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Choriro

Ungulani Ba ka Khossa
A notícia correu célere. Os batuques, em profundos e largos tons, rufaram em toda
a plenitude durante três dias e três noites por todo o reino. Os chuangas fizeram chegar
aos pontos mais distantes a notícia de que Luís António Gregódio, o  mambo das terras
a  norte do rio Zambeze, havia morrido sem sobressaltos durante a madrugada de
quinta-feira.

Aos próximos, gente grada, a notícia da morte não os colheu de surpresa, pois a
enfermidade que tocara Gregódio levara-os a privar com ele na intimidade dos seus
aposentos durante as semanas de agonia do mambo. Chicuacha fora dos primeiros, entre
as figuras de relevo do reino, a dar-se conta da gravidade da doença que amarrava
à cama o branco Gregódio.

Tirando este e  aquele tributo, Chicuacha não gozava de um estatuto hierárquico


especial, mas era respeitado por todos, não por ser branco como o Gregódio, mas pela
sua notória capacidade de aculturação que remontava aos tempos em que queria largar
a sotaina, vestimenta de pouca valia nos sertões africanos, por ser incómoda e  de
significado algum para os cafres, mas de proveitosa serventia na protecção física, pelo
seu valor espiritual, ante as constantes e inesperadas arremetidas de facínoras e burlões
que medravam o vale do Zambeze à busca de escravos e presas de elefante de tanta
procura no Vice-Reinado das Índias. Mas o  ardente e  inclemente clima tropical foi
adiando tal decreto, por motivos que não lhe vinham à  mente, até ao dia em que tomou,
não por mero arrebatamento ou cansaço, mas por decisão espiritualmente assumida,
o acto de abandonar as batinas e os escritos sagrados que o  acompanharam nas
monoteístas aventuras sagradas por terras do além-mar, quando nas terras de Gregódio
viu, com todo o espanto do mundo, os cafres a manufacturarem a pólvora à base da
casca de uma árvore, misturada com salitre ou terra empapada de ácido de urina de
coelho.

Feita a mistura, queimavam-na, e dela extraíam a pólvora por entre os resíduos


carbonizados. Perante tal feito, inaudito em mentes concebidas como selvagens,
António Gonzaga, de nome, e Chicuacha de alcu-nha, abjurou os pecaminosos
adjectivos que ainda sobravam no seu diminuto léxico sobre o  modo de vida dos pretos
da savana e,  sem espantar ninguém, abandonou em definitivo o incómodo hábito de
padre que trouxera de Lisboa concubinando-se em seguida, num gesto não desusado
entre os servidores de Deus, com Fita, uma das acólitas dos swequiros ou mubalas de
Gregódio, chefe das terras da margem norte do Zambeze, a três dias de marcha forçada
da fronteira mais a sul, a feira do Zumbo, o mais longínquo entreposto português
a montante do rio. Coberto até ao pescoço por um lençol, o corpo de Luís António
Gregódio estava deitado na cama. Quem o  visse apercebia-se pelo rosto sereno
e tranquilo que recebera a morte com a certeza de que o seu espírito estaria para todo
o sempre entre os vivos da terra que erigira como seu reino. A rodeá-lo, as seis
mulheres, os filhos, e os maiores do reino. Destes, o seu lugar-tenente, o muanamambo
Makula Ganunga; o responsável dos ferreiros, o messiri Tyago Chicandari;
o responsável junto à  realeza pelos actos fúnebres, o  sabevira Lelo Mpuka; o  chefe
dos mensageiros e  cobradores de impostos, o  chuanga Kamute Matega; o  responsável
pelos bichos, escravos encarregados das tarefas domésticas, o Jili Ndoro; os médiuns
Nyazimbiri, Chatula e outros. Chicuacha, um pouco Choriro afastado dos principais do
reino, estava entre os demais de não menos importância. E todos, grandes e não menos
grandes, chamados às pressas dos seus cómodos, entreolhavam--se, não surpreendidos,
porque o  acto já era esperado, mas embaraçados com a morte placidamente estampada
no corpo de Gregódio.

O quarto não era de todo estranho a Chicuacha, pois nele entrara nos princípios da
doença do Gregódio. E fora numa manhã. Os raios de sol infiltravam-se pelas frestas do
tecto de palha e  dispersavam-se pelo quarto amplo onde, além da cama artesanalmente
trabalhada, pontificavam potes, cinzelados uns, lisos outros, cheios de raízes e folhas
secas, zagaias, peles de animais, e  lanças desordenadamente expostas. As espingardas
de fabrico caseiro e  de carregar pela boca que os nativos chamam de gogodelas ou
gugudas, dependendo da pronúncia, alinhavam-se ao acaso, e em número de sete, pela
parede à cabeceira da cama. Os acatemo espalhavam-se sobre as peles de cabrito e  de
leopardo que cobriam grande parte do chão de adobe. Na borda da cama, como que
a precaver-se de qualquer incidente, estava a espingarda de percussão que Gregódio não
dispensava nos seus adereços de rei, por ser

moderna em relação às gogodelas e às espingardas de pederneira. A isso, e expostos


sobre a corda que atravessava a largura do quarto, acresciam os panos das trocas
comerciais e  vários chimpotes que reluziam aos fiapos de luz, como estalactites
brilhando em pequenas grutas de sombras fugidias que o  quarto meio soturno
projectava, dando ao aposento o  tom lusco-fusco, próprio de lugares afeitos às refregas
do amor, mas que Gregódio, assumido rei de um estado militar, transformara em cenário
predilecto dos solitários e intermináveis conluios para a sua manutenção no poder,
sentando-se na cadeira adornada com peles de leão e  leopardo que ora, Choriro
afastado dos principais do reino, estava entre os demais de não menos importância.
E todos, grandes e não menos grandes, chamados às pressas dos seus cómodos,
entreolhavam-se, não surpreendidos, porque o ato já era esperado, mas embaraçados
com a morte placidamente estampada no corpo de Gregódio.

Relutante, dissimulando tremores dos momentos de imprevisão, roçando com a calça de


ganga uma bacia com chocalhos, afastando com o pé um acatemo, Chicuacha estendeu
vagarosamente as mãos pelos braços da cadeira real, e assentou o traseiro com as
cautelas de um intruso, com olhos atentos à desordenada geometria de objetos expostos
no quarto, na luz difusa e silêncio carregado, objetos inertes. Era a África de sons e
vozes ausentes. Era a África dos chocalhos e amuletos repousando num quarto soturno.
Era a África de cores novas expostas num espaço preenchido por objetos que alguns
chamariam de bricabraques, mas que ali assumiam um significado presente e não
passado.

De cabeça recostada numa almofada feita de palha, Gregódio passava lentamente a mão
esquerda pela cabeleira em caracóis. Os olhos, desgastados pela doença, assomaram na
meia claridade do quarto, percorreram os longos cabelos de Chicuacha e detiveram-se
nos olhos de um azul de céu de tarde limpa, sempre inquietos e vorazes, como os vira
pela primeira vez há mais de dez anos no pequeno adro da igreja da vila de Tete.

– O que te deu, Chicuacha?

– Os teus ossos, homem. Eles dormem muito...

– Estão velhos.

– É preciso mexer o corpo.

– As dores não estão contigo.

– Espalharam-se pelo reino, Gregódio.

– É verdade... O tempo passa e não nos damos conta...

Agora que te vejo lembro-me do dia...


– Ainda me recordo.

– Tempos novos aqueles...

– Todos os tempos são novos, irmão.

– Mas cada um tem o seu.

– É verdade... eras jovem...

– É... Era jovem.

A vila de Tete, nos então anos quarenta, cinquenta, do século dezanove, era uma
pequena povoação com cerca de cem brancos que se intitulavam portugueses europeus,
como forma de distanciarem-se dos mais de cento e cinquenta filhos de Goa que muito
se orgulhavam de ser portugueses. O trato entre eles não era de todo cortês, por os
brancos, incomodados com a presença sempre crescente dos canarins, chamarem-lhes,
quando os nervos vinham à pele em momentos de infortúnio nas incumbências do
comércio, judeus asiáticos pelas felizes e lucrativas artimanhas que tinham no trato com
as mercadorias trafegadas, e outras ocupações ligadas ao comércio de panos e bebidas
e diversas quinquilharias de maior e menor valia para os pequenos e grandes reinos do
sertão africano. A falta de tato no comércio devia-se, segundo os governantes
portugueses conluiados com os baneanes   designação depreciativa que se dava aos
canarins, à indolência provocada pelo crescente e vergonhoso concubinato de brancos
com os cafres da terra e as centenas de mestiças que despontavam, colorindo de alegria
e ritmo o mapa racial de Tete. Mas os detratores, em geral governantes recém-chegados,
cedo se rendiam aos encantos das negras e mestiças, deixando, amiudadas vezes, as
poucas senhoras brancas na solidão dos quartos calorentos.

Tirando as explicações caluniosas, era facto que havia poucas mulheres brancas para o 
crescente número de brancos amancebando-se com devota paixão com negras e 
mestiças, que por força do casamento ou herança se tornaram donas de vastas terras, e 
governantes de muita riqueza e  prestígio, como a  Dona Josefina Castel branco, filha de
um antigo prazeiro com uma negra forra, que a jusante do Zambeze, e nas proximidades
da garganta de Lupata, conseguiu ampliar a fortuna herdada graças, não só ao comércio
com o interior e ao fornecimento de escoltas aos caçadores, mas também aos despojos,
segundo as más-línguas, das barcaças naufragadas com mercadorias que não
conseguiam transpor os rápidos e as inúmeras saliências rochosas que afloravam no
leito do rio.

Para outros, e a ter-se em conta o diz e não diz, a riqueza e fama da Dona Josefina
deveu-se, em grande medida, ao tráfico sexual. Era prática, na aringa da Dona Josefina,
a comercialização de mulheres virgens especialmente treinadas para engrossarem os
haréns dos senhores de terras, e eventuais caçadores e comerciantes. Ela comprava-as
ainda imberbes e treinava-as nos complexos rituais da sensualidade e nos modos de
estar em casas senhoriais. A coadjuvá-la estavam as inhacodas, que em prazos antigos
desempenhavam o papel de chefes de mulheres escravas. A elas cabia disciplinar as
noviças, amaciá-las e torná-las sedutoras e apetecíveis. As que não se prestassem, por
relutância ou desprezo, eram entregues, como se ouvia dizer em lugares distantes como
Tete ou Zumbo, por castigo e para servir de exemplo, a macacos especialmente
adestrados para as desvirginar. Verdade ou mentira, tais práticas com símios nunca se
confirmaram, e Chicuacha, nas suas deambulações pelo baixo Zambeze e no tempo já
largo de estada nas terras da Dona Josefina,

não pôde comprová-lo. Mas pôde atestar, por ter presenciado, o lançamento de escravos
revoltados às águas infestadas de crocodilos. Era prática, em muitos reinos do interior,
atirarem os insubmissos aos crocodilos ou submetê-los ao ordálio, prova que consistia
na capacidade de resistência dos arguidos em culpa maior ou menor a uma bebida
venenosa.

Ao tempo que Chicuacha conhecera Dona Josefina, esta era uma mulher de ancas
abertamente perturbadoras e seios fartos ondulando sob os panos coloridos que
animavam o sorriso aberto e malicioso que lançava aos visitantes. Quem a conhecesse
de superfície dificilmente imaginaria que por detrás daquelas maneiras suaves ocultava-
se um rosto autoritário e disciplinador. Fora a atividade comercial corrente e da
educação das virgens, ela transformara a aringa num discreto, mas lucrativo Choriro
serralho. Os comerciantes, militares e funcionários coloniais que se faziam à
propriedade, encontravam os leitos mais aquecidos da região. A aringa tornou-se, com o
tempo, uma passagem obrigatória para os que a  jusante ou a  montante se deslocavam
em direção à Sena ou a Tete. A Dona era, aos olhos de todos, uma mulher respeitada.
A vida de muitos dos notáveis passava, em matéria de alcova, pelas suas mãos
e ouvidos. E poucos ousavam dizer, de forma aberta, que ela se amancebava com um
preto membrudo que se fazia passar por guarda-costas. Aos olhos da época uma gentia
que se casasse com um branco não podia amancebar-se com um preto serviçal. Mas ela
não ocultava a sua paixão pelo preto Nazaré. Chegava a dizer que ninguém a podia
admoestar pelo facto de ter um preto na cama, porque eles, homens brancos e canarins,
não temendo a palavra do Senhor, quebravam o juramento feito no altar, amasiando-se
com pretas ainda frescas, requestadas na sua propriedade. Porque não poderia ela, dona
do seu nariz, ter um preto, se homens à sua altura rareavam? Ninguém, em abono da
verdade, a criticava abertamente.

Assim a viu, altiva, má, generosa, Chicuacha, quando pelas terras do baixo Zambeze se
aventurou em busca de um olhar

sobre a África imaginada. Na verdade, António Gonzaga, ou Chicuacha, muito antes de


Gregódio o ter acicatado a aventurar-se pelas terras do interior, já se havia entediado
com a pacatez da vila de Tete.

O apelo à aventura tocava fundo. No seu imaginário a África era mais profunda e densa
que aquele povoado de ruas poeirentas, sombras dispersas, gente indolente, casas mortas
ao sol, e o rio, largo e silencioso, espreitando e seguindo, com desdém, curva adiante,
em direção à costa. Para ele, aqueles sons tristes e secos que ecoavam em cada esquina,
sobre as pedras e galhos que os cabritos teimavam em levar à boca, não eram a África
do seu imaginário. A sua África era das densas encostas que iam diminuindo de
densidade ao atingirem a planície de chitas velozes que cortavam a savana à caça de
gazelas que em saltos rápidos desapareciam na floresta de ramos densos, que se batiam
quando bandos de pássaros se atiravam aos céus de nuvens brancas e dispersas. A sua
África, sonhada e vista, era a das manadas de elefantes abrindo ruidosamente carreiros
por entre a folhagem alta e verde, onde leões e leopardos se acoitavam, atentos e
participantes no inevitável equilíbrio da mãe natureza, na caça de kudus e impalas
e búfalos em cavalgadas vibrantes ao longo das savanas.

A sua África estava nos misteriosos crocodilos que emergiam das turvas águas do
Zambeze, espalhando-se depois em grupos, ao longo das manhãs, pelas margens onde
diligentes pássaros os esperavam para a quotidiana limpeza de parasitas nós
desnivelados e pontiagudos dentes que sobressaíam das largas e profundas mandíbulas.
Essa era a África idealizada que foi avistando à medida que navegava a montante do rio,
ao tempo da sua chegada ao continente e à região dos rios Sena e Tete.
De Sena a Tete, os canoeiros, em almadias ou em outras barcaças apropriadas, bastante
experimentados nas navegações fluviais, sabiam como enfrentar as traiçoeiras correntes
do rio que se tornavam fatais na época das chuvas. Mas em período bom a navegação
fazia-se sem grandes sobressaltos, exceptuando os momentos em que os hipopótamos,
querendo dar largas ao domínio que tinham das águas, mantinham os olhos à superfície,
obrigando os canoeiros a parar e esperar, por largos minutos, que eles submergissem e 
voltassem a emergir, de modo a conhecerem a rota a tomar. Caso não fizessem essas
paragens, bem ao gosto desses gigantes fluviais, corriam o risco de ver as canoas
abalroadas.

Era frequente, em presença de uma manada, os canoeiros fazerem-se à margem


e esperarem por melhores momentos, porque o mais perigoso nas andanças fluviais era
as canoas interporem-se entre uma fêmea e a cria. Nesses momentos o instinto protetor
da fêmea vinha ao de cima na fúria expedida em mais de uma tonelada de peso. As
canoas, quais ramos sem direção, revoluteavam sobre as águas furiosas, deixando
homens e mulheres a servir de pasto aos crocodilos que se refastelavam com a iguaria
prendada. Fora esses inadvertidos contratempos de imprecisa regularidade, a viagem,
durante o dia, fazia-se com muito agrado. As canoas, em remadas compassadas,
cortavam as águas ao som do canto dos homens que se imiscuía com natural
entrosamento nas melodias que a natureza ofertava. A energia melódica brotando dos
corpos negros e suados ritmava com o borbulhar das águas nos costados das canoas
deslizando sobre as águas prateadas.

Por serem cenas jamais vistas, agradava ao padre apreciar os musculados e suados
troncos negros dos canoeiros a refletir a luz através das gotas de água que os remos
atiravam às costas e braços, serpenteando depois pelas salientes veias despontando no
alegre e natural esforço de remar as centenas de canoas que sulcavam as águas do rio
Zambeze, transportando escravos e marfim, missangas e panos, dor e alegria. Eram
braços, vozes, cantos, choros, era o rio, era o Zambeze da fortuna e da desgraça,
abrindo-se por milhas e milhas de extensão.

Devido às correntes, sempre fortes em troços já conhecidos, a viagem de Sena a Tete


fazia-se por mais de duas semanas. E era no decorrer do bom período de navegação que
as centenas de ilhas desertas, geralmente submersas, se transformavam em postos de
paragem ao longo das noites. Os canoeiros acostavam às margens baixas e imprecisas
e, juntamente com os carregadores, apressavam-se em confecionar o jantar feito
invariavelmente de nsima, uma farinha cozida de cereais como o milho e a mexoeira,
acompanhada de peixe seco ou fresco e, em algumas ocasiões, de carne seca trazida do
interior.

Em geral, os indígenas, nas frequentes e animadas conversas em volta da fogueira, de


tanto acharem natural a beleza circundante, não se extasiavam com o intermitente
luzidio dos pirilampos, a  miríade de estrelas abarrotando o  céu, o sussurro das folhas
das árvores ou o longínquo rugir de um leão na savana dos predadores da noite. Eles
pasmavam como encantamento de Chicuacha ante o nascimento das ilhas de fogo com
que os canoeiros e carregadores pintavam as noites ao longo do leito do Zambeze. Na
escuridão das águas, era-lhe possível observar os intrigantes olhos dos crocodilos que
à direita e esquerda perscrutávamos movimentos humanos. Seguros nos pequenos
e confortantes pedaços de terra, os canoeiros poucas atenções prestavam aos repteis das
águas.

Estes, silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo iam, aos poucos,
fenecendo com a madrugada que ia abatendo as estrelas.

Diferentes dos carregadores, os canoeiros envergavam túnicas sem mangas e um pano
de chita, a que chamam de capunda, por volta da cintura e por cima de uma peça interior
conhecida por negonda. Outros, mas poucos, envergavam calções. Em atividade eles
apresentavam-se quase sempre de tronco nua precaridade no vestuário condizia com as
elevadas temperaturas, nada benéficas aos hábitos de padre que tanto o  incomodaram,
mas que, por religiosidade assumida e  jurada, fazia questão, nos iniciáticos momentos
de evangelização, de mostrar para diferenciar-se dos demais, de modo a  que a  ponte
entre a  terra e  os domínios do Senhor ficasse demarcada na sua pessoa através das
vestes que espantavam homens e mulheres que ostentavam com naturalidade os
inocentes seios, as nádegas e  as coxas, cobertas no enclave dos prazeres por uma tira
que não conseguia tapar os encaracolados tufos de cabelo emergentes, que tanto
perturbavam o  seu espírito de padre. Jovem ainda, Chicuacha mal disfarçava
a inquietude no rosto quando as veias do desejo iam intumescendo em presença das
sorridentes negras. Para sua consolação a água tépida do rio ajudava-lhe a abalar as
erupções nada condicentes com a sacralidade assumida.

Perante o silêncio dos demais, Makula Ganunga, a segunda mais im portante figura do
reino, por todos chamado muanamambo, por assim se designar, em língua local, o
adjunto do mambo, quebrou o silencio ao ordenar Kamute Matega, chefe dos
mensageiros e colectores de impostos, que mandasse os seus homens, os chuangas,
anunciar por todo o reino a morte do mambo António Gregódio. Assim o farei, disse
Kamute, afastando-se do grupo que ainda se mantinha cm silêncio à volta do cadáver.
Diga-lhes que o enterro será, como é norma, daqui a três dias. Aos reinos vizinhos
mande emissários especiais... Que rufem os tambores!... Leio Mpuka, pessoa
responsável pelas cerimónias fúnebres da casa real, mais conhecido por sabevira que
por nome próprio, pediu aos presentes que se retirassem do quarto porque era hora de
iniciar os preparativos do corpo. O sol raiara. Chicuacha, meio surpreso ainda,
reencontrou-se com a realidade do quarto e do tempo. O aposento pouco mudara desde
que ali estivera. A morte, como é natural, deslocara objectos. Os acatemo e as peles de
leopardo foram agrupados a um canto do quarto. A corda onde pendiam os chimpotes,
os conhecidos colares de missangas, foi retirada para dar espaço às figuras do reino. O
corpo, inerte, estava estendido no meio da cama. A anua que se destacava à beira do
leito havia dado sumiço. Gregódio está morto, pensou, seguindo os demais em direcção
à porta.

Já fora do quarto e em gestos displicentes, os maiores espreguiçavam-se ao sol que


crcscia. Aaringa estava em alvoroço. Os batuques troavam. Os escravos domésticos,
também chamados bandázios, cruzavam-se, apressados, em direcção a nada,
confundidos com as vozes de comando que se desautorizavam constantemente. Os
achicundas, mais serenos, limpavam as lanças e as gogodelas. As danças guerreiras em
honra ao finado iriam preencher os três dias de luto, termo aqui empregue e assumido
numa asserção fúnebre de amplitude alargada, pois para eles a morte do suserano era
sentida em choros e anarquia que podiam levar a assassinatos sem julgam ento porque
nos três dias de ausência de poder tudo era permitido, daí o termo choriro, que em
tradução franca se pode dizer choro pela ausência de ordem.

Tyago Chicandari, chefe dos ferreiros, localmente chamados messiri, mandou apagar o
fogo dos fomos. As chamas de luto seriam outras. O trabalho iria parar. Os que se
achavam no amanho da terra deixariam o trabalho. Os que na caça se encontravam
largariam as armadilhas e recolheriam à capital do reino. O choriro começava. Nhabezi,
doutor ou curandeiro em língua local, nome por que era conhecido Luís António
Gregódio, morrera.
Situada na margem esquerda do rio Zambeze, a vila de Sena era, nos meses de Junho e
Julho, invadida por moradores do sertão que vinham em almadias, cochos, batéis e palas
comerciar as suas mercadorias. A vila libcrtava-se do seu tom sombrio e tomava cores
alegres. As brigas eram constantes. Mas em período morto, momentos em que a vila
vivia de si, era frequente verem -sc as Donas, título que as filhas de portugueses,
brancas, raras, mestiças, muitas, exibiam, passeando pela vila com mais de vinte
escravas serviçais, mostrando os vestidos de seda e guarda-sóis coloridos, sob o olhar
nada repreensível dos párocos cm as permitir assistir à missa com as escravas não
convertidas. Herdeiras de títulos e fortunas, muitas destas altivas e flatulentas patrícias,
nome por que eram conhecidas as mestiças, tomaram-se, com o tempo, donas de vastos
territórios ao longo do vale do Zambeze. Ao tempo, segundo quartel dos anos
oitocentos, destacavam-se, entre outras, pela opulência, as Donas Ursula de S. Gomes,
Ignes Almeida e Domingas Cordeira. Quando se faziam à rua, eram acompanhadas por
mais de cinquenta escravas que as seguiam por estradas sem grandes delimitações, pois
as casas, bastante afastadas umas das outras, não se prestavam aos arruamentos típicos
de vilas ordenadas. Nesses momentos de 28 Ungulani Ha Ka Khosa exibição pública
dos vestidos espampanantes, véus e chapéus c sombreiros, costurados mais para terras
não bafejadas com a canícula tropical, os pretos assomavam dos outeiros, abeirando-se
dos carreiros, para assistirem, por entre risos contidos, a procissão das Donas que saíam
das suas propriedades com destino a outras, em visita de cortesia ou a festas, em dias
que não o domingo, pois neste elas diziam dedicado ao Senhor, mas na prática servia de
pretexto às ostentações reflectidas nos tapetes e coxins que estendiam nos lugares de
honra da igreja, sob o caucionário olhar do prior que se limitava a cum prir a
formalidade terrena de ligar as preces colectivas ao Senhor, não denotando o fervor
doutrinário que aprendera em seminários de evangelização aos infiéis que eles, párocos,
pouca conta davam à sua conversão nas missas cada vez mais espaçadas que faziam nos
terreiros das aldeias que circundavam a vila.

Ainda moço achicunda, Maluka abandonou o prazo de Massangano por este, na época
de grande traficância de escravos, não poder comportar as suas ambições em ser um
grande caçador, indo, como era prática, quebrar a mitete - pedido de vassalagem de um
negro escravo, ou livre, que consistia em quebrar ou rasgar um objecto ou pano do
senhor a que se pedia guarida - num branco caçador de elefantes do baixo Zambeze de
nome Bento Roiz Perdigão, que teve o triste destino de ser transformado em papas por
um elefante tresloucado. O elefante, animal de hábitos mansos, não se tresloucou por
ferimento de bala ou gritos ensurdecedores, mas, a fazer fé na sabedoria dos caçadores,
pelo mal-estar que a época do acasalamento provoca em alguns elefantes privados da
cópula, levando-os, por isso, em fúrias sensatas, a quebrar árvores e arbustos e a
perseguir, no caso, os caçadores, apanhando então o branco Bento Perdigão
desprevenido de todo e sem chances de levar a espingarda ao ombro. A tromba elevou-o
pela cintura, atirando-o depois ao tronco de uma árvore que arrancou e quebrou junto ao
corpo transformado em peças irreconhecíveis. Já mais sereno, o elefante arrancou os
ramos da árvore abatida e colocou-os sobre os pedaços do corpo, urinando em seguida
com certa sofreguidão.

Em caçadas normais, a carme era distribuída em função dos que iam infligindo os
primeiros golpes sobre a presa. Como os tiros foram disparados atabalhoadamente, M
akula priorizou os seus lugar-tenentes Cambamula e Ngulube aos demais distribuiu a
carne de forma aleatória. Assim, a cabeça e a perna direita traseira couberam a
K.ambamula, braço direito de Makula, homem de tiro certeiro e especialista em
estocadas com lanças entre as espáduas dos elefantes. Era jovem e bastante astuto.
Quando Makula se tornou muanamambo, deixou para Kambamula a organização das
caçadas. A perna dianteira ficou para Ngulube, outro jovem caçador que se tomou
responsável pela segurança de Nhabezi. Os risos e gritos, frequentes no espostejamento
da carne de caça, não se fizeram ouvir. Makula era, então e por mérito, chamado
necumbalume, o mesmo que mestre caçador. A seu mando estavam quinze escravos
libertos que Gregódio se apressou a contratar, formando a sua primeira equipa nas
andanças pelo interior do baixo Zambeze, a dedicando-se em exclusivo à caça de
elefantes e enjeitando terminantemente a prática dc converter homens em escravos.
Chicuacha interpretaria, anos mais tarde, a recusa da prática esclavagista nos seus
primeiros tempos de caçador a factores logísticos que ideológicos. Sem terras a seu
mando e muito menos homens em quantidade e treinamento para a captura de escravos,
Gregódio contentou-se com o crescente lucro que a caça de elefantes lhe fora dando.
Anos mais tarde e já em terras suas, Chicuacha traficaria, ainda que em menor grau e
em casa cala doméstica, escravos. Os escravos que foi comprando serviam como
carregadores, domésticos e trabalhadores agrícolas.

Tyago Chicandari, responsável dos messiri, contaria, anos mais tarde, a Chicuacha que
ao chegarem à terra dos ansengas, na região do Zumbo, os chefes locais mostraram-se
desconfiados porque experiência ruim com gente guerreira tiveram com as hostes nguni
que por ali passaram. Mas o tacto demonstrado por Gregódio no trato com os chefes
cedo se mostrou frutífero, pois os indígenas, que jamais haviam convivido com um
branco que se ambientou na língua e nos costumes, acolheram-no como um dos seus.
De aniamatanga, o mesmo que branco, passaram a chamá-lo Nhabezi, o curandeiro, por
mostrar grandes habilidades no trato de ervas e mezinhas. O seu sentido de orientação
pelas estrelas era tão certeiro que muitos guias com ele aprenderam a melhor m aneira
de se posicionar na floresta.

Nzinga nunca vira um branco. E quando lhe informaram que o aniamatanga, o mesmo
que homem branco na língua dos achicundas, iria ser o marido, estremeceu. Apelo do
homem metia-lhe repugnância por a achar desprotegida e propensa a doenças e cheiros.
Esse asco, essa antipatia, ficou nela até ao dia das núpcias. Na sua mente o branco não
tinha pele. Para o seu descontentamento o processo matrimonial, em tratando-se de
acordo entre reis, foi rápido. Troca de oferendas. Panos c marfim mudando de mãos.
Cânticos e danças. Discursos. Aturdida ainda com os ruidosos acordos nupciais, Nzinga
viu-se repentinamente como esposa e embaixadora soli. Mas a noite, a noite da entrega,
até aí tranquila nos cânticos e danças, traria alguns embaraços, porque Nzinga, para o
espanto das que a rodeavam, mostrou-sc arredia cm partilhar a cama com o Nhabezi. -
Isso criou pequenos burburinhos, diria Chiponda, anos mais tarde, a Chicuacha. - O
Gregódio não se perturbou? - Há muito que se habituara aos receios c medos das
mulheres do interior em enlaçarem-se a ele. Acabam por gostar, dizia. Acompanhada da
escrava, a jovem Suna, Nzinga foi conduzida com alguma dificuldade à casa em que
Nhabezi se hospedara. A mãe, preocupada com os tremores da filha, seguiu-a à
distância, esperando da escrava os detalhes do comportamento da filha.

Havia dito que não conseguiria dormir com o branco. - O corpo treme-me, mãe. - Ele é
homem como outro qualquer. O ser rei nada lhe acrescenta à masculinidade. - Imagina
as carnes desprenderem-se dos ossos?

- É impossível, filha. Ele é pessoa como nós. Não é leproso. - E le não é normal. - N ã o
é doente, filha. - Não tem pele, mãe. Era a obsessão de Nzinga. Por mais que a mãe e
outras mulheres tentassem demovê-la de tal cenário, ela mais se compenetrava da
fragilidade das carnes do branco Nhabezi. Imaginava as veias a desprenderem-se, o
sangue a jorrar, as carnes a descolarem-se dos ossos, os olhos a caírem, os lábios a
desfazerem-se, os dentes sem resguardo c o esqueleto a vibrarem, desamparado. - Não
posso dormir com esse homem. - O casamento está feito. - Prefiro morrer. - Há que
encontrar maneiras, murmurou a mãe, olhando as mulheres conselheiras. Estas,
estupefactas com tal decisão, não conseguiam raciocinar. Para elas seria um privilégio
dormir com um homem que se avermlhava por tudo e por nada. O corpo devia ser muito
quente, imaginavam. O sangue que enrubescia, ao sol, o rosto redondo, devia palpitar
com outra intensidade. O sexo teria o vigor dos felinos e a morosidade extasiante das
serpentes nos caprichosos enlaces amorosos. O calor libertado aqueceria como nunca as
vísceras insatisfeitas das mulheres que copulavam para a reprodução. Não seriam só os
homens a arfar de gozo, pensavam.

Longe delas e remetida ao seu mundo, estava Nzinga, terceira esposa de Gregódio e
pouco metida nos assuntos da corte com outras consortes. Passava grande parte do seu
tempo com a escrava Suna. Era frequente vê-las passeando pelos mais de dois
quilómetros de extensão da aringa real, dando-se ao respeito dos súbditos que as viam
sem as penas da jactância de algumas mulheres de Nhabezi, pródigas em vitupérios às
niapungo, anciãs que se dedicavam à iniciação de jovens, por estas não prestarem a
devida educação às raparigas pouco afeitas às genuflexões de tudo e nada, sempre
acompanhadas pelas escravas que também se davam ao deslustre de afrontarem as
anciãs, para além do tratamento vexatório que dispensavam às simples mulheres com
que se cruzavam, no dia a dia da aringa real, local de residência de mais de três mil
pessoas, divididas em seus múltiplos afazeres, c querendo sempre distância das coisas
da corte, por acharem um mundo melindroso às suas vidas de súbditos já privilegiados
por viverem na aringa real e executarem tarefas de maiores privilégios e não sujeitos a
admoestações ou trabalhos forçados a que os acutemos, os chamados escravos agrícolas,
estavam sujeitos, a trabalhar, manhã e tarde, em terras altas, chamadas mefala,
cultivando mexoeira, mapira e milho. Aruângua que também se mostrava generoso no
abundante fornecimento de peixe à aringa real, afastando o cenário de fome que muitos
dos achicunda conheceram em recuados tempos de serviços a senhores de outras regiões
do vale do Zambeze e que agora, com a abundância das vitualhas prendadas pela terra e
água em demasia, agradeciam a Nhabezi por este os tratar com a respeitabilidade
humana que não viam em muitos brancos e mestiços, não desejando, portanto, que as
suas mulheres, em quezílias sem importância, fossem mal vistas junto à corte, daí a
sujeitarem-se aos esgares e insultos das mulheres escravas de algumas das consortes de
Nhabezi, coisa que não viam em Suna, mulher de muito respeito para com as esposas
dos achicunda c outras, solteiras e jovens, ligadas às niapungas que as adestravam para a
sexualidade e outras urgências de mulheres adultas. Admiravam Suna por ser das
poucas, senão a única, a conseguir arrancar um sorriso, uma gargalhada funda, de João
Alfai, homem de que se desconhecia relação com mulher, facto sujeito a mexericos das
escravas da cortc e não só, mas que Suna, pelo seu silêncio, não deixava avivar,
morrendo o boato, ou circunscrevendo-se à pequena corte de intriguistas, invejosas em
ver os seios de Suna ainda hirtos, provocadores, não sujeitos aos estragos dos afagos
nocturnos ou à amamentação, causa primeira do amolecimento dos seios e não as
carícias, que essas não existiam, pois os prelúdios sexuais não eram prática nos
achicunda, ou em outros povos do sertão, limitando-se as mulheres, nos frequentes
encontros amorosos, a entregar a vulva e a menear as coxas, em ritmos cadenciados ou
convulsivos, dependendo dos estrebuchos do companheiro.

Os temores de Salinda foram acinzentando o sorriso e amolecendo os gestos, muitos


interpretando tais mudanças de humor ao estado de saúde de Nhabezi e não as
interrogações que se iam avolumando na mente pouco dada a cogitações duma
amplitude tão tortuosa que a foram agastando até ao dia da morte do monarca.

Com a morte do mambo, os temores passaram a ser visíveis no olhar inquieto,


suspeitando sempre de sinais que pudessem dar o toque da presença de Gregódio que
ela imaginava surgindo em forma de vento ou em chamas invisíveis que ardiam, vulva
adentro, contorcendo-a de dor e prazer, ou pelo pénis de um desconhecido indicado pelo
curandeiro a satisfazer os desejos de Nhabezi.

Uma escrava acercou-se de Nfuca, segredando-lhe algo ao ouvido. Salinda olhava


incrédula para o céu, com as mãos entrelaçadas sobre a cabeça coberta por um lenço
negro, a noite adensava-se…

Dispostas em redor do Nyazimbire, as viúvas contiveram sorrisos ao verem outras


consortes com as cabeças totalmente rapadas. Pareciam escravas recém aprisionadas a
caminho do cativeiro. Numas sobressaiam socalcos, pequenos vales, noutras,
cordilheiras alcandorando-se em planícies ponteadas de pequenas elevações a
condizerem com termiteiras abandonadas. Envergonhadas da nudez do couro cabeludo,
as viúvas olhavam, de soslaio, para as outras, para se sentirem fortificadas na solidão da
viuvez. Pela natureza da poligamia, as consortes de Nhabezi raramente se econtravam e
entre cias formavam laços de solidariedade em função de interesses e simpatias. Daí que
a Salinda se sentasse ao lado de Nfuca, à direita de Nyazimbire, seguida de Malidza,
Massita e Sanjinga, estas muito juntas e defronte ao Nyazimbire. A esquerda deste e
ligeiramente afastada das demais estava Nzinga, mãe de Adaliano, filho único do seu
ventre, jovem dado a aprendizagens de costumes. Silenciosas, e trocando olhares de
expectativa, iam-se respeitando no silêncio da viuvez comum, respondendo, quando
necessário, com o menear da cabeça e um ocasional sim ou não aos falares de
Nyazimbire.

Averso ao tráfico de escravos, David Livingstone passaria uma breve temporada nas
terras dc Nhabezi, anotando, como vinha fazendo, desde que partira da África do Sul,
atravessando o deserto de Kalahari e desbravando a costa ocidental até Luanda, não
como os turistas que os tempos modernos criaram em quantidades de se perder a conta
na superficialidade dos conhecimentos que lhes chegam cm folhetos descartáveis, mas
de homem preocupado com o destino de outras culturas, os hábitos das gentes locais.
Mas a passagem de David Livingstone pelas terras de Nhabezi não deixaria saudades na
corte local. E tal facto se deveu a Luíza, segunda sorte dc Nfuca, moça de treze a
catorze anos de idade, que resolveu apaixonar-se por Maluka, um dos homens de
confiança de Livingstone, jovem makololo de vinte e dois anos, ajeitado nas roupas
ocidentais - longos calções de caqui, botins com polainas, capacete de cor condizente c
camisa casaco com bolsos enormes e muito dado a galanterias.

Sob a copa das árvores e com reforço de folhas e cestas c gravetos, dezenas de homens,
mulheres e crianças teimavam em enfrentar o vento e a chuva, por quererem ter os olhos
c ouvidos presentes no acontecimento primeiro e único que a vida lhes dava a assistir:
as cerimónias fúnebres do primeiro rei branco em terras do alto Zambeze.

Os espíritos antigos e novos não aceitarão o espírito do branco que se fez preto na fala e
nos costumes; eles não comungarão das mesmas regras, porque o espírito do branco será
sempre um intruso no panteão dos espíritos da benfeitoria. Revoltado, o espírito branco
vagueará pelas noites como um espírito rejeitado c sofrido. Aí seremos nós a sofrer com
as angústias de um espírito sem tecto e corpo onde poisar. Teremos noites insones por
sentirmos um espírito a fustigar as nossas pobres mentes que inocentemente ousaram,
em vida do branco, aceitar que os curandeiros o submetessem ao tratamento das
macomas.
Antes de o corpo descer à terra, num gesto frequente entre os achicunda, Makula
Ganunga deu a palavra ao velho Kamwa, pessoa mais idosa das terras de Gregódio.
Fora dos primeiros colonos, termo que ao tempo, século dezanove e precedentes,
designava o camponês livre a trabalhar em terras aforadas, doadas ou conquistadas, a
aceitar pagar o mussoco, renda anual que os camponeses pagavam cm trabalho ou
géneros às entidades das sua jurisdição, ante a generalizada dúvida dos camponeses não
aculturados ao modus vivendi dos achicunda em aceitar a mão dominadora do branco
que casara com Nfuca e se estabelecera, em definitivo, em terras doadas pelo rei, em
consequência dos serviços prestados por ele e seus homens armados. Tanto se me dá
entregar a este ou aquele os alqueires a que sou obrigado a fornecer das terras da minha
substistência, dizia aos que queriam m igrar para outros espaços agrícolas por não
quererem estar à sombra do branco que se mostrava generoso aos colonos.

Por detrás das duas longas filas dos achicunda, a população esperava pelo ferétro que
sairia da casa grande em mãos familiares e dos maiores do reino. Era visível nos
presentes o espanto e o alívio pelo desaparecimento dos abutres. As pessoas
apresentavam-se mais sorridentes e vivazes. O desaparecimento dos abutres acalentava-
lhes esperanças. Chatula recebeu a notícia com um alívio bem dissimulado na catadura
de pedra que ostentava às pessoas. Nyazimbire sorriu de alegria, pois o discurso que
fizera aquando da chegada dos necrófagos coincidiria com o que faria, em dias
subsequentes ao enterro, dizendo que as aves aceitaram que o espírito de Nhabezi se
estabelecesse, por todo o sempre em terras suas. Lefasso sentiu um pequeno aperto no
coração por se achar órfão dos animais da sua estimação, pois era pensamento seu que
eles assistiriam à sua entronização como rei, e abanariam as asas enquanto grasnavam
de satisfação em vê-lo como o verdadeiro suserano das terras que Gregódio erguera.
"Choriro" não é um livro de História; é sim uma narrativa histórica em que factos e
personagens verdadeiras se entremeiam com factos e personagens imaginados pelo
autor, ele próprio um estudioso de História. Nela se misturam narrativas-memórias de
gente c terras conhecidas, narrativas quais crónicas de acontecimentos passados numa
época histórica bem determinada e onde não faltam também os factos imaginários tão
colados às tradições dos povos onde as tramas históricas se desenrolam. Aqui se
representam, como num espaço cénico, o estilo e os fantasmas do actor/narrador, a arte
de fazer que o seu discurso se tome credível, a habilidade com que deixa o leitor ler nos
subentendidos, fazendo-o esquecer das coisas de que não fala.

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