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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História

Aline de Vasconcelos Silva

O PROJETO NACIONALISTA DE JOÃO GOULART:


ANÁLISE DOS DISCURSOS DE 1961 A 1964

MESTRADO EM HISTÓRIA

São Paulo
2012
2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História

Aline de Vasconcelos Silva

O PROJETO NACIONALISTA DE JOÃO GOULART:


ANÁLISE DOS DISCURSOS DE 1961 A 1964

MESTRADO EM HISTÓRIA

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em História, sob a orientação
do Prof. Dr. Antonio Pedro Tota.

São Paulo
2012
3

BANCA EXAMINADORA
4

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Antonio Pedro Tota, que abraçou meu projeto com generosidade, me
assistindo pacientemente ao longo de todo o desenvolvimento da pesquisa, com apontamentos
norteadores e estimulantes.
Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, não somente pela colaboração nas bancas de
qualificação e defesa, mas pelas aulas inspiradoras, tão importantes no meu processo de
formação, desde a graduação.
À Profª. Dra. Lívia Cotrim, também figura marcante na minha formação, que, além de
ser um exemplo como professora, generosamente, estimulou a iniciativa desta pesquisa e
colaborou com o seu desenvolvimento, inclusive participando das bancas de qualificação e
defesa.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo suporte
financeiro que viabilizou a execução desta pesquisa.
Ao Sr. Clodesmidt Riani, que me recebeu com extrema atenção e disponibilizou seu
acervo particular para consulta.
Aos professores e colegas do Curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André,
onde fiz minha graduação, em especial aos professores, Ivan Cotrim, Terezinha Ferrari,
Carlos Alberto Cordovano Vieira, além de Lívia e Rago.
Aos amigos que tornaram a rotina de aulas muito mais prazerosas e produtivas −
amigos que admiro e com os quais criei laços de afeto, Eduardo Gramani Hipólide, Felipe
Henrique Gonçalves, Leandro Cândido, Mariana Barbedo e Vladmir Luis. E àqueles que, há
anos, me acompanham, de perto ou à distância, Danilo Amorim, Luiz Diogo Soglia, Roberto
Rodrigues e Tatiane Britos.
Um agradecimento especial aos meus pais, José Carlos e Maria Fátima, que sempre
me apoiaram com generosidade. Foram o suporte, o carinho e a paciência dos dois que
suavizaram minhas dificuldades e me permitiram seguir na direção escolhida. Também à
minha sobrinha, Laurinha, que tantas vezes me devolveu o sorriso nos meus momentos de
cansaço.
E à pessoa a quem nenhum agradecimento que eu possa aqui escrever fará justiça; a
quem me estimulou e apoiou de todas as maneiras possíveis, desde o suporte técnico até o
5

emocional, me apontando caminhos e possibilidades e me auxiliando com amor e enorme


paciência em todas as horas, inclusive e principalmente nas mais tensas: Rodrigo Pereira
Chagas. Sua ajuda e companheirismo foram fundamentais, não apenas neste trabalho, mas na
minha vida.
6

RESUMO

O objetivo central desta pesquisa é a análise dos discursos de João Goulart,


pronunciados entre 07 de setembro de 1961 e 31 de março de 1964 (período em que ocupou a
Presidência da República), buscando extrair suas especificidades conceituais, suas
proposições e seus limites, dentro do processo histórico em que está inserido, explicitando o
vínculo orgânico existente entre as propostas e os apelos de tal discurso e um momento da
história brasileira marcado por intensas movimentações políticas e debates sobre os rumos do
país.
Partindo da totalidade dos discursos reunidos, identificamos os principais temas
abordados, em torno dos quais são articuladas as propostas mais relevantes defendidas por
Goulart em seu governo. Tais temas estão agrupados em três eixos: emancipação econômica e
reformas de base, com destaque para a reforma agrária; política externa independente nas
relações exteriores entre Brasil e Estados Unidos e entre Brasil e América Latina; e
instabilidade da ordem legal.

Palavras-chave: João Goulart; reformas de base; nacionalismo, política externa


independente.
7

ABSTRACT

Central objective of this research is an analysis of speeches of João Goulart,


articulated between September 07, 1961 and March 31, 1964 (time when he was the President
of the Republic), searching to extract its conceptual specificities, propositions and bounds,
within of the historical process which he represented, indicating the existing organic bond
between the propositions and appeals of such speech and the moment of intense political
movements and debates on country directions of the Brazilian history.

Starting by the entirety of the speech collection, we identify the main topics discussed,
around which Goulart's most relevant propositions defended at the time of his government.
Such themes are grouped among three axes: economic emancipation and basic reforms, with
an emphasis on land reform; independent policy for international relations between Brazil and
United States and Brazil and Latin America; and unstableness of legal order.

Keywords: João Goulart; basic reforms; nationalism, independent foreign policy.


8

SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
1. JOÃO GOULART: EMANCIPAÇÃO ECONÔMICA E REFORMAS ............................. 19
1.1. Nacionalismo e Trabalhismo: Vargas e o PTB ............................................................. 26
1.2. Emancipação Econômica ............................................................................................... 32
1.2.1. Lei da remessa de lucros ....................................................................................... 34
1.2.2. Reformas de Base .................................................................................................. 42
1.2.2.1. Reforma Agrária ....................................................................................... 56
2. RELAÇÕES EXTERIORES: política externa independente e a tentativa
de formação de um bloco latino-americano ......................................................................... 84
2.1. Relações entre Brasil e Estados Unidos ........................................................................ 85
2.1.1. AMFORP e ITT: as encampações de Brizola e as negociações
financeiras com os Estados Unidos ..................................................................... 87
2.1.2. A questão de Cuba e a Aliança para o Progresso ............................................. 106
2.2. Relações entre Brasil e América Latina ...................................................................... 126
3. JOÃO GOULART E A INSTABILIDADE DA ORDEM LEGAL................................... 133
3.1. Posse na presidência, emenda parlamentarista e plebiscito ......................................... 135
3.2. Democracia e mobilização popular ............................................................................. 149
3.3. Pedido de decretação de estado de sítio ...................................................................... 154
3.4. Últimos meses do governo Goulart ............................................................................. 158
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................. 180
9

INTRODUÇÃO

O objetivo central desta pesquisa é a análise dos discursos de João Goulart,


pronunciados entre 07 de setembro de 1961 e 31 de março de 1964 – período em que ocupou
a Presidência da República1 – e, partindo desta análise, buscar a ampliação das reflexões
sobre o complexo contexto histórico brasileiro no período imediatamente anterior ao golpe
militar de 1964.
A escolha do objeto, bem como do recorte temporal, considerou o fato de que ainda
não há um estudo que tenha como objeto central os discursos do presidente João Goulart,
apesar de seu governo ter sido deposto por um golpe de Estado que mudou claramente a
―direção‖ da história nacional. Além disso, apesar do grande número de trabalhos referentes
ao período que antecedeu o golpe militar de 1964 no Brasil, não existe um consenso entre os
pesquisadores e, muitas vezes, nem mesmo convergência dos fatores por eles apontados no
que diz respeito às análises das propostas apresentadas pelo governo João Goulart ou as
motivações, sejam elas políticas ou econômicas, que teriam engendrado sua derrubada.
Também não é nossa pretensão criar um consenso sobre esta problemática, mas apenas
contribuir para o enriquecimento do debate.
Ainda que não seja o propósito deste trabalho uma análise pormenorizada e
comparativa das várias interpretações sobre o tema proposto, nos momentos, em que forem
necessárias para uma melhor compreensão dos assuntos abordados pela nossa pesquisa, serão
apontadas algumas das principais diligências já realizadas, explicitando a distinção, caso ela
exista, de nosso posicionamento em relação a estas.
No entanto, para esta introdução, optamos por realizar uma problematização inicial em
torno da teoria que balizou hegemonicamente a temática de que faz parte o período aqui
estudado: a ―teoria do populismo‖.

O populismo: uma problematização inicial

Desde o período em que os discursos analisados nessa pesquisa foram realizados, até o
presente momento, várias foram as investidas que se debruçaram sobre as problemáticas que
envolvem o governo João Goulart e sua queda. Ainda que hajam divergências variadas, as
análises desenvolvidas até o começo dos anos 1990, com poucas exceções, tiveram por base a

1
Neste período, João Goulart sempre ocupou a função de chefe de Estado, embora de sua posse até janeiro de
1963, não tenha sido o chefe do governo; pois vigorava então um sistema híbrido de parlamentarismo e
presidencialismo, no qual coube ao Primeiro Ministro, indicado pelo presidente, mas submetido à aprovação do
Congresso Nacional, a chefia do governo da República.
10

chamada ―teoria do populismo‖. Ainda que recentemente esse referencial teórico venha sendo
superado por alguns pesquisadores,2 o populismo permanece como uma referência teórica de
grande relevância.
Como nos mostra Rubem Barboza Filho,3 a noção de populismo, seja como categoria,
seja como teoria, ―tornou-se o caminho obrigatório para a apreensão das razões do Estado,
dos partidos, dos políticos, das classes, dos setores de classe, acabando por se transformar
no patrimônio teórico por excelência dos cientistas sociais brasileiros sobre esta fase da vida
nacional‖.4 O historiador Jorge Ferreira, em publicação mais recente, aponta no mesmo
sentido, ao afirmar que:
Para os professores que formam os nossos filhos, a política brasileira e as
relações entre Estado e a classe trabalhadora durante o período de 1930 a
1964 encerram um ―senso comum‖, no sentido gramsciano do termo,
nomeado de populismo.5

Tendo como pano de fundo um amplo debate nas ciências sociais sobre a ―mudança
social‖ na América Latina,6 bem como o debate sobre seu desenvolvimento econômico,
surgem os primeiros esforços para compreender esse período complexo da realidade brasileira
que antecedeu o golpe militar de 1964, procurando explicar suas origens e causas.
Muitas das pesquisas realizadas afirmaram o golpe como derivado da ―crise do
populismo‖ ou do ―pacto populista‖, que teria predominado na política brasileira desde 1930,
com Getúlio Vargas, compondo uma aliança de classes. Desta forma, a crise do ―pacto
populista‖ teria sido desencadeada pela sinalização de uma tendência nas ―massas‖, até então
mantidas sob o controle das lideranças populistas, em avançar os limites estabelecidos pela
classe dominante neste ―pacto‖.
Iniciado em 1930, o pacto populista teria se estendido até seu colapso, em 1964, e
envolvido personagens de diferentes tradições políticas – todos reduzidos à categoria de
―populistas‖ –, tais como: Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Eurico Gaspar Dutra, Carlos
Lacerda, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Ou seja,

2
Um exemplo são os pesquisadores cujo esforço nesse sentido pode ser encontrado na coletânea organizada por
Jorge Ferreira: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2001.
3
Autor, já nos anos 1980, da crítica de maior envergadura de que tomamos conhecimento sobre as análises do
populismo.
4
BARBOZA FILHO, Rubem. Teoria do Populismo: uma revisão. Belo Horizonte: UFMG, dissertação de
mestrado, 1980, p.174.
5
FERREIRA, J. O populismo e sua história. In: _______________ (org.). Op. cit., p. 81.
6
MARSAL, Juan. Cambio social en América Latina: crítica de algunas interpretaciones dominantes en las
ciencias sociales. Buenos Aires: Solar/Hachette, 1965.
11

Além do desconhecimento das peculiaridades e da anulação de


historicidades, projetos políticos que fincaram tradições políticas, e que
ainda hoje se manifestam na sociedade brasileira, como o trabalhismo
petebista e o liberalismo udenista, dissolvem-se e confundem-se em um
mesmo rótulo: tratar-se-ia do populismo.7

É importante notar que o quadro teórico sobre o qual a ―teoria do populismo‖ foi
estabelecida é amplo e contraditório: uma mescla entre o liberalismo e o marxismo. Desta
forma, não é estranho que Rubem Barboza Filho afirme que o populismo ―não oferece um
eixo fundamental de análise e de interpretação‖, redundando em uma abordagem inadequada
de uma série de questões concretas do período abarcado pelo conceito.8 Sendo assim, o termo
―período populista‖ tanto é utilizado para imputar um caráter antidemocrático aos governos
daquele momento histórico, como para justificar um colapso na forma de dominação própria
da passagem de uma ―sociedade tradicional‖ para uma ―sociedade moderna‖:
De fato, para a teoria do populismo, a democracia, o partido e o líder
populista são em conjunto ou cada um per si o feiticeiro nefasto, que executa
a mágica insuperável de atar as massas aos setores dominantes. Isto é, no
quadro das hegemonias impossíveis, acabam por ser as massas, uma vez que
reconhecem a dominação constituída, as responsáveis pela sustentação do
9
status quo dominante.

Na verdade, não existe ―uma‖ teoria do populismo que sirva de base aos vários
autores, mas sim um núcleo teórico e metodológico comum, que é apropriado de forma
variada pelos diferentes autores. Além disso, foram se acumulando, ao longo dos anos,
interpretações e revisões sobre o populismo.
Como indica o historiador Jorge Ferreira, antes de o populismo entrar e se firmar no
debate acadêmico no Brasil, ele já havia surgido, em 1945, como imagem politicamente
desmerecedora que as elites liberais fizeram de Vargas, ―ressaltando a demagogia, a
manipulação, a propaganda política, a repressão policial‖:10
A partir daí, e até 1964, as oposições liberais, com amplo acesso aos meios
de comunicação, delinearam, com maior nitidez, imagens que aludiam à
cooptação política dos sindicatos, à corrupção estatal e à demagogia
eleitoral, todas patrocinadas pelos trabalhistas.11

Já enquanto categoria acadêmica, a origem do populismo guarda ligações com a


―teoria da sociedade massa‖, desenvolvida inicialmente na Europa. No entanto, sua ascensão à

7
FERREIRA, J. Introdução. In: ____________ (org.). Op. cit., p. 11.
8
BARBOZA FILHO, R. Op. cit., p. 176.
9
CHASIN, José. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: Revista Ensaio, n. 17/18, 1989, p. 81.
10
FERREIRA, J. Introdução. In: ____________ (org.). Op. cit., p. 8.
11
Ibidem, p. 9.
12

teoria explicativa da política brasileira está vinculada, principalmente, à modernização do


pensamento sociológico latino-americano, em especial ao desenvolvido na Argentina, cujos
principais representantes são Gino Germani e os membros de sua equipe: Torcuato Di Tella e
Jorge Graciarena.
O pensador italiano refugiado na Argentina, Gino Germani, propõe um projeto de
modernização para a sociologia latino-americana apoiado em instituições e autores que
ocupavam posições estratégicas no cenário das ciências sociais latino-americana,12
procurando estabelecer uma rede de colaboração internacional. No Brasil, essa rede se
expressou principalmente com o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, no Rio de Janeiro, e,
em São Paulo, com o grupo que ficou conhecido como ―Escola Paulista‖, cujo principal
representante foi Florestan Fernandes.13 E apesar de os outros autores brasileiros terem
utilizado cientificamente o termo anteriormente,14 será, principalmente, pelo grupo que se
organiza na Universidade de São Paulo que a teoria do populismo ganhará maior visibilidade
e se aprofundará no país:
A primeira fase [da ―teoria do populismo‖] cobriria a produção inicial de
Weffort, Ianni, Leôncio M. Rodrigues e outros. O segundo momento teria
sido mais desenvolvido por Weffort e Alvaro Moisés, enquanto o último
receberia recorte decisivo com Francisco de Oliveira e Régis de Castro
Andrade.15

Francisco Weffort será o mais conhecido dentre os teóricos do populismo. Em artigos


publicados já na década de 1960, e que posteriormente comporiam o livro O populismo na
política brasileira,16 destacou a manipulação e dominação exercidas pelos líderes populistas
demagogos sobre a classe trabalhadora recém constituída e na qual os princípios democráticos
ainda não haviam fincado raízes. Weffort será o responsável por constituir o núcleo-base de
referências para as análises posteriores do populismo, tendo como um dos pontos principais a

12
―En todos los casos, se trata de nombres de instituiciones y de personas con algún grado de compromisso con
un modo de entender la sociología, conocido con el nombre de 'sociologia científica'. Muchos de esos nombres
ocupaban entonces espacios estratégicos en la red internacional de instituciones consagradas a promover el
desarrollo de las ciencias sociales en la región, especialmente UNESCO, FLACSO, CLAPCS, CEPAL‖. In:
BLANCO, Alejandro. Razón y modernidad: Gino Germani y la sociologia en la Argentina. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2006, p. 239. Como aponta o autor, em torno da Revista Latinoamericana de Sociología, organizada
por Germani, estão pessoas como: Luiz de Aguiar Costa Pinto, Orlando Fals Borda, Florestan Fernandes, Peter
Heintz e José Medina Echevarria.
13
Ver: BLANCO, A. Op. Cit., pp. 187-252.
14
Autores do chamado Grupo de Itatiaia, o qual deu origem ao Instituto Superior de Estudo Brasileiros (ISEB)
utilizaram o termo em textos dos anos 1950 e início dos 1960. Ver: GOMES, Angela de Castro. O populismo e
as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito; e FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o
populismo na política brasileira. In: FERREIRA, J. Op. cit., pp. 17-124.
15
BARBOZA FILHO, R. Op. cit., pp. 176-177.
16
WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. A primeira
edição data de 1978, embora muitos dos artigos tenham sido escritos ainda nos anos 1960.
13

reedição de procedimentos liberais, mas tomando como referência elementos do marxismo.


Dessa forma,
Reedita-se o procedimento liberal de eliminação das classes do horizonte
teórico, embora esta eliminação busque se fundamentar no próprio
marxismo. Da mesma forma que Arendt e Weber, afirma-se a classe no
econômico para negá-la no social e político. A argumentação reducionista
aparentemente mantém esta negação no interior da teoria marxista,
afirmando que a uma classe em formação corresponderia um comportamento
político imperfeito, ou seja, de massa.17

A mesma tendência é encontrada em outra importante referência sobre o tema,


Octavio Ianni. Em O colapso do populismo,18 escrito entre 1966 e 1967, Ianni, ao mesmo
tempo em que enfatiza as contradições geradas pelo desenvolvimento urbano-industrial
brasileiro e pela inserção das ―massas‖ no âmbito político – que acabam por manifestar
interesses opostos aos da classe dominante –, ressalta também o caráter conservador do golpe
militar, que teria sido desfechado contra as reformas e a ampliação de direitos às camadas
populares.
Neste livro, a categoria populismo não impede o autor de diferenciar os ―projetos de
desenvolvimento‖19 do período da industrialização brasileira, na medida em que aborda a
problemática em seu viés econômico. Contudo, o autor mantém a posição sobre a política já
estabelecida nos textos de Weffort.
Ao logo do tempo − e ao se tornar uma análise corrente nas ciências sociais − o
populismo acabou por não reter sua significação teórica inicial; ou seja, ―quanto mais se
difundiu e dominou, tanto menos significação foi capaz de guardar, a ponto de hoje animar
sem ressalvas desde os editoriais da grande imprensa até os mais modestos folhetins dos mais
bisonhos remanescentes da esquerda extralegal‖.20 Ao institucionalizar-se, compondo a
explicação acadêmica do pré-64, a ideia de populismo realiza um movimento de pinça: por
um lado encontrou, bases no senso comum dos anos 1940, como nota Ferreira; e, por outro,
ao ser alçada à teoria, sedimentou ―na dimensão imaginária de gerações de alunos de cursos
de níveis médio e superior na área das ciências humanas, a ideia de que teria existido um
‗populismo na política brasileira‘‖.21

17
Ibidem, p. 186.
18
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
19
Ianni traça diferenças fundamentais do projetos desenvolvimentistas decorrentes de Getúlio Vargas (modelo
de substituição de importações) e Juscelino Kubitschek (associado ao capital estrangeiro).
20
CHASIN, J. Op. cit., p. 83.
21
FERREIRA, J. Introdução. In: ___________. Op. cit., p. 10.
14

Nesta construção, que transita entre o senso comum e a academia, ―o político populista
/.../ surge como um personagem que agiria de má-fé, mentindo e enganando o povo, sobretudo
nas épocas de eleições, prometendo tudo e nada cumprindo‖.22 Em uma ótica mais ampla,
cria-se ―um cenário de ‗populistas‘ e ‗pelegos‘, eis a imagem que temos da política brasileira
entre 1930 e 1964‖.23
Daí decorre uma série de desdobramentos lamentáveis que, no limite e
paradoxalmente, podem justificar a supressão do voto em nome da ―boa
política‖. Desta forma, o princípio da classificação, que identifica a categoria
na experiência brasileira, acabou por ser associado a um critério de valor que
hierarquiza e condena in totum o populismo e tudo que ele possa adjetivar.24

Dá-se continuidade, desta forma, a uma velha forma de tratar a história dos
trabalhadores no Brasil, diagnosticando a origem de todos os males do país em ―uma relação
desigual, destituída de reciprocidade e interlocução‖, pautada em uma classe trabalhadora
débil e uma sociedade civil gelatinosa; ao mesmo tempo em que se atrela a ―um certo tipo de
marxismo que defendia um modelo de classe trabalhadora, uma determinada consciência que
lhe respondia e um caminho, único e portanto verdadeiro‖.25
Enquanto categoria analítica, a teoria se estabeleceu como tipificação, através da qual
as pesquisas sobre o período, na maior parte das vezes, acabam engessadas pelas
características básicas que definem o paradigma do populismo. Dessa forma, ao identificar e
classificar o objeto pesquisado ao paradigma do populismo, inviabiliza o desvendamento da
particularidade do discurso dos vários agentes que compuseram o período. Em suma, tende a
afirmar a universalização da categoria e não a apreender a lógica do objeto analisado.
O fundamental a ser destacado é que o fato de apontarmos uma série de limitações à
categoria ou ―teoria‖ do populismo, não significa invalidar as contribuições dos autores que
com ela trabalharam. Não podemos ignorar a enorme contribuição de Octavio Ianni,
Francisco de Oliveira, René Dreifuss, Caio Navarro de Toledo ou Pedro Cezar Dutra Fonseca.

Busca de fontes e análise dos discursos

Um dos indícios de que a teoria do populismo se sobrepôs, em boa medida, às análises


da especificidade do processo histórico do pré-64 e do próprio golpe é o fato de haver poucos
estudos sobre o governo João Goulart − quadro que vem mudando progressivamente nos

22
Ibidem, p. 8.
23
Ibidem, p. 10
24
GOMES, Angela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um
conceito. In: FERREIRA, J. Op. cit., p. 21.
25
FERREIRA, J. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: _______________. Op. cit., p. 62.
15

últimos anos − e não haver nenhum que se concentre no resgate específico dos discursos do
ex-presidente. Tanto é assim, que a documentação que constitui o conjunto integral dos
discursos ainda não foi sequer compilada.26
Procurando contribuir com estudos que venham a preencher esta ausência na
historiografia, nossa pesquisa busca extrair do discurso de João Goulart suas especificidades
conceituais, suas proposições e seus limites, dentro do processo histórico em que está
inserido; para, dessa forma, expor o vínculo orgânico existente entre as propostas e apelos de
tal discurso e um momento da história brasileira marcado por intensas movimentações
políticas e debates sobre os rumos do país. Sendo assim, ao resgatar e analisar um conjunto
significativo de discursos, a pesquisa não busca apenas apresentar e elencar as ideias
propagadas isoladamente, mas, principalmente, contribuir para a problematização do
momento de inflexão vivido naquele período.
Com o conjunto documental reunido,27 foi analisada a totalidade dos documentos
coletados, com o intento de extrair as categorias que sintetizassem a posição do Goulart e
fornecessem a base de seu ideário. Nossa posição, portanto, foi a de desenvolver uma análise
imanente do discurso, visando revelar os conteúdos específicos do ideário de João Goulart,
em sua articulação e lógica próprias.
Tal procedimento constitui um passo imprescindível para a efetivação de um
adensamento analítico da gênese histórica e função social do ideário em questão;28 uma vez
que, perscrutar a gênese histórica do discurso é compreender os fundamentos concretos dos

26
Em nosso esforço para a constituição de uma base documental suficiente para a análise sistemática do período
e para a composição de um material que pudesse ser aproveitado por estudos posteriores, foram utilizados
documentos coletados em diferentes fontes: publicações oficiais da Presidência da República na época (pouco
divulgadas e dispersas em diferentes acervos), discursos e entrevistas publicados em jornais ou revistas do
período e/ou em publicações posteriores (como as de Kenny Braga, Carlos Castello Branco, Jorge Ferreira e
Angela Castro Gomes), além de manuscritos. Para esta compilação foram de fundamental importância o contato
com os acervos da Biblioteca de Presidência da República, em Brasília, do Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), pertencente à Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, do
Centro de Memória Clodesmidt Riani, em Juiz de Fora, e do acervo do jornal Correio da Manhã, no Arquivo
Público do Estado de São Paulo.
27
Ainda que não tenha sido possível reunir a totalidade dos discursos de Goulart, não há dúvida de que os mais
de 180 discursos analisados, além da documentação secundária, compuseram uma amostragem significativa para
execução da pesquisa.
28
Este tripé analítico – análise imanente, gênese histórica e função social – compõe o que Lukács chamou de
pesquisa genética: ―devemos tentar pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que
condições estas formas fenomênicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas [...] se quisermos
compreender os fenômenos em sentido genético, o caminho da ontologia é inevitável, e que se deve chegar a
extrair das várias circunstâncias que acompanham a gênese de um fator qualquer os momentos típicos
necessários para o processo‖. In: HOLZ, Hans Heinz, et all. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 1969, pp. 13-14. Ainda sobre o tema, ver: LUKÁCS, Georg. El asalto a la razón. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Economica, 1959. E, para um debate mais aprofundado da problemática metodológica ver: CHASIN, J.
Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
16

quais ele é expressão ideológica. Por outro lado, resgatar a função social desta formação
ideológica nos permite ―identificar a perspectiva histórica que o pensador em questão abraça,
isto é, a direção − progresso, conservação ou retrocesso − para o qual apontam as formulações
por ele propostas‖.29
Assim sendo, o fenômeno ideológico não será tratado como uma falsa consciência,
mas sim, como uma expressão do pensamento voltada para a ação do indivíduo. Também é
importante ressaltar que identificamos a ideologia por sua função social e não pela qualidade
de seu discurso. O fato de um dado discurso ser falso ou verdadeiro não o impede de cumprir
funções sociais, de ser ―veículo de conscientização e prévia ideação da prática social dos
homens‖.30 Dentro desta concepção lukacsiana, a praxis política é um dos modos da ideologia
em termos restritos: ―o âmbito, pois, da política é aquele que afeta e envolve a globalidade da
formação social‖.31
Conforma-se assim que, tanto a pesquisa genética do ideário de João Goulart, quanto a
compreensão de tal ideário como uma ideologia, ambos nos sentido lukacsiano,32 estão
sustentados pela compreensão de que as diferentes formas de pensamento são expressões
conscientes – reais ou ilusórias – de suas verdadeiras relações no tecido social, ―brotam
sempre do terreno comum do intercâmbio social‖33
A falsidade ou correção das representações não são motivadas, assim, por
mecanismos puramente ideais, inerentes à própria constituição da esfera
subjetiva, mas derivam da potência ou dos limites do modo pelo qual os
homens produzem seus meios de vida, ou seja, os limites à devida apreensão
34
dos nexos constitutivos da realidade são postos socialmente.

Considerando o discurso político como ―uma dada forma de conscientização de


determinados problemas concretos e a indicação de uma solução para eles‖, apontando para
uma determinada direção nas práticas políticas, ―independentemente do grau de falsidade de
sua concepção‖ ou de seu possível caráter manipulatório, entendemos que a análise do

29
PRADES, Maria Dolores. Ideologia e política na obra de Oliveira Vianna. Dissertação (Mestrado em Ciência
Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP),
1991, p. 14.
30
VAISMAN, Ester. A ideologia e sua determinação ontológica. In: Revista Ensaio, n. 17/18, 1989, p. 421.
31
Ibidem, p. 425.
32
Trata-se de concepções do ―velho‖ Lukács, ou seja, o teórico que faz o resgate do caráter ontológico da obra
marxiana. No mesmo sentido, incorporamos a recuperação do ―estatuto ontológico‖ marxiano realizada por José
Chasin, em Marx - estatuto ontológico e resolução metodológica.
33
CHASIN, José apud VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do pensamento. In: Revista Ensaios Ad
Hominem, Tomo I - dossiê Marx. Santo André: Ad Hominem, 1999, p. 262.
34
VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do pensamento. In: Revista Ensaios Ad Hominem, Tomo I - dossiê
Marx. Santo André: Ad Hominem, 1999, p. 262.
17

discurso estabelecida nesse trabalho contribuirá para a apreensão dos ―eixos de um dos pólos
das lutas travadas neste período‖.35
A compreensão da determinação social do pensamento, e de seu papel na
atividade humana, além de esclarecer a importância de apreender aquelas
concepções, ilumina os problemas básicos que se põem para uma análise de
discurso, indicando, desse modo, o caminho a ser percorrido.36

Neste procedimento, recorremos constantemente às citações, por vezes longas, dos


discursos de João Goulart, a fim de evitar a deturpação do discurso realmente emitido e a
imputação de concepções alheias àquelas presentes no conjunto dos discursos de Goulart.

Sumariamente apontada a base teórico-metodológica a qual está vinculada a pesquisa,


é importante destacar que, como critério para a organização do trabalho, partimos da
totalidade dos discursos reunidos, identificando os principais temas abordados – em torno dos
quais são articuladas as propostas mais relevantes defendidas por Goulart em seu governo.
Agrupamos tais temas em três eixos e para cada um deles foi dedicado um capítulo.
O primeiro capítulo aborda os dois elementos que formam o núcleo central das
proposições de João Goulart para o governo do país: 1) a emancipação econômica nacional,
como objetivo, e 2) as reformas de base, que seriam o meio para atingir o primeiro, ao mesmo
tempo em que também contemplariam a ampliação dos direitos sociais. Neste capítulo,
procuraremos apontar as bases do pensamento expresso por Goulart – fundamentalmente o
nacionalismo varguista e o trabalhismo do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – bem como
suas propostas de reformas, relacionando-as às análises conjunturais que faz sobre o país. Ao
abordar as reformas, não teremos como objetivo uma análise detalhada de cada proposta ou
do impacto que poderia ser produzido no caso de sua concretização; mas apenas explicitar o
conteúdo do programa reformista, defendido por João Goulart em diversas ocasiões, e
destacar o seu posicionamento sobre elas. Vale apontar que, entre todas as chamadas reformas
de base, foi dado maior destaque para a reforma agrária, visto a relevância do espaço que ela
ocupa na documentação analisada e a repercussão que provocou na época.
No capítulo seguinte, apontaremos o papel que o governo João Goulart atribuía às
relações internacionais do Brasil. Embora seja necessário comentar a chamada política
externa independente, mantida pelo país ao longo do governo Jango, o principal foco do

35
COTRIM, Lívia C. de A. O ideário de Getúlio Vargas no Estado Novo. Dissertação de Mestrado em Ciência
Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), 1999,
pp. 22-23.
36
Ibidem, p. 22.
18

capítulo estará nas relações entre Brasil e Estados Unidos e nas relações entre o Brasil e os
demais países latino-americanos. Este foco se justifica pela documentação encontrada (os
discursos realizados ao longo das viagens presidenciais aos Estados Unidos e México, em
1962, e ao Chile e Uruguai, em 1963) e pelo vínculo que estas relações tinham com as
propostas do governo Goulart. Como principais temáticas do capítulo estão: a postura dos
Estados Unidos em resposta ao posicionamento brasileiro, no que se refere à encampação de
empresas americanas e ao comunismo cubano, e as tentativas brasileiras de acordos
financeiros e de articulação com os países latino-americanos.
Já no último capítulo, trataremos da ―instabilidade da ordem legal‖ que rondou o
governo de João Goulart desde os momentos turbulentos que antecederam sua posse até a
efetivação do golpe que o depôs em 1º de abril de 1964. Neste bloco, daremos destaque ao
posicionamento de Goulart nos vários episódios, a saber: emenda parlamentarista; plebiscito
para a volta do presidencialismo; solicitação do estado de sítio; acusações de instituição de
uma ―república sindical‖, ou até mesmo de comunismo e golpismo. Explicitando a posição de
Goulart, buscaremos dialogar com algumas das análises já realizadas sobre esses episódios,
sem termos, contudo, a pretensão de reconstituir todos os fatos que compunham e
influenciavam a conjuntura daquele momento.
Nas considerações finais, retomaremos os principais apontamentos e análises feitos ao
longo dos capítulos, a fim de reuni-los de modo conciso, e problematizar o momento de
inflexão que o governo de João Goulart representou na história brasileira.
19

1. JOÃO GOULART: EMANCIPAÇÃO ECONÔMICA E REFORMAS

Os diversos trabalhos referentes ao período que antecedeu o golpe militar de 1964 no


Brasil, apesar de explicitarem inúmeras divergências, muito frequentemente fazem referências
à importância e à complexidade apresentadas pela conjuntura brasileira na década de 1960,
seja nas esferas política e econômica, como na movimentação social.
Como coloca Dênis de Moraes,
A passagem dos anos 50/60, com efeito, nos revela tempos de euforia
desenvolvimentista, de acelerada politização da sociedade, de amplos
debates sobre a eficácia revolucionária da arte, de exploração de
reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais, de sonhos com uma Sierra
Maestra que nos livrasse do imperialismo, do latifúndio e da miséria.37

Ou ainda, como coloca o cientista político Caio Navarro de Toledo, sobre a intensa
movimentação do início da década de 1960,
O golpe estancou um rico e amplo debate político e ideológico que se
processava em órgãos governamentais, partidos políticos, associações de
classe, entidades culturais, revistas especializadas (ou não), jornais etc.
Assim, nos anos 60, conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e
comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam
politicamente em defesa de seus projetos sociais e econômicos.38

Toledo aponta como fatores componentes da riqueza e singularidade do período as


diferentes propostas políticas formuladas e defendidas no pré-64 e a grande difusão que
obtinham tais ideias em diferentes meios de comunicação; as inovações do cinema novo; a
mobilização dos movimentos estudantis e sindicais; e a organização dos trabalhadores rurais
nas Ligas Camponesas ou, a partir de 1962, em sindicatos rurais; concluindo, com a
constatação de Roberto Schwartz de que, ―no pré-64, o Brasil começava a ficar
‗irreconhecivelmente inteligente‘‖.39
Internacionalmente, a agitação também era constante: a Guerra Fria polarizava as
posições dos Estados nacionais; a Revolução Cubana se consolidava com o apoio soviético; e
o projeto da ―Aliança para o Progresso‖, dos Estados Unidos, buscava aproximação com os
países latino-americanos na tentativa de impedir a influência soviética e a eclosão de novos
movimentos revolucionários.

37
MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64: vinte e cinco anos depois, as forças populares repensam seus
mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1989, p. 24.
38
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, D. A.; RIDENTI, M;
MOTTA, R. P (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois. (1964-2004). Bauru (SP): Edusc,
2004, p, 69.
39
Ibidem, p. 19.
20

Quando, em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renuncia à presidência da república,


uma sequência de vários dias em que as capas dos jornais de maior circulação do Brasil
vinham destacando as notícias relacionadas ao tenso ambiente internacional é interrompida.
Manchetes sobre a corrida nuclear entre Estados Unidos e União Soviética, sobre as tensões
em torno da recente construção do muro de Berlim, ou ainda sobre o acirramento do conflito
pela libertação da Argélia, cedem seu lugar de destaque à política brasileira, percebendo-se a
grave crise que se abria com a saída de Quadros. Afinal, renunciava o presidente brasileiro
eleito com quase 6 milhões de votos (cerca de 48% do total) e empossado há menos de 8
meses. E ainda havia um agravante: o vice-presidente, João Goulart, além de estar fora do
país, em visita a China comunista, era alvo de uma conspiração liderada pelos ministros
militares para que não assumisse seu cargo na Presidência da República.
Contra João Goulart, pesava sua história como líder do Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) e, principalmente, sua passagem como Ministro do Trabalho do segundo governo de
Getúlio Vargas, de quem era grande admirador e a quem considerou um ―estadista que
empenhou a própria vida para conter as terríveis forças do obscurantismo e para que
pudéssemos prosseguir na dura caminhada da libertação do nosso povo e da nossa Pátria‖.40
Aproximando-se de Vargas desde 1945, João Goulart havia trilhado sua carreira
política no PTB, elegendo-se, em 1947, deputado estadual no Rio Grande do Sul, em 1950,
deputado federal e, em 1952, presidente do PTB. Com a volta de Getúlio Vargas, como
presidente eleito em, 1951 e após turbulências entre lideranças sindicais grevistas e o
Ministério do Trabalho, Goulart assume a pasta do Trabalho em junho de 1953, onde
permanece até fevereiro de 1954.
Sua atuação como Ministro do Trabalho, embora não muito duradoura, foi marcante
na formação de sua imagem junto aos diversos setores da política brasileira. Sua disposição
em receber e dialogar com as lideranças sindicais e sua iniciativa de conceder um aumento de
até cem por cento ao salário mínimo – que, na realidade, fora apenas suficiente para cobrir a
defasagem de anos sem aumento real – incomodaram setores conservadores e militares, que
chegaram a expressar sua insatisfação num documento que ficou conhecido como ―Manifesto
dos Coronéis‖. Diante da pressão dos militares e dos ataques de parte da imprensa, sobretudo

40
GOULART, João. Dez anos da morte de Vargas. In: BRAGA, Kenny. et al. (coord.) João Goulart: Perfil,
discursos e depoimentos (1919-1976). (Perfis Parlamentares Gaúchos). Porto Alegre: Assembléia Legislativa do
Estado do RS, 2004, p. 245. Discurso escrito no exílio por ocasião dos dez anos da morte de Getúlio Vargas (24
de agosto de 1964) e encaminhado ao líder do PTB na Câmara dos Deputados, Doutel de Andrade.
21

de Carlos Lacerda,41 João Goulart deixou o cargo de ministro – o que não impediu a validação
do aumento do salário mínimo por ele proposto.
Em 1955, apesar da campanha contrária, que procurou identificá-lo com o peronismo
argentino e com a possibilidade de formação de uma ―república sindical‖,42 Jango é eleito
vice-presidente da República na chapa de Juscelino Kubitschek – que pertencia ao Partido
Social Democrático (PSD) – e, durante seu mandato, exerceu importante papel de mediação
entre os movimentos sindicais e o governo. Nas eleições presidenciais seguintes, no ano de
1960, Goulart se reelegeu vice-presidente, mas, desta vez, separado do candidato a presidente
de sua chapa, o general Henrique Teixeira Lott (do PSD). Jânio Quadros (do Partido
Democrata Cristão – PDC) foi o presidente eleito nessa ocasião, mas renunciará com poucos
meses de governo, alegando que ―forças terríveis‖ teriam se levantado contra ele. Anos mais
tarde, o próprio Jânio assumiria sua real intenção de voltar à presidência com poderes totais,
contando com o apoio de uma manifestação popular, que na verdade não ocorreu. 43 Como
lembra Celso Furtado,
Quadros parece haver excluído a hipótese de que as forças da direita o
abandonassem em época de aguda intranquilidade social, tanto mais que a
opção era ter, como presidente, João Goulart, político comprometido com o
que lhes parecia ser o pior da herança getulista.44

Diante da renúncia, os ministros militares, liderados pelo Ministro da Guerra,


Marechal Odílio Denys, passam a atuar contrariamente à posse constitucional de Goulart e
divulgam uma nota conjunta em que afirmam ―a absoluta inconveniência, na atual situação,
do regresso ao país do Vice-Presidente, sr. João Goulart‖, sob a alegação de que
Já no tempo em que exercia o cargo de Ministro do Trabalho, o sr. João
Goulart demonstrara, bem às claras, suas tendências ideológicas,
incentivando e mesmo promovendo agitações sucessivas e frequentes nos

41
Carlos Lacerda foi um dos principais e mais populares opositores de Getúlio Vargas e das forças políticas a ele
ligadas. Jornalista e proprietário do jornal carioca Tribuna da Imprensa, Lacerda era filiado à União Democrática
Nacional (UDN), partido pelo qual foi eleito vereador em 1947 e, posteriormente, deputado federal. Em 1960,
também será eleito governador do estado da Guanabara, cargo a partir do qual, fará forte oposição à posse e ao
governo de João Goulart. Para maiores detalhes, ver: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-
WELTMAN, Fernando (Coord.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2001.
42
O episódio de maior repercussão desta campanha ficou conhecido como ―Carta Brandi‖ e consistiu numa
acusação feita por Carlos Lacerda de que João Goulart estaria ligado ao contrabando de armas da Argentina para
o Brasil, com o objetivo de armar supostas ―brigadas obreiras‖. Lacerda, inclusive, apresentou como documento
uma carta endereçada a Goulart e assinada pelo deputado peronista argentino Antonio Brandi, cuja falsidade
somente ficou comprovada após as eleições. Ver FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela M. C. Jango: as múltiplas
faces. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
43
Ver QUADROS, Jânio; ARINOS, Afonso. História do Povo Brasileiro. Vol. V. São Paulo: Editores Culturais,
1968.
44
FURTADO, Celso. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.
197.
22

meios sindicais, com objetivos evidentemente políticos e em prejuízo mesmo


dos reais interesses das nossas classes trabalhadoras. E não menos verdadeira
foi a ampla infiltração que, por essa época, se processou no organismo
daquele Ministério, até em pontos-chaves de sua administração, bem como
nas organizações sindicais, de ativos e conhecidos agentes do comunismo
internacional, além de incontáveis elementos esquerdistas.
No cargo de vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em
animar e apoiar, mesmo ostensivamente, movimentações grevistas
promovidas por conhecidos agitadores.
/.../
Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e
poder pessoal ao chefe do governo, o Sr. João Goulart constituir-se-á, sem
dúvida, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país
mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas,
infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros
países, em simples milícias comunistas.45

Desencadeia-se, assim, uma profunda crise política, que ficará conhecida como a crise
da legalidade, que na realidade, constituía uma tentativa golpista perpetrada por militares e
civis conservadores.
Em resposta à ação dos ministros militares e em defesa da posse constitucional de João
Goulart, houve intensa mobilização popular no Rio Grande do Sul, sob a liderança de Leonel
Brizola – então governador do Estado e cunhado de Goulart –, além de manifestações de
estudantes e trabalhadores em diversas localidades, principalmente em São Paulo e no Rio de
Janeiro.
Montou-se em Porto Alegre um Comitê de Resistência Democrática que articulava
400 comitês de bairro e totalizou, nos doze dias da crise, 100 mil voluntários inscritos. Como
relata Amir Labaki,
Porto Alegre foi o centro da resistência. A Praça da Matriz, defronte ao
Palácio Piratini, sede do governo estadual, era ocupada constantemente por
milhares de pessoas, vinte e quatro horas por dia. Nos momentos de maior
tensão ou importância, chegaram a se comprimir nela quase setenta mil
pessoas.46

Além de Brizola, o governador de Goiás, Mauro Borges, também articulou um


movimento de resistência, chegando a ameaçar: ―Se não for respeitada a democracia,
distribuirei armas ao povo e marcharei sobre Brasília‖.47 Embora com atuações discretas,
vários outros governadores, de diversos partidos, inclusive da União Democrática Nacional
(UDN), manifestaram apoio ao cumprimento da Constituição. A voz discordante maior

45
Tribuna da Imprensa apud FERREIRA, J.; GOMES, A. M. C. Op. cit., pp. 136-137.
46
LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 70.
47
Última Hora, Rio de Janeiro, 31 ago. 1961, apud: FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo,
PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 305.
23

destaque foi a de Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, que além de apoiar o veto
dos ministros militares à posse de Jango, chegou a reprimir duramente manifestações
populares a favor da legalidade e a censurar jornais cariocas que publicaram o Manifesto do
Marechal Lott ou que defenderam a posse de Goulart.
Entre os militares, houve um grupo considerável que se posicionou contrariamente à
decisão dos ministros, dentre o qual se destaca o General Machado Lopes, chefe do III
Exército, cuja adesão ao movimento legalista deu grande força à resistência comandada por
Brizola no Rio Grande do Sul, uma vez que
Além de possuir a mais poderosa artilharia e o mais completo parque de
manutenção do país, o III Exército contava com importantes regimentos de
infantaria, unidades blindadas e 40 mil homens. Somados aos 13 mil da
Brigada Militar, armados e entusiasmados, Machado Lopes contava com um
poder de resistência que não poderia ser subestimado pelos ministros
militares.48

Diante da divisão entre os próprios militares,49 da falta de apoio externo e interno e da


mobilização popular, os golpistas recuaram e negociaram a posse de Goulart condicionada à
implantação de um sistema parlamentarista, reduzindo, assim, os poderes do Presidente da
República.
Demonstrando um caráter conciliador, que seria objeto de duras críticas por parte de
vários movimentos de esquerda, e mesmo contrariando grande parte dos membros do seu
partido, João Goulart decide aceitar a emenda parlamentarista. Em seu discurso de posse, no
dia 7 de setembro de 1961, o próprio Goulart ressalta suas características conciliadoras,
apontando sua disposição para a negociação e apaziguamento das tensões, e não para a
radicalização:
Sabem os partidos políticos, sabem os parlamentares, sabem todos que,
inclusive por temperamento, inclino-me mais a unir do que a dividir; prefiro
pacificar a acirrar ódios; prefiro harmonizar a estimular ressentimentos.
Promoveremos a paz interna, paz com dignidade, paz que resulte da
segurança das nossas instituições, da garantia dos direitos democráticos, do
respeito permanente à vontade do povo e à inviolabilidade da soberania
nacional.50

Ratificando essa tendência, Goulart compõe um gabinete ministerial que nomeia como
gabinete de ―conciliação nacional‖, por abrigar representantes de distintas correntes e partidos

48
FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964, p. 295.
49
Ver D‘ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1997, pp. 175-176; e MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto
Alegre: L&PM, 1978, pp. 28-29.
50
GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961). Brasília: IBGE, 1962, p. 10.
24

políticos, chefiado por Tancredo Neves (PSD) − figura-chave na negociação estabelecida para
que Goulart aceitasse a emenda parlamentarista.
Em contato com as correntes políticas, através de seus chefes e líderes,
entreguei, desde a minha chegada a Brasília, ao partido de maior
representação no Parlamento, a Presidência do Conselho de Ministros, na
pessoa do eminente Doutor Tancredo Neves, que teve a incumbência
constitucional de organizar o Ministério de acordo com as demais
agremiações partidárias, fazendo-o com o alto espírito público de que é
dotado. Em conseqüência, formou-se um governo de coalizão.51

Todavia, as dificuldades de João Goulart não se limitariam à crise de agosto. O país


passava por um momento delicado na economia, tendo que superar entraves a seu
desenvolvimento econômico. Um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1956,
sobre o desenvolvimento do Brasil já considerava improvável a manutenção do índice de
crescimento da década de 1950 para o decênio seguinte e
lembrava não só a deterioração das relações de troca, com o pesado serviço
da dívida externa, cujos compromissos deveriam ser saldados no período
seguinte; além disso o valor real das reservas de depreciação acumuladas nos
anos recentes estava sendo reduzido devido ao aumento dos preços dos
equipamentos importados.52

A projeção de tal estudo mostrou-se correta e,


a partir de 1962, com o agravamento dos obstáculos opostos pelas estruturas
internas − sem contar a formidável pressão política oposta pelos mais
variados grupos das velhas elites antirreformistas, o declínio da expansão se
manifestou. E sem personalismos estreitos, a verdade é que apesar de tudo
foi muito menor que o estimado.53

Um dos fatores que tornavam previsíveis as dificuldades econômicas para o período


era a construção de Brasília, realizada por Juscelino Kubitschek ainda nos anos 1950 e para a
qual ―os investimentos públicos, inclusive aqueles financiados pelos fundos de Previdência
Social, foram no possível canalizados‖,54 isto sem haver um cálculo inicial do que isso tudo
representava de pressão sobre os recursos disponíveis. Ainda que a obra tenha representado
uma aceleração do crescimento da economia e gerado uma euforia na classe empresarial,
No plano social, os efeitos foram inquestionavelmente negativos: redução
dos investimentos sociais e baixa dos salários reais, em consequência da
maior pressão inflacionária. Ademais, no setor externo teve início a
acumulação de uma dívida cuja reciclagem se fará mais adiante, com sérias
concessões ao Fundo Monetário Internacional. Era o ponto de partida do

51
Ibidem, p. 14. Discurso proferido em 8 de setembro de 1961, no Palácio do Planalto, ao ser investido do cargo
de Presidente da República.
52
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico político. Rio de Janeiro,
1965, p. 214.
53
Ibidem, p. 215.
54
FURTADO, C. Op. cit., p. 64.
25

período dos desequilíbrios macroeconômicos que conduzirão à situação de


semidesgoverno, a qual servirá de justificativa para o golpe militar de
1964.55

Sendo assim, o governo teria que enfrentar os desafios de uma espiral inflacionária,
gerada ainda durante a gestão anterior e acelerada pela emissão monetária descontrolada
efetuada durante a crise; além de impasses econômicos resultantes do modelo
desenvolvimentista, a saber: desequilíbrio na balança de pagamentos e defasagem dos
salários. De acordo com Cibilis da Rocha Viana,
Às distorções geradas pelo processo de desenvolvimento na economia
brasileira /.../ vieram somar-se os efeitos negativos da política cambial
adotada pelo governo Quadros – a elevação dos preços e do custo de vida; o
desequilíbrio financeiro das contas públicas; o agravamento da deterioração
dos termos de troca no comércio exterior.56

Assim, à instabilidade política, que marcou a posse de João Goulart e que permanece
na maior parte do período em que governou, junta-se também a instabilidade econômica,
agravada pelas volumosas emissões de moeda realizadas durante a crise de agosto – foram
Cr$ 58 bilhões, somente nas duas semanas da sedição dos ministros militares.57
Outro aspecto a ser destacado nessa conjuntura é o da mobilização de diferentes
movimentos de trabalhadores, que, desde o fim da Segunda Guerra vinha em um crescente.58
Trabalhadores rurais e urbanos intensificavam sua atuação política e reivindicatória: as Ligas
Camponesas ganhavam cada vez mais visibilidade na sua luta pela reforma agrária e por
melhores condições trabalho; assim como os operários urbanos, diante da defasagem dos
salários reais, criavam novas formas de organização, com greves cada vez mais frequentes.
Em contrapartida a esta movimentação, os setores conservadores da sociedade − sobretudo
ruralistas e grupos ligados ao capital estrangeiro, representados principalmente pela UDN e

55
Ibidem, p. 65.
56
VIANA, Cibilis da Rocha. Reformas de base e a política nacionalista de desenvolvimento: de Getúlio a Jango.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 104.
57
Relatório do Banco do Brasil S. A., 1961, apud MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart:
as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan/ Brasília (DF): EdUnB, 2001, p. 66.
58
―No período democrático do pós-guerra (1945-1964), os trabalhadores tomaram a direção de seus sindicatos e
mostraram tanta combatividade que o governo Dutra interveio em quase todos, logo depois de colocar o Partido
Comunista na ilegalidade. Em resposta, os trabalhadores elegeram em 1950 Getúlio Vargas à presidência, o qual
permitiu que, por meio de eleições, ganhas pelas chapas de oposição, os trabalhadores retomassem a direção de
seus órgãos de classe. Grandes movimentos grevistas ocorreram em seguida. A greve de têxteis, metalúrgicos,
marceneiros, gráficos vidreiros, em 1953, mobilizou 300 mil trabalhadores e manteve São Paulo paralisada
durante três semanas /.../ Qualquer um que tenha vivido os anos anteriores ao golpe de 1964 não pode deixar de
se assombrar com essas considerações. Entre 1955 e 1964, as Ligas Camponesas mobilizaram legiões de
trabalhadores rurais para ocuparem centenas de latifúndios, de norte a sul do país‖. SINGER, Paul. ―Notas de
leitura dum clássico‖. In: FERNANDES, Florestan. Sociedade de classe e subdesenvolvimento. São Paulo:
Global, 2008, pp. 16-17.
26

por uma de suas figuras de maior destaque, Carlos Lacerda − também se articulavam contra as
políticas reformistas e trabalhistas que contrariassem seus interesses, aumentando ainda mais
a tensão no âmbito político.
Com tudo isso, para manter-se no poder, João Goulart teria que superar as dificuldades
econômicas no plano nacional e internacional, atender às graves necessidades das camadas
populares, além de defender-se dos ataques de grupos conservadores – que criticavam seu
reformismo, acusando-o de comunista – e também de setores da esquerda, incluindo membros
de seu próprio partido – que recusavam a prática conciliatória e exigiam maior radicalização.
Como meio para superar tamanho desafio, e enfrentando os problemas reais que a ele
e ao país se impunham, Jango valeu-se do programa das chamadas reformas de base; não
como um plano de emergência para alguém que assume a chefia de um governo em condições
inesperadas, mas como desdobramento dos apontamentos que já vinha expressando nos
últimos anos, dentro de seu partido – o PTB, que ganhava importância ―na construção de um
discurso em prol de mudanças‖ e que se consolidava como um ―partido reformista e
popular‖59 – e em seus mandatos na vice-presidência da república.
Dada a importância que o debate em torno das propostas de reformas ganhou naquela
conjuntura, procuraremos, no primeiro item deste capítulo, investigar as origens e principais
influências da formulação do programa reformista defendido por Goulart ao chegar à
presidência – projeto que gerou intensos debates entre os vários grupos sociais e que terá sua
discussão interrompida pelo golpe militar.

1.1. Nacionalismo e Trabalhismo: Vargas e o PTB

O discurso de João Goulart, tanto como sua carreira política, será construído sob a
influência da imponente figura de Getúlio Vargas e dentro do Partido Trabalhista Brasileiro –
criado pelo próprio Vargas em 15 de maio de 1945, cerca de um mês após ser criada a União
Democrática Nacional (UDN).60
De acordo com Angela de Castro Gomes,
o PTB tinha uma proposta mais diretamente dirigida à classe trabalhadora,
em especial a urbana, apontando para a articulação de um partido de massas

59
D‘ARAÚJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-65. Rio de Janeiro: Editora da
Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 97.
60
O Partido Social Democrata (PSD) é criado, também por Vargas em 17 de julho do mesmo ano. Ver: GOMES,
Angela de Castro. ―Partido Trabalhista Brasileiro (1945-1965): getulismo, trabalhismo, nacionalismo e reformas
de base‖. In: FEREIRA, Jorge; AARÃO REIS FILHO, Daniel. Nacionalismo e Reformismo Radical: (1945-
1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil; v. 2), p. 56.
27

com bases sindicais. Seu modelo inspirador foi o Partido Trabalhista inglês,
e seus fundamentos foram lançados a partir do Ministério do Trabalho, com
a mobilização das lideranças sindicais e dos organismos previdenciários. /.../
Trata-se de um partido criado para ser popular e nacionalista, defendendo
um formato de Estado intervencionista e agitando, como principal bandeira,
o trabalhismo.61

Além da inspiração no trabalhismo inglês, o PTB contava com o peso da presença de


Getúlio Vargas e dos princípios por ele defendidos, como o desenvolvimento nacional
autônomo e a ampliação da legislação social. Sobretudo a partir de 1950, período da vitoriosa
campanha que levou Vargas de volta à presidência da república, os ideários trabalhista e
getulista se fundem num discurso em defesa do desenvolvimento econômico, da justiça social
e da libertação econômica. Ainda de acordo com a autora,
Como encarnação da nação e como grande inspirador do ideário trabalhista,
Vargas torna-se um símbolo de justiça social e de progresso econômico para
a população do país. O carisma do presidente estabeleceu neste solo raízes
profundas e, quando o Estado Novo iniciou, ―de dentro‖, uma transição para
um regime-liberal-democrático, o culto à sua figura, ou melhor, o getulismo,
era uma realidade política ao lado do trabalhismo.62

Outra grande referência do trabalhismo petebista será Alberto Pasqualini, membro do


partido desde 1946 e autor do livro Bases e sugestões para uma política social, de 1948, no
qual reúne suas principais ideias e que muito influenciará o discurso dos setores de maior
destaque dentro do partido, inclusive o liderado por João Goulart. Esta influência pode ser
notada na defesa que Pasqualini faz, e que Goulart retomará, de um trabalhismo cristão,
convergente com a doutrina social da Igreja; de um capitalismo ―solidarista‖, voltado ao
bem-estar da coletividade, dos princípios humanistas, cooperativos, e contrário ao abuso do
poder econômico e à ―usura social‖ (que, segundo Pasqualini, se caracteriza pelo
enriquecimento não decorrente do ―trabalho socialmente útil‖, mas da ―apropriação indevida
do trabalho alheio);63 de um Estado ―distribuidor‖ dos recursos, de forma a atender as
necessidades da coletividade e buscando a efetivação da justiça social; e da extensão da
legislação trabalhista ao trabalhador rural.64
Posteriormente, já como presidente da república, em visita ao Rio Grande do Sul,
Goulart alude ao teórico trabalhista, dizendo:
Ficai certos, meus conterrâneos, de que prosseguiremos na luta ―por uma
ordem social mais justa em nosso país‖, conforme preconizava o saudoso e
61
Ibidem, p. 59 e p. 62.
62
Ibidem, p. 57.
63
PASQUALINI, Alberto. Apud: VIANA, Cibilis da Rocha. Op. cit., p. 59.
64
Sobre as ideias defendidas por Alberto Pasqualini, ver: GRIJÓ, Luiz Alberto. ―Alberto Pasqualini: o teórico do
trabalhismo‖. In: FEREIRA, J.; AARÃO REIS FILHO, D. Op. cit. pp. 83-99 e VIANA, C. R. Op. cit. Cap. 5.
28

ilustre filho desta terra, que foi Alberto Pasqualini. Ficai certos de que
continuaremos batalhando para que os que são muito ricos, nesta pátria,
sejam menos ricos, para que os pobres sejam, por sua vez, menos miseráveis
e para que o povo do Brasil possa viver com mais dignidade.65

Dessa maneira, João Goulart, ao mesmo tempo em que traz em sua formação político-
ideológica os princípios defendidos por Getúlio Vargas e pelo trabalhismo petebista, pouco a
pouco, constituirá também, ele próprio, uma figura de destaque e de liderança dentro do
partido. Como presidente nacional do PTB desde 1952 e, principalmente, como Ministro do
Trabalho de Getúlio Vargas, de junho de 1953 a fevereiro de 1954, Goulart, em diversas
ocasiões, terá a oportunidade de falar em nome do partido e de defender os princípios
trabalhistas.
Segundo Angela de Castro Gomes, o significado da indicação de Jango por Vargas ao
Ministério do Trabalho revelaria uma
nova estratégia política que seria encaminhada por seu ministro — em lugar
de acionar mecanismos repressivos, estabelecer conversações com os
sindicalistas e negociar a greve. Uma fórmula que procurava recuperar a
popularidade de Vargas junto aos trabalhadores, costurando alianças com
sindicatos e retomando esse canal de comunicação política para o governo.
/.../ Dessa forma, a postura de Jango, negociando e se antecipando às
demandas dos trabalhadores, inclusive forçando os empregadores a fazer
concessões, foi freqüentemente vista e denunciada não como forma de
esvaziar conflitos, mas de estimulá-los, pregando a ―luta de classes‖.66

Justamente pela grande penetração que possuía no meio sindical, a indicação de João
Goulart ao ministério foi bastante criticada, sendo até mesmo apontada como indício de
supostas articulações do governo de Vargas para o estabelecimento de uma ditadura
sindicalista no Brasil. Respondendo a esta e a outras acusações e aproveitando para manifestar
suas posições, Jango afirmou:
Também não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo.
À frente do Ministério do Trabalho estou pronto para aplaudir e estimular os
capitalistas que, fazendo de sua força econômica um meio legítimo de
produzir riquezas, dão sempre às suas iniciativas um sentido social, humano
e patriótico. Sou contra, isso sim, o capitalismo parasitário, exorbitando no
ganho e imediatista no lucro, contra o capitalismo cevado à base da
especulação, que afinal só contribui para o desajustamento social. Não é
admirável que, enquanto uns estão ameaçados e morrem de fome, outros
ganham num ano aquilo que normalmente deveriam ganhar em 50 anos ou
até séculos.67

65
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 59. Discurso proferido em
homenagem em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre, no dia 30 de outubro de 1961.
66
GOMES, A. C. Op. cit., pp. 68-69.
67
GOULART, J. Resposta aos jornais e ao The New York Times. In: BRAGA, K. et al. (coord.) Op. cit., pp. 191-
192.
29

E em seu discurso de posse no ministério, Goulart procurou expor as bases que


fundamentariam sua ação na pasta do Trabalho.
Embora fosse meu desejo, reconheço que seria exaustivo, nesta
oportunidade, dizer detalhadamente dos propósitos que me animam no
cumprimento da investidura com que fui distinguido pelo eminente
presidente Getúlio Vargas. Limito-me a ressaltar que pertenço a um partido
político cujo programa se assenta na defesa dos interesses dos trabalhadores
através do sistema de perfeito entendimento com as classes patronais, tendo
como finalidade principal o bem-estar de todos e o progresso da Nação. Não
poderia, pois, à frente do Ministério do Trabalho, sob pena de trair minha
própria formação doutrinária, deixar de seguir as inspirações desse programa
e das suas diretrizes fundamentais sem, no entanto, perder de vista enormes
responsabilidades das horas difíceis que atravessamos Meus senhores,
despido de cargo ou da ambição do poder, meus objetivos são claros e
definidos, resumindo-se na conquista de uma ordem social mais justa, sem a
mínima quebra das nossas tradições democráticas. Não trago para o
Ministério um programa de inquietações – como pretendem alguns setores
políticos – e nem prometo solucionar milagrosamente os inúmeros
problemas dos trabalhadores. Todos sabem, de resto, que esses problemas
são conseqüência da realidade econômica que, no Brasil de hoje, se
apresenta particularmente difícil às classes proletárias.68

Ainda de acordo com Gomes, a carta de demissão que João Goulart enviará a Getúlio
Vargas na ocasião de sua demissão, após a grande repercussão da sua proposta de aumento do
salário mínimo, constitui documento importante dos princípios defendidos pelo trabalhismo
petebista. Nela, além de declarar sua certeza de que ―atendendo aos humildes, contribuía para
a verdadeira harmonia social‖ Goulart afirma:
Não me deixei intimidar com o descontentamento que minha conduta
provocou naqueles que vivem acumulando lucros à custa do suor alheio. Não
recuei nem mesmo quando mais afoita e desabusada se tornou a ação nefasta
de determinados setores econômicos.
Consequentemente, fui acusado de fomentar greves, de promover agitações
nos meio operários, de articular a luta de classes, passando até a figurar
como implacável inimigo do capitalismo. Tão injusta quanto as outras,
porém, é esta última acusação. Há um capitalismo honesto, amigo do
progresso, de sentido sadiamente nacionalista, que sempre mereceu meu
aplauso e o meu apoio. Há outro, entretanto, que jamais deixará de contar
com a minha formal repulsa. Refiro-me ao capitalismo desumano,
absorvente de forma e essência, caracteristicamente anti-brasileiro, que gera
trustes e cria privilégios, e que, não tendo pátria, não hesita em explorar e
tripudiar sobre a miséria do povo.69

No dia seguinte ao pedido de demissão de Goulart, uma nota oficial elaborada pela
Comissão Executiva Nacional do PTB, além de se solidarizar com o ex-ministro e defender as
propostas por ele feitas, afirmava que o partido permaneceria ―na luta contra a usura social e

68
Ibidem, pp. 193-194.
69
Carta de demissão enviada por João Goulart a Getúlio Vargas em 22 de fevereiro de 1954. Arquivo Getúlio
Vargas, CPDOC-FGV Classificação: GV c1954.02.22/1. Grifos nossos.
30

os desmandos do poder econômico‖ e reivindicava, entre outros pontos: a extensão da


legislação trabalhista ao campo; a reforma agrária; e a ―libertação econômica nacional e
contra a agiotagem internacional‖.70
De acordo com o historiador Jorge Ferreira, sobre a importância do conteúdo expresso
nas mensagens de Jango e da comissão executiva de seu partido,
No discurso do ministro e na nota oficial do PTB está presente um conjunto
de ideias, crenças e concepções que marcou o trabalhismo brasileiro e criou
sólidas tradições na cultura política do país. Com base no difuso ideário
getulista, e indo além dele, a geração de trabalhistas liderada por Goulart
―refundou‖ o PTB, tornando-o um partido com feições reformistas que, até
1964, somente tenderia a radicalizar. É verdade que a carta-testamento de
Vargas obteve uma repercussão muito maior, até mesmo pelas condições
dramáticas com que surgiu no cenário político brasileiro, tornando-se uma
espécie de ‗manifesto trabalhista‘. No entanto, os fundamentos da carta-
testamento – até suas ideias mais avançadas – já estavam presentes no texto
de despedida de Goulart do Ministério do Trabalho e na nota oficial de seu
partido: soberania nacional, libertação econômica do país dos controles das
agências financeiras internacionais, defesa das riquezas naturais contra os
interesses das empresas monopolistas estrangeiras, condenação do
capitalismo predatório e usurário, ampliação da legislação social aos
assalariados urbanos e sua extensão ao mundo rural, reforma agrária,
melhoria das condições de vida da população, reconhecimento da cidadania
política e social dos trabalhadores e do movimento sindical, entre outras
questões.71

Como veremos ao longo deste trabalho, os discursos que João Goulart proferirá ao
chegar à presidência da república, inúmeras vezes, trarão novamente à tona o conjunto de
ideias que já pode ser notado, tanto nos seus próprios discursos como presidente do PTB,
ministro, e vice-presidente da república, como nos próprios documentos do seu partido.
Portanto, quando aponta a emancipação econômica e a justiça social como objetivos a serem
alcançados por seu governo, através de medidas reformistas, Goulart não lança mão de uma
novidade, de uma carta tirada da manga para sobreviver à crise política e econômica; mas
retoma princípios já defendidos por Getúlio Vargas, pelo programa trabalhista do PTB, além
de outros setores da sociedade, como intelectuais, movimentos operários e estudantis da
época.
Contudo, a chamada ―herança política‖ de Vargas, se por um lado será apontada pelos
opositores de Jango como algo a ser expurgado, como tendência antidemocrática e
demagógica, por outro, será reivindicada pelo próprio Goulart e por seu partido como

70
Nota publicada em O Radical, Rio de Janeiro, 25 fev. 1954, apud FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma
biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 138. Grifo nosso.
71
Idem.
31

continuidade de um projeto progressista de desenvolvimento nacional e de integração política


e econômica da classe trabalhadora.
Já na presidência da república, Goulart constantemente fará referências a Vargas
semelhantes a esta – expressa em um de seus primeiros discursos, realizado ainda no mês de
sua posse, em homenagem que recebeu na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) no
Rio de Janeiro:
trago a certeza de que jamais trairemos o nosso passado e os ideais
imperecíveis de um homem que se sacrificou em defesa do povo, que lutou
até o último momento da sua vida contra forças poderosas que se opunham
aos interesses da nossa pátria. Há poucos minutos, em companhia de
Tancredo Neves e Oliveira Brito, depositávamos flores junto ao busto do
grande Presidente Vargas, flores que não simbolizam apenas saudades, mas
que representam a reafirmação do seu pensamento, nesta hora em que
assumimos os destinos do País.72

Em outras oportunidades, João Goulart reafirmará ainda sua fidelidade ―aos princípios
de justiça social defendidos por Getúlio Vargas‖,73 a quem considerava um ―pioneiro de todas
as grandes batalhas pela independência econômica de nossa pátria‖;74 ―o comandante dos
primeiros combates pela libertação econômica do Brasil, o criador da legislação social, o
estadista sereno e amigo do povo‖;75 homem ―incompreendido na sua luta incansável, até ser
vencido pela reação‖.76
Mantendo-se vinculado, portanto, ao discurso varguista, assumindo a presidência da
república no dia 7 de setembro de 1961, dia em que se comemora a independência do Brasil –
data escolhida pelo próprio Jango pela sua significação simbólica, uma vez que as condições
de sua posse já estavam estabelecidas desde o dia 5 – João Goulart segue defendendo como
meta fundamental do governo brasileiro atingir sua emancipação econômica complementando
sua emancipação política.
A independência política que, há 140 anos, foi conquistada pela bravura de
nossos antepassados, que se fizeram heróis de nossa História, Deus há de

72
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 22. Discurso proferido em 24 de
setembro de 1961.
73
GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962). Brasília: IBGE, 1963, p. 81.
Discurso proferido em 01 de maio de 1962, em Volta Redonda (RJ), por ocasião das comemorações do Dia do
Trabalho.
74
Ibidem, p. 99. Discurso proferido em 11 de junho de 1962, no Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, ao ser
instalada a Eletrobrás.
75
Ibidem, p. 75.
76
Ibidem, p. 92. Discurso de 13 de maio de 1962, em Santos (SP), na inauguração da nova sede do Sindicato dos
Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá.
32

permitir que seja completada com a nossa total emancipação econômica, que
temos o dever de legar a nossos filhos, em nome do Brasil eterno.77

1.2. Emancipação Econômica

João Goulart colocava a emancipação econômica do país como ―a missão de sua


geração‖78 e como pressuposto para o alcance da justiça social. Logo em seu discurso de
posse, após a crise que levou o país a uma ameaça de guerra civil, Goulart convocava todos os
brasileiros a se mobilizarem para a ―única luta interna‖ em que deveriam se empenhar: para a
luta pela emancipação econômica do país, definida por ele como ―a luta contra o pauperismo,
a luta contra o subdesenvolvimento‖.79
No entanto, como seria possível para um país com o histórico de desenvolvimento do
Brasil, de passado de exploração colonial, de economia predominantemente agrário-
exportadora, de industrialização hipertardia e subordinada, atingir a emancipação econômica?
Ainda mais num momento avançado do século XX, em que as potências mundiais já estavam
bem definidas e blindadas pelo seu poderio econômico e militar? Apesar dos enormes
obstáculos existentes à realização deste objetivo, Goulart o reafirmou durante todo o seu
governo, tendo que lembrar constantemente que, para tanto, não abriria mão da ordem legal e
dos princípios democráticos, ou muito menos romperia com o capitalismo por uma solução
socialista.
A opção propagada por Goulart defendia o desenvolvimento da indústria nacional
conjuntamente com uma reestruturação da produção agrária e a integração crescente da
população urbana e rural no mercado interno. Não seria fácil viabilizá-la; seriam necessárias
reformas estruturais. E para defendê-las, o presidente convocava a todos os brasileiros,
especialmente, os trabalhadores que formavam sua base de apoio.
Aqui estão os trabalhadores para prosseguirem na caminhada encetada em
1930, com a Revolução Industrial, e continuada em 1950, com a campanha
pela emancipação, de que a Petrobrás é símbolo vivo. Emancipação que se
completará através das reformas democráticas, que, mudando as estruturas
arcaicas, alterando as estruturas obsoletas, irão atender melhor as
reivindicações do povo, disposto a transpor a barreira do
subdesenvolvimento.80

77
Ibidem, p. 154. Discurso pronunciado em Brasília, no dia 7 de setembro de 1962, pela rede de radiodifusão de
"A Voz do Brasil‖.
78
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 86. Discurso proferido em Belo
Horizonte, no dia 17 de novembro de 1961, por ocasião do encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores
e Trabalhadores Agrícolas.
79
Ibidem, p. 10.
80
―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963.
33

Ao falar sobre a política de emancipação que seria levada a cabo por seu governo,
Goulart afirma que seriam tomadas medidas com vistas ―à libertação do Brasil das garras que
o escravizam e dificultam o seu desenvolvimento‖;81 no entanto, em outros momentos,
também pondera que:
A política de emancipação do governo assenta em bases realistas. Ela não é
contra ninguém, ou seja, não se traduz por medidas de caráter nacionalista
excludente. Destina-se a criar a base econômica e financeira para uma
política nacional independente.82

Este cuidado é bastante compreensível, lembrado o nível de radicalização das posições


políticas do período. Além disso, duas das principais medidas defendidas em nome da
emancipação nacional geraram grandes e polêmicos debates, pois tocavam em interesses de
grupos econômicos poderosos no país; foram elas a reforma agrária (que será tratada mais à
frente) e a regulamentação da remessa de lucros para o exterior.
Apesar do posicionamento de João Goulart ser amplamente criticado como ―populista‖
– categoria que, como vimos, em muitos casos, será utilizada sem qualquer análise das
particularidades da posição de Jango –, as posições expostas acima, claramente ligadas a
trajetória nacional-trabalhista do autor, não podem ser tidas como meras idiossincrasias ou
discurso isolado naquele momento histórico.
Podemos tomar como exemplo, o debate que se desenvolvia na época pela chamada
Escola Paulista de Sociologia − grupo de intelectuais por vezes tido como o verdadeiro centro
científico da época, em oposição aos intelectuais próximos ao governo.83 Esta Escola, apesar
da oposição aos intelectuais nacionalistas, em boa, medida acompanhava tendências das
ciências sociais latino-americanas e entendia a autonomia do país como base de qualquer
projeto de ―modernização‖:
Se ou enquanto a sociedade subdesenvolvida não possuir requisitos
estruturais e dinâmicos para engendrar processos de automatização
econômica, sociocultural e política, ao nível do padrão de integração,
funcionamento e desenvolvimento da ordem social competitiva, ela ficará
condenada ao destino histórico inerente ao capitalismo dependente (qualquer

81
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 58. Discurso pronunciado em 30 de
outubro de 1961, em Porto Alegre, em frente ao Palácio Piratini, ao ser homenageado pelo povo, na primeira
visita ao Rio Grande do Sul como Presidente da República.
82
Entrevista concedida à jornalista Barbara Smith, do ―The Economist‖. Publicado em: ―JG dá entrevista
admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, 17 fev. 1963.
83
A expressão intelectual que claramente acompanhava a direção do pensamento nacional-trabalhista do
governo localizava-se principalmente no Rio de Janeiro, através do ISEB. Segundo a leitura de alguns
especialistas sobre os intelectuais daquela época ―a elite intelectual paulista não sentia entusiasmo em associar-se
à criação ideológica dos isebianos ou à pregação da vulgata marxista, e menos ainda em lançar-se na aventura da
‗marcha para o povo‘‖, por isso poderiam ser mais ‗neutros‘ e praticar um verdadeiro pensamento científico.
PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1995, p. 173.
34

que seja a fórmula empregada para disfarçar esse destino) ou terá de


procurar no socialismo (qualquer que seja a via pela qual ele se desencadeie
historicamente) as soluções para os seus dilemas econômicos, sociais e
políticos.84

E, na nota que segue o excerto acima, Fernandes afirma: ―A alternativa socialista foi
deixada de lado, pois as investigações comprovam que o capitalismo mantém-se, no Brasil
(independente de qualquer artifício analítico dos investigadores), como a opção histórica
‗possível‘ e ‗desejada‘ socialmente‖.85
Obviamente que essa ideia constitui expressão e síntese significativa do trabalho de
um grupo que foi formado desde 1953, mas que se fragmentará e mudará de posição em boa
medida entre 1964 e 1968.86 Mas, o que queremos destacar aqui é que, em traços gerais, não
obstante o fato desses intelectuais se posicionarem criticamente com relação a Jango, suas
pesquisas apresentam como proposta elementos estruturais que também foram defendidos
pelo próprio Presidente João Goulart (ainda que partindo de outras referências): o descarte do
socialismo como meio de modernização do Brasil e a autonomização do país como objetivo
central para obter o desenvolvimento.

1.2.1. Lei da remessa de lucros

A proposta de se disciplinar o capital estrangeiro investido no Brasil não será uma


originalidade do governo Goulart – este tema já vinha sendo debatido desde 1946, por ocasião
do Decreto-lei nº 9025, que limitava a remessa de juros, lucros e dividendos em 8% anuais do
capital estrangeiro registrado, mas que acabou não sendo executado.
Vargas, em seu segundo governo, discutiu o tema e, sobre a não execução do referido
decreto, falou:
Assim, um mero Regulamento, baixado por autoridade de menor hierarquia,
sabotou totalmente não só o espírito, mas o próprio texto do Decreto-lei, e
conseguiu inaugurar, em surdina e sem que ninguém se desse conta, um
sistema de vazamento subterrâneo de moeda brasileira para o exterior.
Vazamento tão grande, tão extorsivo do fruto do trabalho de milhões de
brasileiros, que, em menos de 5 anos, se logrou subtrair à economia nacional

84
FERNANDES, F. Op. cit., p. 35.
85
Idem.
86
O texto foi feito por Florestan, mas o próprio autor aponta nesse texto que serviu como uma espécie de fio
condutor ―ligando hipóteses e conclusões fundamentadas de várias investigações‖ de um grupo bastante
numeroso, do qual podemos destacar os nomes de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, José
de Souza Martins, Francisco Weffort, entre outros.
35

uma soma fabulosa, quase equivalente ao total do papel-moeda circulante no


país e que foi escandalosamente incorporada ao capital estrangeiro.87

Apesar desta fala contundente, Vargas também não encontrou condições de tornar
efetivo um maior controle sobre as remessas de capitais para o exterior. Se por um lado,
mantinha a intenção de regulamentar o capital estrangeiro e a remessa de lucros para evitar
―abusos‖, por outro, reafirmava em seus discursos a importância do investimento estrangeiro
para o desenvolvimento econômico do país, deixando claro que não romperia com o capital
internacional.88
Em situação semelhante se encontrará o presidente João Goulart. Dias após sua posse,
em discurso pela comemoração do 15º aniversário da Constituição brasileira de 1946, o
presidente expõe sua expectativa de que o Legislativo – centro do governo então
parlamentarista – a fim de tornar efetivas na prática algumas conquistas sociais que figuravam
na Constituição, regulamentasse, entre as várias reformas necessárias, a ―disciplina do capital
estrangeiro‖:
Estou certo de que o Congresso Nacional, refletindo as aspirações do povo,
há de oferecer à Nação os estatutos legais inadiáveis, equacionando, de
maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas.89

E, um mês depois, reforçou:


Estou certo de que o Parlamento transformará brevemente em realidade as
justas aspirações do povo, quais sejam aquelas que dizem respeito ao acesso
à terra dos agricultores que a regam com seu suor e seu sacrifício; as
legítimas reivindicações das donas de casa, das populações pobres, que não
podem permitir que se continue a assistir sem protesto à sangria da nossa
economia através da evasão de divisas para o exterior, quando o povo aqui
vive na miséria e no sacrifício.90

No entanto, tanto como na época de Vargas, o Brasil não estava em condições de


prescindir do capital estrangeiro para manter ou acelerar seu ritmo de crescimento econômico.
Se por um lado a limitação da remessa de lucros para o exterior era apontada como meio para

87
VARGAS, Getúlio. Apud: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção: 1906-1954.
São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 410.
88
Cf. FONSECA, P. C. D. Op. cit., pp. 402-428.
89
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18. Discurso proferido em 18 de
setembro de 1961, em Brasília.
90
Ibidem, pp. 41-42. Discurso proferido no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 18 de outubro de 1961, ao
receber, em audiência especial, uma comissão de senhoras, representantes de várias entidades nacionais.
36

barrar a ―sangria‖ das riquezas nacionais, aprofundando a ―miséria do povo brasileiro‖, 91 por
outro, o investimento estrangeiro constituía importância fundamental no financiamento do
desenvolvimento econômico, sobretudo no setor industrial. Sintomático desta situação é o
seguinte trecho da ―Mensagem ao Congresso Nacional‖, enviada pelo presidente João Goulart
na abertura do ano legislativo de 1962:
O desenvolvimento nacional e as reformas de base acham-se ligados à
conjuntura internacional. Desenvolvimento e reformas serão retardados se os
recursos internacionais, muitos dos quais hoje encaminhados para a
preservação da paz armada, não puderem ser postos, em tempo, e em
quantidades crescentes, à disposição dos países subdesenvolvidos.92

Diante desta situação, João Goulart ao mesmo tempo em que defendia a necessidade
de regulamentação do capital estrangeiro, procurava também esclarecer que esta
regulamentação não significaria, de modo algum, um fechamento do país a este capital.
O desenvolvimento não é um negócio, uma empresa mercantil dos velhos
tempos de colonialismo, mas sim uma política nacional. Quem pensa no
desenvolvimento, quem lhe estrutura as etapas e lhe propõe os fins somos
nós, os brasileiros. Estamos prontos a pagar o preço justo pela valiosa
colaboração recebida. Mas essa colaboração não pode retirar do nosso
controle soberano as medidas e providências indispensáveis a articular o
comportamento do capital estrangeiro com os objetivos fundamentais que
temos em vista alcançar.
/.../
A contribuição externa é importante, é preciosa, é necessária. Mas ela não
deve comandar nem desfigurar a política determinada pelos imperativos da
nossa emancipação econômica.93

Esta disposição por parte do presidente em estabelecer alguma disciplina sobre os


capitais externos e sua remessa para o exterior gerou inúmeras controvérsias e tornou-se um
dos assuntos relevantes na visita que João Goulart faria aos Estados Unidos no ano de 1962.
Duas semanas antes de sua viagem, o presidente antecipou sua posição sobre o tema em
almoço oferecido pela Câmara Norte-Americana de Comércio. Em seu discurso, assegurou
que seu governo não cultivaria ―qualquer sorte de preconceito ou má vontade‖ contra os
representantes do capital estrangeiro e admitiu que os investidores externos deveriam ―obter a
remuneração adequada aos recursos financeiros empregados, de modo a cobrir os riscos que
possam ocorrer‖. Mas, após expressar gratidão pela ―atividade pioneira‖ daqueles que teriam

91
Ibidem, p. 75. Discurso proferido em 09 de novembro de 1961, no Palácio do Planalto, em evento com
prefeitos e vereadores de todo o Brasil.
92
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962. Brasília: Congresso Nacional, 1962, p. XIV.
93
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 103. Discurso proferido em 10 de
dezembro de 1961, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
37

ajudado a ―conquistar e ampliar nosso mercado interno, introduzindo e difundindo novos


métodos‖, apontou:
Entendemos, outrossim, que os investimentos devem ser selecionados no
interesse conjugado do Brasil e de quem os aplica, rigorosamente
garantidos, mas, igualmente, orientados, quanto à sua finalidade, no rumo do
que convenha mais precipuamente à política do nosso desenvolvimento. E
nesta ordem de considerações é claro que eu não seria leal nem sincero para
com os senhores se dissesse que situo no mesmo plano de minha
consideração, como brasileiro e como homem com as responsabilidades de
governo, todas as hipóteses de investimento. A hipótese, por exemplo, de
uma indústria produtora de quinquilharias ou qualquer atividade comercial
meramente intermediária ou especulativa, em concorrência às nacionais, de
um lado; e do outro, qualquer empreendimento econômico básico ou
necessário em que a técnica e os recursos estrangeiros ocupem os espaços
vazios da produção indispensável ao progresso, não devem representar a
mesma coisa.
/.../ Todos terão de compreender, porém, que o Brasil se reserva o direito de
estabelecer suas próprias regras e, desde que oferece segurança,
tranqüilidade e rentabilidade ao investimento estrangeiro, não abre mão de
sua prerrogativa de encaminhá-lo em harmonia com os reclamos do seu
desenvolvimento.94

Mesmo com a reivindicação desta prerrogativa sobre a entrada de capital estrangeiro,


Goulart afirmou não existir ―qualquer atitude suspeita ou prevenida‖ contra a entrada de
capital estrangeiro que se dispusesse a colaborar com a emancipação econômica brasileira. E
quanto ao retorno de capitais, explica:
Quanto ao retorno de capitais ou remessa de lucros para os países de origem,
todos os senhores também devem ter presente que se trata de uma operação
que envolve altos interesses nacionais e que, portanto, não pode processar-se
desordenadamente. Temos a mais sincera preocupação em proporcionar
garantias ao capital, para que ele continue conosco, se incorpore ao Brasil e
aqui permaneça na batalha pelo desenvolvimento nacional.
E é por isso que, em relação a esse problema, manifestei, na última
mensagem que dirigi ao Congresso Nacional, a propósito da necessidade de
um estatuto legal que defina e assegure o âmbito de atuação do capital
estrangeiro, o meu apelo para que se encontrasse a justa solução, de
interesse do Brasil. E tal solução será a consistente em evitar a xenofobia
contra os recursos e os elementos de fora que colaboram honestamente em
nossa vida econômica, impossibilitando, também, qualquer ação espoliativa
contra a nossa economia, que aí está para ajudar e ser ajudada, mas que não
pode mais ser colonizada.95

A posição expressa por Goulart aos empresários estrangeiros no Brasil foi mantida em
seus discursos posteriores, inclusive em seus pronunciamentos em solo americano, onde se
manifestou da seguinte forma:

94
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 33-34. Discurso proferido em 23
de março de 1962, no Rio de Janeiro. Grifos nossos.
95
Ibidem, pp. 34-35. Grifos nossos.
38

Legislar sobre o capital estrangeiro, como, agora, mais uma vez,


pretendemos fazer no Brasil, não significa dificultar, embaraçar ou hostilizar
as atraentes possibilidades de aplicação que em nossas áreas de atividade
existem para esse capital. Ao Brasil só não interessa o capital predatório ou
meramente especulador, porque este enriquece o seu investidor à custa dos
sacrifícios do povo.
A experiência de investimentos estrangeiros no Brasil vem do século
passado e mostra de modo eloqüente que nunca, em nosso país, foram
negados nem estímulos nem garantias a esses capitais.96

O esclarecimento do presidente João Goulart estava prestado. Restava saber se ele


seria suficiente para tranqüilizar os investidores estrangeiros e, principalmente, os Estados
Unidos, uma vez que, apesar das ponderações, o governo mantinha o combate ao ―capital
predatório ou espoliativo‖.
Outras situações, naquele mesmo ano, ofereceram oportunidade para o presidente
ratificar seus argumentos. As mais marcantes foram: a inauguração das primeiras unidades
geradoras da usina hidrelétrica de Três Marias (Minas Gerais), construída com participação de
capital japonês; a assinatura do acordo entre a Companhia Vale do Rio Doce e a Companhia
Siderúrgica Belgo-Mineira e sua associada, S. A. Mineração Trindade, para exportação de
minério de ferro; e a assinatura de contratos entre a Central Elétrica de Urubupungá e firmas
italianas, para a construção da usina hidrelétrica de Três Lagoas, no Mato Grosso. Nessas
ocasiões, Jango expressou seu aplauso ao capital estrangeiro ―bem intencionado‖, que teria
contribuído com o esforço pela emancipação econômica e com o progresso nacional.
Especificou ainda as áreas prioritárias de investimento externo: ―o capital estrangeiro que
conosco venha colaborar no campo da siderurgia, no campo da energia e em outros setores de
fundamental importância para a infra-estrutura básica de nosso desenvolvimento, esse capital
há de ter sempre o apoio do Governo‖. Nesse sentido, prometeu ―uma justa e mesmo generosa
retribuição‖ aos que desejassem colaborar na ―batalha pelo progresso nacional‖.97
Não obstante as diversas tentativas de Goulart em assegurar garantias ao capital
estrangeiro ―colaborador‖, a iniciativa, por parte do governo, de distinguir capitais
―colaboradores‖ de capitais ―predatórios‖, e definir medidas que limitassem a atuação deste
último, não agradava os setores ligados ao capital internacional. Tanto foi assim, que, mesmo
conseguida a aprovação da lei de remessa de lucros pelo Congresso Nacional em fins de 1961
– instituindo o registro de capitais estrangeiros e das operações de transferência de
rendimentos para o exterior, bem como limitando as remessas anuais de lucros para o exterior

96
Ibidem, p. 60. Discurso proferido no dia 6 de abril de 1962, em Nova York, no banquete oferecido pelas
associações americano-brasileiras. Grifo nosso.
97
Ibidem, p. 215.
39

em 10% do investimento registrado –, Goulart não a sancionou de imediato; deixou que se


cumprisse o prazo para que o próprio Legislativo a promulgasse, o que ocorreu em 3 de
setembro de 1962. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de um dos primeiros
trabalhos publicados sobre o governo Jango, baseado em entrevista com o próprio Goulart,
Quando, em fins de 1961, o Congresso aprovou a lei que limitava as
remessas de lucros para o exterior, ele não quis sancioná-la, nem vetá-la.
Embora lhe fosse favorável, o que jamais escondera, lavou as mãos como
Pilatos, talvez para não incompatibilizar-se, logo no início do governo, com
os EUA. Deixou o prazo constitucional expirar, a fim de que coubesse à
Mesa do Congresso a função de promulgá-la. E não a regulamentou,
principalmente porque imaginava utilizá-la como instrumento de negociação
com os norte-americanos.98

Realmente, os anos de 1962 e 1963 foram de tentativas de negociação com os Estados


Unidos, tanto no que diz respeito a investimentos e negociação de prazos para pagamento da
dívida, quanto no tocante ao problema com as subsidiárias americanas atuantes nos serviços
públicos brasileiros. No entanto, como veremos adiante, as conversações não alcançaram
grande êxito.
Protelar a sanção e a regulamentação da lei de remessa de lucros teria significado
fraqueza, capitulação dos princípios nacionalistas ou traquejo político por parte de Goulart?
Difícil responder. O certo é que João Goulart era alvo de desconfianças dos norte-americanos
desde os tempos em que fora Ministro do Trabalho de Vargas,99 que o prazo para
cumprimento de parte dos compromissos do país com a dívida externa se aproximava de seu
termo e que a economia brasileira necessitava de novos investimentos. Goulart – que sempre
fez questão de salientar sua preferência pela negociação, e não pelas rupturas – estava nos
primeiros meses de seu governo e optou por deixar a lei seguir o curso mais longo até sua
efetivação. No entanto, é claro que essa protelação não passaria despercebida; e acabou dando
margens para que parte dos setores nacionalistas, que apoiaram a lei, visse sua atitude com
desconfiança.100

98
MONIZ BANDEIRA, L. A. Op. cit., p. 114.
99
Pouco depois de João Goulart assumir o Ministério do Trabalho do governo Getúlio Vargas, o influente jornal
―The New York Times‖ cogitou que o ministro pudesse ―utilizar sua influência para inclinar o movimento
trabalhista brasileiro para o agrupamento de trabalhadores latino-americanos, controlados pelos peronistas‖ – o
que ―seria uma traição ao seu país e a seu movimento trabalhista‖. GOULART, J. Resposta aos jornais e ao The
New York Times. In: BRAGA, K. Op. cit. pp. 190-191.
100
Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, pp. 116-
120. E, do mesmo autor, ―A democracia populista golpeada‖, in: TOLEDO, C. N. (org.). 1964: visões críticas do
golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: UNICAMP, 1997, pp. 36-37. Já para Marco Antonio
Villa, ―O episódio serviu para demonstrar a dubiedade do governo‖. VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil
(1945-1964). São Paulo: Globo, 2004, pp. 153-154.
40

Contudo, em 17 de janeiro de 1964, foi assinada a regulamentação da Lei 4131 que,


enfim, tornava efetiva a disciplina das remessas de lucros para o exterior. Na ocasião, Goulart
discursou, repetindo a diferenciação entre o capital estrangeiro ―colaborador‖ e
―desenvolvimentista‖ e o capital ―colonizador‖ e ―imperialista‖.101 O primeiro seria o que
―aqui se confundiu com os nossos próprios interesses‖; o que ―se dispõe a integrar-se na
recuperação econômica dos países onde são investidos‖, ao qual cabe ―a notabilizante missão
de associar-se ao esforço que estão desenvolvendo as nações pobres para superar e vencer, de
uma vez por todas, as barreiras do subdesenvolvimento‖. A esse seriam concedidas
―condições tranqüilas de expansão, dentro do prisma de nossos interesses comuns‖. Já o
segundo, por ter como ―único intuito ampliar seus lucros à custa do atraso e da estagnação do
país‖ e embaraçar o ―progresso nacional‖, não mereceria ―qualquer contemplação‖; seria
apenas um ―remanescente do século passado, que insiste em sobreviver num mundo que
passou por profundas e radicais transformações‖.
Nesse sentido, João Goulart considerou a lei como ―um passo no sentido de dotar o
país dos elementos legais que libertem as forças potenciais necessárias a seu
desenvolvimento‖. E a inclui num histórico conjunto de ―providências que têm como linha de
ação a defesa e a segurança dos interesses da economia nacional‖, do qual fariam parte: a
criação da Petrobrás, por Vargas; a criação da Eletrobrás; o decreto que estabelecera o
monopólio das importações de petróleo, de dezembro de 1963; a criação da Empresa
Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL); e o decreto, de novembro de 1963, que
determinara o controle prévio dos preços de importação de matérias-primas para a indústria
química e farmacêutica.
Vê-se, nesta questão, que João Goulart, ainda que reafirmando a busca pela
emancipação econômica nacional, e mesmo tomando algumas medidas concretas neste
sentido, não cogitava nenhuma ruptura com o capital internacional, seja ele oriundo de
investidores privados ou de empréstimos via instituições internacionais de crédito, como o
Fundo Monetário Internacional – FMI. O presidente parece até mesmo manter uma visão
otimista do capital estrangeiro, ao esperar que sua intenção cooperativa com o esforço
nacional pela emancipação econômica e superação do subdesenvolvimento preponderasse
sobre o interesse do lucro imediato; e que existisse, realmente, um ―prisma de interesses
comuns‖ que permitisse acordos satisfatórios, tanto para o capital estrangeiro quanto para um

101
As citações que se seguem estão em: ―JG ressalta lei de remessa‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 jan.
1964. Discurso proferido em Petrópolis, Rio de Janeiro.
41

país que deseja atingir autonomia econômica e modificar sua posição na divisão internacional
do trabalho.
Este posicionamento de Goulart não foi diferente da posição que assumira, assim
como tantos outros trabalhistas, ao longo de quase todo o governo de Juscelino Kubitschek –
cuja política econômica optou por um ―desenvolvimento associado‖ e que, na verdade, se
mostrou subordinado.
A transferência de empresas nacionais para o controle estrangeiro, mediante
compra ou associação, acompanhou o desenvolvimento industrial do país /.../
mas durante o governo Juscelino Kubitschek, se confundiu com o impulso
da industrialização, da qual serviu como parâmetro, equacionada a economia
brasileira segundo as conveniências de uma divisão internacional do
trabalho. O Brasil cresceu, sem dúvida, mas apoiado na expansão da
indústria de bens de consumo (automóveis, eletrodomésticos etc),
comandada pelo capital estrangeiro, cujos países de origem procuravam a
todo custo reservar-se a produção de bens de capital, a tecnologia e o nervo
financeiro, como condição de sua preponderância.102

Com exceção das críticas realizadas por Goulart no fim do governo JK, apontando a
necessidade de reformas e de que os encargos do desenvolvimento não recaíssem somente
contra os mais pobres,103 não houve, por parte das forças nacionalistas um posicionamento
mais contundente, contrário à política econômica adotada pelo governo de Kubitschek. Ao
contrário, o surto de crescimento produzido pela expansão do setor industrial com as
empresas multinacionais era visto como um grande passo rumo ao desenvolvimento do país.
Na análise econômica feita por Octavio Ianni, ―a contradição entre a ideologia
nacionalista e a política econômica internacionalizante‖ não teria se tornado aguda durante o
governo JK, por dois motivos: ―porque as forças políticas nacionalistas não haviam elaborado
uma interpretação objetiva das condições e possibilidades da economia brasileira, enquanto
economia nacional‖ e ―porque a política econômica ditadas pelas estruturas de dependência e
as relações de tipo imperialista estavam produzindo um surto notável de desenvolvimento
econômico‖.104
A própria fala de João Goulart, ao assumir seu segundo mandato como vice-presidente
da república, em 01 de fevereiro de 1961, parece dar base à análise de Ianni: ―É certo que o
esforço realizado para vencer, em curto prazo, as etapas do desenvolvimento, custou ao país
pesados sacrifícios, mas estes se acham sobejamente justificados pela importância dos

102
MONIZ BANDEIRA, L. A. Cartéis e desnacionalização (a experiência brasileira: 1964-1974). Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 1975, pp. 12-13.
103
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60.
104
IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979, p. 186.
42

resultados alcançados‖.105 No entanto, segundo documento citado por Moniz Bandeira, em


―O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964)‖ – uma carta ao senador
Benedito Valadares, na época presidente do PSD – João Goulart, já no ano de 1959,
manifestara seu temor de que a economia brasileira estivesse ―caindo progressivamente na
dependência de interesses internacionais, sob a pressão direta de companhias estrangeiras ou
de instituições por elas controladas, como o FMI e as agências oficiais de crédito‖; alertando
ainda que seria ―sabido que os grandes interesses não só se colocam muitas vezes em
antagonismo com os interesses superiores do povo, como também procuram conquistar a
própria máquina administrativa do Estado para assumir as rédeas de sua direção
econômica‖.106
Sendo assim, João Goulart já vislumbrava as consequências que se somavam aos
―pesados sacrifícios‖ já sentidos pela população. Só não imaginava que seria ele o homem à
frente do governo na ocasião de enfrentar tais consequências, que acabaram por impor
grandes dificuldades a sua tentativa de reorientação da política econômica, no sentido de
construir uma estrutura que permitisse a autonomia de decisões.107 Vê-se, portanto, que,
apesar de conhecer os problemas que acompanham os investimentos estrangeiros, Goulart
também sabia que o país não tinha condições de abrir mão dele. A lei da remessa de lucros
seria, então, uma tentativa de continuar a receber esses investimentos, mantendo nas mãos da
orientação nacionalista do Estado ―as rédeas de sua direção econômica‖. O breve tempo de
vida da lei 4131, regulamentada em janeiro de 1964 e revogada, no que tinha de essencial, em
meados do mesmo ano pelo governo militar de Castelo Branco, indicou a inviabilidade desta
conciliação.

1.2.2. Reformas de Base

Como já mencionado em item anterior, desde fins do governo JK, o tema das reformas
passa a ser abordado nos pronunciamentos de João Goulart. No ano de 1959, portanto ainda
como vice do presidente Kubitschek, Goulart se pronunciara nos seguintes termos:
Esse povo pode e sabe suportar privações para que o país se mantenha
independente e se desenvolva, mas é necessário que esse sacrifício não

105
Discurso pronunciado pelo vice-presidente da República João Goulart (PTB-RS), como presidente do Senado,
em 1º de fevereiro de 1961, 41ª Legislatura, 3ª Sessão Legislativa. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/noticias/pronunciamento-de-jango-defende-reformas-de-base.aspx>. Acesso em 31
de dezembro de 2009.
106
MONIZ BANDEIRA, O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60.
107
IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970), p. 175.
43

recaia apenas sobre os menos afortunados, mas sobre todas as classes,


proporcionalmente, e que ao mesmo tempo se adotem medidas de reforma
social tendentes a impedir que uma pequena minoria, nadando em luxo e na
ostentação, continue afrontando as privações e a miséria de milhares e
milhares de brasileiros.108

A reivindicação de reformas de base aparece de forma mais explícita, mas ainda


bastante geral, em discurso realizado no Senado, em 1º de fevereiro de 1961 – momento em
que João Goulart ocupa a vice-presidência pela segunda vez, agora no governo Jânio Quadros,
e antes de ser aventada a possibilidade de chegar à presidência:
A técnica moderna já se revela capaz de eliminar não apenas os grandes
males físicos, mas também os males sociais, dos quais o maior de todos é a
miséria. E para isso são necessárias reformas de base na estrutura
econômico-social do País, pelas quais temos reclamado reiteradas vezes, e
que dependem de esforço conjunto do Poder Legislativo e da administração
pública.109

Vê-se que, neste primeiro momento, as reformas de base são apontadas como uma
necessidade para a eliminação da miséria, ―o maior de todos os males sociais‖; seriam
medidas que pudessem diminuir o enorme abismo social entre uma minoria privilegiada e a
maioria da população brasileira.
Já como presidente, João Goulart seguirá o que preconizara anteriormente; e, menos
de duas semanas após sua posse, discursando em comemoração ao aniversário da
Constituição, mais uma vez se coloca a favor de implementação de reformas. Visto sua posse
ter se efetivado sob a condição da emenda parlamentarista, Goulart deposita no Congresso
Nacional sua expectativa de que fossem efetivadas, quando necessárias, as regulamentações
constitucionais que equacionassem,
de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas.110

Embora as chamadas reformas de base constituam uma série de reformas distintas,


mas coerentes em seu conjunto – reforma agrária, reforma administrativa, reforma bancária,
reforma tributária, reforma cambial, reforma eleitoral, reforma urbana e reforma universitária

108
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60. Citando
documento datilografado integrante do arquivo pessoal de João Goulart.
109
Discurso pronunciado pelo vice-presidente da República João Goulart (PTB-RS), como presidente do Senado,
em 1º de fevereiro de 1961, 41ª Legislatura, 3ª Sessão Legislativa. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/noticias/pronunciamento-de-jango-defende-reformas-de-base.aspx>. Acesso em 31
de dezembro de 2009. Grifo nosso.
110
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18.
44

(ou educacional) –, com exceção da reforma agrária, em poucas oportunidades, o presidente


Jango abordará em seus discursos as demais reformas de modo detalhado.
Ao longo de todo o seu governo – principalmente em sua fase inicial, parlamentarista
–, o apelo pela implementação de reformas aparecerá muitas vezes em seus discursos como
uma necessidade para a manutenção da ―paz social‖. Contudo, para que tais reformas fossem
realmente efetivadas, seria também indispensável a existência de ―paz política‖. Indicativa da
divisão dentro do grupo político acerca das propostas reformistas, a relação entre ―paz
política‖ e ―paz social‖ será constante nos discursos de João Goulart.
No discurso que realiza na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ainda no
mês de sua posse – setembro de 1961 – o presidente, primeiramente, aponta que, tanto a ―paz
política‖ quanto a ―paz social‖ constituem condição para a solução dos problemas de base do
país e, consequentemente, para seu desenvolvimento. Logo em seguida, coloca a ―paz
política‖ como condição para a obtenção da ―paz social‖, através da efetivação de
providências imediatas para a solução dos problemas sociais (identificados por ele com o
subdesenvolvimento). Dessa forma, a ―paz política‖ deveria servir à causa social e ao
progresso do país.
Está na consciência de todos que o Brasil se lançou decisivamente à solução
das questões fundamentais do seu desenvolvimento. Está igualmente na
consciência de todos que o encaminhamento e a solução dos nossos
problemas de base demandam paz política e social /.../.
A paz política, que precisamos manter e consolidar, constitui, de início, a
condição para que a paz fundada na justiça social mostre sua face a todos os
brasileiros. A pobreza das populações rurais, as reivindicações dos
trabalhadores urbanos, a carestia da vida, a defeituosa estruturação das
relações econômicas e sociais, o combate, enfim, ao subdesenvolvimento,
constituem, entre tantos outros, problemas da maior gravidade, que exigem
providências imediatas.
A paz política deve servir à causa da paz social, à causa do progresso e das
melhorias das condições de vida da população.111

Em poucas palavras, o raciocínio exposto neste e em tantos outros discursos de João


Goulart é o de que a ―paz política‖ possibilitaria a concretização de reformas que, por sua vez,
garantiriam a ―paz social‖ e o desenvolvimento econômico do país. Estes argumentos são
reiterados no já referido discurso, proferido no mês de outubro, na sede da revista O Cruzeiro.
Em outras ocasiões, o foco se desloca da relação entre ―paz política‖ e ―paz social‖
para a relação entre reformas e ―paz interna‖. Apesar de manter a relação entre ―paz social‖ e
desenvolvimento econômico, agora as medidas de reforma social aparecem como condição
para a manutenção da ―paz interna‖. Se no discurso anterior a paz política se referia às

111
Ibidem, p. 25. Discurso proferido em 28 de setembro de 1961.
45

relações no interior do grupo dos políticos, quando passa a falar em ―paz interna‖, Goulart se
refere à harmonia (ou conflito) entre as classes.
Sei também, Senhores Vereadores, como são sentidas nesta Câmara as
dificuldades e as angústias do povo, especialmente em face da elevação
constante do custo de vida. Este é o mais sério problema nacional que temos
a enfrentar — o que mais preocupa o povo — e, por isso, tudo faremos para
resolvê-lo com a urgência necessária, já que pode levar-nos a conseqüências
imprevisíveis, porque todos sabemos que as medidas apenas de superfície
não atenderão aos reclamos mais sentidos das populações. O Governo,
sobretudo o Conselho de Ministros, através de providências a curto prazo,
está procurando melhorar essa situação. Mas as medidas reclamadas pelo
povo nas praças públicas, reclamadas pelos sindicatos nas suas sedes,
reclamadas pelas donas de casa nos seus lares — estas são medidas de
profundidade, que atinjam a estrutura básica do País, para, através delas,
proporcionarmos melhores condições de vida aos brasileiros, com a
participação de todos nas riquezas nacionais. Somente através de medidas
corajosas poderemos tirar dos que têm muito, para entregar aos que nada
têm, a fim de criarmos um clima de paz e tranqüilidade, tão indispensável ao
desenvolvimento do País. E é preciso que as forças vivas da Nação
compreendam a imperiosidade dessas reformas, em seu próprio benefício.112
Não tenhamos, porém, senhores congressistas, maiores ilusões: a paz interna
continuará exposta a intermitentes ameaças de aventurismos, se não
concentrarmos todos os nossos esforços para que melhores se tornem as
condições de vida do povo brasileiro, para que sejam cada vez mais
reduzidos os tremendos desníveis que separam sempre, e cada vez mais
perigosamente, a imensa maioria do nosso povo de uns poucos grupos
privilegiados. Os exemplos que se nos oferecem a respeito do que afirmo
estão hoje à porta da nossa própria casa, eclodindo cada vez mais
explosivamente nesta nossa sofrida e espoliada América Latina. Provam eles
que não há reforma política ou revisão institucional consolidadora da paz
interna sem que tal transição seja acompanhada de uma democracia
econômica, sem que a redistribuição das riquezas nacionais se efetue de
forma crescentemente equitativa, sem que se elimine de vez o conceito
anticristão de que é aos mais pobres que deve caber a maior carga de
sacrifícios na libertação dos nossos povos da angústia do
subdesenvolvimento.
/.../Ainda agora, documento fundamental da nossa época, a Encíclica ―Mater
et Magistra‖ alerta o mundo para a urgência de novo equacionamento dos
males sociais que afligem extensas áreas do Universo, especialmente a
América do Sul, ameaçando, pela violência dos seus efeitos, as aspirações de
uma vida melhor e as liberdades essenciais ao Homem.
Sinto-me à vontade, senhores congressistas, para alertar a Nação sobre a
necessidade inadiável de mobilizar todas as suas forças, no sentido de
acelerar essas reformas. Amplia-se cada vez mais, no seio das próprias
classes dirigentes, a área dos que aceitam essa realidade, reconhecendo que,
se coube ao povo, até agora, a maior parcela de sacrifícios para que o Brasil

112
Ibidem, pp. 50-51. Discurso proferido em 25 de outubro de 1961, na Câmara Municipal de Belém. Grifos
nossos.
46

rompa as barreiras do subdesenvolvimento, essa contribuição já atingiu os


limites do suportável.113

Assim, se a ―paz política‖ aparece como condição para a obtenção da ―paz social‖,
esta última se identifica com a ―paz interna‖; e seria condição para o desenvolvimento do país
e para a manutenção da ordem democrática. Suas constantes manifestações a favor de
reformas e do atendimento de reivindicações populares são acompanhadas, em diferentes
discursos, de reiteradas afirmações de defesa da ordem democrática e da fraternidade cristã.
Quando preconizamos reformas e lutamos para que o País se ajuste à
verdadeira realidade, não estamos pregando senão a ordem e o respeito ao
regime democrático, pois não acredito que nenhuma democracia possa
sobreviver sobre a miséria de um povo. Acredito, sim, que através de uma
melhor distribuição das riquezas, com a reformulação de problemas de
interesse fundamental para o povo, ou seja, com uma melhor estruturação do
nosso sistema econômico-social, poderemos assegurar paz, tranqüilidade e
harmonia a todos os brasileiros — desejo máximo de toda a Nação.114
A nossa luta comum condiz com os sentimentos cristãos e pacíficos do
nosso povo, constituindo também o anseio de todas as forças progressistas,
que necessitam da harmonia social para continuar no seu patriótico esforço,
visando ao desenvolvimento nacional. Ninguém pode desejar o agravamento
dos problemas sociais e muito menos a intranqüilidade do povo, que
conduzem à angústia, que conduzem ao desespero e que levam quase sempre
à revolta e imprevisão.115

Interessante manifestação de João Goulart nesse sentido será seu discurso aos
portuários na cidade de Santos, no dia 13 de maio de 1962:
O que interessa ao Brasil são as reformas que nos tragam tranqüilidade e paz
social, e aqui repito, sob o testemunho insuspeito dos trabalhadores, que
desejamos verdadeiramente essa paz e essa tranqüilidade, Estou convencido
de que nenhum país terá paz social se repousar sobre a miséria das classes
operárias e a infelicidade dos mais humildes. Não sei se aqueles que
combatem as reformas desejam realmente a paz social: Deus e o tempo se
encarregarão de demonstrá-lo.116

Em outra oportunidade, reforçando a ideia de que as reformas, ao contrário de


incentivar revoltas, contribuiriam para um ―clima de paz e entendimento‖ essencial ao futuro
do país, Jango afirma: ―Se desejássemos provocar a rebelião, não estaríamos defendendo

113
Ibidem, pp. 63-64. Discurso proferido em 30 de outubro de 1961, em Porto Alegre, na solenidade de
encerramento do II Congresso das Assembleias Legislativas do Brasil. Grifos nossos.
114
Ibidem, p. 75. Discurso proferido em 9 de novembro de 1961, em Brasília. Grifos nossos.
115
Ibidem, p. 80. Discurso, já citado, proferido na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte,
no dia 17 de novembro de 1961.
116
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 88-89. Discurso proferido na
inauguração da nova sede do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá
(SP).
47

reformas para evitá-la, para melhor atender à estrutura social e econômica do País, reformas
através das quais conquistaremos a justiça social que desejamos‖.117
Até aqui, vimos o apelo das reformas como medidas de conteúdo principalmente
social, amenizadoras das desigualdades; e que, por isso, garantiriam maior tranqüilidade ao
país. No entanto, veremos também que, no discurso de João Goulart, essas reformas estão,
além disso, vinculadas à sua ideia de desenvolvimento do país. Para ele, as reformas fariam
―do Brasil uma nação forte e independente‖,118 na medida em que atenderiam ao imperativo
de se ―reformular certos conceitos que entravam o livre desenvolvimento das nossas forças
econômicas, constrangem e desfiguram a realidade social‖.119 No entanto, quais seriam, para
João Goulart, os entraves ao desenvolvimento? Em discurso na solenidade de instalação da
Eletrobrás, proferido no Rio de Janeiro, em 11 de junho de 1962, Goulart aponta:
Estamos, na verdade, atravessando uma fase difícil do processo de
desenvolvimento, tanto vale dizer, do processo em que muitas
transformações estruturais de nossa organização social e econômica se
acham em curso. No panorama de uma sociedade, como a brasileira, em que
a terra, o capital e o trabalho se encontram sob a pressão de problemas de
crescimento, de criação de melhores níveis de vida, de atendimento de
exigências materiais e culturais, relativas a uma população em rápida
expansão, deparamos sinais incontestáveis de que uma grande obra de
reforma se apresenta diante de nós, desafiando a capacidade dos
governantes.120

Para o presidente João Goulart, mais do que medidas superficiais, seriam necessárias
reformas estruturais que permitissem a correção os desequilíbrios sociais e assegurassem a
emancipação econômica do país.121 Ao longo da Mensagem ao Congresso Nacional de 1963,
Goulart afirma que as medidas submetidas à apreciação do Congresso ―sob as denominações
genéricas de reformas agrária, urbana, tributária, bancária e administrativa‖ têm o objetivo de
―adaptar o nosso quadro institucional aos reclamos de um desenvolvimento econômico
orientado por critérios de Justiça Social‖.122 E, em defesa das reformas aponta:
A correção das distorções e desequilíbrios, o fortalecimento da estrutura da
economia, o aperfeiçoamento da máquina administrativa e o afinamento dos
instrumentos diretos ou indiretos de orientação dos investimentos, que

117
Ibidem, p. 121. Grifo nosso. Discurso proferido em João Pessoa, no dia 29 de julho de 1962, perante
concentração popular.
118
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 58. Discurso, já citado, proferido
em Porto Alegre, em 30 de outubro de 1961.
119
Ibidem, p. 124. Discurso de 31 de dezembro de 1961, transmitido pela rede de radiodifusão de ―A Voz do
Brasil‖, ao ensejo da passagem do ano.
120
Ibidem, pp. 100-101. Grifo nosso.
121
―JG dá entrevista admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 fev. 1963.
122
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963. Brasília: Congresso Nacional, 1963, pp. 9-10.
48

resultarão da execução do plano e de introdução das reformas de base,


permitirão, inclusive, que, a partir de 1966, se contemple a possibilidade de
elevar a taxa anual de crescimento da economia para 8%.123

O fato de Goulart colocar as reformas de base como condição e estímulo ao


desenvolvimento econômico nacional, ao mesmo tempo em que aponta que este
desenvolvimento ―será orientado por critérios de justiça social‖, decorre de que um dos
principais objetivos de suas reformas era o da ampliação e fortalecimento do mercado interno.
Só a cegueira, só a incompreensão podem pretender o desenvolvimento e o
progresso dentro de estruturas inteiramente superadas, que não atendem mais
aos mínimos reclamos de justiça e paz social.
/.../
No instante em que através das reformas, pudermos melhorar o poder
aquisitivo do povo brasileiro, a própria indústria nacional será a grande
beneficiada.124
Enfrentamos, hoje, problemas resultantes da capacidade ociosa de setores da
nossa produção, que só poderão ser resolvidos com a expansão do mercado
interno. Este constitui um dos objetivos fundamentais das reformas de base,
pois, somente através delas, poderemos transformar a grande maioria da
população brasileira, que permanece marginalizada, em elementos ativos do
processo econômico.125

Dessa forma, o programa reformista procurava atender tanto à demanda de parte do


empresariado por maior ritmo do crescimento econômico, quanto às aspirações populares de
aumento do seu poder aquisitivo. Em poucas palavras, seu objetivo era simplesmente aliar
desenvolvimento econômico com progresso social.
Vimos, portanto, quais são os objetivos gerais do conjunto das chamadas reformas de
base: diminuir a desigualdade social, a partir de uma melhor distribuição das riquezas,
mantendo, assim a ―paz social‖; e eliminar os entraves do desenvolvimento econômico do
país. Mas quais seriam, concretamente, as medidas – até aqui tratadas genericamente como
reformas de base – defendidas por Goulart para atingir esses objetivos?
O programa reformista era constituído pelas seguintes medidas: reforma agrária;
reforma tributária; reforma bancária; reforma cambial; reforma administrativa; reforma
eleitoral; reforma urbana; e reforma universitária. Justificando a necessidade das reformas de

123
Ibidem, p. 22.
124
―JG a brigadeiros: reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1964. Grifos nossos.
Transcrição de discurso proferido em jantar oferecido pelo presidente no Palácio Rio Negro, Petrópolis, aos
brigadeiros recentemente promovidos na pasta da Aeronáutica.
125
―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964. Grifo nosso.
Transcrição de pronunciamento realizado através de cadeia de rádio e televisão, no dia anterior à publicação.
49

base naquela conjuntura, Roland Corbisier126 explica, apontando cada uma das contradições
que demandariam as respectivas reformas:
o desenvolvimento, tal como vinha sendo realizado, procurando privilegiar a
iniciativa particular e o capital estrangeiro, agravou todos os desequilíbrios
internos, intensificando as contradições entre o processo eleitoral,
corrompido pelo poder econômico, e as expectativas e reivindicações das
massas populares; entre as instituições políticas e administrativas e as metas
do desenvolvimento; entre a necessidade de aumentar a arrecadação, a fim
de dotar o Poder Público dos recursos necessários à realização das próprias
reformas, e as limitações de um sistema tributário discriminatório e injusto;
entre regiões do País e setores da economia, em pleno desenvolvimento,
como a Região Centro-Sul, e outros, como a Região Nordeste e o setor
agrícola, estagnados no arcaísmo de suas estruturas feudais e escravocratas;
entre o crescimento das populações urbanas e a escassez e a carestia dos
imóveis residenciais; entre a necessidade de estimular a produção, pela
democratização e a nacionalização do crédito, e a limitação dos favores
bancários aos grupos privilegiados e às regiões que menos precisam desses
favores; entre a necessidade de poupar cambiais, para aplicá-las nas metas
prioritárias do desenvolvimento, e o esbanjamento, a dilapidação das moedas
fortes na importação do luxuoso e do supérfluo; entre as exigências do
processo de industrialização e um ensino aristocrático e livresco, que não
proporciona aos educandos o conhecimento dos problemas nacionais, nem
os habilita ao trabalho e à solução desses problemas.127

Sobre esta situação de ―contrastes‖ na sociedade brasileira e a necessidade de


transformações para combatê-los, Jango se manifesta nos seguintes termos na Mensagem ao
Congresso, já em 1964:
Os contrastes mais agudos que a sociedade brasileira apresenta, na fase atual
do seu desenvolvimento, são de natureza estrutural, e, em virtude deles, a
imensa maioria da nossa população é sacrificada, quer no relativo à justa e
equânime distribuição da renda nacional, quer no referente à sua participação
na vida política do País e nas oportunidades de trabalho e de educação que o
desenvolvimento a todos deve e pode oferecer. Por isso mesmo que
estruturais, estas contradições só poderão ser resolvidas mediante reformas
capazes de substituir as estruturas existentes por outras compatíveis com o
progresso realizado e com a conquista dos novos níveis de desenvolvimento
e bem-estar.
/.../
Consciente das distorções verificadas ao longo do nosso processo de
transformação social e da necessidade imperiosa de reformas estruturais e
institucionais, assumi a responsabilidade de comandar a luta pela renovação
pacífica da sociedade brasileira, como encargo primeiro e responsabilidade
mais alta da investidura com que me honrou a vontade dos meus
concidadãos. Optei pelo combate aos privilégios e pela iniciativa das
reformas de base, por força das quais se realizará a substituição de estruturas

126
Roland Corbisier atuou como intelectual integrante do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB – e
deputado federal pelo PTB entre os anos de 1963 e 1964.
127
CORBISIER, Roland. ―Lógica e cronologia das reformas‖. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO,
A. (Org.) O Brasil de João Goulart: um projeto de nação. Rio de Janeiro: PUC-RIO / Contraponto, 2006, pp.
147-148.
50

e instituições inadequadas à tranqüila continuidade do nosso progresso e à


instauração de uma convivência democrática plena e efetiva.128

Uma das primeiras ocasiões em que o presidente se refere explicitamente às várias


reformas que comporiam o conjunto das reformas de base será na cerimônia de posse do
economista Celso Furtado como ―Ministro sem Pasta para o Planejamento‖:
É indispensável reformar a nossa economia agrária. E indispensável
aparelhar o Governo com os instrumentos adequados para que possa
governar em benefício do povo, reformando o sistema fiscal, o sistema
bancário e modernizando, enfim, a máquina administrativa. Devemos
construir um sistema educacional à altura das necessidades de uma nação
que caminha, no presente decênio, para os 100 milhões de habitantes.
Precisamos transformar os frutos da nossa industrialização em bem-estar
para a maioria da população brasileira, dando-lhe melhores condições
sanitárias e de habitação e pleno acesso à educação básica.129

Como já foi dito em outra oportunidade, com exceção da reforma agrária – a mais
debatida e à qual será dedicado um item exclusivo neste texto –, em poucas oportunidades, o
presidente João Goulart trata de cada uma das reformas. Elas aparecerão somente em alguns
discursos públicos, de forma bastante geral, e, com mais detalhes, nas mensagens anuais
encaminhadas ao Congresso Nacional – principalmente as dos anos de 1963 e 1964.
Buscaremos, aqui, destacar os principais argumentos de Goulart sobre cada uma das reformas.
Sobre a reforma eleitoral, que pretendia estender o voto aos analfabetos e conceder
elegibilidade aos sargentos, Goulart argumentou:
A reforma eleitoral impõe-se para tornar cada vez mais autêntica a voz do
povo no Parlamento, evitando-se injunções estranhas e inadmissíveis —
demagógicas ou financeiras — na formação das assembléias populares.130
São inadmissíveis, na composição do corpo eleitoral, discriminações contra
os militares, como as praças e os sargentos, chamados ao dever essencial de
defender a Pátria e assegurar a ordem constitucional, mas privados, uns, do
elementar direito do voto, outros da elegibilidade para qualquer mandato.
Outra discriminação inaceitável atinge milhões de cidadãos que, embora
investidos de todas as responsabilidades civis, obrigados, portanto, a
conhecer e a cumprir a lei e integrados na força de trabalho com seu
contingente mais numeroso, são impedidos de votar, por serem analfabetos.
Considerando-se que mais da metade da população brasileira é constituída
de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça, que leva à conclusão

128
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964. Brasília: Congresso Nacional, 1964, pp. VI-VII.
129
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 157-158. Discurso proferido em 27
de setembro de 1962, no Palácio do Planalto.
130
Ibidem, p. 78. Discurso proferido no dia l de maio de 1962, em Volta Redonda (RJ), nas comemorações do
Dia do Trabalho.
51

irrecusável de que o atual quadro de eleitores já não representa a Nação,


urgindo sua ampliação para salvaguarda da democracia brasileira.131

Já em defesa da reforma tributária, que buscava um aumento de arrecadação do


Estado, aumentando a carga sobre os impostos diretos (como o imposto de renda) e aliviando
a carga tributária sobre os produtos e serviços (impostos indiretos), João Goulart afirmava:
Torna-se também premente a reforma tributária, que permita ao Governo ir
buscar recursos nas mãos daqueles a quem o processo inflacionário favorece
com lucros desmedidos, e aplicá-los em benefício da Nação, corrigindo
desigualdades excessivas e enfrentando as grandes dificuldades
orçamentárias, sem necessidade de recorrer a emissões ou outros encargos
que importem em novos sacrifícios para o povo.132

Quando falo, também, em reforma tributária, não me refiro apenas a


providências para cobrir déficits orçamentários. Em países mais adiantados,
constantemente citados por homens que ainda não admitiram a necessidade
de reformas de profundidade, o imposto de renda é pago numa proporção
que atinge até 90% de certos lucros. No entanto, aqui no Brasil,
desgraçadamente, os que mais lucros obtêm são, muitas vezes, os que menos
recolhem aos cofres públicos. É necessário, portanto, que se faça uma
revisão total na sistemática arrecadadora do País, para que todos contribuam
de conformidade com seus lucros, especialmente os que mais se beneficiam
com a inflação.133

Além dos pontos já presentes nos discursos citados acima, Goulart procura ressaltar a
importância da reforma tributária para a ―restauração das finanças públicas a um nível de
equilíbrio estável‖ e a necessidade de uma ―reforma drástica e profunda do sistema e da
máquina arrecadadora, de modo a evitar a evasão fiscal‖.134 Lembra, ainda, que o imposto não
deve ser considerado ―apenas como fundo da receita pública, mas primordialmente, como
instrumento para a realização das reformas e como estímulo ao desenvolvimento‖.135
Também apontada por Goulart como uma das reformas ―imperiosas‖ está a reforma
bancária – fundamental, segundo o presidente, para estimular o desenvolvimento econômico
do país.
O sistema bancário precisa ser atualizado para assegurar uma organização de
crédito e financiamento capaz de alimentar o progresso econômico do País.
A indústria, a agricultura e o comércio necessitam de crédito largamente

131
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. LV.
132
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 78.
133
Ibidem, p. 90.
134
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. 35.
135
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 12.
52

difundido, a juros normais, para se desenvolverem e melhor contribuírem


para o aumento da produção nacional.136

Tal reforma teria como objetivos: democratização e seletividade do crédito (de acordo
com as necessidades do desenvolvimento), com subordinação da rede bancária particular a um
sistema oficial de crédito. O controle exercido pelo órgão central seria, de acordo com
Goulart, no sentido de conter o fluxo inflacionário.
Na presente conjuntura nacional, impõe-se com igual imperatividade a
Reforma Bancária. A inexistência de um autêntico sistema de Banco Central
no País tem aumentado as dificuldades do Governo para disciplinar o fluxo
monetário e controlar a inflação. Salvar o País das conseqüências
imprevisíveis de uma hiperinflação, dotá-lo de reformas estruturais que
libertem a plenitude das forças potenciais de seu desenvolvimento, aprimorar
e fortalecer o regime democrático, são as maiores tarefas que nos cabe
cumprir em 1963.137

Além de obter maior controle sobre a inflação, um órgão centralizado como o Banco
Central também deveria, segundo Goulart, selecionar e distribuir o crédito de forma a
impulsionar o desenvolvimento econômico.
De há muito o País reivindica, por intermédio de suas forças econômicas, a
implantação de um órgão autêntico e centralizado, com autonomia de
decisões, para a direção da política monetária e bancária, que disponha de
maior força coercitiva para o controle de processos inflacionários. Foi o que
visou atender a proposta do Poder Executivo enviada ao Congresso, ao
mesmo tempo em que procura dotar o Governo de condições que melhor lhe
permitam selecionar o crédito para o impulso das verdadeiras forças de
produção.138

Contudo, mesmo indicando que o objetivo da reforma bancária seria ―dotar o país dos
instrumentos imprescindíveis à efetiva execução das políticas monetárias, creditícia e
cambial‖, desobstruindo ―o pleno exercício das funções do poder público na orientação do
processo do desenvolvimento‖ – o que configura maior controle por parte do Estado –, o texto
do anteprojeto da reforma explicita certa cautela com as possíveis repercussões no sistema
bancário:
Restringe-se o anteprojeto aos aspectos gerais da política monetária e
creditícia, não dispondo, por isso mesmo, sobre a especialização das
instituições de crédito de natureza bancária. Parece temerário, no atual
estágio de desenvolvimento do sistema bancário, delimitar as atividades

136
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 77-78.
137
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 12.
138
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, pp. XXXVIII-XXXIX.
53

desses organismos, posto que isso poderia afetar sua estabilidade


financeira.139

De menor repercussão, mas sempre referida nas mensagens encaminhadas pelo


presidente ao Congresso Nacional, a reforma administrativa teria como objetivo modificar a
máquina administrativa do Estado, ―simplificando e racionalizando sua organização‖,
provendo-a de técnicos qualificados e recursos capazes de efetivar planos de
desenvolvimento.140 Segundo Jango, a reforma administrativa seria imprescindível para
libertar o poder executivo ―das velhas amarras da organização burocrática tradicional‖ e
possibilitar ao Estado ―maior dinamismo e eficiência‖ no desempenho de suas funções.141
Para ele,
A máquina administrativa do Estado não acompanhou as exigências do
crescimento nacional. Numa fase em que o Poder Público assume novas e
múltiplas funções, em grande parte de caráter técnico, assistimos ao
abandono progressivo do sistema do mérito na seleção dos servidores
públicos, fonte de desestímulo à formação de quadros de pessoal
especializado e de desarticulação de importantes setores da Administração.
A Reforma Administrativa é da mais absoluta urgência, pois dela depende o
Governo para levar a bom termo a efetiva execução das demais reformas e
para desempenhar a sua tarefa de elemento propulsor do desenvolvimento
nacional.142

De maior apelo popular, a reforma urbana objetivava sanar o problema habitacional


nos centro urbanos. Esta reforma foi destacada entre os atos do executivo que seriam apoiados
pela Frente Única de Apoio às Reformas de Base – articulada, principalmente, por San Tiago
Dantas, no início de 1964, numa tentativa de sustentação do governo Goulart pelos
parlamentares. De acordo com o programa reformista, mostrava-se necessário:
1. Levantamento imediato, a começar pelos grandes centros urbanos, das
necessidades de habitação das classes populares e estabelecimento, para cada
uma delas, em cooperação com os poderes competentes, de Planos de
Reforma Urbana, que proporcionem a cada família um teto próprio,
adquirido com o salário ou vencimento, e impeçam a especulação imobiliária
e o enriquecimento sem causa de proprietários, à custa de obras e
melhoramentos públicos.
2. Estímulo, sem privilégios cambiais ou monopólios de fato, à produção em
série de casas populares, para atendimento a baixo preço e com lucros
controlados, dos planos habitacionais aprovados pelo Governo.143

139
―Enviado ao Congresso anteprojeto de reforma bancária‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 mar. 1963.
140
CORBISIER, R. Op. cit., pp. 153-154.
141
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, pp. XI-XII.
142
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, pp. 11-12.
143
―Goulart lançou frente de apoio às reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 fev. 1964.
54

No mês seguinte à publicação do programa acima citado – que foi, também, o último
mês do governo de João Goulart – a reforma urbana constituiu um dos temas do comício da
Central do Brasil, no dia 13 de março. Nele, Jango anunciou que assinaria, como de fato fez
logo no dia seguinte, o decreto que regulamentaria o preço dos aluguéis. O decreto nº 53.702,
de 14 de março de 1964, previa o encaminhamento de estudos para desapropriação, por
utilidade social, de imóveis desocupados e tabelou o preço dos aluguéis da seguinte forma:
aluguel de um quarto: até 1/5 do salário mínimo local;
aluguel de habilitação (sic) de quarto e cozinha ou quitinete: até 2/5 do
salário mínimo local;
aluguel de habilitação (sic) de sala, um quarto e cozinha ou quitinete: até 3/5
do salário mínimo local;
aluguel de habilitação (sic) de sala, um quarto, cozinha e dependências de
empregado: até 4/5 do salário mínimo local;
aluguel de habitação de sala e dois quartos, com serviço de empregados: ate
1 salário mínimo local;
aluguel de habitação de sala, 3 quartos com serviço de empregados: até 1
e 1/2 salário mínimo local;
aluguel de mobiliário completo: até 20% do valor do aluguel mensal do
apartamento.144

Pouco presente nos discursos anteriores de João Goulart, a reforma cambial, assim
como a urbana, ganhou destaque já na fase final do governo, com a Instrução nº 263 da
Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), através da qual, segundo o economista
Pedro Cezar Dutra Fonseca, Goulart
recorreu-se a uma política cambial bastante heterodoxa, um misto de câmbio
fixo para produtos essenciais – como café e açúcar, nas exportações, e
petróleo, trigo, papel de imprensa e equipamentos para a PETROBRAS, nas
importações –, em que o dólar foi mantido no patamar oficial anterior,
coexistindo com câmbio flutuante para os demais produtos.145

Em pronunciamento através de cadeia de rádio e televisão, João Goulart colocou a


Instrução nº 263 como a primeira de uma série de medidas ―tendentes a sanear as finanças
internas e a resguardar o processo de desenvolvimento do país‖. Segundo o presidente,
A reforma elimina o inconveniente de deterioração progressiva da
remuneração cambial dos produtos exportados em relação aos custos
internos crescentes. Ao mesmo tempo, atende à preocupação de evitar
impacto inflacionário na economia e agravamento do custo de vida, ao
manter uma taxa especial para determinada gama de produtos importados.
/.../ Assegura-se ainda com a reforma, o monopólio para o Banco do Brasil
das divisas produzidas pelo café e açúcar, produtos que vêm obtendo boa

144
Decreto nº 53.702, de 14 de Março de 1964. Publicado originalmente em: Diário Oficial da União - Seção 1 -
16/03/1964, p. 2491. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-53702-
14-marco-1964-393664-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 17 de novembro de 2011.
145
FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A crise do governo Goulart: uma interpretação. In: Encontro Nacional de
Economia Política, n. 9, Uberlândia (MG), 2004. Disponível em:
<http://www.sep.org.br/artigo/9_congresso_old/ixcongresso03.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2011.
55

cotação no mercado internacional, o que representará uma disponibilidade de


mais de um bilhão de dólares, para que o Governo possa atender a seus
programas prioritários.146

Sendo assim, o objetivo da reforma cambial seria a garantia do monopólio do câmbio


para defender o valor da moeda nacional e controlar o orçamento cambial, além de impedir ―a
importação do luxuoso e do supérfluo‖ e aplicar ―o saldo de moedas fortes na importação do
que é necessário à realização das metas prioritárias do desenvolvimento e da emancipação
econômica do País‖.147
Última das reformas citadas neste bloco, a reforma universitária foi explicitada por
João Goulart somente em sua Mensagem ao Congresso Nacional de 1964. Nela, a reforma
universitária aparece como necessária ao atendimento de exigências do desenvolvimento e
como meio para
corrigir a estrutura fragmentária, que multiplica, dentro da mesma
Universidade, instalações, equipamentos e pessoal para tarefas idênticas,
provocando a desproporção entre os seus orçamentos e o número de alunos
matriculados e, por conseguinte, determinando baixa rentabilidade do
investimento público.
A centralização do ensino e da pesquisa em grandes setores básicos, a
serviço de toda a Universidade, com eliminação dos núcleos dispersos pelas
suas várias unidades, representará substancial economia de meios, por um
lado, e, por outro, a possibilidade de ampliar as matrículas nas escolas, seja
no ciclo básico, seja no ciclo profissional.148

Apontando a necessidade de garantir a liberdade do docente e abolir a vitaliciedade da


cátedra, a reforma também tinha como preocupação outros níveis de ensino, além do superior:
Esforçar-se-á o Governo por assegurar a todos o direito à escola média,
tornando-a acessível, em etapas sucessivas de escolarização, a toda a
juventude, como ainda tentará recuperar a população que a falta secular de
escolas tornou marginal do processo educacional e, por conseqüência, do
sistema de produção. Por outro lado, imprimirá novo sentido ao sistema
escolar, de modo que ele não sirva, apenas, a uma camada privilegiada, mas
seja a forma de habilitação do homem comum para o trabalho e para a sua
integração na comunidade nacional.
Democratização da cultura e habilitação profissional são os princípios
básicos que nortearão todo o esforço governamental para que o sistema
escolar possa satisfazer, de fato, as aspirações e necessidades do povo
brasileiro.149

146
―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964. Transcrição de
pronunciamento feito no dia anterior à publicação.
147
CORBISIER, R. Op. cit., p. 166.
148
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, pp. 170-171.
149
Ibidem, p. 163.
56

De maneira sintética, os objetivos da reforma universitária eram: democratização da


formação científica superior; formação de pessoal técnico qualificado que atendesse à
demanda de uma indústria crescente; e estímulo à produção de ―conhecimento científico da
realidade nacional‖.150

Depois de apresentadas, sucintamente, as linhas gerais desse conjunto de reformas,


cabe a explanação e o debate da reforma de maior repercussão ao longo de todo o governo
João Goulart e a que, se realizada, causaria maior impacto na estrutura econômica do país: a
reforma da estrutura da propriedade agrária. Devido à complexidade do tema e à quantidade
de material a ele correspondente, a reforma agrária será tratada separadamente.

1.2.2.1. Reforma Agrária

Abordar questões agrárias e fundiárias no Brasil significa tocar num conjunto bastante
complexo de elementos econômicos, políticos e sociais que, ao longo da história, construíram
uma estrutura relacionada não somente à propriedade fundiária, mas também à estrutura de
classes e ao modelo de capitalismo e industrialização estabelecidos no país. Esta
complexidade de elementos, assim como das implicações econômicas e sociais por eles
trazidas, faz com que o debate sobre o tema, no Brasil, seja sempre acirrado e difícil.
A presença do latifúndio na história deste país desde o momento da formação de seu
território e de sua sociedade possibilita dizer que o problema agrário no Brasil teria origem na
própria forma de ocupação do seu território pelos colonizadores portugueses, através das
sesmarias – uma ocupação que tinha como objetivo a formação de estrutura material e social
que atendesse aos interesses da metrópole, sem considerar os desdobramentos desta estrutura
naquela sociedade em formação.
No entanto, constatar que o latifúndio está presente no Brasil desde o surgimento desta
sociedade, não explica as razões pelas quais ele, mesmo trazendo graves consequências
sociais, permanecera até a década de 1960, período sobre o qual nos debruçamos neste
trabalho, e mantenha-se até hoje. Sua manutenção foi defendida com afinco pelas classes
dirigentes do país em diferentes momentos de sua história, inclusive por legislações de caráter
preventivo a quaisquer reformas na estrutura agrária.
Desde o período de formação do Brasil-Colônia até o século XIX, (inclusive no
período de fins deste mesmo século, quando o Brasil deixa sua condição de colônia), a

150
CORBISIER, R. Op. cit., pp. 169-171.
57

estrutura econômica brasileira permanece fundamentada na monocultura, no latifúndio e no


trabalho escravo. No entanto, de acordo com José de Souza Martins,
a questão agrária começa a se definir quando o Estado brasileiro, no século
XIX, pressionado por alguns setores das elites e, sobretudo, pelas grandes
potências da época, que queriam expandir seus mercados (coisa impossível
com a escravidão, pois escravo não compra), decide acabar com a
escravidão.151

Dessa forma, as pressões pelo fim do escravismo e para o estabelecimento do trabalho


livre começam a ser sentidas por aqui num momento em que o território brasileiro ainda era
pouco ocupado; e o fim da escravidão torna-se uma ameaça à abundância de mão-de-obra,
mesmo assalariada (uma vez que os escravos libertos poderiam simplesmente ocupar porções
de terra e tornarem-se produtores, ainda que somente para sua própria subsistência, ao invés
de trabalhar para os fazendeiros em troca de salário).
Para livrar-se desta ameaça, a aristocracia latifundiária antecipa-se e institui, em
1850,152 a Lei de Terras, garantindo ―um regime de propriedade que impedisse o acesso à
propriedade da terra a quem não tivesse dinheiro para comprá-la, mesmo que fosse terra
pública ou devoluta‖.153 Além disso, como nos lembra Emília Viotti da Costa, a Lei de Terras
também abriu espaço para a legalização de grandes propriedades adquiridas ilegalmente:
Tanto os que obtiveram propriedades ilegalmente, por meio da ocupação,
nos anos precedentes à lei, como os que receberam doações mas nunca
preencheram as exigências para a legitimização de suas propriedades
puderam registrá-las e validar seus títulos após demarcar seus limites e pagar
as taxas – isso se tivessem realmente ocupado e explorado a terra.154

A Lei de Terras, portanto, ao mesmo tempo em que retira a copropriedade do Estado


do direito de propriedade– o que obstaculiza possíveis tentativas de reforma agrária pela ação
estatal – também instituiu ―bloqueios ao acesso à propriedade por parte dos trabalhadores, de
modo que eles se tornassem compulsoriamente força de trabalho das grandes fazendas‖.155
Trabalhando com os Anais do Congresso Brasileiro da época do debate da Lei, Emília Viotti
da Costa constatou:

151
MARTINS, José de Souza. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STÉDILE, João Pedro (org.). A
Reforma Agrária e a Luta do MST. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 13.
152
Mesmo ano da Lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico de escravos. A abolição da escravidão no Brasil
virá somente em 1888.
153
MARTINS, J. S. Op. cit., p. 14.
154
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1999, p.171.
155
MARTINS, J. S. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994,
p. 76.
58

Todos os defensores do projeto insistiam que, subjacente a esses argumentos


particulares, estava o fato de que a lei criaria condições para que o
fazendeiro obtivesse trabalho livre para substituir os escravos, cujo
fornecimento estava ameaçado pela iminente interrupção do tráfico negreiro.
É óbvio que, para eles, a nova política de terras tinha como um de seus
objetivos resolver o torturante problema da força de trabalho.156

Dessa forma, quando a abolição da escravidão é instituída pelo Estado brasileiro, deixa
uma massa de ex-escravos sem as menores condições de sobrevivência, transformando-os em
mão-de-obra farta e extremamente barata à disposição dos latifundiários.
Embora o capital, naquele momento de seu processo de expansão mundial, entrasse
em contradição com o escravismo, no Brasil, diferentemente do que ocorreu nos países que
realizaram suas Revoluções Burguesas, as transformações sociais necessárias à reprodução
capitalista foram realizadas pelas ―mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso em que
se situavam numa situação histórica anterior‖.157
Com isso, a estrutura agrária no Brasil permanece inalterada e mantém-se assim
mesmo no período em que se inicia o processo efetivo de industrialização do Brasil (início
dos anos 1930). Como afirma Francisco de Oliveira, o que ocorre no Brasil a partir da década
de 1930 não é um conflito entre a nova e a velha elite (respectivamente, burguesia industrial e
aristocracia agrária), mas sim o estabelecimento de um novo padrão de acumulação que
prescinde da ―destruição completa do antigo modo de acumulação‖;158 forma-se um novo
modelo que congrega formas distintas, mas não contrapostas, de acumulação, permitindo a
união entre burguesia e oligarquia. Ou nas palavras de Maria Dolores Prades:
Diferente dos casos clássicos, por exemplo, onde o capital industrial se
impõe às velhas formas ―derivadas ou secundárias‖, no caso brasileiro, a
constituição do ―verdadeiro capitalismo‖ evidencia uma conexão estrutural
da burguesia industrial com o quadro anteriormente existente, onde a
economia agrária de feitio latifundiário predomina. Profundamente marcado
por essa conexão, o capital industrial aqui se ressente, desde suas origens, do
bloqueio e dos obstáculos impostos pela estrutura atrasada anterior.
Limitação essa responsável pelo caráter conciliador que perpassa o processo
de modernização nacional e que se manifesta na subordinação dos ―novos‖
interesses econômicos às ―velhas‖ estruturas produtivas, assim como no
atraso do desenvolvimento das forças produtivas no país.159

Esta aliança entre burguesia e oligarquia no período não impede a cautela, por parte
dos representantes dos interesses oligárquicos, quanto à nova organização econômica do país
156
COSTA, E. V. Op. cit., p. 179.
157
MARTINS, J. S. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994,
p. 58.
158
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p.
65.
159
PRADES, Maria Dolores. Op. cit., p. 254.
59

em seu processo de desenvolvimento industrial. Expressão disso foi o estabelecimento, na


Constituição de 1946 (durante o governo Dutra), de um dispositivo para a manutenção do
latifúndio: a obrigatoriedade de indenização prévia e em dinheiro aos proprietários de terras
desapropriadas, mesmo que para fins sociais e de reforma agrária. Dessa maneira, a reforma
agrária ficaria economicamente inviabilizada ao Estado brasileiro.
Apesar deste dispositivo constitucional, José de Souza Martins aponta o período que
se segue à Constituição de 1946 e vai até 1964 como um período de enfraquecimento das
oligarquias latifundiárias. Segundo ele, este enfraquecimento decorre tanto das modificações
das condições sociais e da dinâmica dos conflitos de classes resultantes do
desenvolvimentismo deste período, quanto do desencadeamento dos movimentos sociais no
campo. Um dos reflexos destas mudanças seria a intensificação do debate em torno da
necessidade de reformas sociais, dentre as quais a reforma agrária era a mais central, pois
discutia a base material das relações de classe.
Contudo, o autor aponta que ―não havia, na elite, uma classe antagônica
suficientemente forte e consciente de seus interesses e de suas oposições, como uma
burguesia industrial ou simplesmente uma burguesia moderna, oposta aos interesses do
latifúndio‖,160 que fosse capaz de encabeçar a realização das reformas sociais dentro das
opções políticas e ideológicas da própria elite. Assim, as tensões acumuladas no campo
fortaleciam os movimentos de esquerda e a própria movimentação dos trabalhadores rurais,
como os reunidos nas Ligas Camponesas.161 Tal cenário, inserido no contexto da Guerra Fria,
―dava às dispersas e frágeis lutas do campo uma dimensão que não tinham e uma importância
que decorria antes de sua inserção em conflitos ideológicos mais amplos e não de sua própria
força ou de sua própria representatividade‖.162

160
MARTINS, J. S. O poder do atraso, p. 74.
161 As Ligas Camponesas surgem da mobilização dos trabalhadores rurais do Engenho Galiléia, em Vitória do Santo
Antão, Pernambuco. Estes trabalhadores organizam, com a permissão do fazendeiro proprietário do engenho, uma
cooperativa funerária com o objetivo de diminuir os custos de sepultamento dos mortos (que, aliás, eram cada vez
mais freqüentes, denunciando as condições miseráveis em que viviam). No entanto, vendo na organização de seus
trabalhadores uma ameaça, o fazendeiro intenta a retomada das terras então ocupadas pelas lavouras dos
trabalhadores do engenho. Inconformados com esta ação, os trabalhadores procuram em Recife o advogado e
deputado Francisco Julião, que sugere ao grupo a atuação pela via legalista, reivindicando o direito da Lei do
Inquilinato. O movimento consegue, desta forma, impedir que suas terras fossem retomadas e, daí em diante, ganha
importância; passando a atuar, também, em outras localidades e de formas distintas da maneira inicial, chegando,
durante o governo João Goulart, a reivindicar uma reforma agrária radical. Ver: AZEVEDO, Fernando Antonio.
Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
162
MARTINS, J. S. O poder do atraso, p. 75.
60

Será nesta conjuntura que João Goulart se posicionará, tão logo assuma a presidência
da república, a favor da efetivação de uma reforma agrária no Brasil – reivindicação que,
inclusive, já fora assumida pelo PTB desde os anos 1950.

Reforma Agrária e regulamentação constitucional

Logo no dia 18 de setembro de 1961, discursando na ocasião do 15º aniversário da


Constituição de 1946, Goulart inclui a reforma agrária no conjunto de ―problemas‖ a serem
equacionados pelo Congresso Nacional, através de necessárias regulamentações
constitucionais:
Estou certo de que o Congresso Nacional, refletindo as aspirações do povo,
há de oferecer à Nação os estatutos legais inadiáveis, equacionando, de
maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas; regulamentando preceitos constitucionais,
como e quando se fizer necessário, concretizando medidas de maior
alcance social, que ainda figuram no texto da Carta Magna como meras
conquistas sem efetividade prática, de modo, enfim, que o povo sinta que,
ao defender o regime democrático, defende, em verdade, seus próprios
interesses, que são os superiores interesses do País.163

E será justamente a falta de tal regulamentação constitucional um dos maiores


obstáculos à execução de qualquer programa de reforma agrária naquela conjuntura.
Como vimos, a obrigação de indenização prévia e em dinheiro no caso de
desapropriação fundiária, inviabilizava a reforma. De acordo com o presidente, a Constituição
de 1946, ao mesmo tempo em que reconhecia ―por um lado, a função social da propriedade,
ao admitir a desapropriação por interesse social‖, por outro impossibilitava ―a aplicação
prática desse princípio, ao estabelecer que toda e qualquer desapropriação se faça pela prévia
e justa indenização em dinheiro‖.164 E uma emenda constitucional que contornasse este
obstáculo não era da alçada de Jango ou do Conselho de Ministros do período
parlamentarista; mas somente seria possível através da atuação e aprovação do Congresso
Nacional.
Sobre esta dificuldade de implementação de uma reforma agrária, Jango falará em
diversas ocasiões. Na Mensagem encaminhada ao Congresso, pela abertura do ano legislativo

163
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18.
164
Ibidem, p. 85. Discurso proferido em 17 de novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais.
61

de 1962, o presidente atribui à reforma agrária a condição de ―ideia-força irresistível‖,


presente em todas as camadas da população; e reclama:
Urge efetivá-la, tornando-a financeiramente possível, sem sobrecarregar
demasiado o País com o ônus do investimento necessário. Será preciso
reduzir ao mínimo o custo financeiro da reforma, por meio de legislação que
fixe o critério do valor para a desapropriação com o fim social e estabeleça
alternativa para a prévia indenização em dinheiro.165

Outro discurso importante dentre os que Goulart proferiu defendendo a


regulamentação constitucional a fim de viabilizar a reforma agrária, está o realizado em
Belém do Pará, ainda em 1961, no qual argumentou:
É necessário que se tenha a coragem de dizer as coisas como realmente são,
para se conseguirem reformas. É necessário que se votem leis de
profundidade, pois sabem os homens ilustres do Pará, sabem os intelectuais,
os estudantes e os trabalhadores que de nada adianta falarmos em reforma
agrária, por exemplo, se não iniciarmos a nossa luta pela reforma da
Constituição. E se o Parlamento brasileiro, com o seu alto patriotismo,
pôde, em momento difícil do País, modificar a Carta Magna para resolver
uma crise política, poderá também, a qualquer momento, modificá-la
novamente, para evitar uma crise ainda mais grave, que é a crise social em
que vive o povo brasileiro, que é a crise da fome ou a crise do mal-estar nos
lares pobres, e que poderá transformar-se num movimento revolucionário
muito mais perigoso do que o movimento que há pouco ameaçou o Brasil.166

Dessa forma, ao mesmo tempo em que aponta a viabilidade de uma reforma


constitucional – afinal uma emenda fora aprovada havia pouco: a que limitou seus poderes
como condição para sua posse na presidência – João Goulart alertava para o fato de que a não
efetivação de reformas, sobretudo a da reforma agrária, poderia desencadear movimentações
contra a ordem legal. Aliás, o apelo pela solidariedade à população rural em dificuldades
extremas e o alerta da ameaça que a manutenção da situação de miséria no campo
representava à legalidade e à ―harmonia social‖ serão argumentos que João Goulart utilizará
em outras manifestações públicas em favor da reforma agrária.
Por diversas vezes, a reforma agrária será invocada como meio de obtenção de maior
justiça social e possibilitar ―condições dignas de vida‖ a uma população crescente, impedindo
que vegetasse na ―pobreza e na incultura‖.167 Tal forma de tratar a reforma agrária tanto

165
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. XIII.
166
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 51. Grifo nosso. Discurso proferido
no dia 25 de outubro de 1961.
167
―A população do País está crescendo à taxa vertiginosa de 3,3% ao ano, ao passo que a taxa na América
Latina é de 2,9% e a taxa média no mundo de 1,7% anuais. Isto significa que, possuindo hoje 70 milhões de
habitantes, o Brasil terá 130 milhões em 1980 e 210 milhões no ano 2000. Temos de nos preparar para dar
trabalho e condições dignas de vida a essa população, não permitindo que ela cresça e vegete na pobreza e na
incultura. Esta constitui uma tarefa gigantesca, que exige, evidentemente, transformações estruturais na
62

convergia com os ―ideais de fraternidade cristã‖ assumidos por Jango em seus discursos,168
como compunha o quadro de uma situação de alerta, em que a miséria no campo poderia
fomentar iniciativas revolucionárias, que, a seu ver, deveriam ser evitadas – é possível e, em
vários momentos, provável, que Goulart utilize tanto do discurso cristão, como o
―antirrevolucionário‖, para marcar sua distância do comunismo, de que foi constantemente
acusado. Nas comemorações Trabalho de 1962, João Goulart alertava para a existência de
―sintomas de impaciência popular‖ quanto à urgência da reforma agrária, afirmando a
necessidade de que se fosse ―ao encontro das legítimas aspirações da população rural,
ajudando-a a libertar-se das condições de extrema penúria /.../ e dando-lhe a oportunidade de
participar dos benefícios da civilização industrial‖.169 Esse alerta se repetirá, inclusive na
Mensagem encaminhada ao Congresso pela abertura do ano legislativo de 1964 – há menos
de um mês do golpe militar ser desfechado – desta vez, de modo mais enfático:
Para atender velhas e justas aspirações populares, ora em maré montante que
ameaça conduzir o País a uma convulsão talvez sangrenta, sinto-me no grave
dever de propor ao exame do Congresso Nacional um conjunto de
providências a meu ver indispensáveis e já agora inadiáveis, para serem,
afinal, satisfeitas as reivindicações de 40 milhões de brasileiros.170
A correção das anomalias da estrutura fundiária nacional, originada de
obsoleta concepção do direito de propriedade, faz-se mister seja iniciada
com urgência, pois, além de constituir ponto de estrangulamento que impede
a rápida dinamização da produção agrícola, causa mal-estar social capaz de
assumir proporções imprevisíveis, na medida em que a explosão
demográfica, principalmente nas áreas mais subdesenvolvidas, aumenta a
pressão pela posse da terra, como meio de sobrevivência.171

Contudo, talvez a mais significativa manifestação de João Goulart sobre esta questão
tenha sido a realizada no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa, numa concentração de
trabalhadores rurais, em que diz:
A reforma agrária que desejamos e haveremos de realizar − e para tanto os
brasileiros estão desde já convocados − não é uma obra de esbulho, nem de
espoliação e muito menos motivo de apreensão, porque, acima de tudo, é um
instrumento de luta pelo nosso desenvolvimento econômico e deve ser, antes

sociedade‖. GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 18. Discurso proferido no


Rio de Janeiro, em 25 de janeiro de 1962, por ocasião do encerramento da VI Conferência Rural Brasileira.
168
―Tenho-me empenhado pela implantação de uma política dinâmica em nosso país, que possibilite a solução
de nossos problemas de base, inclusive o da reforma agrária, para que se possa obter mais justiça social,
garantir as liberdades individuais e proporcionar aos brasileiros condições dignas de existência, de acordo com
os nossos ideais de fraternidade cristã‖. Ibidem, p. 14. Discurso proferido em Araraquara (SP), em 19 de janeiro
de 1962, instalação do Congresso Rural Estadual, promovido pela Federação das Associações Rurais do Estado
de São Paulo.
169
Ibidem, p. 77.
170
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. LII.
171
Ibidem, p. 96.
63

de mais nada, tarefa de justiça social. Dentro destas linhas de conciliação,


que refletem profundas convicções no meu espírito, chego à terra das Ligas
Camponesas, fruto do instinto associativo do nordestino pela sua
sobrevivência, certo de que, apesar da carga emocional que o problema de
convivência entre proprietários e trabalhadores rurais em muitos lugares está
provocando, havereis de compreender que, nos quadros da legalidade
democrática, o problema não traz os aspectos sombrios das lutas fratricidas.
Com reformas hábeis, oportunas e humanas, será possível encontrar a
solução devida e esperada, a solução desejada pela Nação brasileira.
/.../
Proprietários rurais há que dispensam aos trabalhadores um tratamento infra-
humano, indiferentes às suas necessidades, ou dão uma retribuição
mesquinha ao seu suor e ao seu trabalho. Isso tem gerado em amplas áreas
do Nordeste um sentimento de inconformidade e de revolta, que se não for
contido, com a esperança de melhores dias, poderá degenerar em processos
explosivos, dos quais ninguém, muito menos o País, poderá obter lucros.
Não há de ser, porém, pelo critério de alguns transviados do dever e do
próprio sentimento de humanidade que um problema de tal natureza há de
ter solução. Temos que o resolver no quadro da lei. A Constituição terá que
ser modificada, e sê-lo-á certamente, para que a reforma possa transformar-
se na realidade desejada por todos os brasileiros. Acreditamos no patriotismo
daqueles que haverão de atender, reformando a Constituição brasileira, aos
interesses da Nação. Acreditamos que esta Constituição há de ser revisada
pelo patriotismo daqueles que têm o dever, de reformá-la, para que, através
dela, se possa atingir a verdadeira harmonia e a verdadeira paz social, isto é,
para que se possa chegar a um Brasil que não seja apenas das minorias, mas
também dos trabalhadores, do povo brasileiro, enfim.172

Dessa forma, João Goulart explicita os objetivos de sua proposta de reforma agrária –
desenvolvimento econômico e justiça social – e ratifica seu posicionamento de conciliação
perante aos riscos de convulsão social gerados pela condição miserável em que vivia (e ainda
vive) grande parte dos trabalhadores rurais. No entanto, vale ressaltar, que não obstante, em
sua fala, João Goulart defenda ―linhas de conciliação‖, o presidente também deixa claro que a
solução não poderia ser atingida a partir do critério dos proprietários – ―alguns transviados do
dever e do próprio sentimento de humanidade‖ – mas sim pela lei.
Também se pode notar que, se por um lado Goulart denuncia o tratamento subumano
dispensado à grande parte dos trabalhadores rurais, por outro, procura apaziguar o que
entende como ―carga emocional‖, provocada pelo ―problema da convivência entre
proprietários e trabalhadores rurais‖ – o ―sentimento de inconformidade e de revolta‖ gerado
entre os trabalhadores diante da mesquinhez de certos proprietários de terras – através da via
legal, ―nos quadros da legalidade democrática‖. Contudo, para que esta grave questão fosse
resolvida legalmente, evitando uma ―luta fratricida‖, mais uma vez, o presidente reclama a
regulamentação constitucional, apelando para o patriotismo dos congressistas.

172
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 119-120. Discurso proferido em 29
de julho de 1962. Grifos nossos.
64

Esse pedido de emenda ou reforma constitucional que viabilizasse a execução da


reforma agrária será repetido pelo presidente Goulart inúmeras vezes ao longo de todo o seu
período de governo. No ano de 1963, chegou inclusive a enviar, juntamente com o anteprojeto
de reforma agrária, uma mensagem a Auro de Moura Andrade e Ranieri Mazili,
respectivamente, presidentes do senado e da câmara dos deputados, solicitando ―a
modificação constitucional como requisito para a reforma agrária‖, uma vez que a previsão
constitucional da indenização prévia e em dinheiro representava um ―obstáculo de
impraticável transposição ao mais adequado uso social da terra‖.173
Debatendo-se ainda por esta questão, Jango insistiu na necessidade da alteração
constitucional, chegando a afirmar, segundo reportagem do jornal Correio da Manhã, que ―a
aprovação de um projeto de reforma agrária sem a vinculação com a reforma constitucional,
não passaria de um engodo, seria uma ‗tapeação‘‖.174 A posição de Goulart diante da
possibilidade e das consequências de uma reforma agrária sem a revisão constitucional já fora
exposta claramente num discurso proferido aos portuários, em 1962, em que se expressa nos
seguintes termos:
É preciso também dizer, com franqueza, que reformas apenas de superfície
não resolvem os graves problemas nacionais. No tocante à reforma agrária,
por exemplo, entendo que sem a modificação de dispositivos constitucionais
não será possível realizá-la em benefício do povo. Por um artigo de nossa
Carta Magna, as desapropriações só poderão ser efetuadas mediante prévia e
justa indenização em dinheiro. Ora, evidentemente, se fôssemos proceder
desta maneira, não haveria tal reforma no Brasil. Não chegaríamos a fazê-
la se o Governo tivesse que despender quantias fabulosas na compra de
terras e pagar preços que serviriam, afinal, não para ajudar o trabalhador,
mas para enriquecer ainda mais o latifundiário. Não defendo, também, a
expropriação de terras. Sou favorável a que se pague ao proprietário, mas
que se lhe pague o valor à altura daquilo que se lhe pode pagar, e que o
pagamento seja feito a longo prazo e em títulos da União. Se fôssemos emitir
o necessário para o pagamento das áreas desapropriadas, antes que se
fizesse a reforma agrária já a inflação teria corroído o organismo do País, e
o levaria, decerto, à revolução. Façamos a reforma em termos que realmente
atendam aos interesses dos pequenos produtores e possibilitem o acesso à
terra àqueles que não a possuem e que, por isso, são obrigados a pagar
preços extorsivos, sob o regime de arrendamento ou de parceria.175

173
―Estrutura agrária do Brasil é um enorme entrave ao progresso‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 mar.
1963. Mensagem transcrita integralmente pelo jornal.
174
―Goulart admite reforma ministerial e diz ser normal situação militar‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14
mai. 1963. Grifo nosso. Reportagem realizada a partir de uma ―palestra com os jornalistas‖, realizada no dia
anterior, na residência de Goulart, em Copacabana.
175
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 89-90. Discurso na inauguração de
uma nova sede do Sindicato dos Operários dos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá, em 13 de
maio de 1962. Grifos nossos.
65

Também no famoso discurso da Central do Brasil, em grande comício realizado dias


antes do golpe militar que o depôs, o presidente Jango afirmará que ―reforma agrária com
pagamento prévio e em dinheiro não é reforma agrária; como consagra a Constituição, é
negócio agrário que interessa apenas ao latifundiário‖.176
Vemos, dessa forma, que ao longo de todo o período em que ocupou a presidência –
seja na fase parlamentarista, ou na presidencialista – João Goulart reclamou, até mesmo com
insistência, na mudança do dispositivo constitucional que, a seu ver, impossibilitava uma
reforma agrária no Brasil. Debateu e argumentou sem sucesso, visto que o poder legislativo
não acatou suas propostas de emendas constitucionais ou de reforma agrária, ignorando o
resultado de pesquisas como a do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, o
IBOPE – empresa de caráter privado – que, em 1963, apontava uma média de 62% dos
eleitores como favoráveis à realização da reforma agrária e considerando-a como a mais
urgente das reformas necessárias ao país.177
A conjuntura favorável à reforma é ressaltada por Darcy Ribeiro, 178 quando, em carta
à Glauber Rocha, responde sobre ―uma aparente dualidade‖ entre o que Jango era em sua vida
privada – um ―fazendeiro-invernista bem-sucedido e rico‖ – e o papel que desempenhava na
vida pública – o de ―político reformista‖. Para Darcy,
a simples suposição dessa dualidade traz implícita a ideia de que as
personalidades são entidades inteiriças e coerentes, o que é muito duvidoso.
Mais verdadeira é talvez a observação de que os homens atuam na vida
social, e particularmente na arena política, muito mais de acordo com as
circunstâncias que se apresentam – as conjunturas, como se diz – do que
com o ideário que acaso tenham. /.../
um homem não exprime, no poder, a sua ideologia pessoal, mas a conjuntura
política com que ascendeu. 179

E, para dar um exemplo claro do significado de sua afirmação, Ribeiro lembra que, em
1962, fora procurado por Juscelino Kubitschek, com o pedido de que formulasse ―um plano
de governo com vista à campanha eleitoral de 1965‖, dizendo que ―desejava o plano mais
avançado de reformas estruturais, a começar por uma reforma agrária‖. Sobre este fato, Darcy
Ribeiro questiona:
Que significa isso? Parece compatível com o JK que conhecemos – flor da
politicagem profissional brasileira – a imagem de um reformador radical?
176
GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., p. 40.
177
RODRIGUES, J. H. Op. cit., p. 229.
178
Darcy Ribeiro, antropólogo, um dos fundadores e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), foi
Ministro da Educação e Cultura no governo Jango, de 18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963,
assumindo, posteriormente, a chefia do Gabinete Civil, onde permaneceu até o golpe militar, que destituiu seus
direitos políticos.
179
RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 193-194.
66

Pois esse era o papel que ele se supunha chamado a representar. Isso porque,
naquela conjuntura, aparentemente só uma política reformista lhe prometia o
aspirado acesso ao poder. 180

Nesta conjuntura, Jango se encontrava, então, ―sujeito às mesmas expectativas e


pressões‖ e, segundo Ribeiro, ―talvez também estivesse mais capacitado a atendê-las, apesar
de suas ideias e até de seus interesses pessoais e classistas‖.181

Reforma agrária e comunismo

Como vimos no item anterior, a defesa da reforma agrária exposta por João Goulart
faz referências constantes aos ideais cristãos e democráticos. A reiteração do vínculo entre a
defesa destes princípios e das reformas de base – sobretudo, da reforma agrária – é uma
resposta de Jango, por vezes sutil, e por outras mais direta, a possíveis acusações de
comunismo. Conhecedor de tais acusações e ―desconfianças‖, Goulart argumentava:
Modificações na estrutura agrária sempre acompanharam a história das
nações. São uma fatalidade na evolução das etapas do processo social. Este é
precisamente o nosso caso. A reforma agrária no Brasil não deve estar
ligada a reivindicações de natureza ideológica ou sectária. Trata-se de
indeclinável exigência das condições econômico-sociais do nosso
desenvolvimento, do bem-estar do povo.
É medida de natureza social, sem dúvida, mas, com ênfase ainda mais
expressiva, é medida de ordem técnica imposta pelas condições objetivas da
nossa vida nacional.
Não me importa a convicção ideológica do observador. O que ele não poderá
negar é que as relações entre os que trabalham e os que possuem a terra são,
de modo geral, um obstáculo ao desenvolvimento da produção agrícola, ao
aumento da sua produtividade, a uma melhor distribuição das rendas. Esta
situação, meus caros estudantes, é que devemos temer, e não a reforma
agrária. A situação que a reforma agrária deverá corrigir é que é alarmante e
cheia de perigos para a legalidade democrática.182
De fato, ainda não há muitos anos, falar de reforma agrária suscitava
apreensões e desconfianças. Hoje, nenhum pensamento conhecedor da
realidade brasileira, tenha o colorido ideológico que tiver, será capaz de
negar a sua necessidade. Precisamente por essa razão, o que já não convém é
fazer do debate do problema um expediente para lhe adiar o
encaminhamento prático.
/.../ Hoje, não a reclamam apenas partidos e ideologias. Ela é reclamada pela
consciência política nacional.183

180
Ibidem, p. 195.
181
Idem.
182
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 102. Grifos nossos. Discurso
proferido em 10 de dezembro de 1961, em solenidade do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.
183
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 17-20. Discurso proferido em 25
de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, na cidade do Rio de
Janeiro. Grifos nossos.
67

Sendo assim, João Goulart aponta a necessidade da reforma agrária como uma questão
―de ordem técnica‖, intrínseca e imprescindível ao desenvolvimento econômico do país, e não
uma decisão de ―ordem ideológica‖. E, para mostrar que sua proposta, longe de estar
vinculada a ideologias consideradas subversivas, na verdade refletiria preocupações de setores
notoriamente contrários ao comunismo, Goulart assim se manifesta:
Meus conterrâneos: de há muito me venho batendo, com calor patriótico,
para que se realizem no País as reformas de base, que são reclamadas pelo
interesse de toda a Nação. Há alguns anos atrás, como bem o sabeis, quando
qualquer cidadão se dispunha a tratar desse problema, e mesmo, ao de leve,
se referia à necessidade de levar-se a cabo a reforma agrária, passava ele a
figurar no rol dos subversivos, dos pregoeiros da desordem. Hoje, porém,
essa reforma constitui uma aspiração geral, principalmente daqueles que
realmente se interessam pela grandeza do Brasil e por sua independência
econômica. Hoje, não são somente os trabalhadores do campo, apoiados
pelos seus companheiros das cidades, que reivindicam a reforma agrária, em
bases justas, de modo a possibilitar o acesso à terra aos homens que a
trabalham e nela se sacrificam.
Hoje, são os Bispos brasileiros da Igreja Católica que, em manifesto, pedem
um novo estatuto da terra; são os trabalhadores de outras nações que
clamam, nas suas fábricas e nos seus sindicatos, pela libertação, na América
Latina, dos homens do campo, escravos do latifúndio.
Ainda há pouco, quando visitava os Estados Unidos da América,
conversando com representantes de suas classes operárias, ouvi deles
afirmações como esta: ―Temos receio de que o povo americano, através de
contribuições, carreie recursos para a agricultura dos países sul-americanos
e, especialmente, dos países onde ainda não se fez a reforma agrária, porque
certamente esses recursos, fornecidos através de empréstimos ou de qualquer
outra modalidade, não vão servir para libertar o pequeno agricultor, nem
para libertar o homem que não tem terras e que a trabalha. Ao contrário, vão
servir apenas para enriquecer mais aqueles já enriquecidos com o trabalho
dos camponeses em suas terras‖.
Se eu tivesse citado, neste instante, uma frase de Kruschev, de um chefe
chinês ou de um líder cubano, todos vós estaríeis dizendo que aqui também
se levanta a agitação. Reproduzi, porém, as palavras que me foram ditas por
trabalhadores de uma nação democrática, apontada como exemplo às
demais. Portanto, esse sentimento de reforma já existe no coração e na
compreensão de brasileiro, a todos, enfim, que queiram lutar pelo
desenvolvimento deste país. Não desejamos importar figurinos estrangeiros
para realizá-la: ela deverá possuir tonalidades locais, ser obra de brasileiros
para brasileiros, tanto nas suas origens quanto nos seus objetivos.184

Goulart, em sua fala, procura comprovar sua afirmação de que a reforma agrária no
Brasil seria uma ―aspiração geral‖, reclamada não somente por ―partidos e ideologias‖,
apontando que, tanto a Igreja Católica como os trabalhadores de um país usado como exemplo
na defesa da ordem democrática e combate ao comunismo aprovariam a realização de tal
reforma.

184
Ibidem, pp. 124-125. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, ao receber o titulo de Cidadão Campinense
e a faixa de Presidente da Legalidade, em Campina Grande (PB).
68

Ainda no sentido de marcar sua posição, diferenciando-se de propostas ligadas ao


comunismo, João Goulart ressalta o fato de que sua proposta não constituiria uma vitória da
classe trabalhadora na luta de classes, mas sim uma medida que permitiria ―associar‖
trabalhadores e proprietários num esforço pelo bem da coletividade e pelo fim da ―exploração
do homem pelo homem‖, retomando aqui uma expressão antes utilizada por Getúlio Vargas.
a reforma agrária que compreendo, que prego, e que o Brasil exige, não é a
que consistiria em transformar trabalhadores em proprietários e proprietários
em trabalhadores, mas aquela que, atendendo a uns e outros, permita
associar a todos, com direitos e deveres fixados, no esforço conjunto pelo
bem-estar da coletividade, fazendo assim cessar a exploração do homem
pelo homem, e abrindo, ao mesmo tempo, as perspectivas de uma utilização
racional da terra para quem esteja em condições de aproveitá-la no interesse
social, que há de ser o mais relevante dos legítimos fundamentos a justificar
sua propriedade e seu domínio.185

É necessário salientar aqui que, quando Getúlio Vargas falava em ―exploração do


homem pelo homem‖, a identifica com o ―predomínio da lei de seleção animal‖ propiciado
pelo liberalismo econômico. Segundo ele,
ou remediamos /.../ os males que afligem o povo ou este perderá a confiança
e a si mesmo se prejudicará, caindo em excessos condenáveis. Se
pretendemos verdadeiramente viver como civilizados, cumpre-nos não
admitir, como condição para prosperar, o predomínio brutalizante da lei de
seleção animal, a exploração do homem pelo homem. 186

Sendo assim, tanto em Vargas quanto em João Goulart, o fim ―da exploração do
homem pelo homem‖, nada tem a ver com a ideologia comunista. Goulart, inclusive, faz
questão de destacar que a reforma agrária por ele defendida não está apenas desvinculada de
qualquer avanço comunista, como também seria uma forma de combatê-lo; uma vez que
reforçaria os laços do povo com o regime democrático e multiplicaria o número daqueles que
defenderiam a propriedade privada. Por diversas vezes, Goulart ressaltará o conteúdo anti-
revolucionário de uma reforma agrária no país naquele momento. Em seus discursos, aponta
que a realização das reformas eliminaria o ―sentimento de angústia‖ que poderia levar a
revoltas e a ―caminhos imprevisíveis‖.
Estou convencido que o próprio direito de propriedade /.../ ficaria muito
mais respeitado se maior fosse o número de proprietários rurais no interior
da nossa pátria. Hoje existem, no Brasil, dois milhões e oitocentos mil
proprietários; e a terra, num país com essa vastidão territorial, apenas dois
milhões e oitocentos mil brasileiros têm um pedaço de terra dentro de nosso
país. É claro /.../ que se amanhã, ao invés de dois milhões e oitocentos mil,
nós pudéssemos multiplicar para dez ou quinze milhões de brasileiros, que

185
Ibidem, p. 118. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa.
Grifos nossos.
186
Ver: COTRIM, Lívia C. de A. Op. cit., pp. 274-275.
69

também fossem proprietários, muito maior seria o número daqueles que


defenderiam a propriedade e que tornaria mais legítimo o direito de respeito
a essa propriedade.
/.../ É necessário que o povo brasileiro não se deixe iludir com mistificações.
Aqueles que dizem que a reforma que pretendemos é para reforçar e
valorizar forças estranhas ao sentimento cristão do povo brasileiro estão
enganados /.../. Não é se negando os anseios legítimos do povo que se
fortalece o regime democrático; não é dizendo não ao povo que se melhoram
as leis ou a Constituição. Se desejarmos lutar, cristã e democraticamente,
contra as forças que contrariam o sentimento cristão do povo brasileiro,
então /.../ vamos ao encontro do povo e de suas reivindicações! É os
atendendo naquilo que é justo e democrático é que eles, não agredidos, não
passem a [inaudível] de angústia, que quase sempre leva ao desespero e
que, quase sempre leva à revolta das camadas populares. Esse é o
pensamento do governo. /.../ porque está sempre presente no nosso
pensamento a palavra daquele amigo de Juiz de Fora e de todos os
brasileiros, aquele presidente /.../ que dizia que a violência gera violência e
que com compreensão, com entendimento e com amor, a paz vai se construir
para a eternidade. É exatamente esse o nosso pensamento. É com o
pensamento voltado para o imortal presidente Getúlio Vargas, que nós
desejamos as reformas e que nós a desejamos pacífica e
democraticamente.187
Não se compreende /.../ que o que outros países já fizeram há anos, inclusive
países aqui da América Latina, não possam também ser promovidos no
Brasil, e que não o sejam como nós desejamos, dentro de um clima de paz e
de compreensão entre todos os brasileiros. Porque a não realização dessas
reformas — o que representaria o estrangulamento dos mais sentidos
anseios do povo brasileiro — poderia conduzir o Brasil a caminhos
imprevisíveis.
/.../ O que desejamos, com essas reformas, é integrar na sociedade brasileira
mais de quarenta milhões de irmãos nossos, também brasileiros, que
precisam participar da vida de seu País e da riqueza nacional.
Esta é a paz que há de incorporar todo o povo à sociedade que nós todos
desejamos, à sociedade cristã de um país livre, de um país independente.188

Reafirmando, portanto, a particularidade da reforma agrária defendida por seu


governo, João Goulart faz questão de assinalar que, além de pacífica, a reforma proposta
deveria ser ―tipicamente nacional‖, considerando as necessidades sociais e econômicas do
desenvolvimento do país. E, desse modo, sua reforma agrária não seguiria os exemplos e
fórmulas das reformas realizadas em outras partes do mundo, principalmente entre os países
comunistas. Para o presidente Jango:
A reforma agrária brasileira deve ser executada sem choques violentos e
consoante os moldes reais de nossa estrutura rural. A reforma que desejamos
possui características brasileiras e deverá atender, de preferência, aos

187
Transcrição de discurso proferido em 31 de maio de 1963, na sessão solene de entrega do título honorário de
juiz forano, na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG). Arquivo de áudio em CD que acompanha: GOMES,
Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces.
188
―JG: reformas são para defender democracia‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 mar. 1964. Transcrição
de discurso proferido no Palácio do Planalto, em Brasília, em reunião do presidente com 300 prefeitos
brasileiros, no dia anterior à publicação.
70

interesses dos nossos trabalhadores rurais. É preciso que eu afirme com


clareza ao povo /.../ que não desejamos, ninguém deseja mesmo, importar
uma reforma para implantá-la no Brasil. O que desejamos é uma reforma
tipicamente nacional, que atenda aos interesses dos trabalhadores rurais, uma
reforma sobre a qual se plante somente uma bandeira, a bandeira auriverde
do Brasil. Não desejamos reformas de outros países, repito. A reforma da
União Soviética terá servido aos seus povos no instante em que foi
praticada; a reforma da China pode convir aos chineses; mas a reforma que
convém ao Brasil é a reforma desejada pelo povo brasileiro, é a reforma
que atenda às nossas necessidades e aos legítimos anseios do País.
A reforma agrária que desejamos e haveremos de realizar − e para tanto os
brasileiros estão desde já convocados − não é uma obra de esbulho, nem de
espoliação e muito menos motivo de apreensão, porque, acima de tudo, é um
instrumento de luta pelo nosso desenvolvimento econômico e deve ser, antes
de mais nada, tarefa de justiça social.189
Venho defendendo, com insistência e absoluta convicção, a necessidade de
se reformular o sistema agrário nacional, e tenho reafirmado, reiteradamente,
a minha esperança de que o Brasil encontre, dentro em breve, uma solução
autenticamente brasileira para o problema da reforma agrária, de modo que
a revolução reclamada para o campo se processe tranquila e pacificamente
e atenda aos seus objetivos fundamentais de desenvolvimento e justiça
social.190

Também em discurso na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, João


Goulart reafirmou que ―o Brasil não precisava de padrões‖ para as reformas que
proporcionariam ―paz e justiça sociais‖ ao país. Segundo ele, não haveria ―a necessidade de
importar normas e figurinos, porque o povo brasileiro tem suas características próprias e o
país as suas condições geográficas específicas e que, portanto, a reforma era brasileira – verde
e amarela – feita para brasileiros‖.191
As posições de João Goulart aqui explicitadas se mantêm ao longo de todo o período
em que ocupou a presidência da república. Suas explicações e esclarecimentos acerca de sua
proposta de reforma agrária estão presentes desde seus discursos de 1961 aos de 1964. Seja
falando em eventos ruralistas, seja em concentrações de trabalhadores, o presidente Jango
explicitava argumentos defensivos de possíveis acusações de comunismo, ao mesmo tempo

189
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 118-119. Discurso proferido em 29
de julho de 1962, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa. Grifos nossos.
190
Ibidem, p. 161. Discurso proferido em 29 de setembro de 1962, ao visitar o Simpósio e a I Exposição do
Milho, na cidade de Catanduva (SP). Grifos nossos.
191
―Justiça social exige reforma agrária em moldes brasileiros‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 abr. 1963.
Transcrição de discurso proferido no dia anterior à publicação. Vale apontar que há uma divergência entre a
citação aqui utilizada e a citada por Marco Antonio Villa, cuja fonte é o jornal O Estado de S. Paulo, não
verificado na nossa pesquisa. Na citação feita por Villa o texto seria: ―Nossa bandeira é verde-amarela. Não
precisamos de patrões para defendê-la‖. Cf. VILLA, M. A. Op. cit., p. 103. Enquanto que na reportagem do
Correio da Manhã, o texto é: ―Frisou que o Brasil não precisava de padrões para tais reformas, nem tinha a
necessidade de importar normas e figurinos, porque o povo brasileiro tem suas características próprias e o país as
suas condições geográficas específicas e que, portanto, a reforma era brasileira – verde e amarela – feita para
brasileiros‖.
71

em que procurava expor os princípios da reforma agrária que defendia. Sustentava uma
reforma agrária que, não obstante o conteúdo social gerado pela inclusão econômica de
parcela considerável da população rural brasileira, constituía uma necessidade econômica do
desenvolvimento nacional. Uma reforma que, longe de incorporar ideais comunistas,
objetivava a ampliação da defesa da propriedade privada, bem como a contenção de possíveis
movimentos revolucionários violentos. Reforma que, em suas palavras, seria ―genuinamente
brasileira‖ e realizada pacificamente, dentro de uma ―perspectiva democrática e cristã‖. 192 Ou
seja, a reforma agrária buscada por Goulart, ainda que tivesse como tônica o atendimento das
particularidades e demandas nacionais, se filiava claramente ao padrão de desenvolvimento e
aspirações capitalistas.

Reforma agrária e desenvolvimento

Como vimos, João Goulart considerava a reforma agrária também como uma medida
de ordem técnica, necessária ao desenvolvimento econômico. Procuraremos, por ora,
compreender a leitura do histórico do desenvolvimento brasileiro que leva Goulart a fazer tal
afirmação.
Em diversas ocasiões, o presidente Jango apontava ―a ausência de uma reestruturação
agrária‖ como um obstáculo à ―marcha do progresso‖ do país. Para ele, ―sem uma agricultura
progressista‖ seria impossível ―uma economia nacional equilibrada‖; e a estrutura agrícola
naquele momento não mais atenderia ―às necessidades do crescimento da economia geral do
País.193 Uma das maiores questões apontadas por Goulart era a urgência em aumentar a
produtividade agrícola brasileira.
O Brasil reclama uma reforma agrária que possibilite a revisão das relações
jurídicas e econômicas entre os que trabalham a terra e os que detêm a
propriedade rural, para que seja possível libertar a produção agrícola dos
seus seculares entraves e proporcionar maior produtividade ao agricultor,
assegurando-lhe justa participação nas riquezas, para dotar o País de uma
agricultura moderna, racional e mecanizada, de alto rendimento produtivo.
Evidentemente, no Brasil, tal lei agrária deve possuir características de
maleabilidade, para acomodá-la às variadas condições regionais e de modo a

192
―Não desejo suprimir vantagens legitimamente auferidas por parcelas do povo, nem tampouco me move o
desejo insano de atingir o patrimônio de quem quer que seja. O que me anima é o trabalho em prol da justiça. O
que desejo é dar condições para que todos tenham vantagens num futuro próximo, e todos possam um dia
igualmente defender o patrimônio que possuem. A essência do trabalhismo, para mim, reside em dar a cada um
o respeito que se tem a si próprio. É dentro dessa perspectiva democrática e cristã, genuinamente brasileira,
que atende às nossas melhores tradições culturais, que se coloca a minha pregação‖. GOULART, J. Entrevista
concedida à Revista Manchete, no mês de novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO, Carlos. Introdução a
Revolução de 1964. Tomo 2. A queda de João Goulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 244.
193
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), pp. 83-84. Discurso proferido 17 de
novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em
Belo Horizonte.
72

respeitar as unidades de produção bem organizadas, de bom rendimento, sem


levar em conta a sua extensão.
Creio ser dever do Governo estimular todas as iniciativas que se preocupam
com a questão agrária nacional, procurando solucionar os seus problemas,
pois o aumento da produção e a elevação do padrão de vida do trabalhador
rural constituem meta fundamental para os destinos do Brasil.194

A preocupação acerca da produtividade agrícola de então pode ser mais bem


compreendida considerando que, segundo dados apontados por Darcy Ribeiro, em seu livro
As Américas e a civilização, no Brasil de 1960, as propriedades brasileiras com mais de mil
hectares de área – latifúndios –, embora absorvessem 47,3% das terras apropriadas do país,
―cultivavam, tão-somente, 2,3% das mesmas contribuindo seus cultivos com apenas 11,5% do
total das lavouras do país‖. Mesmo nos latifúndios dedicados à pecuária, a produtividade não
era satisfatória: ainda ―detendo 60% das pastagens, criava 36,6% do rebanho‖. Tal situação
fez com que Ribeiro afirmasse: ―Estes são índices expressivos do seu caráter ‗latifundiário‘
como detenções de terras, não para explorar, mas para monopolizar‖.195
Tocando nesta questão da distribuição e produtividade da terra, o presidente João
Goulart apontava que a manutenção da distribuição da terra ―unicamente como pura
mercadoria que o mercado do dinheiro e o mero interesse do investidor proprietário‖
controlavam resultava em utilização que não obrigava o ―cultivo intenso‖ do solo, nem exigia
―a melhoria das técnicas do trabalho‖. Deste modo, ―os modos de apropriação‖ da terra
impediam que ―populações muito mais numerosas‖ produzissem e alimentassem ―muito mais
gente do que na verdade alimentam‖.196 Apontava que:
Terra ocupada, entre nós, nem sempre quer dizer terra lavrada ou terra
aproveitada no limite de suas possibilidades. /.../
A reforma agrária é reivindicação do desenvolvimento nacional. Reforma
agrária quer dizer, sem dúvida, proibição de conservar terras inaproveitadas,
que fiquem aguardando valorizações aleatórias, com finalidades
especulativas ou distorsivas (sic), sem forma e sem figura de interesse social.
197

194
Ibidem, p. 85. Grifos nossos.
195
RIBEIRO, D. As Américas e a Civilização: processo de formação e causa do desenvolvimento desigual dos
povos americanos. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 252.
196
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 18-19. Discurso proferido em 25
de janeiro de 1962, no encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro. ―A distribuição da
terra, entre nós, continua até hoje a processar-se unicamente como pura mercadoria que o mercado do dinheiro
e o mero interesse do investidor proprietário controlam sob qualquer ângulo. Resulta daí que o modo de
apropriação da terra determina formas de uso que não obrigam seu cultivo intenso, e, portanto, não exige
melhoria das técnicas do trabalho. Os modos de apropriação impedem, também, que populações muito mais
numerosas se instalem em terras que poderiam alimentar muito mais gente do que na verdade alimentam‖.
197
Ibidem, pp. 19-21.
73

A baixa produtividade agrícola constituía um problema ainda mais grave se


considerada a crise de abastecimento de gêneros alimentícios enfrentada pelo país nos
primeiros anos da década de 1960 e o consequente aumento de seus preços, já avolumados
pela inflação.198 Diante deste problema, que incrementava cada vez mais o custo de vida dos
trabalhadores, o presidente João Goulart apontava a importância da reforma agrária como
parte fundamental da solução. Falando aos trabalhadores portuários e às lideranças sindicais,
Goulart destaca:
O problema mais grave /.../ eu o quero abordar agora: é o do custo de vida,
que constitui reflexo de outros tantos problemas também graves. /.../ não
tenho poupado esforços e mesmo sacrifícios, em contato permanente com o
Conselho de Ministros, a fim de que se tomem medidas drásticas e corajosas
para atenuar as dificuldades impostas ao povo pela elevação de todos os
preços, principalmente dos gêneros de primeira necessidade. /.../ Tenho feito
apelos, e posso dizer à classe operária que esses apelos vêm encontrando
compreensão por parte da maioria dos órgãos da administração federal. Mas,
fiel que sou aos trabalhadores, devo dizer-lhes também, numa homenagem
de franqueza e de sinceridade, que as medidas de contenção de preços, de
importação de gêneros, de intervenção, consideradas tão necessárias, de
nada adiantarão se, ao lado delas, não se estabelecerem planos objetivos
para o aumento da produção, se não for promovido o livre acesso à terra
àqueles que ainda não a têm para produzir, se não se proporcionar
assistência técnica e financeira aos agricultores.199
A reforma agrária deve possibilitar, antes de tudo, o acesso imediato do
trabalhador rural à terra, que ele trabalha com sacrifício. Não será no regime
de exploração que conseguiremos tornar mais barata e mais acessível ao
povo a produção de gêneros alimentícios. Não será no regime dos
arrendamentos extorsivos, nem no do "cambão", que resolveremos o
problema básico da alimentação e do abastecimento.200

Vê-se, portanto, que João Goulart enxergava no ―livre acesso à terra‖ para os
agricultores que ainda não a tinham, juntamente com ―assistência técnica e financeira‖, uma
saída para aumentar a produção de gêneros alimentícios e torná-la ―mais barata e acessível ao
povo‖ – ou seja, eliminar o problema do abastecimento e da alimentação. Para Goulart,
A estrutura agrária predominante no País constitui enorme entrave ao nosso
progresso econômico e social. Em um país de terra tão abundante e grande
excedente de mão-de-obra, não se compreende que continuemos a viver em
permanente escassez de oferta de produtos agrícolas. Subutilizamos terra,
198
Embora pouco explorada pela bibliografia existente, o economista Cássio Silva Moreira aponta para a
possibilidade de a crise de abastecimento de gêneros ter sido agravada por um boicote dos grandes proprietários
e produtores rurais, descontentes ―frente à sinalização da criação do Estatuto da Terra e da reforma agrária,
defendida pelo governo‖. Cf. MOREIRA, Cássio Silva. O projeto de nação do governo João Goulart: o Plano
Trienal e as Reformas de Base (1961-1964). Tese (Doutorado em Economia) – Faculdade de Ciências
Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, pp. 111-112.
199
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 91. Discurso, já citado, proferido
em 13 de maio de 1962. Grifos nossos.
200
Ibidem. p. 113. Discurso proferido em 26 de junho de 1962, ao receber líderes sindicais no Palácio do
Planalto, Brasília. Grifos nossos.
74

mão-de-obra e às vezes também o capital, pela irracionalidade das formas de


organização da produção. Grande parte da população do campo está
submetida a precárias condições de vida sem que se lhe dê a oportunidade de
usar a sua capacidade de trabalho em benefício próprio.201

Falando particularmente sobre a região Nordeste, Jango reforça esta ideia, ressaltando,
desta vez, não a irracionalidade da estrutura agrária no Brasil, mas apontando-a como uma
―revivescência da sociedade colonial, organizada em bases feudais para atender às
conveniências da metrópole longínqua‖. Para ele,
A essa primitiva estrutura devemos, em grande parte, a escassez de
alimentos de que tanto sofre o Nordeste e que sufoca o desenvolvimento da
sua economia urbana. A menos que criemos aqui uma moderna agricultura
ligada ao mercado regional, o desenvolvimento industrial tropeçará sempre
em obstáculos intransponíveis. Para que exista esta agricultura moderna, em
termos de desenvolvimento, ligada ao interesse do povo e da região, a
primeira condição a exigir-se é a de que a população trabalhadora tenha
maior acesso aos frutos do próprio trabalho.
Tenho insistido, repetidas vezes, para que se promova a reforma da estrutura
agrária do País, a fim de que a organização agrícola seja impregnada de um
autêntico espírito de empresa e os frutos do trabalho repartidos de maneira
mais justa.202

Sendo assim, constituiriam objetivos da reforma agrária: o aumento da produtividade


agrícola; a diminuição dos preços dos gêneros alimentícios e a elevação dos padrões de vida
do trabalhador rural – que teria facilitado seu acesso à terra e não estaria mais submetido às
condições de trabalho e remuneração impostas pelos latifundiários – e também do trabalhador
urbano – que teria seu custo de vida suavizado pelos preços mais baixos dos gêneros
alimentícios.
Tais objetivos, embora relevantes, não serão os únicos no projeto de reforma agrária
propagado por Goulart. De acordo com Jango, os benefícios de uma reforma agrária no Brasil
seriam também fundamentais para o desenvolvimento industrial. Falando aos industriais
representantes da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Goulart defende que somente
seria possível assegurar uma expansão sem precedentes na indústria nacional ―quando, através
de uma reforma agrária justa, cristã e democrática, dezenas de milhões de brasileiros, cujo
poder de compra é quase nulo‖, fossem ―incorporados à economia monetária do país,

201
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 10.
202
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 117. Grifo nosso. Discurso, já
citado, proferido em 29 de julho de 1962, em João Pessoa (PB).
75

tornando-se verdadeiros compradores‖.203 E na Mensagem ao Congresso de 1962, Goulart


apontava que:
A reforma agrária, com o sentido de multiplicar o número de pessoas
diretamente interessadas no maior rendimento da exploração agrícola, e de
possibilitar a acumulação de poupanças por parte daquela categoria social
que, no regime de terras ora vigente, vive abaixo do limite mínimo de
subsistência, dará grande impulso à implantação de uma agricultura
moderna, em bases racionais. Permitirá, como consequência, o oferecimento
de maior quantidade de produtos da terra e maior consumo dos produtos das
indústrias brasileiras.204

Também em evento promovido pela Comissão Econômica para a América Latina


(CEPAL), destacou a necessidade de uma reforma agrária que garantisse substancialmente a
―elevação e melhor distribuição de rendas na agricultura, de modo a fornecer ao
desenvolvimento industrial do País mercado de maior dimensão‖.205 Sendo assim, para além
do conteúdo social da medida que elevaria o padrão de vida do trabalhador rural, é destacado
também seu conteúdo econômico, fundamental para o desenvolvimento industrial.
Será nesse sentido que Goulart reclamará a herança varguista, colocando-se como um
continuador de Getúlio Vargas em seu projeto de desenvolvimento nacional. Em entrevista à
Revista Manchete, em fins de 1963, Jango denomina a estruturação e o desenvolvimento da
indústria no Brasil, empreendidos por Vargas, como a ―primeira reforma de base‖, ou ainda a
―reforma de base industrial‖. Esta reforma constituíra ―a maior vitória da civilização brasileira
nos últimos anos‖. No entanto, Goulart alerta para o fato de que, ao assumir o governo,
percebera que ―essa grande vitória estava ameaçada‖. Justifica sua preocupação nos seguintes
termos:
bastaria observar que a maioria da população rural não tem poder aquisitivo
e cresce em ritmo mais veloz do que a população urbana. A produção
industrial sofre o risco de parar, por insuficiência de uma estrutura agrícola.
Não é outra a razão que me leva a pregar uma urgente reforma de base, no
âmbito da agricultura, comparável à que Getúlio Vargas empreendeu no
campo da indústria. Os benefícios do surto industrial estão sendo
amesquinhados por uma estrutura agrícola que encarece os custos de nossa
produção e não oferece a necessária expansão do mercado interno. Apesar
de trabalhadora, a população rural está impedida de colaborar com os centros
urbanos, em favor do progresso comum. Imensa massa de camponeses se

203
―Goulart anuncia o ano da exportação‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 ago. 1963. Transcrição indireta
de discurso em reportagem sobre banquete de comemoração do 25º aniversário da Confederação Nacional da
Indústria, realizado no dia anterior à publicação.
204
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. 24. Grifos nossos.
205
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 90. Discurso proferido no Rio de
Janeiro, em 28 de novembro de 1961, ao paraninfar os economistas que concluíram o Curso de Capacitação em
Problemas de Desenvolvimento, promovido pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), em
cooperação com o Governo Brasileiro.
76

encontra marginalizada, sem existência econômica que lhe permita adquirir


as manufaturas produzidas no país. Essa massa carece, ao mesmo tempo, de
um sistema de defesa de seus direitos trabalhistas, segundo os preceitos da
justiça social. A continuar esse panorama melancólico, a indústria nacional
teria de conformar-se com níveis de produção abaixo de sua capacidade.
/.../
Compreendi /.../ que só nos resta uma alternativa: a reforma de base no
campo, nos mesmos moldes da reforma encetada por Getúlio Vargas nos
centros urbanos. É imperativa a necessidade de reorganizar a economia
agrícola, assim como se impõem, com urgência, aquelas medidas capazes de
estender ao camponês os benefícios que a justiça social lhe pode e lhe deve
assegurar. Este é o caminho para que cada camponês, cada fazendeiro,
produtor ou trabalhador, possa transformar-se em consumidor dos produtos
nacionais.206

Este mesmo raciocínio aparece, de forma mais completa e abrangente, em discurso


proferido por Goulart na instalação da VII Conferência Regional da Food and Agriculture
Organization (FAO)207 para a América Latina. Nesta ocasião, Goulart aponta que, até poucos
anos antes, entre os países da América Latina, a agricultura, através da exportação de seus
produtos, constituía ―o principal vínculo‖ de articulação entre os interesses nacionais e os
mercados internacionais; possibilitando, inclusive, a importação de equipamentos e técnica
fundamentais na construção das bases da industrialização e diversificação das estruturas
econômicas desses países.
No entanto, Jango aponta que na última década, ―o mercado mundial de produtos
agrícolas‖ não acompanhava ―o crescimento da população das áreas exportadoras‖. Com o
agravante de que os preços dos produtos agrícolas estavam ―sistematicamente declinando, em
relação aos dos produtos manufaturados adquiridos nos países de elevado grau de
industrialização‖ – fenômeno que a teoria cepalina do subdesenvolvimento denomina de
deterioração dos termos de troca. Diante desta situação de entrave ao desenvolvimento
econômico dos países periféricos, João Goulart aponta como saída a estruturação de um
mercado interno que gerasse demanda à produção industrial: ―Explica-se, deste modo, que os
países da América Latina, no esforço de levar adiante seus programas de desenvolvimento,
tenham buscado a diferenciação de suas estruturas econômicas, apoiando-se, principalmente,
em seus próprios mercados internos‖. 208

206
GOULART, J. Entrevista concedida à Revista Manchete, no mês de novembro de 1963. In: CASTELLO
BRANCO, C. Op. cit., pp. 238-239. Grifos nossos.
207
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
208
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 210. Discurso proferido em 17 de
novembro de 1962, na instalação da VII Conferência Regional da FAO para a América Latina, no Rio de
Janeiro.
77

Porém, o fortalecimento do mercado interno brasileiro não ocorreria suficientemente


se estivesse baseado apenas nos efeitos da industrialização, sem alterações na economia
agrária. Para Jango,
A industrialização, provocando rápida urbanização e melhores níveis de
vida, aumentou a demanda interna de produtos agrícolas, de alimentos e de
matérias-primas industriais. O nosso desenvolvimento, se bem que tenha,
agora, na industrialização, a sua força dinâmica, depende, diretamente, da
presteza com que a agricultura responde às solicitações do mercado interno.
As formas de organização da produção agrícola podem tornar-se socialmente
inadequadas, sem que, por isso, tendam a transformar-se espontaneamente.
Para evitar que a rigidez das estruturas agrárias, que compromete o
desenvolvimento nacional, venha a criar tensões de elevado custo social, a
política de desenvolvimento deve planejar modificações estruturais, isto é,
deve fazer da reforma agrária um dos seus objetivos centrais.
Dotar a economia agrícola de uma estrutura que permita, por um lado, o
aproveitamento racional dos recursos produtivos e, pôr outro, possibilite o
crescimento da produtividade com um mínimo de custo social, é a meta
principal de uma política de desenvolvimento agrícola.209

Nesse sentido, a modificação da estrutura agrária, através de sua reforma, estaria


intimamente vinculada ao desenvolvimento da economia industrial; uma vez que, além de
melhor prover a demanda urbano-industrial pelos produtos agrícolas, possibilitaria também o
aumento da demanda pelos produtos industrializados, na medida em que elevaria o padrão de
consumo da população rural. Ou nas palavras de Goulart:
de nada adianta uma grande indústria, em meio a um crescimento
populacional explosivo, se os brasileiros, principalmente do interior, não
puderem adquirir aquilo que os seus irmãos trabalhadores constroem e
fabricam nas grandes cidades. De nada adiantaria uma poderosa indústria
têxtil, por exemplo /.../, se os trabalhadores rurais não pudessem vestir-se,
como não podem, pois apenas cobrem-se de trapos.210

Será, portanto, com esses argumentos que João Goulart defenderá, ao longo de todo o
seu governo, a realização de uma reforma agrária no Brasil. Uma reforma agrária que, em
suas palavras, removeria ―as causas do atraso‖ no desenvolvimento brasileiro, colocando-o
numa ―posição favorável às transformações progressistas e emancipadoras‖;211 sendo, a seu
ver, ―a mais justa e humana‖ dentre as reformas de base, pois, além de ―corrigir um

209
Ibidem, pp. 210-211. Grifos nossos.
210
―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963. Transcrição do
discurso em reportagem sobre comício realizado em homenagem a Getúlio Vargas, no dia anterior à publicação.
211
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 101. Discurso proferido em 10 de
dezembro de 1961, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
78

descompasso histórico‖, beneficiaria ―direta e indiretamente milhões de camponeses


brasileiros‖.212

A reforma agrária em padrões brasileiros

Vimos, até aqui, as razões apontadas pelo presidente Jango para a urgente realização
de uma reforma agrária no Brasil. Resta-nos, agora, explicitar o modo como, de acordo com o
discurso proferido pelo próprio presidente, esta reforma seria efetivada, quais características
teria para atingir os objetivos por ele defendidos.
Desde seus primeiros discursos sobre a reforma agrária no país, Goulart fazia questão
de frisar que não poderia haver uma única ―fórmula salvadora‖ ou ―remédio milagroso‖ que
atendesse a todas as regiões brasileiras, sendo estas tão diferentes entre si.213 Na Mensagem
ao Congresso de 1962, nos mostra que a preocupação com a diversidade das regiões
brasileiras não se limitaria às condições naturais da produção agrícola, mas também às
questões sociais nas relações de trabalho no campo:
O exame da questão agrária no Brasil revela a existência, no campo, de
diferentes tipos de tensão social. Em algumas regiões prevalece tensão de
um tipo; em outras regiões, de outro tipo. O remédio adequado difere, em
consequência. Aquele propiciador de um alívio e de maior harmonia social
no Nordeste certamente não provocará os mesmos resultados benéficos em
São Paulo. Assim, a legislação da reforma que julgamos urgente deve ser
bastante ampla e flexível, sob a forma de diretrizes e bases, para permitir ao
executor federal da lei a oportunidade de aplicá-la com a eficiência
desejada.214

Segundo Goulart, a reforma deveria ―possuir características de maleabilidade, para


acomodá-la às variadas condições regionais e de modo a respeitar as unidades de produção
bem organizadas, de bom rendimento, sem levar em conta a sua extensão‖.215

212
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. LI.
213
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 84. ―A questão da terra no Brasil deve ser
resolvida, evidentemente, de acordo com as características próprias de cada região. Não há, nem pode haver, fórmula salvadora, remédio
milagroso, para realidade tão diversificada de um país que é um continente, pela sua extensão e pela multiplicidade dos seus reclamos de
desenvolvimento. Não vejo razões para deixar de afirmar que a reforma agrária é uma das reformas que o País reclama, para dar plena
expansão às suas forças produtivas adormecidas”. Discurso proferido em 17 de novembro de 1961, no encerramento do
Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, na cidade de Belo Horizonte.
214
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. XII.
215
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 85. O presidente repete essa fala,
com conteúdo idêntico, em seu discurso aos ruralistas, no Congresso Rural Estadual, promovido pela Federação
das Associações Rurais do Estado de São Paulo, em 19 de janeiro de 1962, na cidade de Araraquara (SP). Cf.
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 14.
79

Desse modo, a reforma agrária brasileira deveria levar em conta dois aspectos centrais:
1) as especificidades de cada região e 2) a produtividade das propriedades – muito mais do
que seu tamanho.
a reforma agrária tem de ser maleável, para se adaptar às nossas diferenças
regionais, considerando-se sempre, e em primeiro plano, o rendimento da
produção e a sua finalidade social. Onde se estiver produzindo bem, tudo o
que há a fazer é melhorar essa produção através de ajuda técnica e
financeira.216

Talvez numa tentativa de distender resistências a sua proposta reformista, o presidente


Jango procurava explicitar o caráter ―não expropriativo‖ da reforma que defendia. Afirmava
que: ―Reforma agrária não é, como pretendem alguns teóricos, tirar a terra de quem a possui e
a faz produzir, para dar indiscriminadamente a quem não a possui e não tem condições de
fazê-la produzir‖, mas sim ―criar condições para que se possa fazer uma exploração racional
da agricultura e da pecuária‖. 217 Em outra oportunidade, reiterou:
E a reforma que desejamos, /.../ não é a reforma expropriativa; não
desejamos tirar arbitrariamente a terra de um para entregar a outro; não
pretendemos jamais que aquelas terras que estão produzindo possam ser
objeto de desapropriação. O que nós desejamos é fortalecer mais as terras
que produzem, através da distribuição das terras que não produzem e que
não prestam nenhum serviço ao povo, que não prestam serviço à nação.218

Sendo assim, João Goulart defendeu repetidas vezes a desapropriação de ―terras que
não produziam‖ ou que ―produziam muito abaixo do nível econômico‖ da região a qual
integravam. Em seus discursos, descartou totalmente a desapropriação de terras produtivas ou
de pequenas propriedades, as chamadas ―unidades familiares‖, pois
Ao contrário, pela reforma agrária, o que deve visar acima de tudo é
prestigiar as pequenas propriedades e assisti-la para que ela possa produzir o
máximo de seu rendimento. O mesmo pensamento, é claro, /.../ eu não
poderia ter com relação aos grandes latifúndios improdutivos, e
especialmente daqueles localizados nas grandes áreas de consumo da nossa
pátria.219

E, em discurso já citado acima, o presidente Jango, falando na presença dos ruralistas,


procurou expor o conteúdo de sua reforma agrária: desapropriação de terras improdutivas,
bem como assistência técnica e financeira à produção agrícola e a seu acesso aos mercados,

216
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 18. Discurso proferido em 25 de
janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro.
217
Ibidem, p. 19. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI
Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro.
218
Transcrição de discurso proferido em 31 de maio de 1963, na sessão solene de entrega do título honorário de
juiz forano, na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG). Arquivo de áudio em CD que acompanha: GOMES, A.
C.; FERREIRA, J. Jango: as múltiplas faces.
219
Idem.
80

tornando-a mais racional. Contudo, mesmo dando destaque às medidas de ordem técnica que
integrariam sua proposta, Goulart também aponta o objetivo ―cristão‖ de sua reforma: o de
―atender à pessoa humana‖ e propiciar a esperança ―num futuro melhor‖:
A reforma agrária é reivindicação do desenvolvimento nacional. Reforma
agrária quer dizer, sem dúvida, proibição de conservar terras
inaproveitadas, que fiquem aguardando valorizações aleatórias, com
finalidades especulativas ou distorsivas, sem forma e sem figura de interesse
social. Reforma agrária deve ser, sobretudo, tranquilidade e segurança para o
trabalhador e para o proprietário, para quem planta e para quem colhe; deve
ser a racionalização do esforço da comunidade rural para melhores
condições de exploração econômica da terra; deve ser a presença do poder
público ou dos órgãos coletivos adequados, para a assistência
imprescindível dos postos zootécnicos, dos campos de experimentação, das
estações de máquinas, dos centros de armazenagem e ensilagem; deve ser o
funcionamento, próprio e oportuno, do sistema de transportes e
comunicações, que assegure o acesso aos mercados de consumo; deve ser a
organização do crédito rural, não apenas como privilégio dos poderosos que,
eventualmente, se dediquem às tarefas da produção agrícola e pecuária, mas
em favor especialmente dos pequenos e médios produtores, sem as
complicações burocráticas ou as exigências eternizantes que cercam o
processo das garantias reais; deve ser o estímulo às organizações
cooperativistas, com o incentivo às formas de associação e de esforço
comum na luta pelo progresso; deve ser convocação da técnica levada ao
campo pelo poder público ou pelos que mais o puderem — e tudo isso com o
objetivo mais alto e mais cristão de atender à pessoa humana, cuja
felicidade deve ser razão fundamental do Estado, proporcionando-lhe
moradias mais higiênicas, ambulatórios, hospitais, escolas, ou, para resumir,
ambiente que enseje esperanças e razões de crer num futuro melhor.220

Embora esta pesquisa tenha como foco os discursos do presidente João Goulart, e não
os atos administrativos de seu governo, vale salientar que os aspectos defendidos
publicamente por ele, e aqui mostrados, condizem com o texto do anteprojeto de lei,
encaminhado ao Congresso em março de 1963, estabelecendo o regime jurídico da reforma
agrária, e também com as Mensagens encaminhadas ao Congresso pela abertura do ano
legislativo, sobretudo a do ano de 1964, mais extensa que as anteriores. Além disso, em maio
de 1963, Goulart também anuncia a criação do Plano de Crédito Rural do triênio 1963-65.
Outra medida do governo Goulart, bastante lembrada no que diz respeito à área
agrícola, foi a sanção do Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo a legislação trabalhista
aos trabalhadores rurais. O historiador Caio Prado Jr., ainda que bastante crítico de João
Goulart – a quem acusava de estar mais preocupado em retomar os poderes presidencialistas e
abafar as contradições do desenvolvimento brasileiro do que em implementar efetivamente as

220
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 21. Grifos nossos. Discurso
proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio
de Janeiro.
81

reformas – valorizou o Estatuto, visto por ele ―como uma das mais significativas iniciativas de
alcance nacional para o encaminhamento de resoluções da questão agrária no país‖, ainda que
o considerasse insuficiente.221
O projeto de lei que fora apresentado pelo Deputado Fernando Ferrari – trabalhista
dissidente, expulso do PTB comandado por Jango e fundador do partido Movimento
Trabalhista Renovador (MTR) – apesar de sancionado por Goulart e afirmado como ―um dos
mais importantes marcos da nossa história trabalhista‖,222 pouco foi abordado em seus
discursos. Certa vez, o jornal carioca Correio da Manhã, após a aprovação do projeto pelo
Legislativo, cobrou o presidente pela demora em sancioná-lo. Como resposta, Goulart teria
escrito em bilhete a seu secretário de imprensa, Raul Ryff:
Dar conhecimento ao Correio da Manhã:
/.../
Quanto ao projeto Ferrari, preocupação tão afetiva do Correio da Manhã,
ainda não chegou às minhas mãos. Não posso, portanto, sancioná-lo, sem ter
os autógrafos. Devem estar ainda na secretaria da Câmara. Apesar de ser um
projeto flor de laranja, estou disposto a sancioná-lo, convencido, porém, que
somente através de uma reforma profunda, com modificações básicas nos
textos constitucionais, poderá ser resolvido o problema agrário e social em
termos de interesse nacional e de atendimento aos justos anseios de milhões
de brasileiros sem terra e ainda sem oportunidade de obtê-la.223

O bilhete nos revela, portanto, que apesar de concordar com o Estatuto, João Goulart o
colocava como uma prioridade menos urgente e de alcance muito mais limitado de que a
reforma agrária.
Como última medida de Goulart concernente à questão agrária, está a assinatura do
chamado decreto da SUPRA – Superintendência de Política Agrária224 – realizada
publicamente no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Este decreto
declarava ―de interesse social, para fins de desapropriação, uma faixa de dez quilômetros ao

221
SOUZA, Ângela Maria. O Brasil descortinado por Caio Prado Jr.: gênese e reiteração do ciclo vicioso.. Tese
(doutorado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, p. 244. Souza ressalta que a defesa
que Caio Prado faz do Estatuto do Trabalhador Rural está relacionada a sua consideração, procurando respeitar
as condições objetivas da realidade nacional, de ―que não era possível, naquele momento, a mudança do modo
de produção capitalista para o socialista‖; sendo mais correta a implementação de medidas ainda no ―âmbito da
propriedade privada‖.
222
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 139.
223
―Goulart criticou projeto Ferrari e culpa Câmara‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1963.
224
Em grande parte da bibliografia, a SUPRA aparece também identificada como Superintendência da Reforma
Agrária.
82

longo das rodovias e ferrovias, bem como das áreas beneficiadas por obras federais, como os
açudes‖.225 Justificando sua assinatura, João Goulart argumentou:
Por este ato, áreas inexploradas e sob o domínio de latifundiários, que não as
cultivam nem permitem que outros a cultivem, serão desapropriadas e
divididas em lotes para entrega aos camponeses que as queiram cultivar.
Esta é a primeira ampla porta que se abre para uma reforma agrária que se
realizará pacificamente, regida pelos preceitos democráticos e com
fidelidade às tradições cristãs do nosso povo.226
Enquanto o Congresso Nacional não oferece os instrumentos legais
adequados para a realização da Reforma Agrária, o Poder Executivo vem
adotando uma série de providências, por intermédio da Superintendência de
Política Agrária (SUPRA), mediante a utilização do poder de desapropriação
nos termos em que legalmente está investido. Dentro dessa limitação, foi
concebida a providência de desapropriar terrenos rurais mal aproveitados,
em torno de estradas, ferrovias e açudes públicos.227

Não obstante a repercussão da assinatura deste decreto, o próprio João Pinheiro Neto,
na época presidente da SUPRA, afirma em seu livro ―Jango: um depoimento pessoal‖:
O Decreto da SUPRA, como ficou conhecido, visava a uma solução bastante
simples, e que nada tinha de subversiva: tornar de interesse público, para
efeito de desapropriação, dez quilômetros de faixas de terra ao lado de
estradas, açudes e outras obras públicas. O Decreto redigido por mim por
determinação de Jango foi medida que visava apenas a conter a especulação
em torno dessas terras, já que era impossível no momento desapropriação de
vulto, com pagamento à vista e em dinheiro.228

O próprio Goulart, já em momento bastante dramático em que divulga um manifesto


denunciando os golpistas – texto que acabou sendo sua última mensagem enquanto presidente
– também afirma que o decreto, ―embora não consubstanciasse uma reforma agrária
verdadeira, ou a reforma reclamada pelos princípios cristãos de justiça social‖, havia
determinado o ―recrudescimento de ódios e paixões‖.229
O manifesto fora divulgado na noite de 31 de março. No dia seguinte, Goulart foi
deposto pelo golpe militar e, consequentemente, o referido decreto é revogado.
Sendo assim, não obstante o esforço do presidente João Goulart em divulgar sua
proposta de reforma agrária, destacando a defesa de princípios cristãos e democráticos e
inserindo-a num projeto de desenvolvimento econômico nacional, distanciando-as das

225
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. XXXVII.
226
Idem.
227
Ibidem, p. 97.
228
PINHEIRO NETO, João. Jango: um depoimento pessoal. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 39.
229
GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, K. et al. (coord.). Op. cit., p. 243.
83

reformas realizadas pelos países comunistas, não foi possível efetivar qualquer avanço que
fosse além do amplo debate desenvolvido na época em torno desta questão.
84

2. RELAÇÕES EXTERIORES: política externa independente e a tentativa de formação de um


bloco latino-americano

O direcionamento dado à política externa do Brasil em todo período Jango foi


marcado por um conjunto de princípios que formavam a chamada política externa
independente. Iniciada ainda no governo Jânio Quadros e mantida por João Goulart e os
vários ministros que ocuparam a pasta das Relações Exteriores em seu governo, 230 a política
externa independente, segundo San Tiago Dantas − ministro das relações exteriores do
primeiro gabinete do governo Jango:
não foi concebida como doutrina ou projetada como plano antes de ser
vertida para a realidade. /.../ As atitudes, depois de assumidas em face de
situações concretas que se depararam à Chancelaria, patentearam uma
coerência interna, que permitiu a sua unificação em torno de um pensamento
central de governo.
Não quer isso dizer que a sua elaboração tenha sido empírica ou casual. Na
origem de cada atitude, na fixação de cada linha de conduta, estava presente
uma constante: a consideração exclusiva do interesse do Brasil, visto como
um país que aspira (I) ao desenvolvimento e à emancipação econômica e (II)
à conciliação histórica entre o regime democrático representativo e uma
reforma social capaz de suprimir a opressão da classe trabalhadora pela
classe proprietária.231

Como se vê, Dantas aponta, como princípios norteadores das ações do Itamaraty
naquele momento, ideias fortemente propagadas pelo próprio presidente Jango em seus
discursos: ideias de orientação nacionalista – visando o ―desenvolvimento e à emancipação
econômica‖ – e reformista – buscando conciliar ―o regime democrático representativo e uma
reforma social‖.
Também vale expor aqui os pontos em torno dos quais, de acordo com San Tiago
Dantas, foi ordenado o posicionamento brasileiro em sua política externa independente.
Creio que esse sistema /.../ ordenou-se em torno dos seguintes pontos:
A) contribuição à preservação da paz, através da prática da coexistência e
do apoio ao desarmamento geral e progressivo;
B) reafirmação e fortalecimento dos princípios de não-intervenção e
autodeterminação dos povos;

230
Ao todo, foram cinco os ministros que ocuparam esta pasta ao longo do governo Jango: Francisco San Tiago
Dantas (durante o gabinete Tancredo Neves, de 08 de setembro de 1961 a 12 de julho de 1962); Afonso Arinos
de Melo Franco (durante o breve gabinete Brochado da Rocha, de 12 de julho de 1962 a 18 de setembro do
mesmo ano); Hermes Lima (acumulando o cargo de primeiro-ministro, de 18 de setembro de 1962 a 24 de
janeiro de 1963, permanecendo na pasta no início da fase presidencialista, de 24 de janeiro de 1963 a 18 de
junho do mesmo ano); Evandro Cavalcanti Lins e Silva (de 18 de junho a 22 de agosto de 1963) e João Augusto
de Araújo Castro (de 22 de agosto até a deposição do governo pelo golpe, em 01 de abril de 1964). A
rotatividade de ministros na pasta deveu-se às constantes reformas ministeriais efetivadas pelo governo.
231
DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962, p. 5.
85

C) ampliação do mercado externo brasileiro mediante o desarmamento


tarifário da América Latina e a intensificação das relações comerciais
com todos os países, inclusive os socialistas;
D) apoio à emancipação dos territórios não autônomos, seja qual for a
forma jurídica utilizada para sua sujeição à metrópole.232

Embora esta sistematização feita por Dantas tenha sido publicada ainda em 1962, no
mês seguinte à sua saída do ministério, veremos que essas ideias continuarão presentes nos
discursos do presidente Goulart, sempre que toca nos assuntos de relações exteriores;
concentrando-se os pontos A e B nas justificativas do posicionamento brasileiro diante da
questão de Cuba e da crise dos mísseis – em que sofria enorme pressão dos Estados Unidos,
como veremos a seguir – e o ponto C nas relações com a América Latina e países do Bloco
Soviético.
Ainda que a análise da política externa brasileira no período que ora estudamos
constitua importante tema para um trabalho mais detalhado e aprofundado (sobretudo no
tocante às relações Brasil e Estados Unidos) que não encontra condições de ser realizado aqui,
procuraremos, neste capítulo, expor qual o papel que o presidente João Goulart atribuía ao
Brasil nas relações internacionais, enfocando as relações com os Estados Unidos e com os
países latino-americanos – aos quais foi dedicada maior atenção do Itamaraty e do próprio
presidente, que, com exceção da viagem a Roma, em setembro de 1963, por ocasião da
escolha do papa Paulo VI, visitou apenas os Estados Unidos e o México, em abril de 1962,
além de Chile e Uruguai, em abril de 1963.

2.1. Relações entre Brasil e Estados Unidos

As relações do Brasil com os Estados Unidos constituirão a questão mais delicada e


importante do Itamaraty durante o governo de João Goulart. Constituía uma necessidade
brasileira a manutenção de boas relações com o país que gozava da condição de grande
potência mundial, no ápice da Guerra Fria, e de importante credor, investidor e comprador dos
produtos brasileiros no mercado internacional.
A tensão entre os dois governos não emergirá imediatamente após a posse de João
Goulart na presidência da república. Como nos mostra Moniz Bandeira, citando documento
produzido em dezembro de 1961,
Os serviços de inteligência dos EUA avaliaram então que a crise
constitucional, desencadeada pela renúncia de Quadros, restringira, pelo
menos durante algum tempo, a expansão da influência internacional do
Brasil, cuja ―aspiração ao status de grande potência sofrera um revés‖, mas

232
Ibidem, p. 6.
86

observaram que, conquanto houvesse restabelecido (em menos de três


meses) as relações diplomáticas com a URSS, seus vínculos com os países
do Bloco Socialista não iriam muito além daquela moldura. O governo de
Goulart, segundo estimavam, continuaria o caráter ―independente‖ de sua
política externa, porém a necessidade de obter financiamentos, bem como
considerações de ordem interna, torná-la-iam ―menos truculenta‖, vis-à-vis
dos EUA, do que fora na administração de Quadros.233

Sendo assim, se por um lado o documento mostra certa desconfiança em relação a


Goulart – a quem chamam de oportunista, ligado a casos de corrupção e de quem já previam a
manutenção de um posicionamento, a princípio, contrário à imposição de sanções a Cuba234 –
por outro, exprime a expectativa de viabilidade nas negociações com o governo brasileiro.
Um dos primeiros momentos de explícita divergência entre os EUA e o governo Jango
ocorre em janeiro de 1962, na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas
Americanas, ocasião em que é votada expulsão de Cuba da Organização dos Estados
Americanos (OEA).
Além disso, duas semanas após este evento em Punta del Este, Leonel Brizola,
governador do Rio Grande do Sul, anunciará a desapropriação do bens da Companhia
Telefônica Riograndense, subsidiária da empresa estadunidense International Telephone &
Telegraph (ITT). E este era o segundo caso de encampação efetivado pelo governador
gaúcho; o primeiro ocorrera em 1959, com a filial da empresa de distribuição de energia Bond
& Share, pertencente à American & Foreign Power (AMFORP). Tais encampações realizadas
por Brizola constituirão ponto marcante na crise das relações entre Brasil e Estados Unidos.
Dessa forma, o início do ano de 1962 explicita dois dos problemas que, juntamente
com as questões de dívida externa e de novos empréstimos ao Brasil, serão a pauta das
conversações entre os dois países: a questão cubana e o problema das encampações. Estes
assuntos − que, inclusive, envolvem outros de grande relevância, como o programa da
Aliança para o Progresso e o planejamento econômico brasileiro − serão os principais pontos
de pressão do governo estadunidense sobre a administração João Goulart.

233
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de
Janeiro: Revan/ Brasília (DF): EdUnB, 2001, p. 67.
234
Ao caracterizar o president João Goulart, o documento afirma: ―A confirmed opportunist even by Brazilian
standards, the wealthy Goulart has yet to reveal any strongly-held political or economic philosophy, and has
been frequently linked with corruption‖. E quanto ao provável posicionamento na questão cubana: ―Nevertheless,
Brazil will probably continue to emphasize the ‗independent‘ character of its foreign policy. For these reasons it
will almost certainly continue to oppose sanctions against Castro, although it would probably agree to some
kind limited action if it seemed certain that most the major Latin American states were disposed to take such
steps‖. In: ―Special National Intelligenge Estimate n. 93-2-61 – Short Term Prospects for Brazil under Goulart‖,
7.12.1961, secret NKL-76-199 § 3, JFKL, p. 3 e 7-8. Disponível em:
<http://www.foia.cia.gov/docs/DOC_0000008146/DOC_0000008146.pdf> Último acesso em: 17 de maio de
2012.
87

2.1.1. AMFORP e ITT: as encampações de Brizola e as negociações financeiras com os


Estados Unidos

Para compreender melhor o problema das encampações das empresas subsidiárias


americanas atuantes nos serviços públicos brasileiros – particularmente no Rio Grande do Sul
– e como elas irão afetar as relações entre Brasil e Estados Unidos, vale fazer um breve
histórico de como elas foram realizadas por Leonel Brizola, então governador gaúcho e figura
de destaque dentro do PTB.
Brizola assumira o governo do Rio Grande do Sul em 1959 e, com o objetivo de
estimular o desenvolvimento industrial, e obter um fortalecimento geral da economia gaúcha,
lançou uma série de iniciativas visando à melhoria da infraestrutura de seu estado. Como parte
importante deste conjunto de medidas, estava a necessidade de promover avanços nos setores
de energia e comunicações, ambos sob controle de filiais de empresas estadunidenses.
O primeiro enfrentamento ocorrerá ainda no primeiro ano do seu governo, na busca de
um maior e melhor abastecimento de energia elétrica.
A meta do governo de Brizola consistia de dotar o Rio Grande do Sul de 1
milhão de kW e de um moderno sistema de comunicações. Lá só existiam
algumas termoelétricas, a carvão e óleo, e pequenas usinas hidrelétricas, de
propriedade do Estado. Sua produção, já insuficiente para as necessidades
locais, era fornecida em bruto à Companhia de Energia Elétrica
Riograndense, filial da Bond & Share, proprietária da rede de distribuição na
Grande Porto Alegre e cuja concessão estava vencida. As principais cidades
do Rio Grande do Sul, particularmente Porto Alegre, viviam quase às
escuras e suas indústrias sem energia. E a Companhia de Energia Elétrica
Riograndense não se dispunha a realizar novos investimentos, a não ser que
o Poder Público se submetesse às suas exigências, renovando-lhe a
concessão por mais 35 anos e garantindo-lhe a cobrança de tarifas de acordo
com os seus interesses.235

Diante desta situação, o governo efetuou, com autorização legal, o tombamento físico
e contábil da empresa e iniciou negociações com a companhia, que, todavia, não levaram a
um acordo entre as partes. Estabelecido o impasse, em 13 de maio de 1959, Brizola decreta a
expropriação da filial da American & Foreign Power (AMFORP) no Rio Grande do Sul, com
o depósito simbólico no valor de 1 cruzeiro,
que fora estabelecido abatendo-se as contribuições populares espontâneas, na
colocação de fios e postes, doações territoriais, indenização de pessoal,
multas, remessa de lucros acima do legalmente permissível e a depreciação
dos materiais. A soma dessas deduções suplantava o valor do acervo da
companhia. O saldo resultara negativo. Era o Estado que tinha a cobrar,
aplicado o critério do custo histórico, que a legislação brasileira, vigente na

235
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brizola e o trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.
61.
88

época, consagrava. Deu-se assim o valor de Cr$ 1,00 por mero simbolismo
jurídico, fazendo o Estado o depósito do dinheiro num banco comercial, ao
mesmo tempo que solicitava ao Poder Judiciário a imissão da posse. O Juiz
Borges Fortes, da Fazenda Pública, concedeu-a, tão logo recebeu o pedido,
argumentando que se limitava à estrita aplicação da lei.236

Tal expropriação gerou enorme repercussão interna e externamente. Segundo Moniz


Bandeira, ―o Secretário do Tesouro Americano, Douglas Dillon, considerou o fato um mau
exemplo para os demais países latino-americanos, pois, àquela época, nem mesmo Cuba, já
sob o governo de Fidel Castro, havia adotado atitude semelhante‖.237 Brizola argumentava
que, além das várias fraudes encontradas na contabilidade da empresa, todo o procedimento
da encampação estava em conformidade com as regras legais e que, portanto, não constituía
um ato arbitrário do governador.
Sendo assim, seguiu com seu projeto de governo, passando então a enfrentar também a
Companhia Telefônica Riograndense, filial da International Telephone & Telegraph (ITT). O
caso era semelhante ao da Bond & Share: a empresa estava com a concessão estadual
expirada e fora chamada por Brizola, ainda no início de seu mandato, para discutir a
concessão e o desenvolvimento do setor. Além disso, o governador gaúcho enviara uma
equipe de engenheiros à Europa, a fim de se especializarem em comunicações, e criara um
fundo, alimentado por um novo tributo, a taxa de comunicações, que provia recursos para o
desenvolvimento do setor.
As negociações com a ITT se arrastaram por mais de dois anos até que se chegasse a
um acordo. A solução ―consistia na criação de uma sociedade de economia mista, da qual o
Estado participaria com 25%, a ITT, igualmente com 25% e o público usuário, com 50%‖.238
Para a definição do valor do acervo, Brizola e o vice-presidente da ITT concordaram que
Cada uma das partes indicaria um árbitro e os designados escolheriam um
terceiro, para desempatar, se necessário. Brizola convidou para representante
do Estado um adversário político, membro da UDN, o Professor Luiz
Lessegnieu de Farias, diretor da Faculdade de Engenharia. E a ITT, o
Engenheiro Frederico Rangel, também professor universitário e colaborador
da Companhia no Brasil. Os árbitros apresentaram o laudo e Brizola, embora
considerasse alta a avaliação, não se manifestou, pois se sentia
comprometido com a solução.239

236
Ibidem, p. 62.
237
Idem.
238
Ibidem, p. 63.
239
Idem.
89

A questão parecia encerrada. No entanto, dois meses depois, ao ser interpelada pelo
governo do Rio Grande do Sul, a ITT retrocede de sua posição: afasta seu vice-presidente, que
até então encabeçara as negociações, e envia novos representantes para recomeçar o processo.
A partir do recuo da ITT, entretanto, Brizola convenceu-se de que seus
dirigentes buscavam simplesmente ganhar tempo até que ele terminasse seu
mandato e decidiu, sem qualquer vacilação, tomar as medidas que o interesse
público reclamava. Decretou a retomada dos serviços e expropriou o acervo
da Companhia, com base no valor encontrado pelos árbitros.240

Destarte, em fevereiro de 1962, Leonel Brizola anuncia a desapropriação dos bens da


filial da ITT no Rio Grande do Sul. Valendo-se de dados que teriam sido apurados ao longo
de dois anos de fiscalização do Estado sobre as contas da Companhia, foram descontados do
valor a ser pago à empresa as plantas doadas pelos municípios e pelo governo do estado, a
indenização de pessoal, a reposição do material e os lucros irregularmente enviados para o
exterior;241 sendo depositado o valor de 149,7 milhões de cruzeiros, considerados como
―justa, atual e prévia indenização‖ pelos bens desapropriados.242 E, mais uma vez, o
procedimento foi ratificado pelo poder judiciário com a imissão de posse.
Como se vê, e também como afirma Paulo Fagundes Vizentini,
Essas encampações não eram ―revolucionárias‖ ou ―socializantes‖, /.../ pois
só visavam dinamizar a economia capitalista. Certos serviços públicos da
área de transportes, energia e comunicações eram providos por empresas
estrangeiras que não os ampliavam nem modernizavam, criando pontos de
estrangulamento na economia. Entretanto, o tom nacionalista de Brizola e a
reação estrondosa dos grupos conservadores criavam um clima de
insegurança para os investidores estrangeiros, o que afetava as já
insatisfatórias relações com os EUA.243

De fato, as encampações das filiais de empresas norte-americanas terão grande


repercussão no Congresso norte-americano, que chega a aprovar a chamada Emenda
Hickenlooper,244 vedando a concessão de auxílio financeiro aos governos que confiscassem
empresas estadunidenses, sem compensação considerada adequada.245 Vê-se, portanto, a

240
Ibidem, p. 64.
241
Idem.
242
Ver MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 231,
citando o jornal Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 fev. 1962.
243
VIZENTINI, Relações exteriores do Brasil (1945-1964): o nacionalismo e a política externa independente.
Petrópolis (RJ): Vozes, 2004, p. 191.
244
Assim conhecida por ter sido apresentada pelo senador Bourke Hickenlooper.
245
Embora os Estados Unidos já tivessem enfrentado situações similares de encampações na Indonésia e no
Ceilão, Roberto Campos, então embaixador brasileiro em Washington, considera que ―a emenda Hickenlooper
foi essencialmente um subproduto dos confiscos (sic) de Brizola‖. In: CAMPOS, Roberto de Oliveira. A
lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 471.
90

importância que o tema da nacionalização das empresas norte-americanas ganhará nas


conversações entre Brasil e Estados Unidos durante o governo João Goulart.
Sobre este assunto, o presidente João Goulart falará publicamente em discurso
realizado em 23 de março de 1962, no Rio de Janeiro, na ocasião de um almoço oferecido
pela Câmara Norte-Americana de Comércio, dias antes de sua viagem aos Estados Unidos.
Nesta oportunidade, Goulart primeiramente destacará a importância da colaboração técnica,
empresarial e do capital estrangeiros, recebidos no país para a execução dos serviços públicos:
Águas e esgotos de grandes cidades, estradas de ferro, energia elétrica,
bondes, portos, navegação, telefones, e tantos outros serviços públicos neste
país, são o produto do pioneirismo de grandes empreendedores estrangeiros,
que vieram radicar-se no Brasil e trouxeram técnica e capitais, para
impulsionar o nosso progresso através do processo de concessões de serviços
públicos. Não há negar-se que tal processo, em que a iniciativa privada e o
Poder Público contratam colaborar para a melhor execução de serviços
imprescindíveis às populações, assinala a primeira grande experiência da
junção de esforços públicos e privados para a realização de grandes tarefas, e
produziu fecundos resultados.246

No entanto, afirma que, por motivos diversos, ―o sistema‖ que congregava ―esforços
públicos e privados‖ nesse setor se exaurira, deixando como consequência
várias e largas áreas de atrito entre a opinião pública, o poder concedente e o
concessionário, e, por um fenômeno muito natural de transposição,
envenenando as próprias relações entre o nosso país e governos estrangeiros,
especialmente o mais representativo deles neste setor, o dos Estados
Unidos.247

Depois de lembrar – e defender – o abandono da ―cláusula-ouro‖ por Getúlio Vargas


como uma ―imprescindível atitude de defesa de interesses nacionais legítimos‖,248 Goulart
aponta entre os motivos da exaustão do modelo, o ―desajuste tarifário de uma economia
inflacionária e em expansão e o incontestável desinteresse dos capitais e investidores na
ampliação desses serviços‖ – o que acarretava a ―perda de sua capacidade de expandir-se e
atender às exigências do desenvolvimento do País‖.249 E resume a situação da seguinte forma:
De tudo resultou o quadro que aí está, comprovado por quantos examinam a
realidade nacional. Empresas que desempenharam relevante papel na história
econômica do País estão hoje enquistadas em setores fundamentais para o
nosso desenvolvimento, sem possibilidade de atender aos reclamos de nossa

246
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 35-36.
247
Ibidem, p. 36.
248
A cláusula-ouro consistia num mecanismo que garantia às empresas concessionárias de serviços de
abastecimento de água e energia um reajuste sistemático de parte das tarifas pela cotação do ouro. Este
mecanismo é revogado por Getúlio Vargas ainda em 1934, no Código de Águas. Sobre o tema, ver: BASTOS,
Pedro Paulo Zahluth A construção do nacional-desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e a dinâmica de interação
entre Estado e mercado nos setores de base. Revista Economia, Brasília, v. 7, n. 4, dez. 2006, pp. 239-275.
249
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 36.
91

economia em expansão e de uma clientela crescente de serviços públicos.


Entram, por isso, serviços e empresas, em deterioração, e se tornam cada vez
mais deficientes.250

Além de afirmar que ―salvo raríssimas exceções, o fato é que essas concessões, em
geral, no Brasil, funcionam mal, funcionam inadequada e insuficientemente‖, o presidente
também aborda o problema das tarifas cobradas por esses serviços públicos. Segundo ele,
ainda que se admitisse que as tarifas não fossem as mais favoráveis para as concessionárias, a
população ―mal servida‖ se veria ―com o direito de proclamar que paga caro, em relação ao
seu poder aquisitivo, por serviços ruins‖.251
Após expor o problema nestes termos, o presidente Goulart, chama para si a
responsabilidade de Chefe de Estado – que seria ―um dos responsáveis pela tranqüilidade
nacional‖ – e afirma a ―necessidade de uma solução que atenda, neste importante setor, aos
justos reclamos populares‖ sem, no entanto, provocar aos empresários estrangeiros
―inquietação ou o pânico, o que só agravaria dificuldades recíprocas, no presente e no
futuro‖.252 E finaliza:
Desejo enfim, senhores, ser fiel ao meu passado e às minhas convicções.
Desejo ir ao encontro do interesse do povo, sem trair jamais meus
compromissos com ele livremente assumidos. Estou certo, porém, de que
esses anseios populares podem ser atendidos sem provocar reações
desaconselháveis aqui e no exterior, especialmente entre os países, os
homens e os grupos que no Brasil tenham invertido ou venham a inverter
seus capitais. Entendo que, também aqui, podemos e devemos encontrar um
denominador comum que, atendendo em primeiro plano aos interesses do
Brasil, não desatenda ao das empresas concessionárias.
/.../ Se tais serviços públicos, por diversas razões, já não podem cumprir suas
tarefas de bem servir o povo, se as próprias empresas sustentam que já não
estão obtendo resultados satisfatórios, e como desejamos que esses capitais
aqui permaneçam em setores onde não sejam inquietados e onde possam dar
maior contribuição ao progresso nacional, não será difícil encontrarmos a
solução do entendimento, que, atendendo aos altos interesses nacionais e
populares, não crie embaraços ou provoque danos aos investidores de
capitais, seja qual for a sua bandeira de origem. E, principalmente, meus
senhores, quando tais questões envolvem interesses de dois países, que, por
sua identificação com o ideal democrático, têm, nesta hora, mais que em
qualquer outra, o dever de evitar incompreensões e choques em suas relações
cotidianas, como é o caso do Brasil e dos Estados Unidos, o problema que se
apresenta é uma convocação simultânea à capacidade de decidir dos
governos e ao bom senso ou à capacidade de compreender dos
interessados.253

250
Idem.
251
Ibidem, p. 37.
252
Idem.
253
Ibidem, pp. 37-38. Grifo nosso.
92

Sendo assim, mais uma vez, Jango explicita a mesma atitude que procura manter ao
longo do seu governo: a da busca de ―um denominador comum‖ entre as partes cujos
interesses entram em contradição. Ainda que mostre ser legítima a insatisfação da população e
dos governos estaduais com os serviços públicos prestados pelas empresas estrangeiras – a
primeira, pela má qualidade dos serviços e pelo impacto das tarifas cobradas em seu poder
aquisitivo, e os segundos por encontrarem na insuficiência dos serviços prestados um sério
obstáculo para o desenvolvimento econômico de seus estados e municípios – Goulart não
aponta as concessionárias estrangeiras como grandes vilãs a serem expurgadas do país. Pelo
contrário, o presidente mostra preocupação em evitar a ―inquietação‖ ou os ―danos‖ entre os
investidores e em manter o capital estrangeiro no país, mas em outros setores que não o dos
serviços públicos – ―setores onde não sejam inquietados e onde possam dar maior
contribuição ao progresso nacional‖. Dessa forma, uma vez que o capital estrangeiro, atuante
num setor estratégico para o país, se encontrava, naquele momento, ―sem possibilidade de
atender aos reclamos de uma economia em expansão‖, a solução seria negociar o retorno dos
serviços públicos para as mãos do poder público, de forma a garantir que este mesmo capital
estrangeiro permanecesse investido na economia brasileira, porém em setores que trouxessem
melhor compensação para ambas as partes.
Os mesmos argumentos explicitados por Jango na Câmara Norte-Americana de
Comércio ele os apresentará, de maneira mais sucinta, em sua visita aos Estados Unidos.
Discursando em Nova York, em banquete oferecido pelas associações americano-brasileiras,
em 6 de abril de 1962, Goulart ratifica:
Não concorreram os brasileiros, nem seus governos, para qualquer mal-
entendido no que se refere a tais investimentos. Temos cumprido nossas leis
com relação a esses bens e direitos e se, no campo das concessões de serviço
público, as atuais transformações, de caráter social e econômico, tornam
menos rendosas essas atividades, por certo que o Governo e as empresas
concessionárias saberão encontrar a linha justa da conciliação que,
atendendo aos interesses de ambas as partes, satisfaça também aos interesses
do povo.254

Ao final da visita do presidente Jango aos Estados Unidos, também será publicado um
comunicado conjunto dos presidentes de Goulart e Kennedy que, entre outros temas,
documenta que:
O Presidente do Brasil manifestou a intenção de seu Governo de manter
condições de segurança, que permitirão ao capital privado desempenhar o
seu papel vital no desenvolvimento da economia brasileira. O Presidente do
Brasil declarou que nos entendimentos com as companhias para a

254
Ibidem, p. 60.
93

transferência das empresas de utilidade pública para a propriedade do Brasil


será mantido o princípio de justa compensação com reinvestimento em
outros setores importantes, para o desenvolvimento econômico do Brasil. O
Presidente Kennedy manifestou grande interesse nessa orientação.255

Embora, como já afirmamos anteriormente, não seja objeto deste trabalho a análise de
todos os atos administrativos do governo João Goulart, vale, neste momento, salientar que,
pouco mais de um mês após sua visita de Jango aos Estados Unidos, o Conselho de Ministros
publicava o Decreto 1.106, de 30 de maio de 1962, determinando: 1) a criação da Comissão
para Nacionalização das Empresas de Serviço Público (CONESP), submetida ao Primeiro-
Ministro, com os encargos de ―submeter à aprovação do Conselho de Ministros a relação dos
serviços que devem passar ao regime de exploração direta, indicando a ordem de prioridade‖
e de ―negociar com os representantes das empresas concessionárias as condições e a forma de
reembolso ou indenização aos acionistas, e submeter ao Conselho de Ministros o plano
resultante de cada uma dessas negociações‖; e 2) que as indenizações acordadas com as
empresas concessionárias fossem pagas em parcelas, sendo a primeira, à vista, de no máximo
10% da importância total e o restante em ―prestações compatíveis, sempre que possível com
recursos acumulados pelo próprio serviço e com o mínimo de recursos públicos adicionais‖ e
mediante o ―compromisso dos concessionários de reaplicar no País, em setores ou atividades
definidos pela Comissão Nacional de Planejamento como prioritários para o desenvolvimento
econômico e social,‖ no mínimo 75% do valor recebido como indenização.256
No entanto, a criação da CONESP não seria o suficiente para que as negociações com
as empresas estrangeiras avançassem no ritmo que desejavam os Estados Unidos. E, em julho
de 1962, o presidente John Kennedy– através de Lincoln Gordon, seu embaixador no Rio de
Janeiro – envia um telegrama ao presidente Goulart lamentando que o problema das
encampações não tenha ainda se resolvido dentro das linhas acordadas durante a visita de
Jango e alertando que, sendo tal problema de considerável preocupação do governo dos
Estados Unidos, o atraso na sua resolução certamente seria um empecilho nas relações de
amizade entre os dois países.257

255
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos
da América e ao México. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1962, p. 35.
256
Decreto do Conselho de Ministros nº 1.106, de 30 de Maio de 1962. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decmin/1960-1969/decretodoconselhodeministros-1106-30-maio-1962-
353086-publicacaooriginal-1-pe.html> Último acesso em: 29 de maio de 2012.
257
É a seguinte a íntegra do telegrama datado de 11 de julho de 1962: ―Dear Mr. President: You will recall that
during our recent conversations we discussed the problems arising from the expropriation of the properties of the
Compania Telefonica Nacional, a subsidiary of the International Telephone and Telegraph Company. I am sorry
that a solution to this problem along the lines we discussed has not yet been reached. As you know this matter is
one of considerable concern to the United States Government and delay in its settlement undoubtedly obscures
94

Ainda no ano de 1962, o presidente João Goulart receberá uma nova cobrança do
governo estadunidense para a finalização de um acordo de compra das subsidiárias da
AMFORP e ITT. Desta vez, o emissário será Robert Kennedy, irmão do presidente norte-
americano e procurador-geral de seu governo, cuja reunião com Goulart ocorre em 17 de
dezembro.
Segundo Roberto Campos, um dos objetivos da viagem de Robert Kennedy ao Brasil
era o de ―manifestar apreensão‖ diante do ―descaso na execução do entendimento Kennedy-
Goulart, durante a visita deste último a Washington, sobre a nacionalização pacífica das
empresas de serviços públicos encampadas por Brizola‖; uma vez que, segundo o
representante do governo dos Estados Unidos, havia um ―crescente antagonismo do
Congresso americano a programas de ajuda externa a países que tivessem confiscado
propriedades americanas‖ e que a ―inércia‖ do governo brasileiro neste assunto ―encorajaria
elementos negativistas no Congresso americano a amputar verbas de ajuda, não só para o
Brasil, mas para toda a América Latina‖.258 Kennedy solicitava que as atividades empresariais
fossem tratadas ―com justiça‖, particularmente no pagamento de uma ―indenização adequada‖
às empresas.259 Os outros pontos tratados por Robert Kennedy foram: a ―deterioração da
situação econômica do Brasil, tanto interna quanto externamente‖; a necessidade de o governo
brasileiro combater efetivamente a inflação; e a preocupação do governo americano com uma
suposta ―‗infiltração comunista ou de nacionalistas de extrema-esquerda‘ no governo, nas
Forças Armadas, na liderança dos sindicatos de trabalhadores‘ e na ‗liderança estudantil‘‖.260
Na análise de Moniz Bandeira, o significado da visita de Robert Kennedy ao presidente
Goulart era o de que ―o governo de Washington, na verdade, estava a utilizar os empréstimos

the warm friendly relations between the United States and Brazil. I would be most grateful for any immediate
action on your part to settle this urgent and important problem in accordance with our personal discussions and
agreement. I have asked Ambassador Gordon to discuss this matter with you in greater detail. May I take this
occasion to renew my expression of respect and regard. With every best wish, John F. Kennedy‖. In: JOHN F.
KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives. Folder: Brazil: Security, 1962;
Digital Identifier: JFKPOF-112-014; p. 26. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-
Viewer/Archives/JFKPOF-112-014.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012.
258
CAMPOS, Op. cit., p. 501.
259
LOUREIRO, Felipe Pereira. O Plano Trienal no contexto das relações entre Brasil e Estados Unidos (1962-
1963). In: XXXIX ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 2011, Foz do Iguaçu (PR). Anais do XIXXX
Encontro Nacional de Economia (ANPEC), 2011, p. 5; citando os seguintes documentos norte-americanos:
Embtel A-710, 19.12.1962, JFKL, NSF, Box 13A, Folder Brazil, General, 12/16/62 - 12/31/62, p. 2; pp. 5-10.
Artigo também disponível em: <http://anpec.org.br/encontro/2011/inscricao/arquivos/000-
dee84beca059ff4b73fb482757a9b9bc.pdf>. Último acesso em: 29 de maio de 2012.
260
Idem.
95

ao Brasil como instrumento de pressão econômica e política, aproveitando-se de suas


dificuldades com o balanço de pagamentos‖.261
O déficit no balanço de pagamentos do Brasil em 1962 fora ―da ordem de 400 milhões
de dólares‖262; além do que, mais da metade da dívida total do país, que em 1963 atingiria o
valor de cerca de 3 bilhões e 800 milhões de dólares, venceria até 1965.263

O ano de 1963 se inicia com a retomada do presidencialismo no Brasil, referendado


em plebiscito, e a retomada de negociações com os Estados Unidos. Em março, San Tiago
Dantas, agora Ministro da Fazenda do gabinete presidencialista do governo Jango, é enviado
em missão a Washington, com o objetivo de negociar a extensão de prazos para o pagamento
dos compromissos brasileiros, cujo vencimento se aproximava, bem como obter novos
auxílios financeiros.
Junto com seu ministro, o presidente João Goulart remete uma carta ao presidente
John Kennedy dizendo que, ainda que desejasse poder anunciar ―a conclusão das negociações
para nacionalização, mediante compra, das empresas concessionárias de serviços públicos
filiadas à American Foreign Power e à International Telephone and Telegraph‖, as
―sucessivas crises políticas‖ no Brasil teriam prejudicado as negociações com as empresas
concessionárias. Contudo, Goulart comemora o fato de que, a partir de contatos entre o
anterior Ministro da Fazenda, Miguel Calmon du Pin, e o Secretário do Tesouro americano,
Douglas Dillon, se concluíra, ―de forma reputada satisfatória por ambas as partes‖, a
encampação da subsidiária da ITT do Rio Grande do Sul. Quanto à AMFORP, o presidente
destaca que, desde sua visita a Washington, as autoridades brasileiras mantiveram contato
com as empresas, obtendo ―resultado positivo‖ quanto às ―cláusulas fundamentais‖ do acordo
de compra. Com isso, haveria a expectativa de que, em breve, a negociação fosse concluída:
Dentro de poucos dias, reabertos os trabalhos do Congresso Nacional e
alcançado um esclarecimento mais amplo da opinião pública, espero que
também o caso da American Foreign Power esteja resolvido na linha dos
nossos entendimentos e de acordo com as bases estabelecidas na negociação
entre os representantes dessa empresa e as autoridades brasileiras.
Estou convencido de que desse modo, ficam eliminadas as áreas de atrito
que vinham prejudicando o desenvolvimento de entendimentos de maior
alcance, do interesse dos nossos países, e que os propósitos expressos no

261
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 96.
262
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 8.
263
Entrevista do Presidente João Goulart à Revista Manchete em novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO,
C. Op. cit., pp. 234-245.
96

comunicado conjunto resultante de nossas conversações em Washington,


sejam plenamente alcançados.264

Vale notar que, embora a carta constitua uma tentativa clara de tranquilizar o governo
americano quanto à compra das empresas e facilitar as demais negociações das quais a
comitiva brasileira estava incumbida – e cujos resultados seriam de enorme importância para
a economia do país –, a mensagem aponta uma preocupação com o ―esclarecimento mais
amplo da opinião pública‖ sobre as negociações de compra da American Foreign Power;
mostrando a possibilidade de a medida ter uma repercussão negativa no Brasil.
A incumbência de Santiago Dantas de obter empréstimos e refinanciamentos junto aos
Estados Unidos e FMI encontrou grandes dificuldades. David Bell, administrador da United
States Agency for International Development (USAID), insistia em condicionar a abertura dos
fundos norte-americanos ―ao desempenho do governo Goulart em um conjunto de áreas
(política monetária, cambial, fiscal)‖.265 Embora ―muitos dos critérios de desempenho
recomendados pelas autoridades norte-americanas‖ tenham sido ―considerados inaceitáveis
pelo Ministro da Fazenda, tais como o estabelecimento de prazos específicos para a liberação
total do câmbio, ou a extinção dos subsídios federais às companhias ferroviárias e marítimas‖,
San Tiago Dantas acabou cedendo seu consentimento para a ―publicação de uma carta de
intenções em nome do governo brasileiro, além de se comprometer a concluir o processo de
encampação das subsidiárias da American Foreign and Power (AMFORP)‖.266
Ao narrar o episódio que intitula de ―O insucesso de San Tiago Dantas‖, Celso
Furtado aponta para o fato que tanto Dantas como os norte-americanos sabiam da importância
do apoio externo ao governo Brasileiro − sem ele, ―o governo brasileiro seria forçado a adotar
medidas drásticas, simplesmente para garantir o funcionamento da economia, medidas
impopulares que dificilmente o presidente apoiaria‖. 267
Em seu aspecto técnico, o Plano Trienal, que era a base da negociação de San Tiago
Dantas com os norte-americanos foi amplamente elogiado, já que Furtado afirma ter tomado o
cuidado de ―embutir um conjunto de providências estabilizadoras que estavam longe de ferir a
sensibilidade ortodoxa dos técnicos do FMI‖. O que, segundo o próprio Dantas, funcionou,

264
Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy, datada de 08 de março de 1963. In: JOHN
F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963:
January-April; Digital Identifier: JFKPOF-112-011, pp. 6-7. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-
Viewer/Archives/JFKPOF-112-011.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. Grifo nosso.
265
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 10.
266
Ibidem, p. 11.
267
FURTADO, C. Op. cit., pp. 249-255.
97

sendo o ―primeiro plano gradualista da inflação contra o qual os técnicos do Fundo


[Monetário Internacional] nada têm a dizer‖.268
Mas como aponta Furtado, ―os problemas importantes não estavam na alçada dos
técnicos‖. Como se não bastasse o fato das negociações com os ―banqueiros de New York‖
não terem avançado, San Tiago Dantas ainda teria sido chamado ao telefone por David
Rockefeller, do Chase Manhattan Bank, e ouvido uma ―espinafração‖, por estar, naquele
momento, tramitando no Congresso brasileiro um projeto de reforma bancária:
―Ou vocês retiram de imediato esse projeto de lei ou eu mando cortar todas a
linhas de crédito de que hoje se beneficia o Brasil‖. Ele sabia mais do que
ninguém, que o Brasil estava no limite do sufoco no que respeita ao
financiamento a curto prazo em suas transações comerciais com o exterior.269

É neste contexto, segundo Furtado, que se explica o fato de San Tiago Dantas ter
subscrito a proposta de entendimento com o grupo American Foreign Power (Bond and
Share), a ser assinada por Roberto Campos e pelo vice-presidente da AMFORP. Os valores
dessa proposta seriam posteriormente, no Brasil, considerados excessivos, gerando um grande
desgaste político para San Tiago Dantas e para o governo de João Goulart.
Assim, como resultado das negociações, que se mostraram insatisfatórias para o
governo brasileiro,
o governo Kennedy consentiu na liberação imediata apenas de US$ 84
milhões – e, mesmo assim, sob a condição secreta de a administração
Goulart concluir a compra das subsidiárias da AMFORP. Os recursos
restantes (US$ 314,5 milhões) seriam distribuídos ao longo de um ano, e
dependentes do desempenho brasileiro nos compromissos assumidos por
Dantas. O Ministro da Fazenda também foi informado de que o governo
Kennedy poderia rever os termos de seu auxílio econômico caso o governo
Goulart não firmasse um standby com o FMI até junho de 1963.270

Dessa forma, o governo brasileiro, além de não obter o auxílio financeiro de que
necessitava, viu-se também pressionado a concluir a compra das subsidiárias das empresas
norte-americanas – medida que certamente encontraria resistência entre os setores
nacionalistas que formavam sua base de apoio.
Menos de um mês após as negociações de Dantas em Washington, o embaixador
americano Lincoln Gordon teria ameaçado o presidente Goulart ―com o congelamento da

268
Ibidem, p. 251.
269
Ibidem, p. 253.
270
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 13.
98

primeira parcela do acordo caso a situação não fosse resolvida‖. E, em resposta, Jango teria
prometido ―que o ‗caso AMFORP‘ seria solucionado até o dia 19 de abril‖.271
Em 8 de abril de 1963, Goulart publica o Decreto nº51.892, que extingue a CONESP
(criada em maio de 1962 e que, até então era a responsável pelos casos de nacionalização de
empresas de serviços públicos) e cria uma Comissão Interministerial (composta pelos
ministros da Fazenda, de Minas e Energia, de Viação e Obras Públicas, da Indústria e
Comércio e da Guerra) com a função de ―decidir sobre a nacionalização das empresas
concessionárias que exploram o serviço público de energia elétrica ou telecomunicações‖.272
Seguindo-se a este decreto,
No dia 20 de abril, em reunião extraordinária no gabinete do Ministério da
Guerra, a Comissão Interministerial aprovou por unanimidade os termos de
negociação /.../. Dois dias depois, Roberto Campos assinaria o memorando
de entendimento com os representantes da empresa em Washington.273

A assinatura deste ―memorando de entendimento‖ gerará enorme polêmica no Brasil.


Afinal, a Comissão Interministerial teria concordado com o pagamento de 166,6 bilhões de
cruzeiros, enquanto a CONESP/Eletrobrás calculara 57 bilhões de cruzeiros.274 No dia 28 de
maio de 1963, Brizola denuncia em cadeia de rádio e televisão os ―entendimentos promovidos
pelo ministro San Tiago Dantas em Washington como ‗crime de lesa-pátria‘, dizendo que se o
governo de Goulart os efetivasse criaria com ele uma situação de ‗discordância insanável‘‖.275
A partir de então, detonou-se uma série de manifestações contrárias ao acordo.
Duas Comissões Parlamentares de Inquérito foram montadas no Congresso
para investigar o assunto. Em maio de 1963, o deputado Leonel Brizola
(PTB-GB) distribuiu um relatório em Brasília denunciando o acordo como
―lesivo aos interesses da nação‖. Dias depois, o deputado Simão da Cunha
(UDN-MG), falando em nome da ―bossa nova‖ undenista, e com apoio do
―grupo compacto‖ do PTB, afirmou que a Câmara seria obrigada a votar o
―impeachment‖ de Goulart caso o presidente continuasse insistindo em
manter o acordo com a companhia norte-americana. As constantes e abertas
defesas do negócio feitas por Dantas e Campos não foram suficientes para
conter a avalanche de críticas. Como a embaixada norte-americana informou
a Washington, a campanha das esquerdas contra a AMFORP estaria
―ofuscando todas as demais questões políticas‖.276

De acordo com Moniz Bandeira,

271
Idem, citando o documento: Embtel 1927, 05.04.1963, NARA, RG 84, Box 136, Folder 501; Embtel 7298,
Section II, 09.04.1963, JFKL,NSF, Box 14, Folder Brazil, General, 4/63.
272
Decreto nº 51.892, de 8 de abril de 1963. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-
1969/decreto-51892-8-abril-1963-391705-publicacaooriginal-1-pe.html> Último acesso em: 29 de maio de 2012.
273
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 13.
274
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 109-110.
275
Ibidem, p. 107.
276
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 14.
99

o memorandum, fixando o preço [de compra da AMFORP], foi assinado


pelo embaixador Roberto Campos à revelia de Goulart, que, nos
entendimentos com Kennedy, jamais assumira qualquer compromisso a
respeito do quantum ou da forma pela qual o governo do Brasil compraria as
concessionárias dos serviços públicos. Tanto assim que, tão logo se inteirou
dos detalhes do negócio, Goulart incumbiu o líder do governo na Câmara
Federal, Deputado Antônio Ferreira de Oliveira Brito, de denunciar o
documento assegurando que só concluiria a transação depois de avaliado o
patrimônio das empresas por técnicos brasileiros e preservados os interesses
do país. Concomitantemente, determinou ao presidente da Eletrobrás, Paulo
Richet, que constituísse uma comissão para fazer o tombamento patrimonial
e contábil da Bond & Share. 277

Em defesa do presidente João Goulart, o deputado Oliveira Brito, então líder do


governo na Câmara dos Deputados, desmentiu ―que o Governo tivesse marcado um prazo, a
esgotar-se no dia 1 de julho, para a conclusão das negociações, como anunciou o Embaixador
Roberto Campos em Washington‖. Afirmou ainda que o presidente não teria aprovado
―qualquer acerto, limitando-se unicamente a autorizar que se realizassem as negociações
diretas através da Comissão Interministerial‖ e que o documento apresentado como ata da
última reunião da Comissão, na verdade seria apenas ―um rascunho apresentado por um dos
assessores da CONESP presentes àquela reunião‖ e que fora ―recusado por todos os ministros
presentes, sem exceção‖.278
Além do pronunciamento de Oliveira Brito, o Gabinete Civil da Presidência da
República distribuíra uma nota em que afirma que:
A aquisição pela União do acervo da Companhia Telefônica Brasileira foi
recomendada em relatório do Secretário Geral do Conselho de Segurança
Nacional de 5 de dezembro de 1961, em parecer de 12 do mesmo mês do Sr.
Consultor Geral da República, e em ato da Comissão Interministerial criada
pelo decreto 51.892, de 8/4/62, conforme nota oficial de 20 de abril
último.279

Contudo, garante que, naquele momento, nenhuma operação estaria concluída,


existindo apenas negociação – que, no caso das empresas de telecomunicações, estava sendo
conduzida pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – e
que, ―antes de qualquer conclusão‖, seria concedido o ―amplo e prévio conhecimento ao
Congresso e ao povo brasileiros‖, para que, ―através do debate franco‖, fossem ―resguardados
os interesses nacionais‖.280 A nota reafirma, ainda a urgente necessidade de nacionalização

277
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 110.
278
―Líder defende posição do Governo na compra das concessionárias‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 jun.
1963.
279
―Jango responde carta de Lacerda sem dizer como são encampações‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29
mai. 1963.
280
Idem.
100

das empresas concessionárias dos serviços de energia e telecomunicações para o


desenvolvimento do país, defendendo a solução da compra como a mais adequada.
A solução da compra através de negociações, tem em seu favor a
possibilidade de alcançar, em prazo curto, a nacionalização dos serviços
concedidos a estrangeiros, tornando a operação economicamente viável, por
poder convecionar-se o pagamento a longo prazo, com a cláusula de sua
aplicação facultativa para o Brasil em outras atividades econômicas
selecionadas pelo governo federal. É desnecessário acentuar que a
desapropriação por via judicial impediria o pagamento a longo prazo, dado
que o art. 141, parágrafo 16, da Constituição exige a prévia e justa
indenização em dinheiro, isto é, à vista.281

Como movimento seguinte à tamanha repercussão, o governo brasileiro determinou o


cumprimento de uma avaliação dos ativos das subsidiárias antes da assinatura de qualquer
contrato, a fim de ajustar o valor da compra de acordo com o avaliado. A AMFORP teria
concordado com a realização prévia do inventário, desde que o governo ―se comprometesse a
pagar o preço previamente estabelecido (US$ 142,7 milhões)‖.282 A condição da empresa não
foi acatada pelo governo brasileiro e as negociações foram interrompidas. Contudo, ―o
escândalo enfraqueceu Goulart‖.283
O governo Goulart, ao mesmo tempo em que tentava lidar com a enorme repercussão
negativa dos acordos com a AMFORP, também tentava apresentar resultados a uma missão
do FMI − chegada ao país em meados de maio −, procurando, mais uma vez, obter recursos
financeiros. Contudo, o resultado da missão também não se mostrou satisfatório para o
governo brasileiro. Foram concedidos US$ 60 milhões como empréstimo compensatório pela
queda no valor das exportações do país e com a ressalva de que tal concessão ―não
representaria um sinal de apoio da instituição à política econômica do governo Goulart, ou,
muito menos, de que um acordo standby estaria a caminho‖.284 Para os membros do FMI,
a administração Goulart não possuiria ―condições políticas‖ para
implementar um ―adequado programa de estabilização‖. Propôs-se,
diferentemente, o estabelecimento de uma ―moratória negociada‖ entre o
Brasil e os credores, até que uma ―mudança de orientação política‖ do
governo brasileiro permitisse a aplicação das ―medidas econômicas
necessárias‖.285

281
Idem.
282
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 16.
283
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 110.
284
Ibidem, p. 16, citando o documento: Report, IMF British Director, 09.06.1963, pp. 6-7.
285
Idem, citando o documento: Embtel 2320, 30.05.1963, NARA, RG 84, Box 136, Folder 501.
101

Sendo assim, Goulart, além de ver a imagem de seu governo prejudicada pela
divulgação dos possíveis acordos com a AMFORP, recebera, pela segunda vez, um retorno
frustrante quanto à tão necessária obtenção de recursos financeiros.
O bloqueio aos créditos externos impôs um dilema a Goulart: ou ceder a
Washington e, além de comprar a AMFORP, adotar o programa de
estabilização do FMI, ou recorrer a medidas de caráter nacionalista, entre as
quais a aplicação da lei que limitava as remessas de lucros para o exterior.
/.../ Assim, as vacilações de Goulart, naquela conjuntura, decorriam menos
do seu estilo de conduta do que de sua condição no poder.286

Ainda em junho de 1963, o presidente João Goulart executa uma reforma ministerial e,
na pasta da Fazenda, substitui San Tiago Dantas – sobre quem pesavam a péssima repercussão
do caso das nacionalizações e sua saúde já comprometida pelo câncer, que causaria sua morte
no ano seguinte287 – por Carvalho Pinto, ex-governador de São Paulo, com boa aproximação
junto ao empresariado.
Mesmo indicando um reconhecido conservador para o Ministério da Fazenda, o
governo Goulart não encontraria, a partir de então, melhores condições para negociar com os
Estados Unidos: ―O fracasso na obtenção de um standby com o FMI, o relaxamento das metas
do programa de estabilização de Furtado, e a quebra de compromisso no caso AMFORP
levaram o governo Kennedy a congelar os recursos do acordo Bell-Dantas‖,288 condicionando
o reescalonamento da dívida externa brasileira à concretização das medidas fixadas naquele
acordo, ainda que houvesse resistência interna a elas.289
Em 1º de julho, os presidentes Kennedy e Goulart se encontram em Roma, por ocasião
da coroação do Papa Paulo VI. Nesta oportunidade, Kennedy teria, mais uma vez abordado a
questão da compra das concessionárias de serviços públicos, alegando que ―sofria fortes
pressões para resolvê-la o quanto antes‖, uma vez que a corporação que controlava da
AMFORP tinha ―largas ramificações‖ nos EUA.290 Goulart, além de tentar explicar
dificuldades existentes para concluir as negociações nos termos em que as empresas
pretendiam, teria também solicitado uma prorrogação do débito de US$ 25 milhões, que
vencera em meio à crise cambial.291 Kennedy concorda em prorrogar o prazo de liquidação do
débito; mas, envia uma carta em 10 de julho, que deixava o presidente João Goulart ―numa

286
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 113-114.
287
CAMPOS, R. Op. cit., p. 515 e p. 538.
288
LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 17.
289
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 113.
290
Idem, pp. 121-122, citando entrevista de Evandro Lins e Silva, então recém-nomeado Ministro do Gabinete
Civil, ao autor.
291
Idem. Ver também CAMPOS, R. Op. cit., p. 505.
102

posição bastante desagradável e comprometedora, sobretudo no que se referia aos


entendimentos para a compra da AMFORP‖.292
Na carta, Kennedy assinala que, no encontro em Roma, Goulart havia solicitado um
prazo de 60 a 90 dias para implementar o acordo entre o governo brasileiro e a AMFORP para
a compra das propriedades desta empresa. E, afirmando ter entendido que seriam mantidos os
termos acordados com a empresa no memorando assinado por Roberto Campos, propõe a
negociação de uma emenda ao ―memorando de entendimento‖, que confirmaria os termos da
compra e esclareceria as etapas a serem seguidas até a assinatura de um contrato definitivo.293
Dessa forma, a carta dava a entender que Goulart mantinha o ―compromisso‖ previsto no
memorando firmado por Roberto Campos, mesmo depois de o presidente ter negado a
aprovação de um acerto de compra da AMFORP.
Procurando desfazer o ―mal-entendido‖, Goulart responde com carta do dia 23 de
julho de 1963, em que, reafirmando a importância da colaboração e amizade entre Brasil e
Estados Unidos, ressalta que os termos da carta de Kennedy nos pontos em que abordava seu
pedido de adiamento da conclusão do acordo com a AMFORP não corresponderiam a suas
intenções.294
Julgo, assim, indispensável prosseguirmos, através de nossos representantes,
o diálogo que encetamos em Roma, com o objetivo de dirimir dúvidas que
nele surgiram e pequenas discrepâncias que ainda parecem subsistir. Essa
tarefa é tanto mais necessária quanto é certo que, em países democráticos
como os nosso, nenhuma política mais ampla de cooperação é possível sem
o apoio de uma opinião pública perfeitamente consciente e informada sobre
fatos e operações que nela se inserem. Foi nesse contexto, que, em Roma,
tive a oportunidade de referir-me ao esclarecimento de múltiplos setores da
vida brasileira sobre alguns aspectos do problema da compra do acervo da
―American Foreign Power Company‖.

292
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 122.
293
Telegrama do Departamento de Estado dos Estados Unidos à sua embaixada no Rio de Janeiro, com
transcrição da carta a ser entregue ao presidente João Goulart, datado de 10 de julho de 1963. O referido trecho é
o seguinte: ―In connection with the purchase of the American and Foreign Power Company properties, I
understood, from our conversation in Rome, that there Will be no departure from the terms agreed with the
company and embodied in the memorandum of understanding signed by your Ambassador last April 22.
However, you wished to arrange a 60 to 90 day deferment of the date. The best approach to this problem would
be to negotiate with the company an amendment to the memorandum of understanding. Such an amendment
would confirm the terms of purchase and make clear what steps will be taken during the additional time period
to the signature of a definitive contract‖. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND
MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: Security, 1963; Digital Identifier: JFKPOF-112-015, pp. 78-81.
Disponível em: < http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-015.aspx> Último acesso em:
28 de maio de 2012.
294
Carta do presidente João Goulart ao Presidente John F. Kennedy, datada de 23 de julho de 1963. In: JOHN F.
KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963:
May-November; Digital Identifier: JFKPOF-112-012, pp. 16-19. Disponível em: <
http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-012.aspx> Último acesso em: 28 de maio de
2012.
103

Baseado nas palavras de Vossa Excelência e no seu amistoso espírito de


colaboração, entreguei aos meus Ministros da Fazenda e de Minas e Energia
a tarefa de discutir com as autoridades americanas e com a AMFORP os
nossos problemas financeiros, bem como o das concessionárias, os quais não
podem ser encarados isoladamente, mas como parte de todo um complexo de
questões que recaem no Âmbito de uma ampla colaboração entre Brasil e os
Estados Unidos da América. No tocante ao problema das concessionárias,
minha intenção, Senhor Presidente, é, como lhe disse em Roma, evitar que o
mesmo, se mal conduzido por nossos Governos, venha ampliar áreas de
atrito, ao invés de eliminá-las, como era o propósito que nos inspirava ao
expedirmos o comunicado conjunto de abril de 1962.295

Daí em diante, as negociações com as empresas estrangeiras concessionárias dos


serviços públicos no Brasil não mais avançarão durante o governo Goulart.
No caso da ITT, apesar de haver referências à conclusão de um acordo, o mesmo não
será confirmado pelo governo Jango. Na carta enviada por Goulart a Kennedy, de 8 de março
de 1963 – aqui já citada – o presidente afirma ter verificado ―com prazer, que o episódio da
encampação da subsidiária da International Telephone and Telegraph do Rio Grande do Sul
ficou concluída de forma reputada satisfatória por ambas as partes‖.296 Nos meses de janeiro e
março daquele ano, especulou-se que um empréstimo do Banco do Brasil à Standard Electric,
subsidiária da ITT, no valor de 7,3 milhões de dólares, constituíra, na verdade, uma
―indenização indireta‖.297
O presidente João Goulart, no entanto, negou tal procedimento, afirmando, em
entrevista coletiva, que a questão com a ITT permanecia na Justiça e que a decisão resultante
seria respeitada pelo Governo Federal.298 E, em discurso pronunciado durante entrevista
concedida aos representantes do Comando Geral dos Trabalhadores, Jango procurou
esclarecer:
Ainda há pouco, /.../ tive a oportunidade de afirmar que esse empréstimo
vinha sendo examinado já há algum tempo e que fora estudado pelo
estabelecimento de crédito oficial do Brasil. Afirmei, também, aos
jornalistas que o Governo, e especialmente eu, não tínhamos nenhum

295
Idem.
296
Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy, datada de 08 de março de 1963. In: JOHN
F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963:
January-April; Digital Identifier: JFKPOF-112-011, pp. 6-7. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-
Viewer/Archives/JFKPOF-112-011.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012.
297
Roberto Campos afirma, em suas memórias que ―a longa controvérsia‖ entre o governo brasileiro e a ITT
teria mesmo sido regularizada mediante este empréstimo de ―US$ 7,3 milhões em termos concessionais‖. In:
CAMPOS, R. Op. cit., p. 473. Também o artigo de Felipe Loureiro, utilizando documentos americanos como
fonte, afirma que: ―Em janeiro de 1963, o governo brasileiro concluiu acordo com a International Telephone and
Telegraph (ITT), pagando compensação pela expropriação de uma das subsidiárias da empresa no Rio Grande
do Sul‖. Ver: LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 6, citando o documento Emprep A-941, 18.02.1963, Idem, Folder
2/6.
298
―Para J. Goulart documentos cubanos não são importantes‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1963.
Transcrição de declarações dadas pelo presidente Goulart em entrevista coletiva, em Brasília.
104

conhecimento de que se fizesse qualquer pagamento a título de indenização,


àquela empresa estrangeira.
Se a operação pode ser objeto de críticas (e a crítica, no regime democrático,
conduz ao esclarecimento), sobre o aspecto de indenização, ela não pode ser
examinada, porque na realidade não houve nenhum pagamento de
indenização. Embora tenha sido uma determinação do governo anterior,
sinto-me perfeitamente à vontade para afirmar que não houve nenhum
pagamento de indenização. O processo de desapropriação da IT&T encontra-
se na justiça brasileira. Caberá ao governo do país e ao presidente da
República aceitar e aplicar a decisão da justiça. Dirão os trabalhadores:
houve uma indenização indireta, porque houve um empréstimo.
Não se trata, então, propriamente, da IT&T. Trata-se de uma subsidiária. É
outra empresa, ligada a um grupo que opera na indústria de material elétrico.
Realmente, o empréstimo foi feito à Standard Electric, e acredito que não
seja o único feito no Brasil a companhias que operam em nosso território. O
que fez a diretoria do Banco foi um empréstimo de natureza industrial,
aprovado pelo Conselho de Ministros.299

De qualquer maneira, não haverá nenhuma conclusão formalizada pelo governo João
Goulart. Há informações de que, além do referido empréstimo de janeiro de 1963, a empresa
receberá um pagamento de 12,2 milhões de dólares em 1967 – portanto já durante a ditadura
militar.300 Também a negociação com a AMFORP somente seria concluída no governo
Castello Branco, através do ex-embaixador Roberto Campos, agora nomeado ministro do
planejamento.
Uma das primeiras medidas do Marechal Castello Branco, executada pelo
Ministro do Planejamento, foi efetivar o acordo, pagando a indenização,
acrescida de multa de 10 milhões de dólares pelo atraso. O Brasil pagou,
parceladamente, à American & Foreign Powers cerca de 470 milhões de
dólares, soma esta que englobava outras empresas do mesmo grupo.301

Vimos, portanto, o quanto as negociações com as empresas estadunidenses geraram


controvérsias e pressões externas e internas para o governo João Goulart. Se por um lado a
nacionalização das empresas concessionárias dos serviços públicos mostrava-se uma urgente
necessidade do desenvolvimento econômico do país e da própria população, por outro, o
governo brasileiro via-se em meio a uma crise cambial e inflacionária, com um grande déficit
no balanço de pagamentos e com compromissos externos de grande vulto a serem pagos no
biênio 1963-65 – o que o fragilizava enormemente nas negociações com o governo dos

299
―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 06 fev. 1963. Grifos nossos. Transcrição de discurso pronunciado durante entrevista concedida pelo
presidente João Goulart aos representantes do Comando Geral dos Trabalhadores.
300
KUCINSKI, Bernardo. O Estado da ITT. Opinião, Rio de Janeiro, n. 43, 3 a 10 de setembro de 1973, pp. 8-9.
301
MONIZ BANDEIRA, L. A. Brizola e o trabalhismo, p. 67. Já, Roberto Campos descreverá a mesma
transação da seguinte forma: ―A transação foi finalmente concluída, em condições aliás melhoradas, já no
governo Castello Branco, incorporando-se importante acervo ao patrimônio nacional, contra pagamento a longo
prazo, em parte reinvestido em participações minoritárias em outras empresas no país, sem dano para o clima de
investimentos‖. In: CAMPOS, R. Op. cit., p. 472.
105

Estados Unidos. Na correspondência entre João Goulart e John Kennedy, percebe-se a pressão
exercida pelo governo norte-americano sobre o brasileiro, bem como as tentativas de Jango
em evitar rupturas, uma vez que o auxílio financeiro externo era uma necessidade para a
economia brasileira. Mesmo em discurso aos trabalhadores, Goulart afirmava: ―Não é do
interesse do país assumir atitudes que possam criar reflexos imediatos e insustentáveis.
Portanto, a minha posição, aqui, tem de ser de absoluto equilíbrio no sentido de
salvaguardar, acima de tudo, o interesse do país‖.302
Os efeitos do modelo de industrialização brasileiro, implementado por Juscelino
Kubitschek pesava agora sobre Goulart. Ainda que enaltecesse o nível de industrialização
atingido pelo Brasil como uma ―autêntica reforma de base‖, o presidente Jango percebia que:
Não podíamos, porém, por outro lado, pagar o financiamento que
levantamos para custear essa autêntica reforma de base a que submetemos a
estrutura nacional. As amortizações e os juros daquele financiamento vieram
a pesar de maneira insuportável sobre a nossa economia. A capacidade
demonstrada e provada pelo Brasil deveria dar-nos, porém, o inalienável
direito ao crédito de que necessitamos. O mérito de nossas realizações não
mais poderia ser omitido ou escamoteado.

A situação brasileira era ainda mais grave pelo fato de que os preços dos gêneros
exportados pelo Brasil caíam continuadamente.
Basta dizer que o café e o cacau — e este, o cacau, foi até 1960 o segundo
produto em nossa pauta de exportação — sofreram quedas superiores a 50%,
no período de 1954 a 1963! Para dar uma idéia do que isto significa e nos
custa, é suficiente observar que, se prevalecessem os preços vigentes em
1956, nossa receita cambial estaria proporcionando ao país, hoje, nada
menos de 2,5 bilhões de dólares. Em 1954 exportamos 4,3 milhões de
toneladas de mercadorias e obtivemos uma receita de um bilhão e 562
milhões de dólares. Em 1962, exportamos 12,4 milhões de toneladas de
mercadorias e a receita alcançou apenas a ordem de um bilhão e 214 milhões
de dólares. Exportamos três vezes mais, e baixou, todavia, a nossa receita
cambial!303

Sendo assim, o Brasil não conseguia obter, através das exportações, divisas suficientes
para cobrir o valor das importações necessárias para manter ou acelerar o ritmo do
desenvolvimento econômico do país – já que grande parte das importações brasileiras

302
―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 06 fev. 1963.
303
Entrevista do Presidente João Goulart à Revista Manchete em novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO,
Carlos. Introdução a Revolução de 1964. Tomo 2. A queda de João Goulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, pp.
234-245.
106

atendiam à necessidades industriais304 – e, ao mesmo tempo, cumprir com as obrigações da


dívida externa. Como aponta, Cássio Silva Moreira,
Nessas circunstâncias, estabelece-se um verdadeiro círculo vicioso, em que a
assistência financeira servia principalmente para evitar um colapso total e
imediato da nossa capacidade de pagar as importações e satisfazer os
compromissos externos, sem todavia, impedir o caráter quase crônico dessa
deficiência de divisas.305

Assim sendo, o caso das encampações ganhou maior importância na medida em que
sua resolução, em termos favoráveis às empresas, se tornou uma das condições para que o
governo brasileiro obtivesse auxílio financeiro externo – uma vez que se tratava de
corporações de enorme influência internacional.306
Portanto, as decisões de maior significado foram tomadas num plano distinto
daquele em que atuava San Tiago Dantas, o que explica a ineficácia de seus
belos argumentos. À medida que ele perdia terreno, e se agravavam os
desequilíbrios financeiros, uma situação nova se configurava.307

No entanto, um governo como o de João Goulart, que tomava para si o ideário


nacionalista legado por Getúlio Vargas, não poderia se mostrar submisso aos interesses
estrangeiros em detrimento dos interesses nacionais. A posição de assumir uma proposta de
governo nacionalista, de busca da emancipação econômica do país, estando ao mesmo tempo
premido por desequilíbrios financeiros e econômicos cujas soluções exigiam negociações
internacionais, coloca João Goulart numa situação muito difícil de ser contornada – ainda
mais porque o presidente se mantém firme na linha das negociações, descartando as
possibilidades de ruptura unilateral. Sem auxílio financeiro externo, restará a Goulart se fixar
na conquista de apoio interno para a execução das reformas que pudessem diminuir os
desequilíbrios econômicos e sociais do país. No entanto, as dificuldades enfrentadas no
âmbito da economia, para as quais não havia solução em curto prazo, acabavam utilizadas
como importante artilharia por seus opositores poolíticos.

2.1.2. A questão de Cuba e a Aliança para o Progresso

A vitória da Revolução Cubana contra a ditadura de Fulgêncio Batista, em janeiro de


1959, mesmo não constituindo, ainda em seu início, uma revolução comunista, transformou-

304
Em 1961, 39,8% das importações do Brasil se referiam a bens de capital; 18,8% a combustíveis, lubrificantes
e derivados de carvão e petróleo; e 26,3% a outras matérias-primas. Ver: MOREIRA, C. S. Op. cit., p. 129.
305
Idem, p. 133.
306
Vale lembrar a fala atribuída ao presidente Kennedy de que ―a corporação que detinha o controle da
AMFORP tinha ‗largas ramificações‘ nos EUA‖ e de que a ITT será apontada como financiadora do golpe
contra o presidente Salvador Allende, do Chile, em 1973.
307
FURTADO, C. Op. cit., p. 255.
107

se numa enorme preocupação para os Estados Unidos. A possibilidade de o caso cubano


tornar-se um exemplo para outros países da América Latina, abrindo maiores espaços para a
penetração soviética no continente americano, era razão suficiente para que o governo
estadunidense se mobilizasse para sustar esse processo revolucionário.
Porém, para que sua atuação fosse bem sucedida, os Estados Unidos necessitariam do
apoio dos demais países latino-americanos. Será nesse contexto que o representante do partido
democrata americano, John F. Kennedy, assume a presidência do país, em 1961, e lança o
programa da Aliança para o Progresso – um projeto que teria como objetivo auxiliar e
estimular o desenvolvimento dos países latino-americanos.
Como afirma Moniz Bandeira,
Kennedy herdou de Eisenhower um continente com vários focos de
contestação. Assumiu a Presidência dos Estados Unidos convencido de que
sua grande luta seria impedir que a influência de Fidel Castro se difundisse a
outros países da América. Mas sabia (e a política de Eisenhower-Dulles o
demonstrara) que somente o uso de força não bastava para deter a diátese.
Era preciso que Washington ajudasse os outros povos a melhorar suas
condições de vida, abrindo-lhes perspectivas de mudança, dentro do
Capitalismo. Em outras palavras, o imperialismo norte-americano teria que
aceitar senão promover algumas reformas, se quisesse impedir a Revolução
Social e salvar a essência do seu domínio. Esse, o sentido da Aliança para o
Progresso.308

Kennedy, em seu discurso de lançamento do programa, afirma que a Aliança para o


Progresso constituiria um ―vasto plano novo de dez anos para as Américas, um plano
destinado a transformar a década de 1960 em uma década de progresso democrático‖. 309 O
modo como Kennedy anuncia o programa da Aliança chega à aproximá-la ao plano Marshall,
que auxiliou a reconstrução da Europa após a Segunda Grande Guerra. Contando com
―decididos esforços das próprias nações americanas‖, Kennedy promete:
se os países da América Latina estão preparados para desempenhar sua parte
– e estou certo de que estão – os Estados Unidos, acredito, contribuirão por
sua vez para dar recursos de alcance e magnitude suficientes para garantir o
êxito deste audacioso programa de desenvolvimento, do mesmo modo por
que contribuímos para dar recursos necessários à reconstrução das
economias da Europa Ocidental.310

A ideia de um plano de auxílio dos Estados Unidos aos países latino-americanos, à


primeira vista, causa simpatias. No entanto, com o tempo, as verbas da Aliança para o

308
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 404.
309
―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar.
1961.
310
Idem.
108

Progresso, passam a representar um fator de barganha para a obtenção de apoio aos interesses
estadunidenses. A primeira ocasião em que esse tipo de negociação se torna flagrante será na
VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas.

A VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas

Após o fracasso da tentativa de invasão do território cubano no conhecido episódio da


Baía dos Porcos e a primeira declaração pública de Fidel Castro de que a Revolução Cubana
era uma revolução socialista – ambos os fatos ocorridos em abril de 1961 −,311 os Estados
Unidos passam a articular, com o auxílio de seus embaixadores nos países latino-americanos,
a possibilidade de convocação de uma Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos. E,
nos meses de outubro e novembro daquele mesmo ano Peru e Colômbia solicitam uma
reunião de consulta da OEA, para que fosse examinada a questão de Cuba.
Ao longo do período entre o início das articulações e a efetiva convocação da reunião
de consulta, o Brasil se encontrava em meio à turbulência da renúncia de Jânio Quadros e da
tumultuada posse de João Goulart sob a emenda parlamentarista. No entanto, a mudança de
governo não significou uma mudança de postura do país em suas relações exteriores. O
Itamaraty, sob o comando de San Tiago Dantas (naquele momento como Ministro das
Relações Exteriores), mantinha a postura de não intervenção e de defesa da autodeterminação.
Assumindo esta posição, San Tiago Dantas leva para a VII Reunião de Consulta dos
Chanceleres Americanos – que ocorre entre 22 e 31 de janeiro de 1962, na cidade uruguaia de
Punta del Este – uma proposta, não de intervenção, mas de neutralização de Cuba, levando
como diretrizes básicas para o posicionamento brasileiro na Reunião ―votar contra medidas
contrárias ao princípio de não intervenção, inclusive sanções militares, econômicas e
diplomáticas‖, apoiando a ―constituição de uma Comissão Especial destinada a definir as
obrigações e limites que Cuba deveria respeitar, a fim de que a presença de um governo
socialista no Hemisfério não se tornasse ‗permanente ameaça às instituições e governos de
outros Estados‖‘.312
Em outras palavras, a neutralização de Cuba requeria que ela assumisse,
conforme a definição de San Tiago Dantas, as seguintes ―obrigações
negativas‖: 1) compromisso de não contrair alianças militares com quaisquer
potências ou grupo de potências; 2) limitação de armamentos, mediante o
estabelecimento de certas garantias, como o compromisso de não
intervenção pelos Estados Unidos; 3) abstenção de propaganda política e

311
Ver MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
312
Ibidem, p. 387.
109

ideológica e de qualquer atividade no exterior que pudesse ser considerada


subversiva ou contrária às instituições e governos dos outros Estados.313

O posicionamento brasileiro contrário a qualquer forma de intervenção foi apresentado


com fundamentação jurídica. De acordo com San Tiago Dantas, enquanto a democracia
representativa, com eleições livres e periódicas, seria uma aspiração para os países, os
princípios de não intervenção e autodeterminação constituíam compromissos, inclusive
pertencentes ao direito público internacional.314
Contudo, a fundamentação jurídica apresentada pelo Brasil não foi admitida pelas
autoridades do Departamento de Estado dos Estados Unidos, para quem o comunismo de
Cuba constituía uma ideologia ―expansionista e subversiva‖, incompatível com um estatuto
jurídico. Sob este argumento, os Estados Unidos se opunham a qualquer solução de
coexistência com um regime comunista no continente.315 Além de não aceitar a proposta, o
Secretário de Estado americano, Dean Rusk, chegou mesmo a insinuar que ―a vitória dos
Estados Unidos na VIII Reunião de Consulta era condição sine qua non da Aliança para o
Progresso‖.316
Ameaças e promessas não faltaram e, como instrumento de pressão sobre os
chamados ―países relutantes‖ da América Latina, Rusk informou que
Kennedy estava a pedir maior apoio do Congresso para a OEA, o que incluía
mais recursos da Aliança para o Progresso, acordo para redução de tarifas e
exportação de commodities, mercado comum etc.317

Apesar de toda essa pressão prévia, ao discursar perante a Comissão Plenária da


Reunião, Dean Rusk abriu mão de defender sanções contra Cuba ou o rompimento de relações
diplomáticas; no entanto, sugeriu a interrupção do comércio com Cuba (principalmente de
armamentos), bem como sua exclusão da OEA e da Junta Interamericana de Defesa.318 O
texto por ele submetido ao plenário era formado por quatro itens, a saber:
1) declaração de incompatibilidade do marxismo-leninismo com os
princípios do sistema interamericano; 2) declaração da incompatibilidade do
governo revolucionário cubano, por ser marxista-leninista, com esse sistema;
3) proclamação de que tal incompatibilidade excluía o governo cubano do
referido sistema; 4) recomendação ao conselho da OEA e aos seus órgãos e
agências das providências necessárias ao cumprimento da Resolução.319

313
Idem.
314
Ibidem, p. 382.
315
Ibidem, p. 385.
316
Ibidem, p. 388.
317
Idem.
318
Ibidem, p. 390.
319
Ibidem, p. 392.
110

Deste texto, o Brasil aprovou os dois primeiros itens, mas, assim como México,
Argentina, Chile, Equador e Bolívia, se absteve nos dois últimos, alegando que, nos acordos e
estatutos jurídicos da Organização, ―não continha qualquer disposição que autorizasse aquela
medida. Além do mais, julgava que o isolamento conduziria Cuba a maior integração no
Bloco Soviético‖.320
Não obstante a abstenção desse grupo de países importantes do continente, os Estados
Unidos, que precisavam apenas de dois terços dos votos, obtiveram a aprovação de sua
proposta por 14 votos, havendo 6 abstenções (Brasil, México, Argentina, Chile, Bolívia e
Equador) e o voto contrário de Cuba. Dessa maneira, Cuba foi expulsa da Junta
Interamericana de Defesa e teve seu governo revolucionário expulso da Organização dos
Estados Americanos.321
Contudo, a Reunião que resultou numa vitória dos interesses estadunidenses −
aprovando da expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e
condenando a adoção cubana ao marxismo-leninismo − gerou também um certo ―mal-estar‖
nas relações entre Brasil e Estados Unidos.
A indisposição diplomática deveu-se a resposta do Secretário de Estado norte-
americano, Dean Rusk à argumentação do então Ministro das Relações Exteriores brasileiro,
San Tiago Dantas. Diante da defesa do ministro brasileiro de uma ―neutralização‖ de Cuba, e
não de sua expulsão da OEA, Rusk teria declarado que
não entendia o significado da não-intervenção. Argumentou que uma
potência, como os Estados Unidos, sempre intervinha nos negócios internos
de outras nações, mesmo quando deixava de fazê-lo. E citou que o
Departamento de Estado recebeu solicitações para intervir no Brasil, quando
ocorreu a renúncia de Quadros, e decidiu não atendê-las, o que, segundo ele,
foi também uma forma de intervenção.322

Tal atitude do secretário americano levou o Itamaraty a pedir explicações ao


embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, que se desculpou pelo ―mal-
entendido‖. Ainda assim, a imprensa brasileira criticou o tom de ameaça expresso por Dean
Rusk,323 e, no geral, apoiou a postura do governo brasileiro na ocasião – diferentemente do

320
Ibidem, p. 391.
321
Como destaca Moniz Bandeira, que a Resolução aprovada ―determinava a exclusão do governo
revolucionário cubano da OEA, não de Cuba, sutileza capciosa para justificar a aplicação da medida‖. Ibidem, p.
393.
322
MONIZ BANDEIRA, L. A. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), p. 420. O
autor aponta como fontes dessas informações os depoimentos de Renato Archer, chanceler interino naquela
ocasião, e de delegados brasileiros presentes na Conferência de Punta del Este.
323
Idem, pp. 421-422.
111

que ocorreu no próprio Congresso brasileiro, onde houve duras críticas dos opositores do
governo.324
O presidente João Goulart defenderá publicamente o posicionamento brasileiro em
Punta del Este em sua visita aos Estados Unidos, no início de abril de 1962. Em discurso
perante o Conselho da Organização dos Estados Americanos, Goulart defende o princípio de
não intervenção, afirmando que seria justamente este o princípio que possibilitaria a
associação dos países numa organização como a OEA.
Só o respeito de todos à soberania de cada um pode associar dignamente
Estados livres e independentes. /.../A criação da Organização dos Estados
Americanos representa, portanto, o reconhecimento formal, por todos os
Governos que a integram, de que a cooperação entre Estados soberanos, por
mais íntima que seja, não dá direito a nenhum deles, nem mesmo à
Organização que compõem, de atuar em terreno reservado exclusivamente à
soberania interna das nações.325

Jango ressalta ainda a dificuldade do momento vivido, devido à polarização de


posições e ressalta a importância da preservação da norma jurídica – ratificando, portanto, os
argumentos apresentados por San Tiago Dantas na Reunião de Consulta:
Não há como disfarçar que esta Organização atravessa um período difícil de
sua história. Num mundo em que forças poderosas tendem à polarização e à
tomada de posições extremas, mais árdua se torna a tarefa daqueles que têm
o dever de não sacrificar o direito ao expediente político e de sobrepor a
interesses de momento o primado permanente da norma jurídica.
/.../
Não há de ser neste momento, quando as possibilidades de maior cooperação
no campo econômico e social se alargam em novas perspectivas para os
povos deste Hemisfério, que iremos permitir a abertura de uma fenda na
solidez das bases jurídicas em que assenta a Organização dos Estados
Americanos. Cumpre, portanto, agora mais do que nunca, à Organização e a
cada um de seus membros, o dever de manter com firmeza tudo o que já foi
obtido no terreno político e jurídico, como ponto de partida para as
conquistas a serem ainda feitas no campo econômico e social.326

E ainda nessa mesma viagem, João Goulart defenderá, diante do Congresso


americano, a coexistência com os países socialistas, afirmando que:
a convivência entre o mundo democrático e o mundo socialista poderá ser
benéfica ao conhecimento e à integração das experiências comuns e temos a
esperança de que esses contatos evidenciem que a democracia representativa

324
Ver DANTAS, S. T. Op. cit. pp. 132-170. Em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, em 7 de
fevereiro de 1962, o ministro San Tiago Dantas teve que responder à oposição de deputados como Abel Rafael,
Arruda Câmara, Padre Vidigal, Hebert Levy e Tenório Cavalcanti.
325
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 47-48. Discurso proferido em
Washington, no dia 3 de abril de 1962, perante o Conselho da Organização dos Estados Americanos.
326
Ibidem, pp. 48-49.
112

é a mais perfeita das formas de governo e a mais compatível à proteção do


homem e à manutenção da sua liberdade.327

Os mesmos temas voltarão a ser abordados num momento de ainda maior tensão –
durante o episódio da ―crise dos mísseis‖.

A Crise dos Mísseis

Em meados de outubro de 1962, o governo dos Estados Unidos, através de um vôo de


reconhecimento realizado pela sua Força Aérea, obtém a informação da existência de três
bases para mísseis balísticos de médio alcance, considerados ofensivos, em construção no
território cubano. O presidente John Kennedy, que já ordenara o desenvolvimento de um
plano para uma possível invasão a Cuba – a Operation Mongoose328 – e advertira que ―não
toleraria a instalação de armamentos ofensivos em Cuba‖, via-se, agora, impelido a agir.329
No entanto, a confirmação da existência de mísseis de quantidade exata desconhecida
e a possibilidade de conflito direto com os soviéticos estabelecidos na ilha, tornavam
necessária uma avaliação bastante cuidadosa das providências a serem adotadas pelos Estados
Unidos. Um ataque armado poderia resultar em custos políticos e militares incalculáveis
naquele momento de acirramento da Guerra Fria.
Kennedy e seus assessores não podiam ignorar o problema em todas as suas
dimensões éticas e os custos políticos, mas foram, sobretudo, as
considerações militares que afastaram a hipótese do ataque total e
permitiram a formação de um consenso em torno de uma ―resposta
graduada‖, ou seja, decretação do bloqueio naval, juntamente com o qual os
Estados Unidos intimariam a União Soviética para que desmantelasse e
retirasse os armamentos de Cuba antes de qualquer ataque armado contra as
instalações militares naquela ilha, como prelúdio da invasão.330

Contudo, para que a decretação do bloqueio naval a Cuba estivesse dentro dos
parâmetros legais do direito internacional, os Estados Unidos tinham duas opções: a
declaração de guerra ou a aprovação do bloqueio pela Organização dos Estados Americanos.

327
Ibidem, p. 55. Discurso proferido em 4 de abril de 1962, ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos
da América, em Washington.
328
De acordo com Moniz Bandeira, esta operação previa em seu cronograma a invasão de Cuba ainda para o mês
de outubro, tendo as Forças Armadas norte-americanas recebido, no dia 2 deste mês, ordens para iniciar os
preparativos da ação. No entanto, o autor aponta que Robert McNamara, Secretário de Defesa de Kennedy,
informava aos seus chefes de Estado-Maior que o presidente ―não queria a ação armada dentro dos próximos três
meses, se bem que não estivesse seguro de como poderia controlar os acontecimentos‖. Ver MONIZ
BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, pp. 464-466.
329
Idem.
330
Ibidem, p. 475.
113

Sendo assim, o governo norte-americano optou por convocar o órgão de consulta da OEA,
com objetivo de sancionar tanto o bloqueio naval, quanto um possível uso da força.331
No dia 21 de outubro, o secretário do Departamento de Estado, Dean Rusk, comunica
aos embaixadores latino-americanos a decisão dos Estados Unidos de convocar o órgão de
consulta da OEA. Buscando a aprovação por unanimidade, Rusk chega a solicitar ao
embaixador brasileiro, Roberto Campos, que ―interviesse diretamente junto ao presidente
Goulart para recomendar-lhe que o Brasil desse o consentimento necessário para um voto
unânime na OEA‖.332 Segundo Campos, a informação foi por ele transmitida ao presidente
Goulart, enfatizando que Kennedy ―dissera tratar-se de uma ‗questão vital‘ para os Estados
Unidos e que, se as posições fossem reversas, os Estados Unidos jamais falhariam ao Brasil
numa questão plausivelmente definida como ‗vital‘‖.333
Além da intermediação do embaixador brasileiro em Washington, o presidente
estadunidense também enviou ao presidente João Goulart, assim como aos demais chefes
latino-americanos, uma carta, datada de 22 de outubro, solicitando apoio à convocação
urgente do Órgão Consultivo do Sistema Interamericano e à aprovação das medidas contra
Cuba.
Nesta carta, o presidente Kennedy revela o tom dramático da situação e trata a questão
como um problema a ser enfrentado não apenas pelos Estados Unidos, mas por todo o
continente. Afirmando que estariam enfrentando, no Ocidente, ―a necessidade e a
oportunidade de determinar, /.../ quiçá todo o futuro do homem na Terra‖,334 Kennedy procura
destacar a gravidade da ameaça que o regime cubano teria permitido à União Soviética
instalar no hemisfério ocidental. Para o presidente norte-americano, tal ameaça configurava
claramente um ―desafio audaz e belicoso‖ lançado pelos soviéticos ―a todos os povos
livres‖.335 E convoca:
Temos de responder a esse gesto temerário com uma decisão conjunta. Do
contrário, a União Soviética passará a violações cada vez mais flagrantes dos
requisitos para a paz e liberdade internacionais, até que não nos restarão
outras opções senão a capitulação completa ou a deflagração de um
holocausto nuclear.
/.../ Questões acerca das quais nós, deste hemisfério, talvez tenhamos
pequenas discordâncias, bem como divergências políticas entre nossos
povos, tornam-se insignificantes diante dessa ameaça à paz.
331
Ibidem, p. 476.
332
CAMPOS, R. Op. cit., p. 494.
333
Ibidem, p. 495.
334
KENNEDY, John. F. Carta dirigida ao Presidente João Goulart em 22 de outubro de 1962. In: MARCELINO,
Wanielle Brito (org.). Discursos selecionados do presidente João Goulart. Brasília: FUNAG, 2009, p. 93.
335
Idem.
114

Espero, diante desse contexto, que o Senhor sinta que seu país deseja juntar-
se ao meu para expressar sua indignação contra este comportamento, cubano
e soviético, e conto com que o Senhor deseje expressar publicamente o
sentimento de seu povo.
Espero também que o Senhor concorde comigo quanto à necessidade urgente
de se convocar uma reunião imediata do Órgão Consultivo do Sistema
Interamericano, sob o Pacto do Rio.
/.../
Desejo também formular um convite ao Senhor no sentido de que seus
assessores militares discutam com os meus a possibilidade de participar, em
condições apropriadas e juntamente com os Estados Unidos e outras forças
do hemisfério, de qualquer ação militar que a situação que se desenvolve em
Cuba possa requerer.336

Goulart autoriza Roberto Campos a prometer o voto do Brasil, 337 e instrui o


embaixador do Brasil na OEA, Ilmar Penna Marinho, no sentido de aprovar o bloqueio,
―admitindo a inspeção de navios apenas para verificar o transporte de armamentos com poder
ofensivo‖. Mas assinalou que qualquer outra ação de caráter militar fosse subordinada à
investigação preliminar de uma comissão da ONU, ―de modo que as provas apresentadas não
pudessem sofrer qualquer contestação. Qualquer outra resolução, fora daquelas linhas básicas,
deveria ser-lhe previamente submetida‖.338 A cautela de Goulart acerca de medidas que
extrapolassem o bloqueio naval não era sem motivo. Afinal, na carta a ele dirigida, o
presidente dos Estados Unidos convidava o Brasil para participar de possíveis ações militares.
E, de fato, reunido o Órgão de Consulta, logo no dia 23, os Estados Unidos
apresentaram um Anteprojeto de Resolução em cujo texto, no primeiro parágrafo, pedia ―o
desmantelamento e a retirada imediata de Cuba de todos os mísseis e de qualquer outra arma
com capacidade ofensiva‖ e, no segundo,
recomendava que os Estados-membros da OEA /.../ adotassem,
―individualmente e coletivamente, inclusive o emprego da força armada‖
que pudessem julgar necessária para que Cuba não continuasse a receber das
―potências sino-soviéticas material militar e os abastecimentos
correspondentes‖.339

Na prática, a aprovação do texto concederia carta branca para a realização de qualquer


intervenção militar em Cuba – o que contrariava a orientação passada pelo presidente Goulart
ao representante brasileiro. Destarte, assim como ocorrera na Reunião de Consulta de janeiro,
o Brasil votou favoravelmente a primeira parte do texto – referente ao bloqueio naval – mas

336
Ibidem, pp. 93-94.
337
CAMPOS, R. Op. cit., p. 496.
338
MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, p. 490.
339
Ibidem, pp. 490-491.
115

absteve-se quanto à segunda – referente ao emprego da força armada. México e Bolívia


acompanharam o posicionamento brasileiro.
O embaixador Penna Marinho explicou que o Brasil subordinava qualquer
outra medida a ―prévia comprovação, por observadores da ONU, do arsenal
soviético na ilha‖, mas aprovou o conjunto da Resolução, endossada
unanimemente pelo Órgão de Consulta. Com esta decisão, alcançada às
15:00 de 23 de outubro, Kennedy assinou, quatro horas depois, a
―proclamation of interdiction‖, que cerceava a liberdade dos mares e violava
vários artigos da Carta da ONU.340

A vitória dos Estados Unidos com a aprovação da resolução não engendrou,


entretanto, uma invasão norte-americana a Cuba. Isso porque, logo nos dias que se seguiram à
assinatura da ―proclamation of interdiction‖, Kennedy e Kruschev encetaram negociações
que culminaram com a retirada dos mísseis soviéticos do território cubano e a revogação das
medidas da quarentena. Dessa forma, antes mesmo do fim do mês de outubro, foi resolvida a
chamada ―crise dos mísseis‖, afastando a possibilidade de eclosão de um conflito nuclear,
que, naquele momento, se mostrou mais próxima do que em qualquer outro ao longo da
Guerra Fria.
O fim da crise, contudo, não encerrou o debate entre os presidentes Kennedy e Goulart
quanto à posição a ser tomada pelos países americanos no que se referia a Cuba comunista. A
carta enviada pelo presidente dos Estados Unidos a Goulart, no dia 22 de outubro, deu origem
a uma sequência de cartas, nas quais cada um dos presidentes procurava argumentar suas
posições divergentes.
Em resposta à convocação de Kennedy para uma ―decisão conjunta‖ dos Estados
Americanos em responder, inclusive com o uso da força, à ameaça que, segundo ele, Cuba
representava para o Ocidente, o presidente João Goulart lhe remeteu uma carta em que faz,
―com franqueza e sinceridade‖, algumas importantes considerações, ―tanto sobre a posição
brasileira em face do caso de Cuba‖, como sobre os rumos que vinham prevalecendo nas
decisões da Organização dos Estados Americanos.341
Relembrando o discurso que realizara perante o Congresso norte-americano em abril
daquele ano, o presidente Jango reafirma o posicionamento pacifista do Brasil e sua defesa da
coexistência entre ―o mundo democrático e o mundo socialista‖.
O Brasil entende que a convivência entre o mundo democrático e o mundo
socialista poderá ser benéfica ao conhecimento e à integração das
experiências comuns, e temos a esperança de que esses contatos evidenciem

340
Ibidem, p. 491.
341
GOULART, João. Carta dirigida ao Presidente John F. Kennedy, em outubro de 1962. In: MARCELINO, W.
B. Op. cit., p. 95.
116

que a democracia representativa é a mais perfeita das formas de governo e a


mais compatível com a proteção ao homem e à preservação de sua
liberdade.342

De fato, Goulart já defendera a convivência com Cuba, tanto em sua viagem aos
Estados Unidos, como em entrevista concedida na visita ao México, em que afirmou que a
manutenção das relações com Cuba poderia contribuir para que aquela nação voltasse ao
―sistema democrático‖.343
E, procurando justificar, em sua carta, o posicionamento brasileiro, tanto na VIII
Consulta de Chanceleres Americanos como na última reunião do Órgão de Consulta da OEA,
João Goulart aponta que a defesa do princípio de autodeterminação se tornara ―o ponto crucial
da política externa do Brasil‖, por considerá-lo ―o requisito indispensável à preservação da
independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo‖.
É, pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo
brasileiro qualquer forma de intervenção num Estado americano, inspirada
na alegação de incompatibilidade com o seu regime político, para lhe impor
a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhe
tiram o cunho democrático e a validade.344

Em seguida, Jango passa a explicitar suas contrariedades com a resolução aprovada


pela OEA e uma possível ação militar contra Cuba.
Ainda agora, entretanto, Senhor Presidente, não escondo a Vossa Excelência
a minha apreensão e a insatisfação do povo brasileiro pelo modo por que
foi pleiteada e alcançada a decisão do Conselho da OEA, sem que tivesse
preliminarmente realizado, ou pelo menos deliberado, uma investigação in
loco, e sem que se tivesse tentado através de uma negociação, como a que
propusemos em fevereiro do corrente ano, o desarmamento de Cuba com a
garantia recíproca de não invasão.
Receio que nos tenhamos abeirado sem, antes, esgotar todos os recursos para
evitá-lo, de um risco que o povo brasileiro teme tanto como o norte-
americano: o da guerra nuclear. E é na atuação de Vossa Excelência, no seu
espírito declaradamente pacifista, que depositamos a esperança de que não
sejam usadas contra Cuba medidas militares capazes de agravar o risco já
desmedido da presente situação.345

O trecho de crítica mais contundente, presente na carta de Goulart a Kennedy, referia-


se à atuação da OEA naqueles episódios – e que, na verdade, representava a atuação dos
próprios Estados Unidos. Para Goulart, aquela organização vinha se afastando de suas regras
estatutárias, tendendo a se transformar ―num bloco ideológico‖ que, ao mesmo tempo em que
342
Ibidem, p. 96. Este trecho corresponde à citação do discurso realizado pelo presidente João Goulart em
Washington, ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos da América, em 4 de abril de 1962.
343
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Op. cit., p. 168.
344
GOULART, J. Carta do Presidente João Goulart dirigida ao Presidente John F. Kennedy, em outubro de
1962. In: MARCELINO, W. B. Op. Cit., p. 96.
345
Ibidem, pp. 96-97. Grifos nossos.
117

se mostrava intransigente com o regime cubano, concedia ―tratamento mais benigno‖ a


ditaduras reacionárias:
Não quero encerrar, porém, esta carta, Senhor Presidente, sem acrescentar às
considerações nela feitas a expressão de meus receios sobre o futuro
imediato da OEA. Nos últimos tempos, observo que as suas decisões vêm
perdendo autoridade à medida que se afastam da correta aplicação das suas
próprias normas estatutárias, e que são tomadas por maioria numérica com
injustificável precipitação. A isso cabe acrescentar a tendência para
transformar a Organização num bloco ideológico intransigente, em que,
entretanto, encontram o tratamento mais benigno os regimes de exceção de
caráter reacionário.346

Segundo o próprio Goulart, sua preocupação encontrava fundamento no fato de que,


no Brasil e possivelmente em outros países latino-americanos, ―pressões reacionárias‖,
disfarçadas de anticomunismo, mostravam-se ainda perigosas à evolução do processo
democrático. Dessa forma, Goulart não esconde que sua postura diante do caso cubano está
vinculada a suas preocupações com o futuro brasileiro.
Estou certo de que Vossa Excelência compreenderá as razões de minha
apreensão. O Brasil é um país democrático, em que o povo e governo
condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir
ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram, sob o disfarce do
anticomunismo, defender posições sociais e privilégios econômicos,
contrariando, desse modo, o próprio processo democrático de nossa
evolução. Acredito que o mesmo se passa em outros países latino-
americanos. E nada seria mais perigoso ver-se a OEA ser transformada em
sua índole e no papel que até aqui desempenhou, para passar a servir a fins
ao mesmo tempo anticomunistas e antidemocráticos, divorciando-se da
opinião pública latino-americana.347

Em resposta à carta de Goulart, Kennedy envia, por meio da embaixada dos Estados
Unidos no Rio de Janeiro, um telegrama – com solicitação de não publicá-lo – em que rebate
os argumentos do presidente brasileiro de defesa dos princípios de não intervenção e de
autodeterminação dos povos, afirmando que a franqueza expressa por Goulart o levara a
respondê-lo com igual sinceridade.348
Kennedy defendeu a atuação da OEA, reafirmando que a presença dos mísseis no
território cubano constituíra uma intervenção soviética no hemisfério ocidental, o que
justificaria a urgente aprovação daquela resolução. Quanto à exclusão de Cuba da OEA, o

346
Ibidem, p. 97.
347
Ibidem, pp. 97-98. Grifos nossos.
348
Telegrama do presidente John F. Kennedy ao presidente João Goulart, datado de 02 de novembro de 1962. In:
JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil:
Security, 1962; Digital Identifier: JFKPOF-112-014, pp. 37-42. Disponível em:
<http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-014.aspx> Último acesso em: 28 de maio de
2012.
118

presidente norte-americano afirma que a incompatibilidade do regime de Castro com o


sistema interamericano devia-se ao fato de que, segundo ele, Cuba estaria engajada no
intervencionismo soviético, colocando-se como instrumento de intervenção de poderes
extracontinentais.349
Quanto à defesa do princípio de autodeterminação dos povos, Kennedy afirma que o
mesmo não estaria sendo respeitado por Fidel Castro nem pela União Soviética em suas
relações com Cuba. E que, quando o povo cubano pudesse se expressar quanto aos seus
líderes e políticas, o país voltaria à ―família das nações americanas‖.
With due regard to non-intervention, the Inter-American system seeks to
encourage a wider understanding and practice of the principle of self-
determination. I agree with you on the relevance of this principle to Cuba
because of both its non-observance by the Castro regime and the failure of
the Soviet Union to respect it in its relations with Cuba. We all look forward
to the time when the Cuban people are permitted to express their opinion as
to the leaders they wish to have and the policies they want followed. I am
confident that when this happens, conditions in Cuba will change and we
shall be in position to welcome her back to the American family of
nations.350

Como último ponto de sua carta, Kennedy nega a possibilidade de coexistência com o
socialismo de Cuba, pois afirma que o problema do regime cubano não seria sua organização
econômica, mas sim seu sistema político intervencionista. E quanto à postura reacionária
disfarçada de anticomunismo, citada por Goulart, o presidente americano responde que o fato
de os que se oponham às reformas sociais também se oponham à ―ameaça comunista‖ não
tornaria a oposição ao comunismo menos justa. Assim sendo, Kennedy sinaliza claramente
que a luta contra o comunismo preponderava sobre a luta pelas reformas sociais, ainda que
estas fossem as reformas compreendidas pelo programa da Aliança para o Progresso:
The Organization of the Cuban economy is not the issue which has caused
the rejection of Cuba by the Inter-American community. And we should not
confuse economic arrangements with a political system which practices
intervention, which submits itself to the policies and will of a foreign power
and which rejects and destroys self-determination. That those opposed to
those essential reforms to which we had pledged ourselves in the Alliance
for Progress should also oppose the communist threat to our own right of

349
Idem. ―The political system imposed on the Cuban people by the Castro regime is a matter of common
concern to the other American Republics only because Cuba, under a system which continuously engages in
interventionist activities against other countries, has placed itself militarily at the disposition of extra-continental
powers, made itself an instrument of extra-continental intervention, and has manifestly failed to abide by the
principles and obligations of our community of nations. It was on this basis that all of the American
Governments agreed at Punta del Este that the Castro regime is incompatible with the inter-American system.
/…/ What should be done about this incompatibility when it manifests itself in interventionist activities in other
American countries is a matter for the American community to decide‖.
350
Idem.
119

self-determination dos not make our own opposition to world communism


less just or vital.351

A resposta de Kennedy à problemática levantada por Goulart, revela a diferença entre


as posturas de Brasil e Estados Unidos nos anos da Guerra Fria: ―Se para os EUA era uma
questão de defesa do hemisfério, para o Brasil uma invasão soviética era impensável.
Estávamos buscando, isto sim e principalmente, acelerar o processo de industrialização e
expansão econômica‖.352
Dessa forma, todas as colocações apresentadas pelo presidente Jango contrárias às
medidas de intervenção em Cuba foram rebatidas por Kennedy com o mesmo argumento – o
de que o governo cubano representaria o intervencionismo soviético no continente,
ameaçando a autodeterminação de todos os países americanos.
Recebida a resposta de Kennedy, João Goulart remete ainda outra carta ao presidente
dos Estados Unidos, datada de 7 de dezembro de 1962. Nela, Goulart não rebate os
argumentos de Kennedy contrários ao seu posicionamento nas questões de Cuba; mas
reafirma sua apreensão quanto aos rumos da OEA e o posicionamento do Brasil na última
reunião de consulta daquela organização:
Devo registrar com pesar que, em uma das últimas reuniões do Conselho, se
tomaram deliberações a respeito das atividades da Comissão Consultiva
Especial de Segurança, criada pela Resolução nº 2 da VIII Reunião de
Consulta que, a nosso ver, exorbitam dos termos precisos da referida
resolução e criam precedente perigoso capaz de dificultar a boa marcha dos
trabalhos de que está encarregada a Comissão criada em Punta del Este. Por
esse motivo, não pudemos emprestar o apoio de nosso voto à citada
Resolução.353

Além disso, o presidente Jango expressa a preocupação brasileira com a possibilidade


de conflitos militares, manifestando o apoio do país ao projeto de criação e uma área
desnuclearizada, abrangendo toda a América Latina, debatido, à época, na Assembleia Geral
das Nações Unidas, e demonstra certo esforço em tornar clara sua posição de reformista.
Após alertar para o fato de que a opinião pública do Brasil e dos Estados Unidos
estariam expostas a noticiários que nem sempre refletiam as verdadeiras posições dos
respectivos governos, tendendo a ―apresentar um quadro pouco exato das realidades
nacionais‖,354 João Goulart manifesta sua aspiração de que os problemas militares pudessem

351
Idem.
352
TOTA, Antonio Pedro. Cultura e dominação: relações culturais entre o Brasil e os Estados Unidos durante a
Guerra Fria. In: Perspectivas, n. 27, São Paulo, 2005, p. 115.
353
Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy datada de 7 de dezembro de 1962, Arquivo
Marcílio Marques Moreira, CPDOC-FGV, Pasta. MMM ew 1986/1991.00.00/2. Doc. 11.
354
Idem.
120

ser brevemente resolvidos para que pudessem, então, se dedicar à resolução dos ―problemas
da paz, do bem-estar e do progresso social‖ das populações. E afirma:
Estou convencido de que quando tivermos libertado o nosso Hemisfério da
pobreza, da ignorância e da doença, o movimento internacional comunista há
de definhar por falta de terreno fértil onde mergulhar suas raízes.355

A partir daí, Goulart passa a destacar a pouca influência das ―atividades subversivas‖
no Brasil, bem como o posicionamento do governo brasileiro em defesa dos princípios da
democracia representativa. Procurou deixar claro que seu governo, juntamente com os que o
antecederam, ―lograram limitar a um mínimo, quase negligenciável, o tipo de atividades
subversivas a que se consagram os agentes de ideologias exóticas e de âmbito internacional‖.
E continua:
Ainda recentemente, quando demos o nosso apoio decidido às medidas de
bloqueio sugeridas pelo governo de Vossa Excelência como meio de
prevenir novos ingressos de armamentos ofensivos em Cuba, nem uma só
voz se levantou em todo o território nacional para criticar nossa atitude, nem
foi preciso recorrer a medidas repressivas de qualquer natureza para impor
nossa decisão.
Nas recentes eleições levadas a efeito no Brasil, em clima de absoluto
respeito às liberdades públicas e na mais perfeita observância dos processos
que caracterizam a democracia representativa, foi diminuto o número de
candidatos eleitos que se filiam, de uma forma ou de outra, a ideologias
totalitárias.
/.../
Desejo terminar esta carta reafirmando-lhe, Senhor Presidente, a decisão de
meu Governo de contribuir, dentro dos limites traçados pelos Acordos
Internacionais de que somos parte, e da observância dos princípios que
fundamentam o sistema interamericano, para que o exercício do direito de
autodeterminação se aperfeiçoe e se estenda a todos os povos do Continente,
traduzindo-se pela forma que consideramos mais legítima, que é a da
consulta popular por meio de eleições, livres da coação interna e de pressões
externas, a fim de que a democracia representativa possa ser o caminho e
também a força que há de levar os nossos povos a um futuro de paz e de
progresso social.356

A postura de Goulart em procurar esclarecer a inexistência de vínculos entre seu


governo e grupos ―subversivos‖ ou filiados a ―ideologias totalitárias‖, não era sem razão. A
preocupação dos Estados Unidos com uma possível infiltração comunista no governo de João
Goulart será manifesta em diferentes ocasiões: em conversas do presidente Kennedy e de seu
irmão, Robert Kennedy, com o próprio Jango – na visita de Goulart a Washington em abril de
1962, na visita de Robert Kennedy ao Brasil, em dezembro do mesmo ano, e no encontro
entre os dois presidentes em Roma, em junho de 1963 – que, em todas as oportunidades,

355
Idem.
356
Idem.
121

negou qualquer influência comunista; e em documentos produzidos pelo governo americano


sobre o governo brasileiro. E, não bastando essas conversas privadas e documentos de acesso
restrito ao governo norte-americano, o presidente John Kennedy chegou a manifestar-se
publicamente, em entrevista à imprensa de seu país dizendo que
os Estados Unidos não deviam considerar a ameaça comunista baseada
principalmente em Cuba, pois um ―comunismo local‖, não relacionado com
aquela ilha, existia e aproveitava-se das dificuldades do povo, como no
Nordeste brasileiro. Acrescentou que, mesmo se os Estados Unidos
conseguissem acabar com a infiltração, através de Cuba, ainda teriam de
defrontar-se (deal with) com os movimentos comunistas locais.357

As desconfianças do governo estadunidense sobre o governo Jango também serão


comunicadas ao governo brasileiro, através de telegrama enviado por George Álvares Maciel,
Ministro-Conselheiro junto à Embaixada do Brasil em Washington. Nesse documento, Maciel
traça um quadro das relações Brasil-Estados Unidos, segundo suas apurações, afirmando ser
ainda ―predominante o problema político, diante do qual tem muito menor importância
relativa às questões financeiras e técnicas‖. O problema político, segundo o governo norte-
americano, decorreria das seguintes circunstâncias:
a) o atual Governo brasileiro não apresenta unidade suficiente; b) há
diversos comunistas (SIC) em postos chave, inclusive nas Forças Armadas;
c) ainda não há certeza cabal de que o governo brasileiro, assim
qualificado, deseje realmente administrar o país segundo as diretrizes
declaradas; d) ainda não há certeza cabal de que está realmente disposto a
colaborar plenamente com os EUA na Aliança para o Progresso; e) ainda
não há certeza cabal de que o Governo brasileiro não venha a orientar-se
definitivamente para a esquerda, com especial referência à política
internacional.358

O documento afirma ainda que a imagem do governo Goulart era considerada ―pelo
menos imprecisa‖.359 Sendo assim, as discussões relativas à postura brasileira diante do
regime cubano foram encerradas após os episódios e correspondências aqui assinalados; mas
as relações entre Brasil e Estados Unidos durante o governo João Goulart seguem em meio a
divergências e desconfianças que, como vimos, afetaram possíveis acordos e negociações
financeiras, aumentando as dificuldades enfrentadas pelo governo brasileiro.

357
MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, p. 534. O autor cita
documento da embaixada brasileira em Washington, datado de 15 de fevereiro de 1963.
358
Telegrama da Embaixada Brasileira em Washington à Secretaria de Estado das Relações Exteriores, datado
de 13/14 de fevereiro de 1963, Arquivo Marcílio Marques Moreira, CPDOC-FGV, Pasta. MMM ew
1986/1991.00.00/2. Doc. 18. Grifos nossos e observação ―(SIC)‖ do autor.
359
Idem.
122

João Goulart e a Aliança para o Progresso

Já apontamos as circunstâncias e o objetivo geral do lançamento do programa da


Aliança para o Progresso pelos Estados Unidos. Procuraremos, agora, destacar o
posicionamento do presidente João Goulart diante desse programa, ainda que suas
manifestações sobre o assunto não tenham sido abundantes, ocorrendo na grande maioria das
vezes em suas viagens internacionais.
Em sua visita aos Estados Unidos, o presidente Goulart tratou a Aliança para o
Progresso ―como uma grande contribuição‖ para que as nações da América Latina
alcançassem o seu ―pleno desenvolvimento‖.360 Segundo ele, o presidente John Kennedy teria
sentido ―agudamente os anseios‖ das populações dos países subdesenvolvidos ao estabelecer
esse ―plano financeiro‖, que, sendo executado, constituiria ―uma contribuição capaz de
promover a integração de grandes massas nos benefícios da civilização continental‖.361
E, em comunicado-conjunto, publicado ao fim da visita do presidente brasileiro,
Goulart e Kennedy afirmavam a concordância de que se fazia preciso ―uma rápida execução
das medidas necessárias para tornar efetiva a Aliança para o Progresso‖. Tais medidas eram:
Planejamento nacional para a concentração de recursos em objetivos
altamente prioritários de progresso econômico e social; reformas
institucionais, inclusive reformas da estrutura agrária, a reforma tributária e
outras mudanças exigidas para assegurar uma ampla distribuição dos frutos
do desenvolvimento por todos os setores da comunidade, e assistência
internacional financeira e técnica para acelerar a realização de programas
nacionais de desenvolvimento.362

Vemos, portanto, que o programa da Aliança para o Progresso, enquanto projeto de


auxílio técnico e financeiro para estimular o desenvolvimento dos países latino-americanos,
encontrou, pelo menos de início, uma boa recepção no presidente João Goulart, convergindo,
inclusive com sua proposta reformista. Contudo, em seu discurso perante o Congresso dos
Estados Unidos, Jango não demonstrou apenas entusiasmo pelo programa de auxílio, mas
também preocupações com possíveis embaraços a sua efetiva execução.
Vemos na Aliança para o Progresso a formulação de um plano de
cooperação global que a América Latina espera desde o fim da Segunda
Guerra Mundial e que deverá ter para o nosso Hemisfério, uma vez
executado, as proporções e a significação do Plano Marshall para os países
da Europa Ocidental. A falta de uma iniciativa desse porte tornou
extremamente difícil aos países do Hemisfério a estabilização de suas
economias.

360
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 46. Discurso proferido em
Washington, no dia 3 de abril de 1962, em almoço oferecido na Casa Branca pelo Presidente Kennedy.
361
Ibidem, p. 59.
362
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Op. cit., p. 34.
123

Tem ainda a Aliança para o Progresso o mérito de conceituar o problema da


América Latina em seus aspectos econômicos, mas também, e
especialmente, nos seus aspectos sociais, o que lhe dá excepcional dimensão,
dela fazendo um programa de fortalecimento da democracia, como acentuou
o vosso eminente Chefe de Estado, nestas palavras altamente significativas:
―Aqueles que tornarem impossível a revolução pacífica farão inevitável a
revolução violenta‖.
Não escondo por eles os meus receios quanto às dificuldades de execução.
Se a Aliança para o Progresso depender do esforço dos países latinos para
alcançarem, com rigor técnico absoluto, um planejamento global no campo
econômico e no social, e para eliminarem previamente certos fatores de
instabilidade, podemos admitir embaraços capazes de prejudicar a urgência
de soluções inadiáveis. Tais dificuldades recrudescerão se a Aliança não
refletir, principalmente, o espírito de confiança e respeito recíproco entre os
governos dos países que a integram, na linha de fidelidade aos propósitos
manifestados pelo vosso eminente Presidente Kennedy.363

Desse modo, Goulart manifestava a esperança de que os resultados da Aliança


representassem para a América Latina o que significou o Plano Marshall para Europa no pós
Guerra – comparação que o próprio presidente Kennedy já fizera em seu discurso de
lançamento do programa364 – ao mesmo tempo em que cobrava a falta, até então, de uma
iniciativa como aquela, que possibilitasse a estabilização das economias latino-americanas. E,
embora exaltasse no programa a compreensão dos aspectos sociais, previa dificuldades de
execução, caso fosse cobrada dos países latinos a eliminação prévia dos fatores de
instabilidade como condição para o recebimento do auxílio.
De fato, os possíveis obstáculos apontados pelo presidente João Goulart à execução da
Aliança para o Progresso se concretizaram nas negociações do Brasil com os Estados Unidos
ao longo do ano de 1963, quando foi cobrada, em troca da liberação de verbas de auxílio, uma
pronta execução de medidas de controle inflacionário, ainda que tais medidas acarretassem
queda do crescimento econômico do país e perdas salariais para a população.
Diante desta situação, Jango chegou a afirmar, em entrevista coletiva concedida à
imprensa chilena por ocasião de sua visita, em abril de 1963, que a Aliança para o Progresso
deveria ser reformulada para que alcançasse seus objetivos, pois ―num exame sereno‖, até
então a Aliança não teria atendido ―às esperanças e expectativas‖ que em torno dela teriam se
formado.365

363
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 54. Discurso proferido em
Washington, no dia 4 de abril de 1962.
364
Ver: ―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar.
1961.
365
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai.
Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1963, p. 53.
124

A frustração de João Goulart com o programa não era sem razão. Além da não
liberação das verbas – justificada pela falta de medidas de estabilização monetária e pela não
conclusão da compra das empresas subsidiárias norte-americanas – a Embaixada Americana
passou a firmar acordos diretamente com governadores e prefeitos brasileiros (geralmente
opositores de Goulart), sem a intermediação do governo federal. Os norte-americanos
chamavam os governos estaduais e municípios que recebiam suas verbas de ―ilhas de
sanidade‖ (islands of administrative sanity).366 Segundo Roberto Campos, a preferência dos
Estados Unidos em conceder empréstimos diretos aos estados e municípios, em lugar da
União, devia-se aos ―receios de infiltração comunista no governo central‖ e ao
descumprimento dos programas de estabilização.367 Descrevendo seu posicionamento diante
de tal iniciativa do governo dos Estados Unidos, Campos afirma:
Protestei informalmente junto ao Departamento de Estado contra essa ―ação
centrífuga‖, que não me parecia politicamente imprópria, e mesmo perigosa.
Mas meus protestos não tinham intensidade passional. Afinal de contas era
melhor ter alguns projetos estaduais financiados do que privarmo-nos dos
fundos da Aliança para o Progresso...368

O financiamento das ―ilhas de sanidade‖ continuará a ocorrer após a morte de


Kennedy, durante o governo de Lyndon Johnson – cujo Secretário de Estado Assistente para
os Assuntos Interamericanos, Thomas Mann, chega a confessar que seu objetivo com tal ação
era o de ―financiar a democracia, não permitindo, porém, que qualquer recurso beneficiasse o
balanço de pagamentos do Brasil ou o orçamento federal‖.369
Um último momento de divergência explícita entre João Goulart e o governo
estadunidense ocorrerá ainda em novembro de 1963, na reunião do Conselho Interamericano
Econômico e Social (CIES), também chamado de ―Segunda Revisão Anual da Aliança para o
Progresso‖. Nesta ocasião, o Brasil se opôs à criação do Comitê Interamericano da Aliança
para o Progresso (CIAP). O novo órgão seria ―um comitê especial e permanente com o
propósito de representar multilateralmente a Aliança para o Progresso, coordená-la e
promover sua implementação‖; cujas funções práticas seriam as de ―estudar o progresso dos

366
Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 113.
367
CAMPOS, R. Op. cit., p. 481.
368
Ibidem, p. 508.
369
MONIZ BANDEIRA, L. A. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), p. 467. Carlos
Fico também aponta que a defesa das ―ilhas de sanidade‖, ―não como uma forma de minar o governo Goulart,
mas como a única maneira de os Estados Unidos persistirem ajudando o Brasil apesar da incapacidade do
governo federal de fazer a estabilização econômica e o saneamento financeiro desejados‖, aparece como uma
―desculpa bastante inconvincente à luz das evidências hoje disponíveis‖. Ver: FICO, Carlos. O grande irmão: da
Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, p. 79.
125

planos nacionais e regionais, apresentar estimativas anuais a respeito da somas e espécies de


recursos necessários a cada país e propor meios de consignar fundos‖.370
Aprovada, em plenário a criação do CIAP, o Brasil, então, apresentou um projeto de
resolução no qual solicitava ao órgão recém-criado a elaboração de um estudo sobre as
possibilidades de instituição de um Fundo Interamericano de Desenvolvimento para a
América Latina.371 Segundo o próprio Jango, em sua Mensagem ao Congresso Nacional, no
início do ano legislativo de 1964:
Ao Brasil deve-se, igualmente, a idéia da criação de um Fundo
Interamericano da Aliança para o Progresso. Não satisfeito com o mandato
atribuído ao novo órgão criado para promover a consecução dos objetivos da
Carta de Punta del Este − o Comitê Interamericano da Aliança para o
Progresso (CIAP) −, propôs a inclusão, entre as atribuições do CIAP, de uma
destinada a ―promover um crescente aperfeiçoamento do processo de
multilateralização da Aliança para o Progresso‖ e, com base nesse
dispositivo, logrou, com apoio unânime, fazer passar a Resolução 23-M/63,
que em sua parte resolutiva reza: ―que o Comitê Interamericano da Aliança
para o Progresso, dentro de seis meses de sua constituição, deverá apresentar
aos Governos dos Estados-membros um estudo sobre um fundo
interamericano de desenvolvimento da Aliança para o Progresso e, de acordo
com suas conclusões, elaborar um projeto para a criação do mesmo‖.
Considera o Governo brasileiro que esta foi realmente uma contribuição
positiva à concretização dos ideais proclamados em Punta del Este. Com
efeito, sem dispor de fundos regulares e permanentes de financiamento, e na
ausência de uma responsabilidade conjunta, multilateral, tanto no que diz
respeito à obtenção quanto à aplicação de recursos financeiros, o programa
da Aliança para o Progresso não compreenderá senão fontes rotineiras de
auxílio externo.372

Descontente com a criação de um órgão com o poder de avaliar os planos nacionais


dos países latino-americanos, Goulart teria evitado se pronunciar sobre a Aliança para o
Progresso, direcionando sua fala para a mobilização e criação de um bloco de países
subdesenvolvidos para participação na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development – UNCTAD), a ser
realizada em março de 1964 – um Comitê Latino-americano com o objetivo de avançar no
tratamento das questões comerciais do hemisfério.373
As reações dos delegados contrários ao posicionamento do presidente
brasileiro foram fortes. Para Gordon, o discurso foi uma proposta de
liderança do Brasil, na América Latina, contra os EUA. Roberto Campos
370
RIBEIRO, Ricardo Alaggio. A Aliança para o Progresso e as relações Brasil-Estados Unidos. Tese
(Doutorado em Ciência Política). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, 2006, p. 214.
371
Ibidem, pp. 213-214.
372
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1964, p. 226.
373
RIBEIRO, R. A. Op. cit., p. 213.
126

analisa que este foi o momento culminante dos desentendimentos, quando o


Brasil ―assumiu atitude totalmente negativa em relação à aliança para o
Progresso com tal falta de objetividade e fúria passional que conseguiu
alienar a um tempo os EUA e os demais países da América Latina, isolando-
se numa postura incompetente e ressentida‖. Harriman seguiu a linha de
Gordon, caracterizando o discurso como ―essencialmente, uma aposta na
liderança brasileira do continente, a qual iria, por implicação, excluir um
maior papel norte-americano‖.
O ponto preocupante era a oposição ativa brasileira à pauta da reunião,
que sinalizava quão longe tinha ido o desgaste das relações. Fica claro
que naquele momento o Brasil era a maior preocupação dos EUA no
hemisfério, ―maior mesmo do que Cuba‖ como tinha dito Kennedy a
Juscelino, dez meses antes. Deve-se pensar que os eventos de São Paulo
marcam o momento a partir do qual as trajetórias se descolam e a queda
de Goulart passa a ser admitida e mesmo desejada.374

Este episódio é marcante, tanto do distanciamento entre João Goulart e o governo dos
Estados Unidos, quanto da postura assumida pelo presidente brasileiro nas relações com os
demais países latino-americanos. A proposta de relações comerciais mais próximas dentro da
própria América Latina será defendida por Jango em diversas ocasiões e será o tema do
próximo item.

2.2. Relações entre Brasil e América Latina

Em suas manifestações sobre a relação do Brasil com os demais países da América


Latina, João Goulart, além das usuais declarações de amizade e das afirmações conjuntas em
defesa da democracia, abordará, de maneira recorrente, o tema do comércio exterior. Na
condição de primeiro presidente brasileiro a visitar o México e o Chile, Jango tornará
explicito seu estímulo à intensificação das relações comerciais entre as economias latino-
americanas, defendendo a efetivação de uma zona de livre comércio na região – naquele
momento, vislumbrada na Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC).375
Além disso, também estimulará a formação de um bloco de países latino-americanos para
articulação de medidas que alterassem a estrutura do comércio internacional, em benefício dos
países subdesenvolvidos.
João Goulart considerava o comércio internacional como um elemento gerador de
progresso econômico e social para os países subdesenvolvidos. Segundo ele, os países
subdesenvolvidos não poderiam permanecer na dependência do auxílio financeiro externo
como forma de obtenção de recursos para financiar seus processos de desenvolvimento

374
Idem.
375
A Associação tinha como países membros, originalmente, Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru,
Bolívia, sendo posteriormente inseridos Colômbia, Equador, México e Venezuela.
127

econômico – até porque, tal auxílio vinha se mostrando insuficiente. Para ele, embora
―comércio e assistência‖ não constituíssem ―proposições excludentes‖, ―a verdadeira
superação do subdesenvolvimento‖ não se poderia fazer ―por meio da assistência externa, e
sim pela expansão do comércio exterior‖.376 O aumento das exportações constituiria ―a
melhor e mais aconselhável forma de financiamento‖ do desenvolvimento.
E será nesse sentido que o presidente Goulart, defenderá a expansão do mercado
brasileiro no exterior, articulando, inclusive a concretização da ALALC − que embora criada
no ano de 1960, com objetivo de criar uma zona de livre-comércio em um prazo de 12 anos,
não apresentava atuação prática até aquele momento. Em Mensagem ao Congresso Nacional,
Goulart afirma:
Todo o esforço deve ser empregado a fim de se conseguir o aumento
contínuo das exportações, já que a receita cambial delas decorrente
representa a melhor e mais aconselhável forma de financiamento para
aquisição, no exterior, do instrumental necessário ao progresso do País. No
particular, registre-se a participação do Brasil na Associação Latino-
Americana de Livre Comércio como fato positivo, pelas possibilidades que
abriu ao desenvolvimento do intercâmbio comercial da América Latina e à
colocação, em mercados deste continente, dentro de um esquema de favores
tarifários recíprocos, de numerosos produtos exportáveis do País.377

Quando esteve no México, em 1962, o presidente Jango afirmou a zona livre de


comércio latino-americano como ―ponto de partida de uma política de integração econômica
continental‖.378 Já em visita ao Uruguai, no ano seguinte, João Goulart exalta a ALALC como
a ―mais legítima expressão‖ do ―espírito de renovação latino-americana‖379 e propõe a
utilização da Associação como um instrumento de coordenação de propósitos entre os países
latino-americanos, promovendo a integração econômica no plano regional além de, no plano
internacional mais amplo, evitar a concorrência entre países latino-americanos e constituir um
bloco em defesa dos interesses comuns da América Latina. Disse:
às vezes chegamos, por falta de diretrizes básicas de orientação em torno das
nossas economias e dos nossos interesses, ao cúmulo de nos atropelarmos
entre nós mesmos, no interesse dos nossos países, competindo deslealmente
entre os países latino-americanos no que se refere aos nossos interesses com

376
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 155.
377
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1962, p. 2.
378
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos e
México, p. 41. Discurso proferido na Cidade do México, no dia 9 de abril de 1962, em almoço oferecido pelo
Presidente Lopez Mateos.
379
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai, p.
165. Discurso proferido na Associação Latino-Americana de Livre Comércio, em Montevidéu, no dia 26 de
Abril de 1963.
128

o mercado internacional. Realmente, isso não pode continuar. Para uma


coordenação de esforços destinados à integração dos nossos propósitos, já
contamos com o instrumento indispensável, bastando apenas que lhe demos
a vida e o dinamismo que lhe estão faltando, para que ele cumpra os seus
objetivos.
/.../ Estou convencido de que, dentro desta orientação, procurando imprimir
um ritmo de trabalho permanente a esse órgão, poderemos atingir os nossos
maiores objetivos, isto é, integrarmos as nossas economias e nos
defendermos no plano interno, procurando melhorar as condições de vida de
nossos povos e de, unidos num só bloco, defendermos também externamente
os nossos interesses e os interesses da América Latina.380

Aliás, será justamente em defesa da constituição deste possível bloco em defesa dos
interesses comuns dos países latino-americanos que estarão grande parte dos argumentos de
Goulart em torno da ALALC. Embora a expansão dos mercados e a intensificação das trocas
entre os países da América Latina sejam sempre apontadas como fatores de grande
importância para o desenvolvimento da região, Goulart acaba enfatizando com maior vigor a
necessidade de articulação entre os latino-americanos em defesa de uma reestruturação do
comércio internacional que, segundo avalia, vinha mantendo os países subdesenvolvidos em
situação prejudicial.
Se, por um lado, Goulart enxergava na expansão do comércio exterior uma forma
indispensável de obtenção de divisas que financiariam o desenvolvimento econômico – para a
qual o auxílio financeiro internacional não constituía uma alternativa –, por outro, apontava a
necessidade de adoção de medidas internacionais que pudessem corrigir o desequilíbrio no
intercâmbio entre as economias desenvolvidas e subdesenvolvidas.
As condições políticas e econômicas do mundo em que vivemos vêm
demonstrando, Senhores Congressistas, de forma inequívoca a insuficiência
do auxílio financeiro internacional para, por si só, propiciar aos países
subdesenvolvidos os meios necessários aos seus vultosos investimentos
básicos requeridos pelo processo de desenvolvimento. Por outro lado, as
condições notoriamente adversas que vimos enfrentando no comércio
internacional têm resultado no lento crescimento ou até mesmo na
estagnação de nossas economias. Somos obrigados, Senhores Senadores e
Senhores Deputados, a exportar cada vez mais, a preços cada vez menores,
para conseguirmos os recursos necessários à aquisição dos bens de produção
e manufaturas cada vez mais caras ao nosso desenvolvimento e ao nosso
progresso.381

É com este raciocínio que o presidente Jango, conquanto ratificasse a direção da


política exterior do Brasil, voltada para a ampliação do mercado externo e para a

380
Ibidem, p. 149. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril de 1963, por ocasião de um banquete
oferecido pelo Conselho do Governo do Uruguai.
381
Ibidem, p. 136-137. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril 1963, na Assembléia Geral do
Uruguai.
129

intensificação das relações comerciais com todos os países possíveis (inclusive com os
integrantes do chamado Bloco Socialista), afirmava também:
Não basta, porém, que o Brasil procure expandir seus mercados tradicionais
e conquistar outros. Esses objetivos, conquanto válidos, não nos devem fazer
esquecer a necessidade de que se modifique a própria estrutura do comércio
internacional, de modo a que se alterem nossos termos de intercâmbio com
os países industrializados e se corrijam as tendências que, por tão longo
tempo e de maneira tão profunda, vêm agindo em prejuízo dos nossos
interesses.
Assim compreendida, a política externa deverá visar à modificação do
presente mecanismo em que se desenrolam as trocas internacionais, com
vistas à criação de uma nova estrutura institucional que realmente atente para
as peculiaridades do comércio entre países em diferentes estágios de
desenvolvimento econômico e contribua para a remoção dos obstáculos ao
comércio e ao consumo dos produtos primários.382

A situação do comércio exterior brasileiro será frequentemente analisada por Jango em


concordância com a teoria, produzida pelos economistas da CEPAL, sobre a deterioração dos
termos de troca. Em diversas ocasiões, Goulart ressalta o fato de que os preços dos produtos
primários exportados pelo Brasil encontravam-se em permanente declínio, ao mesmo tempo
em que os equipamentos e manufaturas importados apresentavam preços em constante
elevação. Dessa forma, o balanço de pagamentos permanecia em contínuo desequilíbrio.
Discursando ao Congresso dos Estados Unidos, por ocasião de sua visita a
Washington, o presidente João Goulart destacava a situação dos países latino-americanos no
comércio internacional, sobretudo no período pós-guerra – em que, segundo ele, os países
diretamente envolvidos no conflito obtiveram auxílio norte-americano para retomar o
comércio internacional em situação vantajosa, enquanto os países latino-americanos teriam
ficado somente com o ônus da inflação e com a desvalorização dos preços dos produtos
primários que exportavam:
Durante os anos da conflagração os preços dos nossos produtos de
exportação permaneceram congelados em níveis muito inferiores ao seu
valor real. Restabelecidas as condições normais de comércio, foi possível
aos países europeus e a outros, cujas economias haviam sido destruídas pela
guerra, eliminar a inflação e restaurar a sua prosperidade. Tiveram para isto,
de 1948 a 1952, o auxílio maciço da economia norte-americana, que
amparou, através de empréstimos, não só os antigos aliados, como também
os antigos adversários, permitindo-lhes restabelecer em curto prazo, ou
mesmo ultrapassar, os seus níveis anteriores de produção agrícola e
industrial. Refeitas as suas indústrias, passaram esses países a comerciar nas
condições particularmente vantajosas em que operam os exportadores de
manufaturas.

382
GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da
sessão legislativa de 1963, p. 14. Grifo nosso.
130

Os países latino-americanos, com uma inflação vinda da guerra, ficaram sem


qualquer plano de cooperação internacional para recuperação de sua
agricultura e desenvolvimento de sua indústria, dispondo apenas, para
restauração do seu comércio, da exportação de produtos primários. A
história da deterioração crescente dos termos de troca entre os produtos
primários e as manufaturas é bem conhecida de todos: de ano para ano, o
mesmo número de sacas de café, cacau e algodão, contra menos quantidade
do mesmo tipo de equipamento e produtos manufaturados.383

João Goulart reconhecia na ―queda permanente dos preços dos produtos primários,
fixados pelos países consumidores‖, e na ―elevação paralela dos preços dos equipamentos e
manufaturas‖ uma causa do ―empobrecimento contínuo das economias mais débeis, em
proveito das economias mais fortes, anulando em larga escala os benefícios da cooperação
financeira internacional‖.384 Em visita ao Chile, o presidente expõe o problema da
deterioração dos termos de intercâmbio, aproveitando para destacar, ao final, a proporção
diminuta da assistência financeira externa recebida pelo Brasil naquela década.
Conheceis, Senhores Parlamentares, o processo implacável de deterioração
dos termos de intercâmbio com os países industrializados, com o
conseqüente esvaziamento de nossa substância econômica e a perda relativa
de posição, frente aos países mais desenvolvidos. Nos dias de hoje, até
mesmo o povo já apreendeu o sentido de que seja vender mais para receber
menos. Não nos escapam, ademais, os efeitos negativos adicionais
decorrentes de obstáculos opostos ao comércio e ao consumo de produtos
primários, seja pelo emprego de medidas tarifárias e tributárias, seja pela
manutenção de sistemas preferenciais e de tratamento discriminatórios
contra os produtos latino-americanos. Os efeitos de todas estas distorções, os
reflexos de todos estes desajustamentos, são matéria de inquietação para os
países latino-americanos.
Aí estão, como males crônicos das economias subdesenvolvidas, os déficits
de balanço de pagamentos: aí está a necessidade de recorrermos
seguidamente às instituições internacionais de crédito e a Governos de países
desenvolvidos, a fim de cobrir estes déficits; aí está a ameaça sempre
presente de termos de sacrificar nossos esforços de desenvolvimento pela
maior redução das importações. A um país que, como o Brasil, recebeu, na
última década, fundos de assistência externa bastante inferiores às perdas de
receita decorrentes da deterioração de suas relações de trocas, não poderia
faltar uma consciência aguda da necessidade de transformação da estrutura
do comércio internacional. A assistência externa não pode continuar sendo
uma alternativa à expansão de nosso comércio exterior.385

383
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos
da América e ao México, pp. 18-19. Grifo nosso. Discurso proferido em Washington, no dia 4 de abril de 1962,
ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos da América.
384
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 197. Discurso proferido em Brasília,
no dia 24 de outubro de 1962, por ocasião da sessão de instalação da LI Conferência Interparlamentar, contando
com a presença de parlamentares de 46 países.
385
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai, p.
45. Discurso proferido em Santiago, no dia 23 de abril de 1963, perante o Congresso Nacional chileno.
131

E, em entrevista coletiva concedida à imprensa chilena, Jango voltou a ressaltar a


desvalorização dos produtos de exportação da América Latina como um dos mais sérios
problemas a serem enfrentados e reafirmou que a situação deveria ―ser enfrentada pelas
nações latino-americanas em conjunto‖, uma vez que estavam ―cada vez exportando mais e
recebendo menos pelas exportações‖.386
Na análise de Jango, a América Latina teria esgotado ―suas possibilidades de
desenvolvimento, dentro das linhas clássicas de comércio internacional, há já alguns
decênios‖, cabendo aos países dessa região, ―que se haviam beneficiado de participação
crescente no comércio mundial e em período anterior‖, agora ―reorientar o seu
desenvolvimento, para enfrentar as dificuldades crescentes criadas pela relativa estagnação de
suas exportações‖, num ―esforço de transição de uma economia exportadora de produtos
primários para outra apoiada no mercado interno‖.387 Além disso, também seriam tarefas dos
países latino-americanos: os esforços de integração econômica da região; a adoção de
políticas de desenvolvimento planificado; e o esforço conjunto para a transformação na
estrutura do comércio internacional.
Enxergando na deterioração dos termos de troca um fator de desequilíbrio constante na
balança de pagamentos e um obstáculo ao impulso necessário para que os países latino-
americanos superassem a condição de subdesenvolvimento, João Goulart propõe:
torna-se imperioso que todos empreendamos uma enérgica ação corretiva
desse processo, cujas conseqüências têm sido agravadas pelas barreiras e
pelas distorções, artificiais criadas por sistemas preferenciais e
discriminatórios de comércio.
A meta principal, Senhores Congressistas, que nos propomos atingir consiste
numa revisão dos princípios e instituições que regulam o comércio
internacional, e que até agora se têm mostrado inadequados ou insensíveis
às necessidades dos países exportadores de matérias-primas.388
Não nos basta, no entanto, conhecer estes problemas que nos são comuns ao
Chile, ao Brasil, à América Latina como um todo, ao mundo
subdesenvolvido em geral. Este conhecimento só terá valor se concretizado
em ações no sentido de serem corrigidas as tendências históricas que nos são
prejudiciais.
Aqui surge, em toda a sua plenitude, o significado de uma política externa
consciente, que possa servir como instrumento efetivo em nossa luta pela
emancipação econômica e social. É óbvio que a reformulação em
profundidade da estrutura do comércio internacional — reivindicação
premente de todos os países subdesenvolvidos — requer um esforço
conjunto de todos os interessados, capaz de superar resistências que sempre
386
Ibidem, p. 55.
387
Ibidem, pp. 165-166. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 26 de abril de 1963, na sede da Associação
Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC).
388
Ibidem, p. 137. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril 1963, na Assembléia Geral do Uruguai.
Grifos nossos.
132

temos encontrado. A procedência e a justiça de nossas teses devem conduzir


a uma transformação estrutural para colocar em bases sólidas e realistas os
esforços de cooperação entre países em diferentes estágios de
desenvolvimento.389

Como pudemos observar, João Goulart, primeiramente aponta o comércio exterior


como fonte prioritária de divisas indispensáveis ao desenvolvimento econômico dos países
subdesenvolvidos. Contudo, logo em seguida, corrobora a análise dos economistas cepalinos,
alertando para a situação da deterioração dos termos de intercâmbio, comum aos países latino-
americanos. Diante desta situação, Goulart vê como possibilidade a integração da América
Latina, não apenas no que diz respeito a um mercado regional – que naquele contexto
encontraria dificuldades de concretização, desde no que diz respeito à logística até mesmo ao
nível de desenvolvimento e diversificação das economias latino-americanas –, mas,
principalmente para a formação de um bloco de países com interesses comuns para atuação na
esfera internacional, visando a reestruturação do comércio entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos.
Embora elementar, esta atuação de Goulart no nível internacional, representa uma
inovação da posição brasileira nas relações exteriores. Na medida em que, defendendo seu
projeto de desenvolvimento e emancipação econômica, convoca os países subdesenvolvidos
para uma luta conjunta nos órgãos internacionais de comércio, Goulart lança o Brasil a uma
posição destacada na política continental. No entanto, com o golpe de 1964, esta posição
brasileira no continente, ainda que mantenha o destaque, terá seu caráter profundamente
modificado, passando a servir a interesses completamente distintos.

389
Ibidem, pp. 45-46. Discurso proferido em Santiago, no dia 23 de abril de 1963, perante o Congresso Nacional
chileno.
133

3. JOÃO GOULART E A INSTABILIDADE DA ORDEM LEGAL

Embora o objetivo deste capítulo seja explicitar a posição de João Goulart diante dos
episódios de suposta ou efetiva ameaça à ordem legal ao longo de seu governo, é importante
lembrar que o clima golpista era uma presença constante na política brasileira desde a década
anterior. O período que se segue ao Estado Novo, chamado pelos historiadores Jorge Ferreira
e Lucilia de Almeida Neves Delgado de ―o tempo da experiência democrática‖, 390 não
transcorreu livre de tentativas de golpe de estado – como nos mostra o próprio Ferreira, em
seu artigo Crises da República.391
Todas essas tentativas foram lideradas pela UDN com o apoio de setores das Forças
Armadas. No entanto, é importante ressaltar que estes episódios não constituem apenas
momentos de disputa partidária; a UDN congregava os representantes dos interesses de um
grupo econômico formado por banqueiros e industriais ―associados‖ ao capital internacional.
Ou, como na caracterização de Basbaun:
Esses grupos representam a alta burguesia financeira, banqueiros, grandes
industriais associados de uma forma ou de outra ao capital norte-americano,
os que alienaram suas indústrias e suas consciências ao capital e ao
capitalismo da grande república do Norte da América, os testas-de-ferro
brasileiros que dirigem essas indústrias, os advogados, os public-relations
dessas mesmas empresas encarregados de defender seus interesses junto ao
governo brasileiro e infiltrados nos partidos políticos nacionais e na alta
administração do País, os que tinham o poder econômico mas ainda não o
poder político. Em suma, a UDN, a famosa União Democrática Nacional.392

Com a vitória de Getúlio Vargas nas eleições de 1950, houve uma tentativa de impedir
sua posse sob a alegação de não haver a ―maioria absoluta‖ – elemento não previsto na
Constituição de 1946.
Não o tendo conseguido, [a UDN] iniciou uma tremenda campanha pela
imprensa e no Congresso contra Getúlio, apelando novamente para as Forças
Armadas, aproveitando todos os erros do Presidente Vargas até conseguir
derrubá-lo e atingir o poder, com Café Filho, pelo menos por um certo
período, um ano, o suficiente para preparar as eleições de 1955 e alcançar o
poder pela via legal, uma vez que o golpe branco tentado em 1954 resultara
contra-producente em virtude do heróico suicídio de Getúlio.393

390
Jorge Ferreira afirma o período como ―o tempo da experiência democrática‖ em oposição à historiografia que
o trata como ―período populista‖.
391
FERREIRA, J. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: _____________; DELGADO, Lucília de A. N.
(orgs.). O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 (O Brasil Republicano; v. 3), pp. 301-342.
392
BASBAUN, Leôncio. História Sincera da República: de 1961 à 1967. São Paulo: Fulgor, 1968, v. 4, p.12.
393
Ibidem, pp. 75-76.
134

Assim, se por um lado o suicídio de Vargas representou um duro golpe dos ―liberais
conservadores‖ contra o projeto nacionalista e de intervenção estatal, por outro, a comoção
popular por ele deflagrada impediu que a UDN e os militares a ela ligados instalassem,
naquele momento, uma ditadura no país. Café Filho permaneceu no cargo até as eleições de
1955, vencidas pela chapa PSD-PTB, com Kubistchek na presidência e João Goulart como
vice − após ser derrotada a iniciativa udenista de adiamento das eleições e de sua campanha
difamatória, principalmente direcionada a Goulart. Como lembra Thomas Skidmore, ―oficiais
das Forças Armadas, que apenas um ano antes comandavam a campanha para forçar Vargas a
demitir Goulart, viam agora seu inimigo aspirar [e se eleger] a um cargo ainda mais
elevado‖.394
Após a derrota eleitoral da UDN, houve nova movimentação, com participação de
militares, tentando impedir a posse de JK; desta vez, repelida pela ação do Marechal Lott e
dos setores legalistas:
Novamente seus arautos [da UDN] iniciam uma campanha pela imprensa e
no Congresso, mais uma vez exigindo a ―maioria absoluta‖, e para isso mais
uma vez tentando sensibilizar as forças armadas contra o ―retorno‖. E quase
conseguiram, não fora o contra-golpe executado pelo Marechal Lott, logo
após as eleições de outubro daquele ano, demitindo o presidente provisório e
licenciado por enfermidade, Café Filho, e empossando o Presidente da
Câmara, Nereu Ramos, até à posse do Presidente eleito, Juscelino
Kubistchek.395

Passado o governo JK, nova e mais intensa articulação golpista ocorrerá com a
renúncia de Jânio Quadros – eleito com o apoio da UDN –, em 1961; dando início à chamada
―crise da legalidade‖, já abordada no início deste trabalho, que tentou impedir a posse de João
Goulart, então vice-presidente eleito, pela segunda vez consecutiva.
Como se vê, o governo de João Goulart está inscrito num período de constante ameaça
da ordem legal; em que grupos contrários à implementação de um projeto nacionalista e de
ampliação da participação popular estarão se articulando para alcançar o poder político,
inclusive por meios golpistas, caso os considerem necessários. Nas palavras de Caio Navarro
de Toledo, o governo Jango ―nasceu, conviveu e morreu sob o espectro do golpe de
Estado‖.396

394
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, p. 184.
395
BASBAUN, L. Op. cit., p. 76.
396
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, D. A.; RIDENTI, M;
MOTTA, R. P. Op. cit., p. 68.
135

3.1. Posse na presidência, emenda parlamentarista e plebiscito

A grave crise política que antecedeu sua posse foi tema recorrente nos discursos de
João Goulart ao longo dos seus primeiros meses de governo. Desde o discurso de posse e
continuando nos pronunciamentos realizados em diversas situações, João Goulart agradece as
mobilizações e manifestações de apoio recebidas durante a crise, salientando sua força e
consciência democrática.
No seu discurso de posse, procura respaldar sua investidura na vontade popular
manifestada nas mobilizações pela legalidade e se coloca como ―guardião da união nacional‖:
Assumo a Presidência da República consciente dos graves deveres que me
incumbem perante a Nação. A minha investidura, embora sob a égide de um
novo sistema, consagra respeitoso acatamento à ordem constitucional. Subo
ao poder ungido pela vontade popular, que me elegeu duas vezes Vice-
Presidente da República e que, agora, em impressionante manifestação de
respeito pela legalidade e pela defesa das liberdades públicas, uniu-se,
através de todas as suas forças, para impedir que a decisão soberana fosse
desrespeitada. Considero-me guardião dessa unidade nacional, e a mim cabe
o dever de preservá-la, no patriótico objetivo de orientá-la para a realização
dos altos e gloriosos destinos da Pátria brasileira.397

João Goulart manifesta grande valorização do movimento pela legalidade e do que


considera como amadurecimento político da população brasileira na defesa do regime
democrático, salientando a união dos diversos setores da sociedade num mesmo sentido:
Muitos terão descrido do regime democrático; alguns terão desesperado de
defendê-lo; outros terão pretendido golpeá-lo; mas o povo ensinou-nos como
sustentá-lo, na resistência admirável daqueles dias de incerteza e de angústia
que, juntos, vencemos, todos nós – autoridades, trabalhadores, estudantes,
intelectuais, forças armadas, clero, classes produtoras e, na expressão da
síntese mais legítima, o Congresso Nacional.398

Ao longo dos primeiros meses de seu governo, nas diversas ocasiões em que
discursou, Jango agradeceu e reconheceu a participação dos estudantes no que considerou um
―extraordinário movimento de opinião pública em defesa das instituições democráticas da
nossa pátria‖.399 Também ressaltou o apoio da Assembleia Legislativa paulista à legalidade,
afirmando que ―A consciência política do povo paulista encontrou nos seus representantes
nesta Assembléia intérpretes verdadeiros dos seus sentimentos de fidelidade ao regime de

397
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 9.
398
Ibidem, p. 17. Discurso por ocasião da comemoração do 15º aniversário da Constituição Brasileira, em 18 de
outubro de 1961. Este discurso foi classificado pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, como ―apelo
reformista‖. Ver: CARVALHO, Aloysio Castelo de. A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do
Brasil na queda do governo Goulart (1961-64). Niterói (RJ): UFF/NitPress, 2010, p. 82.
399
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 21. Discurso na sede da União
Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1961.
136

liberdade e de responsabilidade, sob a égide da Constituição‖400 – identidade entre opinião


pública e representantes que também elogia na Câmara Municipal de São Paulo, ao receber o
título de ―Cidadão Paulistano‖, em 29 de setembro de 1961, afirmando:
Essa identidade é hoje mais do que nunca essencial à solução dos nossos
problemas. Ela deve ser mantida em todos os planos da vida pública
nacional. Só ela nos oferecerá as condições necessárias para enfrentarmos a
luta pelo nosso progresso, pela superação das nossas deficiências e do nosso
atraso.401

Ainda agradece a defesa da legalidade em discursos proferidos em Belém, 402 em Porto


Alegre403 e em Minas Gerais.404
Quanto à imprensa e às Forças Armadas, apesar destas constituírem setores que se
mostraram divididos entre a defesa ou o combate de sua posse,405 Goulart buscou minimizar a
existência dos setores contrários, reforçando a ideia de união e apoio desses setores à causa
legalista. Esta posição pode ser constatada nos seus discursos realizados em Curitiba, na
solenidade de conclusão dos cursos da Escola de Oficiais Especialistas e de Infantaria e
Guarda, e no Rio de Janeiro, na sede da revista O Cruzeiro.
O País está seguro da posição legalista das suas Forças Armadas, leal aos
ideais da democracia representativa, leal aos princípios cristãos formadores
da nacionalidade, leal ao dever de servir a esta nação, que ela sempre
defenderam com intrepidez.406
A contribuição da nossa imprensa na mobilização da opinião pública pela
defesa dos postulados constitucionais tem sido uma lição constante de
patriotismo, uma página de honra das nossas melhores tradições
democráticas.407

No entanto, vimos que a posse de João Goulart na Presidência da República ocorreu


sob a emenda parlamentarista, que reduzia suas atribuições executivas. De acordo com tal
emenda, embora o poder executivo fosse exercido conjuntamente pelo Presidente da
República e pelo Presidente do Conselho de Ministros (Primeiro-Ministro), caberia a este
último a direção do governo federal. Ao presidente da república caberia a indicação do

400
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 24. Discurso ao ser homenageado
pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em 28 de setembro de 1961.
401
Ibidem, p. 28.
402
Ibidem, p. 47; pp. 49-50. Discurso proferido em Belém, em 25 de outubro de 1961.
403
Ibidem, pp.57-59. Discurso proferido em Porto Alegre, no dia 30 de outubro de 1961.
404
Ibidem, p. 77. Discurso na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 17 de
novembro de 1961.
405
Além do jornal A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, jornais como O Globo, do Rio de Janeiro, e O
Estado de São Paulo manifestaram-se claramente de acordo com o veto dos ministros militares.
406
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 114.
407
Ibidem, p. 33.
137

Presidente do Conselho de Ministros, que somente seria nomeado após aprovação da Câmara
dos Deputados.
A aceitação da emenda parlamentarista como condição para sua posse foi precedida de
polêmica e seguida de um constante debate sob o funcionamento dessa forma de governo.408
Nessas circunstâncias, inúmeras vezes Goulart procurou justificar sua posição de consentir a
diminuição de seus poderes como forma de apaziguar os conflitos em torno de sua posse e
evitar ―a luta entre irmãos‖, procurando transmitir a imagem de alguém preocupado em unir
esforços num projeto de emancipação econômica do país e progresso social.
Desde logo pude avaliar a extensão e o sentido exato da mobilização de
consciências e vontades em que se irmanaram os brasileiros, para a defesa
das liberdades públicas. Solidário com as vivas manifestações das nossas
consciências democráticas, de mim não se afastou, um momento sequer, o
pensamento de evitar, enquanto com dignidade pudesse fazê-lo, a luta entre
irmãos. Tudo fiz para não marcar com o sangue generoso do povo brasileiro
o caminho que me trouxe à nova Capital, o caminho que me trouxe a
Brasília.
/.../ Reclamamos a união do povo brasileiro e por ela lutaremos com toda a
energia, para, sob a inspiração da lei e dos direitos democráticos, mobilizar
todo o País para a única luta interna em que nos devemos empenhar, que é
a luta pela nossa emancipação econômica, que é a luta contra o pauperismo,
a luta contra o subdesenvolvimento.409

Os discursos mais significativos do presidente João Goulart sobre sua postura de


acatar a chamada solução parlamentarista são os proferidos na sede da revista O Cruzeiro, no
Rio de Janeiro, em 7 de outubro de 1961, e nas cidades gaúchas de Porto Alegre e São Borja,
respectivamente, em 30 de outubro e 4 de novembro do mesmo ano. Na sede da revista O
Cruzeiro, ao ser homenageado pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand, um grande
crítico da política nacionalista, João Goulart ratifica sua postura pacífica de busca de uma
―harmonia nacional‖ e, pela primeira vez, alude à possibilidade de que, durante a crise de
agosto, o país tivera sua soberania ameaçada.
De minha parte, tudo tenho feito para cumprir o meu dever. Desde o
primeiro instante da recente crise político-militar, sempre constituiu minha
principal preocupação empreender todos os esforços em benefício da
pacificação geral da família brasileira, mesmo que isto acarretasse até o
sacrifício de um mandato que por duas vezes o povo diretamente me
conferiu, inclusive no último pleito.

408
No dia 05 de setembro de 1961, o jornal Última Hora, apoiador de João Goulart, publica matéria na qual os
juristas Hermes Lima e Lineu Albuquerque Mello apontam problemas na forma repentina de instituição da
emenda e as dificuldades da prática parlamentarista com partidos políticos numerosos. Apenas o jurista Pontes
de Miranda se manifesta favorável à emenda e à diminuição dos poderes do Presidente da República. Cf.
―Juristas: ‗Novo regime é fonte de crises‘‖, Última Hora, Rio de Janeiro, 05 set. 1961.
409
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 10. Discurso de posse, em Brasília,
no dia 7 de setembro de 1961. Grifos nossos.
138

Assim, depois de seis anos de pleno exercício da Vice-Presidência da


República, sem nenhuma contestação legal, não vacilei em aceitar uma
fórmula que me foi apresentada sob a inspiração dos que nela desejavam
encontrar, na fase aguda da crise, o denominador capaz de evitar que o País
afundasse, ou corresse o risco de afundar-se, em uma guerra entre irmãos,
suscetível até mesmo de constituir ameaça à nossa soberania, em meio às
grandes dificuldades internacionais em que vivemos.
/.../ Tudo esteve em minhas mãos para deflagrar um movimento de
resistência legalista, em defesa da letra expressa e insofismável da
Constituição. Qual foi, porém, a minha decisão? O Brasil inteiro é
testemunha do meu procedimento. Contrariando manifestações de amplas
camadas populares, contrariando a exaltação cívica de poderosos
contingentes, civis e militares, marchei em busca da harmonia nacional.410

Uma explicação sobre o acatamento da emenda parlamentarista talvez se fizesse ainda


mais necessária nos discursos realizados pelo presidente nas cidades gaúchas. Embora Goulart
estivesse em ambiente distinto do que se encontrava na sede da revista de Chateubriand – ao
invés de estar em ―território‖ de opositores, estava agora no berço do movimento legalista
pela sua posse –, o Estado gaúcho, reduto da resistência ao golpe dos ministros militares, com
uma intensa mobilização popular, teria manifestado certo descontentamento com a posição
assumida por João Goulart no desfecho da crise. O historiador Jorge Ferreira faz a seguinte
narração do desfecho da crise da legalidade em Porto Alegre e da insatisfação popular:
A chegada de Goulart em Porto Alegre comprovou que a resistência
democrática e os perigos enfrentados não foram inúteis. No entanto,
rapidamente o sentimento popular se transformou: da alegria inicial pela
vitória, dúvidas e incertezas se apoderaram da população. /.../Era preciso que
Goulart se pronunciasse – o que não acontecia. /.../ Ao amanhecer, a
multidão rumou para o Palácio Piratini e, lá, encontrou milhares de outras
pessoas, entre impacientes e indignadas. Por mais que o chamassem, mesmo
com insistência, Jango não aparecia na sacada do Palácio. O silêncio, aos
poucos, transformou a indignação em revolta. Com impaciência, alguém da
multidão gritou: ‗arranquem as faixas‘. Rapidamente, todas as faixas e
cartazes foram amontoados e, como ato de rebeldia, queimados. Algumas
vozes o acusaram de ‗covarde‘ e ‗traidor‘. Durante uma hora oradores
falaram, de maneira contundente, contra o parlamentarismo e a moderação
do presidente. Todos, na verdade, ainda esperavam que Goulart se
aproximasse das janelas do Piratini. Cansados, abandonaram a Praça da
Matriz e foram para as suas casas. Uma chuva torrencial, como poucas
ocorrem, caiu sobre a cidade, expulsando os poucos esperançosos.
Nada mais havia a fazer. Goulart acatara a fórmula parlamentarista. 411

Sendo assim, João Goulart, que não discursara para a população a sua espera na
ocasião do desfecho da crise – tendo apenas declarado à imprensa que se manteria fiel aos
princípios que tornaram possível aquela impressionante mobilização, sem, contudo, ―marcar

410
Ibidem, p. 34. Grifos nossos.
411
FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964, pp. 310-311.
139

com o sangue generoso dos brasileiros as estradas que conduzem à Brasília‖412 – em seus
primeiros pronunciamentos públicos em visita à região após sua posse, aludiu novamente ao
risco do país ter sua soberania ameaçada, caso fosse prolongada a crise, e se exprimiu nos
seguintes termos:
Permitam-me aproveitar este momento e esta tribuna para dizer ao valoroso
povo de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, que soube compreender,
passados os primeiros momentos de quase incontrolável exaltação cívica, o
meu gesto de desapego a um direito líquido e certo que me conferiu a
Constituição, que nem o seu sacrifício nem a minha transigência foram em
vão. Eis-nos a menos de três meses da mais grave crise político-militar que o
País viveu, e, ao invés de ódios, de dissensões, de conflitos insanáveis,
assistimos neste Congresso a uma autêntica assembléia da vida brasileira.
/.../
Libertos da guerra, civil, que — na situação nacional em que vivíamos e na
atual conjuntura internacional — nos poderia arrastar às mais graves
conseqüências e até mesmo propiciar atentados à nossa soberania,
conseguimos que o País, tendo chegado a viver o clima irrespirável dos
prenuncies da ditadura, emergisse à tranqüilidade da ordem legal.
Na verdade, mais importante do que a aferição dos novos podêres
presidenciais, ou a análise do novo sistema, é a certeza de que estamos hoje
sob o império da lei, da ordem e do respeito integral às liberdades públicas,
caminho único para uma ordem social mais justa e mais consentânea com a
realidade contemporânea.
Militante de um partido democrático, enraizado nas aspirações de justiça
social das camadas mais desprotegidas de nossas populações, reservou-me o
destino a tarefa onerosa de assumir a chefia da Nação, depois de uma
reformulação constitucional em que ela passou a representar uma parte,
apenas, da chefia do Governo do País. Acedi, entretanto, a estas condições
novas, tão diversas daquelas com que tinha o legítimo direito originário de
contar, sem qualquer prevenção, pois as circunstâncias invocadas como seu
fundamento exigiam de mim esta transigência, pelo bem do Brasil e pelo
dever indeclinável de preservar a paz interna. Este objetivo, apesar da
insistência antipatriótica de inexpressivos focos de golpismo, foi plenamente
alcançado.413

Em São Borja, sua cidade natal, João Goulart repete seus argumentos, desta vez,
referenciando a Getúlio Vargas como uma inspiração para suas decisões.
Sem qualquer ressentimento, dei ao País a contribuição que de mim se
exigia, em nome da ordem e do entendimento geral. Serenamente, com o
pensamento voltado para Deus e para os sentimentos pacifistas e cristãos da
nossa gente, transigi, porque não me julguei com o direito de manchar com o
sangue generoso de nossos irmãos a estrada que me conduziria à Presidência
da República.
No instante da grande decisão, sob a direta influência de um povo vibrante
de exaltação cívica, como o do Rio Grande do Sul, onde me encontrava,
procurei, no recolhimento da meditação, inspirar-me nos ensinamentos de
um conterrâneo, cujo nome está vivo no coração de todos os brasileiros, e

412
―Jango: Mensagem de Paz Aos Brasileiros‖. Última Hora. Rio de Janeiro, 05 set. 1961.
413
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), pp. 62-63. Discurso na solenidade de
encerramento do II Congresso das Assembléias Legislativas do Brasil.
140

que sempre nos advertia de que ―a violência gera a violência‖ e ―só o amor
constrói para a eternidade‖.414

Contudo, uma vez aceita a emenda parlamentarista, tratava-se, agora, de como se daria
a atuação política do presidente João Goulart neste novo regime. Qual seria sua influência
sobre o Gabinete Ministerial e o Congresso Nacional? Como seria sua relação com estas
esferas decisivas do poder federal e que congregavam tanto aliados e partidários de suas
posições reformistas como figuras não tão afeitas às propostas trabalhistas?
Nos primeiros momentos após sua posse, ao anunciar Tancredo Neves, do PSD, como
seu Primeiro-Ministro, Goulart expressa confiança no trabalho conjunto com os vários
ministérios e com os parlamentares, se comprometendo com a nova forma governamental,
afirmando: ―Sem embargo dos pronunciamentos presidencialistas de setores diversos da
opinião pública, estou cumprindo e continuarei a cumprir, com rigoroso acatamento ao
Congresso Nacional, as normas do sistema por ele instituído‖. Também afirma a disposição
em formar um ―governo de coalizão‖, com a necessidade fundamental, ―pela própria
sistemática do parlamentarismo‖, da colaboração do Congresso Nacional. 415
No entanto, a prática governamental logo apresentaria obstáculos ao desenvolvimento
deste governo de ―união nacional‖. Menos de duas semanas após sua posse, João Goulart já se
coloca à favor de implementação de reformas e manifesta sua expectativa de que o Congresso
se disponha, quando necessário, a efetivar regulamentações constitucionais que equacionem,
de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e
apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo
o que espolia nossas riquezas.416

Mas, como já foi dito, no regime parlamentarista, cabia ao Conselho de Ministros


enviar ao Congresso os planos de governo. E, segundo Cibilis da Rocha Viana, não havia
convergência entre as assessorias econômicas do Presidente da República e do Presidente do
Conselho de Ministros; ―por isso mesmo, os assuntos de Estado em matéria de política
econômica eram conduzidos com muita lentidão, em época de crise que estava a exigir
atuação decidida do poder público‖.417

414
Ibidem, pp. 68-69. Discurso proferido na sede do Clube Municipal de São Borja, ao ser homenageado com
um banquete pela sociedade local.
415
Ibidem, p. 14.
416
Ibidem, p. 18. Discurso proferido em Brasília, pelo 15º aniversário da Constituição brasileira, em 18 de
setembro de 1961.
417
VIANA, C. R. Op. cit., p. 110.
141

A necessidade da atuação governamental e o impasse gerado pela dificuldade de


consenso entre os gabinetes do Presidente da República e do Conselho de Ministros
provocavam discussões sobre a viabilidade do regime parlamentarista, tal qual vigorava, e
sobre a conduta de João Goulart frente ao governo.
Quanto aos problemas administrativos e à estranheza gerada pelo novo sistema de
governo em parte da população, Goulart afirmou:
As possíveis deficiências na elaboração de uma emenda constitucional,
votada com a urgência requerida por uma crise político-militar, num país que
há 70 anos vivia sob o regime presidencialista, não podem ser a mim
debitadas. Conheci a nova emenda quando cheguei a Brasília. No exterior,
não tive oportunidade de examiná-la; se porventura contém contradições, se
possui lacunas, se precisa ser melhorada, se é necessário ajustá-la à nossa
realidade social, vamos, então, tratar de realizar essa tarefa.
Não é de admirar também que o povo não se mostre ainda familiarizado com
o atual sistema, que veio a conhecer na madrugada do dia 3 de setembro
último. Estarei sempre pronto a cooperar para que o sistema instituído se
ajuste cada vez mais e melhor à realidade do País, e para que possa ser
aplicado como instrumento eficiente na conquista das reivindicações
populares.418

Dessa forma, ao mesmo tempo em que João Goulart reafirmava a disposição em


cooperar com o sistema parlamentarista e possibilitar a aproximação com possíveis
opositores, também associava o bom funcionamento desta forma de governo à conquista de
reivindicações populares. O discurso que realiza em 17 de novembro, na Assembleia
Legislativa de Minas Gerais, elucida esta postura assumida por João Goulart nesses primeiros
meses de governo.
Sou um homem de coração aberto e sem ressentimentos. Quero dar o braço,
como sempre o tenho feito, a todos que desejem lutar pelo desenvolvimento
da nossa pátria e pela solução dos seus problemas econômicos e sociais.
Nunca recusei a colaboração de ninguém, mesmo dos meus mais rancorosos
adversários, quando se trata de atender às reivindicações do progresso e da
propriedade nacionais. Podemos todos marchar juntos para a realização de
um governo de paz e, acima de tudo, de um governo de justiça social, único
caminho, Senhores Deputados, seguro para a consolidação e o
fortalecimento do regime, desse regime democrático que o povo brasileiro já
defendeu e mostrou estar disposto a defender em qualquer circunstância e, se
necessário, até com armas nas mãos.419

Neste mesmo discurso, Goulart exprime ainda confiança na colaboração das ―elites
econômicas‖ para o atendimento das reformas sociais, como parte de uma ―luta cristã‖ e
―patriótica‖ pela ―harmonia social‖ e ―desenvolvimento nacional‖: ―Ninguém pode desejar o

418
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 35. Discurso, já citado, proferido no
Rio de Janeiro, na sede da revista O Cruzeiro, em 7 de outubro de 1961.
419
Ibidem, pp. 77-78.
142

agravamento dos problemas sociais e muito menos a intranquilidade do povo, que conduzem
à angústia, que conduzem ao desespero e que levam quase sempre à revolta e imprevisão‖.420
Nesse sentido, Goulart busca persuadir os ouvintes da necessidade do atendimento das
reivindicações populares, mas sem assumir, ele próprio, uma postura ameaçadora. Isto,
contudo, não significa o esvaziamento de seu discurso reformista, como podemos ver um
pouco mais adiante no mesmo discurso:
Sou um homem cujo temperamento tende à conciliação, e toda a minha ação
política sempre se orientou no sentido da compreensão e da harmonia social.
Não transijo, porém, e jamais transigirei, quando se trata do interesse
nacional e da soberania do Brasil. Adversário de todos os extremismos, isso
não me impede de apoiar, e apoiar com lealdade, reformas que constituem
aperfeiçoamento das instituições democráticas e que venham em benefício
do povo.421

Ao final do ano de 1961, as dificuldades de execução das propostas reformistas no


novo sistema de governo instituído com a emenda parlamentarista aparecerão na sua
mensagem veiculada pela rede de radiodifusão A Voz do Brasil, pelo ensejo da passagem de
ano. Nesta mensagem, Goulart aproveita para ressaltar a importância das eleições
parlamentares que ocorreriam em 1962, lembrando o peso determinante do Congresso
Nacional naquela forma de governo, devendo expressar as aspirações de seus representados
no governo.
Posso proclamar que tudo tenho feito no sentido de não criar quaisquer
dificuldades ao novo sistema instalado no País. Com a modificação
introduzida pelos acontecimentos de agosto, não foram, entretanto,
solucionados os verdadeiros problemas nacionais. Antes, evidenciou-se a
necessidade de empreender, com lucidez e coragem, as reformas de que
carecemos, para ajustar o Estado e o processo administrativo às exigências
das necessidades nacionais.
/.../ O clamor público pelas reformas de base indica-nos que atingimos um
grau de compreensão da nossa realidade que nos fará criar, com os próprios
recursos de inteligência e trabalho, os meios indispensáveis à construção do
progresso do nosso País. /.../
Vejo, por isso, com o mais saudável otimismo, o alvorecer deste Ano Novo,
que há de trazer-nos a solução de alguns dos problemas que agora nos
afligem, pois nele o povo será convocado a escolher os seus representantes
no Parlamento, o que equivale à reaproximação com a única fonte de onde
deve emanar o poder. Temos problemas árduos a resolver, mas são
precisamente aqueles que decorrem da marcha da nossa evolução econômica
e social. 422

420
Ibidem, p. 80.
421
Ibidem, pp. 80-81.
422
Ibidem, pp. 123-124. Discurso veiculado em 31 de dezembro de 1961.
143

Não obstante o otimismo que manifesta, na citação acima, em relação ao ano que se
inicia, Goulart não deixa de apontar as dificuldades a serem enfrentadas pelo governo e pela
―atual máquina administrativa‖ parlamentarista: ―O ano que se inaugura será, sem dúvida,
difícil para o Governo, que se vê a braços com situações graves que lhe foram legadas,
acrescidas de outras, resultantes de erros acumulados ou causados pela imperfeição da atual
máquina administrativa‖.423
Ao longo do ano de 1962, o presidente João Goulart passará, com freqüência, a se
posicionar favoravelmente à consulta popular para a volta do regime presidencialista. No
discurso que realizou em 1º de maio, Goulart, pela primeira vez, se posicionará publicamente
apontando os limites do regime parlamentarista.
Embora o presidente Jango reconheça certo mérito na instituição do novo regime, no
sentido de ―propiciar melhor entendimento e mais estreitas relações entre as diversas
correntes políticas, com reflexos positivos no desarmamento geral dos espíritos‖, avalia que a
população, devido a não solução de problemas prementes, não estaria ―desfrutando da mesma
tranquilidade e segurança‖ obtidas na esfera das relações políticas. Para Goulart, uma vez
atingida a ―pacificação política‖, se fazia necessária a implantação de medidas efetivas em
defesa dos interesses populares, ou então a emenda parlamentarista se limitaria a um
―entendimento de cúpula‖:
Agora é chegado o momento de perguntar se o povo brasileiro, as classes
médias e populares, os trabalhadores em geral e especialmente os que vivem
no campo, estão também desfrutando da mesma tranqüilidade e segurança.
Minha impressão sincera é de que não. A cada hora que passa, o povo
brasileiro tem motivos para novas preocupações sobre o dia de amanhã. Para
ele, para o povo, ainda não foram asseguradas perspectivas animadoras de
tranqüilidade e bem-estar.
/.../O clima de pacificação política, necessário ao País, e que conquistamos
com tenaz esforço, precisa abrir espaço a medidas eficazes do Governo e do
Parlamento, sob pena de vir a ser interpretado como um entendimento de
cúpula, feito sem levar em conta os interesses populares.424

João Goulart ainda explicitou um ―apelo ao Congresso Nacional‖, para que concedesse
ao ―futuro Congresso‖, a ser eleito naquele ano, ―o poder de reexaminar, à luz da experiência
destes oito meses, e da experiência bem mais vasta dos últimos quinze anos, as bases e
condições do nosso regime de governo‖. O presidente propõe, então, uma reforma da
Constituição – o que, ao mesmo tempo em que definiria o regime mais adequado, também
abriria maiores possibilidades de realização das reformas de base:

423
Ibidem, p. 126.
424
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 76-77. Grifo nosso. Discurso
proferido em Volta Redonda (RJ), nas comemorações do Dia do Trabalho.
144

O presidencialismo teve defeitos e vantagens, e o pouco que temos vivido no


parlamentarismo também mostra que este tem uns e outros. O tempo de hoje
não é mais talvez de soluções constitucionais extremadas, mas de fórmulas
sabiamente combinadas, em que se corrigem os excessos e se procura
robustecer a autoridade, dando-lhe, ao mesmo tempo, limites precisos e
responsabilidades definidas.
O que queremos para o Brasil é um regime que assegure eficiência
administrativa, responsabilidade, tranqüilidade nas horas de transmissão do
mando, e segurança de que a vontade do povo será sempre respeitada.
Uma reforma da Constituição permitiria a criação de condições
indispensáveis à adoção das reformas de estrutura, e resolveria de maneira
adequada, sem perturbação da vida nacional, questões que estão gerando
uma intranqüilidade desnecessária, como, por exemplo, a da extensão do
parlamentarismo aos Estados e a da possibilidade de fazerem parte do
Ministério congressistas que são novamente candidatos ao Congresso
Nacional.425

É desnecessário dizer que a possibilidade de uma reforma constitucional não


encontrou apoio no poder legislativo e, portanto, não foi levada à frente. Ainda assim, as
eleições parlamentares de 1962 mexiam com a organização do gabinete parlamentarista, uma
vez que os ministros que almejassem concorrer aos cargos legislativos teriam que ser
licenciados, sendo, portanto, exigida uma reforma ministerial.
A mudança do ministério realizada em julho daquele ano, ocasião da saída de
Tancredo Neves da presidência do Conselho de Ministros para disputar das eleições
parlamentares, acentuará a tensão entre o Gabinete da Presidência da República e o Congresso
Nacional na escolha do novo Primeiro-Ministro e dos demais ministérios. Para a sucessão de
Tancredo Neves, de acordo com Darcy Ribeiro, ―Jango tenta /.../ fazer de San Tiago Dantas
seu primeiro-ministro. O Congresso não apóia. Aprova e impõe é o nome de Auro de Moura
Andrade, reacionaríssimo, que não consegue compor um ministério que Jango aceitasse‖.426
O conflito por qual passava o presidente João Goulart para escolha do novo Primeiro-
Ministro e composição dos ministérios aparece com bastante clareza em uma carta manuscrita
pelo próprio presidente e endereçada a Evandro Lins e Silva, na época, Procurador-Geral da
República. Nesse documento, Jango solicita uma análise da ―emenda Denys‖, no que diz
respeito a suas atribuições como Presidente da República, explicitando a dificuldade de
articular um gabinete que, sem contrariar o projeto defendido por Goulart, pudesse ser
aprovado pelo Congresso. Escreve João Goulart:
Com um abraço peço ao amigo que examine, com o maior cuidado e rigor,
as atribuições que me confere a emenda ―Denys‖, especificamente no seu
artigo 9, ou seja na parte referente à nomeação dos ministros. Depois do

425
Ibidem, p. 80. Grifo nosso.
426
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 288.
145

discurso do nosso Auro,427 tão enfático e corajoso na parte das suas


atribuições e tão tímido, tão pálido nas suas afirmações inclusive
plebiscitárias, sobre as quais, espontaneamente, na sua e outras presenças
havia falado com tanto entusiasmo e tanto calor; depois das agressões que
sofri por parte de alguns parlamentaristas [outros] que talvez não
precisassem ser tão valentes para defender o indicado para primeiro ministro.
Depois do discurso do líder da UDN e do grande PILA,428 palavra que fico
receoso que me apresentem, para ser nomeado como ministro e
posteriormente submetido à Câmara, um Cordeiro429 para Guerra, um Moss
para a Aeronáutica, um Heek430 para Marinha e, ainda quem sabe juntos com
um [ilegível] para o Exterior ou algum Pedrozo431 para a Fazenda.
Você me conhece e sabe que este crime eu não cometeria com o meu país,
mesmo que para tanto fosse obrigado a abandonar as atribuições para fixar-
me nos deveres.
Peço-lhe, pois, que me prepare uma ou duas folhas de papel com razões
sobre esse assunto, pois você é uma das testemunhas da luta tremenda que
venho realizando para manter o nosso país nos quadros legais e da pressão
que sofro em sentido contrário, a tudo resistindo e a tudo disposto a resistir,
[ilegível] embora, e com o desgaste de um ofício que nada fez, e nada pôde
fazer em defesa do nosso desgraçado povo.
/.../
Estude, pois, com toda a atenção a emenda e as minhas atribuições porque se
o avanço for além das possibilidades de resistência do país, ou ameaçar,
através da escolha de golpistas fantasiados de democratas, a legalidade que
sempre defendi, eles terão que pedir novamente as baionetas do Gen. Denys,
para completar o impedimento que só não concluíram em Agosto de 61
porque o povo brasileiro falou mais alto que o manifesto golpista lançado ao
país e do que o ―patriotismo‖ de muitos dos colegas representantes do povo
brasileiro, povo que eles hoje têm medo de ouvir, apesar de em seu nome
terem decidido.
Um abraço amigo do João Goulart.432

O impasse se mantém e Moura Andrade acaba por ver ―publicada a carta prévia de
renúncia que entregara ao presidente. A sua saída é forçada também por uma greve geral, a

427
Auro de Moura Andrade, senador.
428
Raul Pilla, deputado do Partido Libertador (PL), antigo defensor da instituição do parlamentarismo no Brasil.
429
General Cordeiro de Farias, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas no governo Jânio Quadros, atuou na
conspiração contra a posse de João Goulart.
430
Gabriel Grün Moss e Sylvio Heek, respectivamente, ministros da Aeronáutica e da Marinha do governo Jânio
Quadros que, juntamente com Odílio Denys, ministro da Guerra, compuseram a junta militar que vetou a posse
de João Goulart após a renúncia de Quadros.
431
Provavelmente, Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça do governo Jânio Quadros, envolvido num episódio
polêmico com Carlos Lacerda, segundo o qual Pedroso propusera a articulação de um golpe a favor de Quadros,
dias antes de sua efetiva renúncia.
432
Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua preocupação com relação ao regime
parlamentarista (documento manuscrito). Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jgoulart/documentos/janela.asp?Path=../documentos/Modulo6/&Img=ELS_carta
_&Pag=3&Tt=4&Htm=&Lgn1=Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua
preocupação com relação ao regime parlamentarista. [1961].&Lgn2=(CPDOC/FGV/arquivo Evandro Lins e
Silva ELS carta)>. Acesso em: 16 de dezembro de 2009.
146

primeira do Brasil [sic], de apoio ao presidente Goulart‖.433 Este episódio é assim explicado
pelo jornalista Flávio Tavares:
tanta foi a ansiedade de Auro ao ser convidado, que deixou com Jango uma
carta-renúncia, sem data, a ser usada no futuro, em caso de eventual fricção
insanável entre ambos e o Presidente decidiu divulgá-la muito antes do
previsto. Jango não tinha sido consultado sobre o ministério e, suspeitando
da lealdade do novo Primeiro-Ministro, resolveu antecipar o futuro e
difundir a ―renúncia‖ sem o avisar. Auro foi saber que havia ―renunciado‖
por um discurso do líder trabalhista na Câmara dos Deputados, Almino
Affonso.434

Com a ―renúncia‖ de Moura Andrade dois dias após a aprovação de seu nome, será
indicado e aprovado o nome de Francisco Brochado da Rocha, cujo gabinete dura somente
dois meses. Brochado da Rocha solicitara ao Congresso a delegação de poderes para que
pudesse legislar sobre temas como o monopólio da importação de petróleo e derivados e a
regulamentação do estatuto do trabalhador rural. A recusa do Legislativo a sua solicitação
teria levado à sua renúncia do cargo;435 sendo substituído por Hermes Lima na presidência do
Conselho de Ministros até o retorno ao presidencialismo.436
Com toda esta tensão, ameaça e efetivação de greves, além da grande dificuldade de
obtenção de um consenso entre o gabinete presidencial e o Congresso Nacional na escolha
dos Primeiros-Ministros, em setembro de 1962 − período em que Hermes Lima assume como
primeiro-ministro − o Legislativo acaba por aprovar o adiantamento do plebiscito que votaria
a volta do regime presidencialista para janeiro do ano seguinte.
Em meio à crise da renovação do gabinete ministerial, João Goulart será acusado de
―alimentar propósitos de quebrar a ordem democrática‖. Como nos mostra Aloysio Castelo de
Carvalho, um editorial do Jornal do Brasil afirmava que o presidente ―resolveu forçar a mão,
ameaçando provocar uma nova crise política se o Congresso não abrir quanto antes o caminho
para que ele volte a ser chefe de Estado em regime presidencial‖.437 Contra afirmações e

433
RIBEIRO, D. Confissões, p. 288.
434
TAVARES, Flávio. O dia em que Getulio matou Allende e outras novelas do poder. Rio de Janeiro: Record,
2004, p. 225.
435
BROCHADO DA ROCHA. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN,
Fernando (Coord.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/brochado_da_rocha> Acesso em: 13 jun.
2012.
436
Ver também: AFFONSO, Almino. Raízes do Golpe: da crise da legalidade ao parlamentarismo. São Paulo:
Marco Zero, 1988.
437
CARVALHO, Aloysio Castelo de. A rede da democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do
governo Goulart (1961-64). Niterói (RJ): Editora da UFF/ Nitpress, 2010, p. 88. O autor cita o editorial ―Os
termos da trégua‖ do Jornal do Brasil de 28 de julho de 1962.
147

acusações semelhantes, Jango, em discurso a generais do Exército, se defende nos seguintes


termos:
Ainda ontem, comentava eu com o Presidente do Conselho de Ministros,
com o nosso Ministro da Guerra e com o Chefe da Casa Militar da
Presidência ser com surpresa que recebia certas críticas e até mesmo
acusações de que o Governo estaria alimentando propósitos de quebrar a
ordem democrática.
Quero reafirmar, com a responsabilidade da posição que exerço e que me foi
confiada democraticamente pelo povo, que, quando defendo determinadas
teses e princípios, quando defendo, por exemplo, a participação do povo nas
grandes decisões do nosso país, quando discordo de que o povo fique alheio
às modificações estruturais do nosso regime político, quando defendo
reformas de estrutura, na ordem social e econômica, é exatamente, Senhores
Generais, para preservar e fortalecer a confiança do povo na democracia e,
conseqüentemente, nas instituições que livremente escolhemos.
/.../
Sinto-me, às vezes, perplexo diante de certas críticas e, mesmo, de certas
pressões, pois chegam até a acusar-me de desejar a quebra da legalidade,
dessa legalidade cuja defesa tem sido a característica principal de minha vida
e de minha luta. Verifico que algumas dessas críticas partem exatamente de
setores e de pessoas que se caracterizaram, no passado, por liderar grupos de
pressão e forças isoladas que pretendem golpear nossas instituições. Antigos
profissionais do golpe, defensores contumazes de regimes de exceção, hoje
acusam, com a mesma irresponsabilidade, o Governo e o Ministro da Guerra
de pretenderem golpear o regime democrático. Chegam ao absurdo tais
acusações. Elas partem de setores e homens públicos que se opõem à
realização daquelas reformas que todos desejamos, as reformas de estrutura
que alcançaremos dentro da lei e das tradições cristãs do País.
Jamais admitiremos — quero fazer esta afirmação categórica, nesta
oportunidade em que homenageio generais em visita ao Presidente da
República — qualquer quebra da ordem legal. Jamais, também, aceitaremos
qualquer regime contrário aos sentimentos e às aspirações do nosso povo. O
que desejo, quero deixar bem claro, é prosseguir na luta pelas reformas que
se destinam, acima de tudo, a atender aos justos anseios das classes
populares e a proporcionar melhor distribuição da riqueza em nosso país,
fazendo com que participem dos benefícios do enriquecimento nacional
todos os brasileiros e não apenas uma minoria privilegiada.438

Sendo assim, tanto em um documento de acesso restrito, como a carta a Evandro Lins
e Silva, quanto em um discurso público, como o proferido aos militares, fica explícita a
preocupação de João Goulart em manter a legalidade, sem, para tanto, abrir mão do seu
projeto reformista de desenvolvimento com progresso social. Além disso, em ambas as
manifestações, também aparece o incômodo de Goulart com a pressão exercida por grupos
que ele considera como ―golpistas fantasiados de democratas‖ ou ―antigos profissionais do

438
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 136-137. Grifos nossos. Discurso
proferido em 10 de agosto de 1962, no Palácio da Alvorada, Brasília, em almoço, por ocasião da visita de
apresentação de novos generais do Exército.
148

golpe‖, que, naquele momento, acusavam o presidente de pretender ―golpear o regime


democrático‖.
A vitória de Goulart com o adiantamento do plebiscito receberá desde críticas da
imprensa, negando qualquer identificação da opinião pública com as mobilizações pró-
plebiscito,439 até manifestações contrárias ao comparecimento dos eleitores às urnas. Como
resposta, João Goulart iniciará uma ―jornada cívica pelo plebiscito‖, defendendo uma
participação maciça dos eleitores na consulta popular.
Alguns, justamente os que sempre se colocam em posição antagônica aos
interesses do País, andam por aí afora a pregar em favor da abstenção.
Entendo, e comigo estão os homens de bem da Nação, que negar a
necessidade desse comparecimento, lutar por essa abstenção equivale a
lutar pela negação do próprio regime democrático representativo.
Não compreendemos por que qualquer cidadão, vivendo num país como o
nosso, em que são plenas as franquias democráticas, se sente no dever de
negar à democracia o direito sagrado de o povo exercitá-la livremente. Não
será demais dizer que somente através da vontade do povo é que se
constroem e se fortalecem os regimes. E também através dela que
poderemos consolidar em nossa pátria o regime de representação em que
vivemos e haveremos de viver pela vontade do Brasil.
Tenho certeza de que, a 6 de janeiro, São Paulo há de estar presente à
convocação cívica que lhe faz o País e que até mesmo aqueles que desejam
responsabilizar-me por atos administrativos, bem como os que desejam um
regime de unidade e de responsabilidade para poder criticar as autoridades
constituídas, estarão presentes às urnas.440

Segundo João Goulart, o plebiscito representaria ―uma nova afirmação da


democracia‖, portanto, ―pregar a abstenção‖ equivaleria a ―aconselhar um não à democracia‖.
Além disso, não se trataria de ―uma competição entre homens ou entre partidos, mas de um
ato cívico‖, em que o povo brasileiro manifestaria sua preferência pelo regime sob o qual
seria governado.441
Não venho aqui /.../ para pedir um voto a favor do sim ou a favor do não.
Venho, apenas, cumprir o dever de falar com franqueza ao povo brasileiro.
Quer se manifeste pelo sim ou pelo não, o povo deve comparecer para
reafirmar suas convicções democráticas e sua fé no regime representativo.
Aqueles que vêem fantasmas por toda a parte, os que acusam, às vezes,
ingenuamente, o Governo de tendências extremadas, esses, mais do que
quaisquer outros, têm a obrigação de pedir ao povo que reafirme sua
convicção democrática nas urnas. Uma democracia só se afirma pela vontade
do povo.442

439
CARVALHO, A. C. Op. cit., p. 88.
440
GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 238. Grifo nosso. Discurso
proferido em 9 de dezembro de 1962, na sede do Automóvel Clube de São José do Rio Preto (SP), ao iniciar a
jornada cívica pelo plebiscito de 6 de janeiro de 1963.
441
Ibidem, pp. 245-247.
442
Ibidem, pp. 256-257.
149

E, em sua mensagem de final de ano, o presidente Goulart reafirma que o ano de 1963,
com a realização do plebiscito, ―manifestação soberana do povo nas urnas‖, marcaria ―o fim
da crise institucional desencadeada pelos acontecimentos de agosto de 1961‖.443
A consulta popular é efetuada sem maiores transtornos em 6 de janeiro de 1963 e
restabelece o presidencialismo como regime de governo. Como destaca Jorge Ferreira,
A vitória de Goulart foi avassaladora: dos 11 milhões e quinhentos mil
eleitores, 9 milhões e quinhentos mil, ou cinco em cada seis, aprovaram o
retorno ao regime presidencialista.
Goulart assumiu seus poderes com aprovação maciça da população. O
plebiscito, na verdade, era a sua eleição para a presidência da República.444

Meses mais tarde, o presidente João Goulart relembrará sua trajetória desde a posse,
aceitando a emenda parlamentarista, até o plebiscito, como uma comprovação de que suas
ações mantinham como princípio a defesa das instituições democráticas:
Em 1961, recusamos o caminho da guerra civil iminente, aceitando até a
mutilação de um mandato que nos fora outorgado pela vontade do povo
brasileiro, em pleito livre e honesto. O essencial para nós era, entretanto,
garantir a devolução ao povo brasileiro, da fé nas instituições democráticas
ameaçadas e do seu inalienável direito de decidir as questões básicas que lhe
dizem respeito. Foi possível assim, evitar a guerra civil diante da qual não se
comovem as minorias golpistas que sempre tramaram contra as instituições
democráticas. Foi possível, assim, a presença do povo nas urnas do
―referendum‖. Os resultados das urnas demonstraram quem, efetivamente,
perturbava e agitava a vida do País: não era o povo, que exigia a restauração
do seu direito de decidir democraticamente e realizar a livre escolha do
presidente da República, mas, sim, pequenas minorias que as urnas
demonstraram estarem divorciadas dos verdadeiros anseios nacionais.445

A contínua preocupação de Goulart em expor sua defesa da chamada ―ordem


democrática‖ evidencia que o fim do parlamentarismo não significou o fim dos conflitos na
conjuntura política brasileira daquele período. Pelo contrário, a tensão se tornaria cada vez
mais aguda e as acusações de conspiração e intenções golpistas o acompanhariam até sua
deposição – esta sim resultado da concretização de um golpe.

3.2. Democracia e mobilização popular

Discurso emblemático deste período é o realizado por Jango na cidade paulista de


Marília. Premido pelas acusações de golpismo e, até mesmo, comunismo, o presidente,
segundo o jornal carioca Correio da Manhã, teria se definido como ―integralmente de centro,

443
Ibidem, p. 265.
444
FERREIRA, J. ―O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964‖. In: _____________; DELGADO, L. A.
N. Op. cit., p. 362.
445
―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963.
150

repudiando a esquerda comunista e anticristã e a direita reacionária‖. Jango afirma levar a


mensagem dos que ―desejam trabalhar pelo Brasil‖, permanecendo ―indiferente a setores
extremados‖ que tentavam ―criar crises artificiais‖ no país. E, defendendo-se de acusações de
pretender romper com a ordem constitucional, retoma sua trajetória e os eventos recentes,
afirmando:
ninguém tem mais autoridade para falar em respeito à Constituição do que
aquele que, sob pontas de baionetas, manteve a Constituição nesta Pátria.
Ninguém tem mais autoridade para falar em respeito à Constituição do que
um presidente que durante quase dois anos só lutou, só trabalhou, para que
não houvesse a ruptura do regime democrático. Sinto-me à vontade para
dizer a São Paulo e, acima de tudo, perguntar a São Paulo onde estavam
aqueles que hoje estão sendo tão sensíveis à Lei e à Constituição, aqueles
que hoje, no propósito exclusivo de agitar, lançam acusações ao governo
federal, eu pergunto: onde estavam eles em agosto de 61? Eu pergunto a São
Paulo: eles estavam na rua defendendo a Constituição, ou estavam nos
porões da conspiração, pretendendo rasgar a Carta Magna, pisotear as leis
votadas pelo povo, em respeito à vontade do povo brasileiro?
São Paulo, se não me faltou coragem naquela hora, se não me faltaram
paciência e resignação para manter a Constituição, não será agora, jamais
será agora que o Governo Federal não há de fazer com que se respeite as
nossas leis, a Constituição e, acima de tudo, a vontade do povo brasileiro.446

Goulart se esforça para deixar clara sua negativa à afirmação de que o governo estaria
―interessado em instalar uma República incompatível com os sentimentos cristãos e
democráticos‖ da população brasileira. E procura salientar que sua posição é de rechaço, tanto
ao comunismo, quanto à qualquer forma de subordinação externa:
Não aceitamos subordinação, parta de onde partir. Nenhuma República se
instalará nesta Pátria a não ser a República da nossa vontade, da vontade
livre do povo brasileiro. Repudiamos qualquer doutrina contrária aos nossos
sentimentos de povo católico. Esteja certo São Paulo de que não admitimos
esse tipo de exercício. Essas doutrinas não vingarão dentro do Brasil e muito
menos no seio daqueles que tem sobre os seus ombros, como eu, a
responsabilidade de dirigir os destinos deste País. Aqui não aceitamos o
extremismo comunista, como não aceitamos subordinação, parta de onde
partir. Não aceitamos essa subordinação porque queremos um Brasil e uma
democracia que pertençam a todos os brasileiros. Jamais permitirei que se
instale um regime comunista. Também devo dizer a São Paulo, de coração
aberto: eu jamais permitiria que se instalasse também, sob o pretexto de
combate aos extremismos, uma democracia apenas a favor das minorias
privilegiadas da nossa Pátria. A democracia que nós queremos é a
democracia para todos os brasileiros, para os que lutam e para os que
trabalham, e para os que acreditam nos destinos da nossa Pátria.447

446
―Não há mais lugar para agitadores no Brasil, diz Goulart em São Paulo‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
05 abr. 1963. Grifos nossos.
447
Idem. Grifos nossos.
151

Encerrando seu discurso, Jango assegura que a população poderia contar com a
―sobrevivência do regime democrático‖, ainda que para tanto fosse necessário o sacrifício do
próprio presidente: ―com os meus agradecimentos a certeza da minha amizade /.../. Mas, mais
do que a minha amizade, a certeza, /.../ de que pode contar, até com o meu sacrifício, com a
sobrevivência do regime democrático pela paz e tranquilidade da família brasileira‖.448
Serão constantes as declarações de Goulart nesse sentido. Em diversas ocasiões, ele
reafirmará sua postura em favor da ―ordem democrática‖, defendendo-se de acusações de
golpismo ou comunismo, além de apontar para seus acusadores a real intenção de quebra da
ordem legal. Além disso, por vezes, João Goulart relaciona seus acusadores com a oposição
ao seu projeto reformista, que ele identifica a uma ampliação da democracia, pois
proporcionaria uma maior participação da população na vida econômica e política do país.
Não obstante as reiteradas manifestações de Goulart em defesa da ―ordem
democrática‖, a imprensa conservadora, continuava a acusá-lo de não zelar pela democracia −
que estaria sendo ameaçada pela mobilização de ―multidões envenenadas‖ − como fez o
jornal O Globo:
Tudo indica que o Brasil caminha para um novo sistema de governo, uma
curiosa espécie de democracia direta, em que a vontade do povo já não mais
se exprime pela voz de seus representantes livremente eleitos, mas pelo
berreiro vociferante das multidões envenenadas e preparadas para as
pressões sobre o Congresso.
/.../
Os detentores do mandato popular são os únicos que podem falar e decidir
em nome do povo brasileiro. É o princípio da representação, pedra angular
da democracia. A vontade do povo se exprime pelas manifestações de seus
mandatários e não pela discurseira derramada dos comícios e dos
ajuntamentos de praça pública.
Essa é a verdade da vida democrática. Ao Poder Executivo cabe velar, para
que o Congresso possa deliberar no sereno exercício de sua soberania,
coibindo e punindo tentativas de tumultuar os seus trabalhos com arruaças de
multidões ululantes.449

Rebatendo críticas como esta, bem como as acusações feitas por Carlos Lacerda –
afirmando que as greves e mobilizações populares eram organizadas pelo Governo Federal –,
Jango alertava que seus opositores, ainda que falassem em nome da defesa da democracia, na
verdade pretendiam que o governo sufocasse ―os anseios populares pela força, pela violência
e pela pressão‖. E acrescentava:
Sabem eles [os opositores das reformas] que enquanto eu estiver à frente dos
destinos do país, jamais um agente federal irá sufocar pela violência os

448
Idem. Grifo nosso.
449
―Se não for detida a onda subversiva, pode o Congresso se reunir longe de Brasília e da pressão dos
agitadores‖. O Globo. Apud: CARVALHO, A. C. Op. cit., p. 85.
152

anseios legítimos de um operário ou de estudante. Eles se apresentam como


democratas, mas realizam suas ideias de opressão à frente dos Estados que
dirigem.450

Na mensagem de João Goulart em comemoração ao Dia da Independência, o


presidente responde de forma mais completa àquelas críticas e expõe a sua concepção de
democracia, em objeção à posição defendida por seus antagonistas – a quem considera
―partidários da estagnação‖, por não defenderem a efetivação das reformas:
Esses pequenos grupos, já definitivamente identificados como partidários da
estagnação, continuam a insistir, no entanto, nos mesmos propósitos
antinacionais e a oporem-se às manifestações populares que clamam por
substanciais mudanças na estrutura da sociedade brasileira. Consideram
pressões ilegítimas, as democráticas expressões de um clamor popular que
se ergue e se avoluma, reivindicando urgentes transformações sócio-
econômicas que asseguram pacificamente, a conquista de novas etapas do
nosso desenvolvimento.
Quem não tem motivos para temer o povo, não se amedronta quando este
comparece às praças para reivindicar o atendimento dos seus direitos e a
pacífica transformação da sociedade brasileira. Esse comparecimento há de
ser visto em verdade como expressão do diálogo necessário entre
governantes e governados.
Não podemos aceitar que em uma Nação democrática a opinião pública só
tenha meios de se expressar nos dias marcados dos prélios eleitorais, pois a
democracia exige, ao contrário, a realização viva cotidiana daquele
diálogo.
O perigo maior que ameaça uma nação em crise de crescimento está,
precisamente, em que os órgãos representativos do povo deixem de sê-lo,
determinando aberta contradição entre as instituições e a própria
sociedade. A consequência inevitável de situação semelhante será o
rompimento do equilíbrio em que repousam a convivência democrática e a
segurança do progresso econômico.
Para evitar a ocorrência desse divórcio é que urgem agora as reformas de
base tão indispensáveis e tão urgentes ao desenvolvimento do nosso país.451

Sendo assim, ficava clara a divergência de posições entre Jango e seus opositores no
que se refere às mobilizações populares. Enquanto Goulart as considerava como ―a realização
cotidiana‖ do ―diálogo necessário entre governantes e governados‖, a oposição as tratava
como uma ameaça à prerrogativa exclusiva do poder legislativo de exercer o direito soberano
de decisão, através dos representantes eleitos. Sem considerar o fato de que, os
―representantes‖, enquanto tais, deveriam agir em consonância com os interesses da
população, o discurso oposicionista ressaltava apenas que a manifestação da vontade popular
tinha o seu momento nos períodos eleitorais; e que caberia ao governo coibir as ―arruaças de
multidões‖ que tentavam tumultuar os trabalhos do Congresso. Além disso, pairava sobre

450
―Goulart fala contra os anti-reformistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1963. A parte final do
trecho citado constitui uma clara referência à Lacerda.
451
―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. Grifos nosso.
153

João Goulart a suspeita de ―organizar‖ as manifestações populares, de forma manipulatória –


uma vez que manifestações em favor das reformas eram identificadas como manifestações de
apoio ao próprio Goulart.
Esse clima de suspeitas continuará e se intensificará até o momento do golpe,
ganhando ainda mais corpo quando, além das mobilizações sindicais e populares, ocorrerem
as rebeliões dos sargentos e marinheiros – ocasiões em que o presidente também será acusado
de permitir a quebra da hierarquia militar.
A primeira insurreição dos sargentos ocorreu em Brasília, em setembro de 1963,
iniciada como um ―protesto armado‖ contra a decisão do Superior Tribunal Federal em julgar
inelegíveis os sargentos eleitos em 1962 e suspender seus mandatos. O protesto se desdobrou
em uma tentativa de desencadear uma insurreição nacional. Apesar de conseguir tomar pontos
vitais da capital federal, invadir o Congresso Nacional e tomar o Superior Tribunal Federal, a
rebelião dos sargentos foi rapidamente reprimida,452 resultando em dois mortos (um civil e um
sargento) e alguns feridos.453
Segundo Jorge Ferreira, ―o movimento enfraqueceu politicamente o governo,
desgastando-o profundamente‖, e deixando inconformado o presidente João Goulart.
Logo após a prisão de todos os rebelados, ele convocou Batista de Paula, na
época jornalista especializado na vida militar, ao Palácio da Alvorada.
Visivelmente contrariado, queria saber as razões para a revolta, já que ele
sempre fora um defensor das conquistas sociais e políticas dos sargentos.
―Confesso, tchê, que não entendi o objetivo dessa reação. Por que a
manifestação não foi contra a Justiça Eleitoral, que votou contra a eleição
dos sargentos?‖, lamentou-se. 454

Publicamente, Goulart afirmou que o governo seria ―inflexível na manutenção da


ordem e na preservação das instituições, respeitando e fazendo respeitar as decisões dos
poderes da República‖.
Nesse propósito, [o governo] não tolera a indisciplina ou a insubordinação,
venham de onde vierem e qualquer que seja o pretexto em que se inspirem.
Somente em um clima de segurança e normalidade democrática pode o povo
brasileiro concretizar as reformas estruturais que correspondam às suas
aspirações de progresso e justiça social.455

452
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 360-362.
453
―Revolta esmagada: Ministros militares exigem do Presidente punição rigorosa‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 13 set. 1963.
454
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 363-364.
455
―JG afirma que será inflexível‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 set. 1963.
154

A instabilidade gerada pela ocorrência da revolta dos sargentos 456 se avolumará por
ocasião do pedido de estado de sítio, enviado pelo governo ao Congresso Nacional, em
outubro. As acusações de fraqueza cederão lugar às desconfianças sobre o comprometimento
do presidente com a garantia das liberdades públicas. E com um elemento novo: dessa vez a
desconfiança não partiria apenas da direita.

3.3. Pedido de decretação de estado de sítio

Entre os meses de setembro e outubro de 1963, eclodiam pelo país greves de


diferentes categorias – bancários, portuários, gráficos, entre outros. Organizações sindicais,
como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), lançavam manifestos em defesa dos
sargentos rebelados, entrando em controvérsia com as autoridades militares que exigiam
punição rigorosa aos insurgentes. Todo o clima de mobilização gerava apreensões em alguns
setores das Forças Armadas, fazendo com que os ministros militares passassem a cogitar a
solicitação do decreto de estado de sítio no país.457 Contudo, o governo procurava amenizar a
tensão, negando a iminência do decreto.458
A situação se complicou ainda mais com a publicação, em 1º de outubro, de uma
entrevista concedida por Carlos Lacerda ao correspondente no Brasil dos Los Angeles Times.
Nela, o governador da Guanabara critica a ―agitação trabalhista‖ e a ação de comunistas no
CGT, trata Goulart como ―totalitário à moda sul-americana‖ e afirma que os governantes
―pretendiam paralisar o país, cortar as alianças com o mundo livre, parar os transportes,
tornando o trabalho difícil, irritar os trabalhadores e degenerar a economia‖. Além de todos
esses impropérios, Lacerda ainda chama os Estados Unidos a intervirem no Brasil e afirma
que os militares brasileiros estariam debatendo a possível deposição de Jango.
Os Estados Unidos, assim, deveriam ter um papel decisivo naquele
momento: ―Há uma atitude que os Estados Unidos poderão tomar em relação
à crise aqui‖. O Departamento de Estado, depois de tantos anos, deveria
mudar sua atitude e procurar saber ―quem é que está governando o Brasil‖.
Para Lacerda, ―não interferir é uma coisa, mas outra é ignorar o que está se
passando‖. A situação do país era tão grave que os militares ainda não
tinham intervindo no processo político para evitar uma confusão ainda
maior, o que ―só depõe a favor deles‖. Contudo, alegou, tinha informações

456
De acordo com Moniz Bandeira ―É possível que provocadores, infiltrados (como de fato havia) entre os
sargentos, tivessem encorajado a sedição, para abortá-la e polarizar a oficialidade contra o governo. Alguns
sargentos, que participaram da rebelião, revelar-se-iam, depois da queda de Goulart, agentes dos serviços
secretos das Forças Armadas‖. Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no
Brasil, 1961-1964, pp. 124-125.
457
Cf. ―Ministros militares exigem estado de sítio‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 set. 1963.
458
Cf. ―Governo abranda tensão negando estado de sítio iminente‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 set.
1963.
155

seguras de que os militares debatiam se, com relação a Goulart, ―era melhor
tutelá-lo, patrociná-lo, pô-lo sob controle até o fim de seu mandato ou alijá-
lo imediatamente‖.459

Os ministros militares Jair Dantas Ribeiro (Guerra), Silvio Borges de Souza Mota
(Marinha) e Anísio Botelho (Aeronáutica), considerando a entrevista ofensiva e injuriosa às
Forças Armadas e ao país, divulgaram nota em que afirmam que as declarações de Lacerda
integravam uma ―vastíssima campanha de agitação‖, conduzida ―para levar o país à
desorientação e à desordem, inclusive com ameaças de lock out, com a paralisação de setores
da vida econômica do país, /.../ que o Governo já vem denunciando à opinião pública‖. 460 A
nota também aludia a provocações feitas pelo governador de São Paulo, Adhemar de Barros.
O próprio presidente João Goulart também se pronunciou, dizendo:
Falsos defensores da ordem e agitadores ostensivos e agentes dessimilados
[sic] de interesses antinacionais, a pretexto de reclamarem a afirmação e o
exercício da autoridade, por parte dos poderes constituídos da República,
conspiram contra a própria Nação, no que ela tem de mais sagrado: a sua
integridade, a sua emancipação, a paz interna, o direito mesmo de comandar
seu destino.
A Nação exige que se ponha termo a esta permanente e intolerável
provocação contra a nossa organização democrática, que tem compromissos
inarredáveis com o bem-estar do povo e com as justas aspirações do
progresso social.461

Além da divulgação da nota, os ministros, então, pediram ao presidente a decretação


do estado de sítio, com o intuito de prender Lacerda e julgá-lo pelas suas declarações. Diante
disso, Goulart se reúne com o ministério e decide enviar o pedido de estado de sítio ao
Congresso, pedindo a Abelardo Jurema, ministro da Justiça, que preparasse uma exposição de
motivos para o estado de sítio.
O ministro concordou com o envio do pedido ao Congresso. Contudo,
alegou que o decreto somente seria aceito como um fato consumado. /.../
Darcy Ribeiro, que redigiu o texto, foi da mesma opinião, declarando que
―estado de sítio não se pede. Se toma‖. Por fim, pesou a decisão do
presidente. Pouco tempo depois, o pedido de estado de sítio chegaria ao
Congresso.462

A mensagem enviada ao Congresso pelo presidente acompanhava ofícios dos


ministros da Justiça e militares, descrevendo a situação que, para eles, justificaria a
necessidade do estado de sítio. Os ofícios destacavam uma série de circunstâncias variadas,

459
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 365.
460
―Ministros militares condenam Lacerda por ofensas ao País‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 out. 1963.
461
―Pronunciamento de Goulart sobre a situação política nacional‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 03 out.
1963. A reportagem transcreve pronunciamento de Jango feito através de uma cadeia de rádio e televisão, na
noite de 02 de outubro de 1963.
462
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 366-367.
156

consideradas como ―gravíssimos acontecimentos‖ que ―inquietavam a vida nacional‖,


―ameaçando romper-lhe a paz em perspectiva de iminente comoção intestina‖. Tais
circunstâncias incluíam: 1) ―manifestações coletiva de indisciplina‖ por parte de graduados,
soldados, cabos, marinheiros e policiais militares em alguns estados do país; 2) os impasses
gerados pela intransigência das partes em dissídio nas diversas negociações salariais, que
estariam servindo ―de pretexto para as forças da reação conspirarem contra a legalidade
democrática‖; 3) a conspiração de ―maus brasileiros, até mesmo investidos das
responsabilidades de governantes de Estado‖, contra o governo, explorando ―o respeito que
consagra aos princípio democráticos e à ordem legal, como se fora demonstração de excessiva
tolerância do governo federal na preservação da estabilidade político-social‖; e 4) a existência
de ―minorias inconformadas, dominadas por excessiva radicalização político-ideológica‖
pregando a ―violência como solução de problemas que afligem o povo brasileiro‖.463 Diante
deste panorama, os ministros solicitavam a declaração do estado de sítio, pelo prazo de 30
dias, para que a situação fosse controlada, impedindo a quebra da legalidade. João Goulart
repassou a solicitação ao Congresso.
A repercussão do pedido de sítio foi desastrosa para Goulart. Dirigentes sindicais,
inclusive do CGT, recearam que a medida acabasse permitindo a repressão às greves e às
mobilizações populares; o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, temeu uma
intervenção em seu estado; a Associação Comercial de São Paulo comparou a iniciativa do
presidente à implementação da ditadura varguista do Estado-Novo; estudantes, intelectuais e a
grande imprensa também negaram apoio à medida.464 O pedido não encontrou apoio nem
mesmo entre as bases partidárias do governo. Sendo assim, a solicitação do estado de sítio
―chegou ao Congresso na crista de uma onda de repulsa, agitada por todas as correntes
políticas, tanto de esquerda como de direita‖.465
Ao perceber a rejeição generalizada ao pedido, no dia 07 de outubro, o presidente
retira a mensagem do Congresso. Logo depois, João Goulart procurou esclarecer sua posição
em retroceder, declarando que ―a medida de exceção, pleiteada para defender o regime e os
interesses populares‖, teria sido ―desvirtuada por uma mobilização da opinião pública, em que
grupos das extremas procuravam fazer crer que o estado de sítio seria um instrumento de
opressão‖. Goulart reitera que, ―pela sua formação democrática e pelas suas vinculações à luta
dos trabalhadores‖, jamais utilizaria tal instrumento; e prosseguiu:

463
―Mensagens do Presidente e de Ministros pedindo sítio‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 out. 1963.
464
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 367.
465
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, 2001, p. 132.
157

Portanto, a medida que pedimos era pra tudo, menos para sufocar o povo.
Era para tudo, menos para oprimir e para fuzilar o povo nas ruas. Era
necessária para ficarmos em melhores condições para defender o Brasil
contra maus brasileiros e contra os interesses internacionais, mas nunca para
sufocar as liberdades democráticas ou para transformá-lo num instrumento
de suplício do povo brasileiro.466

O presidente justifica a retirada do pedido, afirmando que ―quem recua para ficar com
o povo, não se humilha, se engrandece‖.467 Além disso, o ministro da Guerra, Jair Dantas
Ribeiro, declarara que, a simples divulgação do pedido de estado de sítio teria provocado o
abrandamento da tensão que envolvia o país; a iniciativa da medida acabara, assim, esvaziada,
―perdendo sua oportunidade depois que a Câmara deixou passar 48 horas para então decidir
sobre o assunto‖.468
Apesar das justificativas de Goulart e de seus ministros militares, o episódio tornou
patente a desconfiança que pairava sobre o presidente – e, desta vez, não somente por parte de
seus opositores, mas também por parte de setores que compunham sua base de apoio.
Segundo Moniz Bandeira, toda essa desconfiança não correspondia à realidade das intenções
de Jango; uma vez que Goulart não pretendia desfechar um golpe, mas
Apenas se inclinara, em face da evolução da crise, a tomar uma atitude de
força, sem transpor o espaço constitucional, embora considerasse que suas
balizas tolhiam a ação e inibiam a agilidade do governo, não só para a
adoção de medidas de defesa como para a realização das reformas de base.
Goulart sabia que, se mantivesse o mesmo comportamento dos meses
anteriores, o assédio da oposição cresceria, e ele não teria condições de
permanecer no poder.469

Contudo, a derrota em decretar o estado de sítio pelas vias legais e a negativa de


Goulart em tomar qualquer atitude de força sem a aprovação do Congresso, forçou-o a
―continuar convivendo com o governador de São Paulo, que o desafiava abertamente,
declarando que dispunha de 60 mil homens armados para enfrentar seu governo, bem como
Lacerda que, via de regra, utilizava a televisão para insultá-lo‖.470
João Goulart teria se queixado a Abelardo Jurema da ―incompreensão e da injustiça
que sofrera das esquerdas e do PSD com a falta de apoio ao pedido de estado de sítio. Em sua
avaliação, fora uma burrice de seus amigos e companheiros negar-lhe o apoio naquela hora

466
―Presidente anuncia esforço redobrado pelas reformas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 out. 1963.
467
Idem.
468
―Amaral não foi à reunião do Ministério porque sua missão já está concluída‖. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 09 out. 1963.
469
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 130-131.
Grifo nosso.
470
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 370.
158

difícil‖.471 Seja por ―burrice‖ dos que negaram apoio à medida, seja por um enorme erro de
cálculo do presidente ao solicitar o estado de sítio, a verdade é que o episódio enfraqueceu
muito o governo de Goulart, provocando um desgaste considerável na sua relação com os
setores de esquerda – principal base de apoio do governo.

3.4. Últimos meses do governo Goulart

Se é verdade, como dissemos na introdução deste trabalho, que são poucos os estudos
voltados à análise do governo João Goulart, também é verdade que existe uma grande
variedade de publicações que têm como foco os acontecimentos e possíveis motivações para o
golpe de abril de 1964 – compõem esse conjunto pesquisas de historiadores, análises
políticas, até relatos de cunho jornalísticos ou biográficos, referentes a Goulart ou a figuras
ligadas à vida política daquele momento. Contudo, não é nosso intuito abordar, aqui, esta
vasta gama de informações e interpretações sobre os últimos meses do governo Jango; mas
sim, em consonância com o eixo deste trabalho, explicitar a posição do presidente Goulart
naquela conjuntura. Aludiremos, assim, apenas a alguns fatos relevantes para a compreensão
do discurso e do posicionamento de Jango, bem como problematizaremos algumas das
análises que abordam justamente a postura de Goulart naquele momento.
O período entre os anos de 1963 e 1964 é apontado por vários autores como um
momento de radicalização crescente no panorama político brasileiro. Por parte das ações da
direita, além da oposição política que Goulart enfrentava no Congresso e na relação com
alguns governadores de estado, intensificou-se na imprensa uma forte campanha contra seu
governo com a criação da Rede da Democracia. Idealizada por João Calmon, (deputado
pessedista e vice-presidente dos Diários Associados, de Assis Chateubriand), a Rede da
Democracia, criada no Rio de Janeiro, em outubro de 1963, envolvia não apenas jornais, mas
também emissoras de rádio.
a Rede da Democracia era um programa radiofônico comandado pelas
rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e
repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os
pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente
publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e, sobretudo,
O Jornal.472

Com programas diários, a rede articulava as emissoras e jornais do Rio de Janeiro com
partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente a UDN, o Instituto de Pesquisas e

471
Ibidem, p. 371.
472
CARVALHO, A. C. de. Op. cit., p. 15.
159

Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) – os dois


últimos em ação desde 1962 na organização da oposição e desestabilização do governo,
inclusive através do financiamento de campanhas dos opositores políticos de Goulart.473 De
acordo com Aloysio Castelo de Carvalho, os programas, de tom fortemente anticomunista,
criticavam ―as concepções nacionalistas e reformistas, bem como as decisões do governo
Goulart‖, além de reagir ―às forças que incentivavam a maior participação popular na vida
política‖.474
No lançamento da Rede da Democracia, Nascimento Brito, diretor do Jornal do
Brasil, afirmava que ―vozes verdadeiramente antinacionais‖, guiadas por interesses
estrangeiros, estariam travando o progresso do país com o único interesse de criar
dificuldades suficientes para que os brasileiros passassem a desacreditar no regime
democrático.475 Assim, ainda que não citasse nomes, acusava o governo federal de
comunismo e atribuía os problemas de desenvolvimento enfrentados pelo país a uma
estratégia governamental deliberada de enfraquecimento da democracia.
Já João Calmon, citando o uso do rádio para as mensagens de Jango a favor do
plebiscito e das reformas, assim com para as mensagens de Brizola durante a ―cadeia da
legalidade‖, na crise de agosto de 1961, perguntava:
Por que haveria de continuar o rádio, no plano político, a ser manejado em
cadeia apenas por inimigos mortais da democracia? /.../ Chegou a hora de
dizer: Basta! Nossa Rede da Democracia, aqui está para impedir que, nos
céus do Brasil, continue o monólogo liberticida e subversivo.476

Dessa forma, as acusações de que Goulart era subversivo e antidemocrático passaram


a ter sua divulgação ampliada.
Por outro lado, setores de esquerda também demonstravam forte descontentamento
com a atuação de Goulart, exigindo uma política de confronto com a direita. Brizola foi a
maior expressão dessa corrente, aglutinando na Frente de Mobilização Popular (FMP)
os estudantes, por meio da UNE; os operários urbanos, com o Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT); a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Indústria (CNTI); o Pacto de Unidade e Ação (PUA) e a
Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito

473
A composição e a atuação desses órgãos foi largamente documentada no trabalho de René Dreifuss:
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis (RJ):
Vozes, 1981.
474
CARVALHO, A. C. de. Op. cit., p. 16. Vale lembrar que apesar das acusações feitas pela Rede da
Democracia ao governo Jango, sua criação foi saudada pelo deputado Tancredo Neves, que fazia parte da
coligação PSD-PTB. Para Tancredo o programa seria ―um verdadeiro instrumento de esclarecimento da
consciência brasileira‖. Ver: MORAES, D. Op. cit., p. 147.
475
―Uso da liberdade‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963.
476
―Fim do monólogo‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963. Grifo nosso.
160

(CONTEC); os subalternos das Forças Armadas, como sargentos,


marinheiros e fuzileiros navais com suas associações; facções das Ligas
Camponesas; grupos de esquerda revolucionária como a Ação Popular (AP),
o Partido Operário Revolucionário (trotskista) (POR-T) e segmentos de
extrema-esquerda do PCB; políticos do Grupo Compacto do PTB e da Frente
Parlamentar Nacionalista; militantes nacional-revolucionários que, dentro do
PTB, seguiam a liderança de Leonel Brizola; por fim, setores mais à
esquerda do Partido Socialista Brasileiro e o grupo político de Miguel
Arraes.477

Falando através do jornal Panfleto, Brizola acusava o presidente João Goulart de não
exercer o poder e de ter se afastado das ―aspirações populares‖ em nome de uma ―política de
conciliação com minorias e grupos conservadores‖. Embora afirmasse que ainda era cedo para
avaliar os rumos que Goulart e seu governo tomariam, Brizola afirmava ser quase certo que:
―o desgaste, a frustração, as perplexidades, as vacilações, a indefinição, a inoperância, o
enfraquecimento enfim, os levem a facilitar e talvez negociar a entrega do governo àquelas
minorias, e, com isto, a elas passe a hegemonia do poder‖.478
Tal afirmação de Brizola parte de seu posicionamento absolutamente contrário à
postura conciliadora assumida por João Goulart. Enquanto as organizações e os movimentos
políticos agrupados na Frente de Mobilização Popular estavam entre os grupos de esquerda
que consideravam as palavras ―conciliar, acovardar e trair‖ como ―expressões sinônimas‖,479
Goulart entendia conciliação como a obtenção de ―bases mínimas de entendimento e de
cooperação, de modo a dar-se a arregimentação de todos quantos estejam dispostos a
combater na mesma trincheira‖. Para ele,
A conciliação não é um fim em si. É instrumento válido de ação política, na
medida em que se preservam a firmeza de propósitos e o ânimo da luta, para
que se alcancem objetivos que a Nação se decidiu a conquistar, em defesa da
Independência, que hoje se comemora, tanto quanto do seu direito de
progredir e emancipar-se economicamente.480

Sendo assim, Goulart via-se atacado tanto pela direita como por setores da esquerda;
tendo sua base de apoio, cujo respaldo seria fundamental na luta pela efetivação de reformas,
ameaçada de desintegração. Contudo, em face deste cenário político de radicalização, é
importante ressaltar que o posicionamento de João Goulart não sofreu alterações
consideráveis, muito menos ―guinadas‖ drásticas. Apesar de implementar, nesse período, uma

477
FERREIRA, J. Brizola em Panfleto: as ideias de Leonel Brizola nos últimos dias do governo João Goulart. In:
Projeto História, revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo n. 36. jun. 2008, p. 104.
478
Ibidem, pp. 108-109. Grifo nosso.
479
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A.
N. Op. cit., p. 376.
480
―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. Grifos nosso.
161

série de medidas populares,481 estas medidas eram totalmente compatíveis com o projeto
trabalhista e nacionalista que defendia desde o início de sua carreira política. Além disso,
Goulart procurou manter sua postura de tentar superar divergências em torno de um programa
reformista comum, incumbindo San Tiago Dantas de articular, entre os diferentes grupos
políticos, uma Frente Ampla, ou Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base, com o
objetivo de aprovar reformas e fortalecer politicamente o governo.
No entanto, a união das esquerdas mostrou-se impossível:
O Partido Comunista, embora inicialmente apoiasse a Frente Progressista,
mais adiante a abandonou. O grupo de sindicalistas comunistas não aceitava
qualquer moderação em termos políticos. O PSD, alegaram, deveria ser
excluído da Frente /.../. Brizola e a Frente de Mobilização Popular, além de
igualmente repudiarem alianças com os pessedistas, também não
acreditavam em mudanças que dependessem de aprovação do Congresso.
/.../ O PTB, sobretudo a ala radical, bem como o conjunto das esquerdas,
apostava na política do confronto. O PSD, temeroso com a mobilização de
operários e camponeses, aproximava-se cada vez mais da UDN. Todas as
iniciativas de Goulart para reaproximá-los politicamente, buscando manter a
coligação que sustentou o regime democrático desde 1945, mostraram-se
infrutíferas.482

Em seus discursos, Goulart também apresentou uma continuidade em sua posição.


Seguiu alertando sobre a urgência na aprovação das reformas como pressuposto para o
desenvolvimento econômico, o progresso social e, consequentemente, a tranquilidade da
―ordem democrática‖; defendendo as medidas de caráter nacionalista, que permitissem ao país
um maior controle sobre sua economia, sem romper com o investimento estrangeiro; e
reafirmando seus ―princípios democráticos‖, ao mesmo tempo em que apontava para seus
acusadores os reais interesses golpistas.
Mesmo em seu discurso de 13 de março de 1964, no marcante comício da Central do
Brasil – muitas vezes apontado como expressão de uma ―guinada para a esquerda‖ do

481
As medidas implementadas por Goulart entre fins de 1963 e início de 1964 são assim destacadas por Jorge
Ferreira: ―estendeu benefícios da Previdência Social aos trabalhadores rurais; determinou a obrigatoriedade de
que as empresas, com mais de 100 empregados, oferecessem o ensino elementar gratuito aos funcionários;
enviou mensagem a Congresso concedendo o 13º salário ao funcionalismo público, além de instituir a escala
móvel de seus vencimentos. E mais: determinou a revisão das concessões de exploração das jazidas minerais e
cancelou aquelas que não foram exploradas, contrariando assim, os interesses da São João Del Rei Mining Co.
de propriedade da Hanna Co. /.../ em 24 de dezembro, véspera de Natal, assinou uma medida que fazia parte das
reivindicações das esquerdas, decretando o monopólio da Petrobrás na importação de petróleo e derivados. O
decreto impedia sangria considerável de divisas, o que contrariou poderosos investidores norte-americanos. Em
17 de janeiro, assinou uma outra medida igualmente reclamada pelas esquerdas: a regulamentação da Lei da
Remessa de Lucros para o Exterior. Rumores havia de que outro decreto, estabelecendo o monopólio do câmbio,
seria assinado em breve, apavorando o empresariado‖. In: FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-
militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A. N. Op. cit., pp. 376-377.
482
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A.
N. Op. cit., pp. 378-380.
162

presidente Jango –, Goulart não aponta para uma ruptura. Os momentos mais incisivos de sua
fala fazem parte de sua defesa de uma democracia que dialogasse com as mobilizações
populares:
Proclamar que esta concentração seria um ato atentatório do Governo ao
regime democrático é como se no Brasil ainda fosse possível governar sem o
povo. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por esses
democratas. Para eles, trabalhadores, a democracia não é regime de liberdade
de reunião com o povo, mas a de um povo emudecido e abafado nas suas
reivindicações.
A democracia, trabalhadores, que eles desejam impingir-nos, é a democracia
de antipovo, da anti-reforma, do anti-sindicato, aquela que favorece os
interesses dos grupos que representam. A democracia que eles pretendem é a
dos privilégios, da intolerância, do ódio, para liquidar com a Petrobras. A
democracia dos monopólios nacionais e internacionais, a democracia que
levou Getúlio Vargas ao extremo sacrifício.
/.../
A ameaça à democracia não é vir ao encontro do povo na rua, é enganar o
povo brasileiro, é explorar seus sentimentos cristãos na mistificação de
anticomunismos, insurgindo o povo até contra as mais expressivas figuras do
quadro nacional, dos grandes pronunciamentos do Santo Papa.483

No mais, além de anunciar os decretos da SUPRA, dos aluguéis e da encampação das


refinarias (todos dentro da ordem legal e coerente com as propostas já defendidas por Jango
desde o início de seu governo), Goulart faz as já conhecidas argumentações em favor das
reformas, em especial à reforma agrária, colocando como seu dever transmitir ―em nome do
povo brasileiro‖, seu ―caloroso apoio ao Congresso Nacional‖, para que este fosse ―ao
encontro das reivindicações populares‖; para que ―seu patriotismo‖ atendesse ―aos anseios da
Nação‖, cuja vontade era de ―dias mais pacíficos‖.484 Dessa forma, embora coloque sobre o
Congresso a responsabilidade de aprovar as emendas constitucionais necessárias à execução
das reformas, Goulart não se expressa em tom de ameaça.
É verdade que, dentro daquele contexto de radicalização entre direita e esquerda, a
iniciativa de anunciar decretos em um comício com grande manifestação popular e no qual,
além do presidente, governadores e deputados favoráveis às reformas, também discursaram
representantes de organizações sociais e estudantis, foi encarada como uma ―opção‖ de
Goulart pelo confronto. Mas, a realidade é que, naquele momento, o presidente não dispunha
de um leque de opções: somente os setores de esquerda ainda se dispunham a defender o

483
GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., pp.
37-38. A parte final da citação faz referência a fatos como os assinalados por Jorge Ferreira: ―No dia 12 de
março, véspera do comício, na Praça Sete, centro de Belo Horizonte, partidários do IBAD conclamavam as
pessoas a assinar um documento ofensivo contra o arcebispo Dom João Resende da Costa, outro contra a Ação
Católica e outro ainda contra o clero progressista, repudiando o apoio que eles deram às reformas de base‖. In:
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p.416.
484
GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., p. 43.
163

projeto reformista de Jango. Como assinala Jorge Ferreira, naquela conjuntura de


radicalização política e de crise econômica – agravada pela decisão dos Estados Unidos em
―continuar a apertar o torniquete financeiro sobre o país‖ −, as alternativas de Goulart eram
restritas:
Uma opção seria a de nada fazer até o final de seu governo, deixando o país
afundar no total descontrole monetário e financeiro, desmoralizando o
projeto reformista e a si mesmo; uma outra implicaria em aliar-se ao PSD e à
UDN, aceitar as condições do FMI e implementar uma política conservadora
à custa de repressão ao movimento operário e do rebaixamento dos salários
dos trabalhadores; uma terceira incluiria apoiar incondicionalmente a Frente
Progressista de San Tiago Dantas, subordinando-se aos limites impostos às
reformas pelo PSD e afastando-se, definitivamente, dos grupos mais a
esquerda de seu próprio partido; por fim, aliar-se às esquerdas, acreditar nas
forças que elas diziam dispor e, embora contrariando seu estilo, partir para a
radicalização e o embate. Essa última foi sua opção. Aderiu, desse modo, à
Frente Única de Esquerda, abortando a Frente Progressista proposta por San
Tiago Dantas.485

Complementando a análise de Ferreira, vale, no entanto, destacar que a terceira opção,


a de apoiar incondicionalmente a Frente Progressista de Dantas, não se mostrou viável – como
apontamos acima, com citação ao próprio Jorge Ferreira – devido a não adesão da esquerda e
da crescente aproximação do PSD à UDN. Além disso, a subordinação do projeto reformista
aos limites impostos pelo PSD implicaria o esvaziamento de seu conteúdo de reforma
estrutural e, portanto, não atingiria os fins necessários.
Dessa forma, a aproximação de Goulart com as esquerdas para a realização do comício
não tinha o objetivo de uma ―guinada à esquerda‖, mas foi a saída encontrada por Jango para
obter força política na tentativa de encaminhar as reformas. Os movimentos de esquerda e,
sobretudo, a mobilização popular eram os únicos que ainda reivindicavam a urgência na
execução das reformas de base. Por isso, apesar de toda a efervescência em torno do comício
– inclusive com Brizola defendendo a chamada de um plebiscito para decidir sobre a
convocação de uma Assembléia Constituinte, uma vez que os poderes da república ―não
decidiam‖ –, o discurso de João Goulart não revelou nenhuma contradição com o que vinha
defendendo desde o início de seu mandato, nem qualquer tendência a um rompimento com a
ordem legal estabelecida.
Ainda sobre o comício da Central do Brasil, é interessante apontar o resultado de uma
pesquisa encomendada por Carlos Lacerda sobre a posição política das cerca de 200 mil
pessoas que compareceram ao evento:

485
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A.
N. Op. cit., p. 376 e p. 381.
164

Utilizando as modernas técnicas de pesquisa de opinião, ele infiltrou na


multidão uma grande e experiente equipe de pesquisadores profissionais,
utilizando a metodologia do flagrante. O resultado estarreceu os próprios
patrocinadores da pesquisa. Ali não estavam, como se supunha, uma maioria
de janguistas e comunistas atando como claque. Esses, na verdade,
compunham apenas 5% do público. O restante, os 95%, demonstrava um
pensamento legalista, reformista e portador de um alto grau de politização:
queria eleições presidenciais em 1965, bem como as reformas de base, mas
não admitia o fechamento do Congresso nem a reeleição de Goulart.486

Deste modo, assim como Goulart, a maioria das pessoas presentes no comício também
manifestava uma posição legalista. Contudo, o comício será taxado pelos opositores de João
Goulart como ―parte de um plano nacional de agitação em marcha‖, como disse o governador
de São Paulo, Adhemar de Barros;487 uma ―pregação escandalosa da revolução‖, nas palavras
do deputado udenista Pedro Aleixo (líder da oposição na Câmara);488 ou ainda como uma
―humilhação à democracia‖, em que ―dois políticos inelegíveis‖ se destinavam a ―atirar o
povo contra a Constituição‖ e a ―compor um movimento de frente única contra a sucessão
normal‖, segundo editorial do Jornal do Brasil. 489
Aliás, as acusações de golpismo e continuísmo, que já vinham ocorrendo – e
procuravam se justificar pelo fato de o presidente apontar para a necessidade de uma reforma
constitucional −, foram intensificadas após o evento na Central do Brasil; fazendo com que
Jango se defendesse nos seguintes termos: ―Enganam-se redondamente os que estão falando
em golpismo, em continuísmo e personalismo. Se alguém neste País não aceitará nunca ser
ditador, sou eu‖.490 A postura de Jango é confirmada pelos testemunhos de Abelardo Jurema
– para quem Goulart teria confidenciado não saber como Juscelino Kubitschek ainda teria
vontade de voltar à presidência491 – e de Darcy Ribeiro, que diz:
Muitos diziam e dizem que Jango queria dar o golpe do continuísmo para
permanecer na Presidência. Outros diziam e dizem que ele era
candidatíssimo à reeleição. Meu testemunho é que nunca percebi nenhum
desses pendores nele. Seu dispositivo militar, tratado aliás muito
displicentemente, não prestava para um golpe. Os militares que poderiam
conduzir a isso, como Kruel, eram vistos com suspeita por Jango. O que ele
tinha como paixão política era criar um PTB invencível, capaz de impor,
pela democracia e pelo voto, as grandes reformas que o Brasil exige.492

486
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p.421.
487
―Ademar vê plano de agitação com o comício e compra novo travesseiro para dormir bem‖. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.
488
―Pedro Aleixo acusa Goulart de endossar a subversão‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mar. 1964.
489
―Os inelegíveis‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.
490
―Jango afirma que não será ditador‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 mar. 1964.
491
JUREMA, Abelardo. Apud FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia, p. 371.
492
RIBEIRO, D. Confissões, p. 307.
165

Afirmar a posição legalista de Goulart não significa, contudo, que a ideia de um golpe
não tivesse sido cogitada, ou até mesmo sugerida por figuras próximas a Jango. Em obra
autobiográfica, Celso Furtado lembra que em fins de setembro de 1962 – portanto antes de
assumir o ministério do Planejamento –, teria preparado uma espécie de manifesto das forças
progressistas, posteriormente utilizado como base para elaboração do Plano Trienal, tentando
compor forças parlamentares junto aos líderes progressistas para o desenvolvimento legal das
reformas. Meses mais tarde, Furtado teria ouvido de Goulart que o manifesto vinha sendo
―apreciado por várias pessoas‖ e que o general Osvino Alves, então no comando do I
Exército, o teria achado ―ótimo para ser utilizado num golpe‖, causando embaraço ao
economista que tinha objetivos totalmente distintos do sugerido pelo general.493
No entanto, é necessário apontar que a cogitação de um golpe por pessoas ligadas ao
presidente, ou mesmo pelo próprio presidente, não possui relevância, uma vez que não
encontra eco em nenhuma das ações ou discursos de Goulart.
Toda a trajetória de Jango confirma uma atitude legalista, pois, em todos os momentos
críticos e decisivos − como na crise da legalidade, que culminou com a emenda
parlamentarista; nas crises de formação de gabinete ministerial; na aprovação do plebiscito
para a volta do presidencialismo; ou mesmo no pedido de decretação do estado de sítio −, o
presidente, ainda que fosse criticado por setores de sua base de apoio que exigiam uma
postura mais radical, seguiu respeitando as definições do poder legislativo.
Porém, a atitude de João Goulart em seguir defendendo a ordem legal, não evitava que
seus problemas na presidência continuassem se avolumando e o clima golpista tornava-se
cada vez mais explícito, fosse na imprensa, fosse na atitude de seus opositores políticos. Entre
os militares, como o próprio Goulart já dispunha de informações, há tempos existia uma certa
articulação que, nos últimos meses, vinha ganhando suporte norte-americano, com a mediação
do coronel Vernon Walters – adido militar da Embaixada dos Estados Unidos, agente do
serviço secreto do exército estadunidense, a Defense Intelligence Agency (DIA),494 e grande
amigo do general Castelo Branco, com quem servira ―nos campos de batalha italianos‖.495

493
FURTADO, C. Op. cit., p. 236.
494
MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 128.
495
FICO, C. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. P governo dos Estados Unidos e a
ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 20. Fico, baseado em documentos
norte-americanos, aponta a atuação de Lincoln Gordon e Vernon Walters na mediação do suporte aos golpistas,
revelando a existência de um ―plano de contingência‖ americano para a possibilidade de um golpe no Brasil,
desde pelo menos dezembro de 1963. Tal plano estabelecia ―linhas de ação estratégica que afinal se
implementariam à risca três meses depois‖ (pp. 92-93).
166

Também havia um número considerável de legalistas nas Forças Armadas. Contudo, a


adesão ao golpe entre os militares vinha ganhando espaço; e aumentou, sobretudo, após o
episódio da revolta dos sargentos da marinha, no Rio de Janeiro, no final de março de 1964.
Entre os dias 25 e 27 de março, sargentos da marinha, que se preparavam para
comemorar o aniversário da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, se rebelaram
após o ministro da Marinha, Sílvio Mota, decretar ordem de prisão a 52 marinheiros – 12 por
participarem de reunião no Sindicato dos Bancários, e 40 por organizarem a festa de
aniversário da associação. Amotinados na sede do Sindicato dos Metalúrgicos e liderados por
José Anselmo dos Santos – que embora posteriormente conhecido como Cabo Anselmo, era,
na verdade, marinheiro de 1ª classe –,496 cerca de 2 mil marinheiros reivindicavam: a não
punição dos manifestantes, o reconhecimento ao direito de associação e reunião, libertação
dos presos, direito de se casarem, tratamento humano na Marinha e melhoria na alimentação.
Vale lembrar que tais acontecimentos se deram durante os feriados da ―semana santa‖, em que
Jango viajara para São Borja, com a família. O ministro Sílvio Mota não havia consultado
Goulart sobre a decretação das prisões e o presidente não havia manifestado nenhuma objeção
à realização da festa dos marinheiros que teria desencadeado a crise.
Na tentativa de solucionar a crise e diante da exoneração de Sílvio Mota, Goulart
nomeou um novo ministro da Marinha, o almirante Paulo Mário da Cunha. O novo ministro
prendeu os revoltosos, mas os liberou poucas horas depois, gerando forte rejeição entre os
militares, que consideravam a anistia como um desrespeito ao princípio fundamental da
hierarquia nas Forças Armadas. Muito embora, na história brasileira, tenham sido anistiados
todos os oficiais rebelados em todas as rebeliões militares ao longo da República,497 a anistia
aos marinheiros, naquele momento, foi tratada pelo militares como inadmissível.
Almirantes e oficiais da Marinha lançaram um manifesto em que ―alertavam o povo
para o golpe aplicado contra a disciplina a admitir-se que minoria insignificante de
subalternos imponha demissão de ministros e autoridades navais‖ e se diziam ―unidos e
dispostos a resistir por todos os meios ao seu alcance às tentativas de comunização do

496
Como posteriormente se soube e o próprio Anselmo assumiu, durante o período ditatorial, ele atuou, como
agente infiltrado nos movimentos de resistência à ditadura militar, contribuindo para a prisão e morte de vários
militantes de esquerda. Além disso, de acordo com Moniz Bandeira, já na época da revolta dos marinheiros,
havia informações, oriundas da própria Marinha, de que Anselmo agia como elemento provocador, trabalhando
para a Central Intelligence Agency (CIA). Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas
sociais no Brasil, 1961-1964, p. 168.
497
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 450.
167

país‖.498 Assim, as articulações para um golpe contra Goulart ganharam força entre os
militares, temerosos pela quebra da hierarquia.
A rejeição de Goulart entre os militares aumentou ainda mais com o seu
comparecimento, no dia 30 de março, à festa da posse da nova diretoria da Associação dos
Sargentos, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. De acordo com Jorge Ferreira, ―o
presidente da República comparecer a uma festa de subalternos das Forças Armadas ainda sob
as cinzas de um motim de marinheiros, com a oficialidade da Marinha em rebelião passiva,
era, no mínimo, imprudente‖.499
Embora a alguns pareça incompreensível a atitude de João Goulart de participar da
cerimônia dos sargentos, é importante considerar que o presidente estava consciente da
crescente articulação golpista entre os militares e civis conservadores; e os sargentos tinham
uma aproximação histórica com o trabalhismo, constituindo, portanto, um grupo de apoio que
poderia ser importante naquele momento em que o governo Jango se via fortemente
ameaçado. Segundo Darcy Ribeiro, Goulart ―sabia bem que estava condenado a fazer frente
às forças da reação, dispostas a sublevar-se. Mas confiava em que, coordenando seu
dispositivo militar, poderia dissuadi-las de dar o golpe‖.500
O discurso de João Goulart no Automóvel Clube reafirmou sua defesa das reformas de
base dentro da ordem legal. E explicitou sua posição diante da revolta dos marinheiros
dizendo que sua primeira recomendação foi a de não permitir jamais ―que se praticasse
qualquer violência contra aqueles brasileiros que se encontravam desarmados na sede de um
sindicato‖. Confiando o problema ao novo ministro da Marinha, Goulart disse não ter
interferido, a não ser dando ―autoridade ao novo ministro que assumia naquela hora o
comando da nossa Marinha de Guerra‖.501
Mas a rejeição de qualquer repressão violenta aos marinheiros, não poderia significar
o desprezo pela disciplina. Ao contrário disso, Jango apelou para que os sargentos brasileiros
continuassem ―cada vez mais disciplinados naquela disciplina consciente, fundada no respeito
recíproco entre comandantes e comandados‖. Pedia:
Que respeitem a hierarquia legal, que se mantenham cada vez mais coesos
dentro das suas unidades e fiéis aos princípios básicos da disciplina. Que
continuem prestigiando as nossas instituições, porque em nome dessas
instituições, em nome dessa disciplina, os sargentos jamais aceitarão

498
―Almirantes denunciam comunização do país‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 mar. 1964. Grifo nosso.
499
FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 455.
500
RIBEIRO, D. Confissões, pp. 351-352.
501
―Goulart pede aos sargentos que respeitem a hierarquia‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 mar. 1964.
168

sectarismos, partam de onde partirem, porque o caminho que lhes está


traçado é o caminho que me foi traçado também.502

Importante indicativo desse momento vivido por Goulart será o espaço que dedicou
em seu discurso ao alerta de golpe. Afirmando que ―em nome da disciplina‖ se estariam
―praticando as maiores indisciplinas‖, João Goulart assevera:
não admitirei que a desordem seja promovida em nome da ordem; não
admitirei que o conflito entre irmãos seja pregado e que, em nome de um
anti-reformismo impatriótico, se chegue a conclamar as forças da reação
para se armarem contra o povo e contra os trabalhadores; não permitirei que
a religião de meus pais, a minha religião e a de meus filhos, seja usada como
instrumento político de ocasião, por aqueles que ignoram o seu sentido
verdadeiro e pisoteiam o segundo mandamento de Deus.
O meu mandato, conferido pelo povo e reafirmado pelo povo numa segunda
vez, será exercido em toda a sua plenitude, em nome do povo e na defesa dos
interesses populares. Enganam-se redondamente aqueles que imaginam que
as forças da reação serão capazes de destruir o mandato que é do povo
brasileiro.503

Finalizando seu discurso, Goulart passa a apontar quem seriam os financiadores da


poderosa campanha de desestabilização de seu governo: o ―dinheiro graúdo‖ viria dos
―profissionais da remessa ilícita de lucros‖, recentemente regulamentada, e do ―interesse
enorme do petróleo internacional e de companhias‖, contrários à lei do monopólio da
importação de petróleo da Petrobrás e ao ato de encampação das refinarias particulares. Já o
―dinheiro miúdo, mas também muito poderoso‖, viria dos ―proprietários profissionais de
apartamentos em todo o Brasil‖, afetados pelo recente ―decreto dos aluguéis‖; de
―comerciantes desonestos que estavam explorando e roubando o povo brasileiro‖; além dos
―grandes laboratórios estrangeiros de medicamentos‖.504
Sendo assim, se por um lado Goulart mantém a linha dos discursos anteriores,
defendendo as reformas dentro da legalidade, é notável no seu discurso no Automóvel Clube
que os rumores de uma conspiração golpista já havia tomado corpo. Em nenhum momento
anterior, sua denúncia de atitudes golpistas havia tomado mais espaço em seu discurso do que
o dedicado à defesa das reformas. E, de fato, no dia seguinte, as tropas golpistas iniciavam a
movimentação que culminou com o golpe que o depôs.
Numa última tentativa de aglutinar forças para uma possível resistência, que não se
consumou, Goulart encaminhou uma mensagem, na noite de 31 de março − que não obteve

502
Idem.
503
Idem.
504
Idem.
169

divulgação ampla − denunciando o golpe contra seu projeto reformista e contra as medidas de
cunho nacionalistas implementadas por seu governo:
A tais medidas, e tudo o mais consubstanciado na política autenticamente
popular, decorrente da minha fidelidade ao ideário de Vargas e aos
compromissos do meu passado, em lutas nacionalistas, opuseram-se forças
políticas e econômicas desavindas entre si, mas que se uniam, entretanto, na
impatriótica tentativa de impedir que ao povo brasileiro fossem assegurados
melhores padrões de cultura, de segurança econômica e de bem-estar social.
Meu Governo foi daqueles, na história da República, que mais se
empenharam em cercar de prestígio, de conciliação e de respeito os
dignitários do Episcopado, do Clero da Igreja Católica e dos demais credos
religiosos. Mistificam com a supervalorização do perigo comunista, como se
não fôssemos uma democracia plantada irremovivelmente no coração do
povo. Do povo em que acredito e em quem deposito a certeza da vitória da
nossa causa. Não recuarei, não me intimidarão. Reagirei aos golpes dos
reacionários contando com a lealdade, a bravura e a honra das forças
militares, e com a sustentação das forças populares do nosso país.505

Dessa forma, nos parece correto afirmar que o processo de radicalização política que
antecedeu o golpe de 1º de abril de 1964 não fez com que João Goulart abandonasse a postura
legalista que defendia ao longo de toda a sua trajetória política. Portanto, não encontra
fundamento a tese de que o golpe de abril teria sido um ―contragolpe preventivo‖ – tese
baseada nas afirmações ou suposições ―de que Goulart pretendia perpetuar-se no poder para
além do prazo constitucional e que, por isso, precavidamente, foi deposto antes que ele
mesmo desse um golpe (a tese também é utilizada em relação aos comunistas)‖.506 Tal tese foi
utilizada pelo embaixador Lincoln Gordon para justificar a necessidade de suporte norte-
americano para ação dos golpistas507 e reafirmada por militares brasileiros.508
Embora as afirmações de que Goulart pretendia estabelecer um governo comunista,
como também afirmaram os golpistas, tenham sido recusadas pela maior parte das análises
políticas e historiográficas do período – com exceção das que retratam a posição dos militares
que participaram do golpe –, o ―desapego à democracia‖ por parte das esquerdas brasileiras,

505
GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, K. et al. Op. cit., pp. 243-244.
506
FICO, C. Op. cit., p. 73.
507
―Em um telegrama que enviou ao Departamento de Estado, classificado como ‗ultra-secreto‘, em 28 de março
de 1964, Gordon reafirmou suas teses de que Goulart estava empenhado em um golpe para obter poderes
ditatoriais, com a colaboração do PCB e de outros membros da ‗esquerda revolucionária radical‘, repetindo sua
avaliação de que o presidente operaria por uma ditadura de tipo peronista que acabaria por levar o Brasil ao
comunismo‖. In: FICO, C. Op. cit., pp. 93-94.
508
O marechal Odylio Denys, que já acusava Goulart de aproximação com o comunismo desde a crise que
antecedeu sua posse, no já citado manifesto dos coronéis, afirma que a ação militar estava ―defendendo a
legalidade‖ e ―manter o regime democrático‖, com o qual o governo de Goulart estaria em desacordo, uma vez
que ―com um golpe de Estado ia implantar nele a revolução marxista, instituindo o regime sindicalista‖.
DENYS, O. Apud: RAGO FILHO, Antonio. Sob este Signo Vencerás! A ideologia da autocracia burguesa
bonapartista. Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth - IFCH/UNICAMP), Campinas, v. 14/15, 2001, p. 173.
170

naquele momento, ainda é apontado por alguns autores como um dos fatores que teriam
engendrado o golpe.
Argelina Figueiredo, analisando prioritariamente os momentos críticos do governo
Goulart, afirma que possibilidades de reformas mais moderadas dentro da ordem democrática
teriam sido desprezadas pelos setores de esquerda, a favor de uma escolha deliberada pela
radicalização e ampliação das reformas e em detrimento da democracia. Desse modo, acaba
por responsabilizar os reformistas pelo golpe; uma vez que, segundo a autora, tanto os grupos
de direita como os de esquerda ―subscreviam a noção de governo democrático apenas no que
servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza inerente às regras
democráticas‖.509
O historiador Jorge Ferreira se aproxima de algumas das conclusões de Argelina
Figueiredo, ao afirmar que, nos conflitos do período imediatamente anterior ao golpe militar
entre esquerdas e direitas, revelava-se um desprendimento aos valores democráticos por
ambas as partes. Segundo Ferreira, naquele momento, ―de uma posição defensiva e legalista
em 1961, as esquerdas adotaram a estratégia ofensiva e de rompimento institucional‖.510 Para
ele, ―não se tratava mais de medir forças com o objetivo de executar, limitar ou impedir as
mudanças, mas sim, da tomada do poder e da imposição de projetos. /.../ Os grupos de
esquerda exigiam as reformas, mas também sem valorizar a democracia‖.511
Diante de análises como as de Ferreira e Figueiredo, que afirmam que os setores
progressistas e de esquerda também devem ser responsabilizados pelo golpe, devido à
intransigência de suas demandas e posições, vale lembrar, como fez Caio Navarro de Toledo,
que ―quem arquitetou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes
dominantes através de suas forças políticas e entidades de classe‖,512 não sendo encontrada
―pela dura repressão que se abateu sobre os ‗subversivos‘‖ nenhuma comprovação de algum
plano golpista entre principais movimentos de esquerda.
Militares progressistas e democratas (alguns deles vinculados ao alardeado
―dispositivo militar‖ de Jango), quadros civis ligados diretamente à
Presidência da República, setores de esquerda, entidades (CGT, UNE, ISEB
etc.) tiveram seus arquivos apreendidos; freqüentes inquéritos políticos
militares (IPMs) vasculharam as atividades de lideranças políticas e
organizações nacionalistas e de esquerda. No entanto, nenhum documento
509
FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 202.
510
FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, L A. N. Op.
cit., p. 381.
511
Idem.
512
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: In: REIS, D. A.; RIDENTI,
M; MOTTA, R. P (orgs.). Op. cit., p. 76.
171

(mesmo na forma de um simples esboço ou rascunho) – revelando os


supostos planos golpistas ou continuístas de Goulart – foi descoberto pela
inteligência repressiva. Nem mesmo os serviços de segurança norte-
americanos (CIA, Departamento de Estado) – que colaboravam intensamente
com as autoridades brasileiras – apresentaram, passados 40 anos, quaisquer
indícios da decantada trama golpista de Goulart.513

Afirmar uma tendência golpista entre as esquerdas, ainda que sem contribuições
factuais, permite reforçar a tese do ―contragolpe preventivo‖, ou, ―na melhor das hipóteses‖,
atenuar ―as responsabilidades dos militares e da direita civil pela supressão da democracia
política em 1964‖.514 Assim, um golpe que, como assinala Antonio Rago Filho, ―em sua
objetividade histórica, foi uma ruptura ao processo democrático que estava em marcha‖, um
―combate ao social-progressismo inerente à política dos trabalhistas, identificada
erroneamente com a república sindical, o nacionalismo exacerbado e a algaravia
populista‖,515 valendo-se de análises com as de Figueiredo e Ferreira, pode ser apresentado
simplesmente como a vitória de um dos lados, igualmente antidemocráticos, em confronto.
Outro aspecto importante, destacado por Toledo, é a incorreção de se criticar as
esquerdas atuantes no pré-64 por não estarem limitadas ao discurso da democracia liberal – o
que, na objetividade histórica brasileira, constituía não um defeito, mas um mérito.516 Ao
afirmar que a falta de moderação ou radicalismo na luta pelas reformas teriam resultado no
golpe de Estado e propor que o projeto reformista deveria manter-se dentro dos limites da
―ordem instituída‖, esses autores desconsideram o fato de que reformas moderadas são
incapazes de ―transcender as dimensões formalistas que caracterizam, em profundidade, os
regimes democráticos no capitalismo dependente e periférico‖.
Assim, questionar as reformas ―radicais‖ em nome da preservação das
―instituições democráticas‖ implica, objetivamente, justificar as democracias
realmente existentes; numa palavra, significa legitimar as democracias
liberais excludentes em que as liberdades e os direitos políticos têm reduzida
eficácia no sentido de atenuar as profundas desigualdades sociais e as
distintas opressões extra-econômicas (de gênero, raça, sexuais etc.)
existentes na sociedade.517

Embora Ferreira seja um duro crítico da categoria ―populismo‖, compartilha com ela o
mesmo referencial ou ―arquétipo‖ da democracia liberal.518 Sendo assim, não obstante a

513
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e democracia. As falácias do revisionismo. In: Revista Crítica
Marxista n. 19, out. 2004, p. 37.
514
Ibidem, pp. 44-45.
515
RAGO FILHO, A. Op. cit., p. 160.
516
Ibidem, p. 48.
517
Ibidem, p.47. Grifo do autor.
518
Abordamos o referencial liberal da teoria do populismo na introdução deste trabalho.
172

enorme contribuição de Jorge Ferreira para a compreensão do período pré-64 – com pesquisas
que investigaram e explicitaram importantes elementos que compunham aquele momento
histórico brasileiro –, a análise que faz sobre as esquerdas e o golpe, ao tomar o paradigma
liberal como modelo de democracia a ser preservado, desconsidera a possibilidade de
construção de uma democracia popular, com ampla participação das massas e que
promovesse, de fato, uma ampliação das conquistas sociais. Essa era justamente a
possibilidade que grande parte dos setores de esquerda almejava concretizar.
173

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme verificado ao longo do trabalho, é possível resgatar do conjunto de


discursos proferidos por João Goulart, desde sua ascensão imprevista ao governo até sua
deposição pelo golpe, as principais teses e proposições que o político defendeu em relação ao
país. Baseado no ideário varguista e num trabalhismo cristão – permeado pela doutrina social
da Igreja519 – Goulart apresentou propostas que, aglutinadas, se estruturavam claramente
como um projeto de governo, ou melhor, um projeto de Brasil, buscando um desenvolvimento
autônomo com justiça social.
Tão importante quanto a demarcação ideológica que pontua o projeto de Jango será o
contexto histórico em que está inserido, que tem como pano de fundo um mundo partido em
uma confrontação ideológica entre Estados Unidos, liderando o conjunto dos países
capitalistas, e a União Soviética, comandando o ―bloco socialista‖. Com os confrontos na
Coreia, iniciados em 1950, a Guerra Fria se consolida e, progressivamente, se aprofunda. O
governo norte-americano adota como estratégia a contenção ou barragem da irradiação
internacional dos soviéticos, pois partiam da tese de que, internamente, o regime russo era
frágil. Contida a expansão internacional, o passo seguinte seria o de ―empurrar‖ os soviéticos
para trás (roll back).520 Contudo, neste primeiro momento, a América Latina não é a principal
preocupação norte-americana.
Concomitante a esse processo − ou seja, a partir da década de 1950, em especial na sua
segunda metade −, no Brasil, a industrialização apresenta um surto de crescimento, pautado
no aporte financeiro e tecnológico de empresas transnacionais. Os ―cinquenta anos em cinco‖
de Kubitschek demarcaram o terreno econômico sobre o qual os governos seguintes se
estruturariam (ou se desestruturariam):
A crise do fim do período, que por sua vez vai dar lugar à recessão que se
lhe segue até o ano de 1967, é uma crise extremamente complexa. Em
primeiro lugar, deve-se dizer que as presidências Quadros e Goulart na
verdade foram prisioneiras da crise que começou a detonar no último ano da
Presidência Kubitschek.521

519
Vale lembrar que o castilhismo anticlerical e positivista, presente na formação do ideário de Vargas, não é
apropriado de forma direta por João Goulart. Embora alguns princípios castilhistas – como a preponderância do
bem público sobre os interesses materiais individuais – cheguem até ele, através de Vargas e do trabalhismo,
Jango afirmará reiteradamente, em seus discursos, sua concordância com a doutrina social da Igreja, bem como
as encíclicas e mensagens do papa João XXIII.
520
FURTADO, C. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 264.
521
OLIVEIRA, Francisco de. A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 90.
174

O uso indiscriminado de uma ―política monetária e financeira irresponsável‖, iniciada


no governo JK, reduziu ―drasticamente o poder aquisitivo dos salários, dando origem, /.../ a
uma intensa mobilização política‖.522
Cabe lembrar ainda que, mesmo que a industrialização se acelerasse em concomitância
com a urbanização, o Brasil dos anos 1960 ainda possuía 54,92% de sua população ativa no
campo.523 E, além disso, ao contrário do que alguns críticos de uma possível reforma agrária
afirmavam, ―de um total de 232 milhões de hectares no Brasil, a União e os Estados só
possuem 11.907.000 hectares, ou seja 5,1%, reduzidos a 2,8% de área habitável e arável‖.524
Neste contexto, ganhavam dimensões alarmantes reivindicações rurais como as
realizadas pelas Ligas Camponesas, iniciadas em 1955. De acordo com Celso Furtado, o
projeto da SUDENE fora acolhido no Governo de Kubitschek justamente como uma resposta
à crescente problemática social:
O nordeste seria o maior ―problema nacional‖, e a construção de Brasília em
nada contribuía para minorá-lo. O ―abandono‖ da região estaria gestando
tensões que terminariam por ameaçar a unidade nacional. Assim ele
[Kubitschek] via o projeto grandioso de governo que traçara atacado pelo
flanco vulnerável que descuidara.525

Com o agravamento da situação do campo e a impossibilidade legal da organização


sindical entre os trabalhadores rurais – mantida até 1962 −, surgiam as Ligas Camponesas,
atuando como um proto-sindicalismo, sendo defendidas pelo advogado Francisco Julião, que
se tornaria um dos principais líderes do movimento.
A eclosão da revolução cubana em 1959 e sua adesão ao bloco soviético no início dos
anos 1960 faz com que a América Latina entre no foco das principais preocupações do
governo norte-americano:
Em 1959, quando os guerrilheiros de Fidel Castro desceram a Sierra Maestra
e entraram em La Havana, os EUA não sabiam ainda exatamente os rumos
que a Revolução tomaria. Quando o governo revolucionário cubano
demonstrou suas tendências anti-imperialistas, a América Latina deixou de
ser teatro secundário e ganhou centralidade na Guerra Fria travada entre as
duas potências.526

Assim, os Estados Unidos, tomados pela ―síndrome de Cuba‖, passam a identificar no


movimento dos trabalhadores rurais do nordeste brasileiro a possibilidade de uma nova Cuba
e em Francisco Julião, um novo Fidel Castro.
522
Idem.
523
RODRIGUES, J. H. Op. cit., p. 225.
524
Ibidem, p. 231.
525
FURTADO, C. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo II, p. 66.
526
TOTA, A. P. Op. cit., p. 119.
175

Outro efeito desta ―síndrome‖ foi o desenvolvimento de um discurso que entendia


qualquer oposição aos ditames da hegemonia norte-americana – fosse uma oposição
nacionalista ou apenas com tendências mais nacionalistas − como posições comunistas.
Perspectiva e discurso plenamente internalizados por boa parte de setores nacionais
representativos − em especial pela imprensa conservadora e por parte das Forças Armadas.
Portanto, não seria por acaso que Jânio Quadros esperara seu vice-presidente João
Goulart, profundamente vinculado ao trabalhismo e aos sindicatos, estar em viagem oficial a
China comunista para executar sua manobra de renunciar, na expectativa de voltar ―nos
braços do povo‖. No entanto, a história tomou outro rumo e, como vimos, Goulart assume a
presidência, em meio a uma grande crise – sendo primeiro tutelado por um regime
parlamentarista, para somente mais tarde retornar ao regime presidencial, via plebiscito.
Eis, em esboço, o contexto a partir do qual João Goulart tenta dar vida concreta a um
projeto político que terá como carro chefe as reformas de base − uma tentativa de criar um elo
entre crescimento econômico e desenvolvimento social, alavancado por um capitalismo que,
embora associado, tivesse autonomia e estivesse em concordância com uma democracia
trabalhista.
Com as chamadas reformas de base, Goulart propunha formas de aumentar a presença
do Estado nas esferas econômica e administrativa do país (através das reformas tributária,
bancária, cambial e administrativa, além de outras importantes medidas de caráter
nacionalista, como o controle da remessa de lucros para o exterior); melhorar as condições
materiais de vida da população (através das reformas agrária, urbana e universitária); bem
como estender o direito de participação eleitoral (através da reforma eleitoral). Todo esse
conjunto de reformas mantinha, ainda, o objetivo de fortalecer o mercado interno,
promovendo o desenvolvimento econômico com autonomia nacional, ou seja, a tão almejada
―emancipação econômica‖.
Portanto, não se justificam as afirmações do historiador paulista Marco Antonio Villa
de que Jango teria representado um ―vazio de realizações e de ideias‖, sendo marcado ―pela
absoluta falta de plano de governo, de um rumo coerente a ser seguido‖.527 Como vimos,
ainda que frustrada a maior parte das realizações, João Goulart apresentou um projeto
coerente com sua trajetória política.
Também é importante lembrar a posição de Goulart em relação à mobilização popular.
A participação das massas trabalhadoras na vida política do país, através das organizações

527
Cf. VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). Rio de Janeiro: Globo, 2004, pp. 237-238.
176

sindicais, populares e de esquerda nunca foi repudiada ou reprimida por Jango. E essa postura
não se limitou aos momentos em que recebia apoio dos movimentos populares; foi mantida,
também, quando deles recebia críticas e cobranças, ou ainda quando seus opositores o
acusavam de nada fazer diante da ―ameaça‖ que tais movimentos representariam à
democracia representativa.
No plano das relações exteriores, não obstante a pressão política e financeira exercida
pelos Estados Unidos, João Goulart manteve-se fiel à política externa independente e à
posição de não-intervenção − notadamente no caso de Cuba. Além disso, buscou opções de
atuação internacional que extrapolassem as iniciativas tuteladas pelos países desenvolvidos,
buscando articular um bloco para a defesa dos interesses dos países latino-americanos.
Apesar dos enormes problemas e pressões com as quais seu governo foi obrigado a
lidar, Jango, em seu discurso e governo, seguiu, com coerência, o nacionalismo varguista, no
qual se apoiou ao longo de toda a sua carreira. Ainda que tenha chegado a transigir em
algumas situações – almejando negociar soluções entre partes divergentes528 −, nos momentos
decisivos, Goulart marcou posição em defesa dos interesses nacionais e das demandas
populares; descartando soluções que, em troca de estabilização econômica e mesmo política,
implicassem na subordinação do país aos interesses externos e/ou no achatamento de salários
e direitos dos trabalhadores brasileiros.
Tal postura rechaça as afirmações de que seu discurso nacionalista e de direitos sociais
seria ―mera‖ demagogia. Conforme apontamos em nossa Introdução, a ―teoria do populismo‖,
ao enquadrar o presidente Jango como demagogo, descarta toda sua tradição política, ou
melhor, toda a base ideológica sobre a qual Goulart sustenta suas ações.529 Fixando-se em um
ideal de trabalhador e em um ideal de democracia burguesa, essa teoria acaba por descartar os
trabalhadores reais, bem como a possibilidade de uma ―democracia trabalhista‖ – o que, nos
marcos históricos do Brasil, seria provavelmente um avanço.
Em sua tarefa inglória de superar uma série de deficiências econômicas herdadas e
promover desenvolvimento econômico com progresso social, João Goulart acreditou na
possibilidade de estabelecer uma economia capitalista, que embora associada, garantisse
autonomia ao país, além de conquistas sociais aos trabalhadores. No entanto, viu suas
expectativas de obter suporte financeiro externo para estimular um desenvolvimento nacional

528
São exemplos dessas transigências: a aceitação da ―solução parlamentarista‖, a incorporação de demandas
que atendessem o FMI no Plano Trienal, a possibilidade de pagamento de valor acima do avaliado na compra da
AMFORP e o retardamento da regulamentação da Lei da Remessa de Lucros.
529
Nos referimos, aqui, à ideologia conforme a posição de Georg Lukács (ver definição na introdução deste
trabalho).
177

―associado‖ – mas não subordinado – ao capital internacional frustradas por negativas


intransigentes, tanto por parte do FMI, como por parte de governo norte-americano e do
capital internacional em geral.530 Àquela altura, a conciliação de interesses mostrou-se
impossível.
Como aponta Antonio Rago Filho,
Assim como o peronismo na Argentina e, mais tarde, o allendismo no Chile,
os portadores de uma plataforma econômica de estatuto popular e nacional
converteram-se, em nosso país, numa ameaça à reorganização da estrutura
econômica atrelada aos desígnios do grande capital internacional e seus
parceiros nativos.531

E, de fato, a possibilidade de questionamento e reorganização da estrutura produtiva


brasileira, assim como o alargamento da participação popular na vida política, constituíam,
sim, uma ameaça aos interesses ―do grande capital internacional‖ e da burguesia nativa a ele
vinculada. Isso devido à forma particular através da qual o capitalismo se objetivou no Brasil:
de forma hipertardia; com industrialização subordinada ao capital externo e priorizando a
produção de bens de consumo duráveis (inacessíveis à maior parte da população); com
manutenção da estrutura agrária latifundiária, da superexploração da força de trabalho e da
exclusão das massas das decisões políticas.532
A burguesia brasileira, portanto, não sustenta um projeto de reformas estruturais e de
democracia popular como o proposto por Goulart; uma vez que, por sua debilidade
econômica, mostra-se ―incapaz de dominar sob forma efetivamente democrática – porque
incapaz de lutar ou sequer perspectivar sua autonomia econômica, e, assim, de se por à frente
de um projeto de cunho nacional, apto a incluir, embora nos limites do capitalismo, as classes
a ela subordinadas‖.533 Sendo assim, garante o exercício do seu poder político de forma
autocrática.534

530
Iniciativas como a ajuda dos Estados Unidos à Europa no pós-guerra, com o plano Marshall, e a Aliança para
o Progresso, anunciada em 1961, davam margem para essa expectativa. No entanto, tais iniciativas se mostraram
absolutamente distintas em suas práticas e objetivos.
531
RAGO FILHO, Antonio. Sob este Signo Vencerás! A ideologia da autocracia burguesa bonapartista.
Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth - IFCH/UNICAMP), Campinas, v. 14/15, 2001, p. 182. Grifo nosso.
532
José Chasin, analisando a forma e a particularidade da objetivação histórica do capitalismo no Brasil, a
denomina de via colonial – caracterizada pela conciliação entre atraso e o progresso sociais. Ainda que este
caráter conciliatório se aproxime do exemplo alemão (via prussiana), o Brasil se estruturara dentro do
capitalismo de forma bastante diversa: a origem da propriedade agrária brasileira se dá através da colonização do
país, o que já a coloca em situação totalmente distinta da propriedade agrária feudal alemã. Além disso, a
industrialização brasileira se dá de forma hipertardia, no período que vai dos anos 30 aos anos 60 do século XX.
533
COTRIM, Lívia. O capital atrófico: da via colonial à mundialização (Apresentação). In: CHASIN, J. A
Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social. Santo André (SP): Ad Hominen, 2000, p. VII.
534
Sobre a burguesia brasileira e sua impossibilidade de uma postura democrática como produtos históricos da
via colonial de objetivação do capitalismo no Brasil, questiona José Chasin: ―Como poderiam coabitar com a
‗soberania do povo‘, na inintegralidade de sua soberania enquanto classe do capital‘? Ou seja, como
178

Dessa forma, o que estava em jogo naquele momento, cujo governo João Goulart
representa o ponto de inflexão, era justamente a capacidade de o país lutar e sustentar um
capitalismo autônomo. Na verdade, muitos pensaram que esta autonomia já estava garantida,
inclusive autores de grande representatividade para a academia e para política econômica da
época, como o economista e ministro de Goulart Celso Furtado, que, em 1962, afirmava:
a economia de nosso país alcançou um grau de diferenciação /.../que
permitiu transferir para o país os principais centro de decisão de sua vida
econômica. /.../ O Brasil está repetindo, até certo ponto, a experiência do
Japão em decênios anteriores: a conquista da autodeterminação no plano
econômico ainda em fase caracterizada por um nível de renda per capita
típico de país subdesenvolvido.535

No entanto, a busca pela autonomia econômica foi interrompida pelo golpe que depôs
João Goulart; dando início a uma ditadura militar que reafirmou a via colonial como
plataforma do desenvolvimento capitalista brasileiro, ou seja, reafirmou a subordinação (ainda
que com ―inovações‖) ao invés de autonomia.
O período da ditadura militar expressou, por si, a continuidade da trajetória histórica
do Brasil desde a colônia: ―toda a história brasileira é ‗rica‘ em ditaduras e ‗milagres‘, e pobre
em soluções democráticas efetivas‖.536 O esquema produtivo do milagre − apoiado
ideologicamente no engodo do crescimento do bolo − teve como fundamento o rebaixamento
salarial e a consequente a miséria da população como base da própria forma de
desenvolvimento;537 demonstrando, com seu duplo fracasso (como projeto social e
econômico)538 a estreiteza de suas bases.
Destarte, retomando o processo de efetivação do capitalismo brasileiro no período
anterior ao governo Goulart e naquele que o sucede, vale questionarmos a possibilidade

dominariam materialmente, sob a soberania política do povo, se a sua própria dominação é vassala de sua
própria estreiteza orgânica e de um outro capital soberano? Portanto, se o limite de sua soberania é seu capital
limitado, o segredo de seu monopólio do poder é a atrofia de sua potência política. Isto é, a verdade do
deslimite de seu mando autárquico é a limitação de sua soberania atrófica‖. In: CHASIN, J. A esquerda e a
Nova República. In:____________. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social, p. 162.
535
FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962, p. 9.
536
COTRIM, Lívia. O capital atrófico: da via colonial à mundialização (Apresentação). In: CHASIN, J. A
miséria brasileira, 1964-1994: do golpe militar à crise social, p. V.
537
―Em termos rigorosos a estrutura de produção em que se baseia o ‗milagre‘ produz necessariamente uma
distribuição negativa para as classes subalternas. Para se realizar, o ‗milagre‘ obrigatoriamente tem de gerar a
miséria de amplas camadas da populacionais; o aviltamento da maior parte da força de trabalho empregada é a
condição de seu funcionamento‖. CHASIN, J. Conquistar a democracia pela base. In: _________. A miséria
brasileira,1964-1994: do golpe militar à crise social, p. 62.
538
―Sintetizando as duas formas de fracasso do ‗milagre‘: do ponto de vista das necessidades gerais da nação, ele
é um fracasso como projeto de organização da produção, consideradas as necessidades das classes subalternas,
numa palavra, do conjunto do povo brasileiro; é também um fracasso, ao cabo de poucos anos, quando se
consideram, a partir de 73, as exigências naturais do próprio capital: a acumulação deste é entravada pela própria
estrutura de produção que durante um certo tempo beneficiou larga e exclusivamente‖. Ibidem, p. 63.
179

histórica efetiva de sustentação de um governo como o proposto por Jango nos marcos do
capitalismo no Brasil de então. Com a impossibilidade de apoio da burguesia a um projeto
nacional-reformista e de ampliação da democracia, um projeto nacional-reformista com
participação popular somente se concretizaria através de rupturas – rupturas que João Goulart,
em nenhum momento, se mostrara disposto a intentar e que as esquerdas brasileiras não se
mostraram suficientemente preparadas e organizadas para defender.
180

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