porra, e para de encher o nosso saco!

- Você é um porre, sabia? – agora a raiva de Fernanda estava voltada para


si. Reno não conseguia ligar menos para isso. – Você não é o único que
pode falar com ele. E a reunião não é ruim para vocês tratarem desse jeito...

Era claro que ela defendia. Aceitar que a reunião não era boa, era aceitar
que ela não era boa e nem fazia nada de útil: Fernanda era uma Legado da
Expressão e ajudava com exatamente tudo dentro da maldita reunião que
eles promoviam cada vez há duas semanas. Era, basicamente, um momento
de confraternização em que ocorriam apresentações artísticas, em que todos
poderiam participar.

Era horrível. Coisa de filme de terror ocultista dos anos oitenta, só que com
menos gore explicito e mais vergonha descabida, vergonha de quem fazia e
vergonha de quem era obrigado a ver, tortura do fim até o final.

- Eu não me interesso. – Milo era a única pessoa sensata e não alterada


naquela conversa inteira, mantendo o mesmo tom desde o início dela. – E
eu não vou arranjar um interesse. Nenhum de vocês vai conseguir me
convencer de nada. – Milo suspirou, virando o rosto para o lado enquanto
os encarava. – Agora, assediar eu ou Reno não vai mudar isso. Precisamos
voltar para a cela, então vocês precisam nos deixar ir.

- Milo, espera. – Fernanda insistiu, pegando no braço de Milo rapidamente,


e o soltando em seguida, como se estivesse temerosa de tocá-lo, mas não
queria que ele fosse. Milo a encarou, surpreso. O cabelo da garota foi sendo
consumido por tons de roxo, como lilás e magenta, tudo ao mesmo tempo.
Reno teve que segurar outro vômito ao perceber que eram tons que se
aproximavam da coloração dos olhos de Milo. – Eu... Eu realmente quero...
Não, eu preciso falar com você, ok? Então não fuja de mim. Mesmo que
não seja na reunião... Vamos conversar...

Milo fez exatamente àquela expressão que o colocou em treinos intensivos


e punições longas várias vezes, a expressão que, por mais racional que
fosse, dizia que ele se apiedava de alguém, e geralmente era sempre
Fernanda. Milo se sentia culpado por tudo no Complexo, então sua
compaixão era dobrada com todos ali, e Fernanda achou um jeito de se
aproveitar disso.
E ela continuava se aproveitando e aproveitando, como um cupim vicioso e
gordo que era impossível de matar ou tirar da madeira. À princípio, Reno
achou que havia acontecido a mesma coisa entre Milo e Eddie, porém não
foi isso: Eddie nunca quis a ajuda de Milo.

E Milo não oferecia, pois sabia que não era sábio, não na situação que se
encontrava. Mas com ele, ofereceu e até o aceitou a aceitar. Milo tinha que
se forçar, na verdade, para se afastar de Eddie e não continuar o ajudando.
Enquanto com que Fernanda, seu lado racional vencia e ele tentava se
afastar várias vezes, mas não conseguia totalmente, pois não queria quebrar
mais a garota, culpando-se por todos os machucados dela.

- Eu posso tentar. – Milo pigarreou antes de falar, decepcionando


profundamente a garota com a resposta. Ela deu um passo para trás, seu
cabelo ficando quase todo cinza em uma velocidade incrível. Reno olhou
para Milo com uma expressão impaciente, apontando para o pulso como se
tivesse um relógio. Milo o olhou de forma repreensiva, mas compreendeu e
suspirou, começando a se mover, finalmente, para que saíssem dali.

- Bem, já que você não vai poder ir, - Diego interrompeu a fuga dos dois,
com a voz pensativa. – você pode chamar o garoto novo que chegou ao seu
lugar? – ele riu ao questionar por fim.

Milo o olhou por cima do ombro, arregalando os olhos. Reno sentiu o


corpo gelar também, sem conseguir acreditar naquilo: Como diabo Diego já
sabia? Ele não havia conhecido Eddie ainda, certo? Não era possível. Ele
deveria estar com, pelo menos, um hematoma do encontro. E em que lugar
Eddie estava agora, aliás?

- O quê? – Milo teve que perguntar. Reno sentiu medo de ele estar sem
reação. Se Milo não sabia como lidar, eles estavam ferrados.

- Olha, ele ficou sem palavras. – Diego comentou vitorioso, mas divertido
de forma leve e casual. Fernanda também estava surpresa e confusa, com
mexas do cabelo se tornando amarelas, provavelmente por conta do alarme
e curiosidade que sentia. – O garoto que você está cuidando desde ontem.
Você sabe que ele precisa vir para a reunião, certo? Ele vai ficar marcado
se não for.

Reno estava lutando muito contra o pânico ali. Olhava para Milo
desesperado, esperando alguma resposta inteligente. Mas Milo não
retribuiu o olhar, mesmo que o sentisse. Ele se virou novamente na direção
de Diego, mas sem se aproximar, tentando produzir compostura para
encará-lo.

Então Reno se lembrou dele dizendo: Eu não vou deixar que Diego chegue
perto dele também.

- Eu não vou ser o seu garoto de recados. – foi sucinto e direto, com a voz
firme e os olhos sérios, sem demonstrar nada que Diego queria. –
Esqueceu-se de como as pessoas chegam aqui? Você não quer um
assassino novato na reunião.

- Mas nós somos todos iguais. – Diego o olhou confuso dessa vez. – Ele já
deveria ter se acostumado. Se não, a reunião vai ser um bom exercício de
convivência! Se você se importa com ele, já que decidiu roubar o trabalho
de Electra, então por que não pode fazer isso? Eu preciso dizer, eu
esperava isso mais do Reno do que de você, se importar tanto com alguém
assim... Nem parece natural.

Se você prestasse atenção aos detalhes do que Diego dizia, pois tudo que
ele falava era friamente pensado e calculado, poderia notar várias piadinhas
sem gosto ali e aqui e, infelizmente, Reno sempre foi bom em ler as
pessoas e ler entre as informações. Por isso, interagir com Diego por tanto
tempo estava o matando.

Eles precisavam sair logo dali. Milo tinha que sentir a sua ansiedade àquela
altura.

- Eu não preciso me justificar e eu não preciso ter essa conversa. – Milo


parecia estar repetindo a mesma informação uma centena de vezes, mas
Diego simplesmente não registrava. Ou não queria registrar. – Não me
envolva, pois eu não posso te dar nada que você quer.

Milo fez o mais sábio: Pegou o pulso de Reno, que já estava ao seu lado
àquela altura, e o levou para longe dali, em direção à cela de Reno e Eddie.
Reno não reclamou, seguindo-o de perto, sem conseguir evitar olhar para
trás, vendo um Diego com um sorriso digno de vilão de novela os
encarando fixamente, e uma Fernanda assustada, confusa e desapontada ao
seu lado, deixada para trás.
Foi só quando eles chegaram à cela, de fato, e a porta fechou-se atrás deles
que Milo soltou Reno. Ele caiu no chão logo em seguida, com as costas na
parede. Levou as mãos ao rosto, a expressão da pura confusão e herói
trágico. Reno só voltou a respirar quando teve certeza que estava seguro em
um lugar pequeno e mais confortável, vazio a não ser por ele e Milo.

Mas a companhia de Milo era sempre bem vinda.

- Nós estamos ferrados. – Reno disse obviamente ao cair sentado ao lado de


Milo, encarando o vazio do Complexo. – Nós estamos completamente
ferrados. Quantas cartas você quer apostar que o Eddie conhece o Diego
amanhã mesmo e tudo vai para um caralho?

- Eu gostaria de discordar de você, ou de te repreender. – Milo murmurou,


parecendo estar com a boca seca pelo o jeito que movia os lábios, franzindo
muito o cenho e não encarando nada em específico também. Reno estava
assustado por vê-lo tão afetado, mesmo que para outra pessoa poderia
parecer pouco. – Mas eu não consigo. Você tem razão. Nós estamos
ferrados.
EDDIE

- A sua cela é a mesma do Reno? – Laz arqueou as sobrancelhas ao


questionar. Eddie o olhou confuso.

- Você o conhece?

Laz apertou os lábios nessa hora, com uma expressão conflitada. Ele
enterrou as mãos nos bolsos do casaco que usava, parecendo nervoso.
Eddie percebeu que Laz estava sempre nervoso, e ele sempre colocava as
mãos para dentro do casaco. Provavelmente para que ninguém notasse o
jeito que mexia com elas, quase sem controle.

Eddie se identificava com ele.

- É difícil dizer quem não o conhece. – Laz murmurou, parecendo


arrependido no momento que as palavras saíram da sua boca. – Mas não
vai ser bom para mim se eu ficar falando...

Eddie não sentiu tanta curiosidade, como costumava ter para tudo, em
relação a Reno com os outros. Sentia que iria acabar descobrindo por ele
mesmo, uma hora ou outra, e não tinha pressa para isso. Não parecia
importante. Ou talvez estivesse pensando totalmente com a sua anemia, e
não com um processo razoável de ideias.

- Bom, é melhor você ir antes que o sinal do quarto horário toque. – Laz o
trouxe de volta para a realidade, ansioso. Quase não havia mais Legados
pelo o pátio, o que era muito bom. Eddie não viu ninguém conhecido, e
nem um Praticante, e se sentiu mais tranquilo. Não muito, mas ainda assim.

Ele demorou um pouco, mas conseguiu se forçar a dizer, a palavra


desconhecida para si ainda:

- Valeu. Por tudo. – murmurou, segurando os papéis que Electra havia lhe
dado com força contra o corpo. Laz só pareceu ter percebido os papéis na
mão do garoto naquele momento.
- O que é isso? – questionou curioso, apontando, após assentir em resposta
ao agradecimento de Eddie.

- É a documentação que a Electra fez das rebeliões. – Eddie explicou


olhando para os papéis, ainda faltavam alguns para ler. Esses eram os
planos de sua noite.

- Ah, você vai ter que devolver amanhã, não é assim? – Laz piscou e Eddie
assentiu. – Eu posso fazer isso por você. Eu vou ter que ver a Electra de
qualquer jeito.

Eddie franziu o cenho para Laz, lembrando-se vividamente do garoto


reclamando das pessoas o fazerem de bobo. Então, não muito tempo
depois, ele oferecia ajuda de graça, sem motivos para isso. Ele mesmo não
se ajudava.

A oferta dele rendeu um pouco de pânico em Eddie. Teve que pensar


rápido, o que não era muito do seu feitio, principalmente fraco do jeito que
se encontrava. Mas conseguiu analisar o mínimo e percebeu que, se
aceitasse, não teria uma desculpa válida para falar com Laz no outro dia e
conseguir insistir para ajudá-lo e participar do que ele fazia.

Eddie não era bom com interação humana. Nunca soube fazê-la, então
precisava das desculpas. Se ele tivesse sorte, conseguiria encontrar Laz ao
mesmo tempo na biblioteca, e poderia tentar conversar com ele novamente
sobre ajudá-lo. Se tornar um Coringa. No atual momento, era a única coisa
que conseguia pensar que queria fazer: Mapear e conhecer o Complexo,
entender como ele funcionava.

Ele ainda não se importava nada com cartas ou comida ou hierarquias ou


grupos e regras.

- Não, não precisa. – Eddie balançou a cabeça negativamente, apertando os


papéis contra o tronco. – Eu tenho que leva-los.

- Bom, se você insiste. – Laz desistiu facilmente, o olhando mais uma vez
com olhos negros curiosos, antes de se virar e ir pelo o outro lado da
rampa, subindo os andares de cela em seguida. Eddie o observou ir até o
momento que começou a ter vertigem novamente por levantar a cabeça
para o alto, decidindo que aquele era o momento que ele deveria entrar.
Aquele dia havia acabado, pareceu ser super-rápido, mas era melhor que
Eddie não pensasse assim. Havia sobrevivido o primeiro dia e feito
progresso, de certa forma.

Eddie não estava preparado para entrar na cela novamente e ver tanto Reno
quanto Milo encolhidos, sentados no chão como dois fantasmas, perto da
porta. Eles olharam para Eddie na hora que entrou como se acordassem do
torpor. Eddie arqueou as sobrancelhas, confuso. Não iriam culpa-lo por
mais alguma coisa, ou iriam?

Pior, lhe contariam alguma informação nova que ficou faltando do dia
anterior.

Milo pulou para ficar em pé, levando um Reno letárgico e não tão
responsivo consigo. Eddie arregalou os olhos para a cena, e se não
estivesse tão fraco, irritado e perturbado, teria rido. Foi engraçado. Eddie
era quem não podia rir.

- Bom te ver, Eddie. Tchau, Eddie. – Milo exclamou de uma vez só, sem
respirar, virando-se apenas para Reno mais uma vez, dando-lhe um olhar
significativo, e saindo em seguida. Passou por Eddie por uma velocidade
incrível para alguém que Eddie só viu andando delicadamente, e logo
Eddie nem pode ver mais a silhueta dele pelo o visor da porta.

Eddie piscou lentamente.

- Eu me lembro dele dizendo que queria me ajudar. – murmurou,


vocalizando seus pensamentos. – E agora ele já está fugindo de mim. Que
rápido.

Quando olhou para Reno novamente, ele estava de braços cruzados e o


encarava fixamente, parecendo tão nervoso quanto Laz antes. A imagem
foi estranha. Reno não agiu assim nem mesmo por um segundo com Eddie:
Não demonstrou nenhuma emoção verdadeira, não deixou a máscara cair.

Dai Eddie começou a ficar preocupado e voltou para as duas primeiras


possibilidades que considerou. Eddie iria brincar do jogo do Complexo,
pelo menos só às vezes para que pudesse suportar, e decidiu ignorar tudo
enquanto deixava os papéis de Electra sobre a cama e pegava roupas o
suficiente para que pudesse tomar banho.
- O que é isso? – Reno o questionou repentinamente, sua voz assustando
Eddie de tão inesperada. Eddie pulou e Reno arqueou a sobrancelha.

- Isso o quê? – Eddie finalmente conseguiu reagir, superando o susto aos


poucos. Reno preferiu não comentar (se sujeitaria à ouvir muita coisa se
comentasse).

- Os papéis. Eu ‘conheço eles. Eles são de Electra, não são?

- Se você sabe, por que pergunta?

Reno respirou profundamente pela a primeira vez. Já estava irritado.

- Eu não sei quais são. – tentou novamente, com uma paciência que deixou
Eddie curioso para saber por que ele estava tentando. Tinha algo por trás,
certeza que tinha.

Eddie se lembrou do jeito que Electra agiu consigo naquele dia, e decidiu
que tudo deveria servir como um ensinamento. Que todos os jogos mentais
e físicos do Complexo servissem para que ele os virasse contra os próprios
donos, e os enrolasse de forma que não poderiam sair, assim como
desejavam.

- Eu te respondo se responder algo que eu perguntar. – Eddie observou


Reno por cima do ombro, para ver qual era a sua reação. Tinha certeza que
não iria conseguir nada, e tentava sem real motivo, mas levou um susto
quando Reno, emburrado, na verdade disse:

- Então pergunta.

Eddie arregalou os olhos.

- Você vai responder?

- Foi o que eu acabei de dizer, não foi? – Reno grunhiu, trocando o peso do
corpo para uma perna e outra, ansioso. – Só pergunta logo, porra.

- Como você conhece esses documentos? Você já os comprou ou só ouviu


falar...?

- Eu costumava escrever. – Reno revirou os olhos, parecendo odiar cada


palavra que saía da sua boca. – Trabalhei para Electra e ajudava com os
documentos. Mas tanto faz, já se faz meses isso, e eu preferiria arrancar
meus olhos com as próprias mãos do que obedecer Electra mais uma vez.

Alguém realmente precisava avisar Reno que aquelas analogias não eram
nada boas. Eddie abriu a boca para perguntar mais, entender aquela
história, então Reno o cortou, como se tivesse um sexto sentido que o
permitia detectar quando Eddie iria dificultar para ele:

- Agora, me responde. Onde conseguiu esses papéis e para quê?

Por que diabos ele queria saber, sinceramente? Não parecia algo que Reno
perguntaria normalmente. Ele precisava de um bom motivo para se
importar, até mesmo com um tom de urgência na voz. Eddie franziu mais o
cenho, olhando-o feio.

- É a documentação das rebeliões que aconteceram aqui dentro. – Eddie


murmurou contrariado. – Eu só queria me informar, já que ninguém quis
me contar.

- Então você foi para a Electra. – Reno semicerrou os olhos para ele, como
se estivesse procurando por mentiras, o analisando crucialmente. Eddie
fechou ainda mais à cara. – Mesmo depois de terem te avisado que ela é
perigosa.

- Eu não dou à mínima. – Eddie grunhiu. – Eu faço o que eu quiser.

Reno cruzou os braços, encolhendo-se mais em si mesmo, como se


estivesse sobre o sopro de ar frio das ventilações, o ar condicionado que
eles eram obrigados a respirar tanto que se esqueciam e se desacostumaram
com o ar normal.

O Complexo destruía os Legados de tantas, mas tantas formas diferentes.

- É claro que não. Você é do tipo que precisa ver para crer. – Reno
balançou a cabeça negativamente. – Eu nem deveria perder meu tempo
tentando.

Eddie não o respondeu, e fechou a porta do banheiro na cara de Reno.


Precisava de um banho, precisava descansar, ou pelo menos tentar. Sabia
que não iria conseguir, mas poderia terminar de ler os documentos, ainda
assim. Não era possível fugir do medo de dormir e voltar para os seus
pesadelos. Não era possível fugir do medo de continuar acordado, tendo
que lidar com a situação. Em qualquer atitude que decidisse tomar, nada
ficaria bem. Não por enquanto.

Terminou o banho rápido, sem vontade de passar tempo no chuveiro. Tudo


bem, agora ele podia tomar banho decente, mas a que custo? Ele saiu da
água, se secou e se trocou mais rápido ainda, se surpreendendo um pouco
consigo mesmo por isso, sem saber dessa habilidade. Eddie ignorou
prontamente seu reflexo no espelho, e saiu rápido do banheiro. Estava
fechando a porta quando percebeu algo pelo canto do olho.

A porta automática da cela possuía um visor de vidro, como todas as outras


portas do Complexo, que permitia que você visse o corredor do lado de
fora, mas Eddie não sabia se o lado de fora conseguia enxergar o que estava
dentro. De qualquer jeito, ele notou algum tipo de movimento pelo vidro, e
se aproximou sem pensar muito para averiguar. O vidro estava embaçado, o
que poderia ser explicado pelo extremo ar frio superficial que existia no
Complexo.

Não viu nada do outro lado. Na verdade, seria impossível ver com um vidro
tão embaçado. Eddie enfiou uma mão no cabelo, já se sentindo alterado
pelo ambiente do lugar. Ele não podia perder a cabeça. Se começasse com
aquela paranoia ridícula de alguém que havia acabado de ver um filme de
terror, era uma certeza que não iria dormir. Ou fazer qualquer outra coisa.

Respirou fundo, fechou os olhos e contou até dez. Sentiu-se mais


controlado após isso. Preparou-se para abrir os olhos, então o fez
lentamente, ainda na direção da porta, provavelmente parecendo um
retardado para Reno.

Mas ele não pensou em nada disso quando entendeu a imagem à sua frente.

Mãos pálidas, magrelas e cheias de veias escuras bateram no vidro de outro


lado, e Eddie ouviu um rosnado de uma besta machucada se misturando
com o som das batidas das mãos, que pareciam desesperadas para entrar de
qualquer forma. Eddie gritou e caiu para trás mais uma vez como primeira
reação, e no momento que piscou o momento havia acabado.

Não havia mais nada do outro lado.


Eddie olhou para onde Reno estava, em pânico, mas não o achou. Não por
nenhum motivo sobrenatural, e sim porquê ele entrou no banheiro mais
rápido até mesmo do que Eddie.

Eddie arregalou os olhos ao notar que, do mesmo jeito que ele ignorava
Reno, Reno iria ignorá-lo de volta. E ele estava completamente sozinho,
sem ninguém para contar com ou comentar.

Por isso engoliu à seco, balançou a cabeça, e se ignorou fortemente


levantando-se rapidamente e praticamente se jogando na cama e pegando
os documentos para ler. Mas Eddie nunca foi bom em se ignorar, ou
ignorar qualquer coisa em geral.

Se concentrar, porém, não era uma tarefa fácil. Por que toda vez que
piscava lembrava-se da imagem das mãos arranhando e batendo no vidro,
tentando quebra-lo, tentando chegar nele de alguma forma. Elas estavam
tão perto. Lembrou-se de quando foi pego, no beco escuro, quando
tamparam seus olhos e murmuraram obscenidades para ele.

Eddie acabou se escondendo debaixo dos cobertores, tentando se proteger


de forma inútil. Ele tentou pensar em algo melhor, algo que não tivesse
nada daquele inferno, que o levasse para o passado e o salvasse da própria
paranoia, pânico e ansiedade que seriam seus maiores inimigos naquela
noite.

Eddie percebia que seria assim toda noite: Durante o dia ele segurava, à
noite desmanchava.

Mas tinha que manter algum tipo de foco, por isso se esforçou ao máximo,
e conseguiu visualizar a parte boa da sua vida, a parte que nunca deveria ter
acabado, quando sua mãe estava viva, os dois estavam juntos, em um
abrigo para mães solteiras, Eddie podia estudar com uma professora
particular voluntária do abrigo, e não conseguia achar nada para reclamar
sobre.

Tudo isso foi antes do seu pai. Quando ele chegava, tudo que Eddie
conhecia desintegrava.
Eddie foi mais inteligente do que o dia anterior e guardou o saco de batatas
que Laz lhe deu, comendo-o durante o primeiro horário quando sentiu
fome. Não conseguiu guardar mais ainda, e acabou com o saco. Não tinha
jeito, não dava para racionar como ele fazia na rua.

Quando ele acordou, tendo dormido provavelmente duas horas na noite


anterior, esperou não ver Reno novamente. Mas não teve essa sorte: Reno
estava em sua cama, tentando fazer sua existência a mínima o possível
enquanto leia um livro. Eddie decidiu ignorá-lo para não se irritar muito,
mas foi difícil tendo que esperar o primeiro horário inteiro para sair da cela.

Milo deixou bem claro que o primeiro horário só servia para o café, algo
como a porra da manhã, e Eddie não queria testar para saber se seria
escoltado direto para o refeitório. Iria evitar pisar lá o máximo que podia.
Independentemente do quão difícil fosse.

Eddie se obrigou a concentrar nos documentos, tentando ignorar o pânico, a


paranoia e ansiedade, embolados em um redemoinho só de coisas ruins
dentro de si, que cresciam ainda mais quando estava dentro da cela. Fora
dela, conseguia coloca-los em segundo plano e esquecê-los. Mas preso
naquele espaço menor, os sentimentos eram artistas e as próprias cores da
pintura que queriam fazer, usando Eddie de quadro em branco sem o seu
consentimento.

Não havia mais informações ali além das que já sabia, sobre os diferentes
métodos que não funcionaram de sair do Complexo, sobre os genocídios e
sobre as brigas internas. Acabou percebendo que as Legado da Aparência
foram a que mais morreram antes e depois que começaram a usar as cartas,
e Eddie se odiou por não ficar surpreso.

Aquilo não deveria ser comum, mas era.

Eddie acabou notando que alguns Legados estavam separados com as


palavras: Funcional e não funcional, e odiou ter que aprender mais termos,
com a sensação que nada era como parecia. À primeira vista, diria que se
referia à Legados que conseguiam funcionar perante à sociedade? Ou
talvez fossem Legados que conseguiam lutar e os que não? Não fazia ideia,
e olhar para Reno apenas o lembrou de que conversar com ele não era
produtivo.
Soltou um suspiro de alívio quando o sinal do segundo horário finalmente
tocou. Pelo menos, Eddie percebeu que o primeiro horário não demorava
muito. Ele saiu quase que imediatamente da sua cela, sem querer perder
nenhum instante à mais. Agora não acreditava que iria ver Laz, pois era
altamente improvável que conseguisse.

Porém, não conseguia nunca matar as suas faíscas de esperança, pois tinha
sido o primeiro a falar com Electra no dia anterior, então talvez pudesse ter
a mesma chance. E essas faíscas só cresceram quando conseguiu, mais uma
vez, evitar praticamente todos no caminho da biblioteca, chegando mais
rápido do que no dia anterior, por saber melhor o caminho.

Mas qualquer sensação boa que ele estava sentindo rapidamente morreu ao
ver quem o esperava na biblioteca: Não era nem Rodrigo, era Akira. Ele
deu o seu sorriso de raposa, o mais irritante o possível, quando viu Eddie e
se aproximou na hora, sem nem dar tempo para Eddie pensar em reagir.

- E ai, ratinho! – Akira exclamou como se eles fossem amigos. Eddie não
poderia o fuzilar mais com os olhos. – Estou vendo que está em um ótimo
humor logo cedo.

- Eu só quero devolver isso para a Electra. – resmungou, mostrando os


documentos. Akira esticou as mãos. Era isso que Eddie mais temia.

- Eu repasso para ela, óbvio. A gente prefere que não fique invadindo o
nosso território, sabe.

Eddie abriu a boca para retrucar, e tentar entrar de alguma forma, pois
havia a chance de Laz estar ali. Mas ele a fechou na hora, notando
rapidamente que era um caso perdido. Não iria simplesmente arrombar a
porta, apesar de querer, e não queria falar com Electra, de qualquer forma.

Teria sorte se conseguisse se afastar de Akira sem soca-lo naquele dia. Só a


respiração dele já irritava Eddie.

Então, completamente contrariado, Eddie deixou os papéis nas mãos de


Akira encostando o menos o possível. Akira não deixava de sorrir, como se
estivesse tendo o melhor dia da vida. Eddie desviou os olhos, para a
segurança dos dois.
- Bom garoto. – Akira comentou em um tom infantil, como se Eddie tivesse
menos idade do que tinha. Eddie acabou rosnando na direção dele,
ofendido. – Opa. O ratinho morde?

- Vai se fuder.

Eddie achou melhor não elaborar mais do que isso. Mostrou os dois dedos
médios para Akira e saiu em seguida, pisando fundo, sentindo-se tão
patético quanto sabia que parecia. Não existiam formas não humilhantes de
perder em uma situação, e apesar de ser um grande perdedor, nunca ficava
mais fácil para Eddie.

Ele parou ao lado da porta da biblioteca, encostando à parede enquanto a


adrenalina do medo subia à cabeça, deixando seu coração acelerado e sua
respiração irregular. Esperou que Akira saísse pela a sua porta, o
perseguisse para continuar à briga, mas passaram-se minutos enquanto
Eddie surtava e nada.

Eddie odiou muito o fato de ficar desapontado. Ele tinha tanta energia
acumulando, ele só queria gastar em alguém ou em algo. Apertou as mãos
em punho, sentindo-as estranhamente vazias. De propósito, provavelmente.
Era difícil lutar contra aquele sentimento profundo de não saber o que
fazer ou como fazer. Estava o machucando tanto, que Eddie se sentia em
um escuro que não era reconfortante para si.

Como em seu teste, quando foi jogado no Complexo.

- Eddie? – uma voz interrompeu o seu surto.

- Laz? – Eddie exclamou ao reconhecê-lo, erguendo o rosto. Laz arqueou


as sobrancelhas, parecendo preocupado. – Eu... Eu acabei de devolver os
papéis...

- Aconteceu alguma coisa? Você parece nervoso.

Eddie começou tentando controlar a respiração.

- Eu... Eu só odeio esse lugar. Muito. – balançou a cabeça negativamente. –


Não é nada de novo.

Laz o olhou cheio de empatia, apoiando-se na parede ao lado dele. Tinha


uma chave de fenda entre as mãos enluvadas, que brincava de forma
ansiosa, sem conseguir parar nem por um instante. Ele demorou mais para
olhar para Eddie, mas dessa vez o encarou sem o mesmo medo do dia
anterior, como se o garoto não fosse mais uma ameaça. Laz... Laz era,
realmente, mais inofensivo e inocente do que Eddie.

Eddie nem estava considerando se aproximar dos assassinos que encontrou


muito menos ajudá-los. No máximo queria se ajudar e os usaria para isso.
Quis se convencer disso, enterrando a imagem de Milo e de Reno da mente,
pois não o levaria à lugar produtivo nenhum.

- É sempre difícil, no começo. – Laz começou desajeitado como sempre,


querendo muito falar, mas sem tato social nenhum. Eddie franziu o cenho
para ele, odiando o jeito que se identificava com aquele garoto. – Ainda
mais quando você não tem um grupo, como... Nós dois, certo?

- Até agora todo mundo que eu conheço diz que o meu Elemento é
esquisito, e eu não sei qual foi o parâmetro para isso. Mas de qualquer
forma, é, eu estou fudido sobre essa parte de grupo também.

Queria que todos os grupos fossem para o Inferno, assim como os


Elementos deles.

Eddie resmungou na própria mente. Laz o olhou confuso e interessado ao


mesmo tempo.

- Qual o seu Elemento?

- Até onde eu sei Sombras. – Eddie olhou para ele, queria ver a sua reação.
Como esperava Laz o estranhou. – Ele não bate com nenhum dos outros
Elementos que eu vi até agora. Vocês, pelo menos, têm a mesma linha
filosófica ou alguma merda do tipo.

- Eu não colocaria assim, mas é. – Laz deu outra pausa, abaixando o rosto.
– Desculpe. Eu não o ajudei nada com isso, não é?

Por qual motivo ele pedia desculpa se não tinha merda nenhuma de ele
fazer para ajudar? Não foi como se ele tivesse agido como Electra ou
Natasha, pelo o contrário. Ele, Fiona e Milo pareciam ser bons demais para
aquele lugar. Eddie sentia-se um bebê sendo repassado em colo e colo.

E ele nunca se odiou tanto por isso.

Eddie acabou caindo sentado no chão, surpreendendo Laz. Ele se abaixou


também, o olhando preocupado.
- Não é a porra da sua culpa. – Eddie piscou, sem conseguir controlar as
lágrimas que escaparam dos seus olhos. – Ótimo, Eddie, quando você se
sente patético você chora na frente de alguém. Parabéns, vai se ajudar
muito.

- Não se sinta assim.

- Como diabos não? Até agora tudo que eu tenho feito é depender das
pessoas. – ele bateu a cabeça de leve na parede atrás de si. – E eu odeio isso
com todas as minhas forças.

- Era por isso que você pensou em virar um Coringa?

- Eu só queria saber sobre. – Eddie mordeu o lábio por dentro, dando o


melhor de si para controlar as lágrimas. Não chorava, mas lacrimejava e
estava cansado disso. – Mas depois... Quando eu descobri o que você fazia,
me deu muita vontade de te ajudar, de verdade. Eu não quero fazer mais
nada além de tentar entender esse lugar maldito.

Laz ficou sem palavras por um instante.

- Eddie, foi mal... – Laz abriu a boca e fechou várias vezes, tentando
formular frases, mas sem sucesso algum. Eddie apenas o olhava triste
demais para interrompê-lo ou apressá-lo, sem realmente querer saber o que
ele tinha para dizer. Não se seria mais uma recusa, dessa vez direta e clara.
– Eu não considerei isso, por que nunca aconteceu antes. Mas, assim, o que
eu faço é... É complicado para alguém de um Elemento diferente do meu.

Eddie franziu o cenho.

- Como assim nunca aconteceu antes?

Laz deu um dos seus suspiros sôfregos e longos.

- As pessoas reconhecem o que eu faço, foi assim que eu consegui usar


para ganhar cartas, mas todo mundo está preocupado com outras coisas.
Outras formas de tentar sair ou sobreviver em geral. E eu entendo, já que
são eles que quebraram esse lugar todo e não acharam nenhuma saída, e
também não viram nada mudar: Consertaram tudo quase no mesmo dia. –
Laz deu uma pausa, pois falava muito rápido e quase não respirava. - Ou
seja, eu sou meio que ignorado mesmo. Ninguém vê o que eu faço como
importante.
- Mas claro que é importante! É a parte mais importante!

Laz arregalou os olhos, sem esperar por essa resposta. Eddie não poderia
ser mais sincero – e Laz percebeu isso. Dava para sentir no tom de voz do
Legado das Sombras. Laz precisou de um tempo para digerir a situação,
parecendo estar tendo muitas reações ao mesmo tempo para que
conseguisse agir de fato.

- Olha... – Laz tentou de novo, franzindo muito o cenho. – Eu... Eu tenho


dificuldades em acreditar nisso. Por motivos de não estar acostumado
mesmo. E ainda mais, vindo de um novato.

- Mas é o que eu acho. – Eddie contra argumentou. – E isso não vai mudar.
E eu não sei, me conhecendo eu acho que vou tentar fazer o que você faz,
mesmo que você diga não.

- Então vai simplesmente roubar as minhas cartas?

- Eu não ligo para cartas! – Eddie exclamou, assustando Laz. – Você pode
ficar com todas as cartas. E eu não quero trabalhar para ninguém, aliás, não
aqui dentro. Eu quis saber sobre esse negócio de Coringa para ver se tinha
algo viável e porque eu quero entender o máximo que eu posso, mas se eu
não tivesse conhecido você, eu nunca insistiria para ser um.

- Cara... Você é suicida. – Laz acabou murmurando. Eddie bufou, olhando


para o alto.

- Eu já perdi a minha vida.

- Mas... Ainda tem coisas que eu não sei se... Quer dizer, o seu Elemento
não vai te ajudar em nada. Só se você disser que cria tentáculos de sombras
e consegue usar eles.

Eddie apenas o olhou, para não dar um tapa na testa de Laz. Quando a
conversa deixou de ser séria? Ele perdeu alguma parte?

- Não. – Eddie não queria brincar com ele. – Não, eu não faço isso. E eu
gosto de engenharia, eu não posso dizer que sei muito, mas eu já estudei
sobre e eu tenho aptidão. Eu posso tentar, e posso aprender. Vai demorar
menos do que as outras pessoas.
- Em que ponto você deixou de ser patético e começou a se gabar? – Laz
permitiu um sorrisinho, fazendo Eddie retornar ao estado inicial: Raiva. E
vontade de socar alguém.

- Me poupe.

Eddie nem se esforçou dessa vez.

- Olha... Eu quero tentar. Eu realmente quero. Mas, assim, eu preciso de


uma garantia. Eu preciso saber que vai funcionar, então... Ah, ok. – Laz
suspirou mais uma vez, levando uma mão à testa, bagunçando sua franja
negra. – Podemos fazer um teste.

- Um teste? – Eddie arqueou as sobrancelhas.

- É. Hoje mesmo. – Laz se ergueu, oferecendo uma mão para Eddie. Eddie
não quis aceitar, para que eles não se tocassem, e se levantou sozinho. Laz
pareceu o homem mais desconfortável do mundo ao colocar sua mão de
volta no bolso. Eddie acabou sentindo dó dele por isso, mas já era muito
tarde. – Eu tinha que falar com a Electra por que repassam alguns pedidos
para mim por ela. Eu tenho que ir passar os códigos de uma das salas
especializadas para um grupo agora, e se você conseguir vir comigo e der
tudo certo, a gente pode tentar. Mas tentar. Não tem muita certeza de nada.

- Ok... – Eddie murmurou, se obrigando a se contentar com aquilo. – Ok,


pode ser. É justo, eu acho.

- Valeu, Eddie. – Laz deu outro sorriso, amarelo e machucado, mas era um
sorriso.

- Você está me agradecendo por quê? – Eddie resmungou, desviando os


olhos. Laz deu uma risadinha.

- Por nada. Juro. Bem, é melhor a gente ir indo. Eu adiei por um tempão
encontrar ‘esses caras, e ‘tô sem tempo hoje.

- Por quê?

Laz apenas o olhou.

- Você vai descobrir. Se conseguir lidar com eles, você vai lidar com
qualquer um nesse lugar. – a resposta de Laz o fez ter um arrepio, sem
evitar pensar que não iria conseguir passar.
Laz e Eddie não conversaram muito mais enquanto andavam pelos os
corredores frios do Complexo, não de forma mútua: Laz parecia incapaz de
parar de falar, sem se importar de criar monólogos, provavelmente por
conta do seu eterno nervosismo, e o silêncio deveria ser um gatilho. Então
ele preferia falar sozinho a não falar.

Ele era como uma bolinha hiperativa em formato de garoto. Quanto mais o
observava e passava tempo com ele, Eddie se questionava como diabos ele
matou alguém, sendo tão inofensivo e desajeitado e inocente. Sua noção
social era baixíssima, e Laz parecia acostumado com ela, sem saber como
agir quando era obrigado a interagir com alguém.

Por isso Eddie estava sendo compreensível, principalmente por se


identificar com Laz. Ele também não sabia conviver com as pessoas, não as
procurava, e quando alguém o procurava desse jeito, nas devidas
circunstâncias, Eddie seria tão cauteloso quanto. Ou mais, talvez nunca
desse espaço. Não sabia dizer.

Mas ele queria muito que aquilo desse certo. Não queria Laz como o seu
inimigo ou desafeto. E sabia que, se não desse certo, os dois não ficariam
como amigos depois. Será que era possível fazer amigos naquele lugar? Ou
só capachos, como os Legados do Sono para Electra, ou companheiros de
miséria, como as Legados da Aparência?

Lembrou-se de Reno e Milo, mas eles pareciam diferentes. Parecia que a


relação deles era fraternal, baseada em alguma obrigação posterior, como
se fossem irmãos. Eddie nunca teria isso com alguém, principalmente com
os assassinos do Complexo, então ele tinha que concordar com Laz:

Tentar fazer amigos ali era ser feito de palhaço.

Eles chegaram ao corredor das salas especializadas, e as coisas mudaram:


Ali estava cheio de gente daquela vez, em sua maioria, de forma estranha,
garotos. Eles eram barulhentos, gargalhando e gritando, interagindo uns
com os outros com muita energia. Estavam espalhados pelo o corredor, mas
a maioria se amontoava sobre uma das portas das salas especializadas, no
fim do corredor.

Laz fez som de desgosto ao seu lado.

- Fica perto. – Laz o alertou, fazendo Eddie franzir o cenho.


Eles se aproximaram dos garotos, que pararam com a algazarra para prestar
atenção nos dois. Para Eddie ficar mais incomodado, só se alguém
colocasse formigas sobre a sua pele. Ele tentou fingir naturalidade e ficou
perto de Laz, mas estava falhando excepcionalmente no primeiro. Eddie era
transparente como uma porta de vidro, por nunca se importar a aprender
disfarçar.

Agora a vida cobrava os seus erros.

- Finalmente Laz, caralho. – um garoto se destacou dos demais, ao se


levantar de onde estava sentado à parede, ao se erguer para ficar em pé. Ele
era muito alto, com pernas longas de corredor, pele muito clara de tão
branca, olhos azuis e cabelos loiros curtos. O que mais chamava atenção
sobre ele, na verdade, era o garoto igualzinho a ele ainda sentado ao seu
lado, só que com o cabelo mais escuro, um piercing no lábio e a careta mais
mal humorada do mundo. Eddie não teve dúvida que estava vendo irmãos
gêmeos. – Eu tive que ameaçar a Electra hoje para ela te colocar na linha.
Você faz o que quiser, por acaso?

Os outros garotos riram e comentaram, mas Eddie não conseguia prestar


atenção neles. Os barulhos que faziam eram como balbucios, sem lógica
linguística investida. Provavelmente era assim para Eddie por ele não
entender o dialeto que usavam algo muito próximo do dialeto dos homens
das cavernas.

Os únicos entre o grupo de neandertais que conseguiram chamar a sua


atenção, e a prenderam de forma incrível, foram os gêmeos. O jeito que o
de cabelo mais claro se portava, como um rei do lugar, e o jeito que o de
cabelo mais escuro tentava não se fazer presente, como Reno, mas diferente
dele, observando tudo com muita atenção, esperando por alguma coisa.

Eles eram completamente iguais na aparência, mas completamente


diferentes no jeito, e, por algum motivo, Eddie sentiu que eles sabiam fazer
as diferenças funcionarem muito bem. Principalmente em uma briga. Todos
os garotos daquele corredor pareciam briguentos. Um reconhece outro.

Laz respirou fundo, sem conseguir encarar o garoto nos olhos. Eddie ficou
preocupado com ele, mas em vez de responder, Laz simplesmente se virou
para à porta da sala especializada e digitou um código na trava tecnológica,
a abrindo em seguida. Os garotos comemoraram, começando a se mover,
quase todos de uma vez, para entrar quando o gêmeo de cabelo mais escuro
se ergueu e olhou para eles, parando-os na hora.

- Não vai me responder? – o de cabelo loiro insistiu.

- Eu não tive tempo. – Laz resmungou insistindo em não olhá-lo, corando e


morrendo de nervoso. Eddie sentiu-se muito preocupado com ele, mas
lutava para obedecer as ordens que ele mesmo havia dado. – Você não
manda em mim, Rafael. Nenhum de vocês manda.

Os garotos exclamaram alto nessa hora, entretidos pela a cena. Eddie podia
jurar que alguém falou consigo, mas ainda só ouvia balbucios. Não teria
como responder nem se quisesse, havia a barreira da língua.

- Olha sóó, ‘tá ficando corajoso agora! – o tal de Rafael respondeu com
deboche, em vez de reagir com mais raiva como Eddie esperava. – Gostei.
Já te disse mil vezes para se defender mais, cara. Ninguém vai mexer com
você.

Laz optou por ignorá-lo dessa vez, entrando na sala de cabeça baixa. Eddie
ficou sozinho do lado de fora, e exatamente nessa hora Rafael virou o rosto
para ele, com um sorriso. Eddie entrou em pânico por conta disso, mas o
engoliu do mesmo jeito que você engole um remédio amargo. Lidaria
depois.

Aquele garoto o lembrou de Natasha pela a forma que era instável, e era
melhor Eddie ficar mais esperto daquela vez.

- E você, quem é?

Foi nesse momento que Eddie percebeu que Rafael tinha um sotaque
carioca. O seu gêmeo não tinha dito uma palavra ainda, apenas o olhando.
Eddie se questionou se ele não falava ou optava assim, pois sabia que
ficaria mais assustador. Eddie engoliu à seco, dando o melhor de si para
não sucumbir aos instintos e responder Rafael da forma que queria.

- Eddie. Eu ‘tô com o Laz. – tentou ser o mais curto e rápido o possível,
para que Rafael notasse que não queria interagir.

Rafael não notou.

- Vocês podem entrar, cambada. – Rafael riu olhando para os garotos, e foi
só nesse momento que Eddie percebeu que eles reclamavam sobre isso.
Entraram sem decoro nenhum, quase todos de uma vez. – Vai lá Daniel.
Pega os códigos para mim. – agora ele falava com o gêmeo.

Daniel assentiu, sem trocar mais uma palavra com Rafael, e entrou logo em
seguida, deixando Eddie e o tal de Rafael sozinho no corredor. Aquilo só
poderia ser brincadeira. Eddie olhou ao redor, para se certificar que eles
estavam sozinhos mesmo.

Laz disse que ia ser um teste, nunca disse que ia ser fácil. Muito menos que
ia ser tão difícil.

- Então, Eddie. – Rafael retomou a conversa, casual demais para o gosto de


Eddie. O mexicano tinha duvidas se não iria soca-lo, como não conseguiu
socar Natasha. – Você é novo aqui, né?

- Mas por que porra você sabe disso?

- Dá para dizer na sua cara. – Rafael riu. – E também, as informações


importantes passam bem rápido pelos os grupos. Você só causou barulho
desde que chegou.

Eddie mordeu o lábio, desviando os olhos, odiando a si mesmo por saber


que era verdade. Não deveria ficar surpreso por já estar surpreso com
pessoas que nem imaginava que existiam.

- Você disse que ‘tá com o Laz. – Rafael comentou mais interessado do que
Eddie gostaria. – Sabe o que ele ‘tá fazendo agora?

- Dando os códigos da sala especializada? Ele disse... Que coisas aparecem


ali, ou algo do tipo.

- Tem uma impressora 3D por trás das paredes das salas especializadas. –
Rafael começou a explicar, apontando para dentro. – Você coloca o código
certo, ela cria o modelo do objeto que você quer, e ‘dai ela coloca para
fora, abrindo a parede. Esses lugares são um máximo, por que não tem
câmeras e dá para pedir quase qualquer coisa. Todo grupo grande fica em
uma sala especializada. – Rafael deu um sorriso de todos os dentes,
mostrando caninos brancos e afiados, como um predador. Eddie se lembrou
de um canino, talvez um lobo. – E o meu grupo cresceu o suficiente para
ganhar uma. Por isso eles estão todos animadinhos daquele jeito.

- Impressora 3D?
- Você não sabe o que é? – Rafael arqueou as sobrancelhas, ainda sorrindo.
– Quantos anos você tem?

Eddie fechou a cara na mesma hora. Ele parecia tanto a sua idade assim?
Fora daquele lugar, sempre ouvia que era muito grande ou muito maduro
para a idade. Acabou ficando super consciente, e odiava aqueles
comentários, ou a simples pergunta. Sem falar que ele não estava gostando
do tom super casual e próximo de Rafael, como se estivesse fazendo um
amigo na escola.

Ele era falso e Eddie queria destruir a cara falsa dele em vários pedacinhos.

- Isso não é da sua conta. – Eddie praticamente rosnou.

- Eita, calma. – Rafael se desencostou da parede, com bom humor,


erguendo as mãos no ar. – É uma pergunta inocente, cara. Segura o
temperamento ai.

- Por que está me contando essas coisas? – Eddie continuou na defensiva. –


Eu não te perguntei nada.

- Eu só quero ajudar. – Rafael não perdeu o sorriso, nem se alterou. – Você


acabou de chegar e está com uma cara de faminto por perguntas. E faminto
de comida, também. – Rafael riu. – Não vi você um só dia no refeitório.

- E nem vai ver.

- Claro, cara. Mas para isso, você precisa de cartas. – Rafael inclinou a
cabeça para o lado. – Ei, se você se interessar, vamos fazer um negócio que
vai render cartas para todo mundo. E vai ser um ótimo jeito para você
liberar toda essa raiva que você ‘tá sentindo.

Eddie arregalou os olhos.

- O quê?

- Vem ver, amanhã no terceiro horário. – Rafael ofereceu no melhor tom de


propaganda barata. – Você não vai se arrepender se vier. Eu consigo ver
um cara como você dando um bom show em uma briga.

Rafael deu um tapinha no ombro de Eddie, um toque suave e rápido, mas o


bastante para fazer Eddie queimar por dentro e querer demonstrar o quão
bom ele era em brigas, sim. Começando por quebrar a cara daquele idiota
que o tocava sem permissão.

Mas para a sua, e a sorte de Rafael, Laz saiu da sala nesse momento,
tirando Eddie da sua tortura ao dizer que tinha terminado de passar os
códigos e que eles poderiam ir. Eddie não percebeu que os dois
conversaram por tanto tempo assim, ou talvez o processo fosse mais rápido
do que imaginava. Ele pegou uma quantia de cartas de Rafael, e depois
disso os dois puderam sair dali.

Rafael acenou para os dois, como o grande babaca que era.

- Quem é esse merda?! – foi a primeira coisa que saiu da sua boca em uma
velocidade incrível, enquanto Eddie corava de raiva e controlava os dedos
para não socar a parede. – Quem ele acha que é?!

Laz o olhou pálido, sem entender nada.

- Eu já te expliquei tudo isso.

- Eu não lembro!

- Foi agora. – Laz deu um suspiro. – Legal você começou não ouvindo uma
palavra do que eu disse. – nesse momento Eddie percebeu que fudeu com o
seu teste. Antes que eles pudessem continuar, o sinal do terceiro horário
tocou, agredindo as orelhas de Eddie mais uma vez. Ele nunca iria se
acostumar. – Bom, é isso por hoje.

- Desculpa. – Eddie tentou, deixando a raiva de lado. – Desculpa mesmo,


eu só...

Laz apenas parecia exasperado.

- Tá de boa, Eddie. Eu entendo. Aquele cara é o primeiro líder dos Legados


da Agilidade.

- Legados da Agilidade? – Eddie fechou a cara com o nome. – Eles fazem o


quê, correm?

- Basicamente. – Laz o respondeu sério, apesar de Eddie estar caçoando. A


boca de Eddie caiu. – Tem mais a ver com reflexos também, mas o negócio
deles é serem rápidos. Mas aquele cara é super perigoso por que o irmão
gêmeo dele é um Legado do Conflito, então eles se juntaram e formaram
aquele grupo.

- Eu não faço ideia do que um Legado do Conflito faz, mas não deve ser
coisa boa.

- O alimento deles é a guerra, vamos colocar assim. – Laz cruzou os braços,


parecendo ter tido um arrepio. – Agora eles conseguiram uma sala
especializada, que é um poder que ninguém deveria ter dado. Vai dar
merda, não tem como não dar. – Laz deu outro suspiro. Eddie se perguntou
se aquilo fazia bem para os pulmões. – Como as salas especializadas não
tem câmeras, você precisa de um motivo para usá-las. Ter um grupo e
passar os dias lá é um motivo. Ele conseguiu isso, e eu tive que passar os
códigos daquela sala, porque mudam para cada uma. Por que são
impressoras diferentes. – então, Laz o encarou. – Você pegou algo que eu
expliquei sobre as impressoras?

- Ahn... – Eddie não tinha aparelho fonador naquele momento. O engoliu


inteiro. Laz fechou o rosto para ele, pela a primeira vez em que se
conheciam, parecendo até irritado. Bom, o garoto era ingênuo e inocente,
mas ele mesmo havia dito que não gostava de ser feito de palhaço. – Tá
bom, eu não passei. Eu vou só aceitar e ir direto para a minha cela para eu
chorar silenciosamente.

- Ei. – Laz o tocou no braço, para não deixar Eddie sair andando, e Eddie
não ficou irritado como quando Rafael o tocou. Por que Laz o tocou de
forma muito suave, quase impossível de notar, como se tivesse notado que
Eddie não sabia lidar com toques, e por que ele realmente queria chamar a
sua atenção. Como quando Milo pegou o seu pulso. – Eu nunca disse isso,
cara.

- Então eu ainda posso passar?

- Isso é chantagem emocional?

- Não! – Eddie exclamou ultrajado. – Eu nunca faria isso! Eu só... Eu


caguei tudo. Como sempre.

- Não, não mesmo. – Laz o olhou com compaixão, mas tirando sarro dele
ao mesmo tempo. – Você distraiu o Rafael. Ele é o único que realmente me
irrita do bando de idiotas, então foi bem. Mas se continuar distraído assim,
vai acabar decepando um membro quando estivermos juntos.

- Obrigado, Laz. – Eddie quase não se conteve por ter dado certo. Não ter
estragado tudo como sempre. – Obrigado mesmo. – era tão bom sentir que
era capaz, para variar.

Você também pode gostar