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FELIPE LEAL

GIANPAOLO DORIGO
MARISA DE OLIVEIRA

Manual do Professor

FILOSOFIA

CADERNO 2
Manual do Professor

FILOSOFIA

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FELIPE LEAL ALVES XAVIER
é bacharel em Comunicação (Jornalismo) pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em Filosofia
pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em
Linguística pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Atua como professor de Filosofia e Redação
para o Ensino Médio e Pré-vestibular em São Paulo.
É autor de material didático para Ensino Médio e
Pré-vestibular nas áreas de Filosofia, Português e
Aprendizagem Socioemocional.

GIANPAOLO DORIGO é bacharel e


licenciado em História pela Universidade de São Paulo
(USP) e mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC/SP). É professor e autor de obras didáticas
em Ensino Médio e Pré-vestibular de História e Filosofia
e atua como Coordenador Pedagógico de curso
Pré-vestibular em São Paulo.

MARISA DE OLIVEIRA é bacharela


em Letras Clássicas e mestra em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP). Professora de Língua
Portuguesa e Redação na rede privada de ensino, atua
também como editora de textos e tradutora. É autora
de material de Práticas de Leitura e Escrita para os anos
finais do Ensino Fundamental.
Direção Presidência: Mario Ghio Júnior
Direção de Conteúdo e Operações: Wilson Troque
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Shirley Figueiredo Ayres e Tayra Alfonso;
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Dorigo, Gianpaolo
Ensino fundamental, anos finais : 6º ano : filosofia :
caderno 2 / Gianpaolo Dorigo, Felipe Leal, Marisa de
Oliveira. - 1. ed. - São Paulo : SOMOS Sistemas de Ensino,
2020.

ISBN: 978-85-468-2004-7 (aluno)


ISBN: 978-85-468-2005-4 (professor)

1. Filosofia (Ensino Fundamental). I. Leal, Felipe.


II. Oliveira, Marisa de. III. Título.

2019-0307 CDD: 107

Julia do Nascimento – Bibliotecária – CRB-8/010142

2020
ISBN 978 85 468 2005-4 (PR)
Código da obra 648052
1ª edição
1ª impressão

Impressão e acabamento

Uma publicação
SUMçRIO MÓDULO 5. MATEMÁTICA E RAZÃO ................................................................................................... 4

MÓDULO 6. MÚSICA E PENSAMENTO ................................................................................................ 9

MÓDULO 7. VIVER JUNTO ............................................................................................................................ 14

MÓDULO 8. O QUE SÃO VIRTUDES? .................................................................................................... 20


MîDULO

5 MATEMÁTICA E RAZÃO

INTRODUÇÃO AULA 1
As relações entre Filosofia e Matemática remetem ao sur-
gimento do chamado pensamento ocidental na Grécia anti-
DISCUSSÃO
ga. Nesse momento da formação dos alunos, não focaremos Nesta aula, primeiramente estimulamos os alunos a
questões historiográficas nem destacaremos contribuições perceber padrões em sequências numéricas para, então,
de filósofos específicos para a Matemática. Em vez disso, as refletir sobre a percepção de padrões em situações da vida
aulas vão abordar as relações amplas entre a matemática e cotidiana.
O exercício 1 trata da percepção de regras de sequên-
a razão, no sentido de tratar da percepção de padrões nem
cias numéricas. As atividades a e b induzem a pensar em
sempre intuitivos.
uma solução aparentemente óbvia quanto à identificação
Na Aula 1, aplicando as sequências numéricas, exercita-
de uma regra pela qual seriam estabelecidas duas sequên-
mos inferências a respeito de regras matemáticas e tratamos
cias numéricas simples, 5 – 7 – 9 e 31 – 33 – 35. Embora
de como é preciso ter cuidado para estabelecê-las. A partir
esteja correto dizer que se trata de sequências de números
disso, estimulamos os alunos a perceber a presença dessa
ímpares com diferença de dois números entre eles, elas
forma de raciocínio em diversos campos da nossa vida. também podem ser consideradas a partir de regras mais
Na Aula 2, mesmo sem tratar de conceitos matemáti- gerais, como a de serem simplesmente sequências de nú-
cos como o de progressão geométrica, abordamos como a meros ímpares.
consciência de determinados padrões matemáticos pode Esse segundo aspecto será trabalhado no exercício 2, que
ter resultados inesperados e com aplicação na vida prá- introduz outras duas sequências, 2 – 3 – 8 e 23 – 35 – 36
tica. Apresentamos uma história a respeito de um servi- que seguiriam a mesma regra das sequências anteriores.
dor que obtém um prêmio enorme graças à percepção Espera-se que os alunos identifiquem a regra mais geral tam-
de um padrão de crescimento matemático para, depois, bém aplicável às duas primeiras sequências isoladamente.
oferecermos uma situação que leva os alunos a aplicar um O exercício 3 complementa o percurso da atividade,
raciocínio análogo. orientando a percepção dos alunos para o fato de que era
Na Aula 3, com base no conteúdo das aulas anteriores, possível definir a regra mais geral desde o início.
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

oferecemos uma atividade de produção textual em que os alu- Nas atividades seguintes, a identificação de padrões
nos poderão tematizar a questão da importância e da função exemplificados nos exercícios 1 e 2 com números é genera-
do pensamento matemático. lizada para a percepção de padrões no mundo. Nesse caso,
estimulamos os alunos a pensar a respeito de cálculos mate-
OBJETIVO máticos por trás de elementos do cotidiano, como espaços
escolares.
• O módulo tem como objetivo apresentar o raciocínio Entreatos
matemático como algo ligado ao exercício da razão e da
busca do entendimento e da explicação de fenômenos do O texto citado aborda a questão da utilidade do aprendi-
mundo. Ao longo do módulo, mostramos como a matemática zado de matemática, mais especificamente da realização de
pode nos abrir a percepções de padrões abstratos em exercícios dessa disciplina em um contexto escolar. O autor
determinadas situações que influenciam nossa compreensão argumenta que se trata de trabalhar capacidades pontuais
do mundo e mesmo a nossa vida prática. que podem ser aplicadas a situações da vida, tanto no caso
de quem se tornará especialista na área como no das demais
pessoas.
A escolha do texto e a elaboração das atividades pre-
Competências gerais e Temas
tendem contribuir para as futuras reflexões feitas em sala
Contemporâneos da BNCC na aula seguinte. A situação apresentada no texto envolve
• CG1 e CG2. a aplicação de conhecimentos matemáticos na tomada de

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decisões coletivas, criando critérios para que sejamos ca- AULA 3
pazes de discernir vantagens e desvantagens de diferentes
linhas de ação.
PRODUÇÃO
As atividades procuram orientar a leitura, já que se trata
de um texto de difícil compreensão para a faixa etária. Nas aulas anteriores, apresentamos a Matemática como
algo que nos ajuda a compreender melhor o mundo e contri-
bui para tomadas de decisão e para a admiração do mundo.
AULA 2 Dessa maneira, propomos a produção de textos de con-
vencimento, em que os alunos devem argumentar a respeito
COMPREENSÃO da importância da Matemática. Trabalhamos com a noção
O professor pode começar comentando a metáfora pre- de interlocução: para perfis diferentes de interlocutores, os
sente no texto da seção Entreatos anterior, após passar o argumentos vão variar. Sendo assim, traçamos dois perfis: o de
gabarito para os alunos. Quando um atleta treina, ele não uma pessoa que se identifica mais com Linguagens ou Ciências
faz apenas os movimentos que realizará durante as competi- Humanas do que com Matemática e outra próxima das artes.
ções. Há sequências de repetições que, isoladamente, não têm É interessante que o professor comente como, mesmo no
tanto valor, mas desenvolverão capacidades que vão trazer dia a dia, modulamos a linguagem e os argumentos de acordo
resultados melhores depois. A partir disso, o professor pode com a visão que temos da pessoa que nos lê ou que nos ouve.
perguntar à turma em que áreas da vida a capacidade de Se houver tempo hábil, sugerimos que seja feita uma roda
perceber e aplicar regras matemáticas pode fazer diferença. de leitura para que os textos sejam compartilhados ou que,
Um exemplo possível é a medição da temperatura média da em grupos, os alunos leiam os textos uns dos outros e tenham
Terra. Discussões a respeito disso podem levar a importantes contato com as diversas possibilidades de resposta.
deliberações políticas e econômicas. Caso os alunos não ci-
Entreatos
tem, o professor pode tratar da vida econômica, da tomada
de decisões referentes a ganhos e gastos. A última seção traz informações e opiniões sobre a uti-
Os exercícios 1 e 2 tratam de uma história conhecida. Ela lização de diferentes sistemas numéricos. Até aqui, estimu-
exemplifica como uma regra matemática pode levar a resul- lamos os alunos a identificar a relação entre Matemática e
tados que, à primeira vista, não seriam os esperados. compreensão do mundo. Encerramos o módulo com uma
O exercício 3 leva os alunos a aplicar um raciocínio análogo reflexão sobre a linguagem da Matemática. O texto mostra
em uma situação concreta. Estimulamos aqui a consciência que o sistema que usamos hoje é um entre outras possibili-
de tomada de decisões financeiras a partir de uma discussão dades, desde o emprego de traços que teriam relação com
coletiva, em que a turma deve escolher entre duas formas a nossa própria biologia até a escolha de sistemas por suas
de financiar um projeto de doação, uma com quantias fixas propriedades, como a possibilidade de divisibilidade do sis-
e outra com quantias pequenas, que crescem ao longo do tema babilônico, com base no 60, e não no 10.
tempo em progressão geométrica.
Na realização das atividades, é importante seguir a ordem
dos exercícios e que a turma, ao fim, perceba a relação entre SUGESTÃO DE MATERIAL DE
os dois eixos da atividade de compreensão. APOIO
Entreatos

Filosofia • Módulo 5 • Manual do Professor


Texto I
Nesta seção, apresentamos um trecho de entrevista de
um jovem matemático brasileiro que contribui para a reflexão Bertrand Russell (1872-1970) foi um lógico, matemático e
sobre o alcance da aplicação das habilidades e conhecimentos filósofo galês de grande influência no século XX. Neste excer-
matemáticos na vida. to de sua célebre Introdução à Filosofia matemática (1919),
Aqui, além de mencionar utilidades práticas da matemá- Russell ensaia uma definição para as disciplinas Matemática e
tica, discute-se a sua relação com uma percepção estética e Lógica. Ele buscou unificar a Matemática e a Lógica, algo que
subjetiva do Universo. não era bem aceito, mas soube delimitar como elas trabalham
O texto oferece outra possibilidade de pensar sobre a com proposições analíticas.
Matemática e complementa o conjunto de exemplos que po- A Matemática e a Lógica foram, historicamente falan-
derão ser aplicados na produção textual, que busca ressigni- do, estudos inteiramente distintos. A Matemática esteve
ficar a matemática dentro do contexto escolar. Os exercícios relacionada com a ciência e a Lógica com o idioma grego.
procuram orientar a percepção desses aspectos. Mas ambas se desenvolveram nos tempos modernos e a

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Lógica tornou-se mais Matemática e a Matemática tor- separados, nenhum dos quais especialmente ligado aos
nou-se mais Lógica. A consequência é que se tornou ago- números. As propriedades mais elementares dos núme-
ra inteiramente impossível traçar uma linha entre as duas, ros estão ligadas às relações de um-para-um e à similari-
de fato, as duas são uma. Diferem entre si como rapaz e dade entre classes. A adição está ligada à construção de
homem, a Lógica é a juventude da Matemática e a Mate- classes mutuamente exclusivas respectivamente simila-
mática é a maturidade da Lógica. Esse ponto de vista é res a um conjunto de classes que não se sabe serem mu-
mal aceito pelos lógicos, que tendo passado a vida no es- tuamente exclusivas. A multiplicação é fundida com a te-
tudo dos textos clássicos, são incapazes de acompanhar oria das “seleções” isto é, de uma certa espécie de relações
um pedaço de raciocínio simbólico, e pelos matemáticos de um-para-muitos. A finitude é fundida com o estudo ge-
que aprenderam uma técnica sem se darem ao trabalho ral das relações ancestrais, que acarreta toda a teoria da
de indagar sobre o seu significado ou justificativa. Ambos indução matemática. As propriedades ordinais das várias
os tipos estão agora felizmente ficando mais raros. Tanto espécies de séries numéricas, e os elementos da teoria da
o trabalho matemático moderno se encontra obviamente continuidade de funções e os limites de funções, podem
na fronteira da Lógica, quanto a Lógica moderna é sim- ser generalizados de modo a não mais verem qualquer re-
bólica e formal, que a relação muito estreita em Lógica e ferência essencial a números. Constitui um princípio de
Matemática tornou-se óbvia para todo estudante instruí- todo raciocínio formal generalizar ao máximo, porquan-
do. A prova de sua identidade é, naturalmente, uma ques- to assim asseguramos que um determinado processo de
tão de detalhe: começando com as premissas que seriam dedução tenha resultados mais amplamente aplicáveis;
universalmente admitidas como pertencentes à Lógica, e estamos, portanto, ao generalizarmos assim o raciocínio
chegando, por dedução, a resultados que de modo igual- da Aritmética, meramente seguindo um preceito que é
mente óbvio pertencem à Matemática, constatamos não universalmente admitido em matemática. E ao genera-
haver um ponto pelo qual possa ser traçada uma linha lizarmos desse modo, criamos, na verdade, um conjun-
distinta, separando a Lógica à esquerda e a Matemática à to de sistemas dedutivos novos, nos quais a Aritmética
direita. Se ainda houver os que não admitem a identidade tradicional é imediatamente dissolvida e ampliada; mas
entre Lógica e Matemática, podemos desafiá-los a indicar se se deve dizer que qualquer desses novos sistemas de-
em que ponto, nas definições e deduções sucessivas de dutivos - por exemplo, a teoria das seleções - pertence à
Principia Mathematica, consideram que a Lógica termina Lógica ou à Aritmética, é coisa inteiramente arbitrária e
e a Matemática principia. Será então óbvio que qualquer incapaz de ser racionalmente decidida.
resposta terá de ser assaz arbitrária. Somos agora colocados face a face com a questão:
[...] Que disciplina é essa, que pode ser chamada indiferente-
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Costumava-se dizer que a Matemática é a ciência mente Matemática ou Lógica? Haverá algum modo pelo
da “quantidade”. “Quantidade” é uma palavra vaga, mas, qual poderemos defini-la?
para argumentar, podemos substituí-la pela palavra “nú- [...]
mero”. O enunciado de que a Matemática é a ciência do É claro que a definição de “Lógica” ou “Matemática”
número seria não verdadeiro de dois modos diferentes. deve ser buscada através da tentativa de dar uma nova
Por um lado, há ramos reconhecidos da Matemática que definição da velha noção de proposições “analíticas”. Con-
nada têm a ver com o número - toda a Geometria que não quanto não mais nos possamos satisfazer com o definir as
usa coordenadas ou medição, por exemplo: a Geometria proposições lógicas como sendo aquelas que se seguem
Projetiva e Descritiva, até o ponto em que são introduzi- da lei da contradição, podemos e devemos ainda admi-
das coordenadas, nada tem a ver com número, ou mesmo tir que elas são uma classe de proposições inteiramente
com quantidade, no sentido de maior e menor. Por outro diferentes das que chegamos a conhecer empiricamente.
lado, tornou-se possível, por meio da definição de cardi- Todas elas têm a característica que, há pouco, concorda-
nais, pela teoria da indução e pelas relações ancestrais, mos chamar “tautologia”. Isto, combinado com o fato de
pela teoria geral das séries, e pelas definições de opera- que podem ser inteiramente expressadas em termos de
ções aritméticas, generalizar muito do que costumava ser variáveis e constantes lógicas (sendo uma constante ló-
provado somente em conexão com os números. O resul- gica algo que permanece constante em uma proposição
tado é que o que era anteriormente o estudo exclusivo da até mesmo quando todos os seus constituintes são mu-
Aritmética tornou-se agora dividido em vários estudos dados), dará a definição de Lógica ou Matemática pura.

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No momento, não sei como definir “tautologia”. Seria fácil tempo, algo vem a ser. O tempo é também uma intuição
apresentar uma definição que seria satisfatória por mo- e não um conceito, pois é único, podemos intuí-lo, apre-
mentos; mas não conheço definição alguma que eu sinta endê-lo imediatamente, mas não pensá-lo mediante um
ser satisfatória, a despeito de eu me sentir inteiramente conceito, como se fosse uma coisa entre muitas coisas.
familiarizado com a característica da qual se deseja uma “O tempo é [...] a forma real da intuição interna; tem,
definição. A esta altura, portanto, por momentos, atingi- pois realidade subjetiva, relativamente à experiência in-
mos a fronteira do conhecimento em nossa jornada de terna”. O tempo não é um objeto, mas “[...] o modo de
volta dos fundamentos lógicos da Matemática. representação de mim mesmo como objecto” [...].
RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 185. Os juízos na aritmética são sintéticos a priori, pois
se faz necessário intuir o tempo para adicionar, subtrair,
Texto II multiplicar ou dividir. Assim, argumenta Kant que, ao
O texto de Renata Meneghetti expõe como o filósofo ale- pensarmos o conceito da soma de sete e cinco, pensamos
mão Immanuel Kant (1724-1804) concebia a Matemática. Para na reunião de dois números em um só (ou seja, em acres-
ele, tratava-se de uma disciplina que trabalha por conceitos centar cinco a sete), e não qual é esse número único que
puros do entendimento, ou seja, conceitos que não precisam reúne os outros dois: “7 + 5 não é uma proposição analíti-
de dados empíricos para se constituir. Essa teoria é questio- ca. Pois nem na representação do 7, nem na do 5, nem na
nável, mas tem sua relevância por expressar o racionalismo reunião de ambos, penso o número 12 [...]”.
kantiano, especialmente ao clarificar como a Matemática O espaço e o tempo, enquanto condições necessá-
expressaria a funcionamento do próprio entendimento.
rias de toda a experiência (externa e interna), são ape-
Concepção de conhecimento matemático em nas condições meramente subjetivas da nossa intuição.
Kant Relativamente a essas condições, portanto, todos os ob-
Para Kant, a Matemática ocupa-se de objetos que po- jetos são simples fenômenos e não coisas dadas em si
dem ser representados na intuição, porém essa é uma in- mesmas. Consequentemente, muito se poderá colocar
tuição que pode ser dada a priori, de forma muito análoga a priori acerca da forma desses fenômenos, mas nada se
a um conceito puro. poderá dizer da coisa em si.
Esse filósofo afirma que o conhecimento matemá- Para Kant, a solidez da Matemática repousa em defi-
tico, diferente do filosófico (racional, dogmático), é um nições, axiomas e demonstrações. Mas como ele concebeu
conhecimento que se dá por construção de conceitos, e, esses termos? Estaria aqui também presente a intuição?
além disso, o próprio conceito de construção em Kant já Definir, em Kant, significa apresentar originalmente
pressupõe o uso da intuição: “Construir um conceito sig- o conceito pormenorizado de uma coisa dentro dos seus
nifica apresentar a priori a intuição que lhe corresponde”. limites. Dessa forma, ele argumentou que não podemos
Porém, tal intuição não é empírica, porque senão seria definir: (1) nem os conceitos dados empiricamente, e (2)
particular a um objeto singular; trata-se de uma intuição nem os dados a priori.
a priori. Kant argumentou que não é possível definir conceitos
Então, os conceitos na Matemática são conceitos a empiricamente dados, visto que temos em tais conceitos
priori, os quais contêm em si uma intuição pura e dessa apenas alguns caracteres de certa espécie dos objetos dos

Filosofia • Módulo 5 • Manual do Professor


forma podem ser construídos. Assim, o conhecimento sentidos e nunca estaremos seguros se pela palavra que
matemático para Kant é de natureza sintética e a priori. [...] designa o mesmo objeto não se pense desse objeto algu-
Na Matemática, os juízos sintéticos a priori só são mas vezes caracteres a mais e outros caracteres a menos.
possíveis porque essa ciência se funda no espaço e no Assim, a experiência e a palavra, com os poucos carac-
tempo, que são formas puras da intuição (condições a teres que lhe estão ligados, devem apenas exprimir uma
priori da possibilidade de experiência). Para esse filósofo, designação e não o conceito da coisa.
o espaço e o tempo são indubitável, positiva e necessaria- Também não é possível definir conceitos a priori:
mente formas (subjetivas) da intuição a priori. [...] “Porque nunca posso estar seguro de que a representação
Da mesma forma, Kant mostra que o tempo é a priori clara de um conceito dado [...] foi desenvolvida no por-
( forma pura da intuição sensível), pois não podemos menor, senão quando sei que é adequada ao objeto” [...].
de maneira alguma conceber um acontecimento sem o Assim, Kant conclui: “[...] não restam outros concei-
tempo, ou seja, acontecer significa que, no decurso do tos capazes de definição do que aqueles que contêm uma
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síntese arbitrária, que pode ser construída a priori; assim, Moraes. ilustríssima, 25 dez. 2016. Disponível em: <www.
apenas a matemática é que possui definições”. As defi- folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/12/1843543-newton-
nições matemáticas são construções de conceitos origi- da-costa-um-logico-em-busca-da-quase-verdade.shtml>.
nalmente formados – são feitas sinteticamente e consti- Acesso em: 25 out. 2019.
tuem, portanto, o próprio conceito. O professor Newton da Costa é um lógico e filósofo da
Quanto aos axiomas matemáticos, estes são princípios ciência brasileiro reconhecido mundialmente pelo seu tra-
intuitivos. Os axiomas são sintéticos a priori e possuem a balho, tendo formulado a “Lógica paraconsistente”, teoria
função de ligar, de maneira sintética e, contudo, imedia- que coloca em xeque elementos tradicionais da Lógica, tais
ta, um conceito a outro: “A matemática [...] é susceptível como o “princípio de não contradição”. Nessa entrevista,
de axiomas, pois mediante a construção dos conceitos na Costa responde perguntas sobre sua história de vida e sua
obra em geral.
intuição do objeto, pode ligar a priori e imediatamente
• GNIPPER, Patrícia. Mulheres históricas: Emmy Noether,
os predicados desse objeto [...]”. Também há a presença
a “mais importante da história da Matemática”. Canal-
da intuição na demonstração, visto que, segundo Kant,
tech, set. 2016. Disponível em: <https://canaltech.com.
a demonstração permite uma penetração na intuição do
br/internet/mulheres-historicas-emmy-noether-a-mais-
objeto [...].
importante-da-historia-da-matematica-79463/>. Acesso
Para Kant, uma prova apodítica pode-se chamar de- em: 25 out. 2019.
monstração somente na medida em que for intuitiva. Os Artigo que trata da matemática Emmy Noether (1882-
princípios empíricos não podem dar-nos nenhuma prova -1935), uma das maiores em sua área. Emmy sofreu o ma-
apodítica, pois a experiência, embora nos ensine aquilo chismo de sua época, o que dificultou sua inserção na área
que é, nada pode dizer daquilo que não pode ser de outra da Matemática a ponto de, apesar de ter seu trabalho re-
maneira. Por outro lado, dos conceitos a priori, por mais conhecido e ser convidada a lecionar, ter de utilizar o nome
que o juízo possa ser apoditicamente certo, nunca resul- masculino de um colega para tal. Apesar das dificuldades,
tarão na certeza intuitiva (isto é, na evidência). sua obra foi vasta e valiosa, tendo influenciado toda uma
Portanto, o conhecimento matemático é um conhe- geração e, inclusive, grandes cientistas, como Albert Einstein.
cimento racional por construção de conceitos, no qual
Documentário
construir um conceito significa apresentar a priori a in-
tuição que lhe corresponde. O conhecimento matemáti- • O prazer da Lógica. Direção de Catherine Gale. Londres: BBC,
co considera o geral no particular (na intuição singular), 2013. 60 min. Disponível com legenda em: <www.youtube.
contudo, por meio de uma representação pura a priori, com/watch?v=qQ1FzfbUTos>. Acesso em: 25 out. 2019.
o que permite que o objeto do conceito, ao qual o indi- Documentário sobre a Lógica apresentado por Dave Cliff,
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

vidual corresponde, seja pensado como universalmente professor de Ciência da Computação e Engenharia da Univer-
determinado (idem, p. 593). sidade de Bristol. A partir de questões que fazem parte do
cotidiano do espectador, o documentário aborda a Lógica em
Assim, o matemático caminha para a construção de
sua relação com a Matemática e a Computação, trabalhando
proposições sintéticas e universais, mediante uma cadeia
as ideias de pensadores como Bertrand Russell, George Boole,
de raciocínio, sempre guiado pela intuição. Dessa forma,
Kurt Godel e Alan Turing.
percebe-se que, na filosofia kantiana, a intuição desem-
penha um papel fundamental no processo de construção Site
do conhecimento matemático pelo sujeito. • IMPA. Instituto de Matemática Pura e Aplicada. Disponível
MENEGHETTI, Renata. A Filosofia kantiana: importância, limitações e possíveis
contribuições para o saber matemático e seu ensino-aprendizagem. In: CALDEIRA,
em: <https://www.prandiano.com.br/>.
Ana Maria. Ensino de Ciências e Matemática V: história e filosofia da Ciência. Página digital do Instituto de Matemática Pura e Aplicada,
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 321-325.
instituição fundada nos anos 1950 no Rio de Janeiro com
o intuito de promover a pesquisa em Matemática teórica e
aplicada. É uma entre as instituições do gênero mais reco-
SUGESTÃO PARA CONSULTA nhecidas no mundo, sendo a mais relevante da América do
Sul, especialmente quando em 2014 um de seus membros,
Artigos Artur Avila, ganhou a Medalha Fields, o Nobel da Matemática.
• DA COSTA, Newton. Newton da Costa, um lógico em busca O site oferece diversas informações sobre o instituto, além de
da quase-verdade. [Entrevista concedida a] Fernando Tadeu conteúdo de divulgação científica.

8
MîDULO

6 MÚSICA E PENSAMENTO

INTRODUÇÃO começo do exercício 1, mas orientando os alunos a responder


a ele sozinhos.
Neste módulo, fazemos uma discussão sobre a música e No exercício 2, sugerimos um debate estabelecendo uma
sua presença em nossas vidas. Buscamos estimular os alunos a comparação com as respostas do primeiro exercício. Prova-
refletir sobre o papel da música para cada um de nós, inclusive velmente haverá muitas semelhanças entre as respostas de
para que essa experiência – tão comum, forte e significativa cada um, mas pretendemos também enfatizar as diferenças.
na vida dos adolescentes – possa ser mais bem aproveitada. O professor pode comentar que, por exemplo, há muitos tipos
A Aula 1 propõe uma reflexão sobre as funções da música de música “clássica”, desde uma valsa feita para dançar, pas-
em nossa sociedade, a partir de atividades que versam sobre sando por uma ópera dramática ou uma música originalmente
gêneros que compõem o universo dos alunos. feita para cultos religiosos.
A Aula 2 estimula a reflexão sobre como a música pode nos O exercício 3 complementa os dois anteriores, ao induzir
afetar a partir de um trecho do romance Kafka à beira-mar, de os alunos a pensar se é possível definir uma função geral para
Haruki Murakami. Procuramos partir de uma história ficcional a música em nossas vidas, mesmo com toda a diversidade de
como oportunidade de reflexão sobre o tema. formas exemplificada nos exercícios.
A Aula 3 apresenta uma atividade de escrita de um relato O exercício 4, de caráter bastante geral, estimula a discus-
sobre o papel da música na vida de cada um, por meio do são e a reflexão sobre a especificidade da música. O professor
qual pretendemos ensejar a reflexão individual sobre o tema. pode comentar que, na literatura, as palavras podem definir
OBJETIVO de forma precisa os significados (ou, por outro lado, limitá-
-los) e que, em um filme, somos levados a interpretações e
• O módulo tem como objetivo valorizar a expressão emoções por elementos presentes na imagem.
artística musical por meio de questionamentos sobre a
importância da música para o ser humano. Além disso, Entreatos
buscamos estimular reflexões autônomas sobre o tema, Nesta seção, apresentamos de maneira breve aspectos da
como forma de enriquecer a experiência musical e mesmo teoria estética de Arthur Schopenhauer. A ideia é introduzir
o autoconhecimento dos alunos. os alunos no universo da reflexão filosófica sobre as artes, e
a música em especial.
Competências gerais e Temas A escolha desse autor nos parece interessante, pois ele
Contemporâneos da BNCC enfatiza a capacidade da música de nos retirar do ciclo de so-
• CG1, CG3 e CG8. frimento e insatisfação que caracterizaria a vida. Tal aspecto,
que já pode ter aparecido de forma menos aprofundada nas
respostas desta Aula 1, será retomado na aula seguinte.
AULA 1

Filosofia • Módulo 6 • Manual do Professor


AULA 2
DISCUSSÃO
A ideia geral desta aula é considerar o universo de conhe- COMPREENSÃO
cimentos musicais dos alunos como forma de introduzir as Nesta aula, dois momentos de um personagem do roman-
reflexões sobre o tema. ce Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami, servem de estímulo
O exercício 1, individual, leva os alunos a pensar em di- para a reflexão sobre o papel da música em nossas vidas.
ferentes funções ou usos da música em nossa sociedade. As Os trechos se referem a uma música de Beethoven, “Trio
respostas são pessoais, e não há problema em haver diversas Arquiduque”, que impressiona a personagem. Caso deseje, o
respostas; pelo contrário, isso será importante para os exer- professor pode começar a aula reproduzindo a música. Uma das
cícios seguintes. gravações mencionadas no livro está disponível em: <https://
A partir do exercício 2, propomos o trabalho em grupo. www.youtube.com/watch?v=eika4rkMOGY&list=PLyu1Zja1N
O professor pode optar por organizar os grupos antes do gLBs8Fl-agie0edefJQW5Z3_>. Acesso em: 14 jul. 2019.

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8
Após a exibição da gravação, o professor pode perguntar Entreatos
aos alunos o que sentiram ao escutá-la e o que chamou a Nesta seção, apresentamos a letra da canção “Ela”, de
atenção deles, para então iniciar a leitura. Gilberto Gil. Embora aparentemente se trate de uma canção
Os exercícios 1 e 2 envolvem um esforço de apreensão do de amor voltada para uma mulher, o enunciador está falando
sentido do texto. A ideia é direcionar a leitura para aspectos sobre a própria música.
relevantes ao tema tratado. No caso do exercício 1, preten- Essa característica torna a letra interessante para pensar
de-se estimular a reflexão sobre os efeitos emocionais do a respeito da importância da música para o enunciador e, por
ambiente e da música na personagem. No caso do exercício 2, extensão, para cada um de nós.
incentivamos os alunos a usar suas reflexões para ampliar a
interpretação do texto.
O exercício 3 explicita a possibilidade de relacionar o SUGESTÃO DE MATERIAL DE
trecho à apresentação de ideias de Schopenhauer, na seção
Entreatos anterior. APOIO
Entreatos
Texto I
A letra da canção “A carne” é um exemplo explícito de
Arthur Schopenhauer realizou uma verdadeira interpreta-
utilização da música como meio de denúncia social. Além das
ção da Vontade a partir da manifestação musical, interpreta-
reflexões e sensações que a música, em si, provoca, é possível
ção que nos é apresentada no texto a seguir por Jair Barboza,
problematizar – tendo em vista o breve histórico sobre a vida
tradutor da edição brasileira de O mundo como Vontade e
de Elza Soares – em que medida a interpretação de cantores
como representação (1819). No texto, a música exprime em
influencia o que está sendo expresso em uma música e a forma
sua harmonia e dissonância o equilíbrio e as intempéries do
como a recebemos.
mundo, sendo a “linguagem do sentimento e da paixão”.
Schopenhauer tem uma interessante metafísica
AULA 3 da música desenvolvida no terceiro livro do tomo I de
sua obra magna, e depois complementada pelo capítu-
PRODUÇÃO lo “Metafísica da música” do tomo II. Salta ali aos olhos
Iniciamos a atividade de produção com a leitura de um a comparação feita entre música e mundo. A música,
trecho de um poema de Fernando Pessoa. Aqui, ao contrário como arte suprema, paira acima de todas as demais,
do que ocorre nas atividades de compreensão, não pretende- pois é a “linguagem direta da coisa-em-si”. Haveria uma
mos nos aprofundar nas tramas de sentido do texto. A ideia analogia direta entre música e mundo, que vai dos sons
é oferecer um ponto de partida e mesmo inspirar a produção graves até os agudos, de forma que o baixo é, na harmo-
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

textual. nia, o que no mundo é a natureza inorgânica, e equivale


O poema narra uma jornada psicológica iniciada pela mú- à massa planetária sobre a qual tudo se assenta e a par-
sica tocada em um teatro. Algo nela leva o enunciador para a tir da qual tudo se eleva e desenvolve; já o conjunto das
sua infância, criando uma superposição do espaço físico com o vozes intermediárias, prossegue o filósofo, que produ-
psicológico. A situação parece representativa de experiências
zem a harmonia e se situam entre o baixo contínuo e a
que todos nós podemos ter ao escutar uma música.
voz condutora que canta a melodia, pode-se reconhecer
Para orientar a atividade, o professor pode compartilhar
a sequência de Ideias nas quais a Vontade se objetiva, ou
uma experiência pessoal ou estimular os alunos a pensar
seja, a sua visibilidade: neste sentido, as vozes mais pró-
em diversas situações, para que depois optem por uma,
que seja mais interessante ou tenha mais elementos para ximas ao baixo correspondem aos corpos inorgânicos,
o relato. as vozes mais elevadas correspondem aos reinos vegetal
Acreditamos que é bastante positivo estimular os alu- e animal.
nos a fazer o relato em forma de poesia, seguindo o poe- Os intervalos determinados da escala tonal são para-
ma como inspiração. Contudo, deixamos essa possibilidade lelos aos graus determinados de objetivação da Vonta-
como opcional, já que nem todos se sentiriam à vontade de, às espécies determinadas da natureza. O desvio da
para escrever versos. correção aritmética dos intervalos mediante um tem-
Caso haja tempo hábil, recomendamos que, ao fim da peramento qualquer é análogo ao desvio do indivíduo
aula, os alunos troquem os relatos entre si, como forma de do tipo da espécie. As dissonâncias impuras que não
estimular a reflexão sobre o tema e o contato entre eles. formam nenhum intervalo determinado são compará-

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8
veis às formações estranhas da natureza, situados entre do tomo I, escondida e tímida em meio à sua Metafísica
duas espécies animais. da natureza (segundo livro), pode-se reafirmar que, só
Detendo-se na melodia, Schopenhauer identifica com as vozes soltas e o baixo que se move gravemente,
na voz principal elevada, que canta e conduz o todo em do qual procede a harmonia, é que se atinge necessaria-
progresso livre e irrestrito, em conexão significativa e mente a plenitude da música.
ininterrupta de UM pensamento do começo ao fim, o O grave deve então destacar-se na sua imponência
grau mais elevado de objetivação da Vontade, ou seja, a precisa, fazendo de si emanar a vida na música, identi-
vida do ser humano com esforço e clareza de consciên- ficada amiúde na voz, como no mundo a vida emana da
cia, pois apenas o ser humano, na medida em que é do- Vontade através da matéria. Neste sentido é que tenho
tado da faculdade de razão, vê possibilidades incontá- em mente a música de Brahms, que concede destaque
veis adiante ou retrospectivamente no caminho de sua ímpar ao grave, em especial nas enigmáticas e sombrias
vida, e, assim, traz a bom termo um decurso de vida cla- aberturas dos primeiro e quarto movimentos da Sinfo-
ro tomado como um todo concatenado. Corresponden- nia Nr. 1, dominados por tímpanos. Aí se tem, se formos
do a isso, somente a melodia tem conexão intencional interpretar com os termos de Schopenhauer, a atividade
e plenamente significativa do começo ao fim. Ela narra, produtiva da Vontade e da matéria expressas nos tímpa-
por consequência, a história da Vontade iluminada pela nos e nos graves (que fazem a base da música) sobre a
clareza de consciência. Porém, a melodia diz mais: narra qual apoia-se a série dos seres inorgânicos e orgânicos.
a história mais secreta da Vontade, pinta cada agitação, A Vontade, para o filósofo, não é um ser, mas atividade,
cada esforço, cada movimento seu, tudo o que a razão Tätigkeit, e a matéria reflete esta índole, pois é definida
resume sob o vasto e negativo conceito de sentimento. como fazer-efeito, wirken. E isso, me parece, em termos
Por isso, conclui o filósofo, diz-se que a música é a lin- de Schopenhauer, ouvimos sombria e obscuramente
guagem do sentimento e da paixão, assim como as pala- nesses inícios de movimentos de Brahms, nos graves,
vras são a linguagem da razão. depois (sobre) dos quais irrompe a luz da vida e a melo-
Ora, no meu entendimento, depois da aproximação dia ascende sobre os graves.
constatada mais atrás entre a matéria e o puro sujeito BARBOZA, Jair. Filosofia e música: a inflexão conceitual no pensamento de Schopenhauer e
a música de Brahms. Arte e Filosofia, Ouro Preto, v. 1, n. 12, 2012. p. 241-243. Disponível em:
do conhecimento, a partir do capítulo 1 dos Complemen- <www.periodicos.ufop.br/pp/index.php/raf/article/view/588/544>. Acesso em: 25 out. 2019.
tos, e, mais ainda, a partir da constante aproximação que
podemos detectar entre a matéria e a coisa-em-si – eu Texto II
diria que essa metafísica da música tem também de ser O artigo a seguir discute a relação entre expressionismo
reinterpretada. E em que termos? Resposta: guardando musical e as emoções humanas. Seu autor, Marcos Nogueira,
paralelo com aquele som que mais se aproxima da coi- defende que a música tem a capacidade de incorporar ele-
sa-em-si confundida com a matéria, ou seja, o elemento mentos do sentido e de afetar os indivíduos emocionalmente.
de coesão e identidade da música não é a voz principal Isso não se dá, contudo, pelo fato de a música representar as
e aguda, mas o baixo fundamental. O baixo é a tradu- emoções, mas porque ela pode nos afetar e suscitar senti-
ção mais perfeita do querer, não as vozes. Pois aquele mentos específicos.
fundo grave, abafado, obscuro da massa planetária é o Geralmente, as obras musicais são consideradas

Filosofia • Módulo 6 • Manual do Professor


próprio obscuro da matéria, em cima do qual surge a luz expressivas de certas condições emocionais, mas se
da razão bem como toda forma de vida que se desen- é assim – e as obras não podem “possuir” emoções –,
volve em todas as eras. A matéria é o correlato neces- pouco importa a emoção particular do compositor
sário e indissolúvel do mundo visível, do mundo como quando do ato de composição de uma determinada
representação, e o possibilita, pois sem matéria nada de obra, mesmo que essa condição emocional tenha, de
visibilidade da Vontade. certo modo, determinado parte das decisões compo-
Ora, em assim sendo, se esta interpretação é acei- sicionais dessa obra. As emoções sentidas pelo com-
tável, então pode-se concluir que na audição musical, positor ou as emoções de que deseja que sua obra seja
se quisermos nos aproximar do sentido da metafísica expressiva não determinarão a experiência do ouvinte
da música de Schopenhauer, temos de prestar máxima ou o caráter do objeto musical experimentado. O ou-
atenção a como o baixo, o som grave, dá sustentação à vinte pode atribuir a uma obra musical a expressão de
composição musical. Retomando uma perdida passagem um tipo de emoção sem precisar relacionar a música a
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11
8
uma possível ocorrência dessa emoção no ato da com- uma tradição negligencia a diferença conceitual, tra-
posição. O mesmo pode ser dito da emoção do intér- tando sentimento em termos apropriados à emoção.
prete. Se a música que ele toca é expressiva de uma Mas em termos de emoções, estamos sob o efeito da
emoção particular, esta não é gerada por uma ocor- ação corporal e dos estados mentais pouco intencio-
rência particular da emoção que o intérprete sentia nais; o sentimento é aquilo que completa a imagina-
ao interpretá-la ou que sente no ato da performance ção esquemática, interiorizando o pensamento. Seres
da obra e; uma dramatização mais intensa dos atos de humanos têm emoções humanas, porque elas corres-
execução, em performances ao vivo ou em vídeo, pode pondem a pensamentos imaginativos dos seres hu-
até mesmo sugerir – em gestos de comunicação não manos que, além de conscientes do objeto da emoção,
verbal – emoções particulares, mas não determinar a colocam-se em sua própria emoção e se expressam por
experiência emocional do espectador. meio dela: emoções são motivos para a ação. E a ex-
Em sua tese Do belo musical, conhecida em 1854, pressão da emoção é também uma criação de emoção.
Eduard Hanslick tentou estabelecer três proposições NOGUEIRA, Marcos. O Viés Emocional da Expressão Musical. Revista Música Hodie, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 1, pp. 42-46. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/musica/article/
negativas acerca da relação entre música e emoções: view/21663>. Acesso em: 25 out. 2019.
a) é impossível uma obra musical representar uma
emoção definida; b) emoções e sentimentos implica-
dos não podem ser usados para caracterizar uma obra SUGESTÃO PARA CONSULTA
musical; c) o objetivo da música não é evocar emoções
no ouvinte. [...] Artigos
Há uma forte inclinação em pensar a emoção em
• ALMEIDA, Jorge. Filosofia da música e crítica musical em
termos do seu aspecto “subjetivo”. Porém, tal aspecto
Theodor Adorno. Discurso, n. 37, 2017, p. 343-364. Disponí-
não constitui a essência das emoções, porque elas se vel em: <www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62949>.
manifestam como estados publicamente reconhecíveis Acesso em: 25 out. 2019.
de um organismo – embora não necessitem dessa ma- O professor Jorge de Almeida é um dos maiores intérpretes
nifestação externa. Emoções são identificadas por sua de Theodor Adorno no Brasil e nos presenteia com esse artigo
função em um sistema cognitivo: são desejos, crenças, sobre a teoria musical no pensador alemão. Adorno é um dos
ações. Emoções são estados intencionais: são emoções poucos filósofos contemporâneos que abordou a música de
de algo ou sobre algo sem existência material. Cada maneira rigorosa, tendo feito não só críticas culturais da pro-
emoção responde a um pensamento e é encontrada dução musical, como análises estéticas das criações sonoras.
em certo pensamento que define seu “objeto formal”: • ZÖLLER, Günther. A música como vontade e representa-
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

o objeto intencional daquela emoção. Cada emoção ção. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade,
envolve um tipo particular de pensamento que é seu n. 16, 2010, p. 55-80. Disponível em: <www.revistas.usp.br/
constituinte e que é diferente do pensamento envolvi- filosofiaalema/article/view/64820>. Acesso em: 25 out. 2019.
do em qualquer outra emoção. E cada emoção envolve Artigo de fôlego sobre o papel da música na filosofia da
não somente um tipo particular de pensamento, mas Vontade de Arthur Schopenhauer. Destaque para a forma
uma reação positiva ou negativa ao conteúdo desse como o autor enreda a temática da estética com a da ética
pensamento: uma forma de prazer ou dor. O prazer ou e da ontologia, delineando a estrutura do pensamento de
desprazer com o qual um pensamento é experimenta- Schopenhauer a partir da problematização ético-estética
do pode ser mais ou menos intenso. E como os pensa- do mundo.
mentos podem ser compostos e múltiplos, possuindo Livros
conjuntamente elementos de prazer e de dor, nossas • BARBOZA, Jair. A metafísica do belo de Arthur Schopenhauer.
emoções podem ser misturadas. São Paulo: Humanitas, 2001.
[...] Quero admitir que emoções incluem sentimen- O livro trabalha a teoria estética de Arthur Schopenhauer,
tos, e uma emoção é algo que experimentamos corpo- abordando centralmente a obra A metafísica do belo (1820).
ralmente: é um sentimento incorporado. Contudo, ti- A contemplação da arte surge como único meio de superação
pos particulares de sentimentos incorporados não são do sofrimento inerente ao mundo, influenciando o fim da
nem específicos nem essenciais para uma emoção. Em modernidade e pensadores como Nietzsche, que julgou que
artigo publicado em 1978, Paul Ricoeur advertira que a existência é antes de tudo uma experiência estética.

12
8
• JANAWAY, Christopher. Schopenhauer. São Paulo: Edições O documentário trata o universo sonoro e sua importân-
Loyola, 2003. cia para a existência humana. Desde a mais bela música até
Janaway é professor da Universidade de Southhampton, o mais insuportável ruído, o som está vinculado a fenôme-
na Inglaterra, é especialista em Estética e estuda Schopen- nos essenciais da vida humana, como a produção cultural
hauer e Nietzsche. No livro, o autor faz uma breve introdução e espiritual.
à obra de Schopenhauer, tratando, por exemplo, do conceito • O poder da música. Produção de Ana Graziela Aguiar e
de Vontade e de suas relações com a Estética. Trata-se da Beatriz Abreu. tvBrasil, 2017. 58 min. Disponível em:
tradução de um volume da série The Very Short Introductions, <http://tvbrasil.ebc.com.br/caminhos-da-reportagem/
da Oxford University Press. 2017/10/o-poder-da-musica>. Acesso em: 25 out. 2019.
Videorreportagem sobre o uso da musicoterapia para
Vídeos
o tratamento de saúde mental e física. A música é apre-
• A cor do som. Direção de Vincent Hunter. Glasglow: La sentada como ferramenta que ativa a rememoração afe-
Belle Allée, 2007. 55 min. Disponível dublado em: <https:// tiva de idosos, auxiliando no desenvolvimento motor e
www.youtube.com/watch?v=mLKQcG_0zac>. Acesso em: linguístico de deficientes e possibilitando que autistas se
25 out. 2019. expressem.

Anotações

Filosofia • Módulo 6 • Manual do Professor

13
13
8
MîDULO

7 VIVER JUNTO

INTRODUÇÃO O professor pode se dedicar a preencher o quadro coletiva-


mente, em diálogo com os alunos.
A vida em sociedade traz uma série de questões para Sobre as semelhanças entre formigas/abelhas e seres hu-
a reflexão, envolvendo normas de convívio, respeito ao ou- manos, fique atento aos seguintes pontos:
tro, limites para a ação individual. Pensar os conceitos de • A cooperação é comum entre abelhas e formigas, mas é
individualidade e individualismo já é uma forma de colocar eventual entre os seres humanos (faz-se necessário que
a questão do viver junto: por individualidade, entende-se a eles entrem em acordo).
especificidade de cada indivíduo, que resulta na diversidade • A competição é bastante comum entre os seres humanos e
que torna tão atraente o viver em sociedade. O individualis- também existe entre formigas/abelhas (machos competindo
mo, por sua vez, é a tendência a viver exclusivamente para si, para fecundar rainha).
uma forma de egoísmo que torna insuportável o viver junto. • A rotina e a repetição, características essenciais de formigas/
Uma importante reflexão sobre a vida em sociedade foi abelhas, também existem entre os seres humanos, mas
feita pelos pensadores contratualistas, a partir de Thomas não apagam nossa possibilidade de criação e reinvenção,
Hobbes no século XVII, incluindo mais tarde John Locke e portanto não suprime definitivamente a liberdade.
Jean-Jacques Rousseau. Na Aula 1, propomos um início de O boxe De relance apresenta os conceitos gregos de
discussão com a comparação entre sociedades humanas e de physis e nomos, como forma de delimitar o que é do âmbito
animais (formigas e abelhas), feita inicialmente por Hobbes. da natureza e o que é do âmbito do ser humano, esclarecendo
A discussão gira em torno do conceito de lei, sua origem e que physis abarca aspectos da natureza em geral, incluindo os
necessidade. seres humanos em seus aspectos fisiológicos.
Na Aula 2, o trecho do romance de William Golding, O se- No exercício 2, ainda dialogando com os alunos – condu-
nhor das moscas, acrescenta um tema bastante caro a Hobbes, zindo as perguntas e discutindo as justificativas apresentadas –,
o medo, que acaba legitimando governos autoritários ou ape- deve-se indicar se as afirmações são verdadeiras ou falsas,
nas violentos. buscando justificativas. Na leitura das respostas, o professor
Finalmente, na Aula 3, a produção textual questiona a pode utilizar a última afirmação para introduzir a questão das
possível existência de um caráter inerente humano, bom ou leis como forma de limitar a ação dos humanos.
mau, ao que se acrescenta, na seção Entreatos, a discussão
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

sobre a necessidade da existência de um governo. Entreatos


Aqui, pede-se explicitamente o entendimento que os
OBJETIVO alunos têm de regra, incluindo sua finalidade e quem é

• O objetivo do módulo é estimular a reflexão a respeito o responsável pela sua elaboração. Observe que não se
exige a realização de pesquisas, apenas o resgate de co-
de diversas dimensões da vida em sociedade, incluindo a
nhecimentos prévios dos alunos. Os enunciados, bastante
origem, necessidade e significado das leis e do governo.
amplos, visam a fazê-los sair do imediato (por exemplo,
as regras da escola) para o universal (as leis da sociedade
Competências gerais e Temas como um todo).
Contemporâneos da BNCC
• CG1, CG2, CG6, CG9 e TC8. AULA 2

COMPREENSÃO
AULA 1 O trecho de O senhor das moscas retrata uma situação de
grande tensão no romance, um verdadeiro momento de virada
DISCUSSÃO no qual o líder racional (Ralph, assessorado pelo intelectual
A partir das informações apresentadas e levando em con- Porquinho, e escolhido por todos) perde seu poder diante
sideração o repertório dos alunos, pede-se uma comparação. da ascensão de Jack, o caçador, capaz de utilizar a força. A

14
8
legitimação de Jack é possível devido ao medo de um bicho O ponto de partida é o universo imediato dos alunos, a
que, a rigor, ninguém viu. escola: o item a pede a formulação de hipóteses sobre o que
As perguntas visam ao entendimento do texto, caracteri- aconteceria se não existissem regras na escola (criando como
zando as personagens e buscando engajar os alunos na leitura. objeto de reflexão a causa dessas regras), e o item b solicita
Dada a complexidade cênica do trecho, propomos a leitura a redação de uma “Constituição” da escola (criando como
compartilhada do texto ou mesmo a encenação do diálogo, objeto de reflexão a questão dos fins da escola). Pode ser con-
como forma de facilitar a identificação das personagens. Su- veniente estabelecer esse paralelo entre regras fundamentais
gerimos ao professor que chame a atenção da turma para da escola e Constituição.
as falas e os gestos das personagens principais. A pergunta 4 Os itens c e d propõem uma relação com as ideias de
traz uma abertura para que se façam analogias com situações Hobbes e Rousseau no que diz respeito ao caráter humano.
contemporâneas ou de passado recente e podem incluir: Na correção, o professor deve avaliar a presença das ideias
• identificação entre uso da força e criação de ditadura/sus- trabalhadas nas aulas anteriores.
pensão de liberdades e decisões tomadas coletivamente;
• identificação entre medo e criação de ditadura/suspensão Entreatos
de liberdades e decisões tomadas coletivamente; Com o fragmento de Thomas Hobbes, retomamos a com-
• discurso da segurança como fonte legitimadora do uso da paração de formigas/abelhas com seres humanos. O frag-
força; mento aborda a necessidade de um governo nas sociedades
• uso de fake news como ferramenta para gerar medo e es- humanas, surgido de um pacto entre os seres humanos: é a
tabelecer ditaduras. própria ideia de contrato entre governantes e governados, es-
sencial para a legitimação dos regimes políticos da atualidade.
Entreatos O exercício 1 visa a uma retomada de conceitos-chave
Nesta seção, o curto fragmento de John Locke faz re- para a compreensão das diferenças entre um tipo de socie-
ferência ao conceito de lei natural, que apresenta um dade e outra, e o exercício 2 solicita aos alunos que associem
caráter universal. Historicamente, o projeto iluminista – a noção de representação com a palavra que a encarna na
anunciado por Locke – de direitos universais foi o ponto esfera política: governo.
de partida da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 e da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948. SUGESTÃO DE MATERIAL DE
A reflexão sobre direitos universais deve levar em APOIO
consideração a existência de desigualdades implícitas na
sociedade, que durante muito tempo foram consideradas Texto I
“naturais”, o que legitimou a opressão. No século XVIII, em
A definição de o que é uma norma, escrita por André
meio ao aprofundamento do debate iluminista, a filósofa
Campos, faz parte de um dicionário on-line de Filosofia mo-
inglesa Mary Wollstonecraft foi pioneira na denúncia da
ral e política. Ela aborda a distinção entre normatividade e
situação do ponto de vista da relação entre os gêneros.
normalidade, dois conceitos que parecem sinônimos, mas
A seção traz um trecho de seu Reivindicação dos direitos
que implicam concepções diferentes acerca da realidade e
da mulher, no qual se faz uma crítica à educação ofereci-
seu ordenamento.
da às mulheres, que seria a origem da desigualdade que

Filosofia • Módulo 7 • Manual do Professor


denunciava. Normatividade e normalidade
A noção de norma está longe de ser exclusiva do di-
AULA 3 reito, relevando também em especial na ética, na socio-
logia, na linguística, ou nos domínios técnico-científicos.
PRODUÇÃO Em geral, desdobra-se em dois significados primordiais e
Após uma apresentação sucinta das visões de Hobbes de natureza aproximada, embora distinta: por um lado,
e Rousseau, para os quais existe uma natureza humana es- designa um sentido orientador mais ou menos imedia-
sencialmente capaz de privilegiar os próprios interesses em to da acção humana; por outro lado, designa um sentido
detrimento do bem coletivo, no primeiro caso, e de bon- descritivo de acções ou estados já postos.
dade, no segundo, propõe-se a discussão sobre a questão No seu sentido orientador da acção, a norma opera
do estabelecimento de regras como forma de possibilitar o como modelo impondo-se aos homens – apresenta-se
convívio social. então como um ideal ou paradigma cuja reprodução
15
15
8
é exigível (a norma aqui não é sinónima da ideia de tropologia social mas pode ser concebida numa intelec-
“paradigma” ou de “parâmetro”, mas sim da ideia de ção anterior à própria facticidade dos comportamentos
“exigência de reprodução de um paradigma ou parâ- normativizados. Isto significa que quaisquer tentativas
metro”). Ela afirma um valor que solicita determinados no sentido de definir a norma prescritiva como algo ne-
comportamentos ainda por cumprir, solicitação essa cessariamente em exercício social de cumprimento –
que pode ser enunciada quer deontologicamente quer inserindo a eficácia social de uma norma na própria de-
por máximas e princípios, tanto no âmbito da moral finição de norma – importam apenas para estudos so-
como da política, do direito e mesmo dos usos sociais ciológicos e antropológicos e não especificamente para
e da técnica. a moralidade, a política e o direito: as questões da vigên-
No seu sentido descritivo, a norma corresponde à cia e da validade empírica de uma norma não são con-
determinação da normalidade: ela é então estática en- dições determinativas necessárias do que uma norma é,
quanto subsequente às acções e às convicções gerais que uma vez que é possível discutir se uma dada norma está
enuncia, mas é com frequência também estatística, isto ou não em vigor e se ela é aplicada ou não. Caso con-
é, não exprime o que deve passar a ser mas ao invés o que trário, se as normas fossem apenas prescritivas quando
em geral já é observável como sendo. Nesta acepção, a aceitas e cumpridas como obrigatórias numa comuni-
norma é a percepção da maioria assinalável dos compor- dade, tendo em vista que aceitação e cumprimento são
tamentos particulares num contexto social. Tudo aquilo apenas observáveis após a obrigatoriedade das próprias
que represente um desvio a essa descrição entra então no normas, em que medida seriam elas vinculativamente
âmbito da anormalidade – a anomalia não corresponde à prescritivas no sentido de operarem para a orientação
violação de uma norma em sentido prescritivo, mas sim de acções futuras? A norma prescritiva, a qual enuncia
à ausência do comportamento descrito como maioritário a exigência de um paradigma valorativo, apresenta, ao
pela norma em sentido descritivo. Porém, na medida em invés, um conjunto de características cuja concepção
que a generalidade dos comportamentos e das convic- não parece depender necessariamente de observações
ções descritíveis no plano da “normalidade” se justifica e sociais.
encontra a sua razão de ser em paradigmas cuja repro- Tradicionalmente, parece ser essa a maneira mais
dução é tida por obrigatória, os dois sentidos de norma habitual de encarar a norma, enquanto elemento trans-
aproximam-se habitualmente ao ser erigido o conteúdo missor de imperatividade – aliás, ocorre exactamente o
da norma descritiva em paradigma exigível pela norma mesmo na duplicidade de significados da noção de lei. Ela
prescritiva. A anomalia torna-se então mediatamente constitui então uma prescrição, a afirmação de um valor
violação de uma norma, de cujo desvio se prevê a sanção positivo ausente da definição de humano, mas enquadrá-
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

da “anormalidade”. vel na sua existência, fazendo com que a valoração positi-


va do humano particular dependa da conformidade deste
É dentro deste quadro conceptual que a polissemia
a essa positividade afirmada. Desta maneira, a prescrição
da norma permite a sua aplicação a todos os domínios
não é mera afirmação de valor positivo, mas uma exigên-
onde intervém a normatividade (e, eventualmente, a san-
cia ininterrupta ao humano de direcção da sua existência
ção), mas também em todos os domínios onde intervém
para essa positividade que se afirma. A prescrição neste
a normalidade (e, eventualmente, o estigma), incluindo
sentido é então obrigatória, pois ela não prevê somente
a etologia, a etnologia, a linguística, a cortesia, e a psi-
um valor positivo a cumprir perante condições precisas,
quiatria (na qual o desvio é chamado de “patologia”). O
mas inclui também um operador de comando exigindo
que deriva daqui é não apenas a multidisciplinaridade da
ou solicitando o efectivo cumprimento desse valor, enri-
noção de norma, mas também a duplicidade de sentidos
quecendo assim uma mera avaliação proposicional com
que pode adoptar dentro de cada uma das disciplinas
as características de uma finalidade prática. É isto o que
onde intervém.
sucede na Torah hebraica, no nomos grego, na lex romana,
Características da normatividade e nas subsequentes considerações sobre a natureza da lei,
Na medida em que interessa a um mundo institu- quer em versão estoica, cristã, jurídico-romana, escolás-
cionalizado de orientação de comportamentos, a norma tica, ou moderna.
CAMPOS, André Santos. Norma. Dicionário de Filosofia moral e política, 2001.
assume um sentido primário prescritivo, uma vez que Disponível em: <www.dicionariofmp-ifilnova.pt/todos-artigos/#N>.
aí não depende de aferições empíricas próprias da an- Acesso em: 25 out. 2019.

16
8
Texto II técnicas como o treinamento em matéria esportiva ou
O conceito de natureza humana é um dos mais relevantes o ensaio nas disciplinas artísticas buscam potencializar
dos debates em Ética e Filosofia política, além de ser um dos as próprias capacidades naturais, levando-as às vezes a
mais célebres da modernidade filosófica. O artigo a seguir realizações que sem essas técnicas seriam inimagináveis.
aborda o ressurgimento do conceito em questões contempo- A mesma ideia de melhora mediante uma prática guia-
râneas a partir de um apanhado histórico. Elencamos o trecho da tem se aplicado no terreno moral, através do cultivo
em que a modificação da natureza humana é tematizada, das virtudes como hábitos. Incluso nesse terreno autores
lembrando o tema clássico do hábito como segunda natureza. como Aristóteles têm chegado a sugerir que os hábitos
A intervenção técnica do ser humano sobre a na- constituem para o ser humano uma segunda natureza.
tureza é tão antiga como o próprio ser humano. Assim Essa segunda natureza, gestada livremente por cultivo,
como a ciência é uma realidade relativamente recente, não nega nem anula a primeira, mas a respeita, a toma
a técnica é uma constante antropológica. Nossa própria muitas vezes como modelo, a orienta e a integra.
evolução biológica não se entenderia sem a técnica. De Falo aqui de técnicas e instituições assumidas e ad-
fato, pode se falar de uma sorte de coevolução biotéc- mitidas, que não despertam receios morais. Deixo de lado
nica na linha da hominização. Na época neolítica essa as tentativas utópicas de “melhorar” ao ser humano me-
intervenção humana se fez mais geral e notória com o diante seleção eugênica de qualquer gênero ou mediante
desenvolvimento da agricultura, da domesticação e cria- experimentos sociais totalitários. Dentre as intervenções
ção seletiva de animais e a fundação das primeiras urbes. aceitas moralmente de um modo quase unânime estão
Desde então não tem deixado de se intensificar a ação as de caráter terapêutico. Desde os longínquos tempos
humana sobre a natureza. A metáfora tradicional da mãe da medicina egípcia e o xamanismo, o ser humano tem
natureza, em cujo seio se acha a pólis dos humanos, tem intentado fugir da doença, paliar o sofrimento, remediar
se invertido. Hoje pensamos em termos de aldeia global as carências e a deterioração. Mediante fármacos melho-
em cujo seio ficam redutos naturais que não o são ver- ramos nosso estado de saúde, através de próteses de todo
dadeiramente, pois estão administrados e protegidos. E tipo complementamos ou corrigimos as capacidades de
a técnica, assistida pela ciência, tem estendido enorme- nossos órgãos motores ou sensoriais. Como no caso do
mente a artificialização do mundo. cultivo, no caso da terapia também se aprecia uma rela-
O próprio ser humano nunca tem estado excluído ção positiva com a ideia de natureza humana, que oferece
da intervenção técnica. Desde a antiguidade temos tra- uma pauta de normalidade. A função do médico é devol-
tado de potencializar e melhorar nossas capacidades ver à normalidade a temperatura do doente, isto é, resti-
naturais. Poderíamos enquadrar essas intervenções em tuí-la aos 37º centígrados. Os óculos corrigem a visão até
duas grandes classes: o cultivo e a terapia. O cultivo de colocá-la de novo perto do normal. O antibiótico preten-
nossas capacidades, ou, dito de outro modo, a cultura, de nos devolver a um estado de saúde normal, inclusive
tem se substanciado em diversas técnicas e instituições. os psicofármacos buscam nos tirar de um estado que se
Mediante o jogo da imitação e o exemplo, nós humanos julga como patológico e nos colocar novamente em situ-
temos tratado melhor uns aos outros, os pais têm tendi- ação de saúde. Não se entenderia em absoluto a terapia
do sempre a potencializar as capacidades e saberes dos se não fosse com referência a um estado de normalidade

Filosofia • Módulo 7 • Manual do Professor


filhos. A tradição oral, na forma de conto ou música, tem ou de saúde que entendemos ajustado à natureza psico-
moldado o cérebro de muitas gerações. As tradições mo- biológica do ser humano. A terapia não nega a natureza
rais, com maior ou menor acerto, têm buscado a melhora humana, se apoia conceitualmente nela.
do ser humano. A escola, como instituição, tem resultado Porém, ninguém nega que qualquer dos recursos
historicamente um elemento potentíssimo de promoção mencionados, seja de cultivo ou de terapia, poderiam
humana. O mesmo papel têm desempenhado outras ins- ser empregados para ir além da natureza humana, para
tituições de todo caráter, desde as políticas e legais, até as sobrepujá-la até a anular. Aristóteles (Política, VIII) se
religiosas e acadêmicas. A escritura, como técnica, acres- mostra partidário da inclusão da música e a ginástica
centa nossa memória e entendimento das coisas, nossa no currículo escolar, mas adverte contra a obsessão de
capacidade de conservação e transmissão de informação, converter as crianças em máquinas ao serviço do virtuo-
nosso acúmulo de experiência milenária, nossas possibi- sismo musical ou da excelência atlética. Entende que as
lidades de diálogo através das gerações. Na mesma linha, referidas técnicas devem se orientar ao desenvolvimento
17
17
8
harmônico de um ser humano, não à produção de uma exemplo, David criticava o negativismo contratualista que con-
espécie de monstro especializado. Isto é, carecem de sen- cebia a sociedade como um sistema de coerção, ao passo
tido essas técnicas, se desvirtuam, se não são colocadas que, na verdade, ela é um sistema positivo de instituições que
ao serviço dos fins próprios da natureza humana. visam satisfazer nossas demandas.
Do mesmo modo, a arte médica, que persegue a • NETO, Francisco; PASSOS, Isabella. Simpatia e altruísmo mo-
saúde também pode ser colocada ao serviço de fins que ral em David Hume. Intuitio, Porto Alegre, v. 12, n. 1, jan./
apontam para além da mesma. Muitas intervenções e jun. 2019. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.
tratamentos têm hoje em dia um caráter mais cosmé- br/ojs/index.php/intuitio/article/view/32091>. Acesso em:
tico do que terapêutico. As próprias drogas médicas 25 out. 2019.
podem se usar para ganhar instantes de excepcional lu- Artigo sobre o conceito de simpatia, segundo o filósofo
cidez ou prazer, ou infatigável capacidade de trabalho, David Hume. Hume criticava o conceito de egoísmo porque
para além das condições normais e saudáveis. A luta tal conceito não explicava o altruísmo: ou bem somos um ou
o outro. Para resolver essa questão, a noção de simpatia im-
contra a deterioração física e o sofrimento pode con-
plica que o ser humano não é egoísta, mas tem uma simpatia
verter-se num intento de retardar ou manipular proces-
limitada, de modo que cabe compreender como aumentar
sos de envelhecimento e morte considerados até pouco
sempre a simpatia geral na sociedade.
tempo atrás normais, que se assumiam como parte de
• RIBEIRO, Josuel. Os contratualistas em questão: Hobbes,
uma vida propriamente humana. Aqui as fronteiras são
Locke e Rousseau. Prisma Jur., São Paulo, v. 16, n. 1, 2017,
muito fluidas e nossas intuições morais começam a ser
p. 3-24. Disponível em: <https://periodicos.uninove.
menos nítidas. Não obstante, em geral julgamos como
br/index.php?journal=prisma&page=article&op=
excessivas aquelas práticas que nos desumanizam. Sob view&path%5B%5D=6863>. Acesso em: 25 out. 2019.
esse critério, tendemos a rejeitar como abusivas certas O artigo sintetiza as teorias dos grandes pensadores con-
práticas, como por exemplo, a especialização de uma tratualistas: Hobbes, Locke e Rousseau. Josuel Ribeiro trabalha
criança muito pequena em alguma disciplina artística as características centrais de cada autor, assim como suas
ou atlética, o doping ou o encarniçamento terapêutico. distinções específicas, em linguagem simples e didática.
Mesmo que seja de modo difuso, empregamos como cri- • SILVA, Gerardo. Sobre o “medo” e a “esperança” em Baruch
tério o da natureza humana e seu harmônico e normal de Espinosa. Lugar Comum, n. 18, p 21-24. Disponível em:
desenvolvimento. <http://uninomade.net/lugarcomum/18/>. Acesso em: 25
Porém, quando as técnicas de intervenção se pro- out. 2019.
põem diretamente a superação da natureza humana, Gerardo Silva discorre nesse breve artigo sobre como Espi-
quando empreendemos a marcha em direção ao transu- nosa criticou o uso dos sentimentos de medo e de esperança
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

manismo, então os próprios critérios de avaliação ficam como forma de gestão política. Tais sentimentos expressam
em suspenso e nos custa trabalho dar sentido a termos paixões tristes – em ambos os casos somos imobilizados afe-
valorativos como enhancement. tivamente e assim perdemos nossa força política.
MARCOS, Alfredo. Filosofia da natureza humana. INTERthesis, Florianópolis, v. 10, n. 1, 2013.
p. 379-382. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/ Filmes
view/1807-1384.2013v10n1p369>. Acesso em: 25 out. 2019.
• Dogville. Direção de Lars von Trier. Estados Unidos: 2003.
177 min.
O filme narra a chegada de Grace no vilarejo de Dogville,
SUGESTÃO PARA CONSULTA que diz estar fugindo de bandidos. Ela é aceita com dificuldade
pela comunidade local e passa a viver na vila ao custo de tra-
Artigos balhos diversos, até o momento em que a polícia surge e fixa
• ALMEIDA, Gabriel. David Hume contra os contratualistas um cartaz de “procura-se” com designação a Grace. A partir de
de seu tempo. Kriterion, Belo Horizonte, n. 115, jun. 2007. então ela passa a sofrer abusos dos moradores, que manifestam
p. 67-87. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ a capacidade que o ser humano tem de fazer mal ao próximo e
arttext&pid=S0100-512X2007000100005&lng=en&nrm= as consequências funestas que decorrem dessas ações.
iso>. Acesso em: 25 out. 2019. • Hotel Ruanda. Direção de Terry George. Estados Unidos:
O filósofo escocês David Hume formulou um complexo 2004. 121 min.
pensamento político que se opõe ao contratualismo em seus O filme conta a história de Paul Rusesabagina, gerente de
princípios mais gerais. O artigo permite entender como, por um hotel em Kigali, capital de Ruanda, que se vê imerso no

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8
conflito entre as etnias hutu e tutsi a ponto de o hotel se tornar • LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil. São Paulo:
um abrigo de refugiados e Paul assumir o compromisso de Nova Cultural, 1991. p. 213-313. (Os Pensadores).
negociar a sobrevivência de todos. O filme expõe o conflito da No caso de Locke, o volume de “Os Pensadores” inclui o
posição de Paul, que age em prol do coletivo mesmo quando Segundo Tratado sobre o Governo, em que chamam a atenção
sua própria existência se coloca em risco. os capítulos VIII (“Do começo das sociedades políticas”, em
que se aborda a questão do consentimento, §96), IX (“Dos fins
Livros
da Sociedade Política e do Governo”, que trata dos objetivos
• HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
do viver em sociedade, §134) e também o capítulo V (“Da
(Os Pensadores).
propriedade”, de grande importância na argumentação de
No volume da coleção “Os Pensadores” destinado a
Locke, ver §27 e §28).
Hobbes, chamam a atenção os capítulos XIII (no qual se exa-
mina a natureza dos seres humanos, identificando-se o estado • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a desigualdade.
de guerra de todos contra todos, existente antes da criação São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 233-310. (Os Pensadores).
dos governos), XXI (que aborda as relações entre medo e li- No volume dedicado a Rousseau, está incluído o “Discurso
berdade) e, sobretudo, o capítulo XVII (intitulado “Das Causas, sobre a desigualdade”, que inclui a visão do filósofo francês
Geração e Definição de um Estado”), em que são abordados sobre o estado de natureza, em que imperava a bondade
temas centrais, incluindo a necessidade e os objetivos da cria- humana, bem como alguma argumentação contra a visão de
ção de um governo. Thomas Hobbes.

Anotações

Filosofia • Módulo 7 • Manual do Professor

19
19
8
MîDULO

8 O QUE SÃO VIRTUDES?

INTRODUÇÃO
Competências gerais e Temas
A modernidade filosófica consagrou duas grandes linhas de Contemporâneos da BNCC
abordagem a respeito da ética: a ética dos deveres (ou deon-
tologia) e a ética consequencialista (que tem no utilitarismo
• CG4, CG8 e CG10.
sua principal escola). A primeira abordagem trata das questões
éticas a partir de normas geralmente universais e derivadas da
AULA 1
razão, enquanto a segunda trata de cálculos de consequências
possíveis tendo em vista noções de bem geral. Nessas tradi-
ções, que se iniciaram por volta do século XVIII, pouco se fala
DISCUSSÃO
a respeito de virtudes ou valores morais de indivíduos, como a Nesta aula, apresentamos o conceito de virtude especial-
coragem ou a honestidade. mente por meio da exemplificação e da definição, partindo
Normalmente, a abordagem moderna sobre a ética é com- para reflexões a respeito da importância das virtudes para a
parada com noções éticas da Filosofia antiga, especialmente felicidade.
com a ética aristotélica, que tem como características a defini- A ideia do exercício 1 é relacionar um leque de virtudes a
ção do meio-termo como espécie de virtude entre as virtudes, suas definições. Ao realizá-lo, espera-se que os alunos inter-
bem como a relação da ética com uma finalidade específica: nalizem, de fato, o conceito de virtude. É importante lembrar
a busca pela felicidade ou, melhor dizendo, eudaimonia, que aqui que nomear e descrever são essenciais no processo de
pode ser entendida como a perfeição do espírito. A importância autoconhecimento e de reflexão ética. Se desejar, o professor
das virtudes também seguiu sendo acentuada por pensadores pode realizar o início da atividade com as duplas de alunos,
de períodos posteriores ao dos gregos antigos, como os estoicos escolhendo mais virtudes além das já indicadas para comentar.
e os filósofos medievais. O exercício 2 promove uma experiência de autoconheci-
Contudo, a tradição da ética das virtudes vem sendo retoma- mento. O objetivo da atividade é que, a partir do quadro de
da, de forma ressignificada, no debate contemporâneo. Autores virtudes, os alunos apliquem a compreensão sobre elas às suas
como os franceses André Comte-Sponville (1952-) e Emmanuel próprias vidas. É importante enfatizar que não há respostas
Levinas (1906-1995), em diferente medida, reestabeleceram a certas ao exercício, e espera-se bastante variedade em sua
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

importância de aspectos da vida do indivíduo e da sociedade que resolução. A abordagem da ética das virtudes é diferente da
indicam a possibilidade de retomar o debate sobre as virtudes. ética dos deveres, em que todos os indivíduos lidam com um
Nesse sentido, este módulo busca trazer elementos que mesmo quadro de valores. Sendo assim, é preciso aceitar a
permitam aos alunos ter contato com algumas virtudes impor- diversidade, indicando aos alunos que as respostas revelam
tantes segundo essas concepções, bem como refletir a respei- muito sobre quem somos e quem gostaríamos de ser.
to delas. Na Aula 1, fazemos uma apresentação do conceito No exercício 3, partimos da vinculação entre virtude e fe-
de virtude com exemplos. Na Aula 2, analisamos virtudes e o licidade. A ética aristotélica é teleológica, ou seja, vinculada a
exemplo de pessoas virtuosas, a partir da história de jovens finalidades. E, para Aristóteles, o fim da ética é a felicidade ou
que se inspiraram em Marielle Franco. Na Aula 3, pede-se aos a eudaimonia, que pode ser entendida como a busca por um
alunos que realizem uma atividade de escrita para o “eu” futu- aperfeiçoamento espiritual. É interessante tratar disso, pois,
ro, articulada com a importância de tratar de virtudes quando na ética das virtudes, a busca pelo bem não aparece como
pensamos em quem somos e no que queremos ser. algo imposto como dever ou lei moral, e sim como parte do
projeto de vida dos indivíduos.
OBJETIVO Para tratar da questão, partimos de um relato de Kurt
• A partir da ética das virtudes, o objetivo é estimular a Vonnegut de uma conversa com seus filhos sobre o sentido
da vida. Acreditamos que, assim, a reflexão sobre a ética pode
reflexão dos alunos sobre qualidades morais importantes,
se aproximar dos interesses dos alunos, além de evitar o tom
de modo que percebam a importância das virtudes e sua
de “lição de moral”, pois as virtudes são vistas como parte da
possível contribuição para uma vida mais feliz.
nossa satisfação e de nossas buscas.

20
8
A opção por mencionar a relação entre a discussão sobre necessidade de reforço, sugerimos que o professor faça uma
o sentido da vida e Aristóteles – que será objeto da seção leitura conjunta do texto, comentando trechos que tratam de
Entreatos – fica a cargo do professor, a depender do seu co- virtudes. A ideia é inserir, no projeto de vida e na forma como
nhecimento da turma e dos seus objetivos pedagógicos. os alunos pensam o futuro, a preocupação com o desenvolvi-
mento de virtudes de cada um.
Entreatos
Mais uma vez, salientamos que, na ética das virtudes,
Embora o objetivo do módulo não seja apresentar autores a ideia do desenvolvimento próprio, autônomo e autêntico
e conceitos, optamos por fornecer a leitura de um texto de tem um papel central. Por isso, deve-se tratar de um esforço
apresentação sobre a ética aristotélica, por se tratar de uma individual, aberto para uma ampla possibilidade de respostas.
referência básica de repertório. Nas atividades nos voltamos Alguns alunos podem salientar a necessidade de autocontrole,
mais para a reflexão sobre os conceitos do que para a apreen- enquanto outros, o exercício da generosidade. É interessante
são do conteúdo histórico. estimular e acolher essa diversidade.
Oferecemos instruções para a carta, apesar do seu caráter
AULA 2 livre e individual. A natureza do exercício abre margem para
muitas possibilidades, por exemplo, refletir sobre qual profis-
COMPREENSÃO são seguir. Por isso, enfatizamos a necessidade de concentrar
Segundo Aristóteles, uma das principais formas de desen- as atenções no eixo do módulo, ou seja, na reflexão sobre as
volver as virtudes em um indivíduo é por meio da exposição virtudes.
a exemplos de pessoas virtuosas. Nesta aula, tratamos do
Entreatos
caso de um grupo de jovens que se inspirou na história da
vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. A última seção trata de um problema contemporâneo mui-
Como se trata de um tema que mobilizou paixões políticas tas vezes presente na vida dos adolescentes: o uso compulsivo
em um contexto de forte polarização no país, recomenda-se da tecnologia. Essa realidade é um bom ponto de partida para
cuidado na abordagem do assunto, evidenciando, por exem- sintetizar elementos vistos no módulo, como a importância
plo, aspectos ligados a qualidades pessoais de Marielle, o que das virtudes para o indivíduo (por exemplo, o autocontrole)
não necessariamente implica concordar com seus posiciona- e a busca pelo equilíbrio ou pela justa medida.
mentos políticos.
O exercício 1 ajuda a orientar a leitura para a identificação SUGESTÃO DE MATERIAL DE
das ações de Marielle e das virtudes associadas a elas.
Os exercícios 2 e 3 conduzem a uma reflexão geral sobre a APOIO
importância de pessoas exemplares no que diz respeito à bus-
ca de uma vida virtuosa. Caso considere adequado ao espaço Texto I
e ao tempo disponíveis, sugerimos ao professor que realize Este volume dos Escritos de Filosofia (1986), de Henrique
esse último em círculo, dando oportunidade aos alunos para C. de Lima Vaz, é uma das melhores introduções de Filosofia
que compartilhem histórias sobre pessoas que considerem ética escrita em língua portuguesa. Nele temos uma retomada
exemplares. Recomenda-se que os alunos sejam orientados de toda a história da Filosofia ética do pensamento ocidental,
a falar de modo objetivo, treinando a capacidade de síntese expondo os pontos centrais de cada autor. No trecho a seguir,
e permitindo que todos sejam escutados. Lima Vaz faz uma breve introdução da ética antiga, preparando

Filosofia • Módulo 8 • Manual do Professor


o terreno para abordar as éticas de Platão, Aristóteles e os
Entreatos helenistas.
A atividade de produção na Aula 3 será de escrita de uma A Ética, já o sabemos, nasceu na Grécia. A conjuntura
carta para o “eu” futuro de cada um. Aqui, nesta seção, apre- histórica que deu origem a esse novo tipo de saber tendo
sentamos um exemplo de carta desse tipo que servirá de por objeto a praxis humana e edificando-se no terreno da
preparação para a elaboração individual. Razão demonstrativa foi descrita quando estudamos a
passagem do saber ético à Ética na crise da cultura gre-
AULA 3 ga dos séculos V e IV a.C. Dentro do complexo conjunto
de fatores que concorreram para que esse tipo de respos-
PRODUÇÃO ta, fadado a marcar de modo aparentemente definitivo
Uma boa maneira de começar a Aula 3 é comentando a a civilização do Ocidente, fosse oferecido ao desafio de
seção Entreatos anterior. Caso haja tempo disponível ou a encontrar uma nova fundamentação ao ethos em crise,

21
21
8
assumem importância decisiva certas caraterísticas ori- ser efêmero e falível, o homem grego tinha diante de si
ginais do próprio ethos arcaico grego e do saber com que como metron e padrão um conjunto de atributos e fins
era transmitido. que mediam a qualidade de excelência da praxis e dese-
Não obstante a intensidade do sentimento religio- nhavam o perfil do “varão bom” (kaloskagathos) segundo
so dos gregos e da onipresença dos deuses e do divino o ideal ético-político da tradição. O primeiro desses fins,
envolvendo todos os aspectos da vida dos indivíduos do qual procedia justamente o predicado fundamental
e das cidades, a religião grega não se apresentava for- do agir e do sujeito éticos, era o Bem (to agathon), cuja
malmente como promulgadora de leis e mandamentos causalidade final, exercendo-se sobre o agir, conferia
morais como, por exemplo, a religião hebraica, não se ao sujeito a qualidade ética fundamental do “ser bom”
constituindo portanto como fonte primeira e instância (ho agathos). Toda a Ética antiga será uma ética do Bem
última reguladora do ethos. Essa distância entre cren- e sobre essa categoria, diversamente interpretada, se
ças e costumes permitiu, sem dúvida, que as formas construirão seus grandes sistemas. Nos fins do século V
da nova razão científica, ao se ocupar dos problemas o termo agathon, depois de percorrer uma ampla gama
antropológicos, estendessem sem dificuldade ao domí- de significações, designando sempre alguma forma de
nio do ethos seus procedimentos analíticos e críticos. excelência, fixa-se predominantemente em sua signifi-
Trata-se aqui sobretudo da Lógica, da Retórica e, final- cação ética com a qual será definitivamente consagrado
mente, da Filosofia. As origens da Ética como ciência por Platão.
do ethos estão, pois, ligadas a esse relativo espaço de A intencionalidade profunda do agir orientado para o
independência ou de autarqueia dentro do qual o ho- Bem implica justamente a autarqueia do sujeito ético, co-
mem grego, desde sua primeira aparição nos poemas locado em face da imprescritível tarefa de realizar o Bem
homéricos, se vê confrontado ao mesmo tempo com na própria vida, como tarefa que só a ele pertence dentro
os deuses e seus desígnios, personificados no Destino do âmbito de “cumprir o que é seu” (ta eautou prattein).
(moira) inviolável, com o cego acontecer do curso da Na mais primitiva trama conceptual do saber ético dos
Natureza (physis) que o ameaça com a imprevisibi- gregos delineia-se, a partir dessa preeminência do Bem, a
lidade do acaso (tyche), com a própria fragilidade de aporia que irá estar presente em todo o desenvolvimento
seus propósitos submetidos à inconstância dos dese- da Ética antiga: por um lado a realização do Bem, sendo
jos e das paixões e, finalmente, com os costumes e as tarefa do homem, é, antes de tudo, obra de sua faculdade
leis (nomoi) da comunidade que envolvem totalmente específica, a razão (logos). O homem bom há de ser o ho-
sua vida do nascimento à morte. Podemos assim com- mem sábio. [...]
preender o significado de um dos primeiros preceitos Essas quatro categorias – Bem ou Fim, Virtude, Lei,
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

do saber ético dos gregos, expresso no “conhece-te a Justiça – constituem a estrutura conceptual básica da
ti mesmo” (gnothi sauton) com que Apolo recebia os Ética antiga que os grandes sistemas organizarão de
devotos no portal do seu templo em Delfos e que lhes acordo com as experiências éticas fundamentais que
recordava a distância que separa os frágeis mortais estão em sua origem. Essas experiências dizem respei-
dos deuses imortais. Na consciência dessa distância o to, afinal, à forma primeira e determinante de “vida
homem se via entregue a si mesmo, posto diante da no bem” ou seja, da vida plenamente realizada ou feliz
necessidade de escolher seu caminho, tendo a guiá-lo (eudaimonia, vita beata) para o ser humano, vida que
apenas a luz do saber ético que a tradição do ethos lhe procede de uma reta concepção do próprio bem como
confiava. Fazer proceder essa luz do foco da Razão de- Bem supremo e Fim último. A Ética antiga terá, por con-
monstrativa, eis uma das tarefas fundamentais que a seguinte, em todos os seus grandes modelos, uma feição
Ética antiga se propõe desde Sócrates, fazendo do to- eudaimonista e teleológica. Podemos dizer que esses tra-
pos do “conhece-te a ti mesmo’’, transposto ao plano de ços distintivos, juntamente com as grandes categorias
uma inquisição racional à maneira socrática, seu tema que os compõem, constituem o núcleo permanente da
constante, no qual é permitido ver uma primeira figura continuidade histórica da Ética ocidental. Esse núcleo,
da “consciência moral”. por sua vez, pressupõe, de um lado, a identidade da
No entanto, o “conhece-te a ti mesmo” não era ape- natureza humana na variedade das suas situações, in-
nas uma injunção formal, a modo de um imperativo terrogações e problemas nas vicissitudes dos tempos e,
categórico. Na experiência de sua frágil condição de de outro, mostra a intencionalidade profunda do agir

22
8
humano voltada constitutivamente para o horizonte nificar, como racionalidade prática ou sabedoria prática.
transcendente do Bem. Adotemos esta última. Por sabedoria prática Aristóteles
LIMA VAZ, Henrique. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética filosófica 1. entendia: a capacidade de exercer de maneira excelente a
São Paulo: Loyola, 1999, p. 85-91.
parte calculadora ou opinativa da razão, ou seja, a virtude
responsável por “dirigir corretamente a vida do Homem,
Texto II
isto é, em saber deliberar sobre o que é bem ou mal para
Visto a relevância da ética aristotélica das virtudes para a o Homem”.
cultura ocidental, o trecho a seguir delineia brevemente uma
E o que seria o bem para o Homem? Trata-se, com
introdução dessa ética e a influência contemporânea do pen-
efeito, do que é escolhido e praticado segundo a reta ra-
samento ético aristotélico. Para além de polêmicas e críticas,
zão [...]. Porém surge nova pergunta: o que é a reta razão?
a riqueza do pensamento ético de Aristóteles reside em ter
delimitado o Bem como o horizonte comum para o qual toda Esse conceito é elucidado em relação com a ideia de [...]
ação humana se direciona. justo meio entre extremos. E as virtudes são precisamente
Ficou célebre a distinção aristotélica entre as ciências o justo meio entre os extremos, que é conhecido, deter-
teoréticas, as ciências práticas e as ciências poiéticas. Evi- minado e procurado pela reta razão. Não se trata, é rele-
dentemente, a Ética (e a Política) está localizada naquela vante sublinhar, de um justo meio como que medíocre,
segunda ordem do saber e isso significa que a mesma se “mediano” no sentido fraco e pejorativo do termo, mas de
ocupa com os fins das atividades práticas, com a conduta um justo meio que em tudo supera seus extremos (o ex-
do Homem. cesso e o vício).
Historicamente, a ética de Aristóteles – e daqueles Seguramente é relevante destacar que Aristóteles
que pensaram coisas parecidas no conteúdo ou no mé- distinguiu dois tipos de racionalidade prática, posto que
todo – ficou conhecida como “eudemonista”, pois um dos são normalmente confundidas pelos filósofos contem-
eixos desta ciência prática é a Felicidade [...]. Mas o que porâneos. O primeiro é a supramencionada ϕρονησις; o
seria essa “Felicidade”? A resposta, como é de se supor, segundo tipo de racionalidade prática, que é a verdadeira
não é simples! Em linhas gerais, assim convém proceder – “filosofia das coisas humanas”, trata-se da ciência política,
junto com nosso filósofo – para se chegar ao referido con- Berti observa “que consiste na capacidade de exercer bem
ceito: toda atividade, toda arte e toda conduta existe em a parte científica, isto é, cognitiva, da razão, mesmo com
função de um fim, que é definido como um Bem. Existem, um objetivo prático”, com o fim de definir o bem para o
contudo, fins relativos (que são desejados – ou persegui- Homem, em determinar qual é a sua felicidade para al-
dos – em função de um outro fim ulterior), e um fim últi- cançá-la pela práxis.[...]
mo e supremo (que é também o Bem Supremo), pois se os Comecemos com uma pergunta: a que se deve a pre-
fins relativos fossem infinitos, os conceitos de bem e fim sença de Aristóteles no debate moral atual? Com a de-
seriam esvaziados de seu conteúdo, efetivamente destru- vida má vontade poderíamos ignorar a este fato, alegar
ídos, afinal, a ideia mesma de fim implica em um termo. que esta é uma pergunta sem sentido ou alegar que os
Ora, é a tal Fim Supremo que Aristóteles identifica a ideia defensores de uma tal coisa (a presença de Aristóteles)
de Felicidade. Mas isto pode não esclarecer devidamente sejam banhados pela contemporaneidade para se cura-
as coisas, afinal, se a felicidade é o fim supremo, que fim é rem deste “saudosismo” (?) estéril. Mas, se formos toma-

Filosofia • Módulo 8 • Manual do Professor


esse? Aristóteles é taxativo: trata-se da excelência [...], ou dos pela devida capacidade de nos abrirmos às diferentes
seja, da realização plena e perfeita da função própria do possibilidades “filosóficas” de abordar um assunto ou se
Homem, que é a razão (pois a vida e a sensação nós com- tivermos a humildade de reconhecer que algo falta às éti-
partilhamos com as plantas e os animais; apenas a razão cas contemporâneas, então veremos Aristóteles – e não
é tipicamente humana). apenas ele – ressurgir com toda força.
Dentre as virtudes dianoéticas (ou da razão), é inte- E o que seria este “algo” que falta nas éticas atuais?
ressante destacar a ϕρονησις [...], de tradução difícil: os Um aristotélico ficaria tentado a dizer: “falta todo o siste-
latinos diziam prudentia (mas hoje a ideia de prudência ma aristotélico!”... mas isso não ajudaria em muita coisa
está tão longe daquela dos clássicos que não convém e pecaríamos pela falta de humildade que requeríamos
usá-la, embora alguns o façam); atualmente costuma-se há pouco. Comecemos de maneira simples: em primeiro
traduzir por sabedoria ou por expressões que revelam lugar, aquilo do que carecem as éticas de hoje é de uma
parcialmente o que a palavra originalmente queria sig- teoria das virtudes. E por quê? Não seria mais eficaz (pos-
23
23
8
to que urge) primeiro assegurar a ordem social e a convi- tradição de pensamento à ética dos deveres ou deontologia
vência pacífica entre os povos e as pessoas com algumas (como a ética kantiana com seus imperativos categóricos).
regras mínimas que todos pudessem acolher a despeito A seguir, retoma a ética aristotélica e apresenta relevantes
dos diferentes ideais de bem e finalidade para a vida que autores contemporâneos que deram uma nova abordagem a
possam ter? essa tradição, como Comte-Sponville e Levinas.
Temos aí um problema grave, no sentido rigoroso do • MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. São Paulo: Edusc,
termo, e certamente não podemos resolvê-lo de forma 2001.
breve, simples e unilateral. Mas procuremos fazê-lo com Alasdair MacIntyre é um filósofo contemporâneo que de-
uma sugestão inicial: se se prescinde da noção de Bem, fende a atualização da ética das virtudes de Aristóteles como
não é possível justificar teoricamente a uma prática cujo forma de superação da crise moral atual. O livro é sua obra
objetivo é garantir a ordem social e os problemas referen- maior, em que o autor delimita o que compreende como uma
tes à justiça. Evidentemente as éticas contemporâneas ética baseada na virtude e faz críticas às morais contemporâ-
procuraram (e procuram) realizá-lo, e com inquestioná- neas, como o emotivismo ou o relativismo.
vel competência. Ocorre que uma ação destituída de uma • MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética: de Platão a
finalidade (que é o Bem), ou é uma ação vazia e sem con- Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
teúdo, isto é, irracional, ou é um resultado de coação. E O livro de Danilo Marcondes é um excelente compilado de
é diante deste dilema que invariavelmente encontram-se textos filosóficos sobre ética, desde os clássicos antigos, como
as éticas contemporâneas. O mal-estar que domina o Ho- Aristóteles, até os contemporâneos, como Freud e Foucault.
A antologia conta ainda com uma introdução de cada filósofo
mem dos nossos tristes dias é decorrência de uma vida
e um comentário sobre o trecho escolhido do pensador es-
sem finalidades, de um absurdo “ir vivendo” sem por quês
tudado. Apesar do rigor, a linguagem é simples e pode muito
nem para quê...! Em função disso que nenhuma ética será
bem ser trabalhado com o público jovem.
bem-sucedida se não oferecer fins e valores à existência
• WILLIAMS, Bernard. Moral: uma introdução à ética. São
humana e daí emerge a atualidade e a importância da
Paulo: Martins Fontes, 2005.
ética aristotélica, que foi exemplar nesse projeto e, se a
Essa introdução de Bernard Williams apresenta as temá-
reabilitarmos devidamente, poderá continuar a ser um
ticas mais relevantes da Filosofia moral ocidental a partir de
modelo razoável.
uma problematização consistente e contemporânea. Nela te-
COVAL, Fabiano. A atualidade da ética de Aristóteles e as éticas da atualidade: esboço de um
confronto. Revista de Filosofia – Aurora, Curitiba, v. 15 n. 16, jan./jun. 2003. p. 76-77. Disponível mos um apanhado do pensamento histórico, com referências
em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/aurora/article/view/994>. Acesso em: 25 out. 2019. a grandes pensadores morais, mas também a explicitação de
temas como “O que é o bem?” e “Para que agir moralmente?”.
Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano • Manual do Professor

Vídeo
SUGESTÃO PARA CONSULTA • Ética. Apresentação de Renato Janine. Canal Futura. 24 min.
Disponível com legenda em: <www.youtube.com/watch?
Livros v=ZmfJOngaLJM>. Acesso em: 25 out. 2019.
• HOOFT, Stan van. Ética da virtude. Petrópolis: Vozes, 2013. A série televisiva trata da ética a partir do contexto coti-
Nesta obra, o professor Stan van Hooft, da universidade diano brasileiro. Ela conta ao todo com doze episódios, dos
Deakin, na Austrália, faz um panorama introdutório sobre quais metade aborda dilemas éticos e metade trata da questão
a ética das virtudes. Primeiramente, o autor compara essa da liberdade.

Anotações

24
8
FILOSOFIA

6
FELIPE LEAL ALVES XAVIER é bacharel
em Comunicação (Jornalismo) pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA) e em Filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP) e mestre em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Atua como professor
de Filosofia e Redação para o Ensino Médio e
Pré-vestibular em São Paulo. É autor de material didático
para Ensino Médio e Pré-vestibular nas áreas de Filosofia,
Português e Aprendizagem Socioemocional.

GIANPAOLO DORIGO é bacharel e


licenciado em História pela Universidade de São Paulo
(USP) e mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC/SP). É professor e autor de obras didáticas
em Ensino Médio e Pré-vestibular de História e Filosofia
e atua como Coordenador Pedagógico de curso
Pré-vestibular em São Paulo.

MARISA DE OLIVEIRA é bacharela


em Letras Clássicas e mestra em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP). Professora de Língua
Portuguesa e Redação na rede privada de ensino, atua
também como editora de textos e tradutora. É autora
de material de Práticas de Leitura e Escrita para os anos
finais do Ensino Fundamental.
Direção Presidência: Mario Ghio Júnior
Direção de Conteúdo e Operações: Wilson Troque
Direção executiva: Irina Bullara Martins Lachowski
Direção editorial: Luiz Tonolli e Lidiane Vivaldini Olo
Gestão de projeto editorial: Rodolfo Marinho
Coordenação pedagógica: Débora Oliveira
Gestão e coordenação de área: Flavio Matuguma,
e Adriana Gabriel Cerello
Edição: Elena Judensnaider Knijnik
Planejamento e controle de produção: Patricia Eiras,
Juliana Batista e Daniela Carvalho
Revisão: Hélia de Jesus Gonsaga (ger.), Letícia Pieroni (coord.),
Aline Cristina Vieira, Ana Curci, Cesar G. Sacramento,
Danielle Modesto, Lilian M. Kumai, Marília Lima, Maura Loria,
Paula Rubia Baltazar, Raquel A. Taveira, Rita de Cássia C. Queiroz,
Shirley Figueiredo Ayres e Tayra Alfonso;
Amanda T. Silva e Bárbara de M. Genereze (estagiárias)
Arte: André Gomes Vitale (ger.), Catherine Saori Ishihara (coord.)
e Fernando Afonso do Carmo (editor de arte)
Diagramação: Fernando Afonso do Carmo
Iconografia e tratamento de imagem: Sílvio Kligin (ger.),
Denise Durand Kremer (coord.), Thaisi Lima (pesquisa iconográfica) e
Fernanda Crevin (tratamento)
Licenciamento de conteúdos de terceiros:
Roberta Bento (ger.), Jenis Oh (coord.), Liliane Rodrigues, Flávia Zambon
e Raísa Maris Reina (analistas de licenciamento)
Ilustrações: Rafael Urnhani
Design: Gláucia Correa Koller (ger.), Erik Yukio Taketa (proj. gráfico e capa),
Tatiane Porusselli (assist. arte)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Dorigo, Gianpaolo
Ensino fundamental, anos finais : 6º ano : filosofia :
caderno 2 / Gianpaolo Dorigo, Felipe Leal, Marisa de
Oliveira. - 1. ed. - São Paulo : SOMOS Sistemas de Ensino,
2020.

ISBN: 978-85-468-2004-7 (aluno)


ISBN: 978-85-468-2005-4 (professor)

1. Filosofia (Ensino Fundamental). I. Leal, Felipe.


II. Oliveira, Marisa de. III. Título.

2019-0307 CDD: 107

Julia do Nascimento – Bibliotecária – CRB-8/010142

2020
ISBN 978 85 468 2004-7 (AL)
Código da obra 648051
1ª edição
1ª impressão

Impressão e acabamento

Uma publicação
APRESENTAÇÃO
Caro estudante,
Você sabe o que é filosofia? A palavra, de origem grega, significa, entre
outras coisas, “amor à sabedoria”. Em outras palavras, poderíamos defini-la como
a prática de buscar e cultivar o conhecimento. E essa prática não é exclusiva dos
filósofos: qualquer pessoa pode se dedicar à filosofia ou a “fazer” filosofia.
Se você observar uma criança pequena, perceberá que a curiosidade infantil
é quase infinita. Isso porque, mais ou menos na época em que começam a
andar, as crianças se interessam em ver tudo, pegar tudo, experimentar tudo.
Sabe-se que as experiências nesses primeiros anos são muito importantes
e a aprendizagem ocorre de maneira excepcionalmente rápida: as crianças
pequenas estão aprendendo a lidar com noções básicas – como espaço e tempo
– que serão essenciais para a vida delas. Nessa fase, tudo provoca surpresa e
admiração.
Com o tempo, conforme crescemos, nos acostumamos com as coisas que
nos cercam e elas deixam de nos surpreender. Curiosamente, justo na época
em que começamos a aprender a fazer perguntas sobre as coisas, elas não nos
estimulam mais como antes. Ficamos mais interessados em sair para passear,
assistir seriados, jogar futebol ou videogame, comer pratos saborosos ou até
fazer lição de casa. Por mais que essas pequenas coisas do cotidiano tenham
um grande potencial de abertura para reflexão, muitas vezes este não é
aproveitado: apenas usufruímos das coisas e procuramos outras.
Quando voltamos a nos admirar com as coisas, mesmo as mais simples, é
que começamos a fazer filosofia. Ou seja, quando começamos a questionar
aquelas coisas que nos acostumamos a aceitar sem perguntar, damos início ao
“filosofar”. Por exemplo, existe algo mais admirável do que estarmos vivos? Por
quê, então, estamos vivos? Para quê?
Ao longo das aulas, vamos fazer muitas perguntas, às vezes mais simples, às
vezes mais complexas. Esperamos que elas não originem apenas respostas, mas
também outras perguntas, que você mesmo poderá elaborar. Se isso acontecer,
você estará começando a fazer filosofia.
Bons pensamentos!

Felipe, Gian e Marisa


CONHEÇA SEU LIVRO

Abertura do módulo
Apresenta o tema do
módulo com uma imagem
e um breve comentário que
trazem questionamentos
introdutórios. Discussão
Este é o primeiro
contato de fato com o tema
do módulo, que pode ser
despertado com imagens,
atividades ou textos.

Entreatos
Esta seção ocorre após
cada aula e traz exercícios
diversos para serem feitos
fora da sala de aula, que
estimulam a reflexão
filosófica e aprofundam e
ampliam o conhecimento
sobre o tema.
Compreensão
Proposta de leitura e
entendimento de textos
ou imagens que explora
um problema filosófico
relacionado ao tema do
módulo.

De relance
Aqui você encontra
contextos históricos,
curiosidades ou informações
adicionais que apresentam
um outro olhar para o tema
trabalhado no módulo.
Produção
Para encerrar cada
módulo, é proposta uma
produção textual ou
artística.

Biografia
Este boxe contém
informações importantes
a respeito de alguma
personalidade citada.
Indicação
Aqui você encontra
dicas que misturam estudo
e lazer. São livros, filmes,
sites ou reportagens
que podem ajudar na
compreensão do conteúdo.
Glossário
Quando o texto
apresentar uma palavra
ou expressão que não faz Filosofia • Apresentação

parte do seu cotidiano,


você encontrará o
significado dela em
um boxe próximo ao
termo para facilitar a
compreensão do conteúdo.

5
SUMÁRIO 5 MATEMÁTICA E RAZÃO ...................................................................................................... P. 7
DISCUSSÃO P. 8

MÓDULO
Entreatos P. 10
COMPREENSÃO P. 12
Entreatos P. 14
PRODUÇÃO P. 16
Entreatos P. 17

6 MÚSICA E PENSAMENTO ................................................................................................ P. 21


DISCUSSÃO P. 22
MÓDULO

Entreatos P. 24
COMPREENSÃO P. 25
Entreatos P. 28
PRODUÇÃO P. 30
Entreatos P. 32

7 VIVER JUNTO.............................................................................................................................. P. 35
DISCUSSÃO P. 36
MÓDULO

Entreatos P. 38
COMPREENSÃO P. 39
Entreatos P. 42
PRODUÇÃO P. 44
Entreatos P. 46

8 O QUE SÃO VIRTUDES? ...................................................................................................... P. 49


DISCUSSÃO P. 50
MÓDULO

Entreatos P. 52
COMPREENSÃO P. 54
Entreatos P. 56
PRODUÇÃO P. 57
Entreatos P. 59
MÓDULO

5
MATEMÁTICA
E RAZÃO

Bridgeman Images/Easypix Brasil/Casa de Maur’cio, Haia, Holanda.

A obra de Johannes
Vermeer apresenta a
chamada proporção áurea,
uma medida matemática
representada pela letra
grega “phi”. A proporção
áurea é utilizada nas artes
visuais e na Arquitetura
como um padrão de boa
proporção e harmonia, ou
seja, como um parâmetro
com as dimensões mais
belas e harmônicas
possíveis. Essa relação entre
a Matemática e as artes
mostra que, muito mais do
que uma disciplina isolada
no currículo do ensino, a
Matemática relaciona-se
com diversas áreas e com o
pensamento e a percepção
que temos sobre o mundo.

Moça com brinco de pérola (1665-1666), óleo sobre tela


do pintor holandês Johannes Vermeer (1632-1675). As linhas
brancas foram acrescidas para possibilitar a visualização.

7
DISCUSSÃO

1 Atente às sequências de números.


•5–7–9
• 31 – 33 – 35
a) Escreva duas sequências que sigam a mesma regra que as apresentadas.
Resposta pessoal. Espera-se que os alunos escrevam sequências de números ímpares consecutivos (11 – 13 – 15)
ou, ainda que menos provável, de números pares consecutivos com intervalo igual (22 – 24 – 26).

b) Descreva uma regra que determina as duas sequências que você criou no item a.
Resposta pessoal. Espera-se que os alunos afirmem que os números das sequências criadas são ímpares ou
que existe uma diferença de dois números entre eles.

2 Agora, examine as seguintes sequências.


•2–3–8
• 23 – 35 – 36
a) Elas seguem a mesma regra das duas primeiras sequências estudadas? Justifique sua
resposta.
É possível que os alunos respondam que não, caso se refiram à regra de números ímpares ou separados por
uma diferença de dois números. No entanto, a depender da regra, a resposta pode ser “sim”.

b) Qual é a regra que as sequências dos exercícios 1 e 2 seguem?


Todas as sequências, regulares ou não, são compostas de números inteiros em ordem crescente.

3 Ao analisar as sequências do exercício 1, uma regra parece mais evidente. No entanto, as


sequências do exercício 2 levam a reformular o que imaginamos inicialmente. O que isso
ensina sobre nossa percepção de padrões?
Resposta pessoal. A ideia é que os alunos percebam que é importante não considerar apenas a regra mais evidente.
Em vez disso, é interessante buscar vários padrões e regras possíveis.

4 É comum procurarmos regularidade, seja no que fazemos, seja no que buscamos entender.
O pensamento visa a encontrar uma ordem por meio de regras que podem não estar eviden-
tes. Em outras palavras, ao pensar, buscamos entender a ordem das coisas ou estabelecer
uma ordem para elas. O raciocínio matemático não explica tudo o que ocorre conosco, mas
ajuda a ordenar a vida. Com base nisso, responda às questões a seguir.
a) Pense no espaço da escola onde você estuda. Qual é a proporção entre a área
reservada para o intervalo e a área da sua sala de aula?
A tendência é que a área do intervalo seja maior do que a área de uma sala de aula.

8 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


b) Há uma explicação racional para a diferença de tamanho entre esses dois ambientes?
Presumindo-se que a diferença entre as áreas beneficie a do intervalo: sim, pois a área do intervalo é
frequentada por mais crianças; porque as atividades realizadas no intervalo – jogos, brincadeiras, alimentação –
exigem mais espaço; etc.

c) Agora, considere dois materiais escolares que você certamente leva para a escola ou
tem sobre sua mesa: caneta e folhas de papel. Por que você tem mais folhas de papel
no caderno do que canetas no estojo?
Uma caneta é suficiente para muitas anotações, enquanto muitas anotações exigem uma quantidade grande de
folhas de caderno.

5 Pode-se dizer que o raciocínio matemático está presente no planejamento dos espaços que
você ocupa e na preparação da lista de material escolar enviada aos seus pais no início do
ano letivo? Justifique sua resposta.
Espera-se que os alunos identifiquem que sim, existe uma racionalidade nessas dimensões, e que foi usado o
raciocínio matemático na elaboração e na comunicação dessas distribuições.
Diego Grandi/Shutterstock

Por trás de muitos edifícios considerados bonitos há o trabalho de


arquitetos, profissionais que desenham as construções a partir de
cálculos matemáticos e desenhos geométricos, além de influências
artísticas. Na imagem, Catedral Metropolitana Nossa Senhora
Aparecida, conhecida como Catedral de Brasília, projetada pelo
arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer (1907-2012). Foto de 2018.

9
ENTREATOS
Leia o texto a seguir.
NESTE EXATO MOMENTO, numa sala de aula em algum lugar do mundo, uma aluna
integral definida: tipo de está xingando o professor de matemática. O professor acaba de lhe pedir que passe uma parte
equação matemática. substancial de seu fim de semana calculando uma lista de trinta integrais definidas.
haltere: equipamento Há milhares de coisas que a aluna prefere fazer. Na verdade, dificilmente há alguma coisa
utilizado na realização
que não prefira fazer. E ela sabe disso muito bem, porque passou boa parte do fim de semana
de exercícios físicos
com peso. anterior calculando uma lista diferente – mas não muito diferente – de trinta integrais definidas.
enfadonho: chato, Ela não vê qual o sentido disso, e é o que diz ao professor. Em algum ponto da conversa, a aluna
aborrecido. fará ao professor a pergunta que ele mais teme:
“Quando será que eu vou usar isso?”
[...]
A matemática não é só uma sequência de cálculos a serem
angkrit/Shutterstock

executados por rotina até que sua paciência ou sua energia se


esgote  – embora possa parecer isso, pelo que lhe ensinaram nos
cursos de matemática. Essas integrais são para a matemática a
mesma coisa que trabalhar com pesos e fazer ginástica para o
futebol. Se você quer jogar futebol – quer dizer, jogar mesmo, em nível
de competição –, vai ter de fazer um monte de exercícios chatos,
repetitivos e aparentemente sem sentido. Será que os jogadores
profissionais algum dia usam esses exercícios? Bom, você nunca vai
ver ninguém em campo levantando halteres nem correndo em zigue-
-zague entre cones de trânsito. Mas vê os jogadores usando a força, a
velocidade, a percepção e a flexibilidade que desenvolveram fazendo
esses exercícios, semana após semana, de forma tediosa. Praticar
esses exercícios é parte de aprender futebol.
Se você quer jogar futebol para ganhar a vida, ou mesmo participar
do time do colégio, vai ter de passar uma porção de fins de semana
enfadonhos no campo de treinamento. Não há outro jeito. Mas aqui
está a boa notícia. Se os exercícios são demais para você, sempre pode
jogar por diversão, com os amigos. Pode apreciar a emoção de passar
driblando pelos zagueiros ou marcar um gol de longe, exatamente
como um atleta profissional. Você será mais saudável e feliz do que
se ficasse em casa assistindo aos profissionais na TV.
Com a matemática acontece mais ou menos a mesma coisa.
Pode ser que você não esteja almejando uma carreira com orientação
matemática. Tudo bem – a maioria das pessoas não almeja. Mesmo
assim, você ainda pode usar matemática. Provavelmente já está
usando, mesmo que não dê a ela esse nome. A matemática está
entrelaçada à nossa forma de raciocinar. E deixa você melhor em
muita coisa. Saber matemática é como usar um par de óculos de
raios X que revelam estruturas ocultas por sob a superfície caótica
e bagunçada do mundo. Matemática é a ciência de como não estar
errado em relação às coisas. Suas técnicas e hábitos foram moldados
ao longo de séculos de trabalho árduo e muita argumentação. Com
as ferramentas da matemática à mão, você pode entender o mundo
de maneira mais profunda, consistente e significativa.
ELLENBERG, Jordan. O poder do pensamento matemático: a ciência de como não estar errado. São Paulo: Zahar, 2015. Edição do Kindle.

10 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


No texto, o autor faz uma defesa da importância da matemática em nossa vida, embora
muitas vezes não consigamos identificá-la. Para que possamos entender essa importância, ele
faz comparações.

1 Assinale a alternativa correta nas questões a seguir.


a) As integrais definidas são comparadas a:
I. ginástica. X
II. matemática.
III. futebol profissional.
IV. futebol por diversão.
b) A pessoa que se dedica a ter uma carreira na Matemática é comparada a um:
I. ginasta.
II. jogador de futebol profissional. X
III. jogador de futebol por diversão.
IV. espectador de futebol pela televisão.
c) A pessoa que tem um conhecimento razoável de matemática é comparada a um:
I. ginasta.
II. jogador de futebol profissional.
III. jogador de futebol por diversão. X
IV. espectador de futebol pela televisão.
d) A pessoa que sabe muito pouco de matemática é comparada a um:
I. ginasta.
II. jogador de futebol profissional.
III. jogador de futebol por diversão.
IV. espectador de futebol pela televisão. X

2 Por que o autor do texto estabelece essas comparações?


Espera-se que os alunos reconheçam que o objetivo das comparações é comprovar a importância da matemática e
discutir a sua utilidade.

3 O autor do texto afirma que a matemática “deixa você melhor em muita coisa”. Cite um
exemplo de uso da matemática no seu dia a dia que contribua para o desenvolvimento de
alguma habilidade sua.
Filosofia • Módulo 5

Resposta pessoal. Os alunos podem citar o uso da matemática na compra do lanche, na poupança para algum projeto,
em jogos, etc.

11
COMPREENSÃO

Na história a seguir, os conhecimentos matemáticos de um servidor deixaram um rei em


dificuldades. Leia o texto.
Talvez vocês se lembrem da lenda segundo a qual, ao rei que lhe propunha uma recompensa,
um dos servidores pediu um prêmio aparentemente muito modesto. Esse sábio, com efeito,
contentar-se-ia com uma quantidade de arroz medida da seguinte forma: tomando um tabuleiro
de xadrez, colocar-se-ia sobre a primeira casa um grão de arroz, sobre a segunda, dois grãos,
sobre a terceira, quatro grãos. Dobrar-se-ia, assim, o número de grãos atribuídos cada vez que
se passasse de uma casa do tabuleiro à seguinte. Talvez esse sábio – ao contrário do seu rei –
conhecesse a temível velocidade de crescimento do que hoje chamamos uma lei exponencial.
Com efeito, como o número de grãos de arroz varia como as potências sucessivas de 2, esse
número ultrapassa mil já na décima casa, um milhão já na vigésima... e, chegado à sexagésima
quarta e última casa, ele se escreve (aproximadamente) como 1 seguido de dezenove zeros!
Número absolutamente gigantesco: postos lado a lado, esses
grãos de arroz poderiam facilmente recobrir a superfície
de um continente, e todos os reis do mundo,
evidentemente, não poderiam oferecer um
tal presente!
BERGÉ, Pierre; POMEAU, Yves; DUBOIS-GANCE,
Monique. Dos ritmos ao caos
caos. São Paulo:
erashov/Shutterstock

Ed. da Unesp, 1996.

Um tabuleiro de xadrez contém 64


casas, distribuídas em oito colunas
(verticais) e oito linhas (horizontais).

1 No primeiro parágrafo, o narrador diz que o prêmio pedido pelo servidor era “aparentemente
muito modesto”.
a) Por que o prêmio era “aparentemente muito modesto”?
Porque era contado em grãos de arroz e começava com um. Como ele começou a contagem em um grão de
arroz, seguido de dois e depois de quatro, isso deu a impressão de que se tratava de poucos grãos de arroz.

b) Por que o prêmio, na verdade, não era modesto?


Porque a contagem proposta resultava em uma quantidade imensa de grãos de arroz, tão grande que nem os
reis poderiam tê-la.

12 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


2 De que maneira uma quantidade aumenta segundo a lei exponencial?
Os alunos não precisam generalizar o princípio, mas perceber que ele implica colocar na casa seguinte o dobro dos
grãos que existiam na casa anterior do tabuleiro.

3 Agora, vamos pensar na seguinte situação.


Os alunos de uma turma estão fazendo uma poupança para realizar doações a um orfanato
da cidade. Um aluno, José, propõe que cada responsável por aluno doe 50 reais por mês
para a poupança. Já outra aluna, Maria, faz uma proposta diferente: ela argumenta que,
no início do ano, os responsáveis já têm muitos gastos, então seria melhor começar com
doações menores, que iriam aumentando com o passar dos meses. Segundo Maria, as
doações poderiam começar com 5 reais no primeiro mês e ir dobrando a cada mês.
Considerando que a turma tem 20 alunos, a partir de que mês a proposta de Maria valeria
mais a pena, em termos do total arrecadado? Utilize a tabela a seguir para fazer suas contas,
seguindo o padrão proposto.
A proposta de Maria
MÊS Proposta de José Total parcial Proposta de Maria Total parcial passaria a valer mais a
pena a partir do 6o mês.
1o mês 50 3 20 = 1 000 1 000 5 3 20 = 100 100

2o mês 50 3 20 = 1 000 2 000 10 3 20 = 200 300

3o mês 50 3 20 = 1 000 3 000 20 3 20 = 400 700

4o mês 50 3 20 = 1 000 4 000 40 3 20 = 800 1 500

5o mês 50 3 20 = 1 000 5 000 80 3 20 = 1 600 3 100

6o mês 50 3 20 = 1 000 6 000 160 3 20 = 3 200 6 300

7o mês 50 3 20 = 1 000 7 000 320 3 20 = 6 400 12 700

8o mês 50 3 20 = 1 000 8 000 640 3 20 = 12 800 25 500

4 Além do resultado matemático, quais vantagens e problemas poderíamos levar em conta


para comparar as duas propostas?
Filosofia • Módulo 5

Pode-se apontar que o valor final da proposta de Maria impactaria mais no orçamento dos pais do que o de José, ou
que o valor da poupança seria excessivo. Além disso, embora a proposta de José tenha um resultado financeiro
menor, ela pode ser, na prática, mais compreensível e permitir um melhor planejamento para os pais.

13
ENTREATOS
O matemático brasileiro Jackson Itikawa, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Compu-
tação da USP (ICMC), foi vencedor de uma importante competição científica, o FameLab. Leia,
a seguir, um trecho de uma entrevista, em que Jackson realiza uma comparação para falar da
importância da matemática.
Muita gente acha que muito do que se estuda na matemática não é aplicável na vida
real. Uma piada famosa é aquela do: “Mais um dia se passou e eu não usei a fórmula de
Báskara”. Qual é a importância dos estudos teóricos da matemática?
Eu sempre acho muito válido quando alguém pergunta para que serve a matemática. Mas
quando a humanidade cria arte, música ou teatro, por exemplo, ninguém pensa em como isso
pode ser aplicado na vida real. Eu acho que a matemática também oferece essa possibilidade, ela
oferece uma maneira de enxergar o mundo que não é habitual. Acho que ela cumpre estes dois
papéis: o de ser aplicada às necessidades que temos, mas também nisso de admirar as coisas de
uma outra maneira.
Tem um exemplo bonito no livro The Divine Proportion, do H. E. Huntley. Ele diz que a
refra•‹o: fenômeno
em que a luz muda o beleza do arco-íris é acessível a todos. Mas quem sabe que em cada gotícula de água ali presente
meio de propagação; no acontece um fenômeno chamado de refração que é responsável por dividir a luz naquele espectro
caso do arco-íris, a luz de cores tem uma experiência diferente. Esse conhecimento faz com que você tenha acesso a
atravessa gotículas de um outro nível de beleza.
água.
[...]
FERNANDES, Nathan. “A matemática ajuda a admirar o mundo de uma outra maneira”, diz matemático. Galileu. 6 jun. 2016.
Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2016/06/
matematica-ajuda-admirar-o-mundo-de-uma-outra-maneira-diz-matematico.html>. Acesso em: 3 jun. 2019.

Science Source/Fotoarena
A ilustração é de um
estudo do filósofo René
Descartes (1596-1650)
sobre o fenômeno
do duplo arco-íris. Ao
aliar observação com
matemática, Descartes
explica como o
arco-íris aparece para
um observador na Terra,
considerando a ordem
das cores e os ângulos
entre o ponto de
observação e os arcos.

14 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


1 Sobre o primeiro parágrafo da resposta de Jackson, assinale V para verdadeiro e F para falso.
Depois, nas linhas para resposta, corrija as proposições falsas.
( V ) A matemática pode ser usada nas tarefas do dia a dia e nos momentos de
contemplação da vida.
( F ) As pessoas tendem a questionar a utilidade da matemática teórica e das artes.
( V ) Para o matemático, admirar as coisas de diversas maneiras é importante.
Segundo Jackson, as pessoas não costumam questionar a utilidade da criação de artes.

2 Sobre a resposta de Jackson, assinale V para verdadeiro e F para falso. Depois, nas linhas
para resposta, corrija as proposições falsas.
( V ) O arco-íris é um exemplo de fenômeno que não tem utilidade prática, mas que
embeleza a vida das pessoas.
( F ) Quem não sabe matemática o suficiente não consegue apreciar a beleza do arco-íris.
( F ) A beleza do arco-íris, para quem conhece o fenômeno da refração, tem uma utilidade
prática.
( V ) A beleza do arco-íris, para quem conhece o fenômeno da refração, tem um
significado diferente.
Para Jackson, as pessoas que não sabem matemática também apreciam a beleza do arco-íris; esta é acessível a todos.
Também segundo o matemático, quem conhece o fenômeno da refração aprecia a beleza do arco-íris em outro nível,
mas sem perder de vista o encanto.

1. Beverly Golemba/NASA / 2. 20th Century Fox Licensing /


Everett Collection/Fotoarena / 3. Adam Cuerden/NASA /
4. 20th Century Fox Licensing/Everett Collection/Fotoarena /
5. Langley Research Center/NASA / 6. 20th Century Fox
Licensing/Everett Collection/Fotoarena

Na montagem, em preto e branco,


as mulheres na vida real e, da
esquerda para a direita, em cores,
as personagens correspondentes
do filme: Dorothy Vaughan,
Katherine Johnson e Mary Jackson.

Estrelas além do tempo. Direção de Theodore Melfi. Estados Unidos: 2016. 127 min.
Filosofia • Módulo 5

O filme, inspirado em fatos reais, conta a história de um grupo de mulheres negras que trabalharam como “computadoras
humanas” para a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa) em 1961, quando os Estados Unidos tentavam enviar o
primeiro ser humano ao espaço. Uma delas, Katherine Johnson, destacava-se por sua capacidade brilhante de fazer e verificar os
complexos cálculos necessários para as missões, embora fosse tratada de forma discriminatória e racista até mesmo por seus
colegas. Suas amigas Dorothy Vaughan e Mary Jackson também tiveram papéis de destaque: a primeira, no início da implantação
de computadores na agência espacial; e a segunda, ao tornar-se a primeira mulher negra a ser engenheira da Nasa.

15
PRODUÇÃO

Nas últimas aulas, vimos como a matemática está presente em diversos aspectos de nossa
vida. Quando identificamos padrões ao nosso redor, estamos falando de matemática. Quando
tomamos decisões sobre questões ligadas a dinheiro, nossa percepção matemática pode
fazer muita diferença. Mesmo reconhecer algo como bonito pode ter a ver com relações
de proporção. No entanto, muitas pessoas têm dificuldade com cálculos matemáticos e se
afastam deles.
Considerando isso, escolha uma das pessoas descritas a seguir e escreva para ela um pequeno
texto defendendo a importância da matemática.
Pessoa 1
Identifica-se com outras disciplinas, como Português ou Ciências Humanas (História,
Geografia, Filosofia e Sociologia), e diz que não entende para que precisa estudar Matemática.
Pessoa 2
Gosta muito de artes – poesia, romances, filmes e pintura – e considera matemática algo
frio e racional.

16 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


ENTREATOS
Leia o texto a seguir.
Encontrar uma boa maneira de representar os números sempre foi um desafio. Desde o início
da civilização, as pessoas tentaram vários sistemas para escrever os números e compreendê-los,
seja para o comércio, para medir terras ou contabilizar o rebanho.
O que quase todos esses sistemas têm em comum é que nossa biologia está profundamente
impregnada neles. Ao acaso da evolução, acabamos tendo cinco dedos em cada mão. Esse fato
anatômico se reflete nos métodos primitivos de contagem; o número 17, por exemplo, é escrito:

Aqui, cada traço vertical em cada grupo deve originalmente ter representado um dedo.
Talvez o traço diagonal fosse um polegar, fechado na palma da mão para formar um punho
cerrado?
Algarismos romanos são apenas ligeiramente mais sofisticados que traços. Pode-se perceber
o vestígio dos traços no modo como os romanos escreviam o 2 e o 3, como II e III. Do mesmo
modo, o traço diagonal aparece no símbolo romano para 5, V. Mas o 4 é um caso ambíguo. Às
vezes, é escrito como IIII, ao estilo dos traços (geralmente em relógios pomposos), ainda que seja
comumente expresso como IV. O posicionamento do número menor (I) à esquerda do maior (V)
indica que você deveria subtrair I, não acrescentá-lo, como seria o caso se estivesse à direita.
Assim, IV significa 4, enquanto VI significa 6.
Os babilônios não eram nem um pouco apegados aos dedos. Seu sistema numérico se baseava
babilônio: povo que, na
no 60 – sinal claro de seu bom gosto impecável, porque 60 é um número excepcionalmente Antiguidade, residia na
Filosofia • Módulo 5

agradável. Sua beleza é intrínseca e não tem nada a ver com os membros humanos; 60 é o menor cidade de Babilônia, no
número divisível igualmente por 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Só para começar – há ainda 10, 12, 15, 20 e 30. [...] território do atual Iraque.
60 é muito mais agradável que 10 para qualquer outro cálculo ou medida que envolva contagem intrínseco: inerente,
natural, que caracteriza
em partes iguais. Quando dividimos uma hora em 60 minutos, ou um minuto em 60 segundos,
algo e é fundamental
ou um círculo em 360 graus, estamos nos remetendo aos sábios da antiga Babilônia. para sua existência.
STROGATZ, Steven. A Matemática do dia a dia: transforme o medo de números em ações eficazes. Rio de Janeiro: Alta Books, 2017.

17
1 Na feira ou no supermercado, em geral, vendem-se ovos por dúzia ou meia dúzia. Essa ma-
neira de contar ovos está mais relacionada ao modelo de contagem romano ou ao modelo
babilônico? Justifique sua resposta.
Essa maneira de contar ovos tem mais a ver com o modelo babilônico, que tem o 60, e não o 10, como número de
referência. Afinal, tanto o 12 como o 6 são divisores de 60, e não de 10.

2 Pessoas de lugares diferentes falam línguas diferentes: português, inglês, espanhol, manda-
rim, russo, etc. As diversas línguas podem ser usadas para transmitir mensagens similares.
Considerando isso e a partir da leitura do texto, podemos considerar a matemática uma
linguagem? Por quê?
Sim. O texto mostra que diferentes povos podem ter sistemas de contagem diversos; isso significa que a matemática
envolve convenções culturais para transmitir e expressar conceitos, assim como os idiomas.

Alf Ribeiro/Shutterstock

18 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


RASCUNHO

Filosofia • Módulo 5

19
RASCUNHO

20 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


MÓDULO

6
MÚSICA E
PENSAMENTO

Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press


Aos 14 anos, o compositor
e instrumentista carioca
Pixinguinha (1897-1973) já
tocava profissionalmente.
Pixinguinha foi muito
importante na formação
de alguns dos principais
gêneros musicais populares
brasileiros, como o chorinho
e o samba. É um dos
principais músicos de nossa
história.
Por que grandes artistas
como Pixinguinha nos
fascinam tanto? Qual é
o papel da música em
nossa vida e em nosso
pensamento?

Músico e compositor
Pixinguinha tocando saxofone
em fotografia de 1961.

21
DISCUSSÃO

No ônibus, em uma festa, no cinema, antes de dormir, ao cozinhar. A música está presente
em diversas situações. Por que nos ligamos tanto à música? O que procuramos? O que sentimos
ao ouvi-la?
Para começar a pensar nesse tema, vamos responder a algumas questões.

1 Na coluna da esquerda, faça uma lista dos gêneros musicais (ou tipos de música) que
você conhece. Depois, pense sobre eles: com que tipo de situação você acha que cada
um combina?
Caso a turma necessite
de ajuda nessa lista, Gênero musical Situação
podem ser citados: samba,
música clássica ou erudita,
sertanejo, rock, pop, funk,
rap, MPB, entre outros;
exemplos de situações são:
festa, estudo, encontro
com amigos, almoço,
recreio, momento de
descanso, entre outras.

2 Agora, em grupos de três ou quatro alunos, comparem as respostas da questão anterior e


discutam as diferenças entre elas. O que sentimos quando escutamos esses gêneros? Em
que ambientes ou situações eles costumam estar presentes? Anote abaixo uma diferença
que você tenha achado interessante no debate.
Resposta pessoal. Entre os elementos que se pode comentar a esse respeito, existe a grande variedade dentro
dos gêneros. Isso pode ser uma das fontes das diferenças. Outra, é o gosto de cada um, que pode influenciar
nas respostas.

3 O que há em comum entre esses tipos de música em relação à experiência de ouvi-los? Por
que ouvimos música? Após debater em grupo, registre as suas impressões individualmente.
Resposta pessoal. Acompanhe a análise dos grupos para direcionar as discussões, a fim de explicar a importância de
entender os elementos comuns de experiências diversas.

22 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


4 Praticamente todas as pessoas são influenciadas pela música. Mas um filme ou um livro
também tem esse “poder de influência”. O que diferencia filmes e livros da música?
Resposta pessoal. Os alunos podem mencionar o fato de que, na música, as emoções parecem vir mais diretamente,
já que não precisa haver definições de palavras ou relações com imagens para que elas façam sentido de forma mais
definida; também podem citar o fato de ser mais frequentemente apreciada coletivamente, de poder ser conciliada
com outras atividades.

De relance
A música que ouvimos também pode ajudar a definir nossa identidade. Muitas pessoas, sobretudo jovens,
aproximam-se por meio de gostos e pensamentos parecidos, e a preferência musical é um fator importante
nessa aproximação. Quando um grupo tem uma identidade bem definida, ele é chamado de tribo. Além do
gosto musical, os participantes podem se identificar por meio de um visual, um vocabulário próprio, um time
esportivo e ideias parecidas sobre o mundo e a vida.
Luiz Souza/NurPhoto/Agência France-Presse

Roda de samba no Rio de


Janeiro (RJ), em 2016.
frantic00/Shutterstock

Filosofia • Módulo 6

Góticos em evento
na Alemanha
em 2018.

23
ascese: prática que ENTREATOS
implica disciplina e
autocontrole. Você já ouviu música para afastar uma preocupação ou um pensamento ruim?
Segundo o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), nenhuma outra forma de arte
é tão capaz de nos proporcionar isso quanto a música. O ser humano,
Reprodução/Biblioteca da Universidade de Frankfurt, Frankfurt, Alemanha.

diz o filósofo, tem em sua essência a vontade, algo que leva o sujeito
a buscar coisas: uma pessoa amada, riqueza, fama, etc. Enquanto não
consegue alcançar o que deseja, sua vida é marcada por sofrimento.
Contudo, assim que conquista aquilo que deseja, é tomado pelo tédio.
Schopenhauer considerava que haveria formas de lidar melhor com
essa realidade: a ascese e as artes, mais especificamente, a música.
Quando apreciamos uma obra de arte – um quadro, um romance,
a bela melodia de uma música –, pelo menos por alguns momentos
deixamos de lado nossa insatisfação e embarcamos nas sensações que
ela provoca. Assim, nos libertamos do ciclo de sofrimento provocado
pela nossa vontade.
No caso da música instrumental, e apenas dela, não temos uma his-
tória sendo contada, como em um livro ou em uma pintura tradicional;
ela nos afeta de outra forma, nas nossas emoções, sem algumas vezes
tocar o nosso pensamento.
Considerando essas questões, responda às perguntas a seguir.
O filósofo Arthur
Schopenhauer é considerado
um pessimista quanto 1 Segundo Schopenhauer, ora estamos desejando algo, ora vendo o desejo ser realizado.
à existência humana.
Na imagem, retrato a) Em qual desses dois momentos nos encontramos no estado de sofrimento?
de Schopenhauer No momento da busca pela realização do desejo.
posteriormente colorizado,
tirado por Johann Schäfer
em 1859.

b) Em qual desses dois momentos nos encontramos no estado de tédio?


Quando o desejo é realizado.

2 Hoje em dia, é comum as pessoas escutarem música utilizando fones de ouvido ou conec-
tadas ao celular. As ideias de Schopenhauer ajudam a explicar por que elas fazem isso?
Justifique.
O hábito de escutar música a todo momento seria, segundo as ideias de Schopenhauer, uma maneira de fugir da dor
e do tédio que caracterizam a existência humana, especialmente no mundo de hoje, em que há tantos estímulos para
desejar diversas coisas que não podemos conquistar.

24 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


COMPREENSÃO

Leia, a seguir, trechos do romance Kafka ˆ beira-mar, do escritor japonês Haruki Murakami
(1949-). O livro conta duas histórias. Nos capítulos ímpares, fala de um garoto de 15 anos que
foge da casa do pai em busca da mãe e da irmã, viajando para uma cidade do litoral, e usa o
codinome Kafka Tamura.
Nos capítulos pares, conta a história de Satoru Nakata, um homem que perdeu capacidades
mentais ao sofrer um acidente na infância, mas que teria ganhado a capacidade de falar com
gatos – e passa a trabalhar na busca de gatos perdidos. O trecho a seguir é sobre a personagem
Hoshino, motorista de caminhão que está acompanhando Nakata. Neste trecho, o motorista
faz uma descoberta musical em um café.

Fora, a noite já caíra. Hoshino sentiu repentina vontade de tomar um bom café. Passeou o
olhar ao redor e detectou uma tabuleta de cafeteria numa área ligeiramente afastada do centro tabuleta: placa, letreiro.
comercial. O estabelecimento tinha sido montado nos moldes dos antigos salões de chá, raros introspectivo: voltado
nos dias atuais. Hoshino entrou, sentou-se numa poltrona ampla e macia e pediu café. Havia para si mesmo.
música ambiente saindo de um alto-falante de procedência britânica embutido em robusta Dragões Chunichi: time
japonês de beisebol.
caixa de nogueira. Ele era o único cliente da casa. O rapaz se acomodou melhor na cadeira e,
Giants: New York Giants,
pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se relaxar. Todas as coisas ao seu redor lhe pareceram time estadunidense de
serenas, naturais, e se integravam agradavelmente a ele. O café, que lhe foi servido numa xícara beisebol.
elegante, era forte, delicioso. Hoshino fechou os olhos, respirou pausadamente e apurou os
ouvidos para a histórica harmonia de cordas e piano. Nunca se interessara em ouvir música
clássica, mas aquela tinha inexplicável poder de acalmá-lo. Podia até afirmar que o deixava
introspectivo.
Enquanto ouvia a música, fechou os olhos e, levado pelo suave ritmo, pensou em diversas
coisas. Principalmente em si mesmo como existência. E quanto mais pensava, mais lhe parecia
que não havia nada dentro de si. Tinha a impressão de que o que existia era apenas mero
acessório sem nenhum sentido.
Por exemplo, até hoje, vim torcendo fanaticamente pelos Dragões Chunichi. Mas o que são
realmente os Dragões Chunichi para mim? Quando os Dragões Chunichi vencem os Giants, esse
fato contribuiria de alguma maneira para o meu aprimoramento pessoal? Esquece!, isso jamais
aconteceria, pensou o rapaz. Mas então, por que cargas d’água torço por eles com tanto fervor,
como se o time fosse parte integrante da minha pessoa?
Nakata disse que ele era vazio por dentro. Pode até ser que seja. Mas... se ele é vazio por
dentro, eu sou o quê? Nakata disse que ficou assim depois de sofrer um acidente na infância.
Quanto a mim, nem acidente sofri na infância. Se ele é vazio, sou menos que vazio, na melhor
das hipóteses. Nakata tem ao menos... Nakata tem ao menos algo capaz de fazer com que a
gente fique com vontade de segui-lo até Shikoku. Algo especial. Se bem que eu mesmo não sei
que raios é esse algo.
O rapaz pediu outra xícara da bebida.
— Gostou do nosso café? — perguntou o proprietário grisalho do estabelecimento. (Hoshino
Filosofia • Módulo 6

não tinha meios de saber, naturalmente, mas o homem era ex-funcionário do Ministério da
Educação. Ele havia se aposentado e retornado à terra natal, Takamatsu, onde abrira aquele
estabelecimento, cujas especialidades eram café e música clássica.)
— É ótimo. Tem um aroma maravilhoso.
— Eu mesmo torro os grãos. E os escolho um a um, manualmente.
— Está explicada a razão desta delícia.

25
Divulgação/Kafka by the Sea
O café Kafka by the Sea (Kafka à
Beira-mar), na cidade de Taipei,
em Taiwan. O local homenageia
o romance de Haruki Murakami.
Foto de 2015.

— E a música? Não o incomoda?


— Música? — repetiu Hoshino. — É boa. Não, não me incomoda nem um pouco. Quem está
tocando?
— O trio Rubinstein, Heifetz e Feuermann. À época, o grupo era chamado “Trio Milionário”.
Uma verdadeira obra de arte. Foi gravada em 1941, mas o som, apesar de antigo, não perdeu seu
brilho.
— Isso mesmo. Coisas boas não envelhecem.
— Algumas pessoas preferem um “Trio Arquiduque” mais estruturado, tradicional e vigoroso.
Como, por exemplo, o do Trio Oistrach.
— Pois eu acho este conjunto muito bom — disse Hoshino. — Tem um jeito de tocar, digamos
assim, suave, não é?
— Muito obrigado — disse o dono do estabelecimento, agradecendo sinceramente em nome
do Trio Milionário. Depois que o homem se retirou, Hoshino se dedicou novamente ao café e às
suas reflexões.
Nestes últimos dias, estou sendo útil para Nakata. Li muita coisa para ele e também achei a
pedra. Ser útil dá uma sensação agradável. Desde o dia em que nasci até hoje, acho que foram
poucas as vezes que me senti assim. Mandei meu trabalho às favas, vim parar nesta lonjura e
estou enredado numa série de acontecimentos cujo sentido não entendo direito, mas não me
arrependo de nada do que fiz.
Algo me diz que estou no lugar certo. Porque quando estou com Nakata, quem-sou-eu é o
tipo de pergunta que deixa de ter importância.
MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Traduzido por Leiko Gotoda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 397-399.
The Asahi Shimbun/Getty Images

Além de escritor, Murakami já teve um café dedicado à música, mais especificamente ao


jazz. Ele lançou seu primeiro livro em 1979 e é um dos autores mais populares do mundo
hoje. Em suas obras, há uma mistura da cultura atual de diferentes países (música,
filmes e literatura) com as tradições japonesas, bem como de realismo com elementos
fantásticos. Há também muita referência à música influenciando a vida das personagens
Haruki Murakami (1949-) em suas obras. Na foto, Murakami em evento acadêmico em Tóquio, no Japão, 2018.

26 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


1 O trecho nos permite tirar algumas conclusões sobre o que está acontecendo na vida da
personagem Hoshino naquele momento.
a) Circule as palavras que determinam como Hoshino está em relação à cafeteria.

arrependido confortável nervoso

inquieto abalado tranquilo

indiferente contrariado satisfeito

b) Quais elementos da cafeteria proporcionam essas sensações a Hoshino?


Textualmente, a música, mas podem ser citados também o café delicioso e a poltrona ampla.

2 Esse momento na cafeteria leva Hoshino a muitas reflexões sobre si mesmo.


a) O que, na sua opinião, significa ser “vazio por dentro”?
Resposta pessoal.

b) Hoshino considera positivo ser vazio por dentro? Justifique sua resposta.
Tudo indica que não. Ele parece desapontado com a constatação de que não há dentro dele algo mais
consistente que o amor por um time de beisebol; ou de que Nakata, que também se acha vazio, tem algo
especial.

c) E você, considera que ser “vazio por dentro” é um aspecto positivo ou negativo do
indivíduo? Justifique.
Resposta pessoal.

3 Agora, pense no que você aprendeu sobre o pensamento de Schopenhauer. Essa passagem
da vida de Hoshino confirma ou contradiz a teoria do filósofo, sobre o papel das artes, como
a música, em nossa vida?
Filosofia • Módulo 6

Espera-se que os alunos percebam que a passagem confirma a teoria de Schopenhauer. A música leva a
personagem a um estado reflexivo sobre o sofrimento e o tédio – e não a um ou outro estado. Além disso, Hoshino
se encontra relaxado e integrado a si e ao ambiente.

27
ENTREATOS
Leia, a seguir, a letra de “A carne”, música composta por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses
Cappelletti. A canção é interpretada pela cantora Elza Soares em seu álbum Do cóccix até o
pescoço (2002). O comprometimento com causas sociais é uma das marcas da obra artística de Elza
Soares, que passou por diversas dificuldades em sua vida, como a fome e a violência doméstica.

A carne
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio


E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra


A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história


Segurando esse país no braço
O cabra aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento
Mas muito bem-intencionado
E esse país
Vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado

Mas mesmo assim


Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar

A carne mais barata do mercado é a carne negra


A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
SEU JORGE; CAPPELLETTI, Ulisses; YUKA, Marcelo. A carne © WB Music Corp.

28 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


Mauricio Santana/Getty Images
Elza Soares
(1937-)

Elza Soares nasceu no Rio de Janeiro e vem de uma


família muito pobre. Aos 21 anos, já viúva e com seis filhos,
trabalhando como faxineira, inscreveu-se em um concurso
de música da Rádio Tupi. A partir de então, começou a sua
carreira na música. Ao longo de sua vida recebeu diversas
premiações, como o Grammy Latino, o Troféu APCA e o
Prêmio Multishow de Música Brasileira. Na foto, Elza em
apresentação em São Paulo (SP), 2018.

1 Muitas músicas populares falam sobre amor. Quais outros temas podem ser abordados em
canções? Cite ao menos dois.
Resposta pessoal. Podem ser citados os temas de denúncia social, saudade e/ou perda, relatos cotidianos, etc.

2 Qual mensagem os compositores da música “A carne” pretendiam passar para quem a


escutasse?
A música faz uma denúncia da condição das pessoas negras no Brasil, discriminadas frequentemente como se
tivessem menor valor.

3 Qual é a sua música preferida? Qual sensação ela provoca em você?


Resposta pessoal.

4 De que forma ouvir música pode nos ajudar a lidar com o mundo?
Filosofia • Módulo 6

Resposta pessoal. Espera-se que os alunos reconheçam que ouvir música pode contribuir para o entendimento do
que acontece no mundo, para o desenvolvimento da empatia com relação à vivência de outras pessoas e até mesmo
para a percepção de experiências próprias.

29
PRODUÇÃO

Leia, a seguir, um trecho de poema do português Fernando Pessoa (1888-1935).


Proponha aos alunos, no momento
Chuva oblíqua da leitura do poema, que grifem
em cores diferentes os trechos que
[...]
se referem ao momento presente
O maestro sacode a batuta, (concerto) e os que se referem
E lânguida e triste a música rompe... ao momento passado (infância no
quintal) do eu lírico.
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo,
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...,
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,


Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,


A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
PESSOA, Fernando. Melhores poemas de Fernando Pessoa. São Paulo: Global, 2004.

30 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


O poema mostra como, a partir de uma apresentação de música em um teatro, o narrador
volta para a sua infância, e o espaço do teatro se confunde com as suas lembranças. Você já
teve uma experiência parecida? Para onde a música faz você navegar?

Escreva um relato sobre um momento em que uma música levou você a outro tempo ou
lugar. Descreva como era a música e o que passava em sua mente naquele momento. Se
preferir, você pode fazer esse relato em forma de poema.

Filosofia • Módulo 6

31
ENTREATOS
Leia, a seguir, a letra de uma canção do compositor e instrumentista baiano Gilberto Gil (1942-).

Ela
Ela
Eu vivo o tempo todo com ela
Ela
Eu vivo o tempo todo pra ela

Minha música

Reprodução/Warner Music Brasil


musa: na mitologia Musa única, mulher
grega, uma das nove Mãe dos meus filhos, ilhas de amor
filhas de Zeus e Cada ilha, um farol
Mnemosine, que eram as
protetoras das artes –
No mar da procela, ela
entre elas, a música. Ela
procela: forte Ela que me faz um navegador
tempestade no mar, com Sobretudo ela
ventos intensos e ondas Ela que me faz um navegador
muito altas.
GIL, Gilberto. Ela. In: ______. Refazenda, 1975.
© Gege Edições/Preta Music (EUA & Canadá) 

Capa do álbum Refazenda, lançado em 1975 e


considerado um dos discos mais importantes da
carreira de Gilberto Gil. No álbum, que inclui a música
“Ela”, o artista explora suas relações com o baião
e outros ritmos nordestinos, depois de conhecer
diversas experiências musicais internacionais.

Comentando essa letra, Gilberto Gil afirmou que falava sobre a própria música, que é a quem
se refere ao dizer “ela”. Isso porque, para ele, as músicas que compõe parecem ter vida própria,
e seria preciso obedecer a elas ao criar a letra, as melodias e as harmonias.

1 Pensando no comentário de Gilberto Gil sobre a música e considerando sua letra, o que a
música faria por ele?
Gilberto Gil fala que a música é musa e mãe. Isso leva a pensar, por exemplo, que a própria música serve de inspiração
para mais músicas. Além disso, que a música pode fornecer cuidado e sustentação, afinal, ele viveu boa parte da sua
vida trabalhando como músico.

2 Com base no que estudamos neste módulo, em que sentido, para você, a música faz de
todos nós também “navegadores”?
Resposta pessoal. Podemos pensar que a música nos ajuda a navegar para fora de nossas preocupações e também
cria um ambiente para refletirmos melhor sobre quem somos e sobre o que buscamos.

32 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


RASCUNHO

Filosofia • Módulo 6

33
RASCUNHO

34 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


MÓDULO

7
VIVER JUNTO

blvdone/Shutterstock
Vivemos juntos em espaços
geográficos, como os
países, as cidades e as
ruas; também formamos
nossos grupos sociais,
como a família, os
amigos, os colegas de
trabalho. Fazemos várias
coisas juntos: brincamos,
trabalhamos, estudamos,
festejamos. Mas sabemos
que conviver é difícil:
as pessoas têm gostos,
vontades e interesses
diferentes, e essas
diferenças às vezes se
chocam e geram conflitos.
Como lidar com isso?
Como fazer com que viver
junto possa ser uma boa
experiência?

Multidão andando em
Nova York, nos Estados
Unidos, 2018.

35
DISCUSSÃO

Em uma colmeia habitam milhares de abelhas, cada uma cumprindo uma função bastante
específica: as abelhas-operárias coletam o pólen e néctar das flores, constroem e protegem
a colmeia, produzem mel e cera, alimentam as larvas; a abelha-rainha, única fêmea capaz de
reproduzir, tem a reprodução como sua única função – dessa forma, se torna a “mãe” de todas
as abelhas da colmeia; os zangões são os machos e têm como única função fecundar a abelha-
-rainha – e morrem em seguida.
Os formigueiros se assemelham às colmeias no que se refere às funções dos indivíduos que
formam essas comunidades: há formigas operárias, rainhas e machos-reprodutores.
Já as funções desempenhadas pelos seres humanos não são tão evidentes. Ao observar as
pessoas caminhando pela cidade, não é possível distinguir a função de cada uma ou para onde
elas estão indo, o que farão em seguida ou o que acabaram de fazer. Além disso, é possível que
elas mudem de ideia sobre os caminhos que vão seguir, troquem de função e repensem planos
e relacionamentos.
Mark Moffett/Minden Pictures/Fotoarena

Formigueiro parcialmente
escavado em Botucatu (SP).

36 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


De relance
Entre os antigos gregos, duas palavras eram utilizadas para descrever o mundo: physis e nomos. Essas
palavras foram empregadas no início da história da Filosofia, quando se buscava, pela primeira vez, entender
o mundo de forma racional, e não como resultado de forças sobre-humanas e deuses misteriosos.
Physis referia-se ao aspecto material do mundo, ou seja, à natureza propriamente dita. Inclui todas as
características de cada ser da natureza, seja animado, seja inanimado, e tem caráter imutável, ou seja, não
pode mudar.
Nomos, por sua vez, refere-se à cultura em geral, ou seja, às criações humanas. Como exemplo, citemos
os costumes e as convenções (quer dizer, os acordos) estabelecidos entre os seres humanos. As leis são
consideradas parte do nomos e têm caráter mutável, ou seja, podem ser mudadas.

1 Agora, pense no que você sabe sobre as comunidades de abelhas, de formigas e de humanos
e marque no quadro a seguir os comportamentos e as características que você reconhece
em cada uma delas.

Abelhas Formigas Humanos

Cooperação x x x

Competição x x x

Liberdade x

Rotina e repetição x x x

Criatividade x

Movimentação baseada apenas em instintos x x

2 Leia as quatro proposições a seguir e, em grupo, discuta se vocês consideram cada uma delas
falsa ou verdadeira. Em seguida, elaborem uma justificativa e anotem-na individualmente.
I. Colmeias e formigueiros construídos hoje são iguais às colmeias e aos formigueiros
que eram construídos séculos atrás.
Verdadeiro. A construção de formigueiros e colmeias é feita seguindo instintos que tendem a permanecer os
mesmos ao longo do tempo.

II. Os seres humanos, se comparados com abelhas e formigas, são livres para fazer
escolhas.
Verdadeiro. Se comparados com formigas e abelhas, os seres humanos podem fazer escolhas.

III. Os comportamentos de abelhas e formigas em suas comunidades podem ser descritos


pela palavra physis.
Verdadeiro. Physis descreve o mundo regido pelas leis da natureza, que têm caráter imutável. Inclui os aspectos
da existência humana que seguem essas leis da natureza (nascer, respirar, comer, morrer) e que são comuns
Filosofia • Módulo 7

também, por exemplo, a animais.

IV. Os seres humanos, cujo mundo criado pela cultura pode ser descrito pela palavra
nomos, são livres para fazer o que quiserem no meio social em que vivem.
Falso. Há limites para a ação dos seres humanos, entre os quais podemos citar as regras, os costumes, as leis.

37
ENTREATOS
Ao contrário de abelhas e formigas, os seres humanos têm capacidade de fazer escolhas, o
que significa que eles têm liberdade para agir e tomar decisões conforme julguem correto, por
exemplo. Até que ponto vai essa liberdade? Deve haver limites para ela?
Leia as questões a seguir e tente respondê-las sem fazer pesquisas, usando apenas seus
conhecimentos prévios.

1 O que é uma regra?


Resposta pessoal.

2 Para que serve uma regra?


Resposta pessoal.

3 Quem faz as regras?


Resposta pessoal.

4 Quem segue as regras?


Resposta pessoal.

38 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


COMPREENSÃO

O romance O senhor das moscas (1954) foi escrito pelo inglês William Golding (1911-1993),
que mais tarde recebeu o prêmio Nobel de Literatura pela sua obra.
O romance conta a história de um grupo de crianças sobreviventes de um acidente aéreo
que, juntas, tentam resistir em uma ilha que não era habitada até a chegada delas. As crianças
menores (por exemplo, Phil e Percival) são lideradas pelas maiores (como Ralph, Jack e Porqui-
nho – este último, muitas vezes, alvo de bullying dos outros).
Na cena a seguir, as personagens estão reunidas em uma assembleia, à noite, para discutir
a possibilidade da existência de ameaças desconhecidas na ilha. Na assembleia, segurar uma
concha significa ter o direito à palavra. Leia:
— Então [disse Jack] essa reunião é para descobrir o que está havendo. Eu lhes digo o
que está havendo. Vocês pequenos começaram tudo isso com histórias de medo. Bichos?
De onde? [...]
Ralph interrompeu-o bruscamente.
— Que é isso? Quem disse alguma coisa sobre um animal?
— Você, outro dia. Disse que eles [os pequenos] sonham e gritam. Agora eles falam, não só os
pequenos, os meus caçadores às vezes, falam de uma coisa, uma coisa escura, um bicho, alguma
espécie de animal. Eu ouvi. Pensou que não, não é? Agora ouçam. Não há animais grandes em
ilhas pequenas. Só porcos. [...] Tenham o medo que quiserem. [...]
Então Porquinho estendeu a mão.
— Não concordo com tudo que Jack disse, só com uma parte. Claro que não há um bicho na
floresta. Como pode haver? O que um bicho comeria? [...] O que quero dizer é que não concordo
com esse tal de medo. Claro que não há o que temer na floresta! Porque eu mesmo estive lá.
Daqui a pouco vocês estarão falando de fantasmas e outras coisas assim. Nós sabemos o que há,
e se houver alguma coisa de errado existe alguém para dar um jeito [...].
Porquinho fez uma pausa.
— A não ser...
Ralph mexeu-se, impaciente.
— A não ser que estejamos com medo de gente.
Um som, meio risada meio zombaria, irrompeu dentre os meninos sentados. Porquinho
abaixou a cabeça e continuou falando com rapidez.
— Vamos ouvir o pequeno que falou de um bicho e talvez possamos mostrar como ele é
bobo [...]. Como é seu nome?
— Phil [...]. Na noite passada, tive um sonho, um sonho horrível, de luta contra umas
coisas. Eu estava sozinho, fora da cabana, lutando com as coisas, aquelas coisas enroscadas
nas árvores [...]. Então fiquei com medo e acordei. E eu estava sozinho, fora da cabana, no
escuro, e as coisas enroscadas tinham ido embora [...].
— Foi um pesadelo – disse Ralph – ele estava andando enquanto dormia. [...]
— Eu estava dormindo quando as coisas enroscadas estavam lutando e quando foram
Filosofia • Módulo 7

embora eu estava acordado e vi aquela coisa grande e horrível mexendo-se nas árvores.
Ralph estendeu as mãos para a concha e o pequeno se sentou.
— Você estava dormindo. Não havia ninguém ali. Como alguém poderia estar andando na
floresta à noite? Havia alguém? Alguém saiu? [...]
Quando todos ficaram em silêncio, Ralph virou-se para Porquinho.
— Bem, Porquinho?
39
— Houve outro. Ele. [...] Vamos lá. Como é seu nome?
— Percival [...].
Algo estranho aconteceu a Percival. Bocejou e vacilou, mas Jack pegou-o e sacudiu-o.
— Onde o bicho vive? [...]
Percival resmungou alguma coisa e a assembleia riu de novo. Ralph inclinou-se para frente.
— O que ele disse?
Jack escutou a resposta de Percival e se afastou dele [...] limpou a garganta, depois declarou
casualmente:
— Percival disse que o bicho vem do mar [...].
A discussão dominou outra vez a reunião [...]. Num instante, a plataforma ficou cheia de
sombras que discutiam e gesticulavam. Para Ralph, isso parecia o fim da sanidade. Medo, bichos,
nenhum consenso geral de que a fogueira era mais importante: e, quando alguém tentava
arrumar as coisas, explodia a discussão, trazendo assuntos novos e desagradáveis [...].
Alguém falou fora de vez.
— Talvez ele queira dizer que é alguma espécie de fantasma. [...]
Porquinho pegou a concha. Sua voz era indignada:
— Não acredito em fantasmas. Nunca!
Jack também ficou de pé, inexplicavelmente furioso.
— Quem se importa com o que você acredita, Gordinho?
— Estou com a concha!
Houve o som de uma breve luta e a concha mexeu-se para frente e para trás.
— Devolva-me a concha!
Ralph enfiou-se entre eles e levou um soco no peito [...].
— Jack! Jack! [disse Ralph] Você não está com a concha! Deixe-o falar.
O rosto de Jack surgiu ao seu lado.
— E você cale a boca. Quem é você afinal? Sentado aí... dizendo o que todos devem fazer.
Você não sabe caçar, não sabe cantar...
— Eu sou o chefe. Fui escolhido.
— E que diferença faz a escolha? Só dando ordens que não têm nenhum sentido... [...]
Archives du 7eme Art/Photo12/Agência France-Presse
— As regras – gritou Ralph – você
está quebrando as regras!
— Que importa?
— Porque as regras são a única coisa
que temos!
Mas Jack estava gritando contra ele.
— Que as regras vão para o inferno!
Somos fortes, nós caçamos! Se houver um
bicho, nós o caçaremos! Vamos cercá-lo e
bater, bater, bater!...
GOLDING, William. O senhor das moscas. Rio de Janeiro:
O Globo; São Paulo: Folha de S.Paulo, 2003. p. 92-101.

Cena do filme inspirado no livro


O senhor das moscas, de 1990, com
dire•‹o de Harry Hook.

40 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


1 Cada uma das três personagens principais (Ralph, Jack e Porquinho) tem uma função ou
uma característica dentro do grupo de meninos. Relacione as características ao nome da
personagem e justifique sua escolha com trechos do texto.

a) Líder do grupo, equilibrado: Ralph


Justificativa:
“[...] Deixe-o falar.” / “Eu sou o chefe. Fui escolhido.”/ “[...] dizendo o que todos devem fazer”. / “[...] dando
ordens [...]”

b) Caçador, disposto a usar a violência: Jack


Justificativa:
“Somos fortes, nós caçamos!”/ “Vamos cercá-lo e bater, bater, bater!...”

c) Racional, argumentativo: Porquinho


Justificativa:
“Claro que não há um bicho na floresta. Como pode haver? O que um bicho comeria? [...]” / “Não acredito em
fantasmas. Nunca!”

2 Como se comportam os pequenos?


Os pequenos mostram-se inseguros e com medo do desconhecido. Acreditam em um bicho que ninguém viu, daí a
hipótese de fantasmas.

3 Após a reunião noturna que foi reproduzida no trecho lido, Jack passou a ter cada vez mais
poder no grupo, substituindo Ralph na liderança. Com base no que você leu, escolha a seguir
a palavra que melhor indica a origem do poder de Jack. Depois, justifique sua escolha.
( ) Inteligência ( ) Eleição
( x ) Medo ( ) Força
O medo do bicho tornou possível (legitimou) o poder do caçador: por ser o mais forte e o mais disposto a usar a
violência, foi considerado capaz de enfrentar o bicho.

4 Jack passou a comandar o poder porque era necessário alguém forte para enfrentar o bicho.
O bicho realmente existia? Você acha que Ralph inventou ou estimulou a criação de histórias
sobre o bicho para gerar medo? Justifique sua resposta.
Filosofia • Módulo 7

Não há provas evidentes da existência do bicho; portanto, é possível que Ralph tenha manipulado informações. Seu
objetivo era gerar medo para tomar o poder.

41
ENTREATOS
Vimos anteriormente a diferença entre as palavras gregas physis (mundo natural) e nomos
(mundo criado pela cultura humana). As leis criadas pelos seres humanos são um exemplo de
nomos.
Será que existem leis que não sejam criação do ser humano? Ou seja, será que existe uma
lei natural, e não cultural, que reja os comportamentos humanos?
A esse respeito, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) escreveu:
[...] O homem possui, portanto, uma liberdade natural. Todos aqueles que compartilham a
mesma natureza, as mesmas faculdades e os mesmos poderes são iguais por natureza e devem
participar dos mesmos direitos e privilégios comuns [...].
LOCKE, John. Resumo do Primeiro Tratado sobre o Poder Civil. Segundo Tratado do Governo Civil. Disponível em: <https://www.netmundi.org/
home/wp-content/uploads/2018/04/locke-segundo_tratado_sobre_o_governo.pdf>. Acesso em: 23 set. 2019.

Seguindo o entendimento de Locke, a liberdade – entendida como igualdade de direitos – é


um direito natural e seu caráter é universal, ou seja, vale para todas as pessoas de forma idêntica.
Observe que o filósofo utiliza a palavra “homem” para se referir aos seres humanos em ge-
ral. Será que a igualdade universal de direitos, uma vez aplicada, implicou os mesmos direitos
para homens e mulheres?
No século XVIII, quando as ideias de Locke eram bastante debatidas, a filósofa inglesa Mary
Wollstonecraft (1759-1797) questionou a posição em que as mulheres eram mantidas na socie-
dade. Para ela, o uso do termo “homem” como sinônimo de “homens e mulheres” era errado
porque ocultava a situação de opressão em que as mulheres viviam – e que muitas vezes era
justificada como fruto da “inferioridade natural” das mulheres.

Reprodução/Tate Modern, Londres, Inglaterra.

A filósofa inglesa Mary Wollstonecraft denunciou


as diferenças de tratamento e formação entre
meninos e meninas, criticando o conceito
de “direitos naturais”, cujo caráter universal
era limitado pelas diferenças de gênero. Na
imagem, retrato da filósofa em pintura a óleo do
britânico John Opie (1761-1807).

42 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


Em seu livro Reivindicação dos direitos da mulher (1792), Wollstonecraft escreveu:
[...]
Frágeis em todos os sentidos da palavra, elas são obrigadas a contar com um homem
para qualquer bem-estar. No perigo mais insignificante, apoiam-se nele com tenacidade
parasita, pedindo socorro lastimosamente; e seu natural protetor estende o braço ou levanta lastimosamente: de
a voz para guardar – de quê? – a amada trêmula. Talvez do cenho de uma velha vaca ou do maneira em que há
assalto de um camundongo; uma ratazana seria um perigo mais sério. Em nome da razão lástima, compaixão.
cenho: fisionomia
e mesmo do bom senso, o que pode salvar tais seres do desprezo, ainda que sejam doces e sombria.
belos? [...]
Estou plenamente persuadida de que não daríamos importância a essas afetações infantis
se fosse permitido às meninas fazer exercício suficiente, se elas não fossem confinadas em
salas fechadas até seus músculos relaxarem e seus poderes de assimilação serem destruídos.
Indo adiante com esse argumento, se o temor nas meninas, em vez de ser acalentado e,
talvez, criado, fosse tratado da mesma maneira que a covardia nos meninos, logo veríamos as
mulheres sob aspectos mais dignos. É verdade que, então, elas não poderiam ser chamadas
com igual propriedade de doces flores que sorriem no caminho do homem, mas seriam
membros mais respeitáveis da sociedade e cumpririam as obrigações importantes da vida
por meio da luz de sua própria razão. [...]
Com que desgosto tenho ouvido mulheres sensatas falarem do cansativo confinamento
que suportaram na escola, já que as meninas são mais reprimidas e intimidadas do que os
meninos. Talvez não lhes seja permitido sair para um passeio prolongado em um jardim
suntuoso, mas são obrigadas a caminhar com uma postura estável, estupidamente, para
frente e para trás, erguendo a cabeça, com andar alinhado e os ombros esticados para trás,
sem saltar, como a natureza orienta para completar seu próprio desígnio.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.

Com base na leitura do trecho de Wollstonecraft reproduzido, responda:


a) Como as meninas eram educadas na época em que a autora escreveu o livro?
Eram educadas de forma a “seus músculos relaxarem e seus poderes de assimilação serem destruídos”, ou
seja, recebiam uma educação doméstica e anti-intelectual.

b) Segundo ela, o que seria necessário para tornar as mulheres “membros mais
respeitáveis da sociedade”?
Uma educação diferente, que desse as mesmas oportunidades que eram dadas aos meninos.

c) As mudanças reivindicadas por Wollstonecraft na criação das mulheres aconteceram?


Justifique.
Filosofia • Módulo 7

Resposta pessoal.

43
PRODUÇÃO

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) foi autor de diversas obras; Leviatã,
de 1651, é considerada a mais importante. Nesse livro, Hobbes afirma que faz parte da
natureza humana o uso da violência para obter vantagens ou se proteger de ameaças,
reais ou imaginadas. Uma vez que todos os seres humanos têm a tendência a usá-la, todo
humano é inimigo de todo humano.
Segundo Hobbes, os grupos humanos tendem ao caos, à guerra de todos contra todos,
e a única forma de superar essa situação é por meio da criação de um poder comum capaz
de impor a paz na sociedade, ou seja, obrigar as pessoas a respeitarem umas às outras.
Esse poder comum seria chamado de governo, responsável por criar as leis.
Ainda segundo Hobbes, o medo do caos e da guerra faz com que as pessoas aceitem
o governo e obedeçam às leis. O caos e a guerra surgiriam por causa do próprio caráter
das pessoas, que inclui a propensão à competição, desconfiança e vaidade.
Passado quase um século, o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) desen-
volveu ideias que iam contra as de Hobbes, afirmando a existência de uma bondade natural
dos seres humanos. Para Rousseau, o ser humano tende a perder a sua bondade natural quando
convive com os problemas trazidos pela vida em sociedade, principalmente a propriedade
privada (isto é, os objetos e bens que pertencem a somente uma pessoa), que gera desigual-
dade, cobiça e ambição.
Como resolver esse problema? Se as regras – criadas pela vida em sociedade – fossem
abolidas, o ser humano voltaria a seu estado de bondade natural? Rousseau não chegou a
essa conclusão. Em vez disso, discorreu sobre a possibilidade de criar regras de uma nova
forma, que envolvesse interesses coletivos e não individuais, o que chamou de democracia.
Reprodução/Galeria Nacional do Retrato, Londres, Inglaterra.

Reprodução/Museu Antoine-Lécuyer, Saint-Quentin, França.

Os filósofos Thomas Hobbes (1588-1679) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tinham ideias bastante diferentes a respeito da natureza
humana. À esquerda, retrato de Hobbes em pintura a óleo do britânico John Michael Wright (1617-1694). À direita, retrato de Rousseau em
pastel sobre papel do francês Maurice Quentin de La Tour (1704-1788).

44 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


Formem grupos de 4 ou 5 alunos e discutam os itens a seguir. Em seguida, registrem as
respostas individualmente.
a) Se o professor anunciasse que, a partir de hoje, não existiriam mais regras na escola, o
que vocês acham que iria acontecer?
Resposta pessoal.

b) Se o professor anunciasse que, a partir de hoje, só existiriam três regras na escola,


definidas pelos alunos, quais seriam as três regras que você e seu grupo escolheriam?
Regra 1:
Respostas pessoais.

Regra 2:

Regra 3:

c) Qual seria o objetivo das regras propostas?


Resposta pessoal. Verifique a coerência das respostas, tendo em conta que resultam de uma análise das regras
propostas.

d) As regras criadas partem do princípio de que as pessoas são essencialmente boas,


mas cometem atos maus em convívio com outras pessoas, ou de que as pessoas
privilegiam seus interesses pessoais por natureza? Justifique.
Resposta pessoal. No momento de compartilhar as propostas, avalie a pertinência dos argumentos.
Filosofia • Módulo 7

45
ENTREATOS Na mão direita, o rei tem uma espada, símbolo da força imposta por
meio da violência; na mão esquerda, ele segura um cetro, símbolo
Leia, a seguir, um trecho de Leviatã. da autoridade reconhecida dentro e fora da sua própria comunidade.

É certo que há algumas criaturas vivas


Reprodução/Biblioteca Britânica, Londres, Inglaterra.

como as abelhas e as formigas, que vivem


sociavelmente umas com as outras [...],
sem outra direção senão os seus juízos e
apetites particulares, nem linguagem atra-
vés da qual possam indicar umas às outras
o que consideram adequado para o benefí-
cio comum. Assim, talvez haja alguém in-
teressado em saber por que a humanidade
não pode fazer o mesmo [...]
O acordo existente entre essas criatu-
ras é natural, ao passo que o dos homens
surge apenas através de um pacto, isto é,
artificialmente. Portanto não é de se ad-
mirar que seja necessária alguma coisa
mais, além de um pacto, para tornar cons-
tante e duradouro o seu acordo: ou seja,
um poder comum que os mantenha em
respeito, e que dirija suas ações no senti-
Recorte de capa do livro de do do benefício comum.
Thomas Hobbes, Leviatã. A única maneira de instituir um tal poder comum [...] é conferir toda sua força e poder a
Observe que o corpo do rei é
formado por pessoas. Atente,
um homem, ou a uma assembleia de homens [...]. O que equivale a dizer: designar um homem
também, aos símbolos de ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas.
poder que ele tem em cada HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo:
uma de suas mãos. O que Nova Cultural, 2000. p. 143-144.
eles representam?
No texto, vemos que Hobbes faz distinção entre as palavras acordo e pacto para nomear
comportamentos sociais próprios das comunidades de abelhas e formigas, de um lado, e dos
seres humanos, de outro.

1 Indique se as palavras a seguir estão relacionadas a acordo (A) ou pacto (P).


( P ) Cultura ( A ) Instinto ( A ) Natureza
( P ) Humanos ( P ) Artificialidade ( P ) Nomos
( A ) Physis ( A ) Abelhas ( P ) Racionalidade

2 Segundo Hobbes, os seres humanos necessitam de uma instância ou autoridade superior


que garanta o cumprimento dos combinados para a boa convivência entre eles.
Indique a seguir a palavra que melhor descreve a expressão “um homem ou uma assembleia
de homens como representante das pessoas”, no sentido usado no texto.
( ) Igreja
( ) Clube
( X ) Governo
( ) Exército

46 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


RASCUNHO

Filosofia • Módulo 7

47
RASCUNHO

48 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


MÓDULO

8
O QUE SÃO
VIRTUDES?

O confronto entre a mulher


com sangue em sua mão e o
policial armado, registrado
na fotografia ao lado, leva
à reflexão sobre uma das
virtudes mais reconhecidas
Sean Rayford/Getty Images
tradicionalmente na
Filosofia: a coragem,
ou seja, a capacidade
de enfrentar situações
que apresentam risco. A
virtude é uma espécie de
qualidade. Quais outras
virtudes existem? Qual é a
importância delas?

Fotografia tirada em meio aos protestos em Charlotte, na Carolina do


Norte, nos Estados Unidos, em 2016. As mobilizações foram motivadas
pela morte de um homem negro pela polícia fora de confronto.

49
DISCUSSÃO
Rawpixel.com/Shutterstock

O que uma pessoa boa faz? Quais são as suas qualidades? A palavra boa tem o mesmo
significado para todas as pessoas? Significa o mesmo em todas as situações? O adjetivo
bom usado para qualificar um indivíduo tem o mesmo sentido do adjetivo bom usado para
qualificar um eletrodoméstico, por exemplo?
Embora existam diferenças em seus significados, o uso da palavra bom tem conotação
positiva. O mesmo ocorre com as virtudes, que, de um modo simplificado, podem ser defini-
das como as qualidades que as pessoas boas têm, relacionadas à ideia de justiça ou de bem.
Por exemplo, as pessoas podem praticar ações corajosas. A coragem é uma qualidade
que reconhecemos em pessoas que realizam algo mesmo quando existem riscos ou dificul-
dades relevantes e ainda que os reconheçam e sintam medo. A atividade deve ser feita,
preferencialmente, em duplas.

1 Observe a lista de virtudes a seguir e relacione-as à descrição adequada, conforme o modelo.

( e ) Qualidade de quem ajuda os outros; é gentil e cuidadoso; faz favores e


a) Ponderação boas ações; tem cuidado com outras pessoas.

( i ) Qualidade de quem não assume riscos quando não há necessidade;


b) Coragem não age por impulso, e assim evita arrependimentos e consequências
negativas.

( j ) Qualidade de quem age e sente de maneira controlada; tem disciplina;


c) Integridade conhece e controla emoções.

( g ) Qualidade de quem perdoa as pessoas que erram; aceita os defeitos


d) Vitalidade dos outros; não se vinga.

( a ) Qualidade de quem analisa diversos lados de uma questão; não tira


e) Bondade conclusões precipitadas; é capaz de mudar de ideia.

( f ) Qualidade de quem trata as pessoas de maneira igualitária,


f) Equidade independentemente de sentimentos pessoais por elas.

( d ) Qualidade de quem tem entusiasmo; leva a vida de maneira


g) Misericórdia empolgante e com energia.

( k ) Qualidade de quem é consciente do que de bom acontece e agradece


h) Humildade/modéstia por isso; reconhece favores e sabe como demonstrar.

( b ) Qualidade de quem é capaz de agir mesmo quando existem riscos ou


i) Prudência dificuldades importantes.

( c ) Qualidade de quem é genuíno, age de maneira sincera, assume a


j) Autocontrole responsabilidade pelo que fala e faz.

( h ) Qualidade de quem não se acha mais especial que os outros; não se


k) Gratidão expõe em demasia; deixa que suas ações falem por si mesmas em vez de
propagandeá-las.

50 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


2 Agora, com base no quadro da questão 1, faça o que se pede.
a) Indique virtudes que você julga ter.
Resposta pessoal.

b) Narre brevemente uma situação em que uma virtude citada no item a tenha
influenciado suas atitudes.
Resposta pessoal.

c) Para você, uma pessoa é ou não virtuosa desde o nascimento ou pode desenvolver
virtudes? De que forma esse aprendizado aconteceria?
Resposta pessoal.

d) Indique uma virtude que você ainda não desenvolveu ou ainda não desenvolveu
plenamente, mas gostaria de ter. Justifique.
Resposta pessoal.

3 O escritor estadunidense Kurt Vonnegut (1922-2007), certa vez, conversou sobre o sentido
da vida com seus filhos. Leia o relato a seguir.
[...] Tenho sete filhos, três deles sobrinhos órfãos. Fiz minha grande pergunta sobre a vida ao
meu filho pediatra. O dr. Vonnegut disse ao seu trêmulo e velho papai: “Pai, estamos aqui para ajudar
uns aos outros a atravessar esta coisa, seja lá o que for”. [...]
Disponível em: <http://g1.globo.com/platb/geneton/2009/10/16/kurt-vonnegut-manda-lembrancas-o-
homem-que-aprendeu-o-sentido-da-vida-com-o-filho-e-licoes-de-guerra-com-um-coronel-quero-que-
voces-se-tornem-a-maior-corja-de-safados-da-historia/>. Acesso em: 29 ago. 2019.

As virtudes que você indicou no exercício 2 contribuem para uma vida com sentido? Justifique
sua resposta.
Resposta pessoal. Espera-se que os alunos identifiquem que as virtudes indicadas de alguma forma contribuem para
Filosofia • Módulo 8

que a convivência, inevitável, seja positiva.

51
premissa: fato inicial ENTREATOS
a partir do qual
se desenvolve um O texto a seguir trata da visão do filósofo Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) sobre a felicidade.
pensamento ou um Leia-o com atenção, reflita sobre suas ideias e, depois, responda às questões.
estudo.
vício: no contexto, Aristóteles e a felicidade
qualidade negativa,
defeito, aspecto não [...] Aristóteles concordava com Sócrates quanto à premissa de que a felicidade depende
virtuoso. da contenção dos desejos (ou vícios), os quais podem ser ilimitados. Ele não nega a busca pelo
prazer sensorial: prazer prazer sensorial, mas afirma que se trata de uma busca para curar um sofrimento pelo prazer
vivenciado com os
sentidos do corpo físico contrário. [...]
(tato, olfato, audição, [...] Aristóteles desenvolveu todo seu raciocínio em
paladar e visão). torno do exercício da virtude como forma de se alcan-
autodepreciar: ato de çar a felicidade.
desvalorizar a si mesmo.
A virtude é a razão em movimento, capaz de con-
prodigalidade:
generosidade excessiva,
trolar o desejo e guiar a direção da vida. A regra geral
esbanjamento. para se praticar a virtude é encontrar o “meio-termo”,
comedimento: ou seja, cada um deve educar seu comportamento
moderação. através do exercício da razão, escolhendo com sabedo-
ria diante de extremos. Por exemplo, entre ser covarde
ou impetuoso, o virtuoso saberá a medida da coragem;
entre ser arrogante ou se autodepreciar, saberá a me-
dida da humildade; entre a prodigalidade e a avareza,
saberá a medida do comedimento; entre a raiva e a pa-
ralisia, encontrará a serenidade.
A referência do “meio-termo” ou da justa medida
será sempre a própria pessoa, e não uma referência de
fora, que serve para todos. E essa pessoa, praticando
a virtude, se tornará melhor. A virtude, como modo
de vida, levará a um estado de felicidade constante e,
ainda que existam dissabores e infortúnios, a pessoa
virtuosa saberá enfrentá-los de maneira mais nobre,
conservando, a longo prazo, a felicidade.
ARISTÓTELES e a felicidade. Metro Jornal. 7 fev. 2019. Disponível em:
<https://www.metrojornal.com.br/colunistas/2017/02/07/
aristoteles-e-a-felicidade.html>. Acesso em: 29 ago. 2019.

O texto aborda dois campos da experiência humana: o sensorial, dos sentidos físicos, e o
racional, relacionado à nossa capacidade de pensar.
52 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano
1 Sobre as ideias de Aristóteles expressas no trecho reproduzido, assinale V para as proposi-
ções verdadeiras e F para as proposições falsas.
( V ) Há muitos desejos e vícios relacionados aos prazeres sensoriais.
( F ) Os prazeres sensoriais, para Aristóteles, correspondem à felicidade.
( V ) Por serem ilimitados, os desejos e os vícios só podem ser controlados pela razão.
( F ) Para Aristóteles, é possível ser virtuoso sem ser racional.
( V ) Para Aristóteles, não é possível ser feliz sem ser virtuoso.
( V ) Para Aristóteles, a virtude é a capacidade de encontrar o meio-termo entre
comportamentos extremos.

2 A impetuosidade, segundo o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis, é carac-


terística “de quem age sob o impulso do momento, de maneira irrefletida”.
Segundo o texto sobre a felicidade para Aristóteles, a impetuosidade está relacionada ao
excesso de coragem, e, por isso, não é considerada uma virtude.
Na definição mencionada, quais palavras indicam que a impetuosidade, segundo as ideias
de Aristóteles, não deve ser considerada uma virtude? Justifique.
“Impulso” e “irrefletida”, pois denotam a ausência de razão.

3 Assinale a alternativa em que são citados apenas comportamentos considerados extremos.


a) Covardia, serenidade, avareza.
b) Paralisia, coragem, comedimento.
c) Raiva, impetuosidade, prodigalidade. X
d) Arrogância, autodepreciação, humildade.

De relance
Estamos rodeados de diversas propagandas: algumas oferecem alimentos pouco saudáveis – há empresas
que dão, até mesmo, brindes para crianças que comam fast food; outras exibem pessoas extremamente
magras que correspondem a um padrão inatingível e, muitas vezes, não saudável. Há reportagens que nos
detalham as privações necessárias para alcançar o modelo de corpo que se espera – especialmente das
mulheres. Dessa forma, somos estimulados sempre em direção aos extremos em vez de ao meio-termo.
Cathy, Cathy Guisewite © 2007 Cathy Guisewite /
Dist. by Andrews McMeel Syndication

Filosofia • Módulo 8

53
COMPREENSÃO

Como vimos, existem diversas virtudes. Um dos grandes questionamentos filosóficos a esse
respeito é: As virtudes podem ser aprendidas? Caso possam, isso ocorreria por meio de aulas
de Filosofia? Para o filósofo Aristóteles, não: as virtudes estão mais relacionadas à prática do
que à teoria, ainda que a razão seja sempre importante na tomada de decisões virtuosas. E, na
prática, uma das principais maneiras de aprender virtudes é por meio de exemplos de pessoas
virtuosas.
O texto a seguir é sobre um grupo de jovens negras do Rio de Janeiro que se mobilizaram
inspiradas pelo exemplo positivo da vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março
de 2018 aos 38 anos. Marielle viveu na Favela da Maré desde os 11 anos e trabalhou como
vendedora ambulante para ajudar os pais e para financiar seus estudos. Após estudar em um
pré-vestibular comunitário, ingressou na PUC-RJ, na qual se formou como socióloga. Em seus
estudos e em sua atuação política, Marielle defendeu a causa dos direitos humanos, auxiliando
diversas vítimas da violência e seus familiares, tanto civis como policiais.

Vida e trajetória de Marielle inspiram projetos de jovens negras de favelas

Renan OLAZ/Rio de Janeiro Municipal Chamber/Agência France-Presse


Marielle Franco na Câmara Municipal
do Rio de Janeiro em 2017.

Se calaram Marielle Franco, falam cada vez mais alto as Blendas, Milenas, Thaises e Rayannes.
É uma geração de mulheres jovens, negras e criadas em favelas, a exemplo da vereadora, que
foram impulsionadas por sua eleição e por sua morte [...].
São ativistas que viram na parlamentar um estímulo para seus projetos políticos ou sociais.
“Não tem como falar da gente sem falar das que vieram antes”, diz Milena Santos, 24, nascida no
morro do Borel, na zona norte carioca.
No caso dela e de sua amiga Blenda Paulino, 20, Marielle serviu como semente. Dias depois
do assassinato da vereadora, elas fundaram com amigos de outras favelas um coletivo para
discutir política.
54 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano
O grupo de jovens, batizado de Brota na Laje, se reúne quinzenalmente em lajes da zona
norte para aproximar o tema de suas comunidades. O próximo passo é implantar um cursinho
pré-vestibular no Borel. Foi por meio de um desses cursinhos que Marielle, nascida no Complexo
da Maré, chegou à PUC-Rio.
“A Marielle foi a primeira mulher negra em quem votei. E votei com a maior felicidade do mundo,
por ser alguém que sabia que abraçaria as causas que me afetam diretamente”, afirma Blenda.
[...]
Rayanne da Silva, 21, esteve com Marielle na noite de seu assassinato. Também ex-assessora
da parlamentar, a jovem participou do evento com mulheres negras em que ela estava momentos
antes de ser morta. “Temos que transformar o medo em alguma coisa. Existia uma Marielle, mas
olha quantas somos”, afirma.
[...]
ALBUQUERQUE, Ana Luiza; BARBON, Júlia. Vida e trajetória de Marielle inspiram projetos de jovens negras de favelas.
Folha de S.Paulo. 14 mar. 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/
vida-e-trajetoria-de-marielle-inspiram-projetos-de-jovens-negras-de-favelas.shtml>. Acesso em: 23 set. 2019.

1 Com base na leitura do texto, responda:


a) O que, na vida de Marielle, serviu de inspiração às jovens?
Pode-se falar do fato de ter conseguido se formar em uma boa universidade mesmo sem ter tido privilégios ou
de ter participado ativamente da vida política, bastante excludente para as pessoas pobres, em especial mulheres
negras. Além disso, elas podem ter se inspirado pela pauta de lutas de Marielle, com a qual se identificam.

b) Quais virtudes de Marielle teriam sido importantes nessa inspiração?


Resposta pessoal. Pode-se falar em bondade, integridade e coragem.

c) A jovem Rayanne da Silva diz que é preciso “transformar o medo em alguma coisa”.
Como os projetos do grupo se relacionam à história de Marielle?
A ideia de formar um cursinho popular tem relação com o histórico de sucesso de Marielle nos estudos e de ela
ter frequentado uma dessas instituições. O objetivo de discutir política se refere ao histórico de Marielle como
vereadora e militante.

2 Você conhece alguém que considera exemplar? Quais qualidades dessa pessoa você gostaria
de desenvolver?
Resposta pessoal.

3 Como você acredita que poderia desenvolver as virtudes que gostaria de ter?
Filosofia • Módulo 8

Resposta pessoal.

55
ENTREATOS
Hoje em dia, é raro escrevermos cartas. Mais raro ainda seria escrever uma carta não para
outra pessoa, mas para você mesmo(a). Para o seu “eu” do futuro.
A seguir, leia uma carta escrita por uma pessoa a quem ela será no futuro.
Querido eu...
Eu não quero esquecer o que eu sinto hoje e também não gostaria que você esquecesse
tudo isso. Que essa carta seja a chave para as recordações. Eu vivo hoje um momento feliz (nem
sempre é a melancolia, felizmente, que inspira as nossas letras). [...]
Não se esqueça de que os projetos precisam de tempo, de que as pessoas precisam de tempo,
de que o trabalho precisa de tempo. Você é o único que domina o seu tempo, e não o contrário,
como muitos acreditam. Faça-se dono dele e dê-lhe um sentido, deixe o tempo falar, deixe os
momentos preencherem os relógios da história.
Nesta carta você encontrará as aventuras que viveu, o que o faz orgulhar-se do que é hoje,
sobretudo o que o torna especial e diferente. [...]
Eu quero que você, meu eu futuro, não esqueça a sua origem, e por isso eu lhe escrevo.
Lembre-se de tudo o que você já viveu. Mais do que agradecer, desfrute de quem está ao seu lado
e quem caminha com você. Se você está se lembrando agora de alguém que conheceu e perdeu o
contato, ligue para ele, agradeça pelo lugar que ocupa na sua memória e no seu sorriso.
Nesta carta ao meu eu futuro, toda a minha essência está plena de esperanças e desejos:
meu desejo de continuar, meu desejo de seguir aprendendo. Eu não quero que eles se percam
ao longo do caminho e, se assim for, esforce-se para encontrá-los novamente; não podemos
permitir que o vento dite o nosso destino.
Espero que você, meu eu futuro, tenha sabido crescer e se adaptar sem se perder ao longo
do caminho. Quero que você escreva outra carta para o meu eu futuro e fortaleça essa crença de
que há sonhos que valem a pena. Valem a pena ser imaginados, planejados, vividos e, inclusive,
não realizados. Viva!
CARTA ao meu eu futuro. A mente é maravilhosa. 29 nov. 2017.
Disponível em: <https://amenteemaravilhosa.com.br/carta-ao-meu-eu-futuro/>. Acesso em: 29 ago. 2019.

1 Por que alguém escreveria uma carta para si mesmo?


Resposta pessoal. Algumas possibilidades de resposta são: para deixar mais claro o que se quer ser no futuro; como
forma de imaginar como será o futuro; para compor um registro das ideias que tem no momento para que possa se
recordar delas no futuro; ou, ainda, para sintetizar valores sobre quem a pessoa será.

2 Alguns trechos da carta estão destacados em diferentes cores. Esses trechos tratam de
virtudes que o “eu de hoje” deseja que o seu “eu de amanhã” tenha.
Relacione as virtudes a seguir à cor destacada no texto.
Autoconhecimento: lilás Gratidão: rosa
Companheirismo: verde Humildade: amarelo
Disciplina: azul

3 Na sua opinião, qual das virtudes citadas é a que mais colabora para uma boa convivência
entre as pessoas? Explique a sua escolha.
Resposta pessoal.

56 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


PRODUÇÃO

Na seção Entreatos, vimos um exemplo de carta escrita para o “eu” futuro. Agora, chegou
a sua vez de escrever uma carta para o seu eu futuro.

art of line/Shutterstock
Siga as instruções e dicas abaixo:
Você escreverá para o seu “eu” como se este estivesse dez anos no futuro.
Não precisa ser formal. Afinal, você e você mesmo(a) já se conhecem bem.
Apresente quem você é hoje, com as virtudes que acredita que desenvolveu e com as vir-
Filosofia • Módulo 8

tudes que gostaria de desenvolver.


Fale de uma pessoa ou de mais de uma pessoa que você toma como exemplo do que quer
ser daqui a dez anos: por que você admira essa pessoa? Quais são suas virtudes?
Registre como você gostaria de se tornar uma pessoa melhor – não que você vá se tornar
outra pessoa, mas quem sabe uma versão melhorada de quem você é hoje.
57
Querido eu futuro,

58 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


ENTREATOS
Na Filosofia, falamos de vício como o contrário de virtude. Mas, cotidianamente, usamos
o termo vício para algo mais específico: um comportamento compulsivo (não racional) muito
difícil de controlar. O texto a seguir trata do termo nesse segundo sentido.
Leia-o com atenção e faça as atividades.

O que é o vício on-line


O comportamento compulsivo – seja ele relacionado a comida, jogos, esportes, autodisci-
plina ou até piadas ruins – faz com que a pessoa perca o controle sobre o quanto algo ocupa de
energia e tempo na sua vida, de tal forma que essa atividade atrapalha outras esferas sociais,
como a do trabalho e das relações pessoais e familiares, chegando até a ser prejudicial à saúde.
Com tecnologia e o meio digital, o quadro não é diferente. No fim de 2017, a OMS (Organi-
zação Mundial da Saúde) decidiu incluir a compulsão por jogos eletrônicos como transtorno
mental em sua lista de doenças. A obsessão por celulares, seja para acessar redes sociais, jogar
algo como passatempo ou checar e-mail, não é configurada como doença, mas não deixa de ser
percebida como um problema. Rawpixel.com/Shutterstock

Em agosto de 2016, a cantora ame-


ricana Selena Gomez jogou luz sobre a
questão ao cancelar sua turnê por mo-
tivos de saúde. A jovem celebridade do
pop disse estar sofrendo de depressão
e ansiedade e apontou o uso de redes
sociais, em especial o Instagram, como
responsável. “Assim que eu me tornei a
pessoa com mais seguidores no Insta-
gram, eu meio que surtei”, disse a can-
tora em março de 2017 à revista Vogue,
após três meses de tratamento.
“Aquilo se tornou algo que me
consumia. Eu acordava e dormia para
aquilo. Eu era uma viciada. [...] Por
isso estou agora meio fora do radar,
um pouquinho sumida”. No Brasil, o
cantor Tiago Iorc tomou uma decisão
semelhante. Em publicação feita no
Instagram no dia 7 de janeiro, o mú-
sico diz que estava precisando de um
descanso e se ausentaria “dessa nossa
vida instagrâmica que nos consome”.
[...]
A pessoa com dependência tecnológica geralmente apresenta sinais que apontam para a
existência do problema. Irritabilidade, ansiedade, isolamento e angústia por ficar desconectado
Filosofia • Módulo 8

ou distante do celular, computador ou videogame são alguns deles. Esses sinais, aliás, muito se
aproximam dos já conhecidos em casos de dependentes químicos.
[...]
“VICIADOS” em tecnologia utilizam celulares e aplicativos por horas e desenvolvem distúrbios mentais.
Gazeta. 4 maio 2018. Disponível em:<http://gazeta-rs.com.br/viciados-em-tecnologia-utilizam-celulares-e-aplicativos-
por-horas-e-desenvolvem-disturbios-mentais/>. Acesso em: 29 ago. 2019.

59
1 O fato de pessoas estarem viciadas em tecnologia significa que elas não devem utilizá-la?
Justifique sua resposta.
Espera-se que os alunos considerem a questão da moderação: a alternativa para um uso excessivo pode ser um uso
ponderado e não o abandono da tecnologia.

2 A seguir são citados tipos de excesso e a virtude que poderia evitá-lo.

descontrole – autocontrole
irritação – serenidade
impaciência – paciência
tendência ao exagero – moderação

Imagine que você tem um amigo que cometa um desses excessos com certa frequência –
pode ser em relação a tecnologia, comida, jogos ou outros. Dê ao seu amigo um conselho
para que ele desenvolva a virtude que pode ajudá-lo.
Atenção: Além de citar a virtude, proponha um caminho – uma atividade, um novo hábito,
um exercício – que pode ajudá-lo a alcançá-la.
Resposta pessoal.
Reprodução/Coleção particular

Epicuro
(341 a.C.-270 a.C.)

Epicuro de Samos foi um filósofo grego que, de maneira diferente


de Aristóteles, também defendeu um comportamento moderado.
Epicuro fundou sua própria escola filosófica, em um espaço que ficou
conhecido como “O Jardim” – que admitia, ao contrário de outras
escolas, a participação de mulheres e pessoas escravizadas. Para
Epicuro, o prazer deveria ser visto de forma positiva e era, na verdade,
a essência de uma vida realmente sábia. Isso não significava, contudo,
que deveríamos nos entregar a todos os tipos de prazeres, pois alguns
prazeres provocam maior sofrimento posteriormente (como quando
passamos mal após comer demais). Assim, o cerne da vida sábia seria
a busca pelo prazer moderado, que evitaria sofrimentos maiores. Na
imagem, ilustração de Epicuro de autoria desconhecida.

60 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


RASCUNHO

Filosofia • Módulo 8

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RASCUNHO

62 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


RASCUNHO

Filosofia • Módulo 8

63
RASCUNHO

64 Ensino Fundamental – Anos Finais • 6o ano


FILOSOFIA

6
A formação de sujeitos capazes de refletir a respeito da
realidade em que vivemos, bem como conscientes de
seu papel, é essencial na construção de um mundo mais
justo e sustentável. A Filosofia, nesse sentido, tem muito
a contribuir para o processo de educação integral dos
jovens, ao mobilizar conhecimentos que lhes possibilitam
compreender a sociedade e nela atuar.
CADERNO 2
O material de Filosofia foi pensado para auxiliar no
desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos
dos anos finais do Ensino Fundamental, oferecendo
um conteúdo que promove a prática do “filosofar”, ou
seja, do pensar tendo como fundamento a dúvida e o
questionamento constantes. Além disso, a abordagem
da Filosofia proposta exercita elementos importantes e
valorizados no mercado de trabalho em transformação: a
capacidade de elaborar perguntas e de buscar meios de
responder a elas, a argumentação precisa e profunda, a
boa comunicação e o repertório cultural amplo.

As aulas sugerem provocações sobre temas instigantes e


convidam o aluno a refletir sob perspectivas diferentes
daquelas às quais ele está habituado. O aluno é
incentivado a ler, produzir textos e interpretar imagens, o
que colabora na consolidação de seu aprendizado. Com
isso, pretende-se favorecer que os jovens alunos tenham
uma postura analítica e autônoma, preparando-os para
assumir e até mesmo criar novos papéis na sociedade.

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