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pesquisas em

psicologia,
saúde e
sociedade
ORGANIZAÇÃO:
ANDRÉ FARO
ELDER CERQUEIRA-SANTOS
JOILSON PEREIRA DA SILVA
JULIAN TEJADA

pesquisas em
psicologia,
saúde e
sociedade

São Paulo - 2023


Copyright © Edições Concern

Supervisão editorial: Sergio Rizek


Revisão: Esdra Campos
Diagramação e Capa: José Maria Faustino

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Pesquisas em psicologia, saúde e sociedade /


organizadores André Faro...[et al.]. –
1. ed. – São Paulo : Edições Concern, 2023.
Vários autores.
Outros organizadores: Elder Cerqueira-Santos, Joilson
Pereira da Silva, Julian Tejada.
Vários colaboradores.
480 p. il.

Bibliografia.
ISBN 978-65-88956-02-1

1. Psicologia 2. Psicologia - Pesquisa 3. Saúde


4. Sociedade I. Faro, André. II. Cerqueira-Santos,
Elder. III. Silva, Joilson Pereira da. IV. Tejada, Julian.
V. Título.

23-148217 CDD-150

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicologia 150

Edições Concern / Attar Editorial


Rua Madre Mazzarello, 336
São Paulo - SP - 05454-040
Tel.: (11) 3021-2199 - attar@attar.com.br
www.attar.com.br
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Conselho editorial

Joel Birman (Universidade Federal do Rio de Janeiro)


Richard Simanke (Universidade Federal de Juiz de Fora)
Leopoldo Fulgencio (Universidade de São Paulo)
Daniel Kupermann (Universidade de São Paulo)
Rita Sobreira Lopes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Leonardo Niro Nascimento (Essex, Inglaterra)
Christian Hoffmann (Paris 7, Paris, França)
Eduardo Leal Cunha (Universidade Federal de Sergipe)
Paulo de Carvalho Ribeiro (Universidade Federal de Minas Gerais)
Elias Mallet da Rocha Barros (Soc. Bras. de Psicanálise de São Paulo, IPA)
Paulo Sandler (Soc. Bras. de Psicanálise de São Paulo, IPA)

Coordenação

Leopoldo Fulgencio
Eduardo Leal Cunha

Os textos encaminhados à Edições Concern, selo da Attar Editorial serão avaliados


por membros do conselho editorial, cujos pareceres críticos circunstanciados serão enviados
para os autores.
Sumário
PREFÁCIO
Prof. Dr. Eduardo Leal Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

SEÇÃO I. S  aúde, educação e desenvolvimento humano:


diálogos no campo da infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Capítulo 1. E ventos traumáticos e infância: uma revisão narrativa
Mariana S. Menezes e André Faro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Capítulo 2. Famílias diversas, desenvolvimento infantil e estereotipia de gênero
Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa. . . . . . . . . . . . . . 35
Capítulo 3. B em-estar subjetivo infantil e o estudo da felicidade em crianças
Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva. . . . . . . . . . . . . . . . . 52
Capítulo 4. Meu filho está doente, e agora? Parentalidade e adoecimento crônico infantil
Ariane de Brito e Katia Teruya. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
Capítulo 5. Resiliência e seu impacto na saúde e no desenvolvimento infantil
Laís Santos-Vitti, Karina da Silva Oliveira, Tatiana de Cassia Nakano
e Letícia Lovato Dellazzana-Zanon. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Capítulo 6. E moções e inteligência emocional em crianças disléxicas
Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
Capítulo 7. A nálise psicossocial do autismo: reflexões sobre o futuro da criança autista
Camila Cristina Vasconcelos Dias, João Victor Cabral da Silva
e Silvana Carneiro Maciel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
Capítulo 8. A importância da prática da dança durante a infância para
aprendizagem e consciência corporal de autistas
Lavínia Teixeira-Machado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Capítulo 9. O rientações para estudantes, professores e profissionais da saúde
acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes
Linéia Polli, Daniel Henrique Schiefelbein da Silva
e Jean Von Hohendorff . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167
Capítulo 10. E ducação sexual e/na infância: limites e possibilidades no currículo de ciências
Elaine de Jesus Souza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Capítulo 11. C  iberespaço e ludicidade: é possível considerar a ambiência
digital um contexto de desenvolvimento?
Fabricio de Souza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202
Capítulo 12. “ Nenhum pardo vai ser igual a gente, né?” - A espera pela adoção
e as famílias interraciais
Nicole de Carvalho Barros, Patrícia Santos Silva,
Liziane Guedes da Silva e Giana Bitencourt Frizzo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222
Capítulo 13. D  iretrizes para a oferta da educação infantil integral e em tempo integral
Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente . . . . . . . . . 239
SEÇÃO II. Psicologia social e sociedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260
Capítulo 14. I dentidade racial de crianças em situação de vulnerabilidade social:
o olhar dos profissionais do SCFV
Josiene dos Santos Ferreira, Dalila Xavier de França e Israel Jairo. . . . . . . . 262
Capítulo 15. Relações raciais e preconceito: a importância da identidade
racial e das emoções
Elza Maria Techio, Raimundo Cândido de Gouveia e Bárbara Borges. . . . . . . 292
Capítulo 16. Ver e sentir: duplo sofrimento de crianças negras
com o racismo e possíveis soluções
Ueliton Santos Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila Xavier de França. . . 317
Capítulo 17. E stereótipos do suspeito para policiais militares:
cor da pele e estrato social
Emília Silva Poderoso, Marcus Eugênio Oliveira Lima e
Isabelle Haaiara Andrade Barbosa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
Capítulo 18. Gênero, identidade social e ameaça à distintividade heterossexual
Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira. . . . . . . . . . . . . . . . . 366
Capítulo 19. A desão ao isolamento social na Covid-19: efeitos das explicações da
pandemia, posições sociais e confiança nas instituições
Marcus Eugênio Oliveira Lima, Dalila Xavier de França
e Cicero Roberto Pereira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 392
Capítulo 20. O  efeito da pandemia de Covid-19 na saúde mental e na satisfação
no trabalho: comparação entre grupos minoritários e majoritários
Luciana Maria Maia, Tiago Jessé Souza de Lima
e Luana Elayne Cunha de Souza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410
Capítulo 21. Discurso de ódio, redes sociais e violência policial:
o caso da chacina do Jacarezinho
Charles Vinicius B. de Souza, Marcus Eugênio O. Lima, Luiz Felipe
da Conceição Souza, Hendrik Teixeira Macedo e Thiago Dias Bispo. . . . . . 425
Capítulo 22. Endividamento da população brasileira: um panorama do
problema e seus possíveis impactos psicológicos
Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira. . . . . . . . . . . . . . . . . . 451

ORGANIZADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 472

AUTORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473
Prefácio
Eduardo Leal Cunha
Universidade Federal de Sergipe

Este livro reúne resultados de pesquisas desenvolvidas no âmbito do Pro-


grama de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal de
Sergipe (UFS) e de sua rede de cooperação e intercâmbio, em particular nas li-
nhas de pesquisa Psicologia Cognitiva e Social e Saúde e Desenvolvimento Humano.
Muitas dessas pesquisas foram realizadas com o apoio financeiro da
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, do
Ministério da Educação, e da FAPITEC-SE – Fundação de Apoio à Pesquisa
e Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe, por meio dos Editais PROEF
(Programa de Estímulo ao Aumento de Efetividade dos Programas de Pós-
-graduação em Sergipe ) e PROMOB (Programa de Estímulo a Mobilidade e
ao Aumento da Cooperação Acadêmica da Pós-graduação em Instituições de
Ensino Superior de Sergipe), e é também com este apoio que chega às suas mãos
esta publicação, fundamental para difusão do nosso trabalho e para a inserção
do PPGPSI e da UFS no meio científico nacional e internacional.
O PPGPSI, em sua forma atual, com titulação e área de concentração
em psicologia, é fruto de um complexo processo de reformulação iniciado em
2013, cujo principal resultado obtido foi a aprovação, em 2018, do curso de
doutorado. Tal acontecimento só foi possível por refletir o resultado de uma
maior e melhor articulação entre pesquisadores, linhas de pesquisa, projetos e
a proposta do programa em seus dois níveis de formação.
Procuramos, desde a criação do programa, aprofundar a competência ad-
quirida nos cursos de graduação, desenvolvendo novos conhecimentos e tec-
nologias e considerando a diversidade de perspectivas teóricas e de campos de
atuação da psicologia. Hoje definimos como objetivo geral do nosso programa
desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão visando a formar pesqui-
sadores e docentes para atuação em universidades, centros de pesquisa, institui-
ções governamentais e do terceiro setor, com ênfase na realização de estudos e
pesquisas inovadores capazes de promover ao mesmo tempo o desenvolvimento
científico da psicologia a nível nacional e internacional, bem como o fortaleci-
mento da sua inserção social e da sua contribuição para o desenvolvimento do
país e para a melhoria das condições de vida da sua população.
Agora, três anos após a entrada dos nossos primeiros doutorandos, temos,
neste livro, um testemunho significativo do impacto do processo de reformulação
10 Prefácio

e do esforço conjunto de docentes e discentes na consolidação da nossa pós-gra-


duação e, mais importante, da busca pela excelência e por uma participação cada
vez maior na psicologia nacional e também no cenário internacional; o que se
nota, inclusive, pela diversidade de autores e instituições de ensino e pesquisa
presentes neste volume.
Os estudos desenvolvidos na linha de pesquisa Psicologia Cognitiva e Social
utilizam uma abordagem de articulação psicossocial para o entendimento ou
interpretação de temas como: representações sociais da alteridade e da diferença;
status e percepção social; formação na escola e políticas sociais; estereótipos;
preconceitos, racismo e processos de socialização; conflitos sociais. Em termos
epistemológicos, assume a necessidade de articulação dos níveis de análise neu-
rológico, intrapsíquico, interpessoal, posicional, ideológico e intersocietal dos
fenômenos pesquisados. Os trabalhos, nesta linha, vinculam-se a procedimentos
metodológicos quantitativos e qualitativos que contemplam momentos distintos
da pesquisa e da intervenção psicossocial.
A linha de pesquisa Saúde e Desenvolvimento Humano, por sua vez,
agrega docentes cujos projetos de pesquisa e perspectivas de investigação estão
direcionados à produção do conhecimento em psicologia em suas áreas de inter-
face com as ciências da saúde e ciências sociais. Sua proposta é contemplar a di-
versidade de competências empíricas, teóricas e profissionais para o diagnóstico,
a avaliação e a intervenção na área da Psicologia da Saúde e do Desenvolvimento
Humano. Desdobra-se noutras especificidades do campo da saúde (hospitalar,
saúde pública e coletiva) e do desenvolvimento (sexualidade, gênero e violência
sexual). A linha de pesquisa utiliza métodos mistos, com ênfase no método
quantitativo de delineamento dos estudos e análises de dados, procurando de-
senvolver uma visão integrada a respeito da riqueza teórico-metodológica da
psicologia, mantendo o foco nas teorias de base cognitivas e contextualistas.
Nesta coletânea, alguns temas e perspectivas se destacam. Eles estão or-
ganizados em torno de dois grandes eixos: em primeiro lugar, uma articulação,
a partir de diferentes perspectivas, entre desenvolvimento psíquico e social,
processos e ambientes educacionais e saúde, tendo como objeto principal a in-
fância; em segundo lugar, uma série de pesquisas que, com a lente e os métodos
da psicologia social de matriz cognitivista, procura explorar temas centrais a
sociedade brasileira contemporânea.
Desse modo, em seus treze primeiros capítulos, encontramos estudos sobre
a infância e a realidade concreta dos processos de desenvolvimento psicológico
na atualidade, marcada por experiências de violência e vulnerabilidade, bem
Eduardo Leal Cunha 11

como esforços de investigação voltados para a tarefa de construção de infâncias


e adolescências mais saudáveis, em processos nos quais o ambiente escolar ocupa
lugar fundamental.
Nos nove trabalhos que constituem a segunda parte do livro, há um outro
eixo de pesquisas, central ao dia a dia da nossa pós-graduação e à realidade bra-
sileira contemporânea. Trata-se do principal objeto das ferramentas da psicologia
social e da psicologia cognitiva e é com base nessas ferramentas que os autores
procuram oferecer ao leitor uma melhor compreensão de fenômenos centrais da
atualidade mais recente; são eles, o racismo, os efeitos da pandemia da Covid-19
e a violência que marca estruturalmente a nossa sociedade.
Por fim, o conjunto de vinte e dois capítulos nos mostra, também, com
clareza contundente, a ampla e consistente rede de cooperação e intercâmbio que
conseguimos construir nesses quase quinze anos de existência. Estão presentes,
na bela lista de mais de cinquenta nomes que compõem a seção “Autores”, pes-
quisadores, docentes e pós-graduandos, de instituições como as Universidades
Federais da Bahia, do Rio Grande do Sul, da Paraíba, de Pernambuco e de São
Paulo, além de representantes da UNICAMP, dentre outras universidades e
centros de pesquisa. Assim, num momento em que, cada vez mais, reconhece-
mos a importância do investimento em ciência e educação como fundamental
para o desenvolvimento do nosso país, para a construção de um mundo mais
justo, com maiores perspectivas de futuro e em maior equilíbrio com nosso meio
ambiente, a publicação deste livro procura materializar nossa esperança e dar,
enfim, testemunho do nosso desejo de participar da construção deste Brasil e
deste mundo com que tanto sonhamos.
Seção I
Saúde,
educação e
desenvolvimento
humano
Apresentação
André Faro
Elder Cerqueira-Santos
Joilson Pereira da Silva

Esta seção apresenta 13 capítulos que abordam reflexões sobre o desen-


volvimento da infância. Seu intuito é debater, propor e aproximar conceitos
acerca das múltiplas expressões da infância a partir de diferentes pontos de vista
(gênero, saúde, educação e relações étnico-raciais) que estão sendo discutidos
junto à comunidade acadêmica, nacional e internacional, na intenção de que
possam contribuir para novos debates.
No capítulo 1, Menezes e Faro abordam os tipos mais comuns dos even-
tos traumáticos na infância, discutindo suas repercussões físicas, psicológicas
e sociais, seus impactos sobre a saúde mental e a importância das variáveis de
enfrentamento e adaptação positiva diante da exposição e esses eventos. No
capítulo 2, Cerqueira-Santos e Barbosa refletem sobre os aspectos do desenvol-
vimento sexual e de gênero na infância com foco na adoção e desenvolvimento
em famílias homoparentais e a homoparentalidade.
Os quatros capítulos seguintes destacam a importância de variáveis de
enfrentamento e adaptação positiva para o desenvolvimento da saúde mental
das crianças. Por este caminho, Souza e Silva (capítulo 3) propõe uma discus-
são acerca do Bem-Estar Subjetivo na infância e suas principais características.
No capítulo 4, Brito e Teruya refletem sobre o cuidado à criança com doença
crônica e destacam a importância das intervenções psicológicas nesse contexto.
No capítulo 5, Vitti, Oliveira, Nakano e Dellazzana-Zanon apontam como o
projeto de vida e a criatividade tem sido considerado como um fator de pro-
teção que contribui para a resiliência infantil. No capítulo 6, Pereira e Silva
procuram contextualizar a dislexia, expondo seus conceitos e características na
fase da infância. Além disso, apontam as funções das emoções e da inteligência
emocional no desenvolvimento de crianças disléxicas.
Os dois capítulos (7 e 8) seguintes trazem provocações acerca das crianças
autistas, refletem sobre o lugar social que esses sujeitos ocupam em nossa socie-
dade e analisam a forma como ainda são compreendidas. Nesse sentido, Dias,
Silva e Maciel utilizam os conceitos e ferramentas da Teoria das Representações
Sociais com o objetivo de fundamentar uma análise psicossocial do transtorno
do autismo. Por sua vez, Teixeira-Machado discute as contribuições das práticas
15

que envolvem a noção de corpo e suas intrincadas relações sociais, trazendo a


dança como um propulsor essencial para possibilidades de percepção corporal
no desenvolvimento em crianças autistas.
Os capítulos seguintes trazem uma reflexão no campo do desenvolvimento
educacional da criança. Com o objetivo de orientar estudantes de graduação,
professores e profissionais da saúde para o enfrentamento da violência sexual
contra crianças e adolescentes, Polli, Silva e Hohendorff (capítulo 9) descre-
vem os principais aspectos e procedimentos necessários em casos de suspeita
ou confirmação de violência sexual contra crianças e adolescentes. No capítulo
10 ao discutir os limites e possibilidades da Educação Sexual no currículo
de Ciências, Elaine Souza nos instiga a reconhecer, problematizar e descons-
truir preconceitos e oposições binárias que afetam as vivências de crianças com
identidades destoantes do padrão cisheteronormativo. No capítulo 11, Fabrício
Souza apresenta a importância de investigar a interação lúdica das crianças nos
ambientes digitais, levando em conta o papel das brincadeiras na apropriação
dos espaços e no estabelecimento de interações sociais. Em seguida, Barros,
Silva, Silva e Frizzo (capítulo 12) discutem o racismo estrutural e a branquitude,
evidenciando como esses conceitos atravessam a estrutura de práticas institu-
cionalizadas nos processos de adoção. Encerrando esta seção, Silva e Parente
(capítulo 13) sistematizam diretrizes educacionais, referenciais e conceitos re-
lativos à educação infantil, à educação integral e à educação em tempo integral
nessa etapa da educação básica.
Esperamos que os conteúdos desta seção possam fundamentar e nortear a
prática de profissionais da área da educação e da saúde, especialmente psicólo-
gos e professores, despertando reflexões e discussões sobre o desenvolvimento
infantil.
Capítulo 1
Eventos traumáticos e infância: uma revisão narrativa
Mariana S. Menezes
André Faro

Perder alguém querido de forma trágica, ser forçado a mudar de mora-


dia, sofrer o ataque de um animal, ficar preso em um ambiente fechado, ser
exposto a situações humilhantes e ser vítima de agressões físicas ou sexuais são
exemplos de situações traumáticas (American Psychiatric Association [APA],
2014; Zavaroni & Viana, 2015). Eventos traumáticos (ET) são considerados
experiências de estresse intensas e inesperadas que podem ocorrer uma única
vez e ser de grande dimensão ou diversas vezes de forma contínua (Zavaroni
& Viana, 2015). Seja qual for o tipo, ao longo da vida, pelo menos uma vez,
as pessoas podem se confrontar com experiências consideradas traumáticas
(Galatzer-Levy, Huang, & Bonanno, 2018).
Trauma ou traumatismo pode significar lesão de extensão, intensidade
e gravidade variáveis, capaz de ser produzida por agentes diversos e de forma
intencional ou acidental. Trauma ainda pode ser definido como choque vio-
lento capaz de desencadear perturbações várias ou grande abalo físico, mo-
ral ou mental (Ferreira, 2000). O DSM-5, na seção destinada à descrição do
Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), considera ET como qualquer
acontecimento que represente ameaça à integridade física e mental da própria
pessoa ou de terceiros (APA, 2014). A Classificação Internacional de Doenças –
11a Revisão (CID-11) (World Health Organization [WHO], 2018) define ET
como situações ou eventos estressantes ameaçadores capazes de provocar sin-
tomas psicopatológicos.
Em psicologia, uma situação pode ser considerada traumática quando é
composta de circunstâncias impactantes que exigem da pessoa uma reorganiza-
ção significativa das suas vivências e supera a sua capacidade de enfrentamento
(Zavaroni & Viana, 2015). Conforme a perspectiva cognitiva, para que um
trauma psicológico (TP) se configure como tal, é preciso que a situação estres-
sora seja percebida como ameaçadora, catastrófica e capaz de provocar medo
intenso e de sobrecarregar o indivíduo emocionalmente (Moraes & Rocha,
2017). O modo como uma pessoa é impactada pela ocorrência de um ET, além
de depender do modo como ela o interpreta e o avalia, depende também dos
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 17

tipos de pensamentos e sentimentos que ocorrem ao recordar o evento. Tais


pensamentos e sentimentos costumam ser negativos e contemplam conteúdos
de desamparo, autopiedade, autodepreciação, culpa, tristeza e raiva, podendo
tornar a pessoa mais suscetível a sofrer com os efeitos prejudiciais do ET (Gon-
çalves & Silva, 2018; Moraes & Rocha, 2017). Logo, ET costumam ser fortes
indicadores de TP.
A partir do momento em que um TP se estabelece, se não for favoravel-
mente manejado, pode ter repercussões para toda a vida e prejudicar a saúde
física e mental das pessoas, por essa razão é tão importante prevenir a ocorrência
de ET entre as crianças (Figueiredo, Dell’aglio, Silva, Souza, & Argimon,
2013). As diversas consequências dos ET podem ser explicadas, até certo ponto,
pela teoria do ecobiodesenvolvimento de Shonkoff. De acordo com essa teoria,
experiências adversas quando ocorrem na infância são capazes de prejudicar de
maneira significativa o desenvolvimento saudável e suas repercussões podem
persistir até a fase adulta (Shonkoff, 2012). Pessoas expostas a ET normalmente
entram num estado denominado estresse tóxico no qual ocorre uma superpro-
dução de cortisol, afetando o funcionamento de áreas específicas do sistema
nervoso que são responsáveis pela cognição, emoções e sistema imunológico
(Branco & Linhares, 2018; Shonkoff, Richter, van der Gaag, & Bhutta, 2012).
Quanto maior for o tempo de exposição aos ET, piores serão as consequências
para a saúde das vítimas (Shonkoff, 2012).
A respeito das consequências para a saúde física, sabe-se que viver situações
traumáticas está associado a risco elevado de condições clínicas diversas, tais
como dor crônica, diabetes, obesidade e até mesmo ataques cardíacos (Silva
& Hasselmann, 2018). Quanto às consequências para a saúde mental, tem-se
conhecimento de que ser exposto a situações traumáticas possui relação com a
diminuição da capacidade cognitiva e das habilidades de regulação emocional
e que pode predispor ao desenvolvimento de transtornos mentais (APA, 2014;
Waikamp & Serralta, 2018).
Quando ET ocorrem na infância ou adolescência, geralmente acabam atra-
palhando o desenvolvimento saudável. Suas consequências nessas fases da vida
são diversas, podendo levar a problemas físicos, psicológicos, cognitivos, compor-
tamentais e sociais (Cook et al., 2017). Por exemplo, crianças e adolescentes que
foram expostos a ET podem apresentar sobrepeso, doenças crônicas, dificuldade
de regular as emoções, problemas de aprendizagem, atraso no desenvolvimento
da linguagem, comportamentos agressivos, condutas autodestrutivas como a
autolesão e isolamento social (Cook et al., 2017; Silva & Hasselmann, 2018).
18 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Cabe ressaltar, ainda, que as repercussões dos ET na infância podem causar


sofrimento psicológico por muitos anos, podendo se estender até a idade adulta
(Waikamp & Serralta, 2018). O TEPT, por exemplo, é o transtorno mental que
mais se manifesta em pessoas que foram traumatizadas psicologicamente e pode
ocorrer em qualquer momento a partir de quando a pessoa se torna consciente
do trauma sofrido (APA, 2014).
Embora ET possam gerar diversas consequências negativas, sobretudo
quando são capazes de desencadear TP, é possível que o indivíduo responda de
forma mais favorável (ou pelo menos, menos negativa) ao ET se for submetido
à intervenções voltadas ao desenvolvimento de algum estágio de ajustamen-
to psicológico saudável. Usualmente, recursos psicológicos que podem servir
como indicadores do ajustamento psicológico são capazes de contribuir para a
superação de situações adversas, o que inclui os TP (Seaton, 2009). Isso ocorre
à medida que tais recursos otimizam o manejo psicológico – por exemplo, para
lidar com um trauma –, influenciando a maneira como o indivíduo o percebe
e o significa, além de possibilitar a emissão de comportamentos em busca de
algum nível de adaptação (Faro & Kluge, 2018). Alguns desses recursos psico-
lógicos são a resiliência, o enfrentamento (coping), a regulação emocional e a
autoestima (Moraes & Rocha, 2017; Seaton, 2009).
Diante do exposto, pode-se considerar que ET, quando percebidos pelas
vítimas como sendo impactantes, são capazes de provocar mudanças significa-
tivas em suas vidas. Acredita-se, assim, que estudos sobre ET são importantes,
pois contribuem para ampliar os conhecimentos acerca de aspectos relevantes,
tais como suas repercussões para a saúde física e mental. Além do mais, a me-
lhor compreensão dos ET pode propiciar o desenvolvimento de estratégias de
prevenção e controle mais assertivas e capacitar profissionais da saúde para atuar
e ajudar os indivíduos afetados no manejo das consequências dos ET vividos.
O presente capítulo diz respeito a uma revisão narrativa da literatura.
O objetivo foi reunir os principais achados sobre os ET levando em conside-
ração os seguintes aspectos: os tipos mais comuns; suas repercussões físicas,
psicológicas e sociais; impactos sobre a saúde mental; variáveis de enfrentamento
e adaptação positiva frente a ocorrência do ET e, por fim, as medidas mais
utilizadas na sua avaliação.

Tipos de eventos traumáticos


Os ET comumente são classificados em acidentais (desastres naturais,
acidentes automobilísticos, etc.) ou interpessoais (violência, perda trágica de
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 19

pessoas queridas, entre outros) (Lima, Silva, Vasconcelos, & Macena, 2019;
(WHO, 2019). Situações de emergência, a exemplo de desastres produzidos
por causas naturais (furacões, secas, enchentes, etc.) e tragédias associadas à
ações humanas (incêndios, guerras, violência urbana, acidentes automobilísti-
cos, aéreos, de trabalho, entre outros.) tendem a ser traumáticas, pois costumam
gerar sérias alterações na vida das pessoas, como danos materiais/econômicos,
físicos e psicológicos (Alves, Lacerda, & Legal, 2012). Essas situações caóticas
normalmente causam grande desorganização psicológica, sensação de risco
iminente, sentimentos negativos (raiva, desespero, etc.), distúrbios do sono,
hipervigilância, ansiedade e depressão (Vasconcelos & Cury, 2017).
Quando alguém querido morre de forma inesperada e/ou trágica (por
morte em acidentes automobilísticos, tiroteios ou repentina por motivo de
doenças como Infarto Agudo do Miocárdio), a perda, na maioria das vezes,
é intensamente dolorosa e sentida como uma separação brusca e violenta que
ocasiona sentimentos de ausência, vazio e saudade (Costa, Schenker, Njaine, &
Souza, 2017; Souza, 2017). Assim, familiares de sobreviventes de tragédias e
desastres também são considerados vítimas, uma vez que essas pessoas podem
ser grandemente afetadas e traumatizadas psicologicamente.
A violência sexual é um dos ET que ocorre com maior frequência. Diz res-
peito ao ato sexual consumado ou não, sem o consentimento de uma das partes
ou é qualquer conduta que force a pessoa a presenciar relação sexual, que induza a
comercializar sua sexualidade, que impeça a vítima de usar métodos contraceptivos
ou que obrigue ao matrimônio, gravidez, aborto e prostituição mediante qualquer
tipo de imposição, manipulação e controle (Decker et al., 2018). As principais ví-
timas desse tipo de violência são crianças e mulheres devido à dominação dos mais
velhos sobre os mais novos e das desigualdades nas relações de gênero existentes
na sociedade (Decker et al., 2018). Crianças e mulheres que sofreram violência
sexual tendem a enfrentar maiores problemas de saúde e a procurarem com maior
frequência atendimentos de saúde ao longo da vida (Organização Mundial da
Saúde [OMS], 2018).
Violência física é outro tipo de ET bastante comum. Trata-se da força física
empregada contra alguém que resulte ou tenha uma alta probabilidade de resul-
tar em danos à saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da pessoa.
Bater, morder, queimar, sacudir, sufocar, estrangular e outros comportamentos
violentos, são considerados violência física. Tal modalidade de violência pode
ser identificada através de sinais físicos como hematomas, fraturas, cicatrizes,
queimaduras, etc. (Mohamed & Naidoo, 2014). Além disso, a violência física
20 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

pode ser classificada em leve (quando há poucas equimoses e abrasões); mode-


rada (quando há presença de equimoses moderadas, queimaduras e uma única
fratura óssea) e grave (quando há grandes queimaduras, fraturas ósseas múltiplas
e outras lesões com risco de vida) (Kemoli & Mavindu, 2014).
A violência psicológica, outra modalidade de ET, ocorre quando uma pes-
soa se comporta, com frequência, de modo a rebaixar ou negar o modo de ser da
outra pessoa, causando sofrimento e gerando danos à autoestima, à identidade
ou ao desenvolvimento da outra pessoa (Silva & Assumpção, 2018). A violência
psicológica comumente acontece em relações nas quais existe algum vínculo
afetivo entre agressor e vítima. Esse tipo de violência costuma se desenvolver
aos poucos de forma silenciosa e causar vários danos, sendo os principais: dis-
túrbios cognitivos e de memória, além de sintomas de depressão e de ansiedade
(Gonçalves & Silva, 2018; Silva & Assumpção, 2018).
Negligência também é um dos tipos de ET mais frequentes e se refere à
falha em prover (quando se tem recursos disponíveis) o desenvolvimento e o
bem-estar da pessoa dependente em termos de saúde, educação, desenvolvimen-
to emocional, nutrição, abrigo e/ou condições de vida seguras (Stoltenborgh,
Bakermans-Kranenburg, & Van Ijzendoorn, 2013). A negligência pode ser
classificada em física, emocional e educacional. É física quando as necessidades
físicas de uma pessoa não são atendidas (como o não fornecimento de roupas
limpas, nutrição adequada e assistência médica). É emocional quando não há
o atendimento das necessidades emocionais da pessoa, e inclui, por exemplo, o
fracasso em fornecer carinho e afeição adequada. Por fim, é educacional quando
existe falha em fornecer a supervisão necessária para garantir a educação de uma
pessoa (como deixar de matricular uma criança em idade escolar obrigatória na
escola) (Stoltenborgh et al., 2013).
Abandono é mais um exemplo de situação que pode ser potencialmente
traumática. Assim como acontece na negligência, as vítimas de abandono são
pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade (Thums & Fonseca,
2016). Abandono se refere à ausência de cuidados necessários por parte dos res-
ponsáveis e pode ser classificado em físico ou afetivo. O abandono físico consiste
em desassistir a pessoa de moradia, não assegurar seu bem-estar material, a
integridade de sua vida e a manutenção da sua saúde (Correa, 2019; Thums &
Fonseca, 2016). O abandono afetivo, por sua vez, manifesta-se por meio do não
provimento de afeto, ou seja, da total ausência de demonstração de sentimentos
como amor, da falta de assistência e, em se tratando de menores, da falta de
orientação da conduta e imposição de limites (Correa, 2019).
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 21

Todos os tipos de ET aqui apresentadas são prejudiciais e podem causar


danos ao desenvolvimento e a saúde física e mental daqueles que são afetados.
A seguir, seus efeitos negativos serão abordados.

Repercussões dos eventos traumáticos


As repercussões dos ET podem ser físicas, sociais e psicológicas. Quan-
to às consequências físicas, sabe-se que a ocorrência de ET, particularmente
aqueles de natureza interpessoal, está associada a transtornos do sono (Borges,
Zoltowski, Zucatti, & Dell’Aglio, 2010), ao passo que comumente se relaciona
com a insuficiência do sono e com a ocorrência de pesadelos e terror noturno
(Lind et al., 2017). Também há evidências de que maus-tratos familiares pos-
suem associação com sobrepeso. Por exemplo, excesso de gordura corporal e
abdominal em adolescentes se mostrou associado com a vivência de maus-tratos
na família (Silva & Hasselmann, 2018).
Outra consequência física dos ET são as lesões corporais que, normal-
mente, quando não são provocadas por acidentes, são resultado de violência
física ou sexual. Dentre as lesões físicas que vítimas desses tipos de violência
costumam apresentar estão: hematomas, lesões orofaciais e traumatismo cranio-
facial. Quanto à distribuição das lesões no corpo, o rosto, a cabeça e os braços
são as áreas mais afetadas, respectivamente. Reações corporais como atraso do
crescimento e do desenvolvimento físico (especialmente em crianças e adoles-
centes) também estão relacionadas à ocorrência de TP (Cook et al., 2017). Além
disso, doenças dermatológicas e sexualmente transmissíveis podem ocorrer após
a vivência de situações traumáticas (Crosta et al., 2018; Drezett, 2018).
No que tange às repercussões sociais, sabe-se que pessoas que foram ex-
postas a ET têm maior predisposição para se engajarem em comportamentos de
risco tais como abuso de substâncias e comportamentos antissociais e agressivos.
Por exemplo, adolescentes que são expostos à violência familiar tendem a pra-
ticar bullying no ambiente escolar (López, Martínez, Rodríguez, & Arguello,
2018). Especialmente nos casos de violência sexual, algumas das consequências
podem ser comportamento sexual inadequado e gravidez indesejada (Nunes &
Morais, 2017).
Por fim, no que se refere às repercussões psicológicas, indivíduos que
vivenciaram ou vivenciam ET podem exibir déficits no funcionamento psi-
cológico e se encontrarem em estado de maior vulnerabilidade ao sofrimento
psicológico (Dias et al., 2018; Moraes & Rocha, 2017). Essas pessoas podem
apresentar alterações cognitivas, emocionais e comportamentais, tais como:
22 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

baixa concentração, atenção reduzida, distorções cognitivas; sentimentos de


medo, vergonha, culpa, ansiedade, tristeza e raiva; além de isolamento social,
comportamentos autolesivos, impulsivos e comportamentos de fuga e esquiva
(estes mencionados por último estão relacionados a uma tentativa de supri-
mir ou evitar estímulos que remetem ao ET e que são considerados aversivos)
(Machado, 2017).
Uma das distorções cognitivas mais comuns em pessoas que foram trau-
matizadas psicologicamente é a personalização (falha em perceber que outras
pessoas ou variáveis também podem ter influenciado a ocorrência de aconteci-
mentos negativos) e a generalização (perceber padrões globais para acontecimen-
tos negativos isolados) (Knapp & Beck, 2008). No entanto, outras distorções
cognitivas podem ser identificadas com frequência entre essas pessoas, tais como
a catastrofização (avaliação das consequências dos eventos futuros de forma
exagerada), a autorresponsabilização (dificuldade do indivíduo de distribuir
responsabilidades às pessoas envolvidas no ET e de encontrar explicações al-
ternativas para o acontecido, além da característica de assumir responsabilidade
às situações que não possui controle), a adivinhação (preocupações relativas a
eventos futuros), previsões negativas (pensar que as consequências de even-
tos futuros serão negativas) e a hipervigilância (sensação de perigo constante)
(Knapp & Beck, 2008). Para além dessas repercussões até então comentadas,
ET podem prejudicar de maneira significativa a saúde mental e predispor ao
desenvolvimento de transtornos mentais (Dias et al., 2018).

Impactos sobre a saúde mental


A exposição a ET está fortemente associada com o surgimento de dife-
rentes tipos de transtornos mentais. As consequências adversas do ET na saúde
mental podem repercutir ao longo da vida de modo que adultos vitimizados
durante a infância têm apresentado maior risco de desenvolver transtornos men-
tais em comparação àqueles que nunca vivenciaram ET (Waikamp & Serralta,
2018). O transtorno mental que tem se mostrado mais associado à exposição a
ET é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O TEPT é uma per-
turbação mental complexa que inclui sintomas intrusivos repetidos e indesejados
sobre o ET (lembranças, sonhos e flashbacks), a evitação persistente dos estímulos
associados ao mesmo (pensamentos, emoções e lugares), alterações negativas
nas cognições e no humor (cognições, crenças ou expectativas distorcidas) e
alterações significativas da ativação e reatividade (hipervigilância, dificuldade
para dormir e comportamento irritável) (APA, 2014).
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 23

Atualmente, tem-se defendido a existência do que se pode considerar um


estado de agravamento do TEPT. Tal fenômeno tem sido denominado trauma
complexo. O trauma complexo ocorre quando a exposição a ET de natureza in-
terpessoal é múltipla, crônica e prolongada e resulta em complexas desadaptações.
O trauma complexo tem demonstrado consequências e sintomas psiquiátricos
não considerados pelo atual diagnóstico de TEPT, tais como: sintomas somáticos
(dores diversas, distúrbios gastrintestinais, tremores, sensações de choque e náu-
sea), dissociativos (alteração da realidade, alteração de personalidade, alucinações,
confusão temporal entre presente e passado) e afetivos (sintomas depressivos, in-
sônia, apatia, desamparo, culpa, dificuldades de concentração, comportamentos
suicidas, alteração na visão de si e dos outros). Salienta-se também a presença de
hipervigilância, agitação e ansiedade extrema em consequência das recordações
das memórias traumáticas (Vasconcelos & Cury, 2017).
Pessoas que vivenciaram situações traumáticas também podem desenvol-
ver transtornos do humor, incluindo transtornos depressivos (Figueiredo et al.,
2013). Há evidências de que a violência psicológica sofrida por mulheres em
relacionamentos interpessoais abusivos possui relação com a depressão (Silva &
Assumpção, 2018). Outro estudo revelou que mulheres que sofreram abuso físico
e sexual na infância têm mais chance de apresentar depressão e distimia na fase
adulta (Ibarra-Alcantar, Ortiz–Guzmán, Alvarado–Cruz, Graciano–Morales,
& Jiménez–Genchi, 2010). ET também possuem relação com comportamentos
de risco suicida. Uma pesquisa com adolescentes revelou alta incidência de ET
infantis em pacientes que praticavam comportamentos autolesivos. A autoagres-
são é relatada por aqueles que a praticam como uma forma de aliviar alguma
dor emocional (geralmente provocada pelo ET, ainda que a pessoa não tenha
clareza a respeito de tal relação) (Proaño, 2018).
ET de caráter sexual, quando ocorrem na infância, possuem potencial de
desenvolver graves problemas sexuais no futuro, principalmente em mulheres.
Mulheres vítimas de violência sexual podem ter a satisfação sexual prejudicada
e sofrerem com a diminuição do desejo e da excitação sexual, redução da capaci-
dade de lubrificação e orgasmos e sentir dores durante as relações sexuais (APA,
2014). Além do comprometimento do funcionamento sexual, essas mulheres po-
dem passar a evitar ter relações sexuais ou podem apresentar um comportamento
hipersexualizado e desenvolver o transtorno de compulsão sexual. Além disso,
vítimas de violência sexual podem transferir para as relações sexuais posteriores
memórias e sentimentos negativos associados a situação traumática, ainda que
essas relações não se caracterizem como abusivas (Aaron, 2012).
24 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Transtornos de personalidade também parecem estar associados com a ex-


posição à ET. Segundo uma pesquisa realizada por Conceição, Bello, Kristensen
e Dornelles (2015), indivíduos diagnosticados com transtorno de personalidade
borderline apresentam histórico de ET na infância. Outra implicação dos ET
para a saúde mental são os transtornos alimentares. Experiências traumáticas
na infância, especialmente relacionadas à sexualidade, podem resultar, ao lon-
go da vida, em insatisfação com a imagem corporal, uma vez que o corpo faz
lembrar do ocorrido e leva o indivíduo a buscar mudanças corporais através do
comportamento alimentar inadequado (Rocha, Andrade, & Silva, 2018).

Enfrentamento e adaptação positiva frente aos eventos traumáticos


Apesar das consequências negativas dos ET para a saúde, algumas pessoas
conseguem lidar melhor com eles, obtendo, na maioria das vezes, um desfecho,
de certa forma, positivo. Alguns recursos adaptativos podem auxiliar no ajus-
tamento psicológico de pessoas que foram expostas a ET, protegendo-as dos
efeitos prejudiciais que tais eventos podem oferecer à saúde e contribuindo até
mesmo para melhorar o bem-estar físico e psicológico dessas pessoas.
Um desses recursos adaptativos é a resiliência, que diz respeito a um processo
que pode variar de acordo com determinadas características individuais como sexo,
idade e também influências sociais como o ambiente familiar e cultural em que a
pessoa vive. Com base nesse ponto de vista, esse recurso não seria inato, mas sim
um atributo dependente da interação de diferentes fatores e que é desenvolvido ao
longo do tempo (Infante, 2005). Pessoas resilientes tendem a avaliar as situações
traumáticas como menos ameaçadoras e a serem menos afetadas pelo sofrimento
psicológico que o evento poderia causar. Portanto, um indivíduo resiliente, ao ser
exposto a algum ET, ainda que tenha seu funcionamento normal prejudicado
e apresente alguns sintomas após o evento, é capaz de se manter relativamente
saudável em termos físicos e psicológicos. Essas pessoas são, ainda, capazes de
experienciar emoções positivas apesar da exposição ao ET (Bonanno et al., 2011).
Coping é um conjunto de estratégias utilizadas pelas pessoas para adapta-
rem-se a circunstâncias adversas. Trata-se de esforços cognitivos e comporta-
mentais utilizados pelos indivíduos no intuito de lidar com demandas específi-
cas, internas ou externas, que surgem em situações de stress e são avaliadas como
sobrecarregando ou excedendo seus recursos pessoais (Lazarus & Folkman,
1984). Algumas estratégias de coping têm se mostrado mais associadas a me-
lhores respostas frente a ET. Dentre elas, pode-se citar: a reavaliação positiva,
o humor, o coping focado no problema e o coping religioso. O uso da reavaliação
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 25

positiva e do humor tem se mostrado associado a níveis inferiores de sofrimento


psicológico, a menor experiência de emoções negativas e a maior experiência
de emoções positivas após o ET (Brooks, Graham-Kevan, Robinson, & Lowe,
2019). O humor, em particular, promove o contato com outras pessoas e o su-
porte social. O coping focado na resolução de problemas permite que a pessoa
busque resolver os conflitos psicológicos gerados a partir dos acontecimentos
traumáticos. Quanto ao coping religioso, sabe-se que influencia o modo como
os indivíduos interpretam e lidam com os ET e promove bem-estar (Galatzer-
-Levy, Burton, & Bonanno, 2012).
O conceito de crescimento pós-traumático (CPT) é relativamente recente,
mas já se tem estabelecido que se trata de uma mudança psicológica positiva e
de um crescimento pessoal significativo após a vivência de algum ET (Tedes-
chi & Calhoun, 2004). O CPT ocorre quando se estabelece um confronto do
indivíduo com a nova realidade após o ET, no qual ele tenta compreender essa
nova realidade e aceitá-la. Uma das características principais do CPT é que sua
ocorrência requer que exista algum sofrimento psicológico substancial, pois tal
sofrimento é fundamental para iniciar o crescimento e para mantê-lo ou au-
mentá-lo quando já estiver estabelecido (Brooks et al., 2019). Acredita-se que
indivíduos que vivenciam ou vivenciaram o CPT experimentam mudanças na
percepção do self, nas relações pessoais e na filosofia de vida. Passam a apreciar
mais a vida, a reconhecer novas possibilidades, mudam as prioridades, passam
a ter relações mais carinhosas e íntimas com as outras pessoas e desenvolvem-se
espiritualmente (Ha, Bae, & Hyun, 2019).
Por fim, estudos apoiam que existe relação entre o suporte social e um
melhor ajustamento após ET (Dworkin, Ullman, Stappenbeck, Brill, & Kaysen,
2018). Em pessoas que vivenciaram ET, perceber que o suporte social que recebe
é efetivo tem se mostrado relacionado à redução de sintomas do TEPT e parece
favorecer o crescimento pós-traumático, por exemplo. Além disso, os benefícios
do suporte social para pessoas expostas a ET também estão associados à possibi-
lidade de a pessoa conversar sobre o evento desencadeador do trauma psicológico
e atribuir significado ao mesmo (Idas, Backholm, & Korhonen, 2019).

Instrumentos para avaliação de eventos traumáticos


Como já foi exposto no presente capítulo, ET podem resultar em prejuízos
diversos para a saúde das populações. Sendo assim, a investigação dos ET é
importante visto que possibilita uma melhor compreensão acerca deste fenôme-
no, favorecendo intervenções mais assertivas junto a pessoas que vivenciaram
26 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

tais experiências. Existem muitos instrumentos para avaliação de experiências


traumáticas, porém nesta seção serão mencionados alguns deles.
No que concerne as escalas que ainda não possuem versão brasileira, há
a Child Trauma Interview (CTI) (Fink et al., 1995). A CTI trata-se de uma
entrevista semi-estruturada que avalia as seguintes áreas de traumas infantis:
separações e perdas, negligência física, testemunhar violência e abuso sexual,
físico e emocional. O instrumento permite avaliar a gravidade e frequência da
situação adversa em adolescentes e adultos. Uma versão mais recente da CTI
foi proposta por Vrshek-Schallhorn et al. (2014). As modificações realizadas
estão relacionadas à criação de novos índices para calcular os escores da CTI.
Outro instrumento útil para avaliação de ET em âmbito internacional é a Re-
trospective Assessment of Traumatic Experience (RATE) (Gallagher, Hurt, Stone,
& Hull, 1992) que consiste em uma entrevista e investiga a ocorrência de abusos
sexuais e físicos e de negligência. Os itens avaliam a gravidade do ET através
de escalas de 0 a 4. O instrumento também pergunta a respeito do autor e da
duração do abuso.
Quanto aos instrumentos sobre ET que foram traduzidos, adaptados e
validados para o contexto brasileiro, pode-se citar o Early Trauma Inventory
(ETI) (Bremner, Vermetten, & Mazure, 2000), que investiga em adultos expe-
riências traumáticas ocorridas até os 18 anos de idade. O ETI é uma entrevista
semi-estruturada com 52 itens que investigam abuso físico, sexual, emocional,
além de outras formas de experiências traumáticas. Cada item mensura a fre-
quência, a fase do desenvolvimento no qual houve o abuso, a duração, o agressor
e as repercussões no indivíduo no período do abuso. A escala também mensura
o tipo de repercussão gerada pelo abuso no momento da pesquisa. O ETI foi
traduzido para o português, transculturalmente adaptado para o Brasil e teve
sua consistência interna avaliada por Mello et al. (2010). De acordo com os
autores, a versão brasileira do ETI é válida e consistente, portanto, capaz de
avaliar traumas precoces em adultos no país. Uma versão reduzida do ETI, o
Early Trauma Inventory Self Report – Short Form (ETISR-SF), foi proposta por
Bremner, Bolus e Mayer (2007). A ETISR-SF é composta por 27 itens que
avaliam ET gerais e abuso físico, emocional e sexual, sendo que cada item deve
ser respondido de forma dicotômica (sim / não). A escala foi traduzida, adaptada
e validada para o contexto brasileiro por Osório et al. (2013). A avaliação da
validade e confiabilidade demonstrou indicadores adequados.
O Questionário Sobre Traumas na Infância (QUESI) é a versão brasilei-
ra do Childhood Trauma Questionnaire (CTQ ). Grassi-Oliveira, Stein e Pezzi
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 27

(2006) foram os responsáveis pela tradução da escala para o português e pela sua
adaptação e validação para o contexto brasileiro. O QUESI pode ser aplicado
em adolescentes com mais de 12 anos e em adultos e possui 28 itens que ser-
vem para mensurar diversas formas de abuso ocorridos na infância (emocional,
físico, sexual e negligência) (Grassi-Oliveira et al., 2006). Alguns anos depois
da publicação da versão brasileira do QUESI por Grassi-Oliveira et al. (2006),
Brodski, Zanon e Hutz (2010) analisaram as propriedades psicométricas des-
ta escala. Os autores verificam uma estrutura trifatorial para a escala (abuso
emocional, abuso sexual e abuso físico) e constataram que a versão proposta por
eles possui validade fatorial para cada um dos fatores e índices de consistência
interna satisfatórios. O instrumento contém 21 itens e a modalidade de resposta
é Likert de cinco pontos, na qual “1” significa que nunca ocorreu, “2” significa
que ocorreu poucas vezes, “3” significa que ocorreu às vezes, “4” significa que
ocorreu muitas vezes e “5” significa que ocorreu sempre (Brodski et al., 2010).
Por fim, há o Childhood Experiences of Care and Abuse (CECA) (Bifulco,
Brown, & Harris, 1994) que também tem a sua versão em português: Escala de
Cuidado (EC) (Carvalho et al., 2018). O CECA avalia experiências de cuidado
(negligência, antipatia, perda parental, abuso físico e sexual) desde a infância
até os 17 anos. A escala original contém 16 itens e é respondida duas vezes,
uma em relação à mãe e outra em relação ao pai. A versão em português possui
apenas 12 itens visto que alguns itens (7, 8, 11 e 15) não apresentaram qualida-
des psicométricas satisfatórias para se manterem na escala. Deste modo, a EC
exibiu qualidades psicométricas adequadas para ser utilizada em estudantes, na
população geral e em populações com psicopatologia depressiva.

Considerações finais
No presente capítulo foi conduzida uma revisão narrativa da literatura.
Buscou-se reunir e apresentar informações relevantes sobre ET, incluindo as-
pectos como: os tipos mais comuns; suas repercussões físicas, psicológicas e
sociais; seus impactos sobre a saúde mental; algumas variáveis de enfrentamento
e adaptação positiva utilizadas diante da exposição aos ET e as medidas mais
utilizadas para a sua avaliação.
Quanto aos tipos de ET, foi possível verificar que desastres ou tragédias,
acidentes, a perda inesperada e/ou trágica de pessoas queridas e violência inter-
pessoal (violência física, violência sexual, negligência e abuso psicológico) têm
sido evidenciados como os mais recorrentes. Por meio desta revisão, foi possí-
vel constatar também que a exposição aos ET pode diferir entre populações.
28 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

No Brasil, determinados grupos se revelam como mais vulneráveis aos ET.


Crianças e adolescentes, por exemplo, são as principais vítimas de violência
interpessoal no país (Moreschi, 2018). A população infantojuvenil, idosos e
pessoas com doenças físicas ou transtornos mentais incapacitantes são os que
mais sofrem com a negligência e o abandono (Stoltenborgh et al., 2013; Thums
& Fonseca, 2016). A maior parte das vítimas de violência sexual são do sexo
feminino (Decker et al., 2018). É válido ressaltar que a violência interpessoal,
em muitos casos, possui relação com questões culturais, tais como a crença de
que é preciso agir de forma agressiva para resolver conflitos e educar os mais
novos e também com desigualdades nas relações, seja devido à idade, às condi-
ções de saúde limitantes ou a preconceitos provenientes de diferenças de gênero
(Pereira & Agostinho, 2015).
As pesquisas revisadas também apontaram que as repercussões dos ET
podem ser (1) físicas, tais como: sobrepeso, lesões corporais decorrentes de
agressões físicas, atraso do crescimento e do desenvolvimento físico, doenças
dermatológicas e doenças sexualmente transmissíveis; (2) psicológicas, rela-
cionadas a alterações cognitivas (como redução da capacidade de concentração
e atenção e presença de distorções cognitivas), emocionais (como uma maior
experienciação de sentimentos negativos) e comportamentais (como autolesão);
e (3) sociais, a exemplo do engajamento em comportamentos de risco, antis-
sociais e agressivos. Foi visto também que os ET são capazes de prejudicar a
saúde mental das pessoas podendo predispor ao desenvolvimento de transtornos
mentais como transtornos de depressão, de ansiedade, de personalidade, do
estresse pós-traumático e trauma complexo.
Experiências adversas quando ocorrem na infância podem prejudicar o
desenvolvimento saudável e gerar repercussões negativas por toda a vida. Quanto
maior for o tempo de exposição aos ET, piores serão as consequências para a
saúde das vítimas (Shonkoff, 2012). No entanto, mesmo diante das consequên-
cias negativas dos ET para o desenvolvimento e para a saúde, pessoas que foram
expostas a tais eventos podem utilizar estratégias de enfrentamento para lidar
com os seus efeitos. A literatura aponta como sendo alguns dos recursos capazes
de contribuir para a superação dos efeitos negativos dos ET: a resiliência, o co-
ping, o crescimento pós-traumático e o suporte social. Quanto aos instrumentos
válidos para a avaliação dos ET, viu-se que há instrumentos disponíveis para
uso tanto em âmbito internacional - como o Child Trauma Interview (CTI) –
quanto no contexto brasileiro, a exemplo do Questionário Sobre Traumas na
Infância (QUESI) e da Escala de Cuidado (EC).
Capítulo 1 – Mariana S. Menezes e André Faro 29

Portanto, os resultados desta revisão sugerem que ET são capazes de


desencadear TP e provocar, na maioria das vezes, prejuízos significativos ao
desenvolvimento e a saúde das pessoas afetadas. Acredita-se que o presente
capítulo poderá servir de apoio para o desenvolvimento de pesquisas científicas,
fornecendo suporte ao referencial teórico de tais pesquisas e, consequentemente,
favorecer o crescimento de estudos e pesquisas sobre os ET. Espera-se, ainda,
que o conteúdo deste capítulo possa fundamentar e nortear a prática de profis-
sionais da saúde, especialmente psicólogos, para que atuem junto a indivíduos
vitimados no manejo das consequências dos ET vividos.

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Capítulo 2
Famílias diversas, desenvolvimento
infantil e estereotipia de gênero
Elder Cerqueira-Santos
Isabelle Haaiara Andrade Barbosa

No ciclo de desenvolvimento humano, a psicologia reservou pouca aten-


ção para as questões de desenvolvimento sexual na infância, ainda menos
no debate sobre desenvolvimento de gênero. As teorias psicológicas clássicas
foram fortemente influenciadas pela ideia de desenvolvimento psicossexual
proposto por Freud, na psicanálise, mas pouco avançaram além disso, apesar
de discordâncias e disciplinadores enfáticos. Atualmente, os debates sobre as
diversas configurações familiares e ambientes desenvolvimentais forçam a área
a pensar questões específicas sobre o desenvolvimento de crianças em contextos
familiares diversos.
De forma mais ampla, o debate atual sobre gênero e sexualidade levan-
tou uma série de questões sobre como e quando marcos do desenvolvimento
sexual acontecem – puberdade, orientação sexual, identidade de gênero. Entre
estas questões, destacam-se os marcos tidos como “não-normativos”, que con-
traiam as expectativas sociais na conformação corpo, sexo, gênero. Algumas das
perguntas que muitos evitam ou não sabem responder são: “Existem crianças
transsexuais?” ou “Quando acontece a introjeção da identidade de gênero?” ou
ainda “Em que medida a identidade de gênero é aprendida ou inata?”. Uma
breve busca na literatura acadêmica em Psicologia mostra que estas respostas
não são simples.
Embora se configure como uma questão complexa, ainda com muitos
impasses na Academia, se trata de uma temática que apresenta implicações
práticas, que cobre e atravessa diversas experiências individuais e coletivas, ainda
que muitas vezes não seja enfatizada. Um exemplo de como o sexo atribuído e o
gênero organizam vivências cotidianas, compondo histórias pessoais, familiares
e coletivas, é o fenômeno do “chá de revelação”, frequentemente registrado e
compartilhado nas redes sociais. Se trata de uma variação do “chá de bebê”,
evento organizado para reunir família e amigos, que contribuem com presentes,
fraldas, roupas e outros artigos que ajudarão no cuidado do bebê por nascer.
O chá de revelação, no entanto, está centrado na revelação do sexo do bebê
36 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

gestado, deixado em segredo para gestante/casal, informado coletivamente por


meio de cores que sinalizam o sexo feminino e masculino. É uma prática que
se difundiu e que, na maioria das vezes, passa a organizar a relação estabelecida
com o bebê, a quem se atribui não apenas um nome masculino ou feminino, mas
também quais peças de roupa irá usar, quais presentes irá ganhar em seguida e,
o mais importante, quais expectativas serão criadas e alimentadas em torno de
sua personalidade e atividades.
Esse exemplo é apenas um dentre muitos nos quais é possível notar de
que modo as crenças sobre sexo, gênero e desenvolvimento infantil operam
organizando contextos diversos de interação familiar, social e até mesmo de
cuidado em saúde.

Desenvolvimento e sexualidade
A vivência da sexualidade é um processo de interação entre desenvolvi-
mento humano e inserção no grupo social (Ramos & Cerqueira-Santos, 2020).
Os aspectos individuais e sociais interferem constantemente no desenvolvi-
mento sexual humano, mesmo os aspectos biológicos da sexualidade devem
ser analisados em conjunto com a dimensão social e cultural (Vandenbosch,
2018). Nessas dimensões, as noções de continuidade e inseparabilidade da tríade
sexo-gênero-desejo na sexualidade dos indivíduos são instauradas. Instalada nas
normas sexuais essa ideologia propõe um sistema normativo de estruturação da
sexualidade, baseado no binarismo e na heterossexualidade compulsória (Rich,
1980; 2008), que inserem indivíduos na socialização sexual.
Conforme revisado por Ramos e Cerqueira-Santos (2020), a socialização é
um processo longitudinal de aprendizado: as condutas, símbolos códigos, normas,
processos e diversos outros elementos que são compartilhados com os indivíduos
possibilitam sua inserção na sociedade (Shtarkshall, Santelli, & Hirsch, 2007).
Os estímulos ambientais contribuem mediando o desenvolvimento do indivíduo
(Vandenbosch, 2018). É através dessa jornada que o sujeito formula, por exem-
plo, seus roteiros sexuais. Portanto, a socialização sexual é, de modo geral, um
processo intrapsíquico, interpessoal e sociocultural (Gagnon & Simon, 1973),
afinal todos esses diferentes sistemas são partícipes dessa formulação.

Aspectos do desenvolvimento sexual e de gênero na infância


A pouca atenção dada aos aspectos do desenvolvimento de comporta-
mentos sexuais de crianças e adolescentes pela psicologia do desenvolvimento
tem impactos teóricos e empíricos sobre os marcos de desenvolvimento. Poucas
Capítulo 2 – Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa 37

tentativas foram baseadas na repetição de uma narrativa sobre a dinâmica psi-


cossexual proposta por Freud e amplamente popularizada ao ponto de embasar
distorções simplificadoras, universais e deterministas.
Sanderson (2005) sugere comportamentos sexuais típicos observáveis em
crianças de acordo com a etapa desenvolvimental. Segundo a autora, crianças
em idade pré-escolar (0 a 4 anos) apresentam grande curiosidade sobre o corpo
humano e fazem muitas brincadeiras que envolvem a exploração do próprio
corpo. Nos primeiros dois anos, observam-se brincadeiras solitárias que se
baseiam em experiências sensoriais agradáveis, que tendem a aumentar pelo
prazer gerado. As brincadeiras características são a autoexploração e automa-
nipularão dos genitais. O bebê descobre acidentalmente que certas partes do
corpo geram sensações agradáveis quando tocadas. Essa autoestimulação pode
ocorrer durante a troca de fraldas ou no banho, por exemplo, e representa um
comportamento que gera conforto, redução de tensão e prazer físico. Entre os
2 e 4 anos as brincadeiras se modificam e as atividades relacionadas ao uso do
banheiro exercem fascínio. As crianças nesta etapa apresentam maior tendên-
cia a brincar com pares e surgem as brincadeiras sociossexuais, caracterizadas
por descobertas sobre diferenças e semelhanças anatômicas entre sexos. Essas
brincadeiras incluem mostrar, examinar e esconder partes íntimas do próprio
corpo e espiar os genitais de outras crianças. Brincadeiras de “casinha”, “papai
e mamãe” e “de médico” são típicas da idade (Sanderson, 2005).
Entre os 5 e 12 anos as brincadeiras sexuais tornam-se esporádicas. Com-
portamentos de automanipulação são menos aleatórios e mais intencionais. As
crianças descobrem formas criativas de se masturbar e podem compartilhar
essas descobertas com os pares. Nessa fase, aumenta a curiosidade sobre como
os bebês são feitos, de onde vêm. São comuns reações de constrangimento diante
de cenas de beijo na televisão ou filmes, podendo, ainda, demonstrar sensações
ambivalentes de nojo e curiosidade ao presenciar trocas de beijos e abraços entre
adultos. Próximo à puberdade surge maior desejo de privacidade. Também é
comum contar piadas com conteúdo sexual, mesmo sem ter completa compreen-
são do que significam. Podem iniciar os “namoros” que consistem em andar de
mãos dadas e beijar. O final desta etapa desenvolvimental é caracterizado por
maior interesse por assuntos relacionados à sexualidade e pelas mudanças no
próprio corpo decorrentes da puberdade. As oportunidades de experimentação
com colegas se tornam mais frequentes, marcadas por períodos de inibição e
desinibição. As brincadeiras típicas desta faase consistem em expor as nádegas
para outras pessoas e o jogo da verdade (Sanderson, 2005).
38 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Na adolescência, o comportamento sexual torna-se mais semelhante ao do


adulto. Os hormônios influenciam mudanças físicas e também emocionais. É
comum que adolescentes se masturbem mais. Também é um comportamento
típico observar os pares em banheiros ou vestiários, comparando o tamanho de
genitais e outras partes íntimas como seios. Entre meninos são comuns brinca-
deiras que envolvem competições para saber quem ejacula antes e mais longe.
Surge um maior interesse por romances. A atração pelo sexo oposto ou pelo
mesmo sexo torna-se evidente e paixões por ídolos adultos são típicas. Surgem
experimentações sexuais entre pares que incluem beijos, abraços, carícias e to-
ques em genitais. Nesta etapa é comum que ocorra a primeira relação sexual
consensual entre pares (Sanderson, 2005).
O gênero pode ser considerado um dos fatores primários na percepção
sobre as pessoas, tanto para adultos quanto na infância, de forma mais explícita
ou implícita, de modo que agrupamos as pessoas pelo seu gênero, mesmo em
contextos nos quais esse dado não tem efeitos práticos (Galikin & Ismael, 2013).
Nas sociedades ocidentais, observam-se núcleos figurativos de gênero organiza-
dos de forma binária, produzindo interpretações que posicionam as categorias
feminino e masculino como opostas e mutuamente excludentes (Duveen, 1993;
Ellemers, 2020). A bipolaridade das categorias está no centro das representa-
ções que fundamentam uma dinâmica social pautada na polarização do gênero,
informando uma leitura de mundo que rege e legitima as interações sociais,
hierarquias e relações de poder intergrupais (Duveen, 1993). Butler (2019) de-
fine esse fenômeno como uma “matriz de inteligibilidade” (p. 44), por meio
da qual se produz identidades de gênero inteligíveis, coerentes com as noções
reguladoras que fundem sexo-gênero-desejo sexual, assim como identidades
inteligíveis, postas à parte por serem consideradas falhas do desenvolvimento.
A identificação na dimensão do gênero, no entanto, é plural e variável,
podendo alguns aspectos ser mais salientes do que outros em um determinado
momento, que seguem sendo aprendidos e se transformados ao longo do ciclo
vital. Ainda na infância, os indivíduos são ativos nesse processo, sendo capazes
de selecionar quais aspectos irão levar para diferentes atividades e contextos
(Duveen, 1993). Esse processo de categorização envolve o processamento de
informações com base no conhecimento que adquirimos sobre os grupos e suas
características, por vezes simplificadas em forma de estereótipos.
Os estereótipos são conjuntos de características que se espera que membros
de determinados grupos sociais possuam; produzem percepções que podem
enfatizar ou esmaecer alguns aspectos em detrimento de outros, aumentando
Capítulo 2 – Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa 39

o contraste intergrupal (Ellemers, 2020). Embora se trate de um recurso que


auxilia no processamento de informações, tem também o potencial de gerar
uma interpretação demasiada simples das pessoas e seus contextos, com des-
dobramentos que afetam tanto quem avalia a cena, quanto os demais sujeitos
envolvidos (Ellemers, 2020). Investigar a natureza e o conteúdo dos estereótipos
de gênero, por sua vez, possibilita compreender de que modo eles descrevem o
que se entende como diferenças entre homens e mulheres, bem como as pres-
crições que eles fazem sobre que cada grupo deve ou não ser e fazer em diversos
contextos (Ellemers, 2020).
Em contraposição ao argumento de que a distinção entre os gêneros é
fundamentalmente biológica, os resultados de pesquisas ao longo dos anos
apontam para uma diferenciação que se desenvolve ao longo da vida. Há uma
indicação de que o modo como a criação de meninos e meninas é conduzida,
assim como os demais contextos sociais, familiares e instituticionais fazem
emergir diferenças comportamentais, cognitivas e de papeis sociais (Duveen,
1993; Ellemers, 2020).

Estereotipia de gênero e desenvolvimento humano


O desenvolvimento do gênero tem sido estudado por diferentes vertentes
teóricas. Bussey e Bandura (1999) sistematizaram essas investigações em três
principais dimensões: ênfase nos aspectos dos determinantes psicológicos, bio-
lógicos e socioestruturais; a natureza dos modelos de transmissão e o escopo
temporal das análises teóricas. Para cada uma destas, há diferentes proposi-
ções, tais como as leituras psicanalíticas, biológicas, sociológicas, behavioristas
e sociocognitivas.
A teoria cognitiva do desenvolvimento propõe que a identidade de gênero
é um elemento regulador e organizador do processo de aprendizagem infantil,
havendo a construção de ideias sobre ele de acordo com as experiências do sujeito
(Kohlberg, 1966 como citado em Bussey & Bandura, 1999). Defende-se que,
inicialmente, o processo de aprendizado sobre gênero implica a identificação e a
consistência de gênero, qual seja identificar-se como menino ou menina e, portan-
to, agir em consonância com a norma de forma estável por toda a vida. No entanto,
a crítica feita pelo sócio cognitivismo aponta a inconsistência dessa proposição. Os
dados indicam que saber sobre gênero não necessariamente se associa a atividades
e preferências de acordo com os estereótipos (Bussey & Bandura, 1999).
A teoria dos esquemas de gênero, embora apresente convergências com
a do desenvolvimento cognitivo, diferentemente, considera a consolidação da
40 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

capacidade de identificar a si e aos outros quanto ao gênero como necessária


para o início do desenvolvimento do esquema de gênero. Há uma ênfase no
papel das interações ambientais, tornando necessário considerar os diferentes
contextos e processos envolvidos na construção dos esquemas. Papéis e in-
formações de gênero possuem mais chances de serem atendidos e resgatados
quanto mais salientes e acessíveis estiverem os esquemas de gênero (Bussey &
Bandura, 1999). Todavia, ressalta-se que tais esquemas não são fixos e absolu-
tamente determinantes, havendo variância em sua aplicação enquanto atitudes
e comportamentos de acordo com contextos e atividades distintas, tanto para
crianças quanto para adultos (Bussey & Bandura, 1999).
Uma observação de videogravações de episódios de brincadeiras (Carvalho
& Pedrosa, 2002) reforçou o caráter ativo que as crianças têm ao incorporar
elementos macroculturais, normas sociais, estereótipos e valores no brincar,
forjando-se aí uma microcultura. Essa postura é assumida na transmissão desses
elementos entre pares, se relacionando a diferentes assimilações e ressignifica-
ções deles em função da idade, dos conhecimentos do sujeito e das experiêcias
em outros contextos socioculturais (Carvalho & Pedrosa, 2002). Regras sobre
papéis, valores e funcionamento das brincadeiras também são criadas e ne-
gociadas com base no conhecimento social, incluindo a aceitação e recusa de
postos compreendidos como de maior ou menor grau de valorização e hierarquia
(Moraes & Carvalho, 1994).
Os estudos da aquisição do conhecimento sobre os estereótipos de gê-
nero, apresentam uma variedade metodológica, utilizando diferentes recursos
como entrevistas, brincadeiras e outras atividades lúdicas, que apontam, em
seus resultados, para a multilplicidade dos domínios estereotípicos aprendidos
na infância (Miller et al., 2009). Observações da área da psicologia social in-
dicam dois aspectos a se considerar no processo de aprendizagem, ativação e
aplicação dos estereótipos: a disponibilidade, se estão ou não armazenados na
memória e a acessibilidade, que diz sobre a agilidade com a qual são resgatados
(Higgins 1996; Higgins & King 1981; Higgins & Wells 1986, como citados
em Miller et al., 2009).
Uma investigação sobre a acessibilidade dos conteúdos estereotípicos em
diferentes domínios, perguntou às crianças em idade escolar o que elas sabiam
sobre meninos e meninas. (Miller et al., 2009). Encontraram-se diferentes sa-
liências de domínios para descrever os grupos de gênero, uma delas foi a fre-
quente menção dos aspectos ligados à aparência associados às características das
meninas, observável em crianças mais novas e mais velhas. Para os meninos,
Capítulo 2 – Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa 41

no entanto, foram atribuídos mais aspectos associados a atividades e traços de


personalidade do que de aparência.
Resultados como esses indicam que é importante atentar-se à possibilida-
de de que há um peso diferente de cada um dos domínios dos estereótipos de
gênero na tomada de decisões ou avaliação de pares femininos ou masculinos
(Miller et al., 2009). Embora haja diversos estereótipos disponíveis na memória
das crianças, aqueles que pertencem a um domínio estereotípico mais acessível
possuem mais chances de expressar uma correspondência entre conhecimento
e comportamento. O estudo sinaliza, ainda, implicações para o ajustamento,
psicológico, que é o caso do conteúdo estereotípico associado aos meninos que
inclui comportamentos antissociais e agressão física. A ênfase na agressão pode
expô-los a mais riscos emocionais e físicos. De forma semelhante, os estereótipos
que enfatizam interesse em esportes, atividades físicas e aspereza entre meninos
de todas as idades tende a estabelecer padrões inalcançáveis para aqueles que não
possuem atributos compatíveis a eles, podendo aumentar o risco de sofrimento
psíquico (Miller et al., 2009).
Uma revisão sistemática (King et al., 2021) que sintetizou informações
de estudos empíricos sobre estereótipos de gênero e preconceitos na primeira
infância observou a variedade de medidas de exposição e a heterogeneidade na
operacionalização dos resultados na literatura. Verificou-se, dentre as medidas
de exposição, o envolvimento com brinquedos, apresentação de personagens,
histórias, imagens e objetos e organização de ambientes escolares. Poucos estu-
dos utilizam medidas já estabelecidas para avaliação de estereótipos de gênero,
o que aponta para um possível prejuízo na sistematização e comparação dos re-
sultados. De modo geral, estudos encontrados apresentaram informações como
expressões de atitudes, normas e crenças de gênero estereotipadas; atividades,
preferências e escolhas de brinquedos; percepções de opções estereotipadas de
carreiras e, por fim, processos de estereotipia e induções baseadas no gênero.

A brincadeira infantil como forma de estudar estereotipia de gênero


A infância, como outras etapas do ciclo vital, é vivenciada por um sujeito
ativo na criação e transformação do seu contexto, dos espaços e de seu próprio
processo de desenvolvimento e de seus pares (Carvalho & Pedrosa, 2002). Re-
conhecer a criança em seu papel ativo na criação e transformação da cultura da
qual ela faz parte é partir de um paradigma que permite considerar e observar
modos, meios e dinâmicas pelas quais essa agência se expressa. Um desses
meios é o brincar.
42 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Os estudos sobre as brincadeiras infantis vêm demostrando vantagens so-


bre o uso de métodos que priorizam perguntas abertas, observações e estratégias
que favoreçam a espontaneidade das crianças, permitindo identificar os fatores,
dinâmicas e dimensões dos conhecimentos sobre a estereótipos de gênero e seus
efeitos no comportamento e identidade. (Miller et al., 2009). Considerando a
brincadeira como forma de se relacionar com o mundo, com os outros e con-
sigo, um modo de expressão e criação e transformação de normas e maneiras
de brincar, Corsaro (1985) utiliza o conceito de peer culture, que corresponde
ao conjunto de atividades, rotinas, objetos, valores e interesses compartilhados
por sujeitos da mesma faixa etária, sendo alguns componentes provenientes do
“mundo adulto” e outros criados e recriados pelo grupo.
O brincar é caracterizado como momento em que se convocam signi-
ficados advindos de outros contextos de convivência social da criança, assim
como possibilita a criação de uma microcultura do grupo (Carvalho & Pedro-
sa, 2002). Utilizar elementos comuns da macrocultura compartilhada consiste
numa estratégia de aproximação e interação com outras crianças. No entanto, ao
longo de um ou mais episódios de brincadeiras, é possível observar proposição,
aceitação e contestação de regras que coordenam a brincadeira que remetem a
outras interações sociais. Moraes e Carvalho (1994) sugere a existência de três
tipos de regras ou normas advindas de outros contextos: provenientes do conhe-
cimento sobre a natureza; sobre usos e costumes sociais e histórias amplamente
conhecidas, tais como novelas, filmes, histórias infantis etc.
Os estudos que utilizam o recurso da brincadeira como estratégia de in-
vestigação dos estereótipos de gênero na infância apresentam variações no uso
desse recurso. Na revisão de King et al (2021), os trabalhos que envolviam a
brincadeira na coleta de dados utilizaram experimentos que avaliavam, princi-
palmente, a escolha de brinquedos e o tempo gasto com eles para cada um dos
gêneros (Cherney & Dempsey, 2010; Coyne et al., 2016; Dinella et al., 2017;
LoBue & DeLoache, 2011; Weisgram et al., 2014 como cirados em King et al.,
2021). Os resultados indicaram que, condições experimentais, que envolviam
uma maior exposição a conteúdos estereotipados se associaram a uma escolha de
brinquedos carregada de estereotipia de gênero, principalmente entre meninas.
No entanto, essa modalidade de pesquisa denota uma menor validade externa
como estratégia de pesquisa, uma vez que se trata de um ambiente controlado,
distinto daquele vivenciado de fato pela criança em sua rotina.
A observação de brincadeiras, por sua vez, se apresenta como uma ou-
tra alternativa de pesquisa com essa população que tende a preservar mais as
Capítulo 2 – Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa 43

características do contexto no qual as crianças brincam, interagem entre si e com


o próprio ambiente. O estudo de Wanderlind et al. (2006), que investigou a ex-
pressão da estereotipia de gênero na educação infantil e no ensino fundamental,
evidenciou a existência de características universais no brincar destes grupos,
assim como algumas especificidades ligadas a diversos fatores. Entre os aspectos
em comum, citam-se a estereotipia de gênero e a segregação, ao passo que as
especificidades parecem se associar aos sistemas de crenças e valores fornecidos
pela cultura disponível, bem como a composição e estrutura do espaço físico e
o tempo disponibilizado para a brincadeira.

Arranjos familiares e parentalidade


Entre os elementos considerados importantes no desenvolvimento infantil
está o arranjo familiar. Desde muito tempo, uma variedade de arranjos acontece
para a educação/cuidados de uma criança, como é o caso da monoparentalidade,
crianças criadas por avós, etc. As mudanças culturais, sociais, políticas e jurídicas
das últimas décadas contribuíram para a visibilidade do que chamam de “novas
configurações familiares” (preferimos tratar como “configurações familiares
diversas”). Um desses arranjos é caracterizado por indivíduos de minorias sexuais
e seus filhos (Riskind & Tornello, 2017; Tombolato et al., 2018).
Estudos apontam que mulheres lésbicas e homens gays são menos propen-
sos do que seus pares heterossexuais a dizer que querem se tornar pais (Baiocco
& Laghi, 2013; Riskind & Patterson, 2010). Este fato deve ser pensado a partir
de diversas variáveis, entre elas a dificuldade de apoio para tal decisão e até
mesmo questões práticas sobre os métodos de concepção e adoção. Entretanto,
as estatísticas mostram que, nos países ocidentais, o número de famílias diver-
sas tem aumentado; muitos indivíduos de minorias sexuais e casais do mesmo
sexo desejam ou são atualmente pais (APA, 2020; Riskind & Tornello, 2017).
Os termos “parentalidade do mesmo sexo” ou “homoparentalidade” descrevem
qualquer situação familiar em que pelo menos um adulto, que se identifica
como homossexual, é mãe/pai de pelo menos uma criança (Gross, 2003; Iudici
et al., 2020).
Outro termo também presente na literatura é “homoparental”, o qual designa
a parentalidade constituída por duas pessoas do mesmo sexo (Cecílio, Scorsoli-
ni-Comin, & Santos, 2013). Atualmente, a literatura científica destaca quatro
formas de paternidade homoparental: (a) ter filhos em relações heterossexuais
antes de assumir a homossexualidade; (b) Adoção por um dos parceiros, sendo o
representante legal da criança; (c) procriação com um terceiro indivíduo fora do
44 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

relacionamento conjugal, por meio de novas tecnologias reprodutivas e, por fim,


(d) coparentalidade entre gays e lésbicas (Grossi, 2003).
Até seis milhões de crianças e adultos têm pais que se identificam como
lésbicas, gays ou bissexuais. Embora a maioria das crianças criadas por casais
do mesmo sexo tenham nascido de pais de sexos diferentes (um dos pais ini-
ciou um relacionamento do mesmo sexo mais tarde), o número de adultos de
minorias sexuais que se tornaram pais por adoção ou pelo uso de tecnologias
reprodutivas como inseminação e barriga de aluguel/solidária aumentou nos
últimos anos (Gates, 2015). Nos Estados Unidos, casais do mesmo sexo podem
adotar conjuntamente em todos os 50 estados. O Mississippi foi o último estado
a derrubar leis que proíbem a adoção por pessoas do mesmo sexo, que um juiz
federal considerou inconstitucional em 2016. Dados mostram que casais do
mesmo sexo têm quatro vezes mais chances de criar um filho adotivo e seis
vezes mais chances de criar filhos adotivos crianças do que casais heterossexuais
(American Adoptions, 2021).

Adoção e desenvolvimento em famílias homoparentais


Entende-se como adoção homoparental aquela em que o casal ou pessoa
adotantes se identificam como homossexuais (Patterson, 2006). No Brasil, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei no 8.069 de
2014, não sinaliza autorização e nem o impedimento da adoção por pessoas ho-
mossexuais, uma vez que sinaliza que critérios como a orientação sexual não de-
vem ser utilizados a título de avaliação da capacidade de adotar e cuidar (ECA,
1990). Como a adoção por casais do mesmo sexo não é regulamentada, muitos
casais optam por formalizar o pedido como “guarda simples”, configurando-se
como um caso de monoparentalidade, o que implica uma subnotificação nos
dados oficiais. No entanto, há casos em que a adoção legítima do mesmo sexo
foi concedida legalmente. Para que a adoção seja feita de modo conjunto, o
ECA prevê que os adotantes estejam casados no civil ou tenham firmado união
estável, como forma de comprovação da estabilidade familiar (Cecílio et al.,
2013; ECA, 1990; Santos et al., 2018).
No que concerne à caracterização das famílias chefiadas por lésbicas, gays e
bissexuais (LGB) pela literatura, Lira e Morais (2016) conduziram uma revisão
sistemática na qual se verificam dois eixos centrais: a parentalidade e a conjuga-
lidade. Quanto à parentalidade de LBGs, os temais se dividieram entre: expec-
tativas, percepções e transição para a parentalidade; estratégias de acesso; dinâ-
mica e funcionamento das relações mãe/pais-filhos(as); vivências de preconceito
Capítulo 2 – Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa 45

e impacto da homofobia nas famílias e discussões téorico-metodológicas sobre a


parentalidade. Sistematizados os resultados dos estudos encontrados, indicou-se
um consenso na observação dos mesmos fatores ligados ao desenvolvimento sau-
dável das crianças, adolescentes e jovens adultos para mães/pais heterossexuais e
homossexuais. Dentre os elementos apontados estão a qualidade dos relaciona-
mentos familiares; segurança do apego; competências parentais; saúde mental
dos cuidadores (as) e a ausência de violência doméstica e de abuso de substâncias
(Gartrell & Bos, 2010).
Outra revisão, específica sobre adoção homoparental abordada por estu-
dos nacionais (Fontes et al., no prelo) publicados entre 2013 e 2019, encontrou
categorias temáticas centrais abordadas, tais como as relações afetivas; divisão
das tarefas domésticas; relações coparentais; educação e comportamento infantil
e preconceito.
Na análise dos resultados dos estudos selecionados, algumas característi-
cas gerais emergem, a exemplo da adequação da rotina, do espaço e da relação
conjugal, de forma a criar um ambiente saudável e acolhedor para as crianças.
Assim como em Lira & Morais (2016), também se constata uma divisão mais
fluida das tarefas domésticas, estendida para as atribuições financeiras, ocor-
rendo ambas de modo mais equitativo do que em relações heterossexuais. Há
indicadores de que existe uma preocupação com a adaptação das crianças ao
novo lar, bem como se prioriza um modelo de criação de respeito às diferenças,
maior diálogo e incentivo à autonomia das crianças. A relação coparental, isto
é, a interação que se estabelece em função do cuidado dos(as) filhos(as), tende a
trazer benefícios para o relacionamento, se caracterizando pela parceria, respeito
e apoio à parentalidade do(a) parceiro(a).
O preconceito é um fator comum a todos os estudos encontrados, relatado,
principalmente, por parte da família extensa e contextos externos como a escola.
Nota-se, ademais, esforços para manter espaços de diálogo sobre a orientação
sexual dos pais, dúvidas e preocupações na tentativa de criar estratégias mais
adaptativas de enfrentamento da estigmatização em outros ambientes (Fontes
et al., no prelo).
Apesar dos indicativos positivos relativos às homoparentalidade, dados de
estudos nacionais reconhecem a persistência de crenças distorcidas sobre essa
configuração familiar. Pesquisas com universitários das áreas do Direito, Serviço
Social e Psicologia (Araújo et al., 2007; Cerqueira-Santos & Santana, 2015)
encontraram resultados que apontam para significativa prevalência de crenças
negativas de futuros profissionais quanto à adoção por casais homossexuais. Os
46 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

trabaalhos (Araújo et al., 2007; Cerqueira-Santos & Santana, 2015) pontuam


a deficiência da abordagem da temática do gênero, sexualidade e desenvolvi-
mento humano nos cursos de formação de pessoas que podem vir a fazer parte
do sistema que realiza os processos de adoção.
A pesquisa com estudantes do Direito e Serviço Social informou cren-
ças negativas sobre a homossexualidade e a adoção homoafetiva, com uma
maior atitude negativa entre futuros profissionais da área jurídica, enquanto
estudantes de Serviço Social demonstraram opiniões mais positivas. De uma
forma geral, os dados informam que há rejeição à adoção por homossexuais e
crenças distorcidas quanto à homossexualidade (Cerqueira-Santos & Santana,
2015). Resultados semelhantes foram observados no estudo com concluintes
dos cursos de Direito e Psicologia (Araújo et al., 2007), ainda prevalecendo os
juízos negativos à capacidade de casais homossexuais de ofertarem um cuidado
adequado às crianças e adolescentes. Verificou-se uma representação ancora-
da em conhecimentos das áreas jurídica e psicológica, amparados em noções
ligadas ao risco aumentado de prejuízo ao adequado desenvolvimento moral e
psíquico, atribuídos à falta de figuras maternas e paternas no contexto familiar
(Araújo et al., 2007).
Um estudo nacional sobre as representações sociais da adoção por casais
homossexuais (Santos et al., 2018) verificou uma predominância de associações
positivas quanto à capacidade desses casais de fornecerem o necessário para um
bom desenvolvimento. No entanto, observou-se também uma classe semântica
na qual prevaleceram representações negativas sobre a adoção homoparental,
com associação à interferência no que se entende por desenvolvimento saudável.
Os participantes reconheceram também o preconceito contra famílias homopa-
rentais na sociedade, mas indicando acreditar ser possível manejar a situação de
modo a superá-la sem prejuízos permanentes. Comparado com outros estudos
sobre a representação da homoparentalidade (Araújo et al., 2007; Cerqueira-
-Santos & Santana, 2015), é possível inferir que ocorreram mudanças positivas
na representação da adoção homoparental (Santos et al., 2018), embora esses
indicadores precisem ser reavaliados em função de mudanças no cenário sócio-
-politico brasileiro.
Há, de fato, uma necessidade de maior produção de dados sobre o de-
senvolvimento de gênero em configurações familiares diversas, tais como as
chefiadas por homossexuais, tendo em vista a presente escassez de estudos com
essa temática e a carência de evidências que embasem conclusões mais assertivas
sobre a pluralidade de configurações e possibilidades parentais.
Capítulo 2 – Elder Cerqueira-Santos e Isabelle Haaiara Andrade Barbosa 47

Homoparentalidade como uma questão nos estudos de gênero na infância


Como destacamos, a existência de diversas configurações familiares é um
fenômeno que está presente há muito tempo, como filhos criados pelos avós, mães
solteiras, entre outros. Especificamente, a adoção homoparental como forma de
configuração familiar tem uma visibilidade mais recente e vem suscitando dis-
cussões em diversos países. Em algumas nações, as leis foram revisadas ou novas
leis foram criadas. Apesar disso, diversas controvérsias estão presentes no debate
social sobre esse tema, dentre elas as questões relacionadas ao desenvolvimento
infantil em famílias não heteronormativas. Nesse sentido, é fundamental que
estudos acompanhem tais configurações familiares e produzam um corpo de
conhecimento que sustente argumentos sólidos baseados em achados empíricos.
Um primeiro bloco de estudos identificou que as crenças da população
sobre adoção por indivíduos de minorias sexuais ou casais de gays e lésbicas
são majoritariamente negativas em vários países (Baunach, 2012; Galupo et al.,
2008; Herek, 2000). Freires (2015) discutiu as atitudes em relação à homoparen-
talidade com base em cinco estudos. Em geral, ela teve como objetivo identificar
a opinião dos participantes sobre a adoção homoparental. Como resultado,
observou-se o discurso de aceitação desde que haja um ambiente favorável ao
desenvolvimento da criança. A preocupação implícita com o desenvolvimento
infantil acaba gerando opiniões preconceituosas devido à preocupação com a
influência dos papéis sociais de gênero. Nesse sentido, são necessárias inves-
tigações científicas com a finalidade de verificar o conhecimento elaborado e
compartilhado (as representações sociais) pelos grupos sociais sobre a adoção
por casais homossexuais.
Embora as representações negativas acerca da homoparentalidade se
ancorem em argumentos como a falta de referências femininas e masculinas,
tendo como consequência prejuízos ao que se entende por desenvolvimento
adequado de gênero e orientação sexual (Araújo et al., 2007; Cerqueira-Santos
& Santana, 2015), cabe o questionamento e a investigação desses aspectos
desenvolvimentais nesse tipo de configuração familiar. O estudo de Cerquei-
ra-Santos e Bourne (2015) conduziu observações de episódios espontâneos de
brincadeiras, analisando a estereotipia de gênero entre crianças adotadas por
famílias homoparentais. Participaram 13 crianças canadenses com idade entre 3
e 7 anos. Observou-se, de modo geral, uma tendência parecida de estereotipia e
segregação de gênero, propondo que o desenvolvimento dos aspectos de gênero
de crianças adotadas por famílias homoparentais é similar ao das compostas
por pais/mães heterossexuais.
48 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Não há indícios de que a orientação sexual ou o gênero interfiram ne-


gativamente no despenho parental da população LGB em comparação aos
heterossexuais. Há, na verdade, diferenças que favorecem as configurações
homoparentais, tais como as divisões de tarefas mais igualitárias, maior in-
teração com filhos (as) e implicação nas tomadas de decisão do que famí-
lias chefiadas por heterossexuais (Farr & Patterson, 2013; Golombok et al.,
2014). A compilação de resultados de pesquisas feita por Patterson (2006),
considerando estudos que comparam o ajustamento psicológico em crianças
e adolescentes de casais heterossexuais e homossexuais, indica não haver, de
modo geral, diferenças significativas entre os dois grupos. O que demonstrou
ter uma real interferência não foi o gênero e orientação sexual dos cuidadores,
mas sim o estilo de parentalidade e a qualidade do relacionamento entre pais/
mães e filhos/as.

Considerações finais
As discussões teóricas e empíricas seguem a endossar que é preciso olhar
para os fatores macroculturais, a fim de compreender como e quais representa-
ções sociais sobre o gênero são reforçadas ou apagadas nos diversos contextos
nos quais ocorre o processo de desenvolvimento ao longo do ciclo vital. É
fundamental também avaliar os efeitos de ambientes virtuais e a exposição a
diferentes referenciais aos quais as crianças e adolescentes têm acesso através
das plataformas de mídias digitais.
Cabe ressaltar que as diferenças e similaridades da expressão da estereoti-
pia de gênero entre crianças adotadas por casais homoparentais e heterossexuais
não devem ser avaliadas como positivas e negativas em si (Cerqueira-Santos
& Bourne, 2015). Uma estereotipia de gênero saliente em ambas as estruturas
familiares não informa um indicador de saúde, ajustamento e de sucesso parental
apenas por atender ao que espera a norma social de papéis de gênero. Na avalia-
ção das diferenças entre crianças de pais/mães heterossexuais e homossexuais,
verifica-se um maior bem-estar e melhor relação parental, bem como índices
mais positivos de ajustamento psicológico infantil em famílias chefiadas por
casais homossexuais (Golombok et al., 2014).

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Capítulo 3
Bem-estar subjetivo infantil e o estudo
da felicidade em crianças
Francisco Vitor Soldá de Souza
Joilson Pereira da Silva

O estudo do bem-estar infantil está associado a um enfoque de pesquisa que


abrange o campo da prevenção e promoção de saúde e qualidade de vida; ao passo
que o Bem-Estar Subjetivo (BES) infantil refere-se a um termo utilizado para
descrever o bem-estar das crianças a partir de avaliações que utilizam critérios
próprios (Sarriera et al., 2014). Conforme levantamento realizado por Guerreiro
(2013), a Declaração Universal dos Direitos da Criança, publicada pela Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) em 1959 e a Convenção Internacional Sobre
os Direitos da Crianças, abraçada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em
1989 assumiram um papel importante nas discussões acerca do bem-estar infantil.
Para Sarriera et al. (2014), a partir da Convenção Internacional Sobre
os Direitos da Crianças, passou-se a conceber as crianças como cidadãos de
direitos, que necessitam ser ouvidos e que estão aptos a expressarem livremente
as suas opiniões e a participarem das decisões que os afetam. Para os estudio-
sos, no Brasil, as questões levantadas e apresentadas por esta convenção foram
reforçadas a partir da década de 1990, com a criação do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), que tem como objetivo garantir os direitos e os deveres
deste público em questão.
Destarte, Alanen (2010) sinalizou que a pesquisa científica acerca da natu-
reza social do bem-estar infantil se mostrava muito defasada, principalmente por
considerar que as crianças nunca estiveram no foco dos estudos sobre o bem-es-
tar. Para a estudiosa, agências que trabalham em prol dos direitos das crianças,
a exemplo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e outras
iniciativas, vêm se tornando as principais referências na produção e divulgação
de informações sobre a situação das crianças no mundo e em diferentes países.
Para Alanen (2010), com a passagem dos anos, muitas outras iniciativas
acabaram assumindo um papel importante para a elaboração de indicadores
para medição do bem-estar na infância, tanto entre sistemas nacionais como
entre países, sobretudo com o objetivo de levantar informações que contribui-
rão para a orientação e formulação de políticas, para testar o seu desempenho
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 53

e para apresentar dados que auxiliarão na confecção de relatórios sociais acerca


da situação das crianças, quanto a sua qualidade de vida e bem-estar.
Neste sentido, Goswami (2012) apontou que as relações positivas com
familiares e amigos e a experiência de sofrer bullying influenciam diretamente
no BES infantil. Para Newland et al. (2015), modelos de BES que incluem
fatores relacionais, pessoais e ambientais se configuram como potencialmente
úteis para compreensão do BES infantil, enquanto que para Giacomoni (2002),
o modelo multidimensional do BES infantil, que inclui a Satisfação com a Vida
(SV), Afetos Positivos (AP) e Afetos Negativos (AN), vem se mostrando o mais
difundido para a compreensão geral do BES das crianças.
Para Diener (2000), o BES possibilita com que o sujeito avalie se é ou
não feliz, o que justifica o fato de que no campo da Psicologia Positiva, o BES
vem sendo descrito como o estudo científico da felicidade (Seligman, 2009).
Segundo Costa (2015), o BES baseia-se na acumulação do prazer e da evitação
da dor; também caracterizando este construto como uma avaliação subjetiva da
felicidade. Neste caminho, o BES envolve uma dimensão afetiva, que abrange
o AP e AN, descritos como às reações emocionais atreladas aos eventos do co-
tidiano; e uma dimensão cognitiva, que abarca a SV, descrita como a avaliação
subjetiva acerca da própria vida, partindo de critérios particulares (Freire, 2001;
Siqueira & Padovam, 2008).
Os componentes emocionais do BES, a partir dos aspectos emocionais
positivos e negativos, também possuem um papel importante na infância. So-
bre isso, Pavot e Diener (2013) destacaram que as experiências emocionais
vividas ao longo da experiência humana tendem a influenciar na avaliação que
o sujeito faz acerca dos eventos e situações da vida, ao passo que este processo
pode acarretar em reações emocionais. Para Diener et al. (2017), essa avaliação
assume uma forma cognitiva diante das experiências prazerosas na vida, assim
como, sobre a vivência de AP.
Para Joia et al. (2007), a SV se apresenta como um fenômeno complexo
e de difícil mensuração, por se tratar de um estado subjetivo. Ainda segundo
os estudiosos, a avaliação realizada pelo sujeito acerca da SV se desenvolve a
partir de um julgamento cognitivo a partir de alguns domínios específicos na
vida, a exemplo da saúde, lazer, condições de moradia, relacionamentos sociais
e interpessoais, autonomia, entre outros; que são avaliados a partir de critérios
próprios. Em aspectos específicos, a SV reflete o BES individual, atrelado ao
modo e aos motivos que levam as pessoas a vivenciarem as suas experiências de
vida de maneira positiva e prazerosa (Joia et al., 2007).
54 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

De acordo com Siqueira e Padovan (2008), os estudos dos AP e AN não se


referem a uma tentativa de identificar a presença contínua de sensações positivas
ao longo da vida, mas sim, em detectar se, na grande maioria, as experiências vi-
vidas foram percebidas como prazerosas e satisfatórias. Isso implica em dizer que o
estudo da afetividade no campo do BES não ignora a possibilidade de experiências
e emoções negativas, ao entender que os AN fazem parte da experiência humana.
Sendo assim, este capítulo tem como objetivo propor uma discussão acerca
do Bem-Estar Subjetivo na infância e suas principais características. Para al-
cançar esse feito, buscou-se informações em livros, teses, dissertações e artigos
indexados nas bases PubMed, Scopus, Web of Science, Scielo, Pepsic, MEDLI-
NE (Medical Literature Analysis and Retrieval System Online), APA PsycNet e
Periódicos CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior), através do acesso CAFe (Comunidade Acadêmica Federada).

Bem-estar subjetivo
Aristóteles (1973), filósofo do período clássico da Grécia Antiga, defendeu
em “Ética a Nicômaco” que a felicidade se constituía como a finalidade última
das ações humanas. Dentro do campo da psicologia, até pouco tempo, se dava
pouca atenção para o estudo da felicidade, na medida em que se priorizava o
estudo da infelicidade e do sofrimento humano (Diener, 1984). Na atualida-
de, o construto do BES vem sendo bastante utilizado nas áreas de SM, QV
e gerontologia social, a partir de um movimento iniciado a partir da década
de setenta, quando cientistas sociais e comportamentais passaram a estudar e
trabalhar sobre a teoria (Giacomoni, 2004). Segundo Diener (1984), o termo
“felicidade” passou a ser indexado no Psychological Abstracts a partir de 1973,
enquanto que as publicações em grande volume acerca do BES surgiram a partir
de 1974, com a fundação do periódico Social Indicators Research.
O BES tem a sua origem na Psicologia Positiva, área que se dedica ao
estudo científico das emoções positivas, das forças e virtudes humanas, estando
relacionado a avaliação que cada pessoa faz sobre sua vida, a partir de aspec-
tos como SV, felicidade e frequência em que experimentam emoções positivas
e negativas (Albuquerque & Tróccoli, 2004; Seligman & Csikszentmihalyi,
2000). De acordo com Jesus (2006), a avaliação do bem-estar não se dá apenas
pela soma da quantidade de momentos de satisfação do sujeito, mas sobretudo,
a partir da orientação geral positiva do sujeito mediante os eventos da vida.
Esse constructo ganha força na medida em que a Psicologia Positiva as-
sume uma tendência de pesquisas que passam a enfocar temáticas atreladas a
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 55

emoções e AP, a exemplo da resiliência, bem-estar, criatividade, coragem e


sabedoria; ao contrário da psicologia tradicional com foco exclusivo na patologia,
a partir de um modelo de ser humano sem as características positivas que tor-
nam a vida digna de ser vivida (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000). O BES,
neste contexto, se apresenta como um importante componente da Psicologia
Positiva, por se constituir como um aspecto que pode favorecer e contribuir
para a maneira como o sujeito avalia a si mesmo e as outras pessoas, podendo
resultar em maiores níveis de prazer em vivenciar e experimentar situações e
relacionamentos do cotidiano (Passareli & Silva, 2007).
A primeira revisão envolvendo o conceito de BES, realizada em 1967 por
Wilson (1967), concluiu, mesmo com dados limitados acerca do assunto, que
entre as pessoas felizes estavam: jovens, pessoas espirituosas e/ou religiosas,
otimistas, saudável, despreocupada, sinceras, casadas, de ambos os gêneros,
com autoestima elevada, moral no ambiente de trabalho, com boa educação,
boa renda, com níveis elevados de otimismo e com preocupação reduzida. Na
contemporaneidade, segundo Siqueira e Padovam (2008), o interesse dos pes-
quisados não está limitado à descrição dos atributos de pessoas felizes, muito
menos em investigações que buscam correlacionar características demográficas
e BES, mas sim, na tentativa de compreender os fatores e determinantes que
promovem e sustentam a felicidade e o bem-estar (Diener et al., 1999; Scorso-
lini-Comin et al., 2016; Woyciekoski et al., 2012).
Diener (1984) delimitou e distinguiu o conceito de BES em três carac-
terísticas fundantes, também chamadas de “marcas registradas”, a saber: sub-
jetividade, medidas ativas e uma avaliação global. A primeira, subjetividade,
refere-se ao entendimento de que cada pessoa avalia a sua própria vida, a partir
de critérios individuais. A segunda característica, medidas ativas, assume o
entendimento de que no estudo do BES, o foco de promoção está direcio-
nado aos AP, não ignorando, porém, os AN. Por fim, a última característica
sinaliza que o BES propõe uma ênfase na avaliação global e integrada dos
diferentes aspectos da vida, sendo também possível avaliar o afeto e a SV em
contextos específicos.
Em aspectos gerais, o estudo do BES promoveu uma ampliação da ideia
de saúde e QV, ao se constituir como uma área de investigação focada no fun-
cionamento humano positivo, sendo um forte indicador de EBS (Melo, 2007).
Segundo Passareli e Silva (2007), o estudo do BES abre portas para novas
contribuições acerca da experiência humana, na medida em que explora as
potencialidades, e não apenas as fraquezas e os aspectos patológicos.
56 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Neste movimento, ao longo dos anos, foram propostos dois modelos cau-
sais de BES, a saber: processos base-topo (bottom-up) e todo base (top-down). O
modelo base-topo (bottom-up) considera que o BES surge a partir do somatório
de situações que envolvem bem-estar e SV, a partir dos vários domínios da vida
(Jesus, 2006). Para Simões et al. (2000), esse modelo encara o BES a partir de
uma perspectiva cumulativa de experiências positivas (agradáveis), ao entender
que ao avaliar a sua satisfação global com a vida, o sujeito efetua um tipo de cál-
culo mental que engloba as satisfações particulares experimentadas em cada um
dos domínios (trabalho, família, lazer, entre outros). Com isso, o entendimento
de uma vida agradável seria constituído pelo acúmulo de momentos prazerosos.
Essa perspectiva está pautada na filosofia atomística e reducionista de Locke, que
postulava que a mente é uma tabula rasa (em branco) a ser moldada pelas experiên-
cias, ao passo que as sensações atuam como o reflexo objetivo do mundo externo
(Simões et al., 2000).
As teorias topo-base (top-down), segundo Jesus (2006), partem da perspec-
tiva de que as pessoas possuem uma predisposição para vivenciar de forma mais
positiva as suas experiências de vida. Para Diener (1984), existe uma inclinação
global para experienciar as coisas a partir de uma óptica positiva. Em outras
palavras, “a pessoa experimenta prazeres, porque é feliz, e não vice-versa” (p.
565). Essa perspectiva, segundo Simões et al. (2000), está pautada na filosofia
kantiana, que considera o sujeito não como um ser passivo, mas como um ser
ativo e organizador das suas experiências.
Para Freire (2001), na atualidade, o BES vem sendo descrito como a ava-
liação que o indivíduo faz da sua vida em aspectos gerais, ou, de seus domínios.
Essa avaliação parte de seus próprios padrões, valores e crenças, sendo um
componente importante da QV e do EBS. Para a estudiosa, esse constructo está
associado à capacidade do indivíduo para adaptar-se aos processos de perdas e
declínios atrelados ao processo de envelhecimento, a fim de recuperar-se dos
eventos estressores, dos possíveis impactos negativos causados pelas influências
biossociais e pela redução da capacidade de reserva biológica e comportamental.
Para Andrews e Crandall (1976), o BES é constituído a partir de três
dimensões, a saber: SV, AP e AN. Para os estudiosos, a dimensão SV refere-se
a um componente cognitivo, enquanto que as dimensões AP e AN englobam
os componentes afetivos. Para Freire (2001), o BES cognitivo refere-se às ava-
liações cognitivas, atrelada ao julgamento que o sujeito faz sobre a SV; e o BES
afetivo está relacionado às reações emocionais, que se referem às experiências
emocionais agradáveis e desagradáveis, que constituem um contexto psicológico
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 57

de natureza afetiva, que contribuem para que o sujeito organize seus pensamen-
tos e emita suas ações.
O BES afetivo, a partir dos indicadores AP e AN, pode ser expressado
a partir da avaliação que o sujeito realiza acerca da frequência de emoções
positivas e negativas ao longo de sua experiência (Diener et al, 1999). Neste
sentido, a percepção de BES afetivo será mediada pela maior prevalência de
emoções positivas ou negativas. Para Diener (1984), o BES Cognitivo, através
do indicador SV, por sua vez, refere-se a uma avaliação crítica da própria vida,
a partir de aspectos racionais e intelectuais, podendo ser influenciada pela di-
mensão afetiva, mas não é em si mesma uma medida emocional. Desta forma,
a avaliação de SV global está relacionada a uma avaliação cognitiva positiva
acerca dos diferentes aspectos e domínios da vida, ou de contextos específicos
de sua vida (Diener et al, 1999).
Para Medeiros (2020), em termos de caracterização, o BES assume duas
perspectivas gerais, a saber: 1) abordagem hedônica, que entende o bem-estar a
partir da maximização dos AP e evitação da dor, a partir da consideração dos as-
pectos físicos e emocionais, com foco para as necessidades e desejos individuais;
e a 2) abordagem eudaimônica: centrada no significado/propósito de vida e a
autorrealização, a partir da consideração de aspectos como: autonomia, virtudes,
valores e construção de relações sociais sólidas, que desdobram em benefícios
a outras pessoas também. Ainda segundo o autor, pessoas que buscam o bem-
-estar a partir de uma abordagem hedônica acabam obtendo resultados mais
imediatos, porém, de curta duração, enquanto que os indivíduos que assumem
uma abordagem eudaimônica podem demorar a observar e sentir os benefícios,
porém, a durabilidade desses efeitos é prolongada.
A abordagem eudaimônica proposta por Ryff (1989), que buscou apresentar
uma estrutura básica para o bem-estar a partir do âmbito psicológico, compreende
seis dimensões essenciais, sendo: 1) autoaceitação, relacionada a uma atitude po-
sitiva em relação a si mesmo; 2) relações positivas com os outros, a partir de um
relacionamento afetuoso, confiável e caloroso com as outras pessoas; 3) autonomia,
atrelada a níveis de independência e regulação de comportamentos através de
referenciais próprios; 4) domínio sobre o ambiente, a partir da escolha ou criação
de ambientes adequados para as suas condições psíquicas; 5) propósito de vida,
vinculada ao senso de direção, intencionalidade e metas na vida e 6) crescimento
pessoal, a partir da abertura a novas possibilidades (Ryff & Singer, 2008).
Para Diener et al. (1997), o BES não deve ser concebido como sinônimo
de SM ou saúde psicológica, uma vez que o indivíduo pode se considerar feliz e
58 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

apontar uma percepção positiva de SV em condições de ausência de SM. Desta


forma, o BES por si só não é suficiente para garantir BEP, principalmente por
considerar que o constructo aqui discutido se constitui como um dos aspectos do
BEP e que a compreensão de bem-estar envolve os seis componentes destacados
anteriormente (autoaceitação, relações positivas com os outros, autonomia, do-
mínio sobre o ambiente, propósito de vida e crescimento pessoal) (Silva, 2012).
Diener e Lucas (2000) destacaram que as definições atuais de BES con-
cebem esse construto como um conceito que requer autoavaliação, ao entender
que o BES só pode ser observado e relatado pelo próprio sujeito. Com isso, para
que se possa acessar o BES, faz-se necessário partir do pressuposto de que cada
pessoa avaliará a sua vida a partir de concepções subjetivas, que são organizadas
a partir de pensamentos e sentimentos sobre a experiência individual (Siqueira
& Padovam, 2008).
De acordo com Albuquerque e Trócolli (2004), a Subjective Well-Being
Scale (SWBS), desenvolvida por Lawrence e Liang (1988), se apresenta como
uma das medidas de autorrelato mais utilizadas para avaliar o BES. A referida
escala é composta por 15 itens, atrelados a quatro subdimensões, a saber: SV,
felicidade, AP e AN, distribuídos em escala do tipo Likert de 5 pontos, onde 1
corresponde a “discordo plenamente” e 5 “concordo completamente”. A EBES
inclui a Escala de Satisfação com a Vida a (Satisfaction with Life Scale - SWLS),
desenvolvida por Diener et al. (1985) e composta por quatro itens.
Uma outra medida bastante utilizada é a Escala de Afeto Positivo e Afe-
to Negativo (Positive Affect/Negative Affect Scale - PANAS), desenvolvida por
Watson et al. (1988), que conta com 20 itens, sendo 10 emoções positivas (forte,
interessado, entusiasmado, orgulhoso, ativo, inspirado, determinado, atento,
animado e estimulado) e 10 emoções negativas (descontrolado, culpado, an-
gustiado, hostil, envergonhado, irritado, nervoso, assustado, amedrontado e
inquieto), distribuídos em escala do tipo Likert que vai de 1 (muito pouco ou
nada) e 5 (extremamente) (Albuquerque & Trócolli, 2004).
Além disso, as pesquisas científicas têm buscado investigar os fatores
determinantes do BES, bem como, os fatores que aumentam ou diminuem o
seu nível, apesar de reconhecerem que há uma incerteza quanto aos fatores que
mais influenciam ou predizem o BES (Diener et al., 1999; Scorsolini-Comin
et al., 2016; Woyciekoski et al., 2012).
Em uma revisão de literatura proposta por Woyciekoski et al. (2012), foi
observado que não há um único determinante para o BES, mas sim, uma série
de aspectos que se mostraram importantes ou que se associaram positivamente à
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 59

ocorrência do BES. As pesquisas incluídas na revisão indicaram que a interação


entre personalidade, eventos de vida e ambiente influenciam o BES. Estratégias
de regulação emocional positivas também foram apontadas como aspectos que
influenciam dois componentes do BES, a saber: SV e AP, no estudo proposto
por Quoidbach et al. (2010). Os resultados desse estudo também apontaram que
a ausência de estratégias emocionais positivas pode influenciar a experiência de
AN, reduzindo os níveis de bem-estar.
Com isso, a seção seguinte buscará explorar os estudos acerca do BES na
infância, a fim de compreender qual o principal modelo utilizado pela literatura
científica, bem como, o levantamento dos principais indicadores relacionados
à avaliação do BES nesta fase da vida. Além disso, buscou-se alçar também os
critérios utilizados pelas crianças para avaliar o seu BES, fazendo um paralelo
com os domínios de satisfação de vida infantil apresentados pelos estudos.

O estudo do bem-estar subjetivo na infância


Nos últimos anos, observa-se uma preocupação significativa no discurso
público e nos debates políticos, especialmente em países da Europa, acerca
das infâncias contemporâneas e do bem-estar das crianças (Alanen, 2010).
Para a estudiosa, essa preocupação está relacionada ao rápido envelhecimento
populacional das sociedades ocidentais, ao passo que as pessoas têm atingi-
do níveis mais elevados de idade, enquanto que as taxas de natalidade vêm
decrescendo, gerando uma forte preocupação quanto à adequação destes em
situações futuras.
Para Rees et al. (2010), as pesquisas sobre o BES infantil vêm contri-
buindo para a produção de evidências acerca do modo como a SV das crianças
influenciam o desenvolvimento positivo destas, assim como, na identificação
de potenciais riscos e vulnerabilidades que podem afetar ou produzir desfechos
negativos ao longo do curso de vida. Para Gilman e Huebner (2003), o estudo
do BES infantil se apresenta como uma abordagem útil para compreensões
mais amplas acerca do funcionamento infantil, a partir de um distanciamento
de concepções que se limitam à classificação de sintomas psicopatológicos.
De modo geral, entende-se que crianças que exibem uma maior SV apre-
sentam uma maior probabilidade de experimentar uma autopercepção mais
positiva, níveis de extroversão e relaxamento mais elevado, além de acreditarem
que estão sob o próprio controle dos acontecimentos de sua vida (Giacomoni,
2002). Além disso, Diener e Seligman (2004) destacaram associações positivas
entre BES e relacionamentos sociais, indicando que crianças mais felizes tendem
60 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

a estabelecer maiores vínculos de amizades e a participarem de atividades gru-


pais com maior frequência.
Na perspectiva de Kim-Prieto et al. (2005), o BES envolve componentes
como felicidade, equilíbrio hedônico, realização, SV e estresse, mantendo em
seu centro a avaliação afetiva e cognitiva acerca da própria vida. Para Diener
(2000), o BES possibilita com que o sujeito avalie se é ou não feliz. Nesta dinâ-
mica, as emoções positivas e negativas estão atreladas a experiência emocional
subjetiva conectada aos níveis de qualidade de vida da criança, enquanto que a
SV se refere a avaliação cognitiva que a criança promove acerca da sua qualidade
de vida (Diener & Suh, 2000).
Segundo discussões apresentadas por Guerreiro (2013), uma das primeiras
referências encontradas na literatura acerca do estudo científico da felicidade
das crianças é datada do ano de 1982, a partir de um estudo realizado por Susan
Harter, que buscou investigar as causas e consequências do desenvolvimento
da autoestima em crianças e adolescentes. A referida pesquisa evidenciou que
a felicidade se constituía como uma das quatro principais emoções reconheci-
das pelas crianças, ao observar que participantes mais novos (3 anos de idade)
eram capazes de entender claramente o significado de três emoções (felicidade,
tristeza e raiva), e em alguns casos, surpresa.
Para Llosada-Gistau et al. (2017), o BES constitui-se como um compo-
nente essencial do conceito mais amplo de qualidade de vida, sendo referido
como um componente psicológico e não material que contribui para o processo
de avaliação dos níveis de qualidade de suas vidas, o que inclui a percepção
e o julgamento das crianças acerca das várias dimensões de sua existência.
Giacomoni (2004) reforça destacando que diferentes perspectivas têm buscado
investigar a qualidade de vida das pessoas ao longo do tempo, sendo o BES uma
das abordagens de definição e de avaliação da qualidade vital.
Neste caminho, o estudo proposto por Giacomoni (2002) reforçou o mo-
delo multidimensional do BES infantil, ao confirmar a multidimensionalidade
do construto, composto por um componente afetivo (AP e AN), e um com-
ponente cognitivo (SV, o que inclui a satisfação de vida global e satisfação com
domínios da vida) (Ver Gráfico 1).
Além disso, os achados evidenciados pela estudiosa sugeriram a ampliação
do conjunto de domínios de SV infantil (Ver Gráfico 2), que contribuíram para
a definição da felicidade infantil como: estando vinculada à vivência de afetos
prazerosos, a um ambiente familiar acolhedor, a oportunidades de lazer, aos
vínculos com pares, à satisfação de necessidades básicas materiais, à satisfação
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 61

Gráfico 1. Modelo Multidimensional do Bem-Estar Subjetivo

Afetos positivos Afetos negativos

Bem-estar subjetivo

Satisfação Satisfação com


de vida global domínios da vida

Fonte: adaptado de Giacomoni (2002)

de alguns desejos, a um ambiente harmônico sem violência, à possibilidade de


estudar e se desenvolver cognitivamente e, por fim, às possibilidades de desen-
volvimento que promovam um self com características positivas (Giacomoni,
2002, p. 148).

Gráfico 2. Domínios de satisfação de vida infantil

Satisfação de desejos Amizade

Satisfação de necessidades
Escola
básicas materiais

Satisfação com
domínios da vida
Lazer Não-violência

Self Família

Fonte: adaptado de Giacomoni (2002)

Esses domínios reforçam a compreensão de que o BES está mais próxi-


mo de uma competência que pode ser adquirida, do que de uma predisposição
biológica imutável (Faria, 2008). Entretanto, a autora sinalizou que não se pode
esquecer a dimensão pessoal do BES, por entender que a felicidade modifica
62 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

sistematicamente a maneira como percebemos o mundo. Além disso, Sarrie-


ra et al. (2014) sugeriram que estudos feitos com a participação das próprias
crianças, buscando suas percepções e opiniões acerca do BES, tem sinalizado
a necessidade de uma reflexão sobre os estereótipos dos adultos e suas crenças
em relação às próprias crianças.
Ainda segundo Sarriera et al. (2014), o conhecimento acerca dos indica-
dores do BES infantil depende do interesse dos adultos (pesquisadores, famí-
lia, profissionais, políticos) em desenvolver conhecimentos mais amplos acerca
desta população. Este conhecimento contribuirá para o planejamento de ações
e políticas que poderão atuar e promover mudanças positivas e significativas no
bem-estar e na qualidade de vida das crianças.
Desta forma, ao desenvolver a Escala de Satisfação de Vida Global Infantil
e a Escala Multidimensional de Satisfação de vida para crianças, Giacomoni
(2002) destacou os seguintes fatores para avaliação do BES infantil, a saber: a)
self : composto por características positivas como autoestima, humor, capacidade
de desenvolver bons relacionamentos e de demonstrar afetos, entre outros; b) self
comparado: formado por itens que se caracterizam pela realização de avaliações
comparativas entre seus pares, com conteúdos relacionados ao lazer, amizade
e a satisfação de desejos e afetos; c) não-violência: inclui itens relacionados a
comportamentos agressivos; d) família: envolve questões relacionadas ao am-
biente familiar saudável, harmônico, afetivo e de relacionamentos satisfatórios,
além de indicadores de satisfação quanto ao lazer; e) amizade: inclui itens que
envolvem relacionamentos com pares, nível de satisfação destas relações e al-
guns apontamentos de lazer, diversão e apoio; e por fim, f) escola: relacionada
a importância da escola, além de pontos atrelados ao ambiente escolar, relacio-
namentos interpessoais neste espaço e a satisfação conexa com este ambiente.
Neste sentido, entende-se que a avaliação do BES infantil inclui uma
sequência de variáveis e fatores, relacionados a vários aspectos e dimensões
da vida, que influenciam diretamente na forma como cada criança pondera a
sua vida. Essa sinalização é reforçada a partir de entendimentos que corrobo-
ram o fato de que cada pessoa avalia a sua própria vida, a partir de critérios
individuais (Diener, 1984), principalmente por ponderar que este construto
requer autoavaliação, ao entender que o BES só pode ser observado e relatado
pelo próprio sujeito (Diener & Lucas, 2000). Para Atienza et al. (2000), a
avaliação que o sujeito faz acerca da sua SV dependerá de como este compara
as circunstâncias experimentadas ao longo da vida e como este se comporta
diante de tais vivências.
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 63

Nesta dinâmica relacionada a avaliação do BES infantil, um estudo de-


senvolvido na Espanha por Thoilliez (2011), a partir de entrevistas realizadas
com 817 crianças com idades entre 6 a 12 anos sobre a felicidade, observou
que crianças mais novas apresentavam uma maior percepção de felicidade (sem
diferenças significativas de gênero) em detrimento de crianças mais velhas. De
acordo com o estudo, entre os eventos e contextos que se mostravam importantes
para a felicidade das crianças, a amizade e relacionamentos por pares ocupavam
20% e 33% sinalizaram a família como um fator relevante.
No estudo brasileiro proposto por Giacomoni et al. (2014a), realizado com
200 crianças da cidade de Porto Alegre, com idades entre 5 a 12 anos (M =
8,7, DP = 2,5), sendo 52,5% do sexo feminino, foi evidenciado que as crianças
indicaram que a felicidade é alcançada a partir da presença de um self positivo,
ou seja, quando se apresenta atitudes e traços positivo, a exemplo do altruísmo,
ética, empatia, amor, perdão, vocação, coragem, otimismo, entre outros. Outro
ponto importante elencado pela descrição das crianças refere-se aos caminhos
para se alcançar a felicidade, que de modo geral, perpassam a perspectiva do
“sentir-se bem”, “fazer o bem” e vivenciar o “sentimento de flow”. Para as crian-
ças do estudo, a pessoa feliz pode ser identificada a partir de suas característi-
cas subjetivas positivas, sendo: sentimentos, humor, estados e traços positivos,
reforçando a noção de que o BES é avaliado a partir de variáveis intrínsecas.
Em um segundo estudo proposto por Giacomoni et al. (2014b), com 200
crianças, de ambos os sexos (sendo 52,5% do gênero feminino), estudantes de
escolas públicas e privadas de Porto Alegre e que frequentavam o ensino básico
e fundamental, foi observado que as crianças associaram a felicidade à vivência
de afetos positivos, indicando também que as crianças eram capazes de iden-
tificar os afetos positivos e relacioná-los ao BES. Para as crianças, a felicidade
está vinculada às situações e possibilidade de lazer, com destaque para passeios,
viagens, brincadeira, atividades físicas e a atividades divertidas, bem como, em
viver em um ambiente harmônico, sem brigas e sem discussão.
Ainda segundo Giacomoni et al. (2014b), o domínio “família”, que incluiu os
itens “ter uma família”, “ter o amor do pai e da mãe” e “ter irmãos”, foram descritos
como um aspecto importante para a felicidade infantil. Desta forma, as crianças
de 9 a 10 anos foram as que mais associaram a família com o conceito de felicida-
de, principalmente por entender que na medida que as crianças avançam em seu
desenvolvimento, a mesma tende a utilizar aspectos mais abstratos para expressar
questões relacionadas a sua realidade, enquanto que crianças mais novas, de 5
anos, tendem a fazer mais referências a estados de felicidade e questões lúdicas.
64 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Um outro estudo brasileiro, proposto por Giacomoni et al. (2016), desen-


volvido com 200 crianças da cidade de Porto Alegre, com idades entre 5 a 12
anos (M = 8,7, DP = 2,5), observou que o entendimento de felicidade sinaliza o
nível cognitivo das crianças, ao entender que na medida em que estas desenvol-
vem suas habilidades cognitivas, torna-se mais evidente os desafios encontrados
no processo de busca pela felicidade. Ainda segundo o estudo, o entendimento
das crianças sobre a felicidade se apresenta como material fértil para o desenvol-
vimento de intervenções, além de uma oportunidade para auxiliar as crianças a
refletirem sobre as diferenças e o caráter subjetivo da felicidade.
Na pesquisa de Giacomoni et al. (2016) também foi sinalizado que a
felicidade envolve boas relações interpessoais, especialmente com familiares e
amigos. Para a crianças, ser feliz envolve alegria, amor, resolução de conflitos
e ajudar pessoas, ao passo em que estas associaram a sua felicidade à família,
ao self positivo e as atividades de lazer, sem distinção de sexo ou tipo de es-
cola (pública ou privada), além de demostrar que o desenvolvimento do auto-
conceito também se constitui como um elemento importante para a discussão
da felicidade.
Para Klocke et al. (2014), países com crianças que apresentam maior bem-
-estar material, melhor saúde infantil, maior acesso à educação e níveis mais
altos de realização escolar, melhores condições de moradia e ambientais, tendem
a observarem níveis mais elevados de BES. Na perspectiva de Bradshaw et al.
(2011), o bem-estar infantil é acessado a partir de três domínios subjetivos, a
saber: (1) bem-estar pessoal, (2) bem-estar relacional e (3) bem-estar na escola.
Desta forma, a seção seguinte buscará explorar as características do BES infantil,
a partir de três grupos de variáveis sinalizados na literatura, a saber: a) variáveis
particulares, b) variáveis de relacionamento e c) variáveis contextuais.

Características do bem-estar subjetivo infantil


Na perspectiva de Guerreiro (2013), parece haver um consenso entre a gran-
de maioria dos pesquisadores do BES infantil de que este conceito é caracterizado
como um constructo multidimensional, influenciado por diferentes variáveis. Se-
gundo Newland et al. (2015), uma sequência de fatores específicos foi identificada
como preditores do BES infantil, incluindo variáveis particulares (por exemplo:
gênero e idade), variáveis de relacionamento (por exemplo: família, amigos e
professores), e variáveis contextuais/culturais (por exemplo: estrutura familiar
e econômica, ambiente doméstico, escolar, vizinhança, localização geográfica e
cultura local).
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 65

Em relação a variáveis de gênero, o estudo proposto por Newland et al.


(2015) evidenciou que o gênero foi preditivo em todos os indicadores de bem-
-estar, exceto para a SV para alunos da 5a série (M = 10,66, DP = 0,55, faixa
de 10 a 12 anos). Neste estudo, os meninos relataram maior SV, saúde mental
e autoimagem do que as meninas. Na investigação de Klocke et al. (2014), que
incluiu variáveis de sexo e idade, foi observado que meninas apresentaram menor
BES em comparação aos meninos e que os níveis de BES é menor aos 13 e 15
anos em conferição aos 11 anos.
Outras pesquisas também corroboraram com esses achados, ao destacar
que meninas apresentaram menor BES geral quando comparadas aos meni-
nos, indicando que crianças do sexo masculino apresentaram uma maior SV
(Bradshaw et al., 2011; Kaye-Tzadok et al., 2017; Main, 2014; Moksnes &
Espnes, 2013). Em relação a variável idade, o estudo de Main (2014) sinalizou
que crianças mais velhas relataram níveis mais baixos de BES. Esses achados,
de modo geral, podem estar relacionados aos dados levantados por Werner
(1989), a partir de estudos longitudinais de Kauai, que destacaram que meni-
nos se mostraram mais vulneráveis na primeira década da vida, enquanto que
meninas apresentaram uma maior vulnerabilidade na segunda década da vida.
Um outro ponto de análise refere-se às pressões relacionadas ao gênero,
considerando variáveis como aparência, corpo, saúde, tempo livre e autocon-
fiança (Kaye-Tzadok et al., 2017). Para os autores, a literatura tem apontado
que meninos apresentam maiores níveis de BES em relação a aparência, au-
toimagem e autoconfiança, enquanto que meninas tendem a sofrer mais com
ideais de beleza. Sobre isso, Bendayan et al. (2013) sinalizaram que mulheres
tendem a relatar uma maior afetividade negativa em comparação aos homens, a
partir de construtos para adultos, entretanto, essa relação ainda não está muito
clara na infância.
Além das variáveis particulares, outros fatores que parecem influenciar na
avaliação subjetiva acerca do bem-estar de crianças são as variáveis de relacio-
namentos. Neste sentido, alguns estudos vêm sinalizando que fatores como o
relacionamento com colegas, amigos, familiares e professores influenciam nos
níveis de BES infantil (Booth et al. 2008; Casas et al., 2012; Chu et al. 2010;
Jutras & Lepage, 2006). Sobre isso, Lahikainen et al. (2007) lançou que o BES
se constitui como um construto socialmente interativo, construído e sustentado
por meio dos relacionamentos interpessoais desenvolvidos ao longo do cotidiano.
Ainda segundo Lahikainen et al. (2007), faz-se importante considerar que
nem todas as inteações sociais são fontes de experiências positivas, podendo, em
66 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

casos, despertar AN e sentimentos de mal-estar que podem estar relacionados


ao presente, assim como ao futuro. Sobre os relacionamentos e o processo de
desenvolvimento infantil, o estudioso sinalizou que a construção de uma base
segura nos primeiros anos de vida da criança se apresenta como imprescindível
para a promoção do BES infantil. Esse ponto abre espaço para refletir o papel
dos estilos de apego no BES infantil, ao entender que o desenvolvimento de
um apego seguro pode refletir na forma como a criança avalia subjetivamente
a sua vida.
Para Bowlby (1979), o apego é caracterizado como o vínculo estabelecido
entre o sujeito e o seu principal cuidador nos primeiros anos de vida. Segundo
Bowlby (1960), ao estabelecer tais vínculos, a criança, de forma gradativa, inter-
naliza e estrutura as primeiras experiências de apego, que servirão de base para
promover a regulação das emoções, dos relacionamentos e dos comportamentos
nas fases seguintes da vida. Segundo García-Campayo e Demarzo (2018), Bo-
wlby defendeu a perspectiva de que uma criança, ao se sentir ameaçada, ativa o
seu sistema de apego e procura, de forma instintiva, a proteção dos pais. Desta
forma, ao encontrar tal proteção, essa criança acaba desenvolvendo o que a li-
teratura chama de “apego seguro”, ao passo que a ausência dessa proteção acaba
desencadeando uma insegurança profunda em relação aos pais (apego inseguro).
Ainda segundo García-Campayo e Demarzo (2018), os modelos de apego,
a saber: modelo de apego seguro (pessoas que recebem cuidados adequados na
infância), modelo de apego preocupado (pessoas que receberam cuidados errá-
ticos e instáveis na infância), modelo de apego de rejeição ou evitativo (crianças
cujo cuidado foi inadequado ou nulo) e o modelo de apego temeroso (cuidado
frio e violento, fundamentado em punição e rejeição), acabam modulando a
imagem que o sujeito constrói em relação a si mesmo, bem como, a forma como
estes lidam com os eventos estressores do cotidiano.
Para Giacomoni (2002), as relações familiares, que incluem o ambiente
familiar e o quanto este pode ser saudável, afetuoso e harmônico; os relaciona-
mentos com pares (amizade), incluindo o nível de satisfação e indicadores de
lazer, diversão e apoio, bem como os relacionamentos interpessoais desenvolvi-
mentos no ambiente escolar, que incluem a importância da escola e a qualidade
do ambiente escolar, assim como o nível de satisfação com este ambiente e com
as relações desenvolvidas neste espaço, atuam como indicadores e fatores pro-
motores do BES infantil. Para a estudiosa, a violência, que perpassa as relações
sociais e que inclui um conjunto de comportamentos agressivos, também pode
influenciar negativamente nos níveis de BES infantil.
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 67

Neste caminho, o estudo proposto por Bradshaw (2015) observou que


crianças cuidadas fora do ambiente familiar e que vivenciam mudanças na es-
trutura familiar ou mudanças de casa ou escola, tendem a apresentar menores
níveis de BES. Além disso, foi destacado que o conflito familiar parece importar
mais do que a estrutura familiar na avaliação subjetiva do bem-estar. Para o
estudioso, a família e outros relacionamentos parecem influir mais do que va-
riáveis ligadas a fatores sociodemográficos, e que, necessariamente, não podem
ser influenciadas por políticas.
Sobre as variáveis sociodemográficas, Dinisman e Ben-Arieh (2016)
destacaram que estas não apresentam correlações significativas com o BES
de adultos, crianças e adolescentes. Para os estudiosos, apesar de muitos es-
tudos concluírem que as características demográficas e socioeconômicas das
crianças estão associadas ao BES, esses fatores acabam explicando apenas uma
pequena parte da variação. Para ilustrar, os autores destacaram que o modelo
utilizado por eles ao longo da pesquisa incluiu três variáveis, sendo: demográ-
ficas, socioeconômicas e país de residência, de modo que juntas, explicaram
entre 10,9 e 20,2% da variância. Isso implica em dizer que a resposta para
compreensão do BES infantil não está, necessariamente, nas características
sociodemográficas.
Por outro lado, Newland et al. (2015) observaram que crianças residentes
em comunidades rurais parecem estar bem mais protegidas em medidas de
conexão com seus familiares e comunidade, ao passo em que filhos e pais sina-
lizam que crianças em comunidades rurais experienciam uma maior sensação de
confiança e segurança em comparação com crianças urbanas. Porém, a vivência
em comunidades pode despertar desafios únicos para a criação dos filhos, em
consequência do isolamento social, acesso à saúde, cultura, emprego, transporte
e bens e serviços, além de uma maior vulnerabilidade ao estresse econômico e
a pobreza persistente.
Para Chen (2020), a pobreza pode inf luenciar negativamente o BES
infantil, ao observar que os níveis de autoavaliação da satisfação escolar e da
SV foram reduzidos quando se aumentava o nível de privação. Entretanto,
apenas a SV mostrou-se negativamente associada à pobreza subjetiva. Nes-
te caminho, a investigação de Main (2014) observou que amigos e escola
apresentaram associações mais fracas com a privação material (pobreza),
destacando que a felicidade, nesses domínios, foi menos impactada. Para
a estudiosa, presume-se que amigos e escola estão interligados e que as
crianças com maiores níveis de privações que acabam passando boa parte
68 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

do tempo neste ambiente com os colegas, acabaram relatando uma maior


felicidade, apesar das dificuldades.
Segundo Main (2019), a renda apresenta um papel complexo no BES
infantil. Para a estudiosa, fatores como renda, privação, percepções de justiça,
resultados de alocação intrafamiliar e bem-estar material se mostraram signi-
ficativamente associados e são todos preditores de BES. A renda familiar se
caracteriza como um fator importante para avaliação do BES, mas sozinha não
consegue captar os papéis ativos das crianças na avaliação de suas necessidades e
condições materiais de vida, ilustrando a natureza complexa e multidimensional
da pobreza infantil e seus impactos. Destarte, a renda familiar pode fornecer
informações amplas acerca da pobreza infantil e seus impactos, todavia, para
uma compreensão mais aprofundada, faz-se necessário reunir as avaliações sub-
jetivas das crianças acerca do seu bem-estar material.
Neste sentido, o estudo proposto por Bradshaw (2015), que buscou ava-
liar a relação entre BES infantil e as políticas sociais, em uma tentativa de
compreender se os países podem contribuir para que as crianças sejam mais
felizes, observou que políticas que atuam na promoção de melhores condições
de moradia, segurança e educação, bem como, ações que mobilizam a prevenção
do bullying, eliminação da pobreza e das desigualdades sociais, o que inclui a
ampliação do acesso a matérias básicos, influenciam diretamente na qualidade
de vida de crianças, e consequentemente, na forma como estas avaliam as várias
dimensões de suas vidas.
De modo mais amplo, entende-se que as características apresentadas nesta
seção podem influenciar na maneira como as crianças avaliam, subjetivamente,
os vários aspectos de suas vidas. Por outro lado, entende-se que por mais que
tais características assumam um papel importante durante a avaliação do BES,
estas não são causais ou determinantes, por si mesmas, de melhores indicadores
de bem-estar na infância, principalmente por compreender que a avaliação do
BES envolve critérios subjetivos. Isso implica em dizer que apenas a criança
será capaz, a partir de critérios próprios, de determinar como tais características
influenciam o seu bem-estar, bem como, de que maneira tais aspectos contri-
buem para a manutenção ou promoção da sua felicidade.

Considerações finais
A literatura científica acerca do bem-estar de crianças tem reforçado o
modelo multidimensional do BES infantil, ao ratificar a multidimensionali-
dade do construto, composto por um componente afetivo e um componente
Capítulo 3 – Francisco Vitor Soldá de Souza e Joilson Pereira da Silva 69

cognitivo (Giacomoni, 2002). Neste sentido, entende-se que a avaliação do BES


de crianças inclui os afetos positivos e afetos negativos, bem como, a avaliação
cognitiva acerca da SV, o que abarca a satisfação de vida global e satisfação com
domínios da vida (Costa, 2015; Diener, 1984; Giacomoni, 2002; Seligman &
Csikszentmihalyi, 2000).
Os estudos levantados ao longo desta discussão sinalizaram, de forma
mais ampla, que as variáveis de relacionamentos, com destaque para a família,
as amizades e as relações estabelecidas no ambiente escolar, bem como, as va-
riáveis particulares, com destaque para gênero e idade, são as que mais acabam
sendo associadas ao BES infantil. Critérios como “ter uma família”, “ter o amor
do pai e da mãe” e “ter irmãos”, foram apontados como elementos importantes
para a felicidade infantil (Giacomoni et al., 2014b), além do fato do gênero
masculino ser um indicativo de maior SV na infância (Bradshaw et al., 2011;
Kaye-Tzadok et al., 2017).
Por outro lado, as chamadas variáveis sociodemográficas (contextuais/
culturais), apesar de influenciarem na avaliação, foram apresentadas como não
significativas para predizer os níveis de bem-estar e de felicidade na infância
(Booth et al. 2008; Bradshaw et al., 2011; Casas et al., 2012; Klocke et al., 2014;
Newland et al., 2015). Como observado, variáveis como a pobreza e/ou privação
de materiais, quando isoladas, não conseguem captar a percepção das crianças
na avaliação de suas necessidades e condições para subsistência (Main, 2019).
O que se entende a partir dos estudos é que os atravessamentos e fatores
específicos relacionados às variáveis contextuais/culturais, quando somadas a ava-
liação das crianças acerca destes aspectos e/ou fenômenos, parecem influenciar
mais ativamente nos níveis de BES infantil. Trazendo como exemplo o estudo
de Newland et al. (2015), que observou que crianças residentes em comunidades
rurais parecem estar bem mais protegidas em medidas de conexão com seus fa-
miliares e comunidade, entende-se que para que essa associação seja estabelecida,
deve-se considerar os atravessamentos e as características particulares do viver em
comunidades rurais, assim como, a avaliação das crianças acerca da sua realidade.
Um outro ponto seria a associação entre pobreza e BES infantil. Como
destacado, a pobreza, sozinha, não explica muita coisa acerca do bem-estar
das crianças. Neste sentido, a literatura apontou que se faz necessário reunir
as avaliações subjetivas das crianças acerca do seu bem-estar material, a fim
de entender de que forma a privação de recursos estaria implicada com a sua
qualidade de vida (Main, 2019). Esse levantamento se mostra relevante uma
vez que a visualização da pobreza como variável preditora do BES infantil
70 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

poderia influenciar concepções reducionistas e limitantes acerca dos níveis de


bem-estar das crianças.
De modo geral, entende-se que a consideração da avaliação subjetiva das
crianças acerca das várias dimensões de sua vida faz-se importante para a com-
preensão geral do BES, principalmente por ponderar que este construto envolve
a percepção particular acerca dos eventos de vida. Ao ampliar essa perspectiva
para as várias características do BES infantil, compreende-se que as variáveis
particulares, de relacionamentos e as contextuais só fazem sentido quando se
considera a percepção dos envolvidos na soma geral desta avaliação. Isso im-
plica em dizer que os critérios sobre o que é ser feliz ou quais elementos estão
relacionados ao bem-estar podem mudar de criança para criança, de contexto
para contexto e de relação para relação.
Destarte, os indicadores do BES infantil proposto pela literatura contri-
buirão para uma visão mais ampliada acerca da qualidade de vida de crianças,
bem como, para direcionamentos mais acentuados acerca da avaliação do bem-
-estar nesta fase da vida. Neste sentido, os fatores incluídos por Giacomoni
(2002) corroboram o entendimento de que esta avaliação envolve diferentes
aspectos da existência do sujeito, e não apenas fatores isolados ou dimensões
específicas que explicariam apenas uma parcela do BES.
Com isso, entende-se que os estudos acerca do BES infantil devem con-
siderar, para além dos indicadores já estabelecidos pela literatura, a percepção
subjetiva das crianças acerca da sua realidade, das suas experiências, dos eventos
de vida, das suas emoções e dos variados aspectos relacionados à sua existência.
Isso implica no desenvolvimento de definições, instrumentos, recursos, pesqui-
sas e perspectivas que incluam essa consideração como ponto de partida, e não
como um recurso adicional, principalmente por ponderar que a exclusão dessa
avaliação particular acabaria reforçando concepções limitantes/reduzidas acerca
do BES de crianças.

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Capítulo 4
Meu filho está doente, e agora?
Parentalidade e adoecimento crônico infantil
Ariane de Brito
Katia Teruya

A parentalidade pode ser compreendida como práticas de cuidado dos


filhos, destacando competências e habilidades parentais (Barroso & Machado,
2010), com função de produzir efeitos facilitadores do desenvolvimento, da
autonomia e do sentimento de segurança das crianças (Ribeiro, Gomes, &
Moreira, 2015). Assim, o cuidado a uma criança com uma doença crônica impõe
uma série de novos desafios a esse papel. Considera-se uma doença pediátrica
crônica um problema de saúde que apresenta duração maior de doze meses, que
interfere nas atividades rotineiras da criança e que demanda cuidados médicos,
seja em casa ou no contexto de internações hospitalares (Stein & Silver, 1999;
Torpy et al., 2010). Portanto, além da responsabilidade pela contingência das
necessidades imprescindíveis a um desenvolvimento saudável daquela criança,
sobrepõem-se outras demandas a esses pais, relativas ao bom controle dos efeitos
deletérios associados à doença na ausência de um acompanhamento adequado.
Tal cenário exige uma significativa capacidade de reorganização desses cuida-
dores, que se vêem diante de mudanças abruptas e quebra de rotinas, podendo
resultar tanto em sofrimento psíquico, como também em efeitos negativos na
vida familiar, profissional e social (Gudmundsdóttir, Elklit, & Gudmunds-
dóttir, 2006; Michalík, 2014; Pelentsov, Fielder, Laws, & Esterman, 2016).
Desafios de ordem prática, como a realização de condutas pertinentes ao
tratamento, e de ordem afetiva, como a preocupação com o futuro do seu filho
podem ser significativas fontes de ameaça percebida por esses pais (Cousino &
Hazen, 2013). O acúmulo de tarefas e demandas tornam esses pais mais propen-
sos a apresentar níveis mais elevados de estresse parental e sintomas de burnout
quando comparados a pais de crianças sem doenças crônicas (Lindstrëom et
al., 2010). E níveis mais altos de estresse possuem uma preocupante associação
a sintomas depressivos naqueles cuidadores (Cousino & Hazen, 2013). Tais
relações tornam-se inquietantes devido a dois aspectos: primeiro, a experiência
de estresse dos cuidadores pode impactar tanto em sua própria saúde como
também na saúde da criança, na medida em que passa a comprometer o manejo
Capítulo 4 – Ariane de Brito e Katia Teruya 77

do tratamento (Streisand, Braniecki, Tercyak, & Kazak, 2001); e segundo, os


cuidadores são a primeira referência e modelo para a criança de como responder
aos estímulos internos e externos; portanto, a maneira como os pais lidam com
ameaças e situações potencialmente aversivas influenciam no modo como as
crianças irão reagir diante dos desafios enfrentados por elas próprias, incluindo
a condição de adoecimento (Rodday et al., 2017).

Descobri que meu filho tem uma doença sem cura, e agora?
A presença de um novo membro na família faz emergir nos pais, memó-
rias de sua própria infância, modelos parentais, ideias, medos e expectativa em
relação ao futuro dessa criança, pensamentos que passam a ser revistos diante
da informação sobre o diagnóstico de doença crônica da criança. Dos primei-
ros sintomas até o recebimento do diagnóstico, a família vivencia sentimentos
de angústia, tristeza, nervosismo, ansiedade e medo, assim como preocupação
quanto ao destino daquela criança (Silva et al., 2010). Mudanças de ordem
financeira, ocupacional, pessoal e relacional devem se dar em um curto espaço
de tempo, configurando-se em um duplo desafio para esses pais, que precisam
assimilar as informações relativas à doença ao mesmo tempo em que já devem
iniciar a implementação das modificações necessárias ao tratamento (Salvador
et al., 2015). Os caminhos que se seguirão a partir dessa experiência inicial vai
depender, muito em parte, das estratégias empregadas pelos membros da família
diante de adversidades (Mendonça Gondim et al., 2009; Hoekstra-Weebers,
2001; Salvador et al., 2015).
Umas das primeiras mudanças vivenciadas diz respeito a perdas finan-
ceiras, ocasionada pelo abandono parcial ou total do emprego de um dos pais,
geralmente a mãe, para que possa dedicar-se às novas necessidades da criança,
como realização de consultas e exames periódicos, assim como outros cuidados
pertinentes à saúde do seu filho ou filha (Nóbrega et al., 2012; Silva et al., 2010).
O afastamento do cuidador principal do ambiente familiar por longos períodos,
seja para acompanhar a criança a um atendimento clínico fora da cidade de
residência, seja devido à uma hospitalização, pode desencadear uma série de
repercussões intrafamiliares, tanto no cuidado parental às outras crianças como
na relação conjugal (Silva et al., 2010). Somam-se a esse cenário, os impactos
negativos na qualidade ou extensão dos momentos de lazer da família, que
também são sentidos, assim como falta de compreensão e apoio social, o que
pode contribuir de forma expressiva para o aumento da sobrecarga do cuidador
principal (Nóbrega et al., 2012; Silva et al., 2010).
78 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Não é incomum que os papéis dentro da família mudem durante períodos


agudos de dor, crises ou exacerbações associadas ao quadro diagnóstico. Se a
criança precisa ser hospitalizada, um dos cuidadores é chamado a acompanhá-
-la, demandando que outro membro assuma o cuidado dos outros integrantes
da casa e da manutenção adequada desse lar (Herzer et al., 2010; Silva et al.,
2010). Os novos compromissos e necessidades inerentes ao tratamento levam
a importantes reestruturações da dinâmica familiar, passando por um redire-
cionamento de forças e funções entre seus componentes, o que, infelizmente,
pode resultar em consideráveis repercussões negativas, significativos conflitos
e fragilização das relações. Portanto, o novo contexto, em interação com as-
pectos dos próprios cuidadores, pode estar associado a desfechos negativos à
saúde física e mental desses pais, com ocorrência de altos níveis de sobrecarga
e esgotamento (Cernvall et al., 2016), estresse parental (Toledano-Toledano
et al., 2019), deterioro do funcionamento familiar (Toledano-Toledano et al.,
2020), sintomas de depressão (Creswell et al., 2014), estilos de enfrentamento
negativos (Kim et al., 2007), baixos níveis de resiliência (Toledano-Toledano et
al., 2017) e percepção de pouco apoio social (Chen et al., 2014).
Níveis mais altos de ansiedade, sobrecarga do cuidador, depressão e estres-
se parental acompanhados por níveis mais baixos de suporte familiar, resiliência
e bem-estar (Toledano-Toledano & Luna, 2020) têm sido relacionados a riscos
para o desenvolvimento de psicopatologias nos cuidadores. Perceber a criança
como mais vulnerável e se sentir insuficientemente capaz de gerenciar a doença
de seu filho contribuem para o aumento do estresse parental (Tluczek et al.,
2011). Além disso, outras condições que têm sido associadas ao agravamento de
transtornos emocionais são: existência de sentimento de culpa e vergonha, o fato
dos dois pais biológicos não morarem na mesma casa, a presença de problemas
conjugais, famílias que apresentam piores condições financeiras, e cuidadores
que percebem dificuldades em encontrar ou manter um emprego (Carmassi et
al., 2020). E, na medida em que o bem-estar de toda criança está diretamente
associado ao estado psicossocial de seus familiares, além do risco à boa conduta
dos pais sobre aspectos do tratamento e os impactos que podem ser físicos, men-
tais e emocionais associados à condição crônica, essa criança poderá ter perdas
nas relações intrafamiliares e sofrer suas repercussões a curto e longo prazo.
Estratégias que auxiliem esses pais a construírem uma relação equilibrada
com os desafios impostos pela doença se tornam importantes ferramentas para
impedir uma cadeia de efeitos negativos à saúde de todos os membros. O acesso
a profissionais da área da assistência social, saúde mental e aconselhamento
Capítulo 4 – Ariane de Brito e Katia Teruya 79

educacional têm se mostrado importantes meios na redução do sofrimento emo-


cional dos cuidadores (Carmassi et al., 2020). Além disso, ser capaz de adotar
uma atitude acolhedora e compreensiva em relação a si mesmo em meio a eventos
negativos e ter uma crença em sua própria habilidade para enfrentar dificuldades
pode contribuir para impedir o agravamento do choque inicial vivenciado por
esses pais. Do contrário, poderia levar à um quadro de transtorno de estresse
pós-traumático (Carmassi et al., 2020). De ordem mais prática, a busca por um
equilíbrio possível entre trabalho, estudos e cuidados, segmentação das ativi-
dades ao longo do dia, realização de atividades físicas para reduzir o estresse,
implementação de adaptações físicas segundo as necessidades da criança dentro
de casa, procura por recursos na rede de apoio e assistência em outras cidades e
orientação à criança visando seu próprio cuidado são algumas soluções mencio-
nados pelos cuidadores para o enfrentamento da doença (Salvador et al., 2015).
A seguir serão apresentados alguns exemplos de intervenções voltadas aos pais
com objetivo de auxiliá-los nesse contexto, por vezes, desgastante, de cuidador
de uma criança com uma doença crônica.

Intervenções psicológicas no contexto das doenças crônicas pediátricas


Intervenções psicológicas no âmbito da saúde e das doenças crônicas vêm
procurando proporcionar melhorias na qualidade de vida e no bem-estar dos
pacientes e de seus familiares. Elas visam reduzir o sofrimento psicológico, bem
como desenvolver maior aceitação à doença e motivação para iniciar e manter uma
boa adesão ao tratamento. No contexto pediátrico, as intervenções podem ainda
melhorar comportamentos desadaptativos dos pais para o cuidado da criança,
melhorar o funcionamento familiar e reduzir conflitos entre pais e filhos (Law
et al., 2014; Law, Fisher, Eccleston, & Palermo, 2019). De acordo com Law et
al. (2014), essas intervenções podem ser voltadas apenas para os pais/cuidadores
ou combinadas com tratamento psicológico da criança, com o sistema familiar
ou até com outros atores sociais relevantes, por exemplo, funcionários da escola.
Além disso, essas intervenções costumam ter como base diferentes tipos de terapia
psicológica, tais como terapia cognitivo-comportamental (TCC), entrevista moti-
vacional (EM), terapia de solução de problemas (PST) e tratamentos sistêmicos,
como terapia familiar (TF) e terapia multissistêmica (MST) (Law et al., 2019).
Vale ressaltar, que esse capítulo não tem a intenção de avaliar as diferenças entre
os tipos de terapias, nem mesmo indicar e comparar as evidências de seus efeitos,
apenas a de demonstrar a variada possibilidade de perspectiva e foco teórico das
intervenções (para maior detalhamento ver em Law et al., 2019).
80 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Neste tópico são apresentados resultados de intervenções projetadas para


pais/cuidadores de crianças recém-diagnosticadas (até um ano de diagnóstico)
com alguma das seguintes doenças crônicas: asma, diabetes tipo 1 e câncer.
A escolha das doenças crônicas foi arbitrária e as mesmas são utilizadas apenas
como exemplo para ilustrar as intervenções. Para fins didáticos, os resultados
são apresentados por tipo de doença crônica pediátrica.

Asma
De modo geral, sabe-se que a forma como os pais reagem ao diagnóstico
de doença crônica do filho é em grande parte decisiva para o enfrentamento pa-
rental futuro à doença (Stepney, Kane, & Bruzzese, 2011). Diversas estratégias
de enfrentamento podem ser ensinadas e conduzidas por diferentes profissionais
de saúde (enfermeiros, médicos, psicólogos, etc.) para motivar os pais/cuidadores
a melhor gerenciar a doença de seu filho logo no início do diagnóstico. Stepney
et al. (2011) utilizaram o modelo trifásico de enfrentamento para desenvolverem
uma proposta de intervenção para pais/cuidadores de crianças com asma recém-
-diagnosticadas. Segundo este modelo, os pais/cuidadores vivenciam três fases
de enfrentamento após o diagnóstico de doença crônica pediátrica, a saber: Fase
A: Crise Emocional, Fase B: Enfrentando a Realidade e Fase C: Recuperando
a Vida. Assim, o objetivo da intervenção é auxiliar esses pais/cuidadores a al-
cançarem e/ou permanecerem na Fase C. Estratégias como encorajar os pais/
cuidadores a expressarem seus sentimentos, a buscarem apoio emocional com
pessoas próximas ou com profissionais especializados em saúde mental, bem
como o ensino de habilidades parentais para manejo do tratamento da doença,
parecem auxiliar o alcance desse objetivo (Stepney et al., 2011).
Intervenções remotas também têm sido desenvolvidas e avaliadas quanto
a sua viabilidade e aceitabilidade nesse contexto. Para exemplificar, tem-se o
estudo conduzido por Foronda et al. (2021) que avaliou uma intervenção remota,
oferecida por enfermeiros, para pais/cuidadores de crianças recém-diagnostica-
das ou não com asma. Os autores compararam duas versões da intervenção: a
primeira constituída por uma sessão de educação virtual e a segunda composta
por uma sessão de educação virtual e uma visita de telessaúde; e avaliaram o
efeito preliminar das intervenções no nível de conhecimento dos pais/cuidadores
sobre asma, sono, ansiedade e sintomas depressivos (avaliados nos momentos
de pré e pós intervenção).
Na sessão de educação virtual foram trabalhados os seguintes aspectos
educacionais: Compreender como uma criança com asma respira; Identificar os
Capítulo 4 – Ariane de Brito e Katia Teruya 81

fatores desencadeantes da asma; Reconhecer a diferença entre um medicamento


de resgate e um medicamento de controle; Comunicar-se efetivamente com a
equipe de saúde, e “Navegar” no sistema de saúde. A visita de telessaúde foi
previamente agendada com os pais/cuidadores, teve duração de 30 minutos e
foi realizada por uma enfermeira cursando Doutorado e mais duas enfermeiras
docentes. Nesta ocasião os pais/cuidadores tiveram a oportunidade de fazer
perguntas exclusivas sobre seus filhos e sobre situações específicas vivenciadas
no dia-a-dia. Grupo focal e entrevistas estruturadas foram utilizados para avaliar
a viabilidade e aceitabilidade das intervenções (Foronda et al., 2021).
Os resultados encontrados indicaram que as intervenções de educação re-
mota e telessaúde tiveram efeitos positivos, principalmente, no conhecimento dos
pais/cuidadores sobre asma, e na redução dos sintomas depressivos parentais. Sobre
os demais aspectos avaliados, nenhum impacto significativo foi observado entre
o pré e o pós-teste das duas intervenções. Como a amostra de pais/cuidadores
foi heterogênea em relação ao tempo de diagnóstico da doença, e, portanto, o
momento da intervenção também variou, tanto os participantes quanto os autores
do estudo indicaram, ao final, que a proposta das intervenções parece beneficiar
melhor os pais/cuidadores de crianças recém-diagnosticadas. Outro aspecto evi-
denciado no estudo foi a viabilidade de intervenções remotas para famílias de
baixa renda, o que incentiva o desenvolvimento de mais intervenções como essas
para o contexto das doenças crônicas pediátricas, já que as mesmas costumam ser
menos dispendiosas (Foronda et al., 2021).

Diabetes tipo 1
Considerando que pais de crianças e adolescentes recém-diagnosticadas
com diabetes tipo 1 (DM1) geralmente experimentam níveis elevados de incer-
teza e sofrimento psicológico, Hoff et al. (2005) propuseram uma intervenção
para pais de crianças e adolescentes que tinham sido diagnosticados com DM1
nos últimos seis meses. Os autores trabalharam com o conceito de ‘incerteza da
doença’, que diz respeito à experiência cognitiva que os pais vivenciam em relação
ao significado incerto e imprevisível dos eventos associados à doença do filho
e aos seus resultados. Sendo assim, a intervenção teve como objetivo diminuir,
neste momento de maior risco, a incerteza e o sofrimento psicológico parental.
Tratou-se de um ensaio clínico randomizado, onde 59 pais (mãe: n = 34;
pai: n = 25) foram aleatoriamente distribuídos em dois grupos (Grupo Controle
e Grupo Intervenção). Todos os pais responderam a questionários de autorre-
lato sobre incerteza parental (Parent Perception of Uncertainty Scale – PPUS),
82 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

sofrimento psicológico (Symptom Checklist 90–Revised – SCL-90-R) e com-


portamentos infantis adaptativos e problemáticos (Behavior Assessment System
for Children: Parent Rating Scale – BASC: PRS) em três momentos distintos:
linha de base (T1), após 1 mês (T2) e após 6 meses (T3). Os pais do grupo
intervenção participaram de duas sessões em grupo com duração de 2,5 horas
(Sessão 1: incerteza da doença - definição, fontes comuns e avaliações; Sessão
2: técnicas de gerenciamento de incertezas, incluindo recursos de informação,
habilidades de resolução de problemas, habilidades de comunicação e esclare-
cimento de papéis). Os pais do grupo controle não receberam a intervenção e
seus filhos continuaram recebendo os cuidados médicos de rotina e educação
(Hoff et al., 2005).
Os resultados da intervenção realizada indicaram que houve uma dimi-
nuição do sofrimento materno no acompanhamento de 1 mês e 6 meses em
comparação com a linha de base, indicando o impacto imediato e de longo
prazo da intervenção para o bem-estar das mães. Entretanto, diferenças em
relação ao sexo dos pais também foram observadas: no acompanhamento de
1 mês, o sofrimento psicológico foi reduzido apenas nas mães, não tendo sido
identificada a diminuição do sofrimento paterno. Nos pais, a diminuição ape-
nas aconteceu no acompanhamento de 6 meses. No grupo controle, os níveis
de sofrimento psicológico dos pais não tiveram melhorias, o que indica que,
de alguma forma, a intervenção apresentou algum efeito sobre a redução de
sofrimento parental no contexto do DM1 pediátrico. Entretanto, vale ressaltar
que essas conclusões precisam ser interpretadas com cautela, principalmente,
devido à natureza do desenho de pesquisa, uma vez que esses efeitos podem
ter acontecido devido a outros aspectos não controlados na pesquisa, tais como
o aumento do apoio entre os pais e entre os facilitadores das sessões grupais da
intervenção. Quanto à incerteza da doença, os níveis parentais permaneceram
inalterados (Hoff et al., 2005). Ainda assim, esse tipo de intervenção exempli-
fica como aspectos psicológicos parentais podem ser trabalhados no início do
diagnóstico de diabetes tipo 1 do filho. Intervir precocemente nesses aspectos
com os pais parece influenciar positivamente nos resultados de saúde da criança
com diabetes (Lohan, Morawska, & Mitchell, 2015).
Intervenção como a que foi apresentada, apesar de ser voltada apenas para
os pais/cuidadores costumam proporcionar também efeitos indiretos para toda a
família. Feldman et al. (2018) reconhecem a vulnerabilidade de pais e crianças
recém-diagnosticadas com diabetes, mas citam a lacuna existente acerca das
intervenções direcionadas e combinadas para esse grupo e contexto. Isso fica
Capítulo 4 – Ariane de Brito e Katia Teruya 83

ainda mais evidente quando o diagnóstico de DM1 acontece quando a criança


é muito pequena (< 6 anos), uma vez que não existem intervenções claramente
definidas ou manuais de tratamento que possam auxiliar a promoção de saúde
psicológica e adesão familiar nesses casos (Tully et al., 2021).
Foi pensando nisso, que Tully et al. (2021) propuseram recentemente o First
STEPS, uma intervenção intensiva e personalizada projetada para pais de crianças
recém-diagnosticadas com DM1 que tem o intuito de otimizar o funcionamento
emocional parental e o controle glicêmico da criança. Trata-se de uma intervenção
de cuidados escalonados que leva em consideração o humor dos pais e o controle
glicêmico da criança para determinar qual nível de intervenção os pais realmente
precisam. Isto é, para as crianças que apresentam resultados glicêmicos ideais, é
fornecido um tratamento menos intenso, mas monitorando seu progresso e até
mesmo “intensificando” o tratamento, quando necessário (Tully et al., 2021).
A intervenção First STEPS envolve a combinação teórica de TCC, Psicolo-
gia Positiva e Teoria Social Cognitiva, e é constituída por três etapas. Na Etapa 1,
pais de crianças com DM1 são selecionados e treinados para orientar outros pais
em termos instrumentais, emocionais e de logística quanto aos cuidados com o
DM1 infantil, de forma presencial e por telefone; na Etapa 2, 5 sessões de TCC
são realizadas via telefone por conselheiros de pesquisa com nível de mestrado em
Psicologia ou Serviço Social; já na Etapa 3, o nível mais intensivo e personalizado
da intervenção, uma enfermeira registrada ou educadores de diabetes certificados
em nível de mestrado, bem como psicólogos clínicos com nível de doutorado, for-
necem reuniões individuais de forma presencial ou por telemedicina, objetivando
promover o aumento do conhecimento dos pais sobre os riscos e benefícios dos
comportamentos de saúde e aumentar a autoeficácia da família (Tully et al., 2021).
Nos dois estudos de caso realizados para testar a implementação da in-
tervenção, observou-se, principalmente, melhorias nos valores de hemoglobina
glicada (HbA1c) da criança – exame padrão-ouro para o monitoramento do
diabetes – apenas durante a intervenção. Nas avaliações de acompanhamentos
tal indicador apresentou piora, resultado que foi associado pelos autores com o
final da “fase de lua de mel” [período transitório que ocorre após o diagnóstico
da doença e início do tratamento insulínico, em que pode ocorrer uma remissão
ou desaparecimento dos seus sintomas (Souza et al., 2019)]. Além disso, os
sintomas depressivos parentais não foram significativos em qualquer um dos
momentos em que foram medidos, e os participantes relataram alta satisfação
com a intervenção (Tully et al., 2021). Esses achados iniciais indicam boas evi-
dências quanto a viabilidade e aceitabilidade da intervenção First STEPS para
84 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

pais de crianças recém-diagnosticadas com DM1, no entanto, mais pesquisas


são necessárias para ampliar as possibilidades de prática com pais/cuidadores,
familiares e crianças com DM1 recém-diagnosticadas.

Câncer
O sofrimento psicológico parental também é prevalente após o diagnóstico
de câncer infantil, no entanto, as intervenções psicológicas logo após esse diag-
nóstico têm se mostrado um desafio e poucas foram realizadas com sucesso no
início da experiência do câncer (Fedele et al., 2013; Rosenberg et al., 2019). O
estresse, o ajuste de demandas de cuidado e o exigente tratamento acabam por
dificultar a participação dos pais/cuidadores nesse tipo de intervenção devido
ao tempo demandado, fazendo com que só após o agravamento do sofrimento
parental que a busca por ajuda profissional acontece (Rosenberg et al., 2019).
No entanto, o acesso precoce à intervenção faz necessário para apoiar o enfren-
tamento parental e familiar neste âmbito.
Visando promover a resiliência de pais/cuidadores de crianças com doen-
ças graves como o câncer, Yi-Frazie et al. (2017) adapataram a intervenção
PRISM (Promoting Resilience in Stress Management) para os pais (PRISM-P:
Promoting Resilience in Stress Management for Parents) com base nas teorias de
estresse e enfrentamento, resiliência e Psicologia Positiva. Essa intervenção foi
inicialmente projetada para adolescentes e adultos jovens com câncer e seus
resultados estiveram associados positivamente à maior resiliência relatada pelo
paciente, qualidade de vida, esperança, e menor sofrimento psicológico. Nos
pais/cuidadores, os resultados foram testados em um estudo piloto (Yi-Frazie
et al., 2017) e depois Rosenberg et al. (2019), por meio de um estudo randomi-
zado, testaram a eficácia da intervenção em dois diferentes formatos: individual
e em grupo, em comparação com os cuidados psicossociais usuais entre pais de
crianças recém-diagnosticadas com câncer.
Na proposta de formato individual, o PRISM-P foi constituído por quatro
sessões, a cada duas semanas, com 60 minutos de duração máxima, e condu-
zidas por um psicólogo com nível de Doutorado. Em cada uma das sessões foi
trabalhado um recurso diferente (1- gerenciamento do estresse; 2- habilidades
de definição de metas e acompanhamento do progresso; 3- reenquadramento
cognitivo, tal como habilidades para reconhecer conversas internas negativas e
reavaliar experiências de forma realista, senão otimista; 4- descoberta de bene-
fícios). As sessões, de acordo com a preferência dos pais/cuidadores, poderiam
ocorrer por telefone ou de forma presencial juntamente com as internações
Capítulo 4 – Ariane de Brito e Katia Teruya 85

hospitalares planejadas ou consultas ambulatoriais da criança. Já na proposta


em grupo, as quatro sessões ocorreram todas de uma única vez (no mesmo dia)
e foram conduzidas pelo mesmo psicólogo que conduziu as sessões do formato
individual. Os grupos eram realizados aos sábados, com intervalo médio de dois
meses entre um grupo e outro, e contavam com a participação de dois a cinco
pais/cuidadores por grupo (Rosenberg et al., 2019).
No estudo randomizado, os pais/cuidadores foram divididos em três
grupos: 31 pais receberam a intervenção individualmente, 28 pais receberam
a intervenção em grupo e 30 pais fizeram parte do grupo controle (receberam
apenas os cuidados usuais). Todos os pais responderam instrumentos na linha de
base e no acompanhamento de três meses após a intervenção. Tais instrumentos
mensuraram os seguintes aspectos: resiliência (desfecho primário), descoberta de
benefícios, esperança, suporte social, qualidade de vida relacionada com saúde,
estresse percebido e estresse psicológico (desfechos secundários). Após três meses,
um total de 26 pais/cuidadores da intervenção individual, 22 da intervenção em
grupo e 29 do grupo controle, completaram a pesquisa (Rosenberg et al., 2019).
Os resultados encontrados indicaram que apenas a intervenção individual
esteve associada à melhora na resiliência dos pais/cuidadores e na descoberta de
benefícios. Nos demais desfechos secundários e formatos de intervenção não
foram encontradas diferenças significativas ou melhoras observadas, respecti-
vamente. Em relação à intervenção em grupo, os autores discutem o resultado
negativo a partir, por exemplo, da quantidade média de pais/cuidados por grupo
(M = 2) que pode ter sido um aspecto desencorajador para aqueles que esperavam
mais pessoas no grupo. Outras considerações são feitas em relação à proposta
breve da intervenção e da importância das habilidades e treinamento do profis-
sional da Psicologia que conduziu as sessões. De qualquer modo, tais resultados
reiteram a relevância de tais intervenções, bem como os desafios práticos para
sua implementação e manutenção nos serviços de oncologia pediátrica. Novos
estudos precisam continuar testando diferentes formatos de intervenção, a fim
de minimizar os efeitos aqui observados e citados (por exemplo: falta de tempo
e de engajamento dos pais/cuidadores para participarem de intervenções logo
após ao diagnóstico do filho).

Considerações finais
O cuidado à criança com uma doença crônica demanda uma série de inicia-
tivas de adaptações individuais e compartilhadas entre os integrantes da família,
gerando repercussões em diferentes esferas na dinâmica entre seus membros.
86 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Condutas pertinentes ao tratamento, incluindo comparecimento às consultas


médicas, realização de exames periódicos e adesão à prescrição medicamentosa
e dietética, em muitos casos, levam o cuidador principal a mudar sua rotina pro-
fissional ou ainda a abandonar sua ocupação remunerada para responder a esses
cuidados. Por sua vez, essa diminuição da renda mensal da família, associada a
novas despesas advindas do tratamento, trazem significativos desafios a todos os
membros. Somada a questões financeiras, insegurança em relação ao futuro da
criança, percepção de incapacidade de executar o gerenciamento da doença de
forma adequada, preocupação quanto às necessidades não atendidas dos outros
filhos dependentes de seus cuidados, sentimento de culpa, todas essas questões
e outras mais atravessam a experiência daqueles que vivem o papel de cuidador
de uma criança com uma doença crônica.
Esse cenário pode contribuir para o desenvolvimento de desfechos ne-
gativos à saúde física e mental desses pais, com ocorrência de altos níveis de
sobrecarga e esgotamento, estresse, ansiedade, depressão e deterioro do funcio-
namento familiar. Assim, um tratamento global, que visa assegurar o melhor
desenvolvimento físico e psicológico daquela criança, deve considerar, além das
limitações relativas à condição médica, um espaço de acolhimento das demandas
emocionais de seus pais, que inevitavelmente se seguirão ao conhecimento do
diagnóstico. Desenvolvimento de maior aceitação à doença, fortalecimento de
motivação para o tratamento e modificações em comportamentos desadaptativo
desses pais, por exemplo, são resultados que podem melhorar o funcionamento
familiar e reduzir conflitos entre pais e filhos, levando a desfechos como me-
lhorias na qualidade de vida e no bem-estar dos pacientes e de seus familiares.
Nesse sentido, intervir precocemente pode resultar em múltiplos efeitos bené-
ficos a todos os membros da família e consequentemente, à saúde da criança.

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Capítulo 5
Resiliência e seu impacto na saúde
e no desenvolvimento infantil
Laís Santos-Vitti
Karina da Silva Oliveira
Tatiana de Cassia Nakano
Letícia Lovato Dellazzana-Zanon

O termo resiliência tem sido empregado com bastante frequência, não


apenas em função da valorização da habilidade de adaptação positiva associada
ao termo; mas também, pelo momento histórico experimentado. Nas últimas
décadas tem-se observado um agravamento dos desafios sociais, ambientais,
econômicos, educacionais e de saúde (Masten, 2021). Diante dos inúmeros
eventos adversos e das condições de risco apresentadas, tem-se explicitado a
importância de que os indivíduos, seus grupos, suas comunidades e sociedades
sejam flexíveis e apresentem boa adaptação às adversidades (Infante, 2007;
Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000). Embora, a resiliência esteja relacionada ao
processo adaptativo positivo, sua compreensão e definição têm sido construída
ao longo do tempo, num processo complexo e de intensa reflexão, que envolve
questões relacionadas ao termo utilizado, às formulações de definições e atual
aproximação com a Psicologia Positiva.
Conforme apontado por Masten, Lucke, Nelson e Stallworthy (2021),
os estudos relacionados à resiliência tiveram início na década de 1970, com o
objetivo de compreender de que maneira os processos psicopatológicos eram
desenvolvidos ao longo da vida. Com isso, verificou-se que algumas crianças
em contextos de adversidade, apresentavam boa saúde mental e processos
adaptativos positivos. Nesse sentindo, surgiu a ideia de invulnerabilidade apli-
cada a esse cenário, a qual era usado para caracterizar o enfrentamento frente
às adversidades. Porém, o avanço das investigações apontou para diferentes
possibilidades de processos de superação e de adaptação positiva, tendo em
vista que apesar do impacto de experiências adversas, o acesso a fatores de
proteção poderia desencadear desfechos adaptativos em saúde (Oliveira &
Nakano, 2018). Isto posto, foi possível compreender que a noção de invul-
nerabilidade não seria a resposta para o fato de algumas crianças consegui-
rem superar as dificuldades e manter níveis bons de saúde mental, ou seja,
92 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

pressupõe-se que possam existir outros fatores que tornam as crianças mais
ou menos adaptadas às adversidades.
Neste sentido, é importante ponderar que existem diferenças importantes
entre os conceitos de resiliência e de invulnerabilidade. A noção de invulnerabi-
lidade traz consigo a ideia de que o indivíduo é “indestrutível” e que “não sofre”
efeitos do evento adverso experimentado (Oliveira, 2021). Por sua vez, o conceito
de resiliência apresenta-se mais complexo e ampliado, uma vez que entende que
há um efeito percebido e/ou experimentado pelo indivíduo e que este indivíduo
lança mão de recursos internos e externos para apresentar a adaptação positiva
após a experiência de um evento adverso (Masten, 2021; Rutter, 2012).
Com a adoção do termo resiliência, inúmeras propostas de definição foram
apresentadas ainda que nenhuma tenha sido assumida como consensual (Bran-
dão & Nascimento, 2019). Nota-se relativa concordância entre os pesquisadores
em afirmar que a resiliência seja um fenômeno também humano, uma vez que
é possível observar processos de adaptação positiva em outros seres vivos e em
outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a física (Masten, 2021; Yu-
nes, 2003). Também, nota-se consenso sobre a resiliência ser uma habilidade
presente indistintamente entre os seres humanos (Masten, 2001, 2021), que se
desenvolve e pode se manifestar ao longo da vida (Infante, 2007; Masten, 2001;
Poletto, Wagner, & Koller, 2004).
Segundo Castillo, Castillo-López, López-Sánchez e Dias (2016), Luthar
et al. (2000) e Yunes (2011) a manifestação da resiliência ocorrerá sempre que
o indivíduo perceber e/ou experimentar um evento adverso. Também é possível
observar consenso entre os pesquisadores sobre os processos de enfrentamento,
que se darão em função dos recursos internos, tais como características de per-
sonalidade e fatores motivacionais (Castillo et al., 2016; Gloria & Steinheardt,
2016; Masten et al., 2021). Ademais, salienta-se a importância de recursos ex-
ternos, como acesso a bens e serviços essenciais, suporte familiar, boa qualidade
da interação entre pares, dentre outros (Masten, 2001; 2021; Prince-Embury,
2010; Yunes, 2003; 2011).
Frente à ausência de uma definição consensual e da presença de elemen-
tos comuns nas propostas de compreensão da resiliência, no início de 2005 foi
organizada, pela National Science Foundation, uma equipe de trabalho multi-
disciplinar para favorecer o alinhamento das definições de resiliência, a fim de
que fosse alcançada uma linguagem comum (Masten, 2021). Como resultado
destes esforços, em 2008 foi lançado um conjunto de artigos em um núme-
ro especial da revista Ecology and Society onde se propunha uma definição de
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 93

resiliência que contemplasse diferentes áreas do conhecimento, e que, sobretudo,


favorecesse a compreensão desse fenômeno psicológico (Masten et al., 2021).
Conforme apontado por Masten e Obradovi'c (2008), a resiliência passou a ser
definida como a capacidade de um sistema dinâmico apresentar uma adaptação
bem-sucedida diante de uma ameaça ao desenvolvimento, ao funcionamento e
a sobrevivência deste sistema.
Esta definição ampla sobre o fenômeno, ainda que pareça simples em com-
paração à complexidade do construto, pode favorecer a compreensão da resiliência
em diferentes instâncias. Isto porque, pode ser entendido como “sistema”: um in-
divíduo, sua família, sua comunidade, sua cultura, ou mesmo um outro ser vivo ou
componente físico e químico (Masten et al., 2021; Masten & Obradovi´c, 2008).
A “ameaça ao sistema” pode ser compreendida como toda ou qualquer condição
adversa, estressora ou de risco (Castillo et al., 2016). Por fim, a “adaptação bem-
-sucedida" será observada por meio da capacidade de enfrentar/superar com êxito
uma ameaça/adversidade contra o funcionamento geral e bem-estar do indivíduo.
Em função desta definição, Masten et al. (2021) propõem a diferenciação
entre resiliência e a capacidade resiliente. Para as autoras, a resiliência seria
a habilidade de apresentar desfechos positivos de saúde diante de condições
adversas (Masten & Obradovi´c, 2008), enquanto a capacidade resiliente seria
inferida a partir dos resultados observados, isto é, das respostas apresentadas
frente às situações adversas que, a partir de critérios dinâmicos e fluidos, indi-
carão a presença de uma adaptação bem-sucedida (Masten, 2021; Masten et al.,
2021). Tais compreensões sobre o construto e os processos que o compõem, ainda
apontam para a relação da resiliência e a Psicologia Positiva, pois, guardados
os devidos escopos de trabalho, ambos buscam compreender os processos e os
fatores envolvidos no desenvolvimento psicológico sadio e adaptativo (Poletto
et al., 2004; Yunes, 2003).
Diante do exposto, é possível notar que a conceituação de resiliência para
a ciência é um processo desafiador, cunhado pelo refinamento histórico não
somente relacionado ao tema, mas, sobretudo, às questões mais ampliadas em
Psicologia. Portanto, não é intenção deste capítulo esgotar o processo de cons-
trução das definições sobre resiliência, mas apresentar um panorama deste refi-
namento. Isto posto, a seguir trataremos dos principais fatores que contribuem
para o desenvolvimento da resiliência. Posteriormente, discutir-se-á sobre a
resiliência e infância, efeitos protetivos em saúde infantil e medidas/instru-
mentos de avaliação desse construto na infância. Depois, o texto abordará a
relação entre resiliência, projeto de vida e criatividade. Ao final, sumarizaremos
94 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

as principais conclusões a respeito do tema, bem como limitações e sugestões


para pesquisas futuras.

Nascemos ou nos tornamos resilientes?


A resiliência pode ser compreendida como a capacidade de superar as
adversidades, visto que se manifesta sempre que há a presença de um evento ad-
verso (Ungar, 2018). Ela é um processo dinâmico, associado a diversos elementos
como os fatores de proteção e de vulnerabilidade, e as situações percebidas como
estressoras (Castillo et al., 2016). Na prática, estima-se que um menor nível de
resiliência pode ser um fator de risco para o bem-estar físico e mental dos in-
divíduos (Ungar & Theron, 2020). Tendo em vista a contribuição significativa
do processo de resiliência (Masten, 2018) e a complexidade do tema, existe
uma causa essencial que contribua para aumentar ou desenvolver a resiliência?
Os estudos sobre resiliência tendem a estar alicerçados em aspectos com-
portamentais e psicossociais, sendo pouco comum a presença de dados sobre
o impacto da genética nos níveis de resiliência. De fato, frente ao estresse, há
uma série de interações neurais, neuroquímicas e neuroendócrinas associadas
às respostas de medo, ansiedade, e estratégias de enfrentamento. Nesse âmbi-
to, sugere-se que a resiliência possa ser “herdada”, e que os fatores genéticos
podem influenciar a manutenção de seus níveis. Resultados de um estudo de
revisão sistemática, demonstraram que aproximadamente seis genes ligados
aos neurotransmissores – serotonina, dopamina, ocitocina, entre outros, estão
associados à resiliência (Niitsu et al., 2019). Além disso, acredita-se que a neu-
roplasticidade – capacidade do cérebro de aprender, adaptar e reprogramar-se,
é fundamental para a resiliência, de modo que ser resiliente frente ao estresse e
às adversidades em geral, é um fator importante para se ter um cérebro saudável
(McEwen, 2020). No entanto, ainda há pouca informação sobre a transmissão
e promoção de resiliência por meios genéticos, bem como a contribuição espe-
cífica de fatores ambientais, culturais, sociais, entre outros (Niitsu et al., 2019;
Smeeth, Beck, Karam, & Pluess, 2021).
A cultura é um fator de peso sobre os níveis de saúde mental e de re-
siliência. De fato, ao longo das gerações e nas mais diferentes culturas, são
transmitidos valores, crenças e práticas cotidianas, os quais são passados para os
demais indivíduos e reforçados pelo discurso coletivo (Ungar & Theron 2020).
O ambiente/contexto também é um item de grande relevância para o desen-
volvimento e manutenção dos níveis de resiliência. Nesse contexto, infere-se
outrossim que ambientes/contextos facilitadores tendem a auxiliar positivamente
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 95

a adaptação das pessoas diante de situações de estresse e/ou vulnerabilidade. Por


sua vez, os ambientes/contextos não facilitadores, tendem a dificultar o processo
de adaptação aos eventos adversos (Ungar, 2012).
Podemos concluir que a cultura e o contexto/ambiente nos quais os indiví-
duos estão inseridos influenciam e explicam a resiliência, de modo que podem
facilitar ou não o processo de adaptação as adversidades tanto quanto os fatores
individuais. Com efeito, ambientes e experiências facilitadoras (por exemplo,
estilos parentais adaptativos, suporte social, comunidades seguras etc.) podem ser
entendidos como um fator de promoção e proteção em saúde, devido a sua capa-
cidade de reduzir o impacto negativo frente ao estresse e eventos adversos. Isto
posto, é evidente que, conforme salientado até aqui, a resiliência é um processo
dinâmico, complexo, multifatorial, o qual é afetado por fatores de risco e proteção,
que juntos são a base para a formação de indivíduos mais ou menos resilientes.
Logo, não é possível afirmar que a resiliência tenha origens apenas genéticas,
contextuais e culturais, ou mesmo associadas às características individuais. Pelo
contrário, contexto, cultura e variáveis ambientais afetam consideravelmente a
resiliência e os processos que predizem melhor capacidade de gerenciar o estresse
e adaptar-se às situações difíceis e adversidades presentes e futuras.

Resiliência e infância
De modo geral, o desenvolvimento humano não é um processo linear
e tranquilo. Quando tomamos o período da infância, é possível notar que o
processo desenvolvimental comumente esperado é marcado por constantes de-
safios, e caracterizado pela aquisição de inúmeras habilidades físicas, cognitivas,
emocionais, dentre outras (Becker, Bandeira, Ghilardi, Hutz, & Piccini, 2013).
Tais desafios podem ser entendidos como eventos estressores e/ou adversos, re-
querendo adaptação positiva (Prince-Embury, 2010). Para além destas questões,
também existem fatores de risco que podem potencializar as vulnerabilidades
presentes nesta fase, como a negligência parental, abusos físicos e psicológicos,
agressividade, insegurança afetiva e tantas outras (Lima Junior & Melo, 2018).
Por esta razão, Masten (2001) afirma que o estudo dos processos desenvolvi-
mentais e dos processos resilientes são intrínsecos.
Como apresentado anteriormente, a definição de resiliência traz a noção
de um desfecho positivo diante de uma condição adversa ou estressora (Mas-
ten & Obradovi´c, 2008). Assim, considerando que a infância é um momento
crítico do desenvolvimento, faz-se necessário compreender os recursos que ca-
pacitam os indivíduos a lidarem com as condições de vulnerabilidade. Dentre
96 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

os diferentes recursos, é importante destacar que o Sistema Nervoso Central


(SNC) possui circuitos específicos que se envolvem nos processos de resposta às
situações adversas e ao estresse, são eles: o eixo Hipotálamo-Hipófise-Adrenal
(HHA), o Sistema Nervoso Simpático (SNS) e o sistema dopaminérgico e
serotoninérgico (Lima Junior & Melo, 2018). Conforme apontado por Rutten
et al. (2013) na presença de um evento estressor há a ativação do eixo HHA,
que, em consequência, promove a liberação de hormônios glicocorticoides na
corrente sanguínea. Tais hormônios favorecerão a ativação do SNS e do sistema
dopaminérgico e serotoninérgico a fim de auxiliar a resposta de fuga e busca por
proteção do organismo diante de uma situação problema. É importante ponderar
que esta ativação da circuitaria cerebral é um processo que se dá em decorrência
da interação indivíduo e ambiente (León-Rodríguez & Cárdenas, 2020).
Embora o organismo tenha recursos disponíveis para apresentar a resposta
de enfrentamento aos eventos estressores, serão a frequência e a intensidade
destes eventos que poderão indicar a presença de possíveis quadros de sofri-
mento (Rutten et al., 2013; Silva & Freitas, 2021). As evidências apontam para
alterações estruturais – como a diminuição de espinhas dendríticas no córtex
pré-frontal e na neurogênese hipocampal, quando o organismo experimenta
longos períodos de adversidades (Lima Junior & Melo, 2018; Melo, Antoniazzi,
Hossain, & Kolb, 2018). Embora, maior investigação deva ser conduzida sobre
este tema, os estudos disponíveis salientam a importância da relação ambiente
e organismo para a regulação do estresse e respostas adaptativas (Masten et al.,
2021). Ademais, diferentes autores destacam a plasticidade cerebral como pro-
cesso que suporta as respostas de enfrentamento positivo às condições adversas
(Lima Junior & Melo, 2018; Melo et al., 2018; Rutten et al., 2013).
Suportando essa hipótese, Golden, Covington, Berton e Russo (2011)
conduziram um estudo com ratos selvagens e de laboratório a fim de verifi-
car comportamentos resilientes diante de situações adversas. Em geral, ratos
selvagens apresentam comportamentos mais agressivos e predatórios quando
comparados aos ratos de laboratório. Por esta razão, o comportamento dos
ratos de laboratório, no contato com o rato selvagem, foi avaliado a partir do
tipo de enfrentamento e de ativação à circuitaria cerebral. Como resultado, os
autores observaram que os ratos de laboratório que tinham a disposição ambiente
mais rico apresentavam menor frequência de comportamentos de esquiva, de
isolamento e menor ativação da circuitaria. Isto é, os ratos de laboratório que
apresentaram enfrentamento e adaptação positiva eram capazes de apoiarem-se
nos recursos contextuais disponíveis para apresentarem tal resposta.
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 97

Diante destes achados, Masten et al. (2021), Melo et al. (2018) e Rutten
et al. (2013) refletem que quando tomados os ambientes nos quais as crianças
estão inseridas, o enriquecimento ambiental, isto é, o fortalecimento de vínculos
com pessoas de referência afetiva, a ampliação de relações interpessoais e o senso
de pertencimento, por exemplo, podem favorecer a adoção de comportamentos
resilientes. Pode-se concluir que os indivíduos nascem com recursos necessários
para o enfrentamento de situações adversas, porém a qualidade do ambiente
poderá favorecer, ou não, a resposta de adaptação positiva e de desfecho de saúde.
Ampliando a compreensão sobre a qualidade do ambiente, Masten (2021)
e Masten et al. (2021) elencam características do contextuais que favorecem o
desenvolvimento de respostas resilientes. Sendo essas características: o cuidado
acolhedor e sensível, presença de relacionamentos significativos, o suporte social,
as regras familiares e rotina adequada, presença de mentoria e de liderança comu-
nitária e acadêmica, os hábitos saudáveis, as tradições e as celebrações culturais.
Do ponto de vista das características individuais, as mesmas autoras ainda citam: o
senso de pertencimento, a autorregulação, a capacidade de resoluções de problemas
e de planejamento, a esperança, o otimismo, a motivação e o senso de propósito.
A partir destas questões, é importante ponderar que, ainda que a resiliência
seja relevante no período da infância, existem cuidados que devem ser consi-
derados ao afirmar a presença ou a ausência de características resilientes em
crianças, ou mesmo em quaisquer outros indivíduos (Masten, 2021; Masten et
al, 2021; Oliveira, 2021). Tais cuidados se justificam, por buscarem evitar o risco
de culpabilização da criança por não enfrentar a adversidade de maneira eficaz.
Ou ainda, de presumir que, se a criança apresentar características resilientes,
será, portanto, invulnerável às situações adversas (Prince-Embury, 2013). As-
sim, diante das reflexões sobre a definição do termo para psicologia e os achados
relacionados aos processos biológicos e ambientais, torna-se fundamental que a
resiliência seja considerada como resultado de complexas interações entre atri-
butos pessoais e circunstâncias ambientais, mediadas por mecanismos internos
(Masten et al., 2021; Melo et al., 2018; Rutten et al., 2013). No tópico a seguir
será apresentado o papel da resiliência como um fator protetivo na infância.

Resiliência como um fator de proteção na infância


A resiliência está relacionada aos fatores de proteção, os quais são responsá-
veis por atenuar os resultados negativos e predizem maiores níveis de resiliência.
Pessoas mais resilientes apresentam habilidades que facilitam a manutenção e
melhora dos níveis gerais de saúde física e mental (Ungar & Theron, 2019).
98 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Indivíduos mais resilientes, quando expostos a situações de risco (por exemplo,


doenças crônicas, desastres etc.) adaptam-se melhor do que os menos resilientes.
Conclui-se que ser resiliente é extremamente relevante para a saúde e bem-estar
geral, ao passo que pressupõe a adoção de comportamentos saudáveis que favo-
recem desfechos positivos em saúde. Assim, nota-se a necessidade de investir
na avaliação e promoção da resiliência nas mais diferentes faixas etárias, prin-
cipalmente na infância, a fim de minimizar a chance de adoecimento a curto,
médio e longo prazos (Masten & Barnes, 2018). Diferentes estudos empíricos
corroboram a correlação positiva entre resiliência e saúde na infância.
Em uma pesquisa realizada com crianças palestinas, com idades entre 6 e 16
anos, observou-se que aproximadamente 21% delas demonstraram ser resilientes
frente às condições de conflito armado e à exposição a traumas que colocavam
em risco as suas vidas. Os resultados mostraram que o senso de confiança, segu-
rança e a relação com os pais foram os principais fatores de proteção e promoção
de bem-estar subjetivo das crianças (Punamäki et al., 2011). Ainda, uma outra
pesquisa cuja amostra foi composta por 112 crianças judias e 55 árabes, consta-
tou-se que a resiliência individual pode ser um importante preditor de menores
índices de violência entre os pares (Cohen, Eshel, Kimhi, & Kurman, 2019).
Um estudo longitudinal do qual participaram mais de 11 mil gêmeos com
média etária de 11,3 anos na primeira onda, e 16,3 na segunda, destacou o papel
da resiliência frente ao bullying. Notou-se que reconhecer o sofrimento dessas
crianças vítimas de bullying, bem como fortalecer o processo de resiliência, pode
ser um caminho válido para reduzir os efeitos negativos em saúde inerentes a
esse contexto, como o surgimento de sintomas de ansiedade, depressão, baixa
dos níveis de autoestima, entre outros (Singham et al., 2017).
Os efeitos positivos em saúde da resiliência na infância, também podem
ser identificados em crianças autistas. Potencializar fatores internos e ou fa-
cilitar o surgimento de fatores de proteção externos adequados para crianças
com Transtorno do Espectro Autista (TEA) (Heselton, 2021). Acredita-se
que desenvolver habilidades de gerenciamento das emoções e de resoluções de
problemas (Mackay, Shochet, & Orr, 2017), fortalecer a autoconfiança, a re-
gulação emocional e as habilidades sociais de crianças com TEA podem atuar
como fatores de proteção que irão ajudar essas crianças a lidar de maneira mais
adaptativa, sendo mais resilientes e apresentando desfechos mais positivos em
saúde (Gartland et al. 2019).
A resiliência é relevante também quanto à obesidade infantil. Em um es-
tudo realizado com crianças americanas, observou-se que aqueles com maiores
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 99

níveis de resiliência e maior estabilidade emocional tenderam a estar menos


acima do peso do que os demais. Com isso, sugere-se que intervenções des-
tinadas a aumentar a resiliência nas crianças, podem ser uma ferramenta útil
para as práticas de combate à obesidade infantil (Foster & Weinstein, 2018).
Em síntese, os diferentes estudos aqui apresentados ratificam a correlação
positiva destacada ao longo desse capítulo entre resiliência e desfechos positivos
em saúde. Assim, sendo, conclui-se que a capacidade de gerenciar os recursos
disponíveis e utilizar estratégias adaptativas desenvolvidas pelas crianças mais
resilientes ajudam a enfrentar as adversidades positivamente em diferentes con-
textos e situações de vulnerabilidade.
Ao levarmos em consideração a importância da resiliência na infância,
faz-se necessário discutir quais os mecanismos mais utilizados para avaliar
esse construto. Por conseguinte, o próximo tópico abordará possíveis formas
de avaliar a resiliência em crianças.

Avaliação da resiliência na infância


Assim como a definição e as compreensões sobre resiliência foram refina-
das pelo processo histórico, as ações voltadas a avaliação deste construto também
passaram e passam por este movimento. Nos primeiros estudos sobre resiliência,
os autores entendiam que a avaliação deste construto se dava pela identificação
de fatores de risco e de fatores de proteção (Rutter, 2012). Acreditava-se que
o equilíbrio entre os fatores, ou ainda, a maior frequência de fatores protetivos
poderia assegurar a resposta resiliente (Oliveira & Nakano, 2018). Entretanto,
esta estratégia mostrou-se ineficaz, uma vez que as investigações apontaram
que alguns fatores de proteção podem ser mais eficazes em certos contextos
do que em outros (Masten et al., 2021). Com isso, passou a ser mais frequente
avaliar a resiliência com base em estratégias qualitativas, como a observação,
as entrevistas, análise de documentos e a análise de história de vida (Oliveira
& Nakano, 2018, 2019, 2021). Como estratégia de complementação dos dados,
nota-se também o emprego de instrumentos psicológicos desenvolvidos para
a avaliação de construtos associados a resiliência, tais como as habilidades so-
ciais, o bem-estar subjetivo, as características de personalidade, a autoeficácia,
a autoestima, dentre outros (Masten et al., 2021; Reppold, Mayer, Almeida,
& Hutz, 2012).
Como limitação, nota-se a escassez de instrumentos que objetivamente
avaliem a resiliência nos diferentes momentos do desenvolvimento (Oliveira
& Nakano, 2021; Reppold et al., 2012). Ao realizar revisões sistemáticas que
100 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

buscassem identificar instrumentos para avaliação da resiliência no cenário


nacional e internacional, Oliveira e Nakano (2018, 2019) notaram que há na
literatura 15 instrumentos para avaliação da resiliência. Destes 15 instrumen-
tos, 14 são internacionais e um desenvolvido no Brasil. Dos 14 internacionais,
somente dois têm estudos de adaptação para o português-brasileiro. Por fim, do
conjunto dos 15 instrumentos, somente um deles encontra-se disponível para uso
profissional junto ao Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI)
e se chama “Marcadores de Resiliência Infantil” (Oliveira & Nakano, 2021).
Para maior detalhamento sobre os instrumentos ver Oliveira e Nakano (2018,
2019, 2021).
Diante destas limitações, sugere-se que ao conduzir um processo de ava-
liação da resiliência na infância, o profissional busque selecionar diferentes
estratégias (qualitativas e quantitativas) que produzam informações relevantes
sobre as competências resilientes da criança. Que levante informações sobre as
características contextos nos quais a criança está inserida, isto é, que identifique
a presença de fatores de risco e de proteção, dando atenção a compreensão dos
efeitos destes fatores (Masten, 2001, 2021; Masten et al., 2021; Oliveira &
Nakano, 2021). É importante que o profissional tenha como cuidado, o alerta
já apresentado, de não culpabilizar a criança quanto a presença ou ausência de
comportamentos resilientes. Cabe destacar que o emprego de diferentes estra-
tégias e métodos do processo avaliativo é uma orientação presente na literatura
e que contribui para uma compreensão ampliada do funcionamento dos sujeitos
(Oliveira, Campos, & Peixoto, 2021).
Até aqui foram apresentados pontos importantes sobre a definição do que
é resiliência, origens desse construto, atuação como fator de proteção na infância
e principais instrumentos de avaliação da resiliência em crianças. Em seguida
este capítulo discorrerá a respeito da relação entre resiliência e projeto de vida,
assim como resiliência e criatividade. De fato, a Psicologia Positiva é uma área
recente que passa por constantes avanços e aprofundamento teórico e práticos.
Com isso, e tendo em vista a ampla variedade de construtos estudados pela
Psicologia Positiva, optamos por apresentar aspectos associados ao projeto de
vida e criatividade e o impacto desses relacionada a resiliência e o ajustamento
psicológico infantil.

Resiliência e projeto de vida


Projetos de vida se referem a uma intenção de longo prazo voltada para o
futuro para atingir objetivos que são significativos para o eu e de consequências
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 101

para o mundo além do eu (Damon, Menon, & Bronk, 2003). Ter projetos de vida
tem sido considerado como um fator de proteção que contribui para a resiliência
(Dellazzana-Zanon, Patias, Olveira, & Enumo, 2021; Masten & Reed 2002).
Isso ocorre porque se projetar no futuro e direcionar comportamentos rumo a
esses objetivos pode proteger o indivíduo de possíveis comportamentos de risco,
o que contribui para a resiliência (Damon, 2008). Não por acaso, os projetos de
vida têm sido considerados como uma bússola (Mcknight & Kashdan, 2009;
Kiang et al., 2020) ou um farol (Damon, 2008) que orientam as decisões e as
ações cotidianas.
Evidências indicam que ter projetos de vida claros pode trazer benefícios
que perpassam o ciclo vital, como desenvolvimento de uma vida mais saudável
e feliz (McKnight & Kashdan, 2009), envolvimento com a comunidade e a
sociedade (Johnson, Tirrell, Callina, & Weiner, 2018) e maior capacidade de
lidar com situações estressantes (Minehan, Newcomb, & Galaif, 2000). De
acordo com Mariano e Going (2011), ter projetos de vida funciona como um
suporte para enfrentar situações adversas típicas da adolescência e como fonte de
vitalidade, energia e abertura para novas ideias. Nesse sentido, não há dúvidas
de que a adolescência é uma fase crucial para o desenvolvimento de projetos de
vida e que adolescentes que conseguem desenvolver esses projetos passam por
essa fase de forma mais tranquila.
A maioria das pessoas desenvolve as habilidades cognitivas que permitem
o raciocínio hipotético-dedutivo e o pensamento abstrato necessários para a
construção de projetos de vida apenas na segunda década de vida (Damon, 2008;
Piaget, 1964). As crianças ainda não são capazes de se engajar no planejamento e
no raciocínio hipotético-dedutivo necessários para identificar e se comprometer
com projetos de vida, o que torna improvável que elas considerem seriamen-
te aspirações de longo alcance que sejam pessoalmente significativas (Bronk,
2014). Como os projetos de vida na infância são caracterizados pelo engajamento
proposital ao invés do comprometimento proposital, caso as crianças comecem a
conceber um projeto de vida, é provável que seja de uma maneira decididamente
concreta, focada e orientada para o presente (VanDyke & Elias 2007).
Entretanto, a infância não deve ser desconsidera no que se refere à com-
preensão do desenvolvimento de projetos de vida. Pesquisas sugerem que ati-
vidades relacionadas a projetos de vida geralmente começam durante a infân-
cia, tornam-se intencionais e significativas durante a adolescência e a adultez
emergente e evoluem ao longo da meia-idade e da idade adulta (Bronk, 2014).
Do ponto de vista da perspectiva de desenvolvimento ao longo da vida, um dos
102 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

pontos importantes sobre o que significa ter projetos de vida é que os precur-
sores desses projetos se manifestam na infância, talvez começando com a mera
compreensão de que se pode iniciar uma ação proposital com consequências
para o mundo (Hill & Burrow, 2020). Assim, considerando-se que projetos de
vida podem ser moldados pelo contexto social (Liang, White, Mousseau, Hasse,
Knight, Berado, & Lund, 2017), as experiências de socialização da criança que
ocorrem no microambiente do lar (e da escola) são muito importantes. Nesse
sentido, as experiências na infância podem preparar o terreno para o desenvol-
vimento subsequente de projetos de vida. Por exemplo, indivíduos que relatam
experiências mais positivas na infância são mais propensos a relatar projetos
de vida ao longo de seu desenvolvimento (Ishida & Okada 2006; Mariano &
Vaillant 2012).
Um estudo longitudinal do qual participaram 10 jovens com compromis-
sos intensos com vários projetos de vida concluiu que, embora esses jovens não
tenham se comprometido com propósitos anteriormente à adolescência, eles se
engajaram em atividades potencialmente propositais durante a infância (Bronk
2012). Foram conduzidas entrevistas em profundidade sobre suas aspirações três
vezes ao longo de um período de cinco anos, abrangendo o final da adolescência
e o início da idade adulta emergente (Bronk, 2012; Damon 2008). Os resultados
indicaram que os participantes se envolveram, primeiramente, em atividades, as
quais depois evoluíram para projetos de vida durante os anos iniciais do ensino
fundamental. Por exemplo, um jovem de vinte e poucos anos, comprometido
em compartilhar a música jazz com um público mais amplo, traçou as raízes
de seu compromisso com a escola primária, quando começou a tocar piano.
Assim como o músico, cada um dos participantes da amostra foi capaz de
traçar seu propósito para uma atividade que começou durante a infância. Isso
sugere que, pelo menos para alguns jovens, interesses propositais enraízam-se
relativamente cedo na vida. Os resultados desse estudo também sugerem que
as atividades e as oportunidades extracurriculares durante a infância podem
promover o desenvolvimento de projetos de vida (Bronk 2012). Se o músico
morasse em uma área onde não tivesse fácil acesso à instrução musical, é possível
que ele não teria desenvolvido esse projeto de vida.
Esse estudo longitudinal é importante, pois seus resultados indicam
que a infância pode desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento
posterior de projetos de vida, o que tem implicações importantes sobre como
pais, professores e adultos preocupados com o bem-estar dos jovens devem
tentar promover projetos de vida. Nesse sentido, os adultos com quem a criança
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 103

convive têm um papel fundamental no sentido de apresentar-lhes uma varieda-


de de atividades potencialmente propositais durante a infância, pois isso pode
fornecer oportunidades para descobrir aspirações pessoalmente significativas
(Bronk, 2012).
Um passo fundamental para apoiar o desenvolvimento do propósito é
garantir que os jovens se envolvam em algumas atividades potencialmente pro-
positais durante a infância e a adolescência (Bronk, 2014). Atividades potencial-
mente propositais podem incluir ajudar em casa, ser voluntário na comunidade,
participar de atividades relacionadas à fé ou envolver-se nas artes. Estudos em-
píricos descobriram que o envolvimento nesses tipos de atividades normalmente
precede o desenvolvimento de projetos de vida (Bronk 2012; Shamah 2011).
Conforme salienta Bronk (2014), embora nem todos os jovens que se envol-
vem nessas atividades desenvolverão projetos de vida, a maioria dos jovens que
desenvolve projetos de vida relata ter participado de pelo menos alguns desses
tipos de atividades na infância.
Dados de um estudo nacional que abordou a situação de cuidado formal
entre irmãos – quando o irmão mais velho é o principal responsável pelo cuidado
de seus irmãos menores – podem ajudar a ilustrar a importância do contexto
para o desenvolvimento de projetos de vida. Dellazzana-Zanon, Zanon, Freitas
e Tudge (2021) investigaram a relação entre o nível de cuidado dos irmãos mais
novos e as áreas de projetos de vida de adolescentes de nível socioeconômico bai-
xo da escola pública de Porto Alegre (RS). As áreas investigadas foram carreira
(estudo e trabalho), família (construção de uma nova família), bens materiais,
felicidade e generosidade (ajudar ou dar coisas à família de origem). Os resul-
tados indicaram que os adolescentes que cuidam mais dos irmãos mais novos
constroem projetos de vida mais focados nas áreas de carreira e generosidade,
o que sugere que o contexto em que a pessoa está inserida tem forte influência
na construção de seus projetos de vida.
De acordo com Dellazzana e Freitas (2010; 2012), a situação e cuidado
entre irmãos pode acarretar prejuízos para o irmão que cuida como defasagem
escolar, elevada carga de responsabilização e falta de tempo livre. Os resultados
da pesquisa de Dellazzana Zanon et al. (2021) sugerem que o fato desses ado-
lescentes terem projetos de vida voltados para ajudar ou dar coisas à família de
origem e seguir estudando para no futuro ter uma profissão que possa garantir
que essa ajuda à família aconteça, podem funcionar como um fator de proteção
para o seu desenvolvimento, aumentando sua resiliência para que consigam lidar
com os eventos estressores e os desafios próprios de seu contexto.
104 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Resiliência e criatividade
As compreensões atuais de resiliência e criatividade sugerem a existência
de relações entre os dois conceitos (Metzl & Morrell, 2008). Apesar de ainda
pouco estudada no Brasil, essa relação se mostra um foco potencial de interesse,
especialmente por parte da Psicologia Positiva. Isso porque ambos os construtos
são considerados recursos importantes para o desenvolvimento pleno do indi-
víduo (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004; Wechsler, 2008) e remetem a
um olhar para os aspectos sadios e positivos, bem como suas potencialidades
na promoção de bem-estar e qualidade de vida.
Segundo Oliveira e Nakano (2011), diversos autores têm ressaltado a impor-
tância da criatividade como um recurso para o enfrentamento de riscos e desafios
da época em que vivemos. Nesse sentido, acredita-se que, em conjunto, os recursos
resilientes e as características criativas podem potencializar a possibilidade de
encontrar respostas mais eficazes e soluções mais adaptativas na presença de um
ambiente desfavorável, marcado pela adversidade (Oliveira & Nakano, 2014).
Assim, as pessoas poderiam fazer uso da criatividade como forma de superar
as dificuldades impostas pelo meio. Isso porque as circunstâncias adversas ape-
sar de, mais comumente e em um primeiro momento, provocarem desconforto
e sentimentos negativos, essas mesmas situações podem levar as pessoas a um
movimento de mudança, superação de experiências traumáticas, resolução de
conflitos e busca por soluções para os problemas vivenciados. Consequentemente,
em todas as situações em que a busca por soluções para experiências adversas se
faz necessária, a criatividade pode se mostrar um diferencial favorável.
Particularmente nas crianças, a criatividade é considerada uma caracterís-
tica que pode conduzir ao desenvolvimento da resiliência e apoiar a sua capa-
cidade de lidar com incertezas e estresse (Berger & Lahad, 2009), de modo a
promover estratégias de coping. Por outro lado, a ausência de oportunidades para
manifestação da criatividade pode minar o potencial humano e exacerbar doen-
ças (Lee & Lee, 2016), sendo comum que indivíduos que vivenciaram traumas
ou perdas evitem nutrir seu potencial criativo como um esforço para reduzir seu
estado de vulnerabilidade, já que a criatividade em si envolve a tomada de risco
e incerteza (Thomson & Jaque, 2019). Com isso, muitos indivíduos criativos
acabam deixando de realizar seu potencial.
É interessante perceber que diversas características pessoais se mostram
comuns tanto na descrição da pessoa resiliente quanto do indivíduo criati-
vo, podendo-se citar, como exemplos, a mente aberta às novas ideias, auto-
nomia, capacidade de adaptação, tolerância a ambiguidades, altos níveis de
Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 105

comprometimento, atração pela complexidade, autoconfiança, iniciativa, desen-


voltura, espontaneidade, originalidade e flexibilidade, dentre outras (Oliveira
& Nakano, 2014). Outras características são apresentadas por López-Aymes,
Acuna e Villegas (2020) e envolvem o pensamento divergente, um dos processos
centrais da criatividade e compreendido como a capacidade de compreender
os problemas sob diferentes pontos de vista como um importante mecanismo
presente na resiliência, além da capacidade de se envolver em uma atividade de
forma intensa sem esperar por recompensas externas (chamada de flow), durante
a qual as emoções positivas são ativadas, as habilidades pessoais são postas em
ação e a autoconfiança é aumentada.
Outra semelhança envolve o fato de que tanto a resiliência quanto a cria-
tividade não são consideradas um atributo fixo, que nasce com o sujeito ou que
tem uma origem estritamente genética. Pelo contrário, são habilidades que vão
sendo desenvolvidas dentro de um processo interativo que envolve tanto a pessoa
(fatores internos) quanto seu meio (fatores externos) (Oliveira & Nakano, 2011).
Dentre os fatores contextuais, López-Aymes et al. (2020) destacam-se a faci-
lidade no estabelecimento de vínculos ativos com outras pessoas significativas,
e a existência de suporte familiar e social que estimula e apoia o envolvimento
do indivíduo em atividades voltadas para o novo.
Diante dessa constatação, um questionamento se mostra importante: por
que algumas pessoas, afetadas por situações adversas, desenvolvem transtornos e
doenças, enquanto outras conseguem superá-las e visualizar tais situações como
vantagem e estímulo para o seu desenvolvimento? Uma das possíveis respostas
envolve a criatividade e a possibilidade de que essa caraterística possa ajudar
o indivíduo a encontrar respostas mais eficazes e soluções mais adaptadas na
presença de um ambiente desfavorável.
Frente às relações expostas, criatividade e resiliência podem ser conside-
rados conceitos relacionados e que se potencializam. Assim, viabilizar oportu-
nidades e incentivo para que as pessoas sejam mais criativas pode fortalecer sua
capacidade de resiliência. Consequentemente, ao atingir maior resiliência, as
pessoas podem usar e se beneficiar do seu potencial criativo (López-Aymes et
al., 2020). Desse modo, tais características podem, em conjunto, permitir que o
sujeito possa aproveitar, ao máximo, os recursos e oportunidades que se apresen-
tam bem como se conscientizar acerca das suas potencialidades. Então, frente a
uma situação problema, o indivíduo resiliente tende a considerar muitas ideias,
de modo a encontrar soluções criativas que resultem em adaptação (Greco et al.,
2006). Conclui-se que a criatividade e resiliência podem ajudar os indivíduos a
106 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

enfrentar os seus problemas de maneira mais adaptativa e eficaz em diferentes


contextos, de modo a favorecer o maior ajustamento psicológico das pessoas.

Considerações finais
A resiliência é um processo dinâmico e complexo o qual está associado a
maior capacidade de resolução de problemas de maneira positiva e a melhores des-
fechos em saúde e bem-estar psicológico. Fatores biológicos, a cultura e o ambiente/
contexto são pontos importantes que influenciam a resiliência tendo em vista que
interferem no processo de gerenciamento do estresse. Como estratégias de promo-
ção de saúde e adaptação positiva, destacam-se o desenvolvimento e fortalecimento
das habilidades socioemocionais, maior autonomia da criança, estímulo ao projeto
de vida, capacidade de resolução de problemas, criatividade, relações interpessoais
positivas etc. A relevância do estudo da resiliência na infância ancora-se, no fato
de essa fase ser um período crítico, no qual inicia-se uma série de mudanças bio-
lógicas, assim como o aprendizado e aquisição de habilidades físicas, cognitivas e
emocionais essenciais para a autonomia e saúde geral do indivíduo.
Conforme salientado, definir o construto resiliência aplicado à ciência e à
psicologia é um processo desafiador. Nosso intuito foi analisar o conceito de re-
siliência e as principais relações com a infância. Além disso, foram apresentadas
relações entre resiliência, projeto de vida e criatividade, de modo a exemplificar
a aplicabilidade desses construtos frente ao enfrentamento de adversidades.
Como limitações, destaca-se outras possíveis relações que poderiam ter sido
apresentadas no texto, como por exemplo: otimismo, inteligência emocional,
altas habilidades/superdotação, problemas de aprendizagem, entre outros. Por
conseguinte, sugerimos que novos estudos possam fornecer dados mais apro-
fundados sobre a temática, os diferentes contextos de promoção de resiliência,
construtos psicológicos associados e possibilidades de intervenção prática desse
construto na infância.

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Capítulo 5 – Laís S.-Vitti, Karina S. Oliveira, Tatiana C. Nakano e Letícia L. D.-Zanon 111

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Capítulo 6
Emoções e inteligência emocional em crianças disléxicas
Mara Dantas Pereira
Joilson Pereira da Silva

Internacionalmente, o período da infância provoca atenção do campo da


psicologia do desenvolvimento, sendo seu estudo marcado pela pluralidade de
conceituações, técnicas e práticas (Bee, 1984; Bjorklund & Pellegrini, 2000;
Cairns, 1983; Firmansyah, 2018). No Brasil, tradicionalmente os estudiosos do
desenvolvimento humano na psicologia atentam-se também para a fase da infân-
cia, visto que demostram interesse pelos anos iniciais de vida dos indivíduos, a
partir da preocupação com os cuidados e a educação das crianças, bem como as
particularidades da infância como um período particular do desenvolvimento
(Barros & Coutinho, 2020; Biaggio & Monteiro, 1998; Carvalho-Barreto,
Soares, & Barbato, 2014; Mota, 2005).
De maneira sintética, Larrosa (2006) postula que a infância se situa em
uma dupla temporalidade. Sendo compreendida como ação cronológica da
criança no desenvolvimento humano, assim constitui o início de uma cronologia
que ela terá que percorrer ao longo do seu desenvolvimento, da sua maturação e
de sua progressiva individualização e socialização. Nesse sentido, o período da
infância se estende desde o nascimento até cerca de 11 anos de idade, correspon-
dendo a uma etapa da vida marcada pelo desenvolvimento físico, psicológico,
afetivo, cognitivo, motor, linguístico e social (Pereira & Rolim, 2022). Por sua
vez, divide-se em duas etapas: a primeira e a segunda infância (Doherty &
Hughes, 2013).
De acordo com Feldman (2015) e Santrock (2010), a primeira infância é o
período de desenvolvimento que se estende da faixa etária de 0 a 6 anos de idade.
Essa etapa inicia-se por uma época de dependência dos adultos (0-3 anos). Muitas
atividades psicológicas estão apenas começando, as habilidades de falar, de coorde-
nar sensações e ações físicas, de pensar com símbolos e de imitar e aprender com
os outros. Em seguida, na fase pré-escolar (4-6 anos), as crianças aprendem a se
tornar mais autossuficientes e a cuidar de si mesmas, desenvolvendo habilidades
para a escola (e.g., seguindo instruções para identificar e soletrar as letras) e passam
um determinado período de tempo brincando com os seus colegas. Geralmente,
o primeiro ano do ensino fundamental marca o fim deste período. Por sua vez,
114 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

a segunda infância é o período de desenvolvimento que se estende entre 6 a 11


anos de idade. Nesta fase, as crianças dominam as competências fundamentais na
aprendizagem da leitura, da escrita e da matemática (Doherty & Hughes, 2013;
Lerner, Theokas, & Jelicic, 2005).
Em contrapartida, crianças disléxicas apresentam dificuldades desde o
início da alfabetização que comprometem a aquisição da leitura, da escrita e da
ortografia ou da matemática (Santos & Capellini, 2020). Assim, elas exibem
características alteradas em competências como identificação ou decodificação
das palavras, leitura de pseudopalavras, fluência e compreensão leitora, cálcu-
lo, compreensão auditiva, raciocínio matemático, soletração, crescimento do
vocabulário e expressão escrita e oral (Oliveira, Cardoso, & Capellini, 2012).
Sabe-se que a competência leitora é essencial para o convívio e desen-
volvimento da criança no espaço escolar. Ao mesmo tempo, observa-se que
a dificuldade de aprendizagem da leitura decorrente da dislexia pode gerar
significativas repercussões emocionais negativas na infância (Tobia, Bonifacci,
Ottaviani, Borsato, & Marzocchi, 2015). Contudo, pouco se conhece sobre
os reais efeitos dessas consequências nos níveis individual, familiar e social
(Livingston, Siegel, & Ribary, 2018). Em suma, vale dizer que a infância re-
presenta uma etapa desafiadora da vida do disléxico, na qual as experiências
escolares negativas e interações sociais repercutem diretamente nos processos
emocionais e no desenvolvimento da autonomia pessoal e social, na medida que
fazem transição da adolescência à vida adulta. Diante do descrito, Parhiala et
al. (2015) propõem que as crianças disléxicas precisam desenvolver habilidades
provenientes da inteligência emocional (IE) na escola, visto que elas se tornam
capazes de lidar com as frustrações, de controlar suas próprias emoções e de
exibir maior autonomia em sala de aula.
Em nosso país, apesar de dispor de literatura acerca da dislexia por meio
de estudos do campo da neuropsicologia e da fonoaudiologia, tanto os efeitos
emocionais quanto a influência positiva da IE são pontos pouco explorados pela
produção científica nacional (Pereira & Silva, 2021). Desse modo, no campo da
psicologia, é necessário indagar, debater e contribuir com esta temática, visto
que se reconhece a importância da ciência psicológica no estudo das emoções e
da IE (Bar-On, 1997; Ekman, 1972, 2003; Goleman, 1995; Salovey & Mayer,
1990). Partindo de tais pressupostos, o presente capítulo visa realizar reflexões
sobre as emoções e a inteligência emocional em crianças disléxicas.
Neste texto, apresenta-se, inicialmente, uma breve contextualização so-
bre a dislexia, expondo seus conceitos e características na fase da infância. Em
Capítulo 6 – Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva 115

seguida, apontam-se as funções das emoções e da inteligência emocional no


desenvolvimento infantil. Por fim, faz-se uma breve reflexão acerca das reações
emocionais e da inteligência emocional em crianças disléxicas.
Na seção a seguir, discutiremos teoricamente sobre a temática da disle-
xia, a partir de referenciais teóricos importantes para esse tema no contexto da
infância.

Dislexia na infância
A dislexia é um transtorno de aprendizagem com impacto na leitura, so-
frendo influência de fatores de ordem cognitiva, hereditária e ambiental no seu
desenvolvimento; que se caracteriza por dificuldades significativas e persistentes
na aprendizagem de habilidades acadêmicas de leitura, acometendo cerca de 5
a 17% de crianças em idade escolar no mundo (Peterson & Pennington, 2015;
World Health Organization [WHO], 2022). A sua incidência é maior em in-
divíduos do sexo masculino (Friedman & Miyake, 2017). No Brasil, estima-se
que aproximadamente 7,8 milhões de indivíduos apresentam diagnóstico de
dislexia (Instituto ABCD, 2020).
Diante desse panorama, em 30 de abril de 2021, acompanhamos, no país,
a implementação da Lei nº 14.254/21, que propõe a assistência integral ao
estudante disléxico, mediante de um programa de diagnóstico e tratamento
precoce da dislexia (Brasil, 2021). Tal lei também assegura que as escolas devem
capacitar os professores para identificação precoce dos sinais relacionados à
dislexia. Posto isto, recomendamos fortemente a necessidade da implementação
de programas ou cursos de formação continuada para os docentes da educação
básica acerca da dislexia.
Em relação aos sinais da dislexia na infância, destaca-se que eles se apresen-
tam no decorrer dos primeiros anos da escolarização formal e mantêm-se ao longo
da vida (Moojen, Bassôa, & Gonçalves, 2016; Peterson & Pennington, 2012).
De acordo com a quinta e última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais [DSM-5] (American Psychiatric Association [APA],
2014), os critérios centrais para o diagnóstico da dislexia na infância são: 1) leitura
de palavras de modo impreciso ou lento e com esforço (e.g., ler palavras isoladas
em voz alta, de maneira incorreta ou lenta e hesitante, comumente adivinha pa-
lavras e tem dificuldade de soletrá-las); e 2) dificuldade para entender o sentido
do que é lido (e.g., a criança pode ler o texto com precisão, mas não entende a
sequência, as associações, as inferências ou os sentidos mais profundos do que é
lido). Ademais, estes sinais devem ser apresentados durante pelo menos seis meses
116 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

(APA, 2014), bem como o curso e a expressão clínica da dislexia podem variar,
a depender das interações entre as determinações ambientais, da pluralidade e
da gravidade das dificuldades individuais de aprendizagem, das comorbidades,
dos sistemas de apoio e das intervenções disponíveis (Carceres & Covre, 2018).
O diagnóstico precoce da dislexia pode ser viabilizado por meio de uma
avaliação multidisciplinar que conta com o neurologista, neuropsicólogo, psi-
copedagogo e fonoaudiólogo (Garvin & Krishnan, 2022). Essa avaliação é de
grande importância para a identificação das causas das dificuldades apresentadas
pela criança, além de atuar como uma ferramenta que possibilita orientar o en-
caminhamento apropriado para o caso individualizado (Eikerling et al., 2022).
Adicionalmente, o diagnóstico da dislexia nos primeiros anos escolares fornece
uma melhor compreensão as crianças das suas próprias dificuldades vivenciadas
em sala de aula, bem como pode auxiliar os professores no desenvolvimento
de práticas pedagógicas que colaborem com o sucesso escolar dos seus alunos
disléxicos (Riddick, 2010).
Em contraste, Carawan, Nalavany e Jenkins (2015), em seu estudo, re-
portaram que crianças relatam não apreciar o rótulo de ser uma pessoa com
dislexia, de forma que resulta em isolamento delas dos seus professores e pa-
res nos espaços escolares. Geralmente, as habilidades acadêmicas das crianças
disléxicas ficam reduzidas apenas às características da sua condição. Assim, os
autores consideram que se lida com a dislexia de modo ineficiente na escola.
Para Rodrigues e Ciasca (2016), não é incomum, termos de um lado o profes-
sor frustrado e impotente por não saber lidar apropriadamente com a dislexia,
e de outro, a criança disléxica, que experiência o fracasso no decorrer do seu
desenvolvimento escolar.
Chama-se a atenção para o desconhecimento acerca da dislexia e a ideia
equivocada de que a intervenção para essa condição vem somente daqueles
que atuam na prática clínica [e.g., neuropsicólogo] (Snowling, 2013). A partir
dessas premissas, lembra-se que a dificuldade no aprendizado da leitura, em
diferentes graus, é a característica exibida em cerca de 80% das crianças disléxi-
cas em idade escolar (Peterson & Pennington, 2012). Assim como, percebe-se
que elas apresentam dificuldades com a fluência correta na leitura e problemas
para aquisição da competência de decodificação e soletração, resultantes de um
déficit fonológico da linguagem (Oliveira et al., 2012). Em adição, as crianças
disléxicas tendem a levar mais tempo na execução da prova de nomeação au-
tomática rápida, comparadas com seus pares que não apresentam alteração na
leitura (Santos & Capellini, 2020).
Capítulo 6 – Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva 117

Indivíduos com o diagnóstico de dislexia na infância apresentam altera-


ção na discriminação dos sons, consciência fonológica e limitação da memória
de curta duração (Quituizaca, Pardo, & Arias, 2021). Como também podem
ter problemas com a memória verbal de longa duração, devido à dificuldade
de formar léxico para a estocagem, tendo prejuízo no desempenho da leitu-
ra de palavras irregulares, não frequentes, pseudopalavras, no crescimento
do vocabulário e no entendimento do material escolar lido (Martínez &
García, 2021). Em suma, nota-se que as crianças disléxicas apresentam ca-
racterísticas alteradas em habilidades como identificação ou decodificação
das palavras.
Ciente desses desafios, o professor precisa buscar adquirir os conheci-
mentos indispensáveis sobre a dislexia para sua práxis pedagógica, visto que
é necessário realizar adaptações curriculares e utilizar recursos didáticos que
atendam às necessidades educacionais do aluno disléxico (Farrell, 2022). Vale
acrescentar que estas ações devem começar no período inicial de alfabetiza-
ção da criança disléxica. Além disso, os obstáculos para o desenvolvimento
da competência leitora provocam implicações emocionais que intensificam os
problemas de leitura (Alesi, Rappo, & Pepi, 2014). Isso leva ao entendimento
que estas dificuldades podem gerar profundos impactos na vida emocional da
criança disléxica (Lima, Salgado-Azoni, Dell’agli, Baptista, & Ciasca, 2020).
Sendo assim, a dislexia é um fator de risco ao desenvolvimento emocional na
infância (Nachshon & Horowitz-Kraus, 2019).
Na próxima seção exploraremos o campo das emoções, ao introduzirmos
a relevância da IE na infância, numa perspectiva da psicologia.

Sobre emoções, inteligência emocional e infância


Historicamente, em 1872, o estudo sobre as emoções começou a partir
das teorias do geólogo e biólogo britânico Charles Robert Darwin, com a obra
The Expression of the Emotions in Man and Animals [A expressão das emoções no
homem e nos animais] (Darwin, 1872). O livro é composto por treze capítulos.
Nesta obra, o autor explorou os princípios gerais da expressão, especificamente
as formas de expressão de animais e de homens, tais como: sofrimento e choro,
desânimo, ansiedade, tristeza, alegria, bom humor, amor, entre outros. Além
disso, ele dissertou descrições aprofundadas de expressões manifestadas por
meio de eventos comportamentais por ele observados, ou relatados por seus
correspondentes, complementadas por figuras, gravuras e fotografias, usadas
como exemplos para defender seus argumentos.
118 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Consequentemente, o trabalho de Darwin foi considerado o mais in-


fluente sobre a emoção do século XIX (Mlodinow, 2022); e, nos séculos
seguintes, inspirou o surgimento de diversas teorias sobre as emoções (Ca-
cioppo, Larsen, Smith, & Berntson, 2004; LeDoux, 1995; Thompson, 2009).
Acredita-se, ainda, que os princípios fundamentais destas teorias foram que
há emoções básicas compartilhadas por todos os seres humanos, e que estes
estados emocionais têm gatilhos fixos que provocam comportamentos especí-
ficos. Por sua vez, as emoções têm sido objeto de análise e de constante preo-
cupação dos psicólogos do desenvolvimento (Bar-On, 1997; Ekman, 1972,
2003; Goleman, 1995), visto que desempenham um papel fundamental no
bem-estar subjetivo ou desconforto que as pessoas manifestam em todas as
áreas da sua vida. Além disso, ocupa um lugar de destaque na organização
do desenvolvimento humano e no funcionamento socioemocional (Rocha,
Candeias, & Silva, 2018).
Uma prova desse interesse no campo das emoções é o estudo Universal
and cultural differences in facial expressions of emotion (Diferenças universais e
culturais nas expressões faciais de emoção) produzido pelo psicólogo americano
Paul Ekman (1972), que é conhecido internacionalmente como o pioneiro na
investigação científica das emoções, ao trazer uma importante contribuição
para este campo de pesquisa. Posteriormente, em 2003, o autor publicou a obra
Emotions revealed: Recognizing faces and feelings to improve communication and
emotional life (Emoções reveladas: reconhecimento de rostos e sentimentos para
melhorar a comunicação e a vida emocional). Neste livro, nota-se que Ekman
consolidou sua teoria para o subsídio de qualquer proposta de intervenção no
campo emocional.
As emoções fazem parte do complexo subjetivo do ser humano e o acom-
panham em suas relações. A definição da palavra é fruto de um debate no meio
acadêmico e de pesquisa. De acordo com Campos (2009), a emoção é definida
como um sentimento ou efeito que ocorre quando os indivíduos estão em um
estado, ou em uma interação importante para eles, especialmente aquela que
influi em seu bem-estar. Corriqueiramente, os sentimentos são sensações cor-
porais próprias dos seres humanos; no entanto, a nomeação desses sentimentos
é algo que vem da aprendizagem e se origina socialmente (Skinner, 1978). Em
outras palavras, há uma distinção entre sentir e nomear os sentimentos (Skinner,
1974). Assim, quando nos tornamos competentes para identificar nossas próprias
emoções, cria-se a possibilidade de inferirmos o sentimento de outro indivíduo
frente à determinada circunstância (Skinner, 1974, 1978).
Capítulo 6 – Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva 119

É geralmente considerado na psicologia do desenvolvimento a emoção


como pensamentos distintos, estados psicológicos e biológicos, e uma gama de
tendências para agir (Depp, Vahia, & Jeste, 2010; Goleman, 1995). Assim, para
tratarmos e discutirmos sobre o vasto mundo emocional, devemos refletir que os
psicólogos do desenvolvimento classificam a ampla gama de emoções de muitas
maneiras, mas quase todas as classificações designam uma emoção como positiva
ou negativa (Depp et al., 2010; Ekman, 1972; Izard, 2009). Desse modo, as
emoções positivas incluem entusiasmo, alegria e amor; já as emoções negativas
abrangem ansiedade, raiva, culpa e tristeza (Ekman, 2003). Na infância, as
emoções são o resultado das tentativas das crianças de se adaptarem as demandas
dos contextos vivenciados (Saarni, Campos, Camras, & Witherington, 2006).
Comentam ainda os autores que as respostas emocionais de uma criança não po-
dem ser separadas das situações em que são evocadas. Em geral, as emoções são
eliciadas em contextos interpessoais (Izard, 2009). Diante disto, as expressões
emocionais desempenham a função de sinalizar para os outros como a criança se
sente, regulando o próprio comportamento e desempenhando papéis essenciais
na troca social (Saarni et al., 2006). Ademais, Depp et al. (2010) acrescentam
que as emoções exercem influência na comunicação das crianças com o mundo.
Os papéis dos pais e professores no desenvolvimento emocional infantil
têm grande importância, visto que estes respondem às emoções das crianças
e são modelos para elas (Mavroveli, Petrides, Sangareau, & Furnham, 2009;
Suharni, Wahyuni, & Astri, 2021). As práticas que estimulam este desenvol-
vimento são nomeadas de intervenções baseadas em IE, sendo relacionadas aos
conceitos de saúde mental, regulação emocional e habilidades socioemocionais
futuras (Tolegenova, Jakupov, Chung, Saduova, & Jakupov, 2012). Cita-se,
ainda, que a IE é definida como uma aptidão que proporciona ao ser humano
usufruir de suas emoções de modo benéfico e favorável, sem permitir que as
“explosões” emocionais, derivadas das pressões e atribulações do cotidiano, pre-
valeçam em momentos cruciais e adaptativos da vida (Goleman, 1995).
Vale salientar que algumas práticas relevantes da IE são mostrar abertura à
expressão de emoções das crianças, sejam estas positivas ou negativas e conversar
com frequência a respeito das emoções (Brouzos, Misailidi, & Hadjimattheou,
2014). Dessa maneira, é possível gerar um maior repertório de habilidades socioe-
mocionais e menos problemas comportamentais (Keefer, Holden, & Parker, 2013).
Ainda, alguns fatores podem interferir de forma negativa no desenvolvimento e
regulação emocional infantil, como a invalidação ou críticas referentes à emoção
expressada pela criança (Pauletto, Grassi, Passolunghi, & Penolazzi, 2021).
120 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Em resumo, podemos afirmar que a ciência psicológica, no decorrer das


décadas, vem comprovando que a IE é o elemento fundamental para o de-
senvolvimento emocional na infância, assim como na aquisição de algumas
competências específicas para lidar com relações interpessoais e intrapessoais,
oportunizando a promoção de uma maior saúde emocional em crianças. Partin-
do desta premissa, tornar-se emocionalmente competente engloba o desenvol-
vimento de uma série de habilidades em diversos contextos sociais (Doherty &
Hughes, 2013). Acredita-se, ainda, que conforme as crianças vão desenvolvendo
as competências de IE para o enfrentamento dos eventos que são experenciados
por elas, conseguem gerenciar suas emoções com maior eficácia, tornando-se
resilientes mediante de circunstâncias estressantes e criam relacionamentos mais
positivos (Saarni et al., 2006).
É cabível esclarecer que o entrelaçamento entre o campo das emoções e a
teoria da IE emergiu do psicólogo americano Goleman (1995), que tem o mérito
de ter aproximado os fundamentos da IE do grande público e dos psicólogos
do desenvolvimento, por meio de sua obra “Inteligência emocional: a teoria
revolucionária que redefine o que é ser”, tornando-se o grande responsável por
difundir os trabalhos de pioneiros em pesquisas sobre IE como, por exemplo,
os estudos dos psicólogos estadunidense Peter Salovey e John D. Mayer (1990).
Sublinha-se também que Goleman (1995) menciona os cinco componentes da
IE responsáveis pela capacidade de controlar e administrar as emoções de forma
adequada, tais como: o primeiro denominado “autoconsciência”, sendo a capaci-
dade de compreender seus sentimentos e emoções. O segundo nomeado como
“equilíbrio emocional”, é a habilidade de controlar o mau-humor para evitar seus
efeitos prejudiciais. O terceiro chamado de “motivação”, sendo a competência
de ser capaz de autoaplicar diferentes emoções (e.g., confiança e otimismo). O
quarto intitulado “controle dos impulsos” é a habilidade de postergar um desejo
tencionado por um objetivo. Por fim, o quinto componente, a “sociabilidade”
deve-se considerar os quatro componentes supracitados relacionados ao conhe-
cimento e o controle das emoções e estados de espírito dos outros.
Em síntese, a IE é considerada uma habilidade de processar informações
emocionais de modo eficiente por intermédio de processos mentais de reconhe-
cimento e regulação emocional, e uso adaptativo das suas próprias emoções e
das dos outros (Vieira-Santos, Lima, Sartori, Schelini, & Muniz, 2018). Nessa
direção, Sevilla (2016) postula que desde o nascimento, meninas e meninos se
desenvolvem em um ambiente repleto de emoções. Somando-se a isso, a IE em
crianças é desenvolvida por meio das habilidades emocionais utilizando como
Capítulo 6 – Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva 121

parâmetro sua faixa etária para entender suas próprias emoções e as dos outros,
sendo tais: expressar as emoções (primeiro e segundo ano de vida); competências
empáticas (a partir dos 3 meses de idade); perceber as emoções dos outros (entre
6 e 9 meses); autopercepção da emoção em si mesmo (por volta de 2 a 5 anos); e
habilidades de enfrentamento às adversidades e regulação emocional [por volta
de 2 a 10 anos] (Arándiga, 2007; Arándiga & Tortosa, 2004).
É no decorrer dos primeiros anos de vida que a criança aprenderá a expres-
sar suas próprias emoções, bem como identificá-las e respondê-las mediante da
regulação emocional (Singh, Singh, & Singh, 2015). Então, considera-se que
este aprendizado dependerá do desenvolvimento da IE, e faz-se necessário que
essa aprendizagem acorra durante a infância. Nesse sentido, a consciência que a
criança tem de si mesma está ligada à capacidade de sentir suas emoções, visto
que elas, como os adultos, experimentam muitas emoções em sua vida cotidiana
(Hosogi, Okada, Fujii, Noguchi, & Watanabe, 2012). Os autores salientam
que quando as crianças desenvolvem a IE passam a compreender melhor as
reações emocionais de outros indivíduos, assim como conseguem controlar suas
próprias emoções. Ademais, Santrock (2010) defende que os pais, professores e
pares podem desempenhar papéis importantes no desenvolvimento emocional
das crianças.
Nesse campo de proposições, sublinha-se a importância de elaborar pro-
gramas que desenvolvam competências de IE em contexto escolar, visto que estas
práticas podem auxiliar estas crianças na aquisição de habilidades essenciais para
um desenvolvimento emocional saudável (Doherty & Hughes, 2013). Nesse
contexto situam-se as práticas destinadas a apoiar na expressão emocional das
crianças e ajudá-las com habilidades na formação de relacionamentos sociais
(Lewis, Todd, & Xu, 2011). Sendo assim, consideramos que a IE desempenha
um papel fundamental na capacidade das crianças de reconhecer e avaliar as
demandas e conflitos que enfrentam ao interagir com outros indivíduos.
Cabe mencionar que os pais podem desempenhar um papel importante
em auxiliar as crianças no desenvolvimento da IE, mas também depende de
como eles dialogam com seus filhos acerca das emoções deles, os pais podem
ser descritos como adotando uma abordagem de treinamento emocional ou de
rejeição das emoções (Gottman Relationship Institute, 2009). Grusec e Davidov
(2010), por sua vez, comenta que a distinção entre essas abordagens é observada
no modo como os pais lidam com as emoções negativas da criança (e.g., raiva,
frustração e tristeza). Ainda, os autores complementam afirmando que os pais
treinadores monitoram as emoções de seus filhos e veem os estados negativos
122 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

como oportunidades de ensino, auxiliando as crianças no reconhecimento de suas


emoções e as treinando para lidar adaptativamente com elas. Tais apontamentos
possibilitam refletir que a interação pais-filhos tem um papel crucial no desen-
volvimento de IE na infância. A partir disso, na próxima seção são pontuados
argumentos e evidências de como a IE influência positivamente no processo de
desenvolvimento emocional em crianças com dislexia.

Reações emocionais e inteligência emocional em crianças disléxicas


Focando, especificamente, nas reações emocionais, podemos citar que
as crianças disléxicas vivenciam diversas emoções negativas decorrentes das
suas dificuldades na aprendizagem da leitura, e, assim, suas possíveis habilida-
des de IE são constantemente desafiadas (Parhiala et al., 2015). Com isso, as
emoções, ao se tornarem dominantes e excessivas, acabam por prejudicar elas,
deixando-as mais vulneráveis para apresentar sintomas ansiosos (Habib & Naz,
2015). A ansiedade é definida com um estado psicofisiológico influenciado por
fatores cognitivos, somáticos, emocionais e comportamentais (Borquist-Conlon,
Maynard, Brendel, & Farina, 2017). Nesta perspectiva, é relevante considerar
que a ansiedade infantil é causada especialmente pela influência de aspectos
ambientais (Nachshon & Horowitz-Kraus, 2019). Os autores destacam também
que o desenvolvimento emocional das crianças disléxicas se encontra relacionado
pela forma que elas lidam com os seus medos e ansiedades (e.g., prática de leitura
na sala de aula), dado que geralmente estas têm dificuldades em compreender
e identificar suas emoções negativas como sendo exacerbados ou irracionais.
A ansiedade é tida como o sintoma emocional mais frequente em crianças
disléxicas, sendo geralmente decorrente das emoções negativas (e.g., frustação
e medo) associadas ao ambiente da sala de aula (Habib & Naz, 2015). De
fato, essas emoções são realçadas pelas repercussões da dislexia na vida escolar,
pois elas tendem a antecipar o fracasso ao experienciarem novos eventos (e.g.,
realizar as atividades requeridas pelo professor), tornando-se um significativo
gatilho para os sintomas ansiosos (Lawrence, 2009). Outrossim, é importante
mencionar que no período de provas há uma ampliação dos sintomas físicos e
emocionais da ansiedade (Fernandes, Sisto, Oliveira, & Callatto, 2016).
Esta situação acaba por reverberar diretamente na vida emocional das
crianças disléxicas, visto que exibem dificuldades nas atividades escolares com
tendência a se isolarem quando fracassam em alguma tarefa, deixando-as mais
suscetíveis a manifestarem medo e ansiedade (Novita, Uyun, Witruk, & Siregar,
2019). Não obstante, a depressão é considerada uma complicação frequente da
Capítulo 6 – Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva 123

dislexia, visto que as crianças disléxicas se encontram vulneráveis as emoções


negativas de dor e de tristeza (Lima et al., 2020). A depressão é definida como
uma perturbação emocional que gera modificações na cognição, emoção e com-
portamentos (Andretta, Limberger, Schneider, & Mello, 2018). Na infância, a
sintomatologia depressiva é múltipla, heterogênea e específica; sendo que seus
sintomas possuem particularidades próprias e muitas vezes são mascarados no
comportamento da criança (Coutinho & Ramos, 2008).
Conforme Lima et al. (2020), as crianças disléxicas se apresentam cons-
tantemente decepcionadas, frustradas, envergonhadas, fartas, tristes, depri-
midas e constrangidas pelas dificuldades de aprendizagem decorrentes da sua
condição. Por outro lado, Parhiala et al. (2015) salientam que o fortalecimento
da IE nestes indivíduos encontra-se associado a ações específicas de promoção
de autoaceitação e de autopercepção adequada à sua condição, assim como o
desenvolvimento de sua autonomia em espaços como a escola. Para que isso
seja possível, são necessárias intervenções pedagógicas por meio de atividades
lúdicas, reflexivas e experimentais que busquem auxiliar no desenvolvimento
da IE em crianças disléxicas (Morente, Guiu, Castells, & Escoda, 2017). Além
disso, os autores defendem que é fundamental o desenvolvimento de ações que
oportunizem relações interpessoais saudáveis delas com seus professores e pares
em sala de aula. Atestando o exposto, Lech (2014) concluem que o fortaleci-
mento das relações interpessoais apoiadas em um bom diálogo representa a base
para a aquisição da IE na infância.
Em suma, percebemos que todas essas ações desenvolvidas com crianças
disléxicas podem reduzir o impacto da dislexia no desenvolvimento emocional
nesta fase do ciclo vital. Assim, entendemos que a aquisição de habilidades e
competências provenientes da IE na escola são importantes para auxiliar as
crianças disléxicas em um melhor entendimento de suas emoções, bem como
favorecer a aprendizagem de comportamentos mais adaptativos. Diante do ex-
posto, consideramos que a IE proporciona um maior manejo emocional das
repercussões escolares da dislexia, como também promove o fortalecimento da
autoconfiança para a realização das tarefas em sala de aula.

Considerações finais
Concluímos que a habilidade de leitura é importante para o convívio
e desenvolvimento da criança no ambiente escolar, no entanto, aquela dislé-
xica que vivência dificuldade no processo de aprendizagem da leitura pode
manifestar reações emocionais negativas. Além disso, percebemos que o
124 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

desenvolvimento emocional das crianças disléxicas se encontra relacionado


ao modo como elas lidam com os seus medos e ansiedades, visto que comu-
mente as crianças disléxicas têm dificuldades em entender e identificar suas
emoções negativas como sendo exacerbados ou irracionais. Em consequência
disso, observamos que elas se encontram mais vulneráveis a apresentarem
quadros de ansiedade e de depressão.
Em suma, acreditamos que as dificuldades escolares podem gerar im-
pactos negativos significativos no desenvolvimento emocional da criança
disléxica. Mediante este cenário, se faz necessário a elaboração de ações que
promovam o desenvolvimento de IE em crianças disléxicas, uma vez que elas
poderão reconhecer e manejar melhor as emoções decorrentes das adversidades
que enfrentam em sala de aula. Sendo assim, as reflexões tecidas aqui nos
permitem compreender a necessidade de fortalecer as relações interpessoais
na escola, apoiando-se na construção de um bom diálogo entre a criança
disléxica, o professor e seus pares em sala de aula. Com isso, se consegue
alicerçar a essencial base para o desenvolvimento da IE no contexto escolar.
Percebemos, ademais, o papel fundamental dos pais para auxiliar estas crian-
ças nesse processo.
O presente capítulo contribuiu com a literatura, ao revelar que as emo-
ções desempenham um papel vital no processo desenvolvimental do disléxico,
contudo, existem poucas investigações que abordem o tema dislexia e suas re-
percussões emocionais na infância. Isto posto, consideramos que as discussões
apresentadas no presente capítulo podem ajudar diversos pesquisadores da área
de psicologia do desenvolvimento e leitores interessados na temática. De forma
mais específica, defendemos a necessidade de se abordar o tema da influência
da dislexia no surgimento de emoções negativas, bem como o papel da IE para
mitigar os estados emocionais negativos decorrentes desta condição, por exem-
plo, os sintomas ansiosos e depressivos.
Vê-se que é preciso os profissionais da psicologia ter acesso a essas infor-
mações, uma vez que terão subsídios para elaborações de estratégias firmadas
em parceria com a escola e a família. Por fim, acreditamos que a partir das
reflexões aqui apontadas, os psicólogos do desenvolvimento poderão mapear os
ambientes que as crianças disléxicas se encontram inseridas e predizer trajetórias
possíveis do processo desenvolvimental, mapeá-las, identificá-las e analisá-las
a partir das rotas possíveis para a elaboração de intervenções (e.g., programas
que desenvolvam competências de IE) fundamentais para promover o desen-
volvimento emocional saudável nestes indivíduos.
Capítulo 6 – Mara Dantas Pereira e Joilson Pereira da Silva 125

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Capítulo 7
Análise psicossocial do autismo: reflexões
sobre o futuro da criança autista
Camila Cristina Vasconcelos Dias
João Victor Cabral da Silva
Silvana Carneiro Maciel

O autismo ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), é um dos transtor-


nos do neurodesenvolvimento mais socialmente reconhecido atualmente, seja
pela evolução da ciência que permitiu um crescente número de diagnósticos, seja
pelo crescimento do interesse acadêmico-científico na temática, e especialmente
pelas contribuições e atuação política-social dos sujeitos interessados e envolvi-
dos diretamente com a temática, a saber, as pessoas autistas e seus familiares.
Dessa atuação política-social, observamos um esforço visando a despatologi-
zação do transtorno, entendendo-o enquanto uma manifestação da natureza
humana que difere do desenvolvimento típico, demarcando o movimento da
neurodiversidade. Contudo e a despeito desse esforço e do avanço científico, as
pessoas autistas e seus familiares permanecem alvos de preconceitos e condutas
discriminatórias, práticas essas que ganham novas nuances e novas roupagens
conforme as demandas sociais vão se estabelecendo; de forma a atender ao
“politicamente correto”, passando a prevalecer o preconceito sutil ou encoberto.
Diante dessas questões e tendo em vista a complexidade do assunto, com
este capítulo, nos propusemos a tecer provocações acerca do futuro das crianças
autistas, refletindo sobre o lugar social que esses sujeitos ocupam em nossa so-
ciedade, analisando a forma como ainda são compreendidos atualmente, levando
em conta que se trata de um transtorno do neurodesenvolvimento e que, por-
tanto, perdura ao longo de toda a vida do sujeito, não se encerrando na infância.
Ainda que a infância seja um momento crucial para observação dos primeiros
sintomas e para intervenções precoces com melhores diagnósticos, ressaltamos
a relevância de se olhar para o autismo enquanto uma questão do desenvolvi-
mento, não apenas um transtorno exclusivo da infância, destacando seu caráter
persistente, visto que as crianças autistas, com o tempo, se tornam adultas e
apresentam outras demandas e necessidades que precisam ser atendidas.
Portanto, para cumprir o objetivo proposto para esse capítulo, utilizaremos
os conceitos e ferramentas oferecidos pela Psicologia Social, em especial a Teoria
Capítulo 7 – Camila C. V. Dias, João Victor C. da Silva e Silvana C. Maciel 133

das Representações Sociais. A fim de fundamentar uma análise psicossocial do


transtorno do autismo nos debruçaremos sobre os aspectos históricos, culturais
e relacionais, em uma busca de uma visão ampla e reflexiva sobre a temática.

Breve percurso histórico sobre o autismo


O autismo é uma condição do neurodesenvolvimento que extrapola os
limites dos consultórios médicos e se faz presente em discussões nos mais di-
ferentes âmbitos da sociedade. Nesse sentido, ele pode ser analisado enquanto
um objeto social que está inserido e produz efeitos no tecido social, mas que
também possui uma trajetória social, e para sua melhor análise faz-se necessá-
rio um retorno à história desse objeto a fim de compreender como essa relação
dialética vem se constituindo.
O termo autismo surgiu em 1911, nos trabalhos sobre transtornos mentais
do psiquiatra suíço Eugen Bleuler, sendo utilizado para agrupar um conjunto
de sintomas que caracterizariam o padrão de conduta das pessoas diagnostica-
das como esquizofrênicas. De acordo com Camargo, Gonzáles, Cruz, Olmos
e Scatambulo (2019), o termo fora designado para descrever um padrão de
conduta comum na esquizofrenia, como as dificuldades na interação social e
a sobreposição da realidade interna sobre a externa, associados à presença de
graves perturbações na conduta. Portanto, observa-se que o autismo era uma
característica presente nas pessoas esquizofrênicas, grupo socialmente catego-
rizado enquanto loucos.
Ao percorrerem a construção histórica do autismo em sociedades do norte
global, Donvan e Zucker (2017) demonstram que o processo de institucionali-
zação e apagamento do sujeito foram práticas comuns que se fizeram presentes
no trato de crianças que, de alguma maneira, se diferenciavam das demais.
Os primeiros registros históricos de possíveis quadros autistas datam do
século XV e revelam uma associação com a dita “loucura santa”, quando o sujeito
possui uma espécie de conexão privilegiada com entidades espirituais (Donvan
& Zucker, 2017). No entanto, o significante sacro foi logo alterado pelo da
desrazão, que surge como uma maneira de diferenciar e separar os loucos da
sociedade que compartilha uma mesma racionalidade (Camargo et al., 2019).
Como resultado, observamos a construção de uma política de enclausuramento
destes que fogem à norma e a formação de um ideário que impõe sobre os loucos
as noções de imprevisibilidade e periculosidade, utilizadas como justificativas
para tais práticas excludentes (Maciel, Barros, Camino, & Melo, 2011; Sousa,
Maciel & Medeiros, 2018).
134 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

O surgimento do autismo enquanto uma categoria nosográfica especí-


fica ocorreu apenas em meados da década de 1940, com as publicações dos
psiquiatras Leo Kanner sobre os Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo e
Hans Asperger sobre a Psicopatia Autística, que logo se tornaria a Síndrome
de Asperger. No caso de Leo Kanner (1943), o psiquiatra realizou estudos
clínicos com onze crianças (oito meninos e três meninas), em que observou a
presença de um quadro sintomatológico comum a todas: 1. dificuldades de rela-
cionamento ou interação social; 2. déficits na linguagem e no desenvolvimento
cognitivo, associados ou não ao retardo mental; e 3. comportamentos restritos e
estereotipados. Para o psiquiatra, o autismo era um transtorno da infância que
interferia no pleno desenvolvimento das crianças, sendo também conhecido
como Autismo Infantil ou Autismo Clássico.
Simultaneamente, Hans Asperger (1944) descreveu a psicopatia autística
enquanto um transtorno distinto da esquizofrenia, cuja principais características
seriam os prejuízos na interação social, descrevendo sujeitos que aparentavam
ser incapazes de demonstrar amor ou de ser afetado pelo outro e, também,
comportamentos e interesses restritos ou estereotipados. Diferentemente de
Kanner, Asperger identificou que as crianças diagnosticadas com a psicopatia
autistística não apresentavam prejuízos significativos na linguagem, nas práticas
de autocuidado e na cognição, algumas inclusive foram descritas como superdo-
tadas. Em razão dessas diferenças observadas por Asperger, o transtorno passou
a ser socialmente reconhecido posteriormente enquanto Síndrome de Asperger.
O papel da dimensão neurológica e genética é conhecido no surgimento
do autismo, mas ainda não se tem um consenso na comunidade científica acerca
da etiologia do transtorno e isso ressoa de diferentes modos na sociedade. Ainda
que as primeiras proposições de Kanner e Asperger tenham se voltado para ex-
plicações de ordem genética e biológica, as quais identificavam uma inabilidade
inata das crianças em se relacionar, suas descrições acerca dos comportamentos
dos pais serviram de fundamento para uma perspectiva psicogênica (Fadda &
Cury, 2016). Nesta perspectiva, os pais eram culpabilizados por serem vistos
como sujeitos apáticos, frios, distantes e com alto grau de instrução acadêmica,
peso redobrado sobre as mães que foram tachadas de “mães geladeira” por serem
incapazes de amar e que estariam congelando seus filhos no autismo (Donvan
& Zucker, 2017).
Por fim, uma corrente mais atual e atravessada pela influência dos próprios
sujeitos autistas identifica o transtorno como uma das expressões da natureza
humana, conhecida como hipótese da neurodiversidade. Essa perspectiva parte
Capítulo 7 – Camila C. V. Dias, João Victor C. da Silva e Silvana C. Maciel 135

da ideia do autismo como uma condição do desenvolvimento neurológico, mas


não necessariamente um transtorno que deve ser curado ou ter seus sintomas
suprimidos (Fadda & Cury, 2016). Contemporaneamente a esse movimento,
observamos as mudanças nos critérios diagnósticos e do próprio diagnóstico em
si, que passou a englobar a noção de espectro.
Atualmente, o autismo é conceituado enquanto uma condição do neuro-
desenvolvimento, cujos primeiros sintomas surgem por volta dos três anos de
idade e perduram ao longo da vida do indivíduo. Por sua vez, no Brasil, existe
um entendimento legal de que o autismo se trata de uma deficiência a fim de
que os sujeitos diagnosticados com o transtorno possam ter acesso a tratamentos
de saúde e, especialmente, a benefícios socioassistenciais garantidos a pessoas
com deficiência como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) preconizado
pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
Ademais, houve uma mudança de categorização internacional importan-
te nos dois principais manuais diagnósticos disponíveis à comunidade cien-
tífica: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5;
American Psychiatric Association, 2014) e a Classificação Internacional de
Doenças (CID-11; World Health Organization, 2022). O DSM-5, trouxe
consigo a terminologia Transtorno do Espectro Autista (TEA) no intuito de
aglutinar uma série de transtornos do desenvolvimento que evoluem de modo
semelhante, diferindo apenas quanto ao grau de severidade e nas diferentes
combinações na apresentação de sintomas.
No caso da Classificação Internacional de Doenças o termo Autismo
Infantil, esteve presente na versão anterior (CID-10) desde 1994 até a implan-
tação da nova versão CID-11. O CID-11 passou a vigorar em janeiro de 2022,
e trouxe, dentre outros avanços, a adoção da terminologia TEA, valendo a pena
destacar que esse manual é o adotado como referência pelo governo brasileiro
para diagnósticos, atestados e outras orientações na área de saúde. Considerando
o tempo de transição entre as edições do CID e a relevância deste manual, obser-
va-se que os resquícios da terminologia e as diretrizes diagnósticas do Autismo
Infantil ainda se fazem presentes na sociedade atual, moldando a forma como
vem apreendendo e representando o TEA ao longo dos tempos.

E para falarmos sobre o autismo...


Para falarmos sobre o autismo e como ele tem sido assimilado pela socie-
dade ao longo do tempo, elegemos a Teoria das Representações Sociais para
nos guiar. Trata-se de uma teoria psicossociológica proposta por Moscovici
136 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

(1981) que parte do entendimento das representações sociais como um conjunto


de conceitos, proposições e explicações criado na vida cotidiana no decurso da
comunicação interindividual, consideradas verdadeiras teorias do senso comum.
Essas representações sociais, ao passo que fornecem um código de troca entre
as pessoas e agem como moduladoras do pensamento e reguladoras da dinâ-
mica social, funcionam como guias para a compreensão e organização de uma
realidade cotidiana construída e reconstruída a partir da própria dinâmica entre
comunicação e representação.
As representações sociais são amplamente utilizadas para compreender
fenômenos sociais complexos porque orientam e justificam as práticas sociais,
proporcionando acesso a crenças, estereótipos, atitudes, imagens, opiniões e
valores construídos, compartilhados e difundidos amplamente na sociedade
(Moscovici, 2015). Dito isso, para conhecer as representações sociais sobre
o autismo, devemos considerar a sua história no intuito de elucidar como a
sociedade tem se relacionado com ele de maneira a alimentar, reiteradamente,
determinadas condutas direcionadas às pessoas autistas, como o preconceito, a
discriminação e a exclusão, sejam elas crianças ou adultos.
Um dos estudos que ajudam a pensar como o autismo vem sendo repre-
sentado ao longo da história foi realizado por Sarret (2011) objetivando iden-
tificar como os meios de comunicação e a literatura científica representaram o
autismo nos anos 1960 e 2000 nos Estados Unidos. Os resultados apontaram
uma representação baseada na figura de uma criança sozinha com o olhar per-
dido, desconectada das outras pessoas, retratada como um sujeito fragmentado,
caracterizado por uma ruptura do eu com a realidade.
No Brasil, Santos e Santos (2012) realizaram um estudo em que o autismo
foi representado por professores pernambucanos na figura de uma criança que
está voltada para o interior de si mesma. Além do mais, os professores repre-
sentaram o autismo por meio de comparações entre de crianças autistas com
crianças neurotípicas, sendo elas semelhantes quanto à aparência física, mas em
geral diferentes, já que as crianças autistas seriam percebidas como tristes e que
buscam se isolar das demais pessoas.
Os estudos citados apontam que o autismo está representado na figura da
criança, o que foi comprovado também a partir de outros achados, como os de
Whitman (2015) e Wood e Freeth (2016) que constataram a caracterização da
pessoa autista como sendo majoritariamente uma criança, doente, estranha, que
não demonstra afeto e envolvimento, além de ser incapaz de aprender. Inclusive,
sobre a incapacidade é interessante destacar que Weisheimer (2017) aponta essa
Capítulo 7 – Camila C. V. Dias, João Victor C. da Silva e Silvana C. Maciel 137

representação como um dos motivos pelos quais crianças, mesmo com o grau
leve de TEA, sejam alvos de preconceito.
No contexto nacional, estudo recente de Dias, Maciel, Silva e Menezes
(no prelo) acerca das representações sociais elaboradas por universitários indica-
ram uma representação do autismo tal como está contido na CID-10, Autismo
Infantil, materializando-se, mais uma vez, na imagem de uma criança doente
e isolada, revelando uma representação social hegemônica. De modo geral, é
possível afirmar que ainda há na sociedade a concepção de que o autismo é um
transtorno essencialmente infantil como já haviam constatado Bennet, Webster,
Goodall e Rowland (2018). Por conta disso, Henninger e Taylor (2013) ressal-
tam que o autismo na vida adulta precisa ser mais pesquisado, posto que a revisão
da literatura realizada por eles demonstrou evidências de que os sinais de TEA
não só estão presentes na vida adulta como podem, inclusive, ser agravados, o
que demanda maior apoio a essa população.
É interessante observar a ênfase na criança recuperando a classificação
nosográfica referente ao Autismo Infantil, contida na CID-10 (OMS, 1993),
como observou Dias et al. (no prelo). Esse manual é de uso compulsório pelo
Sistema Único de Saúde no Brasil e, portanto, ainda subsidia as práticas e as
informações difundidas sobre o autismo na sociedade. Contudo, destacamos,
mais uma vez, que o lançamento da CID-11, ao considerar a nomenclatura
Transtorno do Espectro Autista (TEA), tal como o DSM-5 (APA, 2014), pode
auxiliar nos processos de transformação de representação, haja vista o potencial
simbólico do discurso. Parece-nos que deixar de pronunciar “Autismo Infantil”
pode ser um avanço. Mas há muito o que fazer! De maneira alguma as mudanças
necessárias se resumem à alteração de uma nomenclatura diante da complexi-
dade das dinâmicas sociais excludentes e capacitistas.
Logo, chamamos atenção para a ideia de que considerar o autismo como
uma condição manifestada na infância sem enfatizar seu aspecto persistente
resulta em diversos desafios para a pessoa autista. Ou seja, ignorar sua mani-
festação ao longo da vida do indivíduo, refletindo no modo como é represen-
tado socialmente, produz efeitos no acesso ao suporte e acompanhamento no
decorrer do seu desenvolvimento, além de dificultar a identificação dos sinais
do autismo em pessoas adultas, produzindo diagnósticos equivocados (Guedes
& Tada, 2015).
Mesmo que, por um lado, avanços nos cuidados terapêuticos, nem sem-
pre são acessíveis a todos que precisam, de acordo com Volkmar, Reichow e
McPartland (2014) eles podem colaborar para que as crianças autistas cresçam
138 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

e se tornem adultos mais independentes. Chamak e Bonniau (2016) salientam


que a melhora dos aspectos compreendidos como prejuízos ao longo do de-
senvolvimento é bem mais evidente nas pessoas autistas que não apresentam
maior severidade nos déficits relacionados à cognição ou à linguagem e recebe-
ram estimulações precocemente. Ainda assim, desenvolvimento de habilidades
nessas áreas que garantam uma adaptação considerável ao meio não asseguram
a inclusão social, haja vista muitos adultos autistas com grau leve de TEA que
permanecem excluídos socialmente, possuindo pouco acesso ao ensino superior
e, consequentemente, ao mercado de trabalho e à autonomia (Gerhardt, Cicero,
& Mayville, 2014).
Para Donvan e Zucker (2017), muitos autistas adultos são privados da
própria noção de vida adulta, e por não serem mais crianças “fofinhas”, a eles
são atribuídas mais noções de instabilidade, imprevisibilidade e, inclusive, de
perigo. Essas noções fazem com que as pessoas autistas adultas sejam percebidas
de modo semelhante às pessoas com transtornos mentais severos, por exemplo.
Não surpreende que a vida adulta das pessoas autistas venha sendo caracterizada
pelo isolamento e pela solidão em decorrência da exclusão social produzida
pela discriminação e atitudes negativas de rejeição e desconforto expressadas
por pessoas neurotípicas, mesmo que a pessoa autista consiga concluir parte
dos estudos (Dickter, Burk, Zeman, & Taylor, 2020; Leopoldino & Coelho,
2017). No entanto, há uma escassez de produções científicas, especialmente
no Brasil, de cunho teórico e prático que abordem o autismo em outras fases
do desenvolvimento que não apenas na infância (Guedes & Tada, 2015), o que
demonstra que a própria ciência está implicada na manutenção da representação
do autismo como algo essencialmente da infância.
A Teoria das Representações Sociais nos auxilia a compreender como a
sociedade se relaciona com um determinado fenômeno e podemos ver que ao
autismo é relacionada a imagem da criança. Convidamos o(a) leitor(a) a fazer o
exercício de pensar a pessoa autista. Vem a criança à mente? Obviamente que
o fato de o diagnóstico ser ainda nos primeiros anos de vida do indivíduo e os
sinais do transtorno estarem relacionados ao próprio processo do desenvolvi-
mento faz com que a infância seja de inquestionável importância para pensar o
TEA. Mas qual é o lugar dessa criança quando ela cresce? Precisamos assimilar
o desenvolvimento dessa criança autista assegurando que quando ela cresce ainda
são necessárias políticas públicas de saúde, assistência e educação, entre outras.
As demandas mudam, mas ela ainda será autista, dizemos isso com base
nos achados de Dias (2021), que observou que às crianças e aos adultos autistas
Capítulo 7 – Camila C. V. Dias, João Victor C. da Silva e Silvana C. Maciel 139

se atribuíam percepções diferentes, sendo os adultos autistas percebidos de ma-


neira próxima às pessoas com esquizofrenia, principalmente adultos autistas
com grau severo de TEA. Logo, destacamos a necessidade de vislumbrarmos
e discutirmos sobre o futuro das crianças autistas.

Um olhar para o futuro


Crianças e adultos possuem demandas diferentes, nós todos sabemos,
independentemente de serem neurodiversas. Entretanto, quando adentramos
o contexto da neurodiversidade a vida adulta ainda é pouco compreendida e
a ela ainda não se direcionam políticas públicas efetivas concernentes às suas
demandas.
O futuro da criança autista é preocupação constante para suas mães e
cuidadores, e um aspecto relevante sobre o crescimento dessas crianças é a tran-
sição dos serviços de saúde infantis para os serviços de saúde direcionados à fase
adulta (Dias, 2017; Wolkmar & Wolf, 2013). De acordo com Rocha (2020), essa
transição é complexa e assustadora para as pessoas autistas e para suas famílias,
especialmente pelo fato de que em alguns países um acompanhamento médico,
e de saúde no geral, que seja especializado para adultos autistas não existe.
De acordo com um mapeamento dos serviços que prestam atendimento a
pessoas autistas no Brasil realizado por Portolese, Bordini, Lowenthal, Zachi e
Paula (2017), a quantidade de instituições para acompanhamento e atendimento
de pessoas autistas é insuficiente e está distribuída de maneira irregular pelo
território nacional. Contudo, podemos destacar, a partir do levantamento reali-
zado pelas autoras, que a situação é ainda mais crítica no tocante ao atendimento
de jovens e adultos autistas, por não existirem serviços especializados no Brasil.
Nesse sentido, o cenário em que se pensa o autismo como algo específico da
infância, como se a criança não crescesse ou simplesmente deixasse de existir,
mostra-se evidente quando pouco se remete ao autismo na vida adulta (Guedes
& Tada, 2015).
Cabe mencionar que conteúdos de mídia acerca da conscientização sobre
o autismo, por exemplo, enfatizam crianças em detrimento dos adultos. Salva-
dor (2019), em estudo sobre a representação do autismo na mídia, identificou a
prevalência de imagens de crianças acompanhadas de adultos, mas estes sendo
apresentados aparentemente como terapeutas. A autora enfatiza a ausência
de representação de adultos autistas em campanhas e reportagens em prol da
conscientização do autismo, relatando a circulação de matérias informativas
cujos títulos mencionam frases como “tudo o que você precisa saber sobre o
140 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

autismo” e que não citam o autismo em outras fases do desenvolvimento, o que


denuncia a necessidade de refletir e investigar o TEA em outras fases da vida.
Comportamentos que na infância seriam toleráveis e poderiam ser in-
terpretados sob a perspectiva do desenvolvimento de novas habilidades não
são vistos da mesma forma na vida adulta, especialmente quando se trata
de adultos autistas. De fato, o processo de transição da infância para a vida
adulta de pessoas autistas tem sido percebido como desafiador por elas, seus
familiares e cuidadores. As demandas mudam na juventude e na vida adulta
e a sociedade, que já exclui a criança autista por meio de dinâmicas discri-
minatórias, evidencia ainda mais a exclusão de adultos autistas quando falta
oportunidades para aqueles que concluem o ensino médio, por exemplo (An-
derson, Sosnowy, Kuo, & Shattuck, 2018).
Com isso, esse dado pode nos permitir imaginar que a criança autista que
se tornou um jovem e conseguiu concluir o ensino médio, ressaltando os desafios
do contexto brasileiro no que tange à inclusão escolar, pode não continuar a ca-
minhada rumo ao ensino superior ou não conseguir oportunidades no mercado
de trabalho. Isso significa que a atenção à criança pressupõe a importância de
permanecermos atentos às fases seguintes do desenvolvimento.
Rosa, Matsukura e Squassoni (2019) em estudo sobre a escolarização de
pessoas autistas destacam que a Política Nacional da Educação, no que se refere
à educação inclusiva, preconiza que os sistemas de ensino e aprendizagem devam
garantir o acesso tanto à educação infantil quanto ao ensino superior. As autoras
salientam que a educação de jovens e adultos, bem como a educação profissional
estão inseridas nessa mesma política pública, além de ações complementares de
educação especial visando ampliar as oportunidades de inserção no mercado de
trabalho. Na prática, a inclusão da criança autista, seja na escola ou em outros
espaços de convívio, e a inclusão do adulto autista, seja no meio escolar/acadê-
mico ou no mercado de trabalho, permanecem desafiadoras e obstaculizadas,
em especial devido ao preconceito – tema ainda pouco pesquisado em relação
ao autismo.
De modo geral, a produção científica e os interesses de pesquisa em re-
lação ao TEA estão mais relacionados à investigação de causas e marcadores
orgânicos, genéticos, que possam promover tratamentos e intervenções para
os prejuízos no desenvolvimento em decorrência do transtorno; e é na infância
que está o foco. Relevância inquestionável! Contudo, há cada dia mais neces-
sidade de investigar fenômenos que impactam diretamente a vida das pessoas
autistas e os desafios que enfrentam no dia a dia (Pellicano, Mandy, Bölte et
Capítulo 7 – Camila C. V. Dias, João Victor C. da Silva e Silvana C. Maciel 141

al., 2018). A discriminação, por exemplo, é um desses fenômenos. Em estudo


recente sobre estigma em pessoas autistas, Bachmann, Höfer, Kamp-Becker et
al. (2019) observaram que ter mais de 35 anos implicava em a pessoa se sentir
mais estigmatizada e, consequentemente, discriminada socialmente. Thomp-
son-Hodgetts, Labonte, Mazumder e Phelan (2020) afirmaram que adolescen-
tes e adultos autistas relutam em revelar o diagnóstico devido à percepção de
efeitos socialmente negativos em decorrência da revelação do TEA.
Oliveira, Faria, Guerra, Ciolfi e Hermes (2021), em estudo nacional de re-
visão da literatura sobre os principais temas relacionados ao TEA na população
infantil e adulta confirmam que a ciência, tendo em vista seu papel propulsor
de transformações sociais, pesquisa principalmente a detecção do transtorno no
que refere à infância, havendo poucos estudos sobre as vulnerabilidades nessa
fase da vida e ênfase em marcadores genéticos. Sobre a vida adulta, o tema mais
frequentemente pesquisado foi relacionado à saúde mental, especialmente sobre
índices de suicídio e depressão. Mas cabe o destaque de que dos 951 artigos
coletados, 79,1% relatavam temas específicos da infância.
Há duas inquietações que compartilhamos para reflexão diante desses
dados, a primeira diz respeito à importância de atentar para a criança autista
além de marcadores diagnósticos, buscando compreendê-la psicossociologica-
mente em paralelo à busca por evolução na detecção do transtorno, haja vista
os benefícios do diagnóstico precoce para o desenvolvimento de habilidades de
diversas ordens, fundamentais para a autonomia. Chama-nos atenção a ênfase
maior no transtorno, enquanto diagnóstico, do que no sujeito, no indivíduo,
bem como na necessidade de propor as adaptações ao meio visando a inclusão
dessa população e de outros indivíduos neurodiversos. A segunda se refere
à saúde mental das pessoas autistas na fase adulta ser o tema mais pesquisa-
do, de acordo com o estudo mencionado. Há um sinal de alerta sobre essa
população quanto ao sofrimento psíquico fortemente relacionado à exclusão
social. Assim sendo, infância e vida adulta de pessoas autistas necessitam
de mais compreensão considerando o aspecto persistente do transtorno e as
transições das fases da vida, preparando o meio para incluir as crianças do
tempo presente, adultos do futuro, mas também os adultos autistas do hoje.
Nossa atenção está em lançar luz sobre o fato de que o TEA tem caráter
persistente, embora seus sinais possam ser atenuados conforme o acesso às
intervenções, que precisam ser respeitosas, e o grau de severidade. A impor-
tância das pesquisas e campanhas de conscientização que focam na criança
para garantir o diagnóstico precoce e a inclusão escolar é inegável, inclusive
142 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

em uma perspectiva de longo prazo, mas cabe destacar que as crianças autistas
crescem e tornam-se adultos autistas, etapa do desenvolvimento relacionada a
novas adaptações e demandas sociais mais significativas. Dias (2021) observou
que o adulto autista carrega mais fortemente os estigmas da histórica associação
do autismo com a esquizofrenia, como protótipo da doença mental, e evidencia
a necessidade de pensar o tempo presente, atuando em representações e seus
elementos (crenças, estereótipos) que sustentam preconceitos e discriminação,
em prol da vida digna em sociedade para os adultos autistas e do futuro das
crianças autistas de hoje.

Considerações finais
O objetivo deste capítulo consistiu em refletir sobre o TEA tendo como
base uma perspectiva psicossocial, e para isso, trouxemos a Teoria das Repre-
sentações Sociais a fim de nos auxiliar na compreensão de como o autismo tem
sido assimilado pela sociedade. As representações destacadas nessas páginas
apontaram para o autismo como um transtorno ou condição essencialmente
da infância, pudemos, então, apresentar algumas razões, inalienáveis, para que
a criança, de fato, seja o “objeto” pelo qual a representação do autismo ganha
materialidade. Entretanto, o que nos impeliu à realização deste escrito foi a
necessidade de considerarmos o caráter persistente do autismo, uma vez que as
crianças autistas crescem e se tornam adultos autistas, e a estes têm se descon-
siderado os suportes especializados e políticas públicas de saúde, assistência,
educação, entre outras, e até a própria noção de autismo.
Não obstante, na era das tecnologias da informação e no tocante às repre-
sentações sociais, é impossível não refletir sobre o papel das mídias e dos conteú-
dos por elas disseminados, tendo em vista a funcionalidade das representações
enquanto orientadoras e justificadoras de atitudes e comportamentos. Embora
filmes, novelas, séries, desenhos animados e documentários retratem pessoas
autistas com mais frequência, nos dias de hoje, é válido atentar para a necessi-
dade de representar a variabilidade do autismo, nos seus graus e manifestações,
e sobretudo considerar a sua existência nas várias fases da vida.
Proporcionar visibilidade ao adulto autista, por exemplo, pode chamar
atenção para as necessidades que surgem nessa fase da vida, como as questões
relacionados ao mercado de trabalho, ao ensino superior, aos relacionamentos,
que remetem à importância da inclusão social e da garantia de direitos, cons-
truindo um lugar que promova independência e autonomia no futuro para a
criança autista. Além do mais, propagar autismos, no plural, pode auxiliar na
Capítulo 7 – Camila C. V. Dias, João Victor C. da Silva e Silvana C. Maciel 143

visibilidade das pessoas autistas em suas particularidades, sem que se busque


encaixá-las em um protótipo. Possibilitar o contato, a convivência de qualidade,
com pessoas autistas, incentivando as pessoas neurotípicas a serem receptivas
e engajadas em formas diversas e flexíveis de se comunicar e compreender as
relações, pode indicar ganhos sociais para autistas e neurotípicos, auxiliando
na diminuição de preconceitos e promovendo inclusão social.
Sabemos que as mudanças no meio social perpassam sistemas rígidos ideo-
lógicos e que, portanto, não acontecem rapidamente, contudo, as provocações
contidas neste capítulo não só apontam para uma realidade cheia de desafios
para as pessoas autistas, crianças e adultos, como podem sinalizar onde as mu-
danças precisam começar a acontecer, a saber: nas representações sociais e seus
elementos, que estão na base das práxis. É bem verdade que parece não haver
uma fórmula para promover essas mudanças, mas a disseminação de informações
e conhecimentos em diversos âmbitos a longo prazo pode possibilitar desmisti-
ficações e produção de novos repertórios frente às pessoas autistas.
Por fim, gostaríamos de destacar que é fundamental que a formação acadê-
mica, em especial os cursos das áreas das ciências da saúde, humanas e sociais,
tenham acesso a conhecimentos sobre o TEA de forma a ampliar sua visão de
cuidado e potencialidades da pessoa, e mais especificamente, da criança com
TEA. Destacamos que deve-se olhar e cuidar para além dos déficits e do caráter
persistente, deve-se observar as suas potencialidades e enxergá-los como sujeitos
em desenvolvimento, que crescerá, tornando-se adulto com todas as demandas
e potencialidades das fases da vida.
Sobre as reflexões aqui postas temos a certeza de que não esgotam este
vasto tema, mas esperamos contribuir para um novo olhar relacionado a temá-
tica, sendo esse mais inclusivo e menos preconceituoso. Esperamos estimular
ideais que incentivem a formulação de estratégias para efetivar ações e políticas
inclusivas para as pessoas com TEA não apenas crianças, mas também adultos,
posto que estes acabam sendo esquecidos diante de uma concepção do TEA
como essencialmente infantil.

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Capítulo 8
A importância da prática da dança
durante a infância para aprendizagem
e consciência corporal de autistas
Lavínia Teixeira-Machado

Preâmbulo: autismo e dança

“Antes de uma criança começar a falar, ela canta;


Antes de escrever, ela desenha;
No momento em que ela consegue ficar de pé, ela dança;
A criança brincando de faz de conta, ela faz teatro;
A arte é fundamental para a expressão humana.”
Phylicia Rashad

O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é um transtorno do neuro-


desenvolvimento heterogêneo causado por alterações na conectividade cerebral
que ocorre durante o processo de desenvolvimento, devido a uma reorganização
neuronal acelerada no início da vida (Lord et al., 2018; Kodak & Bergmann,
2020). Estudos recentes tem mostrado que o autismo é marcado pelo cresci-
mento excessivo do cérebro durante a infância e os primeiros anos de vida,
seguido por uma taxa acelerada de declínio no tamanho e talvez degeneração da
adolescência para a fase adulta, quando são observadas diminuições no volume
estrutural (Courchesne et al., 2011; Liu et al., 2017; Li et al., 2021).
Autistas apresentam prejuízos na comunicação social e comportamentos res-
tritos e repetitivos (APA, 2013), geralmente surgindo por volta dos 24 meses de
idade. A taxa de prevalência global de TEA é de cerca de 1% (Baxter et al., 2015).
De acordo com o último relatório, uma em cada 30 jovens de 8 a 15 anos são autistas
e o TEA está associado a um ônus econômico anual de 250 bilhões de dólares nos
Estados Unidos da América, principalmente devido aos custos de educação espe-
cializada, acompanhamento médico e demais especialidades da saúdecada vez mais
altos, alémde perda de trabalho dos pais (Buescher et al., 2014; Kushima et al., 2022).
O autismo se apresenta de forma única em cada pessoa, apesar de possuir
características conhecidas como alterações sensoriais, movimentos corporais
incomuns, estereotipados e com padrões repetitivos, com prejuízos substanciais
148 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

na comunicação social. O diagnóstico é realizado a partir da avaliação clínica


com base nos comportamentos característicos apresentados (Lord et al., 2018).
Os comprometimentos na comunicação social apresentados por autistas podem
afetar a fala, o reconhecimento e produção de expressões faciais, dentre outras
habilidades sociais, interferindo negativamente nas suas interações sociais e
prejudicando as adaptações aos ambientes (Kodak & Bergmann, 2020; Tei-
xeira-Machado et al., 2022). Ademais, cerca de 30 a 50% de crianças autistas
apresentam problemas de saúde mental que interferem na qualidade de vida
delas e suas famílias, e a participação em atividades comunitárias como a dança
pode ser um meio substancial para a redução dos problemas de saúde mental
e qualidade de vida (Johnson, 2009; Janssen e LeBlanc, 2010;Einfeld et al.,
2011; Dahan-Oliel et al., 2012; Jonsson et al., 2017).
Como sugerem Cooper Albright e Brandsetter (2015), não é possível
discutir dança sem também entrar em uma discussão sobre as ideologias desta
arte.Expectativas de quem assiste, e como a linguagem usada para descrever a
dança ainda tende a “denunciar” o corpo dançante "como diferente"ou como
algo inferior aos seus pares aptos. Nosso objetivo é discutir sobre a prática da
dança de crianças autistas, e abordar como praticantes desta arte oferecem seu
dançar (e ao seu público) a partir da libertação dessas noções capacitistas de
como um corpo deve dançar. Sugerimos também um olhar de como temos
pensado e oferecido oportunidades para os próprios bailarinos com deficiência
questionarem as noções/percepções do corpo dançante observado, e de como a
prática regular da dança desenvolve o arcabouço neuropsicomotor da criança,
incluindo seus aspectos cognitivos e relacionais.
Sendo assim, pretendemos discutir as contribuições das práticas corporais
envolvendo a noção de corpo e as intrincadas relações sociais, trazendo a dança
como um propulsor essencial para possibilidades de percepção corporal, cons-
ciência corporal e as inter-relações e inter-influenciaçõesno desenvolvimento
infantil. Isto posto, para abordar a questão proposta, este artigo está dividido
em duas seções: 1. estrutura e função cerebral atípica; 2. neuroplasticidade
associada à prática regular de dança.

Estrutura e função cerebral atípica


Apesar da enorme heterogeneidade clínica e genética que descreve o TEA,
características neuroanatômicas e neurofisiológicas estão frequentemente pre-
sentes na maioria dos casos. Formas atípicas de processamento de informações
acompanham os autistas, como a teoria da mente (dificuldade em entender os
Capítulo 8 – Lavínia Teixeira-Machado 149

próprios sentimentos, pensamentos e intenções dos outros), funcionamento exe-


cutivo (problemas de planejamento e flexibilidade cognitiva) e coerência central
fraca (maneira atípica de interpretar os detalhes de um contexto) (Ozonoff et
al., 1991; Schweizer et al., 2017).

Morfologia atípica
Estudos tem observado diminuições no volume estrutural do cérebro de
autistas e tem mostrado que há crescimento excessivo do cérebro de autistas
durante a infância e os primeiros anos de vida, acompanhado de declínio ace-
lerado no tamanho e talvez degeneração da adolescência para a fase adulta. Isso
levou à teoria das alterações anatômicas específicas da idade no autismo, que
podem estar relacionadas a mudanças específicas da idade na expressão gênica e
anormalidades moleculares, sinápticas e celulares, bem como de circuito cerebral
(Courchesne et al., 2011; Liu et al., 2017; Li et al., 2021).
Vários estudos estruturais de ressonância magnética no TEA indicaram
alterações na morfologia cerebral, especialmente na área e espessura da super-
fície cortical e volume da substância cinzenta (Hazlett et al., 2005; Schumann
et al., 2010; DeRamus; Kana, 2015; Liu et al., 2017; Van Rooij et al., 2018).
As meta-análises de estudos baseados em voxel no TEA conduzidas por De-
Ramus & Kana (2015) e Liu et al. (2017) forneceram evidências de aumento
cerebral relacionado à idade, particularmente o supercrescimento de massa
cinzenta no córtex pré-frontal (CPF). O CPF está envolvido em múltiplas
funções cognitivas e sociais, como cognição social, inibição (Ridderinkhof et
al., 2004; Aron et al., 2014), memória de trabalho (du Boisgueheneuc et al.,
2006), linguagem (Hirshorn et al., 2006), motivação e aprendizado baseado
em recompensas (Ridderinkhof et al., 2004). Assim, anormalidades estrutu-
rais no CPF podem estar associadas ao comprometimento social e prejuízos
de linguagem no TEA (Li et al., 2021).
Além disso, o dobramento cortical atípico tem sido indicado em autistas,
medido pelo índice de girificação local (IGI) (Kohli et al., 2019a; Kohli et al.,
2019b). A girificação, processo pelo qual o cérebro forma regiões sulcais e gira-
tórias, permite uma fiação compacta otimizada de fibras neuronais que promove
um processamento neural eficiente no cérebro (White et al., 2010). Tem sido
observado aumento da girificação localem autistas nas regiões parietal e temporal
esquerda e frontal e temporal direita em comparação com pessoas típicas (Figu-
ra 1), e diminuição bilateral no córtex insular e cingulado anterior, pós-central
esquerdo e nas regiões orbitofrontal e supramarginal (Figura 2) (Li et al., 2021).
150 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Figura 1. Dobramentos bilaterais atípicos de estruturas corticais


Girificação local aumentada nos hemisférios direito (1: lobo frontal, 2: lobo temporal) e esquerdo (3: lobo parietal,
4: lobo temporal).

Hemisfério direito Hemisfério esquerdo

Figura 2. Dobramentos bilaterais atípicos de estruturas corticais, com girificação reduzida


nas estruturas destacadas.
Giro pós-central está associado ao mapa sensorial do corpo humano, considerado cortex somatossensorial
primário, região que recebe projeções talâmicas. O cortex orbitofrontal está relacionado à personalidade,
emoções e sobretudo ao comportamento social, e nossa tomada de decisão. O giro supramarginal é
essencialmente associadoà linguagem, principalmente na integração do material visual e sonoro, tem várias
funções, a saber: proprioceptivo, auditiva, visual e somatossensorial, principalmente a percepção de estímulos
táteis, especificamente para reconhecimento através do toque. O córtex cingulado anterior (ACC) é responsável
por uma série de funções cognitivas, incluindo expressão emocional, alocação de atenção e regulação do humor.
O córtex insular está envolvido no processamento de dados sensoriais viscerais, motores viscerais, vestibulares,
atenção, dor, emoção, informações verbais, motoras, entradas relacionadas à música e alimentação, além de
dados gustativos, olfativos, visuais, auditivos e táteis. Suas principais funções são fazer parte do sistema límbico e
coordenar quaisquer emoções, além de ser responsável pelo paladar.

Giro pós-central esquerdo Cortex orbitofrontal Giro supramarginal

Córtex cingulado anterior Córtex insular

Outros estudos morfométricos de TEA também caracterizaram anorma-


lidades no cerebelo (Pierce &Courchesne, 2001;D’Mello et al., 2015; Foster et
al., 2015), corpo caloso (Nordahl et al., 2015; Wolff et al., 2015; Haar et al.,
Capítulo 8 – Lavínia Teixeira-Machado 151

2016), amígdala (van Rooij et al., 2018), e núcleo caudado (Foster et al., 2015;
Qiu et al., 2016). O lobo posterior do cerebelo (lóbulos VI e VII) é funcional-
mente acoplado ao CPF e ao ACC (Wang et al., 2014). Acredita-se que esteja
envolvido em funções cognitivo-afetivas que podem auxiliar o entendimento
do comportamento autista (D’Mello et al., 2015). Da mesma forma, dado o
importante papel da amígdala no processamento de emoções, a estrutura atípica
da amígdala pode estar subjacente aos prejuízos socioemocionais em autistas
(Barnea-Goraly et al., 2014) (Detalhes na figura 3).

Figura 3. Morfometria atípica. Estruturas do sistema nervoso central com aumento de


área, volume e espessura cortical.
O córtex pré-frontal esta envolvido em funções executivas, no comportamento social e nos estados motivacionais.
O corpo caloso está associado a conexão e comunicação entre os dois hemisférios cerebrais. Núcleo caudado é
um dos núcleos da base, uma coleção de núcleos abaixo da superfície cortical que estão envolvidos em funções
motoras e não motoras, incluindo cognição de ordem superior, interações sociais, fala e comportamentos
repetitivos. A amígdala tem relação com questões sociais e comportamento. O cerebelo está relacionado tanto a
comportamentos motores quanto cognitivos.

1 Córtex pré-frontal

2 Corpo caloso

3 Núcleo caudado

4 Amígdala

5 Cerebelo

Há evidências de que crianças autistas têm amígdala e hipocampo aumen-


tados ecorrelação significativa com a gravidade de suas deficiências sociais e de
comunicação (Barnea-Goraly et al., 2014). Além disso, o acúmulo de evidências
implicou o aumento do núcleo caudado dentro dos circuitos córtico-estriatais, e
o aumento do caudado está correlacionado com os comportamentos repetitivos
em crianças autistas (Qiu eta al., 2016; Pote et al., 2019). Notavelmente, Wollf
et al. (2015) reportaram corpo caloso sagital medianodesproporcionalmente
grande em relação ao volume total do cérebro, particularmente na região an-
terior, que medeia funções sensorimotoras e inibição comportamental. Além
disso, estudos tem relatado que o aumento da área e da espessura do corpo caloso
estão significativamente correlacionados com a gravidade dos comportamentos
restritos e repetitivos em crianças autistas em comparação com crianças típicas
(Haar et al., 2016; Li et al., 2021)
152 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Conectividade atípica
Estudos tem mostrado conectividade atípica que tem caracteriza-
do o espectro do autismo, principalmente na rede de saliência (salience
network – SN), na rede de modo padrão (default mode network – DMN), na rede
de controle executivo (executive control network – ECN), e na rede de atenção
dorsal (dorsal attention network – DAN) (Uddin et al., 2013; Doyle-Thomas et al.,
2015; Plitt et al., 2015; Abbott et al., 2016; Elton et al., 2016; Coliga et al., 2019).
A rede de saliência (SN) está associada a detecção e alocação de atenção a
estímulos internos e externos e coordenação entre redes de larga escala, princi-
palmente a rede de modo padrão (DMN) e a rede de controle executivo (ECN)
para orientar comportamentos apropriados, e sua disfunção compromete estí-
mulos sociais típicos. A disfunção da rede de modo padrão tem justificado dis-
torções no processamento de autorreferência, com dificuldades importantes de
processamento cognitivo de relacionar informações de si em relação ao mundo
externo, com autofoco exacerbado direcionado para dentro (o eu) em detrimento
do mundo exterior, explicado pela hiperconectividade focal e hipoconectividade
de longo alcance (Uddin et al., 2013; Yerys et al., 2015).
A pesquisa de Yerys et al. (2015) mostra que existe um padrão característico
de conectividade atípica no autismo que é modulado pela função, e que autis-
tas apresentam padrões de conectividade inter-hemisférica diminuída de longo
alcance, dentro da rede(especialmente homotópica e dentro das redes padrão e
saliência (DMN e SN) e intra-hemisférica, com aumento da conectividade entre
as redes padrão e atencional (saliência,atenção, frontoparietal). Ou seja, a subco-
nectividade está relacionada à redução da atividade funcional córtico-cortical e à
redução da integridade da substância branca. E a desconexão de desenvolvimento
está relacionada ao aumento da conectividade do circuito local. Então, autistas
com função cognitiva muito baixa, quando comparados com aqueles com função
alta, apresentam conectividade predominantemente diminuída em todo o cérebro
(conexões dentro da rede e entre redes) (Yerys et al., 2015).
Postema e colaboradores (2019) determinaram assimetria cerebral em autistas
comparados com pessoas típicas, sugerindo lateralização alterada. A lateralização ce-
rebral é uma característica proeminente do cérebro na organização de certas funções
motoras e cognitivas, como a lateralidade e a linguagem, o que sugere especialização
hemisférica atípica em autistas. Curiosamente, muitas das regiões que mostram altera-
ções significativas na assimetria, incluindo as regiões frontal medial, cingulado anterior
e temporal inferior, se sobrepõem à rede de modo padrão (DMN), o que apoia ainda
mais o papel da lateralização funcional atípica do DMN no TEA (Li et al., 2021).
Capítulo 8 – Lavínia Teixeira-Machado 153

A flexibilidade cognitiva atípica no autismo é explicada pela disfunção da


ECN, evidenciada pela prontidão neurodivergente em alternar processos men-
tais para gerar respostas comportamentais típicas (Holiga et al., 2019). Abbott
et al (2016) revelaram que o DMN e o ECN apresentam supra-conectividade
relacionada à idade em crianças autistas da primeira infância, mas não em ado-
lescentes autistas, fato que pode refletir a segregação tardia da rede no autismo.
E quando associado a disfunção na rede de atenção dorsal, autistas apresentam
dificuldade em mudanças de atenção, como mover o foco de atenção de um
local para outro, sejam elas intencionais ou causadas automaticamente pelo
início abrupto de determinado estímulo (Yerys et al., 2015; Holiga et al., 2019).
Com base na Teoria da Mente (ToM), algumas regiões relacionadas à rede
de mentalização apresentam conectividade atípica, tais como: córtex pré-frontal
dorsomedial (CPDM – envolvido na tarefa de perspectiva), junção temporo-
parietal (TPJ – envolvida no raciocínio sobre os estados mentais dos outros),
lobo temporal anterior e pólos temporais (envolvidos no armazenamento de
informações sociais e pessoais), sulco temporal superior (associado a inferência
de intenções de movimento biológico), giro frontal inferior (IFG), e córtex
cingulado posterior/precuneus (PCC, envolvido na cognição social, compreen-
são interpessoal). Alterações nestas regiões estão associadas a dificuldade em
entender os próprios sentimentos, pensamentos e intenções dos outros. A figura
4 resume as redes, as estruturas, quais funções estão associadas a estas redes e
quais as alterações observadas em autistas.

Figura 4. Conectividade atípica, redes, estruturas, funções e características em autistas.


Siglas: SN: salience network – rede de saliência, DMN: default mode network – rede de modo padrão; ECN: executive
control network – rede de controle executivo, DAN: dorsal attention network – rede de atenção dorsal.

Insula anterior e
córtex cingulado
atenção
anterior dorsal reduzida
SN Detecção e alocação de atenção a estímulos
CPF medial, córtex sociais
a estímulos internos e externos
cingulado posterior, e coordenação entre redes
precuneus, junção de larga escala para orientar
hipoconectividade
global e temporo-parietal comportamentos apropriados
hiperconectividade Memória autobiográfica,
DMN
local pensamento instrospectivo
e teoria da mente
CPF dorsal lateral e
cortexparietal flexibilidade
Complexo da área ECN Tomada de decisão,
cognitiva
temporal média, prejudicada
memória de trabalho
sulco intraparietal e controle cognitivo
e campos oculares
prejuízos frontais
na mudança
Controle de atenção
DAN
de atenção
de cima para baixo
154 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Curiosamente, um estudo recente usando o método de imagem ponderada


por difusão de alta resolução angular, que é mais sensível às estruturas cerebrais
profundas, forneceu evidências de estrutura anormal na via de recompensa
mesolímbica que conecta o núcleo accumbens e a área tegmental ventral em
crianças autistas; isso apoia a hipótese de que circuitos de processamento de re-
compensa prejudicados podem ser um mecanismo subjacente ao TEA (Supekar
et al., 2018).Por causa disso, pesquisadores elucidam que autistas apresentam
disfunção de conectividade, e que os fatores de crescimento modulam funções
motoras, emocionais e cognitivas. Fato que pode explicar a manifestação dos
transtornos mentais, e de como esses eventos comprometem os circuitos neu-
rais, afetando as redes estruturais e funcionais de importantes áreas do cérebro
(Hahamy et al., 2015; Watanabe & Rees, 2017).
Além dos padrões de conectividade atípicos, estudos recentes tendem a
mostrar crescimento excessivo do córtex frontal durante o período pós-natal,
bem como mudanças nos padrões de conectividade cerebral e desenvolvimento
atípico dos núcleos basais (NB), e maior sincronização das modulações de co-
nectividade dos NB entre o córtex pré-frontal e as regiões sensoriais occipitais.
O que levantou o debate sobre flexibilidade cognitiva e funcionamento executivo
prejudicados que caracterizam o espectro do autismo (Pratt et al., 2016).
Estudos ainda relatam alterações nos circuitos frontoestriatal e cerebrocerebelar.
Esses circuitos estão relacionados não apenas pelo controle do movimento corporal,
mas também por funções cognitivas como memória e linguagem. Embora não sejam
bem compreendidos, os circuitos frontoestriatais estão associados a funções executivas
relacionadas a seleção e percepção de informações importantes e aprendizado por
reforço. São cinco circuitos que acontecem pelas mesmas estruturas anatômicas, a
saber: cortex pré-frontal, corpo estriado, globo pálido, substância negra e tálamo.
Disfunções nos circuitos frontoestriatais motores (motor e oculomotor) podem estar
associadas a padrões de movimento atípicos, como presença de ataxias, padrão anor-
mal de endireitamento, falhas no sequenciamento da marcha e posicionamento das
mãos, enquanto que disfunções nos circuitos frontoestriatais dorsolateral pré-frontal,
frontal orbital e cingulado anterior estão envolvidos em alterações nas funções exe-
cutivas, no comportamento social e nos estados motivacionais (Hahamy et al., 2015;
Watanabe & Rees, 2017; Supekar et al., 2018; Coliga et al., 2019).
Já as alterações nos circuitos cerebrocerebelares, identificadas em estudos
de neuroimagem, sugerem relação com prejuízos na programação motora e nas
funções cognitivas e afetivas. O cerebelo recebe aferências de diversas regiões
do córtex cerebral através dos núcleos pontinos (via córtico-ponto-cerebelar) e
Capítulo 8 – Lavínia Teixeira-Machado 155

envia fibras para o NR e o tálamo(e daí para o córtex cerebral, áreas motoras,
pré-motoras e pré-frontais). As vias córtico-ponto-cerebelar e cerebelo-tálamo-
-cortical estão conectadas de modo recíproco com os hemisférios cerebelares,
estando associadas a áreas subjacentes a funções complexas, cognitivas e com-
portamentais, incluindo as afetivas ((Hazlett et al., 2005; , 1991; Schmahmann
e Caplan, 2006; Schmahmann et al., 2007).

Metabolismo cerebral atípico


Peterson et al (2019) mostraram perfusão alterada nas substâncias branca e
cinzenta na conectividade funcional na organização das redes cerebrais e a eficiên-
cia energética em crianças autistas. Os achados destes pesquisadores mostraram
redução tarefa-dependente no metabolismo de glicose no lobo parietal, na amíg-
dala, no cortex pre-motor e nos campos oculares, que podem estar relacionados a
uma hipoativação destas áreas durante uma tarefa cognitiva (Dichter, 2012) . Em
contrapartida, Pfefferbaum et al (2011) detectaram aumento do metabolismo de
glucose no hipocampo, no cortex occipital, no cortex cingulado posterior (PCC),
e nos núcleos da base (NB). O aumento da taxa metabólica no PCC pode refletir
a falta de engajamento na tarefa cognitiva em autistas quando comparados com
pessoas neurotípicas, que tipicamente induzem redução da taxa metabólica na
rede de modo padrão (Pfefferbaum et al., 2011). Outra perspectiva se elucida pelo
funcionamento atípico do DMN em jovens autistas, como, por exemplo, com
maior custo metabólico dedicado à manutenção de um senso coeso de si mesmo,
um papel putativo do PCC (Davey et al., 2016; Li et al., 2021).
Jã Mitelman et al (2018) caracterizaram aumento do metabolismo na
substância branca de estruturas como corpo caloso, cápsula interna e nos lobos
frontal e temporal quando compararam autistas com pessoas típicas. Teori-
camente, os custos metabólicos e na fiação neuronal das conexões pelas áreas
cerebrais adjacentes são mais baixas do que entre regiões cerebrais mais distan-
tes, fato que pode estar associado com a transferência ineficiente da informação
metabólica no cérebro autístico, possivelmente devido a ineficiência da fiação
neuronal (Bullmore & Sports, 2012; Mitelman et al., 2018).

Neuroplasticidade associada à prática regular de dança


Por que utilizar a dança como prática educacional corporal e como pro-
posição para a comunicação através da linguagem corporal? O ato de dançar é
uma tarefa complexa que envolve simultaneamente aspectos motores, sensoriais,
cognitivos e afetivos. Ou seja, dançar requer o recrutamento neural de sistemas
156 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

sensoriais distintos (principalmente auditivo, somatossensorial e visual), assim


como a interação desses sistemas sensoriais com os sistemas motor, executivo e
afetivo (Teixeira-Machado et al., 2019).A dança vai além do mover-se. Não se
pode conjectura-la apenas como recurso educacional ou terapêutico, pois dança
é comunicação, é arte, é expressão.E reduzi-la a mero recurso terapêutico é
negligenciar toda a epistemologia da práxis humana (Teixeira-Machado, 2021).
Diante dos achados de neuroimagem em casos de autismo,ao revelarem
diversas alterações no sistema nervoso central, tanto estruturalmente, quanto
funcionalmente, atrasos nos marcos do neurodesenvolvimento devem ser melhor
investigados e acompanhados. E focar em estratégias que apoiem a abordagem
corporal, como a dança, salientam pontos fundamentais para a neuroplasticida-
de, como neurogênese e angiogênese, através da formação de novos neurônios,
novas sinapses, e novos vasos sanguíneos, principalmente no hipocampo, região
crítica para o processamento de novas memórias, homeostase emocional e re-
gulação do estresse (Teixeira-Machado et al., 2019; Li et al., 2021).
Por mais de um século, sugeriu-se que as ações aprendidas pela prática física ou
observacional sejam representadas dentro de estruturas cognitivasneurais comuns.
No entanto, as investigações comportamentais baseadas no cérebro, até o momento,
não examinaram satisfatoriamente até que ponto esse é realmente o caso.Diversos
pesquisadores tem elucidado a existência de uma rede de observação da ação (Action
Observation Network – AON) que compreende regiões cerebrais sensorimotoras, in-
cluindo os córtices pré-motor, parietal e occipitotemporal. E sabe o que eles verifi-
caram? Que essas regiões cerebrais estão engajadas quando observam outras pessoas
em ação e respondem mais vigorosamente ao observar ações praticadas fisicamente
ou com experiência visual, em comparação com ações semelhantes às quais os parti-
cipantes não tiveram experiência anterior. Isso quer dizer que quanto mais familiar é
uma ação, mais forte é a resposta nas regiões centrais da AON (Gardner et al., 2015).
Então, por que praticar a dança? Bem, nossa capacidade de aprender tanto
pela prática física quanto pela observação é um ingrediente essencial para a aqui-
sição de novas habilidades motoras e, portanto, é essencial para sobrevivermos
e prosperarmos no mundo social. E a dança executada em grupo predispõe o
aprendizado físico e observacional que necessariamente afeta o comportamento e
as correspondentes representações neurais das ações (Calvo-Merino et al., 2005;
Cross et al., 2006; Bola et al., 2012; Teixeira-Machado et al., 2019).
Alguns estudos sugerem que a prática regular de dança pode promover
mudanças comportamentais mensuráveis em crianças autistas (DeJesus et al.,
2020; Teixeira-Machado et al., 2022).O impacto positivo da música associada a
Capítulo 8 – Lavínia Teixeira-Machado 157

passos ritmados e coreografados nas habilidades sociais tem sido o vínculo entre as
crianças.Mais recentemente, estudos de neuroimagem mostraram que participar
de atividades musicais envolve uma rede multimodal de regiões do cérebro asso-
ciadas à audição, movimento, emoção, prazer e memória (Geretsegger et al., 2014).
A conectividade cerebral intrínseca filtrada é uma marca registrada do
autismo. Tanto a superconectividade focal quanto a subconectividade entre
regiões foram relatadas, em particular, a subconectividade das redes fronto-
-temporal e cortico-subcortical (Yerys et al., 2015).O ajuste da conectividade
entre redes sensoriais pode ser considerado como alvo potencial de intervenção
pela dança, dadas suas associações entre regiões cerebrais espacialmente distri-
buídas, através da programação de aulas de dança e montagens coreográficas
que sejam estruturadas e aplicáveis (Teixeira-Machado et al., 2019; DeJesus
et al., 2020; Teixeira-Machado, 2021).
Embora existam vários estudos que demonstrem a relação da prática da
dança na plasticidade cerebral, apenas um número limitado relata a influência
dela na estrutura cerebral (Teixeira-Machado et al., 2019). Alguns estudos
mostraram aumento da formação hipocampal, como giro dentado, hipocampo
(Rehfeld et al., 2017), e nos giros pré-central e para-hipocampal (Müller et
al., 2017), no córtex cingulado, área motora suplementar esquerda, giro frontal
medial esquerdo, ínsula esquerda, região superior esquerda giro temporal e
giro pós-central esquerdo (Rehfeld et al., 2018). Além da substância cinzenta,
estudos mostraram mudanças morfológicas na integridade do fórnix, principal
saída de substância branca do hipocampo, responsável por conectar vários nós
do sistema límbico (Burzynska et al., 2017), nas áreas frontal e parietal e no
corpo caloso (Rehfeld et al., 2018) (Figura 5).

Figura 5. Mudanças estruturais e funcionais associadas à prática regular da dança.


Azul: córtex pré-frontal, vermelho: corpo caloso, amarelo: formação hipocampal, rosa: núcleos da base, roxo:
amígdala, verde: cerebelo.

1 Córtex pré-frontal

2 Corpo caloso

3 Formação hipocampal

4 Núcleos da base

5 Amígdala

6 Cerebelo
158 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Nota-se que as regiões e estruturas que apresentam mudanças com a


prática regular da dança são semelhantes às que se encontram alteradas no
TEA (figuras 2 e 3). Embora, a função cerebral durante a dança não seja bem
compreendida, devido a dificuldade de análise durante a ação performática,
alguns estudos recentes relataram achados interessantes. A dança possibilita o
se envolver de forma prazerosa e compartilhada, quando realizada em grupo e
durante apresentações públicas. De fato, a literatura atual tem apoiado forte-
mente a influência do ambiente na plasticidade cerebral funcional (Erickson et
al., 2011; Kattenstroth et al., 2013; Sale et al., 2014; Teixeira-Machado, 2015;
Doi et al., 2017; Rehfeld et al., 2018).
A cognição é frequentemente associada a diversas características da dança,
como estimulação sensorimotora e desempenho do equilíbrio (Kattenstroth et
al., 2013; Müller et al., 2017; Rehfeld et al., 2018). A contribuição dos sistemas
visual, somatossensorial e vestibular na manutenção da postura e do equilíbrio
são fatores importantes para o comportamento motor no dançar (Kattenstroth
et al., 2013; Rehfeld et al., 2017).
Parâmetros psicossociais também são pesquisados através da prática da dança,
principalmente no sentido de reduzir o isolamento social e melhorar o bem-estar e a
qualidade de vida desde a infância, fatores essenciais para o funcionamento cognitivo
atípico no autismo. Achados acerca do comportamento psicossocialpodem estar
relacionados à interação social durante o dançar (Teixeira-Machado et al., 2022).
É sabido que autistas apresentam alterações nos circuitos cerebrais referen-
tes aos sistemas de mentalização (ToM), neurônios espelho, sistema de recom-
pensa (amígdala). Atividades pedagógicas mais práticas com utilização do corpo,
táticas de recompensa, atividades em grupo, são algumas estratégias profícuas
para o desenvolvimento da comunicação de crianças autistas (Geretsegger et al.,
2014; Teixeira-Machado et al., 2022).
A dança, como abordagem da corporeidade, versa diretamente sobre cog-
nição e emoção, devido à estreita conexão do corpo com os sentimentos. A
prática da dança é uma forma milenar de comunicação que envolve movimentos
corporais rítmicos associados a afeto, sensação, memória, atenção, intenção e
criatividade (Teixeira-Machado et al., 2019; Basso et al., 2021). Essas carac-
terísticas se devem à ampla ativação do sistema nervoso que ocorre durante
a execução da dança e a conexão com o corpo de outros ao dançar em grupo
(Karpati et al., 2015; Basso et al., 2021).
Situações que envolvem o corpo, os sentimentos e as relações sociais são um
desafio vitalício para os autistas. Por isso, é fundamental focar em abordagens
Capítulo 8 – Lavínia Teixeira-Machado 159

que atuem diretamente nas barreiras sociais do autismo. Experiências que en-
volvem tocar, olhar e permitir a expressão podem contribuir para fomentar a
comunicação e o comportamento social na comunidade autista (Teixeira-Ma-
chado, 2015, 2021).

Considerações finais
Criatividade e criação artística são componentes inerentes da natureza
humana, e mais especificamente do comportamento humano. No final da dé-
cada de 90, a neuroestética propôs que a expressão artística é um produto da
função cerebral, com influências biológicas, sociais e ambientais (Zeki, 2001).
Parece que a prática regular de dança, mediante as montagens coreográficas
para apresentações públicas, possibilita a mentalização e a flexibilidade cognitiva
atípicas, observadas pela dificuldade em interpretar intenções corporais típicas
como contato visual, envolvimento social, resposta ao nome e expressões faciais
(Prat et al., 2017). Estudos salientam o engajamento da dança no funciona-
mento executivo e na coerência central, mediante a aprendizagem corporal no
planejamento e na interpretação de detalhes na comunicação e na reciprocidade
social (Ozonoff et al., 1991; Schweizer et al., 2017).
Alguns cuidados devem ser tomados na construção das aulas de dança
para crianças autistas. Destacamos alguns pontos fundamentais:
1) Cada criança autista é diferente, não existe um modelo ou uma carac-
terística que seja igual para todas.
2) Embora a criança autista tenha dificuldades com socialização e como
comunicar-se com outras pessoas, isto não implica dizer que ela não
quer se socializar ou se comunicar, ela talvez não saiba como.
3) Crianças autistas costumam ter preferências em realizar sequências sem-
pre numa mesma ordem, e a repetir diversas vezes. Quando determinada
atividade a deixa feliz, ela tem dificuldade em modificar a variação e tem
muita resistência nas alterações de músicas e sequências coreográficas.
4) A lgumas crianças têm hipersensibilidade a sons e texturas. Embora
cada criança seja diferente, é importante que o professor ou professora
de dança tenha ciência destas características relacionadas à sensibilidade
atípica.
5) A ação conjunta em cena deve ser preconizada no contexto estético da
performance em dança para priorizar a sintonia do grupo e o sentimento
de pertencimento numa sala de aula com crianças típicas e atípicas. A
segregação deve ser descartada.
160 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Tendo ciência das particularidades inerentes de cada criança na sala de


aula, a prática regular da dança atua como possibilidade para a promover a
comunicação, pois se sustenta em tarefas corporais com contexto afetivo, ao
serem projetadas nas atividades corporais, que focam no comportamento de
imitação e na atenção conjunta em cena, mediante o divertimento no interagir,
devido à sua interação previsível e estruturada (Teixeira-Machado et al., 2022).
Com base nessas proposições da conexão entre domínio motor e social,
defendemos que a prática regular da dança é uma possibilidade promissora para
a aprendizagem, e pode promover a consciência corporal em crianças autistas. O
ato de dançar fomenta a comunicação e a reciprocidade social pela competência
corporal funcional em autistas em cena com outras crianças neurotípicas. As
contribuições das práticas corporais envolvendo a noção de corpo e as intrincadas
relações sociais, traz a dança como um disparador essencial para possibilidades
de percepção corporal, consciência corporal, no processo de aprendizagem das
inter-relações e inter-influenciações do ator social.

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Capítulo 9
Orientações para estudantes, professores e
profissionais da saúde acerca da violência
sexual contra crianças e adolescentes
Linéia Polli
Daniel Henrique Schiefelbein da Silva
Jean Von Hohendorff

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno que


pode gerar dúvidas até mesmo em professores e profissionais de saúde com
muitos anos de experiência. Para que suas intervenções, em casos de suspei-
ta ou confirmação de violência sexual, sejam adequadas, há a necessidade
contínua de estudo e qualificação. Diante disso, o objetivo deste capítulo
foi descrever os principais aspectos e procedimentos necessários em casos de
suspeita ou confirmação de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Para isso, foram abordados conceitos essenciais para o entendimento da te-
mática, bem como o acolhimento à provável vítima e os procedimentos de
notificação e os encaminhamentos necessários. O funcionamento da rede
de proteção em meio à pandemia de Covid-19 também foi abordado. Tais
informações têm como público-alvo estudantes de graduação, professores
e profissionais da saúde buscando orientá-los/as para o enfrentamento da
violência sexual contra crianças e adolescentes e instigá-los/as na busca por
capacitação continuada.

Violência sexual contra crianças e adolescentes: o que é preciso saber


A primeira parte do presente capítulo foi separada por seções com informa-
ções necessárias para compreender aspectos acerca da ocorrência e da identifica-
ção da violência sexual contra crianças e adolescentes. Diante da complexidade
que esse fenômeno envolve, é necessário ter atenção e cuidado ao abordá-lo.
Ao longo de todo o capítulo os autores escolheram utilizar o termo “violência
sexual” por não concordarem com o uso do termo “abuso sexual”. Essa discor-
dância se dá pelo fato do termo “abuso” e da ação “abusar” não necessariamente
remeterem a um ato violento (abuso de álcool, por exemplo). Oposto a isso, a
caracterização do termo “violência” remete a um ato danoso e/ou violento que,
quando confirmado, necessita de interdição e intervenção.
168 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Os autores também vêm atentando para o termo “vítima”. Uma criança/


adolescente é “uma vítima” de violência somente no momento presente em que a
situação de violência sexual ainda está ocorrendo. A partir do momento que há
a interdição legal, jurídica e intervenção psicossocial, que assegura à criança o
seu direito de proteção e dignidade, ela pode vir a se tornar “uma sobrevivente”.
Ser ajudado/a a se reconhecer como sobrevivente também pode tirar a criança,
o/a adolescente ou o/a adulto, do lugar aprisionante de ser vítima, desde, é claro,
que efetivamente não esteja mais sofrendo violência. Desse modo, a atenção dada
aos termos “violência sexual” e “sobrevivente” visa um cuidado não somente no
âmbito da escrita acadêmica e científica, mas também no entendimento de quem
se utiliza desse material para intervir nos mais diversos contextos.

Definição de violência sexual contra crianças e adolescentes


Ter conhecimento acerca da definição de violência sexual contra crianças e
adolescentes pode influenciar diretamente na prevenção, compreensão e manejo
dos casos (Hunter, 1990). De acordo com a World Health Organization (WHO) e
a International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect ([ISPCAN] 2006),
a violência sexual contra crianças e adolescentes consiste em qualquer atividade
sexual, com ou sem contato físico, que exponha a criança e/ou adolescente a
uma situação para a qual ela não possui condições de assentir, devido a sua etapa
de desenvolvimento. Essas atividades incluem carícias, exibições de conteúdos
pornográficos e a exposição da criança a situações inadequadas para fins de ob-
tenção de satisfação sexual, bem como o toque, a penetração ou mutilação genital
(WHO, 2002). Nesse sentido, não necessariamente a criança ou o/a adolescente
precisa ser tocada para que a violência sexual se configure, visto que o não toque
(exibições, exposições) também são prejudiciais para crianças e adolescentes.
Ainda, há situações que envolvem a exploração sexual, que também é
uma forma de violência sexual contra crianças e adolescentes. A exploração
sexual ocorre quando há a troca por objetos, presentes, comida, remuneração
ou outras formas de compensação para fins de explorar (violentar) sexualmente
uma criança ou adolescente (Brasil, 2017).
O conhecimento acerca da definição de violência sexual também é impor-
tante para que haja a possibilidade de notificação e intervenção. Atualmente, a
maioria dos casos notificados são caracterizados por meninas, que foram vítimas
de violência sexual entre um e cinco anos de idade, e adolescentes, também do
gênero feminino, com idades entre 10 e 14 anos (Ministério da Saúde, 2018;
WHO, 2002).
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 169

Gráfico 3. Violência sexual contra crianças e adolescentes

Com contato Sem Toques, carícias,


físico penetração intercurso

Com Digital, objetos,


penetração genital, anal
Violência
sexual Assédio verbal,
Sem contato
exibicionismo,
físico
voyerismo

Exploração
sexual

Fonte: adaptado de Ministério da Saúde (2002)

Em relação ao gênero da criança ou do/a adolescente, há evidências de que


a violência sexual contra meninos também ocorra, porém é menos notificada por
questões sociais e culturais ligadas ao papel de gênero masculino (Hohendorff,
Habigzang, & Koller, 2014). Essas questões permeiam o contexto familiar e
social, acarretando que, após o menino revelar a situação de violência sexual,
acaba por ser desacreditado, até mesmo culpabilizado. Pode ocorrer, ainda,
questionamentos quanto à orientação sexual e identidade de gênero da vítima
(Hohendorff, Habigzang, & Koller, 2017). Quanto ao gênero feminino, perce-
be-se a existência de uma construção histórica e social de opressão e submissão
das mulheres, principalmente com relação aos homens (Matos, 2008).
Além disso, constata-se que a maioria dos casos de violência sexual contra
crianças e adolescentes são intrafamiliares, ou seja, cometida por pessoas que
possuem vínculo sanguíneo ou fazem parte da família, sendo os agressores em
sua maioria homens, apesar de também existirem agressoras do gênero femi-
nino (Ministério da Saúde, 2018). Os aspectos que permeiam tanto o gênero
masculino quanto o feminino, podem ser considerados como norteados por uma
sociedade patriarcal e machista, impedindo, muitas vezes, que a violência sexual
contra crianças e adolescentes seja vista como um problema de saúde pública.

Possíveis sinais e consequências da violência sexual


Não é possível definir uma síndrome, ou seja, um conjunto de sintomas
que sejam característicos por conta de ter sido vítima de violência sexual. Sendo
assim, a violência sexual é considerada um estressor generalizado de forma que
as consequências que serão apresentadas pelas vítimas dependerão da propensão
individual (Williams, 2002). Portanto, pode-se afirmar que o que existe são
170 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

sinais e sintomas mais frequentes, sendo eles divididos didaticamente em físicos,


emocionais, cognitivos e comportamentais, conforme pode ser visto na tabela 1.

Tabela 1. Consequências da violência sexual contra crianças e adolescentes

Físicos Emocionais Cognitivos Comportamentais Psicopatologias


Autoimagem Transtorno do
Lesão
Ansiedade pobre / Baixa Agressividade estresse pós-
corporal
autoestima traumático
Confusão quanto
à identidade
de gênero e Transtornos de
Mutilações Culpa Baixo rendimento escolar
orientação sexual ansiedade
para meninos
vítimas
Dificuldade de Comportamento Transtornos de
Medo
Fissura e aprendizagem autodestrutivo humor
dilaceração Comportamento externalizante
anal Transtornos
Raiva Dissociação (e.g., crueldade, delinquência,
alimentares
agressão)
Comportamento regressivo Transtornos
Paranoia
(e.g., enurese) somatoformes
Transtornos
Pensamentos
Fugas de casa relacionados a
obsessivos
substâncias
Transtorno de
Pesadelos Ideação e conduta suicida personalidade
antissocial
Problemas interpessoais
Doenças
sexualmente Tristeza Problemas legais
transmissíveis Problemas sexuais (e.g.,
hipersexualidade, coerção
sexual, disfunção sexual,
Transtorno de
Sintomas comportamentos sexuais de
personalidade
psicóticos risco – promiscuidade, sexo
borderline
desprotegido)
Sintomas
obsessivo-compulsivos
Uso de substâncias
(e.g., álcool, maconha, cocaína)
Fonte: adaptado de Hohendorff, Habigzang, e Koller (2014)

Dentre os possíveis sinais e sintomas, destacam-se, na infância e adolescên-


cia, a ansiedade, o medo e a culpa, bem como dificuldades de aprendizagem e
consequente queda no rendimento escolar e a hipersexualidade. Crianças e adoles-
centes que são vitimizadas acabam aprendendo que precisam estar sempre alertas
diante da possibilidade de que um novo episódio de violência ocorra. Assim,
costumam desenvolver ansiedade e medo. A ansiedade e o medo podem interfe-
rir no funcionamento cotidiano, uma vez que se torna mais difícil, por exemplo,
focar a atenção em conteúdos de sala de aula. Ademais, memórias intrusivas dos
episódios de violência sexual são comuns, o que também faz com que a criança ou
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 171

o/a adolescente não consiga manter atenção em sala de aula. Como consequência,
dificuldades de aprendizagem e queda no rendimento escolar acabam aconte-
cendo, sinalizando que algo está acontecendo com a criança ou o/a adolescente.
Embora seja difícil definir o que seria adequado ou não, em termos desen-
volvimentais, para a sexualidade infantil, sabe-se que não é esperado que crianças
tenham conhecimento sobre práticas sexuais adultas. A sexualidade acompanha as
pessoas desde o nascimento. Ao longo da infância a criança descobre seus genitais
e passa a manipulá-los, o que gera prazer. Assim, algum comportamento mastur-
batório é espera e comum. No entanto, quando tal comportamento é exacerbado
e envolve simulações de práticas sexuais adultas é preciso atenção. Não é esperado
que a criança tenha tal conhecimento. É possível que ele esteja sendo vítima de
violência sexual ou tendo acesso a adultos mantendo relações sexuais ou conteúdo
impróprio para crianças. Em ambas situações é necessário intervir.

Como a violência sexual ocorre


Possíveis padrões de ocorrência da violência sexual contra crianças e ado-
lescentes têm sido estudados há 40 anos por diversos estudiosos (Finkelhor &
Browne, 1985; Furniss, 1993; Sgroi, Blick, & Porter, 1982; Spiegel, 2003; Sum-
mit, 1983). Considerando os achados anteriores, Hohendorff, Nelson-Gardell,
Habigzang e Koller (2017) propuseram um modelo integrativo conceitual da
dinâmica da violência sexual contra crianças e adolescentes, que é composto por
seis fases/etapas, sendo apresentadas em forma de um espiral, configurando a
não-linearidade de ocorrência da violência.

Figura 6. Dinâmica da violência sexual contra crianças e adolescentes

Superação
V I

Repressão
T I
M I

Narrativa
Z A

Silenciamento
Ç Ã

Episódios
O

Preparação

Fonte: Hohendorff, Nelson-Gardell, Habigzang, & Koller (2017)


172 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Na maioria dos casos, os agressores sexuais são pessoas conhecidas da


criança vitimizada, possuindo vínculos de afeto e confiança. Esse vínculo
pode ser considerado um facilitador para ocorrência da violência, tanto que
os agressores buscam intensifica-lo antes de cometer os episódios de violência
sexual. Essa etapa na qual o/a agressor/a busca estreitar laços com a vítima
em potencial é a Preparação. Os episódios de violência sexual tendem a ser
crônicos e ocorrem de forma progressiva, desde interações sem contato físico
(e.g., assédio verbal, exibicionismo), passando por interações com contato
físico sem penetração (e.g., toques, carícias) e, finalmente, com penetração.
Os agressores buscam manter o segredo, seja pelo não reconhecimento da
interação como sexual e inapropriada pela criança, seja por meio de ameaças
e barganhas. Quando buscam ajuda, algumas crianças vitimizadas podem
receber descrédito, o que as coloca em situação de risco para a continuidade da
violência. Portanto, o silenciamento é mantido até que a narrativa da criança
ou do/a adolescente receba credibilidade e sua proteção seja garantida. A única
forma de superação da violência ocorre quando o caso é notificado aos serviços
de proteção (Hohendorff, Nelson-Gardell, Habigzang, & Koller, 2017), que
buscarão garantir o afastamento entre a pessoa autora de violência e a criança
vitimizada (Brasil, 1990).

Intervenção sem revitimização: o que é preciso fazer


Na segunda parte deste capítulo objetiva-se fornecer subsídios para ade-
quada e segura intervenção em casos de suspeita ou confirmação de violência
sexual contra crianças e adolescentes. Para isso, foram abordadas as Leis e
os procedimentos que norteiam o processo de notificação, bem como formas
adequadas de acolher e orientar crianças e familiares em casos de suspeita ou
confirmação de violência sexual.

O dever de proteger
No Brasil, somente há pouco mais de 30 anos que as crianças e adoles-
centes passaram a ter seus direitos assegurados. Foi por meio da Lei 8.069, de
13 de julho de 1990, nomeada como Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), que houve a proteção e garantia integral dos direitos de crianças e
adolescentes (Brasil, 1990). O ECA, além de tratar dos direitos das crianças
nas mais variadas condições e contextos, também dispõe de diretrizes para
prevenção e intervenção em casos de violência ou qualquer outra condição
que infrinja seus direitos.
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 173

Além de o ECA ser necessário para assegurar os direitos de crianças e


adolescentes, ele também é extremamente importante no que diz respeito a
delimitar os deveres de todos e todas, estejam estes/as na condição de cidadãos,
famílias, estudantes e/ou profissionais. O principal dever firmado pelo ECA é
o de proteger. Nesse sentido, para que haja a proteção e superação da violência
sexual, é necessária a notificação dos casos. De acordo com o Artigo 13 do Es-
tatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), é dever de todos os cidadãos
e dos/as profissionais que atuam no âmbito da saúde e educação comunicarem
os órgãos responsáveis (e.g., conselho tutelar, delegacia) dos casos de suspeita
ou confirmação de qualquer situação de violência.
Ressalta-se, de acordo com o que é mencionado no ECA, que não é neces-
sário ter certeza se a violência sexual está mesmo ocorrendo para que a notifi-
cação seja realizada. Diferente de uma denúncia, que gera uma peça processual
e, quando promovida, será julgada pelo Juizado da Infância e Juventude, a
notificação é a comunicação obrigatória de um fato, que irá movimentar a rede
de proteção para se aproximar da possível vítima e sua família (Ministério da
Saúde, 2011).
Compreende-se, então, que não cabe aos cidadãos e profissionais inves-
tigarem se a violência sexual está mesmo ocorrendo, visto que não possuem
capacitação para isso. Mas é dever destes realizarem a notificação junto ao
Conselho Tutelar (CT), Delegacia ou Disque 100, para que esses serviços pos-
sam tomar frente do caso e proteger a provável vítima. Além disso, é previsto
no Artigo 245 que, ao deixar de notificar casos de suspeita ou confirmação de
violência e maus-tratos contra crianças e adolescentes, seja o médico, professor,
ou responsável pela atenção à saúde e educação, haverá sanção administrativa
(Brasil, 2014).
Visando compreender os procedimentos que envolvem o recebimento e
encaminhamento de notificações, foi realizado um estudo, por meio de en-
trevistas, com 10 conselheiros/as tutelares. A partir dos resultados obtidos, os
autores desenvolveram um checklist com as principais informações necessárias
para uma notificação exitosa. Também constataram que a melhor forma de
notificar é por meio de uma via escrita, com o maior número de informações
possíveis, entregue diretamente ao conselho tutelar (Anjos, Trindade, & Hohen-
dorff, 2021). A seguir, na figura 7, é possível visualizar o checklist, bem como
o modelo de notificação escrita.
174 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Figura 7. Checklist e modelo de notificação

Checklist
Notificação de violência sexual contra crianças e adolescentes
Você suspeita de algum caso de violência sexual contra criança ou adolescente?

Estatuto da criança e do adolescente (ECA)


Artigo 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo fisico, de tratamento
cruel ou degradante e de maus tratos contra criança ou adolescente serão
obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade,
sem prejuízo de outras providências legais.

A notificação tem como objetivo proteger a criança ou o/a adolescente.


Não se trata de uma denúncia!
A seguir é apresentado um checklist com sugestões de informações que,
sempre que possível, devem ser contempladas numa notificação.
Quanto maior for o número de itens contemplados, mais robusta será a notificação.
Mesmo que não se tenha alguma informação, a notificação deve ser realizada.
As susgestões de informações foram feitas por conselheiros tutelares em uma pesquisa sobre notificações exitosas.

• Nome completo da provável vítima • Endereço completo do/a suposto/a


• Nome dos páis e/ou responsáveis da agressor/a (rua, número da casa e/ou
provável vítima apartamento, bairro) e/ou algum ponto de
referência
• Idade aproximada da provável vítima
• Contato telefônico do/a suposto/a
• Endereço completo da provável vítima agressor/a
(rua, número da casa e/ou apartamento,
bairro) e/ou algum ponto de referência • Possível vínculo familiar entre a provável
vítima e o/a suposto/a agressor/a
• Contato telefônico do responsável pela
criança e/ou adolescente • Existem outras crianças e/ou adolescentes
no círculo familiar da vítima, que podem
• Nome da escola que a provável vítima frequenta estar em risco
• Nome completo do/a suposto/a agressor/a • O que acarretou a suspeita de violência
• Idade aproximada do/a suposto/a agressor/a sexual? (Qual/is sinal/is, comportamento/s)

Notificamos o caso de João Cactus, de 11 anos de idade, filho de Paulo Cactus


e Margarida Cactus, residente na Rua Girassol, no 84, Bairro Hortência, na cidade
de Orquídea, próximo ao mercado Palmeiras, por suspeita de violência sexual. O
provável agressor é Plínio Antúrio, de 30 anos de idade, residente na Rua A, no
12, Bairro Hortência, na cidade de Orquídea, próximo ao Posto de Combustível
Azurra.
A suspeita baseia-se em comportamentos que João vem apresentando. Dentre
eles, pode-se destacar agressividade, brincadeiras sexualizadas, baixo rendimento
escolar e isolamento. Quando questionado sobre o que estaria acontecendo, João
diz não poder falar e apresenta reações emocionais de medo e ansiedade.
Notifica-se esse caso suspeito de violência sexual ao Conselho Tutelar em
consonância com o artigo 13o do ECA que diz que “os casos de suspeita ou
confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos
contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho
Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”.
Os telefones de contato dos responsáveis do João são (11) 1111 1111 e (11)
91111 1111.
Atenciosamente,
Rosa Pétalas
Diretora da Escola Jardim Florido
Fonte: Anjos et al. (2021)
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 175

Acolhimento e orientação
Saber como notificar também é essencial para poder orientar. Se depa-
rar com uma suspeita ou com um relato de violência sexual pode gerar muito
espanto, angústia e comoção e, por vezes, quando não há o preparo necessário
para abordar essa situação, a criança pode ser colocada novamente em risco. O
despreparo profissional pode se dar principalmente diante do desconhecimento
acerca das leis e dos direitos de crianças e adolescentes, bem como a desinforma-
ção acerca do funcionamento dos órgãos e serviços da rede de proteção, também
havendo os aspectos pessoais dos profissionais, que envolvem suas crenças e
sentimentos voltados ao tema da violência sexual.
Há evidências científicas de que profissionais não capacitados para abordar
essas situações podem acabar revitimizando a criança ou adolescente (Aznar-
-Blefari, Schaefer, Pelisoli, & Habigzang, 2021). A revitimização pelo despre-
paro profissional ocorre de diferentes formas, dentre elas: fazendo perguntas
impróprias na tentativa de investigar para ter certeza se ocorreu, ou não, um
episódio de violência; tentando conversar com o/a suposto agressor/a, também
na tentativa de investigar (isso ocorre com maior frequência quando o/a possível
agressor/a é alguém próximo da criança); contando a suspeita para pessoas que
não irão assumir uma postura ética para com essa informação; e, tão grave quan-
to, ignorando e silenciando a suspeita ou possível revelação de violência sexual.
Quando uma criança ou adolescente faz uma revelação intencional ou
acidental, pode-se estimar que o/a adulto/a a quem essa revelação foi direcio-
nada é tido como alguém de confiança ou tem um convívio próximo da criança.
Quando essa revelação envolve uma possível ou provável violência sexual, com-
preende-se que já houve um esforço da vítima em mostrar, de alguma forma,
essa situação, principalmente diante de ameaças e insultos, característicos da
dinâmica de violência. Desse modo, é essencial que a abordagem e acolhimento
da criança ou adolescente sejam realizados de forma cuidadosa e ética, prezando
pela segurança.
Essa abordagem consiste em: (1) acreditar no relato da criança ou adoles-
cente e poder verbalizar isso, não adotando a postura de questionar a criança
sobre seu comportamento ou vestimenta, deixando claro que ela não tem culpa
do ocorrido, bem como agradecendo pela confiança que ela teve ao contar; (2)
não prometer sigilo, explicando para a criança ou o/a adolescente o que é a no-
tificação e o porquê ela é necessária. Para isso, frequentemente usa-se a analogia
dos conselheiros/as tutelares como super-heróis que visam proteger crianças
e adolescentes (Hohendorff & Patias, 2017). Deve-se também questionar a
176 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

criança se ela possui um/a adulto/a de confiança, que possa fornecer apoio e
suporte durante esse processo (Hohendorff & Habigzang, 2014) e, caso isso
não seja possível ou o/a adulto/a referenciado/a não apoie a notificação, o/a
profissional tem o dever de realiza-la (Brasil, 1990).
Também é necessário (3) não assumir uma postura de detetive, deixando a
criança livre para falar, sem questionar sobre detalhes do ocorrido (como, onde,
com quem), pois isso pode confundir o relato da criança (Hohendorff & Patias,
2017); e (4) ao finalizar a conversa, é importante verificar como a criança está
se sentindo, se ela está em condições para voltar às suas atividades cotidianas,
podendo, o/a adulto/a, encerrar a conversa com algum assunto ou atividade
neutra, que seja do interesse da criança (Hohendorff & Habigzang, 2014).
Em meio ao processo de escuta, acolhimento e notificação, algumas situa-
ções não previstas podem ocorrer. Mesmo que o/a adulto/a acredite nos sinais ou
no relato da criança e se comprometa em protegê-la, é necessário deixar claro que
uma notificação junto ao CT precisa ser realizada. Em muitos casos, familiares
podem sugerir apenas afastar a criança do/a suposto/a agressor/a, visando não
envolver os órgãos públicos. Porém, é necessário ter em vista que outras crianças
também podem estar em risco por conta do/a mesmo/a agressor/a e, além disso,
deixar claro que a única garantia de que a proteção da criança seja efetivamente
assegurada é a notificação.
Quando o agressor/a é alguém próximo da criança e do/a adulto/a de
confiança escolhido/a por ela, também é possível que haja a resistência em ver
o suposto/a agressor/a como capaz de cometer o ato de violência. Diante disso,
é comum que o/a responsável se sinta ameaçado/a e intimidado/a ao saber
da obrigatoriedade de notificação, o que pode fazer com que ele/a também
ameace e intimide o/a profissional. Para que esses aspectos não reflitam na
credibilidade do relato da criança e na relação do/a adulto/a de confiança com
ela, é necessário que o/a profissional adote uma postura compreensiva e de
acolhimento. Ouvir atentamente os receios do/a adulto/a poderá abrir espaço
para que o/a profissional explique sobre a dinâmica de ocorrência da violên-
cia sexual, bem como aborde a diferença entre notificação e denúncia. Nesse
sentido, também é importante que o/a profissional se coloque à disposição
para acompanhar o/a responsável no processo de notificação, se necessário.
E se, mesmo após o acolhimento, explicação sobre a dinâmica da violência
sexual, a diferenciação entre denúncia e notificação, visto que a última visa pro-
teger e não incriminar, o/a adulto se opor a fazer a notificação, o/a profissional
deverá notificar. Em alguns casos pode ocorrer de os familiares ameaçarem
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 177

processar o/a profissional, por exemplo. Porém, o/a profissional deve ter em
mente que está fazendo o que é estabelecido por lei, ou seja, que diante de
suspeita ou confirmação de violência sexual é seu dever notificar (Brasil, 1990).
Para que o processo de acolhimento, escuta e orientação ocorra de forma
ética e cuidadosa, além de o/a profissional precisar se responsabilizar em buscar
os conhecimentos necessários acerca de ocorrência e notificação da violência
sexual, também é importante que ele/a mantenha uma postura crítica e ques-
tionadora acerca de suas próprias crenças e pensamentos acerca da temática.
As crenças são tidas como as certezas do sujeito, que levam a formas de agir e
pensar diante de determinadas situações (Soares & Bejarano, 2008).
Recentemente, estudos sobre crenças voltadas a violência sexual contra
crianças e adolescentes têm ganhado espaço na produção científica brasileira
(Pereira et al., 2019) e, dentre as possíveis crenças avaliadas, são exemplos: “Só
se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente”; “Se não hou-
ver penetração, então o abuso é pouco grave”; “A maioria das queixas de abuso
sexual são falsas”. Embora, mesmo crenças sólidas e cristalizadas possam ser
modificadas, crenças errôneas e distorcidas referentes a violência sexual contra
crianças e adolescentes normalmente conduzem a negação e minimização da
gravidade dos casos, influenciando diretamente na revitimização (Márquez-
-Flores et al., 2016). Nesse sentido, compreende-se que cidadãos, estudantes e,
principalmente, profissionais, necessitam de informações, estudo e capacitações
contínuas para abordar casos de suspeita ou confirmação de violência sexual.

O sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente


Na última parte deste capítulo o intuito é o de abordar o sistema de ga-
rantia de direitos das crianças e adolescentes, bem como todos os aspectos que
o constitui, ou seja, a rede de proteção, os serviços e o papel desempenhado
por cada um deles. Além disso, foram considerados as mudanças e os possíveis
impactos decorrentes da pandemia de Covid-19.
Historicamente, a criança era considerada como um “adulto pequeno”. Este
conceito foi se alterando com o passar dos anos e desenvolvimento da ciência.
A Constituição Federal de 1988 trouxe novos entendimentos à lei brasileira, e
possibilitou a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
em 1990, que tem por objetivo garantir os direitos universais de crianças e
adolescentes, incluindo sua proteção especial. De acordo com essa lei:
Art. 3o A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais ine-
rentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
178 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facili-


dades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e
social, em condições de liberdade e de dignidade (Brasil, 1990).
O ECA observa que assegurar direitos prioritários às crianças e adolescentes não é dever
apenas na família, mas também da sociedade e do poder público:
Art. 4o É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig-
nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Brasil, 1990).
A lei proíbe que crianças e adolescentes sejam vítimas de violência, seja de forma a
ativa ou por omissão:
Art. 5o Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (Brasil, 1990).

Nesse sentido, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do


Adolescente (CONANDA) publicou a Resolução nº 113, de 2006, que
dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).
Esse regulamento conceitua o SGDCA da seguinte maneira:
Art. 1o O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na
articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na
aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção,
defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos
níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal (CONANDA, 2006).

Tal sistema buscará colocar crianças e adolescentes “a salvo de ameaças e


violações a quaisquer de seus direitos, além de garantir a apuração e reparação
dessas ameaças e violações'' (CONANDA, 2006), de acordo com o seu artigo
2o. A prática do SGDCA é aplicada a partir da formação de redes de proteção,
que permite aos diferentes atores nos campos da promoção, defesa e controle
da efetivação de direitos, unirem-se em uma atuação sistemática.

A rede de proteção
A rede de proteção à criança e adolescente em situação de violência foi
instaurada como um instrumento que visa a garantia de direitos dessa população.
Ela é composta pela união de diferentes serviços, que funciona como uma “teia
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 179

de comunicação permanente entre os órgãos que a compõe” (Faraj, Siqueira, &


Arpini, 2016, p. 8) e pode estar presente em diversos municípios. Fazem parte
da rede os serviços que atendem crianças e adolescentes, nos diferentes setores:
educação, saúde, assistência social, justiça, etc. Tais serviços são: escolas, Centro
de Referência em Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especiali-
zado em Assistência Social (CREAS), Unidade Básica de Saúde (UBS), Centro
de Atenção Psicossocial infantil (CAPSi), hospitais, Conselho Tutelar (CT),
Ministério Público (MP), Juizado da Infância e Adolescência (JIJ), casas lares,
delegacias (Habigzang, 2018).
Existe uma configuração padrão para a rede de proteção, embora cada
município tenha suas especificidades. As redes estabelecem fluxogramas de
encaminhamentos. Fluxogramas bem definidos melhoram a eficiência da rede
de proteção, e ajudam os profissionais de diferentes áreas a trabalhar de maneira
coordenada (Habigzang, 2018). Abaixo, serão explicados o papel de cada serviço
da rede de proteção, e o fluxo estabelecido.

O papel de cada serviço e o fluxo da rede de proteção


Entende-se a escola como um ambiente favorável à identificação de vio-
lência contra crianças e adolescentes (Elsen, Próspero, Sanches, Floriano, &
Sgrott, 2011), tendo em vista a proximidade entre eles/elas e os/as professores/
as, e o vínculo de confiança. Dentro de uma sala de aula, um/a professor/a
pode perceber um/a aluno/a com hematomas ou outros sinais de violência,
como comportamento retraído ou hiperssexualizado. Ou então, um/a aluno/a
pode verbalizar para um/a professor/a uma situação de violência que esteja
passando, seja no ambiente doméstico ou fora dele. Diante de tal suspeita ou
confirmação de violência, cabe à comunidade escolar, então, comunicar tal
fato ao Conselho Tutelar (CT), segundo o ECA (Brasil, 1990). As Secretarias
Municipais de Educação e as Coordenadorias Regionais de Educação podem
ter pessoas que trabalham como referenciais da rede de proteção, e que fazem
o intermédio com o CT.
O Conselho Tutelar (CT) busca proteger a provável vítima. De acordo com
o Art. 131 do ECA, o Conselho Tutelar é um “órgão permanente e autônomo,
não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente” (Brasil, 1990). Ele é responsável por atender
crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados, que estão sob essa
ameaça (Habigzang, 2018). O CT é um serviço central dentro das redes de
proteção. Um estudo apontou que 50% dos casos de violência contra crianças
180 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

e adolescentes são notificados a esses serviços (Macedo, Foschiera, Bordini,


Habigzang, & Koller, 2019). O CT pode, inclusive, requisitar “tratamento
médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial”
(Brasil, 1990) para crianças e adolescentes.
Se houver a necessidade, um caso pode ser discutido em uma reunião da
rede de proteção, com a presença de todos os membros, dos diferentes serviços.
Os membros, como técnicos/as em suas respectivas áreas (psicólogos/as, assis-
tentes sociais, professores/as, entre outros) irão dar orientações e providenciar
atendimentos necessários. A rede de proteção funciona com conexões perma-
nentes, composta de profissionais comprometidos, que entendem a gravidade
dos casos que estão sendo avaliados (Faraj, Siqueira, & Arpini, 2016).
Uma das atribuições do Conselho Tutelar (CT) é “encaminhar ao Mi-
nistério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal
contra os direitos da criança ou adolescente” (Brasil, 1990). De acordo com o
site do Ministério Público do Rio Grande do Sul:
O Ministério Público defende os interesses sociais e individuais indisponíveis, além de
zelar pela correta aplicação das leis e pela garantia do Estado Democrático de Direito.
Cabe-lhe a defesa daqueles interesses da coletividade, ou seja, de todos os cidadãos, como
o direito à saúde, à educação (...) Também é função do Ministério Público, a defesa da
vida, dos direitos das crianças, adolescentes, idosos e incapazes (MPRS, 2022).

O Ministério Público (MP) promove a fiscalização do cumprimento da


lei. Em caso de desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes vítimas de
violência, o MP deve ser acionado (Habigzang, 2018). Dependendo da gravi-
dade da situação, o MP pode iniciar um processo no qual exige a tomada de
providências.
Se isso não for suficiente para solucionar uma situação, o MP pode
encaminhar o caso para o Juizado da Infância e Adolescência (JIJ), onde o
processo será ajuizado. O JIJ é o órgão responsável por “aplicar a lei para a
solução de conflitos relacionados aos direitos das crianças e adolescentes”
(Habigzang, 2018, p. 40). Dessa maneira, o caso será julgado pelo(a) juiz(a)
responsável pelo JIJ.
Em casos mais graves de violência, o JIJ pode decidir pela destituição do
poder familiar. Nestes casos, a criança/adolescente será removida da família e
colocada em uma casa lar, onde terá sua segurança garantida. Tal serviço faz
parte da proteção especial de alta complexidade, tal como repúblicas, albergues
e casas de passagem (Habigzang, 2018).
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 181

As delegacias são os órgãos da polícia civil encarregados de gerenciar


operações policiais e investigar possíveis crimes. Existem as delegacias espe-
cializadas, como a delegacia da criança, que apura violências ocorridas contra
essa população específica. Esses órgãos visam ter um preparo especializado para
atender crimes cometidos contra crianças, bem como priorizar essas situações
(Habigzang, 2018).
Uma situação de violência pode ser percebida pela equipe médica em um
atendimento em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). As UBSs são a porta
de entrada preferencial do Sistema Único de Saúde (SUS). Elas se comunicam
com toda a rede de atenção à saúde. Estão localizadas em diversos pontos
dos municípios, e oferecem atendimentos básicos e gratuitos na área da saúde
(Ministério da Saúde, 2022; Habigzang, 2018). A partir dessa constatação, o
caso será encaminhado ao Conselho Tutelar.
Quando existe uma necessidade relacionada à saúde mental, as UBSs
fazem o encaminhamento da criança/adolescente para o Centro de Atenção
Psicossocial infantil (CAPSi). Os CAPS são “serviços de saúde de caráter aberto
e comunitário constituídos por equipe multiprofissional e que atua sobre a ótica
interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofri-
mento ou transtorno mental” (Ministério da Saúde, 2022). Existem algumas
modalidades de CAPS; dentre elas, o CAPS infantil, que atende crianças e
adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes. Crianças e adoles-
centes vítimas de violência com tais transtornos devem ser encaminhadas para
o CAPSi (Habigzang, 2018), onde há atendimento psicológico, psiquiátrico, e
grupos terapêuticos (Brandão, Lima, Mesquita & Costa, 2020).
Os hospitais oferecem atendimentos de saúde de alta e média complexi-
dade. Diante de casos de violência, os profissionais dos hospitais irão efetuar
o tratamento de lesões físicas, fazer exames e coletar o material necessário que
servirá como prova para o inquérito policial e processo judicial. Além disso,
em casos de violência sexual, nos hospitais devem ser realizadas as medidas
preventivas contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e aborto (Ha-
bigzang, 2018).
Também fazem parte da rede de proteção os serviços de assistência social,
estabelecidos pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Tal lei tem por
um de seus objetivos “o amparo às crianças e aos adolescentes carentes” (Brasil,
1993). Observados os princípios dessa lei, foi instituído o Sistema Único de
Assistência Social (SUAS), uma política com o objetivo de garantir a proteção
social aos cidadãos, incluindo crianças e adolescentes (Ministério da Cidadania,
182 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

2022). Fazem parte do SUAS os Centros de Referência em Assistência Social


(CRAS), que compõem a proteção social básica. Eles atendem a população em
situação de vulnerabilidade social por meio de programas e projetos. Os CRAS
trabalham com situações de baixa complexidade, com objetivo de prevenir si-
tuações e riscos (Hohendorf, Habigzang, & Koller, 2014).
Quando o CRAS constata uma situação de violência contra criança/ado-
lescente, é feito o encaminhamento ao Conselho Tutelar. Esses casos também
são encaminhados para o Centro de Referência Especializado em Assistência
Social (CREAS), que trabalha com situações de média complexidade, ou seja,
quando há violação de direitos humanos, acarretando em vínculos familiares
fragilizados, mas que ainda não foram rompidos. Nos CREAS, as crianças e
adolescentes recebem atendimento psicossocial por uma equipe composta de
psicólogos(as) e assistentes sociais (Habigzang, 2018).
Diante do exposto, entende-se que a rede de proteção é um esforço con-
junto, dos diferentes serviços e poderes, para garantir a proteção de crianças e
adolescentes. Para trabalhar em rede, os profissionais precisam ter a consciência
de que um trabalho feito em conjunto se torna mais articulado e efetivo no
enfrentamento à violência (Faraj, Siqueira, & Arpini, 2016). É preciso que as
redes de proteção se fortaleçam, em especial no momento atual, de pandemia
do coronavírus, em que o isolamento social pode estar ocultando situações de
violência dentro dos lares (FIOCRUZ, 2020).

A pandemia do coronavírus e a violência contra crianças e adolescentes


A pandemia do novo coronavírus teve seu início declarado pela ONU
em março de 2020. Para a não disseminação do vírus, foram tomadas medidas
como o fechamento do comércio e das escolas durante vários meses. Tal medida
manteve as famílias dentro de casa, convivendo por mais tempo. Dessa forma,
situações que já eram conflituosas acabaram se agravando (Marques, Moraes,
Hasselmann, Deslandes, & Reichenheim, 2020). Dados apontam o aumento
de violência doméstica, o que envolve, também, violência contra crianças e
adolescentes. A ONG World Vision International (2020) aponta que, só nos
três primeiros meses de pandemia, 85 milhões de crianças, no mundo, sofreram
violência, nas suas variadas formas: física, psicológica, sexual e negligência.
A pandemia atingiu as famílias de forma desigual, tendo mais impacto sobre
aquelas com condições socioeconômicas menores (FIOCRUZ, 2020).
Diante dessa situação cada município precisou lidar com a pandemia e
com as situações de violência que foram agravadas. Algumas redes de proteção
Capítulo 9 – Linéia Polli, Daniel H. S. da Silva e Jean Von Hohendorff 183

buscaram divulgar mais amplamente o serviço Disque 100, canal para realizar
denúncias anônimas de violência (MMFDH, 2020).
A escola é um lugar onde crianças e adolescentes podem conseguir ajuda
diante de circunstâncias de violência (Elsen, Próspero, Sanches, Floriano, &
Sgrott, 2011). Com as escolas fechadas, os professores foram impossibilitados
de identificar situações de violência presencialmente (FIOCRUZ, 2020). Isso
contribuiu para que os casos de violência ficassem ocultos dentro do lar.
O baixo número de notificações das escolas contribuiu para a desinfor-
mação quanto aos níveis de violência em diferentes nações. Em alguns países,
passando o primeiro estágio da pandemia, em que foram feitos bloqueios de
mobilidade, os relatórios retornaram ao padrão pré-pandemia. No Brasil, as
taxas de notificação permaneceram baixas até o final de 2020. Isso pode indicar
dificuldades na gestão nos serviços públicos relacionados à proteção de crianças
e adolescentes (Katz et al., 2021).
Além do impacto na educação, a pandemia do coronavírus impactou os
serviços de saúde no que se refere ao tema da violência contra crianças e ado-
lescentes. Os hospitais, UBSs e outros serviços de saúde atuaram como linha
de frente no combate à pandemia e atendimento aos casos de Covid-19. Dessa
forma, durante meses, a atuação precisou ficar mais focada em casos de infecções
virais. Serviços de saúde, como os CAPSi, tiveram que reduzir o número de
atendimentos focados na saúde mental de crianças e adolescentes interromper
as grupoterapias, para impedir a disseminação do coronavírus (Brandão, Lima,
Mesquita, & Costa, 2020).
Mesmo diante da grave crise sanitária e social, as redes de proteção tiveram
que se manter ativas, e encontrar meios de manejar as situações, realizando suas
reuniões para a forma online. Além disso, foram adotados novos protocolos para
que os atendimentos fossem disponibilizados a quem precisasse, muitos desses
sendo realizados de forma virtual (Katz et al., 2021). Cada rede de proteção se
reorganizou e elaborou mudanças para que os serviços estivessem disponíveis, a
fim de garantir os direitos de crianças e adolescentes. Diretrizes nacionais apon-
tam como estratégia a disponibilização de canais digitais de acesso aos serviços
da rede de proteção, como telefone e aplicativos online, para que a proteção possa
chegar a quem mais precisa neste período de pandemia (FIOCRUZ, 2020).

Considerações finais
A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno mul-
tifacetado e complexo. É considerado como um problema de saúde pública
184 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

mundial e que requer ações de enfrentamento para sua prevenção e superação.


O Brasil conta com importantes dispositivos para proteção dos direitos humanos
de crianças e adolescentes. É imprescindível que estudantes e profissionais de
áreas como educação e saúde estejam capacitados para adequada intervenção.
Portanto, cabe a esses estudantes e profissionais estarem familiarizados com
os dispositivos de proteção, principalmente o Estatuto da Criança e do Ado-
lescente, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de
Saúde (SUS).
Crianças e adolescentes não devem ser vítimas de qualquer tipo de violên-
cia devido ao seu impacto no desenvolvimento humano. Assim, sempre que há
suspeita ou confirmação de qualquer violação de direito é necessário realizar a
notificação conforme Artigo 13 do ECA. No entanto, ainda parece haver grande
confusão em relação à notificação. É preciso entender que ela visa a proteção
da criança/adolescente e para que ela seja prontamente protegida não se deve
investigar, mas sim comunicar a situação imediatamente. A investigação ocor-
rerá em momento oportuno por profissionais designados para tal tarefa após a
devida proteção da criança/adolescente.
Profissionais da educação e da saúde devem estar cientes do seu papel dian-
te da violação de direitos de crianças e adolescentes. Cabe a eles, em conjunto
com a rede, cessar situações de violência, proteger a vítima e planejar interven-
ções com objetivo da sua melhora de qualidade de vida. Para tal, devem agir
em cooperação com demais serviços da rede e buscarem atuar de forma efetiva
diante das diversas situações que se apresentam, tal como a pandemia do novo
coronavírus. Uma rede bem estruturada, com fluxos definidos e que trabalha
em cooperação garantirá a efetiva proteção e estará mais bem preparada para
enfrentar situações de crise como a pandemia do novo coronavírus.

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Capítulo 10
Educação sexual e/na infância: limites e
possibilidades no currículo de ciências
Elaine de Jesus Souza

A docência de Ciências/Biologia nos provoca ir além dos conteúdos do


livro didático, posto que a curiosidade das crianças ao olharem as imagens
anatômicas dos corpos masculinos e femininos é notável nos risos, comentários
e nas incessantes perguntas ao abordarmos assuntos como sistemas sexuais,
métodos contraceptivos e Infecções Sexualmente Transmissíveis/IST, insti-
gando a questionamentos que ultrapassam os limites do biológico e atingem
às dimensões socioculturais de corpo, sexualidade e gênero. Ao dar aula no 8o
ano do Ensino Fundamental, deparei-me com os conteúdos relativos ao corpo
humano e à reprodução humana. Para abordar tal conteúdo, preparei um jogo
de perguntas e respostas sobre reprodução humana e dividi a sala em meninos
versus meninas. Foi aí que vivenciei umas das primeiras situações provocativas
na sala de aula, um aluno que era homossexual assumido pediu para ficar no
grupo das meninas, pois não se “enquadrava” no grupo dos meninos, o que me
causou certo estranhamento e a resposta inicial foi negativa. Mas as meninas
insistiram para ele ficar no grupo delas e os meninos disseram que seria melhor,
tal episódio provocou um alvoroço na sala, então decidi permitir.
Após essa situação e a partir da aproximação com estudos de sexualidade
e gênero, passei a problematizar propostas didáticas como essa que reforçam
oposições binárias desde a infância e adolescência. Então, passei a questionar:
qual o sentido e a relevância didática em agrupar meninos versus meninas para
abordar o assunto reprodução humana? Como e por que estudar o corpo humano
e o sistema urogenital reduzido meramente à reprodução? Que outros saberes
seriam possíveis sobre o corpo humano, situado culturalmente? Como os/as
docentes e os/as discentes podem (re)aprender sobre as múltiplas sexualidades
e gêneros que permeiam os espaços escolares?
A Educação Sexual numa abordagem biológico-higienista (Furlani, 2011)
adotada em grande parte dos currículos escolares e acadêmicos tem se mostra-
do reducionista e, contribuído para a manutenção de um discurso que reforça
preconceitos como a homofobia, misoginia e/ou sexismo, o medo e a doença,
desconsiderando a abrangência de sexualidade, gênero e outras dimensões que
188 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

atravessam esse campo. Reside aí a necessidade de incorporar abordagens socio-


culturais da Educação Sexual nos currículos de Ciências desde os anos iniciais
do Ensino Fundamental, visando contribuir para o reconhecimento da infância
como uma fase de aprendizados sobre corpo, sexualidade e gênero.
Jane Felipe (2000) argumenta que histórica e socioculturalmente foi sendo
construída uma educação diferenciada para meninos e meninas, adotando como
premissa uma noção essencialista que determinaria posições de sujeitos confor-
me o sexo biológico, no entanto, o que vemos são representações dicotômicas
de masculino e feminino sendo impostas por meio da repetição, linguagem, de
instâncias sociais e diversos artefatos culturais, disseminando uma “verdade”
sobre os gêneros. Nessa ótica, marcadores identitários como gênero, sexuali-
dade, raça/etnia, geração, classe social costumam ser vistos numa perspectiva
essencialista, regulatória e de disciplinamento dos corpos desde a infância ou
até mesmo antes do nascimento. “O aparato escolar sempre procurou manter
uma severa vigilância em relação aos corpos infantis, priorizando, dentre outras
coisas, a seriedade no fazer das tarefas escolares.” (Felipe, 2000, p.128)
Para além do viés biológico, a Educação Sexual pode ser entendida como
um campo transdisciplinar constituído por discursos referentes à sexualidade,
corpo e gênero marcados pela cultura e por relações de poder, que instituem
identidades e diferenças a partir de saberes e práticas disseminados nos distintos
espaços educativos desde a infância até as demais fases da vida. Nessa ótica,
vale discutir e problematizar os limites e as possibilidades para incorporação
da Educação Sexual no currículo de Ciências, de modo contínuo e sistemático,
desde os anos iniciais do Ensino Fundamental. Com a finalidade de pluralizar
estratégias de ensino e aprendizagem para além do reconhecimento das iden-
tidades e diferenças (sexuais, de gênero, étnico-raciais) na escola, questionar
o modo como estas são utilizadas para reiterar preconceitos e desigualdades
sociais, que começam a ser produzidos já na infância.
Nessa trajetória, este estudo teórico no qual se articulam os campos de
estudos de sexualidade e gênero, estudos sobre currículo e os estudos culturais
pós-estruturalistas com aporte em teorizações foucaultianas, tem como principal
objetivo: Problematizar os limites e as possibilidades para a incorporação da Educação
Sexual no currículo de Ciências desde os anos iniciais do Ensino Fundamental.

Educação sexual e currículo de ciências nos anos iniciais: discursos


acerca de sexualidade, corpo e gênero
“Um menino de uns 8 anos estava todo empolgado ao vestir uma camisa social comprada
Capítulo 10 – Elaine de Jesus Souza 189

pela mãe para uma festinha, quando percebeu que a camisa estava comprida, então a
mãe disse: “não tem problema, filho! você pode usar a camisa por dentro da calça, vai
ficar mais arrumadinho”, o garoto logo repreendeu a mãe dizendo: “não vou usar assim,
mãe! Camisa por dentro da calça é coisa de boiola!” A mãe e as tias começaram a dar
risada. E quando questionado onde aprendeu isso ele respondeu que costuma ouvir seu
pai repetindo “o que é coisa de menino/homem e coisa de menina/mulher ou de bicha/
veado/boiola!!!”

Nos lares das “famílias tradicionais brasileiras”, salas de aulas/de profes-


sores/as, nos recreios/intervalos escolares, vemos e ouvimos falas que reiteram
rótulos de gênero e sexualidade, “isso é de menino, isso é de menina”, bem como
apelidos pejorativos ligados ao feminino: mulherzinha, bichinha, florzinha...
Para Felipe (2000, p.122-123), desde a primeira infância, sobretudo “[...] a
construção da masculinidade esteve (e parece ainda estar) fortemente atrelada
à sexualidade.” Ademais, a autora ressalta que “os diversos discursos que circu-
lavam nestes espaços institucionais e fora deles tentaram reafirmar, através de
inúmeras estratégias de poder/saber, a inferiorização de meninas e mulheres,
visibilizando de maneira central os meninos e homens (Felipe, 2000, p.128).
As múltiplas expressões de sexualidade, corpo e gênero que permeiam as
interações entre estudantes e docentes, pais/mães e filhos/as, frequentemente, per-
meadas por preconceitos e exclusões apontam para a necessidade de ressignificação
das relações poder-saber a partir do questionamento de padrões socioculturais
preestabelecidos. Desse modo, as temáticas da Educação Sexual atravessam dis-
tintos espaços educativos, principalmente o currículo de ciências desde os anos
iniciais, produzindo e sendo produzidas por discursos, desafios e inquietações.
Nessa direção, vale problematizar discursos acerca das temáticas da Educação Sexual
(re)produzidos nos currículos de Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Nesse raciocínio, enfatizo a relevância das ferramentas teórico-analíticas
sexualidade, corpo e gênero, que, além de se imbricarem no conceito de Educa-
ção Sexual, são utilizadas para problematizar o modo como esse campo trans-
disciplinar vem sendo incorporado, de forma direita e/ou indireta, nos saberes e
práticas escolares. Não obstante, cabe evidenciar que sexualidade, corpo, gênero
e educação sexual, mesmo sendo convergentes em muitos aspectos, são conceitos
distintos, o que aponta a necessidade de expor como são compreendidos numa
perspectiva pós-estruturalista.
A partir da compreensão de que sexualidade, corpo e gênero são pro-
duzidos na e pela cultura, importa dizer que na ótica dos estudos culturais
190 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

pós-estruturalistas a cultura “[...] é entendida tanto como uma forma de vida –


compreendendo ideias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas
de poder – quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones,
arquitetura, mercadorias produzidas em massa, e assim por diante [...]” (Nelson;
Treichler; Grossberg, 2013, p. 14). Nesse olhar, a cultura engloba processos de
significação acerca de sexualidade, corpo e gênero, usualmente incorporados
em abordagens de Educação Sexual que podem e devem ser problematizadas.
Nesse cenário que envolve Educação Sexual e currículo de ciências nos
anos iniciais, as temáticas sexualidade, corpo e gênero ocupam um lugar central,
posto que constituem os sujeitos interpelados por discursos que marcam tais
constructos socioculturais. A sexualidade consiste em uma das dimensões que
perpassa diversos aspectos da vida humana e, desse modo, engloba, além de
sexo e reprodução, identidades sexuais e de gênero, envolvimento emocional,
erotismo, amor... Bem como envolve múltiplas vivências e expressões por meio
de desejos, pensamentos, fantasias, crenças, valores, atitudes, relacionamentos.
Portanto, a sexualidade não diz respeito somente às capacidades reprodutivas
do ser humano, mas inclui componentes históricos e socioculturais, abrangen-
do, além do nosso corpo e do prazer, nossas crenças e relações afetivas, nossos
costumes, nossa história e cultura, ou seja, engloba a multiplicidade da vida
humana (Abramovay; Castro; Silva, 2004; Louro, 2007).
Foucault (2015a) destaca que a sexualidade constitui um ponto de passa-
gem entre o poder disciplinar (biopoder) exercido sobre o corpo de um indivíduo
e o poder que regula a população (biopolítica). A sexualidade é permeada por
relações de poder entre homens e mulheres, pais e filhos/as, educadores/as e
alunos/as, administração e população. Entretanto, caberia utilizar a sexualida-
de para articulação de estratégias que sirvam de instrumento não para impor
modos de agir e/ou de dominação, mas para questionar a construção social das
relações de poder. Nesse rumo, problematizar essas relações de poder envolve:
“Não considerar que existe um certo domínio da sexualidade que pertence, de
direito, a um conhecimento científico, desinteressado e livre [...]” (Foucault,
2015a, p. 107).
A sexualidade, entretanto, em decorrência de discursos essencialistas,
veiculados nos cursos de formação docente em Biologia, por exemplo, ainda
costuma ser apresentada como algo que se possui naturalmente, inerente ao
ser humano, e essa visão conflitua com a que assumo aqui e que defende o
reconhecimento do seu caráter construído e de suas dimensões socioculturais
e políticas. Tal concepção, em geral, se ancora nos discursos biologicistas, que
Capítulo 10 – Elaine de Jesus Souza 191

supõem os corpos vivenciados de modo universal, e limitados à premissa de


que existe um forte alinhamento entre sexo-gênero-sexualidade. No entanto,
para problematizar uma suposta linearidade atribuída à relação entre essas di-
mensões, torna-se fundamental admitir que a própria biologia e a natureza são
construídas pela cultura e história e, nessa direção, assume-se também que a
sexualidade é construída, ao longo da vida, de diversos modos pelos sujeitos, e,
assim, além de ser uma questão pessoal, abrange as dimensões sociocultural e
política (Louro, 2000).
O conceito de gênero engloba múltiplas expressões de corpo e representa-
ções de masculinidades e feminilidades, que excedem os limites do sexo bioló-
gico e a noção de papéis sexuais. Nessa perspectiva, gênero pressupõe que nossa
constituição como homens e mulheres envolve processos educativos intencionais
e não intencionais que operam por meio de, ou se apoiam em, distintas institui-
ções e práticas socioculturais, não necessariamente convergentes, harmoniosas
e estáveis (Meyer, 2013; Nicholson; 2000; Scott, 1995).
Sendo gênero construído a partir de um corpo sexuado, cabe evidenciar
que essa produção de gênero e do corpo “se opera, simultaneamente, no coletivo
e no individual. Nem a cultura é um ente abstrato a nos governar nem somos
meros receptáculos a sucumbir às diferentes ações que sobre nós se operam.”
(Goellner, 2013, p. 41). Embora um corpo sexuado e generificado seja produzido
histórica e socioculturalmente, também envolve todo um processo subjetivo
que faz os indivíduos buscarem constantemente novas formas de “ser”, rein-
ventarem prazeres e desejos, negociando com os processos culturais a partir
de um paradoxo entre resistência e aceitação das normas. Dessa maneira, um
corpo, além de ser singular, também é partilhado porque engloba semelhanças
e diferenças de outros corpos produzidos de acordo com o tempo e a cultura
vigentes (Goellner, 2013).
Guacira Louro (2000) salienta que os currículos escolares e acadêmicos
alheios às abordagens socioculturais da Educação Sexual costumam reproduzir
uma história marcada por relações de poder e discursos essencialistas acerca das
identidades sexuais e de gênero. Dessa maneira, reitera-se o disciplinamento dos
corpos e representações hegemônicas de masculinidade e feminilidade ancoradas
em pedagogias ‘normativas’ de sexualidade e gênero, muitas vezes, tão sutis
que nem nos damos conta. Foucault (2015a) argumenta que o poder constitui
um campo múltiplo, instável e estratégico de correlações de forças, que produz
efeitos locais e/ou globais, assim, diferentes discursos funcionam como elemen-
tos, que podem tanto modificar estratégias de poder-saber quanto reforçá-las.
192 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

No seu cotidiano, a escola como uma instituição (re)produtora de padrões


sociais e relações de poder-saber, dissemina preconceitos na sociedade, como
misoginia, sexismo, machismo, racismo e homofobia desde a mais tenra infân-
cia. As piadinhas, brincadeiras, apelidos pejorativos, xingamentos e exclusões
constituem uma dominação simbólica denominada “pedagogia do insulto”, que
enaltece mecanismos de silenciamento e marginalização de identidades não
hegemônicas (Junqueira, 2009).
Guizzo (2013) salienta que nas escolas e demais instâncias educativas, as
crianças aprendem questões que vão além das linguagens, disciplinas e artes,
também são ensinados modos de ser e de se comportar, sobretudo na dimensão
de gênero, são delimitadas condutas estereotipadas de “ser menino ou menina”. E
nós educadores/as acabamos reproduzindo padrões hegemônicos de masculini-
dades e feminilidades que ficam impregnados na mente das crianças, reforçando
oposições binárias e preconceitos. Contudo, na contemporaneidade, a tentativa
de “enquadrar” crianças em um padrão considerado “normal” é feita de modo
bastante sutil, como se fosse algo natural, determinado biologicamente, sendo
assim tais atos regulatórias ocorrem no cotidiano por meio de enunciados que
repetem a todo instante “o que é de menino e o que é de menina”. “Espaços,
jogos, falas, práticas pedagógicas, brinquedos, atitudes podem auxiliar na forma
como elas vão aprendendo a se tornar homens e mulheres. [...]” (Guizzo, 2013,
p.29-30). Ademais, a autora acrescenta:
[...] representações e concepções são construções culturais que se fixam em tempos e lugares
específicos por meio da linguagem. Sendo assim, o que é falado e mostrado na mídia, na
escola, na família, auxilia, de forma ampla, na constituição das identidades infantis.
Identidades sexuais e de gênero das crianças são constituídas não por uma condição
preexistente, mas pelas maneiras como elas são nomeadas e representadas em momentos
diversos de suas vidas. (Guizzo, 2013, p.41)

Rita Marchi (2011) nos lembra que as representações de infância/criança são


marcadas politicamente por uma perspectiva masculina e adultocêntrica, ou seja,
constituídas por relações de poder assimétricas, que visam a manutenção da ordem
social. Leia-se o padrão cisheteronormativo, posto que a maioria das sociedades
legitimam somente a heterossexualidade o sexo biológico masculino e feminino
como norma, desconsiderando os transgêneros e demais identidades destoantes.
Contudo, a partir do conceito de gênero, compreendemos que não existe “homem”
e “mulher” universais, da mesma forma, também não se sustenta a tentativa de
universalidade uma infância/criança, pois são construções socioculturais.
Capítulo 10 – Elaine de Jesus Souza 193

Ao apontar o caráter dual da infância constituindo tanto um fenômeno


natural e quanto social, Marchi (2011) argumenta que as crianças costumam ser
vistas socioculturalmente como seres sociais inacabados e/ou até inferiores que
demandariam processos de socialização e educação disciplinares e regulatórios
realizados pela escola e família (tal suposto papel social é atribuído a mãe, pois
usualmente é culpabilizada por qualquer “falha” na criação).
Chimamanda Adichie (2017, p.27) argumenta que “[...] pais e mães in-
conscientemente começam muito cedo a ensinar às meninas como devem ser,
que elas têm mais regras e menos espaço, e os meninos têm mais espaço e me-
nos regras.” Nesse rumo, a autora adverte que brinquedos (e acrescento demais
artefatos) deveriam ser divididos por tipo e não por gênero, pois em geral “os
brinquedos para meninos geralmente são “ativos”, pedindo algum tipo de “ação”
– trens, carrinhos – e os brinquedos para meninas geralmente são “passivos”,
sendo a imensa maioria bonecas (Adichie, 2017, p.25). Sobre tais binarismos
de gênero, Parker (2000) corrobora que a feminilidade costuma ser encarada
como uma força natural que precisaria ser controlada e disciplinada, enquanto a
masculinidade seria mais livre e autônoma, constituída desde a primeira infância
por meio de um complexo processo de masculinização.
A Educação Sexual no currículo de ciências desde os anos iniciais, a partir
de suas ferramentas teórico-analíticas, incitaria problematizar e reconhecer que
antes mesmo do nascimento aprendemos por meio da cultura e da linguagem a
nomear os corpos como masculinos ou femininos, ou seja, a marca de gênero se
faz presente nesses corpos ainda em desenvolvimento no útero materno. Assim,
a construção dos sujeitos masculinos ou femininos precede o nascimento do bebê
e isso é reiterado por diferentes discursos. “Sexo e gênero começam a se fazer,
pois, desde essa cena inaugural e são apresentados como estreitamente unidos,
um é tido como consequência do outro. Essas “verdades” do corpo se repetem
tantas vezes que acabam por parecer naturais [...]” (Louro, 2017, p. 56).
Nesse sentido, teóricas feministas utilizam o conceito de gênero para pro-
blematizar saberes e práticas, veiculados em distintos espaços educativos, que
apresentam identidades masculinas e femininas como determinadas biologica-
mente, argumentando que homens e mulheres não são definidos pela anatomia
de seus corpos, pois as próprias perspectivas que os/as definem como sendo
determinados pela biologia emergem de um processo discursivo, histórico e
sociocultural. Portanto, o conceito de gênero foi articulado para argumentar que
identidades e corpos designados como masculinos e femininos são construídos
histórica e socialmente, uma vez que nem mesmo a biologia estaria imune aos
194 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

jogos de significação produzidos na e pela cultura (Haraway, 1995; 2004; Meyer,


2013; Nicholson; 2000; Scott, 1995; Silva, 2015).
A articulação entre tais campos possibilita novos modos de (re)pensar e
problematizar os discursos acerca das temáticas sexualidade, corpo e gênero
produzidos no cenário educacional. Essa perspectiva admite uma noção de
Educação que inclui:
[...] o conjunto de processos através do qual indivíduos são transformados ou se trans-
formam em sujeitos de uma cultura. Tornar-se sujeito de uma cultura envolve um
complexo de forças e de processos de aprendizagem que hoje deriva de uma infinidade de
instituições e “ lugares pedagógicos” para além da família, da igreja e da escola, e engloba
uma ampla e variada gama de processos educativos, incluindo aqueles que são chamados
em outras teorizações de “socialização” (Meyer, 2009, p. 222).

Nesse cenário educacional, o currículo não se resume ao conjunto de con-


teúdos, disciplinas, métodos, experiências, objetivos, entre outros elementos que
compõem a atividade escolar, mas constitui um conjunto articulado e norma-
tizado de saberes e práticas interpelados pela cultura, regidos por determinada
ordem, visando eleger e transmitir representações sobre objetos e seres. Dessa
maneira, o currículo produz identidades e diferenças por meio de discursos
construídos socioculturalmente e marcados por relações de poder (Costa, 2005;
Silva, 2014) que orientam estratégias de mudanças e (des)construções nas distin-
tas práticas escolares. Nessa concepção, o currículo pode ser entendido “como
um artefato cultural que ensina, educa e produz sujeitos, que está em muitos
espaços desdobrando-se em diferentes pedagogias” (Paraíso, 2010, p. 11).
Ao compreender o currículo como um artefato cultural, parece estar pre-
sente a noção de algo mutável, constantemente (re)inventado e problematizado
para possibilitar múltiplas formas de pensar, viver e ressignificar a educação
a partir das demandas contemporâneas (Veiga-Neto, 2005). Marlucy Paraí-
so (2010) acrescenta que um currículo trabalha com uma multiplicidade de
conhecimentos e perspectivas, com aspectos inovadores, aventuras, afetos e
desejos, com uma vontade de aprender que não cabe em normas e/ou modelos
curriculares (conteudistas, construtivistas, entre outros). O currículo envolve
saberes, práticas, pedagogias e (re)criações que possibilitam a construção de
novas aprendizagens e a desconstrução de verdades e prescrições.
Nesse rumo, compreende-se a pedagogia como uma prática cultural que
constitui um modo de analisar como o poder e os significados constroem e
organizam conhecimentos, identidades, diferenças e valores (Giroux, 2013).
Capítulo 10 – Elaine de Jesus Souza 195

As pedagogias culturais constituem processos “educativos”, que mesmo sem o


objetivo explícito de ensinar veiculam por meio de artefatos culturais – como
os midiáticos – uma variedade de formas de saberes e práticas influentes na
produção de identidades e diferenças (Silva, 2015).
Além dos artefatos pedagógicos inseridos no currículo (livros, apostilas,
cartilhas), artefatos culturais (como revistas, cinema, TV) constituem diferentes
“modos de educar” veiculados em variados espaços contemporâneos, evidencian-
do que os discursos circulantes nas pedagogias não são fixos e nem uniformes.
Tais discursos pedagógicos são cambiantes e orientam a (des)construção de
normatizações em torno de sexualidade, corpo e gênero (Meyer, 2008; Soares,
2008; Wortmann; Costa; Silveira, 2015) e, assim contribuiriam a partir de um
trabalho coletivo para a incorporação da Educação Sexual, numa perspectiva
sociocultural e política, nos currículos de Ciências desde os anos iniciais.
Ao reconhecermos que a escola e demais instâncias educativas deveriam com-
prometer-se com o reconhecimento da diversidade e a desconstrução de preconceitos
e discriminações de identidades que destoam do padrão cisheteronormativo, torna-
-se imprescindível o desenvolvimento de ações didático-pedagógicas que favoreçam
a igualdade independente de marcadores identitários como gênero, sexualidade,
raça/etnia, classe social, geração... (Guizzo; Beck; Felipe, 2013). Nesse olhar, vale:
[...] observar atentamente as concepções das crianças, professoras, famílias e dos demais
profissionais envolvidos com o processo educativo escolar, suas falas, seus silêncios, ati-
tudes, as pedagogias culturais que perpassam esses espaços – livros, filmes, revistas, sites,
brinquedos, jogos etc. – problematizando tais contextos e produções torna-se nosso maior
desafio (Guizzo; Beck; Felipe, 2013, p.24-25).

Os currículos escolares e acadêmicos, ao incorporarem uma Educação


Sexual, indicariam o desenvolvimento de ações pedagógicas que incitem uma
reflexão didático-metodológica e política, pois as diferenças sexuais e de gênero
estão sendo, de modo permanente, construídas e hierarquizadas nos processos
discursivos da cultura. Uma Educação Sexual que abrange as diversas dimensões
de sexualidade, corpo e gênero englobaria um processo pedagógico contínuo,
sistemático e permanente, desenvolvido em todos os níveis de ensino, princi-
palmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Posto que, as inúmeras
informações veiculadas pela mídia e as exclusões sociais decorrentes do sexismo
e da homofobia, bem como outras formas de preconceitos e discriminações,
são recebidas constantemente, de modo inquestionável, por crianças, jovens,
adultos/as e até docentes. Em detrimento de representações hegemônicas que
196 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

hierarquizam as diferenças, os aparatos discursivos de uma cultura demanda-


riam o contraponto de uma Educação Sexual reflexiva, sistemática e politica-
mente interessada com a problematização de desigualdades sexual, de gênero,
raça/etnia, religião, classe, geração (Furlani, 2011; 2013).
Ao entender saberes, práticas e instituições educacionais como culturais
seria possível reinventar as relações entre professores/as e alunos/as, assim como
os conhecimentos curriculares estariam relacionados com os interesses dos/as es-
tudantes e as demandas socioculturais contemporâneas. Nessa direção, a escola
(e amplio essa reflexão para a universidade) seria reconhecida como um espaço
para ‘aprender a viver’, o que indica a relevância de debater sobre princípios e
práticas que possibilitem a construção de um processo dinâmico e múltiplo,
incluindo toda a pluralidade humana, sexual, social, cultural de crianças e jovens
(Xavier, 2010). Nesse caminho, a Educação Sexual no currículo de Ciências
desde os anos iniciais, a partir de uma abordagem sociocultural das temáticas
sexualidade, corpo e gênero, constituiria um campo (trans)disciplinar produtivo
para problematização de essencialismos e normatizações.
Desde a infância, discursos (biológicos, médicos, pedagógicos, religiosos
e midiáticos, entre outros) que atrelam corpo, gênero e sexualidade de modo
normativo e essencialista, costumam ser (re)produzidos a partir de saberes e
práticas veiculados no currículo, disseminando preconceitos e discriminações
contra sujeitos que não se enquadram na arbitrária premissa sexo-gênero-se-
xualidade. Nesse contexto, Jane Felipe (2013, p. 65) ressalta que: “[...] As re-
presentações sobre sexualidade, corpo e gênero veiculadas em especial pela
mídia têm subjetivação não só adultos, homens e mulheres, mas também têm
trabalhado minuciosamente para formação das identidades infantis e juvenis
nos nossos dias. [...]” (Felipe, 2013, p.65). Ademais, a autora adverte que tais
reflexões não deveriam provocar um “pânico moral” e/ou “saudosismo de uma
infância ingênua”, mas impulsionar o questionamento de discursos que produ-
zem diversas contradições, inclusive a erotização de corpos infantis em espaços
sociais e midiáticos. Jimena Furlani (2011, p. 92) argumenta que:
Hoje, há pelo menos duas justificativas que podem ser usadas para inclusão curricular
de uma Educação Sexual infantil que reconhece a importância do aprendizado sobre os
cuidados com o corpo, o entendimento das regras sociais sobre nudez e o entendimento do
conceito de privacidade. A primeira justificativa é o reconhecimento do autoerotismo
(masturbação) como um ato positivo, que deve ser educável; e a segunda justificativa,
é o temor do abuso sexual infantil – o que acentua o investimento, no aprendizado da
criança, pela autonomia sobre seu corpo.
Capítulo 10 – Elaine de Jesus Souza 197

Furlani (2011) explana que, destoante da concepção de muitos/as do-


centes, pais e mães, a Educação Sexual infantil não incentivaria a vivência
“precoce” de uma sexualidade. Justamente porque informar, conversar e dis-
cutir com as crianças sobre sexualidade, corpo e gênero, significa educá-las
para reconhecer seu desenvolvimento desde a infância, adolescência até a vida
adulta, favorecendo além da responsabilidade, prevenção e segurança, a di-
mensão do prazer a partir de uma “cultura de atitudes em face da vida sexual
futura” (Furlani, 2011, p.127). Ademais, ao articular os estudos das relações
de gênero com o processo formativo de crianças e jovens, a Educação Sexual
infantil contribuiria para a desconstrução de preconceitos, tais como machis-
mo, sexismo, misoginia e homofobia alicerçados em representações desiguais
acerca de homens e mulheres. Sobretudo ao reconhecer que tais preconceitos
são construídos, socioculturalmente, por meio de “enunciados discursivos”
ensinados, nas aulas de ciências, na escola, na família, nos diferentes espaços
educativos, ao longo de toda a vida.
Nessa perspectiva, Furlani (2011) sugere possibilidades e estratégias didá-
tico-metodológicas para a incorporação das temáticas da Educação Sexual nos
anos iniciais do Ensino Fundamental. Ao admitir que na infância, começam
a se formar representações acerca dos corpos e dos significados sobre nudez,
o/a professor/a poderia começar discutindo as partes do corpo pertencentes a
meninos que “fazem a diferença biológica”. Por exemplo, trabalhar com re-
cursos didáticos como bonecos/as e/ou desenhos de corpos nus, ilustrações de
livros didáticos e paradidáticos, empregando linguagens científica e popular
para nomear as partes corporais. Assim, a problematização de normas sociais
que ditam cores, vestimentas, brinquedos e acessórios distintos para meninos/
homens e meninas/mulheres constituiria uma possibilidade didática potente
para desconstruir preconceitos e representações estereotipadas que costumam
ser absorvidas pelas crianças.
Ao considerar a Educação Sexual como um campo discursivo que (re)
produz relações de poder-saber e distintas práticas pedagógicas, tal campo pos-
sibilitaria a problematização dos modos como os currículos escolares, principal-
mente o de Ciências, se constituem enquanto mecanismos de (des)construção
de normas e essencialismos em torno das identidades/diferenças sexuais e de
gênero. Assim, a Educação Sexual na escola, a partir de um olhar investiga-
tivo acerca do currículo de ciências, representa um campo útil para repensar
a produção de masculinidades e feminilidades, a partir do questionamento de
relações hierárquicas entre os gêneros e, do reconhecimento do caráter pluralista
198 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

das sexualidades, o que demanda a análise e discussão contínua e sistemática


acerca desses temas desde os anos iniciais do Ensino Fundamental.

Considerações finais
A Educação Sexual nos currículos escolares desde os anos iniciais do Ensi-
no Fundamental, demanda a incessante problematização de discursos relativos à
sexualidade, ao corpo e gênero, visando questionar modos de disciplinar corpos
e manter “certezas” em torno de sujeitos, saberes e práticas que permeiam os
processos educacionais. Nesse pensamento, não caberia inserir no currículo uma
analítica de “verdade universal”, mas compreendê-lo como um instrumento
aberto a reinventar saberes e práticas, incluir discursos silenciados, desconstruir
relações de poder-saber, recriando possibilidades para operar com incertezas e
questionamentos que marcam as dimensões de sexualidade, corpo e gênero.
Ao questionar sobre os limites e as possibilidades de ressignificar a Edu-
cação Sexual usualmente marcada por uma abordagem biológico-higienista,
argumento que esse campo transdisciplinar admite múltiplos sentidos “além
do biológico” e, (des)construções a partir de um exercício de problematização
de discursos essencialistas e “verdades universais”. Para tanto, esse exercício
analítico demanda capturar enunciados sobre Educação Sexual incorporados
nos distintos espaços educativos, sobretudo ao questionar: que discursos a escola,
mais especificamente o currículo de ciências nos anos iniciais, (re)produz acerca
das temáticas sexualidade, corpo e gênero? Tal questionamento se faz necessário
para que nós educadores/as possamos reconhecer, problematizar e desconstruir
preconceitos e oposições binárias que afetam as vivências de sujeitos, inclusive
crianças, com identidades/diferenças destoantes do padrão cisheteronormativo.
Nesse horizonte, parece mais produtivo investir em uma “Educação Se-
xual socialmente relevante” (Britzman, 2000), ao apostar em novas abordagens
que assumam os processos discursivos e culturais, reconhecendo as múltiplas
possibilidades e os limites de um campo heterogêneo marcado por relações de
poder-saber. Assim, as estratégias didático-metodológicas seriam constante-
mente ressignificadas para promover mudanças sociais significativas no campo
educacional desde os anos iniciais do Ensino Fundamental, que favoreçam o
questionamento de desigualdades e o acolhimento das identidades/diferenças.

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Capítulo 10 – Elaine de Jesus Souza 199

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Capítulo 11
Ciberespaço e ludicidade: é possível considerar a
ambiência digital um contexto de desenvolvimento?
Fabricio de Souza

Desde a popularização da internet, no final da década de 1980, um novo


ambiente, criado na conexão entre computadores, passa a constituir um espaço
para interações sociais até então inéditas. Algumas tentativas de caracterização
desse novo espaço, bem como da investigação das interações sociais que nele
ocorrem, foram apresentadas por autores como Lévy (1999), Lemos (2008),
Nicolaci-da-Costa (2005) e Oikawa (2013). Considerando as diversas possibili-
dades proporcionadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação, este
capítulo, baseado na apropriação do “ciberespaço” (ver Lévy, 1999, Lemos, 2008)
por crianças e adolescentes, propõe discutir a necessidade de avaliar se esse espa-
ço pode ser considerado um contexto atual para processos de desenvolvimento.
Antes de apresentar as informações a respeito de como as novas tecnologias
de informação e comunicação alteram os espaços físicos e geram ambientes alter-
nativos a estes (Nicolaci-da-Costa, 2005), é preciso considerar alguns aspectos
teóricos acerca do que seja o espaço e o contexto do comportamento e sua impor-
tância para o processo de desenvolvimento.

Contextos, lugares e espaços


Com um olhar evolucionista para o comportamento, julga-se necessário
iniciar essa discussão com a apresentação do conceito de Ambiente de Adapta-
ção Evolutiva, tal como definido por Tooby e Cosmides (1990). Esses autores
afirmam que as condições ambientais atuais não explicam completamente como
o comportamento foi sendo adaptado, com o passar dos anos, para garantir
a sobrevivência da espécie humana. Isso porque todo processo de adaptação
física e comportamental do Homo sapiens foi organizado a partir de estruturas
recorrentes de ambientes ancestrais (Tooby & Cosmides, 1990).
Izar (2009) explica que as características funcionais que os organismos
exibem atualmente foram selecionadas ao longo de um passado evolutivo. É
possível definir o ambiente de adaptação evolutiva como a gama de pressões
seletivas que os ancestrais enfrentaram e que geraram condições fenotípicas
responsáveis pela sobrevivência dos indivíduos e das gerações subsequentes.
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 203

Segundo esse raciocínio, a linguagem e o uso de tecnologia, por exemplo, podem


ser analisados como produtos de um modo de vida caçador-coletor característico
do Pleistoceno (período compreendido de, aproximadamente, 1,8 milhões de
anos a 10.000 anos atrás).
É plausível pensar que as capacidades humanas atuais tenham sido selecio-
nadas em um ambiente muito diferente do de hoje e com o objetivo de resolver
problemas enfrentados naquele passado distante (Izar, 2009). Mais que um
espaço material, o ambiente de adaptação evolutiva é um conjunto de pressões
que engendra as propriedades físicas do ambiente, os inúmeros desafios envol-
vidos na resolução de problemas e na preservação da vida, bem como as pressões
socioculturais impostas pela vida em grupo. Foi nesse ambiente complexo, rico
em diversidade e adversidades, que os mecanismos psicológicos tipicamente
humanos foram sendo modelados e selecionados.
Tinbergen (1951, 1963), preocupado com o estudo bem fundamentado do
comportamento em seu ambiente natural, utiliza-se de quatro perguntas cujas
respostas revelam elementos causais fundamentais para as análises que envolvem
os determinantes comportamentais. A primeira pergunta diz respeito aos fatores
filogenéticos que selecionaram um padrão específico de comportamento no
decorrer da história da espécie (evolução). Outra indagação se refere aos fatores
que contribuem para a aquisição de um padrão comportamental no decorrer
de suas experiências individuais (ontogenia). Indagar a respeito dos estímulos
presentes no exato momento de exibição é buscar as causas imediatas para o
comportamento em um momento específico (causação). Por fim, questionar a
razão do comportamento conferir ao indivíduo maior habilidade de reprodução e
de sobrevivência, diz respeito ao significado funcional que o padrão de interação
assumiu no decorrer da evolução (valor de sobrevivência).
Esses “quatro porquês” apresentados por Tinbergen (1951, 1963), além
de ampliar o espectro de fatores importantes para o entendimento do fenôme-
no comportamental, tiveram grande relevância para fortalecer a compreensão
do comportamento como produto e como instrumento do processo de seleção
natural (Carvalho, 1998), bem como para contribuir para o enfraquecimento
do debate envolvendo a falsa oposição “nature” versus “nurture”, inato versus
aprendido.
Os organismos, através da seleção natural, adaptam-se e evoluem atra-
vés da constante interação com seus ambientes. Nessa interação os organismos
modificam o seu ambiente que, reciprocamente, modifica os organismos. Esse
fato apresenta o imperativo de estudar a interação dos organismos com seus
204 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

ambientes para que se entenda como se deu sua adaptação, sua evolução e qual
a dinâmica presente no seu processo de desenvolvimento ontogenético. A im-
plementação de padrões individuais no curso da ontogênese não se restringe às
experiências idiossincráticas, mas também são respostas adaptativas às pressões
do ambiente (Bjorklund & Pellegrini, 2000, 2002)1.
Adotar uma abordagem evolucionista para estudar o desenvolvimento
humano não significa defender o determinismo biológico. Na complexidade
do processo evolutivo, a cultura possui importância relevante visto que os pro-
cessos de aprendizagem do comportamento são produtos da interação entre
mecanismos psicológicos universais, selecionados no processo de evolução, e
circunstâncias ambientais únicas para cada indivíduo (Lordelo, 2010; Bateson,
2015; Polippo, Ferreira & Wagner, 2016).
Varrella, Santos, Ferreira e Bussab (2017) argumentam, apropriadamente,
que a cultura não é um elemento antinatural e alheio à biologia dos hominídeos.
Isso porque existem fortes indícios, segundo Bussab e Ribeiro (1998), que a
sobrevivência foi afetada pela cultura e, ao mesmo tempo, características favo-
ráveis à transmissão cultural foram selecionadas. Logo, é plausível supor que
as adaptações mentais dos seres humanos são fortemente associadas aos seus
contextos culturais (Varrella, Santos, Ferreira & Bussab, 2017).
Lordelo (2002) mostra que a palavra “contexto” é usada indiscrimina-
damente nas teorizações envolvendo o processo de desenvolvimento humano.
Contexto extrapola a noção de lugar e envolve múltiplas e diferentes condições
de vida em que as pessoas se inserem. Essa autora é enfática ao afirmar que o
contexto não se limita às definições de ambiente físico e de nível sócio econô-
mico. Para além das particularidades dos ambientes físicos e das facetas dos
sistemas sociais, é imperativo examinar as características de cada indivíduo que,
interagindo ativamente com esses fatores, constituem com eles uma dinâmica
de influência mútua.
Considerando o contexto um protagonista no processo de desenvolvimen-
to, não é possível concebê-lo dissociado das variáveis culturais que fazem as
crianças e os adolescentes serem indivíduos historicamente constituídos ainda
que marcados pela filogênese do Homo sapiens (Lordelo, 2002). Nesse sentido, é

1
 quem queira se apropriar discussões mais detalhadas sobre a perspectiva evolucionista de inves-
A
tigação do comportamento e suas contribuições para a investigação do desenvolvimento humano,
sugere-se os trabalhos de Bjorklund e Blasi (2005), Bateson (2015), Geary e Berch (2016), Izar
(2018), Okumura (2018) e Rezende, Ripardo e Oliva, (2018).
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 205

possível pensar na diversidade de contextos associados às ações de pessoas ativas


que, interagindo dinamicamente com seus ambientes físicos e sociais, constroem
práticas particulares no que diz respeito ao cuidado e à educação de crianças e
de adolescentes. É bom lembrar que nessa ação envolvendo os indivíduos e os
diferentes aspectos dos seus ambientes, também é elaborado um conjunto de
regras e valores que balizam as ações daqueles que se responsabilizam por essas
práticas de cuidado e de educação (Lordelo, 2002).
Ao afirmar a construção histórica do indivíduo que traz consigo a baga-
gem hereditária de sua espécie, Lordelo (2002) assinala, assim como fizeram
Bussab e Ribeiro (1998), o caráter “biologicamente cultural” da espécie humana
considerando que “os indivíduos não são corpos guiados por seus genes em um
ambiente vazio” (Lordelo, 2002, p. 14) e afasta de sua análise o paradigma que
supõe a oposição entre natureza e cultura.
Tomando como pressuposto o fato de que diferentes contextos são cons-
tituídos por elementos particulares que vão desde características individuais
aos fatores macro culturais de um grupo específico, é incoerente esperar que o
desenvolvimento se dê de maneira linear. Ao contrário, quando se vislumbra o
processo de desenvolvimento ocorrendo em consequência da interação dinâmica
de um amplo conjunto de fatores, a imprevisibilidade é um elemento que não
pode ser desconsiderado (Carvalho e Lordelo, 2002).
Escrevendo sobre a experiência que as pessoas têm com aquilo que conside-
ram ser os “espaços” e os “lugares” de interação, Tuan (2013) apresenta algumas
reflexões que auxiliam a amadurecer a concepção de contexto. É através da expe-
riência que a realidade é construída. Para Tuan (2013), a experiência constitui-se
tanto por elementos sensoriais ligados aos órgãos dos sentidos, quanto à percepção
e à capacidade de simbolização. Essa ideia é condizente com os trabalhos de Lor-
delo (2002) e Carvalho e Lordelo (2002) porque, ao falar da diferenciação entre
espaços e lugares, Tuan (2013) assinala que a experiência do espaço faz com que
este adquira as propriedades de lugar. É através das sensações, das percepções,
das emoções e dos pensamentos que um espaço específico se transforma em lugar
devido aos conceitos e aos valores que as pessoas constroem nas suas experiências.
É com as primeiras experiências infantis que se inicia a aquisição de per-
cepções e de sentimentos associados aos espaços e aos lugares. Os espaços com os
quais as crianças interagem ampliam-se e se tornam mais estruturados à medida
que o contato com novos objetos e condições diversificadas contribuem para o
estabelecimento dos lugares. Se o lugar é um espaço com significados e valores,
também é pertinente pontuar que a complexidade presente nas noções adultas
206 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

de espaço e lugar estão fortemente marcadas pelos símbolos de intimidade e de


proximidade intrínsecas a cada cultura (Tuan, 2013).
Com essas informações sobre contexto, espaço e lugar, e considerando o
caráter social do ser humano, é possível afirmar que o seu ambiente de adaptação
evolutiva foi fortemente marcado pelas experiências em redes sociais (Bussab,
Ribeiro & Otta, 2006).

Redes sociais na internet – um espaço para interação social


A sofisticação tecnológica de hoje pode fazer com que as pessoas tendam a
subestimar aquelas conquistas obtidas pelos ancestrais em seus contextos tribais.
É preciso reconhecer que a tecnologia da sociedade industrial atual é fruto dos
desdobramentos de um sistema de vida baseado na caça e na coleta (Bussab,
Ribeiro & Otta, 2006).
Na trajetória evolutiva dos hominídeos, a comunicação com os demais
membros do grupo foi de grande importância. Para aumentar as chances de
sobrevivência, a interação grupal exigia a capacidade de se comunicar, de conhe-
cer as reações dos demais, de distinguir entre aliados e rivais (Winston, 2006).
O ambiente ancestral, constituído pelo ambiente físico e pelo conjunto de
relações estabelecidas em um grupo pequeno de caça e coleta, impôs a neces-
sidade de relações sociais de proximidade para que, através do que viria a ser
chamado de cultura, a espécie tivesse aumentadas suas chances de sobrevivência
(Bussab e Ribeiro, 1998). Quando essas relações sociais se mantêm ao longo
do tempo entre indivíduos interativos, é possível que elas se tornem um padrão
particular do grupo onde há trocas mútuas entre os indivíduos, as relações com
seus pares e o sistema social emergente nesse contexto (Foley, 2003).
Com a constituição de grupos sociais interativos e complexos, conforme
assinalado por Varrella, Santos, Ferreira e Bussab (2017), o cérebro foi se tor-
nando cada vez mais social (Shultz & Dunbar, 2010) pois a inserção em um
ambiente cultural permitiu o aprimoramento da vida social em si e o estímulo
à formação de redes neurais especializadas que foram selecionadas para garantir
o comportamento cultural (Varrella, Santos, Ferreira & Bussab, 2017).
Sabendo da importância da interação social para a desenvolvimento de
capacidades adaptadas ao ambiente, a conclusão a que se chega é que as redes
sociais são um fenômeno surgido muito antes das possibilidades advindas das
conexões entre computadores (Moura, 2020).
Se antes a capacidade para trocar informações figurou como peça impor-
tante na aquisição de estratégias que maximizaram a sobrevivência, atualmente a
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 207

comunicação entre as pessoas tornou-se bastante dinâmica devido o surgimento


das redes sociais estabelecidas e mantidas nos ambientes que puderam se consti-
tuir a partir das modernas tecnologias digitais (Oliveira & Albuquerque, 2021).
Em comparação com um passado recente, nos dias atuais são perceptíveis
as mudanças na forma como as pessoas interagem entre si. Isso porque o desen-
volvimento de aparatos interligados através da internet criou possibilidades até
então inexistentes em um mundo onde a comunicação acontecia sem mediação
das tecnologias de informação e comunicação.
Nicolaci-da-Costa (2004) compreende as atuais tecnologias de informação
e comunicação como um conjunto de tecnologias em microeletrônica, compu-
tação, telecomunicações, radiodifusão e optoeletrônica que originam o “espaço
dos fluxos”. É nesse espaço, com suas especificidades tecnológicas e com as
interações sociais digitalmente mediadas, que se constitui uma dinâmica que
caracteriza o que a autora identifica como a “sociedade em rede”.
O que Nicolaci-da-Costa (2004) chama de espaço dos fluxos, Lévy (1999)
identifica como “ciberespaço”2, o espaço de comunicação estabelecido a partir
da interconexão de computadores e que se caracteriza por uma infraestrutura
material de comunicação digital, pelas informações que nele são compartilhadas
e pelas interações que as pessoas estabelecem quando nele circulam.
O ciberespaço pode ser entendido, nas palavras de Lemos (2008), como
um conjunto de redes de computadores e um espaço constituído em um am-
biente simulado. Mas ao contrário do que se possa pensar, o ciberespaço é uma
entidade real, que complexifica a realidade na medida em que a torna maior
(Lemos, 2008).
A existência do ciberespaço se deve, entre outros fatores, ao conjunto de redes
planetárias de base telemática denominada de internet. O que hoje se conhece
como internet foi criado com a rede ARPANET, no período da Guerra Fria, pelo
departamento de defesa dos Estados Unidos, para garantir a manutenção de suas
informações estratégicas (Lemos, 2008).
As mudanças produzidas pelo surgimento da internet foram sem precedentes
na história da humanidade. Através dela as pessoas puderam trocar informações das
mais variadas formas, instantaneamente e em dimensão planetária (Lemos, 2008).
Essa realidade pode ser constatada nos dias atuais onde a comunicação através

2
 egundo Lévy (1999), o termo “ciberespaço” foi criado em 1984 por William Gibson em seu ro-
S
mance de ficção científica denominado Neuromante.
208 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

de dispositivos móveis é um canal forte e dominante no estabelecimento de redes


sociais, como nos mostra Park (2014).
Nos últimos anos, a internet e o telefone celular produziram um impacto
grande sobre as relações interpessoais por permitir, entre outras coisas, que as
pessoas pudessem interagir de uma maneira com a qual não estavam acostuma-
das (Love, 2005) e reconfigurando as suas noções de temporalidade e espaciali-
dade. A compreensão hodierna do tempo e do espaço está fortemente associada
ao ambiente comunicacional da cibercultura que desterritorializa as relações,
tornando-as desprendidas dos ambientes físicos, e lida com a noção de tempo
segundo a velocidade da vida contemporânea (Lemos, 2008; Martino, 2014).
Ainda em relação à reconfiguração das noções de tempo e espaço, Hatuka
e Toch (2014) argumentam que o uso de telefones celulares com acesso à internet
proporciona o surgimento de um espaço de interação com características bem
distintas quanto aos limites físicos dos espaços fora do ambiente digital3 e aos
códigos sociais. Para melhor conhecimento e compreensão do ambiente digital,
estes autores sugerem que tal espaço seja visto como um “território pessoal-
-privado portátil” (portable private-personal territory) (Hatuka & Toch, 2014)
construídos pelas pessoas com suporte da tecnologia digital. Nesse território
pessoal-privado portátil a estrutura temporal da comunicação também deve ser
citada porque, diferentemente da conversa síncrona nos ambientes fora da inter-
net, a ambiência digital permite que as interações ocorram de forma assíncrona,
ou seja, com um espaço temporal entre as mensagens. A comunicação mediada
pela tecnologia digital pode ser tanto síncrona quanto assíncrona (Baym, 2010).
Em meio a essas transformações, tornou-se comum o uso do termo “redes
sociais” referindo-se às redes nos ambientes digitais. É preciso ressaltar que o
conceito de rede sociai foi desenvolvido pelas Ciências Sociais para explicar
certos tipos de relações entre as pessoas. Ao utilizar o conceito de rede social
para definir o ambiente da internet, é preciso que haja a transposição do modelo
de análise social para o espaço digital (Martino, 2014).
Martino (2014) afirma que a rede social pode ser compreendida como
um conjunto de relações humanas pautadas pela flexibilidade de sua estrutura
e pela dinâmica de seus participantes. Pontes, Pires, Ribeiro e Freire (2019)

3
 ssim como no trabalho de Nejm (2016), não serão usados aqui, para evitar anglicismos, as expres-
A
sões online e offline. O termo “nos ambientes digitais” será empregado para se referir à online, ao passo
que o termo “fora dos ambientes digitais” equivalerá ao offline.
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 209

referem-se às redes sociais como um entrelaçado de relações onde circulam


recursos materiais e imateriais de seus participantes; as relações desenvolvidas
pelas pessoas em um sistema social específico.
As redes nos ambientes digitais desempenham um papel crucial na vida
de adolescentes e crianças conectados. Ainda que as tecnologias específicas
mudem, elas fornecem às crianças e aos adolescentes um espaço para conviver
e se conectar com seus colegas. As relações digitalmente mediadas complemen-
tam ou suplementam os seus encontros face a face. Mesmo que os espaços se
transformem, os princípios básicos de interação social nos ambientes digitais
não são substancialmente diferentes daqueles dos ambientes fora da internet
(Boyd, 2014).
Para uma análise mais precisa de como a mediação tecnológica digital
reconfigura os padrões de interação de crianças e de adolescentes, é necessária
a identificação das particularidades dos ambientes digitais (Ribeiro, Nejm &
Miranda, 2014). O site de rede social (social network site) pode ser tomado como
exemplo para análise por ser uma plataforma de interação onde os usuários
constroem seu perfil, articulam publicamente seus conteúdos para serem vistos
por outros usuários e entram em contato com o conteúdo que outros usuários
compartilham na rede (Boyd & Ellison, 2008; Ellison & Boyd, 2013).
Assim como outros ambientes do ciberespaço, os sites de redes sociais,
devido às propriedades técnicas de sua constituição, apresentam quatro carac-
terísticas que assumem formas particulares quando comparadas aos espaços
fora da internet. Essas características engendram possibilidades que não são
necessariamente novas, mas que, devido às tecnologias que permite a existência
das ambiências digitais, dão forma às interações nestes ambientes. Observando
as dinâmicas de interação e compartilhamento de conteúdos nos ambientes
digitais, é possível afirmar que em tais ambientes o intercâmbio de informação
é marcado pela persistência, pela visibilidade, pela propagação (spreadability) e
pela buscabilidade / pesquisabilidade (searchability) (Boyd, 2011; Boyd 2014).
Persistência, visibilidade, propagação e buscabilidade não são atributos ori-
ginais e exclusivos dos ambientes digitais. Mesmo estando presentes nos espaços
fora da internet, no ambiente digitalmente mediado elas assumem particularida-
des muito específicas. A persistência diz respeito à durabilidade dos conteúdos
que são automaticamente gravados e arquivados quando disponibilizados na
rede. Falar da visibilidade é ressaltar que a um determinado conteúdo pode
chegar à uma audiência bem mais ampla que na interação face a face. A pro-
pagação de conteúdo é marcada pela facilidade com que este é compartilhado.
210 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

E a buscabilidade é a propriedade de procurar o conteúdo específico através de


mecanismos de busca (Boyd, 2011; Boyd 2014).
Devido a essas quatro qualidades, diversos ambientes no ciberespaço, inclu-
sive os sites de redes sociais, são vistos como um Networked Publics4. A definição
deste termo abarca a noção de que nos ambientes digitais as pessoas fazem parte
de um público interligado a partir de uma coletividade imaginada resultante da
interseção entre pessoas, tecnologias e práticas (Boyd, 2011; Boyd, 2014).
As propriedades, as condições e as dinâmicas de um networked
publics ajuda a compreender o contexto de interação para muitas crianças e
muitos adolescentes hoje em dia. O jeito que esse público interage e compartilha
informações nos networked publics faz com que essas ambiências digitais, além de
espaços para troca de discursos e opiniões, sejam um ambiente para a formação
de uma identidade social (Nejm, 2016).
A ampliação das conexões sociais e a busca por recursos, por benefícios e
por diversão, por exemplo, refletem o quanto o estabelecimento e a manutenção
de redes sociais humanas tem sido modificados. A análise desse contexto pre-
cisa ser atenta e cuidadosa porque, mais que ameaça à ordem vigente antes da
interconexão entre computadores, os sites de redes sociais, e demais ambientes
no ciberespaço, materializam possibilidades que precisam ser analisadas criterio-
samente a partir dos contextos socioculturais onde estão inseridas (Baym, 2011).

Imaginando o ciberespaço como um ambiente de desenvolvimento


Apesar de terem características próprias e muito diferentes entre si, não é
possível afirmar a existência de uma separação total entre os ambientes digitais e
os não digitais. Nejm (2016), baseando-se em Boyd (2011), aponta que além da
persistência, da visibilidade, da propagação e da visibilidade, os networked publics
e demais espaços da internet também são marcados pela ausência de elementos
objetivos que fixam as fronteiras entre as dimensões sociais, espaciais e tempo-
rais dos ambientes da internet e as dos que estão fora dela. Boyd (2011) afirma
que estas diferentes ambiências possuem contextos colapsados (collapsed contexts).
Estando em contato nos diferentes networked publics e nos ambientes
fora da internet, as pessoas sempre interagem em lugares (Tuan, 2013) que se

4
Nejm (2016) relata a dificuldade de tradução do termo publics que se refere tanto a um espaço público
quanto a uma potencial audiência. Por isso é possível que a tradução de Networked Publics possa ser
“espaço público em rede” ou “públicos em rede”, dependendo da dimensão a que se faça referência.
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 211

sobrepõem regularmente (Boyd, 2011). Os ambientes digitais e aqueles fora


da internet não possuem domínios desconectados e separados entre si por uma
fronteira nítida. Seus limites são confusos e se constituem fluidamente fazendo
com que ambientes analógicos e digitais façam parte de um mesmo todo (Al-
meida, Delicado, Alves & Carvalho, 2014).
A sobreposição desses lugares se faz notar nas vezes em que, mesmo em
meio a uma interação em ambiente não digital, os ambientes na internet são vi-
sitados para diversas ações. A partir da informação de Almeida, Delicado, Alves
e Carvalho (2014) é possível afirmar a existência de uma forte conexão entre os
ambientes frequentados por crianças e adolescentes na internet e as atividades
desempenhadas em seus ambientes não digitais. A interação em ambientes
digitais frequentemente revela atividades e interesses associados às vivências
fora do ambiente da internet (Almeida, Delicado, Alves & Carvalho, 2014).
Isso contribui para o questionamento a respeito das ideias de solidão e de
isolamento do mundo exterior. No cotidiano das pessoas ainda existe a suposição
de que a interação no ciberespaço produz isolamento social e, ao mesmo tempo,
devido a um tal isolamento as pessoas podem recorrer à interação digitalmente
mediada. Entretanto, é preciso explicar que interagir em ambientes digitais é,
muitas vezes, estar imerso em uma rede de pares. Isso sem falar na superação de
barreiras físicas em relação a quem está longe ou raramente é visto pessoalmente.
Sem dúvida, a comunicação mediada digitalmente insere crianças e adolescentes
em espaços de sociabilidade que são administrados conforme os interesses do
público que neles interage (Almeida, Delicado, Alves & Carvalho, 2014).
Ponte (2017) ressalta que estar afastado das redes sociais da internet pode
significar exclusão e perda de oportunidades para crianças e adolescentes, con-
siderando, obviamente, as particularidades de cada um desses períodos da vida.
Não poder compartilhar experiências e/ou falar rapidamente com um colega
pode fazer com que a pessoa não participe da construção da memória de certas
experiências coletivas e sinta os reflexos dessa ausência sobre o seu sentimento
de pertencimento a esse grupo. A manutenção dos laços grupais por meio das
ambiências digitais, além de prolongar as relações daqueles que vivem próximos,
faz com que haja a possibilidade de contato com quem está fisicamente distante
com consequente fortalecimento dos laços de afetividade e consolidação da
identidade grupal (Ponte, 2017).
Neste momento, não parece difícil argumentar que os contextos das am-
biências digitais também se tornam contextos que influenciam os processos de
desenvolvimento. Por isso, é preciso conhecer os mecanismos responsáveis pelo
212 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

estabelecimento dos grupos de pares e dos relacionamentos, estudar os proces-


sos de aprendizagem frente às diversas ferramentas e modalidades de contatos
possíveis, observar as influências das tecnologias de informação e comunicação
na construção da personalidade e da identidade, enfim, investigar amplamente
como as particularidades da interação social digitalmente mediada influenciam
o desenvolvimento de crianças e de adolescentes (Wendt & Lisboa, 2014).
Uma das possibilidades de observar processos de desenvolvimento em con-
textos digitais é analisar como esses espaços se constituem em um ambiente para
a interação lúdica. Essa suposição parece ser justificada a partir do trabalho de
Pellegrini e Pellegrini (2013) mostrando que as brincadeiras são especialmente
importantes para a aquisição de inovações no repertório comportamental em
ambientes que são novos, desconhecidos e inexplorados.
Bichara e Gomes (2019) afirmam a possibilidade de as tecnologias digi-
tais estarem presentes de múltiplas maneiras em jogos e brincadeiras. Ainda
que existam muitas perguntas a serem respondidas a esse respeito, as autoras
pontuam que a incorporação dos recursos tecnológicos às brincadeiras é carac-
terística marcante da cultura lúdica do início do século XXI.
Nesse sentido, Becker (2019) traz uma contribuição interessante ao afirmar
que os aparatos tecnológicos podem ser utilizados nas brincadeiras como um
objeto para a brincadeira ou como um meio interacional. Produtos da cultura
atual, os dispositivos tecnológicos serão apropriados criativamente, comparti-
lhados, reconfigurados e reinterpretados por crianças e adolescentes durantes
os episódios de brincadeira de acordo com os objetivos e os interesses do grupo
de pares.
Usar um celular como uma televisão de bonecas ou como câmera filmadora profissional, e
um tablet como refletor indica usos e apropriações criativas desvinculadas da motivação
original desses objetos, ressignificados em prol do contexto de brincadeira e dos interesses
dos brincantes e assim, transformados em elementos lúdicos (Becker, 2019, p. 88).

Os dispositivos digitais também podem ser apropriados pelos sujeitos como


elementos mediadores da interação e proporcionadores de um espaço digital
onde as atividades lúdicas poderão se desenrolar. O que é mais importante,
nesta interpretação, não é o aparelho digital como um brinquedo, mas como um
meio mantenedor da interação em ambiente digital com consequente garantia da
possibilidade de brincar junto com alguém. O que está em jogo é a possibilidade
de utilizar a ambiência digital como espaço para encontrar e brincar com os
amigos (Becker, 2019).
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 213

Se um dispositivo tecnológico disponibiliza um espaço específico para inte-


ração, é primordial compreender as particularidades desse espaço onde crianças e
adolescentes interagem para que se tenha informações consistentes a respeito da
relação entre o contexto e o desenvolvimento. As particularidades sociotécnicas
do ambiente digital e as características das pessoas que nele atuam ativamente,
tais como gênero, idade, nível socioeconômico, grupos de pertencimento, modo
de vida e outras variáveis culturais, são de fundamental importância para a in-
vestigação das interações digitalmente mediadas visto que todos esses elemen-
tos serão criativamente apropriados e inseridos nas atividades lúdicas por quem
compartilha o espaço e as atividades (Becker, Souza & Bichara, 2018).
Como citado anteriormente, um dos grandes efeitos da apropriação das
tecnologias digitais nas atividades lúdicas, principalmente quando se fala de
dispositivos comunicacionais móveis como o celular e o tablet, é a modificação
da percepção do espaço físico e a ampliação desse conceito tomando como
parâmetro as características do espaço digital. A mobilidade e a portabilidade
desses aparelhos se somam ao conjunto de particularidades que transformam e
ampliam a noção de espaço permitindo que crianças e adolescentes não tenham
suas interações restritas a um espaço físico geograficamente situado (Becker,
Souza & Bichara, 2018), mas possam experimentar as relações com seus pares
e com seus grupos de amigos no espaço dos fluidos (Nicolaci-da-Costa, 2004),
no ciberespaço (Lévy, 1999).
Ao perguntar se os ambientes digitais podem ser contexto de desenvolvi-
mento, constata-se a necessidade de verificar se as propriedades técnicas e intera-
cionais desses ambientes podem ser averiguadas a partir dos parâmetros próprios
de uma abordagem evolucionista e se as categorias de análise até então utilizadas
na investigação dos ambientes fora da internet são úteis na pesquisa do ciberespaço
ou se é preciso modificação das categorias existentes ou criação de novas.
Da discussão apresentada por Lordelo (2002), é plausível pensar na uti-
lização dos parâmetros de definição do contexto dos ambientes lúdicos fora
da internet (as características do ambiente, as pessoas interagentes, as relações
estabelecidas, as normas e os valores grupais, por exemplo) para investigar o
contexto digital. Ainda que esses parâmetros necessitem ser adequados a essas
ambiências, eles parecem úteis para as caracterizações de um contexto digital.
No que se refere à análise dos elementos culturais, o conceito de nicho compor-
tamental (Super & Harkness, 1986) também pode gerar reflexões adequadas
envolvendo os ambientes digitais por dar centralidade à estruturação cultural
do processo de desenvolvimento.
214 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

As distinções entre as concepções de “espaço (space)” e de “lugar (place)”


de brincadeira (Rasmussen, 2004) também trazem um potencial de aplicação
aos espaços na internet. Se crianças e adolescentes apropriam-se criativamente
desses espaços para a interação lúdica, as redes sociais na internet e os demais
ambientes virtuais podem vir a se tornar lugar de brincadeira cada vez que eles
sejam associados a elementos simbólicos típicos da cultura lúdica e ganhem
sentido pela experiência das interações neles situadas. Também é preciso que
esses parâmetros sejam ajustados ao estudo das ambiências digitais já que a
definição de espaço se refere a condições geográficas palpáveis que influenciam
os encontros e as relações entre as pessoas.
Tuan (2013) discute o espaço em termos de mobilidade, enquanto o lugar
representa uma paragem, uma espécie de permanência de rotinas, sentidos,
afetos e experiências. Inicialmente, todo espaço é indiferenciado e, a partir do
momento que é vivenciado, transforma-se em lugar à medida que as pessoas
lhe atribuem valores e avaliações. Estudos tomando como premissa essa visão
de espaço poderiam produzir dados sobre as construções simbólicas e os valores
que crianças e adolescentes constroem e utilizam nos ambientes na internet.
As concepções que englobam as modificações ocorridas em um espaço
físico a partir de uma dimensão simbólica que é a ele atribuída, lembram o
conceito de território apresentado por Carvalho e Pedrosa (2003, 2004). O
território é um fenômeno psicossocial de interação e comunicação, marcada-
mente comunitário, que favorece a gestão dos relacionamentos interpessoais
durante as brincadeiras. Ele é definido como o espaço físico apropriado pelas
pessoas que somam às condições materiais a gestão social dos participantes,
as regras criadas para a convivência e os referenciais culturais ressignificados
pelo grupo.
Faz sentido pensar que um espaço digital pode vir a se tornar um território
quando crianças e adolescentes dele se apropriam criativamente e podem geren-
ciar seus contatos e suas relações ao mesmo tempo que constroem suas identi-
dades a partir dos elementos da cultura de pares (Corsaro, 2004, 2009, 2011).
De acordo com essa mesma lógica, Menezes (2014), aproxima as ideias
de Carvalho e Pedrosa (2003, 2004) e Rasmussem (2004), e entende o terri-
tório não apenas como um espaço construído para crianças e adolescentes e
que, muitas vezes, não se tornam um lugar para esses sujeitos. Mais que um
espaço planejado, o território surge da apropriação criativa e se torna um lugar
de negociações e enfrentamentos. Quando crianças e adolescentes gerenciam
suas interações entre si e com o mundo adulto, o território passa a ser um “lugar
Capítulo 11 – Fabricio de Souza 215

político” onde as vozes dos sujeitos que nele interagem podem ser ouvidas e
levadas em consideração (Menezes, 2020).
O exercício de sugestões e suposições apresentado nos parágrafos ante-
riores faz pensar no quanto é preciso investigar e conhecer as peculiaridades
do ciberespaço e como este vem sendo criativamente apropriado para se tornar,
dentre outras coisas, um ambiente de ludicidade e de contato com os amigos e
os colegas. Obviamente não é a intenção supervalorizar as estruturas telemáticas
que dão suporte às redes interconectadas, mas, utilizando o raciocínio de Silva
(2015), compreender que as interações sociais tecnologicamente mediadas tam-
bém são constituídas por uma ampla relação que envolve o suporte telemático, as
características do ambiente digital, os sujeitos que “navegam” nessas ambiências
e a forma com que todos esses elementos se interconectam gerando um contexto
comportamental específico.

Considerações finais
Mais que verdades teóricas, pretendeu-se neste capítulo indicar a per-
tinência de uma “apropriação” das ambiências digitais para verificar se esses
espaços possuem as especificidades que os tornem elementos importantes do
contexto de desenvolvimento. Certamente, a expansão conceitual e a análise
de novos elementos ao suporte teórico atual dependem de investigações con-
sistentes envolvendo as propriedades e os efeitos dos ambientes digitais nas
interações de crianças e de adolescentes. Elaboração teórica e dados empíricos
serão indispensáveis para que se possa assumir, modificar ou refutar as suposi-
ções apresentadas neste capítulo.
Ainda que possa parecer clichê apontar a necessidade de pesquisas sobre
o tema na área de Psicologia do Desenvolvimento, esta é a ação que precisa ser
implementada já que ainda existem poucas publicações que abordem os aspec-
tos psicológicos das interações no ciberespaço. As pessoas mais interessadas
nesse debate poderão observar que muitas referências aqui utilizadas são de
pesquisadores das áreas de Comunicação Social e de Educação. É preciso que
a Psicologia tenha um corpo significativo de dados que permita a compreensão
adequada da mediação digital no fenômeno comportamental e dos impactos
dessa mediação no processo de desenvolvimento.
Tendo em vista a inserção da internet nas rotinas das crianças e dos adoles-
centes, e levando em conta o papel das brincadeiras na apropriação dos espaços
e no estabelecimento de interações sociais, é de grande importância investigar
a interação lúdica nos ambientes digitais para conhecer as maneiras pelas quais
216 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

esses espaços estão sendo apropriados, as características das atividades lúdicas


neles desenvolvidas, os usos dos aparatos digitais móveis, as diferenças e as
semelhanças com as brincadeiras realizadas fora do ambiente digital. É impres-
cindível sinalizar o quanto é preciso compreender como as brincadeiras digital-
mente mediadas e nos espaços na internet contribuem para o desenvolvimento
da identidade e da subjetividade.
Ainda que fazendo várias referências à infância e à adolescência sem ter
caracterizado essas diferentes fases da vida, assinala-se que isso se deu para
mostrar o interesse pelas interações lúdicas de ambos os grupos em ambiências
digitais. Entretanto, isso não significa desconhecimento ou desconsideração
das especificidades de cada um desses diferentes momentos do processo de
desenvolvimento. Cada período precisa ter investigadas suas particularidades
no que concerne à interação com as tecnologias digitais.
Com os interesses demonstrados também não há negligência e descaso
quanto aos riscos que a interação em ambientes digitais pode apresentar para
crianças e adolescentes. É importante que a interação mediada pelas modernas
tecnologias de comunicação e informação não seja vista sob o prisma do pânico
moral a fim de que se possa compreender adequadamente tanto as possibilida-
des trazidas por essas tecnologias quanto as ações a serem tomadas para educar
as crianças e os adolescentes para lidar com os fatores de risco e desenvolver o
repertório adequado para a proteção.
Nas investigações das apropriações criativas que crianças e adolescentes fa-
zem do ciberespaço, para ser coerente com a literatura que fundamenta as supo-
sições apresentadas neste capítulo, não se pode esquecer de dar voz às crianças e
aos adolescentes para que o conhecimento que venha a ser construído não tenha
caráter prescritivo e adultocêntrico. Se o que se pretende é compreender a apro-
priação do ciberespaço por crianças e por adolescentes, é pertinente que suas vozes
sejam fonte de dados e também auxiliem na análise das informações que confir-
mem ou refutem as ambiências digitais como um contexto de desenvolvimento.

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Capítulo 12
“Nenhum pardo vai ser igual a gente, né?” –
A espera pela adoção e as famílias interraciais
Nicole de Carvalho Barros
Patrícia Santos Silva
Liziane Guedes da Silva
Giana Bitencourt Frizzo

Estudos atuais têm sido enfáticos nos danos que o racismo pode acarretar
para as pessoas negras (Kilomba, 2019; Almeida, 2019). Almeida defende a tese
de que o racismo é sempre estrutural, se portando como um elemento organiza-
dor política e economicamente da sociedade, enquanto uma manifestação enrai-
zada da sociedade, muitas não vezes naturalizado (Almeida, 2019). O racismo
estrutura a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade
e violência nos modos contemporâneos de vida, seja nas relações intrapsíquicas,
entre pessoas, instituições ou estruturalmente na sociedade. Já Kilomba aponta
que o racismo é a construção da diferença devido à origem racial ou pertença
religiosa, em que o ponto de partida é a branquitude, com a qual todos os outros
são comparados numa perspectiva do estigma e da inferioridade. Para Kilomba
(2019) e Almeida (2019) é o poder que as pessoas brancas constituem, historica-
mente, para o seu grupo racial que autoriza o racismo a projetar uma sociedade
hierarquizada racialmente, o que envolve poder histórico, político, econômico
e social. Em última instância, “o racismo é a supremacia branca” (Kilomba, 2019,
p. 76, grifos da autora).
Em outra perspectiva, considerando que o racismo atua de modo coti-
diano e duradouro, ele gera estresse persistente é considerado como tóxico ao
desenvolvimento, pois tem uma duração prolongada e intensa, deixando a pessoa
negra, todo seu grupo racial, em um estado de alerta constante, sem algo que o
amenize (Shonkoff, Slopen & Williams, 2021). Mesmo quando a criança não
foi diretamente envolvida na situação de racismo, mas suas mães relataram terem
sido discriminadas, ele pode deixar marcas não apenas psicológicas, mas tam-
bém um aumento nos marcadores biológicos inflamatórios (cortisol e proteína
C-reativa), como mostrou o estudo de Condon et al., (2019) envolvidos em uma
série de doenças crônicas, demonstrando que embora a raça seja uma construção
social, o racismo gera prejuízos bastante palpáveis em todos os campos da vida
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 223

de pessoas negras (Almeida, 2019; Moore, 2012; Kilomba, 2019, CFP, 2017).
Estudos brasileiros também têm mostrado diferenças no cuidado com crianças
negras na creche e na educação básica (Santiago, 2020; Cavalleiro, 2017; Nunes,
2017; Oliveira & Abramowicz, 2010; Silva, 2021), que recebem menos cuidados
afetivos que crianças brancas, além de diferenças no atendimento pré-natal e
assistência na saúde da mulher (Lima, Pimentel & Lyra, 2021), só para exem-
plificar como ele está em diversas esferas de nossa sociedade. Podemos falar
então em um possível adoecimento físico e emocional das crianças expostas ao
racismo, bem como das pessoas negras ao longo de todo o ciclo vital.
É inegável que para as crianças negras, a família tem um papel preponde-
rante na construção e execução de estratégias para lidar com os efeitos gerados
pelo racismo. Em famílias negras que compreendem os impactos profundos
do racismo, tais estratégias são passadas geracionalmente e compartilhadas no
comum de serem pessoas negras (Silva & Noguera, 2020; Silva, 2015; Sil-
va, 2021; Schucman, 2018; Schucman & Gonçalves, 2017; Hordge-Freeman,
2018). No entanto, em casos de famílias interraciais, um movimento diferente
precisa ocorrer, pois a maioria das pessoas brancas antes de se implicarem com
o enfrentamento do racismo, precisam perceber que também tem raça/cor e se
permitir serem atravessadas pela dor que o racismo gera em pessoas negras do
seu convívio e laços de afeto. Nesse sentido, famílias inter-raciais são definidas
como aquelas compostas por ao menos uma pessoa de raça/cor diferente do
que o restante do grupo, por exemplo, em que a mãe e/ou o pai são brancos e
a criança é negra, ou vice-versa. Cabe apontar que uma mesma família pode
ser percebida como inter-racial em um momento e em outro não, dependendo
dos significados que a raça assume em determinado contexto, muito embora,
os conflitos e violências sobre o ponto de vista racial não sejam tão abstratos e
possam causar sofrimento intenso aos membros negros do grupo familiar, prin-
cipalmente devido ao racismo cotidiano (Schucman, 2018; Hordge-Freeman,
2018). Pessoas negras em contato íntimo com a branquitude, compondo um
grupo familiar, por exemplo, podem sofrer de um contínuo e violento choque,
causando, dessa forma, uma separação da sua relação com a sociedade e desor-
ganização psíquica (Kilomba, 2019; David, 2018, CFP, 2017).
Quando se trata de uma criança negra em uma família com adultos cui-
dadores majoritariamente brancos, esse quadro de sofrimento psíquico pode se
agravar, pois, por um lado, a criança ainda não adquiriu um aparato simbólico
para lidar minimamente com esses choques violentos provocados pelo racismo
(e mesmo quando adquirido já é da ordem do traumático); por outro, a maioria
224 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

dos membros de uma família branca está imersa na branquitude, muitas vezes
cega para as questões raciais, sem, portanto, ter ciência da toxicidade de seu
próprio ambiente familiar à criança principalmente, deixando-a desprotegida.
Apesar da branquitude ser uma ideologia presente desde o período da
escravização, apenas recentemente foi reconhecida nos estudos como um meca-
nismo do racismo que reitera os privilégios de pessoas brancas em detrimento da
opressão de não brancos (principalmente pretos, pardos e indígenas quando se
considera a história do Brasil) pela discriminação racial. Os principais estudos
sobre a branquitude (Frankerberg 1999; Bento, 2002; Cardoso, 2011) apontam
que esse mecanismo ocorre por um apagamento da implicação do branco nas
relações raciais, acarretando, por um lado, no silêncio, na omissão e na suposta
neutralidade diante do racismo e, por outro lado, na prática discriminatória
sistemática com objetivo de manter e reproduzir situações de privilégios. Esse
evitamento do papel do branco na história da escravização traz vantagens con-
cretas e simbólicas a esse grupo, pois não o associa a um legado que evidencia
um lugar de privilégio tanto econômico, quanto cultural, desfrutado atualmente
(Schucman, 2014; Bento, 2002).
No discurso, a branquitude é definida como o poder de nomear e circular
na cultura. Pela supremacia branca, a qual associa a brancura a significados
muito positivos, como também, a todo momento dissemina essa associação pela
cultura; a hegemonia branca é definida como padrão de humanidade, onde olha
o outro com uma lente que não se olha a si mesmo, lente essa denominada raça.
Nessa visão, o branco não possui raça, pois é universal; os outros que precisam
ser categorizados em “raças” (negros, indígenas). O branco, dessa forma, possui
o poder de nomear o outro e, ao mesmo tempo, não é marcado por estereótipos
(Frankerberg, 1999).
Bento (2002) desenvolveu alguns dos principais conceitos sobre aspectos
psíquicos da branquitude, entre eles, o pacto narcísico, o qual se refere a um
pacto silencioso (pois como o branco é considerado como universal, não é ques-
tionado como fora do padrão) de apoio e fortalecimento dos considerados iguais
e de invisibilidade dos considerados diferentes. A invisibilização é estratégica,
pois invisibiliza principalmente a parte negra do negro, que seria a dimensão de
sua existência que marca a presença da opressão racial. Essa lembrança realça a
brancura que o branco tanto quer silenciar para que a noção de universalidade
do branco não seja posta em questão, como também para omitir a natureza
relacional intrínseca das relações raciais. A branquitude é um processo transge-
racional e pode atuar tanto de forma consciente quanto de forma inconsciente,
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 225

quando, por exemplo pessoas brancas não conseguem explicar porque pensam
que um homem negro de terno é, necessariamente, um segurança em vez de
um executivo.
Além de serem invisibilizados, os considerados diferentes são excluídos
moralmente, sendo postos além das regras e valores morais. Há uma ausência de
compromisso moral e distanciamento afetivo, comprometendo a capacidade de
se aprender e de se ter uma identificação com um outro considerado diferente.
No entanto, o outro considerado diferente é bastante visibilizado negativamente
quando ascende, ou quando “invade” um espaço que na concepção do branco
não poderia ser ultrapassado (Bento, 1992).
Segundo Piza (1996), algumas características comportamentais cotidianas
da branquitude são: ser algo consciente apenas para os negros; há um silêncio
em torno da raça, não é um assunto a ser tratado; a raça é vista não apenas
como diferença, mas como hierarquia; as fronteiras entre negros e brancos
são sempre elaboradas e contraditórias; há, em qualquer classe, um contexto
e prática da supremacia branca; a integração entre negros e brancos é narrada
sempre como parcial, apesar da experiência de convívio; a discriminação não
é percebida, e os brancos se sentem desconfortáveis quando têm que abordar
assuntos raciais; a capacidade de apreender com o outro, como um igual ou
diferente, fica embotada.
As consequências da branquitude ultrapassam o racismo cotidiano e
atravessam a estrutura de práticas institucionalizadas na sociedade (racismo
estrutural). Nesse contexto, as instituições são apenas a materialização da estru-
tura social, a qual possui o racismo como um de seus componentes orgânicos,
visto como uma norma, e não como uma exceção. No racismo estrutural, um
grupo racial (branco) está sob controle do aparato institucional; no entanto, o
racismo estrutural não se limita apenas à representatividade, pois mesmo que
pessoas negras estejam inseridas em espaços de poder, as ações individuais são
orientadas pelas instituições e pela estrutura da sociedade para discriminar de
forma sistemática grupos racialmente identificados. Nesse sentido, por mais que
pessoas que cometam atos racistas sejam responsabilizadas juridicamente, as
instituições que não reconhecerem o problema das desigualdades raciais estarão
reproduzindo-as (Almeida, 2019).
Os dados sobre adoção no Brasil evidenciam como o racismo estrutural
atravessa todo o funcionamento de uma sociedade. Há um grande número de
famílias formadas inter-racialmente entre pais brancos e filhos pretos ou pardos
nos processos legais de adoção, apesar de haver uma preferência por crianças
226 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

brancas. Em relação à fila de espera, há cerca de 30.000 pretendentes, maioria


de raça/cor branca, para 5.000 crianças em acolhimento institucional, maioria de
raça/cor preta e parda (Eurico, 2018). Pessoas brancas, maioria de classe média
a alta, são as que possuem condições de se ter uma nova criança na família,
enquanto que as famílias biológicas das crianças pretas e pardas não conseguem
mantê-las, tendo os filhos/as destituídos de suas famílias compulsoriamente para
serem encaminhados ao processo de adoção, apesar deste ser o último recurso
para a criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA,
1990). Cabe ainda refletir de que modo o próprio racismo cria as compreensões
de quais famílias têm condições e quais não tem para criar uma criança, sendo
que em muitos estratos socioeconômicos a violência se propaga sem que isso
resulte em perda do poder familiar.
Nesse contexto de formação de uma família inter-racial constituída pela
via da adoção de adotantes brancos e crianças pretas, o racismo e a branquitu-
de podem estar mais agravados, pois os adotantes brancos podem ter passado
uma vida inteira sem nenhuma relação horizontal contínua e/ou empática com
pessoas pretas e pardas, devido ao próprio racismo e ao fato de a branquitude
delimitar e segregar os espaços de circulação e de convivência. Dessa forma,
a adoção pode ser a primeira vez que pretendentes brancos a pais se deparam
forçosamente com questões raciais e tenham que encarar um modo real de incluir
uma criança preta ou parda em seu meio de vida. Além disso, a probabilidade
que a criança preta ou parda a ser inserida na família adotiva ser a única negra
é maior, quando comparada a uma família biológica, o que pode permitir que
o racismo seja praticado cotidiana e deliberadamente, já que o grau do racismo
sofrido também depende do grau de brancura considerado de um certo contexto
tanto micro (familiar), quanto macro (nacional).
Se, por um lado, compactuar com a branquitude faz com que os adotan-
tes permaneçam com e usufruam de privilégios, os quais fornecem condições
estruturais e simbólicas para a formação de uma família (e desfavorece – e
muito – a formação das famílias não brancas), por outro lado, a manutenção
da lógica da branquitude causa uma não pertença de filhos negros em famílias
brancas, ainda mais perversa com crianças pretas, de pele escura. De alguma
maneira, esse conflito é evidenciado quando os pretendentes se deparam com
a realidade da adoção na medida em que tentam conciliar a branquitude com a
inclusão de um possível filho/a negro/a como seu igual (portanto, fora da lógica
da branquitude), já que a maioria das crianças em processo de adoção são pretas
e pardas e a maioria dos adotantes são brancos.
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 227

Esse conflito pode ser tensionado a partir do momento no qual os candi-


datos decidem por uma adoção e preenchem um pré-cadastro quando ingres-
sam com um pedido de habilitação para adoção em um Juizado da Infância e
Juventude. Nessa ficha, os candidatos devem optar por algumas características
da criança já pré-determinadas, entre elas, a raça/cor da criança, havendo as
seguintes opções para essa escolha: branca, preta, amarela, parda, indígena e
sem preferência (CNJ, 2022).
Uma pessoa negra que ascende socialmente é obrigada a lidar com um certo
tipo de racismo, diferente de outras camadas socioeconômicas, não mais pela
ausência de acesso a recursos e bens, mas pela convivência constante com uma
maioria de pessoas brancas que a todo tempo questiona o que essa pessoa negra
está fazendo nesse lugar, seja com perguntas sem sentido, seja com violência di-
reta. A partir dessa reflexão, qual o impacto para uma criança negra que convive
em um território normalizado por e para pessoas brancas? Se a capacidade de
identificação e de aprender com o outro ficam comprometidas na branquitude,
como será a relação das mães e/ou pais brancos com filhos(as) negros(as)? Seria
possível essas futuras mães e/ou os pais brancos quebrarem o pacto narcísico da
branquitude ao menos em prol do bem-estar do seu filho(a)? E se fosse possível
essa quebra, como essas mães e/ ou pais poderiam realizá-la? Essas foram algu-
mas das questões que inspiraram a reflexão deste capítulo.
Aqui discutiremos dois grandes grupos relacionados a escolha da raça/cor
da criança frente a uma adoção: os pretendentes que restringem a raça/cor da
criança (excluem somente crianças pretas ou só aceitam crianças brancas) pelo
desejo de uma criança ser parecida com os pais e/ou por ter medo de não saber li-
dar com situações racistas; e os que incluem uma criança negra (se identificando
como indiferentes quanto à raça/cor), apesar do medo de não saberem lidar com
situações racistas. Essas duas posições podem apresentar diferentes implicações
na futura constituição familiar e serão discutidas no presente capítulo a partir
de algumas falas que inspiraram essa reflexão. Essas falas são oriundas de um
estudo sobre as Expectativas de pais e mães habilitados à adoção inscritos no
Sistema Nacional de Adoção na comarca de Porto Alegre (Frizzo, et al., 2016)
e ilustram as reflexões construídas pelas autoras.

Quando se restringe a raça/cor da criança


A gente só colocou exclusão do negro, ã, pela questão da sociedade [...]. Só porque é negro,
entende? (se referindo a uma cena racista que testemunhou). E isso, pra ele marca muito
(se referindo ao companheiro), a gente fica com medo assim de como a gente vai lidar
228 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

com isso? Daí a gente até botou pardo, porque tem pardos que às vezes são tão clarinhos,
que, claro que nenhum vai ser igual a nós, um pardo. [...]. Ele é branco de olho bem
azul (se referindo ao companheiro). Então nenhum vai ser igual, mas pelo menos não
dá aquele contraste assim, de “ó, aquele lá”, sabe. [...]. A gente tem muito medo disso.
Né, da sociedade. E eu me pergunto também, mas será que o pardo também não vai
sofrer isso? Né, mas é que daí se tu botar só branco, aí sim que vai ficar muito mais
difícil (se referindo ao maior tempo para adoção caso o casal restringisse ainda mais as
características da criança) – Caso 3, (mulher branca).

Como exemplo da vinheta acima, é possível perceber que há uma pre-


ferência por crianças brancas. E que, quando ocorre a inclusão de crianças
de outras raça/cor, apenas o pardo é percebido enquanto possibilidade para a
adoção. A categoria mestiço surgiu dentro do contexto histórico do ideário de
branqueamento elaborado pela elite brasileira após a “abolição” da escravização,
como um processo imaginado para se chegar ao branco. Se por um lado, há
uma indefinição social do mestiço, dificultando a identificação de uma própria
identidade mestiça ou preta, a branquitude identifica com facilidade aqueles que
não fazem parte do grupo racial branco. O mestiço significa, nesse contexto, um
lugar de negação do negro por parte do branco, e, ainda, um lugar de afirmação
da pertença dentro do grupo negro, fazendo surgir a categoria pardo (Munanga
& Gomes 2006; Gomes, 2017).
A ideologia do branqueamento associado ao mito da democracia racial,
que defende que no Brasil, negros, brancos e indígenas vivem harmoniosamente,
assim como os estereótipos negativos relacionados à ascendência africana, criou
uma cisão entre as pessoas pretas e a pessoas pardas no Brasil, tornando ainda
mais difícil a construção de um pertencimento racial e luta em comum pelos
direitos do povo negro no Brasil. Na esteira desses acontecimentos, o termo
pardo ganha força, denotando não apenas uma cor de pele mais clara, mas
sobretudo um distanciamento dos significados atribuídos a ser negro no Brasil
(Gomes, 2017). Por esse motivo, o movimento negro historicamente tem atuado
na promoção de uma identidade racial negra positivada, que inclua tanto pretos
como pardos, baseada nas culturas africanas e afro-brasileira e com a história
de seus ancestrais (Gomes, 2017; Schucman, 2018).
A cor parda, no contexto de restrição da cor preta da criança pelos ado-
tantes, é uma conciliação entre uma criança de pele não tão escura, ou seja, não
tão preta, mantendo-se uma esperança em não estremecer as bases da própria
branquitude por não ter que se deparar com uma criança marcadamente negra
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 229

em seu convívio íntimo; e um tempo de espera não tão longo para a adoção. Por
haver poucas crianças brancas nessa situação, e muitas pessoas interessadas em
adotá-las, restringir o perfil apenas para crianças brancas aumentaria indefini-
damente o tempo de espera, tempo esse que não está a favor dos pretendentes
- que geralmente possuem mais idade, visto que para a maioria das famílias
a motivação para adoção é devido a situações de infertilidade (Schwochow &
Frizzo, 2021; Rampage at al., 2016).
Schucman (2018) fala sobre o mecanismo de negação da alteridade para
possibilitar um relacionamento afetivo quando o racismo é enraizado. A pessoa
pode ser negra, mas o que importa é ela não ser chamada de negra, amenizar
a sua cor (ou até fantasiar sem cor) para poder amá-la (Kilomba, 2019; Hord-
ge-Freeman, 2018). Ser chamado de moreno ou de outras cores que visam
“amenizar” a cor negra, revela uma estrutura hierárquica entre negros de pele
clara e negros de pele escura. Quando uma pessoa parda é considerada não-
-negra, não é pela sua aproximação ao branco, mas pela possível amenização
de sua origem negra em comparação com pessoas com tons de pele mais escura
(Fanon, 1983). No processo de adoção, a possibilidade de poder excluir as pos-
síveis crianças reconhecidas como pretas e incluir apenas as reconhecidas como
pardas materializa em práticas institucionalizadas esse mecanismo subjetivo do
branqueamento pela amenização da cor.
A invisibilidade do negro seria um dos principais sintomas da branquitude,
pois esse mecanismo é um elemento importante para a identificação do branco
(Bento, 2002). Reconhecer a parte negra do negro que mais remete à opressão
racial, exporia a associação direta entre opressão racial e privilégios, ameaçan-
do a manutenção da branquitude (Mbembe, 2014; Shucman, 2018). Por isso,
evita-se a qualquer custo a aproximação entre brancos e negros, mesmo que o
discurso fique ambíguo e contraditório. Ao mesmo tempo que pessoas brancas
reconhecem o racismo, também o praticam diariamente pois não o identificam
como presentes em si mesmo e com característica estrutural. Desse modo, a
branquitude permite a construção de um discurso distorcido, pois não inclui o
enunciante desse discurso nem no ato, nem na solução.
Esse evitamento dos brancos em reconhecer o racismo como estrutural
resulta, portanto, na exclusão da possibilidade de haver vínculos familiares
com as pessoas marcadamente negras. Nessa situação, o adotante branco,
apesar de reconhecer a existência do racismo, exclui sua própria responsa-
bilidade e implicação nas relações raciais para dentro e além do seu seio
familiar. Logo, em um contexto em que parece ser inevitável construir um
230 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

vínculo familiar com crianças negras, sobretudo de pele escura, o preço que
essa criança precisaria pagar para fazer parte da família seria o de aceitar o
apagamento da sua raça/cor, “amenizando-a”, como pré-requisito para ter o
direito novamente à família, desejo latente da maioria das crianças e adoles-
centes inseridas no SNA.
Nesse sentido, no qual os adotantes brancos seriam as primeiras referências
de cuidado, ou seja, através dos quais a criança apreenderá seu modo de existir
no mundo, quais poderiam ser os impactos para uma criança considerada parda
em uma família que optou pela exclusão de crianças pretas, sendo ela reco-
nhecida como “não tão negra”? . Nesse contexto, é reencenada a violência do
abandono através do apagamento da raça/cor das crianças pretas e pardas, pois
negar a raça/cor da criança deixa implícito que, a qualquer tempo a criança será
desmascarada e percebida como um elemento estranho e excluído da família,
simbolicamente ou de modo prático, por não poder corresponder ao idealizado.
Dessa forma, as crianças negras vão compreendendo que é preciso rejeitar a sua
autoimagem, na tentativa de se afastar dos estereótipos negativos associados aos
negros. A partir disso, o corpo não é vivido como fonte de prazer, pelo contrário,
é estabelecida uma relação persecutória com as características que remetem à
raça/cor negra, prejudicando a construção de sua subjetividade (Silva, 2021;
David, 2018; Kilomba, 2019; CFP, 2017; Fanon, 1983), como vemos no artigo
de Santiago em que a uma criança negra pequena refere que a boneca negra não
precisa de ajuda para dormir, ou comer, porque ela não é “nenê”, ela é preta”
(Santiago, 2020, p. 10).
Apesar de haver esses fenômenos psíquicos que subjetivam a branquitude
(pacto narcísico, exclusão moral, distorções e ambiguidades no discurso), nem
sempre as pessoas brancas têm consciência desses processos. Aliás, quanto mais
inconscientes forem esses mecanismos, mais resguardada permanece a branqui-
tude. Nesse contexto, a principal justificativa manifesta para exclusão de crian-
ças marcadas como pretas ou pardas não é o pacto narcísico entre o grupo racial
branco, mas sim essa expurgação do racismo sendo praticado pela sociedade: o
medo ou o não saber lidar com situações racistas devido ao provável contraste
entre a cor de pele das mães e/ou pais e da criança. Não há um questionamento
de atitudes racistas no próprio seio familiar, mas uma projeção de que outros
serão racistas. Sim, o racismo existe e é importante reconhecê-lo como presente,
mas para que ele saia de uma posição cristalizada e estruturante em nossa socie-
dade, é preciso responsabilizar a própria branquitude pelo racismo, começando
pela racialização dos brancos.
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 231

Incluem todas as raças/cores


Mas já estando aberto a uma criança negra, por exemplo, eu não sei como vai ser né.
Eu não passei por, eu sou branca, eu não passei por discriminação, é algo que ta longe
da minha realidade. Então eu não sei se como mãe eu vou poder ajudar o meu filho a
superar essas questões da forma que ele for precisar tanto na sociedade, como na minha
família. Então, o que eu tento fazer mais é preparar eles (se referindo à família), assim,
pra que eles estejam abertos. – Caso 1, (mulher branca).

Como exemplo da vinheta acima, quando adotantes brancos incluem a


possibilidade de uma filha ser reconhecida como uma pessoa preta, apesar do
medo de uma sociedade racista, reconhecem que tanto dentro quanto fora do
núcleo familiar, a criança negra provavelmente irá enfrentar situações racistas.
O reconhecimento da existência do racismo estrutural e das possíveis manifesta-
ções de um racismo sutil promovido até pela própria família da enunciante, leva
a uma busca em melhor compreendê-lo, assim como, a preparação da família
para lidar com questões racistas.
O reconhecimento da implicação do branco nas dinâmicas raciais passa
pelo reconhecimento da existência de uma identificação racial branca. Em al-
guns casos de adotantes brancos que incluem crianças marcadas como pretas
ou pardas, parece que já há um início desse movimento, mesmo que o filho/a
negro/a esteja ainda apenas na imaginação. Diferente do primeiro subitem deste
capítulo, o discurso dos que incluem crianças pretas apresenta uma maior per-
meabilidade no que é manifesto quanto às relações raciais, com menos ambi-
guidades no discurso, indicando uma maior consciência e entendimento sobre
as implicações da branquitude.
Em Helms (1990), se argumenta como o branco poderia desenvolver uma
possível identidade racial branca não-racista, de modo que aceite sua própria
branquitude e as implicações culturais, políticas e socioeconômicas de sua po-
sição, possuindo uma visão do seu eu como um ser racial. O autor verificou seis
estágios de desenvolvimento da identidade racial branca: (1) “contato” embasado
nos estereótipos aprendidos – curiosidade primitiva ou medo de pessoas negras;
(2) “desintegração” embasada por um contato mais próximo – desconforto da
culpa, vergonha pelo reconhecimento das próprias vantagens do sistema racista;
(3) “reintegração” embasada pelo questionamento da definição de branco e da
justificação do racismo – sentimento de alienação em relação a outros brancos
em fases anteriores; (4) “falsa independência”; (5) “imersão / emersão” embasada
pelo desconforto com a sua própria branquitude – busca de uma nova maneira
232 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

de ser branco; (6) “autonomia” embasada por uma internalização de uma nova
concepção do que é ser branco – processo continuamente em andamento sem
um ponto de chegada, estando aberto a novas informações e novas maneiras de
pensar sobre variáveis culturais e raciais.
O que faz com que alguns adotantes estejam mais sensibilizados em relação
às questões raciais e outros não? Uma maior sensibilidade pode ter sido desenca-
deada quando deparados a obrigatoriedade de escolher uma raça/cor da criança?
Essa sensibilidade pode ter sido instigada durante o período de espera da criança?
Essas perguntas vão guiar a discussão a seguir.
O convívio familiar afetivo de uma pessoa branca com uma pessoa negra
pode desencadear essa consciência, desde que a convivência não esteja em uma
relação hierarquizada. O sujeito branco ao sentir um duplo pertencimento, ora
privilegiado por ser branco, ora discriminado por estar ao lado de negros, pode
se deslocar de si para uma outra posição subjetiva, reconhecendo a alteridade
independente da sua condição (Schucman, 2018). Podemos perceber algumas
marcas sociais importantes dos adotantes brancos com uma maior conscienti-
zação dos aspectos da sua própria branquitude: casais que se reconheciam como
inter-raciais; ou que conviviam intimamente com familiares e amigos com raça/
cor não-branca; como também casais homoafetivos. A aproximação de uma per-
cepção da discriminação causada pelo preconceito racial e de orientação sexual
podem diminuir as barreiras da exclusão moral da branquitude.
Outro aspecto evidenciado nesse contexto de maior conscientização dos
processos da branquitude (mesmo que isso não seja explícito dessa forma) é o
quanto esses futuros adotantes brancos possuem uma expectativa de poderem
contar com grupos de apoio à adoção para poderem conscientizar e vivenciar
sentimentos e experiências relacionados à adoção, incluindo questões raciais,
a partir da troca com outros adotantes, como também com os auxiliares dos
grupos (Silva, et al., 2022). Nesse contexto, seria importante que ao menos
esses profissionais estivessem qualificados quanto ao letramento racial para
propiciar novos agenciamentos do sujeito pelo questionamento do regime de
verdade racista atual.
O desenvolvimento do letramento racial implica em uma queda de um
regime de verdade racista, e com isso, uma transformação do próprio entendi-
mento de si, já que as referências antes presentes e naturalizadas como verdades
cristalizadas e absolutas são agora postas em dúvida. Há um movimento de
desconstrução dessas “ditas verdades”, ao mesmo tempo que há um movimento
de novas construções das relações.
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 233

O discurso da negritude, nesse sentido, exerce um papel fundamental,


tanto na denúncia e desconstrução do regime de verdade vigente, quanto na
construção de novas relações de uma forma racializada. Nesse sentido, o letra-
mento racial propõe a transformação das perspectivas e intenções dos indivíduos,
produzindo outros sujeitos que percebam a produção da sua racialidade e que,
com isso, possam responder de uma forma racializada a ambientes e estruturas
raciais (Severo, 2021).
O exercício do letramento racial é realizado por uma prática de leitura de
obtenção e assimilação da verdade transformando-a em um princípio de ação
permanente no sentido de: reconhecer o valor simbólico e material da branquitude;
definir o racismo como um problema social atual; compreender que as identidades
raciais são resultado de uma construção social; tomar posse de um vocabulário
racial que facilite a dialética sobre a raça, racismo e antirracismo; apreender a
habilidade de traduzir e interpretar códigos (não ditos) e práticas racializadas; e
de percepção da interseccionalidade do racismo com as desigualdades de classe,
as hierarquias de gênero e a heteronormatividade (Twine & Steinbugler, 2006).
Alguns adotantes brancos que incluem crianças pretas e pardas como
possível filho/a se sentem convocados a se permitirem realizar esta descons-
trução e uma construção nova de uma racialização do branco pelo letramento
racial. Dessa forma, eles poderão se tornar responsáveis pelo desenvolvimento
de reflexões e ações que possibilitem transformações efetivas no enfrentamento
do racismo estrutural, incluindo o cotidiano e as instituições (Gomes, 2017;
Carreira, 2018).

Considerações finais
Ao pensar o racismo no contexto da adoção, há variados agravamentos: a
vítima da violência racial muitas vezes é uma criança, que deveria ser protegida;
não raras vezes, como também é a nova organização familiar que reproduz o
racismo no cotidiano, justamente as figuras que deveriam protegê-la. Vários
estudos demonstram que o impacto do racismo na infância acompanha as pes-
soas negras ao longo de suas vidas (Kilomba, 2019; David, 2018; Silva, 2021;
Shonkoff et al., 2021). Destaca-se que os efeitos da vivência cotidiana do racis-
mo, seja ele direto ou “sutil”, pode ter efeitos avassaladores tanto para a criança
quanto para a família durante o período de construção de novos vínculos na
família por adoção. Ainda que essa prática não seja intencional, considerando
que o grupo familiar pode, ainda, estar despreparado para lidar com as relações
étnico-raciais, é preciso que as pessoas adultas envolvidas na relação possam
234 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

efetivamente assumir essa posição de cuidado, inclusive em relação às necessi-


dades étnico-raciais.
Dito isto, quando as famílias inter-raciais refletem sobre as diferenças
raciais e agem conscientemente numa perspectiva antirracista, podem evitar
intensos sofrimento e prevenir violências diárias para os integrantes negros da
família. O movimento necessário, nesse contexto, portanto, é trazer o debate
racial à tona, através da racialização dos cuidadores brancos para que haja um
ambiente no seio familiar propício a uma maior proteção da criança e adolescente,
e das pessoas negras de modo geral, contra o racismo, principalmente nas suas
facetas as mais sutis e cotidianas. Deste modo, talvez seja possível construir novas
formas de relacionamento e existências entre pessoas negras e brancas, adultos
e crianças, que considerem e assumam a racialidade que já está presente em
nossas vidas, mas agora propiciando compreensão mais profundas, nos âmbitos
histórico, econômico, cultural e subjetivo, que vai além do indivíduo, mas que
ainda assim depende de sua implicação para uma mudança de paradigma social.
Em termos do processo de habilitação para adoção, destaca-se a neces-
sidade de refletir sobre os significados e efeitos da presença da classificação
raça/cor nos formulários de ingresso à adoção, trazendo-a para o centro do
debate e investigando inclusive a raça/cor dos pretendentes, e não apenas das
crianças. Não se trata de negar a importância da raça/cor para a adoção, pelo
contrário, trata-se de afirmar que essa informação é tão importante que precisa
transversalizar todo o processo de adoção, inclusive avaliando as reais condições
de uma família acolher uma criança negra, seja ela preta ou parda. Portanto,
percebe-se a necessidade urgente de se abordarem as questões de educação para
as relações étnico-raciais e letramento racial com candidatos à adoção desde os
cursos de preparação de pretendentes que buscam o processo de habilitação,
especialmente candidatos(as) brancos(as) que considerem adotar crianças pretas
e pardas. Sabe-se que a prática dos técnicos judiciários ainda é bastante desigual
e leva em consideração a experiência individual de cada profissional, contudo,
o debate das relações étnico-raciais na adoção se tornou, inegavelmente, um
tema premente a ser debatido, como percebemos a partir dos relatos das famílias
adotivas (Silva, et al., 2020; Rufino, 2002; Twine, 2004). Algumas iniciativas
bem recentes como do Tribunal de Justiça de São Paulo5, ao promover debates

5
 alestra online: Desvelando o racismo: a importância de se discutir sobre adoção inter-racial com
P
os pretendentes a adoção – https://www.tjsp.jus.br/InfanciaJuventude/BoletimEletronico/Noticia?
codigoNoticia=74408&pagina=1
Capítulo 12 – Nicole de C. Barros, Patrícia S. Silva, Liziane G. da Silva e Giana B. Frizzo 235

sobre o letramento racial, por exemplo, parece ser um caminho promissor para
esse objetivo, bem como o diálogo mais estreito com famílias que já lidaram com
esses desafios, bem como com instituições do terceiro setor como o CEERT-SP
que tem visibilizado essa questão há mais tempo (Teixeira, 2016).
Famílias que não convivem com pessoas negras em lugares sociais diver-
sos, que nunca refletiram a respeito dos significados de ser branco ou negro
na sociedade brasileira, ou, ainda, que supõem que a raça/cor é indiferente em
nossa sociedade, muito possivelmente tem um caminho longo a percorrer para
preparar-se para lidar com a complexidade da criação de uma criança negra
saudável e que tenha orgulho de sua raça/cor. Nesse sentido, é preciso recorrer às
estratégias já existentes, e traçar novas, para que cada vez mais pessoas brancas se
eduquem para as relações étnico-raciais (Silva, 2015; Silva, 2021; Severo, 2021;
Schucman, 2018; Nunes, 2017). Esse movimento passa por participar de grupos
de apoio sobre adoção, conviver com outras famílias interraciais, conviver com
famílias negras em posições sociais não hierarquizadas, participar ativamente
de espaços de atuação antirracista, consumir materiais literários e audiovisuais
que visibilizem a presença de pessoas negras nos mais variados lugares. A par-
tir desse movimento, cada vez menos haverá espaço para o estranhamento da
diversidade étnico-racial dentro da família adotiva (e quiçá biológica) e esta-
remos efetivamente garantindo o direito de crianças negras, pretas e pardas, a
constituírem uma família que as ama pelo que elas são, e não pelo que (ou com
quem) se parecem ou deveriam ser.

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Capítulo 13
Diretrizes para a oferta da educação
infantil integral e em tempo integral
Jaqueline Lima Fidalgo e Silva
Cláudia da Mota Darós Parente

O presente capítulo tem como objetivo sistematizar diretrizes educacio-


nais, referenciais e conceitos relativos à educação infantil, à educação integral e
à educação em tempo integral nessa etapa da educação básica.
Muitos associam a criança ao futuro. Por vezes, enxergamos as crianças
como a geração do amanhã, aqueles indivíduos que irão continuar a nossa histó-
ria. Entretanto, seria importante pensarmos nas condições de vida das crianças
que vivem hoje ao nosso redor: como estão vivendo e quais políticas estão sendo
pensadas para a infância na atualidade?
No âmbito dos sistemas de ensino, a educação infantil tem importância
fundamental para o desenvolvimento das crianças. Por isso, existem diretrizes es-
pecíficas para essa etapa da educação básica, o que orientará os sistemas de ensino
na organização de suas propostas curriculares e os educadores no desenvolvimento
do trabalho pedagógico junto às crianças.
Historicamente, a educação infantil é resultado de movimentos e de lutas
sociais e políticas que buscaram garantir os direitos das crianças. A história da
educação infantil está diretamente relacionada à história da infância, da família,
da mulher, do trabalho, da urbanização e da sociedade de forma geral, pois ela
está vinculada à concepção de criança construída em cada sociedade e momento
histórico. Por essa razão, a história das instituições de educação infantil não está
representada numa linha contínua de acontecimentos que se somam; é resul-
tado de diferentes forças e motivações, tendo recebido influências de diversos
contextos históricos e sociais (Kuhlmann, 1998; Tomé, 2014).
No Brasil, desde a Constituição Federal Brasileira em 1988, a educação pas-
sou a ser um direito fundamental, incluindo a educação infantil. O Plano Nacional
da Educação (PNE), Lei no 13.005 (2014) definiu como meta a universalização
da pré-escola até 2016 e a ampliação da oferta de vagas em creches para atender
a, no mínimo, 50% da demanda até o final da vigência do plano, em 2024.
Infelizmente, conforme o Relatório do 3o Ciclo de Monitoramento das
Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2020, a universalização da
240 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

oferta de educação infantil para as crianças de 4 a 5 anos não foi alcançada.


Em 2018, a taxa de cobertura atingiu 94%, mas ainda há mais de 300 mil
crianças em idade de frequentar a pré-escola e que estão fora dela. A cober-
tura no atendimento em creches para crianças de 0 a 3 anos alcançou 36%
em 2018; até 2024, não há sinais de que o Brasil consiga atingir a meta de
50% (Brasil, 2020).
Com relação à ampliação do tempo da criança na escola, o PNE prevê a
educação em tempo integral em todas as etapas da educação básica, abrangendo,
no mínimo, 50% das escolas públicas e, pelo menos, 25% dos alunos (Lei no
13.005, 2014). Conforme o Relatório de Monitoramento das Metas do PNE
existe uma tendência de queda na oferta da educação em tempo integral. Em
2019, 14,9% das matrículas eram em tempo integral no país, atingindo 23,6%
das instituições públicas de educação básica (Brasil, 2020).
Especificamente no que se refere à educação infantil, o Plano prevê, em
sua meta 1, a estratégia 17: “estimular o acesso à educação infantil em tempo
integral, para todas as crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos” (Lei no 13.005, 2014).
Segundo o Relatório de Monitoramento do PNE, a educação infantil é a etapa
da educação básica com maior atendimento em tempo integral, abrangendo
28,4% de suas matrículas e 22,8% de seus estabelecimentos (Brasil, 2020).
Ainda conforme o relatório mencionado, a oferta de jornada em tempo
integral é imprescindível para que a qualidade na educação básica possa aumentar
(Brasil, 2020). Entretanto, é preciso equacionar a ampliação da oferta de educação
em tempo integral com o direito à educação infantil a todos. Se as crianças ainda
não têm seu direito constitucional à educação (integral), fica ainda mais difícil
oferecer tempos ampliados na escola.

Alguns marcos legais da educação infantil


Desde a aprovação da atual Constituição Federal Brasileira (1988)6, a
educação passou a ser um direito fundamental e social e a educação infantil,
antes associada às práticas de assistência social, passou a integrar a política
educacional, devendo ser oferecida pelo Estado, gratuitamente, às crianças de
até 5 anos de idade. A oferta da educação infantil está sob a responsabilidade
dos municípios e a pré-escola passou a ser obrigatória a partir dos quatro anos
de idade.

6
Alterada pela Emenda Constitucional no 53 (2006) e Emenda Constitucional no 59 (2009).
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 241

Em 1990, foi sancionada a Lei do Estatuto da Criança e do Adolescente


(ECA), Lei no 8.069 (1990), estabelecendo que a criança “goza de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” e, por isso, deve usufruir de
todas as chances de desenvolver-se integralmente.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei no
9.394 (1996)7, dispõe sobre a educação como um processo que se desenvolve em
várias esferas da sociedade. A educação escolar é dever da família e do Estado,
objetivando o desenvolvimento pleno do educando e devendo ser oferecida, entre
outros princípios, com garantia de padrão de qualidade. A educação infantil,
como primeira etapa da educação básica, tem como prioridade o desenvolvi-
mento integral da criança até 5 anos de idade nas dimensões física, psicológica,
intelectual e social, em complemento à ação da família e da sociedade.
Após a aprovação da LDBEN, foram definidas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), expressas na Resolução CEB no
1 (1999). Mais adiante, por meio da Resolução CEB no 5 (2009), o Conselho
Nacional de Educação (CNE) aprovou as novas DCNEI com o objetivo de
orientar as políticas públicas na área, bem como o planejamento e a execução
de propostas pedagógicas e curriculares.
Ainda em 1998, em atendimento à LDBEN e integrando os Parâme-
tros Curriculares Nacionais, o então Ministério da Educação e do Desporto
publicou o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RC-
NEI), com caráter orientador, definindo conceitos importantes como criança
e educação. O RCNEI é baseado em princípios filosóficos de atendimento
pedagógico à criança, organizado por meio de eixos e conteúdos. Seu objeti-
vo é apontar princípios de qualidade que colaboram para o desenvolvimento
integral das crianças, em reconhecimento aos seus direitos. O RCNEI propôs
metas de qualidade que visavam ao desenvolvimento integral das identidades
das crianças, a fim de que crescessem tendo seus direitos de infância reco-
nhecidos; destacou as peculiaridades educacionais das crianças, ressaltando o
direito de viverem experiências prazerosas nas instituições; definiu a criança
como ser plural que necessita desenvolver-se nas diversas áreas do conheci-
mento (Brasil, 1998).
A partir da Constituição Federal de 1988, o Ministério da Educação
publicou uma série de documentos relacionados à educação infantil, de modo a

7
Alterada pela Lei no 12.796 (2013).
242 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

orientar as práticas dentro das instituições na busca por uma escola garantidora
dos direitos das crianças. Alguns desses documentos estão sistematizados no
Quadro 1.

Quadro 1. Publicações do Ministério da Educação relacionadas à Educação Infantil

Documento

Política de Educação Infantil: proposta


Integração das instituições de educação infantil aos sistemas de ensino: um estudo de caso de
cinco municípios que assumiram desafios e realizaram conquistas
Subsídios para Credenciamento e o Funcionamento das Instituições de Educação Infantil
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
Critérios para um Atendimento em Creches que respeite os direitos fundamentais das crianças
Indicadores da Qualidade na Educação Infantil
Orientações sobre Convênios entre secretarias municipais de educação e instituições
comunitárias confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos
Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na Educação Infantil – Pro-infantil
Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos
Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil
Parâmetros Básicos de Infraestrutura para Instituições de Educação Infantil
Parâmetros Nacionais de Infraestrutura pra Instituições de Educação Infantil
Relatórios do Projeto de Cooperação Técnica MEC e UFRGS para a construção de Orientações
Curriculares para a Educação Infantil
Subsídios para Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica – Diretrizes Curriculares
Nacionais Específicas para a Educação Infantil
Educação Infantil: subsídios para construção de uma sistemática de avaliação
Fonte: Rosemberg (2014, p. 172).

Em 2016, por meio da Lei no 13.257 (2016), foi aprovado o Marco Legal
da Primeira Infância, que, entre outras coisas, estabelece princípios e orienta-
ções para a formulação e a implementação de políticas públicas relacionadas à
primeira infância.
Por fim, em 2018, foi homologado documento que estabeleceu a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) para toda a educação básica no Brasil,
incluindo orientações para os processos formativos desenvolvidos no âmbito da
educação infantil (Brasil, 2018).

Concepções de educação infantil: algumas ilustrações


Os conceitos de educação, educação infantil e criança, no Brasil, tiveram
inspirações filosóficas de diferentes ordens e sofreram influência de diversos
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 243

contextos econômicos, políticos, sociais, culturais e regionais, o que refletiu nas


legislações e diretrizes educacionais do país. Além disso, entre outros elementos,
há que considerar as influências relacionadas aos valores e às concepções do
corpo docente e dos gestores de cada instituição, assim como as peculiaridades
da comunidade escolar. São fatores que condicionam as práticas educativas
junto às crianças.
Para Sarmento (2015, p. 73):
A forma como a educação da infância se realiza no presente é um elemento constitutivo
do processo de configuração da infância contemporânea e das relações entre adultos e
crianças. Na verdade, a construção do ofício de criança e de aluno participa ativamente
no processo contínuo de estabelecimento de relações e de fronteiras simbólicas entre as
gerações [...].

Neste trabalho, apresentamos algumas concepções de infância, a fim de


ilustrar suas influências nas diretrizes educacionais, no currículo, nas formas
de organização das instituições e nas práticas pedagógicas dos educadores que
atuam junto às crianças.
Friedrich Froebel, filósofo alemão do final do século XVIII, desenvol-
veu conceitos muito importantes sobre a educação das crianças e foi o grande
responsável pela criação do Kindergarten, o “Jardim da Infância”, concebido
como um espaço para se viver a infância livre. Para ele, a criança era um ser
ativo e criativo e que aprende quando faz comparações, experimenta e reflete,
baseada em seus próprios sentimentos, pensamentos e vontade, com o auxílio
de um adulto (Kishimoto & Pinazza, 2007).
No final do século XIX e início do século XX, o conceito de escola eman-
cipadora, baseado na educação progressiva e renovada, chamada de escola nova,
ganhou espaço e as teorias de John Dewey tiveram importante contribuição
nesse processo. Crítico do currículo tradicional da época, centrado no conhe-
cimento, Dewey não concordava com a noção de preparação para o futuro; para
ele, as crianças deveriam ser tratadas como membros sociais de seu tempo e
não como quem virá a ser; as práticas educativas devem se apoiar na atividade
da criança, ou seja, no “aprender fazendo”, além de considerar seus interesses
e experiências como ponto de partida para as aprendizagens (Pinazza, 2007).
Jean Piaget foi um dos grandes nomes do século XX, cujas teorias exer-
ceram e continuam exercendo grande influência sobre as questões que se re-
lacionam à infância, à criança e ao seu desenvolvimento. Postulou que a ati-
vidade motora dos sujeitos é a responsável pelo seu desenvolvimento, e não as
244 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

influências externas como a sociedade, a cultura ou o ambiente. Para ele, o


desenvolvimento humano depende da maturação biológica e das interações que
o sujeito estabelece com o meio físico e social, assumindo, o sujeito, um papel
ativo na construção dos significados de sua experiência (Vieira & Lino, 2007).
Maria Montessori representa também um nome importante no que se
refere à educação das crianças. Nascida na Itália em 1870, concebeu suas ideias
educacionais sob a perspectiva da pedagogia científica, da educação senso-
rial e dos princípios do método experimental, tendo como objetivo favorecer
o desenvolvimento do homem livre e autônomo, buscando sua integralidade.
Segundo os preceitos montessorianos, a escola é lugar de estimular e permitir
condições para as manifestações espontâneas da criança, proporcionando seu
livre desenvolvimento. Segundo Montessori, o crescimento e o desenvolvimento
da criança ocorrem continuamente (Angotti, 2007).
Célestin Freinet, educador francês nascido em 1896, de orientação socia-
lista e ideias progressistas, foi o fundador do Movimento da Escola Moderna
Francesa e entendia a escola que a escola não era uma instituição neutra. Sua
proposta de educação apresenta-se como dinâmica, humana e popular, direcio-
nada às crianças pertencentes às classes populares e voltada para a cooperação;
os educandos são vistos com capacidade crítica e que analisam e interferem
na realidade que está posta. A pedagogia Freinet opõe-se ao modelo de escola
conservadora, centralizada no professor. Segundo seus preceitos, a criança é o
centro de todo o processo educativo, um ser histórico e social, concreto, criador
de cultura e agente de seu desenvolvimento. Para Freinet, a escola deve oferecer
às crianças uma educação que promova o desenvolvimento e a cidadania, e que,
para além das atividades escolares, inclua também atividades sociais e humanas
(Elias & Sanches, 2007).
Por fim, mencionamos Lev Semenovich Vygotsky que nasceu na ex-União
Soviética em 1896, atuou em diversas áreas do conhecimento como professor
e pesquisador, tornando-se um grande expoente da psicologia. Em sua teoria
histórico-cultural, o papel da aprendizagem é fundamental pois impulsiona e
promove o desenvolvimento e não apenas o acompanha. Para Vygotsky, o pa-
pel da educação constitui-se um poderoso agente de transformação do homem
e, consequentemente, da humanidade, à medida em que pode transformar as
bases cognitivas do homem em toda sua integralidade, maneira como a teoria
histórico-cultural compreende a educação (Pimentel, 2007).
Em 2013, o Ministério da Educação, em parceria com a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apresentou uma
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 245

pesquisa comparativa da legislação e de conceitos referentes à educação infantil


nos países parceiros do Mercosul8 (Brasil, 2013). O documento apresenta seis
argumentos comumente utilizados por esses países para a promoção e a defesa
da educação infantil: a entrada da mulher no mercado de trabalho; o retorno
financeiro do investimento feito nas crianças; o argumento da neurociência; a
preparação para a escola; o argumento da justiça social; o direito à educação.
Segundo o documento, com relação aos conceitos empregados na educação
infantil, é importante que se defina o termo criança e todos os vocábulos cir-
cunferentes para que haja entendimento explícito do objetivo e da finalidade da
educação nessa etapa da vida da criança. Os conceitos presentes no arcabouço
político-legal de um país, embasados em diferentes concepções e argumentos
histórico-sociais e científicos, influenciam o currículo e as práticas educativas,
embora, como já mencionado, não sejam os únicos determinantes das ações
desenvolvidas junto às crianças.

O currículo na educação infantil


O currículo não é somente um instrumento que rege a prática pedagó-
gica; ele esconde pressupostos, teorias, modos de pensar, crenças e valores que
fundamentam os comportamentos e as ações dentro das instituições de ensino
(Sacristán, 2017).
Assim, no currículo praticado pelas instituições de educação infantil estão
imbricados os sentidos sociais atribuídos à escola e à escolarização, contornados
pelo cenário histórico-social no qual se encontram as instituições sociais. O
currículo não é neutro; ao mesmo tempo em que determina as práticas dentro
da escola, ele mesmo é determinado por outras práticas anteriores a ele e que
o condicionam.
A finalidade e o propósito das instituições de educação infantil se refletem
obrigatoriamente na organização do currículo, em seus componentes, objetivos e
opções metodológicas. No entanto, olhar para o currículo praticado nas escolas
é muito mais do que consultar seu projeto político-pedagógico, muitas vezes
um documento engavetado e mal conhecido pelos próprios educadores. Olhar
para o currículo da instituição escolar é olhar para o contexto sócio-histórico,

8
 Mercosul (Mercado Comum do Sul) foi criado em 1991 pelo Tratado de Assunção com a finalidade de
O
facilitar a circulação de bens, serviços e capitais entre os seguintes países: Argentina, Brasil, Paraguai, Uru-
guai e Venezuela. Recuperado de https://www.mercosur.int/pt-br/quem-somos/em-poucas-palavras/.
246 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

a comunidade (estudantes, professores, gestores), as práticas, as motivações, os


interesses (velados ou manifestos), as preferências, os critérios, as metodologias,
as didáticas, as relações existentes, entre muitos outros elementos que dizem
respeito à educação escolar.
As DCNEI (Resolução no 5, 2009) abrigam orientações quanto aos pro-
jetos político-pedagógicos e às propostas curriculares, estabelecendo princípios
de uma educação de qualidade. Para que a qualidade da educação infantil seja
alcançada, as práticas pedagógicas das instituições devem promover a integra-
ção dos aspectos “cuidar e educar”, a partir da percepção de criança como um
ser integral e que deve ter acesso às diversas áreas do conhecimento de forma
articulada às relações estabelecidas pelas crianças na instituição.
Ariosi (2019, p. 246), em pesquisa sobre as Diretrizes Curriculares Nacio-
nais da Educação Infantil, destaca a importância de a escola oferecer às crianças
experiências educativas que sejam capazes de promover seu desenvolvimento.
Nessa perspectiva, o conceito de experiência ganha tonicidade. Além disso, é
importante, segundo a autora, que os profissionais da educação infantil tenham
suporte em suas práticas para que possam readequá-las, de modo a oferecer às
crianças experiências que sejam efetivamente educativas, “respeitando as ca-
racterísticas, identidade institucional, escolhas coletivas e particulares de cada
unidade escolar”.
Além disso, as propostas curriculares praticadas nas instituições de educa-
ção infantil precisam considerar a perspectiva das crianças, de modo a superar
a invisibilidade social a que os pequenos estão sujeitos (Malleta & Reis, 2019).
Barbosa (2010), ao mapear e comparar propostas pedagógicas de insti-
tuições de educação infantil de vários municípios brasileiros, identificou três
grupos de propostas curriculares: as propostas centradas na normalização das
crianças, caracterizadas por conterem calendário de eventos e controle social;
as propostas centradas na ciência, focalizadas no desenvolvimento humano e
nas diversas áreas do conhecimento; e as centradas na cultura e sociedade, que
convergem em contextos educativos e núcleos temáticos.
Para a autora, o desafio que se coloca sobre o currículo na escola de educa-
ção infantil é compreendê-lo não como ferramenta para fabricar o ser humano,
mas como meio de narrá-lo, a partir de suas ações. Ela afirma que
Empreender essa mudança implica priorizar a atitude de respeito à condição humana de
buscar sentidos para o viver junto. Trata-se de um currículo comprometido com escolhas
– prudentes, mas também apaixonadas – pelo que efetivamente importa para o signifi-
cado da vida, para aquilo que torna a vida digna de ser vivida (Barbosa, 2010, p. 8).
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 247

É perceptível que, para a organização da rotina das crianças nas institui-


ções de educação infantil, a estruturação do tempo é fundamental para o bom
funcionamento da escola. Uma vez que nem todas as escolas possuem espaços,
objetos, brinquedos, recursos humanos e materiais suficientes para atender toda
a demanda de crianças matriculadas, é imprescindível, além de garantir recursos
suficientes e de qualidade para tal, organizar os tempos e os espaços de forma
que todas as crianças possam usufruir de recursos e de condições que permitam
seu pleno desenvolvimento.
Entretanto, admite-se também que a organização do tempo em formato
de rotinas pode ser um engessador da prática pedagógica e, por conseguinte,
das vivências das crianças nas instituições, uma vez que são orientadas, muitas
vezes, pela quantidade de tempo em que se deve passar num espaço e não pela
intensidade, interesse ou riqueza da vivência desenvolvida nele.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, no que tange
à rotina praticada pelas instituições de educação infantil, adverte que “roti-
nas rígidas e inflexíveis desconsideram a criança [...]; desconsideram também
o adulto, tornando seu trabalho monótono, repetitivo e pouco participativo”
(Brasil, 1998, p. 72).
De acordo com Barbosa (2000, p. 96),
A rotina pode tornar-se uma tecnologia de dominação quando não considera o ritmo, a
participação, a relação com o mundo, a realização, a fruição, a liberdade, a consciência,
a imaginação e as diversas formas de sociabilidade dos sujeitos nela envolvidos. Quan-
do se torna apenas uma sucessão de eventos, de pequenas ações, prescritas de maneira
precisa, levando as pessoas a agirem e a repetirem gestos e atos em uma sequência de
procedimentos que não lhes pertence nem está sob seu domínio, é o vivido sem sentido,
pois está cristalizado em absolutos.

Para Faria e Dias (2007), é necessário que a organização e a gestão do tra-


balho nas instituições de educação infantil explicitem de forma clara e coerente
as concepções, as finalidades e os objetivos relacionados desde às questões mais
gerais da escola até à prática que os professores desenvolvem com as crianças.
Além disso, é importante que se estabeleça uma relação entre o que se diz e o
que se faz. O acompanhamento das metas e dos objetivos estabelecidos pela
equipe escolar no projeto político-pedagógico é extremamente importante para
assegurar às crianças uma educação de qualidade.
248 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Educação infantil: educação integral e em tempo integral


A educação integral é um conceito amplo e que, em muitas situações, pode
confundir-se e limitar-se à discussão sobre a jornada escolar em tempo integral.
No Brasil, o ideal de educação integral pode ser observado em iniciativas
educacionais desde a primeira metade do século XX, com propostas, moti-
vações e ideais diversos. O conceito de educação integral caracteriza-se por
aproximar-se da ideia de “mais completa possível”. No entanto, no que tange à
formação dos indivíduos, não há consenso sobre essa integralidade. Segundo
Moll (2008), a essencialidade do conceito de educação integral está atrelada ao
binômio cuidar e educar, formar e proteger, ao qual a escola ficou encarregada
a partir das múltiplas funções que lhe foram atribuídas pela sociedade. Assim,
Nesse duplo desafio – educação/proteção – no contexto de uma “Educação Integral em
Tempo Integral”, ampliam-se as possibilidades de atendimento, cabendo à escola assumir
uma abrangência que, para uns, a desfigura e, para outros, a consolida como um espaço
realmente democrático. Nesse sentido, a escola pública passa a incorporar um conjunto
de responsabilidades que não eram vistas como tipicamente escolares, mas que, se não
estiverem garantidas, podem inviabilizar o trabalho pedagógico. (Moll, 2008, p. 15).

Ao expor sobre as possibilidades e potencialidades da educação integral,


Parente (2021a, p. 3), menciona que:
No Brasil, há décadas, difundimos a expressão “educação integral” justamente para re-
forçar a intencionalidade de que o ato educativo contemple a integralidade dos elementos
da formação humana. A necessidade de adjetivação ganha ainda mais força quando
identificamos práticas educativas que tendem a esquecer certos aspectos da formação
humana. Não é à toa que o termo “educação integral” se difundiu no começo do século
XX, num contexto em que se desejava outra escola, que olhasse para o sujeito-aluno de
uma forma diferente do que fazia a escola tradicional. Isso demarca que a concepção de
educação e de escola são construções sócio-históricas e culturais, com heranças históricas,
filosóficas e políticas advindas de diversas correntes teóricas.

Ao longo do século XX, foram implementadas iniciativas importantes pelo


país na tentativa de articular “mais tempo de escola” e “educação integral”, com
a finalidade de oferecer mais qualidade à função social da escola, a exemplo do
Centro Educacional Carneiro Ribeiro (CECR), em Salvador e dos Centros In-
tegrados de Educação Pública (CIEP), no Rio de Janeiro (Moll, 2008). Anísio
Teixeira, idealizador do CECR, defendia uma escola que “desse às crianças um
programa completo de leitura, aritmética e escrita, ciências físicas e sociais, e mais
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 249

artes industriais, desenho, música, dança e educação física, saúde e alimento à


criança” (Teixeira, 1959).
Por isso, estamos de acordo com a ideia de que a “educação integral” e o
“tempo integral” são expressões que podem caminhar juntas.
A expressão “educação integral em tempo integral”, correntemente utilizada no Brasil,
traduz bem a intencionalidade de oferecer uma formação o mais completa possível (edu-
cação integral) a crianças, adolescentes e jovens em idade de escolarização obrigatória
durante um período escolar ampliado (tempo integral). (Parente, 2021b, p. 98-99).

No que concerne ao tempo integral, “em cada momento histórico e em


cada cenário, a ampliação da jornada escolar teve certos objetivos, o que pode
significar maior ou menor proximidade com a ideia e a prática da educação in-
tegral”. Isto porque, “os objetivos das políticas de ampliação da jornada escolar
nem sempre foram os mesmos, inclusive porque a própria noção de educação
integral também se modifica” (Parente, 2021a, p. 8).
Do ponto de vista normativo, na Lei no 9.394 (1996), a concepção de
educação integral aparece sob o adjetivo “pleno”: “desenvolver o educando de
maneira plena, para o exercício da cidadania e do trabalho”. Por sua vez, a
educação infantil tem como finalidade “o desenvolvimento integral da criança
de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando a ação da família e da comunidade”.
Inicialmente, a LDBEN fez menção à oferta de tempo integral somente no
ensino fundamental. A lei estabelece que essa oferta deve ser progressivamente am-
pliada. Apenas em 2013, a Lei no 12.796 (2013), que alterou a LDBEN, fez menção
ao “atendimento à criança de, no mínimo, 4 (quatro) horas diárias para o turno
parcial e de 7 (sete) horas para a jornada integral” no âmbito da educação infantil.
Mais adiante, a Lei n. 10.172 (2001), que aprovou o Plano Nacional de
Educação, estabeleceu como meta o progressivo “[...] atendimento em tempo
integral para as crianças de 0 a 6 anos”. O antigo PNE fazia menção ao aten-
dimento prioritário “para as crianças de idades menores, das famílias de renda
mais baixa, quando os pais trabalham fora de casa”; reforçava, no entanto, que
esse atendimento não devia caracterizar-se “como uma ação pobre para pobres”.
Por sua vez, o documento “Política Nacional de Educação Infantil: pelo
direito da criança de 0 a 6 anos à educação” apresentava recomendações aos ges-
tores e educadores, entre as quais, a ampliação progressiva para tempo integral,
“[...] considerando a demanda real e as características da comunidade atendida
nos seus aspectos socio-econômicos e culturais” (Brasil, 2005, p. 27).
250 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

De acordo com as DCNEI, Resolução CEB no 5 (2009), a educação infan-


til pode ser oferecida em creches e pré-escolas em período parcial ou integral, ou
seja, com o mínimo de quatro e de sete horas, respectivamente. Adicionalmente,
as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, Resolução
CEB nº 4 (2010), estabeleceram que
Cabe aos sistemas educacionais, em geral, definir o programa de escolas de tempo par-
cial diurno (matutino ou vespertino), tempo parcial noturno, e tempo integral (turno
e contra-turno ou turno único com jornada escolar de 7 horas, no mínimo, durante
todo o período letivo), tendo em vista a amplitude do papel socioeducativo atribuído
ao conjunto orgânico da Educação Básica, o que requer outra organização e gestão do
trabalho pedagógico.

Recentemente, a Base Nacional Comum Curricular fez menção aos prin-


cípios que a regem, entre os quais, aqueles que visem à “formação humana
integral”. A BNCC anuncia seu “compromisso com a educação integral”, “in-
dependentemente da duração da jornada escolar” (Brasil, 2018, p. 7-14). Na
educação infantil, a BNCC prevê, eixos estruturantes (interações e brincadeira),
devendo ser assegurados “seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento, para
que as crianças tenham condições de aprender e se desenvolver: conviver, brincar,
participar, explorar, expressar, conhecer-se” (Brasil, 2018, p. 25).
Tendo em vista a meta 6 do PNE (Lei no 13.005, 2014) – que prevê a
educação em tempo integral em todas as etapas da educação básica, abrangendo,
no mínimo, 50% das escolas públicas e, pelo menos, 25% dos alunos –, assim
como a estratégia 17 da meta 1 – que estimula “o acesso à educação infantil em
tempo integral, para todas as crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos” –, é preciso
questionar: como as políticas e as práticas pedagógicas estão sendo organizadas
de modo a garantir a educação infantil na perspectiva da educação integral?
Como as políticas e as práticas pedagógicas estão sendo organizadas a fim de que
a jornada em tempo integral seja uma aliada na formação integral das crianças?
Segundo Sarmento (2015), a defesa da educação infantil em tempo integral
tem muitas justificativas, inclusive contraditórias. O autor elenca os principais
argumentos históricos favoráveis à ampliação da jornada nas escolas de educação
infantil: atender às famílias trabalhadoras na guarda, proteção e desenvolvi-
mento das crianças; preparar as crianças para as etapas posteriores do ensino,
garantindo seu sucesso escolar; fornecer ações compensatórias, favorecendo o
contato das crianças com elementos da cultura, muitas vezes inexistentes em seu
cotidiano; promover ações no âmbito da assistência, da proteção e da promoção
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 251

social, da saúde e da nutrição; garantir o direito pleno ao desenvolvimento das


crianças, sem distinção.
No entanto, existem muitos desafios à implementação da jornada integral
na educação infantil. Araújo (2015) apresenta alguns resultados de pesquisa
realizada com gestores de municípios do estado do Espírito Santo. Os partici-
pantes da pesquisa destacaram a necessidade de mais recursos financeiros, de
modo a garantir alimentação e aquisição de materiais pedagógicos, assim como
mais agilidade nas questões burocráticas e autonomia das instituições. A maior
motivação para a oferta da educação infantil em tempo integral nos municípios
pesquisados estava associada às condições socioeconômicas das famílias.
Para Barbosa, Richter e Delgado (2015, p. 100), a escola é o espaço onde é
possível trabalhar para se assegurar a equidade diante das diversas mudanças que
estão ocorrendo na atualidade, garantindo às crianças tanto o acesso à educação
quanto o acesso a viverem seus tempos de infância, a partir de “uma experiência
educativa comprometida com o viver juntos no mesmo mundo”.
De acordo com Tiriba (2018, p. 195), as instituições de educação infantil:
[...] são lugar da diversidade, de encontro e confronto de infinitas formas de sentir e de
viver a vida. É aí que a tristeza e a alegria são, todos os dias, experimentadas, vividas,
de formas mais leves ou mais pesadas [...] são produzidos dois modos de existência: um
que potencializa a existência; outro que faz sofrer, que enfraquece.

A autora reflete sobre o conceito de educação presente em instituições


de educação infantil e sobre a rotina das crianças nesses lugares, criticando as
práticas de “emparedamento” às quais as crianças estão submetidas e as desco-
nexões com a natureza e seu aporte educativo, e que operam na contramão dos
instintos naturais dos pequenos.
Por isso, para Barbosa, Richter e Delgado (2015, p. 104), a educação in-
tegral que deve ser promovida na educação infantil é a que considera,
Nas práticas cotidianas, a atenção pela cultura, pela saúde, pela justiça e pela assistência
social na educação e no cuidado das crianças pequenas tanto como meta das políticas
públicas, mas principalmente como modo de vida no dia a dia do coletivo da escola.

A proposta de “educação integral” comumente encontrada nas escolas


de educação infantil do país identifica-se facilmente com a proposta de ex-
pansão do tempo que as crianças permanecem na escola, de modo a atender
as necessidades das famílias. Entretanto, para além de um local de guarda das
crianças, a oferta de educação integral em tempo integral
252 Seção I – Saúde, Educação e Desenvolvimento Humano

Demanda observação da vida das crianças, compreendendo suas necessidades, possibili-


dades e desejos e, a partir do observado, pensar em propostas abrangentes que dialoguem
com conhecimentos que ultrapassam a barreira da educação formal/escolar e possam dar
sustentação a uma prática pedagógica comprometida com ações nas quais os diferentes
campos da formação humana estejam presentes, sem hierarquias (Barbosa, Richter &
Delgado, 2015, p. 101).

Além disso, a articulação entre as políticas públicas deve ser parte inte-
grante de um projeto de formação integral da infância, “[...] de modo que elas
contemplem expectativas em torno de uma experiência educacional planejada e
realizada por um grupo de adultos reunidos em torno de um interesse comum:
oferecer melhor acolhida às crianças num mundo de grande complexidade”
(Barbosa, Richter & Delgado, 2015, p. 104).
As autoras tipificaram três modelos de oferta de educação em tempo inte-
gral nas escolas de educação infantil: o modelo da assistência, que desempenha
o papel de guarda da criança para a família que trabalha; o modelo da esco-
larização e recreação, que divide a proposta pedagógica em dois turnos, com
atividades desconectadas entre si; o modelo da escolarização, que conta com
profissionais formados em ambos os turnos, enfatiza a transmissão de conteúdos
e a necessidade de produção de trabalhos, numa lógica conteudista (Barbosa,
Richter & Delgado, 2015).
De acordo com Tiriba (2018, p. 98), o fato de as crianças permanecerem
nas instituições com jornada de tempo integral por longos períodos chama a
atenção para algumas reflexões no que se refere à rotina das instituições e à
infraestrutura dos prédios: a qualidade das experiências vividas pelas crianças
ao longo do dia; a possibilidade do contato estreito com a natureza; a escola
como lugar para as crianças fazerem o que gostam e o que desejam; os direitos
que estão sendo respeitados ou não.
Se a qualidade das aprendizagens é proporcional à qualidade das interações, então as
crianças aprenderão melhor quando estiverem mais felizes; e cabe às instituições de
educação infantil se empenharem na oferta de tempos e espaços que favoreçam a sensação
de realização, de plenitude, de inteireza de corpo e espírito.

Assim, concordamos com a defesa de que, qualquer projeto de educação


infantil (integral) em tempo integral deve considerar
[...] como vamos organizar espaços, instituições, recursos e processos, mobilizando edu-
cadores e instituições para a formulação de estratégias e alternativas que deem conta
Capítulo 13 – Jaqueline Lima Fidalgo e Silva e Cláudia da Mota Darós Parente 253

de uma formação humana integral, consolidando políticas públicas para a formação de


crianças, [...] de modo a verificar o que estamos fazendo e o que precisamos fazer para
avançarmos rumo a uma política de educação integral mais próxima de nossas concepções
e ideais. (Parente, 2021a, p. 13).

Considerações finais
Independentemente do tipo jornada escolar, as crianças são a razão de ser
de todas as instituições de educação infantil. De forma mais abrangente, con-
cebemos que as diferentes infâncias que vivem na atualidade devem também ser
o centro das políticas públicas, a fim de que possamos oferecer uma formação
o mais integral possível.
As escolas de educação infantil, como espaços (embora não únicos) de
viver a infância, devem promover a educação integral às crianças que lá estão,
seja em jornada parcial ou integral. O tempo deve ser um fator que amplia as
potencialidades da educação infantil e não um mero coadjuvante no processo
educativo ou um vilão que cerceia as possibilidades de desenvolvimento e apren-
dizagem das crianças.

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Seção II
Psicologia
social e
sociedade
Apresentação
A segunda seção do livro apresenta um compilado de pesquisas na área da
psicologia social que discursam sobre tópicos atuais com metodologias de ponta
na área do estudo do preconceito, seja racial, de gênero ou social. No primeiro
desses estudos Ferreira, França e Jairo apresentam, desde a óptica dos profis-
sionais dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV, as
estratégias que esses profissionais desenvolvem para promover o fortalecimento
da identidade racial em crianças em situação de vulnerabilidade e destaca a
importância do trabalho desses profissionais por se tornarem referências moti-
vadoras no fortalecimento da identidade racial. No segundo estudo, seguindo
uma metodologia experimental/correlacional, Techio, Gouveia e Borges apre-
sentam dados que apoiam a ideia de que a cor da pele do alvo da violência
policial influencia no posicionamento diante desta e a reação emocional que no
observador provoca, mostrando que os estudantes universitários parecem estar
mais conscientes do preconceito racial e das lutas adotadas no âmbito acadêmico.
Já no terceiro estudo, Moreira-Primo, dos Santos e França apresentam uma
proposta metodológica para o estudo da identidade racial em crianças no ensino
fundamental, as quais, através da apresentação de uma história, expressam suas
experiências tanto do racismo direto quanto do racismo observado, o que deixa
de manifesto a necessidade de programas de combate ao racismo nas escolas
para o qual propõem uma série de intervenções que visam tanto a redução do
racismo quanto o fortalecimento da identidade étnico-racial de crianças negras.
No quarto estudo, Poderoso apresenta uma pesquisa na qual descreve os este-
reótipos que policiais militares têm na seletividade de suspeitos na abordagem
policial, e como os descritores associados ao grupo de suspeitos são os mesmos
usados na descrição dos grupos de negros/as e pobres, chamando a atenção para
o racismo associado à exclusão social. Esse estudo encerra a primeira parte da
segunda seção do livro, centrada no preconceito racial.
Os capítulo subsequentes, irão se centrar no estudo de outros tipos de
preconceito, começando com o estudo de Figueredo e Pereira no qual, seguindo
uma metodologia experimental, avaliam a relação entre gênero e preconceito
sexual, mostrando que homens heterossexuais manifestam mais preconceito
contra gays que contra lésbicas, e que sua percepção de distintividade seria a res-
ponsável pela maior expressão de preconceito contra gays, e quando essa distinti-
vidade é reduzida o preconceito dos homens heterossexuais contra gays aumenta.
No sexto estudo, o preconceito foi abordado nas manifestações encontradas nas
261

redes sociais, e especificamente, no chamado discurso de ódio; de Souza, Lima,


Souza Macedo e Bispo propõem uma metodologia quantitativa baseada na mi-
neração de dados e a análise de conteúdo para processar postagens no Twitter
com hashtags específicas de discurso de ódio e /ou endosso a violência referente a
operação policial no Jacarezinho, evidenciando ideário conservador-reacionário
que nega direitos humanos e normatiza imagens de desumanização dos grupos
minoritários. No sétimo estudo, Lima, França e Pereira exploram as atitudes
dos brasileiros em relação ao isolamento social no contexto da pandemia de
Covid-19, identificando que a baixa adesão ao mesmo pode ser explicada pela
subestimação da gravidade da doença, seguido da falta de condições financei-
ras e as dificuldades para trabalhar em casa, assim como pela anomia política
caraterizada pela baixa confiança nas instituições políticas do país.
Nessa mesma linha, e focando novamente nos efeitos da pandemia, Maia,
Lima e de Souza, exploraram o efeito de pertença grupal na saúde mental, nas
dimensões de ansiedade e depressão, e na satisfação com o trabalho numa po-
pulação brasileira durante a pandemia de Covid-19 nos meses de junho e julho
de 2020, encontrando nível menores de saúde mental em trabalhadores que se
reconhecem não heterossexuais e trabalhadores de classe econômica baixa. Fi-
nalmente, e fechando a segunda seção do livro, Batista e Ferreira apresentam um
estudo relacionado com o endividamento e a alfabetização financeira, fazendo
uma análise da situação atual do Brasil, focando no endividamento estudantil, e
apresentando diferentes estudos nos quais foram feitas intervenções para adoção
de novos padrões de comportamento que possam prover melhorias financeiras.
Com esse conjunto de estudos, com diferentes abordagens metodológicas,
pretende-se fazer um aporte importante na compreensão do preconceito, que
permita o desenvolvimento de ações afirmativas em diferentes comunidades, e
em especial, servir de insumo para os estudantes e profissionais da psicologia,
serviço social, sociologia, direito, e muitas outras áreas no reconhecimento das
desigualdades sociais e da vulnerabilidade dos grupos imersos nele.
Capítulo 14
Identidade racial de crianças em situação de
vulnerabilidade social: o olhar dos profissionais do SCFV
Josiene dos Santos Ferreira
Dalila Xavier de França
Israel Jairo

Falar sobre identidade é sempre uma tarefa intrigante e deveras difícil, já


que a identidade é um fenômeno que envolve múltiplos níveis e reconhecimen-
tos (Galinkin & Zauli, 2011). E quando a identidade diz respeito a crianças, o
tema torna-se mais profundo por conta das peculiaridades dessa fase do desen-
volvimento, sobretudo, porque as variáveis que integram o processo de forma-
ção da identidade possuem grande potencial influenciador em todo processo.
A condição social da criança é uma delas, pois, se uma criança estiver em situação
de vulnerabilidade social certamente terá impactos significativos na formação
de sua identidade, ou se pertencer a uma “raça” desvalorizada terá os mesmos
prejuízos, podendo estes impactos serem potencializados se a criança tiver uma
identidade racial desvalorizada e estiver em situação de vulnerabilidade social.
De modo que buscou-se investigar se a socialização praticada pelos profissionais
Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV promove o forta-
lecimento da identidade racial de crianças em situação de vulnerabilidade social.
A percepção de quem somos é baseada em nossas próprias crenças acerca
da nossa individualidade (Turner, 1982), associadas às pistas que nós mesmos
fornecemos para que as outras pessoas construam suas próprias percepções acer-
ca de nós. E é o somatório dessas crenças e percepções que resulta em nossa
identidade e nas suas variadas facetas (racial, religiosa, de gênero, etc). E entre
todas estas identidades, destaca-se para esta pesquisa a social e a racial, pois
está relacionada à apreensão que a pessoa faz de informações sobre si mesma e
sobre sua pertença a grupos sociais, levando em consideração o que isso significa
tanto emocional quanto valorativamente (Tajfel, 1981).
Em outra perspectiva de entendimento da identidade, a literatura psico-
lógica apresenta que o processo de construção da identidade social é impactado
constantemente pela busca por uma autoimagem positiva que se alinhe com os
valores e crenças do indivíduo, busca essa que se executa através da inserção em
grupos sociais que correspondam as expectativas dele (Tajfel, 1981). Todavia,
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 263

a vulnerabilidade social minimiza as oportunidades de inserção a grupos so-


ciais significativos no processo de identidade, pois a privação de acesso pleno a
direitos básicos materiais, relacionais e/ou culturais limita as oportunidades da
criança, como por exemplo a privação de acesso a escola, o que pode interferir
negativamente no seu desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, de modo a
fazer com que a pessoa carregue os efeitos danosos ao longo de todo o percurso
de sua vida (Souza et al., 2019). Quanto mais novo o indivíduo for submetido a
situação de vulnerabilidade social, e sobreviver às intempéries interpostas por
tal situação, maior será o tempo que terá que carregar os efeitos negativos e,
mais profundos serão os impactos diretamente a sua identidade.
O outro aspecto que compõe o processo de formação da identidade social
e de grande relevância para esta pesquisa é a identidade racial. A psicologia
tem documentado os impactos negativos que integram o processo de formação
de identidade para crianças negras (Santos & França, 2018; França & Mon-
teiro, 2002), ademais, se considerada a abrangência dos efeitos do racismo e
preconceito na sociedade brasileira (Lima, 2020), é fato que, para a criança que
esteja em situação de vulnerabilidade social, ter a identidade negra será mais
um complicador para o seu desenvolvimento. Embora sendo o Brasil um país
marcado pela ausência de conflitos raciais flagrantes, sabe-se que o racismo e
preconceito racial, da forma como foram naturalizados, se fazem presentes nos
mais variados aspectos da vida social do indivíduo (França, 2013; Lima, 2020).
Dentre os fatores que impactam a formação da identidade social, destaca-
-se o fenômeno da socialização, pois, enquanto processo de aprendizagem social
no qual se efetua a transmissão e assimilação de padrões de comportamento,
normas, valores, crenças bem como o desenvolvimento de atitudes e senti-
mentos coletivos (França, 2013), a socialização pode interferir no processo de
autoidentificação e adesão a determinados grupos em decorrência das normas
e valores vigentes para aquele contexto social. Por exemplo, se considerados os
aspectos raciais da formação da sociedade brasileira, e de como se é transmitida
a imagem do negro, é possível compreender a fraca identificação racial de muitos
afro-brasileiros com o grupo dos negros.
Instituições como a família, a escola, o Centro de Referência da Assis-
tência Social – CRAS através do Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos – SCFV são primordiais para a socialização, pois se constituem em
agências promotoras deste processo, ou seja, agências da socialização, uma vez
que em seu interior ocorrem as interações sociais, transmissões das normas,
valores, crenças estabelecidas para a sociedade; em outras palavras, onde se
264 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

processa a aprendizagem social, a qual irá influenciar o sujeito e a percepção


dele a respeito de si.
Ademais, salienta-se a figura dos agentes da socialização, ou seja, os atores
que integram o funcionamento das instituições. Para o estudo em questão, o
Centro de Referência da Assistência Social - CRAS, enquanto instituição, de-
sempenha o papel de uma agência da socialização, local promotor das interações
sociais entre os funcionários e os usuários do serviço, e nela, os profissionais do
SCFV desempenham o papel de agentes da socialização, ou seja, os executores da
transmissão de valores, crenças e normas, pois são os responsáveis pelos processos
que implicam em aprendizado sistemático dentro da instituição ofertado em
forma de assistência social as crianças em situação de vulnerabilidade econômica.
Sendo assim, temos uma realidade que afeta duplamente as crianças usuá-
rias do SCFV, a condição social de vulnerabilidade e a raça delas, pois são atra-
vessamentos que potencializam prejuízos para as crianças que estão em plena
fase de desenvolvimento. Vale ressaltar que as atividades do SCFV ocorrem
nos CRAS e envolvem um trabalho constante com temáticas socioeducativas,
inclusive no que concerne ao aprofundamento das pertenças aos grupos sociais
mais intrínsecos, bem como a percursos que desconstruam possíveis crenças
negativas em relação a essas pertenças. Entretanto, nem sempre se consegue que
essa construção envolva temáticas raciais, embora sejam parte das orientações
do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, talvez não sejam seguidas à
risca pelos profissionais, oficineiros, psicólogos e todos os outros envolvidos na
prestação do serviço.
Diante de tal realidade, é possível conjecturar que o processo de sociali-
zação da identidade racial das crianças usuárias do SCVF sofra interferências
por parte das práticas e ações empreendidas pelos profissionais que trabalham
no serviço assistencial porque talvez estes estejam a reproduzir o contexto que
modela a socialização a respeito dos negros na sociedade de modo geral. Diante
deste quadro, surge os seguintes questionamentos: Os profissionais que estão em
contato com estas crianças têm consciência de uma realidade marcada pelo ra-
cismo, ou estão a reafirmar o discurso da igualdade racial? Ou seja, há uma per-
cepção do racismo na sociedade brasileira por parte dos profissionais do SCFV
e se há um posicionamento crítico desta realidade? No processo de socialização
tem sido dada ênfase as mensagens de fortalecimento a identidade racial negra?
Qual a frequência das transmissões de mensagens dos agentes socializadores do
SCFV? E a identidade racial do profissional do SCFV influencia na frequência
das mensagens que promovam o fortalecimento da identidade racial negra?
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 265

Para responder a essas questões, este capítulo apresenta os resultados de um


estudo que investiga se a socialização praticada pelos profissionais Serviços de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV promove o fortalecimento
da identidade racial de crianças em situação de vulnerabilidade social. Para isso,
foram consideradas as mensagens de fortalecimento da identidade racial das
crianças transmitidas pelos(as) profissionais do Serviço de Convivência e Forta-
lecimento de Vínculos (SCFV) em busca de verificar a percepção da frequência
e a importância dessa transmissão; e, ainda, se há influência da identidade racial
dos(as) profissionais na percepção da frequência e importância da transmissão
de mensagens para o fortalecimento da identidade racial das crianças.
Os resultados desta pesquisa colaboram com um campo de estudo sobre
um campo do desenvolvimento humano bastante discutido, entretanto, com va-
riáveis que fazem desta investigação exercício promissor de atuação profissional
da psicologia, pois apresenta uma realidade que talvez seja altamente implicada
pelas identidades negativas que estão associadas a sujeitos que além das dificul-
dades econômicas, carregam em seu fenótipo a marca da cor de pele negra, o
que por si só já os fazem estar em condição vulnerável na sociedade brasileira.

Identidade social
Quando alguém nos pergunta quem somos, uma variedade sem fim de
respostas é formulada em nossa mente. Essa variedade de respostas compõe um
discurso acerca da nossa identidade, que não pode ser expresso em sua integra-
lidade por abranger vários níveis. Um desses níveis é o pessoal, por exemplo, sou
alegre, inteligente, alta, etc. Um outro nível, o social, se refere a nós enquanto
participantes ativos de determinados grupos, por exemplo, sou educadora social,
membro da diretoria de um sindicato, mulher, etc. Decidir que resposta vamos
utilizar é uma tarefa complexa, mas percebemos que quando respondemos utili-
zando o nível social, damos uma resposta mais significativa por nos referirmos a
uma sobreposição percebida entre os grupos sociais com os quais nos identifica-
mos (Knifsend & Juvonen, 2014) dentro do contexto em que fomos questionados.
A identidade social diz respeito ao que o indivíduo apreende sobre si
mesmo e sobre a sua pertença a grupos sociais, juntamente com o significado
emocional e de valor associado a essa pertença (Tajfel, 1981). Significado e
valor são conotados positiva ou negativamente e não são algo individual, pois
o valor atribuído a um grupo depende do valor que a sociedade como um todo
atribui ao mesmo, interferindo no valor que a ele atribuímos individualmente
e, consequentemente, na emoção associada a ele, numa relação dialética.
266 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Esses fatores influenciam a formação do autoconceito, que consiste em uma


atitude valorativa (Sanchéz & Escribano, 1999), um conjunto de conceitos, repre-
sentações e avaliações que um indivíduo tem em relação a si próprio – imagens
acerca do que pensamos que somos, do que pensamos que conseguimos realizar,
do que pensamos que os outros pensam de nós, de como gostaríamos de ser, enfim.
Essa perspectiva é construída através de um processo cotidiano de comparação
com outros indivíduos e abrange os impactos da natureza do comportamento des-
ses mesmos indivíduos e sua importância subjetiva para as relações interpessoais
que eles mantêm, além de, poder ser utilizado para explicar o comportamento,
explicitar a interpretação da experiência e prover um certo grau de previsão, tanto
pessoal, quanto social. Não por acaso é um consenso que os grupos nos quais o
indivíduo está inserido influenciam diretamente na formação do autoconceito.
A identidade social está em permanente construção, sendo reelaborada todos
os dias, desde o início da vida do indivíduo e só termina de ser produzida quando da
sua morte. Nós buscamos o tempo todo formar uma autoimagem positiva, alinhada
com as nossas crenças e valores e, para isso, buscamos nos inserir em grupos que nos
tragam essa distintividade positiva e que, principalmente, sejam socialmente valori-
zados, pois é na comparação entre os grupos internos e externos que se encontra o
mecanismo causal que determina as relações entre grupos (Álvaro & Garrido, 2006).
À medida que um grupo não atenda às nossas aspirações individuais,
existe uma tendência a que o abandonemos. Entretanto, nem sempre é possível
abandonar um grupo, como no caso do grupo racial. Para um contexto desse
tipo, Tajfel (1981) fala sobre possíveis alternativas, em termos de ressignificar
individualmente os atributos do grupo, de modo que estes nos pareçam repre-
sentados de forma mais aceitável, ou de lançar mão de um esforço social que
possa acarretar mudanças sociais desejadas frente à situação em que o grupo se
encontra. Ou seja, segundo a teoria proposta por Tajfel (1981), possivelmente, os
negros estejam numa condição não muito confortável, neles residem o desejo de
pertencer a um grupo que atenda às suas aspirações individuais; e considerando-
-se que, para o sujeito a integração a um grupo racial dificulta a desassociação
a este grupo por razões do fenótipo, podemos dimensionar os conflitos que a
identidade racial pode ocasionar para uma criança desse grupo.
Nesse sentido também da autoidentificação social como pertencente a
um grupo em situação de vulnerabilidade econômica, mesmo que para a crian-
ça não seja compreendida a complexidade da situação por ela experimentada,
observa-se que nela reside o desejo de pertencimento a um grupo valorizado
economicamente, pois, os grupos definem seu lugar no mundo social através
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 267

de comparações com outros grupos relevantes, e o resultado dessa comparação


social importará para que os membros do grupo tentem alcançar uma identidade
social positiva, diferenciada e que persevere (Tajfel & Turner, 1979).
De modo que para a criança que integre e se identifique com estas identi-
dades sociais, o seu desenvolvimento seja prejudicado de maneira potencializada.
E o processo de socialização ao qual estão inseridos possa em partes reforçar os
estereótipos negativos dos grupos aos quais a criança pertença e/ou não proble-
matizem de forma crítica a realidade por eles experienciada.

Método
Participantes
Este estudo seguiu as orientações para pesquisa com seres humanos, tendo
autorização (CAAE no 46858221.0.0000.5546) para a realização. E os dados fo-
ram coletados a partir de plataforma Google Forms. Participaram 89 profissionais
do SCFV, sendo que 79 eram mulheres (79,8%) e 18 homens (20,2%), com idades
variantes entre 20 e 63 anos (M = 37,3; DP = 8,6). No que diz respeito à cor/raça,
19 se autodeclararam brancos (21,3%), 52 se autodeclararam pardos (58,4%) e 18
se disseram pretos (20,2 %). Quanto à escolaridade, 16 possuem o ensino médio
ou pedagógico (18%), 12 cursavam o ensino superior incompleto (13,5%), 30 com
ensino superior completo (33,7%) e 31 são pós-graduados (34,8%).
Quanto a composição da categoria profissional, observou-se que 56 eram
educadores sociais (62,9%), 11 eram psicólogos(as) (12,4%) e 7 eram assistentes
sociais (7,9%). A experiência profissional aferida em tempo de atuação oscilou de
3 meses a 22 anos (M = 7,3; DP = 4,7). E quantos aos aspectos da remuneração
destes profissionais, 78 afirmaram ter rendimentos entre 1 e 3 salários-mínimos,
e apenas 11 afirmaram receber acima de 3 salários-mínimos (12,4%).

Procedimentos
Os participantes foram recrutados em ambiente virtual, por meio da técni-
ca “bola de neve”. A plataforma utilizada para a disponibilização do instrumento
foi o Google Forms. O convite para participação da pesquisa foi realizado via
e-mail, plataformas de mensagens instantâneas e redes sociais.
Foi estabelecido como critério de inclusão dos participantes que eles preci-
sariam ser profissionais que trabalhassem nos Centros de Referência da Assis-
tência Social (CRAS) com grupos de crianças em situação de vulnerabilidade
social – as quais foram centro da pesquisa. Participantes que não se encaixaram
no critério de inclusão tiveram seus dados não incluídos nesta pesquisa.
268 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Instrumentos
O instrumento utilizado foi um questionário semi-estruturado, autoaplicável
por meio virtual. Para avaliar a socialização racial dos(as) profissionais, utilizou-se
um conjunto de 6 itens de resposta aberta sobre a transmissão de informações a
respeito do valor, da cultura e importância do grupo racial, adaptados da escala de
socialização étnica de Hughes e Chen (1999) para os(as) profissionais do SCFV.
Desse modo, os itens foram dispostos conforme o Quadro 2.

Quadro 2. Adaptação dos itens da Escala Étnica de Hughes e Chen (1999)

Ordem Pergunta
Em sua opinião, profissionais do SCFV devem falar sobre diferenças
1
entre as pessoas com as crianças do SCFV?
2 Você percebe o racismo na sociedade brasileira? Por gentileza, exemplifique.
Você conversa com as crianças do SCFV sobre diferenças étnicas e raciais das
3
pessoas? Caso você converse, por favor, relate nas linhas abaixo um exemplo.
Você diz às crianças do SCFV que as pessoas devem ser bem tratadas
4
independentemente da cor de pele que possuam?
Você crê que seja papel de profissionais do SCFV explicar às crianças que todas as
5
pessoas têm direitos iguais, independentemente de serem brancas ou negras?
Em sua opinião, falar sobre as diferenças raciais entre as pessoas contribui para
6 produzir nas crianças do SCFV a percepção da igualdade de direitos entre as pessoas?
Justifique sua resposta, por favor.

A avaliação da frequência da transmissão de mensagens que fortalecem a iden-


tidade racial das crianças, foi realizada por meio de 7 itens dispostos em escala Likert
de cinco pontos adaptados do estudo de Santos e França (2018), e os participantes
puderam escolher entre opções de resposta entre 1, significando “nunca” e, 5 signi-
ficando “sempre”. Desse modo os itens da escala foram os descritos no Quadro 3.

Quadro 3. Itens adaptados do estudo de Santos e França (2018)

Ordem Descrição
1 Noto que as crianças do SCFV sofrem racismo em seu dia a dia.
2 Incentivo as crianças do SCFV a valorizar as pessoas de todas as cores de pele.
Explico às crianças do SCFV que a cor da própria pele é uma importante característica
3
das pessoas.
4 Conto para as crianças do SCFV sobre a história e tradições do povo negro
Refiro para as crianças do SCFV que as pessoas negras devem ter orgulho de sua cor e
5
de suas características físicas como lábios, nariz e cabelos. .
Explico às crianças do SCFV que pessoas negras podem ter profissões como
6
professor, médico, advogado, engenheiro, etc.
Falo com as crianças do SCFV sobre as contribuições dos negros para a sociedade
7
brasileira.
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 269

A importância da transmissão de mensagens para o fortalecimento da


identidade racial das crianças foi avaliada por meio de uma escala Likert de 5
pontos, onde as opções de resposta variaram de 1 “nada importante” a 5 “muito
importante”. Cada participante respondeu a 6 afirmações sobre a promoção de
sentimentos positivos em relação ao pertencimento ao grupo racial de acordo
com o descrito no Quadro 4.

Quadro 4. Itens da importância da transmissão de mensagens de fortalecimento da


identidade racial

Ordem Descrição
Na educação social é importante promover o desenvolvimento da percepção de
1
pertencimento a um grupo racial pelas crianças.
Falar sobre cor da pele é importante para desenvolver a percepção de si mesmo
2
enquanto pertencente a um grupo racial pelas crianças do SCFV.
Falar sobre cor da pele é importante para a superação de dificuldades na vida das
3
crianças do SCFV.
Apresentar fatos e/ou histórias protagonizadas por pessoas negras é importante para
4
produzir o sentimento de valor do grupo pelas crianças negras do SCFV.
Orientar as crianças para o desenvolvimento de sentimentos positivos para seu grupo
5
racial é um importante papel do(a) educador(a) social.
A educação social é importante também para promover o desenvolvimento da
6
valorização racial nas crianças.

A avaliação da identidade racial dos(as) participantes se deu por meio


de 3 itens. No primeiro, perguntou-se da seguinte forma: Qual a sua raça/
cor da pele? Este item teve como opções de respostas as categorias de raça e
cor propostas pelo IBGE (Branca, Parda, Preta, Indígena e Amarela). O se-
gundo item perguntou sobre a importância da cor da própria pele (identidade
racial): O quanto ter esta cor de pele é importante para você? As respostas
foram registradas por meio de uma escala likert de cinco pontos, variando
de “nada importante” a “totalmente importante”, na qual, quanto maiores os
valores, maior a indicação da importância atribuída a própria cor da pele. E
por fim, avaliou-se a satisfação com a própria cor de pele. Perguntou-se: O
quanto você se sente satisfeito(a) com a cor da sua pele? As respostas foram
registradas por uma escala tipo likert de cinco pontos, a qual variou de “to-
talmente insatisfeito(a)” a “totalmente satisfeito(a)”, ou seja, quanto maior o
valor, maior a satisfação.
E por fim, foram as demais questões sociodemográficas investigaram a
idade, sexo, tempo de atuação no SCFV, profissão, escolaridade, cidade/estado,
faixa salarial e orientação político-ideológica.
270 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Análises
Os dados qualitativos foram analisados pelo software IRAMUTEQ
(Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Question-
naires) e foram realizadas análise de classificação Hierarquica descente,
lexicometria e análise do discurso. Os dados quantitativos foram analisados
pelo software IBM SPSS Statistics 20, e realizadas análises descritivas, de
frequência e Análises de Variância (ANOVA) para avaliar as diferenças das
médias entre os grupos de cor/raça, sexo, idade, cargo exercido, escolaridade
e rendimentos.
As referidas análises tinham foram necessárias visando testas as hipóteses
deste trabalho. Como primeira hipótese (H1) estabeleceu-se que os profis-
sionais do SCFV relatarão conhecimento do racismo na sociedade brasileira.
Entretanto, hipotetizamos que (H2) os profissionais do SCFV não abordam o
racismo em sua prática profissional. Tal qual acontece na sociedade brasileira
sobre o silenciamento das desigualdades raciais. Como terceira hipótese (H3)
prevemos que os profissionais pardos e pretos do SCFV apresentarão maior
frequência na emissão de mensagens de fortalecimento da identidade do que
os brancos. E por fim, hipotetizamos (H4) que a cor de pele influenciará na
percepção de necessidade de transmissão de mensagens de fortalecimento da
identidade da criança, ou seja, os profissionais negros atribuirão maior impor-
tância a transmissão de mensagens de fortalecimento da identidade do que os
profissionais brancos.

Resultados e discussões
O presente estudo teve como objetivo investigar se a socialização executada
pelos profissionais Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos –
SCFV promovem o fortalecimento da identidade racial de crianças em situação
de vulnerabilidade social. Especificamente, investigou-se 1) os profissionais que
estão em contato com estas crianças têm consciência de uma realidade marcada
pelo racismo, ou estão a reafirmar o discurso da igualdade racial? Ou seja, se há
uma percepção do racismo na sociedade brasileira por parte dos profissionais do
SCFV e se há um posicionamento crítico desta realidade? 2) se no processo de
socialização tem sido dada ênfase as mensagens de fortalecimento a identidade
racial negra? 3) qual a frequência das transmissões de mensagens dos agentes
socializadores do SCFV? E 4) A identidade racial do profissional do SCFV
influencia na frequência das mensagens que promovam o fortalecimento da
identidade racial negra?
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 271

Percepção sobre o racismo na sociedade brasileira


Para avaliar a temática do racismo na sociedade foi perguntado da seguinte
forma: “Você percebe o racismo na sociedade brasileira? Por gentileza, exem-
plifique”. Os dados coletados foram analisados no software IRAMUTEQ , e
foram obtidas 1390 palavras diferentes das 82 unidades de contexto iniciais
(UCI) do Corpus através da redução dos vocábulos às suas respectivas raízes.
Por meio da análise da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), o Cor-
pus denominado “Dimensões da percepção do racismo na sociedade brasileira”
(Gráfico 4) apresentou uma divisão composta de 5 (cinco) Classes, as quais
foram agrupadas em dois subcorpora.

Gráfico 4. Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente (CHD)


decorrente das percepções sobre o racismo na sociedade brasileira

Dimensões da percepção do racismo na sociedade brasileira

Racismo percebido na desigualdade social Características do racismo brasileiro

CLASSE 3 CLASSE 4 CLASSE 2


(20%) (24%) (20%)
“Diferenças de “Racismo é CLASSE 5 CLASSE 1 “Racismo
oportunidades um fenômeno (20%) (16%) presente em
entre negros e estrutural da “A cor de pele “A cor de pele atitudes e
brancos” sociedade negra implica branca garante comportamentos
brasileira” em tratamento privilégios do dia a dia”
negativo” sociais”
Palavras f x2 Palavras f x2 Palavras f x2
Situação 7 28 Racista 7 25.78 Diferente 10 28.12
Oportunidade 5 22 Social 7 17 Palavras f x 2
Palavras f x 2
Preto 4 17.39
Raça 5 2.4 Sociedade 12 15.76 Exemplo 11 16.78 Branco 9 31.17 Dia 3 4.34
Negro 7 2.3 Brasileiro 4 13.77 Perceber 5 12.5 Cor 6 13.02 Pequeno 3 4.34
Estar 5 3.95 Pele 6 3.84 Negro 15 4.79 Ver 3 4.34
Todo 5 3.95 Racismo 10 3.12 Ter 6 13.02
Se 4 11.26
Pessoa 18 6.29

Do lado esquerdo do Dendograma situa-se o subcorpus denominado de


“Racismo percebido na desigualdade social”, no qual se encontra a classe 3,
denominada de “Diferenças de oportunidades entre brancos e negros”. Já ao
lado direito, observa-se o subcorpus denominado de “Características específicas
do Racismo brasileiro”, o qual apresenta duas subdivisões: uma delas, localizada
ao lado direito do Dendograma, engloba a percepção do racismo nas interações
cotidianas, sendo representado pela Classe 2 – “Racismo presente em atitudes
272 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

e comportamentos do dia a dia”. A outra subdivisão, localizada no centro do


Dendograma, apresenta duas ramificações, consistindo uma delas na Classe 4,
denominada de “Racismo é um fenômeno estrutural da sociedade brasileira” e a
outra ramificação correspondendo às Classes 1 – “A cor da pele branca garante
privilégios sociais” e 5 – “A cor da pele negra implica em tratamento negativo”,
ambas contemplando o Racismo como um fenômeno resultante das diferenças
de valor atribuídas à cor da pele.
Em relação à Classe 4, esta abrangeu 24% das Unidades de Contexto
Elementares (UCEs). Em seguida, as Classes 2, 3 e 5 apresentaram cada uma
20% das UCEs. E, por fim, a Classe 1 sendo a menos representativa do Corpus,
abrangendo um total de 16% das UCEs.
Através da análise semântica da Classe 3 (UCEs = 20%), nomeada
de “Diferença de Oportunidades entre brancos e negros”, demonstrou-se a
existência de representações organizadas a partir da ideia de que o racismo
pode ser verificado por meio das diferenças entre brancos e negros no que
concerne às possibilidades de ascensão social. Os posicionamentos encontra-
dos nessa Classe destacam que as pessoas negras não dispõem das mesmas
oportunidades de emprego que as pessoas brancas, além de estarem muito
pouco representadas em estratos mais elevados da sociedade. Tal como pode
ser visto na Gráfico 4, que as palavras situação, oportunidade, raça e negro
foram as mais representativas dessa Classe. E é possível identificar discursos
representativos da Classe 3 no relato do sujeito (i): “(...) Pessoas negras nem
sempre têm as mesmas oportunidades que as de pele clara como também
em diversas situações são colocadas à margem da sociedade (...)”, bem como
no relato do sujeito (ii): “(...) Nas situações mais simples do cotidiano, em
expressões do vocabulário do dia a dia, na falta de oportunidades, na falta
de representatividade nas diferentes áreas da sociedade (...)”. De modo que
observa-se que os participantes percebem o racismo a partir da desigualdade
social entre negros e brancos.
Por meio dos conteúdos discursivos da Classe 2 (UCEs = 20%), denomi-
nada de “Racismo presente em atitudes e comportamentos do dia a dia”, foram
reveladas percepções organizadas em torno da concepção do racismo, como um
fenômeno que faz parte do nosso cotidiano, podendo ser identificado em com-
portamentos e atitudes nas interações sociais. As palavras mais representativas
nessa Classe foram: diferente, preto, dia, pequeno e ver (ver Gráfico 4). E os
discursos representativos desta classe, a exemplo de (i): “(...) Quando tratamos
por estereótipos e apelidos as pessoas (...)” e o (ii): “(...) presente nas relações
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 273

escolares e nas relações de trabalho (...)” identificam que os(as) participantes


observam o racismo em situações cotidianas.
A Classe 4 (UCEs = 24%), nomeada de “Racismo é um fenômeno estru-
tural da sociedade brasileira”, foi a mais frequente no Corpus e está organizada a
partir da percepção de que o racismo é um fenômeno enraizado na organização
e na estrutura social do Brasil. Ao contrário das classes anteriores, as quais
voltam-se para a definição do racismo enquanto um problema de desigualdade
social entre negros e brancos (Classe 3) ou como tratamentos desiguais entre
brancos e negros nas interações cotidianas (Classe 2), os discursos da Classe
4 enfatizam que o racismo é basilar na sociedade brasileira. As palavras mais
frequentes dessa classe foram: racista, social, sociedade, brasileiro, estar e todo
(ver Gráfico 4). Sendo possível identificar amostras dos discursos representa-
tivos dessa Classe nos trechos (i): “(...) a sociedade brasileira é estruturalmente
racista um exemplo é o mercado de trabalho cujos cargos de chefia em sua
grande maioria está com pessoas brancas (...)” e no (ii): “(...) acho que a sociedade
brasileira é a mais racista (...)”.
Já as Classes 1 e 5 distinguem-se das classes anteriores por apresentarem
discursos que situam o racismo no Brasil como um fenômeno ligado às dife-
renças de valor e de status associados à cor da pele. Na Classe 5 (UCEs = 20%),
nomeada de “A cor da pele negra implica em tratamento negativo”, há uma
abrangência de discursos que identificam o racismo no Brasil a partir do modo
contraproducente pelo qual as pessoas negras são tratadas em função de sua
cor de pele. As palavras mais representativas para essa Classe foram: exemplo,
perceber, pele e racismo (ver Gráfico 4). Sendo algumas referências dos dis-
cursos representativos desta classe as seguintes (i): “(...) a cor da pele influencia
na hora da contratação em empresas há racismo até mesmo em propagandas
de televisão (...)” e (ii): “(...) as pessoas de pele escura são tratadas diferente em
muitas situações e isso é racismo (...)”.
Por fim, a Classe 1 (UCEs = 16%), nomeada como “A cor de pele branca
garante privilégios sociais”, engloba discursos que reconhecem o racismo na
sociedade brasileira a partir dos privilégios conferidos às pessoas que possuem
a cor de pele identificada como branca. Em síntese, as percepções contempladas
nessa classe envolvem a ideia de que ser branco no Brasil garante um tratamento
privilegiado e uma posição de poder em relação às pessoas não brancas. As
palavras mais representativas dessa classe foram: branco, cor, negro, ter, se e
pessoa (ver Gráfico 4). Sendo os discursos representativos da classe o (i): “(...)
algumas pessoas por ter pele branca sentem se superiores em relação a outras
274 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

(...)” e o (ii): “(...) tenho amigas negras e tenho relato delas de atendimento em
lojas por exemplo se entrar alguém da cor branca será atendido primeiro (...)”.
Desse modo, os resultados indicam que a hipótese (H1) que predizia
que os profissionais do SCFV relatariam que de modo geral havia racismo na
sociedade brasileira foi confirmada, pois, os resultados obtidos nessa análise
expressam que os(as) profissionais entrevistados(as) convergem na ideia de que
o racismo é, de fato, um problema social, corroborando com o pensamento de
Bernardino (2002) que aborda o racismo enquanto uma espécie de estrutura
sistemática voltada para o impedimento de condições de oportunidades iguais.
Outra convergência dos resultados desse estudo diz respeito à menção reiterada
de assimetria de estatuto social e, por conseguinte, de relações de poder entre
brancos e negros. Essa reiteração ganha força quando resgatamos a concepção
do racismo enquanto estrutura ideológica de Wetherell e Potter (1992), a qual
gera práticas sociais que autenticam essas assimetrias de relações de poder e
estatuto social.
Desse modo, os resultados aqui relatados revelam uma percepção de como
o racismo estrutural se faz presente na sociedade brasileira de maneira natu-
ralizada. Em uma sociedade que tornou o reconhecimento do racismo mais
difícil, o sedimentando em seu cotidiano através de ideologias tais como a da
mestiçagem e a do mito da democracia racial (Lima, 2004), como é o caso do
Brasil, a obtenção de resultados que o percebem como fenômeno intrínseco
demonstra que a temática tem sido debatida ou pensada de algum modo por
esses(as) profissionais. Ao passo que estes resultados corroboram com os estu-
dos de Santos e Scopinho (2016) da existência de uma dificuldade imposta aos
negos para ascensão social por meio do cerceamento de oportunidades que são
negadas a eles neste país.
Outrossim, esses resultados ilustram, de acordo com a classe mais re-
presentativa (Classe 4), a ideia de racismo sendo contemplada enquanto um
problema estrutural da sociedade brasileira. Em uma sociedade que tornou
o reconhecimento do racismo mais difícil, o sedimentando em seu cotidiano
através de ideologias tais como a da mestiçagem e a do mito da democracia
racial (Lima, 2004), como é o caso do Brasil, a obtenção de resultados que o
percebem como fenômeno intrínseco demonstra que a temática tem sido deba-
tida ou pensada de algum modo por esses(as) profissionais.
Ao mesmo tempo, pode-se notar que a classe menos representativa (Classe
1) é a única entre as 5 classes analisadas que contempla a ideia de que o branco é
o grupo privilegiado pelo racismo. Esse resultado, ao passo em que surpreende
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 275

por refletir que uma parcela dos(as) profissionais participantes do estudo estão
conscientes de que o racismo visa a legitimação das desigualdades entre brancos
e negros através do estabelecimento de lugares e papéis fixos para esses grupos
humanos na sociedade (Cabecinhas, 2007), também se mostra um resultado
expectável, por conta da sua baixa representatividade. Apesar do privilégio
branco ser sistemático quando pensamos em acesso a recursos (Shucman, 2014),
tanto materiais, quanto simbólicos, pois boa parte dos atores sociais envolvidos
na inclusão racial não reconhecem que o privilégio branco está na base da es-
tratificação racial existente no Brasil (Cardoso, 2011).

Posicionamento crítico dos profissionais


Para avaliar a expressão do pensamento crítico relatado sobre o racis-
mo nas práticas desses(as) profissionais junto às crianças usuárias do SCFV
foi perguntado da seguinte forma: “Você conversa com as crianças do SCFV
sobre diferenças étnicas e raciais das pessoas? Caso converse, por favor, relate
nas linhas abaixo um exemplo”. Neste item foram alcançadas 1587 palavras
diferentes das 76 unidades de contexto iniciais (UCI) do Corpus. Como na

Gráfico 5. Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente (CHD)


decorrente da transmissão de mensagens para o fortalecimento racial

Dimensões da transmissão de mensagens para o fortalecimento étnico-racial

Práticas de rotina do SCFV Valorização do negro/diversidade étnico-racial

Igualdade de direitos

CLASSE 1 CLASSE 3 CLASSE 2


(18,8%) (22,9%) (16,7%)
“Discussão “O diálogo como “Valorar o
do racismo CLASSE 5 CLASSE 4 ferramenta de fenótipo do
como parte do (18,8%) (22,9%) valorização das negro e a
trabalho do “Todos(as) têm “Cor da pele diferenças” diversidade
SCFV” o direito de ser não deve ser racial”
respeitados(as)” razão para
Palavras f x2 preconceito” Palavras f x2 Palavras f x2
Conversa 9 48 Diferença 11 13.39 Negro 4 21.82
Roda 7 24.12 Conversar 16 9.97 Racial 4 21.82
Vídeo 3 13.87 Abordar 3 3.47 Existir 5 16.12
Palavras f x2 Palavras f x2
SCFV 3 4.82 Cabelo 4 10.69
Dever 8 12.06 Pele 9 27.29
Música 3 4.82 Étnico 3 5.76
Diferente 7 7.93 Cor 9 27.29
Exemplo 10 4.95
Direito 5 6.23 Falar 6 14.17
Igual 4 2.8 Respeito 12 11.36
Merecer 3 10.76
Criança 7 5.43
Importância 3 3.37
276 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

análise anterior, também nesta análise os vocábulos foram reduzidos às suas


raízes correspondentes. O Corpus denominado “Dimensões da transmissão de
mensagens para o fortalecimento racial” (Gráfico 5) foi igualmente analisado
através da sua Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e, do mesmo
modo, apresentou uma divisão constituída por 5 (cinco) Classes, as quais foram
agrupadas em dois subcorpora.
Do lado esquerdo do Dendograma situa-se o subcorpus denominado de
“Práticas de rotina do SCFV”, no qual se encontra a Classe 1, denominada de
“Discussão do racismo como parte do trabalho do SCFV”, a qual engloba a
transmissão de mensagens antirracistas enquanto um trabalho cotidiano para o
Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). Já ao lado direito,
observa-se dois subcorpora denominados de “Valorização do negro/Diversidade
racial”, situado mais na extrema direita do Gráfico 5, e “Igualdade de direitos”,
situada na região central da imagem. Ambos os subcorpora apresentam duas
subdivisões.
O subcorpus “Valorização do negro/Diversidade racial”, o qual apresenta
duas subdivisões: a Classe 2, denominada de “Valorar o fenótipo do negro e a
diversidade racial” e a Classe 3, nomeada como “O diálogo como ferramenta
de valoração das diferenças”, as duas voltadas para a importância de abordar
as diferenças raciais e o respeito. O subcorpus “Igualdade de direitos” também
apresenta duas ramificações, consistindo uma delas na Classe 4, denominada
de “Cor da pele não deve ser razão para preconceito” e a outra ramificação
correspondendo à Classe 5, “Todos têm o direito de ser respeitados”, ambas
contemplando a transmissão de mensagens antirracistas como forma de pro-
mover igualdade e equidade entre as crianças.
Em relação às Classes 3 e 4, cada uma delas abrangeu 22,9 % das Unidades
de Contexto Elementares (UCEs). Em seguida, as Classes 1 e 5 apresentaram
cada uma 18,8 % das UCEs. Por fim, a Classe 2 sendo a menos representativa
do Corpus, abrangendo um total de 16,7 % das UCEs.
Através da análise semântica da Classe 1 (UCEs = 18,8%), nomeada de
“Discussão do racismo como parte do trabalho do SCFV”, demonstrou-se a
existência de práticas rotineiras no Serviço de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos (SCFV) no que concerne à discussão da temática do racismo por
meio de diversas práticas socioeducativas. Os discursos encontrados nessa Classe
destacam que há uma constância nessas práticas, porém ela não é uma das classes
mais representativas, o que leva a crer que apenas uma modesta parcela dos(as)
profissionais estão comprometidos(as) com essa continuidade na transmissão
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 277

dessas mensagens. Tal como pode ser visto no Gráfico 5, as palavras “conversa”,
“roda”, “vídeo”, “SCFV” e “música” são as mais representativas dessa Classe. E
nos discursos representativos da Classe 1, a exemplo (i): “(...) através de dinâmicas,
rodas de conversa, músicas e textos (...)” e (ii): “(...) eu e outros colegas também
educadores atuamos nesse sentido através de rodas de conversa, vídeos e palestras
(...)”, observa-se que os participantes utilizam ferramentas parecidas para a trans-
missão de mensagens para combater o racismo e fortalecer a identidade racial.
Por meio dos conteúdos discursivos da Classe 5 (UCEs = 18,8%), deno-
minada de “Todos(as) têm o direito de ser respeitados”, foram reveladas percep-
ções organizadas em torno da inconformação com o desrespeito que as pessoas
sofrem em virtude de diferenças de um modo geral (não apenas diferenças
raciais), podendo ser identificada uma inclinação das falas para uma tentativa
de mudança desse cenário social – do desrespeito às diferenças. O Gráfico 5
indica que as palavras mais representativas nessa Classe foram: dever, diferente,
direito e igual. E a partir dos discursos representativos da Classe 5, a exemplo:
(i): “(...) eu converso sobre o preconceito que as pessoas diferentes sofrem e que
não devia de ser assim (...)” e (ii): “(...) converso sim, por exemplo, que as pes-
soas têm os mesmos direitos mesmo se são de raças diferentes isso não deveria
mudar o tratamento e elas não podem aceitar se fizerem isso com elas (...)”. É
possível identificar a transmissão da inconformidade dos(as) participantes com
o desrespeito às diferenças, inclusive encorajando que outras pessoas também
não se resignem perante uma situação de falta de respeito.
A Classe 4 (UCEs = 22,9%), nomeada de “Cor da pele não deve ser razão
para preconceito”, foi uma das duas mais frequentes no Corpus e está organizada
a partir da percepção de que as diferenças raciais existem, são importantes para
a identidade do indivíduo e não deveria ser motivo para sofrimento. Essa Classe,
para além da Classe 5, parte do mesmo princípio – respeito à cor da pele – e,
no entanto, vai além dela por tender a um aprofundamento no que diz respeito
à reflexão acerca da falta de fundamentos para tratamentos desiguais baseados
na cor da pele. As palavras mais frequentes dessa classe, de acordo com o Grá-
fico 5, foram: pele, cor, falar, respeito, merecer, criança e importância. Sendo
os discursos representativos desta Classe 4 o (i): “(...) no próprio serviço temos
crianças com tons de pele variados (...) tento esclarecer a importância dessas
diferenciações e a singularidade que cada criança ou indivíduo traz (...)” e (ii):
“(...) conversava (...) a respeito das diferenças, principalmente a relacionada a
cor da pele que era o que mais eles traziam como incômodo e fazendo com que
fosse possível a autoaceitação e (...) o respeito aos direitos (...)”.
278 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Já as Classes 3 (uma das duas mais representativas) e 2 (a menos repre-


sentativa) apresentam discursos voltados para a valoração das diferenças raciais.
A Classe 3 (UCEs = 22,9 %), nomeada de “O diálogo como ferramenta de
valoração das diferenças”, foca na importância de falar sobre a temática como
forma de transmitir não apenas mensagens que fomentem uma valoração po-
sitiva dessas diferenças, como também a responsabilidade de cada pessoa ser
multiplicadora dessas mensagens até que a conscientização seja a regra e não
apenas exceção. As palavras mais representativas para essa Classe foram: di-
ferença, conversar e abordar (ver Gráfico 5). Sendo algumas referências dos
discursos representativos da Classe 3 o (i): “(...) converso sobre o lugar que elas
ocupam na sociedade e o que elas podem fazer para modificar a forma como
são tratadas mas que não depende apenas delas toda a sociedade precisa passar
por conscientizações para que as diferenças sejam motivo de orgulho e não de
sofrimento (...)” e o (ii): “(...) Sim, pois temos grupos heterogêneos e bem diver-
sificados fato que conversar sobre diferenças é fundamental (...)”.
Por fim, a Classe 2 (UCEs = 16,7 %), nomeada como “Valorar o fenótipo
do negro e a diversidade racial”, engloba discursos que transmitem o reconhe-
cimento da diversidade racial e do fenótipo negro enquanto revestidos de valor
positivo, mesmo que a sociedade brasileira ainda não exerça plenamente esse
reconhecimento. Em síntese, as percepções contempladas nessa classe mostram
que há beleza no fenótipo negro e que a diversidade racial agrega valor indi-
vidual, social e cultural. Conforme apontado no Gráfico 5, as palavras mais
representativas dessa classe foram: negro, racial, existir, cabelo, étnico e exemplo.
Sendo exemplos de discursos da Classe 2, (i): “(...) através de atividades sobre as
diferenças de tipos de cabelo, de pele, de olhos, de entendimentos sobre assun-
tos, da vida, da cultura (...)” e (ii): “(...) a temática da diversidade étnica e racial
é constante principalmente porque o público em sua maioria é de crianças e
adolescentes negros constantemente converso sobre a beleza dos cabelos crespos
e cacheados para desmitificar a ideia equivocada de que existe cabelo ruim (...)”.
Os resultados obtidos nessa análise expressam que os(as) profissionais en-
trevistados(as) convergem para a importância da transmissão de mensagens para o
fortalecimento da identidade racial em suas práticas no Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos (SCFV). De modo que a hipótese (H2) que predisse
que os profissionais não abordariam o racismo em sua prática profissional não foi
confirmada, pois ele apresentaram bastante conhecimento e práticas antirracistas
em sua atuação profissional Em seus discursos, esses profissionais afirmaram
transmitir essas mensagens às crianças - em maior ou menor escala. Todas as
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 279

classes demonstraram em algum nível que os(as) participantes são conscientes da


norma antirracista, ressaltando o entendimento de que a utilização de estratégias
de diálogo – sobre respeito às diferenças, igualdade de direitos, valorização do
negro – são uma forma essencial de fortalecimento da identidade racial.
Uma das duas classes mais representativas, a Classe 3 – “O diálogo como
ferramenta de valoração das diferenças”, expressa de modo saliente que as es-
tratégias de diálogo são concebidas pelos(as) profissionais do Serviço de Con-
vivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) como práticas necessárias para
uma gradual e positiva modificação na forma como a sociedade lida com as
diferenças raciais e com o racismo manifesto em termos de comportamentos que
a sociedade espera de pessoas de um determinado pertencimento racial, bem
como dos rótulos que está habituada a aplicar a essas pessoas (Appiah, 2000).
Esses resultados ilustram, ainda, de acordo com a outra classe mais re-
presentativa (Classe 4 – “Cor da pele não deve ser razão para preconceito”), a
ideia de que os(as) profissionais do SCFV procuram combater o racismo entre
as crianças, transmitindo-lhes mensagens de que a cor da pele não deve ser
utilizada como critério para manifestar atitudes frente aos diferentes grupos
raciais. Os discursos dessa classe refletem ainda a ênfase na ideia de que todas as
cores de pele devem ser positivamente valoradas e todos os grupos raciais devem
ser respeitados e têm a sua importância, convergindo com valores preconizados
pelo artigo 3 da Constituição Federal (Brasil, 1988) que tenciona assegurar
uma sociedade justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, etc.
Em relação à Classe 2 – “Valorar o fenótipo e a diversidade racial” (a menos
representativa), percebe-se que mesmo numa amostra aparentemente consciente
das desigualdades raciais existentes na sociedade brasileira, a valoração das ca-
racterísticas fenotípicas do grupo minoritário (negros) emerge como a estratégia
menos reportada pelos(as) profissionais do SCFV no combate ao racismo entre
crianças. Esse resultado sinaliza como os fatores intergrupais incidem sobre o
desenvolvimento de estratégias de combate ao preconceito e à discriminação
racial. A valoração positiva de características do grupo minoritário é comumente
identificada como uma ameaça ao status desfrutado pelo grupo dominante (Ta-
jfel, 1981). A diferença de status entre o grupo dominante e o minoritário, por
conseguinte, pode provocar resistência sobre a adesão a estratégias de combate
ao racismo baseadas na valoração do fenótipo negro. A seguir, apresenta-se as
análises dos dados quantitativos sobre a transmissão de mensagens de fortale-
cimento da identidade das crianças e a identidade racial dos profissionais do
SCFV que darão uma nova compreensão dos dados coletados neste estudo.
280 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Ênfase nas mensagens de fortalecimento da identidade racial negra


Para analisar a frequência com que os(as) profissionais do SCFV trans-
mitem mensagens para o fortalecimento da identidade racial das crianças em
situação de vulnerabilidade social realizou-se uma análise fatorial com rotação
varimax com os itens da escala proposta (ver itens na descrição do instrumento)
para aferir esse comportamento. A análise mostrou que o bloco dos itens com-
põem um único fator com carga fatorial satisfatória e KMO alto (0,838), e com
eigenvalue = 3,353, explicando 47,9% da variância do fenômeno. Foi realizada
ainda uma análise de consistência interna Alfa de Cronbach com o intuito de
verificar se a escala consistentemente reflete o construto que está medindo e
obtivemos um índice considerado satisfatório (Alfa de Cronbach = 0,806).
Através da média dos itens, foi construído o indicador da frequência de
transmissão de mensagens para o fortalecimento da identidade racial das crian-
ças. Uma análise geral do grupo mostrou que a média dessa frequência de
transmissão de mensagens foi de M = 3,2 com DP = 0,59, demonstrando que, de
modo geral, os(as) participantes frequentemente transmitem mensagens como,
por exemplo, dizer para “as crianças do SCFV que as pessoas negras devem ter
orgulho de sua cor e de suas características físicas como lábios, nariz e cabelos”;
e dizer para “as crianças do SCFV valorizarem as pessoas de todas as cores de
pele”. Esse resultado é confirmado pelo Test t simples contra o ponto médio da
escala (considerando 2 como o ponto médio) [t (88) = 19,02; p = .001].
Já para verificar as diferenças entre frequência de transmissão de mensagens
para o fortalecimento da identidade racial das crianças em função da cor da pele,
idade e proximidade dos(as) profissionais dos(as) educandos(as) – cargo de Edu-
cador(a) Social que tem contato mais frequente ou um dos outros cargos que têm
contato mais esporádico com as crianças – foi realizada uma Análise de Variância
Univariada (ANOVA) tomando-se o indicador de frequência de transmissão de
mensagens para o fortalecimento da identidade racial das crianças como variável
dependente e a cor da pele, a idade e a proximidade dos(as) profissionais dos(as)
educandos(as) como variáveis independentes. Os resultados revelaram que apenas
a cor da pele demostrou uma tendência à significância estatística, indicando que
os(as) participantes brancos tendem a transmitir mensagens de fortalecimento
da identidade para as crianças mais frequentemente do que os pardos e os pretos
(F (1,89) = 3,657; p = 0.059). Os demais indicadores não se demonstraram sig-
nificativos (p. > 0.1). Sendo assim, a hipótese (H3) não foi confirmada, pois ela
predizia que os pardos e pretos apresentariam uma maior frequência de trans-
missão de mensagens de fortalecimento da identidade do que os brancos.
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 281

Para analisar a percepção dos(as) profissionais do SCFV acerca da impor-


tância do fortalecimento da identidade social das crianças, foi construído um
conjunto de afirmações visando conhecer se os(as) profissionais do SCFV con-
sideram importante fortalecer a identidade racial da criança. Assim, realizou-se
uma análise fatorial com rotação Varimax e verificou-se que o conjunto de itens
constitui-se em único fator com carga fatorial satisfatória (KMO = 0,831), com
eigenvalue = 3,647, e explica 60,78% da variância do fenômeno (ver os itens na
descrição do instrumento). Na análise de consistência interna obteve-se um
índice considerado satisfatório (Alfa de Cronbach = 0,865).
Através da média dos itens, foi construído o indicador da importância
da afirmação da identidade racial dos profissionais. A análise geral do grupo
demonstrou alta percepção de importância do fortalecimento da identidade
racial das crianças (M = 3,6; DP = 0,45). O Test t simples contra o ponto médio
da escala (ponto médio = 2), evidenciou que de maneira geral, os participantes
consideram importante ou muito importante fortalecer a identidade racial das
crianças – como pode ser notado através de um dos itens, o qual pede para julgar
a importância da promoção do “desenvolvimento da percepção de pertencimento
a um grupo racial pelas crianças” [-t (88) = 32,83; p = .001].
Foi verificado ainda as diferenças na atribuição de importância ao forta-
lecimento da identidade racial das crianças em função da cor da pele, idade e
proximidade dos(as) profissionais dos(as) educandos(as). Para isso foi realizada
uma análise de variância univariada (ANOVA), tomando-se o indicador da
afirmação da identidade racial dos(as) profissionais como variável dependente
e a cor da pele, idade e proximidade dos(as) profissionais dos(as) educandos(as)
como variáveis independentes. Observamos que a percepção de importância da
afirmação da identidade racial independe da cor da pele, idade e proximidade
dos profissionais dos(as) educandos(as) (p. > 0.1).

Identidade racial dos profissionais e a relação com a frequência e


importância para a transmissão de mensagens
E para analisar se a identidade racial dos profissionais do SCFV influen-
cia na frequência e na importância da transmissão de mensagens para o for-
talecimento da identidade racial das crianças, realizou-se uma ANOVA One
Way, tomando-se a cor da pele dos(as) participantes (branca, parda e preta)
como variável independente e as suas respostas à importância da identidade e
à satisfação da identidade como variáveis dependentes. Observou-se diferenças
significativas da cor da pele dos(as) profissionais tanto na importância, quanto
282 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

na satisfação com a cor da pele (F (2, 88) = 9.03; p > .001; F (2, 88) = 5.60; p >
.005, respectivamente).
No que concerne à importância da identidade, os resultados indicaram que
os (as) participantes autodeclarados(as) pretos(as) atribuem significativamente
mais importância à própria identidade (M = 3,5; DP = .62; Scheffe = .024), do
que os(as) pardos(as) (M = 2,54; DP = 1,41; Scheffe = .024) e do que os(as) bran-
cos(as) (M = 1,74; DP = 1,28; Scheffe > .001) atribuem. Já os(as) participantes
pardos(as) tendencialmente atribuem mais importância à própria identidade do
que os(as) participantes brancos(as) (Scheffe = .066). Com a relação à satisfação
com a identidade, observou-se que os(as) participantes pretos(as) e pardos(as)
declararam-se igualmente satisfeitos com suas identidades (Mpreta = 3,61; DPpreta
= .50; Mparda = 3,21; DPparda = .89; Scheffe = .192). Entretanto, apenas os(as) pre-
tos(as) declararam-se mais satisfeitos com a sua cor do que os(as) brancos(as)
(M = 2,74; DP = .73; Scheffe = .005). Os resultados demonstraram que brancos
e pardos não se diferenciaram Scheffe = .09.

Tabela 2. Valores relacionados à Média, Desvio Padrão e Teste de Scheffe dos


resultados autoatribuídos acerca das variáveis “importância da identidade” e
“satisfação com a identidade”

Importância e satisfação com a identidade em função da cor da pele


Variável Cor da pele Média Desvio Padrão Teste de Scheffe
Importância da identidade Preta 3,5 .62 .024
Importância da identidade Parda 2,54 1,41 .024
Importância da identidade Branca 1,74 1,28 .001
Parda x branca – -- .066
Satisfação com a identidade Preta 3,61 .50 1.92
Satisfação com a identidade Parda 3,21 .89 1.92
Satisfação com a identidade Branca 2,74 .73 .005
Preta x branca .005
Parda x branca .09
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir da análise de dados do IBM SPSS Statistics 20.

Ainda com o intuito de analisar a influência da identidade racial dos (as)


profissionais do SCFV na percepção da frequência e importância da transmissão
de mensagens para o fortalecimento da identidade racial, foi criada inicialmente
a categoria “negros” através da aglutinação dos participantes pardos e pretos, de
modo que a cor da pele se tornou uma variável de dois níveis: brancos e negros.
Esse procedimento foi necessário devido ao pequeno número de participantes
pretos em algumas categorias.
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 283

As variáveis “importância da identidade” e “satisfação com a identidade”


foram recodificadas em dois níveis: alta e baixa importância da identidade, e alta
e baixa satisfação com a identidade. Em seguida, procedeu-se a organização do
banco de dados em função da cor da pele pelo método Split File. E, finalmente,
realizou-se uma ANOVA One Way para cada nível da variável independente.
Assim, tomou-se a importância e a satisfação com a identidade como variáveis
independentes e a percepção da frequência e importância da transmissão de
mensagens para o fortalecimento da identidade racial das crianças como variá-
veis dependentes. No conjunto da análise das variáveis independentes, apenas
um resultado demonstrou-se significativo: no que concerne aos participantes
negros que atribuem alta importância à própria cor, estes percebem mais a
importância de fortalecer a identidade racial das crianças do SCFV (M = 3,63;
DP = 3.36; F (1,69 = 5,81; p = 0.019) do que os que atribuem baixa importância
(M = 3,36; DP = .49). De modo que a hipótese (H4) que predizia que para os
profissionais negros do SCFV haveria uma maior importância da cor de pele e
necessidade da transmissão de mensagens para o fortalecimento da identidade
racial das crianças foi confirmada.
Este resultado em certa medida se aproxima teoricamente dos aspectos
de valorização endogrupal apresentados por Tajfel (1981) e especificamente, os
sujeitos que atribuíam alta importância a sua cor de pele, ao que parece, emitem
mais mensagens de fortalecimento da identidade racial negra como forma de
proteção grupal. E este aspecto é extremamente salutar para o que podemos
esperar de ambiente diverso em que os agentes de socialização negros atuam
como agentes mobilizadores da desnaturalização das desigualdades impostas
pelo racismo, muito embora, o problema deveria ser discutido por todos os
profissionais na mesma intensidade, independentemente da cor de pele dele.
As análises quanto a frequência, importância e influência da identidade
dos (as) profissionais no SCVF na transmissão de mensagens, foi constatado que
os participantes brancos tendem mais frequentemente a transmitir mensagens
de fortalecimento racial do que os participantes pardos e negros. Este resulta-
do muito nos chamou atenção por não ser o corriqueiramente encontrado nas
pesquisas sobre identidade étnica.
Sendo os brancos o grupo social majoritário que obtêm maior valoração
positiva dentro das relações sociais e que ocupa mais espaços e posições de poder
(Lima, 2020), consequentemente, os mais beneficiados no acesso a recursos
materiais e simbólicos, os resultados encontrados destoam do que a literatura
comumente nos apresenta (Matos, 2020; Carvalho, 2020). Os brancos não
284 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

aparecem, geralmente, como protagonistas da socialização para o fortalecimento


da identidade racial, sendo inclusive mais relatados enquanto promotores de
um silêncio (Pinto & Ferreira, 2014) mantenedor do estatuto social vigente
(status quo).
Os autores ressaltam ainda que esse silêncio a respeito da questão racial
no Brasil nos mergulha em uma espécie de cegueira, “como se o preconceito e
a discriminação não existissem” (Pinto & Ferreira, 2014, p. 260), perpetuando
assim, as desigualdades raciais. Essa dificuldade em reconhecer a discriminação
racial tem a ver com a forma como vivenciamos as nossas interações sociais, as
quais favorecem a absorção de uma valoração negativa em relação aos grupos
minoritários, ou nas quais a socialização e a identidade racial das crianças são
desrespeitadas pelos agentes socializadores, como pode ser visto no estudo das
autoras Martins e Candido (2016) realizado com professores(as). Esses resultados
tornam os nossos achados em relação à frequência da transmissão de mensagens
para o fortalecimento da identidade racial das crianças ainda mais singulares.
Levamos aqui em consideração a possibilidade da característica da amostra
ser um fator que justifique esses achados, pelo fato dos(as) profissionais lidarem
diretamente com crianças em situação de vulnerabilidade social – condição
proeminentemente relacionada à cor da pele neste país (Costa, 2017) – levando
esses(as) participantes à percepção da necessidade de se trabalhar as mensagens
de transmissão dentro do contexto de suas práticas socioeducativas.
Assim sendo, para este trabalho, mesmo não corroborando com a literatura
geral, esses resultados se mostram satisfatórios em termos de ação efetiva para
o fortalecimento da identidade racial das crianças participantes do Serviço de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), pois converge com o que
preconiza o próprio SUAS quando diz que o SCFV deve “estimular as trocas
culturais e o compartilhamento de vivências; desenvolver junto aos usuários
o sentimento de pertença e de identidade; e fortalecer os vínculos familiares,
sempre sob a perspectiva de incentivar a socialização e a convivência familiar e
comunitária.” (Brasil, 2017b, p. 8).
Por outro lado, porém, esses achados podem refletir uma realidade em
que os(as) participantes desta pesquisa simplesmente atenderam a um crité-
rio de desejabilidade social, uma vez que na atualidade há em nosso país um
espaço midiático maior no tocante às discussões que remetem ao racismo e à
transformação das estruturas sociais, visando a equalização de direitos a todos
os sujeitos brasileiros. Ademais, o nível de escolaridade e a participação em al-
gumas capacitações voltadas para as questões raciais pode ter disparado nos(as)
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 285

participantes a necessidade de responder adequadamente ao que é socialmente


aceito enquanto pessoas instruídas e enquanto trabalhadores do SCFV. Corre-
lacionamos este entendimento aos achados do objetivo específico que abordou
a importância do fortalecimento da identidade relatado a seguir.
Quanto ao objetivo específico voltado para a análise da percepção dos(as)
profissionais do SCFV acerca da importância do fortalecimento da identidade
racial das crianças que participam do referido serviço, os resultados mostra-
ram que não houve diferenças significativas baseadas na cor da pele, na idade
e nem na proximidade desses(as) profissionais com as crianças nas respostas
ligadas a essa percepção. Inferimos, a partir desse resultado, que a importância
do fortalecimento da identidade racial sendo igualmente reconhecida dentro
dessa amostra por todos os grupos participantes, implica em termos gerais que
esse recorte trata de um público que está relativamente interessado nas pautas
raciais, na medida em que dão atenção ao problema social que é o racismo em
suas práticas profissionais, demonstrando uma percepção acurada para as pautas
que envolvem a identidade racial.
Esse resultado se destaca, pois a identidade está relacionada às diferentes
configurações da ordem social (Arpini & Quintana, 2003), sendo, portanto,
uma parcela significativa da vida do sujeito. Essa relevância se acentua quando
levamos em consideração que a identidade racial integra fatores relacionados
tanto ao desenvolvimento social, quanto contextual (Corenblum & Armstrong,
2012), e que os modelos cognitivos do desenvolvimento dessa identidade estão
fundamentados em pressuposições de que as crianças são ativamente constru-
toras do seu mundo social (Aboud & Doyle, 1993). Além disso, os vínculos
coletivos construídos em função da identidade racial são decisivos para a afir-
mação da identidade social como um todo Backes (2018).
Assim, podemos entender que esses(as) profissionais desempenham papéis
que não se limitam aos serviços socioassistenciais que o CRAS proporciona,
tornando o seu trabalho uma espécie de dispositivo protetivo da identidade
racial, principalmente para as crianças negras que são a maioria atendida por
esses(as) profissionais (Costa, 2017). Indo mais além, podemos ainda considerar
as práticas desses(as) profissionais como colaborativas e antirracistas no que se
refere à identidade das crianças com quem trabalham, pois demonstram buscar
o fortalecimento da identidade destas, ao tempo em que tentam desnaturalizar
as práticas racistas na sociedade em que estão inseridas.
Em consequência, considerando os resultados de que os profissionais bran-
cos são os que mais frequentemente transmitem mensagens de socialização racial
286 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

para as crianças, a explicação em termos de enviesamento da desejabilidade


social é fortalecida, uma vez que o grau de importância dado a essas mensa-
gens não se diferenciou dos outros grupos em função da cor da pele, nem da
idade e nem da proximidade do(a) profissional com a criança. Deste modo, a
interpretação de que os brancos transmitem mais mensagens raciais pode se
dever à consciência deles em relação a conhecer o comportamento socialmente
esperado (a norma vigente), sobretudo, por conta das funções que eles estão
representando, enquanto profissionais que trabalham com crianças em situação
de vulnerabilidade social. Ademais, para os brancos a identidade racial não é
considerada como uma identidade racial saliente, pois na sociedade brasileira,
não compreende que o branco possui raça ou etnia (Cardoso, 2011), desse modo,
os achados da desejabilidade social são reforçados pois, a valorização da própria
identidade é um critério de percepção de valoração da identidade do outro.
Já em relação ao objetivo de analisar a identidade racial dos(as) profissio-
nais do SCFV e sua influência na frequência e na importância da transmis-
são de mensagens para o fortalecimento racial das crianças, observamos nos
achados que os participantes pretos atribuíram maior importância à própria
identidade racial do que os pardos e do que os brancos. Estes resultados con-
vergem com a Teoria da Identidade Social (Tajfel & Turner, 1979) no que
diz respeito à crença no pertencimento a um grupo social enquanto condição
emergente da necessidade de uma autoidentificação positiva, e se coadunam
também com a visão de identidade racial de Corenblum & Armstrong (2012),
o qual relata o senso de pertencimento à identidade racial vinculado, entre
outros fatores, à importância desse pertencimento – o que parece ser o caso
dos nossos achados.
No que concerne a essa atribuição de importância da identidade racial,
esses dados apresentam um ponto relevante, muito discutido em estudos sobre
o tema e esses achados podem ser justificados por teóricos como Tajfel (1981)
e Turner et al. (1987), por exemplo, que preconizam a consciência da identida-
de racial enquanto mais evidente para quem sofre os prejuízos de estar numa
sociedade que não contempla todas as identidades justa e igualitariamente.
França (2005) corrobora com esse pensamento quando reforça a importância
da avaliação emocional do grupo de pertença, não apenas relativamente à parte
afetiva, como também à valoração, e em se tratando de como a nossa sociedade
trata o pertencimento racial, não é fácil ignorar a pertença à identidade negra.
É possível, ainda, que esse número significativamente superior na atri-
buição de importância à identidade racial por parte dos(as) participantes pretos
Capítulo 14 – Josiene dos S. Ferreira, Dalila X. de França e Israel Jairo 287

seja uma forma de autoafirmação enquanto seres sociais. Estudos sobre identi-
dade apontam que a supervalorização da identidade e da autoimagem implicam
em um mecanismo de defesa (Goñi e Fernández, 2009), uma autoproteção da
própria imagem, além de funcionar em nossa amostra como um exemplo que
entendemos se encaixar no que Tajfel (1981) preconiza como uma forma de luta
para uma eventual mudança social.
De igual modo, percebemos ainda nesses dados que a satisfação com a cor
da pele foi superior para participantes pretos, comparativamente aos brancos,
tornando importante a retomada da informação de que nessa amostra houve
apenas a auto atribuição da cor da pele por parte dos(as) próprios(as) partici-
pantes, em virtude da coleta ter se dado exclusivamente de modo online, nos
levando a várias reflexões acerca dessa diferença.
Entre os questionamentos que surgiram acerca dessa diferenciação, está
a possibilidade desses resultados remeterem à realidade, representando uma
verdade, ou estarem apenas refletindo uma postura de autoafirmação por parte
desses(as) profissionais. Outra possibilidade que nos ocorreu é a de que eles
seriam apenas um achado diferente, concernente à amostra deste estudo em
particular, o que abre portas para futuros estudos confirmatórios.

Considerações finais
Objetivou investigar se a socialização executada pelos profissionais Servi-
ços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos - SCFV promovem o fortale-
cimento da identidade racial de crianças em situação de vulnerabilidade social.
De modo que foram avaliadas às mensagens a nível identitário transmitidas às
crianças que fazem uso do serviço do CRAS. E de modo geral, consideramos
essa pesquisa deveras profícua pelos resultados encontrados.
Consideramos que os objetivos desta pesquisa foram parcialmente atingi-
dos, pois de modo geral ela conseguiu delinear um esboço de como se processa
o trabalho socioeducativo e de socialização dos(as) profissionais do SCFV e da
importância dele para o desenvolvimento da identidade social, e especificamen-
te, referimo-nos a identidade racial de crianças em situação de vulnerabilidade
social participantes do serviço. E apesar do tamanho da amostra, a pesquisa
possibilitou acesso válido e fiel de uma visão geral de como os(as) profissionais
do SCFV lidam com a questão das desigualdades raciais, não negando o racismo
enquanto problema social que afeta negativamente o acesso a oportunidades
de crescimento social e reconhecendo o desequilíbrio das representações e das
posições de poder ocupadas em nossa sociedade.
288 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

A naturalização dessas desigualdades interfere diretamente na dimensão


da vulnerabilidade dos grupos nela imersos (Scott et al., 2018). E sendo um
dos objetivos desta pesquisa avaliar se as práticas de socialização desenvolvidas
pelos profissionais fortalecem a identidade racial das crianças em situação de
vulnerabilidade social atendidas pelo SCFV, uma das contribuições exitosas
desta pesquisa consiste também em mostrar que os(as) profissionais do SCFV
percebem o quanto elas são atingidas por esse enfraquecimento identitário.
Discutir a questão da racialização das desigualdades sociais é um modo de
levar para as crianças do SCFV que a valoração negativa até então perpetuada
na sociedade através de crenças, discursos e atitudes não está, verdadeiramen-
te, ligada ao pertencimento racial, mas sim a uma tentativa de engessamento
do estatuto social vigente. Sendo um dos objetivos desta pesquisa verificar a
influência da identidade racial de profissionais do SCFV em seu trabalho, os
resultados que mostram que profissionais negros demonstraram valorizar mais
a sua identidade racial representam também uma contribuição, na medida em
que se tornam uma referência motivadora (representatividade) para as crianças
em meio a essa estrutura opressora que a sociedade imprimiu na pele negra,
como um preço a ser pago, uma consequência direta por ela ter as características
que tem (Munanga, 2004).
Ainda assim, destacamos a contribuição da nossa pesquisa para retirar da
invisibilidade o trabalho executado pelos(as) profissionais do SCFV, bem como
da relevância da TIS para a melhor compreensão da socialização das atitudes
intergrupais, na perspectiva da Psicologia Social e Cognitiva, dialogando com
outras áreas e apresentando um estudo com participantes e tema de muito pouca
incidência no Brasil. Finalmente, sugerimos que estudos futuros possam ser
conduzidos com maior número de profissionais, analisando e aprofundando
essas e outras variáveis psicossociais e com a possibilidade de abarcamento
efetivo das crianças participantes do SCFV.

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Capítulo 15
Relações raciais e preconceito: a importância
da identidade racial e das emoções
Elza Maria Techio
Raimundo Cândido de Gouveia
Bárbara Borges

Introdução
Práticas de discriminação racial são verificadas cotidianamente no Brasil,
embora tenha se consolidado na história do país, desde muito cedo, a ideologia
da democracia racial. Tal termo foi cunhado pelo antropólogo Artur Ramos, em
1903, e amplamente divulgado por Gilberto Freyre no seu clássico livro “Casa-
-grande & Senzala”, publicado em 1933. A ideia de uma democracia racial foi
questionada por um grupo de investigadores liderados pelo sociólogo Forestan
Fernandes e pelo movimento negro (Schwarcz, 2019). Para estes, o regime escra-
vocrata havia consolidado uma profunda desigualdade social, e, no Brasil, impe-
rava um tipo de preconceito reativo, um tipo de “preconceito contra o preconceito
ou o preconceito de ter preconceito” (Fernandes, 2007, p. 21), ou seja, haveria aqui
um racismo mascarado. O discurso de uma democracia racial dribla a percepção
das desigualdades e a luta por inclusão social e igualdade racial, garantindo o status
quo e a hierarquia racial dominantes. Pesquisas desenvolvidas no país (Camino, et
al., 2013; Camino et al, 2014; Turra & Venturi,1995) reforçam a ideia de que no
Brasil há uma negação de que somos racistas e preconceituosos. As desigualdades
raciais tendem a ser justificadas por outros fatores (Barros, Torres, & Pereira,
2017; Ferreira et al., 2017; Pereira, Torres, & Almeida, 2003), como a pobreza,
por exemplo, e não pela discriminação racial e racismo. Esta separação é difícil
de aceitar, uma vez que os preconceitos contra pretos e pobres andam juntos.
Vinculada à crença na democracia racial, há também a retórica idiossin-
crática da nação brasileira como sendo cordial, generosa, hospitaleira e pacífica.
Trata-se da visão compartilhada de um país harmônico e sem conflitos, sem
ódio racial, religioso e de gênero (Schwarcz, 2019; Holanda, 2012). Esta re-
tórica ainda está presente no imaginário de muitos brasileiros e estrangeiros, e
constitui parte importante da representação de quem somos, do nosso caráter
enquanto povo, constituindo o que poderíamos chamar de identidade nacional
(Lima & Santos, 2016).
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 293

No entanto, a realidade histórica evidencia a contradição dessas crenças


sociais. A própria construção da história retratada na literatura, na música, na
arte, geralmente escrita por brancos, descreve o negro como possuidor de va-
lores hierarquicamente inferiores quando comparado com os valores do branco
(Munanga, 2020, Nascimento, 2016). Ele é estereotipado e estigmatizado como
violento, pobre, submisso e feio (Techio, Leite, da Silva, & Torres, 2019a). Na
arte, na estética é retratado pelos europeus e viajantes de forma exótica, como
contraste diante da superioridade racial do branco (Santana, 2017). Estes são
exemplos claros de que o racismo é responsável pela universalização e essen-
cialização destas características para todos os membros deste grupo (Pereira &
Vala, 2010).
Para além da subjetividade da representação negativa do preto na arte,
literatura etc., o racismo, o preconceito e a discriminação racial, também estão
presentes nas desigualdades existentes no Brasil, mediante o acesso desseme-
lhante aos recursos materiais e simbólicos e nos índices de violência letal (Paixão,
Rossetto, Montovanele, & Carvano, 2010). Dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA, 2019) e do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2019), informam que o índice de desemprego, analfabetismo
e pobreza atingem mais intensamente a população negra, que também é a mais
exposta à violência, a que tem menos representatividade política, que ocupa
menos cargos gerenciais e que ganha menores salários em relação a pessoas
brancas exercendo a mesma função. Indicadores objetivos e subjetivos como
estes podem ajudar a entender a maneira como as pessoas negras são tratadas
nas relações cotidianas.
A abordagem policial em comunidades localizadas em morros e favelas,
comumente são justificadas pelo combate ao tráfico de drogas e por atos de
resistência do suspeito. Práticas antidemocráticas e truculentas resultam em
desaparecimentos, mortes e execuções de pessoas “por engano”, e evidenciam
um modo de agir institucionalizado, com bases em práticas discriminatórias
contra grupos minoritários, violando os direitos humanos (Ferreira, 2019; Cos-
ta-Silva, 2019; Sinhoretto & Morais, 2018; Auyero & Sobering, 2017; Kahn
& Martin, 2016).
O problema da violência urbana ganha contornos mais dramáticos se levar-
mos em consideração que ele acomete um público específico, incluindo homens
jovens, pretos, de periferia, população LGBTQI+ e mulheres (feminicídio).
Dados do Atlas da Violência (2020) produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasi-
leiro de Segurança Pública (FBSP) revelam que, em 2018, os negros (pretos e
294 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

pardos, segundo classificação do IBGE) representam mais de 75% das vítimas


de homicídios e que 68% do total de mulheres assassinadas são negras. Se
levarmos em consideração os indicadores dos últimos 10 anos (2008-2018),
verificamos que a violência e as desigualdades raciais se aprofundaram, com o
aumento da taxa de homicídios de 11,5% para os negros, e um decréscimo de
12,9% para os não-negros.
Indicadores mais recentes obtidos no Anuário Brasileiro de Segurança
Pública (2020), que levam em consideração os dados coletados durante a pan-
demia de Covid-19, apontam um crescimento de 7,3% das mortes violentas no
primeiro semestre de 2020 em comparação com 2019; bem como, o aumento
das mortes por intervenções policiais (6,6%), mantendo-se o perfil das vítimas,
79,1% negros, 74,3% jovens, e 99,2% homens. Isto revela a existência de desi-
gualdades raciais nas abordagens e coloca o racismo e o preconceito racial como
elementos constitutivos das relações intergrupais, uma vez que se discrimina de
forma negativa determinados grupos raciais, garantindo privilégios protetivos
para outros.
Para discutirmos a importância das identidades social e racial e das emo-
ções diante de práticas violentas perpetradas por policiais contra grupos mino-
ritários, faz-se necessário diferenciar conceitualmente construtos psicossociais
que nos ajudam a entender a diferenciação intergrupal e seu papel nas relações
sociais.

Racismo, preconceito racial e discriminação


O racismo é um fenômeno multidimensional, ambíguo e nada fácil de con-
ceituar. Sua definição parte de uma falsa ideia ou crença na existência de raças e,
na psicologia social, muitas das vezes, reduz-se a uma atitude (Pereira, França,
Torres, Lima & Pereira, 2015), embora vá além dos aspectos intrapsíquicos.
Pode ser definido como sendo uma forma sistemática de discriminação que tem
a raça (racismo biológico) e ou a etnia (racismo cultural) como fundamentos,
e que se manifesta em desvantagens ou privilégios para determinados grupos
racializados (Almeida, 2020; Lima, 2020; Rattansi, 2007). Portanto, faz-se
necessária uma clara referência à dimensão de poder e dominação.
O racismo transcende o nível individual, atingindo os níveis culturais,
estruturais e institucionais (Almeida, 2020; Lima, 2020; Lima & Vala, 2004,
Wieviorka, 1995). Logo, é um processo sócio-histórico de segregação, hierar-
quização, dominação e discriminação contra indivíduos ou grupos com base em
características raciais ou étnicas. Portanto, também é composto pela dimensão
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 295

ideológica, sendo o responsável pela atribuição de características negativas con-


sideradas como indesejáveis pelas normas sociais. Neste sentido, os estereótipos
associados às pessoas pertencentes à categoria ou grupo racial negro – tais como
incivilizados, primitivos ou excessivamente emocionais, violentos, pobres, pre-
guiçosos, feios e ladrões (Pereira, 2016; Techio, et al., 2019a) – racionalizam e
engendram um contexto no qual a violência institucional, enquanto expressão
de dominação racial, é justificada e aceita socialmente, legitimando os processos
de preconceito e exclusão social (Álvaro et al., 2015; Costa-Silva, 2019; Gerber
& Jackson, 2016; Pereira & Vala, 2010; Tajfel, 1984).
Na clássica acepção de Allport (1954), o preconceito é definido como uma
atitude negativa associada a indivíduos por sua pertença a determinado grupo ou
categoria social. Seria uma generalização equivocada e inflexível. Smith (1993)
enfatiza os aspectos afetivos, ao entender o preconceito como uma emoção social
relacionada à identificação com um grupo no processo de comparação social. Na
construção desse conceito, o autor considera que há uma relação entre a iden-
tificação social, que inclui a percepção de atributos significativos relacionados
à categorização social, pertença grupal, comparação e conflitos entre grupos,
as quais influenciam, não somente a percepção acerca de si e de outros, mas
também as atitudes e comportamentos.
Para Brown (2010), o preconceito é um conjunto de atitudes negativas contra
um grupo ou membro de um grupo que envolve três dimensões: a dimensão afe-
tiva que faz referência aos afetos e emoções (favorabilidade – desfavorabilidade); a
dimensão cognitiva representada pelas percepções, ideias e crenças (estereótipos)
e a dimensão conativa que contém as intenções e orientações de ações que podem
se manifestar na interação social (tendências comportamentais). Atitudes que se
estabelecem nas relações entre os grupos em que a consciência da posição social
(superioridade X inferioridade) está demarcada (Pereira, et al., 2015). Nessa pers-
pectiva intergrupal, o juízo de valor baseado em atitudes e crenças negativas acerca
de indivíduos que pertencem a determinados grupos raciais estigmatizados (pretos,
pardos, indígenas, ciganos, asiáticos entre outros), demarcado pelas relações desfa-
voráveis e desiguais de poder, culturalmente construídas, em relação aos membros
de grupos raciais favorecidos é definido como preconceito racial (Almeida, 2020).
Neste sentido, o preconceito racial se refere a atitudes negativas ou antipatia que
envolve emoções e comportamentos dirigidos aos membros de um grupo raciali-
zado que servem de justificativa para legitimar as relações intergrupais.
Se utilizarmos os níveis psicossociais de análise propostos por Doise
(2002), os processos de racismo e preconceito podem ser explicados na forma
296 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

como as informações do meio e as experiências pessoais são organizadas (nível


individual); na forma como ocorrem as relações de um indivíduo com o outro
(nível situacional e interindividual); na forma como as diferentes posições de
poder (dominantes e dominados, maioria e minoria) dentro dos grupos e entre
os grupos se estabelecem (nível posicional); e, por fim, na forma como as cren-
ças, normas sociais e representações da alteridade se estabelecem e legitimam o
sistema de hierarquização social (nível ideológico). Como destaca Lima (2020),
o preconceito e o racismo são fenômenos multicausais e dependem, ao mesmo
tempo, dos indivíduos e das relações sociais, históricas e culturais.

O papel do racismo nas relações intergrupais


A discriminação, enquanto ação ou comportamento, possibilita uma me-
lhor demarcação conceitual nas relações sociais. Sendo assim, está associada
ao trato ou conjunto de ações diferenciadas que se dá às pessoas devido a sua
pertença a uma categoria social determinada (Allport, 1954). É uma forma de
segregação que atenta contra a igualdade de oportunidades (Brewer, 1994).
Neste sentido, o tratamento distinto dado aos indivíduos pertencentes a grupos
racialmente identificados é definido como discriminação racial (Almeida, 2020;
Fiske & Taylor, 2008).
A discriminação pode se manifestar de forma direta e objetiva - mediante
repúdio, exclusão, agressão – e indireta e subjetiva – mediante a existência de
normas aparentemente neutras, que produzem discriminação quando utiliza-
das; ou seja, denotando ausência de intencionalidade explícita de discriminar
(Lima & Vala, 2004; Sellers & Shelton, 2003). Ambas, exercem grande impacto
na estratificação social, como apontam os dados estatísticos apresentados na
introdução. Para além da discriminação negativa, também é possível falar de
discriminação positiva, aquela em que grupos historicamente excluídos e mar-
ginalizados (pobres, pretos, indígenas, mulheres, deficientes físicos entre outros)
passam a receber benefícios com o objetivo de reparar, corrigir as desvantagens
e melhorar sua participação no âmbito do trabalho, política, saúde, escola e
rede de proteção social (Guarnieri & Melo-Silva, 2017; Silva, 2011; Schulz &
Wienke, 2012, Santos, 2005). A discriminação, enquanto conduta, constitui
um importante componente das relações intergrupais, já que demarca lugares
sociais que facilitam a identificação de características de pertença e ativação da
identificação grupal.
É por meio da diferenciação categorial, mediante os estereótipos, que o
indivíduo negro é definido como diferente e inferior ao branco. Se levarmos em
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 297

consideração que a maioria das qualidades e características atribuídas a esta cate-


goria apresenta cargas afetivas negativas, quando comparadas com os estereóti-
pos dos brancos (Almeida, 2020; Techio et al, 2019a), é possível prever atitudes e
comportamentos negativos diante de indivíduos pertencentes a este grupo social.
Desse modo, numa situação de discriminação, os estereótipos são usados, não
apenas para diferenciar as categorias raciais, mas para hierarquizá-las.
A identificação social ocupa um lugar de destaque nos processos grupais,
tais como a estereotipização, o preconceito, a discriminação e o racismo (Tajfel
& Turner, 1979; Vala, 1996). A pertença a determinados grupos ou categorias
sociais, mediante o reconhecimento e aceitação de características estereotípicas
atribuídas ao próprio e aos outros grupos, associada à autodefinição como mem-
bro do grupo, produz atrações intra e intergrupais. Desta forma, o sentimento
de favoritismo grupal surge do significado psicológico e do valor atribuído a
este pertencimento, caracterizando a identidade social (Deschamps & Moliner,
2009; Gondim, et al., 2013; Pereira, 2016; Tajfel, 1981).
Desta forma, quando a consciência e os sentimentos de pertença estão
associados aos grupos étnicos/raciais ou aos rótulos raciais, decorrentes de uma
construção social, cultural e política, gera um efeito psicológico de identificação
racial, que aquiesce a maneira como as pessoas concebem a si mesmas diante
das outras (Guimarães, 1999). A tomada de consciência e identificação de quem
somos e a posição social que ocupamos possibilita a construção da identidade
em meio a um contexto. É neste sentido que a construção da identidade racial
entre as pessoas negras surge a partir da tomada de consciência de elementos
comuns que unem os membros do grupo, tais como a história, as manifestações
culturais e religiosas, a situação social e os diferencia dos outros grupos. Neste
sentido, conforme sugere Munanga (2020), a identidade racial, necessariamente
passa pela cor da pele, pelo resgate da negritude e pelo resgate cultural, assim
dizendo, é também social e política (Ferreira, 2020).
No processo de construção da identificação racial, a tomada de consciên-
cia das prescrições sociais raciais e o processo de reconhecer-se como parte do
grupo tornam-se parte do eu, e são fundamentais no posicionamento frente aos
fenômenos sociais, por exemplo, os processos de discriminação e racismo. Neste
sentido, a construção social do eu e do nós grupal/étnico/racial é influenciada
pela consciência do lugar de pertencimento (endogrupo) em relação aos demais
grupos (exogrupos) (Deschamps & Moliner, 2009). Para além do sentimento
de pertença, a identificação racial impacta na percepção da discriminação e no
sofrimento psicológico (Sellers & Shelton, 2003; Damasceno & Zanello, 2018).
298 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Cabe destacar que a representação da identificação social e racial implica


a ativação e mobilização de um conjunto de emoções intergrupais, com vista a
proteger ou enaltecer o endogrupo (Tajfel, 1981; Pereira, 2016; Gondim, et al.,
2013). As emoções intergrupais dependem do contexto e são aquelas sentidas e
ativadas nos processos de identificação, bem como na interação com os outros
grupos ou categorias sociais, determinando atitudes e ações (Smith & Mackie,
2016; Izard, 2009).
De acordo com a teoria das emoções intergrupais (Mackie, Smith, &
Ray, 2008), sentimos diferentes emoções em função das diferentes pertenças
grupais. As emoções podem ser positivas/agradáveis, negativas/desagradáveis,
adaptativas/desadaptativas, e exercem um efeito imediato sobre as pessoas que
as vivenciam. Ademais, desempenham funções importantes, uma vez que são
adaptativas, ao preparar o organismo para a ação, considerando as condições
ambientais; são sociais, ao comunicar um estado afetivo; e motivacionais, ao
determinar a intensidade dos comportamentos (Reeve, 2009). No nível grupal,
cumprem as funções de definir os limites dos grupos e de seus membros, os
papéis e a identidade social intragrupal e intergrupal, além de motivar compor-
tamentos e ação coletiva (Mackie, Devos & Smith, 2000).
As emoções intergrupais são estratégicas no entendimento e na explicação
do preconceito, discriminação e racismo, uma vez que, ao ativar emoções grupais
positivas, como orgulho, alegria, gratidão, empatia entre outras, são geradas
ações pró-sociais; e as negativas, como medo, raiva, ressentimento e nojo, entre
outras, geram ações de evitação, distanciamento e fuga (Smith, 1993; Mackie,
Maitner & Smith, 2009).
No contexto das relações intergrupais, a atribuição de determinadas emo-
ções aos membros de grupos raciais também é expressão de preconceito e ra-
cismo. Estudos sobre infra-humanização apontam que a atribuição de emoções
tipicamente humanas, denominadas de sentimentos ou emoções secundárias
– que implicam avaliação cognitiva, raciocínio, reflexão moral, sensibilidade
e julgamento, como a felicidade, desprezo, orgulho, vergonha etc. – para os
membros do endogrupo e a negação destas emoções aos membros dos exogrupos,
desqualificam e infra-humanizam seus membros, é expressão de preconceito
(Leyens et al., 2000; Leyens, 2001).
Visto que o sentimento de pertença grupal e as emoções intergrupais in-
fluenciam na percepção, apoio e legitimação de determinadas práticas sociais
e institucionais direcionadas a determinadas grupos raciais são expressões de
preconceito, discriminação e racismo, hipotetizamos que o grau de identificação
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 299

com o alvo de um ato de violência policial e as emoções ativadas diante da ação


policial influencia a percepção da legitimação e aceitação da violência policial.
Diante da problemática apresentada, observa-se a importância de estudos
que analisem a permanência do preconceito racial e do racismo institucional, em
contextos de normas democráticas e antirracistas, e como esses fenômenos são
percebidos e legitimados. Desse modo, a presente pesquisa se insere no contexto
social brasileiro, marcado pela expressão do racismo em diferentes níveis de inte-
ração social, inclusive no nível institucional, como é o caso da violência policial.
Estudos realizados no Brasil (Oliveira, 2013; Silva, Torres, Estramiana, Luque,
& Linhares, 2018; Ferreira, 2021), que investigaram a tolerância de estudantes
secundaristas e universitários à violência policial de acordo com a cor da pele da
vítima, verificaram uma maior tolerância à violência policial quando a vítima
é um jovem negro e, para além disso, a apresentação de justificativas concor-
dantes com a violência policial. Ou seja, indicam uma tendência da sociedade
a ser mais tolerante à violência policial quando perpetrada contra membros de
grupos desfavorecidos, negros por exemplo (Álvaro et al., 2015; Costa-Silva et
al., 2018; Dukes & Gaither, 2017; Ferreira, 2021). Isto revela a necessidade de
compreender os processos sociocognitivos que produzem tais posicionamentos.

Objetivo
O presente estudo objetivou testar a hipótese de que a relação entre a
cor da pele de um jovem agredido por violência policial e o posicionamento
de estudantes universitários diante da ação violenta é mediada pelo grau de
identificação social e ativação das emoções.

Método
Trata-se de um estudo experimental correlacional, no qual se manipulou
a cor da pele do jovem (branca X preta) agredido pela polícia durante uma ação
policial.

Amostra
Participaram do estudo 375 estudantes de uma universidade pública no
estado da Bahia, das áreas das Ciências Humanas (55,6%); Exatas (26,7%) e
da Saúde (17,7%). Dentre os participantes, 55,8% (207) são do sexo feminino.
A idade dos participantes variou entre 17 e 60 anos, com média igual a 24,68
anos (dp=5,96). Em relação à cor da pele, 23,7% se auto identificaram como
pretos, 32,6% como brancos e 42,7% como pardos. Quanto ao posicionamento
300 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

no espectro político, em uma escala de 10 pontos (1 extrema esquerda a 10 ex-


trema direita), observamos um posicionamento de centro-esquerda, com média
de 4,14 (dp=1,36).

Procedimentos de coleta de dados


Os questionários impressos foram aplicados coletivamente em sala de aula
e respondidos individualmente. Após explicação breve sobre a pesquisa, era
solicitada a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) em duas vias, uma das quais permaneceu com o participante e a outra
com os pesquisadores. As aplicações duraram, em média, 20 minutos. O projeto
foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da
UFBA, conforme o parecer no 2.762.633.

Instrumento
Foi utilizado um questionário impresso no qual era apresentado ao par-
ticipante uma vinheta contendo (notícia fictícia) o relato do uso da força física
por parte da polícia para deter um jovem que circulava nas redondezas e que
supostamente portava drogas. No cenário, a cor da pele do jovem era manipulada
experimentalmente. O relato informava que um jovem de 19 anos (branco ou
negro), após uma denúncia anônima, foi abordado pela polícia. Na mochila do
jovem havia 5g de cocaína e 42 reais em notas de diversos valores. De acordo
com os policiais envolvidos na abordagem, foi necessário o uso da força física
para detê-lo porque o suspeito resistiu. O jovem nega a versão dos policiais. O
suspeito foi encaminhado à delegacia e aberto inquérito policial. Os questioná-
rios foram aleatorizados e cada participante respondeu a apenas um dos cenários
no que se refere à cor da pele do jovem.
Após a leitura da vinheta, os participantes deveriam informar o quanto se
identificavam com o jovem descrito, tipo de emoções ativadas diante da notícia
e dados sociodemográficos. A identificação com o jovem foi mensurada a partir
do grau de afinidade com o jovem envolvido na ação policial mediante quatro
perguntas: a) quanto se identifica com o jovem descrito na notícia, b) quão
parecido; c) quão próximo; e quanto orgulho sente do jovem. As respostas aos
itens foram respondidas numa escala likert de cinco pontos (1- nada a 5 -muito).
Para mensurar o tipo de emoção ativada, utilizou-se uma lista de 15 emo-
ções, adaptadas da medida DES-Izard (Izard, 1977), mediante uma escala de
respostas Likert de cinco pontos (1-Nada intensa a 5- Muito intensa), em dois
contextos: o pessoal e o de substituição. No contexto pessoal, solicitava-se ao
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 301

participante que indicasse a intensidade que sentiam as emoções listadas quando


pensavam na ação policial, e no contexto de substituição, que indicasse qual a
intensidade que imaginava que os outros sentiam as emoções listadas quando
pensavam na ação policial. Mediante análise fatorial exploratória, as emoções
foram agrupadas em duas dimensões: em emoções positivas (bem-estar, admi-
ração, alegria, orgulho, segurança e simpatia; α = 0.782) e emoções negativas
(vergonha, indignação, desgosto, raiva, medo, mal-estar, tristeza, culpa e des-
prezo; α = 0.895).

Análise dos dados


Análises descritivas e correlacionais foram feitas a partir do software JASP
de acesso livre, e para a análise da significância do poder de mediação realizou-se
análise de regressão utilizando o macro PROCESS para SPSS (disponível em
http://processmacro.org/).

Resultados

Análise descritiva e correlacional


Primeiramente, avaliamos o grau de concordância com a violência poli-
cial, o grau de identificação dos participantes da pesquisa com o jovem descrito
na vinheta e o tipo de emoção (contextos pessoal e de substituição) ativada
diante da situação, levando em consideração a cor da pele do jovem agredido
na ação policial. Os resultados revelam que os participantes apresentaram
uma concordância moderada com a ação violenta da polícia (M= 2,95(1,27)),
a qual foi mais forte quando o jovem agredido era branco (Mb9 = 3,19 (1,31);
Mp10 =2,71 (1,18); t(365)=3.661, p < .001; η2= 0,38); uma baixa identificação
com o jovem descrito (M=1,73 (0,78)), principalmente quando jovem descrito
era branco (Mb =1,58 (0,72); Mp = 1,83 (0,82); t(361)= -3.168, p < 0.002; η2 -
0.33), e uma maior ativação de emoções negativas pessoais (M= 3,08 (1,02)),
especialmente quando o jovem descrito era preto (Mb= 2.95 (0.98); Mp = 3.22
(1.05); t(341) = -2.535, p< 0.012; η2 - 0.274). Não foram observadas diferen-
ças estatísticas significativas nas emoções pessoais positivas (contexto pessoal)
em função da cor da pele do alvo (Mb =1,22 (0,472), Mp =1.19 (0.33); t(351) =

9
Mb = Média de resposta quando o alvo era branco.
10
Mp = Média de resposta quando o alvo era preto.
302 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

0.565, p = 0.57; η2 0.06), e tampouco nas emoção positivas (Mb= 2.30 (1.04),
Mp = 2.48 (0.95); t(329) = -1.663, p < 0.097; η2-0.183) e negativas atribuídas
no contexto de substituição (outros) (Mb =2.65 (0.96), Mp =2.60 (0.87); t(328)=
0.525, p < 0.600; η2 0.058.
Com o objetivo de analisar o impacto da autoclassificação racial na per-
cepção da violência policial em função da cor da pele do alvo, realizamos uma
Análise de Variância (ANOVA) de dois fatores independentes. Partimos da
hipótese de que a cor da pele do jovem agredido influenciaria na concordância
com a violência policial, sendo mais aceita quando direcionada para o jovem
preto em comparação com o branco, em especial, quando os participantes se
autodeclaravam como brancos.
Conforme observado (ver Figura 8), os resultados indicam que a cor da
pele do jovem alvo da violência policial revelou diferenças estatísticas sig-
nificativas quanto à concordância com a ação violenta da polícia, porém na
direção oposta ao que esperávamos e a literatura vem apresentando (Álvaro et
al., 2015; Costa-Silva et al., 2018; Dukes & Gaither, 2017). No nosso estudo,
ocorreu uma maior aceitação da violência policial quando o jovem agredido
era branco (F(1)= 15,755; p = .001, η2 = 0,041), ao passo que a autoclassifica-
ção racial não impactou na percepção da violência policial (F(2) = 2,794, p =
,069, η2 = 0,015), tampouco observou-se um efeito de interação (F(2) 0.622;
p = .54, η2 = 0,003).

Figura 8. Grau de concordância com a ação policial violenta em função da


autoclassificação racial e cor da pele do alvo

4.0
Cor do alvo
branco
3.5 preto
Concordância

3.0

2.5

2.0

branco pardo preto

Autoclassificação racial
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 303

Quando analisamos o grau de identificação com o alvo da violência po-


licial, em função da autoclassificação racial e cor da pele do alvo da violência
policial (ver Figura 9), ainda que se constate uma baixa identificação com os
jovens descritos nas vinhetas, observou-se um efeito principal da cor da pele
do alvo (F(1)= 17,714; p < .001, η2 = 0,043), em que ocorre maior identificação
quando o jovem descrito é preto; um efeito principal da autoclassificação racial
(F(2)= 7,758; p < .001, η2 = 0,037), em que os participantes que se autodecla-
ram pretos são os que apresentam maior identificação, e um efeito de interação
significativo, em que os jovem que se autodeclaram pretos são os que mais se
identificam com o jovem preto agredido na ação policial (F(2)= 9,659; p < .001,
η2 = 0,044).

Figura 9. Grau de identificação em função da autoclassificação racial e cor da pele do alvo

2.8
Cor do alvo
2.6 branco
2.4 preto
Identificação

2.2
2.0
1.8
1.6
1.4
1.2

branco pardo preto

Autoclassificação racial

Ao analisarmos a intensidade das emoções negativas pessoais declaradas


diante da situação da violência policial descrita em função da autoclassificação
racial e cor da pele do alvo da violência policial (ver Figura 10), observou-se um
efeito principal significativo da cor da pele do alvo (F(1)= 7,955; p < .001, η2
= 0,022). Observa-se uma ativação mais intensa de emoções negativas pessoais
quando o jovem descrito é preto. Não foram encontrados diferenças estatistica-
mente significativas na autoclassificação racial F(2)= 0,432; p = .65, η2 = 0,002)
e nem efeito de interação (F(2)= 1,014; p = .36, η2 = 0,006).

Correlação
De modo geral, todas as correlações obtidas mostram-se estatisticamente
significativas. Revela-se, assim, uma relação direta entre o grau de identificação,
304 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Figura 10. Emoções negativas pessoais em função da autoclassificação racial


e cor da pele do alvo

3.8
Cor do alvo
branco
3.6
Emoção negativa preto

3.4

3.2

3.0

2.8

branco pardo preto

Autoclassificação racial

emoções pessoais negativas ativadas diante da situação relatada e a concordância


com a ação violenta da polícia. Constatam-se correlações negativas significativas
moderadas entre a concordância com a ação violenta policial e identificação com
o jovem agredido (r= -0,54; p<0,01) e ativação de emoções negativas (r= - 0,34;
p<0,01). Também se constatou uma relação positiva estatisticamente significa-
tiva entre identificação com o jovem agredido e ativação de emoções pessoais
negativas (r= 0,37; p<0,01).

Teste de hipótese – estudo de mediação


Outrossim, colocamos à prova um modelo preditivo, mediante regres-
sões múltiplas, usando a técnica de modelagem de processos condicionais
(bootstrapping process) no SPSS (Hayes, 2018; Prado, Korelo & Silva, 2014).
Testamos a hipótese de que a relação entre a cor da pele do jovem agredido
na ação policial violenta e a concordância com a ação policial seria mediada
pelo grau de identificação com o jovem e a ativação das emoções. Levando em
consideração que apenas as emoções pessoais negativas apresentaram efeito
significativo na percepção da violência policial, testamos apenas o efeito de
mediação desta classe de emoções.
De acordo com a Figura 11, é possível observar que o impacto da cor
da pele do jovem descrito foi significativo na identificação com o jovem (b=
0,28, (95% BCa CI [0,11, 0,45]), t = 3,3313, p < 0,001, R 2= 0,032, (3,21%)),
e significativo para a ativação das emoções pessoais negativas (b= 0,31, (95%
BCa CI [0,10, 0,53]), t = 2,8545, p < 0,005, R 2= 0.024, (2,4%)). Também foi
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 305

possível observar que a identificação com o jovem descrito (b= -0,26, (95% BCa
CI [- 0,42, - 0,10]), t= -3,2130, p < 0,0014)) e a ativação de emoções pessoais
negativas apresentaram efeitos estatisticamente significativos com concordância
com a violência policial violenta (b= -0,5382, (95% BCa CI [- 0.66, - 0.42]), t
= -8,7454, p < 0,001).
O efeito total do modelo (cor da pele do jovem agredido influenciando
a concordância com a ação da polícia, na ausência de controle do mediador)
foi significativo com valor de b = -0,47, (95% BCa CI [- 0.74, - 0.21], t =
-3,4936, p < 0,0005, R 2= 0.035, (3,5% da variância)). Com a inclusão das va-
riáveis mediadoras no modelo, o efeito direto (c’) representado pela trajetória
entre a cor da pele do jovem agredido e a concordância com a ação policial
violenta controlando os mediadores (emoção pessoal negativa e identificação)
não foi significativo (b = -0,23, 95% BCa CI [- 0.46, - 0.002], t = -1,9465,
p < 0,52, R 2= 0.29, (29% da variabilidade). É importante notar que, quando
as emoções pessoais negativas e a identificação com o jovem agredido foram
adicionadas à equação, o efeito direto entre a cor da pele do jovem agredido e
a concordância com a ação violenta da polícia deixou de ser estatisticamente
significativo. Estes resultados indicam um efeito de mediação realizado pela
ativação das emoções pessoais negativas e identificação com o jovem descrito
na notícia. Isso indica que, quando as emoções negativas são ativadas diante
da ação policial contra um jovem preto, há uma menor concordância com a
violência policial.

Figura 11. Modelo do impacto da cor da pele do alvo como preditora da concordância
com a ação policial violenta mediado pelo nível de identificação e ativação de emoções
pessoais negativas. O intervalo de confiança Bias-Corrected an Accelerated (Bca)
foi estimado pela técnica de Bootstrapping (5.000 amostragem, parâmetros não
padronizados). ** p=001; *** p=0001

Identificação -,26
** **
,28

c= -,47***
Concordância
Cor da pele
VP
c’= -,23

,31
** ***
Emoções -,54
negativas
306 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Discussão
O presente estudo teve como objetivo testar a hipótese de que a cor da
pele do alvo da violência policial influencia no posicionamento diante desta.
Estudo que contribui para as reflexões sobre o preconceito racial e o racismo
mediante a tolerância à violência policial contra um jovem preto como prática
discriminatória. Tendo este objetivo em mente, em um primeiro momento,
mapeamos o grau de concordância com a ação violenta da polícia, a percepção
do tipo de emoção ativada no próprio indivíduo e nos outros e o grau de identi-
ficação com o jovem agredido em função da cor da pele do alvo da ação policial
em uma amostra de estudantes universitários. Cabe destacar que este foi um
estudo experimental, em que se apresentava uma suposta reportagem (vinheta),
na qual se manipulava a cor da pele do jovem (branco/preto) agredido durante
a suposta ação policial.
As primeiras análises revelaram uma moderada concordância ou legi-
timação da ação policial, em especial quando o jovem agredido pertencia à
categoria racializada branca. Ou seja, havia uma menor tolerância à violência
policial quando o jovem agredido era descrito como preto. Estes resultados são
surpreendentes e contrários com os que esperávamos, e ao que a literatura espe-
cializada aponta, uma vez que o preconceito racial e o racismo se expressam na
maior concordância e legitimidade da violência policial quando orientada contra
determinados grupos raciais e ou étnicos socialmente inferiorizados (Álvaro et
al., 2015; Bryant-Davis et al., 2017; Costa-Silva et al., 2018; Oliveira, 2013;
Ferreira, 2021). Porém, resultados semelhantes foram encontrados em outro
estudo, em uma amostra similar, sobre o preconceito racial, no qual os parti-
cipantes se posicionam criticamente quanto ao reconhecimento do preconceito
racial, expressando menos preconceito contra negros (Techio, Ferreira, Viana,
& Torres, 2019b).
Tais resultados levam-nos a refletir se o contexto social e cultural em que
estão inseridos estes universitários interfere no posicionamento de tolerância à
violência policial. No caso em questão, vale destacar que a amostra era de estu-
dantes de uma universidade pública, localizada em uma das cidades com maior
população negra do país, onde as discussões e enfrentamentos ao preconceito
e racismo fazem parte de diversas práticas e atividades da vida acadêmica e
universitária. Principalmente nos cursos universitários que compõem as áreas
de ciências humanas e sociais, nos quais está inserida a maior parte da amostra.
Acredita-se que estes posicionamentos críticos frente ao preconceito racial e ao
racismo podem decorrer da adoção da retórica do “politicamente correto” frente
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 307

às normas antipreconceito, presentes em sociedades democráticas (Batista et al.,


2014; Camino et al., 2001).
Adicionalmente, pensamos que este resultado também pode ser fruto de
uma legislação recente, como a lei 10.639/0311, que versa sobre a obrigatorieda-
de do ensino da história e cultura afrobrasileira e africana em todas as escolas,
privadas e públicas, de políticas públicas de enfrentamento à intolerância racial e
religiosa implantadas pelos órgãos do estado12, pelas políticas de ações afirmati-
vas (Guarnieri & Melo-Silva, 2017), bem como, pelo impacto dos movimentos
sociais, culturais e políticos negros13 que demarcam o lugar do preto na sociedade,
combatendo a visão negativa e ressaltando as suas qualidades. Estes movimentos
vêm influenciando, não somente na releitura do papel histórico do negro, mas
também, na ressignificação e na valorização da cultura, da arte e das características
fenotípicas. Isto reflete na construção e valorização da identidade racial positiva,
fortalecendo os vínculos categóricos e a visão de si mesmo, reconfigurando as
crenças, estereótipos e atitudes, na tentativa de resistência ao preconceito racial e ao
racismo (Capinan & Cardel 2011; Borges, Rodrigues, Santos & Campos, 2020).
Também, observou-se uma baixa identificação com os jovens descritos
nas vinhetas, demonstrando um distanciamento e não compartilhamento da
pertença categorial. Acreditamos que este distanciamento categorial se deu pelo
fato de que o jovem descrito estava envolvido em algum tipo de delito/crime.
Outrossim, a percepção de maior distanciamento categorial ocorreu quando o
jovem pertencia à categoria branco. Aqui aparecem os primeiros indicadores
de diferenciação categorial e de identificação racial, ou seja, quando o jovem
era branco havia menor identificação e maior concordância com a ação poli-
cial, demarcando a diferenciação categorial. De acordo com a teoria das rela-
ções intergrupais, o sentimento de pertencimento associado com a afetividade
positiva produz um efeito de preferência e aproximação com os membros do
próprio grupo e distanciamento de membros de outros grupos ou categorias
sociais (Deschamps & Moliner, 2009; Tajfel, 1981). Para além do sentimento
de pertencimento, a identificação social impacta na autoestima, na preferência,
na produção e vivência de afetividades grupais, bem como, comportamentos de

11
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm.
12
http://www.sepromi.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=21; http://www.repara-
cao.salvador.ba.gov.br/index.php/quem-somos/institucional; http://www.saude.salvador.ba.gov.br/
saude-da-populacao-negra/.
13
https://institutoodara.org.br/; https://mnu.org.br/; https://www.geledes.org.br/.
308 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

aproximação e cooperação ou de evitação, distanciamento e conflito (Sellers &


Shelton, 2003; Gondim et al., 2013).
Ao analisarmos os aspectos afetivos ativados, foi possível perceber uma
certa sensibilidade dos participantes diante da situação, uma vez que foram
ativadas mais fortemente emoções e afetos negativos, como a tristeza, raiva,
medo, indignação, desprezo, etc., quando comparadas com as emoções e afetos
positivos como a alegria, admiração, orgulho, simpatia, etc., além de emoções
mais intensas quando o participante descrevia suas próprias emoções em compa-
ração com o que acreditam que as outras pessoas sentem. Os resultados podem
indicar um efeito de dissociação, parecido e frequentemente encontrado nos
estudos sobre o preconceito e discriminação. Efeito em que o sujeito se exime
de atitudes preconceituosas e racistas, porém considera que o outro ou a socie-
dade, sim, é preconceituosa e racista. Melhor dizendo, distancia-se cognitiva e
afetivamente do problema como forma de se proteger psicológica e socialmente
de críticas diante de normas antipreconceito (Camino et al., 2013; Camino et
al., 2014; Techio et al., 2019b; Turra & Venturi,1995).
Ainda quanto à ativação de emoções negativas pessoais diante da situação
de violência, foi constatado que esta ativação foi mais intensa quando o jovem
descrito pertencia à categoria racial preto. Trata-se de um indício de reconhe-
cimento de pertença categorial e maior identificação com o jovem preto, uma
vez que tendemos a ativar diferentes emoções intergrupais e, de forma mais
intensa, afetos positivos diante de membros do endogrupo, ativação essa que
funciona como mecanismo de proteção da identidade social (Gondim, et al.,
2013; Pereira, 2016; Mackie, et al., 2008; Tajfel, 1981). No estudo em questão,
a ativação de afetividade negativa representa desconforto e desacordo com a ação
violenta, exercem um efeito positivo e adaptativo que pode motivar ações com-
portamentais proativas, altruístas e colaborativas (Mackie et al., 2008; Mackie,
Devos, & Smith, 2000).
Também exploramos o impacto da autoclassificação racial na tolerância à
violência policial, no grau de identificação e ativação das emoções negativas. Os
resultados não revelaram nenhum efeito significativo. Isto nos leva a questionar
se a simples autocategorização racial, seguindo os indicadores do IBGE, é uma
medida suficientemente forte para gerar um posicionamento diferenciado em
relação à percepção da violência policial, identificação com o jovem agredido e
ativação das emoções negativas, quando não se ativa a comparação social. Será
que a autoclassificação da cor da pele é uma medida psicológica de pertencimen-
to categorial que expressaria a identificação racial? Lembrando que o conceito de
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 309

identificação social, determina o lugar do indivíduo na sociedade, e é codificado


como uma parte de si mesmo decorrente do reconhecimento da pertença grupal
e do significado emocional e avaliativo decorrente da pertença (Tajfel, 1981).
Nas primeiras análises foi possível constatar claramente uma associação
entre a tolerância à violência policial utilizada como medida de preconceito,
identificação e ativação de emoções pessoais negativas, porém não encontramos
associações com a autoclassificação racial. Em síntese, os resultados sugerem
que, tanto a identificação como as emoções negativas, são variáveis centrais para
entender os fenômenos de preconceito e racismo.
Finalmente, considerando os resultados anteriormente descritos, testamos
a hipótese de que o preconceito racial, mensurado a partir da concordância
com a violência policial, é mediado pela identificação com o jovem descrito
e pela ativação das emoções pessoais negativas. As análises foram realizadas
tendo como variável dependente o posicionamento frente a violência policial
(preconceito racial), como variável independente a cor da pele do jovem agre-
dido, e como variáveis mediadoras a identificação com o jovem e a ativação das
emoções pessoais negativas. Observamos que a cor da pele do jovem descrito
na vinheta influenciou a percepção da violência policial, e que esta percepção
sofreu influência da identificação com o jovem e da ativação de emoções pessoais
negativas. Portanto, quanto maior a identificação social/racial com o jovem preto
e ativação das emoções pessoais negativas menos se aceita a violência policial.
Em conjunto, nossos resultados, de forma similar aos encontrados por
Costa-Silva et al., (2018) e Ferreira (2021), demonstram que a tolerância à vio-
lência policial expressa a discriminação racial, e que esta tolerância é mediada
pelos construtos psicológicos de pertencimento categorial, identidade social e
estados afetivos. Ao se sentirem identificados, próximos e similares ao jovem
preto agredido pela polícia e ao ativar emoções pessoais negativas, a ação policial
violenta foi julgada de forma mais aversiva e menos justificada. Estes resultados
podem ser analisados levando em consideração a representação do eu social,
influenciado pela consciência de pertencimento grupal que, por sua vez, reflete
na percepção da discriminação racial (Sellers & Shelton, 2003; Damasceno &
Zanello, 2018; Deschamps & Moliner, 2009). Isso significa que o sentimento
de pertencimento a uma categoria social racializada mobiliza um conjunto de
emoções que atuam na proteção dos membros do próprio grupo, o que reverbera
no julgamento e nas práticas sociais (Tajfel, 1981; Pereira, 2016; Gondim et
al., 2013; Smith & Mackie, 2016), no caso deste estudo, na menor aceitação de
ações violentas da polícia.
310 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Embora os resultados indiquem uma baixa tolerância à violência policial


contra um jovem preto agredido, isso não quer dizer que o apoio a determi-
nadas práticas racistas e a manifestação do racismo deixou de existir como
prática institucional. Basta olhar os jornais de grande circulação para perceber
a manutenção da exclusão e segregação de membros de grupos marginaliza-
dos e inferiorizados. Podemos inferir que os jovens estudantes universitários
participantes da pesquisa, que também se identificam mais com o jovem preto
agredido, apresentam maior familiaridade com discussões sobre o preconceito e
o racismo em suas atividades e práticas acadêmicas, o que ativa mais rapidamente
a crença na moral “politicamente correta”, estão, portanto, mais conscientes do
problema que precisa ser enfrentado. No entanto, mesmo acreditando que os
jovens universitários são mais informados, conscientes do preconceito racial e
do racismo, isso não quer dizer que em sua vida cotidiana não enfrentem ou
reproduzam práticas discriminatórias e racistas, uma vez que estão inseridos em
um contexto sociocultural e histórico racista. Sabemos que muito já foi feito e
denunciado, porém estamos muito longe de superar a discriminação racial e o
racismo no país.

Conclusão
O presente artigo buscou abordar o preconceito racial e o racismo mediante
a tolerância com a violência policial e o papel que desempenham os construtos
psicossociais de identificação e estados afetivos na percepção da violência. Cla-
ramente a identificação e a ativação de emoções pessoais negativas exerceram
um efeito importante no julgamento social e nas práticas cotidianas de expressão
do preconceito e racismo.
Assim, concluímos que o preconceito racial e o racismo são práticas pre-
sentes na vida dos universitários da amostra, que o preconceito racial é influen-
ciado por aspectos psicológicos tais como a identificação social e a afetividade,
e que a tolerância à violência policial é uma forma implícita de expressão do
preconceito e do racismo institucionalizado na sociedade, tendo em vista que
as ações policiais são direcionadas para uma parcela específica da população
(jovens, pretos e de periferia) e justificadas pelo discurso de que ações violentas
são necessárias no combate ao crime e na luta antidrogas. Isso revela um claro
apoio às práticas racistas, que, acopladas aos discursos de concordância com
estas práticas, reforçam e visibilizam a segregação racial, reforçando a ideia da
igualdade racial com o argumento do combate ao crime. Além disso, os estu-
dantes universitários participantes da pesquisa parecem estar mais conscientes
Capítulo 15 – Elza M. Techio, Raimundo C. de Gouveia e Bárbara Borges 311

do preconceito racial e do racismo, e as lutas, estratégias e táticas adotadas no


âmbito acadêmico, pelos movimentos sociais, leis e políticas públicas começam
a surtir efeito. No entanto, por se tratar de um fenômeno institucionalizado
culturalmente, a mudança é lenta e gradual. Diante disso, finalizamos este
artigo chamando a atenção para a complexidade e a multidimensionalidade do
preconceito racial e do racismo, o qual deve ser abordado em seus mais variados
níveis de análise, sejam intrapsíquicos, interacionais ou societais.
Como limitações do estudo, podemos apontar o uso de uma amostra de
estudantes universitários, o uso do método correlacional, do questionário de
autorrelato, bem como das medidas utilizadas para mensurar a identidade social
e as emoções ativadas, e finalmente o uso de vinhetas verbais como ativador da
categorização racial. Tais estratégias metodológicas não se mostraram suficien-
tes, pelo menos neste estudo, para ativar a identificação social dos participantes.

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Capítulo 16
Ver e sentir: duplo sofrimento de crianças
negras com o racismo e possíveis soluções
Ueliton Santos Moreira-Primo
Joana dos Santos
Dalila Xavier de França

“Eu tinha u ma colega na escola que era mais escura do que eu, aí tinham umas meninas
que não gostavam de chegar perto dela porque ela era negra. Aquilo me deixava triste,
porque ela era da mesma cor que eu e as pessoas ficavam humilhando ela por isso.”
(Marta, 11 anos, negra).

O relato da epígrafe, feito por uma das crianças entrevistadas neste es-
tudo, chama a atenção para a persistência do racismo em nossa sociedade e
demonstra que esse fenômeno se apresenta na realidade das pessoas ainda na
infância, afetando os relacionamentos entre crianças de diferentes grupos raciais.
Em seu relato, Marta14 conta uma experiência de racismo que ela observou
acontecer contra outra criança negra, que era humilhada e excluída por outras
crianças apenas pelo fato de ser negra. Marta disse que aquela situação a deixava
triste, percebendo que a razão de sua colega de escola sofrer racismo se dá em
decorrência de uma característica que também é partilhada por ela: a cor da
pele negra, ainda que a cor de sua colega seja mais escura que a dela. O relato
de Marta chama a atenção para um fenômeno pouco investigado na literatura
da psicologia brasileira: a experiência observada do racismo e o impacto que
essa experiência pode gerar nas crianças que pertencem ao mesmo grupo racial
daquela que está sendo vítima direta do ato discriminatório.
O relato de Marta mostra que o racismo atua em duas frentes, a da vítima,
quando é percebido em uma situação em que a própria pessoa sofre a ação racista,
e a do observador, percebido quando uma pessoa vê outra sendo discriminada.
Tais situações são capazes de gerar um duplo sofrimento na criança negra,
sentido através do impacto ao ser vítima direta da discriminação, bem como ao
ver seus pares sendo vítimas. Estudiosos têm constatado que observar o racismo

14
Foram utilizados nomes fictícios para resguardar o direito das crianças ao sigilo.
318 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

ocorrer contra outro indivíduo pertencente ao mesmo grupo do observador


pode ser tão deletério à saúde quanto ser a própria vítima direta do racismo
(Priest, Perry, Ferdinand, Paradies, & Kelaher, 2014). Por exemplo, quando
um indivíduo negro é vítima de racismo, tal experiência pode gerar impactos
psicológicos e emocionais para este individuo (Moreira-Primo & França, 2020;
Stevenson & Arrington, 2009; Unicef, 2010), estes impactos também podem
ser sentidos por outros indivíduos negros que viram ou ouviram falar sobre esse
episódio de racismo (Priest et al., 2014; Heard-Garris, Cale, Camaj, Hamati, &
Dominguez, 2018). Isto ocorre porque o indivíduo negro que observou a ação
discriminatória reconhece que a causa desse episódio é o fato de ambos serem
negros. Assim, tanto as experiências diretas de racismo quanto as experiências
observadas podem gerar impactos a saúde mental e psicológica de indivíduos
pertencentes ao grupo discriminado.
Sabe-se, todavia, que o conceito de racismo não corresponde apenas a
ocorrências de preconceitos e discriminações raciais, mas sim a um conjunto de
atitudes, comportamentos e práticas que mantêm um desequilíbrio na distri-
buição de poder entre grupos raciais (Lima, 2020; Paradies, 2006). A expressão
do racismo pode ser percebida através de práticas e comportamentos flagrantes
ou sutis, e se dá de diferentes formas, uma delas está a nível institucional e
outra a nível individual (Jones, 2000). No nível institucional, o racismo pode
ser observado através de desigualdades históricas e estruturais, em indicadores
socioeconômicos e parâmetros educacionais e de saúde. No nível individual,
o racismo permeia as interações diárias, com comportamento discriminatório
negativo direcionado aos membros das minorias raciais, através de hostilida-
des, agressões verbais e físicas, entre outros. O racismo individual é o foco do
presente estudo, que busca descrever as ocorrências de discriminação percebida
por crianças negras e brancas no seu dia a dia. “Racismo” será o termo usado
ao longo deste estudo em referência a encontros discriminatórios de base racial
experimentados em nível individual.
O racismo é uma experiência que quando difundida na vida das crianças,
pode comprometer negativamente as suas trajetórias de desenvolvimento através
de vários mecanismos, incluindo efeitos sobre o bem-estar psicológico e emocio-
nal. Por exemplo, estudos mostram que crianças e jovens de grupos minoritários
que mais frequentemente experimentam discriminação racial apresentam mais
sintomas de depressão (e.g., Pachter et al., 2010). Outros estudos revelam que
experiências diretas de racismo, ou seja, quando a própria criança é o alvo da
discriminação, produzem desfechos negativos em sua saúde emocional, como a
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 319

presença do sentimento de solidão (e.g., Priest et al., 2014). Experiências diretas


de racismo podem envolver situações em que a criança é xingada, apelidada
pejorativamente, agredida, excluída, impedida de brincar ou através de qualquer
forma que retire da criança seus direitos individuais e sociais apenas pelo fato
dela pertencer a um grupo racial e possuir características relativas à essa pertença
(como a cor da pele, o cabelo, os traços faciais etc.). Tais experiências são tóxicas
e podem traumatizar, ferir, humilhar, enraivecer e impedir o crescimento e o
funcionamento sadio de indivíduos e sociedades (Harrell, 2000).
A literatura sobre ocorrências de racismo em crianças tem se concentrado,
sobremaneira, nas experiências de racismo direto que as crianças vivenciam em
suas vidas. Avançando neste escopo, este estudo intenta não apenas explorar
essas experiências diretas, mas também investigar as percepções de crianças
sobre experiências de racismo vivenciadas por outras pessoas, mas que foram
observadas por elas. Enquanto o racismo direto é definido como experiências
de racismo em que a própria vítima sofreu a discriminação, o racismo obser-
vado pode ser definido como ouvir falar sobre ou ver a experiência de racismo
de outra pessoa, assim como dos cuidadores ou membros próximos da família
que sofrem discriminação (Priest et al. 2014). Este tipo de racismo também é
conhecido como racismo vicário (para uma revisão ver Heard-Garris, Cale,
Camaj, Hamati, & Dominguez, 2018).
Há uma crescente evidência empírica de que observar o racismo aconte-
cendo contra outra pessoa que detém as mesmas caraterísticas do observador
leva a desfechos negativos para a saúde de crianças e adolescentes minoritários
(Priest et al. 2014). Por exemplo, experiências de racismo vicário (bem como
direto) têm sido associadas com maior expressão de raiva e sintomas depressivos
entre adolescentes negros (Stevenson & Arrington, 2009), enquanto experiên-
cias de racismo dos pais (isto é, racismo vicário) têm sido associadas a sintomas
depressivos na adolescência (Ford et al., 2013). Outros estudos mostram o efeito
da experiência vicária de racismo no aumento da solidão em crianças e jovens, e
problemas socioemocionais em crianças, como lentidão nas interações verbais e
dificuldades em se afirmar frente à autoridade (e.g., Bécares, Nazroo, & Kelly,
2015; Priest et al., 2014). Como dito anteriormente, os desfechos negativos para
a saúde de jovens e crianças negras são resultados da experiência observada de
racismo; pela percepção que elas também participam do mesmo grupo racial da
vítima direta e que detém de características raciais comuns com elas.
As crianças podem observar episódios de racismo desde muito peque-
nas. Aos três anos de idade elas já categorizam e nomeiam grupos raciais com
320 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

base na cor da pele (Aboud, 1988; França & Monteiro, 2002) e aos 4 anos de
idade elas já podem expressar racismo, cuja a aprendizagem se dá por meio do
contexto social em que elas estão inseridas (França & Silva, 2021). As estra-
tégias utilizadas por pesquisadores para documentar esses episódios quando
eles são descritos pelas próprias crianças podem variar conforme a idade delas.
Nas crianças pequenas, com idades entre 5 e 6 anos, um dos instrumentos
mais utilizados como estímulo para a criança contar suas próprias vivências e
percepções com o racismo, é a contação de histórias (e.g., Bezerra, Santos, &
Fernandes, 2018; Moreira-Primo, 2020). Na realização deste estudo, criamos
uma história de discriminação racial a qual foi utilizada como estímulo para as
crianças contarem suas experiências com o racismo.
Na Psicologia Social, área que este estudo se desenvolve, o racismo é com-
preendido como um problema social que gera prejuízos não apenas para as suas
vítimas, mas também para a toda a sociedade. Uma preocupação recorrente dessa
área é a produção de conhecimento de estratégias que visem o enfrentamento ao
racismo e outras formas de preconceito (França, Santos, & Sousa, 2019). Neste
estudo, também temos o objetivo de apresentar estratégias de enfrentamento ao
racismo na infância, como possibilidades para solucionar esse problema social,
através de intervenções em escolas fundamentadas nelas.
Com base nessas considerações, este trabalho tem como objetivo geral
investigar as percepções de crianças sobre ocorrências de racismo e apresentar
um arcabouço teórico sobre possíveis soluções para a redução desse problema.
Para tal, dois estudos foram realizados, um empírico e um de revisão da li-
teratura. No estudo empírico, buscou-se examinar e descrever as percepções
de crianças sobre ocorrências de racismo, de forma direta (quando a própria
criança foi a vítima) e observada (quando a criança presencia outros sendo
vítima), verificando os conteúdos expressos nessas ocorrências, os locais onde
ocorreram e a cor da pele das vítimas e dos perpetradores. Já no estudo de
revisão, buscou-se apresentar uma revisão da literatura sobre possíveis estra-
tégias interventivas para o combate ao racismo na infância e, adicionalmente,
para o fortalecimento da identidade étnico-racial das crianças negras, de modo
que professores, pais, psicólogos e outros profissionais possam utilizar desse
conhecimento para trabalhar esses temas com as crianças e contribuir para
solucionar a problemática do racismo.
O trabalho a seguir está dividido em duas seções. A primeira com o estudo
empírico e a segunda com o estudo de revisão teórica. Iniciaremos apresentando
o estudo empírico sobre experiências de racismo em crianças, começando com
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 321

o método e posteriormente com os resultados e as discussões. Em seguida,


apresentaremos o estudo de revisão de literatura sobre as estratégias de inter-
venções para o combate ao racismo e fortalecimento da identidade étnico-racial
de crianças negras.

Método

Participantes
Participaram na pesquisa 60 crianças, sendo a maioria do sexo feminino
35 (58,3%) e 25 (41,7%) do sexo masculino, com idades variando dos 6 aos
11 anos (M=8,68; DP =1,692). Com relação ao grupo racial, 37 (61,7%) foram
categorizadas como negras e 23 (38,3%) foram categorizadas como brancas. As
crianças estudam entre o 1o e o 6o ano do ensino fundamental, na rede pública
de ensino, e são residentes de uma cidade do interior do semiárido da Bahia,
no Nordeste do Brasil.

Instrumentos e procedimentos
Inicialmente a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal de Sergipe e registrada na Plataforma Brasil, sob o número
do parecer 3.303.632. Os procedimentos utilizados nesta pesquisa seguem as
normas estabelecidas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
Com a aprovação do Comitê de Ética, realizou-se os contatos e solicitou-se a
permissão da escola e dos pais para realização do estudo. Após o consentimen-
to dos pais e da escola, convidou-se as crianças a participar das entrevistas, a
quem era explicado que a participação era voluntária e que poderiam se recusar
a participar da pesquisa ou interromper a sua participação a qualquer momento
e que o sigilo das respostas era assegurado. As crianças foram entrevistadas em
suas próprias escolas, individualmente, em uma sala reservada para a pesquisa.
As entrevistas tiveram, em média, duração de 20 minutos, e foram gravadas em
áudio e, posteriormente, transcritas.
Antes que iniciasse a aplicação, o entrevistador julgava a cor da pele da
criança a partir de suas próprias impressões (heterocategorização). As crianças
também se autocategorizam. Este processo foi baseado no estudo de França
e Monteiro (2002). Fotografias de quatro crianças, duas brancas (masculino
e feminino) e duas negras (masculino e feminino), com aparência de 8 anos e
meio de idade, previamente testadas por França e Monteiro, foram utilizadas
para a autocategorização das crianças. Para entrevistados do sexo masculino,
322 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

apresentavam-se fotografias de meninos, e para entrevistadas do sexo femini-


no, fotografias de meninas. Foi perguntando à criança: "qual desses se parece
mais com você?". A resposta era em termos da escolha da fotografia de uma
criança do grupo étnico-racial parecido ao da criança entrevistada. Em seguida,
questionava-se se a cor da criança escolhida era branca ou negra. Neste estudo,
as crianças negras se perceberam mais como negras, dizendo que a fotografia
da criança negra era mais parecida com elas, e responderam que a criança es-
colhida era negra. O mesmo ocorreu com as brancas, que se perceberam mais
parecidas com a fotografia da criança branca e responderam que ela era branca.
A heterocategorização e a autocategorização confirmam que as crianças de cada
grupo investigado, neste estudo, são percebidas e se percebem em conformidade
com seus grupos.
A entrevista iniciava com o entrevistador dizendo para a criança que lhe
contaria uma história e que precisava de sua ajuda para entender o que estava
acontecendo com os personagens da história. O entrevistador dava a seguinte
instrução para a criança participante:
Para as meninas:
“Eu gostaria de te contar uma historinha... você gostaria de ouvir a história da menina
Beatriz? Então vou te contar!

Para os meninos:
“Eu gostaria de te contar uma historinha... você gostaria de ouvir a história do menino
Pedrinho? Então vou te contar!

Para verificar as experiências de racismo das crianças entrevistadas, o


entrevistador utilizava-se de uma história de racismo contra uma criança negra.
A história era contada para cada criança com o objetivo posterior de verificar
se elas já passaram por uma situação igual, semelhante ou de outra natureza.
Antes da aplicação, uma avaliação da história foi feita por 10 juízes adultos com
conhecimento na área do racismo (três estudantes de graduação em Psicologia,
quatro estudantes de mestrado em Psicologia e três estudantes de doutorado em
Psicologia), houve um consenso de 100% dos juízes adultos de que a história
tratava de uma experiência de racismo. Para verificar se o conteúdo da história
era de fácil entendimento pelas crianças, fizemos um pré-teste que considerou
as primeiras 20 crianças do estudo, conforme as idades da amostra, e nenhuma
das crianças apresentou dificuldade de entendimento sobre a história. Assim,
demos continuidade às entrevistas contando a seguinte história:
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 323

Para as meninas:
“Beatriz é uma criança que gosta muito de brincar. Beatriz vai para a escola. Beatriz
tem alguns amigos e amigas na escola. Em um certo dia, Beatriz estava brincando na
escola quando uma menina chamada Clara disse que não era pra ela brincar ali porque
ela era feia, tinha um cabelo feio e tinha uma cor feia. Beatriz não sabe por que a Clara
falou aquelas coisas com ela. Vamos ajudar a Beatriz a descobrir por que a Clara falou
essas coisas com ela?”

Para os meninos:
“Pedrinho é uma criança que gosta muito de brincar. Pedrinho vai para a escola. Pe-
drinho tem alguns amigos e amigas na escola. Em um certo dia, Pedrinho estava brin-
cando na escola quando um menino chamado Felipe disse que não era pra ele brincar
ali porque ele era feio, tinha um cabelo feio e tinha uma cor feia. Pedrinho não sabe por
que o Felipe falou aquelas coisas com ele. Vamos ajudar o Pedrinho a descobrir por que
o Felipe falou essas coisas com ele?”

À frente da criança, ficavam duas fotografias de acordo com o gênero


e cor de pele das personagens. Para as meninas, a personagem de Beatriz era
apresentada com uma fotografia de uma criança menina negra e a personagem
de Clara era apresentada com uma fotografia de uma criança menina branca.
Para os meninos, Pedrinho era apresentado com uma fotografia de uma criança
menino negro e Felipe era apresentado com uma fotografia de uma criança
menino branco. Outro nome era dado aos personagens da história no caso de
coincidência como o nome da criança entrevistada.
As variáveis investigadas foram: Racismo observado e Racismo direto. O
racismo observado foi aferido através da pergunta: “Você já viu uma situação
como essa da história acontecer com alguém que você conhece?”. O racismo
direto foi aferido através da pergunta: “Uma situação como a da história ou pa-
recida já aconteceu com você?”. Quando as crianças respondiam positivamente
(que sim- já viram alguém ser ou que já foram vítima), outras quatro perguntas
eram feitas: (1) como foi? (2) onde foi? (3) qual a cor de quem praticou o ato X
(ato falado pela criança)? (4) qual a cor de quem foi vítima?
Uma análise de conteúdo das respostas das crianças foi feita pelos pes-
quisadores para observar quais conteúdos se tratavam de situações de racismo.
Foram incluídos no racismo direto e observado os relatos de racismo em razão
da cor da pele, experienciado pelo participante ou experienciado por outra pessoa
e vista pelo participante, respectivamente. Essas experiências, por vezes, eram
324 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

somadas a discriminações em razão de outros traços fenotípicos (por exemplo,


a textura do cabelo). Realizou-se, ainda, análises de frequências das situações
de racismo relatadas por cada grupo racial das crianças, e uma análise explora-
tória com os principais conteúdos e os contextos recorrentes em que as crianças
experimentaram o racismo.

Resultados
Quando perguntadas se já viram alguma pessoa conhecida passar por
uma situação igual ou parecida com a da história, 89,2% (ou 33 das 37) das
crianças negras relataram pelos menos uma ocorrência de racismo contra outra
pessoa, enquanto 60,9% (ou 14 das 23) das crianças brancas também relataram
ocorrência de racismo observado contra outra pessoa. Nenhuma criança branca,
quando se perguntou sobre já ter passado por uma situação igual ou parecida
relatou que experimentou racismo direto em seu dia a dia, enquanto 59,5% (ou
22 das 27) das crianças negras disseram já ter sido vítima de experiência direta
de racismo. Esses resultados podem ser visualizados no Gráfico 6.
Com estes achados, verifica-se que a ocorrência de situações de racismo
parece ser uma realidade comum no cotidiano das crianças. Dentre as 60 crian-
ças entrevistadas, 47 (78,3%) delas já viram uma outra pessoa ser discriminada
por causa da cor da pele. Nas crianças negras, observa-se que um número ainda
mais expressivo delas já viram outras pessoas sendo vítimas de racismo, bem
como elas relataram, também com bastante frequência, situações em que elas

Gráfico 6. Percentagens da percepção, por parte das crianças, do racismo direto e


do racismo observado, em função da cor da pele da criança.

Percepção do racismo
100%
89,2%
90%
80%
70%
59,5% 60,9%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
0%
Racismo direto Racismo observado

Brancos Negros
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 325

já foram vítimas. Nas crianças brancas, verifica-se que elas veem outras pessoas
sofrer racismo, o que solidifica ainda mais que a presença do racismo no coti-
diano em que elas estão inseridas é uma realidade.
Os relatos de experiências diretas e observadas de racismo das crianças
foram analisados considerando-se a cor da pele de quem foi vítima e de quem
perpetrou, o lugar onde ocorreu e os principais conteúdos associados, os resul-
tados são descritos a seguir.

A cor da pele das vítimas e dos perpetradores


Em relação à cor da pele das vítimas, verificou-se que todas as crianças
vítimas de racismo direto são negras, em todos os casos elas relataram que
quem perpetrou a discriminação contra elas tinha a cor de pele branca. No
racismo observado, todas as crianças, brancas e negras, relataram que as vítimas
tinham a cor de pele negra e quem perpetrou a discriminação tinha a cor de
pele branca, com exceção de uma criança branca, que disse que quem praticou a
discriminação tinha a cor de pele negra. Em um episódio, uma criança relatou
discriminação por parte de uma mãe branca que não queria que a sua filha fosse
amiga de outra criança negra. Aqui, fornecemos exemplos dessas discriminações
tomadas a partir das entrevistas:
“Os meninos brancos xingam e julgam os negros pela cor. O Bruno mesmo, chamam o
Bruno de “Mussum”, só porque ele é negro. Chamam ele de carrapato de cachorro, de
preto. O Bruno indefeso, pequeno, como vai falar algo para o menino que falou isso
com ele? O menino é grande, maior do que ele. Eu me sinto triste por isso.” (Mikael,
10 anos, negro).

“Já vi os meninos brancos xingando outros meninos de preto e fumaça.” (João, 7 anos,
negro).

“Eu já vi um homem na rua que as pessoas ficavam colocando apelido e xingando ele,
porque ele é negro. Um dia eu vi ele dizendo que “um dia um pobre pode ficar rico,
um feio pode ficar bonito, menos um preto nunca pode ficar branco, por que nascemos
assim”. Ele falou isso para um menino branco que colocou apelido nele, ele tava dando
conselho ao menino, aí o menino falou assim: “eu não quero seus conselhos, ainda mais
de um preto que não sabe nem ler.” (Vitória, 11 anos, branca).

“Um dia teve um passeio, e a mãe de uma colega minha não quis que ela se sentasse com
a outra porque ela era morena. A mãe dela é branca e filha dela é bem branquinha e a
326 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

outra que a mãe não queria que se sentassem juntas era mais escura, morena. Mas a filha
não saiu de perto, ela disse a mãe dela que não sairia de perto porque a menina era amiga
dela. A mãe não queria, mas ela não se separou da outra.” (Marta, 11 anos, negra).

Os contextos das discriminações


Verificou-se que o lugar mais comum onde ocorreram as situações de
racismo direto e observado relatado pelas crianças foi a escola: em 15 dos 22
casos de racismo direto foram na escola, o que corresponde a 72,22% dos casos;
três (ou 16, 66%) aconteceram no próprio contexto familiar da criança, 2 (ou
11,11%) na quadra esportiva da praça comunitária e dois nas ruas da cidade.
No racismo observado, 38 dos 47 casos ocorreram na escola, o que corresponde
a 80,85% dos casos; dois (ou 4,25%) no próprio contexto familiar da criança;
quatro (ou 8,50%) na quadra esportiva da praça comunitária e 3 (ou 6,40%)
foram vistos quando a criança estava na rua da cidade. Alguns exemplos são
descritos a seguir:
“-Na minha escola os meninos me xingam de macaco, me xingam de todo tipo, de preto,
quando eu vou dizer a diretora eles falam que é mentira. No recreio me xingam de todo
nome, eu digo para a professora, mas ela não liga. Eu me sinto muito mal.” (Marcos,
9 anos, negro)

“Na quadra e na escola. Tem vez quando vou brincar lá na quadra, os meninos não me
deixam brincar, aí começam a me xingar de todo tipo de palavrão, de escuro, de preto.”
(Marcelo, 9 anos, negro)

“Eu vi uma vez na escola, eu vi um menino chorando, ele era negro, mas eu não disse
nada. Os meninos que deve ter batido nele. Depois os meninos estavam jogando bola e
não deixaram ele brincar.” (Francisco, 6 anos, branco)

“Um dia eu entrei na escola, aí eu me sentei na minha cadeira e tinha outra menina
bem de frente pra mim, ela me olhava e falava um monte de coisa pra mim, ela disse:
“ deixe essa Urubu sentar sozinha”. Eu me senti tão triste.” (Maria, 11 anos, negra)

Os conteúdos das discriminações


Os conteúdos mais comuns associados à discriminação racial direta e
observada pelas crianças negras foram os apelidos insultuosos e xingamen-
tos. Inúmeros apelidos utilizados de forma pejorativa e/ou com intenção de
depreciar e desvalorizar foram relatados pelas crianças, destacamos alguns:
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 327

“preto”, “negro”, “negrinho”, “escravo”, “macaco”, “urubu”, “carvão”, “choco-


late”, “café”, “escuro”, “pneu queimado”, “cabelo ruim ou duro”, “cabelo de
bombril”, “sujo”, “carrapato”, “fumaça”. Observam-se alguns desses insultos
nos relatos a seguir:
“Meus irmãos são xingados na escola, xingam de tudo que é nome, preto, feio, macaco.
Fico triste e com medo de baterem na gente.” (Cecilia, 10 anos, negra).

“Eu tinha uma amiga, ela era morena e o cabelo dela não era cacheado, mas também não
era liso, aí tinha gente na escola que chamava ela de cabelo de bombril, outros chamavam
ela de nega preta, outros chamavam de cabelo de enxu. Um dia ela falou para a mãe dela
e a mãe dela foi até a escola e resolveu isso com o diretor. Mas continuaram perturbando
ela, e ela teve que mudar de colégio por causa do bullying que ela sofria, e o diretor nem
ligava quando alguém reclamava.” (Mariana, 11 anos, branca).

“Tem uma menina que, quando eu estudava com ela na escola, todo mundo chamava
ela de urubu. Eu ficava com raiva, zangada, mal.” (Cleide, 9 anos, negra).

“Tem um menino que conheço que ele tem a minha cor, quando ele toma banho e passa
pela areia o pé dele fica cheio de poeira, quando ele vinha da casa dele para a escola,
porque ele mora num lugar de areia, aí o pé dele fica sujo, aí os meninos ficavam dizendo
para ele que ele era preto e pobre que não tomava banho. Os meninos ficam chamando
ele de lodrento, que não toma banho. Um dia ele queria brincar com os meninos e os
meninos disseram que era pra ele sair, falaram “sai daqui seu bicho feio, lodrento”. E
queriam bater nele, aí eu cheguei e disse “vocês não vão bater nele não!”, aí não bateram.
Mas ficaram chamando ele de carvão... Eu ficava triste, e eu até falava: “porque vocês
ficam xingando ele, se ele nunca te fez nada? [...]” (Mikael, 10 anos, negro)

O racismo pode ser percebido através de sua expressão mais flagrante, mas
também através de atitudes sutis. Por exemplo,
“Eu vejo que algumas pessoas negras não são bem recebidas na casa das pessoas, acham
que são perigosas e que podem fazer mal.” (Pedro, 10 anos, negro).

Situações de racismo com agressão física foram relatadas por quatro crian-
ças negras (duas delas relataram ter apanhado de colegas da escola que disseram
que elas eram feias e pretas, e duas relataram que tiveram seus cabelos puxados
por outras crianças, por ele ser considerado ruim/duro), como podemos observar
nos seguintes relatos:
328 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

“Na escola, os meninos mais claros tacam o chinelo nos meninos e nas meninas negras
e dizem que a cor é feia. Eles já me bateram e já me xingaram de preta.” (Fernanda,
11 anos, negra).

“[...] tem gente que fica colocando apelido e me xingando de preta, fazendo bullying,
mas não pode. Na escola, uma menina branca disse que eu era preta e que eu era feia e
uns meninos já puxou o meu cabelo. Eles sempre puxavam o meu cabelo, um dia minha
mãe cortou bem baixinho porque eu pedi. Mas eles continuavam rindo e mexendo. E
quando fui pra escola, pra festa de encerramento, minha professora nem me reconheceu,
achou que eu era um homem. Ela disse que eu estava diferente, porque eu tinha cortado
o cabelo. E os meninos mangando, dizendo que eu era um homem. Foi um dia bem
ruim. Era a festinha da escola, eu senti que não era pra tá ali.” (Cleide, 9 anos, negra).

Enquanto algumas crianças relataram terem sido rejeitadas na escola e


excluídas nas brincadeiras, duas crianças disseram terem sido rejeitadas pela
avó branca, por não as considerar como netas, por serem negras. Por exemplo:
“Porque tem gente que é branco e que não quer que o filho dela brinque com aquele que
é negro. Porque o povo chama nós negros de escravos. Porque tem umas que não gostam
da cor negra, e ficam falando coisas só porque a pessoa é negra. Falam que não quer ter
um filho negro, aí quando vai ver o filho dela pode sair negro. Algumas queriam ter
um filho branco, mas aí pode sair negro, da cor que ela não quer. Lá em casa, a minha
avó branca já me falou que eu não sou neta dela porque eu sou negra e ela queria uma
neta branca. Eu me senti tão triste e mal.” (Ana, 10 anos, negra).

Discussão
Até onde sabemos, este estudo está entre os primeiros no Brasil a examinar
e descrever a percepção de crianças sobre experiências de racismo e comporta-
mentos discriminatórios em suas vidas cotidianas, de forma direta e observada.
Mais especificamente, verificou-se a ocorrência de racismo direto (quando a
própria criança foi a vítima) e racismo observado (quando a criança presencia
outros sendo vítima); os conteúdos expressos nas situações de racismo; os locais
onde ocorreram e a cor da pele das vítimas e dos perpetradores. Os resultados
deste estudo exploratório mostram que cerca de 60% das crianças negras entre-
vistadas disseram já ter sido vítima de experiência direta de racismo e quase 90%
das crianças negras relataram já ter presenciado pelo menos uma experiência de
racismo contra outra pessoa negra. Viu-se que crianças brancas também perce-
bem a ocorrência de racismo contra pessoas negras, sendo relatado por pouco
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 329

mais de 60% delas. O conjunto desses dados constatam que o racismo é um


fenômeno que persiste em nossa sociedade brasileira e que torna crianças negras
frequentemente vítimas de discriminação racial. Percebe-se que o racismo é
um problema social, difundido na vida das crianças desde muito cedo, do qual
é fundamental a mobilização de políticas antirracistas para construir barreiras
contra a expressão desse fenômeno.
Nota-se que um número maior de crianças negras percebe o racismo contra
pessoas do seu próprio grupo étnico-racial, do que as crianças brancas percebem.
Supomos que sendo as crianças negras as principais vítimas de racismo, podem
ser também elas as que mais estão em estado de “alerta” sobre discriminações
vivenciadas por pessoas do seu mesmo pertencimento étnico-racial. Por outro
lado, o número de crianças brancas que percebe a discriminação contra os negros
em seu cotidiano é bastante expressivo, o que permite certificar que o racismo
se expressa, nesse contexto, não apenas de forma sútil, como é uma das suas
principais expressões no Brasil (Lima, 2020), mas também de forma altamente
aberta e flagrante.
Nossos dados mostram que o racismo continua vigente e causando mal-es-
tar na sociedade, interferindo, negativamente, nas trajetórias de vida e bem-estar
de crianças negras, como foi possível perceber neste estudo. Os resultados aqui
encontrados corroboram com as afirmações de Harrell (2000), ao compreender
que experiências de racismo são tóxicas e podem traumatizar, ferir, humilhar,
enraivecer e impedir o crescimento e o funcionamento sadio de crianças vítimas,
expressos nos sentimentos relatados mediante a experiência vivenciada pelas
crianças negras entrevistadas. Estes dados chamam atenção sobre a necessidade
e urgência de proposições de programas de combate ao racismo nas escolas, para
garantir não apenas a segurança das crianças, mas também condições dignas
para o seu desenvolvimento.
Contextos como escola, família e espaços comunitários foram os locais
em que crianças mais perceberam ocorrências de racismo, sobretudo a escola.
Estas descobertas tornam mais evidente que as escolas, como locais de relações
interculturais, refletem atitudes sociais mais amplas, como o racismo. Muitas
vezes, não apenas o ambiente escolar se apresenta como hostil para as crianças
negras, mas também os agentes educacionais ignoram o racismo e os conflitos
raciais que se apresentam nesses locais, assim como foi descrito nos estudos
de Cavalleiro (2012), Feitosa dos Santos (2014) e Gomes (2012), muitas das
injustiças quando denunciadas aos professores são minimizadas, negadas ou
silenciadas, seja por falta de preparo para perceber e lidar com as situações, seja
330 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

porque compactuam com as ideias preconceituosas ou não consideram o racismo


como algo relevante, cuja resolução não compete a escola.
É fato que a solução para a problemática do racismo, especialmente sua
expressão na infância, passa necessariamente pelo processo de socialização, o
modo como, por exemplo, a família e a escola falam sobre raça, etnia e racis-
mo (França, 2013). O enfrentamento do racismo exige uma transformação dos
silêncios e das negações, em discursos de valorização das diferenças e práticas
educacionais, desde a educação básica até a educação superior, munindo futuros
professores com conhecimentos em relação às diferentes culturas e etnias que
compõem a sociedade brasileira (Cavalleiro, 2012; Feitosa dos Santos, 2014;
Gomes, 2012). Mansouri e Jenkins (2010) afirmam que as escolas precisam ser
apoiadas por programas de formação de professores que exploram as maneiras
pelas quais as questões de raça, etnia, cultura e diversidade podem ser incorpo-
rado na escolha do conteúdo no currículo escolar. Segundo os autores, isso vai
influenciar positivamente a forma como os professores abordam diversidade e
tensões interraciais dentro de suas próprias salas de aula e a escola mais ampla.
Além disso, os professores devem ter em mente que atividades e conversas sobre
raça, etnia, cultura e diversidade não devem se limitar a um evento comemorativo,
ou outros programas especiais, como feriados, mas, em vez disso, devem fazer
parte do dia a dia da sala de aula e de todo espaço escolar (Matos & França, 2021).
Husband (2012) fornece algumas sugestões sobre como os professores
podem trabalhar visando a educação antirracista em ambientes escolares. O
autor argumenta que o educador deve, inicialmente, reconhecer que o racismo
é uma realidade e é cotidianamente difundida através de ideologias formais e
informais, políticas, práticas e textos implementados nas escolas, sendo neces-
sário, após esse reconhecimento, o exame e identificação de como o racismo se
apresenta no seu ambiente escolar. Em seguida, o educador precisa criar uma
agenda, junto com outros educadores e com os próprios alunos, com o objetivo
de criar uma atmosfera escolar que seja propícia ao ensino e à aprendizagem
antirracista. Segundo ele, o educador pode começar trabalhando a educação
antirracista através de atividades cotidianas com os alunos e no envolvimento dos
pais em ações contra a injustiça racial, como um meio de expor as relações de po-
der opressivas e dos seus desfechos entre indivíduos de diferentes grupos raciais.
Para o autor, a educação antirracista se coloca como principal possibilidade de
estabelecer ambientes escolares mais aprazíveis para todas as crianças e formar
novas gerações livres de preconceitos. É preciso, nesse sentido, criar condições
para que todas as crianças sejam aceitas, acolhidas e estejam em segurança.
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 331

Nossos resultados demonstram que ocorrências de racismo individual


são percebidas pelas crianças através de experiências de discriminações verbais
(xingamentos e apelidos), físicas (tapas e puxões de cabelo), rejeição, exclusão e
o impedimento do direito da criança negra de brincar. Como referido inicial-
mente, muitos estudos afirmam que experiências de racismo e discriminação
podem afetar o bem-estar psicológico e físico das vítimas (e.g., Ford et al.,
2013; Moreira-Primo & França, 2020; Pachter et al., 2010; Priest et al., 2014;
Stevenson & Arrington, 2009). No caso das crianças negras, tanto as expe-
riências diretas de racismo quanto as observadas (isto é, experiências vicárias)
podem afetar negativamente sua saúde emocional, como apontam estudos sobre
consequências vicárias do racismo para grupos minoritários (Bécares, Nazroo,
& Kelly, 2015; Ford et al., 2013; Stevenson & Arrington, 2009; Priest et al.,
2014). É importante que na construção de medidas visando o enfrentamento
do racismo seja considerado o impacto que ele produz na vida das vítimas, para
que elas possam receber o apoio necessário para superar esses impactos.
Como a maioria dos estudos, esta pesquisa apresenta algumas limitações.
A primeira limitação é sobre o tamanho da amostra do estudo e o fato de ter
se concentrado em apenas uma cidade do interior do semiárido da Bahia. Para
que seja possível generalizar os achados encontrados neste estudo, outras reali-
dades precisam ser examinadas e um número maior de crianças incluídas. Uma
segunda limitação pode estar no fato da utilização de fotografias de crianças
negras e brancas na história de racismo, qual a criança negra era representada
como a criança que foi discriminada e a criança branca a perpetradora. Isto
pode ter causado um viés nas respostas das crianças as questões subsequentes.
Sugere-se que em novos estudos, opte-se por retirar as fotos ou colocar muitas
fotos (incluindo fotos de adultos), para que possíveis influências nas respostas
sejam controladas. Seria interessante perguntar às crianças não apenas a cor de
quem praticou a discriminação, mas também quem eram essas pessoas (se era
um adulto ou outra criança; se era um colega, professor, familiar etc.). Além
disso, o contexto em que se passava a história dos personagens, isto é, na escola,
também pode ter produzido o mesmo tipo de influência. Sugere-se que estudos
futuros considerem a diversificação do contexto em que ocorre a situação de
racismo ou a neutralização do cenário.
Uma dimensão importante que pode ser explorada em novos estudos é
a diferença entre a quantidade de crianças negras que se perceberam vítimas
diretas de discriminações (59,5%) em comparação com a quantidade, ainda
maior, das que observaram as discriminações ocorrerem contra outras pessoas
332 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

negras (89,2%). É importante considerar que relatar a própria experiência de


racismo pode ser algo doloroso e desconfortável. Isto pode contribuir para que
algumas crianças negras não se sintam à vontade e confortáveis para falar sobre
sua própria experiência com a discriminação direta. Apesar de também dolorosa,
relatar experiências que ocorreram com outras pessoas, pode ser menos descon-
fortável. Em decorrência disso, supomos que o número de crianças vítimas de
discriminação direta pode ser ainda maior. Estudos futuros poderiam dar mais
atenção a esta possibilidade.
Outros estudos poderiam analisar as diferenças de idade das crianças frente
à percepção do racismo, verificando também em que momento da vida as crian-
ças começam a perceber as ocorrências de racismo. Além disso, estudos futuros
podem se concentrar nas respostas emocionais e de enfrentamento empregadas
por elas diante das experiências com a discriminação. Considerando que os indi-
víduos respondem de diferentes maneiras a situações semelhantes, é importante
investigar o que tem se constituído como fatores decisivos para determinar se uma
situação será avaliada como estressante e se tem potencial para efeitos negativos
à saúde. Evidencia-se também à necessidade de realizar estudos que investiguem
as experiências de racismo e como elas se relacionam com as disparidades no
desempenho e índices educacionais entre crianças negras e brancas.
Uma preocupação recorrente nos setores sociais e científicos é a produção
de conhecimento e de estratégias práticas que visem o enfrentamento ao racis-
mo e auxiliem as crianças vítimas a construírem uma identidade étnico-racial
positiva, apesar dessas experiências estressoras. Embora, no Brasil, sejam raros
os estudos publicados com metodologias sistematizadas, que sejam passíveis de
replicação, que buscam fornecer estratégias de intervenção de enfrentamento ao
racismo e para o fortalecimento das identidades de crianças negras, existe uma
literatura crescente nessa área, especialmente na Psicologia Social (Carvalho &
França, 2019; França, Santos, & Sousa, 2019). Na próxima seção, fornecemos
uma revisão da literatura de informações, baseadas em teorias da Psicologia
Social, que visam nortear a criação de programas interventivos que obtenham
sucesso tanto na redução do racismo quanto no fortalecimento da identidade
étnico-racial de crianças negras.

Intervenções para o combate do racismo na infância


O uso de teorias da Psicologia Social em intervenções para reduzir o pre-
conceito está progressivamente se tornando mais comum. Isso se deve ao fato
das recentes publicações de teorias bem formuladas, esse aspecto é importante
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 333

quando consideramos que programas de intervenções que se baseiam em teorias


são mais eficazes do que intervenções que não têm essa base (Aboud et al., 2012).
Com o objetivo de nortear a criação de intervenções que obtenham sucesso tanto
na redução do racismo quanto no fortalecimento da identidade das crianças
negras, a seguir serão apresentadas e discutidas as principais teorias, dentro
do escopo da Psicologia Social, que fundamentam a construção de programas
interventivos. Serão apresentadas intervenções baseadas na Hipótese do Contato
Intergrupal, na Educação Multicultural, Hipóteses baseadas na categorização,
Hipótese do Contra Estereótipo e, por fim, são indicados alguns critérios para
um melhor planejamento e execução das intervenções.

Intervenções baseadas na Teoria do Contato desenvolvida por Allport (1954)


Programas de intervenções amparados pela Teoria do Contato são as que
permitem e intencionalmente geram oportunidades de contato próximo e posi-
tivo entre membros de diferentes grupos. No entanto, o contato intergrupal não
é raro ou escasso no Brasil, a grande questão para que o preconceito racial ainda
perdure diz respeito às condições nas quais o contato ocorre. Conforme proposto
por Allport (1954), o contato entre grupos é eficaz na redução do preconceito,
desde que ocorra sob determinadas condições: a) igualdade de condições de
status – que haja igualdade de poder social e recursos; b) que os grupos possuam
objetivos comuns – ou seja, envolve cooperação e permite o desenvolvimento de
relacionamentos; c) com o apoio institucional – que exista no ambiente social
normas estabelecidas a fim de coibir intolerância e que promovam o respeito e
valorização das diferenças, políticas públicas também podem ser consideradas
como apoio institucional (França, Santos, & Sousa, 2019). Assim, as interven-
ções no nível do contato precisam aperfeiçoar essas condições, para que o con-
tato ocorra de forma plena, ou seja, que promova igualdade status, cooperação,
proximidade – estudos verificam que essa proximidade também precisa ser de
qualidade, a exemplo do estudo realizado por Binder e colaboradores (2009), em
que os autores observaram que a qualidade do contato, isto é, se o contato era
baseado numa amizade, teve uma influência positiva para reduzir o preconceito.
Entretanto, é comum que em um contexto escolar multiétnico, como no Brasil,
que emerjam as situações de contato “problemáticas”; nas quais as crianças de
grupos minoritários sejam discriminadas, sofram preconceito (Binder et al.,
2009). Esse fato justifica a promoção de intervenções no contexto escolar com
vista a proporcionar relações intergrupais em condição de igualdade de status,
produzindo amizade real, não apenas uma proximidade por compartilhamento
334 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

de atividades, pois relações construídas nessa base, provavelmente não serão efi-
cazes na redução do preconceito (Pettigrew & Tropp, 2006; Binder et al., 2009).
Estudos que atendiam totalmente aos critérios de Allport (1954) para
contato ideal mostraram efeitos do contato mais fortes do que aqueles que não
atendiam (Aboud et al., 2012). Por outro lado, os membros minoritários podem
sofrer desvalorização e discriminação em situações de contato, especialmente
quando há desequilíbrio de poder entre membros majoritários e minoritários.
Quando todos são tratados igualmente na escola, o desequilíbrio de poder per-
cebido pode ser reduzido, resultando em discriminação percebida por membros
minoritários (Binder et al., 2009).
Uma das alternativas para a construção de intervenções com base na Teoria
do Contato é fazê-las através do uso da mídia. A mídia é uma forma particu-
larmente conveniente de proporcionar às crianças uma forma indireta ou vicária
de contato, especialmente a respeito de grupos com que as crianças têm pouca
ou nenhuma oportunidade de contato direto (no Brasil, seriam exemplos, os
grupos étnico-raciais: indígenas, quilombolas, ciganos, mas também o grupo
negro, principalmente se considerarmos as informações escassas, estereotipadas,
que as crianças recebem no modelo eurocêntrico de educação). A mídia pode
ter a forma de livros, revistas ou vídeos e pode ser mídia de massa ou mídia
pequena. Os estudos utilizando de mídia apresentaram crianças cenas e histórias
de contato intergrupal entre pares, por exemplo, histórias que narram pessoas
de diferentes etnias convivendo em relação de amizade e colaboração (Aboud
et al., 2012).
Um modelo de intervenção para redução do preconceito utilizando mídia
e baseado na teoria do contato foi o proposto por Hughes, Bigler e Levy (2007),
o estudo mostrou que crianças de grupos majoritários (brancas) realizaram uma
avaliação mais positiva dos membros do outgroup (negras) depois de ouvir falar
de figuras famosas e suas experiências com discriminação injustificada. Os
resultados mostraram que expor as crianças a formas evidentes de preconceito
provocou a raiva e despertou respostas antipreconceito.
Outro modelo de intervenção de contato mediado pela mídia foi opera-
cionalizado por Johnson e Aboud (2017) num experimento em que testaram
utilizar um livro ilustrado que retrata a amizade entre crianças de raças dife-
rentes para facilitar a redução do preconceito racial, os autores concluíram que
os livros de histórias de amigos de várias raças são uma maneira promissora de
expor as crianças a outros grupos raciais e fomentar atitudes de antipreconceito,
principalmente para crianças mais novas e o impacto aumenta ainda mais se as
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 335

crianças puderem reconhecer a atitude respeitosa e de antipreconceito do adulto


que lê as histórias.

Intervenções baseadas na educação multicultural


Tendo em conta que a sociedade brasileira é uma sociedade multicultural,
é importante que reconheçamos a importância de a educação estar pautada neste
multiculturalismo, uma vez que, como já foi apresentado, o modelo de educação
brasileiro se baseia na crença de que há uma única raiz, superior e dominante
como cultura de referência, a europeia. Deste modo, o multiculturalismo, en-
quanto proposta de modelo educacional, emerge como um conceito que permite
questionar dentro do currículo escolar e das práticas pedagógicas nele desen-
volvidas, o status de superioridade que alguns saberes possuem sobre outros.
A educação multicultural sugere uma ruptura com os modelos pré-esta-
belecidos e práticas que dentro do currículo escolar produzem um efeito co-
lonizador, em que crianças e adolescentes de diversos grupos étnico-raciais,
comunidades, culturas e diferentes classes sociais ocupam o lugar de indivíduos
a ser colonizados e postos a margem por um processo de silenciamento de suas
identidades e pertenças raciais. Espera-se que, por meio de uma prática educativa
multicultural, os estudantes possam analisar as relações de poder envolvidas
na produção de mecanismos discriminatórios ou silenciadores de sua cultura,
criando condições para reagir e poder lutar contra esses mecanismos que pre-
gam a superioridade científica, tecnológica e cultural de determinados grupos
economicamente dominantes (Pansini & Nenevé, 2008). Esta discussão ainda
é recente no Brasil, ainda mais no campo da educação, mas estudos ao redor do
mundo mostram que além dos efeitos da igualdade e inclusão, a aprendizagem
sobre outras diversas culturas na escola, incorporando a diversidade cultural a
fundo no currículo escolar, promove o apreço por diversas perspectivas e pessoas
(pluralismo cultural).
No geral, estudos demonstram que a experiência multicultural desempe-
nha um papel crítico no aumento tolerância social através de sua relação com
processos cognitivos. Os efeitos benéficos do multiculturalismo foram encon-
trados para uma variedade de grupos alvo de estereótipos (e.g., negros, etíopes,
homossexuais e israelenses nativos), independentemente de a experiência multi-
cultural ter sido medida ou manipulada (em experimentos) e independentemente
da população amostrada (Schachner et al., 2019; Verkuyten & Thijs, 2013).
Uma perspectiva interessante para a valorização da cultura do outro, e que
seria implicada na educação multicultural, estaria relacionada à proximidade
336 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

com as comunidades. Se por um lado o modelo tradicional despreza os saberes


populares, a educação multicultural entende que programas comunitários são
veículos importantes para que as crianças e adolescente desenvolvam um senso
de identidade grupal (para membros do grupo) e de conhecimento e respeito
(para membros de outros grupos) (Pansini & Nenevé, 2008).
As intervenções utilizando essa base teórica mobilizariam a comunidade
escolar (coordenadores, direção, professores) no sentido de desenvolver um cur-
rículo pautado nas diversas culturas que formam a sociedade brasileira, consi-
derando a comunidade a qual a escola pertence e proporcionando experiências
culturais múltiplas. A proposta de uma educação multicultural se coloca como
fundamental dada vista a necessidade de que o ensino esteja focado na nossa
rica diversidade, que venham a influir positivamente na formação da cidada-
nia, no conhecimento da história e da cultura de outras raízes formadoras do
Brasil, deixando de lado o modelo que prioriza uma única cultura (europeia)
em detrimento das outras (Munanga, 2015).
Em estudo realizado na Holanda, Verkuyten e Thijs (2013) ressaltam que
as práticas educacionais multiculturais são consideradas desejáveis e necessárias
para o desenvolvimento de relações interétnicas positivas. Os efeitos positivos
da educação multicultural se apresentaram em termos de melhoria do conhe-
cimento e compreensão cultural das crianças e do estabelecimento de normas
antipreconceito na sala de aula. Esses dois mecanismos teóricos podem explicar o
impacto positivo da educação multicultural nas atitudes interétnicas das crianças.
Ações pautadas no multiculturalismo reservam espaços para a demonstra-
ção das especificidades dos diversos grupos que formam a sociedade, suas carac-
terísticas sociais e culturais, como por exemplo, no estudo de Algarve (2004),
realizado no Brasil com a criação do cantinho das africanidades, que consiste
num espaço para exposição de materiais culturais africanos e afro-brasileiros,
como livros, CDs, instrumentos musicais, roupas e receitas de culinárias típicas,
biografias de personalidades negras mundiais das diferentes áreas do conheci-
mento e seus inventos e contribuições. Essa ideia pode amparar outros grupos
como indígenas, mulheres, ou as diferentes religiões etc. A proposta é estimular
o interesse pela diversidade, compreender que os grupos têm diferentes formas
de viver e que estas derivam de especificidades culturais, históricas e ambientais,
ver os diferentes grupos de forma positiva, desconstruir estereótipos e mostrar
a diversidade de maneira dinâmica, usando materiais didáticos ao alcance dos
estudantes. Em síntese, a teoria do multiculturalismo exalta a valorização da
diversidade cultural e estimula a aceitação diferenças culturais, tratando-as
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 337

como positivas e enriquecedoras, através da transmissão de conhecimentos sobre


os diferentes grupos e suas respectivas culturas, mas também pontuando suas
semelhanças (França et al., 2019).

Hipóteses baseadas na categorização


Hipóteses baseadas na categorização consistem num conjunto de teorias
que concebem que a redução do racismo pode ocorrer pela modificação das
representações cognitivas dos grupos em contexto intergrupal (Rebelo, 2006).
Destacaremos os modelos da Descategorização (Brewer & Miller, 1984) e da
Recategorização (Gaertner et al., 1989, 1993). O modelo da Descategoriza-
ção propõe que as representações dos grupos têm que se distanciar daquelas
da categorização social ou imagem dos grupos construída pela sociedade ao
longo do processo histórico. Ou seja, as interações entre os grupos devem ser
personalizadas, de modo que os membros sejam vistos como indivíduos e não
como representantes de uma categoria. Assim, o fornecimento de informações
personalizadoras e relevantes, de natureza idiossincrática, pode contribuir para
a formação de impressões mais individualizantes e reduzir a utilidade de im-
pressões de base categorial (Rebelo, 2006).
O estudo de Jones e Foley (2003) exemplifica a aplicação de uma técnica
de Descategorização. O objetivo das autoras foi ensinar crianças a perceberem
semelhanças mais do que diferenças ao interagirem com pessoas de outros gru-
pos. Para atingir esse objetivo, as autoras se ampararam em conhecimentos de
ciências: produziram apresentações em slides que ensinavam a Descategorização.
A primeira sessão consistiu de conteúdos relativos à ancestralidade humana, nos
quais apresentou-se os primeiros ossos humanos, mostrou-se a propagação de
humanos em todo o mundo, como os corpos se adaptam ao ambiente, a varia-
ção dos níveis de melanina que determinam as diferenças em tons de pele. A
sessão seguinte trouxe conteúdos de biologia, que mostraram que as diferenças
fisiológicas não refletem diferenças internas. Mostraram-se as semelhanças ge-
néticas de pessoas de diferentes partes do mundo, e a execução de transplantes
de órgãos entre pessoas que parecem diferentes. A última sessão foi intitulada “o
caldeirão das raças”, na qual mostrou-se a concepção sobre a construção étnica
dos diferentes países, enfatizando-se que em quase todos os países as pessoas
têm ancestrais de outras áreas do mundo. Nessa sessão, explicou-se que muitas
pessoas mudam de lugar para escapar de adversidades naturais, sociais, como
fome, guerras e preconceito; e destacou-se as realizações feitas nos países como
resultado de uma população etnicamente diversa.
338 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

O estudo de Jones e Foley (2003) foi de tipo experimental e as autoras


realizaram outras medições, inclusive inserindo grupo controle para perceber
a eficácia da técnica. Mas num estudo interventivo é importante trazer a dis-
cussão dos conteúdos ressaltando que as pessoas possuem mais similaridades
do que diferenças, e que muitas das diferenças são produzidas socialmente. É
importante considerar que a técnica foi utilizada com crianças do quinto ano.
No modelo da Recategorização ou modelo da Identidade Endogrupal
Comum (Gaertner et al., 1989; 1993), importa a reestruturação das fronteiras
grupais em um nível mais elevado de inclusão, através da redução da saliência de
cada grupo individualmente em prol de uma dimensão mais inclusiva, de modo
que os indivíduos se percebam em termos de uma identidade única e comum
(Gaertner & Dovidio, 2005). Ou seja, membros de grupos diferente seriam
levados a perceberem as similaridades entre si em alguma dimensão de suas
vidas, por aumentar a saliência de pertenças comuns preexistentes (ex., escola,
corporação, nação etc.) ou pela introdução de fatores percebidos como desejados
pelos membros (ex., destino ou objetivos comuns) (Gaertner & Dovidio, 2005).
Guerra, Rebelo, Monteiro e Gaertner (2013) exemplificam essa perspec-
tiva numa tarefa desenvolvida em quatro sessões, uma por semana. A tarefa
consistiu na solicitação às crianças para criarem uma história em quadrinhos
descrevendo sua vida cotidiana numa ilha. Os professores reuniram as crianças
em grupos mistos quanto ao gênero e raça (pode-se acrescentar outras categorias
que se pretenda integrar). Cada grupo recebeu um pôster com o desenho da ilha
deserta como plano de fundo. Cada uma das quatro sessões semanais represen-
tou um dia vivido na ilha. As crianças descreveram quatro situações diferentes: A
primeira sessão teve o objetivo de explorar a ilha. As crianças desenharam-se na
ilha e aprimoraram o ambiente físico geral (usando recorte e colagem de figuras
etc.). A segunda sessão teve o objetivo de montar um acampamento, procurar
comida e cozinhar uma refeição (usando materiais como fotos e desenhos). Na
terceira sessão, os participantes construíram uma cerca para proteger o acampa-
mento, pois havia animais perigosos vivendo na ilha (materiais usados: animais
em miniatura, fotos, desenhos, recorte colagem, palitos de fósforo). Finalmente,
na última sessão, as crianças preparam o barco para voltar para casa (materiais:
desenhos, fotos, recorte colagem).
Para criar a situação de recategorização os grupos de crianças realizaram
todas as atividades em conjunto, dispostos em uma única mesa com assentos
próximos. Crianças de diferentes categorias intercalavam-se umas às outras (e.g.,
menina negra, menino branco, menino negro, menina branca etc.). Cada grupo
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 339

recebia uma identidade de equipe e uma etiqueta de cor comum, e o professor


enfatizava o nome da equipe no início de cada nova sessão. As crianças usavam
o nome da equipe em suas apresentações. E foram informados de que a equipe
ganharia um prêmio no final ao completar sua história em quadrinhos. Todos
os participantes realizaram exatamente a mesma atividade durante as sessões:
todos estavam ou desenhando, ou escrevendo, ou colando figuras. Ao final, as
crianças receberam feedbacks informando que o trabalho em grupo havia atingido
todos os objetivos e que as histórias ficaram excelentes e que, portanto, toda a
equipe receberia o prêmio.
Tendo em vista que o objetivo de Guerra e cols. (2013) era verificar a eficá-
cia de intervenções baseadas na Recategorização, as crianças foram pré-testadas
uma semana antes e pós-testadas um mês após a aplicação da intervenção, no que
concerne a seus níveis de tolerância aos grupos diferentes. Segundo as autoras a
intervenção de recategorização se mostrou mais eficaz na redução da intolerância
racial comparativamente a outra adotada no estudo (Guerra et al., 2013).

Hipótese do Contra Estereótipo


Na hipótese do Contra Estereótipo, afirma-se que os estereótipos po-
dem ser reduzidos pela disponibilidade de informações incongruentes com o
estereótipo do grupo (Gocłowska, Crisp, & Labuschagne, 2013). Sendo os
estereótipos um dos componentes que estruturam o preconceito (Lima, 2020),
acredita-se que desconstruindo estereótipos reduz-se a intolerância dirigida a
grupos diferentes, pois se concebe que eles limitam a capacidade de pensar de
forma flexível, levando a discriminação. Por outro lado, o pensamento baseado
no contra estereotipo flexibiliza o pensamento e pode ser benéfico para além
da mera redução de preconceito (Gocłowska, Crisp, & Labuschagne, 2013).
Assim, apoiada nesse pressuposto, a abordagem do contra estereótipo para a
redução de preconceitos tem por base a manipulação dos estereótipos do grupo
(Cameron, Rutland, & Brown, 2005).
Exemplo dessa perspectiva no contexto escolar pode ser demonstrado no
estudo de Rojas e Liou (2018), que analisam estratégias de professores para
redução de crenças construídas sobre os grupos. Dentre as várias atividades
realizadas pelos professores, uma se destaca como ilustrativa da hipótese do
contra estereótipos, associada à redução de estereótipos profissionais de latinos
e negros nos EUA. Os professores criaram um evento no qual convidaram
profissionais latinos e negros de destaque em diferentes áreas, de diferentes
gêneros, para falarem sobre suas profissões e sobre as dificuldades encontradas
340 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

em seu percurso profissional. Essa atividade teve o objetivo de vencer entraves


dos alunos desses grupos em empreender carreira universitária por imaginarem
que a universidade não era lugar para eles.
O estudo de Rojas e Liou (2018) teve como amostra estudantes de ensino
médio que não se percebiam como dignos de participar de certas profissões
ditas como de alto status, mas os estereótipos dos grupos não estão associados
apenas às profissões, e é importante desconstruí-los desde a entrada na escola, a
atividade desenvolvida pelos autores pode ser adaptada para outros estereótipos
e para o público infantil.

Critérios propostos para a construção de Intervenções


Para que as intervenções cumpram os objetivos de reduzir o racismo e
consolidar uma identidade étnico-racial positiva, alguns teóricos da área apre-
sentam critérios que devem ser observados e seguidos na hora de planejar e
executar as intervenções.
O primeiro critério consiste no controle do pesquisador. Smith (1999)
destaca que intervenções que demonstram bons resultados apresentam caráter
experimental com alto controle do pesquisador. Argumenta-se que o modelo
experimental pode ajudar a determinar qual variável ou combinação de variá-
veis devem ser o foco dos esforços de intervenção e prevenção. Intervenções
experimentais e controladas poderiam ser melhores se baseadas em teoria e
fiéis à intervenção pretendida. Já o segundo critério diz respeito, justamente, à
necessidade de base teórica que fundamente a intervenção. As intervenções ex-
plicitamente amparadas por uma teoria se mostraram mais fortes, em termos de
resultados esperados, do que aquelas realizadas de maneira intuitiva, sem critério
teórico subjacente, fundadas nas boas intenções, embora pouco científicas, ou
apenas implicitamente guiada pela teoria (Aboud et al., 2012).
Um terceiro critério norteador das intervenções é observar a fase de de-
senvolvimento das crianças participantes do estudo. Os autores afirmam que
as mensagens precisam ser adequadas à maturidade cognitiva e emocional das
crianças que, na maioria dos casos, já têm opiniões bem formadas sobre si mes-
mas e sobre os outros (Aboud et al., 2012; França & Monteiro, 2004). Assim,
o aplicador da estratégia deve adaptar suas técnicas a faixa etária e maturidade
dos participantes. Uma vez que, segundo Bigler (1999), as crianças não absor-
vem passivamente as mensagens expostas nas intervenções, podendo distorcer
informações, é importante a clareza das explicações, a prioridade dos aspectos
concretos e compatíveis com nível de desenvolvimento dos participantes, assim
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 341

como o uso de sondagens das conclusões por elas alcançadas para afastar pos-
síveis incompreensões.
Complementar a esta medida, também se faz necessário testar a inter-
venção num pequeno grupo antes de realizar a intervenção definitiva; este é
o quarto critério, denominado de pesquisa formativa e piloto. Esse teste em
pequena escala, também serve para avaliar a aceitação/compreensão das crianças
dos materiais e atividades que serão realizadas.
O quinto critério compreende às medidas de eficácia ou avaliação da inter-
venção. É imprescindível avaliar os programas interventivos. Para implementar
programas de alta qualidade é fundamental realizar avaliações da qualidade
deles, a fim de saber se os objetivos da intervenção foram atingidos conforme
propostos. Por exemplo, se a estratégia interventiva é reduzir o preconceito, os
propositores do programa de intervenção podem realizar uma verificação do
preconceito antes e depois da intervenção, usando uma ou mais medidas a fim
de observar se houve mudanças oriundas da intervenção (Aboud et al., 2012).
Um último critério é a prevalência das intervenções, ou a continuidade.
Neste sentido, a indicação é a de que estudos longitudinais poderiam ajudar na
consolidação dos resultados das intervenções, além de que as variáveis seriam
melhores testadas em um modelo longitudinal que, em conjunto com modelo
experimental, facilitaria examinar quais variáveis precedem temporal e/ou cau-
salmente outras (Smith, 1999; Quintana, 2007).
Por fim, Cherry-Paul (2019), educadora norte americana, propôs cinco
importantes passos para iniciar um trabalho de intervenção no contexto escolar.
Segundo a autora, o primeiro passo consiste em criar um ambiente seguro, livre
de julgamento, para isso é necessário se cercar de outros educadores interessados
que discutam maneiras de superar os desafios. O segundo passo é ter objetivos
claros e bem delimitados com vistas ao que se espera alcançar. O terceiro passo
é planejar as ações, ou seja, tornar os objetivos concretos, a fim de aumentar
a eficiência e a responsabilidade das partes. O quarto passo é a identificação
de metas de curto e longo prazo que atenda às necessidades de cada escola. O
último passo é obter apoio dos pais, pois eles reforçam as iniciativas, sobretudo,
se eles se preocupam com o racismo. Essa proposta de Cherry-Paul (2019) é
importante quando se pretende um trabalho permanente na unidade escolar,
pois pode, no desenvolvimento do projeto, abarcar toda a comunidade escolar
e se estender para outras unidades. Outros autores como Hawkins e Catalano
(1992) e Unger (1991) referem que estratégias de invenção antirracismo geral-
mente incluem ou precisariam incluir um ou mais dos seguintes componentes:
342 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

1- um componente de socialização com pares e adultos que sejam referências


positivas e que incluam envolvimento responsável nas comunidades locais; 2-
um componente educacional que se concentra na promoção orgulho cultural, a
educação multicultural, por exemplo, abrangem estes dois pontos (componente
de socialização com pares e promoção de orgulho cultural); 3- um componente
educacional para ensinar formas eficazes de resolução de conflitos, habilidades
interpessoais para aumentar a confiança dos jovens em suas competências, por
exemplo, o fomento da empatia sugerido na teoria antipreconceito; 4- um com-
ponente de família que, entre outros objetivos, ajuda os pais a se envolverem
na educação dos jovens, e fornece um veículo, um instrumento para os pais se
apoiarem na criação de seus filhos.

Considerações finais
O racismo é uma experiência difundida na vida dos cidadãos negros brasi-
leiros e já começa a ocorrer na infância. Apesar disso, são poucos os estudos que
examinaram as experiências de racismo que crianças brasileiras percebem em
suas vidas, bem como são escassos estudos publicados em que são apresentadas
intervenções para reduzir o racismo. Assim, este estudo cumpriu o seu objetivo
de contribuir na superação dessas lacunas, apresentando importantes dados
sobre a percepção das crianças a respeito do racismo direto e observado que elas
vivenciam em suas vidas, as principais formas de apresentação, suas vítimas e
perpetradores e os contextos em que as situações de racismo são vivenciadas. O
estudo também apresenta e discute teorias da Psicologia Social que são tradicio-
nalmente utilizadas, sobretudo em outros países, em intervenções para redução
do racismo e do preconceito, oferecendo uma importante contribuição para o
campo das pesquisas interventivas.
No estudo empírico, observou-se que o racismo é percebido pelas crianças
em uma alta frequência, e faz da maioria das crianças negras vítimas, assim
como a escola se configura como principal espaço de efetivação do racismo, uma
vez que foi no espaço escolar onde as crianças mais relataram ocorrências de
discriminação. Como possíveis soluções para esse problema, evidenciou-se que
as escolas têm o potencial de mudar essa realidade de racismo gradualmente,
incluindo o ensino sobre diversidade, diferença, cultura, raça e etnia. A criação
de programas de formação de professores que fomentem o conhecimento sobre
a diversidade racial, étnica e cultural da sociedade; e como inserir esses assuntos
no currículo escolar, pode habilitá-los a lidar com as tensões interraciais dentro
de suas próprias salas de aula de modo produtivo. No Brasil, os professores
Capítulo 16 – Ueliton S. Moreira-Primo, Joana dos Santos e Dalila X. de França 343

precisam conhecer e se amparar nas políticas públicas voltadas para o combate


ao racismo nas escolas, a exemplo das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que
incluem no currículo escolar a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena, e que já representam alguma mudança no horizonte
dos ambientes educacionais.
No estudo de revisão da literatura, o presente trabalho forneceu diretrizes
teóricas para construção de estratégias de intervenções. Primeiro, a Teoria do
Contato, instituída por Allport (1954) e amplamente desenvolvida por diversos
pesquisadores posteriormente, com eficácia comprovada na redução do precon-
ceito. Em segundo lugar, a Teoria da Educação Multicultural, que apesar de
relativamente nova, tem se apresentado como uma perspectiva ideal para socie-
dades plurais, como a brasileira. E por fim, é apresentada teoria alternativa de
redução do preconceito: Hipóteses baseadas na categorização, um conjunto de
teorias que entendem que a redução do racismo pode ocorrer pela modificação
das representações cognitivas que se tem dos grupos. Destacamos os modelos da
Descategorização; da Recategorização e a Hipótese do Contra Estereótipo. No
conjunto, elas propõem programas interventivos para redução do preconceito e
para fortalecer a identidade étnico-racial das crianças negras com orientações
teóricas e de ação específicas.
Em suma, este estudo contribuiu para uma maior compreensão sobre
experiências de racismo nas crianças e para o fornecimento de estratégias de
enfrentamento racismo na infância, baseadas em evidências. Por meio de relatos
de discriminações que foram percebidas pelas próprias crianças, foi possível
observar que as crianças não apenas percebem e descrevem essas ocorrências,
como também estão atentas para que são as principais vítimas e os seus per-
petradores. Nas crianças negras, verificou-se que essas experiências produzem
danos emocionais e psicológicos, expressos nos sentimentos relatados mediante
a experiência vivenciada pelas crianças entrevistadas. Um duplo sofrimento:
sentido quando a criança negra é vítima direta do racismo, mas também quan-
do ela vê seus pares sendo vítimas. Esses dados nos alertam para a atenção e o
cuidado que devemos ter com as crianças negras, com vistas a protegê-las do
racismo. Estratégias interventivas de combate ao racismo foram apresentadas
ao longo do trabalho, úteis de serem implementadas sobretudo nas escolas. Pôr
em prática essas estratégias pode ajudar a solucionar essa problemática e criar
um ambiente social e escolar mais seguro para todas as crianças. Nesse sentido,
tanto o estudo empírico quanto a discussão teórica trazem contribuições para a
sociedade e demonstram a importância e urgência da criação e implementação
344 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

de intervenções visando à superação do racismo, de modo a oferecer a todos


os cidadãos, adultos e crianças, experiências sociais e escolares mais positivas.

Referências
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Capítulo 17
Estereótipos do suspeito para policiais
militares: cor da pele e estrato social
Emília Silva Poderoso
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Isabelle Haaiara Andrade Barbosao

Introdução
No Brasil, são frequentes episódios nos quais policiais, por erros de ava-
liação, alvejam pessoas inocentes e desarmadas, confundindo-as com suspei-
tos/as armados. Foi isso que aconteceu quando, durante uma ronda policial, no
Rio de Janeiro, no dia 29 de outubro de 2015, um graduado da Polícia Militar
confundiu um macaco hidráulico com uma arma, atirando e levando a óbito
dois jovens. Ou ainda quando, também no Rio de Janeiro e no mesmo ano,
Alan de Souza Lima, de 15 anos, foi confundido com um bandido e recebeu
um tiro letal de policiais militares, enquanto conversava e gravava um vídeo
usando o telefone celular. No dia 07 de abril de 2019, o músico Evaldo Rosa
dos Santos, 46 anos, ia com a família para um chá de bebê quando teve seu
carro confundido por militares do exército com o de um bandido, 80 tiros
foram disparados, o músico morreu no local. Essas histórias, que podem se
juntar a várias outras, têm algo em comum: as vítimas eram negros/as, o que
aumentou sobre elas a suspeição, e todos/as ocorrem em situações de aborda-
gem policial, as quais envolvem julgamentos sociais e uso de heurísticas ou
atalhos mentais.
Não obstante haja forte correlação entre criminalidade e exclusão social,
existem distorções nos julgamentos sociais que amiúde definem sobre a vida ou
sobre a morte de alguém. São erros de avaliação ou julgamento que em situações
mais comuns da vida cotidiana não teriam consequências graves; mas que quan-
do ocorrem durante uma abordagem policial podem produzir consequências
irreversíveis. As abordagens policiais são um contexto privilegiado para análise
desses fenômenos. A psicologia social tem se dedicado a estudar os julgamentos
sociais e suas consequências cognitivas e sociais. Neste capítulo, analisamos
os estereótipos dos suspeitos e sua relação com os estereótipos dos negros, dos
pobres e dos brancos nas avaliações de policiais militares.
350 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Revisão de literatura

Os estereótipos nos julgamentos sociais


Fazer julgamentos é uma das atividades mais importantes e corriqueiras.
Como referem Kahneman e Tversky (1973), os julgamentos envolvem um pro-
cessamento cognitivo e social das informações num cenário de muitas interfe-
rências, produzindo, muitas vezes, resultados que se afastam da realidade e da
justiça e impactam a todos. Muitas variáveis afetam a acuidade dos julgamentos
sociais e das tomadas de decisão, tais como preconceitos, estereótipos e estados
de humor. Alguns desses “vieses” são conscientes e racionais, outros não. É
como se nosso sistema perceptivo trabalhasse num tipo de default, motivado
por uma “economia psíquica”, que nos faz, a partir de pistas periféricas, formar
impressões complexas sobre os outros (Gronier, 2016). Além disso, em muitas
situações extremas é importante perceber e predizer o comportamento dos/as
outros/as de forma muito rápida para fins estratégicos.
As pessoas muitas vezes não podem ou não querem realizar avaliações
complexas e demoradas, mesmo sendo elas necessárias para determinar uma
escolha ideal; ao invés disso, simplificam todo o processo de escolha na busca
por resultados rápidos (Pereira, 2015). Esse processamento mais econômico das
informações leva frequentemente a uma tomada de decisão imprecisa, princi-
palmente em situações limite. Nessas situações, uma decisão equivocada pode
gerar consequências perigosas, como no caso dos profissionais que lidam com
a vida e a morte de outrem, a exemplo dos de saúde e de segurança.
Os julgamentos sociais são afetados de forma especialmente perigosa
pelos estereótipos e preconceitos. Os estereótipos são traços ou atributos ti-
dos como característicos de determinados grupos sociais, ou de indivíduos
porque pertencem a esses grupos (Stangor, 2009). Os estereótipos estruturam
os preconceitos e determinam as crenças e expectativas acerca dos grupos
humanos. Eles são ativados cognitivamente de forma automática a partir dos
encontros com os/as integrantes de uma determinada categoria social (Wang
et al., 2017). A Teoria da Identidade Social de Tajfel (1982) aborda os este-
reótipos considerando-os como consequência do processo de categorização
social, afirmando que eles ocorrem nos processos de diferenciação social para
enfatizar características positivas do próprio grupo, aumentando sua distinti-
vidade positiva, e para ampliar a negatividade dos traços referentes ao grupo
do outro/a. Além de ampliar as diferenças intergrupais (Fuller, 2017), os
estereótipos são um mecanismo de assimilação intracategorial, atuando para
Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 351

tornar semelhantes todos os/as integrantes dentro de uma mesma categoria


ou grupo social (Haslam & Turner, 1992).
Na análise dos estereótipos, destacam-se as abordagens que enfatizam os
protótipos. Os protótipos se referem aos casos de maior facilidade de filiação
a uma categoria. Quando pensamos sobre categorias, seja de objetos naturais
ou de objetos sociais, cognitivamente fazemos uso de protótipos, ou seja, de
instâncias abstratas que contêm os atributos mais representativos dos membros
da categoria e menos representativos dos membros de outras categorias que se
opõem ou contrastam com ela (Brewer et al., 1981). Desse modo, quanto mais
um/a integrante é prototípico/a de uma categoria, mais atributos ele/a tem em
comum com outros/as integrantes dessa categoria. Por outro lado, as caracterís-
ticas ou atributos mais prototípicos de uma categoria são aqueles que, primeiro
e mais frequentemente, são listados quando as pessoas são solicitadas a pensar
sobre a categoria (Rosch, 1978). Estereótipos e protótipos interferem em todos
os encontros sociais, definindo o rumo das ações dos indivíduos e dos grupos.
O encontro de um policial com um/a suspeito/a é uma situação privilegiada
para análise das consequências desses fenômenos.

Estereotipia na abordagem policial


De acordo com o 10o Anuário de Segurança Pública (Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, 2016), foram mortas 3.320 pessoas em decorrência de
intervenções militares em 2015. A cada nove minutos uma pessoa é morta
violentamente no país, sendo que as maiores vítimas são jovens (54%) e negros
(pretos e pardos) (73%). O relatório anual da Anistia Internacional (2017) aponta
que apenas no estado do Rio de Janeiro 811 pessoas foram mortas pela polícia
entre janeiro e novembro de 2016.
Alguns estudos focam a seletividade de gênero, escolaridade e de estrato
social nas abordagens policiais (Barros, 2008; Pinc, 2007; 2014). No entanto,
poucos estudos têm analisado a seletividade da cor da pele (Schlittler et al.,
2014). Adorno (1995) explica essa ausência de literatura afirmando que a ques-
tão racial não se configurava como um problema para as pesquisas sobre essas
instituições e suas ligações com o crime, posto que até pouco tempo ainda se
acreditava no que nossas relações raciais não eram conflitivas. Somente a partir
de 2012 começaram a surgir estudos no âmbito da segurança pública proble-
matizando a questão racial.
A abordagem policial se configura como sendo uma das mais simples e
corriqueiras ações da prática policial. Ela tem como significado “abordar”, ou
352 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

seja, aproximar, atingir (Barros, 2008). O ato de abordar é o primeiro contato


policial com a/o cidadã/o, pois os atos de prestar esclarecimentos e orientações,
bem como os de correção, investigação e apreensão são todos considerados for-
mas de abordagens policiais. Apesar de representar uma das principais práticas
dos policiais em serviço, a abordagem ainda é um assunto pouco explorado em
pesquisas; sendo os principais estudos concentrados em ações de força letal
(Fraga, 2006; Muniz et al., 1999; Reis, 2002), negligenciando, portanto, ações
da rotina do policial e as revistas pessoais (Adorno, 1993; Caldeira, 2000;
Pinheiro et al., 1991).
A categoria raça/cor não é considerada nas análises e no monitoramento
das ações na área da segurança pública. Ela existe enquanto dado em sistemas
de análise, mas raramente é levada em consideração como indicador relevante de
avaliação das ações policiais (Schlittler et al., 2014). As/os cidadãs/ãos negras/
os sofrem maior coerção por parte do sistema de justiça criminal, seja por uma
vigilância mais incisiva por parte da polícia, seja por uma probabilidade maior
de sofrerem punição (Adorno, 1996). Ao serem perguntadas/os sobre quem
abordar primeiro em uma situação de suspeição que envolvesse um homem
negro e outro branco, policiais militares de Recife foram quase unânimes em
dizer que o negro sofre um olhar diferenciado e, por isso, é sempre o primeiro
a ser abordado, ou mesmo o único (Barros, 2008).
Sinhoretto (2014), analisando a atividade policial em São Paulo, verificou
que ocorre uma maior vigilância sobre a população negra e que eles/as são a
maioria das vítimas de morte por policiais (61%). Gestoso (2014) verificou que
os/as negros/as têm maior probabilidade de serem agredidos por policiais do que
brancos/as. Os/as negros/as também referem mais ter medo da polícia. Lima et
al. (2018), analisando os efeitos da cor da pele dos/as suspeitos/as na decisão de
tiro em policiais militares brasileiros, verificam que a decisão de atirar é tomada
mais rapidamente quando o/a suspeito/a é negro/a que quando ele/a é branco/a,
tanto para policiais em início de carreira quanto para aqueles com mais de dez
anos de atuação profissional. Na origem desse fenômeno estão as representações
sociais construídas pela polícia sobre quem é suspeito/a de ilícitos.
Reis (2002) realizou uma pesquisa sobre suspeição policial na cidade de
Salvador, na qual buscou compreender a imagem que o policial constrói sobre
o tipo social que considera suspeito. Em seu estudo, foram utilizados os da-
dos oriundos de 30 entrevistas realizadas como policiais de diversas patentes.
Com o recurso de imagens e da entrevista, pode-se caracterizar o “tipo ideal”
do suspeito abordado nas ruas: sexo masculino, de cor preta, cabelo rastafári,
Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 353

usando tatuagens, com cicatrizes pelo corpo, usando correntes de ouro, com
andar “meio gingado” denominado pelos policiais como “tombo” e percebido
como morador de favela ou de invasões. O presente estudo tem o objetivo de
analisar os estereótipos que os policiais possuem em relação aos/as suspeitos/
as a fim de entender em que medida esses estereótipos se relacionam aos dos
negros/as e pobres.

Método

Participantes
Participaram da pesquisa 150 (cento e cinquenta) policiais militares da
capital e interior de um Estado da região Nordeste, sendo 124 homens (82,7%)
e 26 mulheres (17,3%), selecionados/as de forma aleatória entre oficiais e praças
nas diversas Unidades da Corporação; sendo 47.8% das unidades de policia-
mento ostensivo e 52.2% lotados no serviço administrativo. Em relação ao
posto/graduação, 45 eram soldados (30,6%), 44 cabos (29,3%), 44 sargentos e
subtenentes (29,3%), 10 oficiais subalternos e intermediários (6,6%) e 4 oficiais
superiores (2,7%); o tempo em serviço na corporação variou de 1 a 32 anos
(M= 17.4 e DP = 7.8). Em relação à cor da pele dos participantes, os mesmos
se auto classificaram como brancos/as (9.3%), pardos/as (68%), pretos (21.3%)
e amarelos/as (1.4%). As idades variaram de 21 a 57 anos (M= 39.5; DP = 7.1);
sendo a maioria casados/as (67.3%).

Instrumentos e procedimentos
A coleta foi realizada em 2017 mediante aplicação individual de questio-
nários. O questionário utilizado possuía quatro modelos diferentes, em cada um
deles se perguntava sobre quatro categorias sociais: suspeitos, brancos, pretos e
pobres. O modelo que indagava sobre estereótipos dos suspeitos foi respondido
por 60 policiais militares, cada um dos outros três modelos foram respondi-
dos por 30 policiais. Utilizamos uma lista constando 35 características que a
literatura especializada (e.g., Revista Fórum de Segurança Pública e o Centro
de Estudos em Segurança Pública) considerada como possíveis descritores de
suspeitos. As respostas a cada item eram dadas mediante uma escala de 10
pontos para atribuição de frequência de exibição da característica pelos mem-
bros dos grupos-alvo, variando de 0% (ninguém do grupo possui esse traço) a
100% (todos do grupo possuem esse traço). Também perguntávamos a cada um
dos quatro grupos de participantes quais as primeiras palavras, sentimentos ou
354 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

imagens que lhes vinham à mente quando pensavam em: Suspeitos ou Pessoas
brancas ou Pessoas negras ou Pessoas pobres.

Aspectos éticos e análise dos dados


O presente trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa da
Universidade Federal de Sergipe no parecer n.º: 1.939.345 de 23 de fevereiro de
2017. Os dados foram analisados através do SPSS e do IRaMuTeQ (Interface de
R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires).

Resultados
O conteúdo dos estereótipos que os policiais possuem sobre os suspeitos
foi analisado através de uma lista de 35 características. Procedemos a uma Aná-
lise Fatorial (PAF), com rotação oblíqua, para encontrarmos as dimensões dos
estereótipos formados. Verificamos que a medida de adequação análise obteve
bom escore: Kaiser-Meyer-Olkin = .86. Na Tabela 3 (ao lado) podemos ver que
foram formadas sete dimensões dos estereótipos, todas elas com bons índices
de consistência interna.
O Fator 1, que explica mais de 30% da variância, refere um estereótipo que
integra um tipo de cabelo (rastafári) com o uso de adereços, andar sem camisa
e andar só. O Fator 2 traz um estereótipo focado na lógica da má aparência
integrada à baixa estatura. Já o Fator 3 associa elementos de estatura (alta e
mediana) com o tipo de cabelo (curto e crespo). O Fator 4, assim como o Fator
1, traz um estereótipo associado ao estilo comportamental, cultural e físico, in-
tegrando desde o lugar de moradia (periferia), até a forma de se vestir e o uso de
tatuagens. O Fator 5 apresenta a dimensão da “boa aparência”, contrapondo-se
a todos os fatores já referidos (os índices de saturação têm valência negativa), a
“boa aparência” aparece associada a tipos de cabelo (liso, comprido e tingido) e
a morar em bairro nobre. Cabe referir que cabelo tingido é um traço fronteiriço
nessa representação, pois também poderia ocupar o Fator 1 (.31), e se opõe aos
traços estereotípicos do Fator 3 (-.38). O Fator 6, é composto por traços que,
assim como os Fatores 1 e 4, referem um certo estilo de vestimenta. Finalmente,
o Fator 7 refere um estilo de vestimenta à semelhança do Fator 6, só que neste
caso integrando roupas de marca a camisas de manga comprida.
Na Tabela 4, podemos ver, a partir de um conjunto de Análises de Variân-
cia, em quais análises a variável independente foi o grupo-alvo da atribuição dos
traços estereotípicos e as variáveis dependentes os sete fatores descritos, que o
Fator 2, aquele que traz o estereótipo da “má aparência”, juntamente com a baixa
Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 355

Tabela 3. Cargas fatoriais e dimensões dos estereótipos (Principal Axis Factoring –


Rotação Oblimin)

Item F1 F2 F3 F4 F5 F6 F7
Uso de piercing .74 – .10 – -.21 – –
Uso de acessórios .56 -.10 -.17 .17 – -.18 -.12
Cabelo rastafári .45 – – – .16 -.44 .19
Uso de brinco .43 – – .11 -.29 -.20 –
Andar sem camisa .39 .20 – .10 – – -.21
Anda só .29 – .16 – – – -.15
Fisicamente feio – .78 – – -.18 – –
Má aparência – .62 – .17 .18 -.11 -.27
Baixa estatura – .53 .17 .11 -.33 -.20 .19
Cabelo curto – – .53 .13 -.12 – –
Alta estatura .22 -.16 .52 – -.30 -.11 -.20
Cabelo crespos – .33 .51 -.10 .15 -.19 –
Estatura mediana – .29 .40 – -.38 -.11 –
Anda acompanhado – .10 – .61 – – -.14
Cueca exposta – – -.22 .55 – -.33 .15
Uso de gíria .17 .26 – .55 .16 -.14 –
Uso de correntes .30 -.18 – .50 – – -.37
Anda de bermuda -.27 .16 .35 .50 – -.36 -.13
Mora na periferia .29 .16 .41 .48 .29 – .24
Usa tatuagem .11 .29 -.20 .45 – -.37 –
Cabelo liso – – – – -.86 .11 –
Cabelo comprido – .27 – -.14 -.74 – –
Mora em bairro nobre – -.11 -.19 – -.65 – -.27
Fisicamente bonito – -.18 .45 – -.53 – –
Boa aparência – -.36 .42 – -.46 – -.21
Cabelo tingido .31 – -.38 .27 -.34 – –
Cabelo raspado – – .13 – .10 -.71 –
Usa boné – .18 – .19 – -.67 –
Usa mochila .15 – -.10 – – -.55 -.18
Usa bolsa – – – – – -.46 -.34
Porta celular .25 .13 – – – – -.68
Usa calça comprida – – .27 – -.15 -.11 -.64
Usa óculos escuro – – .14 .24 -.23 – -.51
Usa traje de marca – -.26 – .40 -.31 – -.45
Usa camisa de manga comprida .14 -.24 -.11 – -.24 -.29 -.40
Valores próprios 12.8 5.3 2.8 1.5 1.4 1.1 1.0
Variância explicada 33% 15% 8% 4% 4% 3% 3%
Alfa de Cronbach .80 .75 .76 .86 .84 .80 .85
Fonte: Elaborado a partir do software SPSS (2017).

estatura, é mais atribuído a pobres que a brancos e negros, F (3, 138) = 3.07, p =
.030. Já o Fator 3, que associa estatura alta e mediana com cabelo crespo e curto,
foi mais atribuído aos negros que a brancos, suspeitos e pobres, F (3, 138) = 13.54,
p = .000. Os estereótipos presentes no Fator 5, da “boa aparência” e “morar em
356 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

bairro nobre”, foram mais atribuídos aos brancos que a suspeitos, pobres e negros,
F (3, 133) = 32.37, p = .000. O Fator 7, das roupas de marca e mais alinhadas
(camisa comprida), também foi percebido como mais típico dos brancos, seguido
de negros e suspeitos e menos típico dos pobres, F (3, 141) = 20.74, p = .000. Não
foram encontrados efeitos significativos dos grupos-alvo sobre o Fator 1, F (3,
141) <1, n.s., Fator 4 F (3, 138) = 2.02, p = .11 e fator 6, F (3, 142) = 1.14, p = .33.

Tabela 4. Médias e Desvios Padrões (entre parêntesis) da atribuição de estereótipos às


quatro categorias sociais

Grupo-alvo Fator 1 Fator 2 Fator 3 Fator 4 Fator 5 Fator 6 Fator 7


3.21 3.79a 4.69a 4.56 6.28a 4.10 6.20a
Brancos
(1.30) (1.30) (1.14) (1.57) (1.55) (1.55) (1.62)
3.48 4.11ab 3.51b 5.68 3.10b 4.09 3.73b
Suspeitos
(2.11) (2.27) (2.17) (2.58) (1.58) (2.45) (2.07)
3.38 5.12b 4.21ab 5.39 3.19b 3.93 2.69c
Pobres
(1.92) (2.41) (1.66) (2.18) (1.55) (2.18) (1.52)
3.59 3.52a 6.12c 4.94 3.84b 4.87 4.52b
Negros
(1.54) (1.56) (1.35) (1.34) (1.15) (1.93) (1.51)
3.43 4.10 4.38 5.24 3.93 4.22 4.17
Total
(1.81) (2.08) (1.98) (2.13) (1.95) (2.14) (2.12)
Nota: Médias com sobrescritos diferentes em cada coluna diferem significativamente (S-N-K, p < .05).
Fonte: Elaborado a partir do software SPSS (2017).

Notamos que na estereotipia do suspeito prevalece a lógica da “boa contra


a má aparência”, também utilizada neste estudo como descritora dos pobres.
O contraponto, “a boa aparência”, apareceu associada apenas aos brancos ricos
(aqueles que moram em bairros nobres) resgatando uma dinâmica clássica do
racismo nacional, referida por Damasceno (2000, p. 191): “No nível as represen-
tações coletivas mais enraizadas, percebe-se, então, a pertinência da associação
entre ‘cor’ (‘branca’), a aparência (‘boa’) e certas qualidades físicas e morais
– ‘bons dentes’, ‘asseio’, ‘respeito’, ‘boa saúde’, ‘boa conduta’, ‘de confiança’,
‘sossegada’, ‘alegre’ e ‘carinhosa’”. No racismo brasileiro da primeira metade do
século XX, “a boa aparência” era, ao mesmo tempo, um critério higienista de
normalidade e um indicador de nível de civilidade, sendo usado largamente
para a seleção profissional e definição de status social (Oliveira & Pimenta,
2016). Nossos dados indicam que este descritor ainda está em uso, permanece
associado à condição social e cor da pele.
Uma Análise de Variância Multivariada indicou que não existe efeito
significativo do tipo de atividade policial, se administrativa ou ostensiva, sobre
a estereotipia dos quatro grupos, F (7, 97) = 1.56, n.s. Também a cor da pele dos
policiais não teve efeito sobre os estereótipos, F (7, 97) = 1.81, n.s.
Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 357

Em seguida, analisamos em que medida o protótipo do suspeito, ou seja,


as características consideradas como melhores descritores (i.e., aquelas atribuí-
das a pelo menos 50% dos suspeitos) foram utilizadas para descrever os outros
grupos. Na Gráfico 7, podemos observar que o “uso de gírias”, atribuído a 68%
dos suspeitos (M = 6.8), foi igualmente muito descritivo dos pobres (66%) e
menos descritivo dos negros (46%) e brancos (43%), F (3, 146) = 7.67, p = .000.
O segundo traço mais atribuído aos suspeitos (“anda acompanhado”) não se
diferenciou na atribuição aos outros três grupos-alvo, F (3, 146) <1, n.s. Já o
terceiro melhor descritor dos suspeitos, “mora na periferia”, foi ainda mais usado
para caracterizar aos pobres (M = 7.67), ou seja, praticamente 80% deles são
percebidos como possuindo essa característica, em seguida os suspeitos e os
negros, de forma indiferenciada, são percebidos como periféricos (M = 7.07 e
M = 5.81), tal descrição foi menos usada para os brancos (M = 3.50), F (3, 147)
= 13.71, p = .000.
Usar tatuagem foi o quarto traço mais central no protótipo dos suspeitos
(M = 5.73), ele também é muito usado para descrever os pobres (M = 5.33) e
menos usado para descrever negros (M = 3.71) e brancos (M = 4.14), F (3, 145)

Gráfico 7. Médias das características atribuídas a pelo menos 50% dos suspeitos
para os outros grupos-alvo de estereotipia (letras diferentes indicam diferenças
significativas – SNK, p < .05)
4,2ab
Usa correntes 3,1b
5,4a
5,1a
4,8ab Negros
Usa boné 5,2a
3,7b Pobres
5,3a
Brancos
3,7b Suspeitos
Cueca exposta 4,6ab
3,1b
5,3a
3,7b
Má aparência 4,6ab
3,6b
5,3a
3,7b
Usa tatuagem 5,3ab
4,1b
5,7a
7,1ac
Mora na periferia 7,8c
3,5b
5,8a
5,6
Anda acompanhado 5,9
6,2
6,2
4,6b
Uso de gírias 6,6a
4,3b
6,8a
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Fonte: Elaborado a partir do software SPSS (2017).


358 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

= 4.59, p = .004. A má aparência foi a quinta característica mais frequente na


descrição dos suspeitos (M = 5.32), igualmente usada para descrever os pobres
(M = 4.64) e menos frequente na descrição de negros (M = 3.72) e brancos (M
= 3.63), F (3, 145) = 4.03, p = .009.
“Cueca exposta” segue o mesmo padrão de “uso de tatuagem” e “má apa-
rência”, ou seja, é considerada típica para suspeitos (M = 5.32) e pobres (M =
4.63) e pouco frequente nos negros (M = 3.67) e brancos (M = 3.13), F (3, 148) =
5.34, p = .002. Ainda que de forma tendencial, o “uso de bonés” foi considerado
como igualmente mais frequente nos suspeitos (M = 5.28), nos pobres (M =
5.20) e nos negros (M = 4.83), e como pouco frequente nos brancos (M = 3.73),
F (3, 148) = 2.17, p = .095. Finalmente, usar correntes, oitavo melhor descritor
no estereótipo dos suspeitos, foi igualmente usada para descrever os suspeitos
(M = 5.05), os brancos (M = 5.36) e os negros (M = 4.24) e menos usada para
descrever os pobres (M = 3.06), F (3, 146) = 4.48, p = .005.
Quando somamos esses oito traços centrais na definição do perfil do
suspeito compondo uma dimensão da estereotipia e analisamos o efeito dos
grupos-alvo, observamos um resultado significativo, F (3, 136) = 3.68, p = 014.
Um teste Post Hoc SNK (p < .05) indica que apenas o grupo dos brancos (M =
4.23; DP = 1.45) difere dos suspeitos (M = 5.68; DP = 2.55), os quais são per-
cebidos da mesma forma que os negros (M = 4.64; DP = 1.26) e que os pobres
(M = 5.31; DP = 2.16). Ou seja, o somatório dos traços centrais do estereótipo
dos suspeitos, aquilo que podemos chamar de protótipo do suspeito, é atribuído
de modo indiferenciado a negros e pobres. Se considerarmos as proporções de
sobreposição das médias de atribuição, observamos que a atribuição dos traços
para aos negros apresentou uma sobreposição de 82% das médias de traços
atribuídos aos suspeitos e que a atribuição aos pobres foi 93% semelhante à
atribuição aos suspeitos.
Esses resultados indicam que é projetada sobre negros e pobres uma som-
bra de suspeição quase idêntica àquela que um suspeito carrega. A única carac-
terística que aproxima a representação do suspeito da dos brancos foi o “uso de
correntes”, mas sabemos que este indicador pode, por um lado, referir posição
e classe social, e, por outro, ostentação e empáfia.
A fim de termos uma representação gráfica da imagem dos suspeitos
formada pelos policiais militares, realizamos uma análise lexical usando o
IRaMuTeQ. Para tal, consideramos como corpus as enunciações obtidas nas
associações-livres para os quatro grupos-alvo. Foram encontradas 146 Uni-
dades de Contexto Iniciais (UCI), com 805 palavras analisáveis (indicadoras
Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 359

de sentidos), com frequência média de 2.02 vezes por palavra, sendo 398 o
total de palavras distintas. A análise dividiu-se em 52 Unidades de Contexto
Elementares (UCE). Esses segmentos são retidos na Classificação Hierárquica
Descendente (CHD), cuja função é estabelecer a divisão mais nítida possível
entre as classes, evitando a sobreposição de palavras (Camargo & Justo, 2013).
No corpus analisado, a CHD correspondeu a 35,6% do vocabulário empregado.
Foram formadas três classes sobre os estereótipos das categorias. As Classes
1 (29.4% do corpus) e 2 (31%) ancoraram-se na categoria “suspeitos”. Na
Classe 1, ele foi descrito pelo jeito: atitude, andar e olhar desconfiados. Essa
representação do suspeito foi mais comum dentre os policiais com pós-gra-
duação. Na Classe 2, o suspeito foi descrito mais pela aparência e trejeitos
comportamentais: tatuagem, gíria, roupa e aparência. Essa representação foi
mais forte dentre os policiais de cor branca. A terceira classe, mais frequente
na descrição da categoria social “pobres” e mais comum nas enunciações dos
policiais de nível superior, traz uma representação do sofrimento e da desi-
gualdade. Importante referir que essa representação dos pobres se associa
com as duas classes semânticas que representam os suspeitos; de forma que
permanece a visão de que a pobreza produz suspeição.

Tabela 5. Dendrograma dos corpus dos estereótipos das categorias sociais suspeitos,
negros, pobres e brancos

Classe 1 (29.4%) Classe 2 (31.4%) Classe 3 (39.2%)


15/51 16/51 20/51
Enunciado: f X2 Enunciado: f X2 Enunciado: f X2
Desconfiado 8 22.8 Tatuagem 11 30.7 Oportunidade 10 19.3
Andar 7 19.5 Roupa 7 13.9 Fome 7 12.6
Olhar 5 13.3 Gíria 6 11.1 Saúde 4 6.7
Jeito 4 10.4 Comportamento 4 6.1 Desigualdade 4 6.7
Atitude 6 4.6 Aparência 5 6.0 Sofrimento 3 4.9
Humildade 3 4.9
Rua 3 4.9
Moradia 3 4.9
Social 4 3.9
*Suspeitos 14 13.9 *Suspeitos 13 7.6 *Pobres 15 20.1
*Pós-Graduado 3 4.3 *Policiais brancos 2 4.6 *Nível superior 8 6.6
Fonte: Elaborado a partir do software IRaMuTeQ (2018).

Através da Análise de Similitude (Figura 12), constata-se que o grafo


agrupa e organiza o léxico graficamente em função da sua frequência, possi-
bilitando a identificação das palavras-chave do corpus. No grafo das palavras
360 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Figura 12. Análise de similitude dos itens enunciados na descrição das categorias sociais
suspeitos, negros, pobres e brancos

expressão
inadequado

nervosismo
abordagem mendigo
roupa
negro
ermo desconfiança
carência
volume local
comportamento
rio acesso
cintura marginalizar
periferia

linguajar
baixo

tatuagem igual
moto
escolaridade força
traje
arma emprego
perigo modo gíria luta
olhar

pobreza escravidão
alerta
vestimenta algema excluir
atitude sofrimento
atenção arrogante
risco mochila preconceituoso rua

crime aparência
educado educação
discriminação
nervoso andar econômico
saúde

assustado desigualdade
desconfiado crespo cabelo fome
moradia
jeito
louro
cor oportunidade
melhor social
liso
claro sociedade
preconceito
falta humano
olho
normal
humildade trabalhador
alegria

Fonte: Elaborado a partir do software IRaMuTeQ (2018).


Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 361

evocadas pelos policiais destacam-se: “comportamento”, “tatuagem”, “vestimen-


ta” e “jeito de andar” relacionados à categoria Suspeito; “discriminação”, “sofri-
mento”, “pobreza”, “periferia” foram relacionados à categoria Pobres; “cabelo”,
“escravidão”, “luta” e “força” relacionados à categoria Negros. Observamos ainda
que os termos que mais aproximam a representação do suspeito da representação
dos pobres são “mora na periferia” e “cabelo”, os quais se ligam a “sofrimento”,
“discriminação”, “pobreza” e “escravidão”, de forma que suspeitos e pobres são
percebidos como sendo ambos da periferia e como tendo determinado tipo de
cabelo, sobretudo, crespo ou tingido de loiro, tal representação passa também
pela pele negra, pois inclui a discriminação e a escravização. Interpretamos
que a conexão da representação do suspeito com a representação dos pobres é
mediada pelo fenótipo dos negros. Ou seja, os suspeitos se associam à pobreza
e essa à cor da pele negra. Assim, podemos constatar que o grafo corrobora os
resultados encontrados nas Análises de Variância.

Discussão
Este trabalho teve como objetivo a análise dos estereótipos que os poli-
ciais possuem em relação aos suspeitos/as na sua relação com os estereótipos de
negros/as e pobres. Também nos interessou verificar se ocorria diferenciação
na descrição dos estereótipos do/a suspeito/a por policiais lotados em unidades
especializadas de combate ao crime e aqueles lotados no serviço administrativo,
ou se a cor da pele do/a policial interferia no resultado. Os resultados encon-
trados indicaram que, independentemente da lotação e da cor da pele, os/as
policiais apresentam um estereótipo que vincula suspeito/a-a-pobre e pobre-a-
-negro/a. Dos oito traços que são prototípicos dos suspeitos, seis são também
atribuídos aos/as pobres (uso de gírias, andar acompanhado, morar na periferia,
usar tatuagem, má aparência e usar boné) e quatro não diferem na atribuição aos
negros/as (anda acompanhado, mora na periferia, usa boné e usa correntes). Por
outro lado, sete dos oito traços não se diferenciam nas descrições de negros/as e
pobres, apenas “uso de gírias” diferiu na descrição desses grupos.
A análise feita a partir da integração dos oito traços prototípicos dos suspei-
tos indicou que os elementos centrais da estereotipia desse grupo são os mesmos
da descrição de negros/as e pobres. Ou seja, os suspeitos seriam diferentes dos
brancos e semelhantes a pobres e negros. Os resultados desse estudo corrobo-
ram outros que indicam uma associação entre cor da pele e status social (e.g.,
Harris, 1963) e entre cor, acesso à justiça e violência (Adorno, 1996; Barros,
2008; Gestoso, 2014; Sinhoretto, 2014).
362 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Esse fenômeno reflete um tipo de racismo associado à exclusão social,


que alguns autores chamam de racismo sistêmico (Feagin, 2006) ou racismo
estrutural (Bonilla-Silva, 2015), caracterizado por uma organização racial dos
níveis econômico, político, social e ideológico. Como refere Campos (2017), a
sobreposição estrutural entre a cor da pele negra e a pobreza reforça crenças e
atitudes contra os negros, ainda que estas sejam inconscientes ou ambientadas
em um discurso de classe ou estrato social. Cabe lembrar que essa estruturação
racista formada de crenças, ideologias e práticas é retroalimentada pela exclusão
social: os negros correspondem a 76% da população mais pobre do Brasil e a
apenas 17% dos mais ricos (Agência Brasil, 2015). De forma que, para combater
esse racismo sistêmico, é preciso alterar, além das crenças e ideologias, a posição
dos grupos na estrutura social.
Seguindo esta linha de raciocínio, a questão de saber se um policial que
associa suspeito de ilícitos com a cor da pele negra está sendo individualmente
racista não é a questão mais importante. O que mais importa é que esse poli-
cial está reproduzindo o racismo sistêmico ou cultural que assola o país; de tal
forma que a sua ação, somada a dos seus pares, constituirá uma perigosa forma
de discriminação institucional (policial), com repercussões em decisões de vida
e de morte.

Considerações finais
Os impactos que os estereótipos podem ter na ação policial é um tema
que merece muito mais análises, com ferramentas mais amplas e sofisticadas
de coleta de dados e amostras mais representativas do que ocorre no país como
um todo. A contribuição que tentamos trazer apresenta algumas limitações
que merecem destaque: a amostra de policiais militares foi reduzida um único
estado do Brasil e, mesmo assim, não é representativa dele; de forma que esses
dados não são generalizáveis para outras regiões e mesmo para a polícia militar
do estado pesquisado. O instrumento utilizado não foi suficientemente indireto
para evitar respostas normativas, carregadas de desejabilidade social, isto fica
claro na associação de que apenas os/as brancos/as são associados/as a riqueza
e a vestir-se bem, contrastada com a indiferenciação do traço “má aparência” a
negros e brancos. Instrumentos menos obstrutivos podem ser usados em pes-
quisas posteriores a fim de termos um retrato mais fiel dos estereótipos que a
polícia tem sobre os negros.
Entretanto, consideramos que este estudo traz uma contribuição significa-
tiva para o entendimento de um tema que está se tornando ainda mais urgente no
Capítulo 17 – Emília Silva Poderoso 363

Brasil, sobretudo a partir dos acenos populares e jurídicos para uma ação menos
regrada da polícia no trato com os/as suspeitos/as em ações violentas. Apenas
com ações de promoção à igualdade, por um lado, e de estudo e combate aos
estereótipos e preconceito, por outro, poderemos combater o racismo sistêmico
que ceifa vidas negras inocentes, como aconteceu com Evaldo Rosa dos Santos
no Rio de Janeiro e como, infelizmente, ainda segue acontecendo no Brasil.

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Capítulo 18
Gênero, identidade social e ameaça
à distintividade heterossexual
Camilla Vieira de Figueiredo
Cicero Roberto Pereira

O preconceito sexual é um fenômeno complexo e resistente a mudanças


que tem definido a vida e a morte de pessoas LGBT+ em todo o mundo. O
Brasil lidera o ranking mundial de crimes de ódio motivados por preconceito e
discriminação contra orientações sexuais e identidades de gênero não confor-
madas à cisheteronormatividade, ultrapassando, inclusive, países onde a pena
de morte pela homossexualidade ainda está amparada na lei (Aliança Nacional
LGBTI, 2017). Os dados mais atuais do Grupo Gay da Bahia (GGB, 2020)
revelam que, somente no último ano, 237 mortes motivadas por LGBTfobia
foram formalmente registradas no Brasil. Em 2017 e 2018, anos em que se
registraram a maior incidência de assassinatos motivados por homofobia, os
números ultrapassaram a faixa dos 400. Essa alta incidência sugere que o Brasil
é um contexto social especialmente relevante para investigar a psicologia social
do preconceito sexual.
Neste capítulo abordamos a questão das diferenças de gênero na expressão
de preconceito sexual e destacamos a evidência empírica sobre o processo psi-
cossocial subjacente a estas diferenças. De modo mais específico, discutimos o
preconceito contra homossexuais no Brasil e o porquê de os homens heterosse-
xuais serem os principais perpetradores de violências contra LGBTs neste e em
outros contextos culturais. Destacamos, fundamentalmente, os estudos realiza-
dos por Figueiredo e Pereira (2021) sobre a centralidade de fatores identitários,
especialmente a ameaça à distintividade positiva, para explicar esse fenômeno.

A (anti)normatividade da homofobia no Brasil


Em 2019, o Supremo Tribunal Federal brasileiro, reconhecendo a omissão
do Legislativo em criar um tipo penal próprio para a criminalização da homofo-
bia, julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26) de-
terminando a homofobia como um crime análogo ao racismo (Supremo Tribunal
Federal, 2019). Isso indica que o preconceito sexual no Brasil é altamente anti-
normativo à nível prescritivo, de maneira que aqueles que expressam preconceito
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 367

flagrante contra LGBTs sabem que podem responder juridicamente. Ademais,


direitos civis, como o casamento homoafetivo e a adoção homoparental, já fo-
ram reconhecidos no país (Supremo Tribunal Federal, 2011, 2015). Se observa,
portanto, uma contradição entre a anti-normatividade da homofobia nas leis e
a prática de agressões e assassinatos motivados pelo preconceito homofóbico.
De fato, embora o Brasil seja um país progressista em relação ao reco-
nhecimento formal de direitos civis igualitários para a população LGBT+, a
incidência de discriminação sexual e de identidade de gênero ultrapassa os
marcadores mundiais. Isto indica que a homofobia é anti-normativa no nível
prescritivo (i.e., aquilo que deveria ser feito), mas normativa no nível descritivo
(i.e., as ações que ocorrem efetivamente). A violência contra essa população, per-
petrada em diferentes ambientes (e.g., doméstico, via pública, cárcere, trabalho),
envolve desde agressões verbais, negações de direitos e oportunidades de traba-
lho, agressões físicas, até homicídios violentos. As vítimas são, principalmente,
travestis e mulheres transexuais, seguidas por homens gays e lésbicas (GGB,
2020), e os perpetradores são, em geral, homens heterossexuais (Ministério
dos Direitos Humanos, Brasil, 2018), o que endossa o conjunto de evidências
empíricas demonstradas no âmbito da psicologia social de que os homens são
mais preconceituosos e discriminadores do que as mulheres (ver Herek, 1988,
2000, 2016).
A questão de saber o que explica as diferenças de gênero no preconceito
sexual inaugurou uma clássica linha de investigação na psicologia social na
década de 1980. Essa linha de pesquisa tem mostrado que a maior expressão
de preconceito por parte dos homens parece ser culturalmente independente,
isto é, está presente em todas as culturas de onde se tem dados empíricos sobre
homofobia (Bettinsoli et al., 2019). A esse respeito, destacam-se os estudos de
Hinrichs e Rosenberg (2002) com amostras norte-americanas, de Chi e Hawk
(2016) com uma grande amostra asiática, de Ahrold e Meston (2010) com
uma amostra composta por diferentes grupos étnicos, incluindo hispânicos, e
o de Gastic (2012) com amostras latino-americanas, os quais demonstraram
consistentemente que os homens apresentam níveis mais elevados de atitudes
negativas face aos homossexuais do que as mulheres. No Brasil, especifica-
mente, confirmamos essa constatação e verificamos que a maior expressão de
preconceito sexual pelos homens se apresenta tanto à nível explícito, quanto
implícito (Figueiredo & Pereira, 2021). Ainda, a unanimidade de estudos sobre
essa questão indica que os homens gays são mais preteridos do que as lésbicas,
principalmente pelos homens heterossexuais, ao passo que as diferenças nas
368 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

atitudes das mulheres heterossexuais em relação a esses dois grupos ainda não
são conclusivas (ver Kite & Whitley, 1996).
Diferentes estudos já demonstraram que o preconceito sexual deve ser
ainda mais elevado entre os homens que se identificam mais fortemente com
seu grupo de gênero e baseiam seu autoconceito e autoestima na pertença ao
grupo heterossexual (por exemplo, Barron et al., 2008; Swann & Bosson, 2010).
Nesse sentido, variáveis como identidade masculina (Kilianski, 2003), crenças
nos papéis de gênero tradicionais (Kite & Whitley, 1996), machismo (Hirai et
al., 2014), sexismo (Bäckström & Björklund, 2007), orientação à dominância
social (MacInnis & Hodson, 2014), necessidade de fechamento cognitivo (Bur-
ke et al., 2017) e de dicotomização dos papéis sociais e sexuais (Bosson & Mi-
chniewicz, 2013) têm sido investigadas como preditoras do preconceito sexual
masculino. Recentemente, no entanto, analisamos um dos principais processos
pelos quais os homens heterossexuais discriminam mais os homossexuais do
que as mulheres heterossexuais.
Baseando-nos na teoria da identidade social (Tajfel & Turner, 1979),
propomos que os homens são mais homofóbicos porque a homosexualidade
masculina representa uma ameaça à distintividade heterossexual (ver Figuei-
redo & Pereira, 2021). De acordo com a teoria da identidade social, as pessoas
são motivadas para manter uma autoestima positiva e isto ocorre por meio da
avaliação que fazem de sua pertença grupal. Especificamente, comparam o seu
grupo com outros relevantes com o objetivo de se diferenciar positivamente
destes. Para garantir a obtenção de uma autoestima positiva, essa comparação
social precisa resultar em uma diferenciação positiva, demonstrando que, além
de serem diferentes, o grupo de pertença (endogrupo) “vence” o outro grupo
(exogrupo) em termos dos atributos considerados relevantes para o contexto
no qual a comparação é realizada. Quando isso acontece, a identidade social
do endogrupo é fortalecida. Assim, as pessoas são motivadas para favorecer
os seus próprios grupos e a desfavorecer outros grupos, especialmente quando
estes outros representam uma ameaça à sua identidade social positiva (Tajfel
& Turner, 1979).
Não obstante, quando a comparação social resulta em uma identidade
social negativa ou, ainda, quando os dois grupos são considerados muito si-
milares (isto é, quando a distintividade entre eles está ameaçada), os membros
do endogrupo lidam com essa ameaça de diferentes maneiras. Eles podem en-
fatizar características positivas do endogrupo ou reagir negativamente contra
o exogrupo, estando esta última via na base da formação do preconceito e da
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 369

motivação para a discriminação intergrupal (Branscombe et al., 1999; Jetten &


Spears, 2003). No contexto das relações entre heterossexuais e homossexuais,
há evidências de que a motivação para a distintividade é significativamente
superior para homens heterossexuais em comparação a mulheres heterosse-
xuais (Falomir-Pichastor & Hegarty, 2014; Plante et al., 2015). Os homens
sentem-se particularmente ameaçados pela percepção de similaridade com
homens gays e, portanto, utilizam-se de estratégias egodefensivas, como a
expressão de preconceito sexual, para garantir que são inequivocamente dis-
tintos dos gays e reestabelecer a sua identidade social positiva (Figueiredo &
Pereira, 2021).
A ameaça à distintividade hetero-homo acontece quando um homem hete-
rossexual é questionado sobre a autenticidade de sua heterossexualidade, ou seja,
quando ele é levado a perceber que compartilha características essenciais com
homens gays. Exemplos de situações ameaçadoras à distintividade heterossexual
corresponderiam à divulgação de evidências de que não existem diferenças entre
gays e heterossexuais no que concerne aos seus sistemas biológicos, formação
pessoal e cultural e, principalmente, em aspectos relativos à personalidade. A
sensação de ameaça motiva uma reação nos homens heterossexuais cuja meta é
restabelecer a diferença, reafirmando a unicidade de cada grupo. Uma maneira
de satisfazer essa motivação é através do distanciamento psicológico e social em
relação aos gays e da depreciação e discriminação de indivíduos desse grupo
(Carnaghi et al., 2011; Talley & Bettencourt, 2008).
Essa reatividade está relacionada com os padrões normativos colocados
em questão pelos homossexuais, principalmente pelos homens gays. No do-
mínio da sexualidade, a cisheteronormatividade é o padrão cultural vigente, o
qual define que pessoas com orientações não-heterossexuais, notadamente os
homossexuais, devem ser segregadas e subordinadas por não se conformarem a
esse padrão (Allen & Mendez, 2018; Javaid, 2018). A cisheteronormatividade
está fortemente associada ao conceito de masculinidade hegemônica, historica-
mente definido como a autêntica natureza dos homens. Esse conceito envolve
a heterossexualidade compulsória e a oposição a quaisquer características ou
práticas que refletem feminilidade em indivíduos do sexo masculino (Herz &
Johansson, 2015).
A cisheteronormatividade e os ideais de masculinidade hegemônica são
prerrogativas culturais que incidem em todo o processo de socialização, espe-
cialmente no dos homens. Isso contribui para que eles sejam demasiadamente
incentivados, desde a tenra infância, a realizar o que se espera ser o “papel de um
370 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

homem”. Por essa razão, é comum que os rapazes recebam críticas mais severas
por parte de seus pais e pares quando julgam que não o estão cumprindo ade-
quadamente (Bosson & Michniewicz, 2013). É certo que tanto homens quanto
mulheres sofrem pressões para se conformar ao gênero masculino e feminino,
respectivamente. Contudo, os homens são constantemente pressionados a evitar
traços de feminilidade para afirmarem a sua identidade masculina heterossexual
e a sustentá-la cotidianamente por meio de comportamentos típicos do gênero
(Rivera & Dasgupta, 2018). Eles lutam para proteger e manter uma espécie de
gênero ideal e, por essa razão, evitam comportamentos contra estereotípicos
que possam contribuir para que percam, às vistas sociais, esse ideal de gênero
socialmente mais valorizado e mais “volátil” do que o das mulheres (Kiebel et
al., 2020).
Em vista disso, eles experimentam maior ansiedade do que as mulheres
face à violação dos papéis sexuais e tendem a considerar as violações de homens
gays particularmente notórias porque têm expectativas mais elevadas para a
fidelidade de outros homens a essas normas de gênero (Kite & Whitley, 1996).
Os homens, especialmente os heterossexuais, têm uma visão mais dicotomizada
do mundo e dos papéis sociais e sexuais, isto é, representam os grupos sociais
com base em categorias binárias percebidas como intransponíveis, tais como
homens vs. mulheres, gays vs. heterossexuais, certo vs. errado (ver Bosson &
Michniewicz, 2013). Além disso, eles experimentam maior incerteza do que as
mulheres quanto à estabilidade de seu estatuto de gênero. Por isso, sentem-se
particularmente ameaçados quando visualizam em outros homens atos este-
reotipadamente femininos, tais como arrumar-se com vaidade ou falar sobre
emoções (Bosson et al., 2005).
A dicotomização obedece a um raciocínio organizado por uma estrutura
bipolarizada: indivíduos com padrões de comportamento estereotipicamente
masculinizados situam-se em um polo e indivíduos com padrões de comporta-
mentos percebidos como estereotipicamente femininos situam-se no polo opos-
to. Em decorrência dessa forma de raciocínio, a percepção de traços femininos
em performances de outros homens provoca incômodo imediato, de maneira que
passa-se a considerar estes outros como menos homens ou como não-homens
(Foushee et al., 1979; Salvati et al., 2016). Quando esse universo dicotomizado
dos homens heterossexuais é ameaçado por semelhanças com os homens gays,
uma reação compensatória é provocada e se apresenta na forma de atitudes
negativas e comportamentos discriminatórios contra os gays. A violação do
papel de gênero feminino, por outro lado, tem pouco ou nenhum efeito sobre a
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 371

ansiedade das mulheres (Allen & Smith, 2011; Bosson & Vandello, 2011). Isso
está relacionado ao fato de as mulheres serem mais tolerantes às contravenções
dos papéis sexuais e também ao seu menor interesse em assegurar a tradição
desses papéis, uma vez que oferecem numerosos benefícios apenas aos homens,
ajudando-os a manter a sua posição de poder e dominância social (Hogg &
Turner, 1987; Lewin & Tragos, 1987).
O fenômeno da dicotomização de gênero tem um significado psicológico
importante em razão de que, quanto mais se dicotomiza traços masculinos e
femininos, mais distância psicológica se percebe entre aspectos da identidade
desses grupos (Talley & Bettencourt, 2008). O distanciamento psicológico é
considerado um mecanismo de diferenciação intergrupal que atua como con-
sequência da ameaça percebida à identidade grupal. Em outras palavras, é uma
reação frente a algo que afeta o autoconceito do indivíduo. A dicotomização
da identidade de gênero tem implicações à nível comportamental, pois, quan-
do ameaçada (pelos homens gays, por exemplo), aumenta-se a motivação dos
homens heterossexuais, mas não das mulheres, para restaurar seu estatuto de
gênero por meio de reações agressivas e arriscadas (ver Bosson et al., 2009;
Weaver et al., 2013).
Há ampla discussão e suporte empírico para a hipótese de que o preconcei-
to sexual dos homens heterossexuais, comparativamente ao das mulheres, está
relacionado com a maior ameaça à sua identidade heteronormativa. Os índices
mais expressivos de preconceito contra homens gays têm uma função identitária
de defesa psicológica para os homens heterossexuais (Herek & McLemore,
2013). Eles sentem maior necessidade de diferenciar o seu papel de gênero
para reafirmar a sua distintividade e manter positiva a sua identidade mascu-
lina heterossexual. Consequentemente, eles, mais do que as mulheres, sentem
maior necessidade de distintividade positiva no domínio da sexualidade quando
essa distintividade está sob ameaça. Recentemente, aprofundamos o estudo
desse fenômeno e realizamos a demonstração experimental de sua ocorrência
nos resultados de um programa de pesquisa (ver Figueiredo & Pereira, 2021).
A seguir, apresentaremos as suas principais conclusões.

Homens heterossexuais são mais homofóbicos do que mulheres


heterossexuais
Inicialmente, buscamos endossar o conjunto de evidências empíricas já
consolidadas na literatura sobre preconceito sexual que demonstram que o
fenômeno do preconceito contra homossexuais é mais forte para os homens
372 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

heterossexuais do que para as mulheres heterossexuais e, ainda, que essa expres-


são de preconceito é significativamente mais forte quando o alvo de preconceito
são homens gays do que lésbicas. Desde a década de 1980, têm-se demonstrado
que os homens reagem mais negativamente aos gays do que às lésbicas, enquanto
que as reações das mulheres frente a esses grupos oscilam entre as amostras, im-
pedindo uma definição consensual (para uma meta-análise, ver Kite & Whitley,
1996). Algumas pesquisas indicam que elas, em comparação aos homens, têm
atitudes mais negativas frente às lésbicas (e.g., Massey, 2009; Whitley, 1987,
1990), mas outras mostram que homens e mulheres têm atitudes semelhantes
face a tal grupo (e.g., Cárdenas & Barrientos, 2008; Kite, 1984).
Isso pode acontecer porque, apesar de as atitudes frente a gays e a lésbicas
serem altamente correlacionadas para homens e mulheres, essas relações são
mais fortes para as mulheres heterossexuais (ver Herek, 2000). É possível que
as mulheres percebam gays e lésbicas como um grupo indistinto ou como uma
categoria supra-ordenada e, portanto, a sua expressão de preconceito pode re-
presentar uma atitude negativa frente a um grupo minoritário geral e não uma
atitude que diferencia o grupo-alvo em razão do gênero. Nessa lógica, será
provável que as mulheres heterossexuais expressem o seu preconceito face a gays
e lésbicas de maneira similar justamente porque as lésbicas não representam
uma ameaça tão forte à sua distintividade positiva quanto os gays representam
para os homens heterossexuais. No nosso Estudo 1, esperamos obter uma in-
teração entre o sexo dos participantes (masculino vs. feminino) e o grupo-alvo
de preconceito (gays vs. lésbicas), indicando que os homens expressam mais
preconceito contra gays do que contra lésbicas, sendo a diferença entre esses
grupos menos expressiva para as mulheres.
A amostra final do Estudo 1 foi composta por 232 universitários. O dese-
nho fatorial desse estudo foi entre participantes do tipo 2 (sexo do participante:
masculino vs. feminino) x 2 (alvo de preconceito: gays vs. lésbicas). Para men-
surar o preconceito sexual, utilizamos a Medida de Preconceito validada por
Lacerda, Pereira e Camino (2002), que trata-se de uma escala unidimensional
composta por dez itens que avaliam a evitação a relações de proximidade com
pessoas homossexuais. Assim, os participantes indicaram o quanto se sentiam
incomodados com cada uma das dez situações descritas nos itens (e.g., “Morar
com homossexuais assumidos”; “Ter um(a) filho(a) homossexual”; “Ver homos-
sexuais namorando”).
Essa escala foi adaptada para esse estudo, sendo essa adaptação a nossa
manipulação experimental. Especificamente, os dez itens foram ajustados de
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 373

acordo com o grupo-alvo de preconceito (gays ou lésbicas). Por exemplo, na


condição de alvo gay, os participantes respondiam a itens como “Ver casais
de homens gays namorando”. Na condição de alvo lésbica, o mesmo item foi
redigido como “Ver casais de lésbicas namorando”. Os itens foram respondidos
em escala de 1 (Incomoda nada) a 5 (Incomoda muito), com escores mais altos
indicando mais preconceito em relação a gays ou lésbicas. Os dados foram
coletados online, por meio da plataforma Qualtrics.
Os resultados mostraram um efeito principal significativo do alvo de pre-
conceito. Este efeito indicou que houve maior preconceito contra gays do que
contra lésbicas. De maior importância para a nossa hipótese foi o efeito de
interação que observamos entre o sexo dos participantes e o grupo-alvo de pre-
conceito. Essa interação ocorreu porque os participantes homens expressaram
mais preconceito contra homens gays do que contra lésbicas, ao passo que as
atitudes das mulheres não foram diferentes para esses grupos. Em complemen-
to, considerando um recorte específico de gênero, observamos que os homens
apresentaram atitudes mais negativas do que as mulheres em relação aos gays, e
no que diz respeito às lésbicas, as mulheres expressaram atitudes mais negativas
do que os homens.
Os resultados desse primeiro estudo confirmaram as nossas previsões
e endossaram achados anteriores ao demonstrar que homens heterossexuais
manifestam mais preconceito contra gays do que contra lésbicas, enquanto as
mulheres heterossexuais não diferenciam significativamente esses grupos-alvo.
A literatura sobre os efeitos do gênero no preconceito contra homossexuais
vinha fornecido explicações para esses resultados baseadas principalmente nas
diferenças nos processos de socialização e de internalização dos papéis de gênero
tradicionais entre homens e mulheres (e.g., Clarke & Arnold, 2017; Sirin et
al., 2004). A interpretação que fornecemos sobre esses efeitos representou uma
inovação porque colocou em saliência a possibilidade de que os homens são
especialmente reativos em face da homossexualidade gay porque esta representa
uma fonte de ameaça significativa à distintividade de sua identidade masculina
heterossexual.
É sabido que a maior expressão de preconceito e discriminação sexual
por parte dos homens heterossexuais está relacionada com a sua necessidade
de demonstrar que atendem não apenas ao padrão cisheteronormativo, mas
também aos padrões culturais associados ao seu papel de gênero, em especial
ao padrão de masculinidade (Hunt et al., 2015). Desse modo, interpretamos
que a expressão de preconceito em relação às lésbicas foi inferior porque
374 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

elas não ameaçam a distintividade da identidade masculina heterossexual


(Schope & Eliason, 2004). Na linha do que argumenta Herek (2000), itens
sobre preconceito contra lésbicas e sobre preconceito contra gays devem
acionar diferentes significados identitários nos homens. É provável que o
preconceito contra lésbicas seja menos expressivo para os homens em razão
de que a homossexualidade (ou bissexualidade) feminina pode assumir sig-
nificados sexuais positivos para eles, como a fetichização/erotização desse
comportamento sexual (Kite & Whitley, 1996). Tais significados não são
observados em relação aos homens gays e isso pode estar diretamente as-
sociado à ameaça que esse grupo representa à identidade masculina. Logo,
estimamos que itens direcionados aos gays devem afetar propriamente a
identidade de gênero dos homens, ameaçando sua autoimagem, autoestima
e distintividade positiva.
No que se refere ao preconceito das mulheres heterossexuais frente às
lésbicas, os resultados foram menos elucidativos, indicando que as mulheres,
comparativamente aos homens, elegeram as lésbicas como seu principal alvo de
preconceito. Contudo, consideramos que a interpretação desse resultado deve
obedecer a uma lógica diferente daquela apresentada para os homens em relação
aos gays, pois o que se verificou nos resultados foi a presença de uma menor
expressão de preconceito dos homens contra as lésbicas. Não obstante, é também
possível que as mulheres tenham esboçado algum grau de reatividade frente às
lésbicas, uma vez que o preconceito sexual é baseado em atitudes em relação
à própria identidade sexual ou de gênero, sendo muito provável que homens
expressem mais preconceito contra gays e mulheres expressem mais preconceito
contra lésbicas em determinados contextos (ver Herek, 2000).
Os resultados desse primeiro estudo corroboraram um corpo extenso de
evidências anteriores sobre o assunto. No entanto, efetivamente, não nos per-
mitiram confirmar as nossas interpretações, mas somente demonstrar a relação
direta entre o gênero (do participante e do alvo) e o preconceito sexual. Por essa
razão, foi necessário realizar um segundo estudo com o objetivo de analisar se a
maior expressão de preconceito dos homens contra os gays (em comparação às
lésbicas) é mesmo motivada pela sua maior necessidade de estabelecer distinti-
vidade entre eles e os homens gays. Em outras palavras, testamos a hipótese de
que os homens heterossexuais diferenciariam em maior medida o seu endogrupo
do exogrupo gay e, em menor medida, mulheres heterossexuais de lésbicas.
Consequentemente, esperávamos que eles expressassem mais preconceito sexual
frente ao alvo gay do que frente ao alvo lésbica.
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 375

A necessidade de diferenciação intergrupal motiva a homofobia nos homens


No Estudo 2 testamos uma hipótese de mediação. Acreditávamos que o
alvo de preconceito (gay vs. lésbica) ativaria a necessidade de distintividade dos
homens, o que, por conseguinte, definiria a sua maior expressão de preconceito
em relação aos gays (vs. lésbicas). A amostra desse estudo foi exclusivamente
masculina, sendo composta por 79 homens universitários autodeclarados hete-
rossexuais. Manipulamos o grupo-alvo de preconceito (gay vs. lésbica) por meio
da adaptação das medidas dependentes a tais grupos-alvo.
Além da medida de preconceito (ver Lacerda et al., 2002), utilizamos uma
Medida de Percepção de Distintividade (ver Falomir-Pichastor et al., 2015), a
qual avalia a motivação para a diferenciação intergrupal a partir de cinco itens
representativos de crenças sobre diferenças entre heterossexuais e homossexuais.
Esta escala foi adaptada de maneira que os itens foram ajustados de acordo com
o grupo-alvo de preconceito (gays vs. lésbicas). Por exemplo, na condição de
alvo gay, os participantes respondiam a itens como “Homens heterossexuais e
homens homossexuais têm diferentes características emocionais”. Na condição
de alvo lésbica, o mesmo item foi redigido como “Mulheres heterossexuais e
lésbicas têm diferentes características emocionais”. Os itens foram respondidos
em escala de 1 (Discordo muito) a 7 (Concordo muito), com escores mais altos
indicando maior percepção de distintividade em relação a gays ou lésbicas.
Os resultados confirmaram a hipótese prevista. Verificamos que o alvo
de preconceito influenciou significativamente a percepção de distintividade
dos homens, de maneira que eles expressaram mais distintividade em relação a
homens gays do que em relação a lésbicas. Além disso, observamos um efeito
significativo da distintividade no preconceito, indicando que quanto mais forte
foi a percepção de distintividade, maior foi o preconceito contra os homosse-
xuais. Esses resultados demonstram, portanto, o caminho pelo qual o alvo
de preconceito, nesse caso, os homens gays (vs. lésbicas), afeta a percepção de
distintividade dos homens heterossexuais e, por conseguinte, motiva a maior
expressão de preconceito deles em relação a este alvo. Em outras palavras, a
percepção de distintividade funcionou como um processo psicológico que se
mostrou responsável pela maior expressão de preconceito dos homens contra
gays do que contra lésbicas.
Com esses resultados obtivemos evidência adicional sobre o maior pre-
conceito contra gays praticados por homens heterossexuais e avançamos ao
mostrar que a percepção de distintividade é um mediador psicológico da maior
reatividade desses homens em relação aos gays. Conforme previmos, o incômodo
376 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

dos homens em relação aos homens gays é mais acentuado do que o seu incô-
modo face às lésbicas e isso está associado à sua necessidade de distintividade
intergrupal positiva. Eles sentem mais necessidade de se diferenciar dos homens
gays do que de diferenciar mulheres heterossexuais de lésbicas.
A literatura sobre esse tema apoia as nossas constatações ao sugerir que os
homens heterossexuais depreciam os homossexuais porque os percebem como
não prototípicos da categoria supra-ordenada “homem” (e.g., Branscombe &
Wann, 1994; Branscombe et al., 1993; Schmitt & Branscombe, 2001). A ameaça
à prototipicalidade tem sido estudada no domínio da teoria da autocategorização
(Turner et al., 1987). O protótipo pode ser um estereótipo percebido como o
elemento estruturante da identidade do grupo (e.g., a masculinidade), o qual
é definido pelas visões compartilhadas dos membros do grupo sobre o grupo
como um todo (Jetten et al., 1997). Assim, quanto mais um indivíduo difere do
estereótipo definido como o mais prototípico do endogrupo (i.e., um homem
afeminado), mais esse indivíduo é percebido como desviante do endogrupo,
o que provoca efeitos reacionários, como, por exemplo, o efeito ovelha negra
(Pinto et al., 2010).
A ideia de que existem diferenças na prototipicalidade dos membros do
grupo e que os membros prototípicos serão mais influentes porque represen-
tam o que o grupo tem em comum motivou muitas pesquisas sobre atitudes
intergrupais (e.g., Hogg et al., 1990; Turner et al., 1989), mas a maioria delas
destacou apenas o nível intragrupal de análise das relações masculinas. Em nossa
perspectiva, os conflitos que envolvem o preconceito dos homens heterossexuais
face aos homossexuais têm origem na sua motivação para manter a distinção
heterossexual-homossexual, sendo essa motivação gerada ao longo da história
das relações de gênero. Assim, embora os homens heterossexuais possam ver
os homens gays como desviantes em relação aos atributos prototipicamente
masculinos, buscamos investigar melhor o papel da ameaça à distintividade no
nível intergrupal das relações hetero-homo no preconceito contra gays.
Apesar de terem fornecido dados que apoiaram as nossas ideias, os resulta-
dos do segundo estudo foram bastante limitados. Primeiro, por não contarmos
com uma amostra de mulheres heterossexuais, ficamos impedidos de conhecer a
percepção de distintividade das mulheres em relação às lésbicas e comparar o seu
posicionamento com a distintividade apresentada pelos homens em relação aos
gays. Além disso, alguns estudos já haviam demonstrado a percepção de seme-
lhanças e diferenças intergrupais como uma importante estratégia para realçar
a ameaça à distintividade intergrupal, um aspecto diretamente relacionado ao
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 377

preconceito sexual (e.g., Falomir-Pichastor & Mugny, 2009; Falomir-Pichastor


et al., 2010). No Estudo 2, não realizamos essa manipulação de ameaça e, por
essa razão, não pudemos esclarecer o papel da percepção de distintividade e da
percepção de similaridade hetero-homo no preconceito de homens e mulheres
diferencialmente. Realizamos o Estudo 3 para elucidar essas questões.

A distintividade motiva a homofobia nos homens, mas não nas mulheres


No Estudo 3 esperamos replicar os efeitos observados nos dois primeiros
estudos e explorar o papel das semelhanças e diferenças entre heterossexuais e
homossexuais no preconceito de homens e mulheres heterossexuais. A fim de
determinar uma linha lógica entre nossos estudos e estabelecer o ponto atual,
relembremos que os resultados do Estudo 1 indicaram que os homens são mais
reativos do que as mulheres em relação aos gays (vs. lésbicas), e os do Estudo
2 atestaram que a maior reatividade deles face aos gays ocorreu por meio da
percepção de distintividade entre heterossexuais e homossexuais. No Estudo 3
buscamos investigar mais elementos nesse processo. Especificamente, testamos
se a ameaça explícita à distintividade entre heterossexuais e homossexuais pode-
ria ativar a percepção de diferenças entre esses grupos nos homens heterossexuais
(vs. mulheres heterossexuais), sendo essa percepção o mecanismo explicativo da
maior reatividade deles em relação aos homossexuais.
A nossa proposta foi, então, mostrar que a percepção de distintividade
medeia a relação entre o sexo do participante e o preconceito sexual e que essa
mediação é moderada pela ameaça à distintividade, a qual ativamos experimen-
talmente induzindo a ideia de semelhanças entre heterossexuais e homossexuais.
Nessa lógica, previmos que a mediação ocorreria quando ativássemos o fun-
damento de que não existem diferenças de ordem biológica entre esses grupos,
uma situação claramente ameaçadora à distintividade intergrupal dos homens.
Nessa condição, esperávamos que os homens heterossexuais demonstrassem
maior percepção de distintividade e expressassem mais preconceito sexual como
uma forma de restabelecer psicologicamente a distintividade ameaçada. Por
outro lado, na condição que garantia a existência de uma base biológica que
diferenciaria heterossexuais de homossexuais, ou seja, uma situação que asse-
gurava claramente a distintividade intergrupal, esperávamos que a diferenciação
intergrupal e o preconceito sexual fossem menos acentuados. Como sustentamos
o argumento de que processos de distinção reativa são particularmente mais
fortes para os homens, não esperávamos que essas hipóteses se confirmassem
para as mulheres heterossexuais em relação às lésbicas.
378 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Nesse estudo, reunimos uma amostra final de 177 universitários heteros-


sexuais, os quais responderam a pesquisa presencialmente, em contexto de sala
de aula, à pedido da pesquisadora. Manipulamos a ameaça à distintividade por
meio de um texto que supostamente teria sido publicado em um jornal online
de grande circulação, o qual foi intitulado como: “Fim da polêmica sobre as
causas da homossexualidade”. O conteúdo do texto indicava que um conjunto de
pesquisas científicas elaboradas ao longo de 30 anos tinha comparado homens
heterossexuais com homens gays (ou mulheres heterossexuais com lésbicas, nas
situações em que a participante era mulher) em termos de características gené-
ticas, biológicas e fisiológicas relacionadas à natureza de sua orientação sexual.
De acordo com o texto, haviam evidências signifivativas de que heterossexuais
e homossexuais são biologicamente semelhantes (condição de ameaça à distinti-
vidade) ou de que heterossexuais e homossexuais são biologicamente diferentes
(condição de afirmação da distintividade), a depender da condição experimental.
De modo mais específico, na condição de ameaça à distintividade o texto
indicava basicamente:
“No conjunto, os neurobiólogos e os geneticistas têm opiniões consensuais sobre a ine-
xistência de uma base genética da homossexualidade. Os resultados obtidos em mais de
30 anos de pesquisa indicam claramente que homens heterossexuais e homossexuais são
biologicamente muito semelhantes, realçando, dessa maneira, o forte apoio científico
para a semelhança biológica entre homossexuais e heterossexuais”.

Na condição de afirmação da distintividade, por outro lado, destacava-se:


“No conjunto, os neurobiólogos e os geneticistas têm opiniões consensuais sobre a base
genética da homossexualidade. Os resultados obtidos em mais de 30 anos de pesquisa
indicam claramente que existem diferenças biológicas essenciais entre homens heterosse-
xuais e homossexuais, realçando, dessa maneira, o forte apoio científico para as diferenças
biológicas entre homossexuais e heterossexuais”.

Após lerem a notícia, os participantes responderam às medidas de precon-


ceito e de percepção de distintividade como nos estudos anteriores. Os resultados
confirmaram que os homens expressaram mais preconceito contra os homosse-
xuais do que as mulheres. Em direção similar, observamos que a percepção de
distintividade entre heterossexuais e homossexuais foi mais acentuada para os
homens do que para as mulheres. De maior importância para o Estudo 3 foi a
interação significativa observada entre o sexo dos participantes e a manipulação
da ameaça (vs. afirmação) à distintividade. A decomposição dessa interação
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 379

nos permitiu identificar que o efeito do sexo na percepção de distintividade foi


significativo na condição experimental de ameaça à distintividade, mas não na
condição de afirmação da distintividade. Em outras palavras, os homens hete-
rossexuais reagiram à ameaça expressando maior necessidade de distintividade
do que as mulheres na condição em que leram a notícia segundo a qual existiriam
semelhanças biológicas entre eles e os homossexuais.
Observamos também o efeito da percepção de distintividade no preconcei-
to sexual, o que nos indica que quanto maior foi a necessidade de afirmação da
distintividade entre heterossexuais e homossexuais, mais forte foi o preconceito
contra homossexuais. A possibilidade de a percepção de distintividade ser um
mediador psicológico da relação entre o gênero dos participantes e o preconceito
sexual foi observada. Essa mediação foi, de fato, significativa, e demonstrou que
os homens heterossexuais tinham maior percepção de distintividade do que as
mulheres, estando essa percepção positivamente relacionada com o preconceito
sexual. Dito de outra forma, quando induzimos experimentalmente a ideia de
que heterossexuais e homossexuais são biologicamente semelhantes (condição
de ameaça à distintividade), o efeito do gênero foi mediado totalmente pela
percepção de distintividade dos homens. Contudo, quando induzimos a ideia
de que homossexuais e heterossexuais são biologicamente muito diferentes, pre-
servando-se, assim, a distintividade entre esses grupos, a mediação não ocorreu.
Nossos resultados foram elucidativos em relação ao papel da ameaça à
distintividade na explicação do preconceito flagrante contra homossexuais. Os
resultados demonstraram consistentemente que os homens expressam mais pre-
conceito contra os gays e que esse fenômeno está relacionado com a necessidade
de estabelecerem uma distintividade positiva entre eles e os gays. Por outro lado,
observamos que as mulheres heterossexuais não se sentiram ameaçadas em razão
da ativação da percepção de semelhanças biológicas entre elas e as lésbicas, o
que sugere que o seu preconceito provavelmente não está associado à ameaça à
distintividade entre essas duas categorias sexuais. O fato de o processo psico-
lógico representado pela mediação não ocorrer para as mulheres e ocorrer para
os homens tem um significado psicológico central para os estudos de gênero.
A falsa noção de que mulheres heterossexuais possuem uma biologia diferente
da das lésbicas parece não ser suficiente para explicar o preconceito sexual das
mulheres, uma vez que elas não reagem com mais preconceito a fim de assegurar
a sua distintividade positiva.
Nesse caso, processos de distinção reativa associados à expressão de pre-
conceito e discriminação sexual devem ser uma via central para estabelecer o
380 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

distanciamento psicológico entre heterossexuais e homossexuais e preservar a


identidade social dos heterossexuais. No entanto, uma condição para que isso
aconteça é a de que os heterossexuais em questão sejam homens. Algumas expli-
cações alternativas e complementares para essa questão podem ser levantadas, mas
novas investigações são fundamentais para esclarecer esses pontos e sua relação
com a nossa questão de pesquisa. Por exemplo, na quase totalidade das culturas
conhecidas atualmente, o estatuto relativo das mulheres é significativamente in-
ferior ao estatuto relativo dos homens (Feinman, 1981, 1984). Mais diretamente,
as mulheres são desvalorizadas e isto está impresso no valor social que ocupam
na organização das relações de gênero. Dada essa desvalorização, é provável que
quando uma mulher se define lésbica e, portanto, viola claramente o padrão hete-
ronormativo, ela não põe em causa o estatuto de gênero feminino ou o rebaixa mais
do que a posição atualmente ocupada, posto que essa categoria historicamente
já possui um estatuto considerado muito inferior (David et al., 2004; Powlishta,
2004). Além disso, o estatuto feminino é relativamente mais estável do que o
masculino, ainda que seja estável na adversidade (Bosson et al., 2005; Vandello
et al., 2008). Isso indica que lésbicas continuam sendo vistas como mulheres por
mulheres heterossexuais, ao contrário dos homens gays, que deixam de ser reco-
nhecidos como “homens de verdade”, principalmente por homens heterossexuais,
por transgredirem as normativas hegemônicas de gênero e de orientação sexual e
diminuírem o valor social da categoria com um todo (Rudman & Glick, 2008).
Os resultados do Estudo 3 são esclarecedores e ofereceram subsídios im-
portantes para compreendermos o mecanismo que motiva os homens a expres-
sarem mais preconceito contra os gays do que contra as lésbicas. Não obstan-
te, a nossa manipulação experimental foi feita de forma indireta; nós apenas
tornamos saliente a ideia de semelhanças ou diferenças entre heterossexuais e
homossexuais. Assim, os participantes agiram como observadores em ambos
os contextos de semelhança e diferença, sem que pudessem “sentir na pele” a
ameaça à distintividade de seu endogrupo. Nesse sentido, pensamos que seria
importante ativar diretamente a ameaça à distintividade sentida pelos próprios
participantes, o que poderia ser operacionalizado a partir de feedbacks falsos que
os fariam acreditar que possuem perfis de personalidade muito semelhantes (vs.
diferentes) àqueles apresentados por homossexuais. Adicionalmente, buscamos
testar se o fenômeno se apresenta também à nível implícito, o que forneceria
dados mais diversificados para respondermos à questão sobre a influência do
gênero e da ameaça à distintividade heterossexual no preconceito contra ho-
mossexuais. Realizamos, assim, o Estudo 4.
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 381

A ameaça à distintividade influencia a homofobia implícita


No Estudo 4, manipulamos diretamente a ameaça à distintividade de
homens e mulheres heterossexuais para demonstrarmos que essa ameaça afeta
principalmente os homens, explicando a sua expressão de preconceito contra os
gays ser mais acentuada do que a das mulheres contra as lésbicas. Enquanto no
Estudo 3 colocamos em saliência a ameaça à distintividade biológica entre hete-
rossexuais e homossexuais, no Estudo 4 situamos o problema no domínio psico-
lógico. Elaboramos um cenário experimental em que a ameaça à distintividade
pudesse ser diretamente sentida pelos próprios participantes, fazendo-os pensar
que eram muito semelhantes (vs. diferentes) dos homossexuais em termos de
traços de personalidade. Montamos uma estrutura em laboratório que permitiu
fornecermos falsos feedbacks sobre a personalidade dos participantes (traços de
personalidade compatíveis versus incompatíveis com os de homossexuais). Em
seguida, e diferente do que tínhamos realizado nos estudos anteriores, usamos
uma medida implícita de preconceito sexual (ver Pereira, 2009).
Buscamos demonstrar que os homens heterossexuais apresentam níveis
mais elevados de preconceito implícito contra homossexuais do que as mulheres,
sendo esse efeito mais forte quando a ameaça à distintividade (versus afirmação
da distintividade) heterossexual estava ativada pelo falso feedback sobre a sua
personalidade. Assim, esperávamos que quando a ideia de compatibilidade entre
os traços de personalidade de homens heterossexuais e homens gays estivesse
saliente, os homens expressariam atitudes implícitas mais preconceituosas em
relação aos gays. Por outro lado, quando a distintividade entre eles e os gays
estivesse assegurada pela incompatibilidade entre os traços de personalidade
dos dois grupos, os níveis de preconceito implícito seriam menores. Embora
estivéssemos trabalhando com uma técnica de mensuração implícita de precon-
ceito sexual (i.e., com respostas automáticas que escapam ao controle consciente
dos participantes), não esperávamos obter diferenças significativas resultantes
da manipulação experimental para as mulheres heterossexuais. Isso comprova-
ria que a ameaça à distintividade masculina heterossexual se colocaria tanto à
nível explícito, quanto implícito, e constituiria uma evidência importante para
elucidarmos o mecanismo explicativo das diferenças de gênero no contexto do
preconceito sexual.
O desenho da pesquisa foi semelhante ao do Estudo 3, ou seja, tratou-se
de um delineamento entre participantes do tipo 2 (sexo do participante: mas-
culino vs. feminino) x 2 (manipulação da distintividade: ameaça vs. afirmação
da distintividade). Ao todo, compuseram a nossa amostra final 75 universitários
382 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

autodeclarados heterossexuais (36 mulheres e 39 homens). Os resultados mostra-


ram que o efeito principal do sexo dos participantes foi significativo, indicando
que os homens expressaram mais preconceito implícito do que as mulheres. De
maior importância, observamos um efeito de interação significativo entre o sexo
dos participantes e a manipulação da ameaça à distintividade. Ao realizarmos
comparações múltiplas para decompor este efeito de interação, observamos que
na condição experimental de ameaça à distintividade (ou seja, quando foram
fornecidos feedbacks de compatibilidade entre os traços de personalidade de
homens heterossexuais e gays e de mulheres heterossexuais e lésbicas), os ho-
mens expressaram mais preconceito implícito contra gays do que as mulheres
expressaram em relação às lésbicas. Em contraste, na situação de afirmação da
distintividade, em que eram fornecidos feedbacks de incompatibilidade entre
heterossexuais e homossexuais, o preconceito implícito dos homens e das mu-
lheres não se mostrou significativamente diferente (para acessar a descrição
completa dos resultados, veja Figueiredo & Pereira, 2021).
O Estudo 4 reforça, portanto, as evidências de que a ameaça à distinti-
vidade afeta principalmente homens heterossexuais. O preconceito deles atua
como uma espécie de ação reativa à distintividade ameaçada. Esses resultados
não apenas replicam os estudos sobre esse tema, especialmente o nosso Estudo
3, mas também demonstram que os homens expressam mais preconceito sexual
do que as mulheres tanto no nível explícito, quanto no nível implícito. Como
esperado, um padrão diferente de resultados foi observado para as mulheres
heterossexuais. Na linha do Estudo 3, a ameaça à distintividade não afetou
o preconceito implícito delas em relação às lésbicas. Nossas previsões foram
confirmadas e encontram suporte na literatura especializada sobre esse fenô-
meno, uma vez que os comportamentos lésbicos não representam uma fonte de
ameaça à identidade das mulheres (Glotfelter & Anderson, 2017; Herek, 1988,
2000) e, portanto, expressar preconceito contra as lésbicas não parece ser, para
as mulheres heterossexuais, uma via consistente para afirmar a sua identidade.

Considerações finais
Com base nos pressupostos da teoria da identidade social (Tajfel & Turner,
1979), conduzimos um programa de pesquisa com o objetivo de obter evidências
empíricas sobre a hipótese da motivação para a distintividade heterossexual
como um dos mecanismos explicativos da maior expressão de preconceito sexual
por parte dos homens. Os elementos fundamentais da teoria, como os conceitos
de comparação social, identidade social e, principalmente, de distintividade
Capítulo 18 – Camilla Vieira de Figueiredo e Cicero Roberto Pereira 383

positiva, foram sistematizados por nós para dar conta de responder a essa im-
portante questão de pesquisa que tem sido objeto de investigação de pesqui-
sadores desde o início da década de 1980. Fornecemos contribuições para esse
campo de estudo ao demonstrarmos que os homens heterossexuais são mais
preconceituosos do que as mulheres heterossexuais, principalmente em relação
a homens gays, porque a homossexualidade ameaça fortemente a distintividade
heterossexual, sendo o preconceito sexual uma estratégia defensiva utilizada
pelos homens para restabelecer os seus ideais identitários.
Nossos resultados são consistentes com a literatura acerca do preconceito se-
xual, a qual define o preconceito como um mecanismo psicossociológico utilizado
para diferenciar, deslegitimar e discriminar categorias socialmente desvalorizadas
ou estigmatizadas (Herek, 2000, 2016; Herek & McLemore, 2013). O precon-
ceito dos homens vinha sendo explicado principalmente pela necessidade de man-
ter o modelo hegemônico de masculinidade e o padrão de heteronormatividade,
o que envolve uma série de privilégios sociais e sexuais sobre as mulheres e sobre
os grupos LGBT+. Nosso estudo alargou essas explicações, demonstrando que
o distanciamento psicológico e a diferenciação intergrupal em relação aos gays
são processos psicológicos resultantes de uma ameaça à distintividade masculina
heterossexual. Essa ameaça constitui-se, portanto, como uma das bases para a
expressão massiva de preconceito dos homens heterossexuais em comparação
com as mulheres heterossexuais, e da discriminação extensivamente direcionada
a homens gays, comparativamente às lésbicas.
Os trabalhos de Henry Tajfel sobre a natureza das relações de cooperação
e conflito intergrupal utilizam processos psicológicos individuais e intergru-
pais, de base cognitiva e motivacional, como categorização, comparação social
e autoestima, para explicar um processo social complexo como o da identidade
social (Camino & Torres, 2013). Enfatizamos, sobretudo, o nível intergrupal de
análise a fim de elucidar a natureza dos conflitos entre heterossexuais e homos-
sexuais, considerando a perspectiva do gênero e a necessidade de manutenção
de uma identidade endogrupal positiva. A identidade social tem a função de
diferenciar os grupos sociais e manter a hierarquização de alguns grupos perante
outros. Essa hierarquização obedece a alguns critérios e a orientação sexual é
um dos mais importantes para definir a supremacia e a subordinação de grupos
específicos (Herz & Johansson, 2015). Por essa razão, a heterossexualidade
ainda é amplamente associada à ideia difusa de existência de uma verdadeira
identidade masculina e contribui sobremaneira para a estigmatização de indi-
víduos homossexuais, principalmente homens.
384 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Os estereótipos relacionados à homossexualidade masculina revelam a


ideia de que os homens gays não são homens de verdade, visto que apresen-
tam em sua identidade fortes atributos contraestereotípicos do grupo (Clarke
& Arnold, 2017). Quanto mais um homem homossexual se distancia dos
padrões normativos de seu gênero, maiores são as chances de ser vitimizado,
especialmente em contextos amplamente tradicionais, machistas, religiosos,
autoritários (Vilanova et al., 2019) e forjados na cultura da honra, como o
Brasil (Glick et al., 2016). Provavelmente, isso acontece porque os gays, es-
pecialmente os afeminados, ao tempo em que compartilham com os homens
heterossexuais aspectos biológicos e de personalidade, apresentam uma orien-
tação sexual homo-erótica-afetiva e têm na sua identidade de gênero uma
performance distante daquela considerada masculina, o que coloca em ameaça
os padrões normativos que sustentam a identidade positiva dos homens (Glick
et al., 2007). Os homens homossexuais que não atendem publicamente ao
modelo cisheteronormativo e que apresentam mais atributos estereotípicos
de mulheres são alvo preferencial de preconceito nas sociedades ocidentais
(Kiebel et al., 2020). Será muito provavelmente esta uma das razões pelas
quais, proporcionalmente, as travestis e transexuais enfrentam maiores riscos
de serem assassinadas no Brasil (GGB, 2020).
As evidências empíricas apresentadas neste capítulo podem contribuir
para esclarecermos os motivos que, sistematicamente, têm levado os homens
a expressar mais preconceito sexual do que as mulheres. O preconceito contra
homossexuais é um dos fenômenos mais pervasivos e problemáticos no contexto
brasileiro. Entender os mecanismos psicossociais que o tornam tão resistente à
mudança é decerto um passo importante para ampliar a compreensão sobre o fe-
nômeno, influenciar novas investigações sobre a questão, subsidiar intervenções
psicossociológicas e, principalmente, fundamentar políticas públicas capazes de
mitigar os seus impactos na vida e nas vivências dos LGBT+.

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Capítulo 19
Adesão ao isolamento social na Covid-19:
efeitos das explicações da pandemia, posições
sociais e confiança nas instituições
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Dalila Xavier de França
Cicero Roberto Pereira

Introdução
Ao longo do tempo, a humanidade tem enfrentado vários tipos de epi-
demias. Entre as mais conhecidas estão a peste de Atenas (430 a. C.); a peste
Antonina no mundo romano (165 d. C.); surtos de varíola, cólera, escorbuto,
febre amarela durante nos anos de 1854-1856, 1899 e 1918; a gripe espanhola
(1918-1919) e, já na atualidade, AIDS, ebola influenza A (H1N1), Zika vírus
e dengue (Cuero, 2020). Desde março de 2020, estamos vivendo em todo o
mundo a pandemia da Covid-19 causada pelo novo coronavírus – CoV-Sars-2.
O primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus foi identificado em
dezembro de 2019, em Wuhan, Província de Hubei na China. No dia 30 de
janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o surto
de Covid-19 era uma emergência de saúde pública internacional, pois represen-
tava alto risco para países com sistemas de saúde vulneráveis (OMS, 2020a).
Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi declarada como uma pandemia (Schu-
chmann, Schnorrenberger, Chiquetti, Gaiki, Raimann, & Maeyama, 2020).
A Covid-19 pode ser considerada, ao lado das duas grandes guerras mundiais,
a maior calamidade mundial da era moderna.
Dados da Universidade Johns Hopkins, atualizados em 19 setembro de
2022 (as 16:21 h), contabilizaram 612.225.354 casos casos confirmados da Co-
vid-19 no mundo, com 6.527.061 mortes. A maior incidência de casos encon-
tra-se nos Estados Unidos (95. 684.167 de casos), India (44. 539.046 de casos),
França (35.138.509 de casos), e Brasil (34.568.833 de casos). O Brasil também
ocupava o quarto lugar na lista de mortes, com 685.203 óbitos15. Contudo, esses
dados crescem rapidamente, e mais ainda no Brasil que em outros 40 países. Foi

15
Recuperado de https://coronavirus.jhu.edu/map.html.
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 393

o que demonstrou um estudo que comparou períodos de tempos da pandemia


equivalentes em países a partir do “dia 1” (primeiro caso). Esse estudo demonstra
no dia 33 da epidemia, a média de crescimento no Brasil era de 7,8% contra
4,3% nos outros países. No dia 53 da doença (04/05), o crescimento da taxa de
infecção caiu para 1,6% nos outros países e para 6,7% no Brasil, resultado que
coloca o Brasil entre os dez países que apresentaram pior controle da pandemia
(Mori, 05/05/2020), apontando a possibilidade de termos baixa adesão às re-
comendações da Organização Mundial de Saúde.
No periodo em que não existiam ainda vacinas e tratamentos medicamen-
tosos confiáveis contra o coronavírus, o isolamento social foi, de fato, um dos
meios não farmacêuticos mais eficazes de controle da pandemia de Covid-19
(Oliveira, 2020; OMS, 2020b; Schuchmann et al., 2020). No entanto, o Bra-
sil adotou uma política sanitária ambivalente em relação ao isolamento que
interferiu nas taxas de confinamento da população e no controle da doença.
Emblemático dessa contradição é o “destaque” dado pela página da internet do
Ministério da Saúde a essa medida profilática. Em toda a página específica que
trata da doença, a palavra “isolamento” aparece apenas seis vezes, ou vinculada a
viagens internacionais (“O isolamento domiciliar voluntário por sete dias após o
desembarque”) ou atinente a casos de infecção confirmada (“Se eu ficar doente:
Fique em isolamento domiciliar”) (Ministério da Saúde, 2020). O cenário de
pandemia nos levou a indagar como essas informações contraditórias acerca
da importância do isolamento social foram significadas pelo cidadão comum,
aquele que é alvo das campanhas de vigilância sanitária e como impactou no
seu comportamento de adesão.
Estudos acerca das estratégias adotadas pelos países da Ásia, que lidaram
em 2003 com a primeira epidemia causada pelo coronavírus, demonstraram que,
dentre os fatores condicionantes do sucesso das medidas de isolamento social,
destacou-se também a análise das percepções e explicações da população sobre
a gravidade da situação (Costa, Jatobá, Bellas, & Carvalho, 2020; OMS, 2006).
Esse fenômeno tem sido estudado desde a década de 1940 pela psicologia social,
a qual tem argumentado que organizamos o mundo social que nos cerca usando
explicações que permitam interpretar, dar significado e manejar fenômenos
físicos, tais como terremotos; fenômenos humanos, como o medo e a morte e
fenômenos mais gerais como as guerras e pestes. São as explicações que construí-
mos que definem o modo como reagimos e lidamos com os fenômenos (Hogg &
Vaughan, 1998). Entretanto, nossas explicações não ocorrem num vácuo social,
elas se constroem em arenas de influência, nas quais entram em cena muitos
394 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

mecanismos, desde a confiança nas fontes de informação à nossa identidade


social e pertencimentos sociais, culturais, políticos e econômicos (Moscovici,
1985). O objetivo do presente artigo é analisar os impactos das explicações para
a pandemia que estamos vivendo e das variáveis sociodemográficas e políticas
sobre a atitude dos brasileiros em relação ao isolamento social.

Vulnerabilidades, influências sociais e controle da pandemia


São diversas as estratégias não medicamentosas em saúde pública para o
controle de um surto de uma doença infecciosa. Merecem destaque as medi-
das de isolamento de pacientes, quarentena e contenção comunitária, também
chamada de isolamento social (Schuchmann et al., 2020). Especificamente, as
medidas de contenção comunitária ou isolamento são tomadas para retardar a
propagação da doença, podendo ser aplicadas a uma determinada comunidade,
região, cidade ou país inteiro. Tais medidas são necessárias quando a transmissão
comunitária da infecção é substancial. Elas podem variar desde o distanciamen-
to social, no qual são paralisadas atividades não essenciais, até o lockdown, que
consiste no bloqueio completo de atividades de uma região (Wilder-Smith &
Freedman, 2020). O isolamento pode contribuir para reduzir o tamanho geral
de um surto ou controlá-lo por um período mais longo (Hellewell et al., 2020).
O isolamento social tem vários impactos, pois modifica totalmente a ro-
tina das pessoas, paralisa algumas atividades econômicas e interfere nos há-
bitos e práticas culturais. As pessoas isoladas se tornam presas mais fáceis do
medo, da ansiedade, da desconfiança e da desinformação social (Schuchmann
et al., 2020). Esse cenário de vulnerabilidades psicológicas, sanitárias, sociais
e econômicas aumenta a importância dos agentes midiáticos e políticos, que
passam a ter maior responsabilidades de fornecimento de informações e a ga-
rantia de assistência à saúde e suporte econômico para a comunidade ampliadas
(Center of Disease Control [CDC], 2012). Estudar o impacto desses agen-
tes é fundamental para compreendermos a adesão das pessoas ao isolamento
social e sua eficácia.
Desde os estudos seminais de Kurt Lewin sobre estilos de liderança, a
psicologia social tem demonstrado que a coordenação eficiente dos esforços co-
letivos é fundamental para a mobilização de respostas apropriadas às situações.
Nas crises, como a da Covid-19, cabe aos líderes manejar processos identitários
para criar um sentido de “nós” mais amplo que as diferenças individuais ou de
grupo. Haslam (2020) afirma que a importância das lideranças políticas ficou
evidente desde o início da pandemia, pois reações dos cidadãos às notícias sobre
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 395

o vírus foram moldadas por líderes de opinião que refletiam suas preferências
políticas. O autor observa que importantes plataformas conservadoras (e.g., Fox
News, nos EUA e Sky News, na Europa) argumentavam, no início da crise, que
o coronavírus era uma farsa da esquerda histérica e que não havia necessidade de
alarme. A consequência foi um maior alastramento da Covid-19. Ao contrário
do posicionamente de líderes mudiais que expressaram preocupação e respon-
sabilidade com a pandemia, no Brasil, o presidente da república se contrapôs
às recomendações da OMS de forma sistemática desde o início da pandemia,
promovendo pronunciamentos negacionistas e aglomerações públicas, pregando
o fim do isolamento. Contudo, em outros países, a retórica negacionista dos
líderes conservadores foi se alterando no ritmo da infecção:
A maioria dos líderes mostrou uma maior inclusão de todos os cidadãos na sua retórica
(embora houvesse exceções notáveis; por exemplo, no Brasil, na Índia e nos EUA).
Como afirmou o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, não há equipes azuis
ou equipes vermelhas. Não há mais empregados ou chefes. Existem apenas australianos
agora”. (Haslam, 2020, 36-37)

Em relação a esse aspecto, Oliveira (2020), analisando a relação entre os


índices de isolamento social e o número de infectados e mortos na pandemia de
Covid-19 nos 27 estados brasileiros, observa que estados que tiveram um índice
de isolamento social superior em 10%, tiveram redução do número de infectados
(26,2% em média) e de mortes (18%) por coronavírus. O autor conclui que:
“Logo, ‘ficar em casa’ contribuiu para reduzir a velocidade de propagação do
vírus e para mitigar as suas consequências.” (p. 18). Outros estudos, que utilizam
também modelos de projeção matemática, encontram resultados semelhantes
sobre os efeitos do isolamento social, que podem ser organizados em duas con-
clusões gerais: 1) se uma cepa virulenta estiver causando casos graves, seu iso-
lamento diminuirá sua força e 2) se os casos graves liberam mais quantidade de
vírus, seu isolamento diminui a abundância de vírus no ambiente (Yang, Junior,
Castro, & Yang, 2020). Todavia, para ser efetivo, o isolamento social precisa vir
acompanhando de, pelo menos, duas condições básicas: gerenciamento político
adequado e controle da desinformação.
Bastani e Bahrami (2020), analisando as informações erradas divulgadas
sobre a Covid-19 pelas redes sociais mais usadas (Telegram e WhatsApp) no Irã,
país que é um dos mais afetados pelo surto no Oriente Médio, observaram uma
grande quantidade de desinformação sobre estatísticas da doença (tratamentos, va-
cinas e medicamentos), métodos de prevenção e proteção, recomendações e formas
396 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

de transmissão. Os autores salientam a importância da presença ativa e eficaz de


profissionais e autoridades de saúde nas mídias sociais durante a crise e a melhoria
da educação em saúde pública a longo prazo para combater a desinformação.
Nem todos são capturados pela desinformação das redes sociais. Um es-
tudo do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ), analisou o impacto das informações conflitantes dos diversos
níveis governamentais sobre a percepção de gravidade da pandemia e sobre o
modo como usuários de redes sociais reagem à doença e às medidas de controle
tomadas. A coleta de dados ocorreu dia 07 de abril de 2020 e contou com 147.447
participantes. Os resultados indicam que a 99% discordam da afirmação “O
coronavírus causa doença nos ricos, não atingindo a população pobre”, 94%
discordaram de “não tenho medo de pegar a doença, é só uma gripe”, 92%
discordam das ideias de retorno das atividades e somente 8% dizem confiar
em informações sobre a Covid-19 que não tenham como fonte profissionais e
autoridades de saúde. Os autores do relatório concluem que os usuários de mí-
dias sociais têm conhecimento sobre a Covid-19 e não foram capturados pelas
narrativas que minimizam os riscos da pandemia no país (Costa et al., 2020).
O estudo de Lima et al. (2020), com 2.364 cidadãos residentes, sobretu-
do, na Região Metropolitana de Fortaleza, indicou que 43,4% acreditava que
a contaminação com o coronavírus no Brasil será semelhante aos países mais
afetados do mundo. Para mais de 60% dos entrevistados, a contaminação será
mais alta entre os pobres do que entre os ricos. As mulheres acreditam menos
que temos alguma proteção ao vírus diferente de outros lugares e creem mais na
existência de mais risco de contaminação que os homens; além de apresentarem
maiores escores de adesão à quarentena voluntária. Os mais idosos foram os que
mais acreditaram que a pandemia será menor no Brasil que no resto do mundo
e que os pobres serão mais infectados que os ricos. Finalmente, com relação à
escolaridade, os com o ensino fundamental consideraram menor o nível de risco
que os com escolaridade mais elevada.
Não obstante sua importância como forma de controle da pandemia, o
isolamento social em países com altos índices de desigualdade é vivido de forma
muito diversa e, muitas vezes, não alcança seus objetivos profiláticos em grupos
que se encontram muito mais expostos ao risco e às vulnerabilidades. Um estudo
feito na Libéria sobre as percepções dos cidadãos acerca das medidas estatais
de controle do surto de Ebola verificou que a quarentena fortaleceu a estig-
matização e criou problemas socioeconômicos: a distribuição de alimentos era
intermitente e muitos compartilhavam latrinas com vizinhos que não estavam
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 397

em quarentena. Outro aspecto crítico foi a divulgação insuficiente de informa-


ções sobre a doença, o que contribuiu para criar rumores e desconfianças. Os
autores concluem afirmando a importância dos governos para criarem condi-
ções favoráveis ao isolamento social entre os mais vulneráveis economicamente
(Pellecchia, Crestani, Decroo, Van den Bergh, & Al-Kourdi, 2015).
No Brasil, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
(SNIS), indicam que, em 2018, apenas 53,2% das residências possuíam esgota-
mento sanitário; sendo que, nas regiões Nordeste e Norte, esses percentuais caiam
para 28% e 10,5%, respectivamente. De igual forma, o abastecimento de água
nessas duas regiões (74,2% na região Nordeste e 57,1% da região Norte) é inferior à
média nacional (83,6%,) (Macedo, Ornella, & Bomfim, 2020). Em cidades como
São Paulo, 30% da população vive em condições críticas de urbanidade, ao passo
que em Belém 66% das moradias são subnormais e, em Salvador, quase 50% das
habitações se encontram em áreas de alagamento e sujeitas a desabamento. São
áreas em que vivem parte dos 13,5 milhões de brasileiros em situação extrema
pobreza, onde há duas vezes mais negros do que brancos (Pires, 2020).
A literatura especializada da área de infectologia tem afirmado que uma
das formas de aumentar nossas defesas contra as pandemias é a realização de
pesquisas sobre os modos como as pessoas reagem a elas e sobre suas causas e
seus efeitos (Zhang, Jiang, Yuan, & Tao, 2020). O objetivo do presente artigo
é analisar os impactos das explicações para a pandemia que estamos vivendo
e de variáveis sociodemográficas e políticas sobre a atitude dos brasileiros em
relação ao isolamento social durante a crise da Covid-19.

Método

Participantes
Colaboraram 543 cidadãos residentes em 17 Estados, a maioria de Sergipe
(53%); sendo a maior parte deles de sexo feminino (62,7%), com idades variando
entre 18 e 66 (M = 32,04; DP = 10,38). Em relação à religião, 69% afirmam possuir
alguma, com predomínio de católicos (41,4%), seguidos de evangélicos (10,1%),
espíritas (4,6%) e religiões de matriz africana (4,1%). A renda familiar variou de
0,1 a 60 salários mínimos (M= 4,47; DP = 5,79). A maioria dos participantes
possuía nível de escolaridade superior completo (54,2%), havendo 2,3% com nível
fundamental, 13,3% com nível médio e 30,2% com superior incompleto. Em
relação à autoclassificação da cor da pele, 48% se definiram como pardos, 31,4%
como brancos, 17,4% como pretos, 2,2% como amarelos e 1% como indígenas.
398 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Instrumento
O instrumento foi um questionário online elaborado no Survey Monkey e
foi composto por questões estruradas em três blocos. No primeiro, indagava-se
sobre as causas da pandemia da Covid-19, numa das questões, os participantes
deveriam escolher pelo menos três motivos de uma lista de 12, para não adesão
ao isolamento (e.g., “Por não acreditar na gravidade da doença”). Havia ainda
uma pergunta sobre o quanto os participantes concordam com as medidas de
isolamento (“As autoridades têm decretado algumas medidas de isolamento so-
cial. O quanto você concorda com essas medidas?”), respondida numa escala que
variava de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente). No segundo bloco,
perguntava-se sobre o nível de risco de morte que algumas categorias ou grupos
sociais correm. A escala de respostas variava de 1 (morrerão menos de 3%), 2 (igual
a 3%), 3 (maior que 3%), 4 (maior que 10%) e 5 (maior que 20%). Finalmente,
no terceiro bloco, vinham as questões sobre confiança em instituições, meios de
comunicação e outras entidades. A escala adotada variava de 1 (desconfio total-
mente) a 5 (confio totalmente). Nesse bloco, também era avaliado o interesse pela
política (1 = nenhum e 5 = total) e a posição no espectro Esquerda-Direita. Ao
final do questionário, havia ainda um conjunto de questões sociodemográficas.

Procedimentos de coleta e análise de dados


O recrutamento foi por conveniência, o questionário eletrônico foi disse-
minado via redes sociais: Instagram, Facebook e Whatsapp, e ficou disponível
para resposta entre os dias 08 e 20 e abril de 2020. Abaixo podemos ver uma
linha de tempo da pandemia no Brasil16.
02/4 - Iniciam-se ações federais de
proteção de renda
26/2 - O primeiro caso de coronavírus 08/4 - O epicentro da pandemia
11/3 - Aulas e serviços não essenciais começa a se espalhar de São
suspensos no Distrito Federal Paulo a outros estados
16/3 - O
 isolamento social começa a 10/4 - Ultrapassamos as mil mortes
ser adotado em outros estados 15/4 - R ecorde de registro de novos
casos em 24 horas (3.058)
17/3 - Morre a primeira vítima
16/4 - Beirávamos as 2.000 mortes,
26/3 - A
 maioria das cidades já haviam o ministro da saúde (Luiz
aderido ao isolamento social Henrique Mandetta), foi
28/3 - O presidente da república pede exonerado pelo presidente
o fim do isolamento social 20/4 - Tínhamos 40.814 casos de
28/3 - Ultrapassamos as 100 mortes coronavírus e 2.588 mortes

16
Retirado de https://www.sanarmed.com/linha-do-tempo-do-coronavirus-no-brasil.
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 399

Os dados obtidos foram analisados mediante o Statistical Package for the


Social Science (SPSS). Todos os procedimentos éticos para a pesquisa com seres
humanos foram seguidos respeitando a Resolução 510/2016 do CEP/CONEP.
Todos os participantes contabilizados tinham pelo menos 18 anos e possuíam a
liberdade de desistir a qualquer momento da sua participação na pesquisa sem
qualquer perda, como descrito no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), no início do instrumento, com o qual concordaram.

Resultados e discussão
Primeiramente, analisamos os motivos específicos que os participantes
consideram para explicar por que muitas pessoas não têm obedecido à solicitação
das autoridades para fazerem o isolamento social. Na Tabela 6, podemos ver
que os três principais motivos foram a subestimação da gravidade da doença,
citado 332 vezes, a falta de condições financeiras (242 vezes) e o fato de muitos
não poderem trabalhar de casa, com 218 referências. Para conhecermos as es-
timativas de impacto da pandemia sobre a vida dos brasileiros, perguntamos se
os participantes acreditavam que o número de mortes no Brasil seria inferior,
igual ou superior à média de mortes mundial (3%). Os resultados indicaram
que 10% acreditava que seria inferior, 30,3% afirmava que os óbitos atingiriam
a média de 3% dos infectados, 42,9% acreditava que seriam maiores que 3% e
16% afirmou que seriam muito maiores.

Tabela 6. Frequências (entre parêntesis) e Percentagens dos Motivos Apresentados


para não Obediência do Isolamento Social

Motivo % (f)
Por não acreditar na gravidade da doença 61,1 (332)
Por falta de condições financeiras 44,6 (242)
Porque não podem trabalhar de casa 40,1 (218)
Por acreditar que as autoridades da saúde estão exagerando 34,1 (185)
Por não estar no grupo de risco 32,4 (176)
Por acreditar que as coisas "só acontecem quando Deus quer" 23,0 (125)
Por acreditar que tudo é uma invenção 21,0 (114)
Por não possuir boas condições de permanência em casa 18,6 (101)
Por não estar bem informada sobre os riscos 18,4 (100)
Por não se importar consigo mesma e com o próximo 18,2 (99)
Por acreditarem que estão imunes ao vírus 14,7 (80)
Por acreditar que é uma boa pessoa e que o mundo é justo para as boas pessoas 2,0 (11)
Outros (necessidade, acha que quarentena é férias, falta de conhecimento, fanatismo
9,6 (52)
político por adesão ao discurso do presidente, saem para espalhar o vírus, etc.)
400 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Em seguida, a partir de uma lista na qual constavam 17 grupos sociais, os


participantes deveriam estimar a taxa de mortalidade nos grupos, numa escala
que variava de 1 (morrerão menos de 3%) a 5 (maior que 20%). O grupo que
obteve a mais elevada média de risco foram os mendigos/sem teto (M = 3,44;
DP = 1,29) e o com mais baixo risco foram as crianças (M = 1,69; DP = 1,02)
(ver Tabela 7).
Procedemos a uma Análise Fatorial das estimativas para esses grupos de
risco para verificarmos dimensões de grupos de risco. A rotação escolhida foi a
oblíqua (oblimin), as condições de fatoriabilidade foram aceitáveis (Kaiser-Me-
yer-Olkin – KMO = 0,953; Bartlett foi significativo, X 2 (136) = 6529,57; p <
0,001). Os resultados mostram dois fatores com forte correlação positiva entre
eles, r = 0,74; p < 0,001. O primeiro fator integrou minorias sociais percebidas
como de alto risco (mendigos/sem teto, pobres, favelados, negros, prostitutas,
idosos e indígenas), as quais obtiveram as mais elevadas estimativas de taxas de
mortalidade (M = 3,24; DP = 0,90). O segundo fator integrou os grupos de risco
mais baixo, os quais se configuram como grupos dominantes política e econo-
micamente (e.g., brancos, ricos, heterossexuais, católicos, etc.), com taxa média

Tabela 7. Cargas e Fatores para as Atribuições de Taxas de Mortalidade da Covid-19 aos


Grupos (Principal-Axis-Factoring, rotação Oblimin)

Grupos sociais Fator 1 Fator 2


Mendigos/sem teto 0,91 –
Pobres 0,90 –
Favelados 0,84 –
Negros 0,79 –
Prostitutas 0,70 0,17
Idosos 0,59 –
Indígenas 0,54 –
Brancos – 0,87
Ricos -0,19 0,75
Heterossexuais 0,28 0,66
Católicos 0,26 0,66
Ateus 0,13 0,63
Mulheres 0,31 0,59
Homossexuais 0,30 0,59
Homens 0,41 0,51
Evangélicos 0,38 0,50
Crianças 0,26 0,31
Variância explicada 53,5% 7,26%
Valores próprios 9,08 1,23
Confiabilidade interna (Alfa de Cronbach) 0,92 0,92
Média e (Desvio Padrão) 3,24 (0,90) 2,37 (0,76)
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 401

de mortalidade estimada de 2,37 (DP = 0,76). A confiabilidade interna dos dois


fatores foi boa (α = 0,92). Observa-se que a configuração dos grupos de alto e
baixo risco se vincula, por um lado, à percepção de maiores vulnerabilidades
físicas, que predispõem a maus prognósticos depois da infecção, como no caso
dos idosos, e, por outro, a questões de vulnerabilidade socioeconômicas, que se
vinculam à maior exposição ao risco e ao menor acesso aos serviços de saúde
(e.g., mendigos/sem teto, pobres, indígenas, negros, dentre outros).
No conjunto, esses resultados iniciais confirmam os encontrados em outros
estudos que indicam a existência de grupos mais vulneráveis à pandemia em paí-
ses desiguais (CDC, 2012; Pellecchia et al., 2015; Pires, 2020) e os que supõem
taxas mais elavadas de contaminação no Brasil que em outros países (Lima et
al., 2020). Ainda que no presente estudo a variável analisada tenha sido a per-
cepção de vulnerabilidade. A análise fatorial permitiu verificar que a semântica
das minorias sociais é contingente ao tema em análise. Quando a questão é a das
defesas sanitárias, negros e indígenas são agrupados juntamente com prostitutas,
mendigos, favelados, pobres e idosos num único cluster de risco. Por outro lado,
os homossexuais, evangélicos e as mulheres, que, em certas condições, são mi-
norias sociais, se juntam aos ricos, brancos e heterossexuais enquanto maiorias
“sanitárias”. Dados que confirmam os de outros estudos sobre níveis elevados de
informação acerca da pandemia na amostra pesquisada (e.g., Costa et al., 2020).
Em seguida, analisamos a confiança em instituições e entidades da so-
ciedade através de uma lista com 15 itens. Os participantes deveriam expressar
sua confiança numa escala de 1 (desconfio totalmente) a 5 (confio totalmente).
Os resultados indicam que a Ciência obteve escore mais elevado de confiança
(M= 4,22; DP = 0,89) e o Presidente da República (Jair Bolsonaro) o escore
mais baixo (M= 1,63; DP = 0,97). Em seguida, fizemos uma Análise Fatorial
dos escores de confiança nas instituições. A rotação escolhida foi novamente
a oblíqua (oblimin) e as condições de fatoriabilidade foram aceitáveis (Kaiser-
Meyer-Olkin – KMO = 0,828; Bartlett foi significativo, X 2 (136) = 3409,04; p
< 0,001). Foram formados três fatores com duas correlações significativas entre
eles: Fator 1 com o Fator 3, r = 0,46; p = 0,001 e Fator 2 com o Fator 3, r = 0,32;
p = 0,001. Apenas o Fator 1 não se correlacionou com Fator 2, r = 0,04; p = 0,36.
O primeiro fator integrou a confiança nas instituições políticas, à exceção
dos partidos políticos que não atingiu o índice de saturação considerado (≥ 0,30).
Também integram esse fator as intituições de garantia da ordem (Poder Judiciá-
rio, Polícia e Militares). A confiança média nessas instituições (M = 2,66; DP =
0,68) se encontra abaixo do ponto médio da escala (i.e., 3,0), t ((517) = -11,49; p
402 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Tabela 8. Cargas e Fatores para a confirança em instituições sociais e na mídia


(Principal-Axis-Factoring, rotação Oblimin)

Grupos sociais Fator 1 Fator 2 Fator 3


Governo Estadual 0,73 -0,25 –
Governo Municipal 0,67 -0,15 –
Poder Legislativo 0,65 – –
Poder Judiciário 0,65 – –
Governo Federal 0,58 0,33 –
Polícia 0,58 0,21 0,11
Militares 0,52 0,46 0,11
Partidos Políticos 0,28 – 0,27
Jornais 0,28 -0,68 0,27
Presidente da República 0,22 0,59 0,15
Ciência 0,17 -0,59 --
TVs 0,28 -0,53 0,41
Rádios 0,27 -0,46 0,40
Igreja 0,33 0,41 0,18
Família – 0,26 0,19
WhatssApp -,010 0,23 0,79
Redes Sociais – -0,11 0,70
Variância explicada 26,2% 13,9% 5,7%
Valores próprios 4,5 2,35 1,0
Confiabilidade interna (Alfa de Cronbach) 0,82 0,60 0,71
Média e (Desvio Padrão) 2,66 (0,68) 5,77 (2,08) 2,58 (0,62)

< 0,001. Esse fator apresentou alta consistência interna (α = 0,82). O segundo
integrou a confiança nos meios de comunicação (Jornais, Rádios e TVs), junto
à confiança na Ciência, em oposição à confiança no Presidente da República,
na Igreja, nos Militares e no Governo Federal. Considerando os índices de
saturação mais elevados, decidimos compor esse fator pela soma da confiança
nos Jornais e na Ciência subtraída da confiança no Presidente da República. A
confiança média (M = 5,77; DP = 2,08) se encontra acima do ponto médio da
escala (i.e., 3,0)17, t ((522 = 30,44; p < 0,001. A consistência interna desse fator foi
moderada (α = 0,60). O terceiro fator integrou a confiança nos meios para ob-
tenção de informações (TVs, Rádios, Redes Sociais e WhatsApp). A confiança
média (M = 2,58; DP = 0,62) se encontra abaixo do ponto médio da escala (i.e.,
3,0), t ((526) = -15,49; p < 0,001. A consistência interna foi moderada (α = 0,71).

17
 essa composição a escala poderia variar de -3 (mínima confiança na Ciência e nos Jornais subtraída
N
da máxima no Presidente) a 9 (máxima confiança na Ciência e nos Jornais subtraída da mínima
no Presidente).
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 403

Esses resultados indicam que os participantes confiam, principalmente, nos


jornais impressos e na ciência e desconfiam das intituições político-militares e reli-
giosas. Sobretudo, desconfiam do presidente da república. Também chama a atenção
o fato de a confiança nos Partidos Políticos e na Família não integrarem nehuma
dimensão (índices de saturação abaixo de 0,30). A baixa confiança nas mídias sociais
também foi observada no estudo de Bastani e Bahrami (2020). Chama a atenção
a constituição de uma dimensão de confiança que oponha a Ciência e Jornais ao
Presidente da República. Alguns mandatários nacionais, com destaque para Donald
Trump e Jair Bolsonaro, empreenderam uma cruzada de minimização da pandemia
e de desvalorização do conhecimento científico, que alertava para seus riscos e,
como sabemos, “Todo filme de desastre começa com um cientista sendo ignorado”
(Camargo Jr., 2020, p. 3). Esse embate do presidente do Brasil contra a Ciência
foi expresso de forma emblemática pelos participantes do nosso estudo, no Fator
2, com vitória da Ciência, uma vez que nossa amostra tem escolaridade elevada e
a maioria se posiciona à esquerda no espectro político, como veremos em seguida.
Em relação às variáveis de posicionamento político, foi observado que o
interesse pela política foi neutro. Numa escala que variava de 1 (nenhum) a 5
(total interesse) a média obtida pelos participantes (M = 3,02, DP = 1,24) não
diferiu do ponto médio da escala (i.e., 3,0), t(536) < 1, p = 0,65. Em relação ao
posicionamento no espectro político Esquerda-Direita, observamos que 35,6%
não se posiciona, 2,6% se colocam na extrema-esquerda, 41,5% à esquerda,
13,2% no centro, 6,7% à direita e 0,4% se afirmam de extrema-direita.
Para analisar as atitudes em relação ao enfrentamento da pandemia, per-
guntamos em que medida concordavam com as ações de isolamento social, numa
escala tipo Likert de cinco pontos. Verificamos que 9,1% responderam entre
discordo e não me posiciono (estou em dúvida). Os restantes 90,9% afirmaram
que concordam com as medidas de isolamento (25,6%), ou que concordam to-
talmente (65,4%). A atitude média em relação ao isolamento social (M = 4,53;
DP = 0,77) está acima do ponto médio, t(539) = 45,83, p < 0,001.
A fim de entendermos que fatores explicam a adesão ao isolamento social,
realizamos um conjunto de Análises de Regressão Linear tomando as explicações
para a não adesão ao isolamento, as percepções de grupos sociais de riscos, as va-
riáveis sociodemográficas, a confiança nas instituições e a posição política como
preditores dessa adesão. Num primeiro passo, testamos o impacto de cada conjun-
to de preditores. Em seguida, testamos todos os indicadores, numa única análise.
Na Tabela 9, podemos ver que as variáveis sociodemográficas exercem pouco
impacto na adesão ao isolamento, explicando 4% da variância desse fenômeno.
404 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Religião, renda familiar e identidade religiosa não tiveram efeito. Apenas o sexo,
a idade, a escolaridade e a cor da pele foram significativas, esta última de forma
tendencial. São as mulheres, os mais jovens, os mais escolarizados e de pele mais
escura os que mais concordam com o isolamento. Lima et al. (2020) também
encontraram os mesmos resultados para sexo, idade e escolaridade.

Tabela 9. Análises de regressão múltipla hierárquica para explicar a atitude face o


isolamento social (Método Enter)

Passo 1: Variáveis sócio demográficas18


Variáveis B β t-Statistic p.
(Constante) 4,47 – 14,92 0,000
Idade -0,01 -0,11 -2,16 0,031
Sexo -0,18 -0,12 -2,37 0,018
Escolaridade 0,10 0,13 2,63 0,009
Cor da pele 0,10 0,09 1,88 0,061
R-Squared = 0,05 Adjusted R-squared = 0,04 F(7, 439) = 3,32; p < 0,01
Passo 2: Variáveis referentes às explicações para a pandemia*
Variáveis B β t-Statistic p.
(Constante) 4,39 – 50,57 0,000
Não estar bem informada 0,19 0,09 2,14 0,033
Não acredita na gravidade da doença 0,12 0,08 1,76 0,078
Não tem condições de permanência em casa -0,15 -0,07 -1,66 0,098
R-Squared = 0,03 Adjusted R-squared = 0,01 F(12, 539) = 1,53; p = 0,11
Passo 3: Grupos e riscos de mortalidade*
Variáveis B β t-Statistic p.
(Constante) 3,91 – 35,56 0,000
Fator 1 (mendigos, pobres, favelados,...) 0,21 0,27 4,29 0,000
R-Squared = 0,07 Adjusted R-squared = 0,07 F(2, 504) = 19, 37; p < 0,001
Passo 4: Variáveis políticas e confiança nas instituições*
Variáveis B β t-Statistic p.
(Constante) 4,18 – 16,57 0,000
Fator 2 [(Ciência + Jornais) – (Presidente)] 0,17 0,46 8,61 0,000
Posição no Espectro Político -0,18 -0,18 -3,53 0,000
R-Squared = 0,31 Adjusted R-squared = 0,30 F(5, 327) = 28,97; p < 0,001
Passo 5: Todas as variáveis*
Variáveis B β t-Statistic p.
(Constante) 4,22 – 8,86 0,000
Sexo -0,20 -0,14 -2,58 0,011
Fator 2 [(Ciência + Jornais) – (Presidente)] 0,16 0,43 6,52 0,000
Posição no Espectro Político -0,26 -0,25 -4,51 0,000
R-Squared = 0,45 Adjusted R-squared = 0,39 F(26, 268) = 7,50; p < 0,001
Nota: sexo: 1 (fem.) 2 (mas.), religião: 1 (não possui) 2 (possui), identidade religiosa: 1 (nada importante) 5 (totalmente importante), renda familiar:
variou de menos de um a 60 salários mínimos, escolaridade: 1 (fundamental incompleto) a 6 (superior completo), cor da pele: 1 (branco), 2 (pardo)
e 3 (preto). Explicações para a pandemia: 0 (não usa a explicação) a 1 (sim, adota). Fatores 1 e 2: 1 (morrerão abaixo de 3% dos infectados) a 5
(morrerão mais de 20%), confiança nas instituições e na mídia: 1 (desconfio totalmente) a 5 (confio totalmente), posição no espectro: 1 (extrema
esquerda) a 5 (extrema direita), interesse pela política: 1 (nenhum interesse) a 5 (total interesse).

18
A análise foi feita com todas as variáveis, na tabela mantivemos apenas aquelas cujo p esteve abaixo de 0,09.
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 405

Posteriormente, testamos o efeito das explicações sobre a adesão ao isola-


mento social. Os doze motivos explicam muito pouco da variância do fenômeno,
apenas 1%; sendo “Não estar bem informado” o único significativo. Os motivos:
“Não acredita na gravidade da doença” e “Não tem condições de permanência em
casa” tiveram efeito tendencial. As explicações em termos de falta de informação
e de subestimação da gravidade da doença implicaram em mais adesão ao isola-
mento. Ao passo que os que mais apresentaram o motivo da falta de condições
para permanecer em casa foram menos aderentes. Tal resultado é semelhante aos
encontrados no estudo da CEE-Fiocruz (Costa et al., 2020).
Na terceira análise testamos o efeito dos dois conjuntos de estimativas de
risco de mortalidade. Esses dois fatores explicaram 7% da variância da adesão ao
isolamento. Apenas o Fator 1, o do reconhecimento de minorias sociais “sanitárias”
ou mais vulneráveis (mendigos/sem teto, pobres, favelados, negros, prostitutas,
idosos e indígenas) teve poder explicativo. Quanto mais os participantes acredi-
tam que essas minorias serão vitimadas pela Covid-19, mais eles são favoráveis às
medidas de isolamento social. Talvez traduzindo a compreensão de que alguns
grupos ocupam lugares de risco diferenciados, como demonstra Pires (2020).
Na quarta regressão, observamos que os fatores de confiança nas instituições
e as variáveis de posição política são as que mais explicam a adesão ao isolamen-
to social (30% da variância), com destaque para a posição política no espectro
Esquerda-Direita e o Fator 2, que integrou a confiança nos Jornais impressos e
na Ciência, subtraída da confiança no Presidente da República. Quanto mais à
esquerda no espectro e mais confiança em Jornais e Ciência (e menos no Presi-
dente) mais favorável a atitude em relação ao isolamento social.
Finalmente, quando colocadas todas as variáveis numa única regressão, ob-
servamos que a variância explicada da atitude face ao isolamento social é de 39%.
As variáveis preditoras são o sexo, a posição política, a confiança na Ciência e
Jornais e a desconfiança no Presidente. A variável mais forte permanece sendo o
Fator 2 de confiança nas instituições, que, sozinho, explica 18,5% da atitude de
não adesão ao isolamento (ver Tabela 9). Esses dados corroboram as afirmações
de Haslam (2020), sobre o efeito das lideranças políticas e dos seus apoiadores
nos meios de comunicação e outros canais de influência na promoção de estilos
de reação à pandemia.

Considerações finais
O objetivo da presente pequisa foi analisar os impactos das explicações para a
pandemia que estamos vivendo e de variáveis sociodemográficas e políticas sobre a
406 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

atitude dos brasileiros em relação ao isolamento social. Os resultados encontrados


indicaram que a principal explicação para a baixa adesão ao isolamento social é a
de que muitos não acreditam na gravidade da doença, seguida da falta de condições
financeiras e das dificuldades em trabalharem de casa. Verificamos a formação de
dois conjuntos de categorias sociais no que se refere aos riscos de mortalidade na
pandemia. De um lado, grupos que são minorias sociais de forma transituacional
no Brasil (negros, indígenas, pobres, prostitutas, mendigos, idosos e favelados);
do outro, os grupos com mais condições sanitárias e econômicas (brancos, ricos,
heterossexuais, mulheres, homens, homossexuais, etc.). A confiança nas institui-
ções foi muito afetada pelo contexto da pandemia no Brasil e pela forma como o
Governo Federal, mais notadamente o presidente da república, tem lidado com
o problema. A confiança na Ciência e nos Jornais (impressos) foram as únicas
acima do ponto neutro da escala. Todas as demais estiveram significativamente
abaixo da “linha de água”, sendo alvo de desconfiança. Finalmente, vimos que as
variáveis mais poderosas na explicação da atitude face ao isolamento social foram,
nesta ordem: a confiança na Ciência e nos Jornais e desconfiança no Presidente,
posição política e sexo.
Os resultados encontrados demonstram que, na amostra pesquisada, existe
alta percepção dos riscos da pandemia pela Covid-19, conhecimento de infor-
mações científicas e de dados da Organização Mundial de Saúde sobre grupos
mais vulneráveis de risco e alta disposição à adesão ao isolamento social. Todavia,
encontramos também altos indícios de anomia, expressa pela falta de confiança
em todas as instituições políticas do país, com destaque para aquele que deveria
centralizar e conduzir as ações contra a pandemia, o presidente da república. Como
demonstram análises e estudos feitos por organismos cientificamente respeitáveis
e com amostras representativas do país, num cenário de ampla vulnerabilidade,
como o que vivemos atualmente, a importância de uma governança eficiente e
com ações coordenadas aumenta exponencialmente (CDC, 2012; Costa et al.,
2020; Haslam, 2020). Além da anomia política, observamos, igualmente, a des-
confiança nos meios de comunicação, sobretudo, nas mídias sociais, mas também
nas TVs e rádios. E a desconfiança nas instituições de garantia da ordem social
e nas religiosas. Tal anomia é muito perigosa pois colabora para o esgarçamento
do tecido social e para o total desengajamento moral e político dos cidadãos (ver
Lima & França, no prelo).
Algumas limitações do estudo interferem nos resultados encontrados. A
principal delas se refere à forma de coleta, o questionário online. Esse tipo de mé-
todo, na maior parte das vezes, se restringe às “bolhas” de contatos e de influências
Capítulo 19 – Marcus E. O. Lima, Dalila X. de França e Cicero R. Pereira 407

dos pesquisadores, deixando de contemplar de forma representativa as múltiplas


realidades sociais. Vimos que a maior parte da amostra se concentra num Estado
e com níveis de escolaridade elevados. Todavia, os dados encontrados não dife-
rem substancialmente de outros estudos feitos com amostras mais representativas
(e.g., Costa et al., 2020; Lima et al., 2020). Noutros estudos, seria importante
aprofundar, com análises mais específicas, as atitudes e crenças dos cidadãos de
Direita política sobre a pandemia da Covid-19.
Quando começamos a escrever esse artigo, dia 13 de maio de 2020, haviam
4.278.180 casos confirmados da Covid-19, em 187 países, com 292.316 mortes. A
maior incidência de casos encontrava-se nos Estados Unidos, sendo que o Brasil
ocupava o sexto posto de contaminação e de mortes, com 12.461. Atualmente
(setembro de 2022), o Brasil está na quarta posição em numero de contaminados,
e supera a India (segunda posição em número de contaminados) em numero de
mortes (16:21h do dia 19/09/2022)19, ou seja está no segundo lugar em numero
de mortes. Tudo isso demonstra a importância de entendermos mais e melhor
sobre o papel das diferentes posições sociais e da confiança nas instituições, e
suas interferencias na adesão a comportamentos preventivos, como o isolamento
social, face ao enfretamento de condições sociais limites, como uma pandemia.

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Capítulo 20
O efeito da pandemia de Covid-19 na saúde
mental e na satisfação no trabalho: comparação
entre grupos minoritários e majoritários
Luciana Maria Maia
Tiago Jessé Souza de Lima
Luana Elayne Cunha de Souza

Introdução
A pandemia de Covid-19 caracteriza-se como uma crise de saúde pública
e um problema humanitário de grande proporção sem precedente na história
recente. Dados oficiais indicam que até outubro de 2021, aproximadamente,
4,8 milhões de pessoas no mundo perderam a vida por causa da doença, muitas
vezes agravada pela dificuldade de acesso a serviços da saúde (Organização Pan-
-Americana da Saúde [OPAS], 2021). No Brasil, no mesmo período, mais de 21
milhões de pessoas foram infectadas e desse total, aproximadamente, 600 mil
vieram a óbito (Organização Mundial de Saúde [OMS], 2021). Além das vidas
perdidas, a pandemia também acentuou uma crise mundial econômica e social,
com repercussões para o mundo do trabalho, que tem sido referida como uma
catástrofe humanitária (Organização Internacional do Trabalho [OIT], 2021).
Pesquisas sobre essa nova realidade reúnem evidências que corroboram os
efeitos negativos da pandemia da Covid-19 nas condições de vida da população
mundial. Entre esses efeitos, tem-se os riscos à saúde mental da população (para
mais detalhes ver Torales et al., 2020). A saúde mental refere-se a um processo
que expressa determinadas condições da vida humana e a capacidade da pessoa
de enfrentar desafios, conflitos e agressões que ocorrem na realidade na qual vive
(Borsoi, 2007). Essas perturbações, que podem ser de natureza psicológica e so-
cial, afetam o estado de bem-estar e a capacidade de enfrentamento do indivíduo
a situações de estresse, ao desenvolvimento do trabalho e à vida em comunidade,
em formas e níveis variados (Ministério da Saúde do Brasil, [MS] 2020). A saúde
mental é um construto que envolve diferentes dimensões e no caso da pandemia de
Covid-19 tem sido associada a fatores como: medo de ser infectado e vir a óbito,
perda de entes queridos, desemprego, crise econômica e política, novas dinâmicas
de trabalho, isolamento e distanciamento social, acúmulo e conflito de papéis, e
violência doméstica (Dimenstein et. al, 2020, Schmidt et al, 2020).
Capítulo 20 – Luciana M. Maia, Tiago J. S. de Lima e Luana E. C. de Souza 411

No que se refere ao contexto econômico e, em especial, ao mercado de


trabalho, pesquisas apontam riscos mais evidentes na saúde mental de grupos
específicos de trabalhadores (Barbosa et al, 2020). Esses riscos têm variado em
decorrência da região geográfica, etnia, cor da pele, classe social, orientação sexual
e identidade de gênero, condições de moradia, acesso à saúde, entre outras dimen-
sões sociais, que ajudam a explicar desigualdades estruturais no Brasil e no mundo
(Baqui et al., 2020; Martins-Filho et al., 2020; Torres et al, 2020; Yancy, 2020).
Desse modo, é possível afirmar que as desigualdades nas condições la-
borais intensificam desvantagens e vulnerabilidades para indivíduos e grupos
socialmente desvalorizados, o que tem sido intensificado em momentos de
crise, como é a da pandemia de Covid-19 (Estrela et al., 2020; Goes et. al,
2020; Pinheiro et al., 2020). Considerando esses aspectos, é possível afirmar
a importância da categoria trabalho para a análise do processo saúde/doença
mental (Borsoi, 2007), especialmente quando se considera que os riscos à saúde
mental no contexto da pandemia estão associados ao aumento do desemprego
(Komatsu & Menezes-Filho, 2020); às condições de trabalho (Jackson-Filho
et al., 2020), especialmente em serviços essenciais, incluindo profissionais da
área da saúde (Silva et. al, 2020); e na precarização das relações laborais (Pontes
& Rostas, 2020; Souza, 2020).
Em relação a esse último ponto, há dados que indicam que as novas formas
de trabalho impostas pela pandemia trouxeram mudanças significativas para
os indivíduos (Castro et al., 2020). Em relação ao teletrabalho, embora essa
modalidade possa ser apontada como favorável, quando comparada à situa-
ção de desemprego e ao risco de contágio decorrente do trabalho presencial, é
preciso considerar os impactos à saúde mental que trouxe para trabalhadores,
especialmente na rotina e condições laborais (Souza, 2020) e nas relações fa-
miliares, considerando a necessidade de integrar espaços e tarefas, e os desafios
de compartilhar vida pessoal e profissional (Solon et al., 2020).
Como já sugerido, essas mudanças no desenvolvimento do trabalho têm
significados distintos quando se considera a pertença a grupos específicos. A
esse respeito, estudos apontam que a saúde mental das mulheres é mais afetada
pelas condições de teletrabalho, em decorrência da sobrecarga e diversidade de
atividades e funções (D’Angelo & Lando, 2020; Lemos et al. 2021; Oliveira,
2020). Esse efeito também é encontrado em grupos mais pobres, em sua maioria
formados pela população negra, que precisam encontrar em espaços menores
e com poucos recursos as condições adequadas ao desenvolvimento das suas
atividades profissionais (Silva et al. 2020).
412 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Além das tensões decorrentes do medo de contágio e das mudanças na


rotina relacionadas aos novos protocolos, existem fatores relacionados ao contato
entre trabalhadores e desses com a empresa que podem favorecer ou dificultar
os processos de saúde/doença mental. Assim, é possível discutir a existência
de fatores que podem servir como protetivos aos trabalhadores, mesmo em
situação de crise. Entre esses fatores, a satisfação com o trabalho é apontada
um elemento que afeta a saúde física e mental, as atitudes e o comportamento
profissional e social dos trabalhadores. A satisfação está relacionada às condições
e ao contexto específicos ao trabalho, mas o ambiente externo constitui-se fator
que interfere nessa relação (Paiva et al., 2017); e tempos de instabilidade e de
crise ampliam os sentimentos de desamparo do trabalhador e afetam a forma
como os indivíduos percebem e vivenciam o trabalho (Concolatto et al., 2017).
Então, é possível reconhecer que a pandemia de Covid-19 trouxe mu-
danças significativas nas formas de trabalho, atingindo o mundo de um modo
geral, contudo à medida que a pandemia se desenvolveu, ficou evidente que
os efeitos da Covid-19 não são iguais para todos os membros da sociedade. As
desvantagens e desigualdades observadas em relação a alguns grupos sociais
se mantiveram e, em algumas situações, se intensificaram (Smith et al., 2019).
A análise desses processos pressupõe entender a dinâmica social que privi-
legia as condições de algumas pessoas em detrimento de outras e, desse modo,
considerar as disputas de poder que legitimam e consolidam lugares sociais de
prestígio ou de exclusão (Tajfel & Turner, 1979). O prestígio é uma condição
dada a grupos favorecidos social e economicamente; e a exclusão é uma condição
que caracteriza a realidade de grupos minoritários, discriminados e/ou margi-
nalizados em decorrência de aspectos econômicos, sociais, culturais, físicos ou
religiosos, o que envolve marcadores de gênero, orientação sexual, cor da pele,
raça, condição física e social.
Neste trabalho, contempla-se como grupos minoritários população
LGBTQIA+, mulheres e população negra. A população LGBTQIA+ repre-
senta o conjunto de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,
queer, intersex, agênero e pessoas de outras orientações sexuais e identidades
de gênero, reconhecidos como minoria por enfrentar cotidianamente a violação
de seus direitos, preconceitos, estigmas e diferentes vulnerabilidades sociais
(Freitas, 2019). Em relação ao contexto laboral, a população LGBTQIA+ en-
frenta discriminações diversas, por exemplo, salários inferiores, assédio moral,
ameaça de demissão em função da orientação sexual e/ou identidade de gênero
(Almeida & Vasconcellos, 2018; Irigaray & Freitas, 2013).
Capítulo 20 – Luciana M. Maia, Tiago J. S. de Lima e Luana E. C. de Souza 413

Em relação às mulheres, a condição de compor um grupo minoritário se


evidencia na realidade desigual de acesso aos direitos, de vivências de violên-
cia e de exercício do poder (Bandeira, 2017; Biroli, 2016), que se manifestam
em diferentes contextos, tais como economia, mercado de trabalho, educação,
saúde e outras esferas sociais (Proni & Proni, 2018). No contexto das relações
de trabalho, as desigualdades ficam evidentes, por exemplo, na diferença de
salários de homens e mulheres; nas dificuldades de acesso ao mercado de tra-
balho em função do tempo dedicado às atividades domésticas; nos obstáculos
ao desenvolvimento e ascensão profissional, nas situações de assédio e violência
no trabalho (Oxfam International, 2020).
No que se refere à população negra, composta pelo somatório de pessoas
que se autodeclaram pretas e pardas, embora seja maioria no Brasil, não re-
presenta maioria no acesso e garantia a direitos, quando se considera o acesso
à moradia, saneamento, educação, emprego e renda (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística [IBGE], 2019); mas, ao contrário, são maioria entre as
vítimas de homicídio (IPEA, 2020) e a população carcerária do país (Fórum
Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2020). Em relação ao mercado de
trabalho, a população negra constitui pouco mais da metade da força de tra-
balho, representa cerca de dois terços dos desocupados/desempregados e dos
subutilizados (IBGE, 2019).
Partindo dessas considerações preliminares, que destacaram a situação de
crise decorrente da pandemia pela Covid-19, o reconhecimento de que fatores
relacionados ao trabalho podem afetar a saúde mental e satisfação do trabalhador,
especialmente de alguns grupos minoritários, a presente pesquisa se propõe avaliar
o efeito da pertença grupal (grupos minoritários versus grupos majoritários) na
saúde mental e na satisfação de trabalhadores durante a pandemia de Covid-19.

Método

Participantes
Participaram desta pesquisa 581 trabalhadores do setor privado, com idade
média de 30,4 anos (DP = 9,25), sendo a maioria do gênero feminino (66,8%),
de orientação heterossexual (77,2%), que se autodeclaram brancos (51,6%) e
se consideram de classe social baixa (54,9%). Para mais informações sobre a
amostra ver a Tabela 10. A amostra foi por conveniência (não probabilística),
composta por trabalhadores que aceitaram o convite para participar de forma
voluntária da pesquisa.
414 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Tabela 10. Informações sociodemográficas dos participantes

Variável Categorias N %
Masculino 191 33,2
Gênero
Feminino 384 66,8
Heterossexual 441 77,2
Orientação sexual
Não-heterossexual 130 22,8
Branco 290 51,6
Raça/Cor
Não-Branco 262 45,1
Baixa 319 54,9
Classe econômica
Média/Alta 272 48,4

Instrumentos
Para a coleta dos dados foram usados três instrumentos:
Questionário de Saúde Geral (QSG-12; Goldberg & Williams, 1988) - composto
por 12 itens que avaliam a saúde mental em duas dimensões: ansiedade e depres-
são. Os 12 itens do QSG-12 avaliam o quanto a pessoa tem experimentado os
sintomas descritos. A pontuação varia entre 1 e 7, em que uma maior pontuação
indica maior nível de saúde mental. A consistência interna da escala se mostrou
adequada, com alfa de Cronbach igual a 0,89.
Escala de Satisfação no Domínio do Trabalho (WDSS; Gagne et al., 2016) -
composta por cinco itens que avaliam bem-estar no trabalho, em uma escala que
varia de 1 (discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente), em que quanto maior
o escore, maior o nível de satisfação com o trabalho. A consistência interna da
escala se mostrou adequada, com alfa de Cronbach igual a 0,82.
Questionário sociodemográfico - composto por perguntas para caracterização da
amostra (gênero, idade, orientação sexual, raça/cor, renda e ocupação profissional).

Procedimento de coleta e aspectos éticos


A coleta de dados foi realizada via internet a partir de formulário eletrônico
por meio da plataforma Survey Monkey. Além das razões relativas à necessida-
de de distanciamento social em decorrência da pandemia, a escolha por essa
estratégia atendeu aos critérios de baixo custo, agilidade, facilidade de uso pelo
público-alvo e ausência de restrição espacial e maior índice de resposta (Flick,
2012). O acesso aos participantes se deu pela estratégia bola de neve virtual
a partir de redes sociais, como Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp,
incluindo páginas e grupos corporativos. No início do preenchimento do for-
mulário, os participantes leram e selecionaram o campo de autorização positiva
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e puderam realizar
Capítulo 20 – Luciana M. Maia, Tiago J. S. de Lima e Luana E. C. de Souza 415

o salvamento de cópia digital para arquivamento. Os dados foram coletados no


período de 21 de junho a 21 de julho de 2020.

Análise dos dados


Além de estatísticas descritivas usadas para análise da caracterização da
amostra, os dados foram analisados por meio de ANOVA fatoriais. Para essa aná-
lise, foi utilizado um desenho de grupos naturais, no qual os participantes foram
divididos em função de quatro fatores com duas condições cada: gênero (mascu-
lino, feminino), orientação sexual (hetero, não-hetero), raça/cor da pele (branco,
não-branco), classe econômica (baixa, média/alta). Portanto, foram conduzidas
ANOVAS fatoriais 2 x 2 x 2 x 2, avaliando os efeitos principais e de interação
entre os fatores para as variáveis “Saúde mental” e “Satisfação com o trabalho”.

Resultados
Para avaliar o efeito da pertença grupal (grupos minoritários vs grupos
majoritários) na saúde mental de trabalhadores durante a epidemia de Covid-19,
foi realizada uma ANOVA fatorial 2 x 2 x 2 x 2, que revelou o efeito principal
significativo da orientação sexual e da classe econômica. Os efeitos das variáveis

Tabela 11. Efeitos principais e de interação da pertença grupal na saúde mental

Partial Eta
F df p
Squared
Modelo corrigido 3,159 15 0,000 0,082
Intercepto 3367,076 1 0,000 0,863
Raça/Cor 0,421 1 0,517 0,001
Gênero 0,477 1 0,490 0,001
Orientação sexual 19,019 1 0,000 0,034
Classe econômica 10,635 1 0,001 0,020
Raça* Gênero 0,416 1 0,519 0,001
Raça* Orientação sexual 0,222 1 0,638 0,000
Raça* Classe econômica 0,157 1 0,693 0,000
Gênero* Orientação sexual 1,659 1 0,198 0,003
Gênero* Classe econômica 1,256 1 0,263 0,002
Orientação sexual* Classe econômica 3,026 1 0,082 0,006
Raça* Gênero* Orientação sexual 0,174 1 0,677 0,000
Raça* Gênero* Classe econômica 0,404 1 0,525 0,001
Raça* Orientação sexual* Classe econômica 1,501 1 0,221 0,003
Gênero* Orientação sexual* Classe econômica 0,142 1 0,706 0,000
Raça* Gênero* Orientação sexual* Classe econômica 0,211 1 0,646 0,000
Error – 533 – –
Total – 549 – –
Corrected Total – 548 – –
416 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

raça /cor e da variável gênero não foram significativos. Consonante com esses
achados, observou-se um efeito de interação marginalmente significativo entre
as variáveis orientação sexual e classe econômica (ver Tabela 11).
Considerando o efeito significativo da orientação sexual na saúde mental,
os resultados demonstraram nível de saúde mental significativamente superior
para trabalhadores heterossexuais (M = 4,55; EP = 0,07) em comparação ao nível
encontrado para não heterossexuais (M = 3,91; EP = 0,12), t (533) = 9,50, p < 0,001.
Em relação ao efeito da classe econômica no nível de saúde mental, os
resultados demonstraram nível de saúde mental significativamente superior
para trabalhadores de classes econômica média e alta (M = 4,47; EP = 0,11) em
comparação ao nível encontrado para trabalhadores de classe baixa (M = 4,00;
EP = 0,10), t (533) = 5,32, p < 0,001.
Em relação à variável satisfação com o trabalho, foi realizada uma ANOVA
fatorial 2 x 2 x 2 x 2, que revelou o efeito principal significativo da raça/cor da
pele, da orientação sexual e da classe econômica. O efeito da variável gênero
não foi significativo. Na mesma direção, observou-se um efeito de interação
marginalmente significativo entre as variáveis orientação sexual e classe eco-
nômica (ver Tabela 12).

Tabela 12. Efeitos principais e de interação da pertença grupal na satisfação no trabalho

Partial Eta
F df p
Squared
Modelo corrigido 2,867 15 0,000 0,096
Intercepto 1882,399 1 0,000 0,823
Raça/Cor 7,410 1 0,007 0,018
Gênero 0,361 1 0,548 0,001
Orientação sexual 7,765 1 0,006 0,019
Classe econômica 14,922 1 0,000 0,036
Raça* Gênero 0,035 1 0,851 0,000
Raça* Orientação sexual 0,062 1 0,804 0,000
Raça* Classe econômica 0,165 1 0,684 0,000
Gênero* Orientação sexual 1,138 1 0,287 0,003
Gênero* Classe econômica 2,528 1 0,113 0,006
Orientação sexual* Classe econômica 2,893 1 0,090 0,007
Raça* Gênero* Orientação sexual 0,347 1 0,556 0,001
Raça* Gênero* Classe econômica 0,733 1 0,392 0,002
Raça* Orientação sexual* Classe econômica 0,115 1 0,735 0,000
Gênero* Orientação sexual* Classe econômica 0,073 1 0,787 0,000
Raça* Gênero* Orientação sexual* Classe econômica 0,299 1 0,585 0,001
Error – 533 – –
Total – 549 – –
Corrected Total – 548 – –
Capítulo 20 – Luciana M. Maia, Tiago J. S. de Lima e Luana E. C. de Souza 417

Partindo do resultado que apontou um efeito significativo da orientação


sexual na satisfação com o trabalho, os resultados demonstraram nível de sa-
tisfação superior e significativo para trabalhadores heterossexuais (M = 4,44;
EP = 0,09) em comparação ao nível encontrado para não heterossexuais (M =
3,91; EP = 0,17), t (405) = 2,78, p < 0,01.
Em relação ao efeito da classe econômica no nível de satisfação com o
trabalho, os resultados demonstraram nível de satisfação superior e significativo
para trabalhadores de classes média e alta (M = 4,55; EP = 0,13) em comparação
ao nível encontrado para trabalhadores de classe baixa (M = 3,80; EP = 0,14),
t (405) = 3,86 p < 0,001.
No que se refere ao efeito da raça / cor da pele no nível de satisfação com o
trabalho, os resultados demonstraram nível de satisfação superior e significativo
para trabalhadores não brancos (M = 4,44; EP = 0,14) em comparação ao nível en-
contrado para trabalhadores brancos (M = 3,91; EP = 0,13), t (405) = 2,72, p < 0,01.

Discussão
O presente estudo procurou avaliar o efeito da pertença grupal na saúde
mental e na satisfação de trabalhadores durante a pandemia de Covid-19. Em
geral, pode-se dizer que na amostra investigada a pertença grupal contribuiu
para um menor nível de saúde mental de trabalhadores que se reconhecem não
heterossexuais (homossexuais e bissexuais) e trabalhadores de classe econômica
baixa. Em relação à satisfação com o trabalho, além de não heterossexuais e de
classe baixa, a pertença grupal contribuiu para um menor nível para pessoas
brancas. Por outro lado, na amostra investigada, a saúde mental do trabalhador
não foi afetada pelo gênero e nem pela raça / cor da pele do trabalhador; no
caso da satisfação com o trabalho somente o gênero do trabalhador não afetou.
Em relação ao papel da orientação sexual e identidade de gênero na saúde
mental e na satisfação com o trabalho, vale destacar que em comparação com
heterossexuais e/ou cisgêneros, LGBTQIA+ são mais propensos a vivenciar de-
sigualdades sociais, como insegurança alimentar, falta de moradia, moradias ins-
táveis, desemprego e pobreza (Baams et al., 2019; Whittington et al., 2020). Esse
grupo também está desproporcionalmente sobrecarregado por problemas de saúde
mental (Russell & Fish, 2016), o que poderia aumentar ainda mais suas vulne-
rabilidades médicas e psicológicas durante uma crise pandêmica. Ademais, uma
das ocorrências mais salientes do estresse de minoria em pessoas LGBTQIA+ é
a rejeição familiar, potencialmente saliente em tempos de isolamento social em
que a residência familiar se torna o principal refúgio (Salerno et al., 2020).
418 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Em relação às questões econômicas, as pessoas pobres, especialmente, as


que vivem em áreas urbanas, experimentam condições de maior aglomeração,
são maioria em ocupações voltadas para o público, aspectos que dificultam o
isolamento social e que podem favorecer aumento de conflitos (Kantamneni,
2020). Vale destacar que o distanciamento social é um privilégio e a capacidade
de se isolar em uma casa segura, trabalhar remotamente com acesso digital
completo e manter a renda mensal fazem parte desse privilégio (Yancy, 2020).
No Brasil as desigualdades e condições sociais e sanitárias colocam grande par-
cela da população em situação de vulnerabilidade e distantes do acesso a esses
privilégios. Por outro lado, dependendo da situação de moradia e das relações
familiares e comunitárias, a condição de compartilhar um espaço comum ou
de ocupar determinados territórios pode representar riscos à sobrevivência e à
integridade física e mental de algumas pessoas e grupos (Fleury & Menezes,
2021; Heilborn et al. 2020). Os trabalhadores de classe econômica baixa, em
um contexto de crise, ficam mais vulneráveis, têm maior probabilidade de serem
afetados pelo desemprego, têm menos escolaridade, menos recursos econômicos
e níveis mais baixos de ativos líquidos (Mongey et al., 2021).
Sobre o dado que aponta que pessoas pardas e pretas se mostraram mais
satisfeitas com o trabalho do que pessoas brancas, o resultado observado foi no
sentido contrário ao esperado. Embora pareça contraditório, faz-se necessário
analisar esses achados considerando funções e renda dos participantes. Além
disso, é preciso considerar o próprio perfil da amostra que pela forma de acesso
por meio das redes sociais configura-se um grupo privilegiado (Costa, 2018),
que não corresponde à maioria dos trabalhadores brasileiros. Ainda é possível
considerar que as mudanças nas condições de trabalho, com foco no trabalho
remoto, flexibilização de horários, investimento em protocolos de segurança,
tenham sido interpretados como atenção ao trabalhador ao invés de obrigações
dos empregadores (Pimentel & Kurtz, 2021).
Outro elemento importante a ser considerado é que a amostra foi com-
posta por trabalhadores na ativa, uma vez que se considerou como critério de
inclusão o fato de as pessoas estarem empregadas no momento da pesquisa. Essa
delimitação pode ter comprometido a magnitude do impacto da pandemia para
indivíduos de grupos minoritários que não estavam empregados (a taxa de deso-
cupação foi de 13,1% da população economicamente ativa nos meses de junho
e julho de 2020, quando os dados foram coletados), especialmente quando se
considera a população de pretos e pardos que constituem maioria entre pessoas
desempregadas e que estão na informalidade (IBGE, 2019).
Capítulo 20 – Luciana M. Maia, Tiago J. S. de Lima e Luana E. C. de Souza 419

Considerações finais
Muito se tem discutido sobre a pandemia de Covid-19 atingir as pessoas
de uma forma semelhante, mas os resultados deste estudo deixam evidente que
essa premissa não se sustenta empiricamente, pelo menos quando se considera
população LGBTQIA+ e pessoas pobres. Tomando como referência a saúde
mental e a satisfação com o trabalho, os resultados encontrados indicam que
a orientação sexual e a renda determinam efeitos distintos para trabalhadores.
Esses efeitos favorecem vulnerabilidades sociais e representam aspectos impor-
tantes para a compreensão dos processos de exclusão social.
Embora os resultados desse estudo sejam preliminares e novas investigações
sejam necessárias para compreender a complexidade dos fatores que afetam a
vida de minorias em tempos de crise, especialmente quando se considera a saúde
mental e a satisfação de trabalhadores, alguns pontos merecem destaque quando
se consideram os aspectos levantados neste estudo. Inicialmente é importante
ratificar que o direito e as formas de acesso ao trabalho são importantes mar-
cadores de inclusão social e, nesse sentido, analisar como diferentes categorias
sociais experimentam as condições de trabalho é fundamental no enfrentamento
às diferentes desigualdades sociais que se expressam cotidianamente na realidade
de mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas negras, entre outros grupos.
Outro aspecto que merece destaque é a necessidade de reconhecer que,
embora a crise causada pela pandemia seja uma realidade para todos, os recur-
sos disponíveis e utilizados para seu enfrentamento dependem das pertenças
sociais dos indivíduos. Assim, é imprescindível considerar as especificidades
do impacto da pandemia de Covid-19 para pessoas que pertencem a distintas
categorias sociais e analisar esses processos a partir das realidades que afetam
essas diferentes minorias. Aceitar essas considerações implica reconhecer que as
desigualdades entre as pessoas não são aleatórias (Jetten, 2020), mas ao contrário
estão relacionadas a dinâmicas intergrupais, que representam formas de poder e
status distintos, que naturalizam desvantagens sociais para alguns e privilégios
para outros (Tajfel & Turner, 1979).
Os resultados e discussões apresentadas neste capítulo evidenciam que
situações de crise intensificam vulnerabilidades experimentadas por grupos mi-
noritários e, desse modo, demandam que se reconheça a existência de problemas
estruturais e que se busque uma gestão política que, ao invés de acirrar conflitos
entre grupos, promova a equidade e justiça social. Considerando que o cenário
político não é animador, no sentido de se vislumbrar essa gestão, a ciência e a
pesquisa científica devem ser reconhecidas como instrumentos imprescindíveis
420 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

para visibilizar essa realidade social e fundamentar mudanças pautadas no en-


frentamento aos impactos decorrentes das crises enfrentadas no país.

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Capítulo 21
Discurso de ódio, redes sociais e violência policial:
o caso da chacina do Jacarezinho
Charles Vinicius B. de Souza
Marcus Eugênio O. Lima
Luiz Felipe da Conceição Souza
Hendrik Teixeira Macedo
Thiago Dias Bispo

Introdução
Dados do Estudo Global sobre Homicídios publicado pelo Escritório
das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2019) demonstraram
que, juntos, Nigéria e Brasil representam cerca de 5% da população mundial e
são responsáveis por 28% dos homicídios globais. Em 2020, a taxa de mortes
violentas intencionais no Brasil foi de 23,6 por 100 milhões de habitantes teve
um crescimento de 4% em relação ao ano anterior, a letalidade policial corres-
pondeu em média a 12,8% dessas mortes (Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, 2021). O Brasil ocupa o primeiro lugar do mundo em assassinatos por
forças policiais. A violência policial no Brasil atinge grupos sociais de forma
desigual, sendo mais letal contra jovens, homens, pobres e negros (IPEA, 2019),
caracterizando-se, muitas vezes, como crimes de ódio.
Os crimes de ódio são o último estágio em uma escala de hostilidade in-
tergrupal que começa com a “anti-locução” (Allport, 1954). Tais discursos se
tornaram um dos maiores problemas em países com democracias consolidadas e
economias estáveis (Mondal, Silva, & Benevenuto, 2017; ICERD, 2018). Estudos
demonstram que há uma forte relação da ascensão da extrema direita e discursos
de ódio nas redes sociais, na medida que há uma tendência desses grupos direcio-
narem sua comunicação para plataformas virtuais com menos restrições e normas
de convivência, dificultando o acesso e a possibilidade de construções de medidas
inibitórias para a expressão de violência direcionados a grupos minoritários (ver
Winter, et al., 2020). Apesar da extrema direita abarcar um leque cada vez mais
amplo de ideologias, alguns pontos em comum a todo o espectro nas redes são o
apelo a uma suposta identidade nacional, patriotismo, xenofobia e o conservado-
rismo, fenômenos crescentes observados na Europa (Ben-David & Matamoros-
-Fernandez, 2016; Caiani, Carlotti & Padoan, 2021; Vidgen, Yasseri & Margetts,
426 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

2021), nos Estados Unidos (Walther & McCoy, 2021; Siegel, et al, 2019), no Japão
(Yamaguchi, 2013) e no Brasil (Silva, Francisco, & Sampaio, 2021).
No Brasil, assim como em outros países em desenvolvimento, o impacto
do ódio nas redes é ainda mais devastador, pois os discursos estão vinculados
a propostas políticas populistas-reacionárias que associam as minorias sociais
à criminalidade e ao caos social, legitimando ações policiais extremas, muitas
vezes de extermínio, como foi a operação policial mais letal da história do Rio
de Janeiro, ocorrida em 6 de maio de 2021 na comunidade do Jacarezinho na
qual 29 pessoas foram mortas, incluído um policial, ou da mais recente, na Vila
Cruzeiro, no dia 24 de maio de 2022, onde morreram 26 pessoas.
Este capítulo analisa o discurso de ódio nas redes sociais relacionado às
ações policiais. Escolhemos a plataforma do Twitter por sua estrutura dinâmica
permitir aos usuários compartilharem assuntos relacionados a interesses comuns
e atuais, disponibilizando um vasto volume de dados, sendo o Brasil a 4o maior
base de usuários do mundo20, além da rede ser uma das preferidas pelas forças
policiais (Crump, 2011; Vascon, 2018). Os dados foram coletados tendo foco
hashtags com conteúdo odioso e de apoio as práticas de violência da corpo-
ração policial, logo depois da chacina no Jacarezinho, Rio de Janeiro. Foram
investigados os conteúdos das postagens para detectar elementos de incentivo a
violência policial à luz de teorias sobre a naturalização e legitimação de práticas
discriminatórias de grupos sociais estigmatizados. As questões norteadoras do
estudo foram: Como o discurso de ódio está relacionado à legitimação da vio-
lência policial no Brasil? Quais os conteúdos mais presentes nesses discursos?
Quais são os fatores influenciadores na intensificação do discurso de ódio? Quais
fenômenos psicológicos podem estar envolvidos nesse processo de disseminação
do discurso de ódio relacionado a letalidade policial?

Discurso de ódio nas redes sociais


As mídias sociais como o Twitter, Instagram e Facebook, por exemplo,
conectam bilhões de pessoas no mundo e permitem que elas compartilhem
instantaneamente ideias e opiniões. Em tais ambientes as pessoas se sentem
quase anônimas e seguras para se expressarem sobre diversos temas e grupos so-
ciais. Tal fenômeno tem sido referido pela literatura como “efeito de desinibição
online”. Nele as pessoas experimentam anonimato dissociativo, invisibilidade,

20
https://www.statista.com/statistics/242606/number-of-active-twitter-users-in-selected-countries/.
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 427

assincronicidade, imaginação dissociativa e minimização da autoridade. A desi-


nibição pode funcionar em duas direções aparentemente opostas. Na desinibição
benigna, são compartilhadas informações pessoais, emoções, medos e desejos,
geralmente em um contexto de gentileza e generosidade em relação aos outros.
Na desinibição tóxica, aparecem a linguagem grosseira, as críticas ásperas, a
raiva, o ódio e as ameaças (Suler, 2004).
A desinibição tóxica é responsável por algumas das consequências mais
nocivas das redes sociais, a exemplo do assédio online, da trolagem, do cyber-
bullying e dos discursos de ódio (Mathew, Dutt, Goyal, & Mukherjee, 2019).
O discurso de ódio pode ser definido como o conjunto de palavras usadas para
insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade,
nacionalidade, sexo ou religião ou que tem capacidade de instigar a violência,
ódio ou discriminação contra elas (Brugger, 2007). O Twitter define discurso
de ódio como qualquer conteúdo que "promova a violência contra outras pessoas
com base em raça, etnia, nacionalidade, orientação sexual, gênero, identidade
de gênero, afiliação religiosa, idade, deficiência ou doença grave”.21
Associado à sensação de anonimato das redes virtuais, o discurso de ódio
nas mídias sociais é reconhecidamente um dos mais perniciosos problemas da
atualidade (Williams, Eccles-Williams, & Piasecka, 2019). As pesquisas têm
demonstrado que as postagens contendo discursos de ódio se espalham mais
rápida e amplamente, pois seus autores estão mais densamente conectados uns
com outros (ElSherief, Kulkarni, Nguyen, Wang, & Belding, 2018; Mathew
et al., 2019). Além disso, os discursos de ódio se correlacionam fortemente com
crimes de ódio e outras violências sociais (Hanes & Machin, 2014; Williams &
Burnap, 2016; Williams, Burnap, Javed, Liu & Ozalp, 2019). Tudo isso faz com
que haja muitos esforços para detectar e eliminar discursos de ódio, sobretudo
nas suas manifestações mais específicas de racismo (Chaudhry, 2015; Gitari,
Zuping, Damien, & Long, 2015; Mondal et al., 2017).
Nos espaços virtuais, o discurso de ódio pode prejudicar as vítimas direta
ou indiretamente. No sentido direto, as vítimas são imediatamente atingidas
pela mensagem, em um discurso de ódio indireto, o dano pode ser perpetrado
por outros usuários que se identificam com a e mensagem do ator original. É
um tipo de conteúdo que instiga a repercussão nas redes, pois há um ganho para
quem incita ódio em redes sociais, e este ganho é a visibilidade, popularidade,

21
https://help.twitter.com/pt/rules-and-policies/hateful-conduct-policy (2022).
428 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

reputação e influência, tais fatores estão ligados às questões de pertencimento


ao grupo ou afirmação de identidade (Santos, 2016). Entre as principais con-
sequências desses discursos, encontramos danos a grupos sociais, criando um
ambiente de preconceito e intolerância, fomentando discriminação e hostilidade,
com uso de termos pejorativos, vulgaridade e sarcasmo (Papacharissi, 2004);
desenvolvendo ainda um ambiente de incivilidade, que inclui comportamen-
tos que ameaçam a democracia, negam às pessoas suas liberdades pessoais e
endossam estereótipos de grupos sociais (Calderón, Vega, & Herrero, 2020).
Os discursos de ódio têm crescido em todo o mundo. Dados de 8 milhões
de postagens, coletados em 2016, indicam que a maior parte dos países apresenta
uma proporção de discursos de ódio na internet que varia de 8% a 12% das pos-
tagens totais nas redes sociais. O Brasil apresentava uma média próxima de 10%,
inserindo-se na média mundial. O mesmo estudo indicou que o conteúdo das
postagens de ódios do Brasil é semelhante ao da Espanha e dos outros países da
América do Sul (Hine et al., 2016). No Brasil, com avanço do conservadorismo
moral na política, a partir de 2018, há uma intensificação desse cenário. Com a
eleição presidencial de Jair Bolsonaro, ganha força dentro do imaginário social
a narrativa maniqueísta entre o “cidadão de bem” e o “marginal”, uma forma de
justificar a proteção dos primeiros seria a violência policial desmedida e direcio-
nada contra aqueles que não são vistos como cidadãos, incitando a difusão de
discursos de ódio contra minorias sociais e defesa da letalidade policial (Cioccari
& Persichetti, 2018; Silva, Francisco, & Sampaio, 2021).

Violência policial e discurso de ódio


Em 2019, o Brasil oficialmente registrou 12,334 crimes de ódio, um au-
mento de quase 2% em relação ao ano anterior. A maioria desses crimes foram
motivados por questões raciais (72,8%), contra a comunidade LGBTI+ (14%) e
feminicídios (11%). Da mesma forma, os registros de queixas sobre ofensas ra-
ciais pularam de 5,096 em 2018 para 9,195 em 2019. Em relação aos homicídios
de mulheres motivados por sexismo (feminicídios), que em 2018 foram 2,211,
em 2019 eles vitimaram 7,719 mulheres. Da mesma forma, os crimes por into-
lerância religiosa também aumentam em 2019 (Words Heal the World, 2021).
Uma parte significativa desses crimes foram cometidos pelas forças poli-
ciais. Dados do relatório global da Anistia Internacional (2015/2016) apontam
que no Brasil houve um aumento no número de homicídios cometidos por po-
liciais a partir de 2016. Em 2020, o país atingiu o maior número de mortes em
decorrência de intervenções policiais em sete anos, um crescimento de 190%.
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 429

Com 6.416 vítimas fatais, as intervenções das policiais produziram em média


17,6 mortes por dia, correspondendo a 12,8% de todas as mortes violentas inten-
cionais no país. O perfil das vítimas é bem definido, são homens (98,4), negros
(78,9%) e jovens de 0 a 29 anos (76%) (Anuário de Segurança Pública, 2021).
O aumento dos crimes cometidos pela polícia no Brasil pode ter uma
relação direta com o avanço do conservadorismo na política. Löwy (2015) pro-
põe que, diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, a extrema-direita
conservadora do Brasil se vincula ao militarismo, tendo em seus discursos um
apelo constante à intervenção militar e o fechamento das instituições demo-
cráticas para instaurar uma ditadura. De fato, no plano político o Presidente da
República Jair Bolsonaro tem estimulado a ampliação de padrões operacionais
das policiais pautados no confronto e na violência (e.g. ampliação da excludente
de ilicitude e valorização das operações com resultado letal). Discursos odiosos
de “guerra contra o crime”, de combate aos “bandidos” ou de “cancelamento de
CPFs” encorajam ações que intensificam a violência institucional e apoiam a
violação de direitos por parte das polícias (Macedo & Sinhoretto, 2019).
Na medida que as mídias sociais virtuais atuam como “câmaras de eco”,
essas redes se tornam um ambiente privilegiado para disseminação da ideo-
logia conservadora-reacionária e dos discursos de ódio, com destaque para as
páginas ligadas à polícia, instituição emblemática do conservadorismo. Um
estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020)22, que
mapeou atividades de 879 profissionais de Segurança, constatou que os 41%
dos perfis de policiais militares interagem em ambientes de apoio ao presidente
da república, sendo os comentários LGBTQ fóbicos os mais frequentes (24%).
O estudo demonstrou ainda a presença de grupos no Facebook formados por
fãs/admiradores da polícia, a maior parte devotados à Polícia Militar (54%),
com postagens e comentários favoráveis a ações policiais mais violentas, espa-
ços onde as medidas preventivas à violência policial foram interpretadas como
cerceamento do trabalho policial em benefício dos criminosos.
A propagação desses discursos de ódio nas redes sociais tem papel fun-
damental na formação de conflitos sociais e reprodução de uma cultura de
intolerância contra determinados grupos. Estudos demonstram que crimes de
ódio off-line e discurso de ódio online estão fortemente correlacionados com

22
https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/politica-e-fe-entre-os-policiais-militares-civis-e-
-federais-do-brasil/.
430 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

eventos significativos, como ataques terroristas, decisões eleitorais (voto), pro-


cessos judiciais e crimes direcionados contra negros e mulçumanos (Hanes &
Machin, 2014; Williams & Burnap, 2016; Williams et al., 2019), assim como a
influência de representantes de direita nos crimes de ódio off-line, comprovando
que postagens anti-refugiados previram crimes de ódio tanto nos EUA quanto
na Alemanha (Müller & Shwarz, 2018a, 2018b).
No Brasil, estudos têm demonstrado a importância das mídias digitais para a
veiculação do discurso populista e de ódio que acompanha as expressões da violência
policial e disseminação de seus alvos. Análises realizadas em páginas do Facebook
e grupos de WhatsApp compostos por fãs/admiradores das corporações policiais
demonstram que o discurso nesses espaços reverbera a referida dicotomização “ci-
dadãos de bem” vs “bandidos”, objetivando a desumanização do grupo tido como
inimigo, no mesmo sentido que construíam uma imagem positiva do próprio grupo,
justificando e exaltando as atitudes de extermínio do “inimigo” (Macedo, 2015;
Cedro, 2018). A construção da suspeição nestes espaços virtuais segue a lógica de
reprodução de estereótipos sobre quem são os “bandidos” no mundo real. As redes
sociais, porém, permitem acrescentar às narrativas elementos como fotos e vídeos,
que, por vezes, ampliam o alcance sobre um evento criminal, contribuindo para
fixar e difundir ainda mais os estereótipos (Macedo & Sinhoretto, 2019).
A disputa discursiva nas redes sociais é constantemente afetada pelo mun-
do fora das redes. Com a adesão por parte da população ao punitivismo e ao
discurso de ódio, a polícia se sente autorizada a utilizar a força extrema em
locais pobres e de maioria negra, pois no imaginário social ali estão os crimes
que devem ser reprimidos e punidos. De acordo com o Anuário de Segurança
Pública (2021), 50 cidades brasileiras concentram 55% das mortes decorrentes
de intervenções policiais. Nessa lista, o estado do Rio de Janeiro se destaca com
15 municípios, cuja letalidade policial corresponde a 25,4% das mortes violentas
intencionais, praticamente o dobro da média nacional. Percentuais tão elevados
indicam um padrão de uso da força abusivo e práticas de extermínio por parte
dos agentes de segurança pública. Em 2021, apesar de ter sido um ano marcado
pela pandemia e pela reduzida circulação de pessoas, as ações policiais de alta
letalidade no Rio de Janeiro cresceram 67% se comparadas ao mesmo período
de 2020 (Instituto Fogo Cruzado, 2021).
O apoio à violência policial no Brasil, que tem base na generalizada sensação
de insegurança da população e na falta de confiança nas instituições jurídicas,
mostra-se como terreno fértil para a escalada de discursos de ódio e demandas
punitivistas, fazendo que qualquer medida de intensificação da repressão seja
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 431

comemorada, pois há uma percepção de que o sistema penal é conivente com a


criminalidade, apesar dos índices massivos de encarceramento e mortes em in-
tervenções policiais (Khaled Junior, 2018). Um caso emblemático dessa violência
foi a chacina do Jacarezinho, considerada a maior operação letal já realizada pela
polícia do estado do Rio de Janeiro, a qual culminou com a morte de 29 pessoas,
sendo 28 civis. O objetivo da operação era cumprir mandados contra uma rede de
tráfico de drogas. Contudo, testemunhas e registros de vídeo revelam que, além
das ações de execução, caracterizados por tiros na nuca das vítimas à queima-rou-
pa, há também relatos de agressão e tortura dos suspeitos por parte dos policiais23.
A operação policial do Jacarezinho repercutiu fortemente em toda mídia e redes
sociais, demonstrando forte engajamento do público, tanto no sentido de indig-
nação quanto parabenizando os policiais envolvidos nos homicídios.
Entender a formação dos discursos que surgem nas redes sociais se faz
importante, pois essas plataformas se tornaram o principal meio formador de
opinião por grande parte da população. O presente capítulo se propõe a analisar
o discurso de ódio no Twitter relacionado a ação policial no Jacarezinho, usando
para coleta de dados as hashtags com conteúdo odioso e/ou de apoio a violência
da corporação policial.

Método
Os procedimentos metodológicos envolveram uma articulação entre Mi-
neração de Dados e Análise do Conteúdo (AC). Previamente foram selecionadas
hashtags que continham conteúdo de explicito discurso de ódio e/ou endosso a
violência referente a operação policial no Jacarezinho, levando em consideração
associação direta da postagem ao evento e seu período de publicação (4 a 31
de maio/2021). Enquanto marcadores, as hashtags auxiliam na identificação
e organização das manifestações virtuais, pois além de agrupar os conteúdos,
facilitam a pesquisa de informações correlatas dentro das redes sociais (Costa-
-Moura, 2014). Desse modo, para a mineração dos dados foi utilizad o algoritmo
LinearSVC, do Scikit Learn como modelo de aprendizado de máquina, cujo
o treinamento foi feito a partir do conjunto de dados (dataset) hierárquico já
testado anteriormente para discurso de ódio (ver Fortuna et al., 2019). Foram
extraídos, além do conteúdo da postagem, informações como: a quantidade de

23
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/14/jacarezinho-saiba-quem-sao-onde-mor-
reram-e-o-que-dizem-familias-e-policia-sobre-os-27-mortos.ghtml.
432 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

publicações, a frequência das postagens, seus principais bigramas e postagens


com mais engajamentos. Após a coleta, os conteúdos das postagens foram ana-
lisados individualmente pelos pesquisadores a fim de confirmar incitação ao
ódio/violência, ataque aos direitos humanos e processos de discriminatórias de
grupos sociais estigmatizados nas postagens nas publicações.

Resultados e discussões
Inicialmente, a partir da seleção prévia das hashtags, foram coletados 626
tweets que utilizam 20 tipos distintos de marcadores de grande circulação e
foram adotados como critérios de seleção, pois seu conteúdo carregam discurso
de ódio de modo inerente, tais como: #faxinadojacarezinho, #bandidobome-
bandidomorto, #Direitodosmanos, #PauNeles, #CPFCancelado, #25FoiPouco
e #facanacaveira. Também foram coletados tweets com associação direta com a
operação, coletados a partir das hashtags de menções as forças policias e que em
seu conteúdo continham expressões de ódio e/ou incentivo a violência.
Ao observarmos a evolução do uso dos marcadores que continham dis-
cursos de ódio durante o período de coleta de dados, é possível perceber que o
endosso a violência da operação policial no Jacarezinho se manteve circulando
na rede durante extenso período do mês de maio, tendo os dias de 9 a 17 de
maio de 2021 o intervalo de tempo com maior número de postagens. Houve
ainda uma tendência de aumento no final do mês por conta de debate sobre
investigações sobre a operação a pedido de instituições jurídicas24 (ver Gráfico 8).

Gráfico 8. Evolução das postagens com hashtags de ódio sobre a operação no Jacarezinho

180
160
Quantidade de postagens

140
120
100
80
60
40
20

2021-05-01 2021-05-05 2021-05-09 2021-05-13 2021-05-17 2021-05-21 2021-05-25 2021-05-29


Tempo

24
https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/mpf-outras-10-entidades-pedem-investigacao-indepen-
dente-chacina.
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 433

Analisando as manifestações expressas no Twitter em torno das hashtags


de apoio a ação policial violenta no Jacarezinho, pôde-se perceber que os bi-
gramas (pares de palavras) mais frequentemente utilizadas nas comunicações
continham explícito incentivo à prática de violência aos mortos na operação e
parabenizações para os agentes envolvidos na chacina, foram eles: bom bandido;
bandido morto; foi purificado; Parabéns a; direitos humanos e CPF cancelado.
A partir da nuvem de palavras é possível perceber quais termos mais foram uti-
lizados em associação as hashtags, tendo destaque os termos: bandido, policia,
jacarezinho, faxina, globolixo e chacina (ver Figura 13).

Figura 13. Nuvem de palavras com os termos mais utilizados a partir das hashtags

Exceptuando-se a expressão “direitos humanos”, tanto os pares de palavras


quanto a nuvem de palavras remetem a léxicos que defendem abertamente violência
policial, legitimação da violação de direitos civis e o extermínio de comunidades.
Os atos de abuso, tortura e transgressão policial cometidos durante a operação
foram comemorados e estimulados como a única forma de fazer justiça. Apesar
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) tratar-se de um marco
histórico civilizacional, inserindo valores essenciais como a tolerância, liberdade
de pensamento e respeito da dignidade humana na constituição de vários países, os
resultados encontrados demonstram uma visão distorcida sobre o termo “direitos
humanos”, que é utilizado com ironia como defesa de “bandido”. Compreensão que
tem relação com o período de ditadura militar que trazia a argumentação que os
direitos humanos protegiam criminosos. Falar sobre direitos humanos, em alguns
ambientes, parece significar proteger “marginais” e bandidos, lógica muito difun-
dida, nos últimos anos, na sociedade brasileira (Souza, 2013; Khaled Junior, 2018).
434 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Os termos em destaque indicam que as ações violentas cometidas pelas


forças policiais possuem respaldo de parte da população que compartilha uma
sensação generalizada de falta de segurança, adotando discursos reacionários
nos quais reforçam a ideia que o extermínio daqueles que ameaçam “o corpo
social” é a melhor solução penal possível para a situação; dando “passe livre”
para os agentes de segurança utilizarem práticas extrajudiciais de tortura e
extermínio para trazer mais segurança à população. De fato, ao observarmos
a pesquisa produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2016),
é possível perceber esse sentimento compartilhado, pois 57% da população
brasileira concorda com a expressão “bandido bom é bandido morto”, assim
como 76% dos brasileiros têm medo de morrer assassinados. Este contexto de
“matar ou morrer” se caracteriza um terreno fértil à propagação de discursos
de ódio e demandas punitivistas, reforçando discursos de “guerra contra as
drogas” e “combate aos bandidos”, que encorajam ações que intensificam a
violência institucional e apoiam a violação de direitos por parte das polícias,
principalmente contra comunidades que no imaginário social têm forte asso-
ciação com a criminalidade.
Como forma de ampliar a compreensão do modo como os conteúdos
de ódio repercutiram no Twitter a partir das hashtags selecionadas, a partir
do dataset foram analisadas as 180 publicações com o maior engajamento na
rede social; considerando indicadores de interações com a postagem como os
comentários, reações, “curtidas” e compartilhamentos da publicação. Desse
modo, os conteúdos das publicações cujo teor da mensagem foi interpretado
como discurso de ódio, incitação à violência e/ou discriminação, foram defi-
nidos quatro recortes de análises cujas características da publicação ajudam
a definir e caracterizar os comportamentos violentos que surgiram após a
cachina como forma de justificar, estimular e direcionar o discurso de ódio
a determinados grupos sociais. Importante referir que, por conta de suas
intenções próximas e interseções de significado, estes recortes não podem
ser analisados como categorias fechadas, rígidas e isoladas. São eles: Grupos
políticos, apoio às práticas policiais, elementos de desumanização e estímulo
à violência.
Na medida que o discurso do ódio é um exemplo de conflito que se
redefine e que se intensifica na convivência de grupos, no conteúdo coletado
é possível identificar processos de categorização de pessoas na justificação
do uso da violência, delimitando quais os indivíduos que devem ser valori-
zados e aqueles “dispensáveis”, os de “CPF cancelados”. Importante ressaltar
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 435

que a hashtag #CPFcancelado é uma das expressões usadas por policiais e


grupos de extermínio em referência a alguém que foi assassinado durante as
operações (Souza, 2013). Dentro dos discursos de ódio analisados, os com
conteúdo político contêm elementos narrativos que deixam nítida a defe-
sa da postura de violência como prática assertiva frente a “criminalidade”,
colocando grupos de esquerda como cúmplices ou defensores de marginais
da sociedade. A construção de uma oposição entre direita x esquerda nesse
contexto demarca quais indivíduos podem ser eliminados, aqueles cuja morte
precisa ser comemorada.
A histeria dos esquerdistas com a morte dos 25 vagabundos no RJ é que eles perderam
25 eleitores. Parabéns PMRJ #CPFCancelado

Hoje, 25 eleitores do PT tiveram seu CPF CANCELADO!! #CPFCancelado

Correção: Morreu 1 pessoa os outros 24 eram bandidos eleitores do Psol, então não faram
falta #CPFCancelado

Parabéns um tapa na cara da Esquerda e da Midia Canhota Canalha, sobre o Fato do


Rio #tudobandido #FaxinaDoJacarezinho
Lixo de emissora. Vcs, a esquerda e o “ direito dos manos” queriam que fossem 25 policiais
mortos. Mas graças a Deus são 25 bandidos, traficantes que foram tarde para o colo do
capeta. #GloboLixo #FaxinaDoJacarezinho #Jacarezinho

O cenário político do país propícia o antagonismo entre os espetros polí-


ticos, pois a polarização política e a guerra de narrativas entre representantes da
esquerda e da direita têm fomentado conteúdos de ódio dentro e fora das mídias
sociais (Mercuri & Lima-Lopes, 2020). Este tipo de conteúdo foi bastante
recorrente na amostra; de modo que as duas publicações que mais engajaram
contendo as hashtags odiosas foram postadas por representantes políticos da
direita, aliados com o Presidente Jair Bolsonaro. No primeiro caso, o Deputado
Estadual de Minas Gerais Bruno Engler, político com mais de 102 mil segui-
dores postou “A Assembleia de Minas não pode ser palco de homenagens a traficantes.
#FaxinaDoJacarezinho”; além do texto havia um vídeo no qual a Deputada da
oposição Andreia de Jesus (Psol) prestava uma homenagem às vítimas da ope-
ração, sendo seguido do próprio deputado contestando a fala anterior afirmando
que “... ‘ jovens’ é a palavra que ela usou, todo mundo sabe que se trata de bandidos,
vagabundos e marginais...”, complementando que havia aprovado uma moção
436 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

de aplauso aos policiais envolvidos25. A postagem obteve 24 comentários, 949


curtidas e 200 retweets.
A segunda publicação mais engajada tem uma estrutura muito próxima da
anterior, também faz uso de um posicionamento de um deputado de esquerda
e faz a diferenciação entre jovens e “traficantes”, justificando seu extermínio a
ausência de inocência dos vitimados. O autor da postagem, o Deputado Federal
Otoni de Paula (MDB – RJ), comentou “Freixo chama traficante de juventude.
Graças a Deus dos 24 mortos pela @PCERJ não havia um único inocente, TODOS
eram os que Marcelo Freixo protege. #CPFCancelado”. A publicação teve 125 co-
mentários, 653 curtidas e 157 retweets.
Os conteúdos relacionados à política nesse contexto, além de demonstrar as
ligações ideológicas da letalidade policial com a direita conservadora-reacionária,
exemplificam os mecanismos de formação de grupos no meio virtual, tornando
o ambiente das redes sociais espaços de afirmação de identidade social e política,
na medida que a pertença a determinados grupos é assegurada principalmente a
partir da comparação entre outros grupos internos e externos, determinando dire-
tamente a forma que se percebe, percebe o outro e as relações que são estabelecidas
(Tajfel, 1983). Nesse sentido, as atitudes discriminatórias promovidas nesse espaço
são ao mesmo tempo utilizadas para destacar diferenças e semelhanças grupais,
como também relações de poder, pois nos conteúdos que são compartilhados há
uma reprodução constante de quem pode ser ou não reconhecido como humano
digno. Tais fatores que estão ligados às questões de pertencimento ao grupo ou
afirmação de identidade, demonstram que há ganhos para quem incita ódio em
redes sociais, tais como a visibilidade, popularidade, reputação e influência sobre
aqueles que se identificam com seu conteúdo (Santos, 2016).
Neste estudo, foi possível observar que as interações ofensivas são ba-
seadas em uma visão moralista de mundo e na adesão a determinado espectro
político-ideológico (direita e extrema-direita). O autor do discurso intolerante
afirma diferença para promover autovalorização de sua identidade e utiliza o
ódio como estratégia de ataque, a partir de pautas conservadores que justificam
seus argumentos de proteção moral da família tradicional, dogmas religiosos,
ataque a instituições judiciárias e de comunicação; além de outras bandeiras
ligadas ao conservadorismo, gerando ataques constantes à dignidade de grupos
não dominantes e vulneráveis (Santos, 2016). Como por exemplo:

25
Vídeo: https://twitter.com/search?q=%23faxinadojacarezinho&src=typed_query.
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 437

Para a imprensa brasileira matar bebês no ventre da mãe pode, mas,eliminar 27 vaga-
bundos perigosos que aterrorizava a sociedade não pode! #midiapodre #Brasil #Faxi-
naDoJacarezinho #CPFCancelado

Parabéns parabéns a polícia do Rio de Janeiro; foda-se a opinião dos especialistas


ABORTISTAS jornalistas LIXOS amante do tráfico parceiros de bandidos assassino
e terroristas #CPFcancelado

Mais um #CPFCancelado no #AlertaNacional! É milagre de Deus hoje!

"Incrível como VAGABUNDO quer distorcer o que a bíblia ensina: O SALÁRIO DO


PECADO É A MORTE (Romanos 6:23) #FaxinaDoJacarezinho"

Extrema imprensa e Direitos Humanos estão bravos? Então foi ótimo. Vagabundo e
traficante bom é morto. #CPFCancelado

Este tipo de comunicação pública, baseada em discursos punitivistas sobre


políticas de segurança, indica uma reprodução de uma ideologia onde as práticas
sociais produzem discriminação e violência grupal, principalmente direcionado
às minorias das comunidades onde tais operações acontecem. Dessa forma, os
grupos que se identificam com o discurso de ódio desenvolvem um vocabulário
comum, integrando suas ideias e mobilizando apoio nas redes. Nesse sentido, a
partir da identificação política há a criação e incentivo para uso de mensagens
específicas por atores relevantes nas redes para influenciar a opinião pública e
degradar grupos oprimidos e discriminados.
A esquerda que gosta de bandidos estão levantado uma tag que culpa a polícia civil do
RJ ter cometido uma matança. Bora conservadores: #CPFCancelado

Bora subir #CPFCancelado

Bora lá! #faxinanojacarezinho

Subindo #FaxinaDoJacarezinho Viva a Polícia Cívil

Outro elemento predominante na análise dos discursos de ódio foi o apoio


as práticas de extermínio em operações policiais. A relação entre as redes sociais
e as ações policiais tem-se aprofundando nos últimos anos. Com a eleição do
438 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Presidente Jair Bolsonaro, juntamente com a ascensão da direita conservadora e


do militarismo, as entidades policiais têm-se tornado mais familiarizadas com
o público digital (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021). Especifica-
mente, na operação do Jacarezinho houve grande movimentação virtual por
parte dos apoiadores do presidente. Um levantamento da Diretoria de Análise
de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV, 2021) apontou
que, entre os dias 5 e 12 de maio, 57,5% das interações sobre segurança pública
analisadas no Twitter foram realizadas por políticos de direita, jornalistas e
blogueiros conservadores. Endossando esses dados, as publicações analisadas
exaltam o modo que foi realizada a operação policial e parabeniza os agentes
pelo “bom trabalho”.
Parabéns pela ação policial. Bandido bom é bandido morto. #FaxinaDoJacarezinho

Parabéns polícia do rio de janeiro. #CPFCancelado com sucesso.

A polícia bate recorde no Jacarezinho e não merecem um Nobel ou uma festa?


#faxinanojacarezinho

Não entendi. Eu pago imposto pra @defensoria_rj tá preocupada com bandidos?? É


muita marmita de bandido pra pouco cidadão de bem. Parabéns à Polícia Civil!!

Usaram bem o suado dinheiro dos contribuintes. #FaxinaDoJacarezinho #tudobandido

Parabéns Presidente é Parabéns a Polícia infelizmente um policial morreu mais a lim-


peza feita deixou a sociedade mais tranquila. #cpfcancelado

Estudos, como o realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública


(2021), demonstram que as práticas de violência extrajudicial e de extermínio em
determinadas localidades encontram incentivo e legitimação em alguns grupos
virtuais, assim como as próprias policiais demonstram força nas redes sociais. A
polícia militar é a que mais tem participação em redes sociais, com 25% de seus
soldados e cabos interagindo em ambientes bolsonaristas radicalizados, que têm
como uma das marcas os discursos de discriminação a minorias (principalmente
LGBQTA+), além do apelo constante à intervenção militar e o fechamento das
instituições democráticas.
O próprio Presidente da República tem estimulado a ampliação de padrões
operacionais das policiais pautados no confronto e na violência (e.g. ampliação
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 439

da excludente de ilicitude e valorização das operações com resultado letal).


Esta relação e atmosfera de violência e ataque a outras instituições não-poli-
ciais (e.g. Supremo Tribunal Federal e imprensa), surgem nos resultados como
a reprodução constante de discursos inflamados de “guerra contra o crime”,
de “combate à vagabundagem”, aos “bandidos” e de “cancelamento de CPFs”,
retóricas que encorajam ações que intensificam a violência institucional com
o objetivo de exterminar o “inimigo”, apoiando práticas que violam o direito
fundamental à vida.
Parabéns as polícias do Estado do Rio de Janeiro que mesmo com a ação do #STFVergo-
nhaNacional. Consegue fazer um trabalho em favor da sociedade civil. #CPFCancelado

Parabéns parabéns a polícia do Rio de Janeiro; foda-se a opinião dos especialistas


ABORTISTAM d jornalistas LIXOS amante do tráfico parceiros de bandidos assas-
sino e terroristas #CPFcancelado"

Parabéns Presidente é Parabéns a Polícia infelizmente um policial morreu mais a lim-


peza feita deixou a sociedade mais tranquila. #cpfcancelado #elesim

Parabéns a polícia do RJ por mandar pro inferno 24 emissários do capeta. A imprensa


mais um vez mostrou de que lado está. Meus sinceros sentimentos a família e amigos
do herói morto por esses bandidos.

Por sua característica de “câmaras de eco”, as redes sociais se tornam um


ambiente privilegiado para essa disseminação de ideologias conservadora-rea-
cionária e dos discursos de ódio. Com destaque os conteúdos ligados as forças
policiais, alimentam uma atmosfera virtual que, mais que defender a ação da
polícia, justificam e banalizam condutas punitivistas que são reproduzidas pe-
los agentes de segurança pública baseados em estereótipos sociais. Da mesma
forma que, no período colonial, o negro era tido como indolente, não-civilizado
e violento, e essa representação reforçou e justificou a prática da tortura e da
escravização, a ideologia por trás de máximas como “bandido bom é bandido
morto” servem para acentuar preconceito contra aqueles que estão em situação
de suspeição, vistos como um risco para a sociedade e por isso logo não devem
ser tratados com dignidade, dessa forma servindo de argumento para que se
tolere a prática de execuções sumarias em comunidades pobres.
Quando nos propomos a identificar quais os alvos preferenciais da polícia,
percebemos como o estereótipo influencia sobremaneira as práticas e escolhas
440 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

nas condutas policiais. Um levantamento produzido pela Rede de Observatórios


da Segurança (2021), intitulado “Pele-alvo: a cor da violência policial”, avaliou
os dados de sete estados brasileiros durante o ano de 2020, demonstrando que
o Rio de Janeiro foi estado que mais produziu mortes em ações e intervenções
das polícias, sendo 86% dos mortos em ação policial negros, número que au-
menta para 90% quando falamos apenas da capital fluminense. Essa interseção
de desigualdades é intrinsecamente inter-relacionada a sujeição a violência e
deve ser interpretada como um conjunto de características que definem quem
é suspeito no Brasil.
Com uma relação tão próxima entre o indivíduo negro e situações de vio-
lência, perpetuam-se estereótipos relacionados a marginalidade, crime e agressi-
vidade. Estudos dentro da Psicologia Social, investigando fenômenos no âmbito
dos processos automáticos ou não controlados de estereotipia e de preconceito,
demonstram que há um associação cognitiva automática entre as categorias
sociais “negros” e “criminoso”, levando negros a serem mais negativamente
avaliados (Devine, 1989; Devine & Sharp, 2009), interpretados mais frequen-
temente como possíveis criminosos (Eberhardt, Goff, Purdie & Davies, 2004),
sendo que quanto mais características estereotipas de negro o indivíduo tiver,
como mais criminoso ele será percebido (Eberhardt, Davies, Purdie-Vaughns e
Johnson, 2006), assim como o risco de ser alvejado por agentes policiais (Lima,
Araújo, & Poderoso, 2018), mais apenados nas sentenças de juízes (Blair, Judd
& Fallman, 2004; Blair, Judd, & Chapleau, 2004; Silva & Lima, 2016) e com
uma maior a probabilidade serem condenados à morte (Eberhardt et al., 2006).
Nesse sentido, com a adesão popular ao punitivismo, a construção da
suspeição dentro das comunidades pobres segue a lógica de reprodução de este-
reótipos sobre quem são os indivíduos a serem exterminados. Com a importância
das mídias digitais para veiculação de discursos populistas-reacionários e de
ódio que acompanham as expressões da violência policial no país, os dados deste
estudo demonstram que o discurso nesses espaços é permeado pela reprodução
da oposição dos grupos de “cidadãos de bem” e “bandidos”, objetivando a de-
sumanização do grupo tido como inimigo, ou uma ameaça para a meio social,
no mesmo sentido que é construído uma imagem positiva do próprio grupo,
justificando e exaltando as atitudes temerosas frente ao “inimigo”.
Considerando a desumanização como um fenômeno social baseado em
estereótipos e representações sociais da alteridade que atribuem características
extremamente negativas a um grupo, ela tem como finalidade excluir este grupo
dos humanos aceitáveis. A desumanização é uma importante pré-condição para
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 441

o extermínio intergrupal, por se tratar de um fenômeno precursor da exclusão


moral, ou seja, processo pelo qual grupos estigmatizados são colocados fora da
fronteira na qual valores morais, regras e considerações de justiça se aplicam.
Dessa forma, a pessoa ou grupo excluído (visto sempre como o outro) é percebido
como uma praga ou ameaça, justificando ataques que podem assumir formas
extremas como tortura e morte (Opotow, 1990; Haslam, 2006; Haslam, 2021).
Em nosso corpus de dados muitas das publicações tinham como um dos
principais elementos a desumanização do “grupo inimigo”, associando o con-
teúdo dos discursos a uma série de opiniões e preferências políticas punitivas e
justificadoras da truculência policial; assim como desejo de extermínio desses
indivíduos, ao mesmo passo que constroem e reforçam uma imagem positi-
va e de superioridade para seu próprio grupo de pertença. Demonstrando a
percepção sobre o policial com um “super-herói” que desenvolve um modo de
conduta própria, pois não mais acreditando nas instituições de justiça, se veem
em constante guerra com os denominados agressores da sociedade.
quem escapou teve sorte, tinha q morrer junto, cambada de vagabundo!!! #faxinano-
jacarezinho #bandidos #mizeraveis

"#domingoespetacular não confundir faxina com chacina. Morreu 1 trabalhador, o po-


licial. 1 perda, apenas 1. #FAXINA #FaxinaDoJacarezinho"

"#CPFCancelado Parabéns POLICIAIS . OBRIGADO POR LIVRAR O PAIS


DESSA CORJA "

#FaxinaDoJacarezinho Parabéns aos policiais que arriscaram suas próprias vidas para
acabar com esses párias da sociedade!!

27 CPF cancelados com sucesso e direto para o inferno.. Lamentável apenas a morte
do policial herói, o resto foram tarde. #ParabenspoliciacivilRJ #FaxinaDoJacarezinho

O discurso do ódio, neste sentido, reproduz uma ideologia desumanizante


de diferença e anulação do outro. Após chacinas policiais como a do Jacarezi-
nho, os usuários do Twitter que compartilham discursos de ódio utilizam mal
elaboradas e falhas justificativas morais para apoiar sua afirmação de que estão
erradicando um mal e protegendo os “cidadãos de bem”, ou seja, aqueles que
merecem respeito e dignidade humana. Construindo a imagem das vítimas
dessas operações como indivíduos dispensáveis e indignos, não-humanos. Os
442 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

processos ligados à desumanização não surgiriam sem apoio institucional, ou


seja, precisam ser endossados por instituições políticas ou por códigos legais
e/ou morais (Bar-Tal, 1989). Dessa forma, os discursos de ódio associados a
violência policial, além de terem eco nas das próprias forças policiais, reforçam
circunstâncias sociais adversas criando as condições necessárias para que as
pessoas comuns inferiorizem, desumanizem e ajam com incrível crueldade em
relação aos outros, apoiando as forças do Estado em explícitas violações dos
direitos humanos.
Grupos em conflito geralmente precisam da desumanização do outro para
explicar as causas do próprio conflito, assim como naturalizar os processos
de exclusão e extermínio direcionados à outra parte, isso serve para manter
o círculo vicioso subjacente à perpetuação do conflito, implicam que o grupo
deslegitimado merece tratamentos extremos, para além da justiça de “humanos
dignos” (Bar-Tal, 1989; Opotow, 1990). A interpretação do que é justo ou injusto
depende, em larga medida, das repercussões na ordem social predominante. Da
mesma forma, as normas culturais compartilhadas moldam nossos julgamentos
sobre quais categorias de seres têm direito a considerações de justiça (Lerner
& Miller, 1978). Dentro de um ambiente no qual há percepção de insegurança
generalizada, ausência de sistema penal eficaz e o estímulo à noção de guerra ao
crime ou as drogas, as sensações de perigo e conflito reforçam os limites grupais,
por um lado, aumentando a coesão/identidade dentro dos grupos que destilam
ódio e diminuindo a preocupação com o bem-estar do grupo estigmatizado.
Os dados apresentados demonstraram que era flagrante a desumanização
dos indivíduos vítimas do massacre. Foram encontradas construções narrativas
de “animalização”, que envolve categorizar um grupo como desumano usando
categorias de criaturas subumanas, como raça inferior e animais ou usando ca-
tegorias de criaturas sobre-humanas avaliadas negativamente, como demônios e
monstros. Tais formas de representação da alteridade instigam nos interlocutores
emoções de nojo, repulsa e desprezo pelos grupos-alvos (Haslam, 2006; Leyens
et al., 2003), deslegitimando-os para justificar atitudes negativas e ações de
matança e destruição (Bar-Tal, 1989).
Parabéns a polícia do RJ por mandar pro inferno 24 emissários do capeta. A imprensa
mais uma vez mostrou de que lado está. Meus sinceros sentimentos a família e amigos
do herói morto por esses bandidos

Tinham que ter sido todos os 27 enterrados juntos, todos de cabeça para baixo...
#BandidoBomEBandidoMorto
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 443

Parece que não foram 25 "pessoas" que morreram, né @tvglobo? #CPFCancelado

Salvar aquele que no futuro poderá te matar, só mesmo sendo hipócrita e imbecil para
tomar essa decisão. Se tiver um cachorro e um bandido precisando de ajuda para não
morrer, é óbvio que salvarei o cachorro. #BandidoBomÉBandidoMorto

As pessoas são frequentemente chamadas de “animais” ou têm retiradas as


características de pessoa, não apenas quando violam as normas sociais de maneira
explicita, mas também quando agem de maneiras que são vistas como ameaçadoras
à ordem moral de uma sociedade (Haslam, Loughnan, & Sun, 2011). O uso de
construções narrativas desumanizantes como as citados, explicita que o grupo tido
como inimigo não merece tratamento humano. Quando os discursos se propõem
a estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), se faz
referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo
pelo qual deixam de ser considerados pessoas (Bar-Tal, 1989).
Desta maneira, com o indivíduo desumanizado e desprovido de direitos
inerentemente humanos, dentro das redes sociais além de ser destituído de
sua humanidade, é alvo de um intenso desejo de vingança ou revanche que se
converte a um direito de aplicação de castigo. Nas postagens odiosas abaixo
aparece o incentivo a condutas violentas e práticas de extermínio no trabalho
policial como único modo de alcançar a justiça, diferenciando que tipo de justiça
deve ser.
Bandido bom é bandido morto! Se matar vários bandidos se chama Chacina então
queremos muitas chacina igual a essa. #CPFcancelado

#FaxinaDoJacarezinho bora cancelar mais cpfs hj?

Alguém sabe dizer quando vai ter operação novamente? Quero comprar mais fogos!

Alô @PMERJ Bora aumentar o número de #CPFCancelado 24 tá muito baixo! Tem


que dobrar a meta. Tudo vagabundo morto.

Toda semana 25, fica uma boa limpeza. #BandidoBomEBandidoMorto

Será que não conseguimos dobrar a meta! #bandidobomebandidomorto

Justiça só se pede para gente inocente ... #FaxinaDoJacarezinho


444 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

Esse BOSTA chama BANDIDOS de vítimas! Pena que não foram 250! #CPFCancelado

Queremos mais!!#FaxinaDoJacarezinho

A “sede de sangue” representada nas postagens, informa aos seus segui-


dores um desejo intenso por justiça, com formas de punição que vão além das
condutas legais ou mesmo dos direitos humanos. Uma perspectiva de justiça
que a princípio pode ser vista como um paradoxo (obter justiça através de um
crime). Trata-se de uma forma de equiparação das escolhas que os indivíduos
tomaram em suas vidas às condutas que os agentes de segurança pública têm
com eles, trazendo a responsabilidade de sua morte as próprias vítimas.
ô maluca, foram bandidos q morreram em confronto com a polícia. Não foram inocentes,
exceto o policial. O resto eram criminosos q não farão falta à sociedade. #CPFCancelado

Ué, justiça foi feita!! #Jacarezinho #cpfcancelado

A OPERAÇÃO FOI UM SUCESSO! #CPFCancelado #ChacinaNoJacarezinho


quem vive dentro da lei e da ordem agradece. @STF_oficial como espero q sejam des-
pidos das togas! Seus militantes travestidos

O desgraçado do cara entra para o tráfico e a mamãezinha dele chora dizendo que
o filhinho dela tinha apenas 25 aninhos... Viveu foi muito! #FaxinaDoJacarezinho

Justiça só se pede para gente inocente ... #FaxinaDoJacarezinho

Conclusões
Este trabalho teve como objetivo analisar o discurso de ódio no Twitter
relacionado a ação policial no Jacarezinho ocorrida em maio de 2021, ten-
do como marcadores as hashtags contendo discursos de ódio e/ou de apoio
a violência policial. Os resultados demonstraram a utilização de pautas com
discursos odiosos que despertam atitudes hostis nas pessoas que interagem
com tais conteúdos, trazendo demonstrações de endosso a violência e exter-
mínio de grupos minoritários por questões de ideologia e identificação com
grupo. Foi ainda identificado um ideário conservador-reacionário e autoritária
articulado entre si, com o intuito de estimular e naturalizar um ambiente de
incivilidade, utilizando comportamentos característicos de grupo que ameaçam
as instituições democráticas, negando direitos humanos e chancelando imagens
Capítulo 21 – Charles de Souza, Marcus Lima, Luiz Souza, Hendrik Macedo e Thiago Bispo 445

desumanizadoras de grupos minoritários. De fato, as publicações implicavam


uma visão da vítima da chacina como menos que humana; tornando-se legíti-
ma a morte dessas pessoas. Essas formas mais conscientes e as automáticas de
desumanização, que são as bases da discriminação e extermínio intergrupal,
tornam-se ainda mais perigosas por se manifestarem em práticas instituciona-
lizadas de violência pelas forças policiais, com a justificativa de guerra contra o
crime e defesa da sociedade civil.
Dentro do contexto do estudo, a reprodução de estereótipos procura de-
marcar a diferença entre aqueles que têm o direito a viver com dignidade e
aqueles que devem ser exterminados. Ressaltando que todas as publicações se
referiam as vítimas e seu grupo de maneira generalista, as reduzindo a ideia
de “grupo inimigo”, ameaçador das normas e valores básicos, ou mesmo da
existência da própria sociedade e de sua. O discurso torna-se assim mais um
elemento vitimizador das minorias sociais, pois reforçam comportamentos que
ultrapassavam as fronteiras do online e se concretizam em atitudes no mundo
social não virtual (Williams & Burnap, 2016; Williams et al., 2019).
Tais resultados se tornam ainda mais importantes em um contexto em que
as mídias sociais se tornaram um dos principais meios formadores de opinião
pública. Entender a dinâmica das redes ajuda a compreender acontecimentos
sociais relevantes. Além disso, em se tratando de corporações com considerável
nível de autonomia operacional e com chancela legal para matar, como as polícias
brasileiras, compreender quais ideais permeiam o entorno dessas instituições
se torna peça-chave para superarmos o momento institucionalmente crítico do
país, protegendo os grupos mais vulneráveis.
Em estudos futuros é importante ir além dos conteúdos publicados pelos
usuários da rede, utilizando as informações fornecidas pelas plataformas da
mídia que possibilitem a delimitação das características dos grupos envolvidos
nos discursos de ódio. Tal avanço permitirá compreender, de modo mais deta-
lhado, quais os elementos identitários envolvidos em práticas de discriminação,
produção de estereótipos e violência nas redes sociais virtuais.

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Capítulo 22
Endividamento da população brasileira: um panorama
do problema e seus possíveis impactos psicológicos
Ketlle Almeida Batista
Diogo Conque Seco Ferreira

Introdução: situação de endividamento no Brasil


Consumir, firmar compromissos financeiros e não conseguir cumprir por
meio do pagamento tem sido uma questão para a população brasileira. O endi-
vidamento é um conceito que corresponde a utilização de recursos de terceiros
para custear necessidades próprias, portanto, diz do ato de contrair dívidas
(Ferreira, 2006). Caracterizado por suas causas multifatoriais, para compreen-
der o endividamento é necessário que seja feita uma leitura ampla e baseada na
realidade dos sujeitos (Artifon & Piva, 2013).
De acordo com os dados referentes ao mês de abril de 2022, 77,7% das
famílias brasileiras se encontram em estado de endividamento, sendo este o
maior índice nos últimos 12 anos, conforme aponta a Pesquisa de Endivida-
mento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) (Confederação Nacional do
Comércio Bens, Serviços e Turismo [CNC], 2022). Visto que o Brasil é um
país que enfrenta inseguranças econômicas, a situação se intensificou ainda
mais a partir de 2020, atravessado pelos impactos inesperados que a pandemia
causou, elevando a fragilidade econômica e as incertezas políticas (Silva Filho
& Gomes Júnior, 2020).
Caracterizadas anteriormente por satisfazer as necessidades básicas, de
alimento, moradia, saúde e entre outros, as relações de consumo vão se tornan-
do um fenômeno comportamental complexo na atualidade, tendo como uma
das possíveis finalidades a busca por atender ao status social (Assimos, et al.,
2019). Essa tendência a valorizar o consumo e o materialismo é característico do
modelo de sociedade contemporânea, sendo esta composta por uma economia
de cunho capitalista (Artifon & Piva, 2013).
Todavia, para que mais indivíduos pudessem ter condições de consumir
foi necessária uma ampliação nas formas de pagamento, por exemplo, por isso
uma das principais hipóteses é que a disponibilidade de acesso ao crédito per-
mitiu que tal crescimento ocorresse (Ribeiro & Lara, 2016). E com recursos
disponíveis, é possível observar compras “racionais” ou “irracionais”, a primeira
452 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

diz respeito à priorizar os gastos com produtos essenciais e a segunda sobre as


compras precipitadas, ou seja, que não são planejadas anteriormente pelos seus
consumidores (Santos, 2014).
Ter oportunidades de acesso ao crédito auxilia o cotidiano dos cidadãos, diante
de necessidades corriqueiras ou excepcionais, no entanto também pode provocar
uma espécie de consumo automático e inconsequente (Campara; Vieira & Ceret-
ta, 2016). O sujeito encontra facilidade neste momento de troca, entre dinheiro e
produto ou serviço, tal simplicidade contém as suas vantagens e conveniências, o
pagamento através de cartão de crédito e débito ou por aplicativos celulares ou pix,
por exemplo, sem que haja a obrigação do dinheiro físico, está sendo cada vez mais
frequente. Neste sentido, existe uma discussão importante, sobre o quanto as inova-
ções tecnológicas são capazes de afetar o aumento do consumo (Krivosheya, 2020).
No cotidiano, o sujeito estaria a tomar decisões arriscadas ou, pelo menos,
que não se baseiam na sua realidade financeira, podendo acarretar em prejuízos
como o endividamento. Quando está diante de situações que envolvem esco-
lhas, o indivíduo toma decisões a partir do processamento das informações, tal
leitura é direcionada por atalhos ou regras que o sujeito possui com base no seu
conhecimento prévio (Sbicca, 2014).
Este cenário, produtor do consumismo, vai na contramão da segurança
financeira que muitas pessoas pretendem construir, o que tende a provocar o
aumento dos casos de endividamento e, em determinados casos, de inadim-
plência (Santos & Silva, 2014). O endividamento caracteriza-se pelo ato de ter
com acordos financeiros e estar com as parcelas para o vencimento (Macêdo,
2016), enquanto que o processo de inadimplência ocorre pela ausência no cum-
primento de um compromisso financeiro que havia sido determinado entre as
partes envolvidas (Santos, 2015).
Acessar o crédito tornou-se algo essencial e funcional para suavizar as
necessidades de consumo da população. A partir da sua utilização a população
consegue estabelecer negociações, aquisição ou consumo do produto em ques-
tão e a obrigação legal ou moral de cumprir com o pagamento desta dívida no
futuro. Este acordo permite que os sujeitos alcancem desde ter o básico para
a sobrevivência até realizar investimentos na educação, em imóveis, saúde e
outros (Lea, 2020).
É válido assegurar que ter a possibilidade de beneficiar-se com o crédito
e adquirir dívidas não consiste em algo estritamente problemático. Apesar do
viés pejorativo, designado socialmente, o termo se refere às circunstâncias mais
amplas que, por vezes, nem são reconhecidas pelos sujeitos. Além disso, se o
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 453

consumidor adquire dívida e está em condições de manter os seus pagamentos


regularmente, não é uma questão que afete negativamente o seu estado, pelo
contrário, o mesmo está usufruindo das alternativas que possui (Lea, 2020).
Contudo, quando o indivíduo não está em condições de arcar com os cus-
tos que obteve, ao solicitar empréstimos, o indivíduo pode estar mais exposto a
endividar-se e tornar-se inadimplente (Hojman; Miranda & Ruiz-Tagle, 2016).
Ainda mais quando não há conhecimento sobre finanças, o sujeito age de forma
avulsa e motivado por questões externas, tomando decisões que podem acarretar
prejuízos posteriormente (Domingos, 2013).
As possibilidades de acessar o crédito crescem junto ao consumo, porém
a renda e as condições de emprego não acompanham tal crescimento (Lopes
& Siqueira, 2015). Neste sentido, o endividamento trata-se de efeitos causados
por diferentes fatores, em viés social, de renda e econômicos que possuem a
tendência de agir perante o consumo dos indivíduos (Artifon & Piva, 2013).
Apesar de ser um fenômeno complexo, o sujeito indivíduo passa a ser marcado
pelo estigma social negativo de imprudência (Ferreira, 2006).
Adquirir dívida, não cumprir com o pagamento de acordos financeiros não
é um fenômeno simples já que possui origens e causas multifatoriais, por estar
associado a diversos fatores de ordem econômica e social, tais como a exclusão
e o desemprego (Antunes, 2015). As principais causas para o endividamento
familiar no Brasil, de acordo com a Serasa Experian (2018) são inclusive o au-
mento do desemprego, a diminuição da renda média familiar, as compras para
terceiros, a ausência de educação financeira, a falta de controle nos gastos, os
atrasos de salários e enfermidades.
No primeiro trimestre de 2022 os índices de famílias endividadas alcan-
çaram 11,9%, sendo que os mais afetados são o Nordeste no quesito região
(14,9%), no sexo as mulheres e na cor ou raça, os pretos e pardos (Instituto
Brasileiro de Geografia Estatística [IBGE], 2022). Estar vivenciando o desem-
prego, a principal causa de endividamento, é razão para acarretar consequências
diretas para o cotidiano do sujeito. Diante deste cenário precário, as atividades
informais tendem a crescer para a classe trabalhadora como forma compensa-
tória, um “quebra galho”. Apesar desta funcionar na maior parte das vezes na
contramão do acesso aos direitos, onde os sujeitos não são assegurados por não
haver assinatura na carteira de trabalho, é uma opção viável para aqueles que
não possuem outras escolhas (Costa, 2020).
As condições socioeconômicas variam de acordo com múltiplos fatores que
perpassam e afetam o cotidiano dos sujeitos, portanto, desde o início de 2020
454 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

a população mundial vivencia uma situação bastante delicada de pandemia,


devido a disseminação do Covid-19. Além dos inúmeros impactos à saúde dos
brasileiros, conforme os dados apresentados pelo Serasa (2021), em uma escala
de 1 a 5, 64% dos respondentes sinalizaram que a pandemia impactou totalmente
a sua condição financeira, sendo que este resultado aponta um efeito maior entre
as mulheres, jovens (até 30 anos) e nas regiões do Norte e Nordeste.
O cartão de crédito, o varejo e as utilities (contas básicas de água, luz e
gás) são os três principais tipos de dívidas dos brasileiros, elas aparecem tanto no
quesito endividamento quanto nos índices de inadimplência (Serasa, 2021). Deste
modo, faz-se importante explorar quais são as contas que as pessoas utilizam o
cartão de crédito como forma de pagamento, tendo como principal resultado,
com 69%, as compras de alimentos em supermercados, seguido por compras de
produtos (roupas, eletrodomésticos, etc.) com 42% e remédios ou tratamentos
médicos com 41%. Entre as dívidas adquiridas, 70% dos respondentes ressaltaram
a necessidade de optar por pagar uma dívida em detrimento de outra.
A pesquisa mostra que as mulheres tendem a sentir mais o impacto emo-
cional dos problemas financeiros, possuindo crenças menos otimistas frente
às possibilidades de resolução desse tipo de conflito. Os dados apresentados
apontam que este grupo social é afetado negativamente em grande parte dos
itens financeiros. Além disso, a maioria dos entrevistados já vivenciaram o
endividamento, bem como possuem outras pessoas próximas que estiveram
endividadas no último ano (Serasa, 2021).
De acordo com o mapa da inadimplência no Brasil, pesquisa produzida
pelo Serasa, em outubro de 2021, o número de indivíduos inadimplentes chega
a configurar 63,40 milhões de brasileiros, sendo este o maior índice desde julho
de 2020. Em comparação com o ano de 2020, no mesmo período, foi de 61,95
milhões, tendo um aumento de 1,92%. Enquanto isso, as dívidas são de 213
milhões, totalizando o valor total das dívidas em cerca de R$ 253,65 bilhões
de reais, sendo R$ 4.000,60 o valor médio por pessoa e R$ 1.189,00 o valor
médio de cada dívida.
Dentre os estados com maior índice de inadimplência, por pessoa, apre-
sentados pelo Serasa (2021) estão: São Paulo (15,02 mi), Rio de Janeiro (6,30
mi), Minas Gerais (5,99 mi), Bahia (4,03 mi) e Paraná (3,35 mi). Enquanto
isso, os que mais possuem negociação no Serasa para limpar o nome são: São
Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Bahia.
A pandemia provocou efeitos referentes aos pagamentos das contas dos
brasileiros, 34% dos entrevistados relataram que já possuíam dificuldades para
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 455

pagar todas as suas contas antes da pandemia, principalmente as mulheres e


pessoas acima dos 50 anos, 16% tornaram-se responsáveis pelas contas das suas
casas, também sendo as mulheres o perfil mais atingido, os respondentes jovens,
com idade até os 30 anos relataram que acreditam que terão dificuldades para
manter o pagamento das contas (Serasa, 2021).

Repercussões do endividamento na saúde e saúde mental


O período de crise econômica do ano de 2008 foi caracterizado pela pro-
dução de efeitos significativos, tanto na perspectiva macro, quanto micro da
sociedade. Conflitos econômicos, portanto, vão de encontro com sentimentos
de inseguranças, mudanças desfavoráveis e incertezas, estas acometem os ele-
mentos básicos relacionados à sobrevivência, como moradia, alimentação, acesso
à saúde, entre outros.
O estudo produzido por Economou et al. (2013), pontua uma associação
relevante entre o momento de crise econômica e depressão maior. A ausência
destes recursos promove aflições que podem ser eliciadoras de sofrimento físico
e psicológico, por isso a importância de conhecer a condição socioeconômica da
população, por este ser um fator que exerce influência nos problemas de saúde
mental do indivíduo (Jacoby, 2002). Um indício importante foi visto em pesquisas
anteriores, estas apontam que as doenças mentais denominadas como “comuns”
são mais frequentes entre os indivíduos pobres (Patel & Kleinman, 2003).
Conforme apontam as pesquisas, pessoas de baixa renda, e grupos espe-
cíficos são mais afetados e por isso possuem uma maior tendência a estar mais
vulneráveis, expostos a instabilidades e choques inesperados (Kahneman &
Deaton, 2010; Turunen et al., 2014). Já grupos que possuem maior renda e ri-
queza não possuem a preocupação com questões que tendem a afligir indivíduos
de grupos menos favorecidos economicamente (Gallup, 2017).
A preocupação financeira e a ruminação são definidas, respectivamente,
como o pensamento negativo e repetitivo sobre a sua situação financeira, e como
o pensamento negativo e passivo repetitivo acerca das causas e consequências da
preocupação (De Bruijin & Antonides, 2019). E ruminações são um dos fatores
com maior peso no aparecimento de transtornos mentais comuns, como depres-
são (Baptista e cols., 2019). Na Nova Zelândia, por exemplo, pesquisas afirmam
que pessoas com um baixo nível socioeconômico estão mais sujeitas a desenvolver
transtornos mentais, como a depressão e ansiedade (Carter, et al., 2009).
Os estudos sugerem que ao contrair uma dívida, o sujeito pode sentir
efeitos negativos diante do seu bem-estar financeiro, tal piora é decorrente das
456 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

limitações que o endividamento causa nas suas possibilidades de agir frente


às adversidades, comprometendo as suas finanças e o seu consumo cotidiano
(Keese & Schmitz, 2012). Dessa forma, refletir e realizar planejamentos acerca
do endividamento são circunstâncias que se associam ao estresse, à dor e senti-
mentos negativos, principalmente para os grupos de indivíduos pobres, pois a
possibilidade de tornar-se uma dívida crônica é maior do que para os não pobres
(Ong; Theseira & Ng, 2019).
Não possuir renda fixa, estar em situação de desemprego é um dos princi-
pais quesitos prejudiciais à saúde física e mental (Butterworth; Leach; Pirkis &
Kelaher, 2011). O desenvolvimento de transtornos psicológicos, como a depres-
são, estaria, conforme apontam os resultados do estudo, atrelados ao emprego
ou desemprego do sujeito, assim como a rotina de alimentação que está ao seu
alcance, produzindo repercussões nos comportamentos, reduzindo as ações em
prol da qualidade de vida e saúde (Rosenthal et. al., 2012).
O estado de bem-estar financeiro é compreendido como uma percepção do
sujeito sobre o cenário financeiro atual e futuro, tal avaliação é feita sob ponto de
vista subjetivo (Loewenstein, 1996). Estar vivendo uma fase conturbada com relação
ao dinheiro pode significar em uma análise também negativa sobre o futuro, no
entanto, existe a possibilidade de idealizar o amanhã como um momento mais favo-
rável, principalmente se estiver mais distante (Williams; Stein & Galguera, 2014).
Numa pesquisa de levantamento feita pela Serasa (2021) em parceria com a
Opinion Box, divulgou dados acerca do endividamento dos cidadãos brasileiros
em 2021. Os dados sinalizam os seguintes núcleos de informações: os impactos
causados pela pandemia, a importância do auxílio emergencial, o planejamento
financeiro frente ao pagamento das dívidas e os impactos emocionais e finan-
ceiros. A pesquisa teve como objetivo entender os motivos de endividamento e
o comportamento associado.
O sujeito pode ser afetado por impactos emocionais quando a sua condição
financeira possui cunho negativo, por exemplo, estar endividado ou inadimplen-
te. A pesquisa do Serasa (2021) apresentou oito cenários para os respondentes
avaliarem se já aconteceu com ele ou se não aconteceu nenhuma vez. As princi-
pais questões apontaram que cerca de 88% dos entrevistados mencionaram sentir
vergonha por ter dívidas e contas atrasadas, 85% tiveram insônia/dificuldade
para dormir por estar muito preocupado (a) com as dívidas e 84% sentiram que
as dívidas impactaram a vida social.
Considerar que há um bem-estar diante das suas finanças é uma consta-
tação rara, tendo em vista que as pesquisas demonstram resultados de relação
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 457

entre a gestão do dinheiro e estresse, ter dívida e sentir-se ameaçado finan-


ceiramente, afeto este que se conecta com um efeito negativo de saúde mental
(Netemeyer et al., 2018). Em contrapartida, conseguir alcançar o controle
financeiro é um mecanismo capaz de reduzir os impactos desse sentimento de
insegurança (Bialowolski, et al., 2021), pois é a partir do manuseio positivo
das despesas que o sujeito é capaz de organizar-se para lidar face às despesas
que possui (Brunetti et al., 2012).
As pesquisas apontam que dívidas de curto e médio prazo podem não
ser tão prejudiciais, pois permitem que o sujeito reaja com maior agilidade à
eventos inesperados, enquanto que as dívidas de longo prazo e não garantidas
podem atuar como deterioradoras da saúde do sujeito, tendo em vista que são
mais complexas de serem resolvidas (Clayton, M; Liñares-Zegarra & Wilson,
2015). Estas consequências do endividamento podem se atrelar ao desenvol-
vimento e manutenção de comportamentos viciosos não saudáveis, tais como
consumo excessivo de drogas, má alimentação, problemas de interação social,
por exemplo, conflitos familiares, prejuízos na reputação social e tentativas e
execução do suicídio (Kempson, 2002; Gathergood, 2012; Schicks, 2014).
As pesquisas apontam que sujeitos endividados passam a sofrer com as
chamadas tensões financeiras, estas dizem respeito a sensações desagradáveis,
sentir-se envergonhado e fracassado (Turenen & Hiilamo, 2014). Quando o
sujeito encontra-se endividado sua autoestima sofre queda, em contrapartida,
os adoecimentos mentais surgem a partir dos pensamentos negativos, sintomas
de depressão, ansiedade ganham destaque (Bridges & Disney, 2010), aumentam
as tentativas de suicídio (Meltzer et al., 2011; Wang et al., 2012).
Comportamentos prejudiciais à saúde física do sujeito passam a fazer parte
do seu estilo de vida, o consumo de alimentos calóricos em excesso, bebi-
das e fumo (Wardle et al., 2012; Averett e Smith, 2014), a obesidade aparece
com maior frequência (Keese & Schmitz, 2014), as taxas de divórcio crescem
(Dew, 2011), há um aumento nas reclamações de dores nas costas (Turunen &
Hiilamo, 2014). Ao vivenciar situações com tamanho estresse ou devido aos
resultados da procura médica, cerca de um quinto dos pacientes clínicos com
melanoma haviam passado por crises financeiras, como falência ou desemprego
(Havlik; Vukasin & Ariyan, 1992).

Fatores associados ao endividamento


Os indivíduos tomam decisões diariamente, são comportamentos ex-
tremamente frequentes e que fazem parte do cotidiano. Contudo, apesar da
458 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

periodicidade, atitudes que trazem maiores desvantagens são recorrentes, como


por exemplo, comprometer as suas finanças com dívidas. Conforme discutido
nos tópicos anteriores, as atitudes são complexas e exigem uma leitura ampla
para que haja uma compreensão melhor do fenômeno.
Manter a completa racionalidade nas escolhas é um tema necessário para
estudo, as pesquisas desenvolvidas a partir da interseção entre Economia e Psi-
cologia abordam problemáticas neste sentido, compreendendo que os processos
de tomada de decisão não são completamente coesos e lineares. Ao se deparar
com as situações do dia a dia, o indivíduo tende a organizar as informações,
reduzindo e simplificando os aspectos presentes, construindo atalhos mentais
com o intuito de facilitar a leitura do cenário e a decisão. E este processo pode,
em dadas circunstâncias, levar a escolhas subótimas ou de pior qualidade (Kai-
zer; Rodrigues & Ferreira, 2021).
Comportamentos ligados à impulsividade, falta de autocontrole são desta-
cados por aumentar as chances do indivíduo estar mais vulnerável a problemas
financeiros. Não conseguir se organizar conforme o desejado, realizar com-
pras supérfluas utilizando o crédito e não compreender ao certo as nuances do
compromisso financeiro que está sendo firmado e mesmo assim concordar, são
fatores que prejudicam o autocontrole do sujeito (Gathergood, 2012).
Analisar a influência do autocontrole e da alfabetização financeira nos
problemas de superendividamento foi o intuito de um estudo desenvolvido
com a população do Reino Unido, levando em consideração o contexto do país
quanto à expansão nas formas de pagamento em crédito. Conforme apontam
os resultados, há uma relação entre os sujeitos que relatam ter dificuldades de
autocontrole e o hábito de consumir em excesso, principalmente a partir da
utilização do crédito de acesso rápido, que contribui para a compra imediata. Por
não haver um gerenciamento responsável, ao se deparar com situações adversas,
choques inesperados, o indivíduo encontra-se desprotegido (Gathergood, 2012).
Em estudo com a população doméstica da Espanha, os pesquisadores
analisaram os efeitos das variáveis sociodemográficas nos relatos de saúde. Os
grupos de mulheres, jovens e com relacionamentos estáveis, relatam uma taxa
mais elevada quanto ao reconhecimento da sua saúde, em contrapartida de
outros grupos de sujeitos inativos, desempregados e que possuem somente o
ensino fundamental e básico apresentaram resultados de nível mais baixo de
percepção quanto à saúde (Blázquez & Budría, 2015).
Apesar deste dado abordar tais resultados com relação às mulheres, um ou-
tro estudo ao investigar as famílias em que as mães são as principais responsáveis
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 459

financeiramente, verificaram que há uma forte associação entre o estado psi-


cológico ser afetado negativamente e os relatos de estresse e endividamento
financeiro (Bridges; Disney, 2010). Cerca de 72% dos cidadãos americanos
relatam vivenciar situações estressantes por decorrência de questões financeiras.
Portanto, lidar com a administração e controle das finanças, do dinheiro, tem
sido percebido empiricamente como um fator de tensão financeira (American
Psychological Association [APA], 2015).
Além disso, o aumento nos índices de endividamento é atravessado pelas
ondas de consumismo que estão presentes na sociedade atual. As estratégias
que promovem certa facilidade na compra reforçam a valorização do consumo,
reduzindo os impactos
Em pesquisa realizada por Greenberg e Mogliner (2021) com cidadãos
estadunidenses, foi destacado a importância de verificar como o indivíduo per-
cebe a sua situação de endividamento, pois verificou-se uma diferença entre os
tipos de dívida. Desta forma, o indivíduo percebe prejuízos no seu bem-estar a
depender da dívida que detém. Por exemplo, dívidas hipotecárias, que possuíam
valor monetário mais alto, não eram vistas necessariamente enquanto “dívida”,
mas sim como um investimento, um lugar de moradia, conforme os relatos dos
respondentes. Diferente da percepção sobre os empréstimos estudantis, estes
provocavam nos sujeitos um sentimento de estar endividado e, inclusive, os viam
enquanto algo desnecessário e que lhes causava arrependimentos (Greenberg
& Mogliner, 2021).
Cidadãos americanos também foram questionados sobre o que eles acha-
vam com relação aos níveis de felicidade de uma pessoa de baixa renda e de
alta renda. Conforme as percepções dos respondentes, os indivíduos mais ricos
seriam mais beneficiados em comparação aos pobres, corroborando com os
resultados de outras pesquisas, contudo os respondentes desta pesquisa supe-
restimaram os custos acarretados à população mais pobre, sugerindo níveis de
felicidade mais elevados do que quando comparado à realidade (Aknin; Norton
& Dunn, 2009).
Visto que a desigualdade produz efeitos significativos no quesito econômi-
co, político e social, investigá-las possibilita que haja uma busca por compreender
as nuances que perpassam e mantêm esta fragilidade entre os sujeitos (Velandia
Morales; Rodríguez Bailón & Martínez, 2022). No quesito da desigualdade
econômica, por exemplo, há uma certa legitimidade e tolerância, sendo levan-
tadas justificativas que possam desviar o foco de ser uma problemática social,
considerando-a uma questão individual (Rodríguez-Bailon et al., 2017).
460 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

A forma como o indivíduo visualiza a sua situação econômica pode re-


fletir em como ele se sente e se comporta, portanto, quando o sujeito percebe a
desigualdade que vivencia ele tende a sentir mais a negatividade da situação, a
instabilidade, desproteção e vulnerabilidade (Jetten & Peters, 2019). Em pes-
quisa longitudinal com a população finlandesa, Blomgren, Maunula e Hiilamo,
(2016) investigaram a respeito do superendividamento associado à incidência de
doenças crônicas. Os resultados indicam que as mulheres possuem uma tendên-
cia maior a sofrer com os impactos de estar endividadas, acarretando maiores
debilidades no estado de saúde. Os riscos aumentam consideravelmente para
alguns adoecimentos, que inclusive corroboram com os dados encontrados em
estudos anteriores, o surgimento de sintomas de psicose e diabetes (Blomgren,
Maunula e Hiilamo, 2016).
Uma forma de analisar o status socioeconômico dos sujeitos é destacando
nível de renda, riqueza, a empregabilidade da sua força de trabalho, educação,
raça e etnia. Sendo assim, todos esses elementos são variáveis importantes de
investigação, tendo em vista que vão influenciar no estilo de vida que o sujeito
possui (Blázquez & Budría, 2015).

Intervenções psicológicas no processo de endividamento


A maneira como o sujeito compreende o ato de consumir e de fazer os
pagamentos é um ponto fundamental para reconhecer a importância da edu-
cação financeira. Além de obter conhecimento, a educação financeira deve
desenvolver habilidades, motivação e confiança para que a aplicabilidade das
estratégias de planejamento seja mais eficiente (Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2018).
Um exemplo de intervenção psicossocial com superendividados ocorreu
em Brasília, no projeto de extensão que contou com a participação da comuni-
dade, dos alunos do Centro Universitário de Brasília e do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Tendo como objetivo central
investigar a problemática e contribuir com os cidadãos que estavam sendo afe-
tados, realizando atividades de prevenção, tratamento e resolução da dívida em
conflito. Gerar mais conhecimento e habilidade para que o sujeito possa lidar
de forma mais saudável quanto aos seus recursos financeiros é fundamental
para a redução de dificuldades com o endividamento (Pérez-Nebra; Siqueira;
Couto & Oliveira, 2020).
Neste caso, as ações de prevenção consistiram em produzir conhecimento
por meio de palestras, mesas redondas a fim de discutir sobre o tema. Já com o
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 461

tratamento, o objetivo foi promover uma maneira de negociação entre os envol-


vidos na dívida, aproximando-os e pensando em formas eficazes de lidar com a
questão. A terceira vertente foi de suporte aos voluntários, a gestão de contatos
com públicos externos, a divulgação e a gestão de conhecimento (Pérez-Nebra;
Siqueira; Couto & Oliveira, 2020).
Adentrando um pouco mais à estratégia interventiva, o tratamento foi
composto por cinco etapas, sendo elas o primeiro contato com o programa de
intervenção, a entrevista cadastral que ocorreu de forma presencial e individual,
a oficina em grupo de educação financeira, a orientação individual a fim de
reorganizar e planejar as finanças pessoais do sujeito e, por fim, o momento de
negociação da dívida, promovendo uma conciliação mais harmoniosa e benéfica
para ambos (Pérez-Nebra; Siqueira; Couto & Oliveira, 2020).
Para o desenvolvimento de estratégias que possuam o intuito de ensinar
sobre finanças é fundamental que o conteúdo seja claro, direto e descomplicado.
O Estado deve atentar-se, ao propor políticas públicas de incentivo à educação,
ao público que pretende alcançar, no momento certo, a aprendizagem quanto
aos princípios econômicos, assim como as outras, devem estar posicionadas
no contexto social e cultural que o indivíduo se encontra (Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2019).
As mulheres, por exemplo, manifestam menor nível de conhecimento,
bem como menos confiança quando comparado aos homens (Lusardi, 2019).
Indivíduos com melhores condições financeiras também tendem a dispor de
mais conhecimento do que os menos favorecidos (Lusardi, & Mitchell, 2011).
Outro grupo que também apresenta comportamentos danosos são os jovens,
quando estes foram questionados acerca do empréstimo estudantil que fizeram,
os mesmos evitam saber quanto estão devendo e as formas de pagamento (Lu-
sardi; de Bassa Scheresberg & Oggero 2016).
Um programa nacional desenvolvido na Níger, país da África Ocidental,
abarca estratégias de tratamento para combater as limitações financeiras e psi-
cossociais de famílias que vivem na extrema pobreza. No primeiro quesito, o
combate acontece por meio da adição de um montante fixo de dinheiro, e no
segundo ocorre a inclusão de um treinamento de sensibilização da comunidade
(Bossuroy, et.al, 2021).
Conduzir intervenções psicossociais são de extrema importância, pois estas
localizam as fontes de empoderamento capazes de gerar mudanças na comunida-
de, no grupo em questão e nos próprios indivíduos. Com o objetivo de fortalecer
o apoio dentro da comunidade nas atividades que estão gerando renda local, bem
462 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

como, desenvolver habilidades comportamentais nas mulheres de baixa renda


envolvidas nesse processo, para que elas possam se sentir mais autoconfiantes e
capacitadas a resolução de problemas, melhorar a sua comunicação interpessoal,
estabelecer metas e liderança (Bossuroy, et.al, 2021).
No apêndice do trabalho encontram-se as estratégias que foram utilizadas
pelo Programa. Com a finalidade de sensibilizar o olhar da comunidade sobre
as normas sociais e a importância da mesma para o crescimento econômico da
sua população, um filme foi reproduzido, este conta a história de Amina que
inicia um novo negócio, situação que se assemelha com a realidade das mulheres
locais, e conta com a sua rede de apoio para o fortalecimento comércio, ao final
ela compartilha o seu aprendizado com as outras mulheres da comunidade,
produzindo uma espécie de exemplo (Bossuroy, et.al, 2021).
A ideia consiste em promover uma discussão, após a exibição do filme, que
considere as nuances apresentadas e a possível identificação. Engajar as mulheres
economicamente ativas e que encontram-se em situação de pobreza, conforme
aponta o caso, permite a adoção de novos padrões de comportamento que sejam
mais conscientes e proporcionem melhorias financeiras, de bem estar, saúde e
educação. Este treinamento inclui habilidades para a vida, valores e a perspectiva
do sujeito, autoafirmação e autoestima, tomada de decisão e resolução de pro-
blemas, desenvolvimento da comunidade, comunicação interpessoal, educação
financeira, liderança e gênero e a troca de experiência entre os participantes
(Bossuroy, et.al, 2021).
Outro estudo sobre endividamento crônico foi produzido em Singapura
com sujeitos endividados com a intenção de investigar como esta problemática
afeta o comportamento de tomada de decisão dos que possuem dívidas. O
experimento baseou-se em aliviar dívidas de famílias de baixa renda e analisar
como este fator produz efeitos nos comportamentos dos sujeitos, tendo como
resultados melhorias no funcionamento cognitivo, redução de ansiedade (Ong;
Theseira & Ng, 2019).

Endividamento estudantil como um fenômeno de interesse


Uma das preocupações para o cidadão brasileiro são as suas dívidas, con-
forme fora descrito anteriormente, adquiridos por diferentes meios e elementos
motivadores. Entre os empréstimos realizados, o Fundo de Financiamento Es-
tudantil (Fies), acordo que envolve o contratante/estudante, instituições bancá-
rias e governo federal, cresceu de forma significativa nos últimos anos (Madeira,
2021). Tendo em vista que o acesso à educação é um dos principais caminhos
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 463

para promover o desenvolvimento individual e o crescimento do país (Delors,


2003), o programa tem como objetivo aumentar a inclusão de alunos de baixa
renda no ensino superior, visto que as instituições públicas de ensino superior
no Brasil são historicamente acessadas pela população de nível socioeconômico
mais elevado (Miranda, 2017).
Ao longo dos anos, programas com a finalidade de financiar o ensino
superior foram criados e passaram por reformulações. O Programa de Crédi-
to Educativo para Estudantes Carentes (Creduc), nomeado anteriormente por
Programa de Crédito Educativo (PCE) aprovado em 23 de agosto de 1975
pela Presidência da República, foi uma estratégia criada no governo do general
Ernesto Geisel e institucionalizado no mandato de Fernando Affonso Collor
de Mello, este tinha como intuito proporcionar uma oportunidade aos grupos
menos favorecidos (Vituri, 2014).
Em maio de 1999, o Fies foi criado através da Medida Provisória no 1.827 e
transformado em Lei no 10.260/2001, fundamenta-se pelo interesse em atender
estudantes carentes e que não conseguiram bolsas estudantis em instituições
privadas ou públicas. Do intervalo de tempo entre a sua formulação até 2020, o
programa passou por várias reformulações, inclusive do próprio financiamento,
os critérios para a contratação e distribuição entre o público-alvo (Neves; Faren-
zena & Bandeira, 2021). Trâmites burocráticos do Fies tornaram a estratégia de
financiamento distante da realidade dos brasileiros de baixa renda, por exemplo
exigia-se fiadores que tivessem uma renda considerável, tal obrigatoriedade era
incompatível com as opções que os cidadãos possuíam (Vituri, 2019).
Uma reformulação foi realizada a partir da Lei no 12.202/2010, a neces-
sidade do fiador tornou-se mais flexível com o Fundo de Garantia de Opera-
ções de Crédito Educativo (FGEDUC), administrado pelo Banco do Brasil,
permitindo aos alunos com renda familiar de 1,5 salários mínimos adquirir o
crédito sem a presença de um fiador (Sousa, 2016). Palco de transformações
importantes, o denominado “Novo Fies” obteve 1.910.714 contratantes, somente
em 2014 houve cerca de 733 mil novos contratos (Brasil, 2014), os estudantes
matriculados em universidades privadas poderiam se inscrever via internet em
qualquer momento do ano, além das mudanças com relação ao fiador, as taxas
de juros foram reduzidas, o prazo de amortização aumentou, assim como o
período de carência (Madeira, 2021).
O número de contratos em uso chegou a 1,8 milhões em 2015, os inves-
timentos do governo que giravam em torno de R$ 1,2 bilhões passaram a ser
utilizados R$ 13,8 bilhões. Como uma espécie de incentivo, o financiamento
464 Seção II – Psicologia Social e Sociedade

corresponde a um empréstimo, portanto há a exigência de que seja quitado no


futuro pelo estudante que o contratou (Mendes, 2015).
Atualmente, novas mudanças já foram incorporadas ao programa, tornan-
do-o novamente mais restrito, os índices de inadimplência permaneciam em
alta, fator este que acompanha as dificuldades econômicas do país. O Governo
Federal anunciou a possibilidade dos valores do empréstimo serem renegocia-
dos na Medida Provisória de nº 1.090/2021, visto que em torno de 51,7% dos
brasileiros estavam em situação de inadimplência em março de 2022, período
de início da renegociação da dívida concedida pelo governo federal (Correio
Braziliense, 2022).
Devido ao alto custo das mensalidades nas instituições privadas de ensino
superior, o financiamento estudantil tornou-se uma alternativa para os brasi-
leiros que optaram ou gostariam de cursar uma graduação (Neves, 2020). No
entanto, o Fies consiste em uma dívida estudantil de valor total significativo,
e por ser dividido em muitas parcelas, possui uma duração longa, portanto, o
contratante tende a estar endividado uma grande parte da sua vida (Barros,
Tolentino & Meneguzzo, 2020).
Conforme descrito nos tópicos anteriores, possuir uma dívida nem sem-
pre é um compromisso no qual o sujeito consegue custear os pagamentos, ter
parcelas fixas ao longo dos anos pode ser uma questão, principalmente diante
de instabilidades financeiras, condições de trabalho e os índices de desemprego
no Brasil, conforme apontam os índices do IBGE (2022). Cerca de 40% dos
jovens com ensino superior completo não conseguiram emprego na sua área de
estudo, estando desempregados ou trabalhando em outro ramo (IDados, 2020).
É causa de frustração e sofrimento, o alto custo de dedicar-se para exercer
a profissão estudada e não ser recompensado com os benefícios da obtenção
do ensino superior (Mueller, 2013). Estudos apontam a complexidade deste
fenômeno da dívida estudantil, a sua perspectiva problemática, bem como a
oportunidade para os indivíduos na obtenção de um futuro melhor e uma maior
satisfação com a vida, adentrando em conhecimentos que lhe são prazerosos
(Callender & Jackson, 2005).
Considerando que a dívida estudantil no Brasil possui um valor financeiro
significativo e por ser de longa duração, caracteriza-se como um fenômeno a ser
estudado. Mais pesquisas são necessárias para que haja uma investigação sobre
os efeitos da experiência de endividamento na qualidade de vida, bem-estar do
sujeito e na sua percepção quanto à sua carreira profissional após a aquisição do
diploma, como o sujeito se sente com a conquista.
Capítulo 22 – Ketlle Almeida Batista e Diogo Conque Seco Ferreira 465

Considerações finais
Estar endividado já é um fenômeno corriqueiro no cotidiano dos brasilei-
ros, elemento que amplia as possibilidades de consumo, bem como, é capaz de
afetar a qualidade de vida do sujeito caso haja dificuldades em realizar os pa-
gamentos. Uma das chaves para compreender e intervir nestes casos que trazem
prejuízos é investigar a amplitude do cenário, entendendo as particularidades
das decisões que os indivíduos tomam diariamente, os processos psicológicos e
sociais que perpassam as ações.
É importante salientar que a produção de estudos fornece subsídio e funda-
mentação para o desenvolvimento de políticas públicas com um viés interventivo.
Para alguns casos mais específicos de endividamento há uma limitação maior
de trabalhos, como por exemplo os casos de financiamento estudantil citados
na seção anterior, assim como, a leitura de componentes econômicos sob ótica
da Psicologia. Um caminho tímido, mas com contribuições significativas, que
deve cada vez mais ser incentivado.

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472

Organizadores
André Faro. Docente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Pós-Doutor em Saúde
Pública e Saúde Mental pela Johns Hopkins University (Bloomberg School of
Public Health) (2017-2018) e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal
da Bahia (2008-2010). Pesquisador CNPq – Nível 2.

Elder Cerqueira-Santos. Docente da Graduação e do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Dou-
tor em Psicologia pela UFRGS (com sanduiche pela University of Nebraska
– USA), Pós-Doutorado em Sexualidade Humana pela University of Toronto
– Canadá. Pesquisador produtividade CNPq.

Joilson Pereira da Silva. Docente do Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Psicologia pela
Universidade Complutense de Madri-Espanha. Estágio Pós-Doutoral Sênior
em Psicologia pela Universidade Autônoma de Barcelona-Espanha.

Julian Tejada. Docente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação


em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutorado em Ciên-
cias pela Universidade de São Paulo (USP).
473

Autores
André Faro. Docente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Pós-Doutor em Saúde
Pública e Saúde Mental pela Johns Hopkins University (Bloomberg School of
Public Health) (2017-2018) e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal
da Bahia (2008-2010). Pesquisador CNPq – Nível 2.

Ariane de Brito. Professora do curso de Psicologia da Universidade Tira-


dentes (SE). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).

Bárbara Borges. Estudante de graduação em Psicologia pela Universi-


dade Federal da Bahia (UFBA).

Camila Cristina Vasconcelos Dias. Docente do curso de Psicologia da


Universidade da Amazônia de Boa Vista-RR (UNAMA-RR). Doutora e Mes-
tra em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (PPGPS-UFPB).

Camilla Vieira de Figueiredo. Mestra em Psicologia Social pela Univer-


sidade Federal da Paraíba (UFPB).

Charles Vinicius Bezerra de Souza. Doutorando pelo programa de Psi-


cologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Cicero Roberto Pereira. Docente da Graduação e do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Doutor em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
da Empresa, Portugal. Pós-Doutorado financiado pela Portuguese Science Fou-
ndation (FCT). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq – Nível 1D.

Cláudia da Mota Darós Parente. Professora do Programa de Pós-Gra-


duação em Educação (PPGE/UNESP/Marília). Doutorado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Dalila Xavier de França. Docente da Graduação e do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
474

Doutorado em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do Tra-


balho e da Empresa – Lisboa/Portugal. Pós-Doutorado em Psicologia So-
cial pela Universidade Complutense de Madrid (Espanha) e na University of
Queensland-Brisbane (Austrália).

Daniel Henrique Schiefelbein da Silva. Psicólogo clinico. Mestre em


Psicologia pela ATITUS Educação. Psicólogo educacional da Secretaria Mu-
nicipal de Educação de Ijuí-RS.

Diogo Conque Seco Ferreira. Docente em Psicologia da Universida-


de Federal de Sergipe (UFS). Doutorado em Ciências do Comportamento
pela Universidade de Brasília (UNB). Pós-doutorado na Tilburg University
(Holanda).

Elaine de Jesus Souza. Professora Adjunta do instituto de Forma-


ção de Educadores (IFE) da Universidade Federal do Cariri (UFCA).
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).

Elder Cerqueira-Santos. Docente da Graduação e do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Dou-
tor em Psicologia pela UFRGS (com sanduiche pela University of Nebraska
– USA), Pós-Doutorado em Sexualidade Humana pela University of Toronto
– Canadá. Pesquisador produtividade CNPq.

Elza Maria Techio. Docente em Psicologia da Universidade Federal da


Bahia (UFBA). Doutora em Psicologia Social pela Universidad del País Vasco
(UPV-EHU-Espanha), e pós-doutorado pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB).

Emília Silva Poderoso. Doutoranda pelo programa de Psicologia da Uni-


versidade Federal de Sergipe (UFS).

Fabrício de Souza. Professor no Instituto de Psicologia da Universidade


Federal da Bahia. Doutor em Psicologia (2006). Realizou estágio pós-doutoral
na Universidade de Manitoba – Canadá (2015-2) e no Paradigma – Centro de
Ciências e Tecnologia do Comportamento – São Paulo (2016-1).
475

Francisco Vitor Soldá de Souza. Mestrando em Psicologia pela Univer-


sidade Federal de Sergipe.

Giana Bitencourt Frizzo. Psicóloga (UFSM), especialista em terapia de


casal e família pelo Instituto da Família de Porto Alegre (INFAPA). Mestre
e Doutora em Psicologia-UFRGS, com pós-doutorado na mesma instituição.
Doutorado sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona. Professora do
Instituto de Psicologia e do Pós-graduação em Psicologia-UFRGS. Bolsista
Produtividade CNPq.

Hendrik Teixeira Macedo. Docente do Departamento de Computação


da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Ciência da Computação
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Estágio "Sandwich" na
Univ. Paris VI.

Isabelle Haaiara Andrade Barbosa. Psicóloga pela Universidade Fe-


deral de Sergipe (UFS). Atua como psicóloga clínica, doula e consultora de
amamentação.

Israel Jairo. Doutorando pelo programa de Psicologia da Universidade


Federal de Sergipe (UFS).

Jaqueline Lima Fidalgo e Silva. Professora de educação infantil da Rede


Municipal de Marília-SP. Mestranda em Educação na Unesp/Marília.

Jean Von Hohendorff. Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia. Profes-


sor do PPG Psicologia e da Graduação em Psicologia na ATITUS Educação.
Coordenador do grupo de pesquisa VIA Redes (Violência, Infância, Adoles-
cência e Atuação das Redes de proteção e de atendimento).

Joana dos Santos. Doutoranda pelo programa de Psicologia da Universi-


dade Federal de Sergipe (UFS).

João Victor Cabral da Silva. Psicólogo pela Universidade Federal da Pa-


raíba (2019). Trabalhador do SUAS, atua na rede de proteção social básica
(PAIF) do município de Cabo de Santo Agostinho.
476

Joilson Pereira da Silva. Docente do Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Psicologia pela
Universidade Complutense de Madri-Espanha. Estágio Pós-Doutoral Sênior
em Psicologia pela Universidade Autônoma de Barcelona-Espanha.

Josiene dos Santos Ferreira. Mestre em Psicologia pela Universidade


Federal de Sergipe (UFS).

Julian Tejada. Docente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação


em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutorado em Ciên-
cias pela Universidade de São Paulo (USP).

Karina da Silva Oliveira. Professora do Departamento de Psicologia e


do Programa de Pós-Graduação em Psicologia: Cognição e Comportamento
da Universidade Federal de Minas Gerais Psicóloga, mestre e doutora pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pós-doutorado em Psicologia
pela Universidade São Francisco.

Katia Irie Teruya. Doutoranda no mesmo programa de pós-graduação e


Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES).

Ketlle Almeida Batista. Doutoranda pelo programa de Psicologia da


Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Laís Santos-Vitti. Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade


Católica de Campinas (PUC-CAMP).

Lavínia Teixeira-Machado. Professora do Departamento de Educa-


ção em Saúde da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI-UFS). Chefe da Divisão de Ações
Inclusivas (DAIN/UFS). Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade
Federal de Sergipe. Pós-Doutorado em Psiquiatria e Psicologia Médica, pela
Universidade Federal de São Paulo.

Leonor María Cantera. Professora titular do Departamento de Psicolo-


gia Social da Faculdade de Psicologia na Universidade Autônoma de Barcelona
477

(UAB). Doutora em Psicologia Social com prêmio extraordinário pela Uni-


versidade Autônoma de Barcelona (Espanha).

Letícia Lovato Dellazzana-Zanon. Docente permanente do Programa


de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Cam-
pinas (PUC-Campinas). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 2.

Linéia Polli. Mestra em Psicologia pela ATITUS Educação.

Liziane Guedes da Silva. Psicóloga, Mestra em Psicologia Social e Dou-


toranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSICO) pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Psicóloga Clínica. Docente
no Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter – Ânima Educação).

Luana Elayne Cunha de Souza. Docente Titular do Centro de Ensi-


no Unificado de Brasília – CEUB e docente colaboradora do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Dou-
tora em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Luciana Maria Maia. Docente Titular da Graduação e do Programa


de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Doutorado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Luiz Felipe da Conceição Souza. Graduando em Ciência da Computação


na Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Mara Dantas Pereira. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal


de Sergipe (PPGPSI/UFS).

Marcus Eugênio Oliveira Lima. Docente da Graduação e do Programa


de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Doutor em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do Traba-
lho e da Empresa (ISCTE-PT). Pós-Doutorado no Instituto de Ciências So-
ciais da Universidade de Lisboa e na School of Psychology da Universidade de
Queensland (Austrália). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq –
Nível 2.
478

Mariana Siqueira Menezes. Mestra em Psicologia pela Universidade


Federal de Sergipe (UFS).

Marisa Vázquez Martínez. Diretora do Centro de Educação da Universi-


dade de Abat Oliba CEU (Barcelona). Doutora em Psicologia pela Universidade
Autônoma de Barcelona (Espanha).

Nicole de Carvalho Barros. Psicóloga (UFRGS) e assistente adminis-


trativa (UFRGS).

Patrícia Santos da Silva. Psicóloga (UFCSPA), especialista em terapia


sistêmica pelo Centro de Estudos da Família e do Indivíduo de Porto Alegre
(CEFI). Mestre e Doutora em Psicologia (UFRGS), com pós-doutorado na
mesma instituição. Professora da Faculdade do CEFI (FACEFI) e Psicóloga
Clínica na cidade de Porto Alegre.

Raimundo Cândido de Gouveia. Docente de Psicologia da Universidade


Federal da Bahia (UFBA). Doutor em Psicologia Social pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB).

Silvana Carneiro Maciel. Professora do Departamento de Psicologia


e da Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraí-
ba (UFPB). Doutora em Psicologia Social pela UFPB. Pós-Doutora em Psi-
cologia Social pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
(ICS-Lisboa).

Tatiana Nakano. Docente permanente do curso de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Psicologia da PUC-Campinas. Doutora em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Pós-douto-
rado na Universidade São Francisco.

Tiago Jessé Souza de Lima. Professor do Departamento de Psicologia


Social e do Trabalho (PST) e do Programa de Pós-graduação em Psicologia
Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) na Universidade de Brasília
(UnB). Doutorado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB).
Thiago Dias Bispo. Doutorando em Ciência da Computação/Deep
Learning na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Ueliton Santos Moreira-Primo. Doutorando pelo programa de Psicologia


da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Este livro foi composto em
Adobe Caslon Pro
em abril de 2023.

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