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MESTRADO EM HISTÓRIA
São Paulo
2012
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MESTRADO EM HISTÓRIA
São Paulo
2012
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BANCA EXAMINADORA
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Antonio Pedro Tota, que abraçou meu projeto com generosidade, me
assistindo pacientemente ao longo de todo o desenvolvimento da pesquisa, com apontamentos
norteadores e estimulantes.
Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, não somente pela colaboração nas bancas de
qualificação e defesa, mas pelas aulas inspiradoras, tão importantes no meu processo de
formação, desde a graduação.
À Profª. Dra. Lívia Cotrim, também figura marcante na minha formação, que, além de
ser um exemplo como professora, generosamente, estimulou a iniciativa desta pesquisa e
colaborou com o seu desenvolvimento, inclusive participando das bancas de qualificação e
defesa.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo suporte
financeiro que viabilizou a execução desta pesquisa.
Ao Sr. Clodesmidt Riani, que me recebeu com extrema atenção e disponibilizou seu
acervo particular para consulta.
Aos professores e colegas do Curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André,
onde fiz minha graduação, em especial aos professores, Ivan Cotrim, Terezinha Ferrari,
Carlos Alberto Cordovano Vieira, além de Lívia e Rago.
Aos amigos que tornaram a rotina de aulas muito mais prazerosas e produtivas −
amigos que admiro e com os quais criei laços de afeto, Eduardo Gramani Hipólide, Felipe
Henrique Gonçalves, Leandro Cândido, Mariana Barbedo e Vladmir Luis. E àqueles que, há
anos, me acompanham, de perto ou à distância, Danilo Amorim, Luiz Diogo Soglia, Roberto
Rodrigues e Tatiane Britos.
Um agradecimento especial aos meus pais, José Carlos e Maria Fátima, que sempre
me apoiaram com generosidade. Foram o suporte, o carinho e a paciência dos dois que
suavizaram minhas dificuldades e me permitiram seguir na direção escolhida. Também à
minha sobrinha, Laurinha, que tantas vezes me devolveu o sorriso nos meus momentos de
cansaço.
E à pessoa a quem nenhum agradecimento que eu possa aqui escrever fará justiça; a
quem me estimulou e apoiou de todas as maneiras possíveis, desde o suporte técnico até o
5
RESUMO
ABSTRACT
Starting by the entirety of the speech collection, we identify the main topics discussed,
around which Goulart's most relevant propositions defended at the time of his government.
Such themes are grouped among three axes: economic emancipation and basic reforms, with
an emphasis on land reform; independent policy for international relations between Brazil and
United States and Brazil and Latin America; and unstableness of legal order.
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
1. JOÃO GOULART: EMANCIPAÇÃO ECONÔMICA E REFORMAS ............................. 19
1.1. Nacionalismo e Trabalhismo: Vargas e o PTB ............................................................. 26
1.2. Emancipação Econômica ............................................................................................... 32
1.2.1. Lei da remessa de lucros ....................................................................................... 34
1.2.2. Reformas de Base .................................................................................................. 42
1.2.2.1. Reforma Agrária ....................................................................................... 56
2. RELAÇÕES EXTERIORES: política externa independente e a tentativa
de formação de um bloco latino-americano ......................................................................... 84
2.1. Relações entre Brasil e Estados Unidos ........................................................................ 85
2.1.1. AMFORP e ITT: as encampações de Brizola e as negociações
financeiras com os Estados Unidos ..................................................................... 87
2.1.2. A questão de Cuba e a Aliança para o Progresso ............................................. 106
2.2. Relações entre Brasil e América Latina ...................................................................... 126
3. JOÃO GOULART E A INSTABILIDADE DA ORDEM LEGAL................................... 133
3.1. Posse na presidência, emenda parlamentarista e plebiscito ......................................... 135
3.2. Democracia e mobilização popular ............................................................................. 149
3.3. Pedido de decretação de estado de sítio ...................................................................... 154
3.4. Últimos meses do governo Goulart ............................................................................. 158
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................. 180
9
INTRODUÇÃO
Desde o período em que os discursos analisados nessa pesquisa foram realizados, até o
presente momento, várias foram as investidas que se debruçaram sobre as problemáticas que
envolvem o governo João Goulart e sua queda. Ainda que hajam divergências variadas, as
análises desenvolvidas até o começo dos anos 1990, com poucas exceções, tiveram por base a
1
Neste período, João Goulart sempre ocupou a função de chefe de Estado, embora de sua posse até janeiro de
1963, não tenha sido o chefe do governo; pois vigorava então um sistema híbrido de parlamentarismo e
presidencialismo, no qual coube ao Primeiro Ministro, indicado pelo presidente, mas submetido à aprovação do
Congresso Nacional, a chefia do governo da República.
10
chamada ―teoria do populismo‖. Ainda que recentemente esse referencial teórico venha sendo
superado por alguns pesquisadores,2 o populismo permanece como uma referência teórica de
grande relevância.
Como nos mostra Rubem Barboza Filho,3 a noção de populismo, seja como categoria,
seja como teoria, ―tornou-se o caminho obrigatório para a apreensão das razões do Estado,
dos partidos, dos políticos, das classes, dos setores de classe, acabando por se transformar
no patrimônio teórico por excelência dos cientistas sociais brasileiros sobre esta fase da vida
nacional‖.4 O historiador Jorge Ferreira, em publicação mais recente, aponta no mesmo
sentido, ao afirmar que:
Para os professores que formam os nossos filhos, a política brasileira e as
relações entre Estado e a classe trabalhadora durante o período de 1930 a
1964 encerram um ―senso comum‖, no sentido gramsciano do termo,
nomeado de populismo.5
Tendo como pano de fundo um amplo debate nas ciências sociais sobre a ―mudança
social‖ na América Latina,6 bem como o debate sobre seu desenvolvimento econômico,
surgem os primeiros esforços para compreender esse período complexo da realidade brasileira
que antecedeu o golpe militar de 1964, procurando explicar suas origens e causas.
Muitas das pesquisas realizadas afirmaram o golpe como derivado da ―crise do
populismo‖ ou do ―pacto populista‖, que teria predominado na política brasileira desde 1930,
com Getúlio Vargas, compondo uma aliança de classes. Desta forma, a crise do ―pacto
populista‖ teria sido desencadeada pela sinalização de uma tendência nas ―massas‖, até então
mantidas sob o controle das lideranças populistas, em avançar os limites estabelecidos pela
classe dominante neste ―pacto‖.
Iniciado em 1930, o pacto populista teria se estendido até seu colapso, em 1964, e
envolvido personagens de diferentes tradições políticas – todos reduzidos à categoria de
―populistas‖ –, tais como: Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Eurico Gaspar Dutra, Carlos
Lacerda, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Ou seja,
2
Um exemplo são os pesquisadores cujo esforço nesse sentido pode ser encontrado na coletânea organizada por
Jorge Ferreira: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2001.
3
Autor, já nos anos 1980, da crítica de maior envergadura de que tomamos conhecimento sobre as análises do
populismo.
4
BARBOZA FILHO, Rubem. Teoria do Populismo: uma revisão. Belo Horizonte: UFMG, dissertação de
mestrado, 1980, p.174.
5
FERREIRA, J. O populismo e sua história. In: _______________ (org.). Op. cit., p. 81.
6
MARSAL, Juan. Cambio social en América Latina: crítica de algunas interpretaciones dominantes en las
ciencias sociales. Buenos Aires: Solar/Hachette, 1965.
11
É importante notar que o quadro teórico sobre o qual a ―teoria do populismo‖ foi
estabelecida é amplo e contraditório: uma mescla entre o liberalismo e o marxismo. Desta
forma, não é estranho que Rubem Barboza Filho afirme que o populismo ―não oferece um
eixo fundamental de análise e de interpretação‖, redundando em uma abordagem inadequada
de uma série de questões concretas do período abarcado pelo conceito.8 Sendo assim, o termo
―período populista‖ tanto é utilizado para imputar um caráter antidemocrático aos governos
daquele momento histórico, como para justificar um colapso na forma de dominação própria
da passagem de uma ―sociedade tradicional‖ para uma ―sociedade moderna‖:
De fato, para a teoria do populismo, a democracia, o partido e o líder
populista são em conjunto ou cada um per si o feiticeiro nefasto, que executa
a mágica insuperável de atar as massas aos setores dominantes. Isto é, no
quadro das hegemonias impossíveis, acabam por ser as massas, uma vez que
reconhecem a dominação constituída, as responsáveis pela sustentação do
9
status quo dominante.
Na verdade, não existe ―uma‖ teoria do populismo que sirva de base aos vários
autores, mas sim um núcleo teórico e metodológico comum, que é apropriado de forma
variada pelos diferentes autores. Além disso, foram se acumulando, ao longo dos anos,
interpretações e revisões sobre o populismo.
Como indica o historiador Jorge Ferreira, antes de o populismo entrar e se firmar no
debate acadêmico no Brasil, ele já havia surgido, em 1945, como imagem politicamente
desmerecedora que as elites liberais fizeram de Vargas, ―ressaltando a demagogia, a
manipulação, a propaganda política, a repressão policial‖:10
A partir daí, e até 1964, as oposições liberais, com amplo acesso aos meios
de comunicação, delinearam, com maior nitidez, imagens que aludiam à
cooptação política dos sindicatos, à corrupção estatal e à demagogia
eleitoral, todas patrocinadas pelos trabalhistas.11
7
FERREIRA, J. Introdução. In: ____________ (org.). Op. cit., p. 11.
8
BARBOZA FILHO, R. Op. cit., p. 176.
9
CHASIN, José. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: Revista Ensaio, n. 17/18, 1989, p. 81.
10
FERREIRA, J. Introdução. In: ____________ (org.). Op. cit., p. 8.
11
Ibidem, p. 9.
12
12
―En todos los casos, se trata de nombres de instituiciones y de personas con algún grado de compromisso con
un modo de entender la sociología, conocido con el nombre de 'sociologia científica'. Muchos de esos nombres
ocupaban entonces espacios estratégicos en la red internacional de instituciones consagradas a promover el
desarrollo de las ciencias sociales en la región, especialmente UNESCO, FLACSO, CLAPCS, CEPAL‖. In:
BLANCO, Alejandro. Razón y modernidad: Gino Germani y la sociologia en la Argentina. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2006, p. 239. Como aponta o autor, em torno da Revista Latinoamericana de Sociología, organizada
por Germani, estão pessoas como: Luiz de Aguiar Costa Pinto, Orlando Fals Borda, Florestan Fernandes, Peter
Heintz e José Medina Echevarria.
13
Ver: BLANCO, A. Op. Cit., pp. 187-252.
14
Autores do chamado Grupo de Itatiaia, o qual deu origem ao Instituto Superior de Estudo Brasileiros (ISEB)
utilizaram o termo em textos dos anos 1950 e início dos 1960. Ver: GOMES, Angela de Castro. O populismo e
as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito; e FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o
populismo na política brasileira. In: FERREIRA, J. Op. cit., pp. 17-124.
15
BARBOZA FILHO, R. Op. cit., pp. 176-177.
16
WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. A primeira
edição data de 1978, embora muitos dos artigos tenham sido escritos ainda nos anos 1960.
13
17
Ibidem, p. 186.
18
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
19
Ianni traça diferenças fundamentais do projetos desenvolvimentistas decorrentes de Getúlio Vargas (modelo
de substituição de importações) e Juscelino Kubitschek (associado ao capital estrangeiro).
20
CHASIN, J. Op. cit., p. 83.
21
FERREIRA, J. Introdução. In: ___________. Op. cit., p. 10.
14
Nesta construção, que transita entre o senso comum e a academia, ―o político populista
/.../ surge como um personagem que agiria de má-fé, mentindo e enganando o povo, sobretudo
nas épocas de eleições, prometendo tudo e nada cumprindo‖.22 Em uma ótica mais ampla,
cria-se ―um cenário de ‗populistas‘ e ‗pelegos‘, eis a imagem que temos da política brasileira
entre 1930 e 1964‖.23
Daí decorre uma série de desdobramentos lamentáveis que, no limite e
paradoxalmente, podem justificar a supressão do voto em nome da ―boa
política‖. Desta forma, o princípio da classificação, que identifica a categoria
na experiência brasileira, acabou por ser associado a um critério de valor que
hierarquiza e condena in totum o populismo e tudo que ele possa adjetivar.24
Dá-se continuidade, desta forma, a uma velha forma de tratar a história dos
trabalhadores no Brasil, diagnosticando a origem de todos os males do país em ―uma relação
desigual, destituída de reciprocidade e interlocução‖, pautada em uma classe trabalhadora
débil e uma sociedade civil gelatinosa; ao mesmo tempo em que se atrela a ―um certo tipo de
marxismo que defendia um modelo de classe trabalhadora, uma determinada consciência que
lhe respondia e um caminho, único e portanto verdadeiro‖.25
Enquanto categoria analítica, a teoria se estabeleceu como tipificação, através da qual
as pesquisas sobre o período, na maior parte das vezes, acabam engessadas pelas
características básicas que definem o paradigma do populismo. Dessa forma, ao identificar e
classificar o objeto pesquisado ao paradigma do populismo, inviabiliza o desvendamento da
particularidade do discurso dos vários agentes que compuseram o período. Em suma, tende a
afirmar a universalização da categoria e não a apreender a lógica do objeto analisado.
O fundamental a ser destacado é que o fato de apontarmos uma série de limitações à
categoria ou ―teoria‖ do populismo, não significa invalidar as contribuições dos autores que
com ela trabalharam. Não podemos ignorar a enorme contribuição de Octavio Ianni,
Francisco de Oliveira, René Dreifuss, Caio Navarro de Toledo ou Pedro Cezar Dutra Fonseca.
22
Ibidem, p. 8.
23
Ibidem, p. 10
24
GOMES, Angela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um
conceito. In: FERREIRA, J. Op. cit., p. 21.
25
FERREIRA, J. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: _______________. Op. cit., p. 62.
15
últimos anos − e não haver nenhum que se concentre no resgate específico dos discursos do
ex-presidente. Tanto é assim, que a documentação que constitui o conjunto integral dos
discursos ainda não foi sequer compilada.26
Procurando contribuir com estudos que venham a preencher esta ausência na
historiografia, nossa pesquisa busca extrair do discurso de João Goulart suas especificidades
conceituais, suas proposições e seus limites, dentro do processo histórico em que está
inserido; para, dessa forma, expor o vínculo orgânico existente entre as propostas e apelos de
tal discurso e um momento da história brasileira marcado por intensas movimentações
políticas e debates sobre os rumos do país. Sendo assim, ao resgatar e analisar um conjunto
significativo de discursos, a pesquisa não busca apenas apresentar e elencar as ideias
propagadas isoladamente, mas, principalmente, contribuir para a problematização do
momento de inflexão vivido naquele período.
Com o conjunto documental reunido,27 foi analisada a totalidade dos documentos
coletados, com o intento de extrair as categorias que sintetizassem a posição do Goulart e
fornecessem a base de seu ideário. Nossa posição, portanto, foi a de desenvolver uma análise
imanente do discurso, visando revelar os conteúdos específicos do ideário de João Goulart,
em sua articulação e lógica próprias.
Tal procedimento constitui um passo imprescindível para a efetivação de um
adensamento analítico da gênese histórica e função social do ideário em questão;28 uma vez
que, perscrutar a gênese histórica do discurso é compreender os fundamentos concretos dos
26
Em nosso esforço para a constituição de uma base documental suficiente para a análise sistemática do período
e para a composição de um material que pudesse ser aproveitado por estudos posteriores, foram utilizados
documentos coletados em diferentes fontes: publicações oficiais da Presidência da República na época (pouco
divulgadas e dispersas em diferentes acervos), discursos e entrevistas publicados em jornais ou revistas do
período e/ou em publicações posteriores (como as de Kenny Braga, Carlos Castello Branco, Jorge Ferreira e
Angela Castro Gomes), além de manuscritos. Para esta compilação foram de fundamental importância o contato
com os acervos da Biblioteca de Presidência da República, em Brasília, do Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), pertencente à Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, do
Centro de Memória Clodesmidt Riani, em Juiz de Fora, e do acervo do jornal Correio da Manhã, no Arquivo
Público do Estado de São Paulo.
27
Ainda que não tenha sido possível reunir a totalidade dos discursos de Goulart, não há dúvida de que os mais
de 180 discursos analisados, além da documentação secundária, compuseram uma amostragem significativa para
execução da pesquisa.
28
Este tripé analítico – análise imanente, gênese histórica e função social – compõe o que Lukács chamou de
pesquisa genética: ―devemos tentar pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que
condições estas formas fenomênicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas [...] se quisermos
compreender os fenômenos em sentido genético, o caminho da ontologia é inevitável, e que se deve chegar a
extrair das várias circunstâncias que acompanham a gênese de um fator qualquer os momentos típicos
necessários para o processo‖. In: HOLZ, Hans Heinz, et all. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 1969, pp. 13-14. Ainda sobre o tema, ver: LUKÁCS, Georg. El asalto a la razón. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Economica, 1959. E, para um debate mais aprofundado da problemática metodológica ver: CHASIN, J.
Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
16
quais ele é expressão ideológica. Por outro lado, resgatar a função social desta formação
ideológica nos permite ―identificar a perspectiva histórica que o pensador em questão abraça,
isto é, a direção − progresso, conservação ou retrocesso − para o qual apontam as formulações
por ele propostas‖.29
Assim sendo, o fenômeno ideológico não será tratado como uma falsa consciência,
mas sim, como uma expressão do pensamento voltada para a ação do indivíduo. Também é
importante ressaltar que identificamos a ideologia por sua função social e não pela qualidade
de seu discurso. O fato de um dado discurso ser falso ou verdadeiro não o impede de cumprir
funções sociais, de ser ―veículo de conscientização e prévia ideação da prática social dos
homens‖.30 Dentro desta concepção lukacsiana, a praxis política é um dos modos da ideologia
em termos restritos: ―o âmbito, pois, da política é aquele que afeta e envolve a globalidade da
formação social‖.31
Conforma-se assim que, tanto a pesquisa genética do ideário de João Goulart, quanto a
compreensão de tal ideário como uma ideologia, ambos nos sentido lukacsiano,32 estão
sustentados pela compreensão de que as diferentes formas de pensamento são expressões
conscientes – reais ou ilusórias – de suas verdadeiras relações no tecido social, ―brotam
sempre do terreno comum do intercâmbio social‖33
A falsidade ou correção das representações não são motivadas, assim, por
mecanismos puramente ideais, inerentes à própria constituição da esfera
subjetiva, mas derivam da potência ou dos limites do modo pelo qual os
homens produzem seus meios de vida, ou seja, os limites à devida apreensão
34
dos nexos constitutivos da realidade são postos socialmente.
29
PRADES, Maria Dolores. Ideologia e política na obra de Oliveira Vianna. Dissertação (Mestrado em Ciência
Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP),
1991, p. 14.
30
VAISMAN, Ester. A ideologia e sua determinação ontológica. In: Revista Ensaio, n. 17/18, 1989, p. 421.
31
Ibidem, p. 425.
32
Trata-se de concepções do ―velho‖ Lukács, ou seja, o teórico que faz o resgate do caráter ontológico da obra
marxiana. No mesmo sentido, incorporamos a recuperação do ―estatuto ontológico‖ marxiano realizada por José
Chasin, em Marx - estatuto ontológico e resolução metodológica.
33
CHASIN, José apud VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do pensamento. In: Revista Ensaios Ad
Hominem, Tomo I - dossiê Marx. Santo André: Ad Hominem, 1999, p. 262.
34
VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do pensamento. In: Revista Ensaios Ad Hominem, Tomo I - dossiê
Marx. Santo André: Ad Hominem, 1999, p. 262.
17
discurso estabelecida nesse trabalho contribuirá para a apreensão dos ―eixos de um dos pólos
das lutas travadas neste período‖.35
A compreensão da determinação social do pensamento, e de seu papel na
atividade humana, além de esclarecer a importância de apreender aquelas
concepções, ilumina os problemas básicos que se põem para uma análise de
discurso, indicando, desse modo, o caminho a ser percorrido.36
35
COTRIM, Lívia C. de A. O ideário de Getúlio Vargas no Estado Novo. Dissertação de Mestrado em Ciência
Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), 1999,
pp. 22-23.
36
Ibidem, p. 22.
18
capítulo estará nas relações entre Brasil e Estados Unidos e nas relações entre o Brasil e os
demais países latino-americanos. Este foco se justifica pela documentação encontrada (os
discursos realizados ao longo das viagens presidenciais aos Estados Unidos e México, em
1962, e ao Chile e Uruguai, em 1963) e pelo vínculo que estas relações tinham com as
propostas do governo Goulart. Como principais temáticas do capítulo estão: a postura dos
Estados Unidos em resposta ao posicionamento brasileiro, no que se refere à encampação de
empresas americanas e ao comunismo cubano, e as tentativas brasileiras de acordos
financeiros e de articulação com os países latino-americanos.
Já no último capítulo, trataremos da ―instabilidade da ordem legal‖ que rondou o
governo de João Goulart desde os momentos turbulentos que antecederam sua posse até a
efetivação do golpe que o depôs em 1º de abril de 1964. Neste bloco, daremos destaque ao
posicionamento de Goulart nos vários episódios, a saber: emenda parlamentarista; plebiscito
para a volta do presidencialismo; solicitação do estado de sítio; acusações de instituição de
uma ―república sindical‖, ou até mesmo de comunismo e golpismo. Explicitando a posição de
Goulart, buscaremos dialogar com algumas das análises já realizadas sobre esses episódios,
sem termos, contudo, a pretensão de reconstituir todos os fatos que compunham e
influenciavam a conjuntura daquele momento.
Nas considerações finais, retomaremos os principais apontamentos e análises feitos ao
longo dos capítulos, a fim de reuni-los de modo conciso, e problematizar o momento de
inflexão que o governo de João Goulart representou na história brasileira.
19
Ou ainda, como coloca o cientista político Caio Navarro de Toledo, sobre a intensa
movimentação do início da década de 1960,
O golpe estancou um rico e amplo debate político e ideológico que se
processava em órgãos governamentais, partidos políticos, associações de
classe, entidades culturais, revistas especializadas (ou não), jornais etc.
Assim, nos anos 60, conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e
comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam
politicamente em defesa de seus projetos sociais e econômicos.38
37
MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64: vinte e cinco anos depois, as forças populares repensam seus
mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1989, p. 24.
38
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, D. A.; RIDENTI, M;
MOTTA, R. P (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois. (1964-2004). Bauru (SP): Edusc,
2004, p, 69.
39
Ibidem, p. 19.
20
40
GOULART, João. Dez anos da morte de Vargas. In: BRAGA, Kenny. et al. (coord.) João Goulart: Perfil,
discursos e depoimentos (1919-1976). (Perfis Parlamentares Gaúchos). Porto Alegre: Assembléia Legislativa do
Estado do RS, 2004, p. 245. Discurso escrito no exílio por ocasião dos dez anos da morte de Getúlio Vargas (24
de agosto de 1964) e encaminhado ao líder do PTB na Câmara dos Deputados, Doutel de Andrade.
21
de Carlos Lacerda,41 João Goulart deixou o cargo de ministro – o que não impediu a validação
do aumento do salário mínimo por ele proposto.
Em 1955, apesar da campanha contrária, que procurou identificá-lo com o peronismo
argentino e com a possibilidade de formação de uma ―república sindical‖,42 Jango é eleito
vice-presidente da República na chapa de Juscelino Kubitschek – que pertencia ao Partido
Social Democrático (PSD) – e, durante seu mandato, exerceu importante papel de mediação
entre os movimentos sindicais e o governo. Nas eleições presidenciais seguintes, no ano de
1960, Goulart se reelegeu vice-presidente, mas, desta vez, separado do candidato a presidente
de sua chapa, o general Henrique Teixeira Lott (do PSD). Jânio Quadros (do Partido
Democrata Cristão – PDC) foi o presidente eleito nessa ocasião, mas renunciará com poucos
meses de governo, alegando que ―forças terríveis‖ teriam se levantado contra ele. Anos mais
tarde, o próprio Jânio assumiria sua real intenção de voltar à presidência com poderes totais,
contando com o apoio de uma manifestação popular, que na verdade não ocorreu. 43 Como
lembra Celso Furtado,
Quadros parece haver excluído a hipótese de que as forças da direita o
abandonassem em época de aguda intranquilidade social, tanto mais que a
opção era ter, como presidente, João Goulart, político comprometido com o
que lhes parecia ser o pior da herança getulista.44
41
Carlos Lacerda foi um dos principais e mais populares opositores de Getúlio Vargas e das forças políticas a ele
ligadas. Jornalista e proprietário do jornal carioca Tribuna da Imprensa, Lacerda era filiado à União Democrática
Nacional (UDN), partido pelo qual foi eleito vereador em 1947 e, posteriormente, deputado federal. Em 1960,
também será eleito governador do estado da Guanabara, cargo a partir do qual, fará forte oposição à posse e ao
governo de João Goulart. Para maiores detalhes, ver: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-
WELTMAN, Fernando (Coord.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2001.
42
O episódio de maior repercussão desta campanha ficou conhecido como ―Carta Brandi‖ e consistiu numa
acusação feita por Carlos Lacerda de que João Goulart estaria ligado ao contrabando de armas da Argentina para
o Brasil, com o objetivo de armar supostas ―brigadas obreiras‖. Lacerda, inclusive, apresentou como documento
uma carta endereçada a Goulart e assinada pelo deputado peronista argentino Antonio Brandi, cuja falsidade
somente ficou comprovada após as eleições. Ver FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela M. C. Jango: as múltiplas
faces. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
43
Ver QUADROS, Jânio; ARINOS, Afonso. História do Povo Brasileiro. Vol. V. São Paulo: Editores Culturais,
1968.
44
FURTADO, Celso. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.
197.
22
Desencadeia-se, assim, uma profunda crise política, que ficará conhecida como a crise
da legalidade, que na realidade, constituía uma tentativa golpista perpetrada por militares e
civis conservadores.
Em resposta à ação dos ministros militares e em defesa da posse constitucional de João
Goulart, houve intensa mobilização popular no Rio Grande do Sul, sob a liderança de Leonel
Brizola – então governador do Estado e cunhado de Goulart –, além de manifestações de
estudantes e trabalhadores em diversas localidades, principalmente em São Paulo e no Rio de
Janeiro.
Montou-se em Porto Alegre um Comitê de Resistência Democrática que articulava
400 comitês de bairro e totalizou, nos doze dias da crise, 100 mil voluntários inscritos. Como
relata Amir Labaki,
Porto Alegre foi o centro da resistência. A Praça da Matriz, defronte ao
Palácio Piratini, sede do governo estadual, era ocupada constantemente por
milhares de pessoas, vinte e quatro horas por dia. Nos momentos de maior
tensão ou importância, chegaram a se comprimir nela quase setenta mil
pessoas.46
45
Tribuna da Imprensa apud FERREIRA, J.; GOMES, A. M. C. Op. cit., pp. 136-137.
46
LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 70.
47
Última Hora, Rio de Janeiro, 31 ago. 1961, apud: FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo,
PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 305.
23
destaque foi a de Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, que além de apoiar o veto
dos ministros militares à posse de Jango, chegou a reprimir duramente manifestações
populares a favor da legalidade e a censurar jornais cariocas que publicaram o Manifesto do
Marechal Lott ou que defenderam a posse de Goulart.
Entre os militares, houve um grupo considerável que se posicionou contrariamente à
decisão dos ministros, dentre o qual se destaca o General Machado Lopes, chefe do III
Exército, cuja adesão ao movimento legalista deu grande força à resistência comandada por
Brizola no Rio Grande do Sul, uma vez que
Além de possuir a mais poderosa artilharia e o mais completo parque de
manutenção do país, o III Exército contava com importantes regimentos de
infantaria, unidades blindadas e 40 mil homens. Somados aos 13 mil da
Brigada Militar, armados e entusiasmados, Machado Lopes contava com um
poder de resistência que não poderia ser subestimado pelos ministros
militares.48
Ratificando essa tendência, Goulart compõe um gabinete ministerial que nomeia como
gabinete de ―conciliação nacional‖, por abrigar representantes de distintas correntes e partidos
48
FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964, p. 295.
49
Ver D‘ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1997, pp. 175-176; e MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto
Alegre: L&PM, 1978, pp. 28-29.
50
GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961). Brasília: IBGE, 1962, p. 10.
24
políticos, chefiado por Tancredo Neves (PSD) − figura-chave na negociação estabelecida para
que Goulart aceitasse a emenda parlamentarista.
Em contato com as correntes políticas, através de seus chefes e líderes,
entreguei, desde a minha chegada a Brasília, ao partido de maior
representação no Parlamento, a Presidência do Conselho de Ministros, na
pessoa do eminente Doutor Tancredo Neves, que teve a incumbência
constitucional de organizar o Ministério de acordo com as demais
agremiações partidárias, fazendo-o com o alto espírito público de que é
dotado. Em conseqüência, formou-se um governo de coalizão.51
51
Ibidem, p. 14. Discurso proferido em 8 de setembro de 1961, no Palácio do Planalto, ao ser investido do cargo
de Presidente da República.
52
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico político. Rio de Janeiro,
1965, p. 214.
53
Ibidem, p. 215.
54
FURTADO, C. Op. cit., p. 64.
25
Sendo assim, o governo teria que enfrentar os desafios de uma espiral inflacionária,
gerada ainda durante a gestão anterior e acelerada pela emissão monetária descontrolada
efetuada durante a crise; além de impasses econômicos resultantes do modelo
desenvolvimentista, a saber: desequilíbrio na balança de pagamentos e defasagem dos
salários. De acordo com Cibilis da Rocha Viana,
Às distorções geradas pelo processo de desenvolvimento na economia
brasileira /.../ vieram somar-se os efeitos negativos da política cambial
adotada pelo governo Quadros – a elevação dos preços e do custo de vida; o
desequilíbrio financeiro das contas públicas; o agravamento da deterioração
dos termos de troca no comércio exterior.56
Assim, à instabilidade política, que marcou a posse de João Goulart e que permanece
na maior parte do período em que governou, junta-se também a instabilidade econômica,
agravada pelas volumosas emissões de moeda realizadas durante a crise de agosto – foram
Cr$ 58 bilhões, somente nas duas semanas da sedição dos ministros militares.57
Outro aspecto a ser destacado nessa conjuntura é o da mobilização de diferentes
movimentos de trabalhadores, que, desde o fim da Segunda Guerra vinha em um crescente.58
Trabalhadores rurais e urbanos intensificavam sua atuação política e reivindicatória: as Ligas
Camponesas ganhavam cada vez mais visibilidade na sua luta pela reforma agrária e por
melhores condições trabalho; assim como os operários urbanos, diante da defasagem dos
salários reais, criavam novas formas de organização, com greves cada vez mais frequentes.
Em contrapartida a esta movimentação, os setores conservadores da sociedade − sobretudo
ruralistas e grupos ligados ao capital estrangeiro, representados principalmente pela UDN e
55
Ibidem, p. 65.
56
VIANA, Cibilis da Rocha. Reformas de base e a política nacionalista de desenvolvimento: de Getúlio a Jango.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 104.
57
Relatório do Banco do Brasil S. A., 1961, apud MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart:
as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan/ Brasília (DF): EdUnB, 2001, p. 66.
58
―No período democrático do pós-guerra (1945-1964), os trabalhadores tomaram a direção de seus sindicatos e
mostraram tanta combatividade que o governo Dutra interveio em quase todos, logo depois de colocar o Partido
Comunista na ilegalidade. Em resposta, os trabalhadores elegeram em 1950 Getúlio Vargas à presidência, o qual
permitiu que, por meio de eleições, ganhas pelas chapas de oposição, os trabalhadores retomassem a direção de
seus órgãos de classe. Grandes movimentos grevistas ocorreram em seguida. A greve de têxteis, metalúrgicos,
marceneiros, gráficos vidreiros, em 1953, mobilizou 300 mil trabalhadores e manteve São Paulo paralisada
durante três semanas /.../ Qualquer um que tenha vivido os anos anteriores ao golpe de 1964 não pode deixar de
se assombrar com essas considerações. Entre 1955 e 1964, as Ligas Camponesas mobilizaram legiões de
trabalhadores rurais para ocuparem centenas de latifúndios, de norte a sul do país‖. SINGER, Paul. ―Notas de
leitura dum clássico‖. In: FERNANDES, Florestan. Sociedade de classe e subdesenvolvimento. São Paulo:
Global, 2008, pp. 16-17.
26
por uma de suas figuras de maior destaque, Carlos Lacerda − também se articulavam contra as
políticas reformistas e trabalhistas que contrariassem seus interesses, aumentando ainda mais
a tensão no âmbito político.
Com tudo isso, para manter-se no poder, João Goulart teria que superar as dificuldades
econômicas no plano nacional e internacional, atender às graves necessidades das camadas
populares, além de defender-se dos ataques de grupos conservadores – que criticavam seu
reformismo, acusando-o de comunista – e também de setores da esquerda, incluindo membros
de seu próprio partido – que recusavam a prática conciliatória e exigiam maior radicalização.
Como meio para superar tamanho desafio, e enfrentando os problemas reais que a ele
e ao país se impunham, Jango valeu-se do programa das chamadas reformas de base; não
como um plano de emergência para alguém que assume a chefia de um governo em condições
inesperadas, mas como desdobramento dos apontamentos que já vinha expressando nos
últimos anos, dentro de seu partido – o PTB, que ganhava importância ―na construção de um
discurso em prol de mudanças‖ e que se consolidava como um ―partido reformista e
popular‖59 – e em seus mandatos na vice-presidência da república.
Dada a importância que o debate em torno das propostas de reformas ganhou naquela
conjuntura, procuraremos, no primeiro item deste capítulo, investigar as origens e principais
influências da formulação do programa reformista defendido por Goulart ao chegar à
presidência – projeto que gerou intensos debates entre os vários grupos sociais e que terá sua
discussão interrompida pelo golpe militar.
O discurso de João Goulart, tanto como sua carreira política, será construído sob a
influência da imponente figura de Getúlio Vargas e dentro do Partido Trabalhista Brasileiro –
criado pelo próprio Vargas em 15 de maio de 1945, cerca de um mês após ser criada a União
Democrática Nacional (UDN).60
De acordo com Angela de Castro Gomes,
o PTB tinha uma proposta mais diretamente dirigida à classe trabalhadora,
em especial a urbana, apontando para a articulação de um partido de massas
59
D‘ARAÚJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-65. Rio de Janeiro: Editora da
Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 97.
60
O Partido Social Democrata (PSD) é criado, também por Vargas em 17 de julho do mesmo ano. Ver: GOMES,
Angela de Castro. ―Partido Trabalhista Brasileiro (1945-1965): getulismo, trabalhismo, nacionalismo e reformas
de base‖. In: FEREIRA, Jorge; AARÃO REIS FILHO, Daniel. Nacionalismo e Reformismo Radical: (1945-
1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil; v. 2), p. 56.
27
com bases sindicais. Seu modelo inspirador foi o Partido Trabalhista inglês,
e seus fundamentos foram lançados a partir do Ministério do Trabalho, com
a mobilização das lideranças sindicais e dos organismos previdenciários. /.../
Trata-se de um partido criado para ser popular e nacionalista, defendendo
um formato de Estado intervencionista e agitando, como principal bandeira,
o trabalhismo.61
ilustre filho desta terra, que foi Alberto Pasqualini. Ficai certos de que
continuaremos batalhando para que os que são muito ricos, nesta pátria,
sejam menos ricos, para que os pobres sejam, por sua vez, menos miseráveis
e para que o povo do Brasil possa viver com mais dignidade.65
Dessa maneira, João Goulart, ao mesmo tempo em que traz em sua formação político-
ideológica os princípios defendidos por Getúlio Vargas e pelo trabalhismo petebista, pouco a
pouco, constituirá também, ele próprio, uma figura de destaque e de liderança dentro do
partido. Como presidente nacional do PTB desde 1952 e, principalmente, como Ministro do
Trabalho de Getúlio Vargas, de junho de 1953 a fevereiro de 1954, Goulart, em diversas
ocasiões, terá a oportunidade de falar em nome do partido e de defender os princípios
trabalhistas.
Segundo Angela de Castro Gomes, o significado da indicação de Jango por Vargas ao
Ministério do Trabalho revelaria uma
nova estratégia política que seria encaminhada por seu ministro — em lugar
de acionar mecanismos repressivos, estabelecer conversações com os
sindicalistas e negociar a greve. Uma fórmula que procurava recuperar a
popularidade de Vargas junto aos trabalhadores, costurando alianças com
sindicatos e retomando esse canal de comunicação política para o governo.
/.../ Dessa forma, a postura de Jango, negociando e se antecipando às
demandas dos trabalhadores, inclusive forçando os empregadores a fazer
concessões, foi freqüentemente vista e denunciada não como forma de
esvaziar conflitos, mas de estimulá-los, pregando a ―luta de classes‖.66
Justamente pela grande penetração que possuía no meio sindical, a indicação de João
Goulart ao ministério foi bastante criticada, sendo até mesmo apontada como indício de
supostas articulações do governo de Vargas para o estabelecimento de uma ditadura
sindicalista no Brasil. Respondendo a esta e a outras acusações e aproveitando para manifestar
suas posições, Jango afirmou:
Também não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo.
À frente do Ministério do Trabalho estou pronto para aplaudir e estimular os
capitalistas que, fazendo de sua força econômica um meio legítimo de
produzir riquezas, dão sempre às suas iniciativas um sentido social, humano
e patriótico. Sou contra, isso sim, o capitalismo parasitário, exorbitando no
ganho e imediatista no lucro, contra o capitalismo cevado à base da
especulação, que afinal só contribui para o desajustamento social. Não é
admirável que, enquanto uns estão ameaçados e morrem de fome, outros
ganham num ano aquilo que normalmente deveriam ganhar em 50 anos ou
até séculos.67
65
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 59. Discurso proferido em
homenagem em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre, no dia 30 de outubro de 1961.
66
GOMES, A. C. Op. cit., pp. 68-69.
67
GOULART, J. Resposta aos jornais e ao The New York Times. In: BRAGA, K. et al. (coord.) Op. cit., pp. 191-
192.
29
Ainda de acordo com Gomes, a carta de demissão que João Goulart enviará a Getúlio
Vargas na ocasião de sua demissão, após a grande repercussão da sua proposta de aumento do
salário mínimo, constitui documento importante dos princípios defendidos pelo trabalhismo
petebista. Nela, além de declarar sua certeza de que ―atendendo aos humildes, contribuía para
a verdadeira harmonia social‖ Goulart afirma:
Não me deixei intimidar com o descontentamento que minha conduta
provocou naqueles que vivem acumulando lucros à custa do suor alheio. Não
recuei nem mesmo quando mais afoita e desabusada se tornou a ação nefasta
de determinados setores econômicos.
Consequentemente, fui acusado de fomentar greves, de promover agitações
nos meio operários, de articular a luta de classes, passando até a figurar
como implacável inimigo do capitalismo. Tão injusta quanto as outras,
porém, é esta última acusação. Há um capitalismo honesto, amigo do
progresso, de sentido sadiamente nacionalista, que sempre mereceu meu
aplauso e o meu apoio. Há outro, entretanto, que jamais deixará de contar
com a minha formal repulsa. Refiro-me ao capitalismo desumano,
absorvente de forma e essência, caracteristicamente anti-brasileiro, que gera
trustes e cria privilégios, e que, não tendo pátria, não hesita em explorar e
tripudiar sobre a miséria do povo.69
No dia seguinte ao pedido de demissão de Goulart, uma nota oficial elaborada pela
Comissão Executiva Nacional do PTB, além de se solidarizar com o ex-ministro e defender as
propostas por ele feitas, afirmava que o partido permaneceria ―na luta contra a usura social e
68
Ibidem, pp. 193-194.
69
Carta de demissão enviada por João Goulart a Getúlio Vargas em 22 de fevereiro de 1954. Arquivo Getúlio
Vargas, CPDOC-FGV Classificação: GV c1954.02.22/1. Grifos nossos.
30
Como veremos ao longo deste trabalho, os discursos que João Goulart proferirá ao
chegar à presidência da república, inúmeras vezes, trarão novamente à tona o conjunto de
ideias que já pode ser notado, tanto nos seus próprios discursos como presidente do PTB,
ministro, e vice-presidente da república, como nos próprios documentos do seu partido.
Portanto, quando aponta a emancipação econômica e a justiça social como objetivos a serem
alcançados por seu governo, através de medidas reformistas, Goulart não lança mão de uma
novidade, de uma carta tirada da manga para sobreviver à crise política e econômica; mas
retoma princípios já defendidos por Getúlio Vargas, pelo programa trabalhista do PTB, além
de outros setores da sociedade, como intelectuais, movimentos operários e estudantis da
época.
Contudo, a chamada ―herança política‖ de Vargas, se por um lado será apontada pelos
opositores de Jango como algo a ser expurgado, como tendência antidemocrática e
demagógica, por outro, será reivindicada pelo próprio Goulart e por seu partido como
70
Nota publicada em O Radical, Rio de Janeiro, 25 fev. 1954, apud FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma
biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 138. Grifo nosso.
71
Idem.
31
Em outras oportunidades, João Goulart reafirmará ainda sua fidelidade ―aos princípios
de justiça social defendidos por Getúlio Vargas‖,73 a quem considerava um ―pioneiro de todas
as grandes batalhas pela independência econômica de nossa pátria‖;74 ―o comandante dos
primeiros combates pela libertação econômica do Brasil, o criador da legislação social, o
estadista sereno e amigo do povo‖;75 homem ―incompreendido na sua luta incansável, até ser
vencido pela reação‖.76
Mantendo-se vinculado, portanto, ao discurso varguista, assumindo a presidência da
república no dia 7 de setembro de 1961, dia em que se comemora a independência do Brasil –
data escolhida pelo próprio Jango pela sua significação simbólica, uma vez que as condições
de sua posse já estavam estabelecidas desde o dia 5 – João Goulart segue defendendo como
meta fundamental do governo brasileiro atingir sua emancipação econômica complementando
sua emancipação política.
A independência política que, há 140 anos, foi conquistada pela bravura de
nossos antepassados, que se fizeram heróis de nossa História, Deus há de
72
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 22. Discurso proferido em 24 de
setembro de 1961.
73
GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962). Brasília: IBGE, 1963, p. 81.
Discurso proferido em 01 de maio de 1962, em Volta Redonda (RJ), por ocasião das comemorações do Dia do
Trabalho.
74
Ibidem, p. 99. Discurso proferido em 11 de junho de 1962, no Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, ao ser
instalada a Eletrobrás.
75
Ibidem, p. 75.
76
Ibidem, p. 92. Discurso de 13 de maio de 1962, em Santos (SP), na inauguração da nova sede do Sindicato dos
Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá.
32
permitir que seja completada com a nossa total emancipação econômica, que
temos o dever de legar a nossos filhos, em nome do Brasil eterno.77
77
Ibidem, p. 154. Discurso pronunciado em Brasília, no dia 7 de setembro de 1962, pela rede de radiodifusão de
"A Voz do Brasil‖.
78
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 86. Discurso proferido em Belo
Horizonte, no dia 17 de novembro de 1961, por ocasião do encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores
e Trabalhadores Agrícolas.
79
Ibidem, p. 10.
80
―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963.
33
Ao falar sobre a política de emancipação que seria levada a cabo por seu governo,
Goulart afirma que seriam tomadas medidas com vistas ―à libertação do Brasil das garras que
o escravizam e dificultam o seu desenvolvimento‖;81 no entanto, em outros momentos,
também pondera que:
A política de emancipação do governo assenta em bases realistas. Ela não é
contra ninguém, ou seja, não se traduz por medidas de caráter nacionalista
excludente. Destina-se a criar a base econômica e financeira para uma
política nacional independente.82
81
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 58. Discurso pronunciado em 30 de
outubro de 1961, em Porto Alegre, em frente ao Palácio Piratini, ao ser homenageado pelo povo, na primeira
visita ao Rio Grande do Sul como Presidente da República.
82
Entrevista concedida à jornalista Barbara Smith, do ―The Economist‖. Publicado em: ―JG dá entrevista
admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, 17 fev. 1963.
83
A expressão intelectual que claramente acompanhava a direção do pensamento nacional-trabalhista do
governo localizava-se principalmente no Rio de Janeiro, através do ISEB. Segundo a leitura de alguns
especialistas sobre os intelectuais daquela época ―a elite intelectual paulista não sentia entusiasmo em associar-se
à criação ideológica dos isebianos ou à pregação da vulgata marxista, e menos ainda em lançar-se na aventura da
‗marcha para o povo‘‖, por isso poderiam ser mais ‗neutros‘ e praticar um verdadeiro pensamento científico.
PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1995, p. 173.
34
E, na nota que segue o excerto acima, Fernandes afirma: ―A alternativa socialista foi
deixada de lado, pois as investigações comprovam que o capitalismo mantém-se, no Brasil
(independente de qualquer artifício analítico dos investigadores), como a opção histórica
‗possível‘ e ‗desejada‘ socialmente‖.85
Obviamente que essa ideia constitui expressão e síntese significativa do trabalho de
um grupo que foi formado desde 1953, mas que se fragmentará e mudará de posição em boa
medida entre 1964 e 1968.86 Mas, o que queremos destacar aqui é que, em traços gerais, não
obstante o fato desses intelectuais se posicionarem criticamente com relação a Jango, suas
pesquisas apresentam como proposta elementos estruturais que também foram defendidos
pelo próprio Presidente João Goulart (ainda que partindo de outras referências): o descarte do
socialismo como meio de modernização do Brasil e a autonomização do país como objetivo
central para obter o desenvolvimento.
84
FERNANDES, F. Op. cit., p. 35.
85
Idem.
86
O texto foi feito por Florestan, mas o próprio autor aponta nesse texto que serviu como uma espécie de fio
condutor ―ligando hipóteses e conclusões fundamentadas de várias investigações‖ de um grupo bastante
numeroso, do qual podemos destacar os nomes de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, José
de Souza Martins, Francisco Weffort, entre outros.
35
Apesar desta fala contundente, Vargas também não encontrou condições de tornar
efetivo um maior controle sobre as remessas de capitais para o exterior. Se por um lado,
mantinha a intenção de regulamentar o capital estrangeiro e a remessa de lucros para evitar
―abusos‖, por outro, reafirmava em seus discursos a importância do investimento estrangeiro
para o desenvolvimento econômico do país, deixando claro que não romperia com o capital
internacional.88
Em situação semelhante se encontrará o presidente João Goulart. Dias após sua posse,
em discurso pela comemoração do 15º aniversário da Constituição brasileira de 1946, o
presidente expõe sua expectativa de que o Legislativo – centro do governo então
parlamentarista – a fim de tornar efetivas na prática algumas conquistas sociais que figuravam
na Constituição, regulamentasse, entre as várias reformas necessárias, a ―disciplina do capital
estrangeiro‖:
Estou certo de que o Congresso Nacional, refletindo as aspirações do povo,
há de oferecer à Nação os estatutos legais inadiáveis, equacionando, de
maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas.89
87
VARGAS, Getúlio. Apud: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção: 1906-1954.
São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 410.
88
Cf. FONSECA, P. C. D. Op. cit., pp. 402-428.
89
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18. Discurso proferido em 18 de
setembro de 1961, em Brasília.
90
Ibidem, pp. 41-42. Discurso proferido no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 18 de outubro de 1961, ao
receber, em audiência especial, uma comissão de senhoras, representantes de várias entidades nacionais.
36
barrar a ―sangria‖ das riquezas nacionais, aprofundando a ―miséria do povo brasileiro‖, 91 por
outro, o investimento estrangeiro constituía importância fundamental no financiamento do
desenvolvimento econômico, sobretudo no setor industrial. Sintomático desta situação é o
seguinte trecho da ―Mensagem ao Congresso Nacional‖, enviada pelo presidente João Goulart
na abertura do ano legislativo de 1962:
O desenvolvimento nacional e as reformas de base acham-se ligados à
conjuntura internacional. Desenvolvimento e reformas serão retardados se os
recursos internacionais, muitos dos quais hoje encaminhados para a
preservação da paz armada, não puderem ser postos, em tempo, e em
quantidades crescentes, à disposição dos países subdesenvolvidos.92
Diante desta situação, João Goulart ao mesmo tempo em que defendia a necessidade
de regulamentação do capital estrangeiro, procurava também esclarecer que esta
regulamentação não significaria, de modo algum, um fechamento do país a este capital.
O desenvolvimento não é um negócio, uma empresa mercantil dos velhos
tempos de colonialismo, mas sim uma política nacional. Quem pensa no
desenvolvimento, quem lhe estrutura as etapas e lhe propõe os fins somos
nós, os brasileiros. Estamos prontos a pagar o preço justo pela valiosa
colaboração recebida. Mas essa colaboração não pode retirar do nosso
controle soberano as medidas e providências indispensáveis a articular o
comportamento do capital estrangeiro com os objetivos fundamentais que
temos em vista alcançar.
/.../
A contribuição externa é importante, é preciosa, é necessária. Mas ela não
deve comandar nem desfigurar a política determinada pelos imperativos da
nossa emancipação econômica.93
91
Ibidem, p. 75. Discurso proferido em 09 de novembro de 1961, no Palácio do Planalto, em evento com
prefeitos e vereadores de todo o Brasil.
92
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962. Brasília: Congresso Nacional, 1962, p. XIV.
93
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 103. Discurso proferido em 10 de
dezembro de 1961, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
37
A posição expressa por Goulart aos empresários estrangeiros no Brasil foi mantida em
seus discursos posteriores, inclusive em seus pronunciamentos em solo americano, onde se
manifestou da seguinte forma:
94
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 33-34. Discurso proferido em 23
de março de 1962, no Rio de Janeiro. Grifos nossos.
95
Ibidem, pp. 34-35. Grifos nossos.
38
96
Ibidem, p. 60. Discurso proferido no dia 6 de abril de 1962, em Nova York, no banquete oferecido pelas
associações americano-brasileiras. Grifo nosso.
97
Ibidem, p. 215.
39
98
MONIZ BANDEIRA, L. A. Op. cit., p. 114.
99
Pouco depois de João Goulart assumir o Ministério do Trabalho do governo Getúlio Vargas, o influente jornal
―The New York Times‖ cogitou que o ministro pudesse ―utilizar sua influência para inclinar o movimento
trabalhista brasileiro para o agrupamento de trabalhadores latino-americanos, controlados pelos peronistas‖ – o
que ―seria uma traição ao seu país e a seu movimento trabalhista‖. GOULART, J. Resposta aos jornais e ao The
New York Times. In: BRAGA, K. Op. cit. pp. 190-191.
100
Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, pp. 116-
120. E, do mesmo autor, ―A democracia populista golpeada‖, in: TOLEDO, C. N. (org.). 1964: visões críticas do
golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: UNICAMP, 1997, pp. 36-37. Já para Marco Antonio
Villa, ―O episódio serviu para demonstrar a dubiedade do governo‖. VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil
(1945-1964). São Paulo: Globo, 2004, pp. 153-154.
40
101
As citações que se seguem estão em: ―JG ressalta lei de remessa‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 jan.
1964. Discurso proferido em Petrópolis, Rio de Janeiro.
41
país que deseja atingir autonomia econômica e modificar sua posição na divisão internacional
do trabalho.
Este posicionamento de Goulart não foi diferente da posição que assumira, assim
como tantos outros trabalhistas, ao longo de quase todo o governo de Juscelino Kubitschek –
cuja política econômica optou por um ―desenvolvimento associado‖ e que, na verdade, se
mostrou subordinado.
A transferência de empresas nacionais para o controle estrangeiro, mediante
compra ou associação, acompanhou o desenvolvimento industrial do país /.../
mas durante o governo Juscelino Kubitschek, se confundiu com o impulso
da industrialização, da qual serviu como parâmetro, equacionada a economia
brasileira segundo as conveniências de uma divisão internacional do
trabalho. O Brasil cresceu, sem dúvida, mas apoiado na expansão da
indústria de bens de consumo (automóveis, eletrodomésticos etc),
comandada pelo capital estrangeiro, cujos países de origem procuravam a
todo custo reservar-se a produção de bens de capital, a tecnologia e o nervo
financeiro, como condição de sua preponderância.102
Com exceção das críticas realizadas por Goulart no fim do governo JK, apontando a
necessidade de reformas e de que os encargos do desenvolvimento não recaíssem somente
contra os mais pobres,103 não houve, por parte das forças nacionalistas um posicionamento
mais contundente, contrário à política econômica adotada pelo governo de Kubitschek. Ao
contrário, o surto de crescimento produzido pela expansão do setor industrial com as
empresas multinacionais era visto como um grande passo rumo ao desenvolvimento do país.
Na análise econômica feita por Octavio Ianni, ―a contradição entre a ideologia
nacionalista e a política econômica internacionalizante‖ não teria se tornado aguda durante o
governo JK, por dois motivos: ―porque as forças políticas nacionalistas não haviam elaborado
uma interpretação objetiva das condições e possibilidades da economia brasileira, enquanto
economia nacional‖ e ―porque a política econômica ditadas pelas estruturas de dependência e
as relações de tipo imperialista estavam produzindo um surto notável de desenvolvimento
econômico‖.104
A própria fala de João Goulart, ao assumir seu segundo mandato como vice-presidente
da república, em 01 de fevereiro de 1961, parece dar base à análise de Ianni: ―É certo que o
esforço realizado para vencer, em curto prazo, as etapas do desenvolvimento, custou ao país
pesados sacrifícios, mas estes se acham sobejamente justificados pela importância dos
102
MONIZ BANDEIRA, L. A. Cartéis e desnacionalização (a experiência brasileira: 1964-1974). Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 1975, pp. 12-13.
103
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60.
104
IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979, p. 186.
42
Como já mencionado em item anterior, desde fins do governo JK, o tema das reformas
passa a ser abordado nos pronunciamentos de João Goulart. No ano de 1959, portanto ainda
como vice do presidente Kubitschek, Goulart se pronunciara nos seguintes termos:
Esse povo pode e sabe suportar privações para que o país se mantenha
independente e se desenvolva, mas é necessário que esse sacrifício não
105
Discurso pronunciado pelo vice-presidente da República João Goulart (PTB-RS), como presidente do Senado,
em 1º de fevereiro de 1961, 41ª Legislatura, 3ª Sessão Legislativa. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/noticias/pronunciamento-de-jango-defende-reformas-de-base.aspx>. Acesso em 31
de dezembro de 2009.
106
MONIZ BANDEIRA, O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60.
107
IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970), p. 175.
43
Vê-se que, neste primeiro momento, as reformas de base são apontadas como uma
necessidade para a eliminação da miséria, ―o maior de todos os males sociais‖; seriam
medidas que pudessem diminuir o enorme abismo social entre uma minoria privilegiada e a
maioria da população brasileira.
Já como presidente, João Goulart seguirá o que preconizara anteriormente; e, menos
de duas semanas após sua posse, discursando em comemoração ao aniversário da
Constituição, mais uma vez se coloca a favor de implementação de reformas. Visto sua posse
ter se efetivado sob a condição da emenda parlamentarista, Goulart deposita no Congresso
Nacional sua expectativa de que fossem efetivadas, quando necessárias, as regulamentações
constitucionais que equacionassem,
de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas.110
108
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60. Citando
documento datilografado integrante do arquivo pessoal de João Goulart.
109
Discurso pronunciado pelo vice-presidente da República João Goulart (PTB-RS), como presidente do Senado,
em 1º de fevereiro de 1961, 41ª Legislatura, 3ª Sessão Legislativa. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/noticias/pronunciamento-de-jango-defende-reformas-de-base.aspx>. Acesso em 31
de dezembro de 2009. Grifo nosso.
110
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18.
44
111
Ibidem, p. 25. Discurso proferido em 28 de setembro de 1961.
45
relações no interior do grupo dos políticos, quando passa a falar em ―paz interna‖, Goulart se
refere à harmonia (ou conflito) entre as classes.
Sei também, Senhores Vereadores, como são sentidas nesta Câmara as
dificuldades e as angústias do povo, especialmente em face da elevação
constante do custo de vida. Este é o mais sério problema nacional que temos
a enfrentar — o que mais preocupa o povo — e, por isso, tudo faremos para
resolvê-lo com a urgência necessária, já que pode levar-nos a conseqüências
imprevisíveis, porque todos sabemos que as medidas apenas de superfície
não atenderão aos reclamos mais sentidos das populações. O Governo,
sobretudo o Conselho de Ministros, através de providências a curto prazo,
está procurando melhorar essa situação. Mas as medidas reclamadas pelo
povo nas praças públicas, reclamadas pelos sindicatos nas suas sedes,
reclamadas pelas donas de casa nos seus lares — estas são medidas de
profundidade, que atinjam a estrutura básica do País, para, através delas,
proporcionarmos melhores condições de vida aos brasileiros, com a
participação de todos nas riquezas nacionais. Somente através de medidas
corajosas poderemos tirar dos que têm muito, para entregar aos que nada
têm, a fim de criarmos um clima de paz e tranqüilidade, tão indispensável ao
desenvolvimento do País. E é preciso que as forças vivas da Nação
compreendam a imperiosidade dessas reformas, em seu próprio benefício.112
Não tenhamos, porém, senhores congressistas, maiores ilusões: a paz interna
continuará exposta a intermitentes ameaças de aventurismos, se não
concentrarmos todos os nossos esforços para que melhores se tornem as
condições de vida do povo brasileiro, para que sejam cada vez mais
reduzidos os tremendos desníveis que separam sempre, e cada vez mais
perigosamente, a imensa maioria do nosso povo de uns poucos grupos
privilegiados. Os exemplos que se nos oferecem a respeito do que afirmo
estão hoje à porta da nossa própria casa, eclodindo cada vez mais
explosivamente nesta nossa sofrida e espoliada América Latina. Provam eles
que não há reforma política ou revisão institucional consolidadora da paz
interna sem que tal transição seja acompanhada de uma democracia
econômica, sem que a redistribuição das riquezas nacionais se efetue de
forma crescentemente equitativa, sem que se elimine de vez o conceito
anticristão de que é aos mais pobres que deve caber a maior carga de
sacrifícios na libertação dos nossos povos da angústia do
subdesenvolvimento.
/.../Ainda agora, documento fundamental da nossa época, a Encíclica ―Mater
et Magistra‖ alerta o mundo para a urgência de novo equacionamento dos
males sociais que afligem extensas áreas do Universo, especialmente a
América do Sul, ameaçando, pela violência dos seus efeitos, as aspirações de
uma vida melhor e as liberdades essenciais ao Homem.
Sinto-me à vontade, senhores congressistas, para alertar a Nação sobre a
necessidade inadiável de mobilizar todas as suas forças, no sentido de
acelerar essas reformas. Amplia-se cada vez mais, no seio das próprias
classes dirigentes, a área dos que aceitam essa realidade, reconhecendo que,
se coube ao povo, até agora, a maior parcela de sacrifícios para que o Brasil
112
Ibidem, pp. 50-51. Discurso proferido em 25 de outubro de 1961, na Câmara Municipal de Belém. Grifos
nossos.
46
Assim, se a ―paz política‖ aparece como condição para a obtenção da ―paz social‖,
esta última se identifica com a ―paz interna‖; e seria condição para o desenvolvimento do país
e para a manutenção da ordem democrática. Suas constantes manifestações a favor de
reformas e do atendimento de reivindicações populares são acompanhadas, em diferentes
discursos, de reiteradas afirmações de defesa da ordem democrática e da fraternidade cristã.
Quando preconizamos reformas e lutamos para que o País se ajuste à
verdadeira realidade, não estamos pregando senão a ordem e o respeito ao
regime democrático, pois não acredito que nenhuma democracia possa
sobreviver sobre a miséria de um povo. Acredito, sim, que através de uma
melhor distribuição das riquezas, com a reformulação de problemas de
interesse fundamental para o povo, ou seja, com uma melhor estruturação do
nosso sistema econômico-social, poderemos assegurar paz, tranqüilidade e
harmonia a todos os brasileiros — desejo máximo de toda a Nação.114
A nossa luta comum condiz com os sentimentos cristãos e pacíficos do
nosso povo, constituindo também o anseio de todas as forças progressistas,
que necessitam da harmonia social para continuar no seu patriótico esforço,
visando ao desenvolvimento nacional. Ninguém pode desejar o agravamento
dos problemas sociais e muito menos a intranqüilidade do povo, que
conduzem à angústia, que conduzem ao desespero e que levam quase sempre
à revolta e imprevisão.115
Interessante manifestação de João Goulart nesse sentido será seu discurso aos
portuários na cidade de Santos, no dia 13 de maio de 1962:
O que interessa ao Brasil são as reformas que nos tragam tranqüilidade e paz
social, e aqui repito, sob o testemunho insuspeito dos trabalhadores, que
desejamos verdadeiramente essa paz e essa tranqüilidade, Estou convencido
de que nenhum país terá paz social se repousar sobre a miséria das classes
operárias e a infelicidade dos mais humildes. Não sei se aqueles que
combatem as reformas desejam realmente a paz social: Deus e o tempo se
encarregarão de demonstrá-lo.116
113
Ibidem, pp. 63-64. Discurso proferido em 30 de outubro de 1961, em Porto Alegre, na solenidade de
encerramento do II Congresso das Assembleias Legislativas do Brasil. Grifos nossos.
114
Ibidem, p. 75. Discurso proferido em 9 de novembro de 1961, em Brasília. Grifos nossos.
115
Ibidem, p. 80. Discurso, já citado, proferido na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte,
no dia 17 de novembro de 1961.
116
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 88-89. Discurso proferido na
inauguração da nova sede do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá
(SP).
47
reformas para evitá-la, para melhor atender à estrutura social e econômica do País, reformas
através das quais conquistaremos a justiça social que desejamos‖.117
Até aqui, vimos o apelo das reformas como medidas de conteúdo principalmente
social, amenizadoras das desigualdades; e que, por isso, garantiriam maior tranqüilidade ao
país. No entanto, veremos também que, no discurso de João Goulart, essas reformas estão,
além disso, vinculadas à sua ideia de desenvolvimento do país. Para ele, as reformas fariam
―do Brasil uma nação forte e independente‖,118 na medida em que atenderiam ao imperativo
de se ―reformular certos conceitos que entravam o livre desenvolvimento das nossas forças
econômicas, constrangem e desfiguram a realidade social‖.119 No entanto, quais seriam, para
João Goulart, os entraves ao desenvolvimento? Em discurso na solenidade de instalação da
Eletrobrás, proferido no Rio de Janeiro, em 11 de junho de 1962, Goulart aponta:
Estamos, na verdade, atravessando uma fase difícil do processo de
desenvolvimento, tanto vale dizer, do processo em que muitas
transformações estruturais de nossa organização social e econômica se
acham em curso. No panorama de uma sociedade, como a brasileira, em que
a terra, o capital e o trabalho se encontram sob a pressão de problemas de
crescimento, de criação de melhores níveis de vida, de atendimento de
exigências materiais e culturais, relativas a uma população em rápida
expansão, deparamos sinais incontestáveis de que uma grande obra de
reforma se apresenta diante de nós, desafiando a capacidade dos
governantes.120
Para o presidente João Goulart, mais do que medidas superficiais, seriam necessárias
reformas estruturais que permitissem a correção os desequilíbrios sociais e assegurassem a
emancipação econômica do país.121 Ao longo da Mensagem ao Congresso Nacional de 1963,
Goulart afirma que as medidas submetidas à apreciação do Congresso ―sob as denominações
genéricas de reformas agrária, urbana, tributária, bancária e administrativa‖ têm o objetivo de
―adaptar o nosso quadro institucional aos reclamos de um desenvolvimento econômico
orientado por critérios de Justiça Social‖.122 E, em defesa das reformas aponta:
A correção das distorções e desequilíbrios, o fortalecimento da estrutura da
economia, o aperfeiçoamento da máquina administrativa e o afinamento dos
instrumentos diretos ou indiretos de orientação dos investimentos, que
117
Ibidem, p. 121. Grifo nosso. Discurso proferido em João Pessoa, no dia 29 de julho de 1962, perante
concentração popular.
118
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 58. Discurso, já citado, proferido
em Porto Alegre, em 30 de outubro de 1961.
119
Ibidem, p. 124. Discurso de 31 de dezembro de 1961, transmitido pela rede de radiodifusão de ―A Voz do
Brasil‖, ao ensejo da passagem do ano.
120
Ibidem, pp. 100-101. Grifo nosso.
121
―JG dá entrevista admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 fev. 1963.
122
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963. Brasília: Congresso Nacional, 1963, pp. 9-10.
48
123
Ibidem, p. 22.
124
―JG a brigadeiros: reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1964. Grifos nossos.
Transcrição de discurso proferido em jantar oferecido pelo presidente no Palácio Rio Negro, Petrópolis, aos
brigadeiros recentemente promovidos na pasta da Aeronáutica.
125
―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964. Grifo nosso.
Transcrição de pronunciamento realizado através de cadeia de rádio e televisão, no dia anterior à publicação.
49
base naquela conjuntura, Roland Corbisier126 explica, apontando cada uma das contradições
que demandariam as respectivas reformas:
o desenvolvimento, tal como vinha sendo realizado, procurando privilegiar a
iniciativa particular e o capital estrangeiro, agravou todos os desequilíbrios
internos, intensificando as contradições entre o processo eleitoral,
corrompido pelo poder econômico, e as expectativas e reivindicações das
massas populares; entre as instituições políticas e administrativas e as metas
do desenvolvimento; entre a necessidade de aumentar a arrecadação, a fim
de dotar o Poder Público dos recursos necessários à realização das próprias
reformas, e as limitações de um sistema tributário discriminatório e injusto;
entre regiões do País e setores da economia, em pleno desenvolvimento,
como a Região Centro-Sul, e outros, como a Região Nordeste e o setor
agrícola, estagnados no arcaísmo de suas estruturas feudais e escravocratas;
entre o crescimento das populações urbanas e a escassez e a carestia dos
imóveis residenciais; entre a necessidade de estimular a produção, pela
democratização e a nacionalização do crédito, e a limitação dos favores
bancários aos grupos privilegiados e às regiões que menos precisam desses
favores; entre a necessidade de poupar cambiais, para aplicá-las nas metas
prioritárias do desenvolvimento, e o esbanjamento, a dilapidação das moedas
fortes na importação do luxuoso e do supérfluo; entre as exigências do
processo de industrialização e um ensino aristocrático e livresco, que não
proporciona aos educandos o conhecimento dos problemas nacionais, nem
os habilita ao trabalho e à solução desses problemas.127
126
Roland Corbisier atuou como intelectual integrante do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB – e
deputado federal pelo PTB entre os anos de 1963 e 1964.
127
CORBISIER, Roland. ―Lógica e cronologia das reformas‖. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO,
A. (Org.) O Brasil de João Goulart: um projeto de nação. Rio de Janeiro: PUC-RIO / Contraponto, 2006, pp.
147-148.
50
Como já foi dito em outra oportunidade, com exceção da reforma agrária – a mais
debatida e à qual será dedicado um item exclusivo neste texto –, em poucas oportunidades, o
presidente João Goulart trata de cada uma das reformas. Elas aparecerão somente em alguns
discursos públicos, de forma bastante geral, e, com mais detalhes, nas mensagens anuais
encaminhadas ao Congresso Nacional – principalmente as dos anos de 1963 e 1964.
Buscaremos, aqui, destacar os principais argumentos de Goulart sobre cada uma das reformas.
Sobre a reforma eleitoral, que pretendia estender o voto aos analfabetos e conceder
elegibilidade aos sargentos, Goulart argumentou:
A reforma eleitoral impõe-se para tornar cada vez mais autêntica a voz do
povo no Parlamento, evitando-se injunções estranhas e inadmissíveis —
demagógicas ou financeiras — na formação das assembléias populares.130
São inadmissíveis, na composição do corpo eleitoral, discriminações contra
os militares, como as praças e os sargentos, chamados ao dever essencial de
defender a Pátria e assegurar a ordem constitucional, mas privados, uns, do
elementar direito do voto, outros da elegibilidade para qualquer mandato.
Outra discriminação inaceitável atinge milhões de cidadãos que, embora
investidos de todas as responsabilidades civis, obrigados, portanto, a
conhecer e a cumprir a lei e integrados na força de trabalho com seu
contingente mais numeroso, são impedidos de votar, por serem analfabetos.
Considerando-se que mais da metade da população brasileira é constituída
de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça, que leva à conclusão
128
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964. Brasília: Congresso Nacional, 1964, pp. VI-VII.
129
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 157-158. Discurso proferido em 27
de setembro de 1962, no Palácio do Planalto.
130
Ibidem, p. 78. Discurso proferido no dia l de maio de 1962, em Volta Redonda (RJ), nas comemorações do
Dia do Trabalho.
51
Além dos pontos já presentes nos discursos citados acima, Goulart procura ressaltar a
importância da reforma tributária para a ―restauração das finanças públicas a um nível de
equilíbrio estável‖ e a necessidade de uma ―reforma drástica e profunda do sistema e da
máquina arrecadadora, de modo a evitar a evasão fiscal‖.134 Lembra, ainda, que o imposto não
deve ser considerado ―apenas como fundo da receita pública, mas primordialmente, como
instrumento para a realização das reformas e como estímulo ao desenvolvimento‖.135
Também apontada por Goulart como uma das reformas ―imperiosas‖ está a reforma
bancária – fundamental, segundo o presidente, para estimular o desenvolvimento econômico
do país.
O sistema bancário precisa ser atualizado para assegurar uma organização de
crédito e financiamento capaz de alimentar o progresso econômico do País.
A indústria, a agricultura e o comércio necessitam de crédito largamente
131
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. LV.
132
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 78.
133
Ibidem, p. 90.
134
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. 35.
135
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 12.
52
Tal reforma teria como objetivos: democratização e seletividade do crédito (de acordo
com as necessidades do desenvolvimento), com subordinação da rede bancária particular a um
sistema oficial de crédito. O controle exercido pelo órgão central seria, de acordo com
Goulart, no sentido de conter o fluxo inflacionário.
Na presente conjuntura nacional, impõe-se com igual imperatividade a
Reforma Bancária. A inexistência de um autêntico sistema de Banco Central
no País tem aumentado as dificuldades do Governo para disciplinar o fluxo
monetário e controlar a inflação. Salvar o País das conseqüências
imprevisíveis de uma hiperinflação, dotá-lo de reformas estruturais que
libertem a plenitude das forças potenciais de seu desenvolvimento, aprimorar
e fortalecer o regime democrático, são as maiores tarefas que nos cabe
cumprir em 1963.137
Além de obter maior controle sobre a inflação, um órgão centralizado como o Banco
Central também deveria, segundo Goulart, selecionar e distribuir o crédito de forma a
impulsionar o desenvolvimento econômico.
De há muito o País reivindica, por intermédio de suas forças econômicas, a
implantação de um órgão autêntico e centralizado, com autonomia de
decisões, para a direção da política monetária e bancária, que disponha de
maior força coercitiva para o controle de processos inflacionários. Foi o que
visou atender a proposta do Poder Executivo enviada ao Congresso, ao
mesmo tempo em que procura dotar o Governo de condições que melhor lhe
permitam selecionar o crédito para o impulso das verdadeiras forças de
produção.138
Contudo, mesmo indicando que o objetivo da reforma bancária seria ―dotar o país dos
instrumentos imprescindíveis à efetiva execução das políticas monetárias, creditícia e
cambial‖, desobstruindo ―o pleno exercício das funções do poder público na orientação do
processo do desenvolvimento‖ – o que configura maior controle por parte do Estado –, o texto
do anteprojeto da reforma explicita certa cautela com as possíveis repercussões no sistema
bancário:
Restringe-se o anteprojeto aos aspectos gerais da política monetária e
creditícia, não dispondo, por isso mesmo, sobre a especialização das
instituições de crédito de natureza bancária. Parece temerário, no atual
estágio de desenvolvimento do sistema bancário, delimitar as atividades
136
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 77-78.
137
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 12.
138
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, pp. XXXVIII-XXXIX.
53
139
―Enviado ao Congresso anteprojeto de reforma bancária‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 mar. 1963.
140
CORBISIER, R. Op. cit., pp. 153-154.
141
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, pp. XI-XII.
142
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, pp. 11-12.
143
―Goulart lançou frente de apoio às reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 fev. 1964.
54
No mês seguinte à publicação do programa acima citado – que foi, também, o último
mês do governo de João Goulart – a reforma urbana constituiu um dos temas do comício da
Central do Brasil, no dia 13 de março. Nele, Jango anunciou que assinaria, como de fato fez
logo no dia seguinte, o decreto que regulamentaria o preço dos aluguéis. O decreto nº 53.702,
de 14 de março de 1964, previa o encaminhamento de estudos para desapropriação, por
utilidade social, de imóveis desocupados e tabelou o preço dos aluguéis da seguinte forma:
aluguel de um quarto: até 1/5 do salário mínimo local;
aluguel de habilitação (sic) de quarto e cozinha ou quitinete: até 2/5 do
salário mínimo local;
aluguel de habilitação (sic) de sala, um quarto e cozinha ou quitinete: até 3/5
do salário mínimo local;
aluguel de habilitação (sic) de sala, um quarto, cozinha e dependências de
empregado: até 4/5 do salário mínimo local;
aluguel de habitação de sala e dois quartos, com serviço de empregados: ate
1 salário mínimo local;
aluguel de habitação de sala, 3 quartos com serviço de empregados: até 1
e 1/2 salário mínimo local;
aluguel de mobiliário completo: até 20% do valor do aluguel mensal do
apartamento.144
Pouco presente nos discursos anteriores de João Goulart, a reforma cambial, assim
como a urbana, ganhou destaque já na fase final do governo, com a Instrução nº 263 da
Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), através da qual, segundo o economista
Pedro Cezar Dutra Fonseca, Goulart
recorreu-se a uma política cambial bastante heterodoxa, um misto de câmbio
fixo para produtos essenciais – como café e açúcar, nas exportações, e
petróleo, trigo, papel de imprensa e equipamentos para a PETROBRAS, nas
importações –, em que o dólar foi mantido no patamar oficial anterior,
coexistindo com câmbio flutuante para os demais produtos.145
144
Decreto nº 53.702, de 14 de Março de 1964. Publicado originalmente em: Diário Oficial da União - Seção 1 -
16/03/1964, p. 2491. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-53702-
14-marco-1964-393664-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 17 de novembro de 2011.
145
FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A crise do governo Goulart: uma interpretação. In: Encontro Nacional de
Economia Política, n. 9, Uberlândia (MG), 2004. Disponível em:
<http://www.sep.org.br/artigo/9_congresso_old/ixcongresso03.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2011.
55
146
―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964. Transcrição de
pronunciamento feito no dia anterior à publicação.
147
CORBISIER, R. Op. cit., p. 166.
148
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, pp. 170-171.
149
Ibidem, p. 163.
56
Abordar questões agrárias e fundiárias no Brasil significa tocar num conjunto bastante
complexo de elementos econômicos, políticos e sociais que, ao longo da história, construíram
uma estrutura relacionada não somente à propriedade fundiária, mas também à estrutura de
classes e ao modelo de capitalismo e industrialização estabelecidos no país. Esta
complexidade de elementos, assim como das implicações econômicas e sociais por eles
trazidas, faz com que o debate sobre o tema, no Brasil, seja sempre acirrado e difícil.
A presença do latifúndio na história deste país desde o momento da formação de seu
território e de sua sociedade possibilita dizer que o problema agrário no Brasil teria origem na
própria forma de ocupação do seu território pelos colonizadores portugueses, através das
sesmarias – uma ocupação que tinha como objetivo a formação de estrutura material e social
que atendesse aos interesses da metrópole, sem considerar os desdobramentos desta estrutura
naquela sociedade em formação.
No entanto, constatar que o latifúndio está presente no Brasil desde o surgimento desta
sociedade, não explica as razões pelas quais ele, mesmo trazendo graves consequências
sociais, permanecera até a década de 1960, período sobre o qual nos debruçamos neste
trabalho, e mantenha-se até hoje. Sua manutenção foi defendida com afinco pelas classes
dirigentes do país em diferentes momentos de sua história, inclusive por legislações de caráter
preventivo a quaisquer reformas na estrutura agrária.
Desde o período de formação do Brasil-Colônia até o século XIX, (inclusive no
período de fins deste mesmo século, quando o Brasil deixa sua condição de colônia), a
150
CORBISIER, R. Op. cit., pp. 169-171.
57
151
MARTINS, José de Souza. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STÉDILE, João Pedro (org.). A
Reforma Agrária e a Luta do MST. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 13.
152
Mesmo ano da Lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico de escravos. A abolição da escravidão no Brasil
virá somente em 1888.
153
MARTINS, J. S. Op. cit., p. 14.
154
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1999, p.171.
155
MARTINS, J. S. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994,
p. 76.
58
Dessa forma, quando a abolição da escravidão é instituída pelo Estado brasileiro, deixa
uma massa de ex-escravos sem as menores condições de sobrevivência, transformando-os em
mão-de-obra farta e extremamente barata à disposição dos latifundiários.
Embora o capital, naquele momento de seu processo de expansão mundial, entrasse
em contradição com o escravismo, no Brasil, diferentemente do que ocorreu nos países que
realizaram suas Revoluções Burguesas, as transformações sociais necessárias à reprodução
capitalista foram realizadas pelas ―mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso em que
se situavam numa situação histórica anterior‖.157
Com isso, a estrutura agrária no Brasil permanece inalterada e mantém-se assim
mesmo no período em que se inicia o processo efetivo de industrialização do Brasil (início
dos anos 1930). Como afirma Francisco de Oliveira, o que ocorre no Brasil a partir da década
de 1930 não é um conflito entre a nova e a velha elite (respectivamente, burguesia industrial e
aristocracia agrária), mas sim o estabelecimento de um novo padrão de acumulação que
prescinde da ―destruição completa do antigo modo de acumulação‖;158 forma-se um novo
modelo que congrega formas distintas, mas não contrapostas, de acumulação, permitindo a
união entre burguesia e oligarquia. Ou nas palavras de Maria Dolores Prades:
Diferente dos casos clássicos, por exemplo, onde o capital industrial se
impõe às velhas formas ―derivadas ou secundárias‖, no caso brasileiro, a
constituição do ―verdadeiro capitalismo‖ evidencia uma conexão estrutural
da burguesia industrial com o quadro anteriormente existente, onde a
economia agrária de feitio latifundiário predomina. Profundamente marcado
por essa conexão, o capital industrial aqui se ressente, desde suas origens, do
bloqueio e dos obstáculos impostos pela estrutura atrasada anterior.
Limitação essa responsável pelo caráter conciliador que perpassa o processo
de modernização nacional e que se manifesta na subordinação dos ―novos‖
interesses econômicos às ―velhas‖ estruturas produtivas, assim como no
atraso do desenvolvimento das forças produtivas no país.159
Esta aliança entre burguesia e oligarquia no período não impede a cautela, por parte
dos representantes dos interesses oligárquicos, quanto à nova organização econômica do país
156
COSTA, E. V. Op. cit., p. 179.
157
MARTINS, J. S. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994,
p. 58.
158
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p.
65.
159
PRADES, Maria Dolores. Op. cit., p. 254.
59
160
MARTINS, J. S. O poder do atraso, p. 74.
161 As Ligas Camponesas surgem da mobilização dos trabalhadores rurais do Engenho Galiléia, em Vitória do Santo
Antão, Pernambuco. Estes trabalhadores organizam, com a permissão do fazendeiro proprietário do engenho, uma
cooperativa funerária com o objetivo de diminuir os custos de sepultamento dos mortos (que, aliás, eram cada vez
mais freqüentes, denunciando as condições miseráveis em que viviam). No entanto, vendo na organização de seus
trabalhadores uma ameaça, o fazendeiro intenta a retomada das terras então ocupadas pelas lavouras dos
trabalhadores do engenho. Inconformados com esta ação, os trabalhadores procuram em Recife o advogado e
deputado Francisco Julião, que sugere ao grupo a atuação pela via legalista, reivindicando o direito da Lei do
Inquilinato. O movimento consegue, desta forma, impedir que suas terras fossem retomadas e, daí em diante, ganha
importância; passando a atuar, também, em outras localidades e de formas distintas da maneira inicial, chegando,
durante o governo João Goulart, a reivindicar uma reforma agrária radical. Ver: AZEVEDO, Fernando Antonio.
Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
162
MARTINS, J. S. O poder do atraso, p. 75.
60
Será nesta conjuntura que João Goulart se posicionará, tão logo assuma a presidência
da república, a favor da efetivação de uma reforma agrária no Brasil – reivindicação que,
inclusive, já fora assumida pelo PTB desde os anos 1950.
163
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18.
164
Ibidem, p. 85. Discurso proferido em 17 de novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais.
61
165
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. XIII.
166
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 51. Grifo nosso. Discurso proferido
no dia 25 de outubro de 1961.
167
―A população do País está crescendo à taxa vertiginosa de 3,3% ao ano, ao passo que a taxa na América
Latina é de 2,9% e a taxa média no mundo de 1,7% anuais. Isto significa que, possuindo hoje 70 milhões de
habitantes, o Brasil terá 130 milhões em 1980 e 210 milhões no ano 2000. Temos de nos preparar para dar
trabalho e condições dignas de vida a essa população, não permitindo que ela cresça e vegete na pobreza e na
incultura. Esta constitui uma tarefa gigantesca, que exige, evidentemente, transformações estruturais na
62
convergia com os ―ideais de fraternidade cristã‖ assumidos por Jango em seus discursos,168
como compunha o quadro de uma situação de alerta, em que a miséria no campo poderia
fomentar iniciativas revolucionárias, que, a seu ver, deveriam ser evitadas – é possível e, em
vários momentos, provável, que Goulart utilize tanto do discurso cristão, como o
―antirrevolucionário‖, para marcar sua distância do comunismo, de que foi constantemente
acusado. Nas comemorações Trabalho de 1962, João Goulart alertava para a existência de
―sintomas de impaciência popular‖ quanto à urgência da reforma agrária, afirmando a
necessidade de que se fosse ―ao encontro das legítimas aspirações da população rural,
ajudando-a a libertar-se das condições de extrema penúria /.../ e dando-lhe a oportunidade de
participar dos benefícios da civilização industrial‖.169 Esse alerta se repetirá, inclusive na
Mensagem encaminhada ao Congresso pela abertura do ano legislativo de 1964 – há menos
de um mês do golpe militar ser desfechado – desta vez, de modo mais enfático:
Para atender velhas e justas aspirações populares, ora em maré montante que
ameaça conduzir o País a uma convulsão talvez sangrenta, sinto-me no grave
dever de propor ao exame do Congresso Nacional um conjunto de
providências a meu ver indispensáveis e já agora inadiáveis, para serem,
afinal, satisfeitas as reivindicações de 40 milhões de brasileiros.170
A correção das anomalias da estrutura fundiária nacional, originada de
obsoleta concepção do direito de propriedade, faz-se mister seja iniciada
com urgência, pois, além de constituir ponto de estrangulamento que impede
a rápida dinamização da produção agrícola, causa mal-estar social capaz de
assumir proporções imprevisíveis, na medida em que a explosão
demográfica, principalmente nas áreas mais subdesenvolvidas, aumenta a
pressão pela posse da terra, como meio de sobrevivência.171
Contudo, talvez a mais significativa manifestação de João Goulart sobre esta questão
tenha sido a realizada no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa, numa concentração de
trabalhadores rurais, em que diz:
A reforma agrária que desejamos e haveremos de realizar − e para tanto os
brasileiros estão desde já convocados − não é uma obra de esbulho, nem de
espoliação e muito menos motivo de apreensão, porque, acima de tudo, é um
instrumento de luta pelo nosso desenvolvimento econômico e deve ser, antes
Dessa forma, João Goulart explicita os objetivos de sua proposta de reforma agrária –
desenvolvimento econômico e justiça social – e ratifica seu posicionamento de conciliação
perante aos riscos de convulsão social gerados pela condição miserável em que vivia (e ainda
vive) grande parte dos trabalhadores rurais. No entanto, vale ressaltar, que não obstante, em
sua fala, João Goulart defenda ―linhas de conciliação‖, o presidente também deixa claro que a
solução não poderia ser atingida a partir do critério dos proprietários – ―alguns transviados do
dever e do próprio sentimento de humanidade‖ – mas sim pela lei.
Também se pode notar que, se por um lado Goulart denuncia o tratamento subumano
dispensado à grande parte dos trabalhadores rurais, por outro, procura apaziguar o que
entende como ―carga emocional‖, provocada pelo ―problema da convivência entre
proprietários e trabalhadores rurais‖ – o ―sentimento de inconformidade e de revolta‖ gerado
entre os trabalhadores diante da mesquinhez de certos proprietários de terras – através da via
legal, ―nos quadros da legalidade democrática‖. Contudo, para que esta grave questão fosse
resolvida legalmente, evitando uma ―luta fratricida‖, mais uma vez, o presidente reclama a
regulamentação constitucional, apelando para o patriotismo dos congressistas.
172
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 119-120. Discurso proferido em 29
de julho de 1962. Grifos nossos.
64
173
―Estrutura agrária do Brasil é um enorme entrave ao progresso‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 mar.
1963. Mensagem transcrita integralmente pelo jornal.
174
―Goulart admite reforma ministerial e diz ser normal situação militar‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14
mai. 1963. Grifo nosso. Reportagem realizada a partir de uma ―palestra com os jornalistas‖, realizada no dia
anterior, na residência de Goulart, em Copacabana.
175
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 89-90. Discurso na inauguração de
uma nova sede do Sindicato dos Operários dos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá, em 13 de
maio de 1962. Grifos nossos.
65
E, para dar um exemplo claro do significado de sua afirmação, Ribeiro lembra que, em
1962, fora procurado por Juscelino Kubitschek, com o pedido de que formulasse ―um plano
de governo com vista à campanha eleitoral de 1965‖, dizendo que ―desejava o plano mais
avançado de reformas estruturais, a começar por uma reforma agrária‖. Sobre este fato, Darcy
Ribeiro questiona:
Que significa isso? Parece compatível com o JK que conhecemos – flor da
politicagem profissional brasileira – a imagem de um reformador radical?
176
GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., p. 40.
177
RODRIGUES, J. H. Op. cit., p. 229.
178
Darcy Ribeiro, antropólogo, um dos fundadores e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), foi
Ministro da Educação e Cultura no governo Jango, de 18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963,
assumindo, posteriormente, a chefia do Gabinete Civil, onde permaneceu até o golpe militar, que destituiu seus
direitos políticos.
179
RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 193-194.
66
Pois esse era o papel que ele se supunha chamado a representar. Isso porque,
naquela conjuntura, aparentemente só uma política reformista lhe prometia o
aspirado acesso ao poder. 180
Como vimos no item anterior, a defesa da reforma agrária exposta por João Goulart
faz referências constantes aos ideais cristãos e democráticos. A reiteração do vínculo entre a
defesa destes princípios e das reformas de base – sobretudo, da reforma agrária – é uma
resposta de Jango, por vezes sutil, e por outras mais direta, a possíveis acusações de
comunismo. Conhecedor de tais acusações e ―desconfianças‖, Goulart argumentava:
Modificações na estrutura agrária sempre acompanharam a história das
nações. São uma fatalidade na evolução das etapas do processo social. Este é
precisamente o nosso caso. A reforma agrária no Brasil não deve estar
ligada a reivindicações de natureza ideológica ou sectária. Trata-se de
indeclinável exigência das condições econômico-sociais do nosso
desenvolvimento, do bem-estar do povo.
É medida de natureza social, sem dúvida, mas, com ênfase ainda mais
expressiva, é medida de ordem técnica imposta pelas condições objetivas da
nossa vida nacional.
Não me importa a convicção ideológica do observador. O que ele não poderá
negar é que as relações entre os que trabalham e os que possuem a terra são,
de modo geral, um obstáculo ao desenvolvimento da produção agrícola, ao
aumento da sua produtividade, a uma melhor distribuição das rendas. Esta
situação, meus caros estudantes, é que devemos temer, e não a reforma
agrária. A situação que a reforma agrária deverá corrigir é que é alarmante e
cheia de perigos para a legalidade democrática.182
De fato, ainda não há muitos anos, falar de reforma agrária suscitava
apreensões e desconfianças. Hoje, nenhum pensamento conhecedor da
realidade brasileira, tenha o colorido ideológico que tiver, será capaz de
negar a sua necessidade. Precisamente por essa razão, o que já não convém é
fazer do debate do problema um expediente para lhe adiar o
encaminhamento prático.
/.../ Hoje, não a reclamam apenas partidos e ideologias. Ela é reclamada pela
consciência política nacional.183
180
Ibidem, p. 195.
181
Idem.
182
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 102. Grifos nossos. Discurso
proferido em 10 de dezembro de 1961, em solenidade do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.
183
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 17-20. Discurso proferido em 25
de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, na cidade do Rio de
Janeiro. Grifos nossos.
67
Sendo assim, João Goulart aponta a necessidade da reforma agrária como uma questão
―de ordem técnica‖, intrínseca e imprescindível ao desenvolvimento econômico do país, e não
uma decisão de ―ordem ideológica‖. E, para mostrar que sua proposta, longe de estar
vinculada a ideologias consideradas subversivas, na verdade refletiria preocupações de setores
notoriamente contrários ao comunismo, Goulart assim se manifesta:
Meus conterrâneos: de há muito me venho batendo, com calor patriótico,
para que se realizem no País as reformas de base, que são reclamadas pelo
interesse de toda a Nação. Há alguns anos atrás, como bem o sabeis, quando
qualquer cidadão se dispunha a tratar desse problema, e mesmo, ao de leve,
se referia à necessidade de levar-se a cabo a reforma agrária, passava ele a
figurar no rol dos subversivos, dos pregoeiros da desordem. Hoje, porém,
essa reforma constitui uma aspiração geral, principalmente daqueles que
realmente se interessam pela grandeza do Brasil e por sua independência
econômica. Hoje, não são somente os trabalhadores do campo, apoiados
pelos seus companheiros das cidades, que reivindicam a reforma agrária, em
bases justas, de modo a possibilitar o acesso à terra aos homens que a
trabalham e nela se sacrificam.
Hoje, são os Bispos brasileiros da Igreja Católica que, em manifesto, pedem
um novo estatuto da terra; são os trabalhadores de outras nações que
clamam, nas suas fábricas e nos seus sindicatos, pela libertação, na América
Latina, dos homens do campo, escravos do latifúndio.
Ainda há pouco, quando visitava os Estados Unidos da América,
conversando com representantes de suas classes operárias, ouvi deles
afirmações como esta: ―Temos receio de que o povo americano, através de
contribuições, carreie recursos para a agricultura dos países sul-americanos
e, especialmente, dos países onde ainda não se fez a reforma agrária, porque
certamente esses recursos, fornecidos através de empréstimos ou de qualquer
outra modalidade, não vão servir para libertar o pequeno agricultor, nem
para libertar o homem que não tem terras e que a trabalha. Ao contrário, vão
servir apenas para enriquecer mais aqueles já enriquecidos com o trabalho
dos camponeses em suas terras‖.
Se eu tivesse citado, neste instante, uma frase de Kruschev, de um chefe
chinês ou de um líder cubano, todos vós estaríeis dizendo que aqui também
se levanta a agitação. Reproduzi, porém, as palavras que me foram ditas por
trabalhadores de uma nação democrática, apontada como exemplo às
demais. Portanto, esse sentimento de reforma já existe no coração e na
compreensão de brasileiro, a todos, enfim, que queiram lutar pelo
desenvolvimento deste país. Não desejamos importar figurinos estrangeiros
para realizá-la: ela deverá possuir tonalidades locais, ser obra de brasileiros
para brasileiros, tanto nas suas origens quanto nos seus objetivos.184
Goulart, em sua fala, procura comprovar sua afirmação de que a reforma agrária no
Brasil seria uma ―aspiração geral‖, reclamada não somente por ―partidos e ideologias‖,
apontando que, tanto a Igreja Católica como os trabalhadores de um país usado como exemplo
na defesa da ordem democrática e combate ao comunismo aprovariam a realização de tal
reforma.
184
Ibidem, pp. 124-125. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, ao receber o titulo de Cidadão Campinense
e a faixa de Presidente da Legalidade, em Campina Grande (PB).
68
Sendo assim, tanto em Vargas quanto em João Goulart, o fim ―da exploração do
homem pelo homem‖, nada tem a ver com a ideologia comunista. Goulart, inclusive, faz
questão de destacar que a reforma agrária por ele defendida não está apenas desvinculada de
qualquer avanço comunista, como também seria uma forma de combatê-lo; uma vez que
reforçaria os laços do povo com o regime democrático e multiplicaria o número daqueles que
defenderiam a propriedade privada. Por diversas vezes, Goulart ressaltará o conteúdo anti-
revolucionário de uma reforma agrária no país naquele momento. Em seus discursos, aponta
que a realização das reformas eliminaria o ―sentimento de angústia‖ que poderia levar a
revoltas e a ―caminhos imprevisíveis‖.
Estou convencido que o próprio direito de propriedade /.../ ficaria muito
mais respeitado se maior fosse o número de proprietários rurais no interior
da nossa pátria. Hoje existem, no Brasil, dois milhões e oitocentos mil
proprietários; e a terra, num país com essa vastidão territorial, apenas dois
milhões e oitocentos mil brasileiros têm um pedaço de terra dentro de nosso
país. É claro /.../ que se amanhã, ao invés de dois milhões e oitocentos mil,
nós pudéssemos multiplicar para dez ou quinze milhões de brasileiros, que
185
Ibidem, p. 118. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa.
Grifos nossos.
186
Ver: COTRIM, Lívia C. de A. Op. cit., pp. 274-275.
69
187
Transcrição de discurso proferido em 31 de maio de 1963, na sessão solene de entrega do título honorário de
juiz forano, na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG). Arquivo de áudio em CD que acompanha: GOMES,
Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces.
188
―JG: reformas são para defender democracia‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 mar. 1964. Transcrição
de discurso proferido no Palácio do Planalto, em Brasília, em reunião do presidente com 300 prefeitos
brasileiros, no dia anterior à publicação.
70
189
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 118-119. Discurso proferido em 29
de julho de 1962, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa. Grifos nossos.
190
Ibidem, p. 161. Discurso proferido em 29 de setembro de 1962, ao visitar o Simpósio e a I Exposição do
Milho, na cidade de Catanduva (SP). Grifos nossos.
191
―Justiça social exige reforma agrária em moldes brasileiros‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 abr. 1963.
Transcrição de discurso proferido no dia anterior à publicação. Vale apontar que há uma divergência entre a
citação aqui utilizada e a citada por Marco Antonio Villa, cuja fonte é o jornal O Estado de S. Paulo, não
verificado na nossa pesquisa. Na citação feita por Villa o texto seria: ―Nossa bandeira é verde-amarela. Não
precisamos de patrões para defendê-la‖. Cf. VILLA, M. A. Op. cit., p. 103. Enquanto que na reportagem do
Correio da Manhã, o texto é: ―Frisou que o Brasil não precisava de padrões para tais reformas, nem tinha a
necessidade de importar normas e figurinos, porque o povo brasileiro tem suas características próprias e o país as
suas condições geográficas específicas e que, portanto, a reforma era brasileira – verde e amarela – feita para
brasileiros‖.
71
em que procurava expor os princípios da reforma agrária que defendia. Sustentava uma
reforma agrária que, não obstante o conteúdo social gerado pela inclusão econômica de
parcela considerável da população rural brasileira, constituía uma necessidade econômica do
desenvolvimento nacional. Uma reforma que, longe de incorporar ideais comunistas,
objetivava a ampliação da defesa da propriedade privada, bem como a contenção de possíveis
movimentos revolucionários violentos. Reforma que, em suas palavras, seria ―genuinamente
brasileira‖ e realizada pacificamente, dentro de uma ―perspectiva democrática e cristã‖. 192 Ou
seja, a reforma agrária buscada por Goulart, ainda que tivesse como tônica o atendimento das
particularidades e demandas nacionais, se filiava claramente ao padrão de desenvolvimento e
aspirações capitalistas.
Como vimos, João Goulart considerava a reforma agrária também como uma medida
de ordem técnica, necessária ao desenvolvimento econômico. Procuraremos, por ora,
compreender a leitura do histórico do desenvolvimento brasileiro que leva Goulart a fazer tal
afirmação.
Em diversas ocasiões, o presidente Jango apontava ―a ausência de uma reestruturação
agrária‖ como um obstáculo à ―marcha do progresso‖ do país. Para ele, ―sem uma agricultura
progressista‖ seria impossível ―uma economia nacional equilibrada‖; e a estrutura agrícola
naquele momento não mais atenderia ―às necessidades do crescimento da economia geral do
País.193 Uma das maiores questões apontadas por Goulart era a urgência em aumentar a
produtividade agrícola brasileira.
O Brasil reclama uma reforma agrária que possibilite a revisão das relações
jurídicas e econômicas entre os que trabalham a terra e os que detêm a
propriedade rural, para que seja possível libertar a produção agrícola dos
seus seculares entraves e proporcionar maior produtividade ao agricultor,
assegurando-lhe justa participação nas riquezas, para dotar o País de uma
agricultura moderna, racional e mecanizada, de alto rendimento produtivo.
Evidentemente, no Brasil, tal lei agrária deve possuir características de
maleabilidade, para acomodá-la às variadas condições regionais e de modo a
192
―Não desejo suprimir vantagens legitimamente auferidas por parcelas do povo, nem tampouco me move o
desejo insano de atingir o patrimônio de quem quer que seja. O que me anima é o trabalho em prol da justiça. O
que desejo é dar condições para que todos tenham vantagens num futuro próximo, e todos possam um dia
igualmente defender o patrimônio que possuem. A essência do trabalhismo, para mim, reside em dar a cada um
o respeito que se tem a si próprio. É dentro dessa perspectiva democrática e cristã, genuinamente brasileira,
que atende às nossas melhores tradições culturais, que se coloca a minha pregação‖. GOULART, J. Entrevista
concedida à Revista Manchete, no mês de novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO, Carlos. Introdução a
Revolução de 1964. Tomo 2. A queda de João Goulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 244.
193
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), pp. 83-84. Discurso proferido 17 de
novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em
Belo Horizonte.
72
194
Ibidem, p. 85. Grifos nossos.
195
RIBEIRO, D. As Américas e a Civilização: processo de formação e causa do desenvolvimento desigual dos
povos americanos. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 252.
196
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 18-19. Discurso proferido em 25
de janeiro de 1962, no encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro. ―A distribuição da
terra, entre nós, continua até hoje a processar-se unicamente como pura mercadoria que o mercado do dinheiro
e o mero interesse do investidor proprietário controlam sob qualquer ângulo. Resulta daí que o modo de
apropriação da terra determina formas de uso que não obrigam seu cultivo intenso, e, portanto, não exige
melhoria das técnicas do trabalho. Os modos de apropriação impedem, também, que populações muito mais
numerosas se instalem em terras que poderiam alimentar muito mais gente do que na verdade alimentam‖.
197
Ibidem, pp. 19-21.
73
Vê-se, portanto, que João Goulart enxergava no ―livre acesso à terra‖ para os
agricultores que ainda não a tinham, juntamente com ―assistência técnica e financeira‖, uma
saída para aumentar a produção de gêneros alimentícios e torná-la ―mais barata e acessível ao
povo‖ – ou seja, eliminar o problema do abastecimento e da alimentação. Para Goulart,
A estrutura agrária predominante no País constitui enorme entrave ao nosso
progresso econômico e social. Em um país de terra tão abundante e grande
excedente de mão-de-obra, não se compreende que continuemos a viver em
permanente escassez de oferta de produtos agrícolas. Subutilizamos terra,
198
Embora pouco explorada pela bibliografia existente, o economista Cássio Silva Moreira aponta para a
possibilidade de a crise de abastecimento de gêneros ter sido agravada por um boicote dos grandes proprietários
e produtores rurais, descontentes ―frente à sinalização da criação do Estatuto da Terra e da reforma agrária,
defendida pelo governo‖. Cf. MOREIRA, Cássio Silva. O projeto de nação do governo João Goulart: o Plano
Trienal e as Reformas de Base (1961-1964). Tese (Doutorado em Economia) – Faculdade de Ciências
Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, pp. 111-112.
199
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 91. Discurso, já citado, proferido
em 13 de maio de 1962. Grifos nossos.
200
Ibidem. p. 113. Discurso proferido em 26 de junho de 1962, ao receber líderes sindicais no Palácio do
Planalto, Brasília. Grifos nossos.
74
Falando particularmente sobre a região Nordeste, Jango reforça esta ideia, ressaltando,
desta vez, não a irracionalidade da estrutura agrária no Brasil, mas apontando-a como uma
―revivescência da sociedade colonial, organizada em bases feudais para atender às
conveniências da metrópole longínqua‖. Para ele,
A essa primitiva estrutura devemos, em grande parte, a escassez de
alimentos de que tanto sofre o Nordeste e que sufoca o desenvolvimento da
sua economia urbana. A menos que criemos aqui uma moderna agricultura
ligada ao mercado regional, o desenvolvimento industrial tropeçará sempre
em obstáculos intransponíveis. Para que exista esta agricultura moderna, em
termos de desenvolvimento, ligada ao interesse do povo e da região, a
primeira condição a exigir-se é a de que a população trabalhadora tenha
maior acesso aos frutos do próprio trabalho.
Tenho insistido, repetidas vezes, para que se promova a reforma da estrutura
agrária do País, a fim de que a organização agrícola seja impregnada de um
autêntico espírito de empresa e os frutos do trabalho repartidos de maneira
mais justa.202
201
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 10.
202
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 117. Grifo nosso. Discurso, já
citado, proferido em 29 de julho de 1962, em João Pessoa (PB).
75
203
―Goulart anuncia o ano da exportação‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 ago. 1963. Transcrição indireta
de discurso em reportagem sobre banquete de comemoração do 25º aniversário da Confederação Nacional da
Indústria, realizado no dia anterior à publicação.
204
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. 24. Grifos nossos.
205
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 90. Discurso proferido no Rio de
Janeiro, em 28 de novembro de 1961, ao paraninfar os economistas que concluíram o Curso de Capacitação em
Problemas de Desenvolvimento, promovido pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), em
cooperação com o Governo Brasileiro.
76
206
GOULART, J. Entrevista concedida à Revista Manchete, no mês de novembro de 1963. In: CASTELLO
BRANCO, C. Op. cit., pp. 238-239. Grifos nossos.
207
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
208
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 210. Discurso proferido em 17 de
novembro de 1962, na instalação da VII Conferência Regional da FAO para a América Latina, no Rio de
Janeiro.
77
Será, portanto, com esses argumentos que João Goulart defenderá, ao longo de todo o
seu governo, a realização de uma reforma agrária no Brasil. Uma reforma agrária que, em
suas palavras, removeria ―as causas do atraso‖ no desenvolvimento brasileiro, colocando-o
numa ―posição favorável às transformações progressistas e emancipadoras‖;211 sendo, a seu
ver, ―a mais justa e humana‖ dentre as reformas de base, pois, além de ―corrigir um
209
Ibidem, pp. 210-211. Grifos nossos.
210
―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963. Transcrição do
discurso em reportagem sobre comício realizado em homenagem a Getúlio Vargas, no dia anterior à publicação.
211
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 101. Discurso proferido em 10 de
dezembro de 1961, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
78
Vimos, até aqui, as razões apontadas pelo presidente Jango para a urgente realização
de uma reforma agrária no Brasil. Resta-nos, agora, explicitar o modo como, de acordo com o
discurso proferido pelo próprio presidente, esta reforma seria efetivada, quais características
teria para atingir os objetivos por ele defendidos.
Desde seus primeiros discursos sobre a reforma agrária no país, Goulart fazia questão
de frisar que não poderia haver uma única ―fórmula salvadora‖ ou ―remédio milagroso‖ que
atendesse a todas as regiões brasileiras, sendo estas tão diferentes entre si.213 Na Mensagem
ao Congresso de 1962, nos mostra que a preocupação com a diversidade das regiões
brasileiras não se limitaria às condições naturais da produção agrícola, mas também às
questões sociais nas relações de trabalho no campo:
O exame da questão agrária no Brasil revela a existência, no campo, de
diferentes tipos de tensão social. Em algumas regiões prevalece tensão de
um tipo; em outras regiões, de outro tipo. O remédio adequado difere, em
consequência. Aquele propiciador de um alívio e de maior harmonia social
no Nordeste certamente não provocará os mesmos resultados benéficos em
São Paulo. Assim, a legislação da reforma que julgamos urgente deve ser
bastante ampla e flexível, sob a forma de diretrizes e bases, para permitir ao
executor federal da lei a oportunidade de aplicá-la com a eficiência
desejada.214
212
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. LI.
213
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 84. ―A questão da terra no Brasil deve ser
resolvida, evidentemente, de acordo com as características próprias de cada região. Não há, nem pode haver, fórmula salvadora, remédio
milagroso, para realidade tão diversificada de um país que é um continente, pela sua extensão e pela multiplicidade dos seus reclamos de
desenvolvimento. Não vejo razões para deixar de afirmar que a reforma agrária é uma das reformas que o País reclama, para dar plena
expansão às suas forças produtivas adormecidas”. Discurso proferido em 17 de novembro de 1961, no encerramento do
Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, na cidade de Belo Horizonte.
214
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. XII.
215
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 85. O presidente repete essa fala,
com conteúdo idêntico, em seu discurso aos ruralistas, no Congresso Rural Estadual, promovido pela Federação
das Associações Rurais do Estado de São Paulo, em 19 de janeiro de 1962, na cidade de Araraquara (SP). Cf.
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 14.
79
Desse modo, a reforma agrária brasileira deveria levar em conta dois aspectos centrais:
1) as especificidades de cada região e 2) a produtividade das propriedades – muito mais do
que seu tamanho.
a reforma agrária tem de ser maleável, para se adaptar às nossas diferenças
regionais, considerando-se sempre, e em primeiro plano, o rendimento da
produção e a sua finalidade social. Onde se estiver produzindo bem, tudo o
que há a fazer é melhorar essa produção através de ajuda técnica e
financeira.216
Sendo assim, João Goulart defendeu repetidas vezes a desapropriação de ―terras que
não produziam‖ ou que ―produziam muito abaixo do nível econômico‖ da região a qual
integravam. Em seus discursos, descartou totalmente a desapropriação de terras produtivas ou
de pequenas propriedades, as chamadas ―unidades familiares‖, pois
Ao contrário, pela reforma agrária, o que deve visar acima de tudo é
prestigiar as pequenas propriedades e assisti-la para que ela possa produzir o
máximo de seu rendimento. O mesmo pensamento, é claro, /.../ eu não
poderia ter com relação aos grandes latifúndios improdutivos, e
especialmente daqueles localizados nas grandes áreas de consumo da nossa
pátria.219
216
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 18. Discurso proferido em 25 de
janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro.
217
Ibidem, p. 19. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI
Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro.
218
Transcrição de discurso proferido em 31 de maio de 1963, na sessão solene de entrega do título honorário de
juiz forano, na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG). Arquivo de áudio em CD que acompanha: GOMES, A.
C.; FERREIRA, J. Jango: as múltiplas faces.
219
Idem.
80
tornando-a mais racional. Contudo, mesmo dando destaque às medidas de ordem técnica que
integrariam sua proposta, Goulart também aponta o objetivo ―cristão‖ de sua reforma: o de
―atender à pessoa humana‖ e propiciar a esperança ―num futuro melhor‖:
A reforma agrária é reivindicação do desenvolvimento nacional. Reforma
agrária quer dizer, sem dúvida, proibição de conservar terras
inaproveitadas, que fiquem aguardando valorizações aleatórias, com
finalidades especulativas ou distorsivas, sem forma e sem figura de interesse
social. Reforma agrária deve ser, sobretudo, tranquilidade e segurança para o
trabalhador e para o proprietário, para quem planta e para quem colhe; deve
ser a racionalização do esforço da comunidade rural para melhores
condições de exploração econômica da terra; deve ser a presença do poder
público ou dos órgãos coletivos adequados, para a assistência
imprescindível dos postos zootécnicos, dos campos de experimentação, das
estações de máquinas, dos centros de armazenagem e ensilagem; deve ser o
funcionamento, próprio e oportuno, do sistema de transportes e
comunicações, que assegure o acesso aos mercados de consumo; deve ser a
organização do crédito rural, não apenas como privilégio dos poderosos que,
eventualmente, se dediquem às tarefas da produção agrícola e pecuária, mas
em favor especialmente dos pequenos e médios produtores, sem as
complicações burocráticas ou as exigências eternizantes que cercam o
processo das garantias reais; deve ser o estímulo às organizações
cooperativistas, com o incentivo às formas de associação e de esforço
comum na luta pelo progresso; deve ser convocação da técnica levada ao
campo pelo poder público ou pelos que mais o puderem — e tudo isso com o
objetivo mais alto e mais cristão de atender à pessoa humana, cuja
felicidade deve ser razão fundamental do Estado, proporcionando-lhe
moradias mais higiênicas, ambulatórios, hospitais, escolas, ou, para resumir,
ambiente que enseje esperanças e razões de crer num futuro melhor.220
Embora esta pesquisa tenha como foco os discursos do presidente João Goulart, e não
os atos administrativos de seu governo, vale salientar que os aspectos defendidos
publicamente por ele, e aqui mostrados, condizem com o texto do anteprojeto de lei,
encaminhado ao Congresso em março de 1963, estabelecendo o regime jurídico da reforma
agrária, e também com as Mensagens encaminhadas ao Congresso pela abertura do ano
legislativo, sobretudo a do ano de 1964, mais extensa que as anteriores. Além disso, em maio
de 1963, Goulart também anuncia a criação do Plano de Crédito Rural do triênio 1963-65.
Outra medida do governo Goulart, bastante lembrada no que diz respeito à área
agrícola, foi a sanção do Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo a legislação trabalhista
aos trabalhadores rurais. O historiador Caio Prado Jr., ainda que bastante crítico de João
Goulart – a quem acusava de estar mais preocupado em retomar os poderes presidencialistas e
abafar as contradições do desenvolvimento brasileiro do que em implementar efetivamente as
220
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 21. Grifos nossos. Discurso
proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio
de Janeiro.
81
reformas – valorizou o Estatuto, visto por ele ―como uma das mais significativas iniciativas de
alcance nacional para o encaminhamento de resoluções da questão agrária no país‖, ainda que
o considerasse insuficiente.221
O projeto de lei que fora apresentado pelo Deputado Fernando Ferrari – trabalhista
dissidente, expulso do PTB comandado por Jango e fundador do partido Movimento
Trabalhista Renovador (MTR) – apesar de sancionado por Goulart e afirmado como ―um dos
mais importantes marcos da nossa história trabalhista‖,222 pouco foi abordado em seus
discursos. Certa vez, o jornal carioca Correio da Manhã, após a aprovação do projeto pelo
Legislativo, cobrou o presidente pela demora em sancioná-lo. Como resposta, Goulart teria
escrito em bilhete a seu secretário de imprensa, Raul Ryff:
Dar conhecimento ao Correio da Manhã:
/.../
Quanto ao projeto Ferrari, preocupação tão afetiva do Correio da Manhã,
ainda não chegou às minhas mãos. Não posso, portanto, sancioná-lo, sem ter
os autógrafos. Devem estar ainda na secretaria da Câmara. Apesar de ser um
projeto flor de laranja, estou disposto a sancioná-lo, convencido, porém, que
somente através de uma reforma profunda, com modificações básicas nos
textos constitucionais, poderá ser resolvido o problema agrário e social em
termos de interesse nacional e de atendimento aos justos anseios de milhões
de brasileiros sem terra e ainda sem oportunidade de obtê-la.223
O bilhete nos revela, portanto, que apesar de concordar com o Estatuto, João Goulart o
colocava como uma prioridade menos urgente e de alcance muito mais limitado de que a
reforma agrária.
Como última medida de Goulart concernente à questão agrária, está a assinatura do
chamado decreto da SUPRA – Superintendência de Política Agrária224 – realizada
publicamente no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Este decreto
declarava ―de interesse social, para fins de desapropriação, uma faixa de dez quilômetros ao
221
SOUZA, Ângela Maria. O Brasil descortinado por Caio Prado Jr.: gênese e reiteração do ciclo vicioso.. Tese
(doutorado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, p. 244. Souza ressalta que a defesa
que Caio Prado faz do Estatuto do Trabalhador Rural está relacionada a sua consideração, procurando respeitar
as condições objetivas da realidade nacional, de ―que não era possível, naquele momento, a mudança do modo
de produção capitalista para o socialista‖; sendo mais correta a implementação de medidas ainda no ―âmbito da
propriedade privada‖.
222
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 139.
223
―Goulart criticou projeto Ferrari e culpa Câmara‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1963.
224
Em grande parte da bibliografia, a SUPRA aparece também identificada como Superintendência da Reforma
Agrária.
82
longo das rodovias e ferrovias, bem como das áreas beneficiadas por obras federais, como os
açudes‖.225 Justificando sua assinatura, João Goulart argumentou:
Por este ato, áreas inexploradas e sob o domínio de latifundiários, que não as
cultivam nem permitem que outros a cultivem, serão desapropriadas e
divididas em lotes para entrega aos camponeses que as queiram cultivar.
Esta é a primeira ampla porta que se abre para uma reforma agrária que se
realizará pacificamente, regida pelos preceitos democráticos e com
fidelidade às tradições cristãs do nosso povo.226
Enquanto o Congresso Nacional não oferece os instrumentos legais
adequados para a realização da Reforma Agrária, o Poder Executivo vem
adotando uma série de providências, por intermédio da Superintendência de
Política Agrária (SUPRA), mediante a utilização do poder de desapropriação
nos termos em que legalmente está investido. Dentro dessa limitação, foi
concebida a providência de desapropriar terrenos rurais mal aproveitados,
em torno de estradas, ferrovias e açudes públicos.227
Não obstante a repercussão da assinatura deste decreto, o próprio João Pinheiro Neto,
na época presidente da SUPRA, afirma em seu livro ―Jango: um depoimento pessoal‖:
O Decreto da SUPRA, como ficou conhecido, visava a uma solução bastante
simples, e que nada tinha de subversiva: tornar de interesse público, para
efeito de desapropriação, dez quilômetros de faixas de terra ao lado de
estradas, açudes e outras obras públicas. O Decreto redigido por mim por
determinação de Jango foi medida que visava apenas a conter a especulação
em torno dessas terras, já que era impossível no momento desapropriação de
vulto, com pagamento à vista e em dinheiro.228
225
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. XXXVII.
226
Idem.
227
Ibidem, p. 97.
228
PINHEIRO NETO, João. Jango: um depoimento pessoal. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 39.
229
GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, K. et al. (coord.). Op. cit., p. 243.
83
reformas realizadas pelos países comunistas, não foi possível efetivar qualquer avanço que
fosse além do amplo debate desenvolvido na época em torno desta questão.
84
Como se vê, Dantas aponta, como princípios norteadores das ações do Itamaraty
naquele momento, ideias fortemente propagadas pelo próprio presidente Jango em seus
discursos: ideias de orientação nacionalista – visando o ―desenvolvimento e à emancipação
econômica‖ – e reformista – buscando conciliar ―o regime democrático representativo e uma
reforma social‖.
Também vale expor aqui os pontos em torno dos quais, de acordo com San Tiago
Dantas, foi ordenado o posicionamento brasileiro em sua política externa independente.
Creio que esse sistema /.../ ordenou-se em torno dos seguintes pontos:
A) contribuição à preservação da paz, através da prática da coexistência e
do apoio ao desarmamento geral e progressivo;
B) reafirmação e fortalecimento dos princípios de não-intervenção e
autodeterminação dos povos;
230
Ao todo, foram cinco os ministros que ocuparam esta pasta ao longo do governo Jango: Francisco San Tiago
Dantas (durante o gabinete Tancredo Neves, de 08 de setembro de 1961 a 12 de julho de 1962); Afonso Arinos
de Melo Franco (durante o breve gabinete Brochado da Rocha, de 12 de julho de 1962 a 18 de setembro do
mesmo ano); Hermes Lima (acumulando o cargo de primeiro-ministro, de 18 de setembro de 1962 a 24 de
janeiro de 1963, permanecendo na pasta no início da fase presidencialista, de 24 de janeiro de 1963 a 18 de
junho do mesmo ano); Evandro Cavalcanti Lins e Silva (de 18 de junho a 22 de agosto de 1963) e João Augusto
de Araújo Castro (de 22 de agosto até a deposição do governo pelo golpe, em 01 de abril de 1964). A
rotatividade de ministros na pasta deveu-se às constantes reformas ministeriais efetivadas pelo governo.
231
DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962, p. 5.
85
Embora esta sistematização feita por Dantas tenha sido publicada ainda em 1962, no
mês seguinte à sua saída do ministério, veremos que essas ideias continuarão presentes nos
discursos do presidente Goulart, sempre que toca nos assuntos de relações exteriores;
concentrando-se os pontos A e B nas justificativas do posicionamento brasileiro diante da
questão de Cuba e da crise dos mísseis – em que sofria enorme pressão dos Estados Unidos,
como veremos a seguir – e o ponto C nas relações com a América Latina e países do Bloco
Soviético.
Ainda que a análise da política externa brasileira no período que ora estudamos
constitua importante tema para um trabalho mais detalhado e aprofundado (sobretudo no
tocante às relações Brasil e Estados Unidos) que não encontra condições de ser realizado aqui,
procuraremos, neste capítulo, expor qual o papel que o presidente João Goulart atribuía ao
Brasil nas relações internacionais, enfocando as relações com os Estados Unidos e com os
países latino-americanos – aos quais foi dedicada maior atenção do Itamaraty e do próprio
presidente, que, com exceção da viagem a Roma, em setembro de 1963, por ocasião da
escolha do papa Paulo VI, visitou apenas os Estados Unidos e o México, em abril de 1962,
além de Chile e Uruguai, em abril de 1963.
232
Ibidem, p. 6.
86
233
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de
Janeiro: Revan/ Brasília (DF): EdUnB, 2001, p. 67.
234
Ao caracterizar o president João Goulart, o documento afirma: ―A confirmed opportunist even by Brazilian
standards, the wealthy Goulart has yet to reveal any strongly-held political or economic philosophy, and has
been frequently linked with corruption‖. E quanto ao provável posicionamento na questão cubana: ―Nevertheless,
Brazil will probably continue to emphasize the ‗independent‘ character of its foreign policy. For these reasons it
will almost certainly continue to oppose sanctions against Castro, although it would probably agree to some
kind limited action if it seemed certain that most the major Latin American states were disposed to take such
steps‖. In: ―Special National Intelligenge Estimate n. 93-2-61 – Short Term Prospects for Brazil under Goulart‖,
7.12.1961, secret NKL-76-199 § 3, JFKL, p. 3 e 7-8. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov/docs/DOC_0000008146/DOC_0000008146.pdf> Último acesso em: 17 de maio de
2012.
87
Diante desta situação, o governo efetuou, com autorização legal, o tombamento físico
e contábil da empresa e iniciou negociações com a companhia, que, todavia, não levaram a
um acordo entre as partes. Estabelecido o impasse, em 13 de maio de 1959, Brizola decreta a
expropriação da filial da American & Foreign Power (AMFORP) no Rio Grande do Sul, com
o depósito simbólico no valor de 1 cruzeiro,
que fora estabelecido abatendo-se as contribuições populares espontâneas, na
colocação de fios e postes, doações territoriais, indenização de pessoal,
multas, remessa de lucros acima do legalmente permissível e a depreciação
dos materiais. A soma dessas deduções suplantava o valor do acervo da
companhia. O saldo resultara negativo. Era o Estado que tinha a cobrar,
aplicado o critério do custo histórico, que a legislação brasileira, vigente na
235
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brizola e o trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.
61.
88
época, consagrava. Deu-se assim o valor de Cr$ 1,00 por mero simbolismo
jurídico, fazendo o Estado o depósito do dinheiro num banco comercial, ao
mesmo tempo que solicitava ao Poder Judiciário a imissão da posse. O Juiz
Borges Fortes, da Fazenda Pública, concedeu-a, tão logo recebeu o pedido,
argumentando que se limitava à estrita aplicação da lei.236
236
Ibidem, p. 62.
237
Idem.
238
Ibidem, p. 63.
239
Idem.
89
A questão parecia encerrada. No entanto, dois meses depois, ao ser interpelada pelo
governo do Rio Grande do Sul, a ITT retrocede de sua posição: afasta seu vice-presidente, que
até então encabeçara as negociações, e envia novos representantes para recomeçar o processo.
A partir do recuo da ITT, entretanto, Brizola convenceu-se de que seus
dirigentes buscavam simplesmente ganhar tempo até que ele terminasse seu
mandato e decidiu, sem qualquer vacilação, tomar as medidas que o interesse
público reclamava. Decretou a retomada dos serviços e expropriou o acervo
da Companhia, com base no valor encontrado pelos árbitros.240
240
Ibidem, p. 64.
241
Idem.
242
Ver MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 231,
citando o jornal Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 fev. 1962.
243
VIZENTINI, Relações exteriores do Brasil (1945-1964): o nacionalismo e a política externa independente.
Petrópolis (RJ): Vozes, 2004, p. 191.
244
Assim conhecida por ter sido apresentada pelo senador Bourke Hickenlooper.
245
Embora os Estados Unidos já tivessem enfrentado situações similares de encampações na Indonésia e no
Ceilão, Roberto Campos, então embaixador brasileiro em Washington, considera que ―a emenda Hickenlooper
foi essencialmente um subproduto dos confiscos (sic) de Brizola‖. In: CAMPOS, Roberto de Oliveira. A
lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 471.
90
No entanto, afirma que, por motivos diversos, ―o sistema‖ que congregava ―esforços
públicos e privados‖ nesse setor se exaurira, deixando como consequência
várias e largas áreas de atrito entre a opinião pública, o poder concedente e o
concessionário, e, por um fenômeno muito natural de transposição,
envenenando as próprias relações entre o nosso país e governos estrangeiros,
especialmente o mais representativo deles neste setor, o dos Estados
Unidos.247
246
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 35-36.
247
Ibidem, p. 36.
248
A cláusula-ouro consistia num mecanismo que garantia às empresas concessionárias de serviços de
abastecimento de água e energia um reajuste sistemático de parte das tarifas pela cotação do ouro. Este
mecanismo é revogado por Getúlio Vargas ainda em 1934, no Código de Águas. Sobre o tema, ver: BASTOS,
Pedro Paulo Zahluth A construção do nacional-desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e a dinâmica de interação
entre Estado e mercado nos setores de base. Revista Economia, Brasília, v. 7, n. 4, dez. 2006, pp. 239-275.
249
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 36.
91
Além de afirmar que ―salvo raríssimas exceções, o fato é que essas concessões, em
geral, no Brasil, funcionam mal, funcionam inadequada e insuficientemente‖, o presidente
também aborda o problema das tarifas cobradas por esses serviços públicos. Segundo ele,
ainda que se admitisse que as tarifas não fossem as mais favoráveis para as concessionárias, a
população ―mal servida‖ se veria ―com o direito de proclamar que paga caro, em relação ao
seu poder aquisitivo, por serviços ruins‖.251
Após expor o problema nestes termos, o presidente Goulart, chama para si a
responsabilidade de Chefe de Estado – que seria ―um dos responsáveis pela tranqüilidade
nacional‖ – e afirma a ―necessidade de uma solução que atenda, neste importante setor, aos
justos reclamos populares‖ sem, no entanto, provocar aos empresários estrangeiros
―inquietação ou o pânico, o que só agravaria dificuldades recíprocas, no presente e no
futuro‖.252 E finaliza:
Desejo enfim, senhores, ser fiel ao meu passado e às minhas convicções.
Desejo ir ao encontro do interesse do povo, sem trair jamais meus
compromissos com ele livremente assumidos. Estou certo, porém, de que
esses anseios populares podem ser atendidos sem provocar reações
desaconselháveis aqui e no exterior, especialmente entre os países, os
homens e os grupos que no Brasil tenham invertido ou venham a inverter
seus capitais. Entendo que, também aqui, podemos e devemos encontrar um
denominador comum que, atendendo em primeiro plano aos interesses do
Brasil, não desatenda ao das empresas concessionárias.
/.../ Se tais serviços públicos, por diversas razões, já não podem cumprir suas
tarefas de bem servir o povo, se as próprias empresas sustentam que já não
estão obtendo resultados satisfatórios, e como desejamos que esses capitais
aqui permaneçam em setores onde não sejam inquietados e onde possam dar
maior contribuição ao progresso nacional, não será difícil encontrarmos a
solução do entendimento, que, atendendo aos altos interesses nacionais e
populares, não crie embaraços ou provoque danos aos investidores de
capitais, seja qual for a sua bandeira de origem. E, principalmente, meus
senhores, quando tais questões envolvem interesses de dois países, que, por
sua identificação com o ideal democrático, têm, nesta hora, mais que em
qualquer outra, o dever de evitar incompreensões e choques em suas relações
cotidianas, como é o caso do Brasil e dos Estados Unidos, o problema que se
apresenta é uma convocação simultânea à capacidade de decidir dos
governos e ao bom senso ou à capacidade de compreender dos
interessados.253
250
Idem.
251
Ibidem, p. 37.
252
Idem.
253
Ibidem, pp. 37-38. Grifo nosso.
92
Sendo assim, mais uma vez, Jango explicita a mesma atitude que procura manter ao
longo do seu governo: a da busca de ―um denominador comum‖ entre as partes cujos
interesses entram em contradição. Ainda que mostre ser legítima a insatisfação da população e
dos governos estaduais com os serviços públicos prestados pelas empresas estrangeiras – a
primeira, pela má qualidade dos serviços e pelo impacto das tarifas cobradas em seu poder
aquisitivo, e os segundos por encontrarem na insuficiência dos serviços prestados um sério
obstáculo para o desenvolvimento econômico de seus estados e municípios – Goulart não
aponta as concessionárias estrangeiras como grandes vilãs a serem expurgadas do país. Pelo
contrário, o presidente mostra preocupação em evitar a ―inquietação‖ ou os ―danos‖ entre os
investidores e em manter o capital estrangeiro no país, mas em outros setores que não o dos
serviços públicos – ―setores onde não sejam inquietados e onde possam dar maior
contribuição ao progresso nacional‖. Dessa forma, uma vez que o capital estrangeiro, atuante
num setor estratégico para o país, se encontrava, naquele momento, ―sem possibilidade de
atender aos reclamos de uma economia em expansão‖, a solução seria negociar o retorno dos
serviços públicos para as mãos do poder público, de forma a garantir que este mesmo capital
estrangeiro permanecesse investido na economia brasileira, porém em setores que trouxessem
melhor compensação para ambas as partes.
Os mesmos argumentos explicitados por Jango na Câmara Norte-Americana de
Comércio ele os apresentará, de maneira mais sucinta, em sua visita aos Estados Unidos.
Discursando em Nova York, em banquete oferecido pelas associações americano-brasileiras,
em 6 de abril de 1962, Goulart ratifica:
Não concorreram os brasileiros, nem seus governos, para qualquer mal-
entendido no que se refere a tais investimentos. Temos cumprido nossas leis
com relação a esses bens e direitos e se, no campo das concessões de serviço
público, as atuais transformações, de caráter social e econômico, tornam
menos rendosas essas atividades, por certo que o Governo e as empresas
concessionárias saberão encontrar a linha justa da conciliação que,
atendendo aos interesses de ambas as partes, satisfaça também aos interesses
do povo.254
Ao final da visita do presidente Jango aos Estados Unidos, também será publicado um
comunicado conjunto dos presidentes de Goulart e Kennedy que, entre outros temas,
documenta que:
O Presidente do Brasil manifestou a intenção de seu Governo de manter
condições de segurança, que permitirão ao capital privado desempenhar o
seu papel vital no desenvolvimento da economia brasileira. O Presidente do
Brasil declarou que nos entendimentos com as companhias para a
254
Ibidem, p. 60.
93
Embora, como já afirmamos anteriormente, não seja objeto deste trabalho a análise de
todos os atos administrativos do governo João Goulart, vale, neste momento, salientar que,
pouco mais de um mês após sua visita de Jango aos Estados Unidos, o Conselho de Ministros
publicava o Decreto 1.106, de 30 de maio de 1962, determinando: 1) a criação da Comissão
para Nacionalização das Empresas de Serviço Público (CONESP), submetida ao Primeiro-
Ministro, com os encargos de ―submeter à aprovação do Conselho de Ministros a relação dos
serviços que devem passar ao regime de exploração direta, indicando a ordem de prioridade‖
e de ―negociar com os representantes das empresas concessionárias as condições e a forma de
reembolso ou indenização aos acionistas, e submeter ao Conselho de Ministros o plano
resultante de cada uma dessas negociações‖; e 2) que as indenizações acordadas com as
empresas concessionárias fossem pagas em parcelas, sendo a primeira, à vista, de no máximo
10% da importância total e o restante em ―prestações compatíveis, sempre que possível com
recursos acumulados pelo próprio serviço e com o mínimo de recursos públicos adicionais‖ e
mediante o ―compromisso dos concessionários de reaplicar no País, em setores ou atividades
definidos pela Comissão Nacional de Planejamento como prioritários para o desenvolvimento
econômico e social,‖ no mínimo 75% do valor recebido como indenização.256
No entanto, a criação da CONESP não seria o suficiente para que as negociações com
as empresas estrangeiras avançassem no ritmo que desejavam os Estados Unidos. E, em julho
de 1962, o presidente John Kennedy– através de Lincoln Gordon, seu embaixador no Rio de
Janeiro – envia um telegrama ao presidente Goulart lamentando que o problema das
encampações não tenha ainda se resolvido dentro das linhas acordadas durante a visita de
Jango e alertando que, sendo tal problema de considerável preocupação do governo dos
Estados Unidos, o atraso na sua resolução certamente seria um empecilho nas relações de
amizade entre os dois países.257
255
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos
da América e ao México. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1962, p. 35.
256
Decreto do Conselho de Ministros nº 1.106, de 30 de Maio de 1962. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decmin/1960-1969/decretodoconselhodeministros-1106-30-maio-1962-
353086-publicacaooriginal-1-pe.html> Último acesso em: 29 de maio de 2012.
257
É a seguinte a íntegra do telegrama datado de 11 de julho de 1962: ―Dear Mr. President: You will recall that
during our recent conversations we discussed the problems arising from the expropriation of the properties of the
Compania Telefonica Nacional, a subsidiary of the International Telephone and Telegraph Company. I am sorry
that a solution to this problem along the lines we discussed has not yet been reached. As you know this matter is
one of considerable concern to the United States Government and delay in its settlement undoubtedly obscures
94
Ainda no ano de 1962, o presidente João Goulart receberá uma nova cobrança do
governo estadunidense para a finalização de um acordo de compra das subsidiárias da
AMFORP e ITT. Desta vez, o emissário será Robert Kennedy, irmão do presidente norte-
americano e procurador-geral de seu governo, cuja reunião com Goulart ocorre em 17 de
dezembro.
Segundo Roberto Campos, um dos objetivos da viagem de Robert Kennedy ao Brasil
era o de ―manifestar apreensão‖ diante do ―descaso na execução do entendimento Kennedy-
Goulart, durante a visita deste último a Washington, sobre a nacionalização pacífica das
empresas de serviços públicos encampadas por Brizola‖; uma vez que, segundo o
representante do governo dos Estados Unidos, havia um ―crescente antagonismo do
Congresso americano a programas de ajuda externa a países que tivessem confiscado
propriedades americanas‖ e que a ―inércia‖ do governo brasileiro neste assunto ―encorajaria
elementos negativistas no Congresso americano a amputar verbas de ajuda, não só para o
Brasil, mas para toda a América Latina‖.258 Kennedy solicitava que as atividades empresariais
fossem tratadas ―com justiça‖, particularmente no pagamento de uma ―indenização adequada‖
às empresas.259 Os outros pontos tratados por Robert Kennedy foram: a ―deterioração da
situação econômica do Brasil, tanto interna quanto externamente‖; a necessidade de o governo
brasileiro combater efetivamente a inflação; e a preocupação do governo americano com uma
suposta ―‗infiltração comunista ou de nacionalistas de extrema-esquerda‘ no governo, nas
Forças Armadas, na liderança dos sindicatos de trabalhadores‘ e na ‗liderança estudantil‘‖.260
Na análise de Moniz Bandeira, o significado da visita de Robert Kennedy ao presidente
Goulart era o de que ―o governo de Washington, na verdade, estava a utilizar os empréstimos
the warm friendly relations between the United States and Brazil. I would be most grateful for any immediate
action on your part to settle this urgent and important problem in accordance with our personal discussions and
agreement. I have asked Ambassador Gordon to discuss this matter with you in greater detail. May I take this
occasion to renew my expression of respect and regard. With every best wish, John F. Kennedy‖. In: JOHN F.
KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives. Folder: Brazil: Security, 1962;
Digital Identifier: JFKPOF-112-014; p. 26. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-
Viewer/Archives/JFKPOF-112-014.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012.
258
CAMPOS, Op. cit., p. 501.
259
LOUREIRO, Felipe Pereira. O Plano Trienal no contexto das relações entre Brasil e Estados Unidos (1962-
1963). In: XXXIX ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 2011, Foz do Iguaçu (PR). Anais do XIXXX
Encontro Nacional de Economia (ANPEC), 2011, p. 5; citando os seguintes documentos norte-americanos:
Embtel A-710, 19.12.1962, JFKL, NSF, Box 13A, Folder Brazil, General, 12/16/62 - 12/31/62, p. 2; pp. 5-10.
Artigo também disponível em: <http://anpec.org.br/encontro/2011/inscricao/arquivos/000-
dee84beca059ff4b73fb482757a9b9bc.pdf>. Último acesso em: 29 de maio de 2012.
260
Idem.
95
261
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 96.
262
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 8.
263
Entrevista do Presidente João Goulart à Revista Manchete em novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO,
C. Op. cit., pp. 234-245.
96
Vale notar que, embora a carta constitua uma tentativa clara de tranquilizar o governo
americano quanto à compra das empresas e facilitar as demais negociações das quais a
comitiva brasileira estava incumbida – e cujos resultados seriam de enorme importância para
a economia do país –, a mensagem aponta uma preocupação com o ―esclarecimento mais
amplo da opinião pública‖ sobre as negociações de compra da American Foreign Power;
mostrando a possibilidade de a medida ter uma repercussão negativa no Brasil.
A incumbência de Santiago Dantas de obter empréstimos e refinanciamentos junto aos
Estados Unidos e FMI encontrou grandes dificuldades. David Bell, administrador da United
States Agency for International Development (USAID), insistia em condicionar a abertura dos
fundos norte-americanos ―ao desempenho do governo Goulart em um conjunto de áreas
(política monetária, cambial, fiscal)‖.265 Embora ―muitos dos critérios de desempenho
recomendados pelas autoridades norte-americanas‖ tenham sido ―considerados inaceitáveis
pelo Ministro da Fazenda, tais como o estabelecimento de prazos específicos para a liberação
total do câmbio, ou a extinção dos subsídios federais às companhias ferroviárias e marítimas‖,
San Tiago Dantas acabou cedendo seu consentimento para a ―publicação de uma carta de
intenções em nome do governo brasileiro, além de se comprometer a concluir o processo de
encampação das subsidiárias da American Foreign and Power (AMFORP)‖.266
Ao narrar o episódio que intitula de ―O insucesso de San Tiago Dantas‖, Celso
Furtado aponta para o fato que tanto Dantas como os norte-americanos sabiam da importância
do apoio externo ao governo Brasileiro − sem ele, ―o governo brasileiro seria forçado a adotar
medidas drásticas, simplesmente para garantir o funcionamento da economia, medidas
impopulares que dificilmente o presidente apoiaria‖. 267
Em seu aspecto técnico, o Plano Trienal, que era a base da negociação de San Tiago
Dantas com os norte-americanos foi amplamente elogiado, já que Furtado afirma ter tomado o
cuidado de ―embutir um conjunto de providências estabilizadoras que estavam longe de ferir a
sensibilidade ortodoxa dos técnicos do FMI‖. O que, segundo o próprio Dantas, funcionou,
264
Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy, datada de 08 de março de 1963. In: JOHN
F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963:
January-April; Digital Identifier: JFKPOF-112-011, pp. 6-7. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-
Viewer/Archives/JFKPOF-112-011.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. Grifo nosso.
265
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 10.
266
Ibidem, p. 11.
267
FURTADO, C. Op. cit., pp. 249-255.
97
É neste contexto, segundo Furtado, que se explica o fato de San Tiago Dantas ter
subscrito a proposta de entendimento com o grupo American Foreign Power (Bond and
Share), a ser assinada por Roberto Campos e pelo vice-presidente da AMFORP. Os valores
dessa proposta seriam posteriormente, no Brasil, considerados excessivos, gerando um grande
desgaste político para San Tiago Dantas e para o governo de João Goulart.
Assim, como resultado das negociações, que se mostraram insatisfatórias para o
governo brasileiro,
o governo Kennedy consentiu na liberação imediata apenas de US$ 84
milhões – e, mesmo assim, sob a condição secreta de a administração
Goulart concluir a compra das subsidiárias da AMFORP. Os recursos
restantes (US$ 314,5 milhões) seriam distribuídos ao longo de um ano, e
dependentes do desempenho brasileiro nos compromissos assumidos por
Dantas. O Ministro da Fazenda também foi informado de que o governo
Kennedy poderia rever os termos de seu auxílio econômico caso o governo
Goulart não firmasse um standby com o FMI até junho de 1963.270
Dessa forma, o governo brasileiro, além de não obter o auxílio financeiro de que
necessitava, viu-se também pressionado a concluir a compra das subsidiárias das empresas
norte-americanas – medida que certamente encontraria resistência entre os setores
nacionalistas que formavam sua base de apoio.
Menos de um mês após as negociações de Dantas em Washington, o embaixador
americano Lincoln Gordon teria ameaçado o presidente Goulart ―com o congelamento da
268
Ibidem, p. 251.
269
Ibidem, p. 253.
270
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 13.
98
primeira parcela do acordo caso a situação não fosse resolvida‖. E, em resposta, Jango teria
prometido ―que o ‗caso AMFORP‘ seria solucionado até o dia 19 de abril‖.271
Em 8 de abril de 1963, Goulart publica o Decreto nº51.892, que extingue a CONESP
(criada em maio de 1962 e que, até então era a responsável pelos casos de nacionalização de
empresas de serviços públicos) e cria uma Comissão Interministerial (composta pelos
ministros da Fazenda, de Minas e Energia, de Viação e Obras Públicas, da Indústria e
Comércio e da Guerra) com a função de ―decidir sobre a nacionalização das empresas
concessionárias que exploram o serviço público de energia elétrica ou telecomunicações‖.272
Seguindo-se a este decreto,
No dia 20 de abril, em reunião extraordinária no gabinete do Ministério da
Guerra, a Comissão Interministerial aprovou por unanimidade os termos de
negociação /.../. Dois dias depois, Roberto Campos assinaria o memorando
de entendimento com os representantes da empresa em Washington.273
271
Idem, citando o documento: Embtel 1927, 05.04.1963, NARA, RG 84, Box 136, Folder 501; Embtel 7298,
Section II, 09.04.1963, JFKL,NSF, Box 14, Folder Brazil, General, 4/63.
272
Decreto nº 51.892, de 8 de abril de 1963. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-
1969/decreto-51892-8-abril-1963-391705-publicacaooriginal-1-pe.html> Último acesso em: 29 de maio de 2012.
273
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 13.
274
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 109-110.
275
Ibidem, p. 107.
276
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 14.
99
277
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 110.
278
―Líder defende posição do Governo na compra das concessionárias‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 jun.
1963.
279
―Jango responde carta de Lacerda sem dizer como são encampações‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29
mai. 1963.
280
Idem.
100
281
Idem.
282
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 16.
283
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 110.
284
Ibidem, p. 16, citando o documento: Report, IMF British Director, 09.06.1963, pp. 6-7.
285
Idem, citando o documento: Embtel 2320, 30.05.1963, NARA, RG 84, Box 136, Folder 501.
101
Sendo assim, Goulart, além de ver a imagem de seu governo prejudicada pela
divulgação dos possíveis acordos com a AMFORP, recebera, pela segunda vez, um retorno
frustrante quanto à tão necessária obtenção de recursos financeiros.
O bloqueio aos créditos externos impôs um dilema a Goulart: ou ceder a
Washington e, além de comprar a AMFORP, adotar o programa de
estabilização do FMI, ou recorrer a medidas de caráter nacionalista, entre as
quais a aplicação da lei que limitava as remessas de lucros para o exterior.
/.../ Assim, as vacilações de Goulart, naquela conjuntura, decorriam menos
do seu estilo de conduta do que de sua condição no poder.286
Ainda em junho de 1963, o presidente João Goulart executa uma reforma ministerial e,
na pasta da Fazenda, substitui San Tiago Dantas – sobre quem pesavam a péssima repercussão
do caso das nacionalizações e sua saúde já comprometida pelo câncer, que causaria sua morte
no ano seguinte287 – por Carvalho Pinto, ex-governador de São Paulo, com boa aproximação
junto ao empresariado.
Mesmo indicando um reconhecido conservador para o Ministério da Fazenda, o
governo Goulart não encontraria, a partir de então, melhores condições para negociar com os
Estados Unidos: ―O fracasso na obtenção de um standby com o FMI, o relaxamento das metas
do programa de estabilização de Furtado, e a quebra de compromisso no caso AMFORP
levaram o governo Kennedy a congelar os recursos do acordo Bell-Dantas‖,288 condicionando
o reescalonamento da dívida externa brasileira à concretização das medidas fixadas naquele
acordo, ainda que houvesse resistência interna a elas.289
Em 1º de julho, os presidentes Kennedy e Goulart se encontram em Roma, por ocasião
da coroação do Papa Paulo VI. Nesta oportunidade, Kennedy teria, mais uma vez abordado a
questão da compra das concessionárias de serviços públicos, alegando que ―sofria fortes
pressões para resolvê-la o quanto antes‖, uma vez que a corporação que controlava da
AMFORP tinha ―largas ramificações‖ nos EUA.290 Goulart, além de tentar explicar
dificuldades existentes para concluir as negociações nos termos em que as empresas
pretendiam, teria também solicitado uma prorrogação do débito de US$ 25 milhões, que
vencera em meio à crise cambial.291 Kennedy concorda em prorrogar o prazo de liquidação do
débito; mas, envia uma carta em 10 de julho, que deixava o presidente João Goulart ―numa
286
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 113-114.
287
CAMPOS, R. Op. cit., p. 515 e p. 538.
288
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 17.
289
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 113.
290
Idem, pp. 121-122, citando entrevista de Evandro Lins e Silva, então recém-nomeado Ministro do Gabinete
Civil, ao autor.
291
Idem. Ver também CAMPOS, R. Op. cit., p. 505.
102
292
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 122.
293
Telegrama do Departamento de Estado dos Estados Unidos à sua embaixada no Rio de Janeiro, com
transcrição da carta a ser entregue ao presidente João Goulart, datado de 10 de julho de 1963. O referido trecho é
o seguinte: ―In connection with the purchase of the American and Foreign Power Company properties, I
understood, from our conversation in Rome, that there Will be no departure from the terms agreed with the
company and embodied in the memorandum of understanding signed by your Ambassador last April 22.
However, you wished to arrange a 60 to 90 day deferment of the date. The best approach to this problem would
be to negotiate with the company an amendment to the memorandum of understanding. Such an amendment
would confirm the terms of purchase and make clear what steps will be taken during the additional time period
to the signature of a definitive contract‖. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND
MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: Security, 1963; Digital Identifier: JFKPOF-112-015, pp. 78-81.
Disponível em: < http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-015.aspx> Último acesso em:
28 de maio de 2012.
294
Carta do presidente João Goulart ao Presidente John F. Kennedy, datada de 23 de julho de 1963. In: JOHN F.
KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963:
May-November; Digital Identifier: JFKPOF-112-012, pp. 16-19. Disponível em: <
http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-012.aspx> Último acesso em: 28 de maio de
2012.
103
295
Idem.
296
Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy, datada de 08 de março de 1963. In: JOHN
F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963:
January-April; Digital Identifier: JFKPOF-112-011, pp. 6-7. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-
Viewer/Archives/JFKPOF-112-011.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012.
297
Roberto Campos afirma, em suas memórias que ―a longa controvérsia‖ entre o governo brasileiro e a ITT
teria mesmo sido regularizada mediante este empréstimo de ―US$ 7,3 milhões em termos concessionais‖. In:
CAMPOS, R. Op. cit., p. 473. Também o artigo de Felipe Loureiro, utilizando documentos americanos como
fonte, afirma que: ―Em janeiro de 1963, o governo brasileiro concluiu acordo com a International Telephone and
Telegraph (ITT), pagando compensação pela expropriação de uma das subsidiárias da empresa no Rio Grande
do Sul‖. Ver: LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 6, citando o documento Emprep A-941, 18.02.1963, Idem, Folder
2/6.
298
―Para J. Goulart documentos cubanos não são importantes‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1963.
Transcrição de declarações dadas pelo presidente Goulart em entrevista coletiva, em Brasília.
104
De qualquer maneira, não haverá nenhuma conclusão formalizada pelo governo João
Goulart. Há informações de que, além do referido empréstimo de janeiro de 1963, a empresa
receberá um pagamento de 12,2 milhões de dólares em 1967 – portanto já durante a ditadura
militar.300 Também a negociação com a AMFORP somente seria concluída no governo
Castello Branco, através do ex-embaixador Roberto Campos, agora nomeado ministro do
planejamento.
Uma das primeiras medidas do Marechal Castello Branco, executada pelo
Ministro do Planejamento, foi efetivar o acordo, pagando a indenização,
acrescida de multa de 10 milhões de dólares pelo atraso. O Brasil pagou,
parceladamente, à American & Foreign Powers cerca de 470 milhões de
dólares, soma esta que englobava outras empresas do mesmo grupo.301
299
―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 06 fev. 1963. Grifos nossos. Transcrição de discurso pronunciado durante entrevista concedida pelo
presidente João Goulart aos representantes do Comando Geral dos Trabalhadores.
300
KUCINSKI, Bernardo. O Estado da ITT. Opinião, Rio de Janeiro, n. 43, 3 a 10 de setembro de 1973, pp. 8-9.
301
MONIZ BANDEIRA, L. A. Brizola e o trabalhismo, p. 67. Já, Roberto Campos descreverá a mesma
transação da seguinte forma: ―A transação foi finalmente concluída, em condições aliás melhoradas, já no
governo Castello Branco, incorporando-se importante acervo ao patrimônio nacional, contra pagamento a longo
prazo, em parte reinvestido em participações minoritárias em outras empresas no país, sem dano para o clima de
investimentos‖. In: CAMPOS, R. Op. cit., p. 472.
105
Estados Unidos. Na correspondência entre João Goulart e John Kennedy, percebe-se a pressão
exercida pelo governo norte-americano sobre o brasileiro, bem como as tentativas de Jango
em evitar rupturas, uma vez que o auxílio financeiro externo era uma necessidade para a
economia brasileira. Mesmo em discurso aos trabalhadores, Goulart afirmava: ―Não é do
interesse do país assumir atitudes que possam criar reflexos imediatos e insustentáveis.
Portanto, a minha posição, aqui, tem de ser de absoluto equilíbrio no sentido de
salvaguardar, acima de tudo, o interesse do país‖.302
Os efeitos do modelo de industrialização brasileiro, implementado por Juscelino
Kubitschek pesava agora sobre Goulart. Ainda que enaltecesse o nível de industrialização
atingido pelo Brasil como uma ―autêntica reforma de base‖, o presidente Jango percebia que:
Não podíamos, porém, por outro lado, pagar o financiamento que
levantamos para custear essa autêntica reforma de base a que submetemos a
estrutura nacional. As amortizações e os juros daquele financiamento vieram
a pesar de maneira insuportável sobre a nossa economia. A capacidade
demonstrada e provada pelo Brasil deveria dar-nos, porém, o inalienável
direito ao crédito de que necessitamos. O mérito de nossas realizações não
mais poderia ser omitido ou escamoteado.
A situação brasileira era ainda mais grave pelo fato de que os preços dos gêneros
exportados pelo Brasil caíam continuadamente.
Basta dizer que o café e o cacau — e este, o cacau, foi até 1960 o segundo
produto em nossa pauta de exportação — sofreram quedas superiores a 50%,
no período de 1954 a 1963! Para dar uma idéia do que isto significa e nos
custa, é suficiente observar que, se prevalecessem os preços vigentes em
1956, nossa receita cambial estaria proporcionando ao país, hoje, nada
menos de 2,5 bilhões de dólares. Em 1954 exportamos 4,3 milhões de
toneladas de mercadorias e obtivemos uma receita de um bilhão e 562
milhões de dólares. Em 1962, exportamos 12,4 milhões de toneladas de
mercadorias e a receita alcançou apenas a ordem de um bilhão e 214 milhões
de dólares. Exportamos três vezes mais, e baixou, todavia, a nossa receita
cambial!303
Sendo assim, o Brasil não conseguia obter, através das exportações, divisas suficientes
para cobrir o valor das importações necessárias para manter ou acelerar o ritmo do
desenvolvimento econômico do país – já que grande parte das importações brasileiras
302
―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 06 fev. 1963.
303
Entrevista do Presidente João Goulart à Revista Manchete em novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO,
Carlos. Introdução a Revolução de 1964. Tomo 2. A queda de João Goulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, pp.
234-245.
106
Assim sendo, o caso das encampações ganhou maior importância na medida em que
sua resolução, em termos favoráveis às empresas, se tornou uma das condições para que o
governo brasileiro obtivesse auxílio financeiro externo – uma vez que se tratava de
corporações de enorme influência internacional.306
Portanto, as decisões de maior significado foram tomadas num plano distinto
daquele em que atuava San Tiago Dantas, o que explica a ineficácia de seus
belos argumentos. À medida que ele perdia terreno, e se agravavam os
desequilíbrios financeiros, uma situação nova se configurava.307
304
Em 1961, 39,8% das importações do Brasil se referiam a bens de capital; 18,8% a combustíveis, lubrificantes
e derivados de carvão e petróleo; e 26,3% a outras matérias-primas. Ver: MOREIRA, C. S. Op. cit., p. 129.
305
Idem, p. 133.
306
Vale lembrar a fala atribuída ao presidente Kennedy de que ―a corporação que detinha o controle da
AMFORP tinha ‗largas ramificações‘ nos EUA‖ e de que a ITT será apontada como financiadora do golpe
contra o presidente Salvador Allende, do Chile, em 1973.
307
FURTADO, C. Op. cit., p. 255.
107
308
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 404.
309
―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar.
1961.
310
Idem.
108
Progresso, passam a representar um fator de barganha para a obtenção de apoio aos interesses
estadunidenses. A primeira ocasião em que esse tipo de negociação se torna flagrante será na
VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas.
311
Ver MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
312
Ibidem, p. 387.
109
313
Idem.
314
Ibidem, p. 382.
315
Ibidem, p. 385.
316
Ibidem, p. 388.
317
Idem.
318
Ibidem, p. 390.
319
Ibidem, p. 392.
110
Deste texto, o Brasil aprovou os dois primeiros itens, mas, assim como México,
Argentina, Chile, Equador e Bolívia, se absteve nos dois últimos, alegando que, nos acordos e
estatutos jurídicos da Organização, ―não continha qualquer disposição que autorizasse aquela
medida. Além do mais, julgava que o isolamento conduziria Cuba a maior integração no
Bloco Soviético‖.320
Não obstante a abstenção desse grupo de países importantes do continente, os Estados
Unidos, que precisavam apenas de dois terços dos votos, obtiveram a aprovação de sua
proposta por 14 votos, havendo 6 abstenções (Brasil, México, Argentina, Chile, Bolívia e
Equador) e o voto contrário de Cuba. Dessa maneira, Cuba foi expulsa da Junta
Interamericana de Defesa e teve seu governo revolucionário expulso da Organização dos
Estados Americanos.321
Contudo, a Reunião que resultou numa vitória dos interesses estadunidenses −
aprovando da expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e
condenando a adoção cubana ao marxismo-leninismo − gerou também um certo ―mal-estar‖
nas relações entre Brasil e Estados Unidos.
A indisposição diplomática deveu-se a resposta do Secretário de Estado norte-
americano, Dean Rusk à argumentação do então Ministro das Relações Exteriores brasileiro,
San Tiago Dantas. Diante da defesa do ministro brasileiro de uma ―neutralização‖ de Cuba, e
não de sua expulsão da OEA, Rusk teria declarado que
não entendia o significado da não-intervenção. Argumentou que uma
potência, como os Estados Unidos, sempre intervinha nos negócios internos
de outras nações, mesmo quando deixava de fazê-lo. E citou que o
Departamento de Estado recebeu solicitações para intervir no Brasil, quando
ocorreu a renúncia de Quadros, e decidiu não atendê-las, o que, segundo ele,
foi também uma forma de intervenção.322
320
Ibidem, p. 391.
321
Como destaca Moniz Bandeira, que a Resolução aprovada ―determinava a exclusão do governo
revolucionário cubano da OEA, não de Cuba, sutileza capciosa para justificar a aplicação da medida‖. Ibidem, p.
393.
322
MONIZ BANDEIRA, L. A. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), p. 420. O
autor aponta como fontes dessas informações os depoimentos de Renato Archer, chanceler interino naquela
ocasião, e de delegados brasileiros presentes na Conferência de Punta del Este.
323
Idem, pp. 421-422.
111
que ocorreu no próprio Congresso brasileiro, onde houve duras críticas dos opositores do
governo.324
O presidente João Goulart defenderá publicamente o posicionamento brasileiro em
Punta del Este em sua visita aos Estados Unidos, no início de abril de 1962. Em discurso
perante o Conselho da Organização dos Estados Americanos, Goulart defende o princípio de
não intervenção, afirmando que seria justamente este o princípio que possibilitaria a
associação dos países numa organização como a OEA.
Só o respeito de todos à soberania de cada um pode associar dignamente
Estados livres e independentes. /.../A criação da Organização dos Estados
Americanos representa, portanto, o reconhecimento formal, por todos os
Governos que a integram, de que a cooperação entre Estados soberanos, por
mais íntima que seja, não dá direito a nenhum deles, nem mesmo à
Organização que compõem, de atuar em terreno reservado exclusivamente à
soberania interna das nações.325
324
Ver DANTAS, S. T. Op. cit. pp. 132-170. Em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, em 7 de
fevereiro de 1962, o ministro San Tiago Dantas teve que responder à oposição de deputados como Abel Rafael,
Arruda Câmara, Padre Vidigal, Hebert Levy e Tenório Cavalcanti.
325
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 47-48. Discurso proferido em
Washington, no dia 3 de abril de 1962, perante o Conselho da Organização dos Estados Americanos.
326
Ibidem, pp. 48-49.
112
Os mesmos temas voltarão a ser abordados num momento de ainda maior tensão –
durante o episódio da ―crise dos mísseis‖.
Contudo, para que a decretação do bloqueio naval a Cuba estivesse dentro dos
parâmetros legais do direito internacional, os Estados Unidos tinham duas opções: a
declaração de guerra ou a aprovação do bloqueio pela Organização dos Estados Americanos.
327
Ibidem, p. 55. Discurso proferido em 4 de abril de 1962, ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos
da América, em Washington.
328
De acordo com Moniz Bandeira, esta operação previa em seu cronograma a invasão de Cuba ainda para o mês
de outubro, tendo as Forças Armadas norte-americanas recebido, no dia 2 deste mês, ordens para iniciar os
preparativos da ação. No entanto, o autor aponta que Robert McNamara, Secretário de Defesa de Kennedy,
informava aos seus chefes de Estado-Maior que o presidente ―não queria a ação armada dentro dos próximos três
meses, se bem que não estivesse seguro de como poderia controlar os acontecimentos‖. Ver MONIZ
BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, pp. 464-466.
329
Idem.
330
Ibidem, p. 475.
113
Sendo assim, o governo norte-americano optou por convocar o órgão de consulta da OEA,
com objetivo de sancionar tanto o bloqueio naval, quanto um possível uso da força.331
No dia 21 de outubro, o secretário do Departamento de Estado, Dean Rusk, comunica
aos embaixadores latino-americanos a decisão dos Estados Unidos de convocar o órgão de
consulta da OEA. Buscando a aprovação por unanimidade, Rusk chega a solicitar ao
embaixador brasileiro, Roberto Campos, que ―interviesse diretamente junto ao presidente
Goulart para recomendar-lhe que o Brasil desse o consentimento necessário para um voto
unânime na OEA‖.332 Segundo Campos, a informação foi por ele transmitida ao presidente
Goulart, enfatizando que Kennedy ―dissera tratar-se de uma ‗questão vital‘ para os Estados
Unidos e que, se as posições fossem reversas, os Estados Unidos jamais falhariam ao Brasil
numa questão plausivelmente definida como ‗vital‘‖.333
Além da intermediação do embaixador brasileiro em Washington, o presidente
estadunidense também enviou ao presidente João Goulart, assim como aos demais chefes
latino-americanos, uma carta, datada de 22 de outubro, solicitando apoio à convocação
urgente do Órgão Consultivo do Sistema Interamericano e à aprovação das medidas contra
Cuba.
Nesta carta, o presidente Kennedy revela o tom dramático da situação e trata a questão
como um problema a ser enfrentado não apenas pelos Estados Unidos, mas por todo o
continente. Afirmando que estariam enfrentando, no Ocidente, ―a necessidade e a
oportunidade de determinar, /.../ quiçá todo o futuro do homem na Terra‖,334 Kennedy procura
destacar a gravidade da ameaça que o regime cubano teria permitido à União Soviética
instalar no hemisfério ocidental. Para o presidente norte-americano, tal ameaça configurava
claramente um ―desafio audaz e belicoso‖ lançado pelos soviéticos ―a todos os povos
livres‖.335 E convoca:
Temos de responder a esse gesto temerário com uma decisão conjunta. Do
contrário, a União Soviética passará a violações cada vez mais flagrantes dos
requisitos para a paz e liberdade internacionais, até que não nos restarão
outras opções senão a capitulação completa ou a deflagração de um
holocausto nuclear.
/.../ Questões acerca das quais nós, deste hemisfério, talvez tenhamos
pequenas discordâncias, bem como divergências políticas entre nossos
povos, tornam-se insignificantes diante dessa ameaça à paz.
331
Ibidem, p. 476.
332
CAMPOS, R. Op. cit., p. 494.
333
Ibidem, p. 495.
334
KENNEDY, John. F. Carta dirigida ao Presidente João Goulart em 22 de outubro de 1962. In: MARCELINO,
Wanielle Brito (org.). Discursos selecionados do presidente João Goulart. Brasília: FUNAG, 2009, p. 93.
335
Idem.
114
Espero, diante desse contexto, que o Senhor sinta que seu país deseja juntar-
se ao meu para expressar sua indignação contra este comportamento, cubano
e soviético, e conto com que o Senhor deseje expressar publicamente o
sentimento de seu povo.
Espero também que o Senhor concorde comigo quanto à necessidade urgente
de se convocar uma reunião imediata do Órgão Consultivo do Sistema
Interamericano, sob o Pacto do Rio.
/.../
Desejo também formular um convite ao Senhor no sentido de que seus
assessores militares discutam com os meus a possibilidade de participar, em
condições apropriadas e juntamente com os Estados Unidos e outras forças
do hemisfério, de qualquer ação militar que a situação que se desenvolve em
Cuba possa requerer.336
336
Ibidem, pp. 93-94.
337
CAMPOS, R. Op. cit., p. 496.
338
MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, p. 490.
339
Ibidem, pp. 490-491.
115
340
Ibidem, p. 491.
341
GOULART, João. Carta dirigida ao Presidente John F. Kennedy, em outubro de 1962. In: MARCELINO, W.
B. Op. cit., p. 95.
116
De fato, Goulart já defendera a convivência com Cuba, tanto em sua viagem aos
Estados Unidos, como em entrevista concedida na visita ao México, em que afirmou que a
manutenção das relações com Cuba poderia contribuir para que aquela nação voltasse ao
―sistema democrático‖.343
E, procurando justificar, em sua carta, o posicionamento brasileiro, tanto na VIII
Consulta de Chanceleres Americanos como na última reunião do Órgão de Consulta da OEA,
João Goulart aponta que a defesa do princípio de autodeterminação se tornara ―o ponto crucial
da política externa do Brasil‖, por considerá-lo ―o requisito indispensável à preservação da
independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo‖.
É, pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo
brasileiro qualquer forma de intervenção num Estado americano, inspirada
na alegação de incompatibilidade com o seu regime político, para lhe impor
a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhe
tiram o cunho democrático e a validade.344
Em resposta à carta de Goulart, Kennedy envia, por meio da embaixada dos Estados
Unidos no Rio de Janeiro, um telegrama – com solicitação de não publicá-lo – em que rebate
os argumentos do presidente brasileiro de defesa dos princípios de não intervenção e de
autodeterminação dos povos, afirmando que a franqueza expressa por Goulart o levara a
respondê-lo com igual sinceridade.348
Kennedy defendeu a atuação da OEA, reafirmando que a presença dos mísseis no
território cubano constituíra uma intervenção soviética no hemisfério ocidental, o que
justificaria a urgente aprovação daquela resolução. Quanto à exclusão de Cuba da OEA, o
346
Ibidem, p. 97.
347
Ibidem, pp. 97-98. Grifos nossos.
348
Telegrama do presidente John F. Kennedy ao presidente João Goulart, datado de 02 de novembro de 1962. In:
JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil:
Security, 1962; Digital Identifier: JFKPOF-112-014, pp. 37-42. Disponível em:
<http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-014.aspx> Último acesso em: 28 de maio de
2012.
118
Como último ponto de sua carta, Kennedy nega a possibilidade de coexistência com o
socialismo de Cuba, pois afirma que o problema do regime cubano não seria sua organização
econômica, mas sim seu sistema político intervencionista. E quanto à postura reacionária
disfarçada de anticomunismo, citada por Goulart, o presidente americano responde que o fato
de os que se oponham às reformas sociais também se oponham à ―ameaça comunista‖ não
tornaria a oposição ao comunismo menos justa. Assim sendo, Kennedy sinaliza claramente
que a luta contra o comunismo preponderava sobre a luta pelas reformas sociais, ainda que
estas fossem as reformas compreendidas pelo programa da Aliança para o Progresso:
The Organization of the Cuban economy is not the issue which has caused
the rejection of Cuba by the Inter-American community. And we should not
confuse economic arrangements with a political system which practices
intervention, which submits itself to the policies and will of a foreign power
and which rejects and destroys self-determination. That those opposed to
those essential reforms to which we had pledged ourselves in the Alliance
for Progress should also oppose the communist threat to our own right of
349
Idem. ―The political system imposed on the Cuban people by the Castro regime is a matter of common
concern to the other American Republics only because Cuba, under a system which continuously engages in
interventionist activities against other countries, has placed itself militarily at the disposition of extra-continental
powers, made itself an instrument of extra-continental intervention, and has manifestly failed to abide by the
principles and obligations of our community of nations. It was on this basis that all of the American
Governments agreed at Punta del Este that the Castro regime is incompatible with the inter-American system.
/…/ What should be done about this incompatibility when it manifests itself in interventionist activities in other
American countries is a matter for the American community to decide‖.
350
Idem.
119
351
Idem.
352
TOTA, Antonio Pedro. Cultura e dominação: relações culturais entre o Brasil e os Estados Unidos durante a
Guerra Fria. In: Perspectivas, n. 27, São Paulo, 2005, p. 115.
353
Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy datada de 7 de dezembro de 1962, Arquivo
Marcílio Marques Moreira, CPDOC-FGV, Pasta. MMM ew 1986/1991.00.00/2. Doc. 11.
354
Idem.
120
ser brevemente resolvidos para que pudessem, então, se dedicar à resolução dos ―problemas
da paz, do bem-estar e do progresso social‖ das populações. E afirma:
Estou convencido de que quando tivermos libertado o nosso Hemisfério da
pobreza, da ignorância e da doença, o movimento internacional comunista há
de definhar por falta de terreno fértil onde mergulhar suas raízes.355
A partir daí, Goulart passa a destacar a pouca influência das ―atividades subversivas‖
no Brasil, bem como o posicionamento do governo brasileiro em defesa dos princípios da
democracia representativa. Procurou deixar claro que seu governo, juntamente com os que o
antecederam, ―lograram limitar a um mínimo, quase negligenciável, o tipo de atividades
subversivas a que se consagram os agentes de ideologias exóticas e de âmbito internacional‖.
E continua:
Ainda recentemente, quando demos o nosso apoio decidido às medidas de
bloqueio sugeridas pelo governo de Vossa Excelência como meio de
prevenir novos ingressos de armamentos ofensivos em Cuba, nem uma só
voz se levantou em todo o território nacional para criticar nossa atitude, nem
foi preciso recorrer a medidas repressivas de qualquer natureza para impor
nossa decisão.
Nas recentes eleições levadas a efeito no Brasil, em clima de absoluto
respeito às liberdades públicas e na mais perfeita observância dos processos
que caracterizam a democracia representativa, foi diminuto o número de
candidatos eleitos que se filiam, de uma forma ou de outra, a ideologias
totalitárias.
/.../
Desejo terminar esta carta reafirmando-lhe, Senhor Presidente, a decisão de
meu Governo de contribuir, dentro dos limites traçados pelos Acordos
Internacionais de que somos parte, e da observância dos princípios que
fundamentam o sistema interamericano, para que o exercício do direito de
autodeterminação se aperfeiçoe e se estenda a todos os povos do Continente,
traduzindo-se pela forma que consideramos mais legítima, que é a da
consulta popular por meio de eleições, livres da coação interna e de pressões
externas, a fim de que a democracia representativa possa ser o caminho e
também a força que há de levar os nossos povos a um futuro de paz e de
progresso social.356
355
Idem.
356
Idem.
121
O documento afirma ainda que a imagem do governo Goulart era considerada ―pelo
menos imprecisa‖.359 Sendo assim, as discussões relativas à postura brasileira diante do
regime cubano foram encerradas após os episódios e correspondências aqui assinalados; mas
as relações entre Brasil e Estados Unidos durante o governo João Goulart seguem em meio a
divergências e desconfianças que, como vimos, afetaram possíveis acordos e negociações
financeiras, aumentando as dificuldades enfrentadas pelo governo brasileiro.
357
MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, p. 534. O autor cita
documento da embaixada brasileira em Washington, datado de 15 de fevereiro de 1963.
358
Telegrama da Embaixada Brasileira em Washington à Secretaria de Estado das Relações Exteriores, datado
de 13/14 de fevereiro de 1963, Arquivo Marcílio Marques Moreira, CPDOC-FGV, Pasta. MMM ew
1986/1991.00.00/2. Doc. 18. Grifos nossos e observação ―(SIC)‖ do autor.
359
Idem.
122
360
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 46. Discurso proferido em
Washington, no dia 3 de abril de 1962, em almoço oferecido na Casa Branca pelo Presidente Kennedy.
361
Ibidem, p. 59.
362
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Op. cit., p. 34.
123
363
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 54. Discurso proferido em
Washington, no dia 4 de abril de 1962.
364
Ver: ―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar.
1961.
365
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai.
Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1963, p. 53.
124
A frustração de João Goulart com o programa não era sem razão. Além da não
liberação das verbas – justificada pela falta de medidas de estabilização monetária e pela não
conclusão da compra das empresas subsidiárias norte-americanas – a Embaixada Americana
passou a firmar acordos diretamente com governadores e prefeitos brasileiros (geralmente
opositores de Goulart), sem a intermediação do governo federal. Os norte-americanos
chamavam os governos estaduais e municípios que recebiam suas verbas de ―ilhas de
sanidade‖ (islands of administrative sanity).366 Segundo Roberto Campos, a preferência dos
Estados Unidos em conceder empréstimos diretos aos estados e municípios, em lugar da
União, devia-se aos ―receios de infiltração comunista no governo central‖ e ao
descumprimento dos programas de estabilização.367 Descrevendo seu posicionamento diante
de tal iniciativa do governo dos Estados Unidos, Campos afirma:
Protestei informalmente junto ao Departamento de Estado contra essa ―ação
centrífuga‖, que não me parecia politicamente imprópria, e mesmo perigosa.
Mas meus protestos não tinham intensidade passional. Afinal de contas era
melhor ter alguns projetos estaduais financiados do que privarmo-nos dos
fundos da Aliança para o Progresso...368
366
Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 113.
367
CAMPOS, R. Op. cit., p. 481.
368
Ibidem, p. 508.
369
MONIZ BANDEIRA, L. A. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), p. 467. Carlos
Fico também aponta que a defesa das ―ilhas de sanidade‖, ―não como uma forma de minar o governo Goulart,
mas como a única maneira de os Estados Unidos persistirem ajudando o Brasil apesar da incapacidade do
governo federal de fazer a estabilização econômica e o saneamento financeiro desejados‖, aparece como uma
―desculpa bastante inconvincente à luz das evidências hoje disponíveis‖. Ver: FICO, Carlos. O grande irmão: da
Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, p. 79.
125
Este episódio é marcante, tanto do distanciamento entre João Goulart e o governo dos
Estados Unidos, quanto da postura assumida pelo presidente brasileiro nas relações com os
demais países latino-americanos. A proposta de relações comerciais mais próximas dentro da
própria América Latina será defendida por Jango em diversas ocasiões e será o tema do
próximo item.
374
Idem.
375
A Associação tinha como países membros, originalmente, Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru,
Bolívia, sendo posteriormente inseridos Colômbia, Equador, México e Venezuela.
127
econômico – até porque, tal auxílio vinha se mostrando insuficiente. Para ele, embora
―comércio e assistência‖ não constituíssem ―proposições excludentes‖, ―a verdadeira
superação do subdesenvolvimento‖ não se poderia fazer ―por meio da assistência externa, e
sim pela expansão do comércio exterior‖.376 O aumento das exportações constituiria ―a
melhor e mais aconselhável forma de financiamento‖ do desenvolvimento.
E será nesse sentido que o presidente Goulart, defenderá a expansão do mercado
brasileiro no exterior, articulando, inclusive a concretização da ALALC − que embora criada
no ano de 1960, com objetivo de criar uma zona de livre-comércio em um prazo de 12 anos,
não apresentava atuação prática até aquele momento. Em Mensagem ao Congresso Nacional,
Goulart afirma:
Todo o esforço deve ser empregado a fim de se conseguir o aumento
contínuo das exportações, já que a receita cambial delas decorrente
representa a melhor e mais aconselhável forma de financiamento para
aquisição, no exterior, do instrumental necessário ao progresso do País. No
particular, registre-se a participação do Brasil na Associação Latino-
Americana de Livre Comércio como fato positivo, pelas possibilidades que
abriu ao desenvolvimento do intercâmbio comercial da América Latina e à
colocação, em mercados deste continente, dentro de um esquema de favores
tarifários recíprocos, de numerosos produtos exportáveis do País.377
376
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 155.
377
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. 2.
378
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos e
México, p. 41. Discurso proferido na Cidade do México, no dia 9 de abril de 1962, em almoço oferecido pelo
Presidente Lopez Mateos.
379
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai, p.
165. Discurso proferido na Associação Latino-Americana de Livre Comércio, em Montevidéu, no dia 26 de
Abril de 1963.
128
Aliás, será justamente em defesa da constituição deste possível bloco em defesa dos
interesses comuns dos países latino-americanos que estarão grande parte dos argumentos de
Goulart em torno da ALALC. Embora a expansão dos mercados e a intensificação das trocas
entre os países da América Latina sejam sempre apontadas como fatores de grande
importância para o desenvolvimento da região, Goulart acaba enfatizando com maior vigor a
necessidade de articulação entre os latino-americanos em defesa de uma reestruturação do
comércio internacional que, segundo avalia, vinha mantendo os países subdesenvolvidos em
situação prejudicial.
Se, por um lado, Goulart enxergava na expansão do comércio exterior uma forma
indispensável de obtenção de divisas que financiariam o desenvolvimento econômico – para a
qual o auxílio financeiro internacional não constituía uma alternativa –, por outro, apontava a
necessidade de adoção de medidas internacionais que pudessem corrigir o desequilíbrio no
intercâmbio entre as economias desenvolvidas e subdesenvolvidas.
As condições políticas e econômicas do mundo em que vivemos vêm
demonstrando, Senhores Congressistas, de forma inequívoca a insuficiência
do auxílio financeiro internacional para, por si só, propiciar aos países
subdesenvolvidos os meios necessários aos seus vultosos investimentos
básicos requeridos pelo processo de desenvolvimento. Por outro lado, as
condições notoriamente adversas que vimos enfrentando no comércio
internacional têm resultado no lento crescimento ou até mesmo na
estagnação de nossas economias. Somos obrigados, Senhores Senadores e
Senhores Deputados, a exportar cada vez mais, a preços cada vez menores,
para conseguirmos os recursos necessários à aquisição dos bens de produção
e manufaturas cada vez mais caras ao nosso desenvolvimento e ao nosso
progresso.381
380
Ibidem, p. 149. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril de 1963, por ocasião de um banquete
oferecido pelo Conselho do Governo do Uruguai.
381
Ibidem, p. 136-137. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril 1963, na Assembléia Geral do
Uruguai.
129
intensificação das relações comerciais com todos os países possíveis (inclusive com os
integrantes do chamado Bloco Socialista), afirmava também:
Não basta, porém, que o Brasil procure expandir seus mercados tradicionais
e conquistar outros. Esses objetivos, conquanto válidos, não nos devem fazer
esquecer a necessidade de que se modifique a própria estrutura do comércio
internacional, de modo a que se alterem nossos termos de intercâmbio com
os países industrializados e se corrijam as tendências que, por tão longo
tempo e de maneira tão profunda, vêm agindo em prejuízo dos nossos
interesses.
Assim compreendida, a política externa deverá visar à modificação do
presente mecanismo em que se desenrolam as trocas internacionais, com
vistas à criação de uma nova estrutura institucional que realmente atente para
as peculiaridades do comércio entre países em diferentes estágios de
desenvolvimento econômico e contribua para a remoção dos obstáculos ao
comércio e ao consumo dos produtos primários.382
382
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 14. Grifo nosso.
130
João Goulart reconhecia na ―queda permanente dos preços dos produtos primários,
fixados pelos países consumidores‖, e na ―elevação paralela dos preços dos equipamentos e
manufaturas‖ uma causa do ―empobrecimento contínuo das economias mais débeis, em
proveito das economias mais fortes, anulando em larga escala os benefícios da cooperação
financeira internacional‖.384 Em visita ao Chile, o presidente expõe o problema da
deterioração dos termos de intercâmbio, aproveitando para destacar, ao final, a proporção
diminuta da assistência financeira externa recebida pelo Brasil naquela década.
Conheceis, Senhores Parlamentares, o processo implacável de deterioração
dos termos de intercâmbio com os países industrializados, com o
conseqüente esvaziamento de nossa substância econômica e a perda relativa
de posição, frente aos países mais desenvolvidos. Nos dias de hoje, até
mesmo o povo já apreendeu o sentido de que seja vender mais para receber
menos. Não nos escapam, ademais, os efeitos negativos adicionais
decorrentes de obstáculos opostos ao comércio e ao consumo de produtos
primários, seja pelo emprego de medidas tarifárias e tributárias, seja pela
manutenção de sistemas preferenciais e de tratamento discriminatórios
contra os produtos latino-americanos. Os efeitos de todas estas distorções, os
reflexos de todos estes desajustamentos, são matéria de inquietação para os
países latino-americanos.
Aí estão, como males crônicos das economias subdesenvolvidas, os déficits
de balanço de pagamentos: aí está a necessidade de recorrermos
seguidamente às instituições internacionais de crédito e a Governos de países
desenvolvidos, a fim de cobrir estes déficits; aí está a ameaça sempre
presente de termos de sacrificar nossos esforços de desenvolvimento pela
maior redução das importações. A um país que, como o Brasil, recebeu, na
última década, fundos de assistência externa bastante inferiores às perdas de
receita decorrentes da deterioração de suas relações de trocas, não poderia
faltar uma consciência aguda da necessidade de transformação da estrutura
do comércio internacional. A assistência externa não pode continuar sendo
uma alternativa à expansão de nosso comércio exterior.385
383
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos
da América e ao México, pp. 18-19. Grifo nosso. Discurso proferido em Washington, no dia 4 de abril de 1962,
ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos da América.
384
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 197. Discurso proferido em Brasília,
no dia 24 de outubro de 1962, por ocasião da sessão de instalação da LI Conferência Interparlamentar, contando
com a presença de parlamentares de 46 países.
385
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai, p.
45. Discurso proferido em Santiago, no dia 23 de abril de 1963, perante o Congresso Nacional chileno.
131
389
Ibidem, pp. 45-46. Discurso proferido em Santiago, no dia 23 de abril de 1963, perante o Congresso Nacional
chileno.
133
Embora o objetivo deste capítulo seja explicitar a posição de João Goulart diante dos
episódios de suposta ou efetiva ameaça à ordem legal ao longo de seu governo, é importante
lembrar que o clima golpista era uma presença constante na política brasileira desde a década
anterior. O período que se segue ao Estado Novo, chamado pelos historiadores Jorge Ferreira
e Lucilia de Almeida Neves Delgado de ―o tempo da experiência democrática‖, 390 não
transcorreu livre de tentativas de golpe de estado – como nos mostra o próprio Ferreira, em
seu artigo Crises da República.391
Todas essas tentativas foram lideradas pela UDN com o apoio de setores das Forças
Armadas. No entanto, é importante ressaltar que estes episódios não constituem apenas
momentos de disputa partidária; a UDN congregava os representantes dos interesses de um
grupo econômico formado por banqueiros e industriais ―associados‖ ao capital internacional.
Ou, como na caracterização de Basbaun:
Esses grupos representam a alta burguesia financeira, banqueiros, grandes
industriais associados de uma forma ou de outra ao capital norte-americano,
os que alienaram suas indústrias e suas consciências ao capital e ao
capitalismo da grande república do Norte da América, os testas-de-ferro
brasileiros que dirigem essas indústrias, os advogados, os public-relations
dessas mesmas empresas encarregados de defender seus interesses junto ao
governo brasileiro e infiltrados nos partidos políticos nacionais e na alta
administração do País, os que tinham o poder econômico mas ainda não o
poder político. Em suma, a UDN, a famosa União Democrática Nacional.392
Com a vitória de Getúlio Vargas nas eleições de 1950, houve uma tentativa de impedir
sua posse sob a alegação de não haver a ―maioria absoluta‖ – elemento não previsto na
Constituição de 1946.
Não o tendo conseguido, [a UDN] iniciou uma tremenda campanha pela
imprensa e no Congresso contra Getúlio, apelando novamente para as Forças
Armadas, aproveitando todos os erros do Presidente Vargas até conseguir
derrubá-lo e atingir o poder, com Café Filho, pelo menos por um certo
período, um ano, o suficiente para preparar as eleições de 1955 e alcançar o
poder pela via legal, uma vez que o golpe branco tentado em 1954 resultara
contra-producente em virtude do heróico suicídio de Getúlio.393
390
Jorge Ferreira afirma o período como ―o tempo da experiência democrática‖ em oposição à historiografia que
o trata como ―período populista‖.
391
FERREIRA, J. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: _____________; DELGADO, Lucília de A. N.
(orgs.). O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 (O Brasil Republicano; v. 3), pp. 301-342.
392
BASBAUN, Leôncio. História Sincera da República: de 1961 à 1967. São Paulo: Fulgor, 1968, v. 4, p.12.
393
Ibidem, pp. 75-76.
134
Assim, se por um lado o suicídio de Vargas representou um duro golpe dos ―liberais
conservadores‖ contra o projeto nacionalista e de intervenção estatal, por outro, a comoção
popular por ele deflagrada impediu que a UDN e os militares a ela ligados instalassem,
naquele momento, uma ditadura no país. Café Filho permaneceu no cargo até as eleições de
1955, vencidas pela chapa PSD-PTB, com Kubistchek na presidência e João Goulart como
vice − após ser derrotada a iniciativa udenista de adiamento das eleições e de sua campanha
difamatória, principalmente direcionada a Goulart. Como lembra Thomas Skidmore, ―oficiais
das Forças Armadas, que apenas um ano antes comandavam a campanha para forçar Vargas a
demitir Goulart, viam agora seu inimigo aspirar [e se eleger] a um cargo ainda mais
elevado‖.394
Após a derrota eleitoral da UDN, houve nova movimentação, com participação de
militares, tentando impedir a posse de JK; desta vez, repelida pela ação do Marechal Lott e
dos setores legalistas:
Novamente seus arautos [da UDN] iniciam uma campanha pela imprensa e
no Congresso, mais uma vez exigindo a ―maioria absoluta‖, e para isso mais
uma vez tentando sensibilizar as forças armadas contra o ―retorno‖. E quase
conseguiram, não fora o contra-golpe executado pelo Marechal Lott, logo
após as eleições de outubro daquele ano, demitindo o presidente provisório e
licenciado por enfermidade, Café Filho, e empossando o Presidente da
Câmara, Nereu Ramos, até à posse do Presidente eleito, Juscelino
Kubistchek.395
Passado o governo JK, nova e mais intensa articulação golpista ocorrerá com a
renúncia de Jânio Quadros – eleito com o apoio da UDN –, em 1961; dando início à chamada
―crise da legalidade‖, já abordada no início deste trabalho, que tentou impedir a posse de João
Goulart, então vice-presidente eleito, pela segunda vez consecutiva.
Como se vê, o governo de João Goulart está inscrito num período de constante ameaça
da ordem legal; em que grupos contrários à implementação de um projeto nacionalista e de
ampliação da participação popular estarão se articulando para alcançar o poder político,
inclusive por meios golpistas, caso os considerem necessários. Nas palavras de Caio Navarro
de Toledo, o governo Jango ―nasceu, conviveu e morreu sob o espectro do golpe de
Estado‖.396
394
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, p. 184.
395
BASBAUN, L. Op. cit., p. 76.
396
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, D. A.; RIDENTI, M;
MOTTA, R. P. Op. cit., p. 68.
135
A grave crise política que antecedeu sua posse foi tema recorrente nos discursos de
João Goulart ao longo dos seus primeiros meses de governo. Desde o discurso de posse e
continuando nos pronunciamentos realizados em diversas situações, João Goulart agradece as
mobilizações e manifestações de apoio recebidas durante a crise, salientando sua força e
consciência democrática.
No seu discurso de posse, procura respaldar sua investidura na vontade popular
manifestada nas mobilizações pela legalidade e se coloca como ―guardião da união nacional‖:
Assumo a Presidência da República consciente dos graves deveres que me
incumbem perante a Nação. A minha investidura, embora sob a égide de um
novo sistema, consagra respeitoso acatamento à ordem constitucional. Subo
ao poder ungido pela vontade popular, que me elegeu duas vezes Vice-
Presidente da República e que, agora, em impressionante manifestação de
respeito pela legalidade e pela defesa das liberdades públicas, uniu-se,
através de todas as suas forças, para impedir que a decisão soberana fosse
desrespeitada. Considero-me guardião dessa unidade nacional, e a mim cabe
o dever de preservá-la, no patriótico objetivo de orientá-la para a realização
dos altos e gloriosos destinos da Pátria brasileira.397
Ao longo dos primeiros meses de seu governo, nas diversas ocasiões em que
discursou, Jango agradeceu e reconheceu a participação dos estudantes no que considerou um
―extraordinário movimento de opinião pública em defesa das instituições democráticas da
nossa pátria‖.399 Também ressaltou o apoio da Assembleia Legislativa paulista à legalidade,
afirmando que ―A consciência política do povo paulista encontrou nos seus representantes
nesta Assembléia intérpretes verdadeiros dos seus sentimentos de fidelidade ao regime de
397
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 9.
398
Ibidem, p. 17. Discurso por ocasião da comemoração do 15º aniversário da Constituição Brasileira, em 18 de
outubro de 1961. Este discurso foi classificado pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, como ―apelo
reformista‖. Ver: CARVALHO, Aloysio Castelo de. A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do
Brasil na queda do governo Goulart (1961-64). Niterói (RJ): UFF/NitPress, 2010, p. 82.
399
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 21. Discurso na sede da União
Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1961.
136
400
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 24. Discurso ao ser homenageado
pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em 28 de setembro de 1961.
401
Ibidem, p. 28.
402
Ibidem, p. 47; pp. 49-50. Discurso proferido em Belém, em 25 de outubro de 1961.
403
Ibidem, pp.57-59. Discurso proferido em Porto Alegre, no dia 30 de outubro de 1961.
404
Ibidem, p. 77. Discurso na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 17 de
novembro de 1961.
405
Além do jornal A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, jornais como O Globo, do Rio de Janeiro, e O
Estado de São Paulo manifestaram-se claramente de acordo com o veto dos ministros militares.
406
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 114.
407
Ibidem, p. 33.
137
Presidente do Conselho de Ministros, que somente seria nomeado após aprovação da Câmara
dos Deputados.
A aceitação da emenda parlamentarista como condição para sua posse foi precedida de
polêmica e seguida de um constante debate sob o funcionamento dessa forma de governo.408
Nessas circunstâncias, inúmeras vezes Goulart procurou justificar sua posição de consentir a
diminuição de seus poderes como forma de apaziguar os conflitos em torno de sua posse e
evitar ―a luta entre irmãos‖, procurando transmitir a imagem de alguém preocupado em unir
esforços num projeto de emancipação econômica do país e progresso social.
Desde logo pude avaliar a extensão e o sentido exato da mobilização de
consciências e vontades em que se irmanaram os brasileiros, para a defesa
das liberdades públicas. Solidário com as vivas manifestações das nossas
consciências democráticas, de mim não se afastou, um momento sequer, o
pensamento de evitar, enquanto com dignidade pudesse fazê-lo, a luta entre
irmãos. Tudo fiz para não marcar com o sangue generoso do povo brasileiro
o caminho que me trouxe à nova Capital, o caminho que me trouxe a
Brasília.
/.../ Reclamamos a união do povo brasileiro e por ela lutaremos com toda a
energia, para, sob a inspiração da lei e dos direitos democráticos, mobilizar
todo o País para a única luta interna em que nos devemos empenhar, que é
a luta pela nossa emancipação econômica, que é a luta contra o pauperismo,
a luta contra o subdesenvolvimento.409
408
No dia 05 de setembro de 1961, o jornal Última Hora, apoiador de João Goulart, publica matéria na qual os
juristas Hermes Lima e Lineu Albuquerque Mello apontam problemas na forma repentina de instituição da
emenda e as dificuldades da prática parlamentarista com partidos políticos numerosos. Apenas o jurista Pontes
de Miranda se manifesta favorável à emenda e à diminuição dos poderes do Presidente da República. Cf.
―Juristas: ‗Novo regime é fonte de crises‘‖, Última Hora, Rio de Janeiro, 05 set. 1961.
409
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 10. Discurso de posse, em Brasília,
no dia 7 de setembro de 1961. Grifos nossos.
138
Sendo assim, João Goulart, que não discursara para a população a sua espera na
ocasião do desfecho da crise – tendo apenas declarado à imprensa que se manteria fiel aos
princípios que tornaram possível aquela impressionante mobilização, sem, contudo, ―marcar
410
Ibidem, p. 34. Grifos nossos.
411
FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964, pp. 310-311.
139
com o sangue generoso dos brasileiros as estradas que conduzem à Brasília‖412 – em seus
primeiros pronunciamentos públicos em visita à região após sua posse, aludiu novamente ao
risco do país ter sua soberania ameaçada, caso fosse prolongada a crise, e se exprimiu nos
seguintes termos:
Permitam-me aproveitar este momento e esta tribuna para dizer ao valoroso
povo de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, que soube compreender,
passados os primeiros momentos de quase incontrolável exaltação cívica, o
meu gesto de desapego a um direito líquido e certo que me conferiu a
Constituição, que nem o seu sacrifício nem a minha transigência foram em
vão. Eis-nos a menos de três meses da mais grave crise político-militar que o
País viveu, e, ao invés de ódios, de dissensões, de conflitos insanáveis,
assistimos neste Congresso a uma autêntica assembléia da vida brasileira.
/.../
Libertos da guerra, civil, que — na situação nacional em que vivíamos e na
atual conjuntura internacional — nos poderia arrastar às mais graves
conseqüências e até mesmo propiciar atentados à nossa soberania,
conseguimos que o País, tendo chegado a viver o clima irrespirável dos
prenuncies da ditadura, emergisse à tranqüilidade da ordem legal.
Na verdade, mais importante do que a aferição dos novos podêres
presidenciais, ou a análise do novo sistema, é a certeza de que estamos hoje
sob o império da lei, da ordem e do respeito integral às liberdades públicas,
caminho único para uma ordem social mais justa e mais consentânea com a
realidade contemporânea.
Militante de um partido democrático, enraizado nas aspirações de justiça
social das camadas mais desprotegidas de nossas populações, reservou-me o
destino a tarefa onerosa de assumir a chefia da Nação, depois de uma
reformulação constitucional em que ela passou a representar uma parte,
apenas, da chefia do Governo do País. Acedi, entretanto, a estas condições
novas, tão diversas daquelas com que tinha o legítimo direito originário de
contar, sem qualquer prevenção, pois as circunstâncias invocadas como seu
fundamento exigiam de mim esta transigência, pelo bem do Brasil e pelo
dever indeclinável de preservar a paz interna. Este objetivo, apesar da
insistência antipatriótica de inexpressivos focos de golpismo, foi plenamente
alcançado.413
Em São Borja, sua cidade natal, João Goulart repete seus argumentos, desta vez,
referenciando a Getúlio Vargas como uma inspiração para suas decisões.
Sem qualquer ressentimento, dei ao País a contribuição que de mim se
exigia, em nome da ordem e do entendimento geral. Serenamente, com o
pensamento voltado para Deus e para os sentimentos pacifistas e cristãos da
nossa gente, transigi, porque não me julguei com o direito de manchar com o
sangue generoso de nossos irmãos a estrada que me conduziria à Presidência
da República.
No instante da grande decisão, sob a direta influência de um povo vibrante
de exaltação cívica, como o do Rio Grande do Sul, onde me encontrava,
procurei, no recolhimento da meditação, inspirar-me nos ensinamentos de
um conterrâneo, cujo nome está vivo no coração de todos os brasileiros, e
412
―Jango: Mensagem de Paz Aos Brasileiros‖. Última Hora. Rio de Janeiro, 05 set. 1961.
413
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), pp. 62-63. Discurso na solenidade de
encerramento do II Congresso das Assembléias Legislativas do Brasil.
140
que sempre nos advertia de que ―a violência gera a violência‖ e ―só o amor
constrói para a eternidade‖.414
Contudo, uma vez aceita a emenda parlamentarista, tratava-se, agora, de como se daria
a atuação política do presidente João Goulart neste novo regime. Qual seria sua influência
sobre o Gabinete Ministerial e o Congresso Nacional? Como seria sua relação com estas
esferas decisivas do poder federal e que congregavam tanto aliados e partidários de suas
posições reformistas como figuras não tão afeitas às propostas trabalhistas?
Nos primeiros momentos após sua posse, ao anunciar Tancredo Neves, do PSD, como
seu Primeiro-Ministro, Goulart expressa confiança no trabalho conjunto com os vários
ministérios e com os parlamentares, se comprometendo com a nova forma governamental,
afirmando: ―Sem embargo dos pronunciamentos presidencialistas de setores diversos da
opinião pública, estou cumprindo e continuarei a cumprir, com rigoroso acatamento ao
Congresso Nacional, as normas do sistema por ele instituído‖. Também afirma a disposição
em formar um ―governo de coalizão‖, com a necessidade fundamental, ―pela própria
sistemática do parlamentarismo‖, da colaboração do Congresso Nacional. 415
No entanto, a prática governamental logo apresentaria obstáculos ao desenvolvimento
deste governo de ―união nacional‖. Menos de duas semanas após sua posse, João Goulart já se
coloca à favor de implementação de reformas e manifesta sua expectativa de que o Congresso
se disponha, quando necessário, a efetivar regulamentações constitucionais que equacionem,
de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas.416
414
Ibidem, pp. 68-69. Discurso proferido na sede do Clube Municipal de São Borja, ao ser homenageado com
um banquete pela sociedade local.
415
Ibidem, p. 14.
416
Ibidem, p. 18. Discurso proferido em Brasília, pelo 15º aniversário da Constituição brasileira, em 18 de
setembro de 1961.
417
VIANA, C. R. Op. cit., p. 110.
141
Neste mesmo discurso, Goulart exprime ainda confiança na colaboração das ―elites
econômicas‖ para o atendimento das reformas sociais, como parte de uma ―luta cristã‖ e
―patriótica‖ pela ―harmonia social‖ e ―desenvolvimento nacional‖: ―Ninguém pode desejar o
418
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 35. Discurso, já citado, proferido no
Rio de Janeiro, na sede da revista O Cruzeiro, em 7 de outubro de 1961.
419
Ibidem, pp. 77-78.
142
agravamento dos problemas sociais e muito menos a intranquilidade do povo, que conduzem
à angústia, que conduzem ao desespero e que levam quase sempre à revolta e imprevisão‖.420
Nesse sentido, Goulart busca persuadir os ouvintes da necessidade do atendimento das
reivindicações populares, mas sem assumir, ele próprio, uma postura ameaçadora. Isto,
contudo, não significa o esvaziamento de seu discurso reformista, como podemos ver um
pouco mais adiante no mesmo discurso:
Sou um homem cujo temperamento tende à conciliação, e toda a minha ação
política sempre se orientou no sentido da compreensão e da harmonia social.
Não transijo, porém, e jamais transigirei, quando se trata do interesse
nacional e da soberania do Brasil. Adversário de todos os extremismos, isso
não me impede de apoiar, e apoiar com lealdade, reformas que constituem
aperfeiçoamento das instituições democráticas e que venham em benefício
do povo.421
420
Ibidem, p. 80.
421
Ibidem, pp. 80-81.
422
Ibidem, pp. 123-124. Discurso veiculado em 31 de dezembro de 1961.
143
Não obstante o otimismo que manifesta, na citação acima, em relação ao ano que se
inicia, Goulart não deixa de apontar as dificuldades a serem enfrentadas pelo governo e pela
―atual máquina administrativa‖ parlamentarista: ―O ano que se inaugura será, sem dúvida,
difícil para o Governo, que se vê a braços com situações graves que lhe foram legadas,
acrescidas de outras, resultantes de erros acumulados ou causados pela imperfeição da atual
máquina administrativa‖.423
Ao longo do ano de 1962, o presidente João Goulart passará, com freqüência, a se
posicionar favoravelmente à consulta popular para a volta do regime presidencialista. No
discurso que realizou em 1º de maio, Goulart, pela primeira vez, se posicionará publicamente
apontando os limites do regime parlamentarista.
Embora o presidente Jango reconheça certo mérito na instituição do novo regime, no
sentido de ―propiciar melhor entendimento e mais estreitas relações entre as diversas
correntes políticas, com reflexos positivos no desarmamento geral dos espíritos‖, avalia que a
população, devido a não solução de problemas prementes, não estaria ―desfrutando da mesma
tranquilidade e segurança‖ obtidas na esfera das relações políticas. Para Goulart, uma vez
atingida a ―pacificação política‖, se fazia necessária a implantação de medidas efetivas em
defesa dos interesses populares, ou então a emenda parlamentarista se limitaria a um
―entendimento de cúpula‖:
Agora é chegado o momento de perguntar se o povo brasileiro, as classes
médias e populares, os trabalhadores em geral e especialmente os que vivem
no campo, estão também desfrutando da mesma tranqüilidade e segurança.
Minha impressão sincera é de que não. A cada hora que passa, o povo
brasileiro tem motivos para novas preocupações sobre o dia de amanhã. Para
ele, para o povo, ainda não foram asseguradas perspectivas animadoras de
tranqüilidade e bem-estar.
/.../O clima de pacificação política, necessário ao País, e que conquistamos
com tenaz esforço, precisa abrir espaço a medidas eficazes do Governo e do
Parlamento, sob pena de vir a ser interpretado como um entendimento de
cúpula, feito sem levar em conta os interesses populares.424
João Goulart ainda explicitou um ―apelo ao Congresso Nacional‖, para que concedesse
ao ―futuro Congresso‖, a ser eleito naquele ano, ―o poder de reexaminar, à luz da experiência
destes oito meses, e da experiência bem mais vasta dos últimos quinze anos, as bases e
condições do nosso regime de governo‖. O presidente propõe, então, uma reforma da
Constituição – o que, ao mesmo tempo em que definiria o regime mais adequado, também
abriria maiores possibilidades de realização das reformas de base:
423
Ibidem, p. 126.
424
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 76-77. Grifo nosso. Discurso
proferido em Volta Redonda (RJ), nas comemorações do Dia do Trabalho.
144
425
Ibidem, p. 80. Grifo nosso.
426
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 288.
145
O impasse se mantém e Moura Andrade acaba por ver ―publicada a carta prévia de
renúncia que entregara ao presidente. A sua saída é forçada também por uma greve geral, a
427
Auro de Moura Andrade, senador.
428
Raul Pilla, deputado do Partido Libertador (PL), antigo defensor da instituição do parlamentarismo no Brasil.
429
General Cordeiro de Farias, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas no governo Jânio Quadros, atuou na
conspiração contra a posse de João Goulart.
430
Gabriel Grün Moss e Sylvio Heek, respectivamente, ministros da Aeronáutica e da Marinha do governo Jânio
Quadros que, juntamente com Odílio Denys, ministro da Guerra, compuseram a junta militar que vetou a posse
de João Goulart após a renúncia de Quadros.
431
Provavelmente, Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça do governo Jânio Quadros, envolvido num episódio
polêmico com Carlos Lacerda, segundo o qual Pedroso propusera a articulação de um golpe a favor de Quadros,
dias antes de sua efetiva renúncia.
432
Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua preocupação com relação ao regime
parlamentarista (documento manuscrito). Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jgoulart/documentos/janela.asp?Path=../documentos/Modulo6/&Img=ELS_carta
_&Pag=3&Tt=4&Htm=&Lgn1=Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua
preocupação com relação ao regime parlamentarista. [1961].&Lgn2=(CPDOC/FGV/arquivo Evandro Lins e
Silva ELS carta)>. Acesso em: 16 de dezembro de 2009.
146
primeira do Brasil [sic], de apoio ao presidente Goulart‖.433 Este episódio é assim explicado
pelo jornalista Flávio Tavares:
tanta foi a ansiedade de Auro ao ser convidado, que deixou com Jango uma
carta-renúncia, sem data, a ser usada no futuro, em caso de eventual fricção
insanável entre ambos e o Presidente decidiu divulgá-la muito antes do
previsto. Jango não tinha sido consultado sobre o ministério e, suspeitando
da lealdade do novo Primeiro-Ministro, resolveu antecipar o futuro e
difundir a ―renúncia‖ sem o avisar. Auro foi saber que havia ―renunciado‖
por um discurso do líder trabalhista na Câmara dos Deputados, Almino
Affonso.434
Com a ―renúncia‖ de Moura Andrade dois dias após a aprovação de seu nome, será
indicado e aprovado o nome de Francisco Brochado da Rocha, cujo gabinete dura somente
dois meses. Brochado da Rocha solicitara ao Congresso a delegação de poderes para que
pudesse legislar sobre temas como o monopólio da importação de petróleo e derivados e a
regulamentação do estatuto do trabalhador rural. A recusa do Legislativo a sua solicitação
teria levado à sua renúncia do cargo;435 sendo substituído por Hermes Lima na presidência do
Conselho de Ministros até o retorno ao presidencialismo.436
Com toda esta tensão, ameaça e efetivação de greves, além da grande dificuldade de
obtenção de um consenso entre o gabinete presidencial e o Congresso Nacional na escolha
dos Primeiros-Ministros, em setembro de 1962 − período em que Hermes Lima assume como
primeiro-ministro − o Legislativo acaba por aprovar o adiantamento do plebiscito que votaria
a volta do regime presidencialista para janeiro do ano seguinte.
Em meio à crise da renovação do gabinete ministerial, João Goulart será acusado de
―alimentar propósitos de quebrar a ordem democrática‖. Como nos mostra Aloysio Castelo de
Carvalho, um editorial do Jornal do Brasil afirmava que o presidente ―resolveu forçar a mão,
ameaçando provocar uma nova crise política se o Congresso não abrir quanto antes o caminho
para que ele volte a ser chefe de Estado em regime presidencial‖.437 Contra afirmações e
433
RIBEIRO, D. Confissões, p. 288.
434
TAVARES, Flávio. O dia em que Getulio matou Allende e outras novelas do poder. Rio de Janeiro: Record,
2004, p. 225.
435
BROCHADO DA ROCHA. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN,
Fernando (Coord.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/brochado_da_rocha> Acesso em: 13 jun.
2012.
436
Ver também: AFFONSO, Almino. Raízes do Golpe: da crise da legalidade ao parlamentarismo. São Paulo:
Marco Zero, 1988.
437
CARVALHO, Aloysio Castelo de. A rede da democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do
governo Goulart (1961-64). Niterói (RJ): Editora da UFF/ Nitpress, 2010, p. 88. O autor cita o editorial ―Os
termos da trégua‖ do Jornal do Brasil de 28 de julho de 1962.
147
Sendo assim, tanto em um documento de acesso restrito, como a carta a Evandro Lins
e Silva, quanto em um discurso público, como o proferido aos militares, fica explícita a
preocupação de João Goulart em manter a legalidade, sem, para tanto, abrir mão do seu
projeto reformista de desenvolvimento com progresso social. Além disso, em ambas as
manifestações, também aparece o incômodo de Goulart com a pressão exercida por grupos
que ele considera como ―golpistas fantasiados de democratas‖ ou ―antigos profissionais do
438
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 136-137. Grifos nossos. Discurso
proferido em 10 de agosto de 1962, no Palácio da Alvorada, Brasília, em almoço, por ocasião da visita de
apresentação de novos generais do Exército.
148
439
CARVALHO, A. C. Op. cit., p. 88.
440
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 238. Grifo nosso. Discurso
proferido em 9 de dezembro de 1962, na sede do Automóvel Clube de São José do Rio Preto (SP), ao iniciar a
jornada cívica pelo plebiscito de 6 de janeiro de 1963.
441
Ibidem, pp. 245-247.
442
Ibidem, pp. 256-257.
149
E, em sua mensagem de final de ano, o presidente Goulart reafirma que o ano de 1963,
com a realização do plebiscito, ―manifestação soberana do povo nas urnas‖, marcaria ―o fim
da crise institucional desencadeada pelos acontecimentos de agosto de 1961‖.443
A consulta popular é efetuada sem maiores transtornos em 6 de janeiro de 1963 e
restabelece o presidencialismo como regime de governo. Como destaca Jorge Ferreira,
A vitória de Goulart foi avassaladora: dos 11 milhões e quinhentos mil
eleitores, 9 milhões e quinhentos mil, ou cinco em cada seis, aprovaram o
retorno ao regime presidencialista.
Goulart assumiu seus poderes com aprovação maciça da população. O
plebiscito, na verdade, era a sua eleição para a presidência da República.444
Meses mais tarde, o presidente João Goulart relembrará sua trajetória desde a posse,
aceitando a emenda parlamentarista, até o plebiscito, como uma comprovação de que suas
ações mantinham como princípio a defesa das instituições democráticas:
Em 1961, recusamos o caminho da guerra civil iminente, aceitando até a
mutilação de um mandato que nos fora outorgado pela vontade do povo
brasileiro, em pleito livre e honesto. O essencial para nós era, entretanto,
garantir a devolução ao povo brasileiro, da fé nas instituições democráticas
ameaçadas e do seu inalienável direito de decidir as questões básicas que lhe
dizem respeito. Foi possível assim, evitar a guerra civil diante da qual não se
comovem as minorias golpistas que sempre tramaram contra as instituições
democráticas. Foi possível, assim, a presença do povo nas urnas do
―referendum‖. Os resultados das urnas demonstraram quem, efetivamente,
perturbava e agitava a vida do País: não era o povo, que exigia a restauração
do seu direito de decidir democraticamente e realizar a livre escolha do
presidente da República, mas, sim, pequenas minorias que as urnas
demonstraram estarem divorciadas dos verdadeiros anseios nacionais.445
443
Ibidem, p. 265.
444
FERREIRA, J. ―O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964‖. In: _____________; DELGADO, L. A.
N. Op. cit., p. 362.
445
―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963.
150
Goulart se esforça para deixar clara sua negativa à afirmação de que o governo estaria
―interessado em instalar uma República incompatível com os sentimentos cristãos e
democráticos‖ da população brasileira. E procura salientar que sua posição é de rechaço, tanto
ao comunismo, quanto à qualquer forma de subordinação externa:
Não aceitamos subordinação, parta de onde partir. Nenhuma República se
instalará nesta Pátria a não ser a República da nossa vontade, da vontade
livre do povo brasileiro. Repudiamos qualquer doutrina contrária aos nossos
sentimentos de povo católico. Esteja certo São Paulo de que não admitimos
esse tipo de exercício. Essas doutrinas não vingarão dentro do Brasil e muito
menos no seio daqueles que tem sobre os seus ombros, como eu, a
responsabilidade de dirigir os destinos deste País. Aqui não aceitamos o
extremismo comunista, como não aceitamos subordinação, parta de onde
partir. Não aceitamos essa subordinação porque queremos um Brasil e uma
democracia que pertençam a todos os brasileiros. Jamais permitirei que se
instale um regime comunista. Também devo dizer a São Paulo, de coração
aberto: eu jamais permitiria que se instalasse também, sob o pretexto de
combate aos extremismos, uma democracia apenas a favor das minorias
privilegiadas da nossa Pátria. A democracia que nós queremos é a
democracia para todos os brasileiros, para os que lutam e para os que
trabalham, e para os que acreditam nos destinos da nossa Pátria.447
446
―Não há mais lugar para agitadores no Brasil, diz Goulart em São Paulo‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
05 abr. 1963. Grifos nossos.
447
Idem. Grifos nossos.
151
Encerrando seu discurso, Jango assegura que a população poderia contar com a
―sobrevivência do regime democrático‖, ainda que para tanto fosse necessário o sacrifício do
próprio presidente: ―com os meus agradecimentos a certeza da minha amizade /.../. Mas, mais
do que a minha amizade, a certeza, /.../ de que pode contar, até com o meu sacrifício, com a
sobrevivência do regime democrático pela paz e tranquilidade da família brasileira‖.448
Serão constantes as declarações de Goulart nesse sentido. Em diversas ocasiões, ele
reafirmará sua postura em favor da ―ordem democrática‖, defendendo-se de acusações de
golpismo ou comunismo, além de apontar para seus acusadores a real intenção de quebra da
ordem legal. Além disso, por vezes, João Goulart relaciona seus acusadores com a oposição
ao seu projeto reformista, que ele identifica a uma ampliação da democracia, pois
proporcionaria uma maior participação da população na vida econômica e política do país.
Não obstante as reiteradas manifestações de Goulart em defesa da ―ordem
democrática‖, a imprensa conservadora, continuava a acusá-lo de não zelar pela democracia −
que estaria sendo ameaçada pela mobilização de ―multidões envenenadas‖ − como fez o
jornal O Globo:
Tudo indica que o Brasil caminha para um novo sistema de governo, uma
curiosa espécie de democracia direta, em que a vontade do povo já não mais
se exprime pela voz de seus representantes livremente eleitos, mas pelo
berreiro vociferante das multidões envenenadas e preparadas para as
pressões sobre o Congresso.
/.../
Os detentores do mandato popular são os únicos que podem falar e decidir
em nome do povo brasileiro. É o princípio da representação, pedra angular
da democracia. A vontade do povo se exprime pelas manifestações de seus
mandatários e não pela discurseira derramada dos comícios e dos
ajuntamentos de praça pública.
Essa é a verdade da vida democrática. Ao Poder Executivo cabe velar, para
que o Congresso possa deliberar no sereno exercício de sua soberania,
coibindo e punindo tentativas de tumultuar os seus trabalhos com arruaças de
multidões ululantes.449
Rebatendo críticas como esta, bem como as acusações feitas por Carlos Lacerda –
afirmando que as greves e mobilizações populares eram organizadas pelo Governo Federal –,
Jango alertava que seus opositores, ainda que falassem em nome da defesa da democracia, na
verdade pretendiam que o governo sufocasse ―os anseios populares pela força, pela violência
e pela pressão‖. E acrescentava:
Sabem eles [os opositores das reformas] que enquanto eu estiver à frente dos
destinos do país, jamais um agente federal irá sufocar pela violência os
448
Idem. Grifo nosso.
449
―Se não for detida a onda subversiva, pode o Congresso se reunir longe de Brasília e da pressão dos
agitadores‖. O Globo. Apud: CARVALHO, A. C. Op. cit., p. 85.
152
Sendo assim, ficava clara a divergência de posições entre Jango e seus opositores no
que se refere às mobilizações populares. Enquanto Goulart as considerava como ―a realização
cotidiana‖ do ―diálogo necessário entre governantes e governados‖, a oposição as tratava
como uma ameaça à prerrogativa exclusiva do poder legislativo de exercer o direito soberano
de decisão, através dos representantes eleitos. Sem considerar o fato de que, os
―representantes‖, enquanto tais, deveriam agir em consonância com os interesses da
população, o discurso oposicionista ressaltava apenas que a manifestação da vontade popular
tinha o seu momento nos períodos eleitorais; e que caberia ao governo coibir as ―arruaças de
multidões‖ que tentavam tumultuar os trabalhos do Congresso. Além disso, pairava sobre
450
―Goulart fala contra os anti-reformistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1963. A parte final do
trecho citado constitui uma clara referência à Lacerda.
451
―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. Grifos nosso.
153
452
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 360-362.
453
―Revolta esmagada: Ministros militares exigem do Presidente punição rigorosa‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 13 set. 1963.
454
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 363-364.
455
―JG afirma que será inflexível‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 set. 1963.
154
A instabilidade gerada pela ocorrência da revolta dos sargentos 456 se avolumará por
ocasião do pedido de estado de sítio, enviado pelo governo ao Congresso Nacional, em
outubro. As acusações de fraqueza cederão lugar às desconfianças sobre o comprometimento
do presidente com a garantia das liberdades públicas. E com um elemento novo: dessa vez a
desconfiança não partiria apenas da direita.
456
De acordo com Moniz Bandeira ―É possível que provocadores, infiltrados (como de fato havia) entre os
sargentos, tivessem encorajado a sedição, para abortá-la e polarizar a oficialidade contra o governo. Alguns
sargentos, que participaram da rebelião, revelar-se-iam, depois da queda de Goulart, agentes dos serviços
secretos das Forças Armadas‖. Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no
Brasil, 1961-1964, pp. 124-125.
457
Cf. ―Ministros militares exigem estado de sítio‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 set. 1963.
458
Cf. ―Governo abranda tensão negando estado de sítio iminente‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 set.
1963.
155
seguras de que os militares debatiam se, com relação a Goulart, ―era melhor
tutelá-lo, patrociná-lo, pô-lo sob controle até o fim de seu mandato ou alijá-
lo imediatamente‖.459
Os ministros militares Jair Dantas Ribeiro (Guerra), Silvio Borges de Souza Mota
(Marinha) e Anísio Botelho (Aeronáutica), considerando a entrevista ofensiva e injuriosa às
Forças Armadas e ao país, divulgaram nota em que afirmam que as declarações de Lacerda
integravam uma ―vastíssima campanha de agitação‖, conduzida ―para levar o país à
desorientação e à desordem, inclusive com ameaças de lock out, com a paralisação de setores
da vida econômica do país, /.../ que o Governo já vem denunciando à opinião pública‖. 460 A
nota também aludia a provocações feitas pelo governador de São Paulo, Adhemar de Barros.
O próprio presidente João Goulart também se pronunciou, dizendo:
Falsos defensores da ordem e agitadores ostensivos e agentes dessimilados
[sic] de interesses antinacionais, a pretexto de reclamarem a afirmação e o
exercício da autoridade, por parte dos poderes constituídos da República,
conspiram contra a própria Nação, no que ela tem de mais sagrado: a sua
integridade, a sua emancipação, a paz interna, o direito mesmo de comandar
seu destino.
A Nação exige que se ponha termo a esta permanente e intolerável
provocação contra a nossa organização democrática, que tem compromissos
inarredáveis com o bem-estar do povo e com as justas aspirações do
progresso social.461
459
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 365.
460
―Ministros militares condenam Lacerda por ofensas ao País‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 out. 1963.
461
―Pronunciamento de Goulart sobre a situação política nacional‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 03 out.
1963. A reportagem transcreve pronunciamento de Jango feito através de uma cadeia de rádio e televisão, na
noite de 02 de outubro de 1963.
462
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 366-367.
156
463
―Mensagens do Presidente e de Ministros pedindo sítio‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 out. 1963.
464
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 367.
465
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, 2001, p. 132.
157
Portanto, a medida que pedimos era pra tudo, menos para sufocar o povo.
Era para tudo, menos para oprimir e para fuzilar o povo nas ruas. Era
necessária para ficarmos em melhores condições para defender o Brasil
contra maus brasileiros e contra os interesses internacionais, mas nunca para
sufocar as liberdades democráticas ou para transformá-lo num instrumento
de suplício do povo brasileiro.466
O presidente justifica a retirada do pedido, afirmando que ―quem recua para ficar com
o povo, não se humilha, se engrandece‖.467 Além disso, o ministro da Guerra, Jair Dantas
Ribeiro, declarara que, a simples divulgação do pedido de estado de sítio teria provocado o
abrandamento da tensão que envolvia o país; a iniciativa da medida acabara, assim, esvaziada,
―perdendo sua oportunidade depois que a Câmara deixou passar 48 horas para então decidir
sobre o assunto‖.468
Apesar das justificativas de Goulart e de seus ministros militares, o episódio tornou
patente a desconfiança que pairava sobre o presidente – e, desta vez, não somente por parte de
seus opositores, mas também por parte de setores que compunham sua base de apoio.
Segundo Moniz Bandeira, toda essa desconfiança não correspondia à realidade das intenções
de Jango; uma vez que Goulart não pretendia desfechar um golpe, mas
Apenas se inclinara, em face da evolução da crise, a tomar uma atitude de
força, sem transpor o espaço constitucional, embora considerasse que suas
balizas tolhiam a ação e inibiam a agilidade do governo, não só para a
adoção de medidas de defesa como para a realização das reformas de base.
Goulart sabia que, se mantivesse o mesmo comportamento dos meses
anteriores, o assédio da oposição cresceria, e ele não teria condições de
permanecer no poder.469
466
―Presidente anuncia esforço redobrado pelas reformas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 out. 1963.
467
Idem.
468
―Amaral não foi à reunião do Ministério porque sua missão já está concluída‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 09 out. 1963.
469
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 130-131.
Grifo nosso.
470
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 370.
158
difícil‖.471 Seja por ―burrice‖ dos que negaram apoio à medida, seja por um enorme erro de
cálculo do presidente ao solicitar o estado de sítio, a verdade é que o episódio enfraqueceu
muito o governo de Goulart, provocando um desgaste considerável na sua relação com os
setores de esquerda – principal base de apoio do governo.
Se é verdade, como dissemos na introdução deste trabalho, que são poucos os estudos
voltados à análise do governo João Goulart, também é verdade que existe uma grande
variedade de publicações que têm como foco os acontecimentos e possíveis motivações para o
golpe de abril de 1964 – compõem esse conjunto pesquisas de historiadores, análises
políticas, até relatos de cunho jornalísticos ou biográficos, referentes a Goulart ou a figuras
ligadas à vida política daquele momento. Contudo, não é nosso intuito abordar, aqui, esta
vasta gama de informações e interpretações sobre os últimos meses do governo Jango; mas
sim, em consonância com o eixo deste trabalho, explicitar a posição do presidente Goulart
naquela conjuntura. Aludiremos, assim, apenas a alguns fatos relevantes para a compreensão
do discurso e do posicionamento de Jango, bem como problematizaremos algumas das
análises que abordam justamente a postura de Goulart naquele momento.
O período entre os anos de 1963 e 1964 é apontado por vários autores como um
momento de radicalização crescente no panorama político brasileiro. Por parte das ações da
direita, além da oposição política que Goulart enfrentava no Congresso e na relação com
alguns governadores de estado, intensificou-se na imprensa uma forte campanha contra seu
governo com a criação da Rede da Democracia. Idealizada por João Calmon, (deputado
pessedista e vice-presidente dos Diários Associados, de Assis Chateubriand), a Rede da
Democracia, criada no Rio de Janeiro, em outubro de 1963, envolvia não apenas jornais, mas
também emissoras de rádio.
a Rede da Democracia era um programa radiofônico comandado pelas
rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e
repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os
pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente
publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e, sobretudo,
O Jornal.472
Com programas diários, a rede articulava as emissoras e jornais do Rio de Janeiro com
partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente a UDN, o Instituto de Pesquisas e
471
Ibidem, p. 371.
472
CARVALHO, A. C. de. Op. cit., p. 15.
159
473
A composição e a atuação desses órgãos foi largamente documentada no trabalho de René Dreifuss:
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis (RJ):
Vozes, 1981.
474
CARVALHO, A. C. de. Op. cit., p. 16. Vale lembrar que apesar das acusações feitas pela Rede da
Democracia ao governo Jango, sua criação foi saudada pelo deputado Tancredo Neves, que fazia parte da
coligação PSD-PTB. Para Tancredo o programa seria ―um verdadeiro instrumento de esclarecimento da
consciência brasileira‖. Ver: MORAES, D. Op. cit., p. 147.
475
―Uso da liberdade‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963.
476
―Fim do monólogo‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963. Grifo nosso.
160
Falando através do jornal Panfleto, Brizola acusava o presidente João Goulart de não
exercer o poder e de ter se afastado das ―aspirações populares‖ em nome de uma ―política de
conciliação com minorias e grupos conservadores‖. Embora afirmasse que ainda era cedo para
avaliar os rumos que Goulart e seu governo tomariam, Brizola afirmava ser quase certo que:
―o desgaste, a frustração, as perplexidades, as vacilações, a indefinição, a inoperância, o
enfraquecimento enfim, os levem a facilitar e talvez negociar a entrega do governo àquelas
minorias, e, com isto, a elas passe a hegemonia do poder‖.478
Tal afirmação de Brizola parte de seu posicionamento absolutamente contrário à
postura conciliadora assumida por João Goulart. Enquanto as organizações e os movimentos
políticos agrupados na Frente de Mobilização Popular estavam entre os grupos de esquerda
que consideravam as palavras ―conciliar, acovardar e trair‖ como ―expressões sinônimas‖,479
Goulart entendia conciliação como a obtenção de ―bases mínimas de entendimento e de
cooperação, de modo a dar-se a arregimentação de todos quantos estejam dispostos a
combater na mesma trincheira‖. Para ele,
A conciliação não é um fim em si. É instrumento válido de ação política, na
medida em que se preservam a firmeza de propósitos e o ânimo da luta, para
que se alcancem objetivos que a Nação se decidiu a conquistar, em defesa da
Independência, que hoje se comemora, tanto quanto do seu direito de
progredir e emancipar-se economicamente.480
Sendo assim, Goulart via-se atacado tanto pela direita como por setores da esquerda;
tendo sua base de apoio, cujo respaldo seria fundamental na luta pela efetivação de reformas,
ameaçada de desintegração. Contudo, em face deste cenário político de radicalização, é
importante ressaltar que o posicionamento de João Goulart não sofreu alterações
consideráveis, muito menos ―guinadas‖ drásticas. Apesar de implementar, nesse período, uma
477
FERREIRA, J. Brizola em Panfleto: as ideias de Leonel Brizola nos últimos dias do governo João Goulart. In:
Projeto História, revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo n. 36. jun. 2008, p. 104.
478
Ibidem, pp. 108-109. Grifo nosso.
479
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A.
N. Op. cit., p. 376.
480
―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. Grifos nosso.
161
série de medidas populares,481 estas medidas eram totalmente compatíveis com o projeto
trabalhista e nacionalista que defendia desde o início de sua carreira política. Além disso,
Goulart procurou manter sua postura de tentar superar divergências em torno de um programa
reformista comum, incumbindo San Tiago Dantas de articular, entre os diferentes grupos
políticos, uma Frente Ampla, ou Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base, com o
objetivo de aprovar reformas e fortalecer politicamente o governo.
No entanto, a união das esquerdas mostrou-se impossível:
O Partido Comunista, embora inicialmente apoiasse a Frente Progressista,
mais adiante a abandonou. O grupo de sindicalistas comunistas não aceitava
qualquer moderação em termos políticos. O PSD, alegaram, deveria ser
excluído da Frente /.../. Brizola e a Frente de Mobilização Popular, além de
igualmente repudiarem alianças com os pessedistas, também não
acreditavam em mudanças que dependessem de aprovação do Congresso.
/.../ O PTB, sobretudo a ala radical, bem como o conjunto das esquerdas,
apostava na política do confronto. O PSD, temeroso com a mobilização de
operários e camponeses, aproximava-se cada vez mais da UDN. Todas as
iniciativas de Goulart para reaproximá-los politicamente, buscando manter a
coligação que sustentou o regime democrático desde 1945, mostraram-se
infrutíferas.482
481
As medidas implementadas por Goulart entre fins de 1963 e início de 1964 são assim destacadas por Jorge
Ferreira: ―estendeu benefícios da Previdência Social aos trabalhadores rurais; determinou a obrigatoriedade de
que as empresas, com mais de 100 empregados, oferecessem o ensino elementar gratuito aos funcionários;
enviou mensagem a Congresso concedendo o 13º salário ao funcionalismo público, além de instituir a escala
móvel de seus vencimentos. E mais: determinou a revisão das concessões de exploração das jazidas minerais e
cancelou aquelas que não foram exploradas, contrariando assim, os interesses da São João Del Rei Mining Co.
de propriedade da Hanna Co. /.../ em 24 de dezembro, véspera de Natal, assinou uma medida que fazia parte das
reivindicações das esquerdas, decretando o monopólio da Petrobrás na importação de petróleo e derivados. O
decreto impedia sangria considerável de divisas, o que contrariou poderosos investidores norte-americanos. Em
17 de janeiro, assinou uma outra medida igualmente reclamada pelas esquerdas: a regulamentação da Lei da
Remessa de Lucros para o Exterior. Rumores havia de que outro decreto, estabelecendo o monopólio do câmbio,
seria assinado em breve, apavorando o empresariado‖. In: FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-
militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A. N. Op. cit., pp. 376-377.
482
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A.
N. Op. cit., pp. 378-380.
162
presidente Jango –, Goulart não aponta para uma ruptura. Os momentos mais incisivos de sua
fala fazem parte de sua defesa de uma democracia que dialogasse com as mobilizações
populares:
Proclamar que esta concentração seria um ato atentatório do Governo ao
regime democrático é como se no Brasil ainda fosse possível governar sem o
povo. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por esses
democratas. Para eles, trabalhadores, a democracia não é regime de liberdade
de reunião com o povo, mas a de um povo emudecido e abafado nas suas
reivindicações.
A democracia, trabalhadores, que eles desejam impingir-nos, é a democracia
de antipovo, da anti-reforma, do anti-sindicato, aquela que favorece os
interesses dos grupos que representam. A democracia que eles pretendem é a
dos privilégios, da intolerância, do ódio, para liquidar com a Petrobras. A
democracia dos monopólios nacionais e internacionais, a democracia que
levou Getúlio Vargas ao extremo sacrifício.
/.../
A ameaça à democracia não é vir ao encontro do povo na rua, é enganar o
povo brasileiro, é explorar seus sentimentos cristãos na mistificação de
anticomunismos, insurgindo o povo até contra as mais expressivas figuras do
quadro nacional, dos grandes pronunciamentos do Santo Papa.483
483
GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., pp.
37-38. A parte final da citação faz referência a fatos como os assinalados por Jorge Ferreira: ―No dia 12 de
março, véspera do comício, na Praça Sete, centro de Belo Horizonte, partidários do IBAD conclamavam as
pessoas a assinar um documento ofensivo contra o arcebispo Dom João Resende da Costa, outro contra a Ação
Católica e outro ainda contra o clero progressista, repudiando o apoio que eles deram às reformas de base‖. In:
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p.416.
484
GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., p. 43.
163
485
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A.
N. Op. cit., p. 376 e p. 381.
164
Deste modo, assim como Goulart, a maioria das pessoas presentes no comício também
manifestava uma posição legalista. Contudo, o comício será taxado pelos opositores de João
Goulart como ―parte de um plano nacional de agitação em marcha‖, como disse o governador
de São Paulo, Adhemar de Barros;487 uma ―pregação escandalosa da revolução‖, nas palavras
do deputado udenista Pedro Aleixo (líder da oposição na Câmara);488 ou ainda como uma
―humilhação à democracia‖, em que ―dois políticos inelegíveis‖ se destinavam a ―atirar o
povo contra a Constituição‖ e a ―compor um movimento de frente única contra a sucessão
normal‖, segundo editorial do Jornal do Brasil. 489
Aliás, as acusações de golpismo e continuísmo, que já vinham ocorrendo – e
procuravam se justificar pelo fato de o presidente apontar para a necessidade de uma reforma
constitucional −, foram intensificadas após o evento na Central do Brasil; fazendo com que
Jango se defendesse nos seguintes termos: ―Enganam-se redondamente os que estão falando
em golpismo, em continuísmo e personalismo. Se alguém neste País não aceitará nunca ser
ditador, sou eu‖.490 A postura de Jango é confirmada pelos testemunhos de Abelardo Jurema
– para quem Goulart teria confidenciado não saber como Juscelino Kubitschek ainda teria
vontade de voltar à presidência491 – e de Darcy Ribeiro, que diz:
Muitos diziam e dizem que Jango queria dar o golpe do continuísmo para
permanecer na Presidência. Outros diziam e dizem que ele era
candidatíssimo à reeleição. Meu testemunho é que nunca percebi nenhum
desses pendores nele. Seu dispositivo militar, tratado aliás muito
displicentemente, não prestava para um golpe. Os militares que poderiam
conduzir a isso, como Kruel, eram vistos com suspeita por Jango. O que ele
tinha como paixão política era criar um PTB invencível, capaz de impor,
pela democracia e pelo voto, as grandes reformas que o Brasil exige.492
486
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p.421.
487
―Ademar vê plano de agitação com o comício e compra novo travesseiro para dormir bem‖. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.
488
―Pedro Aleixo acusa Goulart de endossar a subversão‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mar. 1964.
489
―Os inelegíveis‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.
490
―Jango afirma que não será ditador‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 mar. 1964.
491
JUREMA, Abelardo. Apud FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia, p. 371.
492
RIBEIRO, D. Confissões, p. 307.
165
Afirmar a posição legalista de Goulart não significa, contudo, que a ideia de um golpe
não tivesse sido cogitada, ou até mesmo sugerida por figuras próximas a Jango. Em obra
autobiográfica, Celso Furtado lembra que em fins de setembro de 1962 – portanto antes de
assumir o ministério do Planejamento –, teria preparado uma espécie de manifesto das forças
progressistas, posteriormente utilizado como base para elaboração do Plano Trienal, tentando
compor forças parlamentares junto aos líderes progressistas para o desenvolvimento legal das
reformas. Meses mais tarde, Furtado teria ouvido de Goulart que o manifesto vinha sendo
―apreciado por várias pessoas‖ e que o general Osvino Alves, então no comando do I
Exército, o teria achado ―ótimo para ser utilizado num golpe‖, causando embaraço ao
economista que tinha objetivos totalmente distintos do sugerido pelo general.493
No entanto, é necessário apontar que a cogitação de um golpe por pessoas ligadas ao
presidente, ou mesmo pelo próprio presidente, não possui relevância, uma vez que não
encontra eco em nenhuma das ações ou discursos de Goulart.
Toda a trajetória de Jango confirma uma atitude legalista, pois, em todos os momentos
críticos e decisivos − como na crise da legalidade, que culminou com a emenda
parlamentarista; nas crises de formação de gabinete ministerial; na aprovação do plebiscito
para a volta do presidencialismo; ou mesmo no pedido de decretação do estado de sítio −, o
presidente, ainda que fosse criticado por setores de sua base de apoio que exigiam uma
postura mais radical, seguiu respeitando as definições do poder legislativo.
Porém, a atitude de João Goulart em seguir defendendo a ordem legal, não evitava que
seus problemas na presidência continuassem se avolumando e o clima golpista tornava-se
cada vez mais explícito, fosse na imprensa, fosse na atitude de seus opositores políticos. Entre
os militares, como o próprio Goulart já dispunha de informações, há tempos existia uma certa
articulação que, nos últimos meses, vinha ganhando suporte norte-americano, com a mediação
do coronel Vernon Walters – adido militar da Embaixada dos Estados Unidos, agente do
serviço secreto do exército estadunidense, a Defense Intelligence Agency (DIA),494 e grande
amigo do general Castelo Branco, com quem servira ―nos campos de batalha italianos‖.495
493
FURTADO, C. Op. cit., p. 236.
494
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 128.
495
FICO, C. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. P governo dos Estados Unidos e a
ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 20. Fico, baseado em documentos
norte-americanos, aponta a atuação de Lincoln Gordon e Vernon Walters na mediação do suporte aos golpistas,
revelando a existência de um ―plano de contingência‖ americano para a possibilidade de um golpe no Brasil,
desde pelo menos dezembro de 1963. Tal plano estabelecia ―linhas de ação estratégica que afinal se
implementariam à risca três meses depois‖ (pp. 92-93).
166
496
Como posteriormente se soube e o próprio Anselmo assumiu, durante o período ditatorial, ele atuou, como
agente infiltrado nos movimentos de resistência à ditadura militar, contribuindo para a prisão e morte de vários
militantes de esquerda. Além disso, de acordo com Moniz Bandeira, já na época da revolta dos marinheiros,
havia informações, oriundas da própria Marinha, de que Anselmo agia como elemento provocador, trabalhando
para a Central Intelligence Agency (CIA). Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas
sociais no Brasil, 1961-1964, p. 168.
497
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 450.
167
país‖.498 Assim, as articulações para um golpe contra Goulart ganharam força entre os
militares, temerosos pela quebra da hierarquia.
A rejeição de Goulart entre os militares aumentou ainda mais com o seu
comparecimento, no dia 30 de março, à festa da posse da nova diretoria da Associação dos
Sargentos, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. De acordo com Jorge Ferreira, ―o
presidente da República comparecer a uma festa de subalternos das Forças Armadas ainda sob
as cinzas de um motim de marinheiros, com a oficialidade da Marinha em rebelião passiva,
era, no mínimo, imprudente‖.499
Embora a alguns pareça incompreensível a atitude de João Goulart de participar da
cerimônia dos sargentos, é importante considerar que o presidente estava consciente da
crescente articulação golpista entre os militares e civis conservadores; e os sargentos tinham
uma aproximação histórica com o trabalhismo, constituindo, portanto, um grupo de apoio que
poderia ser importante naquele momento em que o governo Jango se via fortemente
ameaçado. Segundo Darcy Ribeiro, Goulart ―sabia bem que estava condenado a fazer frente
às forças da reação, dispostas a sublevar-se. Mas confiava em que, coordenando seu
dispositivo militar, poderia dissuadi-las de dar o golpe‖.500
O discurso de João Goulart no Automóvel Clube reafirmou sua defesa das reformas de
base dentro da ordem legal. E explicitou sua posição diante da revolta dos marinheiros
dizendo que sua primeira recomendação foi a de não permitir jamais ―que se praticasse
qualquer violência contra aqueles brasileiros que se encontravam desarmados na sede de um
sindicato‖. Confiando o problema ao novo ministro da Marinha, Goulart disse não ter
interferido, a não ser dando ―autoridade ao novo ministro que assumia naquela hora o
comando da nossa Marinha de Guerra‖.501
Mas a rejeição de qualquer repressão violenta aos marinheiros, não poderia significar
o desprezo pela disciplina. Ao contrário disso, Jango apelou para que os sargentos brasileiros
continuassem ―cada vez mais disciplinados naquela disciplina consciente, fundada no respeito
recíproco entre comandantes e comandados‖. Pedia:
Que respeitem a hierarquia legal, que se mantenham cada vez mais coesos
dentro das suas unidades e fiéis aos princípios básicos da disciplina. Que
continuem prestigiando as nossas instituições, porque em nome dessas
instituições, em nome dessa disciplina, os sargentos jamais aceitarão
498
―Almirantes denunciam comunização do país‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 mar. 1964. Grifo nosso.
499
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 455.
500
RIBEIRO, D. Confissões, pp. 351-352.
501
―Goulart pede aos sargentos que respeitem a hierarquia‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 mar. 1964.
168
Importante indicativo desse momento vivido por Goulart será o espaço que dedicou
em seu discurso ao alerta de golpe. Afirmando que ―em nome da disciplina‖ se estariam
―praticando as maiores indisciplinas‖, João Goulart assevera:
não admitirei que a desordem seja promovida em nome da ordem; não
admitirei que o conflito entre irmãos seja pregado e que, em nome de um
anti-reformismo impatriótico, se chegue a conclamar as forças da reação
para se armarem contra o povo e contra os trabalhadores; não permitirei que
a religião de meus pais, a minha religião e a de meus filhos, seja usada como
instrumento político de ocasião, por aqueles que ignoram o seu sentido
verdadeiro e pisoteiam o segundo mandamento de Deus.
O meu mandato, conferido pelo povo e reafirmado pelo povo numa segunda
vez, será exercido em toda a sua plenitude, em nome do povo e na defesa dos
interesses populares. Enganam-se redondamente aqueles que imaginam que
as forças da reação serão capazes de destruir o mandato que é do povo
brasileiro.503
502
Idem.
503
Idem.
504
Idem.
169
divulgação ampla − denunciando o golpe contra seu projeto reformista e contra as medidas de
cunho nacionalistas implementadas por seu governo:
A tais medidas, e tudo o mais consubstanciado na política autenticamente
popular, decorrente da minha fidelidade ao ideário de Vargas e aos
compromissos do meu passado, em lutas nacionalistas, opuseram-se forças
políticas e econômicas desavindas entre si, mas que se uniam, entretanto, na
impatriótica tentativa de impedir que ao povo brasileiro fossem assegurados
melhores padrões de cultura, de segurança econômica e de bem-estar social.
Meu Governo foi daqueles, na história da República, que mais se
empenharam em cercar de prestígio, de conciliação e de respeito os
dignitários do Episcopado, do Clero da Igreja Católica e dos demais credos
religiosos. Mistificam com a supervalorização do perigo comunista, como se
não fôssemos uma democracia plantada irremovivelmente no coração do
povo. Do povo em que acredito e em quem deposito a certeza da vitória da
nossa causa. Não recuarei, não me intimidarão. Reagirei aos golpes dos
reacionários contando com a lealdade, a bravura e a honra das forças
militares, e com a sustentação das forças populares do nosso país.505
Dessa forma, nos parece correto afirmar que o processo de radicalização política que
antecedeu o golpe de 1º de abril de 1964 não fez com que João Goulart abandonasse a postura
legalista que defendia ao longo de toda a sua trajetória política. Portanto, não encontra
fundamento a tese de que o golpe de abril teria sido um ―contragolpe preventivo‖ – tese
baseada nas afirmações ou suposições ―de que Goulart pretendia perpetuar-se no poder para
além do prazo constitucional e que, por isso, precavidamente, foi deposto antes que ele
mesmo desse um golpe (a tese também é utilizada em relação aos comunistas)‖.506 Tal tese foi
utilizada pelo embaixador Lincoln Gordon para justificar a necessidade de suporte norte-
americano para ação dos golpistas507 e reafirmada por militares brasileiros.508
Embora as afirmações de que Goulart pretendia estabelecer um governo comunista,
como também afirmaram os golpistas, tenham sido recusadas pela maior parte das análises
políticas e historiográficas do período – com exceção das que retratam a posição dos militares
que participaram do golpe –, o ―desapego à democracia‖ por parte das esquerdas brasileiras,
505
GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, K. et al. Op. cit., pp. 243-244.
506
FICO, C. Op. cit., p. 73.
507
―Em um telegrama que enviou ao Departamento de Estado, classificado como ‗ultra-secreto‘, em 28 de março
de 1964, Gordon reafirmou suas teses de que Goulart estava empenhado em um golpe para obter poderes
ditatoriais, com a colaboração do PCB e de outros membros da ‗esquerda revolucionária radical‘, repetindo sua
avaliação de que o presidente operaria por uma ditadura de tipo peronista que acabaria por levar o Brasil ao
comunismo‖. In: FICO, C. Op. cit., pp. 93-94.
508
O marechal Odylio Denys, que já acusava Goulart de aproximação com o comunismo desde a crise que
antecedeu sua posse, no já citado manifesto dos coronéis, afirma que a ação militar estava ―defendendo a
legalidade‖ e ―manter o regime democrático‖, com o qual o governo de Goulart estaria em desacordo, uma vez
que ―com um golpe de Estado ia implantar nele a revolução marxista, instituindo o regime sindicalista‖.
DENYS, O. Apud: RAGO FILHO, Antonio. Sob este Signo Vencerás! A ideologia da autocracia burguesa
bonapartista. Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth - IFCH/UNICAMP), Campinas, v. 14/15, 2001, p. 173.
170
naquele momento, ainda é apontado por alguns autores como um dos fatores que teriam
engendrado o golpe.
Argelina Figueiredo, analisando prioritariamente os momentos críticos do governo
Goulart, afirma que possibilidades de reformas mais moderadas dentro da ordem democrática
teriam sido desprezadas pelos setores de esquerda, a favor de uma escolha deliberada pela
radicalização e ampliação das reformas e em detrimento da democracia. Desse modo, acaba
por responsabilizar os reformistas pelo golpe; uma vez que, segundo a autora, tanto os grupos
de direita como os de esquerda ―subscreviam a noção de governo democrático apenas no que
servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza inerente às regras
democráticas‖.509
O historiador Jorge Ferreira se aproxima de algumas das conclusões de Argelina
Figueiredo, ao afirmar que, nos conflitos do período imediatamente anterior ao golpe militar
entre esquerdas e direitas, revelava-se um desprendimento aos valores democráticos por
ambas as partes. Segundo Ferreira, naquele momento, ―de uma posição defensiva e legalista
em 1961, as esquerdas adotaram a estratégia ofensiva e de rompimento institucional‖.510 Para
ele, ―não se tratava mais de medir forças com o objetivo de executar, limitar ou impedir as
mudanças, mas sim, da tomada do poder e da imposição de projetos. /.../ Os grupos de
esquerda exigiam as reformas, mas também sem valorizar a democracia‖.511
Diante de análises como as de Ferreira e Figueiredo, que afirmam que os setores
progressistas e de esquerda também devem ser responsabilizados pelo golpe, devido à
intransigência de suas demandas e posições, vale lembrar, como fez Caio Navarro de Toledo,
que ―quem arquitetou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes
dominantes através de suas forças políticas e entidades de classe‖,512 não sendo encontrada
―pela dura repressão que se abateu sobre os ‗subversivos‘‖ nenhuma comprovação de algum
plano golpista entre principais movimentos de esquerda.
Militares progressistas e democratas (alguns deles vinculados ao alardeado
―dispositivo militar‖ de Jango), quadros civis ligados diretamente à
Presidência da República, setores de esquerda, entidades (CGT, UNE, ISEB
etc.) tiveram seus arquivos apreendidos; freqüentes inquéritos políticos
militares (IPMs) vasculharam as atividades de lideranças políticas e
organizações nacionalistas e de esquerda. No entanto, nenhum documento
509
FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 202.
510
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, L A. N. Op.
cit., p. 381.
511
Idem.
512
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: In: REIS, D. A.; RIDENTI,
M; MOTTA, R. P (orgs.). Op. cit., p. 76.
171
Afirmar uma tendência golpista entre as esquerdas, ainda que sem contribuições
factuais, permite reforçar a tese do ―contragolpe preventivo‖, ou, ―na melhor das hipóteses‖,
atenuar ―as responsabilidades dos militares e da direita civil pela supressão da democracia
política em 1964‖.514 Assim, um golpe que, como assinala Antonio Rago Filho, ―em sua
objetividade histórica, foi uma ruptura ao processo democrático que estava em marcha‖, um
―combate ao social-progressismo inerente à política dos trabalhistas, identificada
erroneamente com a república sindical, o nacionalismo exacerbado e a algaravia
populista‖,515 valendo-se de análises com as de Figueiredo e Ferreira, pode ser apresentado
simplesmente como a vitória de um dos lados, igualmente antidemocráticos, em confronto.
Outro aspecto importante, destacado por Toledo, é a incorreção de se criticar as
esquerdas atuantes no pré-64 por não estarem limitadas ao discurso da democracia liberal – o
que, na objetividade histórica brasileira, constituía não um defeito, mas um mérito.516 Ao
afirmar que a falta de moderação ou radicalismo na luta pelas reformas teriam resultado no
golpe de Estado e propor que o projeto reformista deveria manter-se dentro dos limites da
―ordem instituída‖, esses autores desconsideram o fato de que reformas moderadas são
incapazes de ―transcender as dimensões formalistas que caracterizam, em profundidade, os
regimes democráticos no capitalismo dependente e periférico‖.
Assim, questionar as reformas ―radicais‖ em nome da preservação das
―instituições democráticas‖ implica, objetivamente, justificar as democracias
realmente existentes; numa palavra, significa legitimar as democracias
liberais excludentes em que as liberdades e os direitos políticos têm reduzida
eficácia no sentido de atenuar as profundas desigualdades sociais e as
distintas opressões extra-econômicas (de gênero, raça, sexuais etc.)
existentes na sociedade.517
Embora Ferreira seja um duro crítico da categoria ―populismo‖, compartilha com ela o
mesmo referencial ou ―arquétipo‖ da democracia liberal.518 Sendo assim, não obstante a
513
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e democracia. As falácias do revisionismo. In: Revista Crítica
Marxista n. 19, out. 2004, p. 37.
514
Ibidem, pp. 44-45.
515
RAGO FILHO, A. Op. cit., p. 160.
516
Ibidem, p. 48.
517
Ibidem, p.47. Grifo do autor.
518
Abordamos o referencial liberal da teoria do populismo na introdução deste trabalho.
172
enorme contribuição de Jorge Ferreira para a compreensão do período pré-64 – com pesquisas
que investigaram e explicitaram importantes elementos que compunham aquele momento
histórico brasileiro –, a análise que faz sobre as esquerdas e o golpe, ao tomar o paradigma
liberal como modelo de democracia a ser preservado, desconsidera a possibilidade de
construção de uma democracia popular, com ampla participação das massas e que
promovesse, de fato, uma ampliação das conquistas sociais. Essa era justamente a
possibilidade que grande parte dos setores de esquerda almejava concretizar.
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS
519
Vale lembrar que o castilhismo anticlerical e positivista, presente na formação do ideário de Vargas, não é
apropriado de forma direta por João Goulart. Embora alguns princípios castilhistas – como a preponderância do
bem público sobre os interesses materiais individuais – cheguem até ele, através de Vargas e do trabalhismo,
Jango afirmará reiteradamente, em seus discursos, sua concordância com a doutrina social da Igreja, bem como
as encíclicas e mensagens do papa João XXIII.
520
FURTADO, C. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 264.
521
OLIVEIRA, Francisco de. A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 90.
174
527
Cf. VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). Rio de Janeiro: Globo, 2004, pp. 237-238.
176
sindicais, populares e de esquerda nunca foi repudiada ou reprimida por Jango. E essa postura
não se limitou aos momentos em que recebia apoio dos movimentos populares; foi mantida,
também, quando deles recebia críticas e cobranças, ou ainda quando seus opositores o
acusavam de nada fazer diante da ―ameaça‖ que tais movimentos representariam à
democracia representativa.
No plano das relações exteriores, não obstante a pressão política e financeira exercida
pelos Estados Unidos, João Goulart manteve-se fiel à política externa independente e à
posição de não-intervenção − notadamente no caso de Cuba. Além disso, buscou opções de
atuação internacional que extrapolassem as iniciativas tuteladas pelos países desenvolvidos,
buscando articular um bloco para a defesa dos interesses dos países latino-americanos.
Apesar dos enormes problemas e pressões com as quais seu governo foi obrigado a
lidar, Jango, em seu discurso e governo, seguiu, com coerência, o nacionalismo varguista, no
qual se apoiou ao longo de toda a sua carreira. Ainda que tenha chegado a transigir em
algumas situações – almejando negociar soluções entre partes divergentes528 −, nos momentos
decisivos, Goulart marcou posição em defesa dos interesses nacionais e das demandas
populares; descartando soluções que, em troca de estabilização econômica e mesmo política,
implicassem na subordinação do país aos interesses externos e/ou no achatamento de salários
e direitos dos trabalhadores brasileiros.
Tal postura rechaça as afirmações de que seu discurso nacionalista e de direitos sociais
seria ―mera‖ demagogia. Conforme apontamos em nossa Introdução, a ―teoria do populismo‖,
ao enquadrar o presidente Jango como demagogo, descarta toda sua tradição política, ou
melhor, toda a base ideológica sobre a qual Goulart sustenta suas ações.529 Fixando-se em um
ideal de trabalhador e em um ideal de democracia burguesa, essa teoria acaba por descartar os
trabalhadores reais, bem como a possibilidade de uma ―democracia trabalhista‖ – o que, nos
marcos históricos do Brasil, seria provavelmente um avanço.
Em sua tarefa inglória de superar uma série de deficiências econômicas herdadas e
promover desenvolvimento econômico com progresso social, João Goulart acreditou na
possibilidade de estabelecer uma economia capitalista, que embora associada, garantisse
autonomia ao país, além de conquistas sociais aos trabalhadores. No entanto, viu suas
expectativas de obter suporte financeiro externo para estimular um desenvolvimento nacional
528
São exemplos dessas transigências: a aceitação da ―solução parlamentarista‖, a incorporação de demandas
que atendessem o FMI no Plano Trienal, a possibilidade de pagamento de valor acima do avaliado na compra da
AMFORP e o retardamento da regulamentação da Lei da Remessa de Lucros.
529
Nos referimos, aqui, à ideologia conforme a posição de Georg Lukács (ver definição na introdução deste
trabalho).
177
530
Iniciativas como a ajuda dos Estados Unidos à Europa no pós-guerra, com o plano Marshall, e a Aliança para
o Progresso, anunciada em 1961, davam margem para essa expectativa. No entanto, tais iniciativas se mostraram
absolutamente distintas em suas práticas e objetivos.
531
RAGO FILHO, Antonio. Sob este Signo Vencerás! A ideologia da autocracia burguesa bonapartista.
Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth - IFCH/UNICAMP), Campinas, v. 14/15, 2001, p. 182. Grifo nosso.
532
José Chasin, analisando a forma e a particularidade da objetivação histórica do capitalismo no Brasil, a
denomina de via colonial – caracterizada pela conciliação entre atraso e o progresso sociais. Ainda que este
caráter conciliatório se aproxime do exemplo alemão (via prussiana), o Brasil se estruturara dentro do
capitalismo de forma bastante diversa: a origem da propriedade agrária brasileira se dá através da colonização do
país, o que já a coloca em situação totalmente distinta da propriedade agrária feudal alemã. Além disso, a
industrialização brasileira se dá de forma hipertardia, no período que vai dos anos 30 aos anos 60 do século XX.
533
COTRIM, Lívia. O capital atrófico: da via colonial à mundialização (Apresentação). In: CHASIN, J. A
Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social. Santo André (SP): Ad Hominen, 2000, p. VII.
534
Sobre a burguesia brasileira e sua impossibilidade de uma postura democrática como produtos históricos da
via colonial de objetivação do capitalismo no Brasil, questiona José Chasin: ―Como poderiam coabitar com a
‗soberania do povo‘, na inintegralidade de sua soberania enquanto classe do capital‘? Ou seja, como
178
Dessa forma, o que estava em jogo naquele momento, cujo governo João Goulart
representa o ponto de inflexão, era justamente a capacidade de o país lutar e sustentar um
capitalismo autônomo. Na verdade, muitos pensaram que esta autonomia já estava garantida,
inclusive autores de grande representatividade para a academia e para política econômica da
época, como o economista e ministro de Goulart Celso Furtado, que, em 1962, afirmava:
a economia de nosso país alcançou um grau de diferenciação /.../que
permitiu transferir para o país os principais centro de decisão de sua vida
econômica. /.../ O Brasil está repetindo, até certo ponto, a experiência do
Japão em decênios anteriores: a conquista da autodeterminação no plano
econômico ainda em fase caracterizada por um nível de renda per capita
típico de país subdesenvolvido.535
No entanto, a busca pela autonomia econômica foi interrompida pelo golpe que depôs
João Goulart; dando início a uma ditadura militar que reafirmou a via colonial como
plataforma do desenvolvimento capitalista brasileiro, ou seja, reafirmou a subordinação (ainda
que com ―inovações‖) ao invés de autonomia.
O período da ditadura militar expressou, por si, a continuidade da trajetória histórica
do Brasil desde a colônia: ―toda a história brasileira é ‗rica‘ em ditaduras e ‗milagres‘, e pobre
em soluções democráticas efetivas‖.536 O esquema produtivo do milagre − apoiado
ideologicamente no engodo do crescimento do bolo − teve como fundamento o rebaixamento
salarial e a consequente a miséria da população como base da própria forma de
desenvolvimento;537 demonstrando, com seu duplo fracasso (como projeto social e
econômico)538 a estreiteza de suas bases.
Destarte, retomando o processo de efetivação do capitalismo brasileiro no período
anterior ao governo Goulart e naquele que o sucede, vale questionarmos a possibilidade
dominariam materialmente, sob a soberania política do povo, se a sua própria dominação é vassala de sua
própria estreiteza orgânica e de um outro capital soberano? Portanto, se o limite de sua soberania é seu capital
limitado, o segredo de seu monopólio do poder é a atrofia de sua potência política. Isto é, a verdade do
deslimite de seu mando autárquico é a limitação de sua soberania atrófica‖. In: CHASIN, J. A esquerda e a
Nova República. In:____________. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social, p. 162.
535
FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962, p. 9.
536
COTRIM, Lívia. O capital atrófico: da via colonial à mundialização (Apresentação). In: CHASIN, J. A
miséria brasileira, 1964-1994: do golpe militar à crise social, p. V.
537
―Em termos rigorosos a estrutura de produção em que se baseia o ‗milagre‘ produz necessariamente uma
distribuição negativa para as classes subalternas. Para se realizar, o ‗milagre‘ obrigatoriamente tem de gerar a
miséria de amplas camadas da populacionais; o aviltamento da maior parte da força de trabalho empregada é a
condição de seu funcionamento‖. CHASIN, J. Conquistar a democracia pela base. In: _________. A miséria
brasileira,1964-1994: do golpe militar à crise social, p. 62.
538
―Sintetizando as duas formas de fracasso do ‗milagre‘: do ponto de vista das necessidades gerais da nação, ele
é um fracasso como projeto de organização da produção, consideradas as necessidades das classes subalternas,
numa palavra, do conjunto do povo brasileiro; é também um fracasso, ao cabo de poucos anos, quando se
consideram, a partir de 73, as exigências naturais do próprio capital: a acumulação deste é entravada pela própria
estrutura de produção que durante um certo tempo beneficiou larga e exclusivamente‖. Ibidem, p. 63.
179
histórica efetiva de sustentação de um governo como o proposto por Jango nos marcos do
capitalismo no Brasil de então. Com a impossibilidade de apoio da burguesia a um projeto
nacional-reformista e de ampliação da democracia, um projeto nacional-reformista com
participação popular somente se concretizaria através de rupturas – rupturas que João Goulart,
em nenhum momento, se mostrara disposto a intentar e que as esquerdas brasileiras não se
mostraram suficientemente preparadas e organizadas para defender.
180
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
―Para J. Goulart documentos cubanos não são importantes‖. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 31 jan. 1963.
―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 06 fev. 1963.
―JG dá entrevista admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, 17 fev. 1963.
―Goulart criticou projeto Ferrari e culpa Câmara‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev.
1963.
―Não há mais lugar para agitadores no Brasil, diz Goulart em São Paulo‖. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 05 abr. 1963.
181
―Justiça social exige reforma agrária em moldes brasileiros‖. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 06 abr. 1963.
―Goulart admite reforma ministerial e diz ser normal situação militar‖. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 14 mai. 1963.
―Jango responde carta de Lacerda sem dizer como são encampações‖. Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, 29 mai. 1963.
―Goulart fala contra os anti-reformistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1963.
―Goulart anuncia o ano da exportação‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 ago. 1963.
―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963.
―JG afirma que será inflexível‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 set. 1963.
―JG ressalta lei de remessa‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 jan. 1964.
―JG a brigadeiros: reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1964.
―Goulart lançou frente de apoio às reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06
fev. 1964.
―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964.
―JG: reformas são para defender democracia‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 mar.
1964.
―Jango afirma que não será ditador‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 mar. 1964.
―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 14 mar. 1961.
―Líder defende posição do Governo na compra das concessionárias‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 04 jun. 1963.
―Ministros militares exigem estado de sítio‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 set. 1963.
―Governo abranda tensão negando estado de sítio iminente‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
19 set. 1963.
―Ministros militares condenam Lacerda por ofensas ao País‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 01 out. 1963.
―Presidente anuncia esforço redobrado pelas reformas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09
out. 1963.
―Amaral não foi à reunião do Ministério porque sua missão já está concluída‖. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 09 out. 1963.
―Fim do monólogo‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963. Grifo nosso.
―Ademar vê plano de agitação com o comício e compra novo travesseiro para dormir bem‖.
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.
―Pedro Aleixo acusa Goulart de endossar a subversão‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16
mar. 1964.
―Goulart pede aos sargentos que respeitem a hierarquia‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31
mar. 1964.
―Juristas: ‗Novo regime é fonte de crises‘‖, Última Hora, Rio de Janeiro, 05 set. 1961.
―Jango: Mensagem de Paz Aos Brasileiros‖. Última Hora. Rio de Janeiro, 05 set.1961.
Outros documentos:
GOULART, João. Dez anos da morte de Vargas. In: BRAGA, Kenny. et al. (coord.) João
Goulart: Perfil, discursos e depoimentos (1919-1976). (Perfis Parlamentares Gaúchos).
Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do RS, 2004, pp. 245-248.
GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, Kenny. et al. (coord.) João Goulart: Perfil,
discursos e depoimentos (1919-1976). (Perfis Parlamentares Gaúchos). Porto Alegre:
Assembléia Legislativa do Estado do RS, 2004, pp. 243-244.
183
Carta de demissão enviada por João Goulart a Getúlio Vargas em 22 de fevereiro de 1954.
Documento do acervo do CPDOC, Arquivo Getúlio Vargas, Classificação: GV
c1954.02.22/1.
Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua preocupação com
relação ao regime parlamentarista (documento manuscrito). Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jgoulart/documentos/janela.asp?Path=../documentos/Mod
ulo6/&Img=ELS_carta_&Pag=3&Tt=4&Htm=&Lgn1=Carta de João Goulart enviada a
Evandro Lins e Silva, expressando sua preocupação com relação ao regime
parlamentarista. [1961].&Lgn2=(CPDOC/FGV/arquivo Evandro Lins e Silva ELS
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