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De motocicleta e de marxismo –
saudades de C. W. Mills
Publicado em 05/05/2016 // 3 comentários

[C. Wright Mills, na sua BMW em 1958. A foto é da artista Yaroslava Mills, sua esposa.]

Por José Paulo Netto.


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Da extraordinária figura do texano Charles Wright Mills contam-


se episódios divertidos – diz-se, por exemplo, que, visitando a
URSS em abril de 1960, por ocasião de um solene jantar a ele
oferecido, Mills levantou um brinde aos seus anfitriões fazendo
votos para que logo se publicassem lá as obras completas de Leon
Trotski, uma vez que, então, poder-se-ia considerar a União
Soviética uma verdadeira democracia… É de imaginar o
constrangimento e o embaraço dos convivas.

Ironia e irreverência sempre marcaram a trajetória pessoal e


teórica do sociólogo nascido em 1916 (a 28 de agosto) e que não
chegou a completar 46 anos (faleceu a 20 de março de 1962), mas
nos deixou uma obra original, fecunda e instigante, elaborada
especialmente no marco das suas atividades acadêmicas na
Universidade de Colúmbia, a que se vinculou a partir de 1947 *.

Acadêmico sim, academicista nunca: num tempo em que a


sociologia norte-americana era dominada pelo sofisticado
conformismo do estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons
(1902-1979), exaltando as suas “objetividade” e “imparcialidade”,
e os professores iam à universidade de terno e gravata, Mills
demoliu nada diplomaticamente a regência intelectual parsoniana,
explicitou francamente as suas posições de esquerda (v.g., a sua
simpatia pela Revolução Cubana e os seus juízos na Carta à nova
esquerda, de 1960) e, vestindo jeans, deslocava-se da casa ao
trabalho de motocicleta – um quase escândalo. Aliás, motocicleta
era uma das paixões de Mills: sua primeira viagem à Europa
(1956) teve por objetivo fazer um curso na fábrica da BMW, em
Munique, e ele exibia o seu diploma de mecânico de motos com
grande orgulho.

A obra de Mills, legatária do chamado radicalismo da “era


progressista” norte-americana dos primeiros anos do século XX e
em cuja base está uma eclética mescla de Marx e Weber (porém
um “ecletismo bem temperado”, para tomar a sugestiva expressão
de Gabriel Cohn a propósito de Florestan Fernandes), é um dos
componentes mais ponderáveis da emergência e expansão
da sociologia crítica nos Estados Unidos e, como tal, foi
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analisada em significativa documentação, de que são ilustrativos,


por exemplo, os trabalhos pertinentes de George Novack e Irving
L. Horowitz (ao que sei, inéditos em português). No entanto, não
me parece que a partir dela se tenha constituído uma qualquer
“escola” sociológica, o que não equivale a minimizar a sua
influência, seja na academia (norte-americana ou não), seja sobre
personalidades e movimentos sociais – recorde-se que Fidel
Castro disse ter lido, ainda na Sierra Maestra, A elite do poder e
que as autoridades norte-americanas, confrontadas com as
manifestações contestatárias do final dos anos 1960
nos campi não tenham hesitado em qualificar Mills, então já
falecido, como um dos inspiradores dos jovens rebeldes.

E é indiscutível que se trata de uma obra de peso, sólida e densa.


Dentre as suas várias dimensões, duas merecem destaque. A
primeira diz respeito à teoria sociológica: a contribuição de Mills
foi além da crítica corrosiva ao generalizado empirismo rasteiro
da sociologia norte-americana e ao pensamento de Parsons – a
“grande teoria” –; ademais de apresentar, em alternativa à
divulgada por este, uma leitura diversa de Weber, Mills propôs
um diferente estilo de pensar e exercitar a sociologia, sublinhando
a sua função social ou, mais precisamente, a responsabilidade
social do sociólogo. E a segunda se mostra no seu esforço para
analisar a sociedade norte-americana do seu tempo, com uma
perspectiva abrangente do seu particular sistema de estratificação
social, esforço que já comparece na sua pesquisa, de 1948, sobre
as lideranças sindicais – The New Men of Power. America’s
Labor Leaders. New York: Harcourt, Brace & Co., 1948 – e que
se completa em A elite do poder e A nova classe média (White
Collar). Não me parece possível compreender os Estados Unidos
de meados do século XX sem o recurso a tais trabalhos, ainda que
se possa discordar de muitas das suas inferências.

Marxistas ilustres acompanharam com atenção o labor de Mills


(que, aliás, manteve cordiais relações com muitos deles, como os
ingleses R. Miliband, T. B. Bottomore e E. P. Thompson) e com
ele aprenderam. Na Europa, por exemplo, Lukács via em Mills
um pesquisador que enfrentava seriamente as questões da
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alienação e a ele se refere (em Para uma ontologia do ser social)


como, na América do Norte, “de longe o crítico mais importante
do sistema de manipulação”; nos Estados Unidos, o exigente Paul
M. Sweezy, avaliando A elite do poder em ensaio publicado em
setembro de 1956 na Monthly Review, fez – sem prejuízo de
reservas teóricas e categoriais – uma apreciação extremamente
positiva do livro e ressaltou a coragem intelectual do autor.

No que toca à sua relação com o marxismo, embora a tenha


sinalizado em vários momentos do seu processo de elaboração
teórica, é todavia em Os marxistas que Mills a explicita mais
clara e inequivocamente. Voltemos rapidamente a este livro que,
lido hoje, ainda se revela tão instigante e útil quanto
problemático.

Nas suas quase 500 páginas, torna acessíveis ao leitor textos


escolhidos de Marx-Engels e de autores a eles vinculados, que são
tomados por Mills como referências da tradição marxista até o
início da segunda metade do século XX. Esta verdadeira antologia
se abre com excertos de Marx-Engels e os materiais que se lhe
seguem estão agrupados conforme uma distribuição que responde
à visão que Mills tem da diferencialidade da constituição da
tradição marxista (que ele resume no capítulo 7): há uma seção
referida à social-democracia alemã (Kautsky, Bernstein e Rosa
Luxemburgo), a seguinte é relativa ao “eixo bolchevique” (Lenin,
Trotsky), depois a que diz respeito ao stalinismo (com fragmentos
de Stalin); na sequência, Mills arrola materiais que designa como
“críticos do stalinismo” (excertos premonitórios de Rosa
Luxemburgo, trechos de R. Hilferding e F. Borkenau e reflexões
de Trotsky e I. Deutscher) e avança reunindo textos posteriores à
denúncia do “culto à personalidade” (1956), apresentando passos
de N. Kruschev, Mao Tsé-Tung e Palmiro Togliatti; enfim, antes
de concluir indicando algumas prospecções, retoma autores que
considera “fora do bloco” (E. Kardelj e “Che” Guevara).

É cabível a discussão acerca da seleção de textos feita por Mills –


nem sempre as suas escolhas são as mais procedentes e, como em
toda antologia, muitos autores significativos acabam por ficar de
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fora; contudo, em Os marxistas os omitidos não são apenas


significativos: são importantíssimos (embora as suas notas ou
passagens pontuais os registrem, não há nenhum texto, p. ex., de
K. Korsch, G. Lukács e A. Gramsci). Mas é de convir que a
seleção de Mills é congruente com a concepção geral que ele tem
da obra de Marx-Engels e do desenvolvimento do seu legado –
concepção que ele apresenta especialmente nos capítulos 2 e 4
(depois de sugerir, no capítulo 1, por que nem o “liberalismo” e a
“ciência social” foram capazes de, no seu entender, examinar
adequadamente o marxismo) e antes de formular as suas críticas a
Marx-Engels (resumidas nas 30 páginas do capítulo 6).

Deixo de lado essas críticas, nenhuma delas original, com Mills


centrando-as principalmente no que designa como “modelo de
Marx” (que qualifica, a meu ver, erroneamente como do
“capitalismo vitoriano”), porque o balanço global que faz da obra
marxiana é francamente positivo (como se constata no capítulo 2:
“Louvor a Marx…”) e porque, ao tratar do essencial – isto é:
do método de Marx –, respondendo à questão de se este método
foi superado, ele escreve: “Minha resposta a isso deve ser
clara: não. Seu método é uma indicação e uma contribuição
duradoura para as melhores formas de reflexão e de indagação
sociológicas existentes” (p. 137); paradoxalmente, na sequência
imediata desta afirmação fundamental, Mills faz tolas
observações sobre dialética, pensando a dialética de Marx a partir
das chamadas “três leis” (cf. p. 137-138) – o que tão somente
sinaliza as suas próprias limitações filosóficas.

Para Mills, no que chama de “idade moderna”, os referenciais do


pensamento político-social são o liberalismo (na sua versão
clássica) e o marxismo. Mas, para ele, no século XX, o
liberalismo assumiu a herança do conservadorismo clássico (o de
E. Burke): “não há um conservadorismo coerente que não seja
uma variedade do liberalismo” (p. 19). Por outra parte, ele
considera que “o que há de mais valioso no liberalismo clássico
está incorporado de forma muito coerente e frutífera no marxismo
clássico” (p. 17) – o que se compreende porque, valorizando na
obra de Marx o racionalismo e o humanismo, Mills a reconhece
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como parte da cultura europeia, encerrando “o humanismo secular


do Ocidente, sistematicamente, como suposições morais
profundas e relevantes” (p. 27).

Mills concebe a obra de Marx como parte constitutiva da ciência


social. E o diz de um modo que me parece essencialmente
correto: “Há […] ciência social: sem a obra de Marx e outros
marxistas, ela não seria o que é hoje; apenas com essa obra, ela
não teria a qualidade que tem. Quem não se viu às voltas com as
ideias do marxismo não pode ser um cientista social competente;
quem acredita que o marxismo encerra a última palavra, também
não o pode ser” (p. 13; itálicos não originais). Diz mais: “Para
nós, hoje, a obra de Marx é um ponto de partida e não uma visão
acabada do mundo social que estamos tentando compreender” (p.
138). Mills não vê Marx apenas como um “clássico” da ciência
social: pensa “que o valor intelectual do marxismo clássico e do
marxismo em geral não é meramente histórico; tem hoje uma
relevância intelectual direta” (p. 34); pensa que a obra de Marx
“continua viva, e continua sendo usada na convicção e na prática”
(p. 110); pensa que o “marxismo vivo”, que se opõe ao marxismo
que invoca os textos “clássicos” como “a Autoridade” (tal como o
faz o marxismo “oficial”, o “marxismo-leninismo” de raiz
staliniana), é uma “parte viva de qualquer ciência social
contemporânea viável” (idem). Em resumidas contas: segundo
Mills, Marx é necessário, mas não suficiente: para ele, na abertura
dos anos 1960, sem Marx, nada se compreende do mundo
contemporâneo e, apenas com ele, pouco se compreenderá.

Estou em crer que, em 1962 como em 2016, nenhum marxista


sério discordaria/discordará responsavelmente de Mills, mesmo
discrepando francamente (como é o caso deste signatário) das
críticas que ele dirige a Marx. Claro: diversas seriam/são as
questões a se colocar para esclarecer como a insuficiência
marxiana haveria/haverá de ser superada. Certamente, então,
outras expressivas discordâncias se revelariam entre Mills e os
marxistas; mas este não é o ponto decisivo a salientar aqui. A
mim, aqui, parece-me importante apenas registrar que o nível alto
em que um sociólogo não-marxista como Mills dialogou com a
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tradição de Marx permitiu-lhe produzir um livro que, ainda hoje,


lido criticamente, serve igualmente a sociólogos e a marxistas.

E este simples registro, considerada a relação que as ciências


sociais hoje dominantes mantêm (ou não mantêm) com Marx e
sua tradição, faz-me sentir saudades de Mills, no ano que em
decorre o centenário do seu nascimento.

[Pausa para o café: C. Wright Mills em uma lanchonete de estrada. Foto de Yaroslava Mills.]

* Se Mills escreveu muito, diga-se que os seus principais títulos


foram traduzidos e lançados no Brasil, na década de 1960 e com
várias reedições, por Zahar Editores, do Rio de Janeiro: As causas
da próxima guerra mundial, A verdade sobre Cuba, A elite do
poder, Poder e política, A imaginação sociológica e A nova
classe média; o livro que abordarei mais adiante, publicado
originalmente no ano de sua morte, também saiu entre nós àquela
época (Os marxistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1968; as citações
feitas abaixo referem-se a páginas desta edição, mas revisei
algumas delas com base na edição americana: The Marxists. New
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York: Dell, 1963). A mesma casa carioca publicou, naqueles


anos, a seleta weberiana que Mills preparou com Hans H. Gerth
(1908-1978): Max Weber. Ensaios de sociologia e um trabalho
posterior de ambos está igualmente traduzido: Caráter e estrutura
social (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973). No volume
48 da coleção “Grandes Cientistas Sociais” – Wright
Mills/Sociologia (S. Paulo: Ática, 1985) –, organizado por
Heloisa Fernandes, encontra-se representativa amostra do
pensamento de Mills, precedida de eficiente introdução. E há
poucos anos foram novamente coligidas páginas suas, aos
cuidados de Celso Castro (que para elas redigiu sintética e
informada apresentação): Sobre o artesanato intelectual e outros
ensaios (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009).

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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor


Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma
figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é
coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo.
Recentemente, organizou o guia de introdução ao
marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação
destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da
Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna
“Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“,
dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da
literatura anticapitalista.

Netto, José Paulo. De motocicleta e de marxismo – saudades de C. W. Mills,


publicado no blog da Boitempo em 05 de maio de 2016

Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/05/de-motocicleta-e-de-


marxismo-saudades-de-c-w-mills/

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