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Todos os esforgos foram feitos no sentido de encontrar os detentores dos direitos autorais das obras que constam deste
livro. Pedimos desculpas por eventuais omissées invoiuntérias 6 nos comprometemos a inserir 05 devidos créditos e corrigir
possiveis falhas em edigées subsequentes.
iSBN 978-85-513-0229-3
17—05006 COD-301
indice para catélogo sistemético:
1. Vocabulario de Bourdieu : Sociologia 301
@ GRUPO AUTENTICA
Belo Horizonte Rio de Janeiro 550 Paulo
Rua Carlos Turner, 420 Rua Debret, 23, sale 401 Av. Paulista, 2.073,
Silveira . 31 140620 Centre . 20030080 Conjunto Nacional, Horse 1
Belo Horizonte . MG Rio de Janeiro . RJ 23“ andar . Con}. 2301 .
Tel.: (55 31) 34654500 Tel.: (55 21) 3179 1975 Cerqueira César. 01311—940
1' Séo Paulo . SP
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www.9rupoautentica.con1.br
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Tradutores 3 398
Lx'w’“:
'7;";.L
VERBETES
A Campo intelectual 83
Campo juridico 86
Acao 23
Campo literario 88
Actes de la Recherche en Sciences Sociales 25
Agente 26 Campo politico 90
Campo religioso 93
Algérie 60: structures économiques et
Campo universitario 95
structures temporelles 28
Canguflhem, Georges 98
Amorfati 28
Capital 101
Amor pela arte (O): 08 museus de arte na
Capital cultural 103
Europa e seu pfiblico (L’amour de l’art: les
Capital economico 107
muse’es d'art européens et leur public) 28
Capital simbélico 109
Anélise de correspondéncias multiplas 31
Capital social 113
Antropologia reflexiva 33
Arbitrario cultural 36 Categorias de pensameuto 117
Argélia _ 38 Causalidade do provavel 118
Ciéucia 118
Art moyen (Un): essai sur les usages
Classe social 118
sociaux de la phatographie
EESES'S
Classificacao (lutas de) 123
Ascetismo
Coisas ditas (Chases dites) 123
Ativismo
Collége de France 124
Autonomia e homologia dos campos
Conatus 125
Condicao de classe 126
B Conhecimento prafiologico 126
Bachelard, Gaston 49 Construtivismo 128
Bal des ce'libataires (Le): crise de la société Contrafogos: téticas para enfrentar a invaséo
paysanne en Be’arn 51 neoliberal (Contre—feux: propos pour servir 61
Béam 52 la resistance contre l’invasion ne’o—libe’rale) 130
Bens simbélicos (economia dos) 55 Contrafogos 2: por um movimento
Boa vontade cultural 58 social europeu (Contre-feux 2: pour un
Bourdjeu editor 61 mouvement social européen) 131
Burguesia 63 Corpo 132
Crenca 134
135
C Cultura
Cultura popular 137
Cabflia 64
Campo 64
Campo artistico 66 D
Campo cientifico 68 Denegacéo 140
Campo cultural 71 Déracinement (Le): la crise de l’agriculture
Campo da alta costura 73 traditionnelle en Algérie - 141
1 Campo do poder 75 Desencantamento do mundo (O): estruturas
Campo econ‘émico 77 econémicas e estruturas temporais 141
Campo esportivo 797 Destino 142
Campo filoséfico 81 Determinismo 143
Diploma 145 H
Disposicao 146
D' tincio 146 Habitus 213
IS . .
H d , Martin 217
Distincfio (A): critica social do julgamento H:l‘a:l:§e:1flmral 217
(La dzstmctzon: cntzque socmle dujugement) 148 Herdeiros (Os): os estudantes e a cultura
Dom.(ideologia d0) , 151 (Les he’ritiers: les étudiants et la culture) 219
Seminacao ulin A d . . 151 Hexis corporal 222
omuliacao masc a ( ) (La ommatzon Histéria 222
32:: me) 1:: Homo academicus 225
, _ , Honra (Sentido da) 228
Durkhelm, Emile 159 Hysteresis 228
E I
Ecole Normale Supencure’ -
‘ I u
16 2
Ideologia 230
Economia das trocas linguistlcas (A): o Illusio 231
qoe falar qua: dlzer’(Ce qua p'arlef vcut Ilusao bio , [ica 233
dzre: leconomle des echanges lmguzstxques) 162 .
. . , , 1nconsc1ente 233
Economia das trocas sunbohcas (A) 164 In corporacao
- .
_ 234
Educacao 165 -
Eli N b Inculcacao 234
Elias, or ert 165 Individuo — sociedade 234
E ‘65 167 Intelectuais 236
Eféliregol , 169 Interesse 239
pm emo Ogla , , , 169 Interventions, 1961-2001: sciences sociales
Esboco de auto—anahse (Esquzsse pour une t t' l'ti 239
to-anal 53) 173 2 ac ton PM que
au y Investimento V 240
Escola 176
Escritos de Educacao 176 J
Espaco social 177 .
Esprit de corps 179 Iogo (5enudo do) 241
Esquisse d’une théorie de la pratique, préce’de’ Iornallsmo 243
de Trois études d’ethnologie kabyle 181 Iuventude 243
Esquisses algériennes 184 L
Estado - 184 245
Estilo de escrita de Bourdieu 186 Legitimidadellegifimacio
Estilos de Vida 187_ Lévi—Strauss, Claude 246
Estratégia/Estratégias de reproducéo 189 Li§5€S ‘13 31113 (LBFOYI 51” la 18W”) 249
Estrutura (social 3 mental) 191 Linguagem 250
Estruturalismo 192 Linguistico (Capital; Mercado) 250
Ethos 194 Livre—troca: diélogos entre ciéncia e arte
(Libre-e’change) 255
F
Famflia 195 M
Fenomenologia 197 Manet. Une révolution symbolique 257
Filosofia 199 Marx, Karl 259
Fotografia 201 Mauss, Marcel 262
Foucault, Michel 201 Meditacfies pascalianas (Méditations
pascaliennes) 265
G Mercado linguistico 267
Goffman, Ewing 205 Mercado simbélico 267
Gosto , 208 Merleau—Ponty, Maurice 267
Grandes Ecoles 210 Metodologia 268
Grupos dominantes 212 Midja 268
8
Mjséria do mundo (A) (La misére du monde) 271 Reproducéo (A): elemeotos para
Mobilidade social 271 , uma teoria do sistema de ensino (La
Mundjalizacéo/Internacionalizagéo 272 reproduction: e'léments pour une théorie du
Mundo social 274 systéme d’enseignement) 316
Rito (de instituicfio) V 318
N
Neoliberalismo 275 S
Noblesse d’Etat (La): Grandes Eagles at
Sartre, Jean-Paul 321
esprit de corps 277
Science de la science et réflexivité. Cours du
Nobreza 281
College de France (2000—2001) 323
Nomos 281
Senso prético (0) (Le sens pratique) 324
O Sistema de ensino 327
Sobre a televiséo (Sur la television, suivi de
Ontologia politica de Martin Heidegger (A)
L’emprise dujournalisme) 329
(L’Ontologie politique de Martin Heidegger) 282
Sobre o Bstado. Cursos no College de France
Opim'éo pfiblica/sondagem 283
(Sur L’Etat. Cours au College de France) 330
Sociedade 332
P Socioanélise 332
Passeron, Jean—Claude 286 Sociodiceia 335
Patronato 288 Sociologia 335‘
Pedagogia racional 288 Sociologia da sociologia 341
Pensamento relacional 288 ' Sociologia e reflexividade 342
Pequena burguesia 290 Sociologie de li‘llgérie ' 345
PicturingAlgeria 290 Sociologie est un sport de combat (La) 345
Pierre Boutdieu. Sociologia 292 Structures sociales de l’e’conomie (Les) 346
Poder simbélico 292 Sujeito ‘ 348
Poder simbélico (O) 295
Politica 296 T
Posicéo de classe 296 Taxionomia 349
Préfica (Teoria da) 296 Televiséo 349
Profisséo de socio'logo (A): preliminares Tempo 350
epistemologicas (Le métier de sociologue: Teoria 352
pre’alables épiste’mologiques) 298 Trabalho 352
Projeto 301 Trajetéria 354
Propos sur Ie champ politique 301 Trocas simbélicas 356
Q U
Questoes de sociologia (Questions de
sociologie) Usos sociais da ciéncia: por uma sociologia
302
clinical do campo cientifico (Os) (Les
R usages sociaux de la science: pour une
sociologie clinique du champ scientifique) 357
Razoes préticas: sobre a teoria da acéo
(Raisonspratiques: sur la théon'e de l’action) 303
Reconvetsio de capitais 304
*3 V
Reflexividade 305 Veredicto escolar 359
Regra 308 Violéncia simbélica 359
Regras da Arte (As): génese e esu'utura do Visio e diviséo, Principios de 361 V
campo Iiterério (Les régles de l’art: genése et
structure du champ litte’raire) 309 W
Re'ponses: pour une anthropologie Weber, Max 365
reflexive 311 Wittgenstein, Ludwig 367
Reprodugéo 313
AUTORES
Andréa Aguiar
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL
Anne-Catherine Wagner
UNIVERSITE PARIS 1 — PANTHEON — SORBONNE - FRANCA
11
Christophe Charle
UNIVERSITE PARIS 1 — PANTHEON - SORBONNE w FRANCA
Denis Baranger
UNIVERSIDAD NACIONAL DE MISIONES — ARGENTINA
Edison Ricardo Bertoncelo
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL
Elisa Kliiger
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO —- BRASIL
Enio Passiani
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL — BRASIL
Ernesto Seidl
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA — BRASIL
Francois de Singly
UNIVERSITE RENE DESCARTES — PARIS V —- FRANCA
Francois Denord
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA
Frédéric Lebaron
ECOLE NORMALE SUPERIEURE PARIS - SACLAY - FRANCA
Geraldo Romanelli
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO —— BRASIL
Gérard Manger
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES —— FRANCA
Giséle Sapiro
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES —- FRANCA
12
lgww
Iosé Carlos Garcia Durand
UNIVERSIDADE DE SAC PAULO —- BRASIL
Julien Duval
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES —- FRANCA
Lo’ic Wacquant
UNIVERSITY OF CALIFORNIA —, ESTADOS UNIDOS
Louis Pinto
ECOLE DES HAUTES‘ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA
-
Marcos César Alvarez
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL
Michel Daccache
V ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA
Monique de Saint Martin
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA
Pascal Ragouet
UNIVERSITE DE BORDEAUX - FRANCA
Pascale Casanova ,
DUKE UNIVERSITY — ESTADOS UNIDOS
Patrick Champagne
INSTITUT NATIONAL DE LA RECHERCHE AGRONOMIQUE — FRANCA
Paula Montero
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO —- BRASIL
Remi Lenoir
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA
Roberto Griin
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO CARLOS — BRASIL
Sergio Miceli
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL
Vincent Bontems
LABORATOIRE DES RECHERCHES SUR LES SCIENCES DE LA MATIERE — FRANCA
14
ABRINDO A CAIXA DE FERRAMENTAS
15
A selegéo dos verbetes que integram este Vocabuldrio Bourdieu reflete um esforgo para
se aproximar dos aspectos nodais de seu pensamento e da contribuigao a0 campo das ciéncias
humanas e sociais. Tal escolha desconsiderou as modulagées presentes em sua obra, ou seja,
os verbetes tanto podem refletir conceitos maduros de sua escrita analitica como conviver
com noqoes apenas esbogadas; podem se referir ao ambito nacional ou a uma pequena regiao
geogréfica; permitir generalizagoes on se cingir ao contexto de uma investigaqao especifica.
Aqueles que manusearem este Vocabuldrio seréo, portanto, convidados a interagir com um
corpus teérico concebido no processo mesmo de construgéo dos problemas cientificos, com
cbndicionantes ligados as disposigoes para fazer ciéncia, as instituigoes que lhe déo sustenta»
Q50, ao habitus de cada disciplina e ao sistema de posigoes e tomadas de posigéo no interior
do campo cientifico, nacional e internacional. .
A importéncia de se publicar uma obra dessa natureza no Brasil prende‘se a0 fato de que os
trabalhos de Bourdieu suscitam, desde 0s anos 1960 e de modo continuo, grande interesse no
meio académico local. Com momentos marcados por uma apropriagfio mais intensa do autor nos
dominios especificos da sociologia e da antropologia, expandindo-sé por polémicas no campo
educacional, até ser tornado como referéncia de base em areas mais amplas, o nfimero constante
de pesquisas inspiradas nas ferramentas epistémicas e empiricas que ele desenvolveu evidenciam
sua apropriaqio vasta e amalgamada ao nosso espago cientifico. Nessa diregéo deve-se ressaltar,
ainda, o convite a releitura do conjunto da obra que produziu, impulsionado pela organizagéo
de livros inéditos publicados apés seu desaparecimento, a proliferagao de pesquisas realizadas
aqui e em vérios paises, deslocando empiricamente a abordagem cientifica que concebeu.
Por todas essas razées, decidimos oferecer ao leitor a oportunidade de acessar teorica~
mente um universo conceitual e metodolégico considerado denso em complexidade e em suas
formas de expresséo. O préprio Bourdieu empreendeu algumas inciativas nessa diregio, ao
organizar antologias com artigos de cunho teérico, além de fartas transcrigoes de palestras,
entrevistas, conferéncias e seminérios, tais como Questions de sociologie (1980), Chases
dites (1987), Réponses: pour une anthropologie réfle’xive (1992), Raisons pmtiques — sur
la théorie de l’action (1994).
Poderiamos sintetizar nosso objetivo com a organizagéo deste Vocabula’rio com as préprias
palavras de Bourdieu em uma passagem do prefécio a edigéo brasileira de Razfies prdticas,
datada de outubro de 1995: “se posso fazer um voto, é 0 de que meus leitores, especialmente os
mais jovens, que comeqam a se envolver em pesquisas, n50 leiam este livro como um simples
instrumento de reflexao, um simples suporte de especulagéo teérica e da discusséo abstrata,
mas como uma espécie de manual de ginéstica intelectual, um guia prético que é preciso
aplicar a uma prética, isto é, a uma pesquisa prazenteira, liberta de proibigoes e de divisoes
e desejosa de trazer a todos esta compreenséo rigorosa do mundo que, estou convencido, é
um dos instrumentos de liberagéo mais poderosos com que contamos".
Os desafios que enfrentamos em trabalho de tal envergadura foram diversos, desde a
selegio dos verbetes e a extensao adequada a ser conferida a cada um deles, até a identificaqéo
dos especialistas encarregados de redigi-los. Quanto a este ponto, o Vocabuldrio congrega
autores situadps em distintas posigoes nos espaqos da reflexao académica, mas que possuem
em comum uma agenda intelectual convergente em termos de pressupostos teéricos, proce-
dimentos anah’ticos, metodologias de pesquisa.
16
Expressamos desde jé nosso agradecimento 2105 65 colaboradores, provenientes de vérias
instituigoes brasileiras e de diferentes paises como Franga, Espanha, Argentina e Estados
Unidos, muitos deles parceiros de trajetéria ou ex—alunos do préprio Bourdieu e representantes
de distintos campos disciplinares’. Eles foram responséveis pela elaboragéo dos 164 verbetes,
distribuidos em trés categorias: os relativos és nogoes centrais e correlatas, os dedicados aos
livros publicados pelo pensador francés e 05 que se referem a um seleto grupo de interlocutores
com os quais ele dialogou ao longo do processo de constituigéo de seu pensamento.
Os verbetes foram editados com a finalidade de uniformizar as referéncias feitas pelos
autores aos escritos de Bourdieu, indicando-os a partir de siglas compostas pelas primeiras
letras dos titulos dos livros, grafadas em maifisculas. Acrescentou-se uma letré minfiscula,
“p”, para versoes da obra em portugués, on “i”, para tradugoes em lingua inglesa.
A listagem completa da bibliografia do autor encontra—se no indice de seus livros publicados
na Franga e no Brasil. 0 Vocabuldrio conta ainda corn uma “Cronologia de Pierre Bourdieu”,
que detalha sua biobibliografia.
Gostariamos, por fim, de agradecer duplamente 2‘1 Auténtica Editora: pela oportunidade
aberta a obras desta natureza, que permitern expor ern amplitude e com total liberdade o
conjunto dos trabalhos de Bourdieu e, também, por respeitar o tempo demandado £1 finali-
zagéo deste empreendimento coletivo. L
17
SIGLA GLOSSARIO DE OBRAS E TEXTOS DEV PIERRE BOURDIEU
19
HA Homo academicus
HAP Homo academicus
IA Images de lAlge’rie: une afiinité e’lective
INT' Interventions, 1961—2001: sciences sociales et action politique
Ri Invitation to Reflexive Sociology (An)
LPS Langage etpouvoir symbolique
LL Lecon sur la [econ
L1 Liber 1
LE Libre—e’change
LLp Licoes da aula
LEp Livre—troca: dialogos entre ciéncia e arte
SPi Logic ofPractice (The)
SM Manet. Une revolution symbolique
MPp Meditacoespascalianas
MP Meditations pascaliennes
MS Me’tier de sociologue (Le): préalables e’piste’mologiques
MM Misére du monde (La)
MMp Miséria do mundo (A)
NB Noblesse d’Etat (La): Grandes Ecoles et esprit de corps
OPp Ontologia poli’tica de Martin Heidegger (A)
OP Ontologiepolitique de Martin Heidegger (L’)
MPi Pascalian meditations
IAi PicturingAlgeria
PBS Pierre Bourdieu. Sociologia
OPS Poder simbélico (O)
PC Producao da crenca (A): contribuicao para uma economia dos bens simbolicos
PID Production de l’ide’ologie dominante (La)
MSp Profissdo de sociologo (A): preliminares epistemolégicas
PCP Propos sur le champ politique
QS Questions de sociologie
QSP Questoes de sociologia
Raisons pratiques: sur la the’orie de l’action
Razoespraticas: sabre a teoria da acao
Régles de l’art (Les): genese et structure du champ litte’raire
Regras da arte (As): génese e estrutura do campo litera’rio
Réponses: pour une anthropologie reflexive
20
n}
v 2m
LRp Reproducao (A): elementos para uma teoria do sistema de ensino
LR Reproduction (La): e’le’ments pour une the’orie du systeme d’enseignement
SSR Science de la science et réflexivité
SP Sens pratique (Le)
SPp Senso prético (O)
SMS Si le monde social m’est supportable, c’estparce queje peux m’indigner
STp Sobre a televisao '
SEp Sobre o Estado. Cursos no College de France (1989—92)
SSBi Social Structures ofthe Economy (The)
SA Sociologie de l’Algérie
SSE Structures sociales de l’e’conomie (Les)
ST Sur la te’le’vz'sz'on, suivi de L’emprise dujournalisme
SE Sur L’E‘tat. Cours au College de France (1989-1992)
TTA Travail et travailleurs en Algérie
USS Usages sociaux de la science (Les):pour une sociologie clinique du champ scientzfique
USSp Usos sociais da ciéncia (05): par uma sociologia clz'nica do campo cientz’fico
21
Clziudio Marques Martins Nogueim
O modo como Bourdieu concebe a acao social dos agentes esté relacionado aos sens posicio-
namentos teoricos e epistemolégicos mais amplos (SPp; RPp; CDp; PBS). 0 autor'busca se afastar,
por um lado, das perspectivas fenomenologica, individualism ou, mais amplamente, subjetivista,
que tenderiam a conceber as acoes a partir do ponto de vista individual ou subjetivo, ou seja, como
resultados dos projetos, preferéncias, escolhas, intencoes e, em algumas abordagens, do célculo
racional consciente dos custos e beneficios envolvidos. Bourdieu considera essas perspectivas
nao apenas limitadas, no sentido de que nao investigariam as condicoes sociais objetivas que
estariam na base da experiéncia subjetiva, mas também ilusorias, no sentido que confeririam
aos sujeitos uma autonomia e uma consciéncia na conducao de suas acoes e interacoes que nao
corresponderia aos fatos. Por outro lado, o autor busca também se afastar das abordagens de
inspiiacao estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas. Essas abordagens, na perspectiva
de Bourdieu, reduziriam a acao a uma simples execucéo de regras sociais, sem explicar ade-
quadamente como e por que os atores participam do processo de produgao e reproducao das
regularidades presentes no seu contexto social. Ele insiste que o fato de um individuo agir de
acordo com o que é mais previsivel para alguém de sua posicao social em dada situacao nao é
suficiente para que se conclua que esse individuo seguiu regras explicitas de comportamento e
nem mesmo que tenha plena consciéncia dos modos regulates de acao identificados pelo sociélogo.
Para superar as limitacoes e 03 equivocos das concepcoes subjetivista e objetivista da
acao, Bourdieu (PBS, 60) afirma entao que seria “necessario e suficiente it do opus operatum
ao modus operandi, da regularidade estatistica ou da estrutura algébrica ao principio de
producao dessa ordem observada”. A esse principio de producao, incorporado nos préprios
individuos, o autor denomina “habitus”, entendido como sistema de disposicoes duraveis,
estruturadas de acordo com o meio social dos agentes e que seriam “predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, isto é, como principio gerador e estruturador das préticas e
das representacoes” (PBS, 61). O conceito de habitus faria, assirn, a ponte, a mediacao entre
as dimensoes objetiva e subjetiva do mundo social, ou, simplesmente, entre a estrutura e a
A010 23
acao pratica. O argumento de Bourdieu é que a estruturacao das praticas sociais nao é um
processo que se faca mecanicamente, de fora para dentro, de acordo com as condicoes objetivas
presentes num determinado espaco ou situacao social. N50 seria, por outro lado, um processo
conduzido de forma autonoma, consciente e deliberada pelos sujeitos individuais. As préticas
sociais seriam estruturadas, isto é, apresentariam propriedades tipicas da posicaosocial
de quern as produz, porque a prépria subjetividade dos individuos, sua forma de perceber
e apreciar o mundo, suas preferéncias, seus gostos, suas aspiracoes estariam previamente
estruturados em relacao ao momento da acao.
Segundo Bourdieu, cada individuo, em funcao de sua posicao no espaco social, vivenciaria
uma série caracteristica de experiéncias que estruturariam internamente sua subjetividade,
constituindo uma espécie de “matriz de percepcées e apreciacoes” que orientaria, estrutu—
raria suas acoes ern todas as situacées subsequentes. Essa matriz, ou seja, o habitus, nao
corresponderia, no entanto, a um conjunto inflexivel de regras de comportamento a serem
indefinidamente seguidas pelo sujeito, mas, diferentemente disso, constituiria urn “principio
gerador duravelrnente armado de improvisacoes regradas” (PBS, 65).
Bourdieu realca essa dimensao flexivel do habitus, o que ele chama de relacao dialética
on n50 mecanica do habitus com a situacao, antes de mais nada, como forma de evitar uma
recaida no objetivismo. O autor insiste que 0 habitus seria fruto da incorporacao da estru—
tura e da posicao social de origem no interior do préprio sujeito. Essa estrutura incorporada
seria colocada em acao, no entanto, ou seja, passaria a estruturar as acoes e representacoes
dos sujeitos, ern situagoes que diferem, em alguma medida, daquelas nas quais o habitus foi
formado. O agente social, para usar o termo preferido por Bourdieu, precisaria, entao, ajustar
suas disposicées duraveis para a acao, seu habitus, formado numa estrutura social anterior,
a conjuntura concreta na qual ele age. 0 gram de ajustamento necessario variaria conforme
a maior ou menor similaridade entre as condicées objetivas‘dentro das quais o habitus foi
forjado e as caracten’sticas objetivas do contexto de acao. Nos casos de maior similaridade,
predominantes segundo o autor, os agentes estariam, por assim dizer, pré-adaptados ao seu
contexto de acao. Eles teriam o conhecimento pratico sobre as regras on o “sentido do jogo”
e saberiam, assim, reconhecer como evidentes os cursos de acao mais viéveis e adequados
para individuos corn sua origem social.
E importante, entao, observar que o conceito de habitus desempenha, na obra de Bourdieu,
o papel de elo articulador entre trés dimensoes fundamentais de anélise: a estrutura das
posicées objetivas, a subjetividade dos individuos e as situacées concretas de acao. A posicao
de cada sujeito na estrutura das relacées objetivas, ou seja, no espaco social, propiciaria um
conjunto de vivéncias tipicas que tenderiam a consolidaI—se na forma de urn habitus ajustado
a sua posicéo social. Esse habitus, por sua vez, faria com que esse sujeito agisse nas mais
diversas situacoes sociais, nao como um individuo qualquer, mas como urn membro tipico de
um grupo ou classe social que ocupa urna posicéo determinada na estrutura social. A0 agir
dessa forma, finalmente, o sujeito colaboraria, sem sabé-lo, para reproduzir as propriedades do
seu grupo social de origem e a prépria estrutura das posieées sociais na qual ele foi formado.
Assign, o conceito de habitus permite a Bourdieu sustentar a existéncia de uma estrutura
social objetiva, baseada em mfiltiplas relacées de luta e dominacao entre grupos e classes
sociais '-. das quais os sujeitos participam e para cuja perpetua'cao colaboram por meio de
24 An
suas acées cotidianas, sem que tenham plena consciencia disso -— sem necessitar sustentar
a existéncia de qualquer teleologismo ou finalismo consciente de natureza individual on
coletiva. A conviccao de Bourdieu é a de que as acées dos sujeitos tém um sentido objetivo
que lhes escapa. Eles agem como membros de uma classe, mesmo quando n50 possuem
consciéncia Clara disso; exertem o poder e a dominacao econémica (e, sobretudo, simbolica)
frequentemente, de modo nao intencional. As marcas de sua posicao social, 03 simbolos que
a distinguem e que a situam na hierarquia das posicoes sociais, as estratégias de acao e de
reproducao que lhe sao tipicas, as crencas, os gostos, as preferéncias que a caracterizam, ern
resume, as propriedades correspondentes a uma posicao social especifica, sao incorporadas
pelos sujeitos, tornando—se parte da sua prépria natureza. A acao de cada sujeito tenderia,
assim, a refletir e a atualizar as marcas de sua posicao social 6 as distincdes estruturais que a
definem, nao, em primeiro lugar, por uma estratégia deliberada de distincao e/ou de dominacao,
mas, principalrnente, porque essas marcas se tornaram parte constitutiva de sua corporeidade
e de sua subjetividade. Os sujeitos r1510 precisariam ter uma Visao de conjunto da estrutura
social e um conhecimento pleno das consequéncias objetivas de suas acoes, particularmente,
no sentido da perpetuacao das relacées de dominacao, para deliberadamente decidirem on
11510 a agir de acordo corn sua posicao social. Eles simplesrnente agiriam de acordo corn o que
aprenderam ao longo de sua socializacao no interior de uma posicao social especifica e, dessa
forma, nos termos de Bourdieu, confeririam as suas acoes um sentido objetivo que ultrapassa
o sentido subjetivo diretamente percebido e intencionado.
Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS) foi lancada em 1975 e dirigida por Pierre
Bourdieu até 2001, coordenando uma equipe de trabalho bem consolidada. O periédico, de natu-
reza interdisciplinar, esforcou-se para “desnacionalizar a ciéncia social”, inovar na representacao
grafica e nos resultados da pesquisa. Miceli (2002) escreveu que a revista procurou dar conta
de um triplice desafio: “afirmar um rosto teérico original para o oficio de sociélogo, lancar as
bases de aliancas com cientistas sociais estrangeiros considerados pares [...] e testar os graus de
universalizacao dos achados e dos conceitos derivados dos seus experimentos de investigacao”.
A publicacao, hoje trimestral, divulgou, além das teméticas que perpassavam 0 tecido social,
artigos dedicados a economia dos bens culturais (pintura, livros, literatura, moda, rm'lsica,
museus, academia, mito, ciéncia e as respectivas interrelacoes), a logica da classificacao social
e a fabricacao de coletivos sociais; textos referentes a etm'cidade, a regiao, a magic, a Vida social
— envolvendo a familia, a empresa, o partido, o Estado (WACQUANT, 2002, p. 106). A este inven-
tario tematico podemase acrescentar estudos das estratégias sociais de dominacao, distincao e
reproducao, bem como as préticas e 305 poderes intelectuais. Mencionem-se nfimeros sobre as
novas formas de desigualdade social e marginalidade originadas nos anos 1990 (WACQUANT,
2002, p. 105—6). Através daARSS Bourdieu manteve proficuo dialogo com intelectuais estrangei—
ros de primeira linha — Howard Becker, Aaron Cicourel, Robert Darnton, Norbert Elias, Brving
Goflirnan, Eric Hobsbawrn, Carlo Ginzburg, Gershom Scholem, loan Scott, Carl Schorske, Paul
Referéncias
MICELI, S. Uma revolucao simbélica. Tendéncias 6 Debates, Folha de S.Paulo, 27, p. 3-A, jan. 2002.
WACQUANT, L. O legado sociologico de Pierre Bourdieu; duas dimensoes e uma nota pessoal. Revista
de Sociologia e Politica, Curitiba: UFPR, n. 19, p. 95—110, novembro 2002.
3.AGENTE
Cldudio Marques Martins Nogueira
A adocao do termo “agente” por Bourdieu esta relacionada ao seu esforco de construcao
de uma teoria da acao prética, ou seja, de um conhecimento sobre o modo como agentes con-
cretos, inseridos e111 uma posicao determinada do espaco social 6 portadores de um conjunto
especifico de disposigoes incorporadas, agem nas situacées sociais.
E preciso considerar que Bourdieu constroi toda sua obra em contraposicao, por um
lado, a0 que ele chama de forma subjetivista ou fenomenolégica de conhecimento e, por
outro, as abordagens de natureza estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas. Bourdieu
(SPp; PBS) argumenta que o conhecimento fenomenolégico, representado 11a sociologia por
correntes como a Etnometodologia e o Interacionismo, restringir—se-ia a captar a experiéncia
e a percepcao imediata do mundo social, tal como vivida cotidianamente pelos membros da
sociedade. Essa forma de conhecimento, segundo o autor, excluiria do seu campo de investi-
gaeao a questao das condicoes de possibilidade dessa experiéncia subjetiva. Descrever-se-iam
as acées e interacoes sociais, mas nao se questionaria a respeito das condicoes objetivas que
poderiam explicar o curso dessas interacoes. Bourdieu estende essas observacoes criticas a urn
conjunto de teorias que vao além das correntes estritamente fenomenologicas — incluindo-se,
muito especialmente, a abordagem de Sartre e as teorias da escolha racional, estas filtimas
inspiradas no pensamento economico. O problema de todas essas abordagens, rotuladas
por ele de subjetivistas, nao seria apenas seu escopo limitado, o fato de elas nao atingirem as
bases sociais que supostamente condicionariam as experiéncias praticas, mas, sobretudo,o
fato de contribuirem para uma concepcao ilusoria do mundo social, que confere aos sujeitos
excessiva autonomia e consciéncia na conducao de suas acoes e interaeoes.
Em contraposicao a0 subjetivismo, o conhecimento objetivista, associado ao estruturalismo,
caracterizar—se- ia pela ruptura que promove em relacao‘a experiéncia subjetiva imediata. Essa
26 AGENTE
experiencia seria entendida como estruturada por relacoes objetivas que ultrapassam o plano da
consciencia e intencionalidade individuais. Segundo essas abordagens, seria necessa’rio investigar
as estruturas sociais que organizam, que estruturam a experiéncia subjetiva; inclusive para escapar
a concepcao de que os individuos séo seres autonomos e plenamente conscientes do sentido de suas
acoes. A0 mesmo tempo em que' considera necessaria essa ruptura com a dnensao subjetiva que
o objetivismo promove, Bourdieu mostra-se preocupado com a dificuldade dessa perspectiva de
construir uma teoria da prética, ou seja, de explicar como se dé a articulacéo entre os planos da
estrutura e da acao. O objetivismo tenderia a conceber a prética apenas como execucao de regras
estruturais dadas, sern investigar o processo efetivo por meio do qual as regularidades sociais sao
produzidas e reproduzidas pelos agentes por meio de suas acoes préticas.
O conhecimento praxiolégico e a nocao de agente a ele associada é apresentado e defendido,
entao, pelo autor como uma alternativa capaz de solucionar os problemas decorrentes das pers-
pectivas subjetivista e objetivista. O conhecimento praxiolégico néo se restringiria a identificar
estruturas objetivas externas aos individuos, tal come 0 faz o objetivismo, mas buscaria investigar
como essas estruturas se encontram interiorizadas nos agentes, constituindo um conjunto estavel
de disposicoes estruturadas, um habitus, que, por sua vez, estrutura as préticas e as representa-
coes das praticas. Essa forma de conhecimento apreenderia, entao, a prépria articulacéo entre os
planos da acéo ou das préticas subjetivas e o plano das estruturas, ou, como repetidamente diz o
autor, captaria o processo de “interiorizacao da exterioridade e de exteriorizacao da interioridade”.
. O uso recorrente do termo "agente” por Bourdieu nao se justifica, portanto, por uma sim-
ples preferéncia pessoal do autor. O termo marca, por um lado, a distancia que Bourdieu quer
estabelecer em relacao as concepcées subjetivista ou individualista, que fendem a se limitar a
experiéncia imediata dos sujeitos. Bourdieu insiste que as ciéncias sociais podern ir além da
simples descricao fenomenolégica do universo subjetivo em busca de suas condicoes objetivas de
possibilidade. Na perspectiva dele, seria possivel e necessario investigar as relacées entre o plano
subjetivo e objetivo, entre as escolhas, as percepcoes, as apreciacées e a localizacéo sincrénica e
diacronica dos individuos no espago social. Essa afirmacao do caréter socialmente situado das
subjetividades implica ainda uma rejeicao frontal de qualquer concepcao universalista sobre os
individuos e suas propriedades, como as que estao subtendidas na hipétese de um ator racional,
orientado por preferéncias universahnente dadas. Por outro lado, o termo “agente7’ também
permite um distanciamento em relacao ‘as concepcoes estruturalistas ou objetivistas, que
reduziriam os atores a simples executores de regras estruturais estabelecidas a partir do ponto
de vista do observador. O termo poe em relevo a dimensao concreta da acao, ou seja, o modo
como os individuos efetivamente agem em situacoes efetivas, modo esse que, 11a perspectiva de
Bourdieu (CDp), seria muito diferente da obediéncia estrita de um conjunto de regras.
Vale ainda ressaltar que as nocoes de agente e de habitus permitem a Bourdieu compreender o
funcionamento macroestrutural da sociedade, particularmente os processes de dominacao social,
sem precisaI supor que esses sao intencionalmente constituidos, seja pelos individuos isolados,
seja pelos grupos. O raciocinio de Bourdieu comp6e~se, na verdade, de duas partes. Em primeiro
lugar, afiIma que os agentes agem de acordo corn 0 habitus herdado do seu grupo social. Os indi-
viduos percebem os elementos envolvidos nas situacoes, estabelecem seus objetivos prioritarios e
selecionam as estratégias a serem utilizadas em cada acao, sempre de acordo com seu sistema de
disposicées socialmente estruturado. Em outros tennos, isso significa que os agentes nao escolheriam
AGENTE 27
seus cursos de acao de uma forma conscientemente calculada, considerando racionalmente os
custos e beneficios de cada possibilidade alternativa de acao, mas que, inversamente, tenderiam
a seguir os modos de comportamento caracteristicos do seu grupo de origem. No entanto, e a1’
se chega a segunda parte do racio cinio, apesar de nao terem sido consciente e estrategicamente
seletionados, mas sim socialmente configurados, os cursos de acao adotados pelos agentes
seriam, objetivamente, os mais adequados. As acées apresentariam um sentido estratégico,
uma adequacao em relacao as condicoes objetivas, que ultrapassaria irnensamente o sentido
conscientemente atribuido pelos sujeitos ‘as suas préprias acoes. Primeiro, os agentes tende-
riam a selecionar objetivos considerados razoaveis, adequados as possibilidades objetivas de
realizacao; segundo, tenderiam a manipular os meios disponiveis para a acao, recursos mate~
riais e simbolicos, da forma estrategicamente mais pertinente para sujeitos localizados na sua
posicao social; terceiro, agiriam da forma que mais contribui para a manutencao e legitimacao
da estrutura de dominacao social, basicamente, reeditando e reforcando constanternente os
processos de distincao e hierarquizacao social.
Essa aparentemente paradoxal racionalidade nao consciente ou intencional da acao indi—
vidual seria explicada por Bourdieu pelo fato de 0 habitus de cada grupo social ser fruto de
um processo histérico de adequacao do grupo ‘as possibilidades e necessidades préprias a sua
condicao objetiva de existéncia. A ideia é que, pelo acfimulo histérico de experiéncias de éxito
e de fracasso, os grupos sociais iriam constituindo um conhecimento pratico relative a0 que
é possivel on n50 de ser alcancado pelos seus membros dentro da realidade social concretalna
qual eles agem e sobre as formas mais adequadas de fazé-lo. Na perspectiva de Bourdieu, ao
longo do tempo, as melhores estratégias acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam,
entao, incorporadas pelos agentes como parte do seu habitus.
5. AMOR FATI
Ver: Conatus
BOURDIEU, P; DARBEL, A. O amorpela arte: as museus de arte na Europa e seu pdblico. Cola—
boracéo de Dominique Schnapper. Séo Paulo: EDUSP; Zouk, 2003.
Publicado originalmente em 1966, revisto e ampliado, com nova edicao em 1969 — que é a
base da traducao brasileira ~, 0 amorpela arte: as museus de arte na Europa e seu pdblico é
.,
fruto de pesquisa dirigida por Bourdieu (colaboracao de Dominique Schnapper), enquanto Alain
Darbel construiu o plano de sondagem e elaborou o modelo matemético destinado a anélise da
frequéncia das visitas a museus (AAp, 13). O trabalho, envolvendo grands equipe de pesquisadores
e auxiliares, recebeu o financiamento parcial do Service de Estudos e Pesquisas do Ministério das
Questoes Culturais da Franca, e resultou da aplicacao de questionérios em amostras selecionadas
de museus na Franca, Espanha, Grécia, Itéh'a, Holanda e Polonia, em 1964 e 1965.
O amorpela arte organiza—se a partir de um curto preambulo, breve introducao, capitulo
dedicado aos procedimentos da pesquisa, concluséo, cronologia das pesquisas efetuadas,
detalhados apéndices, breve bibliografia e em trés grandes partes, a saber: “Condicoes so-
ciais da prética cultural”, “Obras culturais e disposicao culta” e “Leis da difusao cultural”.
Bourdieu, quando o livro foi editado, era urn intelectual em ascensao, com 36 anos, diretor
de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, diretor do Centre de
Sociologie de l’Education et de la Culture, além de ja ter publicado sete livros -— quase todos
com colaboradores (A. Darbel, I. P. Rivet, C. Seibel, A. Sayad, I. C. Passeron, L. Boltanski, I. C.
Chamboredon, M. de Saint Martin): Sociologie de lilllgérz'e (1958); Travail et travailleurs en
Algérie (1963); Le déracinement, la crise de l’agriculture traditionnelle en Alge’rie (1964);
Les étudz’ants et leurs études (1964); Les héritiers. Les étudiants et la culture (1964); Un art
moyen, essai sur les usages sociaux de la photographie (1965) e Rapportpédagogique et
communication (1965) -, alérn de alguns capitulos de livros e mais de uma duzia de artigos
em conceituados periédicos académicos (Etudes Rurales, Sociologie du Travail, Revue
Francoise de Sociologie, Les Temps Modernes) .
Nas orelhas da edicao brasileira, Iosé Carlos G Durand escreve que a partir das pesquisas
realizadas através de questionarios corn milhares de visitantes de museus em seis paises da
Europa, o livro “revela que 0 mode como as pessoas descrevem e justificam seus hébitos culturais
jamais pode ser aceito pelo seu valor nominal. Tornar por realidade as crencas e 03 discursos
das pessoas (mesmo as ricas e cultivadas), a respeito de arte e culture, significa converter
, em principio de explicacao o que esté pedindo para ser explicado. E ai entra a sociologia”.
Bourdieu entende que os museus abrigam tesouros artisticos que se encontram, ao mesmo
tempo — e paradoxalmente —-, abertos a todos e interditados a maioria das pessoas. Aqueles
pertencentes a qualquer classe social 6 corn distintos graus de escolarizacao podem frequentar
museus, nao é verdade? Sim e 1150; ou melhor, em termos: para se poder viver a plenitude desse
amor, sem condicionamentos ou limitacoes, é preciso que os amantes possuam determinadas
disposicoes que foram sendo adquiridas lentamente, envolvendo dedicacao, perseveranca’ e o
cumprimento de uma gama de obrigacées. N50 existe nern pecado nern perdao, tal amor surge de
maneira “natural”, apos a assimilacao do principio do prazer culto, produto artificial da arte e do
artificio, que vem a ser “a verdade oculta do gosto oculto”. Os autores se perguntam se a pratica
obrigatéria pode conduzir ao verdadeiro deleite on se 0 prazer cultivado é irremediavelmente
marcado pela impureza de suas origens. A0 longo de 0 amorpela arte mostra~se como o cora—
céo obedece a razao, pois séo desvendadas as condicoes sociais de acesso ‘as praticas cultivadas,
fazendo ver que a cultura nao é um privilégio natural, mas bastaria que todos possuissem os
meios para que pudessem dela tomar posse para que pertencesse a todos.
A frequéncia dos museus em todos os paises pesquisados aumenta de maneira consideravel
a medida que se eleva o nivel de instrucéo, correspondendo quase que exclusivamente a um
Referéncias
BRAGA, R. Visita a Jean Cocteau. In: . Retratos parisienses. Selecao e apresentacao Augusto
Massi. Rio de Ianeiro: Iosé Olympic, 2013. p. 37—40 (Escrito originalmente para o jornal Correio
da Martha, 19 mar. 1950).
CATANI, A. M. A cultura nao é um privilégio natural. Apresentacao. BOURDIEU, P.; DARBEL, A.
O amorpela arte: 05 museus de arte na Europa e seu pfiblico. Colaboracao de D. Schnapper. Sao
Paulo: EDUSP; Zouk, 2003. p. 7-11.
7.:0N5???.PFEQBEFSPF’NDENC'AS WWW?........................................
Denis Baranger
.J
um procedimento anélogo, quando os professores universitarios eram langados no espago
das faculdades de letras, estruturado com base em indicadores de posigao. Ao observar
esses individuos, escrevia Bourdieu, “saltaré aos olhos de todos os observadores habituados
ao detalhe dos acontecimentos universitarios de 1968” que a estrutura das posieoes esté em
correspondéncia com a distribuieao das tomadas de posieao. O que se vé bem nesse exemplo
é que a variével — a modalidade correspondente a uma propriedade denotada por urn nome
comum - é substituida pelo nome préprio.
Trata-se, como serfipre, de mostrar a relaeao de homologia segundo a qual as tomadas de
posieao dependem das posigoes ocupadas pelos agentes na estrutura do campo. Mas, apés
La distinction, os dados da ACM referem~se a um 86 dos termos dessa relagao, enquanto as
tomadas de posieéo aparecem apenas no comentério de Bourdieu baseado em outras fontes
que nao intervém na ACM, nem sao processadas quantitativamente. No proprio cerne do.
esquema explicativo de Bourdieuencontra-se a intervengao insubstituivel do qualitative.
Posteriormente a La distinction, todas as ACM de Bourdieu mostram essa mesma es~
trutura explicativa. A ACM é engendrada a partir de variéveis de base (processadas como
V modalidades ativas), o que permite tornar visivel a estrutura do campo e as posigoes dos
individuos. Depois o plano fatorial é o elemento fundamental para a interpretaeao de outros
materiais que poderao ser de natureza quantitativa ou qualitativa. Assim, a ACM tera sido
para Bourdieu tanto uma ajuda para pensar quanto urn meio de exposigao dos resultados
de suas analises.
Referéncias
BENZECRI, LP. etal.1. L’Analyse des données;II.L1‘1nalyse des correspondarzces. Paris: Dunod, 1973.
BOURDIEU P. Une revolution conservatrice dans 1’édition.ARSS, v. 126—127, p. 328, 1999.
BOURDIEU R; SAINT MARTIN, M. L’Anatomie du gofit. ARSS, v. 2 , n. 5, p. 1‘81, 1976.
BOURDIEU P.; SAINT MARTIN, M. Le patronat. ARSS, v. 20—21, p. 3~82, 1978.
8. ANTROPOLOGIA REFLEXIVA
Paula Montero
ANTROPOLOGIA REFLEXIVA 33
Uma diz respeito a consciéncia do pesquisador de que sua formacao, seus modos de pensar e
agir, sua insercao social e suas relacoes afetam a situacao que esté sendo observada. A outra
se refere a pei‘cepcao de que toda prética cultural envolve, por parte do agente, consciéncia
e comentério sobre ela mesma. Pierre Bourdieu transformou essas duas dimensoes em pro—
blemas teérico-metodolégicos centrais da sua reflexao sobre as condicoes de objetividade
nas ciéncias humanas.
Esquisse d’une théorz'e de la pratique, publicado em 1972, e o compéndio de ensino em
pesquisa, s’cio do sociélogo (1973), podem ser consideradas as obras mais importantes para o
entendimento de sua critica epistemologica ‘as teorias e praticas cientificas correntes no campo
das ciéncias sociais. No trabalho de 1972 o autor constréi sua teoria das préticas sociais em um
dialogo critico com os limites heuristicos do estruturalismo e da hermenéutica. No primeiro
caso, observa que o modo de conhecimento objetivista implicito no estruturalismo apreende
as praticas de forma externalista sem perguntar-se sobre os principios que a geram. A0 fazer
uma transposicao do modelo linguistico desacompanhada de uma reflexao epistemolégica
das condicoes e dos limites dessa transposicao, a antropologia estruturai identificou cultura e
lingua e, ao fazé-lo, privilegiou a estrutura dos signos em detrirnento das funcoes politicas, de
comunicacao e de conhecimento presentes em toda pratica. 12'; o modo de conhecirnento intera~
ciom’sta pecaria, no seu entendimento, pela reducao das estruturas objetivas que determinam
toda interacao social 51 subjetividade das relacoes de um individuo com o outro.
Em Ofl’cio do sociélogo, Bourdieu afirma a necessidade de submeter toda prética cientifica
a critica da razao epistemologica. Isto significa romper, por um lado, com o empirismo que
faz do ato de conhecimento cientifico uma simples constatacao do mundo real 6, por outro,
com o convencionalismo de uma sociologia esponténea que apenas sistematiza as opinioes
correntes no universo social em uma metalinguagem. Ele formula entao os dois posicionamen—
tos bésicos que definem as condicoes de possibilidade de todo discurso cientifico nas ciéricias
sociais: contra o empirismo é preciso considerar que todo fato cientl’fico é construido pela
critica incessante das evidéncias; contra a filosofia humanista da acao é preciso ter em conta
que a Vida social nao deve ser explicada pela concepcao que dela tém os sujeitos. Ao promover
as relacoes estabelecidas em campo como meio privilegiado de conhecimento, a “observancao
participante” corre o risco de deixar-se seduzir pelas demandas do objeto.
Os fundamentos da vigilancia epistemologica e suas relacoes com a critica teérica e meto-
dologica na producao do conhecimento cientifico foram bem delineados nessas duas obras do
inicio dos anos 1970. No entanto, foi o seu trabalho em colaboracéo corn Lo'ic I. D. Wacquant
publicado em 1992 — Réponses - que tornou mais explicito o que seria para Bourdieu uma
ciéncia social reflexiva. Editado na forma de um dialogo com o autor, o livro refine os principais
posicionamentos de Pierre Bourdieu com relacao a0 debate da ciéncia social anglo~americana
da década de 1980. Os temas e conceitos mais importantes foram agrupados por Wacquant
sob duas grandes rubricas: “as finalidades da sociologia reflexiva”, que refine as questoes de
seus alunos em seminario de pesquisa na Universidade de Chicago em 19864987, e “a prética
da antropologia reflexiva”, que faz o mesmo a partir de um seminério na Ecole des Hautes
Etudes en Sciences Sociales, Paris, no mesmo ano.
Percorrendo em perspectiva esse conjunto de textos, pode-se perceber que a reflexivi—
dade é- tomada como uma forma de auto-objetivacao e de objetivacao dos pontos de vista
34 ANTROPOLOGIA REFLEXWA
a partir dos quais o mundo social é visto e construido. No caso da sociologia, a reflexivi-
dade diz respeito a necessidade de uma critica ‘epistemologica ao pensamento realista. A
maior parte dos pesquisadores em ciéncias sociais toma por objeto problemas relativos a
populacoes delimitadas de maneira mais ou memos arbitréria: velhos, jovens, imigran-
tes, etc. Para romper com essa ilusao realista é preciso objetivar o trabalho historico de
construcao dessas unidades sociais relativamente homogéneas que se tornam de maneira
impensada objetos pré-construidos da ciéncia. Por meio da reflexibilidade o sociologo
pode evitar que o mundo social opere através do pesquisador oferecendo-lhe, como se jé
estivessem prontos, os problemas cientificos que cabe a ele construir. Com efeito, as ciéncias
sociais estao permanentemente expostas a acolher os problemas do mundo social como se
fossern objetos de ciéncia. Muitos dos objetos reconhecidos pelas disciplinas académicas
nada mais 350, na verdade, do que problemas sociais contrabandeados para a sociologia
(pobreza, delinquéncia, juventude, educacao, lazer, esportes, etc). Bourdieu nos lembra,
reiteradamente, que o mundo social constroi sua representacao de si servindofise também
da sociologia e dos sociologos. Pode-se dizer o mesmo do mundo cultural e dos antropo-
logos. A objetivacao de sua posicao e do seu préprio pensamento p‘ermite a0 sociélogo/
antropélogo romper com essa persuasao clandestina da linguagem corrente do Estado, da
burocracia, dos meios de comunicacao, do nativo, etc. Somente a partir da disposicao para
a reflexibilidade é possivel evitar que o pesquisador se torne instrumento daquilo mesmo
que ele pretende pensar. A socioanalise proposta por Bourdieu exige urn retorno reflexivo
no qual a desconstrucao critica do objeto se aplica também ao pesquisador. Foi esse esforco
de objetivacao que o autor empreendeu ao examinar o mundo académico francés no Homo
academicus. Em contraponto ao campo intelectual francés, o que mais falta na tradicao
sociolégica norte~americana é, no entender de Bourdieu, uma analise verdadeiramente
critica de suas proprias instituicées universitarias.
No caso da antropologia, a reflexibilidade diz respeito ‘a necessidade do pesquisador
de, ao mesmo tempo em que observa o mundo social, refletir sobre sua prépria posicao de
observador erudito. E claro que, para falarmos do mundo, somos de certo modo obrigados
a abstrair o fato de que-também estamos nele. No entanto, essa posicao cognitiva, quando
nao objetivada, cria um viés intelectualista, préprio a abordagem estruturalista. Com
efeito, observa Bourdieu, “o conhecimento teérico deve infimeras de suas propriedades
mais essenciais ao fato de 'que as condicoes de sua producao 11510 550 as da prética” (R, 50).
No entanto, a reflexibilidade exige objetivar a pretensao heuristica dessa posicao de um
observador imparcial e externo, onipresente e ausente, quase divino para nao transformar
a antropologia 1mm simples instrumento de luta politica ao invés de poderoso instrumento
de conhecimento dessas lutas. Para evitar o int‘electualismo é preciso objetivar os esquemas
de percepcao e cognicao do préprio observador. Isto nao significa um retorno complacente
e intimista ‘a pessoa do pesquisador, essa espécie de observacao do observador inaugurada
pela pés—modernidade antropologica que fala mais do autor do que de seu objeto de estudo.
Objetivar os esquemas do senso prético nao tem por objetivo demonstrar que as ciéncias
sociais constituem apenas mais um ponto de vista sobre o mundo, nem mais nem menos
cientifico do que qualquer outro. A reflexividade significa para Bourdieu a condicao mesma
de uma prética cientifica rigorosa.
ANTROPOLOGlA REFLEXIVA 35
Maria Alice Nogueira
V “Arbitrério cultural” er o termo utilizado por Bourdieu para designar o fenomeno social
que consiste em erigir a cultura particular de uma determinada classe social (a “classe do—
minante”) em cultura universal. A arbitrariedade do processo residiria, segundo o sociélogo
francés, na ocultacao da origem de classe dessa variante cultural, isto é, no apagamento do
fato de que ela nao possui, em si mesma, nenhurn valor intrinseco, retirando toda a sua su-
perioridade do fato de estar em posicao dominante nas relacoes de forcas entre os diferentes
grupos sociais. Ia em 1970, em La reproduction, obra escrita corn Jean-Claude Passeron e
uma das mais importantes da primeira etapa de sua trajetéria intelectual, Bourdieu escrevia:
“A selecao de significados que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma
classe como sistema simbélico é arbitréria, na medida em que a estrutura e as funcées
dessa cultura nao podern ser deduzidas de nenhum principio universal, fisico, biolo—
gico ou espiritual, nao estando unidas — por nenhuma espécie de relacao interna — a
natureza das coisas ou a natureza humana” (LR, 22).
Portanto, desde o im’cio de sua carreira, Bourdieu formulava a tese de que um poderoso traba—
lho social ~ que se da em escala societéria — de “legitimacéo” da cultura das classes dominantes
resultou na producao de uma cultura“leg1’tirna” — posto que legitimada pelos agentes sociais —,
cuja origern ficou esquecida num processo dito de “amnésia da génese”. “Em uma formacéo
social determinada, a cultura legitima, i.e., a cultura dotada da legitirnidade dominante,
nao é outra coisa 5611510 0 arbitrario cultural dominante, na medida em que ele é ignorado
em sua verdade objetiva de arbitrério cultural e de arbitrério cultural dominante” (LR, 38).
' Desenvolvendo melhor o argumento, diriamos que Bourdieu defende que nenhuma cultura
pode ser objetivamente definida corno superior a outra cultura. Os conhecimentos, signifi-
cados e valores que orientariam cada classe ou grupo social em suas disposicoes e condutas
seriam, por definicéo, arbitrarios, ou seja, nao estariarn fundamentados em nenhuma razao
objetiva, universal. Porém, apesar de arbitrarios, esses significados e valores — isto é, a cultura
de cada grupo — seriam concebidos e Vividos pelos individuos como os unicos possiveis ou,
pelo menos, corno os unicos Validos. .
Na perspectiva de Bourdieu, a conversao de um arbitrario cultural em cultura legitima so
pode ser compreendida quando se considera a relacéo entre os varios arbitrérios em disputa
em uma determinada sociedade e as relacoes de forca entre os grupos ou classes sociais exis-
tentes nessa mesma sociedade. No caso das sociedades de classes, a capacidade de imposicao,
de inculcacao e de legitimacao de um arbitrario cultural corresponderia a forca da classe
social que o sustenta. Assim, de um modo geral, os significados (conhecimentos, valores,
etc.) arbitrarios, capazes de se impor como cultura legitima, seriarn aqueles sustentados
pelas classes dominantes.
Além disso, é fundamental, no pensamento bourdieusiano, a ideia de que a eficécia on
a forca social desse processo de imposicao de um arbitrario cultural repousa sobre o fato de
que ele se da de modo dissimulado, o que ~ de resto — aconteceria corn todas as formas de
hierarquia social que retiram sua legitimidade do fato de que a arbitrariedade, que esté na
origem de sua constituicao, passa despercebida aos olhos dos atores sociais. E a esse processo
36 ARBITRARIO CULTURAL
de mistificacao de um arbitrario cultural corno cultura universal que o autor da o nome de
“violéncia simbélica”. _ ‘
Para Bourdieu, o mesmo fenomeno ocorreria no caso da instituicao escolar. Os saberes e
todos os conteudos curriculares transmitidos e veiculados pelos sistemas de ensino, e consi-
derados como a cultura legitirha, nao constituiriarn senao o arbitrario cultural dominante,
isto é, a cultura e 05 saberes das classes dominantes, sern nenhumarelacao de superioridade
'intrlnseca corn as outras variantes culturais. Observa, no entanto, que a autoridade pedago—
gica, ou seja, a legitimidade da instituicao escolar e da acao pedagogica que nela se exerce so
pode ser garantida na medida em que o caréter arbitrario e socialmente imposto da cultura
escolar é ocultado.
Portanto, apesar de arbitréria e socialmente vinculada a uma dada classe, a cultura escolar
precisaria, para ser legitimada, se apresentar como uma cultura neutra. A autoridade alcan-
cada por uma acao pedagogica, ou seja, a legitimidade conferida a essa acao e aos conteudos
que ela distribui seriarn propOrcionais a sua capacidade de se fazer ver como nao arbitréria
e nao vinculada a nenhuma classe social. Assim, na medida em que impoe e inculca em seu
publico, de modo dissimulado, um arbitrério cultural como cultura universal, a instituicao
escolar pratica ~ a sua maneira e sobre aqueles desprovidos, pelo nascirnento, de “heran’ca
cultural” — urn ato de “violencia sirnbolica”.
Segundo Bourdieu, no que concerne aos grupos sociais dominados, o maior efeito dessa
“violéncia simbolica” exercida pela escola nao é a perda da cultura familiar de origem e a
“aculturacao” em urna nova cultura exégena, mas o reconhecirnento, por parte dos membros
desses grupos, da superioridade e legitimidade da cultura dominante. No inicio dos anos
1960, em Les hérz‘tiers, Bourdieu e Passeron escreviam: “Para os filhos dos camponeses,
dos operérios ou dos pequenos comerciantes, a aquisicao da cultura escolar é aculturacao”
(LH, 37). Esse reconhecimento se traduziria numa desvalorizacao do saber e do saber fazer
tradicionais dos meios populares, em favor do saber e do saber fazer socialmente legitimados.
A esse respeito, na obra La distinction, corn base em resultados de pesquisa sobre as
préticas culturais dos franceses, que demonstravam, entre outras coisas, a tendéncia dos
entrevistados menos instruidos em disfarcar sua ignorancia e em exibir comportamentos e
opinioes que lhes pareciam as mais préxirnas da legitimidade cultural, Bourdieu (197-9) conclui
que “Os membros das diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau em que
reconhecem a cultura do que pelo grau em que eles a conhecem: as declaracoes de
indiferenca sao excepcionais e mais ainda as rejeicées hostis - ao menos na situacao de
imposicao de legitimidade que a relacao de pesquisa cultural como um quase exame
provoca. Urn dos mais seguros testemunhos do reconhecimento da legitimidade reside
na propensao dos mais desrnunidos a dissi'fnular sua ignorancia ou sua indiferenca
e a homenagear a legitimidade cultural da qual o entrevistador é, aos seus olhos, o
depositario, escolhendo em seu patrimonio aquilo que julgam o mais conforme com
a definicao de legitimidade" (LD, 365).
' Vérias $510 as criticas dirigidas hoje a teoria da legitimidade cultural. Uma das mais im-
portantes emana de dois antigos colaboradores de Bourdieu, Claude Grignon e Iean~Claude
Passeron (1989), que reconhecem nessa teoria urna “forca” e urna “limitacao”. A primeira viria
do fato de que ela representa urn justo golpe no relativismo cultural, por se negar a conceber
ARBITRARIO CULTURAL 37
a cultura dos diferentes grupos sociais fora do quadro das relacées de dominacao existentes
entre eles. Por outro lado, segundo eles, ela nao conseguiria “descrever positivamente o
arbitrério das culturas dominadas, isto é, descrever em todas as suas dimensoes simbélicas
_o que existe e ainda funciona, mesmo quando se trata da cultura dos dominados”. De tal
modo que “as praticas e os tracos culturais das classes populares se veem privados do sentido
que eles retiram de seu pertencimento a um sistema simbélico” (GRIGNON; PASSERON, 1989,
p. 36) na medida em queo sociologo so 05 enxerga pelo lado negativo da falta, da infracao,
do erro, enfim da distancia envergonhada dos padroes legitlmos.
Referéncia
GRIGNON, C.; PASSERON, I. C. Le savant et le populaire. Paris: Gallimard/Le Seuil, 1989.
'1 o. ARGELIA
Enrique Martin Criado
A Argélia desempenha um papel essencial na obra de Bourdieu. E nesse pais onde, apos
haver estudado filosofia, comeca a se dedicar a sociologia. Na Argélia realiza sua primeira
pesquisa e sobre a Argélia escreve seus primeiros textos. Urna regiao desse pals, a Cabflia,
lhe proporciona 0 material fundamental a partir do qual propoe uma de suas principais
contribuicées, a teoria da pratica. Na Argélia comeca seu compromisso politico pfiblico, de-
fendendo a causa da independéncia diante da Franca. Este compromisso com o povo argelino
continuara até 0 final de sua Vida, denunciando a cumplicidade do governo francés com o
governo militar argelino na guerra que se desencadeia depois da anulagao, em 1992, das
eleicoes ganhas pela Frente Islamica de Salvacao (PIS), fundando corn outros intelectuais, em
1994, o Comité Internacional de Apoio aos lntelectuais Argelinos (CISIA), ou denunciando o
fechamento das fronteiras da Franca, impedindo o exflio de dezenas de milhares de pessoas
cuja Vida corre perigo no cruzamento de massacres entre islamitas e militares argelinos
(alguns desses textos encontram-se em INT).
Depois de estudar filosofia em Paris e trabalhar durante um breve periodo corno professor
em um liceu cle Moulins (centre da Franca), Bourdieu é recrutado. Destinado inicialmente a
Versalhes, é enviado no inicio de 1956 para a Argélia, em plena guerra de independéncia da
Franca (19544962). Depois de alguns meses na regiao de Chélif, é transferido para o Governo
Geral de Argel. Ali entra em contato com varies pesquisadores que, corno ele, sao muito cn’ticos
em relacao ‘a colonizacao francesa ~ como André Nouschi, que pesquisa a desestruturacao do
mundo rural argelino a custa da colonizacao e de suas leis. Nessa época, Bourdieu comeca a ler
Sociologia — uma disciplina menosprezada na Ecole Normale Supérieure onde havia estudado —,
ao mesmo tempo em que escreve seu primeiro livro, Saciologie de l’Algérie (1958). Isolaose
na biblioteca do Governo Geral, onde lé a literatura etnolégica colonial sobre a Argélia, que
se constituira na matéria-prima de seu livro. Nele examina, também, os autores que entao
esta conhecendo: Weber, Marx, mas, sobretudo, Durkheim, Levi-Strauss e Margaret Mead,
a quem lé com entusiasmo e de quem toma os principais esquemas analiticos para o livro
(MARTI’N CRIADO, 2008). Além do mais, esse trabalho constitui uma critica a colonizacao
38 ARGELIA
(compilados em EA). 0 livro foi
argelina ~ que Bourdieu continuara em artigos posteriores
ente opostos a independéncia
muito mal recebido entre os franceses de Argel, majoritariam
e entre os quais predominavam posturas de extrema direita.
nte na Faculdade de Letras
Apés seu service militar, Bourdieu é contratado como assiste
lmalek Sayad. Entra em contato com
da Universidade de Argel, onde tern como aluno Abde
Economique et Sociale (ARDES), forma da
a Association pour la Recherche Démographique,
recebe o encargo do exército francés
por estatisticos franceses e aigelinos. Esta associacao
milhoes de pessoas haviam sido
de investigar as populagoes deslocadas pela guerra (dois
ento e seus povoados foram
deslocadas pelo exército francés para campos de reagrupam
e realizar a interpretacao sociolégica
destruidos). Bourdieu é chamado para dirigir a pesquisa
na qual combina todas as técnicas
dos dados estatisticos. Organiza uma grande pesquisa,
administrativos, observacao participante,
de investigacao — enquetes, anélises de registros
a desestruturacao e a miséria da
entrevistas... —, centrada no alojamento e no emprego, sobre
a e sobre a passagem de uma sociedade
sociedade argelina por causa da colonizagao e da guerr
pré~capitalista a uma sociedade capitalista.
vermelha das associacoes de
Em 1960 Bourdieu, avisado de que se encontra na lista
a agitacao repleta de atentados, que
extrema direita (O que significa, naquela época de intens
Raymond Aron na Sorbonne. Entre—
sua Vida corre perigo), volta a Paris, como assistente de
partir dds quais escreveré dois livros:
tanto, continua analisando os materiais da pesquisa, a
nt (1964). Ambos os trabalhos
Travail et travailleurs en Algérie (1963)e Le déracineme
na no memento da independéncia. Seu
oferecem uma detalhada descricao da sociedade argeli
ional a uma sociedade moderna
fio condutor é a anélise da passagern de uma sociedade tradic
. Travail et travailleurs en Algérie se
nas dramaticas condicées da colonizacao e da guerra
subproletarios, operérios, artesaos - dentro
centra especialmente nos trabalhadores urbanos —
déracz'nement, por sua vez, analisa a
de uma anélise geral da estrutura social argelina. Le
nos campos de reagrupamento. Além
populacao camponesa a partir da pesquisa realizada
o francés, Bourdieu, em tais obras, jé
de realizar uma documentada dem’mcia do colonialism
s textos a estrutura social argelina, os
se revela como um profundo sociélogo. Analisa ne'sse
o das condicoes de existéncia, a relacao
comportamentos trabalhistas, os arranjos em funca
tipos de disposicoes e habitat, o “contégio
entre aspiracoes e condicoes objetivas, a relacao entre
mo a partir dos modelos urbanos de classes
das necessidades” nos comportamentos de consu
o nas relacoes familiares, na concepcao do
médias, as consequéncias do trabalho assalariad
s, a introducao de medidas homogéneas -
tempo ou na transformacao das sociedades rurai
ncas que provoca, a transformacao dos
de tempo, de produtos... — e as resisténcias e muda
concepeao de enfermidade. O fio condutor
rituais de sociabilidade cotidiana, a mudanca na
lista e a capitalista, a passagem de uma
é a contraposicao entre a racionalidade pré-capita
'
sociedade tradicional a uma sociedade moderna.
sua teoria do habitus: as condicoes de
Nesses livros ele jé p6e em pratica o que seré
disposicoes que tendem a reproduzir as con.—
existéncia produzem urn determinado tipo de
s, iguahnente, a relacao entre projecao a0
dicfies das quais sao produto. Nelas jé encontramo
de de realizar projetos sensatos de future
futuro e condicoes de existéncia — a probabilida
a ~ e a transferibilidade dos esquemas
depende das protecoes que a situaeao presente oferec
a dominios muito diferentes da pratica.
do habitus — os mesmos esquemas sao aplicados
ARGELIA 39
A diferenga dos textos posteriores em que teorizaré o habitus ~ onde insiste no ajuste do
habitus a situagao —, aqui tudo é questéo de desajuste. Caniponeses e subproletérios se
acham em perpétua tensao entre uns esquemas adqujridos em uma sociedade tradicional e
anova situagao de extensao das relagoes capitalistas. Este desajuste tem duas consequéncias.
Em primeiro lngar, a desestruturaqao da sociedade tradicional leva os individuos a consciéncia
do desajuste entre seus esquemas e a realidade e, a partir dela, ao retomo reflexivo sobre tais
esquemas. Passa~se de um ethos implicito a uma ética explicita. A segunda consequéncia é
o constants funcionamento, nos mesmos sujeitos, de duas logicas distintas; a tradicional em
que foram socializados e a nova em que estéo aprendendo. A maioria dos argelinos utilizaria
constantemente ambas as logicas segundo a situagao ou realizaria sinteses mais ou menos
instéveis: viveria uma experiéncia de desdobmmento.
Todavia, os textos mais conhecidos de Bourdieu sobre a Argélia sao aqueles que dedica a
uma regiao bebere, a Cabflia. Em suas pesquisas no pais, Bourdieu também havia se dedicado a
compilar informagao etnolégica sobre esta regiao, perguntando a seus informantes sobre ternas
téo variados como os rituais, a honra, os intercambios de dons, os calendérios agricolas on a
genealogia. Na sua volta a Franga trabalha sobre esses materiais e escreve, ao longo da década
de 1960, trés artigos: sobre o sentido da honra, a casa cabflia e as estratégias de parentesco na
Cabflia. Os trés trabalhos se integram em Esquisse d’une théorie de la pmtz’que, pre’céde’ de
Trois e’tudes d’ethnologz'e kabyle (1972) ~ onde Bourdieu realiza a primeira exposigao sisternatica
de sua teoria do habitus — e em diferentes capitulos de Le sens pratique. De fato, se tais artigos
tém tanta relevancia é porque Bourdieu os utiliza como exemplos modelo de sua teoria da prética.
Com efeito, os artigos podem ser lidos como etapas da viagem de Bourdieu desde o
estruturalismo de Lévi—Strauss ~ representado, sobretudo, por “A casa cabflia” e, em menor
gran, por “O sentido da honra” — até o estrutumlismo genético, que ja se pode ver em “0
sentido da honra”, mas, sobretudo, em “0 parentesco como representaqao e como vonta-
de”. Aqui néo so rejeita a anélise do parentesco de Lévi—Strauss, como também introduz
plenamente o conceito de estratégia como oposto ao de regm, analisando as préticas ma~
trimoniais nao como atualizagées de um sistema de regras subjacente, mas como préticas
que jogam com as regras na persecugao de determinados interesses — contra as préticas e
os interessas de outros agentes — que héo de ser entendidos no conjunto das estratégias de
reprodugao dos grupos sociais.
De fato, Bourdieu — como ele mesmo reconheceu em numerosas ocasioes ~ havia estado
muito influenciado por Lévi~Strauss e seu método estruturalista. Um sinal evidente disso
é o artigo sobre a casa cabflia: aqui nos apresenta o sistema de oposigoes fundamental -
masculino/feminino, etc. —, suas correspondéncias nos diferentes ambitos, assim como suas
transformagées ~ a casa como espago onde se invertem os termos. Por sua vez, o artigo
sobre o sentido da honra tenta recompor e formalizar a estrutura inconsciente — conjunto de
oposigées e regras — de todas as préticas de honra, que se aplicaria também a outras préticas,
como o intercambio de dons. No entanto, nesse artigo jé introduz novidades que caracterizam
sua teoria da prética: o habitus como principio incorporado das préticas, a importéncia das
estratégias de reprodugéo, 0 capital simbolico. A ruptura com Lévi-Strauss é mais evidente
no arfigo sobre o parentesco, onde analisa as relagoes de parentesco como estratégias préticas
de reprodugéo social dos diferentes grupos soci‘ais.
4O AHGELIA
‘\/
Esses artigos, desse modo, proporcionam casos exemplares de uma sociedade onde a
integracao social se produziria a partir do habitus e onde o habitus estariam perfeitamente
integrados e aplicariam seus esquemas basicos aos diferentes ambitos da pratica. Cabilia seria
um caso exemplar porque seria uma sociedade tradicional.
Assim, na Cabilia as criancas seriam socializadas por meio da prética e da mimese,
per set uma sociedade desprovida de escrita e de escolas: dai que nela se possa observar
muito melhor a aquisicao prética, corporal, das disposicoes que conformam o habitus. Na
Cabilia, sern aparato juridico dotado do monopolio da violéncia fisica, a ordern juridica
se basearia, sobretudo, nos principios implicitos do habitus. Ela seria uma sociedade
agricola pré-capitalista sem economia de mercado que produziria, por meios tradicionais,
para o autoconsumo e que excluiria o desenvolvimento das forcas produtivas e a concen~
tracao de capitais: dai que se constitua em urn exemplo privilegiado de uma sociedade
onde as estratégias de acumulacao se baseiam no capital simbolico ~ na honra, nesse
caso. Sociedade simples e perfeitamente integrada, nela todos os dominios da prética se
organizariam a partir do mesmo conjunto reduzido de esquemas que conformariam uma
doxa que nao necessitaria passar pela consciéncia ou reflexao a0 ser compartilhada por
todos e ao se achar perfeitamente ajustada a situacao nessa sociedade estével e homogénea.
Como sociedade simples, na Cabilia se observariam melhor as légicas puras do habitus
e do capital simbélico.
Este é o aspecto mais discutivel desses estudos cabflios: a sociedade cabflia havia deixado
de ser uma sociedade tradicional muito tempo antes de que Bourdieu a conhecesse. Ia no
século XIX teria como principal atividade o cornércio; desde as invasoes islamicas se regia
por codificacoes juridicas — complicadas com a colonizacao francesa — e desde os fins do
século XIX era a zona mais escolarizada da Argélia (MAHE, 2001). Longe de ser uma socie»
dade tradicidnal, era a regiao mais modernizada da Arge’lia, onde as relacoes salariais e a
economia monetéria mais se haviam desenvolvido. Bourdieu nao ignorava tudo isso: de fato,
o assinalava em publicacoes como Travail et travailleurs en Algérie. Talvez tenha construido
uma imagem da Cabilia tradicional porque era a que mais convinha para defender sua teoria
da pratica, para oferecer um exemplo modelo do habitus (MARTiN CRIADO, 2013).
Referéncias
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ARGELIA 41
, ,l'
11. ART MOYEN (UN): ESSA] SUI? LES USAGES SOC/AUX
DE LA PHOTOGRAPH/E
BOURDIEU, P.; B‘OLTANSKI, L.; CASTEL, R.; CHAMBOREDON, }.—C. Un art moyen: essai sur les
usages sociaux de la photographie. Paris: Minuit, 1965.
12. ASCETISMO
13.AT|V|SMO
Afi'anio Mendes Catam'
g A
artigos escritos por Bourdieu ao longo de quarenta anos, consistindo—se em uma sumula de seu
engajamento em distintos movimentos sociais franceses e estrangeiros, revela a intensidade e
a contundéncia de seu pensamento. Principio com tais consideracoes acerca desse livro com
a finalidade de destacar que praticarnente desde o inicio de sua longa carreira o sociélogo
francés jamais deixou de intervir nos movimentos sociais que considerava significativos
para a transformacao de uma dada realidade social adversa a grandes setores da populacao.
Nas décadas de 1980 e 1990, Bourdieu intensificou sua acao, comecando por assinar a
peticao publica, com Michel Foucault, em 15 de dezembro de 1981, publicada no jornal Li-
beration, “Les rendez—vous manqués: aprés 1936 et 1956, 1981?”, contra a recusa do governo
socialista francés em apoiar o sindicato polonés Solidariedade, atacado pelas tropas do general
Jaruzelski. Em 1985 coordenou o documento “Propositions pour l’enseignement de l’avenir”,
elaborado por professores do College de France, obtendo ampla repercussao em vérios paises.
A exemplo de Emile Durkheim, postulando que os interesses da ciéncia podern ser resolvidos
apenas pelos préprios cientistas, criou, em 1989, a Liber: Revista Europeia de Livros (depois,
com o subtitulo Revista Internacional de Livros, adotado em 1994), que circulou até 1998. Era
uma publicacao trimestral encartada na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales.
“Comparado aveiculos similares nos Estados Unidos e em diversos paises europeus — The New
York Review ofBooks, Times Literary Supplement, London Review ofBooks, Le Monde des
Livres, etc. — com projetos gréficos dispendiosos e soflsticados, tiragens em escala comercial
compe'nsadora e esquemas empresariais de producéo e difusao, Liber procura tirar partido
de sua autonomia perante os grandes orgaos da imprensa, os maiores impérios editoriais, o
establishment de celebridades politicas, artisticas e intelectuais, as agendas dos radicalismos
de direita e de esquerda, voltando-se para urn publico de estudantes, pesquisadores especiall-
zados e produtores de cultura, junto aos quais garante o acesso por intermédio de sua lingua
nativa. Afora as versoes em francés, alernao e italiano desta ‘revista internacional de livros’
trimestral [...], Liber é também publicado em bulgaro, em hungaro, em sueco, em romeno, em
grego, em noruegués e em turco, ampliando desse modo sua forca de penetracao no interior
de cada urn desses campos nacionais de producao cultura ” (MICELI, 1997, p. 15). Foi definida
por Bourdieu corno uma forma de resisténcia a uma situacéo de ajuste intelectual, propondo—se
o resgate da capacidade de aliar a autonomia da esfera intelectual com o engajamento critico,
em um espaco publico e politico, tendo sido definidos o modelo e a “missile” dos intelectuais:
em lugar do intelectual total sartriano, tern-se o intelectual transdisciplinar e internacional,
alternativo aos poderes economicos, politicos e a midia (MICELI, 1997, p. 12—13).
Liber 1 (1997), editado apenas no Brasil, pela Editora da Universidade de 8510 Paulo,
tern 321 péginas e a colaboracao de 26 autores em 31 artigos; procura refletir sobre a crise
politica, economica e cultural atravessada p‘ela Europa no fun do século passado. Dividido
em trés partes concentra—se, na primeira (“Impasses da questao nacional”), no estudo do
tema em paises corno Alemanha, Escécia e Irlanda, corn artigos de Bourdieu, Christophe
Charle, Ifirgen Habermas, Girgit Muller, Keith Dixon, Tom Nairn, Hugh Trevor~Roper,
Terry Eagleton, Gerry Adams e Bill Rolston. Os artigos da segunda parte (“Mestres do penv
samento”) concentram-se no trabalho de homenagem e reconhecimento de alguns autores
mais inventivos da ciéncia social contemporanea, como Marcel Mauss, Georges Duby, E. P.
Thompson e Georges Dume’zil, com textos de Marcel Fournier, Enrico Artifoni, Maria Luisa
ATIVISMO 43
Pesante, Huw Beynon, Didier Eribon e Frédérique Verrier. Na terceira parte (“Arte, Litera—
tura e Industria Cultural”), dedicada a arte, a literatura e a industria cultural, destacam-se
artigos sobre o papel politico e cultural dos intelectuais, os novos campos e areas do saber
nas humanidades, o perfil de alguns géneros de ponta da industria cultural, como a ficcao
multinacional e a arte globalizada — temas que normalmente encontram uma recepcao
reverencial em jornais, revistas e televisao. Escrevem ai Bourdieu, Louis Pinto, Ursula e
Wolfgang Apitzsch, Robert Darnton, Didier Eribon, Pascale Casanova, Ioseph lurt, Miha‘i
D. Gheorghiu, Ines Champey e Isabelle Graw (MICELI, 1997, p. 1344).
Em 1989 divulga “Principes pour une réflexion sur les contenus de l’enseignement”, relatério
da comissao que preside com Francois Gros, ministro da Educacao Nacional, da Iuventude e
dos Esportes; em 1991 torna-se membro do Conselho Cientifico do Instituto Maghreb—Euro-
pa e, nessa mesma data, cria a Associacao de Reflexao sobre o Ensino Superior e a Pesquisa
(ARESER), a qual preside. Em 1993 tem intensa participacao no Parlamento Internacional
dos Escritores e no Comité Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA).
No inicio da década de 1990, em que as desigualdades sociais e a marginalidade jé ha—
viam se manifestado de forma acachapante, fazendo com que os tradicionais instrumentos
de protesto coletivo ficassem superados, Bourdieu, através da revista Actes de la Recherche
en Sciences Sociales, que dirigiu de 1975 a 2001 (ver verbete ARSS), editou varios artigos
baseados em biografias e depoimentos que homens e mulheres confiaram a varios autores,
"a proposito de sua existéncia e de sua dificuldade de viver” (MM, 9). Depois, tais estudos
foram ampliados, resultando em livro corn quase mil paginas, trabalhando a questao da
miséria e do sofrimento social na Franca contemporanea: trata-se de A miséria do mundo,
que se tornou um sucesso de vendas, sendo inclusive editado em muitos paises. Coordenado
por Bourdieu, que também escreveu varios capitulos, 0 volume conta com o trabalho de
outros 22 autores. '
Bourdieu acompanhou de perto o conjunto de manifestacoes de rua ocorridos na Franca
em dezembro de 1995 e, na ocasiao, fez brilhante intervencao na Gare de Lyon (“Contra a
destruicao de uma civilizacao”), posteriormente incluida em seu livro Contrafogos: tatz'cas
para enfrentar a invasao neoliberal (1998), em que investe contra as posturas tecnocréti-
cas do governo socialista francés — em 1996, com um grupo de intelectuais criou a editora
Liber ~ Raisons d’agir, depois apenas Raisons d’agir, publicando pequenos livros densos,
bern documentados e baratos sobre problemas politicos e sociais da atualidade, escritos por
sociologos, economistas, escritores e artistas que possuiam “a vontade militante de difundir
o saber indispensével a reflexao e a acao politica em uma democracia” (WACQUANT, 2002, p.
99401). A maioria desses livros — de Bourdieu ainda se incluem Sur la téle’vision, suivi de
L’emprise du journalisme (1996), Contre-feux 2: pour un mouvement social européen
(2001), além do livro coletivo da ARESER, Quelques diagnostics et remédes urgentes pour
une université en péril (1997) — foi publicada contra uma situacao de cerceamento da midia
e do mercado editorial, que se recusavam a discutir, aprofundar e editar varios temas que, se
escamoteados, contribuiriam para a manutencéo do que o autor denominou “os fundamentos
ocultos da dominacao”. Alguns titulos merecem destaque: Keith Dixon, Les évange’listes du
marché (1998); Lo'ic Wacquant, Les prisons de la misére (1999); Frédéric Lordon, Fonds
de pension, piége a cons? Mirage de la de’mocratie actionnariale (2000); Christian de
44 ATlVISMO
";
Montlibert, Savoz’r a vendre: l’ensez'gnement supe’rieur et la recherche en danger (2004);
Serge Halimi, Les nouveaux chiens de garde (1997).
Ainda em 1996, em 13 de outubro, Bourdieu e outros intelectuais se posicionam favo-
ravelmente ao movimento dos sem documentos; em janeiro de 1998 realiza intervencoes
publicas em prol do movimento dos desempregados e em 8 de abril escreve “Pour une gauche
de gauche”, no jornal Le Mamie. A partir dai se intensifica uma campanha orquestrada
contra ele 11a midia. No ano seguinte redige ‘Maitres du monde, savez—vous ce que vous
faites?”, publicados nos jornais Liberation e Le Monde, em 13 e 14 de outubro, 6 na Folha
de 8.Paula em 19 de outubro de 1999 Em 2000 deu seu apoio a0 “Manifeste pour les états
généraux du mouvement social européen” (1° de maio) e aos movimentos de luta contra
a mundializacao neoliberal, reunidos em Nice (dezembro) e em Québec (abril de 2001).
Acredito que o ativismo e 0 engajamento de Bourdieu possam ser exemplarmente
resumidos em algumas passagens de seu livro A mise’ria do mundo, quando escreve
que “levar ‘a consciéncia os mecanismos que tornam a Vida dolorosa, inviével até, nao é
neutraliza—los; explicar as contradicoes nao é resolvé-las”. N50 se pode anular o efeito
que a mensagem sociolégica pode exercer, por mais cético que se possa ser acerca 'de sua
eficécia social, “ao permitir aos que sofrem que descubram a possibilidade de atribuir
seu sofrimento a causas sociais e assim se sentirem desculpados; e fazendo conhecer
amplamente a origem social, coletivamente oculta, da infelicidade sob todas as suas
formas, inclusive as_mais intimas e as mais secretas” (MM, 944). Tal constatacao nao tem
nada de desesperadorz “o que o mundo social fez, o mundo social pode, armado deste
saber, desfazer. Em todo caso, é certo que nada é menos inocente one o laisser~faire2 se é
verdade que a maioria dos mecanismos econémicos e sociais que estao no principio dos
sofrimentos mais cruéis, sobretudo os que regulam o mercado de trabalho e o mercado
escolar, nao sao féceis de serem estancados ou modificados, segue—3e que toda politica
que nao tira plenamente partido das possibilidades, por reduzidas que sejam, que sao
oferecidas a acao, e que a ciéncia pode ajudar a descobrir, pode ser considerada culpada
de 1130 assisténcia a pessoas em perigo” (MM,944).
Referéncias
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Paulo: Ed. da USP, 1997. p. 11-15.
WACQUANT, L. O legado sociolégico de Pierre Bourdieu: duas dimensoes e uma nota pessoal. Revista
de Sociologia e Politica, Curitiba: UFPR, 11. 19,:p. 95—110, nov. 2002.
Autonomic:
Homologias
A nocio de homologia estrutural desempenha também um papel—chave na teoria
dos campos. Olivier Roueif (2013) colocou em evidéncia a dupla funcao que ela exe-
cuta na analise das estruturas internas dos diferentes campos de producao simbélica:
1°) Tendo em vista que todo campo é definido como um “espaco de posicées”
organizado pela distribuicao das propriedades atuantes e um “espaco de tomadas
de posicao” definido pela distribuicéo das préticas peculiares a0 campo, a relacao
entre espaco de posicées e espaco de tomadas de posicao é uma relacao de homolo~
gia estrutural. Essa homologia é efetuada pela mediacéo do “espaco dos possiveis”,
associado a0 “ponto de vista” préprio de cada posicao no interior do campo. Na
medida em que esse ponto de vista depende, simultaneamente, do “ponto” (isto é,
da posicao) e da “vista” (ou seja, dos esquemas de percepcéo do habitus), a homo—
logia entre “espaco das posicoes”, “espaco dos possiveis” e “espaco das tomadas de
posicao” pressupoe igualmente a homologia entre espaco das posicoes e “espaco
das disposicoes” (habitus).
2°) Em cada campo, a homologia estrutural entre o espaco dos produtores e o
espaco dos consumidores fundamenta “a magia social” do ajuste inintencional entre
a oferta e a demanda: “o acordo que se estabelece [...] objetivamente entre os tipos
de produtos e 05 tipos de consumidores 56 se realiza nas acoes de consumo por meio
dessa espécie de sentido da homologia entre bens e grupos, que define o gosto” (LD).
Mas a nocao de homologia é igualmente crucial na analise das relacoes entre os
campus:
1°) As homologias estruturais regulam, por um lado, as circulacées entre 03 di—
ferentes campos e o campo do poder e, por outro, as trocas e 03 deslocamentos dos
agentes entre os diferentes campos. Considerando que cada campo esta associado a
uma espécie de capital, a passagem de um campo a outro pressupée uma conversao de
um capital especifico que se detérn, portaflto, uma taxa de conversao que é um objeto
de lutas no seio do “campo do poder”.
2°) Enfim, se cada campo possui uma forma prépria, os diferentes campos tém
igualmente propriedades invariantes, de modo que o estudo de um campo passa pelos
testes da pesquisa das propriedades gerais dos campos, colocadas em evidéncia no
decorrer de pesquisas anteriores: as relacées de homologia entre os campos autori«
zam as transferéncias racionais de esquemas explicativos de um campo a outro (LD;
BOURDIEU, 2013). Assim, Bourdieu (LD) teria enfatizado a homologia entre as oposicées
Referéncias
BOURDIEU, P. De la méthode structurale an concept cle champ. ARSS, n. 200, p. 12—37, déc.
2013. (Ihéorie des champs).
ROUEFF, 0. Les homologies structurales: une magie sociale sans magiciens? La place des in—
termédiaires dans la fabrique des valeurs. In: COULANGEON, Ph.; DUVAL, J. (Org). Trente
ans aprés La distinction de Pierre Bourdieu. Paris: La Découverte, 2013. p. 153-164.
' Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884 na aldeia de Bar-sur—Aube. O pai era
de
sapateiro, enquanto a mic mantinha uma banca de tabaco e jornais. A sensibilidade
Bachelard guardaré a—marca desse meio rfistico e convivial, assim como sua fala conservaré
o sotaque de sua regiao, a Champagne. Apés ter concluldo o ensino rnédio, foi bem—sucedido
no concurso de admissao aos Correios e Telégrafos, em 1903, tendo prosseguido os estudos na
area das ciéncias, gracas aos cursos noturnos. Depois da Primeira Grande Guerra, tornou—se
professor de fisica e de quimica em sua cidade natal e empreendeu estudos de filosofia. Em
1927, defendeu duas teses: Essai sur la connaissance approchée, orientada por Abel Rey,
e Etude sur l’évolution d’un probléme de physique: la propagation thermique dans les
solides, sob a orientacao de Léon Brunschvicg. Na primeira, insiste particularrnente sobre
o do
o papel desempenhado pela dupla formada pela técnica e pela matemética na construca
fato cientifico, bem como na razfio de que todo o conhecimento cientifico é, por esséncia, uma
aproximacéo. Ele guarda, assim, seu distanciamento tanto do idealismo que supoe categorias
fixas do entendimento quanto do empirismo que parte do pressuposto da existéncia de objetos
oferecidos 2‘1 observacao e coloca, no primeiro plano da anélise, as relacées entre o sujeito e
0 objeto. Na segunda tese, que se refere mais a historia das ciéncias do que a filosofia, ele jé
manifesta a principal carateristica de sua epistemologia, que consiste em apreender a ciéncia
de maneira dinamica através do progresso das teorias (cuja evolucao descontinua esté também
em relacéo com os progressos da precisao dos instrumentos de avaliacao). Essas duas obras
rompem com a nocao positivista do progresso corno acfimulo continuo.
Sua contribuicao decisiva para a filosofia das ciéncias deve muito a sua solida formacao
cientifica inicial, mas também e, sobretudo, ao fato de nao ter deixado de reatualizé—la ern
contato com revolucoes teéricas representadas pelas teorias, seja da relatividade restrita e
geral, seja da mecénica quantica. Sua escrita toma uma feicao polémica, produzindo francas
demarcacoes: em 1929, diante de Emile Meyerson, com La valeur inductive de la relativité,
obra em que mostra que a estrutura das relacoes mateméticas da teoria de Albert Einstein
BOURDIEU, P. Le bal des célibataires: crise de la sociéte’paysanne en Be’arn, Paris: Seuil, 2002.
Bourdieu morreu dois meses antes de esse livro ser publicado. Ele escreveu uma introducao,
em julho de 2001, mapeando o contefido da obra, explicando que os trabalhos remetem em
trés ocasioes ao mesmo problema, porém, em cada caso, com “uma bagagem teérica mais
profunda, perque é mais geral e, nao obstante, tern maior base empirica”. Assim, podem
ser interessantes para aqueles que desejam seguir uma investigacao segundo a logica de sen
desenvolvimento e convencédos de que “quanto mais se aprofunda a analise teérica, mais
Préximo se esta dos dados da observacao”.
O primeiro artigo, “Célibat et condition paysanne”, foi publicado em Etudes rurales
(1962); “Les stratégies matrimoniales dans le systéme de reproduction” nos Annales (1972),
Denis Baranger
“Lucas, jovem sociélogo parisiense, retorna a seu Béarn natal para empreender uma
pesquisa sobre o celibato entre os camponeses” — eis o que era anunciado pelos jornais, em
2004, por ocasiao do lancamento, nas salas de cinema, do filme Vert Paradis [Parai’so verde]
de Emmanuel Bourdieu, o filho cagula de Pierre Bourdieu que, ale’m de filésofo formado
na Ecole Normale Supérieure, é cineasta. Alias, uma versao abreviada dessa pelicula jé
52 BEARN
tinha sido difundida anteriormente pelo canal de televisao ARTE, sob o titulo Les cadets de
Gascogne [Os caculas da Gasconha}.
NamgadoBanLoflhmwdehmwmméamnanmdeohgudamfinda&
Pierre Bourdieu, antes de ele se tornar sociologo, em Paris. Seu pai, Albert, que pertencia
a uma familia de meeiros, acabou exercendo a profissao de carteiro (e, posteriormente,
contador) na agéncia de correios local, depois de se casar corn Noémie, que fez um ca-
samento socialmente desfavoravel (por ser filha cacula de uma importante familia de
agricultores da regiéo). Pierre Bourdieu cursou o ensino rnédio como alunoointerno no
Lycée Louis—Barthou, em Pau, a capital da regiao, manifestando—se simultaneamente born
aluno e menino travesso, ou seja, seu jeito de viver a contradicao “entre uma elevada
consagracao escolar e uma baixa extracao social” (BAA, 127). Gracas a0 diretor desse
estabelecimento de ensino, Bernard Lamicq - “um dos raros, senéo o unico estudante
natural do Béarn, a se formar na Ecole Normale” —, ele conseguiu uma vaga, em Paris, para
fazer a khégne (curso preparatorio para a Escola Normal Superior), igualmenre como alu-
no—interno, no Lycée Louis-le—Grand e, depois, na propria Escola Normal Superior, situada
na rua d’Ulm, em Paris. Tal percurso ira transforma-lo em um “milagroso” social — ou ‘
urn “transfuga filho de transfuga” -. habitado por urn habitus clivado “gerador de toda a
espécie'de contradicoes e tensoes” (SSR, 214).
Mas, para Bourdieu, o Béarn é sobretudo seu terreno privilegiado, comecando por sua
pesquisa de 1959 60, que culminara em urn de seus mais célebres artigos de juventude sobre
o mistério do celibato dos primogénitos, nessa regiao de pequenos produtores agricolas em
que “a funcao primordial do casamento consistia em garantir a continuidade da linhagem
sem comprometer a integridade do patrimonio (BOURDIEU, 1962, p. 34). E ele nao cessaré
mais de retomar o estudo dessa questao (BOURDIEU, 1972,1989)
Quando 1niciou sua pesquisa na regiao do Béarn, Bourdieu ainda residia na Argélia,
desenvolvendo esse estudo simultaneamente aquele sobre os cabilas. $510 as mesmas ques-
toes que o preocupam, e sua reflexéo sobre cada um desses campos se alimenta daquela que
produz sobre o outro. Em Varias oportunidades, ele definiu seu retorno ‘a terra natal como
“um Tristes tropiques ‘as avessas”: “Minhas pesquisas sobre o casamento no Béarn forarn
para mim o ponto de passagem, e de articulacao, entre a Etnologia e a Sociologia. De saida,
havia concebido esse trabalho sobre minha propria regiao de origem como uma espécie de
experimentacao epistemologica: analisar como etnologo, num universe familiar (a 1150 ser
pela distancia social), as praticas matrimoniais que eu havia estudado nurn universo social
mais distante, a sociedade cabila, significava me dar uma oportunidade dc objetivar o ato de
objetivacao e o sujeito objetivante” (CD, 75).
A transicao da Etnologia para a Sociologia éfvisivel no fato de que, no artigo de 1962, veri-
fica-se o recurso insistente ‘a estatistica, procedimento deplorado por alguns autores que nao
deixam de reconhecer sua natureza grandemente etnografica (JENKINS, 2006). No entanto, ele
deve ser entendido, sobretudo, em relacao ‘a passagem de um universo estranho — a Cabflia,
que representa o tipo de objeto tradicionalmente antropologico — ao mundo de sua infancia
E, por conseguinte, a uma relacao mais “sociologica” com o objeto. Esse é o primeiro nivel de
significagao — se quiserrnos, “epistemologica” — dessa reviravolta mencionada por Bourdieu
(mesmo que, na realidade, ele nunca tenha se importado muito com as diferencas disciplinares).
BEARN 53
Mas, e isso é importante, a reviravolta refere~se também — depois de “La maison Kabyle”, seu
“filtimo trabalho de estruturalista feliz” (SP, 22) — a uma evolucao decisiva de seu sistema teérico:
a passagem “da regra ‘as estratégias” (CD), em ruptura com o estruturalismo de Levi-Strauss, a firm
de deixar de conceber a prética como uma execucao mecanica da regra. Uma observacao banal
desua mae é que ira ajuda-lo a operar essa passagem: “Eles viraram parentes dos fulanos, desde
o momento em que urn deles se formou na Polytechnjque” (EAA, 86). Desse modo, ele mostra
que a prética é criada, nao pela regra — menos ainda, pelo modelo ~, mas pelos préprios agentes,
dotados de uma capacidade de manipular, nao necessariamente de forma consciente, as regras.
As arvores genealogicas 1130 Sac senao uma invencao do etnélogo e, portanto, a0 paren-
tesco oficial, convém opor o parentesco prdtico, aquele que se encontra verdadeiramente
em acéo através dos habitus; “As relacoes de parentesco efetiva e atualmente conhecidas,
reconhecidas, praticadas e, como se diz, ‘mantidas’, sao, para a genealogia construida, o
que a malha rodoviéria mantida, de fato, em boas condicées, frequentada, desimpedida,
portanto, facil de acesso - ou melhor ainda, o que o espaco hodolégico dos entroncamentos
e dos percursos realmente efetuados — é para o espaco geométrico de um mapa enquanto
representacao imaginéria de todos os caminhos e de todos os itineraries teoricamente pos-
? siveis. Prolongando a metéfora, as relacées genealégicas desapareceriam rapidamente, como
caminhos abandonados, se elas nao recebessem uma manutencao continua, mesmo que se
forem utilizadas de forma descontinua” (BOURDIEU, 1972, p. 1108).
O te‘ma fundamental dos “usos sociais do parentesco” sera desenvolvido plenamente em
Le sens pratique e, por esse meio, é todo o estatuto da teoria juridica e antropolégica do
parentesco que se encontra questionado, considerando que “as relacoes de parentesco sao
algo que se faz e com as quais se faz algo” (SP, 279).
E fécil mostrar como essa reflexéo culmina rapidamente na ideia de capital social (embora,
na época, tal nocao ainda tendesse a se confundir com a de capital simbélico): “Se as pessoas
socialmente mais bem situadas tém também as maiores famflias, enquanto os ‘parentes pobres’
sao também os mais pobres em parentes, é porque, neste dominio como em outros setores,
0 capital converge para 0 capital, tanto mais que a meméria da parentela e a propensao a
manté—la sao funcao dos lucros materiais ou simbélicos que podem ser auferidos quando se
pratica o parentesco” (BOURDIEU, 1972, p. 1109).
Certamente, em “as categorias de parentesco instituem uma realidade” (SP, 287), trata-se
de construcées sociais. Mas os agentes tém a capacidade de servir-se dessas “realidades”, tendo
como implicacao que “alguns casamentos idénticos, miicamente sob o aspecto genealégico,
podem revestir significacoes e desempenhar funcées diferentes, inclusive opostas, dependendo
das estratégias em que estao inseridos” (SP, 290), afirma ele, em ruptura igualmente com o
nominalismo positivista da antropologia britanica. De fato, “contra a tradicao antropolégica
que aborda cada casamento como uma unidade auténoma [...] cada transacao matrimonial so
pode ser compreendida como um memento. em uma série de trocas materiais e simbélicas.
Deste mode, 0 capital economico e simbélico que uma famflia pode investir no casamento
de um de seus filhos vai depender, em grande parte, da posicao ocupada por essa troca na
historia matrimonial da famflia” (BOURDIEU, 1972, p. 1120).
Assim, “o casamento nao é o produto da obediéncia a uma regra ideal, mas o desfecho
de uma estratégia que, pondo em acao os principios profundamente interiorizados de uma
54 BEARN
tradicéo particular, pode reproduzir —— de maneira mais inconsciente do que consciente —-, esta
ou aquela solucio tipica nomeada explicitamente por essa tradicao” (BOURDIEU, 1972, p. 1107).
A regiéo do Béarn, longe de ser um capitulo encerrado na evolucao do pensamento de
Bourdieu, nunca deixou de figurar no amago de sua teoria da prética.
Referéncias
BOURDIEU, P. Célibat et condition paysanne. Etudes Rurales, v. 5-6, p, 32—136, 1962.
BOURDIEU, P. Les strategies matrimoniales dans le systéme de reproduction. Annales, v. 4—5,
p. 1105—1127, 1972.
'BOURDIEU, P. Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique.
Etudes Rurales, v. 113-14, p 15-36, 1989.
JENKINS, T. Bourdieu’s béarnais ethnography. Theory, Culture 69 Society, v. 23, n. 6, p. 45—72, 2006.
A economia dos bens simbélicos desenvolvida por Bourdieu esté enraizada em uma critica
do economicismo que :eduz as trocas a0 calculo interessado. Seus primeiros estudos sobre
sociedades pré-capitalistas ~ 21 Cabilia, na Argélia ainda colonia francesa, e sua regiéo natal do
Béarn, no sopé dos Pirineus — e, em seguida, seus trabalhos sobre os campos literério, artistico,
religioso e cientifico, revelam a dimensao simbélica das trocas, cuja funcao consiste em torné—las
irreconheciveis como tais. O economicismo que se consolidou a partir do século XVIII é apenas
uma forma particular da economia das préticas e das trocas. Além disso, se ele se impos como
paradigma dominante com o capitalismo triunfante, alguns universos — tais como os campos
de producéo cultural ou cientifica — continuam funcionando de acordo com os principios da
' economia pré-capitalista, enquanto o paternalismo mostra que tais formas denegadas de domi—
nacao subsistem no préprio {image do campo econémico. Essa teoria passou por reformulacoes
sucessivas ao longo de sua obra, desde Esquisse d’une théorie de lapratique (1972) até Raisons
‘ pratiques (1994), livro em que se encontra sua versao mais acabada e mais sintética, passando por
Le sens pmtique (1980). Os trabalhos sobre a literatura, a arte, a religiio e a ciéncia — universes
em que prevalece “o interesse pelo desinteresse” — constituem sua ilustracéo.
0 sense de honra e o dom $50 05 dois exemplos paradigméticos do modo de funciona—
mento da economia dos bens simbélicos: eles se baseiam na recusa do célculo, da logica do
valor, que esté na origem do economicismo. Nao é suficiente objetivar a realidade da troca,
tal corno faz Levi—Strauss a propésito do dom e do contradom, para levé-la em conta, porque
ela é dissimulada pelo intervalo temporal que introduz também alguma incerteza relativa—
mente a reciprocidade.
Assim, a primeira caracteristica da economia dos bens simbélicos é a denegacao da
economia economicista, ou seja, do calculo em termos de interesse: o interesse economico
é “recalcado”, “censurado”. A segunda, correlata da primeira, é a transfiguracao dos atos
economicos em atos simbélicos: essa alquirnia requer um investimento constante por parte
Referéncias
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Année Socialogique, v. 22, p. 49—126, 1971.
BOURDIEU, P Le champ scientifique ARSS,'n. 2 3, p 88-104, jun. 1976.
BOURDIEU, P La production de la croyance: contributiona‘ une éconornie des biens symboliques.
ARSS, v. 13, p. 3 43,1977.
BOURDIEU, P. The Field of Cultural Production, or: The Economic World Reversed. Poetics, v. 12,
11.4-5, p. 311-356, 1983.
Referéncias
BOURDIEU, P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Francaise de Sociologie, v. XV, n. 1,
p. 3-42, jam/mars 1974.
DUBOIS, V. Comment la langue devient une affaire d’Etat. La défense de la langue francaise au milieu
des années 1960. In: LAGROYE, J. (Org). La politisation. Paris: Belin, 2003. p. 461474.
NOGUEIRA, M. A.; AGUIAR, A. La formation des élites et l’internationalisation des études:
peut-on‘parler d’une “boune volonté internationale”? Education et Sociétés, Paris, v. 21, n. 1, p.
105-119, 2008. '
BOURDIEU EDITOR Bl
Em 1975, "com a béncao e o apoio de Fernand Braudel, diretor da Maison des Sciences
de l’Homrne [...], cria a revista Acres de la Recherche en Sciences Sociales, que se firmou
como ulna das mais importantes publicacoes em ciéncias sociais no mundo. Embora tenha
permanecido altamente singular em seu formato, tom e missao [...] a revista procurou
pnblicar os mais avancados produtos da pesquisa social a fim de impingi-los sobre a cons—
ciéncia coletiva e sobre a discussao pfiblica na Franca e no exterior”. Bourdieu a dirigiu
de 1975 a 2001 (WACQUANT, 2002) — ver, sobre a revista, o verbete “Actes de la Recherche
en Sciences Sociales”. '
Nos anos 1980-1990 Bourdieu continuou sua acao, entendendo, a exemplo de Emile
Durkheim, que os interesses da ciéncia so podem ser resolvidos pelos proprios cientistas.
Na perseguicao desse objetivo, criou, em 1989, a Liber: Revista Europez'a de Livros (depois,
com o subtitulo Revista Internacional de Livros, adotado em 1994), que durou até 1998.
Era uma publicacao trimestral encartada na Actes, que saia simultaneamente em varios
paises, nos seguintes idiomas: francés, alemao, italiano, bfilgaro, hl'mgaro, sueco, romeno,
grego, noruegués e turco, sendo definida por Bourdieu como uma forma de resisténcia a uma
situacao de “ajuste intelectual”, propondo o resgate da capacidade de aliar a autonomia da
esfera intelectual com o engajamento critico, em urn espaco pt’iblico e politico. Q modelo e a
“missao” dos intelectuais sao redefinidos: em lugar do intelectual total sartriano, tern—5e o
intelectual transdisciph'nar e internacional, alternativo aos poderes econémicos, politicos e
a midia. Sergio Miceli destaca na apresentacao a coleténea Liber 1, que refine 32 textos sele—
cionados do suplernento, que o desafio inicial de um empreendimento dessa natureza foi 0 de
“firmar aliancas supranacionais corn vistas a montagem de uma rede de autores e correntes
guiada por liderancas intelectuais independentes” (MICELI, 1997, p. 12). As bases de tal acordo
operacional e doutrinario eram “o respeito intelectual reciproco e, tao ou mais importante
num momento de resisténcia aos arautos da modernidade 'neoliberal”, constituindo-se ern
“contraveiculo de combate intelectual e divulgacao cultural de qualidade” (MICELI, 1997,
p. 12-13). Voltando—se para urn pfibiico de estudantes, de pesquisadores especializados e de
produtores de cultura, Liher tinha entre seus colaboradores Georges Duby, Robert Darnton,
Terrv Eagleton, Iiirgen Haberrnas, E. P. Thompson, Keith Dixon, Didier Eribon, Christophe
Charle, Pascale Casanova, ale’m de vérios outros intelectuais originérios da Franca e de outras
nacoes em que o suplernento era publicado.
Ainda nos anos 1990, Bourdieu capitaneou a criacao da editora Liber — Raisons d’agir,
depois apenas Raisons d’agir, publicando pequenos livros, bem documentados e a precos
baixos, sobre ternas politicos e sociais da atualidade — ver verbete “Ativismo”.
Em 1997, o sociélogo criou a colecao Liber, nas Editions du Seuil, editando, de sua
autoria, Meditations pascaliennes, La domination masculine e Les structures sociales
de l’économie ~ Esquisses algériennes (2008), postumo, reunindo textos que escreveu
ern vérios momentos sobre o pais africano, organizado por Tassadit Yacine. Nessa colecao
foram editados livros de seu amigo e colaborador Abdelmalek Sayad, Olivier Christin,
Jacques Bouveresse, Frédéric Lebaron, Jacques Dubois, Bertrand Geay, Iulien Duval, Yves
Dezalay, Bryant G. Garth, Anna Boschetti, Ian Hacking e Aaron Victor Cicourel, entre
outros.’ Apos sua morte, em janeiro de 2002, a colecao, que passou a ser dirigida por seu
filho, Jerome Bourdieu, por Johan Heilbron e Yves Winkin, prosseguiu com a publicacao
62 BOURDIEU EDITOR
de livros de autoria de Louis Pinto, Pascal Durand, Sébastien Chauvin, Sylvie Tissot, Marie—
France Garcia-Parpet, Philippe Mary, etc.
Bourdieu, durante mais de quarenta anos, sempre devotou especial atengéo para a pu—
blicagéo dos resultados de suas investigagoes, bem como daquelas desenvolvidas por colegas
franceses e estrangeiros, divu'lgadas sob a forma de livros e de artigos em periodicos cienti-
ficos. Na maior parte de sua trajetéria académica, conforme se escreveu aqui, teve 0 controls
do conteudo que publicou, inclusive possuindo o senso de oportunidade politica de editar,
quando julgou necessério, textos de intervengéo (néo poucos de sua autoria) em que ajudou
a colocar o saber intelectual numa linguagem apropriada, a servigo de parcelas da populagao
‘que nao possuem as chaves para decifrar obras que normalrnente circulam apenas entre os
produtores da cultura erudita.
Referéncias
MICELI, S. Apresentaqz‘io. In: BOURDIEU, P. (Ed). MICELI, S. (Org). Liber 1. Séo Paulo: Ed. da USP,
1997. p. 11-15.
WACQUANT, L. O legado sociolégico de Pierre Bourdieu: duas dimensoes e uma nota pessoal. Revista
de Sociologia e Politica, Curitiba: UFPR, n. 19, p. 95410, nov. 2002.
21. BURGUESIA
BURGUESIA B3
:2, CABlLlA
Bernard Lahire
E muito raro encontrar uma concordancia cientifica de fundo entre o conjunto das correntes
sociologicas que se defrontarn com questoes dos mais diferentes tipos. Todavia, se ha urn fendmeno
que suscita a unanimidade, é exatamente 0 da diferenciacao social das atividades. Qualificadas
como modernas ou industriais, nossas sociedades s50 consideradas pelos mais diversos autores
como conjuntos caracterizados por urna forte diferenciacéo social das atividades ou fungoes. Neste
aspecto, elas se distinguem das sociedades quase sempre mais limitadas do ponto de vista demo-
-
grafico — em que a divisao social do trabalho é infinitarnente menos pronunciada. De Adam Smith
a Pierre Bourdieu, passando por Herbert Spencer, Karl Marx, Emile Durkheim, Georg Simmel,
Max Weber, Maurice Halbwachs, Karl Polanyi, TalcottParsons, os sociélogos da Escola de Chicago,
Marshall Sahlins, Norbert Elias, Peter Berger e Thomas Luckmann ou Niklas Luhrnann, todos
concordam pelo menos em relacao a0 fato de que essaheterogeneidade crescente deve ser estudada.
Com sua teoria dos campos, Pierre Bourdieu pretendeu propor um modelo bastante geral
para pensarmos nossas sociedades diferenciadas. “Nas sociedades altamente diferenciadas”,
escreveu ele, “o cosmo social é constituido pelo conjunto desses microcosmos sociais relati-
vamente autonomos, espacos de relacoes objetivas que 550 o lugar de uma logica e de uma
necessidade especificas e irredutiveis aquelas que regem os outros campos. Por exemplo, o
campo artistico, 0 campo religioso ou o campo economico obedecem a logicas diferentes:
o campo economico emergiu, historicamente, enquanto universo no qual, como se diz,
‘amigos, amigos, negécios a parte’, business is business, e do qual as relacoes — envoltas em
encantamento —— de parentesco, amizade e amor 5510, cm principio, excluidas. Pelo contrario,
o campo artistico constituiu‘se na e pela recusa, ou inversao, da lei do iucro material” (R, 73).
Bourdieu definiu seu conceito de campo, combinando propriedades pertencentes a uni—
versosteéricos diferentes, em particular, os de Durkheim e de Weber. Nao é fécil resumir as
64 CABILIA
1x5)"
propriedades essenciais de um campo. Na verdade, se a tarefa é facflitada pelo proprio autor — que
retornou em Varias ocasioes urn conceito que havia ocupado, desde a década de 1980, um lugar
[central em sua sociologia (BOURDIEU, 1980, 1991) —, ela se tornou dificil pelas minfisculas
inflexoes quevo conceito sofre por ocasiao de cada utilizagao particular que Bourdieu faz dele.
, Os elementos fundamentais e’ relativarnente invariantes da definigao de campo, suscetiveis
de serem extraidos das diferentes obras e artigos do autor sobre a questao, 850 OS seguintes:
L - . Um campo é um microcosmo incluido no macrocosmo constituido pelo espago social
global (nacional ou, mais raramente, internacional).
. Cada campo possui regras do jogo e desafios especificos, irredutiveis as regras do jogo e
aos desafios dos outros campos. Por exemplo, o que mobiliza um matematico — e a maneira
como mobiliza — nada tern a ver corn o que mobiliza — e a maneira corno o faz — urn indus-
trial ou urn grande costureiro. Os interesses sociais sao sempre especificos a cada campo e,
portanto, 1150 se reduzem ao interesse de tipo economico.
. Um campo é um “sistema’? 011 um “espago” estruturado de posigoes ocupadas pelos dife—
rentes agentes do campo. As praticas e estratégias dos agentes 56 se tomam compreensiveis se
forem relacionadas as suas posigoes no campo. Entre as estratégias invariantes, encontra—se a
oposigao entre as estratégias de conservagao e as estratégias de subversao do estado da relagao
”readeforgas existente: as primeiras sao mais frequentemente as estratégias dos dominantes,
enquanto as segundas correspondem as dos dominados (e, entre eles, mais particularmente,
dos “recém-chegados” no campo). Essa oposigao pode assumir a forma de um conflito entre
“velhos” e “novos”, “ortodoxos” e “heterodoxos”, “conservadores” e “reyolucionarios”, etc.
. Esse espago é um espago de lutas, nma arena onde esté em jogo fima concorréncia on
competigao entre os agentes que ocupam as diversas posigoes.
- O objetivo dessas lutas reside na apropriagao do capital especifico do campo (obtengao
do monopélio do capital especifico legitimo) e/ou a redefinigao desse capital.
. Esse capital é desigualmente distribuido no seio do campo. Por conseguinte, existem,
nele, dominantes e dominados. A distribuiqao desigual do capital determina a estrutura do
campo que é definido, portanto, pelo estado de uma relagao de forgas histérica entre as forgas
(agentes e instituiqoes) em confronto no campo.
- Em luta uns contra os outros, todos os agentes de um campo tém, contudo, interesse
em que o campo exista. Eles mantém, portanto, uma “cumplicidade objetiva” para além das
lutas que os opéem.
- A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposigoes incorporadas) préprio
do campo (habitus filolégico, habitus juridico, habitus futeboh'stico, etc.). Apenas os que
tiverem incorporado o habitus préprio do campo estao em condigoes de disputar o jogo e
de acreditar na importancia dele. ‘
- Todo campo possui uma autonomia relativa: as lutas que se desenrolam em seu interior
tern uma logica prépria, mesmo que o resultado das lutas (economicas, sociais, politicas, etc.) .
externas ao campo pese forternente no desfecho das relagoes de forga internas.
Essa lista de propriedades deve ser considerada como um resumo provisorio do estado da
Pesquisa na Inatéria — baseado em uma série (limitada, mesmo que ja importante) de estudos
de casos, mais ou menos bem conduzidos e mais ou menos detalhados — que permite orientar
0 pesquisador no decorrer de suas pesquisas;
CAMPO 55
Beurdieu tinha indubitavelmente o sentimento de ter feito justica a especificidade dos
campes, assim come deter enfatizade os invariantes constitutives de qualquer campe, ao lutar
contra e reducionismo econémice que vé, em tude, o interesse de tipo economice e a busca
de maximizacao do Iucro econémico. Ao mostrar que es interesses, es capitais, as estratégias
e, ’até mesme, as formas de luta eram especificos de cada campo, ele permitia efetivamente a
pessibilidade de fazer diferencas: “O universe ‘puro’ da ciéncia mais ‘pura’, escrevia ele, é um
campe social come qualquer outro, com suas relacees de forca e seus monopolies, suas lutas
e estratégias, seus interesses e suas vantagens, mas no qual todas essas invariantes revestem
formas especificas” (BOURDIEU, 1976, p. 89). Entretanto, e modelo permaneceu insensivel
em relacae a eutras diferencas que sao também cruciais e podem levar a designar, de outre
mode, determinados “campes”: o grau de profissionalizacao do campe e, em particular, de
estabilizacae dos ateres no campo; a relacae entre es agentes do campe e o “pi’iblico” ae qual
eles se dirigem on a quem eles destinam suas producees (obras, discursos, competéncias,
etc.); o grau de esoterismo ou exetismo com o qual es agentes do campe podem praticar
sua atividade, etc. Pode-se falar de “jogo” para designar um “campo secundario” no qual
a remuneracao, a institucionalizacao e a prefissionalizacae sao precarias (LAHIRE, 2006).
Referéncias
BOURDIEU, P. Le champ scientifique. ARSS, n. 2, p. 88-104, 1976.
BOURDIEU, P. Quelques prepriétés des champs. In: Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1980.
p. 113-120.
BOURDIEU, P. Le champ litte’raire. ARSS, n. 89, p. 3—46, 1991.
LAHIRE, B. La condition littémire: la double vie des e'crivains. Paris: La Découverte, 2006.
O conceito de campe artistico comeceu a ser desenvolvido per Pierre Beurdieu em meades
da década de 1960, tendo come ebjetive diferenciar-se das anélises estéticas que deminavam os
debates intelectuais do memento. Per um lado, tratava—se de superar as explicacees sociologicas
caudatérias do marxisme (come as de Lukacs, Goldman e Hauser) que tendiam a reduzir as obras de
arte a simples “reflexes” das relacées sociais, subordinande es criadores as coercees sociais de seus
grupes sociais e clientela. Per eutro, a0 ponderar a erdsténcia de uma légica particular a0 campe
artistjco, Bourdieu nae pretendia subscrever as teorias ditas “internalistas”, as quais pestulam que
as ebras so pedem ser explicadas per si mesmas, per meio de seus elementos fermais. Para ele, tais
deutrinas temam come evidente e mite da obra de arte come uma “criacae” feita per um criador
“incriade”, aceitando come fate aquile que é, na realidade, o produto final e mais bem acabado
de um processe social e histérico a ser explicado, a saber, e da autonemizacao do campo artistice.
Em As regras do arte, Beurdieu detém-se nas transfermacees levadas a cabe pele munde
literérie francés do sécule XIX, de serte a cempreender a emergéncia de uma nova pesicao es—
tética, ada “arte pura”, exemplarmente postulada per Gustave Flaubert. Partinde da anah'se do
romance A educaczio sentimental, recenstréi as pesicees existentes no campe literario francés
55 CAMPO ARTlSTICO
de entao, tais como aquela representada pelos partidérios de obras "socialmente engajadas”, on a
dos produtores mais afinados com os pfiblicos ampliados, também chamados como “burgueses”
ou “comerciais”. Recuperava, assim, o universo de disputas que os defensores da “arte pela arte”,
como Flaubert, tiveram de enfrentar a firm de conseguir'impor seu ponto de vista como o domi-
nante. Com tal anélise, Bourdieu demonstra que a crenqa na qualidade formal das obras foi gerada
pelo préprio campo artistjco, ao longo da trajetoria de disputas entre grupos e visoes de mundo
distintas. A0 historicizar a génese da crenga na “autonomia da obra de arte”, vendo-a como resul-
tado da hegemonia conquistada pelos defensores da arte puxa, permite que se reavah'e a suposta
universalidade do paradigma estético formalista, o qual se projetou, ao longo do século XX, corno
vélido, independentemente do tempo e da sociedade em que as obras teriam sido produzidas.
O campo artistico constitui—se corno urn espago estruturado de posiqées objetivamente
definidas, por meio das quais individuos, grupos e instituigoes lutam pelo monopélio da au~
toridade artistica, ou seja, pelo direito de definir quem é ou nao é artista, controlando entao
os critérios de apreciagao e legitimagao das obras de arte. Como todos os campos sociais, o
canipo artistico é um espago de forgas que se irnpoe sobre todos os agentes que dele querem
participar. Mas, diferindo dos demais (como o académico, por exemplo), caracterizase pelo
baixo grau de codificagao de suas fronteiras; para nele ingressar, os agentes nao precisam
' ' estar munidos de diplomas especificos, formagoes escolares prévias on outros tipos de capitais
formalmente regulamentados. O que esta em jogo nesse campo é, justamente, o direito ao
controle de tais fronteiras, on seja, todos os agentes ai competem por um capital especificoz
0 da autoridade artistica que lhes permite impor a definigao de quem é on n50 artista, de
quem faz ou nao parte desse universo na medida em que suas produgoes sao percebidas, on
mac, como propriamente “artisticas”.
Vale notar que, para além da definigao mais geral de um campo de forgas estruturado em
torno de posiqoes em disputa pelo monopolio da autoridade artistica, que pode ser tomada
como estruturalmente vélida, o campo artistico possui configuragoes distintas que variam
conforme o momento e a sociedade em que se inscreve. No caso da Franqa do século XIX,
a revolugéo provocada pela imposigao do principio da “arte pura” come 0 mais legitimo
implicou a autonomizagao plena do campo, isto é, que, doravante, esse passasse a se carac—
terizar pelo “principio economico invertido”. Com isso, os julgamentos sobre as qualidades
da obra ocorrem a partir de valores distintos dos econémicos, contra os critérios do lucro e
da aceitagao do mercado. Nesse universe afirma-se uma légica particular por meio da qual
os agentes interessam—se pela defesa do “desinteresse” como um estilo de Vida, da criagao em
detrimento ao comércio, da gratuidade em relagao aos rendimentos. Esse campo constitui assim
uma légica de valorizagao propria, fruto de um desenvolvimento historico de longa duragao
no qual as obras de arte'foram paulatinamente dissociando-se do universe das mercadorias
triviais. Diferindo dessas que séo costumeiramente avaliadas por sua simples materialidade,
as obras de arte foram sendo consideradas fruto de habilidades incomensuréveis de um ponto
de vista exclusivamente economico, por exemplo, pautando-se pela habilidade dos artistas.
. Como produtos eminentemente simbélicos, as obras de arte necessitam de certas condigoes
para sua execugao: a de que sejam fruto de um ato de consagragao operado por alguém socialrnente
reconhecido como capaz de efetuar sua transmutaqao, como os artistas. Segue que a produqao
da obra de arte corno uma mercadoria especifica dotada de valor singular exige a produgao da
CAMPO ARTISTICO 67
crenca social no valor do artista. A sociologia da arte deve, entao, debrucar~se nao apenas nas
posicées sociais constitutivas do campo artistico 6 nos déterminantes sociais que
levam certos
artistas a ocuparem certas posicoes, mas fundamentalmente o modo com que os campos
sao
capazes de produzir os artistas como produtores Iegitimos de objetos de crenca, de valor
e de
prazer estético. Nesse sentido, a pergunta central deve ser “n50 o que faz o artista, mas quem
faz o artista”. E o campo que produz a crenca na raridade social do produtor e, com isso,
no
valor que sua assinatura é capaz de conferir aos objetos que cria. Assim, para entender a
obra
e seu valor é‘ preciso reconstitujr a génese da posicao e da crenca na singularidade do artista, a
qual é construida por meio de um conluio que envolve a todos os participantes desse universo,
corno os criticos, colecionadores, historiadores da arte, museologos, galeristas, pfiblicos,
etc.
Trabalhar com a nocao de campo artistico exige trés operacées fundamentals: em primeiro Iugar,
a analise do campo de criacao cultural em relacao ao campo do poder, ou seja, uma reflexao sobre
o grau de autonomia que este possui no memento em que esté sendo analisado. Em segundo,
uma
analise de sua estrutura interna, o que significa o mapeamento das posicoes objetivas
ai existentes
e as relacoes entre elas, envolvendo assim uma descricéo da concorréncia porlegitimidade que as
perpassa. Finalmente, é preciso investigar a génese do habitus de cada um dos ocupantes dessas
posicées, posto que as préticas artisticas resultam de uma dialética entre as necessidades estru-
turais do proprio campo e das acoes exercidas pelos proprios agentes. Compreender as trajetérias
desses, e as sistemas de disposicoes internalizados que possuern, é fundamental para entender
suas condutas, se essas atualizarao on n50 as potencialidades inscritas nas posicoes
que ocupam.
O conceito de campo artistico tem se mostrado extremamente frutr’fero para as analises
contemporaneas. Metodologicamente permite transcender as oposicées entre as teorias
determi-
nistas e as formaljstas, conforms ja foi dito. Possui também um papal critico e desmistificador:
a0 considerar as lutas pela autoridade artistica come 0 centro das disputas que envolvem
todos 03
56115 agentes, traz consigo a possibilidade de anélises que se detenham nao apenas nas definicées
,
estilos e artistas consagrados, mas em todos aqueles relegados, inferiorizados, esquecido
s, os
“perdedores” de tais batalhas, os quais, porém, sao fundamentais para dotar o campo, e suas lutas,
de inteljgibilidade. O conceito permite compreender como nascem os canones artisticos e,
corn
isso, repensé—los, questioné—los, subverté-los. E, porém, necessério lembrar que o conceito, em
sua
configuracao completa, nasce para explicar uma realidade histérica e social bastante especifica
,
como a da Franca do século XIX. Cabe ao analista atualizé-lo, testar seus limites e potenciah'dades
a
luz dos casos, circunstancias e agentes concretos com que se defronta em sua prépria investigac
ao.
Pascal Ragouet
O conceito 'de campo cientifico, exposto pela primeira vez em 1975, surgiu do distanciamento
critico em relacao a concepcao pacifica de ciéncia desenvolvida por Merton (BOURDIEU,
1975,
1976). Pode-se considerar o campo cientifico corno um espaco concorrencial e,
ao mesmo
tempo,j_ como um espaco de integracao social.
Na sociologia de Bourdieu, qualquer campo social é um espaco de concorréncia estrutura
da
em torno de desafios e de interesses especificos no image do qual os “agentes” se
distribuem
68 CAMPO CIENTIFICO
em fungao do volume e da estrutura de capitais detidos por eles e que constituem os recursos
da aqao. A forma de interesse especifico no campo cientifico consiste na'imposigao de uma
concepgéo particular de ciéncia graeas a mobilizagao de recursos aos quais Bohrdieu atribui
a denominagéo de “capital cientifico”.
Ele distingue, de fato, duas formas de capital: um, “temporal”, remete a uma espécie de poder
institucional sobre os meios de produgao e reprodugéo; enquanto o outro, “cientifico”, estavinculado
ao reconhecimento dos pares, pouco institucionalizado e mais exposto a contestagao (USS; SSR).
Essas duas formas de capital conhecem diferentes leis de acdmulo: um, adquire-se pela produgao
de contribuigoes atribuidas ao progresso da ciéncia, enquanto o outro, obtém-se pela estratégia
politica e institucional. Além disso, se 0 primeiro e’ djficilmente transmissivel, a transmissao do
segundo ocorre com maior facilidade. As possibflidades de conversao de um capital em um outro
sao igualmente assimétricas: 0 capital cientifico pode permitir, com o decorrer do tempo, a obtengao
de créditos economicos e politicos, mas é mais frequente observar agentes dotados de um elevado
capital temporal obterem capital cientifico sem se investir fortemente na produqao cientifica.
A existéncia dessas duas formas de capital confirma o caréter relativo da autonomia do
campo cientifico. 0 capital temporal é um indicio da dominagao burocrética de poderes
temporais (ministérios, administragao da pesquisa, instituigoes economicas, midia, etc.)
sobre os campos cientificos. A autonomia relativa de um campo depende, portanto, do grail
de diferenciagao da hierarquia segundo a distribuigao do capital cientifico e da hierarquia
segundo a distribuigao do capital temporal. Quanto mais essas hierarquias estiverem emba-
ralhadas, mais a avaliagao cientifica das contribuigoes sera contaminada por critérios ligados
propriamente ao conhecimento das potencialidades sociais dos individiios.
A estrutura do campo cientifico é determinada pelo estado das relaeoes de forga entre os
cientistas, o qual resulta, por sua vez, das lutas anteriores e vai orientar as estratégias de cada um.
Qualquer especialista em ciéncias investe em fungao da sua dotagao atual em capitals e de suas
aspiragoes — e, por conseguinte, em funeao da posieéo efetiva que ocupa no campo cientifico e da—
quelapretendida por ele. Deste modo, as propriedades estruturais e morfolégicas do campo exercem
influéncia sobre a configuragao da competigao cientifica. Bourdieu opoe dois tipos de estratégias
correspondentes a duas categorias de pesquisadores: os dominantes desenvolvem “estratégias de
conservagao”, tendo em vista a perenidade da ordem Cientifica; de outro lado, Bourdieu coloca
os “recérn—chegados” que, desprovidos ou muito precariamente dotados em capital temporal e
cientifico, implementam, seja “estratégias de sucessao”, consistindo em “aplicaqoes seguras", seja
“estratégias de subversao” que tém a ver com escolhas arriscadas suscetiveis de redundar em uma
“redefinieao dos principios de legitimagao e da dominaeao”. Enquanto as estratégias de conservaeao
vém reforgar a ciéncia oficial em seu funcionamento e em sua estrutura epistémica, as estratégias
de subversao tém em mira a fundagao de uma ordem cientifica herética e, ao mesmo tempo, dao
a partida a um processo de acrimulo mediante uma agao impositiva.
Em Bourdieu, as préticas dos cientistas tornam—se possiveis pela existéncia de um habitus,
de competéncias e de interesses especificos. Em Le sens pratique (1980), Bourdieu define a
nogao de habitus como resultado de “condicionamentos associados a uma classe particular de
condigées de existéncia”; trata-se de “sistema de disposigoes duréveis e transponiveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como principios
geradores e organizadores de préticas e de representagées que podem ser objetjvamente adaptadas
CAMPO CIENTIFICO 69
a seu objetivo sem supor a intencao consciente de fins, nem o dominio expresso das operacoes
necessérias para alcancé~los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser em nada o produto
da obediéncia a regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser 0 produto da
acao organizadora de um maestro” (SP, 8889). Essa longa citacao poderia credenciar a ideia
de que Bourdieu nao desenvolve, de modo algum, uma sociologia que atribua ‘as normas um
peso importante na explicacao das préticas. Tal pressuposto seria erroneo. Bourdieu admite a
existéncia de regras peculiares da atividade cientl'fica; no entanto, a capacidade das mesmas
para suscitar uma orientacao das préticas eruditas depende, em seu entender, das disposicoes
interiorizadas pelos cientistas. Dito de outra maneira, a capacidade coercitiva e incitativa das
normas depende da capacidade dos agentes de percebé—las, de aprecié-las e de implementé-las. E
Bourdjeu néo deixa de sublinhar que essa atividade de percepcfio é inseparavelmente da ordem
tanto do conhecimento quanto do reconhecimento prético.
Em outras palavras, em Bourdieu, a explicacao da prética pelas normas se encontra
estreitamente articulada a urna explicacao pelas disposicoes: pelo fato de que os agentes
estao “dispostos” — por interme’dio de uma aprendizagem social — é que eles sao “sensiveis”
as restricées advindas das normas e podem dar—lhes uma resposta de modo “sensato” ou,
ainda, mais ou memos apropriado. No agir disposicional descrito por Bourdieu, existe
urna dimensao interpretativa sob a condicao, todavia, de ter em mente a ideia de que as
latitudes de interpretacao sao circunscritas. Se é o individuo que seleciona e identifica
as normas on as regras a fim de interpretar seu sentido e responder-lhes da maneira que
ele julga adequada, essa atividade interpretativa nao se desenrola, de modo algum, em
urn vazio social; 0 campo tem uma historia, no qual 11308 e tradicoes se sedimentaram,
e ele se construiu progressivamente a partir de um suporte de crencas aparentemente
néo questionadas que constituem a base do “jogo” da ciéncia. E, assim, chega-se aqui a
nocao de illusio. ,
Contrariamente a sociologia funcionalista de Merton, a qual inscreve a competicao em
um quadro meritocrético, cujo functionamento é pouco discutido, em Bourdieu tudo parece,
a primeira vista, objeto de lutas: o acesso ao reconhecimento, mas, também, a definicao dos
critérios que presidem a atribuicéo desse capital simbolico, as fronteiras das especialidades
e das disciplinas, os critérios de uma boa reproducao das experiéncias, etc. Entretanto,
Bourdieu insiste no fato de queIhé sempre, em um espaco concorrencial, realidades que nao
ocasionam debate, o que ele designa por illusio. A filiacéo a0 campo cienti’fico impoe aos
atores o respeito de principios geradores constitutivos de uma espécie de axiomética pratica,
cuja incorporacao condiciona a participacao de cada um no jogo da concorréncia cientifica.
As lutas que contribuem para a estruturacao do “campo cientifico” desenvolvern-se, por
conseguinte, no respeito de normas que escapam aos conflitos de definicao: prestar~se ao
jogo da argumentacao e da contra~argumentacao, submeter-se a critica, etc. Trata-se, entao,
das condicoes sociais que tornam possivel o conhecimento objetivo.
Referéncia
BOURDIEU, P. La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progres
de la rai-
son. Sdciologie et Sociétés, v, 7, n. 1, p. 91—118, 1975. [Nova ed. Le champ scientifique. ARSS,
v. 2/3,
p. 88403, 1976.]
70 CAMPO CIENTlFlCO
Enia Passiam'
Maria Arminda do Nascimento Arruda
A teoria dos campos de Pierre Bourdieu, inspirada 11a ideia das esferas da acao de Weber, é,
claramente, uma resposta as definicoes de cultura e sociedade que algumas correntes teérico»
metodolégicas das ciéncias sociais oferecem. E, por assim dizer, a ferramenta por meio da
qual'e possivel acessar a totalidade social, composta por mundos sociais distintos. A0 preferir
a nocao de campo em detrimento de conceitos como “”grupos , “populacoes”, “organizacoes”
ou “instituicoes”, Bourdieu pretende cham‘ar a atencao para os jogos de interesses e lutas que
modelam a exiSténcia do mundo social, apresentando-se como uma metéfora espacial-chave
em sua sociologia. Ern suas préprias palavras, a sociologia é uma espécie de topologia social
preocupada com a construcao de uma teoria do espaco social.
De um 56 golpe, Bourdieu rompe com aquelas representacoes mais tradicionais da hierarquia
socialbaseadas numa visao piramidal da sociedade, tipicas do materialismo vulgar e, igualrnente,
com a cuncepcao de que existea “ ” sociedade, um todo homogéneo, urn conjunto unificado O
conceito de“campo cultura ” '
etarnbém uma reacao contra, basicamente, duas tendéncias —
, urna sociolégica, outra 1150 ~, que pesquisarn os bens culturais: a primeira é representada por
certo mandsmo que pensa as manifestacoes culturais como determinacoes da infraestrutura
economica da sociedade, meros epifenomenos, numa operacéo de reducionismo que nega a
cultura qualquer autonomia; a segunda, ao contrério, profundamente formalista, encara a arte
e a cultura corno apartadas da realidade social, livres das influéncias mundanas da sociedade e
do conjunto de relacoes (politicas, econémicas e sociais) que a forma, e supostamente dotadas
de uma pureza absoluta, como pretendem certas vertentes da semiética e da semiologia.
Segundo Bourdieu, a realidade social é formada por trés campos principais: o campo
politico, o economico e o cultural on da producao simbélica. Cada um desses campos é
composto por infimeros outros subcampos, e tanto os campos quanto os subcampos, embora
apresentern uma historia e um desenvolvimento particulares, agentes einstituicoes sociais
especificos, logicas de funcionamento peculiares, exibem “homologias estruturais” entre
si, isto é, propriedades comuns, “leis gerais” invariaveis ou “mecanismos universais” que
os estruturam. Os campos sao atravessados por relacoes de forca, por formas especificas de
luta que visam acumular os capitais gerados por cada urn dos campos e subcampos, sendo
que é a propriedade do capital que vai definir a posicao dos dominantes e dos dominados e
do exercicio do poder de uns sobre outros.
O conceito de “carnpo cultural” torna visivel as disputas e 05 conflitos que constituem um
dos principios fundamentais da producao cultural. Ainda que Bourdieu admita a existéncia
dos subcampos, raramente utiliza o termo, preferindo a expressao “campo” para se referir, a
rigor, aquilo que seriam os subcampos do campo cultural, como o literario, 0 da moda, 0 do
jornalismo, 0 da pintura, o cientifico, o religioso e outr’os. Como se disse, cada (sub)campo
é composto por agentes e instituicoes sociais especificos: o campo literério, por exemplo, é
formado por escritores, editoras, premios literérios, academias literérias, criticos, editores,
professores; o cientifico, por cientistas, universidades, centros de pesquisa, divulgadores, e
assim sucessivamente para cada uma das regiées sociais que formam o campo da producao
CAMPO CULTURAL 71
simbélica. Os produtores culturais, proprietarios de um elevado capital cultural, encou-
tram-se em disputas constantes, procurando manter e aumentar seu capital simbolico, que
podern on 11510 ser reconvertidos em capital monetario. Os bens simbolicos ern disputa $510 0
reconhecimento, o prestigio, 0 status, a autoridade em determinada area de atuacao cultural.
‘Os agentes refinem-se em grupos, formarn aliancas, elegem adversaries para levar adiante as
contendas, cuja Vitoria significa conquistar a hegemonia do campo, posicionar-se e manter-se
corno grupo dominante, o qual, inevitavelmente, sofrera a concorréncia constante dos grupos
subordinados. Entronizar-se como grupo ou agente hegemonico significa adquirir e exercer
o poder de nomeacao, de classificacao, atribuindo e distribuindo titulos, rétulos oficiais,
batizando, consagrando certos intelectuais e obras em detrimento de outros.
Aquele(s) que ocupa(1n) a posicao dominante goza(m) do direito de definir quern é 0 me-
lhor on o pior escritor, qual obra é grande ou mediocre, quais musicas devem ser ouvidas ou
esquecidas, qual teoria apresenta maior poder explicativo, quais livros devem ser lidos - no
limite, definir o que é literatura, o que é arte e o que é ciéncia. O campo cultural funciona como
um sistema hierérquico de classificacoes que vai do mais ao menos legitimo, constituindo~se
numa auténtica arena de lutas por reconhecimento, pelo direito de instituir o que é e o que
1150 e culturalrnente legitimo, legitimando, por conseguinte, a propria posicao dominante.
Auténomos, os campos nao se encontram isolados, mas cornunicam-se entre si a partir de
suas areas de contato, ou seja, existem entre 0s campos zonas de interseccao ocupadas por
individuos e instituicoes que exercem uma dupla funcao, agentes duplos que transitam por
campos distintos e realizam as mediacées e trocas necessérias entre logicas sociais diferentes.
Podemos citar, como ilustracao, o caso dos editores, que agem, simultaneamente, no
campo economico e no literario; situacao semelhante é a do marchand, que serve de elo de
ligacao entre o campo economico e 0 da pintura. Pica claro, assim, que o campo cultural nao
esta livre das influéncias e demandas externas oriundas dos demais; contudo, elas séo sempre
retraduzidas cle acordo com suas regras e principios organizativos internos, convertendo
tais demandas e influéncias em problemas, questoes, respostas e linguagens simbélicos. Tal
porosidade deixa evidente que hé uma homologia entre a estrutura social mais abrangente e
03 campos sociais, envolvendo, dessa maneira, o campo cultural na reproducao das relacées
e dominacao de classe: as diferentes classes e fracoes de classe estao empenhadas numa luta
simbolica para impor a definicao de rnundo social que mais convém aos seus interesses,
e tal disputa pode ser conduzida diretamente, nos conflitos simbolicos da Vida cotidiana,
ou indiretamente, por procuracao, a partir da luta travada pelos especialistas da producao
simbélica, proprietarios do monopolio da violéncia simbélica legitima.
A definicao de campo cultural de Bourdieu, infelizrnente, sofreu leituras equivocadas por
parte de seus criticos. O primeiro desses equivocos diz respeito a certo relativismo atribuido
a Bourdieu quanto a producao cultural: fruto das disputas pelo poder simbélico, é como
se as obras culturais fossem desprovidas de virtudes internas, formais, e sua classificacao
dependesse apenas da boa vontade do grupo hegemonico no interior do campo. Na verdade,
o que Bourdieu nos mostra é que os campos impoem formas especificas de luta; assirn, no
caso do campo cultural, os querelantes, para validar ou invalidar esta ou aquela obra, se
utilizam, como suas armas, de critérios rigorosos de interpretacao, avaliacao e validacao. Por
isso, nao é qualquer obra, autor ou teoria que recebe o aval dos participantes do campo. Essas
72 CAMPO CULTURAL
$50 as regras da disputa, elaboradas e aceitas por todos os jogadores — é a illusio do campo
ou, simplesmente, a crenca nas regras que o fundam e o fundamentam. O segundo equivoco
é aquele que vé Bourdieu apenas como urn teérico da reproducao. Se, por um lado, de fato
o campo cultural reproduz a luta e a dominacao de classe que lhe sao externas, por outro, a
dinamica intensa das lutas intestinas ao campo geram obras culturais (artisticas e cienti’ficas)
extremamente criticas, que abalam certezas e podem oferecer perspectivas alternativas ao
status quo, ensejando mudancas internas e externas ao campo.
Tomando a alta costura como caso particular de bens de luxo, e examinando‘a como um
campo, Bourdieu reconstitui a historia das principais maisons, atento a sua dinamica entre 1945
e 1975, que foi um periodo-chave de mudancas. E de 1975 a publicacao, com Yvette Delsaut, de
“Le couturier et sa griffe: contribution a une théorie de la magic”, longo artigo nutrido de
dossiés dos principais costureiros, montados a partir de entrevistas e matérias de imprensa geral
, , e de moda. Ano de fundacao, origem social do fundador, localizacao na geografia social de Paris,
estilo de decoracao da loja (eventualmente da residéncia do costureiro), visual de apresentacao
das vendedoras, 550 05 elementos que os autores combinam para mostrar as afinidades de cada
um com o pfiblico a que serve. Assim como em outros campos, a dinamica da alta costura
aciona uma dupla de opostos, no caso a ortodoxia dos dominantes, os domes consagrados, que
insistem em autenticidade, exclusividade e refinamento, e em seus componentes especificos:
sobriedade, elegancia, equili'brio e harmonia. E, no polo oposto, a heresia dos nao confirmados,
que glorifica a audécia, a liberdade de criacao, a juventude e a fantasia.
Quanto a clientela, os dominantes servem as mulheres em “idade canonica” (isto é, ma—
duras) da alta burguesia tradicional e seu discurso respeita o orcamento farto, a discricao e
0 classicismo de gosto implicitos em sua cultura de classe. O polo dominante da alta costura
fornece marcas de "classe”, marcas que 550 de rigueur nas cerimonias exclusivas do culto
que a classe burguesa presta a si propria, por meio da celebracao de sua distincao, sendo os
costureiros, pois, produtores de emblemas de classe (BOURDIEU; DELSAUT, 1975, p. 29).
Id os costureiros nao confirmados lutam por conquistar outro segmento — a nova bur-
guesia — representada por mulheres profissionais liberais ou esposas de executives e altos
funcionarios. Esbeltas, bronzeadas, de corpo cultivado, elas se vestem nao mais para ocasioes
solenes (extraordinarias), mas para o cotidiano, dentro e fora de casa. A elas se agregam as
jovens da burguesia tradicional, vistas como portadoras de um gosto, de um estilo de Vida
e talvez mesmo de um alinhamento politico distante ou oposto a0 de sua classe de origem,
e de orcamento curto. Exemplo; a mulher para quem Courréges diz costurar é alta, jovem,
bronzeada, cabelo curto, limpa, sorridente, radiante (BOURDIEU; DELSAUT, 1975, p. 30).
O que esta em jogo na oposicao que polariza o campo da alta costura é a emergéncia de novos
signds de distincao. Esportes de elite, turismo em locais exoticos, residéncias secundarias, dietas
e exercicios fisicos sao, entre outros, sinais de um aggiornamento do cerimonial tradicional da
distincao burguesa, instilando intolerancia em relacao ao cerimonial antigo. A nova burguesia
Referéncia
BOURDIEU, P.; DELSAUT, Y. Le couturier et sa grille: contribution a une théorie de la magie. ARSS,
n. 1, p. 766, jan. 1975.
CAMPO D0 PODER 75
definir o campo do poder como o espaco em que se estabelece o valor relativo dos diferentes
tipos de capitais que proporcionam um poder sobre o funcionarnento dos diferentes campos.
O desafio peculiar a esse espaco de lutas é a imposicao do principio legitimo de dominacao.
Desde entao, as estratégias de reproducio ~ irnplementadas pelos dominantes dos diversos campos —
comportam uma dimensao simbélica que visa legitimar a espécie de capital em que repousa seu
poder. Bis a razao pela qual a coexisténcia entre poderes temporais e espirituais, sublinhadajé por
Marx e Engels em L’Ide’ologie allemande (MARX; ENGELS, 1976, p. 45) permanece um invariante
estrutural do campo do poder, assim como de todos os campos. O poder tern necessidade de ser
legitimado, de se tornar irreconhecivel enquanto arbitrério para se perpetuar. Bxistem intelectuais
(em sentido ample) que participarn assim dos “circuitos de legitimacao” da classe dominante, cuja
eficacia sera tanto maior quanto maior for a extensao desses circuitos: se a proximidade real on
potencial dos membros da classe dominante fosse conhecida por todos, as formas de legitimacao
cruzada a que eles se submetem em pfiblico perderiam uma grande parte da sua eficécia. E se esses
circuitos de legitimacao deixam de aparecer de maneira tao nitida é, em parts, porque os agentes que
povoam o campo do poder se revelam frequentemente multiposicionais. Assirn, corre‘se o risco de
atribuir suas tomadas de posicao a posicoes as quais elas sao pouco tributarias (BOLTANSKI, 1973).
Em relacao a coabitacao praticamente constante entre poderes temporais e espirituais,
a estrutura do campo do poder nao é fixa no tempo. Trata-se de um produto do aprofunda—
mento da divisao do trabalho social e da emergéncia de uma pluralidade de campos sociais.
Em seu curso, Sur Z’Etat, Bourdieu mostra que o campo do poder esta igualmente vinculado
a0 Estado 6, a0 mesmo tempo, é distinto dele: preexistindo a0 Estado, o campo do poder
nao deixa de enfrentar em seu amago o controle do Estado como um de seus desafios prin—
cipais. Com efeito, o Estado aproprioufise progressivamente do monopolio do use legitimo
da violéncia fisica e simbélica; portanto, possui a capacidade de tomar medidas suscetiveis
de modificar o valor relativo das diferentes espécies de capital. Esse metacapital constitui o
objeto de uma concorréncia no cerne desse metacampo, que é 0 campo do poder. Para expli-
cé—lo, Bourdieu descreve o longo processo que, desde o século XII até a Revolucao Francesa,
assistiu ao confronto entre nobreza armada e nobreza togada, entre o rei e o Parlamento. O
campo do poder tira sua dinamica interna da oposicao entre dois modos de reproducao: por
um lado, a reproducao hereditaria e, por outro, a reproducao burocrética. O desenvolvimento
da instrucao e o aumento do nfimero de assalariados da funcao pfiblica, cuja autoridade se
baseia na competéncia, poem em causa a hereditariedade assente nos lacos de sangue. A
autonomizacao de um campo buro'crético (o Estado) e a constituicao correlata dos “grands
corps” desfazem, em parte, a contradicao entre esses dois modos de reproducao. Uma nova
nobreza se constitui em nome de suas competéncias escolares que sao garantidas pelo Estado.
Bourdieu dedicou numerosos trabalhos a0 estudo das Grandes Ecoles -— bastante seletivas
do ponto de vista social — que alimentam os “grands corps” do Estado. O campo dessas “écoles”
e o campo do poder revelam um funcionamento homologo: em seu livro, La noblesse d’Etat,
ele mostra que ambos térn urna estrutura quiasmética. A distribuicio segundo a desigual
dotacao em capital econémico é cruzada com a distribuicéo segundo 0 capital cultural pos-
suido que, por sua vez, hierarquiza os campos segundo uma ordem inversa. Desse mode, 0
campo do poder seria organizado pela oposicao entre posicoes dominantes do ponto de vista
economico ou temporal, mas dominadas culturalmente, por um lado e, per outro, posicoes
76 CAMPO D0 PODER
Lg,..»-
dominantes do ponto (la vista cultural e dominadas economicamente. Nesse espaqo, a nobreza
do Estado ocupa uma posiqéo intermediéria;
Trabalhos recentes mostram que a desvinculagao do poder pfiblico em relagéo a esferaprodutiva
teve o efeito de levar a aproximagéo entre o patronato do Estado e o patronato do setor privado:
o primeiro perdeu a intensidade como tal, mas reconverteu—se aos negécios privados, enquanto
o segundo incrementou sua formaeio e ganhou em prestigio. Esse duplo movimento produz as
desregulamentaqoes, as privatizaeoes e0 humor ideologico dos anos 1980, além de diminuir os
lucros simbélicos que as fragées intelectuais podjam tirar da exploragéo de seus conhecimentos.
Elas deixam deter o monopélio absoluto nesse dominio e 550 afetadas fortemente pelo recorrente
questionamento da cultura cléssica. O relativo declinio dessas categorias nem por isso significa o
desaparecimento do Estado; alias, os individuos mais Vinculados a0 pfiblico é que se encontram
sempre em posieao de estabelecer o vinculo entre patronato, administraeao e dirigentes politicos.
A estrutura do campo do poder, na Franga, na época contemporanea, pode ser analisada
a partir de quatro critérios principais: a integragao no campo econémico; a antiguidade
da filiaqéo '21 burguesia; a proximidade ao Estado; e a visibilidade pfiblica. Notar-se—é que
principios de diviséo comparéveis (pelo menos, os dois citados em primeiro lugar) 36 re-
velam operatérios em outros paises. Aliés, eles sfio bastante semelhantes aos que Bourdieu
colocou em evidéncia nos anos 1980. A estrutura do campo do poder resulta sempre deste
duplo processo: por urn lado, de diferenciaqéo e, por outro, de estratificaqéo. No momento
em que 0 capital economico se impos como principio dominante de classificagéo, a posse
(ou mad) de um poder sobre os meios de produgao cria a separagao entre as elites, cuja
hierarquizagéo esté sempre, por sua vez, estreitamente vinculada a antiguidade na classe.
Esta permite evitar o recurso a longas estratégias de reprodugao na transmisséo dos poderes
e oferece, com menor dispéndio, uma parte néo desprezivel do capital simbélico familiar.
Referéncias
MARX, K.; ENGELS, F. L’Idéologie allemande. Paris: Sociales, 1976.
BOLTANSKI, L. L’Espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe.
Revue Frangaise de Sociologie, p. 3-26, jam/mars 1973.
DENORD, F.; LAGNEAU‘YMONET, P.; THINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, n. 190,
dez. 2011.
HIELLBREKKE, 1.; LE ROUX, B.; KORSNES, 0.; LEBARON, E; ROSENLUND, L.; ROUANET, H. The
Norwegian Field of Power Anno 2000. European Societies, n. 2, p. 245-273, 2007. '
CAMPO ECONOMICO 77
mesmo que fossem altamente sofisticadas e milenares, tais como as da Cabilia. Essa visao
(“expansionista” e “destrutiva”) da ordem economica capitalista subentende sua concepcao
da “insercao social da economia” (“embeddedness”). Ela esta em coeréncia com sua analise
sociopolitica, desenvolvida nos anos 1990, da ameaca que a dominacao da ordem economica
faz pairar sobre- os campos mais autonomos (ciéncia, arte...) e, até mesmo, sobre universos
com menor autonomia, tais como a funcao publica e o jornalismo. No entanto, a imposicao do
cosmos capitalista tornou-se possivel, para Bourdieu, na Argélia, assim como na globalizacao
neoliberal contemporanea, pela violéncia social 6 politica da colonizacao. Além disso, as analises
da economia de mercado nunca serao dissociadas por Bourdieu de sua sociologia do Estado,
corno é demonstrado oportunamente pela publicacao de seu curso Sur I’Etat, no inicio de 2012.
A existéncia do campo economico é o resultado de um processo de autonomizacao que
levou a légica economica a definir—se sob uma forma tautolégica: “amigos, amigos, negécios
a parte”, como todos os outros campos, segundo as anélises desenvolvidas em seu livro
Raisons pratiques (1994). Esse processo, proximo do “desencastramento” analisado por
Polanyi (1983), tornou autonoma uma ordem da realidade social — a ordem economica —,
por ter tornado autonoma uma illusio, uma crenca particular no valor do jogo, uma
forma de libido, de energia especifica que impele os atores economicos, sejam eles quais
forem, a maximizar seu ganho individual. A extensao dessa illusio é o produto de um
longo processo conflitante no qual o Estado desempenhou um papel decisivo, mediante a
unificacao monetéria, a edificacao de um monopélio fiscal, em suma, gracas a constituicao
de um espaco relativamente estabilizado de trocas e de circulacao monetaria (SSE, 24~26).
Mas a unidade mais profunda do campo economico esta vinculada ao fato de que os agentes
economicos jogam o mesmo jogo, lutam pelo mesmo objetivo, etc. 0 ethos econémico “racional”
(a lei do campo economico) teve tendéncia a difundir-se e a generalizar—se, mas de acordo com
determinadas condicoes economicas particulares, como é demonstrado a partir do exemplo da
Cabilia (A60, 83—116). Durante esse mesmo processo histérico, instalarn-se as instituicoes e as praticas
associadas a ordem capitalista “moderna”: o empréstimo ajuros, o sistema financeiro e as técnicas
bancérias, a contabilidade, a oposicao trabalho/lazer sob sua forma “moderna”, o assalariado, etc.
Paralelarnente, desenvolvem—se as predisposicoes ao célculo, a antecipacao, ao acumulo, a
poupanca, etc., que estao associadas ao funcionamento “normal” desse universo e pressupoem
um minimo de capitais (economico, cultural, social). A existéncia de universos antieconomicos -
ou seja, de espacos em que a busca de capital simbolico repousa em urn recalque da economia
monetaria (campo artistico, campo cientifico, campo burocratico...) — mostra até que ponto a
illusio economica é apenas um caso particular de investimento em um jogo social.
0 campo econérnico é um universo de lutas incessantes. Até mesmo no interior do campo
das empresas, as lutas de concorréncia térn uma dimensao simbélica: o dominante impée sua
definicao do jogo, suas escolhas, sua concepcao do produto, etc. Todas as estratégias do domi~
nante térn em vista reforcar sua posicao, apoiando-se em todos os recursos possiveis, incluindo
todos os recursos propriarnente simbélicos (criacao de marcas, etc). 0 proprio campo patronal é
atravessado por lutas entre detentores de formas diferentes de capital - em particular, de capitais
escolares — associadas a trajetérias diferenciadas e a disposicoes diferentes que lhes sao inerentes.
A teoria economica neoclassica é uma formalizacao, uma racionalizacao erudita da
illusio do campo economico, tanto mais forte em uma sociedade em que essa illusio, por sua
7B CAMPO ECONfiMlCO
vez, se impée. A illusio economica pode ser definida como a crenca, mais ou menos exposta
falsa
claramente, na necessidade de maximizar os lucros monetarios. A teoria neocléssica é
lidade”
ao atribuir comportamentos que os atores economicos sao incapazes deter: a “raciona
estrito célculo racional, enquanto sua
desses atores esté mais préxima do “raioavel” que do
Contudo , a “ver-
prética esta baseada em uni senso pratico, senso de orientacao imprecise.
dade” da teoria neocléssica se mantém pelo fato de retraduzir, de forma bastante fidedigna
co. Ela
em seu principio, sob uma forma escoléstica, a illusio particular do campo economi
outra logica com a qual
a “consolida”, “separando” a racionalidade “economica” de qualquer
ical for-
ela esté sempre intimarnente ligada. Deste modo, no ponto em que'a teoria neoclass
seus objetivos,
mula a hipétese de um ator consciente, transparente a si préprio em relacao a
nde a acao dos agentes
preferéncias e escolhas, ela radicaliza urna visao implicita que subente
ideal-tipo sem
economicos e tende, nos universos “mais racionalizados”, a aproximar~se desse
de submissao
nunca, todavia, ser capaz de alcanca-Zo. Ela participa assim do trabalho geral
dos resultad os da pesquisa
da ordern social as logicas dominantes do universo economico. Um
em evidéncia
sobre o mercado imobih'ério, levada a efeito nos anos 1980, consistiu em colocar
de um mercado. '
o papel decisive da politica e das lutas politicas no processo de construcao
i, organiza e define
Em vez de se contentar em regularnentar o mercado, o Estado o constro
de maneira mais
em sua estrutura e em suas funcoes. Procedendo deste modo, ele modifica,
r os fatores poli-
ou menos irreversivel, o processo de desenvolvimento economico. Ao reavalia
a a represe ntacao — dai em diante,
ticos na construcao social da economia, Bourdieu question
como se desenvolve
muito dominante —, segundo a qual o processo de “mundializacao”, tal
economica e,
hoje, seria inelutavel e natural. A sociologia da economia desfataliza a ordern
forcas de inércia que tém origern
ao mesmo tempo, coloca em evidéncia sua lentidao e suas
nos habitus economicos e nos sistemas de crencas que lhes sao inerentes.
Referéncia
iques de notre temps.
POLANYI, K. La grande transformation: aux originespolitiques et e’conom
Paris: Gallimard, 1983. '
o. Para
Pierre Bourdieu preconizava uma forma particular de entender o esporte modern
de praticas
ele, as manifestacoes que compoem o fenomeno esportivo ocupam um espaco
com 0 capital social,
sociais denominado campo, no qual se atribuern posicées compativeis
formas de
economico on cultural de cada componente. No interior desse espaco, existern
, além
disputas, lutas e concorréncia na busca pela hegemonia de determinadas préticas
al de poder simbélic o.
da distincao social das pessoas envolvidas, conforme o seu potenci
introjet ada
Para 0 esporte moderno, Bourdieu reserva a caracterizacao de uma prética,
contorn os da légica mercan til estabele cida no
Ila formacao da sociedade, que respeita os
l respons ével pelo movi-
universo das relacoes humanas. Nesse sentido, define que o principa
a por determi nadas
mento dessa engrenagem é a relacao construida entre a oferta e a demand
CAMPO ESPORTWO 79
préticas culturais. O conjunto dessas relaeées pode ser comparado, analogicamente, aos
pressupostos e leis que regem o mercado de produtos e consumidores. Pode-se incluir nessa
analise o estabelecimento de processos de concorréncia nas configuragoes ou campos sociais.
Desse modo, o esporte é tido corno um produto que respeita e reflete as estratégias mer-
cadologicas que a sociedade moderna define por conta das'mumeras formas de intervengao
e insergao social. A dinamica instalada nesse campo goza de determinada autonomia, pois,
segundo o autor, cada campo constroi suas préprias leis funcionais, sua cronologia especifica e
seus objetos de disputa, que refletem posiqoes sociais e estilos de Vida. Bourdieu entende que,
para discutirmos o desenvolvimento das modalidades esportivas, temos que té-las inseridas
no processo de mercantilizagao, o qual determina as estruturas constituintes da sociedade
e as relaeoes que sao estabelecidas no interior dos campos.
Assim sendo, o surgimento, as transformaqées e a evolugao dos esportes sao estudados
a partir de uma proposta de leitura da historia estrutural relativamente auténoma das mo»
dalidades. A analise da constituieao do campo esportivo deve estar associada, diretamente,
ao espaeo social em que as manifestaeoes esportivas construirarn suas estruturas. Sobre as
transiqoes e transformagoes do esporte, Bourdieu é incisive: “Parece indiscutivel que a pas—
sagem do jogo a0 esporte propriamente dito tenha se realizado nas grandes escolas reservadas
as “elites” da sociedade burguesa, nas public schools inglesas, onde os filhos das familias
da aristocracia on da grande burguesia retomaram algunsjogos populares, isto é, vulgares,
impondo‘lhes uma mudanga de significado e de fungao Inuito parecida aquela que o campo
da musica erudita impos ‘as dangas populares, bourrées, gavotas e sarabandas, para fazé-las
assumir formas eruditas como a suite” (QSp, 139, grifos do original).
Objetivamente, podemos dizer que Bourdieu admite a constituigao do campo esporfivo a partir
da evolugao, ruptura e transformagao dos antigos jogos populares em esportes modernos, estes
detentores de especificidades mercantis e convergentes para um modelo estrutural de sociedade
de consumo. Entretanto, esse processo de transigao 11510 é o finico existente no estabelecimento das
manifestaeoes esportivas. Houve algumas modalidades que foram inventadas sem a necessidade de
respeitar urn processo evolutivo da forma priméria do jogo popular on passatempo aristocratico.
Os esportes modernos, sejam eles invengao ou manifestaeao evolutiva de jogos popu-
lares, segundo Bourdieu, sao praticas institucionais construidas para agentes sociais com
variado e distintivo potencial de consume, 0 qual é manifestado pelas demandas no interior
do campo. Nesse contexto, a complexidade do fenomeno esportivo passa a ser regido pelas
relagées proprias da légica do mercado nas quais os esportes sio conduzidos ao processo de
espetacularizagao e mercantilizagao.
Para entender essa dinamica e logica do campo esportivo, Bourdieu afirma que é ne—
cessario o reconhecimento da posigao que determinada modalidade ocupa no espago dos
esportes. Esse espaeo, ou campo, é identificado por um conjunto de indicadores, tais como: a
relagao dos praticantes e determinadas modalidades conforme sua posigao ou extrato social;
as diferentes representatividades federativas; o numero de praticantes e seus respectivos
capitais; as caracteristicas politico—sociais dos dirigentes; o tipo de relaeao com o corpo que
determinados esportes exigern (de contato ou de interposieao corn bola). O passo seguinte
é relacionar no campo esportivo a manifestagao do seu espago social, representado em seus
elementos de distingao e “gostos de classe”. Para tanto, o autor considera a possibilidade de
80 CAMPO ESPORTIVO
estudos de um “subespaeo” no interior de um espaeo, de um subcampo em um campo ou de
uma modalidade no universe dos esportes (PBS,- 82~121; QSp, 127-135; CDp, 208~213),
Ha, na anélise do sociélogo francés, um pressuposto de que o campo esportivo contribui para
produzir a necessidade de seus proprios produtos; entretanto, ela n50 desconsidera alégica da prética
esportiva inscrita pela unidade de disposieoes pertinentes a uma fraeao de classe. Assim sendo,
percebemos que no campo esportivo sao estabelecidas relaeoes estruturantes entre disposieoes
sociais e a composigao da oferta e demanda de um esporte. Acrescenta~se a esse contexto, como .
destacado inicialmente, a efetivaeao das transformaeées ocorridas nas modalidades no decorrer
da suahistoria. Bourdieu analisa esse mote, considerando: “[...] que o principio das transformagoes
da
das praticas e dos consumos esportivos deve ser buscado na relagao entre as transformaeoes
o de
oferta e as transformaeées da demanda: as transformaeoes da oferta (inveneao ou importaea
esportes ou de equipamentos novos, reinterpretaeao dos esportes ou jogos antigos, etc.) 5510 en-
gendradas nas lutas de concorréncia pela imposiqao da pratica esportiva legitima e pela conquista
e, no
da clientela dos praticantes cornuns (proselitismo esportivo), lutas entre diferentes esportes
ou tradigoes (por exemplo, esqui de pista, fora
interior de cada esporte, entre as diferentes escolas
nesta concorrén Cia
da pista, de fundo, etc), lutas entre as diferentes categorias de agentes engajados
(esportistas de alto nivel, treinadores, professores de ginastica, fabricante de equipamentos, etc.); as
,
transformaeoes da demanda sao uma dimensao da transformagao dos estilos de Vida e obedecern
portanto, ‘as leis gerais desta transformaeao” (QSp, 152).
deve
O campo esportivo-como uma nogao que permite variadas perspectivas de analise
6
ser contextualizado em relaeao a outros conceitos geradores, tais corno habitus, campo
corn as perspect ivas do
capital, além de considerar que o autor trabalhou essa definigao
nas
esporte moderno e que, talvez, a contemporaneidade do objeto, alocada, por exemplo,
questoes da globalizaeao, da mundializaeao das préticas culturais e da inexoravel insereao
dado
socioeconomica dos legados e megaeventos esportivos em dimensoes planetérias tenha
dos
outras possiveis dimensées para repensarmos, senao a definigao, pelo memos o conjunto
_ contornos e de relaeées sociais estabelecidas no campo esportivo.
ario
A semelhanea de outros sociologos franceses, Pierre Bourdieu seguiu um cursus universit
de filosofia (Ecole Normale Supérieure, agrégation) que lhe forneceu uma grande familiaridade com
e Hegel. Para
autores classicos, tais como Platao, Descartes, Pascal, Spinoza, Leibniz, Hume, Kant
os aprendizes filésofos de sua geraeio, o espaeo das probleméticas estava estruturado pela oposieao
entre o polo da fenomenologia (Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau—Ponty) e 0 da epistemologia
francesa (Bachelard, Canguilhem) — oposieao que permaneceu importante em seus trabalhos
de sociologo mediante o binomio objetivismo-subjetivismo. Mais tarde, os autores anglo—saxoes
contemporaneos tomararn parte crescente em sua reflexao (especialmente, Wittgenstein e Austin).
Bour—
Apesar de 1150 ter construido uma teoria do campo filoséfico como tal, Pierre
dieu forneceu numerosas analises tanto conceituais (sobre o campo, as disciplinas ) quanto
concretas. Os filosofos sao individuos que ocupam as posigées inscritas em determinado estado do
CAMPO HLOSOFIco 81
campo: dotados de desafios especificos, visam impor uma definigfio legitima da filosofia ajustada ao
tipo de capital (cientifico, literério, religioso, etc.) que eles detém. Apos o século XIX, a instituigao
universitéria parece ter conseguido monopolizar, 1150 so a formaqao dos filésofos, o percurso de
suas carreiras, mas tambérn a definieéo dos programas, a lista dos autores canénjcos, o contefido e
a forma dos exercicios escolares (dissertaqao, tese). Dizer que a filosofia funciona como urn campo
significa que ela tern a garantia de certa autonomia, a qual supoe a delimitagao de fronteiras, a
ruptura com os interesses exteriores, a constituiqao de desafios internos, a existéncia de um elenco
de profissionajs dedicados ao tratamento de objetos proprios. O valor filosofico de um problema
ou de um autor é aquilo que é reconhecido pelos profissionais possuidores dos saberes distintos
do senso comum (uma filosofia do senso cornum n50 é o senso comum). Mas, essa autonomia
é fundamentalmente ambigua: por um lado, ela permite a formagao de um dominio separado,
voltado expressamente para objetos especificos. E, por outro, ela pode ser menos real que formal:
o estatuto filoséfico do discurso pode ser tributério apenas do que Bourdieu designa como urna
“retérica do corte falso”, recurso destinado a dissimular a reinscrigao de contefidos profanos
(ideologicos) no campo filoséfico sob as aparéncias de qualidade filoséfica.
Espaqo diferenciado, o campo filoséfico é um lugar de lutas entre profissionais. A se-
melhanga do que ocorre em qualquer campo, podem—se anah'sar hierarquias, inversao de
hierarquias, estratégias intelectuais (combinadas com estratégias institucionais, editoriais,
politicas, etc). Em sua tentativa para “reconstruir o espago dos possiveis” no campo filoséfico
dos anos 1950, Pierre Bourdieu refere-se a uma clivagem observada pelos contemporaneos:
por urn lado, Jean-Paul Sartre, “intelectual total” que ocupava uma posigao dominante, mas
ambigua (considerada demasiado mundana) e Maurice Merleau—Ponty, propenso "a conceber
a fenomenologia como uma ciéncia rigorosa” aberta as ciéncias humanas. E, por outro, “uma
historia da filosofia muito estreitamente Iigada a historia das ciéncias”, “uma epistemologia
e urna histéria das ciéncias representadas por autores, tais como Gaston Bachelard, Georges
Canguflhem e Alexandre Koyré”. Essa clivagem nao deve ser autonomizada, mas relacionada
as condigoes sociais de produgao das hierarquias filosoficas: os lugares mais prestigiosos 550
a “khagne” e a Ecole Normale Supérieure, que contribuem para a integragao logica e ética de
uma “nobreza escolar”, inculcando um senso da proeminéncia ou da profundidade através
do culto de pensadores proféticos (Heidegger) e um desdém pelos objetos triviais, empiricos,
escolares ou simplesrnente eruditos. Deste modo, a “improvisagao retérica” do aprendiz e as
“exibigoes teatralizadas da improvisagéo filoséfica” do mestre séo instrumentos de apren—
dizagem, gragas aos quais sao adquiridos um senso da posiqio no espago intelectual, uma
doxa e um espago de assuntos e de maneiras de pensar que evitem a transgress
ao e sejam
a garantia de elevadas ambigoes. Toda a logica do campo transformava o polo racionalista
da historia das ciéncias em uma regiao dominada, votada a “submissao ao modelo filosofico
dominante”. Apesar das aparéncias, a referéncia a ciéncia nos anos 1960 (Althusser, Foucault)
nao assinala, segundo Bourdieu, uma ruptura com essa dominagao: tal postura liberta os
filosofos das condicionantes da heranga acadérnica e metafisica sem impor~lhes urna con—
versao total, tampouco uma renfincia as vantagens do aristocratismo filoséfico. Eis o que é
testemunhado pelo “efeito-logia” que consiste em dar as aparéncias da ciéncia a urna nova
disciplina (“arqueologia”, “gramatologia”) constitur'da com o objetivo de contornar as ciéncias
sociais e remeté—las ‘as zonas inferiores da empiria.
82 CAMPO FILosoHco
LVJNi
Outra descricao do campo filoséfico foi esbocada por Bourdieu no seu livro sobre Heidegger.
Um dos objetivos desse filosofo consistiu em subverter as hierarquias, impondo uma nova forma de
filosofar: era necessario arrancar a filosofia ‘as ciéncias sociais, radicalizando contra essas ciéncias a
critica que elas podiam fazer daphilosophiaperennis e, mais precisamente, inscrevendo o tempo
no amago do Ser. Heidegger salirava a filosofia, mediante esse salto paradoxal, do relativismo his-
toricista, assegurando-lhe a preeminéncia na ordem do pensamento fundamental, do pensamento
do fundamento (“ontologia-fundamental”). A0 reinterpretar a fenomenologia, Heidegger desfazia
o vinculo com o racionalismo cartesiano, do qual Husserl era herdeiro, e questionava diretamente
' a hegemonia do neokantismo, outra corrente racionalista que tendia a reduzir a filosofia a uma
“teoria do conhecimento” e da cultura. A razao, o espaco e o tempo “objetivos”, o sujeito e o objeto
da tradicao filoséfica estavam desvalorizados em beneficio de uma experiéncia mais “originaria”:
a do “estar-no-mundo”, da finitude, da angfistia, etc. Mas o sucesso de Heidegger n50 pode ser
compreendido unicamente no campo filosofico: no ceme deste, o pensador reproduz urn sistema
de oposicoes homélogo aquele que esté presente entre os pensadores alemées “revolucionérios—
conservadores” da e’poca ~ Spengler, Moeller van den Bruck, Iiinger —, que refutavam tanto o
conservadorisrno tradicionalista quanto o pensamento progressista. Bourdieu esforca—se por
mostrar o caréter essencialmente equivocado do discurso heideggeriano construido a partir de
“significacoes suspeitas” que podem ser apreendidas em um registro politico ordinério (critica
das massas, do socialismo, do intelectualismo, dos judeus) e, simultaneamente, em um registro
propriamente filosofico (o ser contra o ente, a ontologia contra o naturalismo). Heidegger leva a
seu apice certas virtualidades do discurso filosofico que, gracas aos meios da “eufemizacfio”, pode
dizer as coisas dizendo que nao as djz. Desse rnodo, tirando partido das raizes do termo “Sarge”,
erigido em conceito ontologico (a “Apreenséo” como dimensao fundamental do Da—sein, estar—ai),
a critica filosofica da assisténcia (Farsorge), do “alguém”, da “tagarelagem” ~ termos que tern como
antagonicos a existéncia-auténtica (Eigentlichkeit) e a resolucao (EntschluSs) diante da morte
assumida — permite transfigurar, em uma forma elevada e inatacével, um velho tema do discurso
,conservador, a critica politica da seguranca social (Sozialffirsorge) e do bem~estar.
A atencao atribuida as palavras mostra corno o corte entre abordagem externa e abordagem
interna e’ inapropriada a sociologia da filosofia que deve aplicar-se a descrever o funciona—
mento do campo filosofico e, ao mesmo tempo, a considerar sua autonomia sem deixar de
estar continuamente em jogo através dos compromissos com forcas exteriores ao campo,
além das importacoes de temas e de ideias.
Bourdieu elaborou o conceito de campo intelectual ~ nocao que vai desempenhar um papel
cada vez mais importante em seu método de pesquisa e em seus trabalhos da maturidade - a
partir de 1966, com o artigo “Champ intellectuel et projet créateur” e, depois, em 1971,
“Champ du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe”. Esses dois artigos, focalizados
na sociologia do campo literério — cuja insuficiéncia foi criticada, mais tarde, por Bourdieu ~,
foram completados e corrigidos por suas duas importantes contribuicoes sobre outros espacos
CAMPO iNTELECTUAL 83
simbélicos, o campo religioso e o campo artistico, permitindo generalizar essas proposig
oes
ao campo intelectual global: “Une interpretation de la théorie de la religion selon Max
Weber”
e “Le marché des biens symboliques”.
Com esse conceito, trata-se de romper com uma sociologia que estabelece uma relaqao direta
— Como fazia a sociologia da Iiteratura mandsta na época (Gyiirgy Lukacs, Lucien Goldman
n)
on o funcionalismo — entre interesse de classe, por um lado e, per outro, orientaeo
es ideo-
logicas e intelectuais. Essa abordagem questiona igualmente a tradigao letrada, idealista
e
intelectualista, dominante desde sempre no estudo desses temas: ela limita a interpret
agao
dos conflitos intelectuais a um conflito de ideias puras, autonoma em relagéo aos contextos
mais amplos, privflegiando o estudo do discurso, a exegese dos textos e a abordagem
herme—
néutica enfética. A vulgarizagao da expressao “campo intelectual”, nos ultimos trinta
anos, a
medida de seu sucesso e das discussoes que ela suscitou no cerne das disciplinas envolvida
s
e, frequentemente, hostis (historia da filosofia, histéria das ideias, historia da literatura
, his'
téria da arte, eta), manifestou tendéncia a fazer‘lhe perder varias de suas Virtudes criticas
e
incomodas im'ciais, transformando-a em uma nogao puramente descritiva que reduz
“campo
intelectual” ‘a “Vida intelectual” ou “esfera intelectual” e, até mesmo, intelligentsia. Tratava-s
e
de fato, para Bourdieu — e trata-se sempre, se pretendemos ser fiéis a sua inspiraga
o através do
uso rigoroso deste conceito —, de elaborar com ele um questionério e um programa de
pesquisa
para testar diversas hipéteses: em tal periodo on em tal contexto geogréfico, seré
que se pode
identificar, on 1150, um campo intelectual (ou Iiterério), ou seja, um conjunto de posieoes
e
oposigées entre grupos (intelectuais) em luta pela hegemonia e pela autonomia relativam
ente
a outros grupos (intelectuais on n50)? Em que desafios se baseiam suas oposigoe
s e debates?
De que maneira tern sido sua evolugéo? Serao eles especificos, como ocorre
em determinados
campos cientificos ou ainda heteronomicos como é o caso nos dominios que dizem
respeito
mais de perto ao p'oder e a economia? Que trunfos, disposiqoes, caraten’sticas dos
produtores
em concorréncia explicam suas trajetérias, sucessos e fracassos, tornadas de posigao?
Qual a
margem de liberdade a disposieao desse campo intelectual em relagéo a0 campo
do poder, a0
campo economico, ao campo religioso, etc? Em que sentido evolui essa margem,
segundo as
conjunturas historicas? Responder a essas questoes pressupfie, por conseguinte, diferente
s tipos
de pesquisas complementares: morfolégicas, sociolégicas, ideolégicas e politicas. Isso
implica,
por exemplo, estabelecer biografias sociais (isto é, construidas), cruzadas e compara
das, dos
principais intelectuais; anéfises institucionais das instancias de legitimaeéo, de
produeao ou
de reprodugéo das posigoes no campo intelectual; estabelecimento de multiplas relagoes
entre
esses diversos fatores e condicionantes, sem esquecer a analise relacional
das caraten’sticas dos
textos, das tomadas de posigéo e das obras produzidas no cerne dessas diferentes configura
eoes.
E possivel encontrar tais tentativas em aeao nos trabalhos empreendidos por
Bourdieu e por
sens colaboradores a0 tentarem proceder a descrigoes aprofundadas deste ou daquele
campo
intelectual (ou artistico, ou religioso, ou literério) singular e, até mesmo, desta ou
daquela obra,
deste ou daquele autor. Assim, na primeira aplicaeao dessas hjpéteses de pesquisa
ao campo
literério francés, através do caso de Flaubert, Bourdieu coloca em evidéncia
a oposigao que
atravessa esse campo entre os raros autores que reivindicam sua autonom
ia em relagao aos
desafios econérnicos de uma literatura em via de comercializaeao acelerad
a pela imprena
sa, teatro, romance, por um lado, e, por outro, urna maioria de literatos que
aceitam essa
84 CAMPO INTELECTUAL
subordinacao e renunciam a defender sua autonomia estética contra as injuncoes do mercado.
Mas a exaltacao da literatura pura e artistica, em Flaubert, nao se limita a deploracao de uma
ordem simbélica caduca (e, em parte, mitica, uma vez que o antigo regime literario estava
submetido a outras formas de restricées, como ficou demonstrado pelos trabalhos de Alain
Viala, Daniel Roche on Robert Darnton sobre os séculos XVII e XVIII). Se 0 autor de Madame
Bovary rejeita o compromisso on o profetismo da geracao romantica, esfacelada pelo fracasso da
Revolucao de 1848, e, em suas obras mais célebres, trabalha a denfincia das ilusoes romanticas,
ele fixa também a seu empreendimento uma ambicao critica e ironica da literatura de consumo
corrente por uma escrita desconcertante que embaralha os cédigos estabelecidos. Trata—se de
outta maneira, intrinseca a0 trabalho do escritor, de reivindicar a autonomia em relacao a todas
as convencoes estabelecidas do campo literario contemporaneo. Essa dupla negacao e essa dupla
reivindicacao explicam que a Education sentimentale (1869) ~ romance amplamente baseado
em uma autoanélise de Flaubert e em uma reconstituicao feita pelo romancista da principal
crise atravessada pela Franca em torno de 1848 ~ propoe praticamente uma anélise sociolégica
das relacées entre campo intelectual e campo do poder, na Franca de meados do se’culo XIX,
através do conjunto dos personagens e de suas trajetorias. Essa primeira aplicacao do método
de analise em termos de campo intelectual seré prolongada e aprofundada no livro Les régles
de l’art (1992), integrando as contribuicées dos trabalhos de igual inspiracao de C. Charle, R
Ponton e A.-M. Thiesse sobre o campo intelectual e literario no final do século XIX e suscitando
outras pesquisas que hao de aperfeicoar e enriquecer o esquerna geral e as hipéteses iniciais
sobre outros penodos complexos, tais como 05 da Guerra de 1940 e da Liberacao (SAPIRO, 1999)
on comparar o campo literério e intelectual na Franca com outros campds de outros paises ou
de outras épocas (cf.V1ALA, 1985; CHARLE, 1996; OP; CASANOVA, 1999).
Tais ampliacoes permitiram avaliar em melhores condicoes as especificidades da evolu-
céo dos diferentes campos intelectuais em diferentes paises e 03 fenomenos de dominacao
entre eles, em conformidade com os subconjuntos (campo universitério, campo literério,
campo artistico, etc.) 0 processo de autonomizacao, se estiver ativo em toda a parte, assume
formas e segue caminhos fortemente divergentes, até mesmo em nacoes aparentemente
préximas. Ele nunca seré definitivamente alcancado e pode passar por questionamentos
Iadicais, inclusive, na Franca (na e'poca do governo de Vichy) ou nos Estados Unidos (no
periodo do macarthismo). Ora, essas duas nacoes nao deixam, no entanto, de reivindicar,
desde o século XVIII, seu papel de vanguarda nesses dominios. A abordagem transnacio—
nal permitiu também destacar a importancia dos fenomenos de dominacao cultural en‘tre
grandes e pequenas nacoes, entre grandes e pequenos idiomas que exercem uma grande
influéncia sobre as caracteristicas dos campos literérios e intelectuais, nao so entre nacoes
imperiais e nacoes colonizadas ou antigamente colonizadas, mas até mesmo no interior do
espaco europeu, segundo as relacoes de forca entre os mercados literérios 011 intelectuais;
tal dominacao foi avaliada, por exemplo, pela sociologia da traducao, como ficou demons-
trado por Gisele Sapiro e por seus colaboradores no que se refere ‘a época contemporanea
(SAPIRO et al., 2008). Todos estes exemplos mostram a fecundidade sempre Visivel e a
diversidade dos programas de pesquisa implicados pelo conceito de campo intelectual
ou de campo literério. Com efeito, ele pode ser declinado na escala tanto de um pequeno
grupo e, até mesmo, de um autor importante (sob a condicao de reposiciona—los no espaco
CAMPO INTELECTUAL 85
das mfiltiplas relagoes, permitindo compreender seus projetos e sua situagfio
) quanto de
espagos globais e, até mesmo, internacionais, o que obriga, em qualquer caso,
a adaptar o
questionério, a implementar os métodos de anélise ou de comparagéo adaptad
os és espe—
cificidades e és fontes para evitar a queda, de novo, nas armadilhas
positivistas e eruditas,
ou o‘recurso aos esquemas convencionais das abordagens contra as quais
essa ferramenta
havia sido concebida.
Referéncias
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v. 246, p. 895-906, nov. 1966.
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VIALA, A. Naissance de l’e’crivaz'n: saciologie de la littérature L‘z l’fige
classique. Paris: Minuit, 1985.
Remi Lenoir
35 CAMPO JURlDlCO
prepriedades estatutarias] impoern a percepcae de todos [...],- come inscritas em uma esséncia
de natureza socialmente garantida”, aquela que é conferida pele Estado. Para Bourdieu, o
direito consagra a erdem estabelecida ao recenhecer come legitima uma visae dessa erdern,
que é uma visao de Estado e garantida pelo Estado. '
As referéncias ao direito insc'revem»se, na maier parte das vezes, nos estudos empreendidos
per Bourdieu sobre as formas e 03 efeitos da dominacae sirnbélica. O direito, em seu entender, age
come em suplernento “ae formalizar” e “a0 colecar formas nas relacoes de poder”, de acordo com
suas expressoes. E Bourdieu ainda fornece a seguinte precisao: “A forca da ferma [juridica] — a
visformae mencionada pelos antigos — é a ferca prepriamente simbolica que permite a forca
exercer-se plenamente, fazende-se descenhece’r enquanto forca e fazende-se reconhecer, aprevar e
aceitar pelo fate de se apresentar sob as aparéncias da universalidade, aquela da razao on da moral".
O Estado é uma ficcae de juristas, os primeires “nobres do Estado”, que desenvolveram
uma visao pelitica do service do Estado come um service pfiblico, ou seja, come uma atividade
desinteressada orientada para fins universais e 11:30 unicamente para 0 service e a gloria do
rei, a fortiorz’ nae para a defesa de sees proprios interesses.
A nebreza do Estado, come escreveu repetidamente Bourdieu, fundou sua razao de ser
social e sua dominacao ao afirmar e defender a autonomia do service pfiblice em Home do
direito em relacao ao peder régie, em nome da cempeténcia em relacao a nobreza hereditaria
e em neme do interesse geral por oposicao ae universe economico. O que nae evita a questao
da finalidade social do direito que nae poderia reduzir-se a invencae de um mode racional de
gestao administrativa, nem a burecracia, tampeuco ao ideal de neutralidade, de desinteresse
e de universalidade que lhe é inerente.
Corn efeito, 0 “universal” nae preexiste, de acordo com Bourdieu, a formacao do Estado
moderno. Os funcionérios desse tipo de Estado Die 0 utilizam para dissimular seus privilégies
e seus interesses propries. Ao elaborar principios normativos e o direite que lhes cerresponde,
es juristas e 05 parlamentares dos séculos XVII e XVIII precuraram justificar a autoridade I
superior que eles tentam encarnar, produzindo uma filesofia juridica e politica do Estado pela
qua] é desvalorizada, para nae dizer desqualificada, qualquer outra teeria imediatamente
reduzida aos interesses dos grupos, desde entao constituidos como particulares, corporativos,
em suma, pré-estatais. “Eles tiveram de inventar 0 universal ~ 0 direito, a ideia de service
pl'lblico, de interesse geral, de populaeao, etc. — e, se é que se pode dizer, a deminacao em
nome do universal para ter acesso a deminacae”.
A semelhanca do que ocorre corn todos os universes que conquistaram sua autenomia
de funcionamente — come é confirmado pela constituicao de uma doutrina, ou seja, de um
direito erudite —, a producao juridica nae pederia ser interpretada, de acordo corn Beurdieu,
come urn sistema fechado e unicamente do ponte de vista de sua logica interna (degmatismo
legal), nem come 0 reflexe direto de fatores que Ihe sae, em diversos graus, exteriores (eco—
nomices, politicos e midiéticos). A 110930 (16 campo aplicada ao universe juridico lembra que
este filtimo deve ser pensado de um mode relacional, tanto em seu funcienamento interno
quanto em suas relacoes com os outros campos, come um espaco estruturado de pesicoes —
' e de postos que lhes correspondem — ‘as quais estao vinculadas propriedades relativamente
independentes daquelas peculiares aos individuos que as ecupam. Ela permite estabelecer
as relacoes objetivas entre essas pesicoes ~ a estrutura das disciplinas juridicas, aquela das
CAMPO JURIDICO 87
hierarquias prefissienais, aquelas das homenagens académicas — e entre estas filtimas e as
diferentes formas de producao juridica, inclusive as definicoes da prepria atividade juridica.
O estabelecimente de relacees entre essas posicees e as propriedades sociais e culturais de
seus ocu’pantes nae teria sentido se nae fossem definides os desafios especificos do universe
e dos subuniversos juridices. E evidente, per example, que distincees cemo aquela que epee
e direito pfiblico ae direito privado remetem ainda a interesses Inuite diferentes, embora os
agentes tenham em comum urna disposicae a jegar o jege exigido pele espaco da disciplina,
ou seja, um habitus que implica e conhecimento e e reconhecimento das regras do jogo e do
interesse do que esta em jego (eu seja, a illusio especifica deste campo que, muitas vezes, é
designada come “um espirito”, neste case concrete, 0 “espirito juridico”). Tern a ver também,
e antes de mais nada, com oficios, um conjunto de técnicas, de referéncias, de cenhecimentos
e de “crencas” propries desse espaco, tratando-se, seja da hierarquia dos principios funda—
mentais, das disciplinas, das faculdades, seja das revistas e das editeras, sem falar da maneira
de redigir textes e da importancia atribuida as chamadas e notas de redapé.
Referéncia
BOURDIEU, P. La force du dreit: éléments pour une sociologie du champ juridique. ARSS, n. 64,
p. 3—19, sept. 1986.
Giséle Sapiro
O conceito de campo literario, ferjado per Pierre Bourdieu, apreende e mundo das letras come
um universe social dotado de uma relativa autenomja, no sentido em que é regide per regras
préprias que se referern a sua historia, ale'm de determinarem as condicées de actimule do capital
especifico a esse universe. Esse conceito visa escapar de uma dupla armadilha. Contra a ideologia
romantica do “criader incriado”, que encontrou sua expressao mais acabada na nocao sartrz'arza
de “projeto criader” e que serve de fundamente a aberdagem puramente hermenéutica das obras,
ele chama a atencao para o fate de que es produtores nae escapam as restricoes que governam e
mundo social. Uma sociologia da literatura tern o direite de formular a seguinte perguntaz. “Mas
quem teria criado es criadores?”, ou seja, per quais processes se forma e valor simbelico das obras?
No entanto, contra a seciolegia marxista que reduz a obra as caracteristicas sociais de seu pfiblice
ou de seu autor, e contra a abordageni economicista que se interessa apenas pelas condicoes Ina-
teriais da producao e do consume concernentes a indfistria do livro, Pierre Beurdieu afirma que
é impossivel explicar os universes culturais sem levar em censideracao sua autonemia relative e
sua principal propriedade que é a crenca. Do ponto devista metodelogico, tal abordagem pretende
superar a tradicional opesicao entre analise interna e analise externa: a primeira esta fecalizada
na decifracao, a0 invés do ato criador. Inversamente, a segunda tende a reduzir as ebras a suas
condicees de producao e recepcao. Enquanto a analise interna se interessa pela estrutura das obras,
a analise externa enfatiza, sobretude sua funcao social. 0 conceito de campe visa articular esses
dois aspectos da analise, tendo em centa as mediacoes entre essas duas erdens de fenérnenos. Tal
cenceite aparece pela primeira vez sob a pena de Beurdieu no artigo “Champ intellectual et projet
88 CAMPO LITERARIO
créateur”, publicado em 1966, na revista Les Temps Modernes, fundada e dirigida por Jean-Paul
Sartre. Se a ideia de um universo social relativamente autonomo, dotado de uma historia prépria
e de regras especificas, jé esta presente nesse texto, Bourdieu iré. renegar essa primeira elaboracao,
que considera como demasiado interacionista, em beneficio de uma concepcao mais objetivista e
topologica do campo, desenvolvida em varios artigos publicados entre 1971 e 1991 — “Le marché
des biens symboliques” (1971); “Quelques propriétés des champs” (1980); “Mais qui a créé les
créateurs?” (1980), “The field ofcultural production” (1983) e “Le champ littéraire” (1991) —, antes
de elaborar uma obra maior: Les régles de l’art (1992).
De acordo com essa definicao objetivista 6, a0 mesmo tempo, relacional — inspirada pela nocao
fisica de campo magnético (principio de atracao-repulsao) —, o campo designa, simultaneamente,
um espaco de posicoes que se definem umas em relacao ‘as outras em funcao da distribuicao desigual
do capital especifico e um espaco de tomadas de posicao inscritas em uma historia, que também
adquirem sentido umas em relacéo ‘as outras. Esses dois espacos mantém uma relacéo de homologia.
Com efeito, se 0 espaco das possibilidades se apresenta aos escritores sob a forma de escolha a fazer
entre opcoes mais ou menos constituidas como tais no decorrer de sua historia ~ rimas ou verso
livre, narrador extradiegético ou interdiegético, etc. ~, essas escolhas estéticas sao correlatas
das posicoes ocupadas por seus autores no campo, em funcéo do volume e da composicao
, do capital sirnbolico especifico detido, ou seja, do gran e do tipo de reconhecimento que haviam
adquirido enquanto escritores. Para compreender essa distribuicao do capital especifico, irnpoe¥se
relaciona—la com as principais oposicoes que estruturam o campo literario.
A prirneira limita—se a ser a especificacao no campo de uma clivagem que serve de estrutura ao
espago social e se encontra em todos os universos sociaiszela opoe os “dominantes” aos “domina-
dos”, segundo 0 volume global do capital com cotacao nesse universo, no caso concreto, 0 capital
de reconhecimento. Essa clivagem coincide, frequentemente, com a oposicao entre “velhos” e “jo—
vens”, escritores reputados e recém—chegados. Ela pode ser ilustrada pelos membros daAcadémie
Frangaise, por um lado, e, por outro, pelas vanguardas (por exemplo, os surrealistas). Enquanto os
dominantes estao interessados na conservacao do estado das relacoes de forca, os dominados, que
procurarn subverter tal situacfio, rompem com as convencoes e 03 codigos estabelecidos. Ao extrair
elementos da teoria da religiao de Max Weber para pensar esses confrontos, Bourdieu recorre as
nocoes de ortodoxia e heterodoxia. A0 evocar as seitas reunidas em torno de uma figura profética,
as vanguardas aparecem, com efeito, como heterodoxas em sua tentativa de subverter as convencoes
de escrita de sua época, suscitando reacoes mais ou menos acirradas por parte dos defensores da
ortodoxia, comparaveis aquelas dos sacerdotes porta—vozes de determinada igreja. As lutas entre
os partidarios da ortodoxia e os hereges sao recorrentes e, em grande parte, constitutivas da his-
téria do campo. O principio da originalidade que rege o mundo das letras desde o Romantismo
faz com que as lutas de concorréncia para a imposicao da definicéo legitima da literatura tenham
assumido uma forma aberta e, as vezes, violenta, ilustrada perfeitamente pela forma do manifesto.
A segunda oposicéo é mais especifica aos universos da producao cultural, definindo a relacao
de tais universos corn as condicionantes externas: ela distingue tipos de reconhecimento, simbo-
lico on temporal, de acordo com seu grau de autonomia em relacéo a demanda, tratando—se das
expectativas do publico ou da demanda ideologica. Segundo a logica heteronoma, o valor da obra
é reduzido, seja a seu valor de mercado, cuja vendagem constitui o indicador ~ por exemplo, os
best—sellers —-, seja a seu valor pedagégico, de acordo com critérios morals ou ideologicos. No lado
CAMPO LITERAmo 89
oposto, a logica autonoma faz prevalecer o valor propriamente estético da obra, o qual somente os
especialistas — ou seja, os pares e 03 criticos — estao em condicées de apreciar: o reconhecimento
dos pares sera, portanto, o critério de acumulo de capital simbélico especifico no campo.
A producao literaria autonomizou-se da demanda das classes dominantes e do grande publico,
ao‘valorizar o julgamento dos especialistas. Se Bourdieu situa esse processo de autonomizacao
do campo literario em meados do século XIX, sob o Segundo Império, alguns historiadores da
literatura — tais como Denis Saint-Jacques e Alain Viala (1994) — detectam seus primordios desde
o século XVII. No entanto, esse processo nao é linear, nemhomogéneo (SAPIRO, 2012), tendo assu—
mido diversas modalidades em funcao dos paises. Assim, no Brasil, foi no im'cio do século XX, no
periodo modernista, que se assiste a autonomizacao de um campo literario nacional (MICELI, 2001).
Referéncias
BOURDIEU, P. Champ intellectuel et projet créateur. Les TempsModernes, v. 246, p. 895—906, nov. 1966.
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Anne’e Sociologique, v. 22, p. 49—126, 1971.
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_
MICELI, S. Intelectuais £1 brasilez'ra. 850 Paulo: Companhia das Letras, 2001.
.,
SAINT-JACQUES, D.; VIALA, A. A propos du champ littéraire: histoire, geographic, histoire littéraire.
I
Annales, Histoire, Sciences Sociales, v. 49, n. 2, p. 395-406, 1994.
SAPIRO, G. Autonomy Revisited: The Question of Mediations and its Methodological Implications.
Paragraph, v. 35, p. 30-48, 2012.
90 CAMPO POLlTlCO
de pesquisa que inspirou e renovou numerosos trabalhos da ciéncia politica, ao trazer como
problematica fundamental o corte que se estabelecera entre o politico em relacao ao social.
0 campo politico é definido como urn espaco relativamente autonomo, dependente de um
universo de regras, crencas e papéis préprios. E “o lugar em que se geram — na concorréncia
entre os agentes que nele se a'cham envolvidos -— produtos politicos, problemas, programas,
anélises, comentérios, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadaos comuns, reduzidos
ao estatuto de ‘consumidores’, devern escolher" (BOURDIEU, 1981a). E escolher com grandes
chances de mal—entendidos, pois o acesso aos meios de participacao politica ai se distribuem
de forma desigual, tanto do ponto de vista da socializacao quanto da posicéo no espaco social.
Esta definicao, que sublinha a concentracao dos meios de producéo propriamente politi-
cos nas maos de profissionais e o desapossamento desses meios pela maioria da populacao,
condensa sua oposicao aos postulados classicos da ciéncia politica (dissociacao da politica do
mundo social, escolha racional, delegacao, etc.) centrados na figura do cidadao esclarecido
e competente, dado como proprietario de uma opiniao. Ao contrario, faz ver os constrangi-
memos que pesam nas opcoes dos “consumidores” desprovidos de competéncia social para
a politica e de instrumentos proprios de producao de discursos ou atos politicos: abster—se on
se conformar com as escolhas de sens representantes. Na sequéncia de Weber, e utilizando a
, linguagem da anélise marxista da economia capitalista (produtores, consumidores, concen~
tracao de capital, etc.) para definir uma distribuicao desigual de forcas no campo, Bourdieu
questiona a natureza do laco que une representantes e representados.
A definicao retoma o processo de deslocamento do politico em relacao a Vida social or»
dinéria que atravessou todo o século XIX, ou seja, um fendrneno que se‘explica na sociedade
ocidental moderna, quando do aparecimento de dominios separados de atividades, presos
a formaslegais especificas (direito, politica, esfera académica, etc.). Sob este prisma, e com
um conjunto de ferramentas metodologicas e teoricas extraidas da sociologia, antropologia e
historia, Bourdieu evoca Max Weber na sua sa brutalidade materialista (“pode-se viverpara
a politica e da politica”) para refletir sobre esse “microcosmo” social, no interior do enorme
mundo social, onde se geram problemas que agitam os politicos em suas posicées hierérquicas
dentro do campo, permitindo-lhes se distinguir entre eles, mas que, entretanto, nao interessam
a0 cornum dos mort‘ais. Um microcosmo que comporta fenomenos e objetos que parecem
ter existido desde sempre (a democracia, o voto, os partidos politicos, o cidadao eleitor, as
sondagens, os deputados), mas que sao invencoes recentes presas a conjunturas historicas.
Enfim, com a ferramenta analitica do campo, Bourdieu deixa claro desde seu artigo inau-
gural que seu objeto de investigacao nao é a politica, mas o espaco social onde se confrontam
as elites politicas. Com isso, ele restitui a especificidade dos fenomenos politicos em relacao as
logicas sociais de onde derivam: desnaturaliza as instituicoes politicas e o proprio Estado pela
apreensao das relacoes que unem individuos e grupos concorrentes que pretendem falar em
seu nome (BOURDIEU, 1993). A ferramenta permite estabelecer de que maneira os mecanismos
genéricos que regulam a aceitacao ou eliminacéo dos novos entrantes na dinamica do campo
politico (luta de geracoes, reputacao), on a concorréncia entre os diferentes produtores (trajetoria
de acumulacao de capital), determinam os discursos a serem produzidos ou reproduzidos e a
aparicao de ideias—forcas, relativamente independentes de suas condicoes sociais de producao,
e que térn por alvo “impor a visao legitima do mundo social” (BOURDIEU, 1981b).
CAMPO POLITICO 91
A forca das ideias propostas pelos agentes politicos mede-se, diferentemente do que acon—
tece no terreno da ciéncia, nao pelo seu valor de verdade, mas pela forca de mobilizacao que
encerram, pela forca do grupo que a reconhece. Depende, pois, da autoridade daquele que a
pronuncia, da sua capacidade de fazer crer sua veracidade e seu mérito. Ou seja, o anuncio
de urn projeto, de uma esperanca ou simplesrnente de um futuro se executa desde que os
destinatérios se reconhecam nele, conferindo-lhe a forca simbélica e material — em forma de
votos, mas também de subvencoes, quotizacoes ou luta militante (BOURDIEU, 1981b).
0 campo politico, diferentemente dos campos de producao cultural e cientifica, nao pode, pois,
se libertar totahnente dos interesses sociais e dos grupos em Home dos quais a politica se organiza.
Mesmo porque os profissionais da representacao agem em nome de representados que eles mesmos
contribuirarn para fazer existir e unificar (os “trabalhadores”, as “classes médias”, “osjovens”, etc).
A nocao de campo politico nao prevé, portanto, um corte fatal entre profissionais e “profanos”.
Seu objetivo é revelar o conjunto de transacoes operadas entre esses dois lados, capazes de produzir e
manter uma legitimidade na base da crenca politica, vista em analogia a crenca religiosa (BOURDIEU,
1971). Nessas transacées, o desapossamento dos “profanos” tende a se aprofundar a medida que
o campo ganha mais autonomia, torna—se mais profissionalizado e aparecem as instituicoes en-
carregadas de selecionar e formar, além dos politicos propriamente ditos, os especialistas da area:
jomalistas, institutos de sondagens, cornentaristas politicos, assessores em comunicacao. Ai, mesmo
os semiprofissionais (militantes, colaboradores) contribuem para transformar as questoes politicas
em “casos de especialistas que aos especialistas compete resolver", desapossando o cidadao comum
dos meios de producao dos atos socialmente reconhecidos como politicos (BOURDIEU, 1984, 2001).
A grande utilidade da nocéo de campo politico situa—se no fato de as operacoes a serern
realizadas para a sua analise nao se originarem nas categorias de pensamento e problemas
levantados e praticados pelos proprios agentes politicos. Nao partem, tampouco, do que é
formulado nos registros do direito, da histéria das ideias on da ciéncia politica. A logica
estrutural prépria do conceito convida ao levantamento e estudo das propriedades sociais
dos agentes que trabalham em concorréncia pelo monopolio da manipulacao dos bens po-
liticos (posicoes de controle) e do estabelecimento das regras do jogo (cabine eleitoral para
voto secreto, urna eletronica, sufrégio para menores de 18 anos, obrigatoriedade do voto). A
forca da nocao esté em apreender o que une os titulares que ocupam posicoes dominantes
nos diversos espacos sociais (campo politico, economico, burocrético, mediético), opondo-os
nas lutas simbélicas travadas no espaco politico corn armas, capitais e poderes desiguais,
bem como em cornpreender as formas de organizacao coletiva que possibilitam fazer parte
do jogo. A nocao abarca, assim, as transformacoes estruturais do universo politico trazendo
novas reflexoes sobre a problematica das condicoes que possibilitam a acao politica e seus
limites (BOURDIEU, 1985).
Referéncias
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92 CAMPO POLITICO
.J
“5:7
BOURDIEU, P. La délegation et le fétichisme politique. ARSS, v:52—53, p. 49-55, 1984.
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O texto de Pierre Bourdieu sobre o campo religioso, inspirado nos estudos sobre reli-
giao de Max Weber, constitui uma primeira elaboracao do conceito qu'e, juntamente com
aquele de habitus, sustenta a estrutura do pensamento sociolégico desse autor. De fato, a
sua concepcao do conjunto da sociedade como espaco multidimensional em que as posicoes
diferenciadas ocupadas por agentes sao definidas umas em relacao as outras segundo uma
série de variéveis, notadamente 0 volume e a composicao de capitais — economico, cultural,
social e simbélico — detidos pelo agente e pertinentes para o contexto considerado, Bourdieu
sobrepos o conceito analitico de campos.
A diferenciagao progressiva do mundo social a0 longo da histéria levou a0 surgimento de campos
' mais ou menos autonomos, produzidos pela divisao social do trabalho. A0 contrério da divisao
técnica do trabalho, que se restringe a organizacao da producao, a divisao social do trabalho recobre
toda a Vida social 6 esté relacionada a um processo de diferenciacao que distingue funcoes espea
cializadas, come as funcoes politica, econémica, artistica, entre outras. Em cada campo, operando
dentro de sua autonomia relativa e obedecendo a sua légica especifica, os agentes, posicionados
de acordo com seu volume 6 composicao de capitais, interagem como jogadores em um mercado,
enfi'entando-se para conservar e acumular as formas de capital que permitem dominar o campo.
A génese histérica de um campo religioso relativamente autc‘momo esté relacionada a certos
aspectos especificos das transformacoes socioeconomicas e da divisao social do trabalho.
O desenvolvimento da urbanizacao caracterizou uma ruptura entre campo e cidade, que é
diretamente associada a divisao entre trabalho material e trabalho intelectual. A progressiva
autonomia do trabalho intelectual na cidade emancipou a consciéncia humana da concre-
tude da natureza, permitindo que ela se imaginasse como a representacao de algo nao real.
Emancipada do mundo concreto e da praxis, a consciéncia humana pode chegar a formacao
de teorias “puras” e abstratas, como a filosofia e a religiéo.
O desenvolvimento de um corpo de especialistas encarregados da gestao dos bens de
salvacao, preparados e legitimados para o exercicio monopolizado dessa funcao, constitui
outro aspecto da divisao social do trabalho que contribuiu com a génese da religiao como
campo autonomo. De fato, a formacao de um campo religioso pressupos uma distincao entre
especialistas religiosos, detentores de capital religioso, e leigos profanos, destituidos desse
tipo de capital. Tal desapropriacao valeu nao apenas para distinguir sacerdotes e fiéis, mas
também os grupos anteriormente reconhecidos como legitimos especialistas religiosos, que
passaram a ocupar uma posicao inferior na estrutura do campo, com seu conhecimento sendo
classificado como magiajeiticaria ou outras formas profanas de manipulacao do sagrado.
Os limites do campo religioso relativamente autonomo se consolidaram, assim, na distincao sim~
bélica entre o monopélio do sabersagmdo e a ignorfinciaprofana, que a nocao de segredo/mistério
CAMPO RELIGIOSO 93
exprime e reforca. A religiao, como todos os sistemas simbolicos, cumpre uma funcao de distincao
entre a manipulacao legitima do sagrado e formas inferiores de religiao, tanto formas passadas
quanta concomitantes, que passam a ocupar uma posicfio dominada na estrutura das préticas
e
crencas simbolicas associadas a urna forinacao social determinada. Toda prética ou crenca domi-
nada aparece como profanadora, pois, por sua propria existéncia, constitui uma contestaca
o ou
resisténcia a0 monopélio e a legitimidade da gestao do sagrado pelo corpo sacerdotal hegeménico.
Assim estruturada, a religiao é um sistema simbélico que funciona como principio que constréi a
experiéncia. Ela delimita o que merece ser discutido e o que deve ser admifido sem discussao, como
dogma ou miste'rio da fé. Ela converte os preceitos implicitos de um ethos desejével, consagrando~os
como normas e’ticas explicitas, racionalizadas e sistematizadas. A religiao, portanto, cumpre uma
fimcao ideolégica possivel de ser mobilizada por um grupo ou classe na medida em que permite
a consagracao das propriedades caracten’sticas de um estilo de Vida determinado. Tajs proprie-
dades, associadas a urn grupo ou classe que ocupa uma posicao determinada na estrutura social
e, portanto, sempre arbitrarias, podem ser legitimadas pela re 'giao, que as sacraliza e naturaliza
em sistemas de representacées consagrados cuja estrutura reproduz, de forma transfigurada e,
portanto, irreconhecivel, a estrutura das relacoes socioeconomicas vigentes.
Em uma sociedade dividida em classes, 05 sistemas religiosos préprios as diferentes clas—
ses contribuem para a reproducao da ordem social, na medida em que a consagra, sanciona
e sacraliza, justificando a hegemonia das classes dominantes e impondo aos dominados a
legitimacao da dominacao. Dissimulando em seus simbolos que a dominacao é arbitraria, bem
como as formas pelas quais se opera, a religiao reforca o ethos da resignacao e da renfincia
associado ‘as condicoes de existéncia dominada. A crenca na eficacia simbélica da religiao
exige que o interesse politico que a determina seja mantido velado e apresentado como unidade
aparente, tanto para os profanos quanto para os especialistas religiosos.
Dentro do proprio campo religioso, os diferentes agentes (individuos ou grupos) que disputam
posicoes na estrutura das relacoes de forca podem lancar mao do capital religioso na concorrén—
cia pela hegemonia, dominacao ou monopélio da gestao dos bens de salvacao. Tal monopolio
garante aos agentes o exercicio legitimo do poder religioso, ou seja, o poder de influenciar de
forma duradoura as representacoes e préticas de leigos, incutindo neles um habitus religioso
que passa a ser principio gerador de pensamentos, percepcées e acoes, em concordancia com
as normas de uma representacao religiosa do mundo que é ajustada a uma determinada visao
politica d0 mundo social. 0 capital de autoridade de que dispée um agente religioso se associa
diretamente a forca material e simbélica dos grupos ou classes que ele pode mobilizar, ofere—
cendo—lhes bens e services capazes de satisfazer seus interesses religiosos e politicos.
Dessa forma, no campo religioso, segundo uma logica prépria de mercado, as Igrejas domi-
nantes tendem a impedjr a entrada de novas empresas de salvacao concorrentes, como as seitas.
Elas se esforcam para preservar 0 capital de controle do acesso aos meios de producao, reproducao
e distribuicao dos bens de salvacao. Esse acesso privilegiado é delegado aos sacerdotes que atuam
na ponta, continuamentejunto aos fiéis, conferindo‘lhes autoridade na medjda em que sao funcio-
narios de uma estrutura burocratizada detentora de capital institucional sacramental. Oprofeta
ou ofeiticeiro e sua seita, concorrentes da Igreja hegemonica, colocam em questao o monopél
io
dos instrumentos de salvacao, mas, para tanto, precisam operarurna acumulacao inicial de capital
religioso,a fim de disputar o exercicio legitimo do poder religioso sobre os leigos. Na condicao de
94 CAMPO RELIGIOSO
~x
empresério independente da salvacao, o profeta ou feiticeiro depende da aptidao de seu discurso e
sua pratica para mobilizar os interesses religiosos de fiéis potenciais e para operar uma subversao
da ordem sirnbélica vigente e uma reordenacao simbéh‘ca dessa subversao, dessacralizando o sa-
grado e sacralizando o sacrilégio. Toda seita que logra sucesso tende a tornar~se Igreja depositaria
e guardia de uma ortodoxia, detentora de hierarquias, dogmas e legitimidade. Da mesma forma,
no interior de uma mesma Igreja, é possivel que se estabelecarn relacées de concorréncia entre a
ortodoxia e a heresia. O conflito teologico pela autoridade religiosa entre especialistas se combina
com o conflito por poder 11a hierarquia eclesiéstica, tornando a forma de heresia quando uma
parte do clero contesta o monopélio eclesiastico nas maos das classes sacerdotais hegemonicas.
Este modelo inicial de campo, exaustivarnente retrabalhado por Bourdieu,’e posteriormente
aplicado a analise dos movirnentos e das relacoes de poder em diferentes dominios sociais
— economico, politico, cultural, cientifico, jornah’stico, etc. —, que, embora interligados, nao
podem ser remetidos a uma logica social finica, mas que, em conjunto, garantern a produgao,
a reproducéo e a irnposicao do poder simbolico em nossas sociedades e, portanto, seu préprio
funcionamento (ver também: ETS; OPS; LOYOLA, 2002).
Referéncias
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Andréa Loyola. Rio de Ianeiro: Eduerj, 2002.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasilia: UNB; Sao Paulo: Imprensa Oficial, 2000. v. I.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasilia: UNB; Séo Paulo: Imprensa Oficial, 2004. v. II.
Homo academicus (1984), um dos principais livros de Bourdieu dedicado ao campo uni-
'versitério francés — o outro é La noblesse d’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps (1989) ~,
estuda duas de’cadas de expansao do sistema de ensino superior de 5611 pais até 03 anos
1970. Nesse trabalho o autor leva as filtimas consequéncias aquilo que afirmava ern sua aula
inaugural no College de France: “qualquer proposicao formulada pela ciéncia da sociedade
pode e deve aplicar~se a propria pessoa do sociélogo” (LL, 7).
Em algumas péginas de Réponses: pour une anthropologie réflexive, comenta que Homo
academicus lhe custou muito em termos de tempo, de reflexéo, de redacfio e pesquisa, irritando
. bastante os colegas universitérios quando examina a si mesmo, pois o texto contém varias paginas
reservadas a sua pessoa todas as vezes que analisa categorias ‘as quais pertence — ao falar de si
revela verdades que atingem a outros. Iustamente o capitulo primeiro, “Um ‘livro para queimar’?”,
se inicia com um periodo revelador do que viré ao longo das mais de trezentas paginas: “Ao tomar
como objeto urn mundo social no qual se estépreso, somos obrigados a reencontrar, numa forma
que se pode dizer dramatizada, um certo nfimero de problemas epistemolégicos fundamen—
tais, todos vinculados ‘a questao da diferenca entre o conhecimento pratico e o conhecimento
erudito e, principalrnente, a dificuldade particular da ruptum com a experiéncia autéctone e
com a restituicao do conhecimento obtido, a custa dessa ruptura” (HA, 11, grifos do original).
CAMPO UNIVERSITARIO 95
No posfécio (“Vingt ans apres”), datado de janeiro de 1987, diz que "analisar cientificarnente o
mundo universitario é tomar como objeto uma institujcao que é socialmente reconhecida como
fundada para realizar uma objetivacao que pretende a objetividade e a universalidade” (HA, 291).
Em La noblesse d’Etat, por sua vez, o foco analitico recai no estudo da estrutura do espaco
de‘educacao das elites na Franca a partir da segunda metade dos anos 1960, estendendo-se até
a década de 80. Bourdieu, ao trabalhar o campo das grandes escolas e a producao e a reprodu—
gao dos grupos dirigentes, mostra a divisao existente entre as escolas (grandes e pequenas) e,
também, entre instituicées que salvaguardam os valores intelectuais e aquelas que preparam
quadros para os postos econémicos e politicos. No entender de Wacquant (2007), tal procedi~
mento permite, nas sociedades capitalistas avancadas, analisar simultaneamente as conexoes
e intersecoes estruturantes do espaco social, do sistema de educacao e do campo do poder.
A partir das ideias centrais de Homo academicus e de La noblesse d’Etat, pretende—se
apresentar as concepcoes de Bourdieu acerca do que denominou campo universitario.
Ao longo de sua obra, escreveu que pensar em termos de campo significa pensar em
termos de relagoes, chegando a falar que “0 real é relacional”: o que existe no mundo social
sao relacoes, “independentemente da consciéncia e da vontade individuais”, corno disse
Marx (R, 57). Analiticamente, um campo se estrutura como uma rede de relacoes objetivas
entre posicoes — e estas se definem objetivamente em sua existéncia e nas determinacoes
que impoem a seus ocupantes (agentes ou instituicoes) por sua situacao atual e potencial
na distribuicao das diferentes espécies de capital on de poder, “cuja posse implica o acesso
.
aos lucros especificosque estao em jogo no interior do campo e, também, por suas relacoes
objetivas corn as demais posicées (dominacao, subordinacao, homologia, etc)” (R, 57—58).
Para 0 sociologo, uma analise em termos de campo implica em trés momentos necessa-
rios e inter-relacionados. De inicio, é preciso que se verifique a posicao do campo em relacao
a0 campo do poder. Em seguida, deve-se estabelecer a estrutura objetiva das relacoes entre
as posicoes ocupadas - por agentes on instituicoes — que competem no interior do campo.
For fun, “56 devem analisar o habitus dos agentes, os diferentes sistemas de posicoes que
estes adquiriram mediante a interiorizacao de um tipo determinado de condicées sociais e
economicas e que encontraram, em uma trajetéria definida dentro do campo considerado,
uma oportunidade mais ou menos favorével de atualizar—se” (R, 64-65).
0 campo universitario, para ele, é 0 espaco social especifico onde se trava uma luta encarni—
cada para estabelecer o monopolio legitimo da verdade académica ou universitaria, espaco esse
marcado por continuas controvérsias corn relacao a0 sentido do 111m e desse proprio mundo.
Todavia, esse campo possui forte particulaiidade: sens veredictos estéo entre os mais poderosos
socialmente (R, 50). Constitui—se em um locus de relacoes que envolve como protagonistas agentes
que possuem a delegacao para gerir e produzir politicas universitérias, isto é, uma modalidade de
producao consagrada e legitimada. E um espaco social institucionalizado, delimitado, corn objetivos
e finalidades especificas onde se instala uma verdadeira luta para classificar o que pertence on n50
a esse mundo e onde sao produzidos distintos enjeux de poder. As diferentes naturezas de capital 6
as disposicoes académicas geradas e atuantes no campo materializam—se nas tomadas de posicao,
é dizer, no sistema estruturado das praticas e das expressoes dos agentes (CATANI, 2013, p. 74-75).
Devern ser analisados os diferentes tipos de capital que déo 0 tom no campo universitario,
tais como escolas que os individuos frequentam, titulos obtidos, premiacoes, projetos de pesquisa
95 CAMPO UNIVERSITARIO
‘74”?
financiados, pertencimento a comités editorials de revistas cientificas, indices de citacao, publicacoes
relevantes, curriculo “internacionalizado”, orientacoes de doutorado, tomadas de posicao politicas,
relacionamento com a midia, etc. Precisam ser levados em conta indicadores detalhados sobre
‘ os professores, os diferentes corpos estudantis, as préprias universidades, as hierarquias univer-
sitarias, as classificacoes dos depaflamentos e institutes. Entretanto, é fundamental estabelecer
de forma precisa a relacao que os cientistas mantém com as distintas institm'coes que integram o
que ele denominou "campo do poder”. Na Franca, por exemplo, considera~se o pertencimento a
comissoes administrativas oficiais, comités governamentais, conselhos de administracao, etc. Nos
Estados Unidos é essencial verificar os comités e relacoes de experts cientificos, a integracao as
grandes fundacoes filantrépicas, aos institutes de policy research, etc. No Brasil, por sua vez, ha
que se observar o aparato que o Estado assegura para garantir a producao, circulacao e mesmo o
consume de bens simbélicos que lhe sao inerentes, envolvendo o conjunto das organizacoes dedi—
cadas a educacao superior pt’iblica e privada, em seus mais variados niveis, formatos e naturezas;
as agéncias financiadoras e de fomento ‘a pesquisa, nacionais e estaduajs; os orgaos estatais de
avaliacao de politicas educacionais; 0(3) setor(es) do Ministério da Educacao responsével/eis pela
educacao superior e os institutos de pesquisa que possuem a mesma finalidade (Inep); os setores
ou camara dos Conselhos de Educacao em distintos niveis; as associacoes e entidades de classe
w(CRUB, Andifes, Andes/SN, PROIFES Federacao, ABMES, ANUP, ABRUC, ANAMEC, ANAFI,
SEMESP, etc.) e as comissoes governamentais (CATANI, 2013, p. 75). No entender de Bourdieu, tais
comissoes representarn urna forma tipicamenteburocrética de consulta, em que os agentes do estado
tém condjcoes de impor nomes que referendem suas posicoes conservando assim o monopélio
da preparacao das decisoes coletivas, da sua acao e da avaliacao dos resultados (SSE, 130-134).
A estrutura do espaco da educacao superior francesa de elite encontra—se organizada em
Grandes Ecoles - “escolas de graduacao seletivas, baseadas em numerus clausus, em classes
especiais de preparacao e exames de acesso uacionais competitivos, com passagem direta para
postos de trabalho e elevado perfil” (WACQUANT, 2007, p. 302) — e universidades, organismos
de massa, abertos a todos que concluem o curso secundario. No interior do préprio campo
das Grandes Ecoles, observa-se a divisao entre as “melhores” e as “piores” e, também, entre
as voltadas a valores intelectuais e as que preparam para posicoes econémico—politicas. Ha as
que sao “intelectuais”, como a Ecole Normale Supérieure, que forma os intelectuais .da nacao
e tém corno estudantes as fracoes cultivadas da burguesia. Ha outras que preparam dirigentes
industriais e do Estado, como a Ecole des Hautes Etudes Commerciales e a Ecole Polytech~
nique, espaco dos oriundos e destinados as fracées ricas da alta burguesia francesa. Por sua
Vez, a Ecole Nationale d’Administration encontra-se ao meio do caminho entre os dois polos,
dela originando os ocupantes dos gabinetes e altos funcionarios da administracao, mescla
de competéncia culturais e economicas, recrutando estudantes cujo patrimonio familiar é
composto “de diplomas raros e riqueza antiga” (WACQUANT, 2007, p. 300, 302; CATANI, 2013).
Essa caracterizacao de diferentes instituicoes corresponde a funcoes sociais distintas e,
principalrnente, produz agentes determinados que exercem papéis sociais de acordo corn
prerrogativas externas ao mundo universitario, mas que se transfiguram em legitimidade
' através do titulo obtido. Bourdieu explicita a compreensao do campo do poder como rede
cruzada das ligacoes estruturais e funcionais que entrelacam o espaco das escolas de elite
com o das classes dirigentes, segundo suas articulacoes. Nas atuais sociedades complexas,
CAMPO UNIVERSITARIO 97
a escola se converte em organizacao encarregada do trabalho de consagracao das divisoes
sociais, além de exigir duas espécies de capital que dao acesso a posicoes de poder, definindo o
espaco social e regulando as oportunidades e trajetérias de grupos e individuos, quais sejam,
0 capital econémz’co e 0 capital social (WACQUANT, 2007, p.298). A generalizacao dos titulos
educativos constitui-se em pré-requisito para a ascensao a0 vértice das empresas privadas e
das burocracias do Estado, consolidando um novo modelo de dominacao (CATANI, 2013, p. 70).
Bourdieu chama a atencao, ainda, para uma dimensao de carater universal: quer na Franca
on em vérias outras formacoes sociais, ser “herdeiro” tem custo cada vez mais elevado, financei—
ramente falando, mas, sobretudo, quanto aos custos emocionais e Vivenciais. As escolas de elite
submetem seus estudantes a regimes de trabalho severos, a estilos de Vida austeros, a praticas
de mortificacao social e mesmo intelectual. Sio sacrificios pessoais terriveis a que nem todos
conseguem ou querern se submeter. Apesar de se beneficiarem de uma série de vantagens desde a
tenra idade, nem todo filho de dirigente empresarial, me’dico cirurgiao ou cientista tem a garantia
de obtencao de uma posicao de destaque. Nem todos os jovens da elite apresentam trajetérias
escolares exitosas, nao sendo poucos os que abandonam‘as escolas preparatérias, on 5510 expul-
sos, ou tentaIn o suicidio ou simplesmente optam por outras carreiras (CATANI, 2013, p. 71—72).
Em La noblesse d’Etat destaca—se, igualmente, que um dos obstéculos principais a socio—
logia do Estado reside na incapacidade que este possui para tornar secreto o seu proprio poder.
Em primeiro lugar, o Estado é o “banco central de crédito simbélico” que endossa os atos de
nomeacao por meio dos quais “as divisoes e 08 altos cargos sao atribuidos e proclamados, i.e., .
promulgados corno universalmente validos no campo de acao de um determinado territorio
e populacao [...]. O titulo académico é a manifestacao paradigmatica desta ‘magia do Estado’
através da qual, a pretexto da certificacéo, as identidades e os destinos sociais sao produzidos,
as competéncias técnicas e sociais fundidas e 05 privilégios exorbitantes transmutados em
direitos devidos” (WACQUANT, 2007, p. 307-308).
A violéncia do Estado é exercida sobre nos através da inculcacao de categorias por meio
do sistema educacional, que produz “memes déceis” e, 1150 é supérfluo recordar, docilis
deriva de docere, ensinar.
Referéncias
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Mercado de Letras, 2013.
WACQUANT, L. Lendo 0 “Capital” de Bourdieu. In: PINTO, I. M.; PEREIRA, V. B. (Orgs.). Pierre
Bourdieu: a teoria da prdtica e a construgfio da sociologia em Portugal. Porto: Afrontamento,
2007.
CAPITAL 101
fundamente possivel de um acumule patrimenial. Mesmo que es rendime
ntos nae sejam
uma boa aproximacao do capital economico, sua avaliacéo continua
sendo um elemento
central em toda a anélise socioeconomica, particularmente em matéria
de distribuicae dos
fluxes de riqueza. Os rendimentos e o consume sac, evidentemente
, fatores importantes de
“bem-estar material”. Nesta matéria, uma das discussées mais classicas incide
sobre o vinculo
entre o nivel de riqueza (rendimentes, patrimonio) e a “felicidade” subjetiv
a. Em funcao do
ethos economico (que pode, per exemplo, ser mais ou menos asce’tico ou hedonis
ta), a relacao
entre es dois nae é idéntica: as estruturas sirnbolicas devem ser levadas em
consideracao para
cempreender es efeites e o valor dado ae capital econémico.
0 capital cultural. Construida nos anos 1960 para explicar as desigua
ldades sociais em
matéria educativa, cultural ou, ainda, certas diferenciacoes nos compor
tamentos em maté-
ria de saude, de relacao com o corpo, etc, a nocao de capital cultural remete
a um cenjunte
multidimensional de ‘.‘competéncias” (per exemplo, o dominio da lingua,
do célculo, etc.) e
de disposicoes (que constituem sua versao incorporada, sob a forma de conexoe
s neurais e
de auternatismos mentais e corporais). Ela institucionaliza—se per meio de
diversas entidades
juridicas (diplomas escolares, qualificacoes, etc). A restricao do capital cultura
l a “competen-
cias” valorizadas pelo mercado (valorizacao acompanhada frequentemente
de uma medida
monetéria), sob a ferma do que se designa por “capital humane”, é uma
reducao manifesta
das competéncias culturais, assim come a limitacao destas as competéncias
mais institucio-
nalizadas ou mais legitimas. Pede-se perguntar em que medida 0 capital
cultural aprimora,
on male, 0 bem~estarz a relacao nae é, evidentemente, mais direta do que
no case do capital
economico, mas as praticas culturais e de lazer sao potencialmente fontes
de diversas formas
de bem-estar e valorizadas come tais.
.
0 capital social. No plano individual, trata-se das “relacoes pessoais” enquan
to recursos
pessuidos por uma pessea, uma familia, e constitutivas deuma “rede”..
. Em um nivel cole-
tivo, 0 capital social remete, de preferéncia, a nocao durkheimiana de
integracae social: é
possivel concebé-lo no plano de um bairro, de uma “cemunidade” ou de
qualquer entidade
politico-administrativa. Sua medida é controversa, mas as relacoes pessoa
is constituem um
elemento importante da Vida coletiva. Alguns autores, na esteira de Putnam
, transformam
esse componente em um fater determinante da “confianca” e de feneme
nos politicos e eco—
nomicos (democracia, crescimento, etc). Essa associacao parece, no memen
to, peuco estével
entre es estudiesos, mas é mais comum que eles enxerguem em certo
m’vel de integracao
social, uma condicae do bem-estar, o que, a0 inverse, a perda dos laces
sociais dos desem~
pregados demonstra. De qualquer mode, com Durkheim e Halbwachs,
pode—se pensar que
0 volume e a composicfie dos laces sociais determinam formas de “centra
lidade”, de poder e
de reconhecimento no amago de determinada sociedade.
0 capital simbélico. 0 capital simbolico de um individuo (mas também
de um grupo,
de uma instituicao, de um pais, etc.) é definido pelo “olhar” depositado
(o “valor” dado) pele
resto da sociedade sobre esse individuo (e, respectivamente, sobre esse
grupo, essa instituicao,
esse pais). Ha, portanto, uma dimensao intrinsecamente “relacienal” e
coletiva. E, antes de
tude, e-estatuto simbélice, em sua dimensao mais concreta, que corresp
onde ao fate de ser
“recenliecido” e “valerizado” (“considerade”, “apreciado”, “amado
”, etc). Tal reconhecimento
assume formas mais ou menos institucionalizadas: pode-se integrar ai o
estatuto reconhecido
102 CAPITAL
~\¢-—‘"L
ao individuo como “cidadao” 'e 05 diversos direitos associados a qualquer estatuto, mas tam~
bém — sobretudo, nos grupos dominantes — as condecoracoes, os titulos, as “honrarias” em
geral. A exposicao midiatica esta, por exemplo, na origem de formas particulares de capital
s'unbélico que erigem individuos em personalidades publicas (05 “people”, as “personalidades”,
etc.). No lado oposto, a discrim'inacao on a estigmatizacao (seja qual for a origem: cor de pele,
posicao na ordem das castas, deficiéncia, etc.) 350 fontes de diversas formas de opressao que
fortalecem os efeitos de dotacoes inferiores nas trés precedentes espécies de capital. 0 capital
simbolico esta sempre associado ‘as outras formas de capital.
Os diferentes tipos de capital ~ definidos deste modo ~ podem ser acumulados, conver—
tidos uns nos outros, transmitidos de geracéo em geracao, mas de maneiras muito variaveis
e sempre dependentes dos contextos sociais que condicionam seu “valor” social. Urna parte
importante das estratégias dos individuos e dos grupos visa manter ou estender sua dotacao
(absoluta e relativa) nesses diferentes tipos de capital. No entanto, essas estratégias nao sao,
em geral, estratégias de “maximizacao” conscientes e explicitas. Assim, o valor relative dos
diferentes tipos de capital torna~se, por sua vez, um fator de lutas simbolicas. ’
f9-..CA'3'.T.ALC9.':TURAL ........
Maria Alice Nogueim
Referéncias
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O conceito de capital simbolico foi elaborado por Pierre Bourdieu desde seus primeiros
trabalhos, empreendidos no final da década de 1950 e no inicio dos anos 1960, sobre o Béarn
e sobre a sociedade cabila na qual o acfimulo de capital simbélico é, de acordo com Bourdieu,
CAPITAL SIMBOLICO m
sobre o Estado, esse capital pode tornar—se objetivado, codificado, delegado e garantido pelo
Estado, até mesmo, burocratizado.
O acfimulo primitivo do capital simbélico esté, segundo Bourdieu, na origem da emergéncia
do Estado, principal agente e instrumento primordial de construcao da realidade social. Bour-
dieu, observa Remi Lenoir (2012), utilizava com frequéncia — nomeadamente em seus cursos
sobre o Estado, no College de France — o exemplo da transformacao dessa espe’cie particular
de capital simbolico que é a honra feudal, baseada no reconhecimento prodigalizado pelos
pares (e pelos plebeus), honra que deve ser incessantemente conquistada e mantida, em honras
burocréticas reconhecidas e conferidas pelo Estado (LENOIR, 2012). Ele entendia assim explicar
que o Estado tornara—se o finico a garantir o valor das diferentes espécies de capital ou, em
outros termos, 0 capital simbolico pode, entao, ser considerado como um capital de autoridade
de modo que, no caso concreto, somente o Estado esta autorizado a dizer de um individuo o
que ele é, a consagra—lo socialmente, em suma, a nomeé-lo (PW), 99~100, 126-127). Ao fixar a
identidade social de um individuo ou de um grupo, esse ato de classificacao tern a forca de algo
oficial e se imp6e a todos (e, simultaneamente, impoe o Estado a todos). “Os atos de nomeacao,
desde os mais triviais da ordem burocrética ordinéria, tais como a outorga de uma carteira de
identidade ou de um atestado de doenca ou de invalidez, até os mais solenes que consagram
as nobrezas, conduzem, ao termo de uma espécie de regressao ao infinite, até essa espécie de
realizacao de Deus sobre a terra que vein a ser 0 Estado que garante, em liltirna instancia, a série
infinita dos atos de autoridade, atestando por delegacao avalidade dos certificados de existéncia
legitima (como doente, invélido, professor titulado ou péroco)” (MP, 288). Esse monopolio, a
semelhanca do que ocorre em relacao as outras espécies de capital, e' entao o resultado de um
processo de objetivacao que inscreve as lutas em prol da identidade e da sobrevivéncia sociais
na longa duracéo; neste sentido é que, a respeito do Estado, Bourdieu chegou a afirmar que ele
é uma “reserva” ou um “banco central” de capital simbélico, “lugar em que se engendram e 3510
garantidas as moedas fiduciarias que circulam no 111m social” (SE, 196).
Assim, 0 capital simbélico teria sido apreendido por Bourdieu em diversas socieda~
des, em numerosos grupos e em contextos bastante diferentes (desde a sociedade cabila
ao Estado da Era Moderna, passando pelo campo artistico ou pelo campo cientifico). O
conceito pode, sem di'ivida, prestar-se a equivocos, até mesmo, a confusoes: com efeito,
alérn de remeter 21 um grande ni'irnero de situacoes ou realidades diferentes, seus alicerces
(crenca, reconhecimento pelos outros, conhecimento), assim como sua area de influen—
cia, parecem incertos. Apesar disso, ele encontra—se entre os conceitos mais heuristicos
propostos por Bourdieu.
Referéncias
BOURDIEU, P. Postface. La noblesse: capital social et capital symbolique. In: LANCiEN, D.; SAINT
MARTIN, M. (Orgs.). Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 d nos jours. Paris: Ed. de la
MSH, 2007.
LENOIR, R. L’Etat selon Pierre Bourdieu. Sociétés Contemporaines, Paris, 11. 87, p. 123—154, 2012.
RUNDQUIST, A. Pompe en noir et blanc. Presentation officielle des dames. In: LANCIEN, D.; SAINT
MARTIN, M. (Orgs). Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 (‘1 nos jours. Paris: Ed. de la-
MSH, 2007.
Poi em 1980 que Pierre Bourdieu publicou, em ARSS, o que designou por “Notes provi-
soires” sobre 0 capital social, como introducao a0 mfimero 31 da revista que term 0 titulo geral
“Le capital social” (BOURDIEU, 1980). Esse curto artigo é considerado, pela maior parte dos
comentaristas e amalistas, como o pivo central de suas reflexoes e comtribuicoes sobre essa
nocao, além de ser citado com frequémcia. E, com efeito, messe texto — traduzido em 1998
(EB) ~ que Bourdieu explicita de mameira mais Clara sua concepcao acerca desse conceito.
“A mocao de capital social impos—se cormo 0 (mice meio de desigmar o fumdamemto de efeitos
sociais que, mesmo sendo claramente compreendidos no plamo dos agentes simgulares — em que
se situa inevitavelmemte a pesquisa estatistica -, néo sao redutiveis ao comjunto das propriedades
individuais possuidas por determinado agemte. Tais efeitos, em que a sociologia espomtamea
recomhece, de bom grado, a acao das ‘relacoes’, sao particularmemte visiveis em todos os casos
em que diferentes imdividuos obtéim um remdimemto muito desigual de um capital (economico
on cultural) mais ou memos equivalemte, segumdo o grau em que eles podem mobilizar, por pro-
curacao, 0 capital de um grupo (familia, antigos alunos de escolas de ‘elite’, clube seleto, mobreza,
etc.) mais ou memos comstituido como tale mais ou memos provido de capital. 0 capital social é o
conjumto de recursos atuais ou potenciais que estao ligados 2‘1 posse de uma rede duradoum de
relacoes mais ou memos imstitucionalizadas de interconhecimemto e de inter-recomhecimemto;
ou, em outros termos, a vinculacfio a um grupo, como comjumto de agemtes que, ale’m de serem
dotados de propriedades comuns (passiveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros
ou por eles mesmos), estao umjdos por ligacoes permanentes e uteis” (BOURDIEU, 1980, p. 2).
Assim, sua comeepcao de capital social vai muito além da defimicao mais corremte, on do que
Bourdieu designa por “sociologia espomtémea”. Com frequéncia ele é defimido como “caderno
de emderecos” ou “rede de relacoes”, o que evoca, sobretudo, urn conjunto de imdividuos e
tende a apagar tamto a vimculacao a urn grupo, a urna familia on a uma corporacao, os efeitos
produzidos por esta filiacao quanto a necessidade de levar em comsideracao os outros tipos
ou outras espécies de capitals (economico, cultural, simbélico) aos quais 0 capital social esté
estreitamemte ligado (e sobre os quais ele pode exercer um “efeito multiplicador’l).
Avinculacao a urn grupo e 05 efeitos dessa filiacao sao decisivos ma comcepcio de Bourdieu;
eles timham sido enfatizados em particular por ocasiao da pesquisa sobre os presidemtes dire-
tores~gerais das grandes empresas framcesas. No artigo “Le patromat” (1978), escreviamosz‘ “Se
0 capital social é relativarmemte irredutivel as diferentes espécies de capital — e, em particular,
a0 capital economico e ao capital cultural (cujo rendimento pode ser multiplicado por ele), sem
ser completamemte imdepemdemte deles -, é porque 0 volume do capital social possuido per mm
agemte individual (portanto, pelo grupo a que pertence) depende do volume do capital que de-
tém cada um de seus membros e do grau de integracao do grupo” (BOURDIEU; SAINT MARTIN,
1978, p. 28). E, no mesmo artigo, a fotografia do funeral de Francois de Wendel [engenheiro
da Ecole de Mines, foi presidemte do Comité das Forges de France e proprietario de empresas
metalurgicas], em janeiro de 1949 — soleme agruparmento que permitiu proceder a uma exibicéo
publica e oficial do capital social ~, assim como a apresentacao da familia Debré, reumindo
politicos, médicos famosos, altos fumciomérios do governo, presidentes de grandes empresas, *‘
“4 CAPITAL SOCIAL
Alias, esse capital nao é completarnente independente deles (BOURDIEU; SAINT MARTIN, 1978,
p.28), de tal modo que é impossivel, frequentemente, isolé—lo das outras espécies ou tipos de
capitais. A0 mesmo tempo, nao pode ser reduzido a esta en aquela das diferentes espécies de
capital, em particular, ao capital economico e ao capital cultural (cujo rendirnento pode ser
multiplicado por ele). No teito de 1980 Bourdieu sublinha que, “embora seja relativamente
irredutivel a0 capital economico e cultural possuido por urn agente determinado ou, até
mesmo, pelo conjunto de agentes a quem esté ligado (como bem se Vé no caso do move rico),
0 capital social nao é jamais completamente independente deles pelo fato de que as trocas
que instituem 0 inter-reconhecimento supoem o re-conhecimento de um minimo de homo-
geneidade ‘objetiva’, e de que ele exerce urn efeito multiplicador sobre 0 capital possuido corn
exclusividade” (BOURDIEU, 1980, p. 2).
A0 escrever as “Notes provisoires”, Bourdieu nao utilizava pela primeira vez esta nocao
de capital social, mas é a primeira vez que a tornava central em um trabalho. Ble iré indicar
corn precisao, vinte anos mais tarde, que havia forjado efetivarnente tal conceito em suas
producoes iniciais de etnologia na Cabflia on no Béarn, “para explicar as diferencas residuais
associadas, grosso modo, aos recursos que podem ser reunidos, por procuracao, através das
redes de ‘relacées’ mais ou menos numerosas e mais ou menos fecundas” (SSE). Foi, de fato,
ao empreender suas pesquisas no final dos anos 1950 e na década de 1960, Ha Argélia e no
Béarn, sobre a crise das sociedades camponesas e tradicionais, que pode observar e analisar,
entre outros aspectos, as familias (seja de condicao inferior ou superior), os casamentos ou ‘
aliancas e os casamentos desiguais feitos corn pessoa de condicao inferior, o celibato dos
caculas no Béarn e a reproducao das linhagens, alérn de elaborar de forma progressiva
essa nocao que ele nao utiliza diretamente, na época, em seus textos. A familia — conforme
sublinhara posteriormente — é o espaco principal do acumulo e da transmissao do capital
social (BOURDIEU, 1980); por conseguinte, ela constitui ponto de partida decisivo para suas
anélises 6 para a elaboracao de tal conceito.
, Foi nas décadas de 1970-1980, no momento em que Bourdieu empreende pesquisas,
simultaneamente, sobre o gosto nas diferentes classes sociais, sobre as Grandes Ecoles e
sobre O que ele designa como o campo do poder — de maneira mais concreta, por ocasiao
das pesquisas que serviram de suporte para seus livros, La distinction (1979) e La noblesse
d ’Etat (1989) —, que recorre com maior frequéncia a nocao de capital social, explicitando-a,
mediante o aporte de precisoes em diferentes artigos e obras. Na impossibilidade de
esbocar o percurso completo dessa nocao, varnos fornecer aqui alguns pontos minimos
de referéncia. I
0 capital social é evocado em rapidas tintas como “um capital de relacoes mundanas,
capital de honorabilidade e capital de respeitabilidade”, no artigo “Reproduction culturelle
et reproduction sociale” (1971), que aborda prioritariamente a estrutura da distribuicao do
capital cultural, assim como a estrutura da distribuicao do capital economico. Em “Anatomic
du gout” (1976), a concepcao e a definicao do capital social sao apresentadas de forma mais
detalhada. Assirn, no momento de analisar os clubes, sublinha-se o seguinte: “E reduzido, sern
duvida, o nfimero de instituicoes (se excetuarmos, em determinados cases, 0 casarnento) que
estejam mais diretamente orientadas para o acumulo racional de capital social: sem mesmo
falar de todos os ganhos, atuais ou potenciais, que proporcionam ou prometem ‘relacées’ tao
Referéncias
BEVORT, A.; LALLEMENT, M. Le capital social: performance, e’quité et réciprocité. Paris: La
Découverte, 2006.
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BOURDIEU, P.; SAINT MARTIN, M. de. Anatomic du gofit. ARSS, v. 5, oct. 1976.
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COLEMAN, I S Social Capital 1n the Creation of Human Capital. The American Journal of
Sociology, v. 94, p. 95—120, 1988.
PONTHIEUX, S. Le capital social. Paris: La Découverte, 2006.
PUTNAM, R. Bowling Alone: the Collapse and Revival ofAmerican Community. New York:
Simon & Schuster, 2000.
WAGNER, A.~C. Les classes sociales dans la mondialisation. Paris: La Découverte, 2007.
CATEGORIAS DE PENSAMENTO “7
45. CAUSALIDADE DO PROVAVEL
Ver: Destino
45. CIENCIA
Pascal Ragouet
Para Bourdieu, a ciéncia constitui urn "mundo a parte”, n50 so por ser produzida no ambito
de um campo social especifico, mas também por constituirum modo de conhecimento objetivo
da realidade com estatuto epistemolégico particular. No entanto, a objetividade da ciéncia é uma
producao social coletiva: “O processo de validacao do conhecimento como legitimacao diz respeito
a relacao entre o sujeito e o objeto, mas igualmente a relacéo entre os sujeitos e, sobretudo, as
relacoes entre os sujeitos a propésito do objeto” (SSR, 143). Bourdieu gosta de lembrar a tese de
Bachelard segundo a qual “o fato é conquistado, construido, constatado”. Conquistado contra a
ilusao do saber imediato; construido gracas a0 trabalho de conceitualizacao e a implementacao
do raciocinio hipotético-dedutivo; e constatado, ou seja, validado pela coletividade através de
um trabalho de comunicacao. Bachelard insiste sobre esse aspecto em sua obra, Laformation
de l’esprit scientifique: “Qualquer doutr'ma da objetividade acaba sempre por submeter o
conhecimento do objeto a0 controle de outrem” (BACHELARD, 1938, p. 241).
Mas como, entao, os atores envolvidos em uma dinémica concorrencial — para impor sua
definicao tanto do verdadeiro quanto dos meios legitimos para dizer o verdadeiro — chegam a
um consenso racional 301116 a validade cientifica de um enunciado? Para Bourdieu, esse consenso
resulta de uma dinamica intersubjetiva de circulacao critica— que leva a uma “desparticula-
rizacao” e a uma “universalizacao dos resultados” ~, enquadrado socialmente pela existéncia
de normas que sao os produtos da histéria do campo cientifico e arbitrado igualmente pelo
“”rea1,cuja existéncia e'postulada tacitamente pelos pesquisadores Nessas condicoes, o discurso
cientifico nao poderia ser assimilado a “um reflexo direto da realidade, a 11111 puro registro”,
nem ao “produto de uma construcao, orientada por interesses e estruturas cognitivas, que
viesse a produzir visées mfiltiplas ~ subdeterminadas pelo mundo ~ desse mundo” (SSR, 151).
Referéncia
BACHELARD, G. La formation de l’esprit scientifique: contribution a 11118 psychanalyse de la
connaissance objective. Paris: Vrin, 1938.
Referéncia ,
BOURDIEU, P. What Makes a Social Class? On The Theoretical and Practical Existence
of Groups.
Berkeley. Journal ofSociology, v. 32, p. 1-17, 1987.
Referéncia
ACCARDO, A. Introduction 61 une sociologie critique: lire Pierre Bourdieu. Marseille: Agone, 2006.
f?.-.F9.'§t‘.5..P!T‘.‘.§.l§’19.5..e.5..WIT???................................. ..................................
Cristina Carta Cardoso de Medeiros
Publicado originalmente pelas Editions de Minuit (1987), Coisas ditas segue de perto o
objetivo fixado por Bourdieu quando do lancamento de Questées de sociologia (1983), qual
Na
seja, 0 de compilar transcricoes de palestras,'entrevistas, conferéncias e comunicacoes.
apresentacao da obra ele se refere ao discurso escrito, sempre a margem de qualquer expe~
riéncia direta de relacao social — dai sua preocupacao constante em fazer-se compreender a
partir da comunicacao oral e de poder realizar, nessas ocasioes, “contracoes, abreviacoes,
aproximacoes, favoraveis a evocacao de totalidades complexas” (CDp, 10). Como afirmado
pelo autor, o discurso oral pode propiciar a revelacao de um pensamento em acao que a obra
, escrita por vezes pode dissimular. Dividido em trés partes, em Coisas ditas Bourdieu co-
menta sua formacao intelectual, nomeando autores lidos por ele em seu processo de transicao
0 site do College de France revela que a instituicao vai fazer, em breve, 500 anos, tendo sido
criada em 1530 pelo rei Francisco I, vivendo va'rias transformacoes ao longo dos séculos, desde
que era denominada College Royal até o momento, em que rer’me 57 professores trabalhando
corn outros pesquisadores, auxiliares, técnicos e funcionérios administrativos. 0 College é
organizado em cétedras, que abarcam um vasto conjunto de disciplinas: das matematicas
a0 estudo das grandes civilizacoes, passando pela fisica, quimica, biologia e medicina, pela
filosofa e literatura, pelas ciéncias sociais e economia, pela pré-historia, arqueologia e a his—
toria, pela linguistica. Das 57 catedras, 5 550 anuais e recebem a cada ano um novo titular.
0 College de France define relacoes especiais com seus usuérios,1egalmente denominados
ouvintes e nao alunos, onde as pessoas que assistem ‘as aulas e aos cursos 11230 550 acompanha-
das, nao passam por controle de frequéncia nem por provas e exames. As aulas funcionam
como conferéncias, nao havendo debates nern perguntas e tao pouco ocorre o dialogo entre
ouvintes e professores (ALMEIDA, 1999, p. 17). Para Levi-Strauss, “inteiramente senhor de
suas escolhas no quadro de sua cétedra, o professor esté preso a uma finica, porém rigorosa,
obrigacao: tratar em cada ano de um terna novo” (1986, p. 10). On, segundo Serge Haroche
(2013), Presidente da Assembleia de Professores do College, a instituicao possui urna carac-
teristica singular: os docentes apresentam “o saber sendo elaborado em todos os dominios,
das letras, das ciéncias, das artes”. Para isso, cada professor recebe uma bolsa vitalicia de
pesquisa e, anualmente, presta contas de suas atividades ministrando 12 aulas.
0 College é organizado em catedras que podem ser transformadas pela Assembleia de
Professores. Cada vez que uma catedra se encontra vaga, é redefinida para o novo titular em
um processo de votacao em duas etapas. A Assembleia decide, na primeira fase, o titulo da
catedra que deve substituida. Tao logo 3 cétedra é recriada e declarada vaga, a Assembleia
elege o titular. Na pratica a cétedra ja é criada para um candidato especifico, com a segunda
Referéncias
ALMEIDA, A. 0 College de France e o sistema de ensino francés. In: CATANI, A. M.; MARTINEZ, P.
(Org). Sete ensaios sobre a College de France. 850 Paulo: Cortez, 1999p. 15-30.
CATANI, A. M. Aulas no College de France. In: CATANI, A. M; MARTINEZ, P. (Orgs). Sate ensaios
sobre 0 College de France. Sao Paulo: Cortez, 1999. p. 7~13.
ERIBON, D. Michel Foucault (1926—1984). 850 Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HAROCHE, S. Enseigner la science en train de sefaire. DiSponivel’em: <Www.colege-de-france.fr>.
Acesso em: 8 maio 2013.
LEVI—STRAUSS, C. Minlias palavras. Séo Paulo: Brasiliense, 1986.
, 51. CONATUS
Maria Alice Nogueira
CONATUS 125
“Para evitar a légica da intengao consciente que a palavra projeto evoca, nos falaremos de
canatas, mesmo com o risco de aparentar uma afetagéo de linguagem” (MM, 712).
Conatus é, portanto, uma nogao correlata ao conceito de habitus e ‘a mosaic de amorfatz'
(amour de son destin) também usada esporadicamente por Bourdieu. Esta filtima para se
reférir as expectativas subjetivas que escondem o papal determinante das condigoes objetivas
de Vida, ‘as quais se ajustam perfeitamente.
Em Esquisse d’une the’orie de la pratique (1972), Pierre Bourdieu define as trés modos de
conhecimento teérico de que o mundo social pode ser objeto, tendo em comum o fato de se oporem
a0 modo de conhecimento prético, ou seja, a0 senso comum: o conhecirnento “fenomenolégico”, o
conhecimento "objetivista” e 0 conhecimento “praxiolégico”. O conhecimento “fenornenologico”
explicita a familiaridade com o 111m circundante, percebido como natural, obvio, taken for
granted. Esse modo de conhecimento é privilegiado, nas ciéncias sociais, pelo interacionismo
simbo’lico e pela etnometodologia. Sem negar o interesse de ta] abordagem, adotada no decorrer
de sua formagao em filosofia, Bourdieu vai criticé—Ia por permanecer no nivel subjetjvo ou in-
tersubjetivo, sem nunca se questionar sobre as condigoes de possibilidade desse conhecimento.
O segundo modo de conhecimento teérico identificado por Bourdieu é o procedimento
“objetivista”, ao qual ele vai dedicar~se durante urn periodo mais longo, considerando a posiqéo
dominante que tal modalidade havia adquirido no campo intelectual da década de 1960 com
o marxismo e o estruturalisrno. Esse procedimento consiste em construir relagoes objetivas
(economicas, linguisticas) que estruturam as préticas e as representagoes independente-
mente das consciéncias individuals. Assim, no lado oposto da abordagem fenomenolégica,
o objetivismo caracteriza-se precisamente por seu questionamento sobre as condigoes de
possibilidade do conhecimento, mas a0 prego de uma ruptura com as evidéncias do senso
comum — portanto, com os pressupostos que tornam o mundo familiar. Ele opera, assim,
uma “desnaturalizagio” da percepgao do mundo.
Esse é o caso do marxisrno ao se interessar pelas relagoes de forga economicas. Da mesma
forma, a linguistica saussuriana toma como objeto a lingua enquanto sistema de regras que
torna pOSsivel a comunicagao, em vez da fala, reduzida a manifestagoes individuais desse
sistema: assim, ela se coloca do lado do ato de decifragao, decodificagao, e 1150 do lado da 21a
do locutor. Na historia da arte, a iconologia (tal como é desenvolvida, por exemplo, por Erwin
Panofsky, 1967) considera, da mesma forma, que o sentido objetivo da obra é irredutivel a
vontadej: do artista on ‘as percepgées subjetivas do espectador. Neste aspecto, a operagéo de
decifragao é colocada ainda no cerne do questionamento. Na esteira do modelo da linguistica,
a antropologia estrutural de Lévi-Strauss apreende, por sua vez, as praticas como a execugao
Referéncia
PANOFSKY, E. Architecture gothz'que et pensée scolastique. Traducao e posfacio de P. Bourdieu.
Paris: Minuit, 1967.
54. CONSTRUTIVISMO
Denis Baranger
E na década de 1980 que Bourdieu utiliza esta palavra. A seu respeito, conviria distinguir
dois sentidos, mesmo que estes nao sejam totalmente independentes urn do outro: por urn
lado, trata—se da construcao significativa do mundo social, de acordo com o titulo original
do livro de Schiitz (1932), on seja, da capacidade dos agentes de construir a sociedade; por
outro, continua sendo a construcdo do objeto bachelardiana. Assim, Bourdieu pode definir
a ciéncia social como “urna construcao social de uma construcao social” (SSR, 172); mas nao
seria possivel, de modo algum, qualificar Bourdieu como construtivista propriamente dito.
Para Bourdieu, a semelhanca do que se passa com Bachelard, o oximoro é a figura retérica
predileta para se desvencilhar da armadilha de um binémio epistemologico. Quando Bourdieu,
em sua conferéncia proferida em San Diego, escolhe o rotulo “construtivisrno estruturalis-
ta” — ou “estruturalismo construtivista” — para caracterizar seu trabalho (CD, 147), pode—se
ver nessa postura urna transfiguracao do binomio objetivismo/subjetivismo, presents desde
seus primeiros trabalhos, culminando em Esquisse d’une théorie de la pratique, nos “trés
modos de conhecimento teorico” (ETP, 163).
Assim, o estruturalismo levisstraussiano seria uma forma particular de manifestacao
do objetivismo (do mesmo modo que a linguistica saussuriana, a semiologia e a estatistica),
enquanto a fenornenologia e o pensamento de Sartre -— assim como a etnornetodologia,
o interacionismo e a rational choice theory — seriam expressoes do subjetivismo. Com
128 CONSTRUTIVISMO
essa formula, Bourdieu procura reconciliar a estrutura com a acao: “Por estruturalismo
ou estruturalista, pretendo dizer que, no préprio mundo social — e 11:10 apenas nos siste—
mas simbélicos, linguagem, mitos, etc. 4, existem estruturas objetivas, independentes da
consciéncia e da vontade dos agentes, que sao capazes de orientar ou restringir as praticas
ou representacoes desses agéntes. Por construtivismo, quero dizer que ha uma génese
social de uma parte dos esquemas de percepcao, de pensamento e de acao que sao cons-
titutivos do que designo como campos e grupos, nomeadamente do que é denominado,
de modo habitual, corno classes sociais” (CD, 147). Ele sublinha a complementaridade
entre essas duas abordagens, “em boa logica, inseparéveis” (NE, 7). Todavia, do ponto de Vista
da construcdo do objeto, existe uma preeminéncia do momento objetivista, unico meio de
, garantir a indispensavel ruptura com o sensocomum e a doxa.
Se Bourdieu fala de construtivismo em vez de subjetivismo, é para indicar que os agentes
participam ativamente da producao e reproducao das estruturas sociais, que o mundo social
é efetivamente construido pelas acoes desses agentes. No entanto, isso nao significa, de modo
algum, que o mundo social seja uma pura criacao das decisoes conscientes dos mesmos: “Se
é conveniente lembrar, contra certa visao mecanicista da acao, que os agentes sociais cons—
troem a realidade social, individual e também coletivamente, impoe-se nao esquecer — como
‘ '- ocorre, muitas vezes, com os interacionistas e etnometodélogos —, que eles nao construiram
as categorias que estao empregando nesse trabalho de construcao” (NE, 47).
Em matéria de sociedade, o construtivismo se opoe a naturalizacao da ordem social e, portanto,
combina perfeitamente com a ideia de arbitrdrio cultural. O construtivismo tern uma vantagem:
ele desfataliza por implicar que a sociedade poderia ser, certamente, construida de outra manei-
ra. Mas, pode ter também uma desvantagern se induzir a acreditar que, por serem construidas, as
estruturas deixam de ser reais - essa é a “rigidez do mundo”, diria Robert Castel (2003, p. 347) —,
e que a liberdade dos agentes para se livrarem dos determinismos sociais é ilimitada.
O mesmo ocorre no que se refere ao conhecimento cientifico. Em seu filtimo curso mi-
nistrado no College de France (2000-2001), 0 termo "construtivismo” permanece quase
imperceptivel, embora esse ro’tulo pudesse ser apropriado para designar a regiao do “campo
das ciéncias da ciéncia” que Bourdieu toma como objeto de estudo. Ele se assume ainda como
construtivista contra o “paradigma norte—americano” (SSR, 41), mas essa era apenas a maneira
de se diferenciar melhor do construtivismo radical e do relativismo, os quais unificam o
subcampo pés-modernista na “guerra das ciéncias”. O que Bourdieu rejeita absolutamente é
a ideia de que as verdades cientificas possam ser reduzidas a relacfies de forca politicas: em
um campo cientifico auténtico (portanto, auténomo), as proposicoes so devem ser tributarias
“da prova da coeréncia e do veredito da experiéncia” (MP, 132-133).
A0 tomar o campo cientifico como objeto, Bourdieu é levado a rejeitar tame a visao realista
ingénua quanto a visao construtivista relativista, superando assim “a alternativa do constru-
tivismo idealista e do positivismo realista em favor de um racionalismo realism” (SSR, 151).
Para ele, isso tern a ver ainda com um oxirnoro, jé que se trata aqui, evidentemente, de um
realismo epistemolégico (e 11:10 ontolégico, a semelhanca do que ocorre com 0 de Popper).
F. Vandenberghe (1999, p. 62) refere-se a uma carta em que Bourdieu declarava que, “a
exemplo de [Roy] Bhaskar, do qual havia descoberto recentemente os trabalhos, ele tinha sido
sempre urn realista”. Por sua vez, 1. Hacking (2004, p. 161) evoca o realismo inferno de H.
CONSTRUTIVISMO 129
Putnam: “interno pelo fato de que todos os critérios da verdade sao internos a nossas préticas
cientificas”, explica ele. Bachelard nao teria escolhido, certamente, a expresséo, mas n50
estaria assirn tao longe da ideia. Hacking (2004, p; 156) toma distancia em relacéo a Popper:
“Bourdieu pretendeu transformar as lutas de confronto travadas no campo cientifico em um
fator constitutive da objetividade e, até mesmo, da verdade dos enunciados cientificos. Para
Popper, a verdade é sempre uma correspondéncia com algo de diferente, algo de absoluto,
enquanto Bourdieu rejeita qualquer espécie de teoria da verdade como correspondéncia”.
Hacking esté cheio de razéo ao opor, neste ponto, Bourdieu a Popper, mas vai talvez longe
demais quando conclui por sua rejeicao de qualquer ideia de correspondéncia.
I. Bouveresse (2003, p. 29), por filtimo, que se define de born grado corno discipulo e
amigo de Bourdieu, partilha com ele “a necessidade de reabilitar — e, se for o caso, contra
os préprios sociélogos — uma filosofia das ciéncias e uma teoria do conhecimento de tipo
realista” (BOUVERESSE, 2003, p. 132).
Bourdieu havia tornado sempre o partido da ciéncia contra os exageros construtivistas
que, em filtima instancia, conduzem a negacao da ciéncia social. Ele teria subscrito, sern
nenhuma dfivida, as simples questées de bom senso formuladas por Bernard Lahire (2001)
a propésito da deriva construtivista pés-modernista: “Se 0 ator comurn é maior sociologo
que o sociélogo, que tipo de legitimidade tern o sociélogo para lhe atribuir urn certificado de
sociologia? Se 0 relato dos atores é mais completo e exprime melhor do que poderia ser dito
pelo sociélogo, por que motivo este filtimo correria o risco de destruir essa verdade em estado .
bruto ao escrever sobre o assunto? Se 0 ator cornurn revela—se mais erudito que 0 cientista,
por que razéo este continua vivendo como funcionério do Estado?” (SSR, 111).
Referéncias
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Patrick Champagne
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BOURDIEU, P. Contrafogos 2: par um movimento social europeu. Rio de Ianeiro; Jorge Zahar, 2001.
Na precedente obra Contre-feux (1998), Pierre Bourdieu havia elaborado uma critica radical
do neoliberalismo, condicao prévia para qualquer aqao racional. Em Contre-feux 2 (2001) ele
refine, segundo o mesmo principio adotado para a primeira obra, diversos textos de intervengao
que visam lancar as bases de uma agao em escala europeia. Bourdieu explica sua participacao,
cada vez mais ativa e visivel, no movirnento social: “Acabei por pensar que todos aqueles que
térn a oportunidade de dedicar suas vidas ao estudo do mundo social nao podem permanecer
neutros e indiferentes, longe das lutas que poem em jogo o futuro deste mundo”, escreve ele na
introdugao ao livro. Os textos reunidos neste volume sao, em comparaqao com o precedente,
menos pontuais, mais longos, mais construidos e mais elaborados, talvez por se inscreverem
em lutas intelectuais que, em sua esséncia, sao “lutas teoricas nas quais os dominantes podem
contar com milhares de cumplicidades”. Em suas diversas intervenqoes, analisa o novo modo de
dominacao, tao complexo quanto refinado, que o neoliberalismo implantou: verdadeira méquina
A partir de uma genealogia deste tema nos escritos de Bourdieu, percebe-se que as reflexoes
sobre o corpo jé estavam presentes desde 03 anos 1960, em suas pesquisas realizadas na Argélia.
Foi observando que a inversao simbélica entre 0 interior e o exterior da casa cabila era também
uma inversao geométrica, e assim corporal, que Bourdieu (ETPp) comecou a introduzir em
suas analises uma sociologia do corpo. Paralelarnente ‘as investigacoes na Argélia, ele tambérn
verificava o celibato dos filhos mais velhos no Béarn e desenhava a condicao campesina a partir
do corpo (BC). Realizando a observacao de determinados eventos sociais, descreveu e interpre-
tou as técnicas corporais como verdadeiros sisternas solidarios a todo um contexto cultural.
Em “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps” (1977), Bourdieu afirma que
o corpo, como urna forma perceptivel que causa uma impressao, é, de todas as manifestacées
do individuo, a que menos se deixa modificar, apesar de investimentos de ordem variada. O
corpo deve ser levado em consideracao por significar, de maneira mais adequada, a natureza
de uma pessoa, funcionando, portanto, como um meio de linguagem da identidade social em
que “se é falado, mais do que se fala” (BOURDIEU, 1977, p. 51). No corpo se leria a linguagem da
natureza cultivada em que se trai o mais escondido e o mais verdadeiro, ja que é o menos cons~
cientemente controlado e controlavel e que contamina e determina as mensagens percebidas e
despercebidas. O corpo seria entao urn produto social desde as dimensoes de sua conformacao
visivel, derivada de condicoes sociais, até as formas de se portar e de se comportar, expressando
toda a relagao com o mundo social.
Em A distinpdo: crz’tica social do julgamento (1979), Bourdieu destaca que as aquisi~
(goes incorporadas sao determinadas socialmente e se inscrevem no corpo na maneira de se
movimentar e de cuidar do corpo. O sociélogo destaca a manipulacao entre o ser e o dever
ser em tudo que concerne a imagem on a utilizacao do corpo, que conta com a cumplicidade
inconsciente daqueles que contribuem para a produgao de um mercado inesgotével de produtos
que sac oferecidos para impor uma nova hexz's corporal, dimensao fundamental do senso
de orientacao social. Bourdieu (LD, 210) afirma que “o gosto contribui para fazer o corpo
de classe” pela cultura tornada natureza, ou seja, incorporada, que escolhe e modifica tudo
que o corpo ingere, digere e assimila. O corpo é, portanto, “a objetivacao mais irrecusavel do
gosto de classe”'(LD, 210).
132 CORPO
No artigo “Os trés estados do capital cultural”, Bourdieu destaca o estado incorporado
como uma das trés formas de existir do capital cultural e, mais ainda, afirma que este seria
seu estado fundamentalLigado a0 corpo e pressupondo sua incorporacao, a acumulacao
desse tipo de capital cultural demandaria um trabalho de inculcacao e de assimilacao que
custaria tempo de investirnent'o do agente social, tal como um “bronzeamento” (BE, 74).
Em Questfies de sociologia (1980), por sua vez, aborda Varios textos sobre a problemé~
tica do corpo, as préticas corporais e a mimesis corporal. Refere—se, na obra, a histéria feita
coisa e a histéria feita corpo, afirmando que “a historia esta inscrita nas coisas, ou seja, nas
instituicoes e também no corpo” (Q8, 74). Todo seu esforco teria consistido em descobrir a
histéria onde ela se esconde melhor, a saber, nos cérebros e nas dobras do corpo.
As reflexoes sobre o corpo ainda se fazem presentes em Coisas ditas (1987), Meditacées
pascalianas (1987) e A dominacfio masculina (1998), onde se'exploram o conhecimento
pelo corpo, a incorporacao das disposicoes e a coercao pelo corpo.
Na abordagem sociolégica desenvolvida por Bourdieu fica claro que a maneira de estar no
mundo se deve a um processo de pertencirnento social. 0 individuo e’ um coletivo encarnado,
um social incorporado. A relacao do corpo com o mundo e’, implicita e explicitamente, ligada a
imposicao de uma representacao legitima do'corpo. O corpo social é o corpo do individuo portador
do habitus, uma vez que as disposicoes incorporadas moldam o corpo a partir das condicoes
materiais e culturais. Este é o processo de socializacao, produzindo um ser individual forjado
nas e pelas relacoes sociais, fazendo da prépria individualizacao um produto da socializacao. Por
isso a nocao de habitus articula 0 individual e o coletivo e engloba o corpo, porque, enquanto
disposicao, passa a orientar as praticas corporais que traduzem uma maneira de ser no mundo.
“O que se aprende pelo corpo nao é algo que, como urn saber, se possa segurar diante de si, mas
e'algo que seeé” (SP, 123). Nessa afirmacéo o autor se refere a ideia de que o saber aprendido pelo
corpo, entendendo este saber como um esquema de sisternas de investimento social que o corpo
incorpora, 11510 6’: palpavel. O corpo nao representa urn papel, nao interpreta um personagem, e
Sim se identifica corn este formato determinado socialmente, constituindo a partir deste formato
a imagem de si. Reconhecida como sua maneira de ser, 0 agente nao consegue perceber que
grande parte do investimento no corpo que visa a sua construcao socializada é responsavel por
determinar sua posicao de ocupacao no espaco social
Bourdieu (LD) utiliza tambérn em seu quadro teérico de analise a nocao de capital corpo,
Ial, afirmando que as propriedades corporais podern funcionar corno capital para a obtencao
de lucros sociais, para conceder a representacao dominante do corpo um reconhecimento
incondicional. Além das propriedades corporais, 0 capital corporal também abrangeria a
habilidade corporal para a pratica de esportes. A aprendizagem de uma habilidade especi-
fica seria mais rentével na medida em que se daria de forma precoce. A tradicao familiar, a
postura, as técnicas de sociabilidades e a aprendizagem precoce de uma habilidade motora
podem interditar alguns esportes e praticas corporais as classes populares.
Destacando a importancia do que é apreendido pelo corpo e que se encontra velado a
Compreensao do agente, Bourdieu (1998, p. 3) escreve que “as injuncoes sao particularmente
' poderosas porque elas se dirigem primeirarnente ao corpo e 1150 passam necessariamente pela
linguagem e pela consciéncia”. A submissio ‘as determinacées das disposicoes se origina na
prépria incorporacao destas disposicoes. Esta submissao se aloja profundamente no corpo
CORPO 133
socializado, sendo a expressao do que ele denomina a somatizacao das relacoes
sociais de
dominacao. Para 0 autor, a somatizacao progressiva das relacoes fundam
entais que sao cons-
titutivas da ordem social inscreve~se na hexis corporal, ou seja, nas postura
s, disposicoes e
relacées do corpo interiorizadas pelo individuo, induzindo sua maneira de agir,
sentir e pensar.
' Os efeitos da dominacao se exercem por intermédio de uma relacao de adesao
corporal e
o vocabulario da dominacao estaria repleto de metéforas corporais, sendo que
a submissao a
uma “ginastica” da dominacao encontra-se inscrita nas posturas, na maneira
como se curva
o corpo, onde a ordem social se inscreve de forma duradoura, e nos automat
ismos do cérebro
(BOURDIEU, 1982). Os investimentos no corpo e em suas posturas tém
destaque no protesso
de dominacao, corno principio de atuacao do poder. A concretude desse investim
ento pode
ser verificada, por exemplo, nas instituicoes de ensino, onde se atesta a associac
ao de duas
formas de comunicacao e inculcacao, a saber, os discursos e amodulagem de um
corpo social
encarnado em um corpo biologico, servindo de porta—voz das crencas socialm
ente determi-
nadas e aceitas. E o que evoca a nocao de “esprit de corps”, formula que, segundo
Bourdieu
(1982), e sociologicamente fascinante e aterrorizante.
O efeito da dominacao simbélica sobre o corpo é tratado por Bourdieu (DMp,
50) corno
urna “forca mégica”, ou seja, urna forca simbolica'como “forma de poder que
se exerce sobre
os corpos, diretamente, e corno que por magia, sem qualquer coacao fisica; mas
essa magia sé
atua corn-o apoio de predisposicoes colocadas, como molas propulsoras, na zona
mais profunda
dos corpos”. E sob forma de esquernas de percepcées e de disposicoes que se
inscreve urn ,
sistema de estruturas nos corpos dos domjnados, tornando-os sensiveis a certas
manifestacoes,
simbolicas do poder e aptos a entrar no jogo social. A ordem social determina
entao a ordern
do corpo, tornando—o a0 mesmo tempo lugar de investimento e principio de
sua eficécia.
Referéncias
BOURDIEU, P. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. ARSS,
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BOURDIEU, P. Le corset invisible. Entrevista com Catherine Portevin. Téléramc
z, Paris, v. 3, n. 2534,
5 ago. 1998.
58. CRENQA
Maria da Gracajacintho Setton
Herdeiro do pensamento sociolégico classico, Bourdjeu se apropria do termo “crenca”
para
analisar o caréter magico e oculto de processos de interiorizacao de valores sociais
realizados
em uma acao pedagégica anonima extremarnente poderosa. Tributério do raciocin
io de autores
como Max Weber (1991) — carisma —, Emile Durkheim (2009) — conform
ismo moral e logico —,
e Marcel Mauss (1974) - a economia das reciprocidades sirnbolicas
—, Bourdieu faz uso da
nocao de crenca para expressar rnecanismos dialéticos de reforco entre estrutur
as sociais e
estruturas mentais nao facilmente identificéveis. Ainda que a analise desses
autores, nesse
particular, se refira, sobretudo, a esfera da Vida religiosa e cultural dos
grupos, Bourdieu
vai alérn, extrapolando sua utilidade para outras dimensoes da Vida social —
ou seja, todas
aquelas responséveis pela producao dos sentidos (SP).
134 CRENCA
kw.»
O uso da nocao de crenca passa por um desejo do autor de provocar e sensibilizar o olhar
do observador social sobre o carater arbitrario e sagrado do universo simbolico das sociedades.
De carater naturalizado, as crencas sao sempre coletivas e sempre produtos de construcoes
que remetem a umjogo de forcas entre agentes ou grupos sociais diferentemente posicionados
na estrutura social. Derivam do conhecimento de uma “verdade”, de seu conhecimento e
reconhecimento social e individual, que se realiza como uma segunda natureza. As crencas
se constituem no pano de fundo que orientam as condutas, os pensamentos, um conjunto de
disposicoes éticas e estéticas que alimentam o sentido pratico das acoes individuais.
Nesse sentido, poderiamos afirmar que “crenca” nao é um simples vocabulo na estrutura
do pensamento de Bourdieu. Trata-se de um termo que revela significativa contribuicao
para se compreenderem os processos de construcao do social, tornando—se um importante
. instrumental para perscrutar o universo inconsciente das acoes individuais e coletivas. Nao
fazendo uso das distincées entre as ciéncias humanas, Bourdieu entende que o cientista social
deve se armar de todo o tipo de ferramenta conceitual para penetrar na complexidade das
realidades sociologicas. Tudo leva a crer que a nocao de crenca encerra essa complexidade,
remetendo a um feixe de condicionamentos socializadores que mescla dimensoes obfetivas e .
materiais bem como subjetivas e simbolicas da Vida grupal e individual. Sem di’ivida tal nocao
éreveladora de um esforco original de compreensao das relacoes dialéticas entre individuo e
sociedade, expressando a forca do pensamento interdisciplinar do autor bem como seu esforco
em revelar os mecanismos de orquestracao dos sentidos que tecem as urdiduras do social.
Referéncias
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59. CULTURA
Enio Passiani
Maria Arminda do Nascimento Arruda
O conceito de cultura elaborado por Bourdieu, como toda a sua obra, é o resultado do esforco de
integrar as tradicoes dos “pais fundadores” da sociologia, Marx, Durkheim e Weber. Desse modo,
a cultura refere-se aos elementos simbolicos da Vida social, ou seja, um conjunto de representacoes,
valores morais e ideais que institui e organiza a sociedade. Os aspectos simbélicos de uma dada
Organizacao social nao existem acima dos individuos, como “estrutura estruturada”, mas a partir
da acao dos préprios individuos uns em relacao aos outros, sujeita a mudancas, como “estrutura
estruturante”. A acao, pois, nao se resume a mera execucao determinada pela estrutura, mas
torna—se a fonte da qual brotam as significacoes do Inm social, 03 seus possiveis sentidos; em
' suma, a cultura é, a partir da acao dos agentes, a elaboracao de esquemas de percepcao do mundo,
uma maneira de descrevé—lo e compreendé—lo. Os agentes sociais, por sua vez, ocupam posicées
0bj6tivamente definidas na estrutura socioeconomica da sociedade; sao suas posicoes de classe,
CULTURA 135
responsaveis per neles criar certas inclinacoes, disposicées, inclusive as culturais. Esse sistema de
dispesicoes duraveis, transfen’veis, mas nae imutaveis (o habitus), determina, em boa medida,
as préticas subjetivas dos agentes. A cultura, assim, passa per um processo social de objetivacao
,
ganhando materialidade e tornando-se o deminio das praticas e bens culturais, que se comportam
Como suportes dos sentidos. O universe simbolice conhecido come cultura, espécie de instancia
metafisica e subjetiva, é objetivade em praticas que se relacienam com as posicées de classe dos
individues, pertanto, com suas cendicoes materiais de eidsténcia. O cenhecimento e e consume dos
bens culturais sae classificantes, isto é, es agentes sociajs se classificam e se opoem reciprocamente
no memento em que se dedicam a esta ou aquela pratica per meio das quais manifestam os seus
gostos (estéticos): frequentacao aos museus, 05 uses e a apreciacao da fotegrafia, os gostos literario
e musical, 0 tipo de vestimenta, a gastronomia e até mesmo a hexis corporal.
Nesse sentido, as capacidades de preduzir, reconhecer, consumir, admirar e apreciar os bens
cultuxais nae cerrespondem a predisposicoes ou competéncias inatas, mas sao arbitrairios cul—
turais inculcados por processes de aprendizagem desenvolvidos per instituicoes sociais come a
famflia e a escela: a primeira transmite come heranca as geracoes mais jovens uma disposicao
cultivada per meie de experiéncias extraescelares e de mode muitas vezes ludico, livre das ebri—
gacoes impestas pela escola (é 0 capital cultural incorporado), porém, ao mesmo tempo, crucial
para garantir o bom desempenho e o éxito educacienais; a segunda é respensével per transmitir
o conhecimento e a cultura (obras, auteres, cientistas, teorias, etc.) oficiais de forma metodica
e
organizada, sancionades e reconhecides posteriormentepelos diplomas e certificados escolares. Se
0 volume de capital cultural herdade e acumulado varia de acordo com a posicao socioeconomica
do agente, entae seu consume cultural e gosto estético vaIiam de acorde com as classes sociais.
As elites detentoras de elevade capital cultural (que se encontra em estreita relacao com 0 capital
escolar), provavelmente bem posicionadas na estrutura socioeconémica da sociedade, 550 as res-
ponséveis per elaborar uma ideia de gosto e estética legitimos, que, num movimento de retorne,
legitimam 0 proprie capital cultural de que dispoem. O gosto cultivado se manifesta come “gosto
pure”, supostamente livre das pressoes e necessidades da Vida cetidiana e independente de toda e
qualquer funcae, reforcando a ideia de que as préticas culturais sao inatas, manifestacées naturais
de individuos, em tese, bem dotades 'mtelectualmente, portadores de capacidades e competéncias
que outros nae possuem, ocultando o fate de que, no interior das seciedades Capitalistas, as Varias
formas de capital — o economico, e cultural e 0 social — sae desigualmente distribuidos entre as
classes 6 fracoes de classe, comportando-se come recurses existentes e acumulados que constituem
o fundamento da distincéo.
Em sintese, a pesicao social gera uma certa disposicao, o habitus, que, por sua vez, tende a
fortalecer a propria pesicao, gerando a distancia social entre individues e grupos. Tal disposicao
corresponde a “ebjetividade interierizada”, a estrutura de classes interiorizada pele agente mediante
o condicionamento exercido per determinadas instituicfies a0 lengo de toda a sua trajetoria social,
intimamente associada a certas condicoes de Vida. Se as disposicoes sao ajustadas de acordo com as
posicoes sociais, entae pode—se afirmar que sao ajustadas de acordo com a estrutura de classes. Ha
tode um sistema de relacoes (economicas, sociais e culturais) a0 qual todas as classes e fracoes de
classes se remetem. O estilo de Vida de uma classe ganha sentide na medida em que diz respeito
a prépria classe e, ainda, na medida em que se refere a outta classe, uma vez que um sistema
de
posicoes sociais é sempre relacional, quer dizer, eles se definem uns em relacao aos outros e nae
136 CULTURA
em si mesmos. As oposicoes entre as classes, portanto, 1150 se restringem aposse de bens materiais,
mas também se verificam nos estilos de Vida configurados pelas préticas culturais, manifestacoes
fenoménicas da cultura, principalmente o gosto estético. A dominacéo de classe, nos termos de
Bourdieu, supoe a mobilizacao de um poder simbélico que consegue impor certas significacoes
como legitimas. Dessa perspe'ctiva, as relacoes Socials sao igualmente relacoes de concorréncia entre
“arbitrios culturais”, sao lutas de classificacao. E a luta entre classes e fracoes de classes transpostas
para a dimensao cultural. A imposicao do arbitrario cultural, auténtico ato de violéncia simbélica,
garante a cultura dominante se apresentar como {mica cultura legitima, tornando a dominacao
reconhecida e aceita pelos demajs grupos. As hierarquias culturais (a alta cultura, a cultura das
classes médias e a cultura popular) reproduzem, de forma eufemizada, as hierarquias sociais e a
estrutura de dominacao da sociedade. Assim, os individuos nao percebem que a culturadorninante
é a cultura das classes dominantes; eles acreditam que ela é dominante porque é intrinsecamente
superior as demais. Ou seja, os individuos percebem como hierarquias simplesmente simbélicas o
que sao, principalmente, hierarquias sociais. Atransfiguracao das hierarquias sociais em simbolicas
permite, aponta Bourdieu, a legitimacao e a justificacao das diferencas sociais, revelando que as
préticas culturais nada tém de ingénuas ou inofensivas, pois estabelecem, de maneira dissimulada,
uma logica da distincao que é, ao mesmo tempo, produto e reprodutora de uma hierarquia social;
por conseguinte, o significado das coisas, o sentido do mundo social que as préticas culturais car-
regam e difundem sao aspectos da dominagéo simbélica exercidapelas classes dominantes. E por
meio das praticas que as representacoes dominantes — que correspondem ao conjunto de opinioes
comuns, crencas estabelecidas, ideias preconcebidas, definido como dogca — sao objetivadas e se
impéem. Cultura e politica, para Bourdieu, apresentam-se como elemehtos indissociéveis, uma
vez que é por meio da primeira que se torna possivel o exercicio eficaz do poder e da dominacao.
Sua nogao de cultura se apresenta corno uma via de acesso privilegiado para o conhecimento da
sociedade, das formas de poder e dominacao que a configuram e sustentam. Isso n50 quer dizer
que a cultura se reduza a simples determinacao da politica e da economia, mero reflexo dessas duas
instancias do mundo social. A0 contrario, a cultura possui uma linguagem peculiar e é dotada de
uma dinamica, organizacfio e regras proprias definidas por aqueles agentes e agéncias sociais que
compoem um campo especifico da sociedade, o campo cultural.
Bourdieu raramente utiliza, em sua obra; a expressao “cultura popular”. Quando o termo
é usado, é posto sempre entre aspas, pois, para o autor, as nocoes que se referern ao “povo” e ao
“popular” 5510 “conceitos de geometria variéve ”, uma vez que eles podem ser ampliados conforme
avontade de quem os usa (BOURDIEU, 1996). Nessa direcéo, Bourdieu chega a afirmar, em outra
publicacao, que a “cultura popular” é “um saco de gates”, na medida em que “as proprias catego—
rias empregadas para pensa-la, as questées que lhe sao colocadas sao inadequadas” (CDp, 186).
Segundo o sociologo (BOURDIEU, 1978), a ambiguidade da expressao inicia~se na contradicao
existente nos préprios termos que a compoem, pois, se cultura significa “cultura dominante”,
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14o DENEGAn
52. DERACINEMENT (LE): LA CRISE DE L’AGRICULTURE ‘
TRADITIONNELLE EN ALGERIE ’
Enrique Martin Criado
Esse livro que Bourdieu escreveu com Abdelmalek Sayad em 1964, cujo titulo em portu-
gués seria O desenmizamento, recolhe parte do trabalho empirico que o sociologo francés
desenvolveu em plena guerra da Argélia, liderando um grupo de jovens pesquisadores. O
texto analisa a desestruturacao da sociedade rural argelina em consequéncia da extensao
das relacées capitalistas, da politica colonial e das acoes de guerras francesas — que deslo—
cam mais de dois milhoes de camponeses para campos de reagrupamento, a0 mesmo tempo
em que destroem seus povoados. Essas transformagées solapavam as bases ~ objetivas e
subjetivas - da agricultura tradicional. Objetivas: a legislacao colonial, as expropriacoes de
terras e 05 deslocamentos impedem a subsisténcia da agricultura tradicional. Subjetivas: ao
, , desaparecerem as condicoes objetivas 6 a0 se estenderem as relacées salariais, desaparecem
os fundamentos do ethos camponés. Os camponeses se veem, assim, em uma situacao de
desdobmmento entre o ethos tradicional pré-capitalista ~ que nao media a atividade por seu
beneficio — e o capitalista — que toma como base de comparacao das atiyidades seu rendjmento
economico e a relacao salarial: situacoes que antes se viam como atividade, agora se veem
como desemprego. Em funcao desta realidade, os camponeses agora ativam uma logica ou
outra, ou — quando as condicoes de existéncia impedem toda projecao no futuro — se fundem
n0 fatalismo on no tradicionalismo. .
O livro constitui uma das primeiras denfincias contundentes da destruigao da sociedade
argelina pelo colonialismo francés e um dos primeiros estudos onde Bourdieu p6e em prética ~ sem
formula-la explicitamente — sua teoria do habitus. Essa formulacao, entretanto, é muito distinta da
que realizara em obras posteriores, como Le sens pratique (1980): enquanto aqui Bourdieu
insiste no ajuste do habitus as condicoes objetivas de existéncia, em Le déracinement analisa
o constante desajuste entre o habitus e as condicoes atuais de existéncia.‘
Referéncia '
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64. DESTINO
Destino é uma expressao que pode ser usada para descrever 0 resultado das acées impul-
sionadas pelo habitus, nocao bésica da teoria de Bourdieu. Os individuos nao agem apenas
sob a determinacfio de estruturas objetivas, mas de acordo com sistemas de disposicées
duréveis, em part6 assimilados das estruturas sociais e em parte como respostas préprias,
individuais, a situacoes ocorridas em suas experiéncias de Vida — o habitus. E, sendo este,
além de esquema de acao, um sistema adquirido de preferéncias, principios de visao e divisao,
e estruturas cognitivas duradouras, ele é principio gerador que engendra também aquilo que
se costuma chamar de gosto que, por sua vez, produz escolhas que, probabflisticamente,
conduzem a um determinado destino social ou de classe (EB).
A variacao do gosto e das préticas culturais entre as classes sociais é menos resultado de uma
sensibflidade inata do que fruto de um processo educativo que acontece na famflja e na escola.
Individuos de um mesmo grupo ou classe tém major chance devivenciar experiéncias semelhantes
e, assim, gendem a incorporar um habitus, um gosto, um destjno social de grupo ou de classe. Em
uma sociedade hierarquizada e desigual, poucas $50 as famflias que dispoem de capital cultural
para transmitir a sua prole, o que leva a um descompasso entre as competéncias culturais exigidas
142 DESTINO
e promovidas na escola e as competéncias incorporadas pelos individuos de famflias de classes
mais baixas. Por essa razao, a escola, em vez de oferecer acesso democrético a cultura, acaba por
reforcar as distincoes sirnbolicas de capital cultural, corn seus desdobramentos materiais.
Assim, a0 contrario da méxima de que “gosto 1150 se discute”, ele deve ser discutido e cri—
ticado. Na sociologia de Bourdieu sobre o jogo de poder das distincoes economicas e culturais
numa sociedade hierarquizada, as distincoes do gosto revelam, antes de tudo, as desigualdades
da ordem social, em que diferencas de cultura e de origem sao convertidas em diferencas entre o
bom e 0 mm: gosto, que tanto em sua origem como em seu final se ligam a destinos diferentes.
65. DETERMINISMO
Gisele Sapiro
DETERMINISMO 143
Segundo a teoria do habitus, as estruturas sociais sio interiorizadas pelos individuos no
decorrer de sua socializagao sob a forma de disposigoes para agir, pensar ejulgar, orientando suas
préticas e escolhas em todas as areas. Elas levam, quase sempre, os individuos 11:10 so a ajustar
suas expectativas subjetivas as possibflidades objetivas, mas também a renunciar de imediato
ao que “nao é para eles”. Assim, longe de detectar esquemas de causalidade mecanica, pode—se
dizer que a sociologia de Bourdieu baseia—se em uma causalidade estrutural que determina
probabilidades — por exemplo, as possibilidades de acesso a universidade que, de acordo com a
demonstragao de Bourdieu e Passeron em Les héritiers: les e’tudz’ants et la culture (1964), 5210
desigualmente distribm’das segundo a origem social dos estudantes — e leis tendenciais inerentes
aos fenomenos de reprodugao que, em compensagao, as reforoam por uma causalidade circular:
por exemplo, a propensao da “noblesse d’Etat” (1989) para se reproduzir.
No entanto, o ajuste entre as disposigoes e as estruturas pressupée que o individuo evolui
em um espago social relativamente estabih'zado, ou seja, que as estruturas sociais que ele havia
interiorizado durante seu periodo de socializagéo sao semelhantes aquelas que enfrenta enquan-
to adulto, o que é apenas “um caso particular do possivel”, de acordo com uma expressao que
Bourdieu (1974, p. 5) toma de empréstimo de Gaston Bachelard. A0 verificar‘se alguma mudanqa
em tais estruturas, esse ajuste nao é automatico e pode se tornar dificil, como mostrou Bourdieu
(1962) no caso dos subproletérios argelinos, antigos camponeses que passam por grandes difi~
culdades para 56 adaptar as estruturas temporais de um capitalismo imposto pela colonizagao.
O que leva a nos questionar sobre as condigoes da mudanga social. Com efeito, existe outra
forma de causalidade em Bourdieu: trata~se da causalidade histérica, definida em seu livro
Homo academicus (1984), come 0 encontro entre séries causais independentes que fazeln
o acontecimento (no caso concreto, Maio de 1968). A1', ocorre algo que nada tem a ver com
um determinismo histérico: esses encontros entre séries causais independentes, que podem
caracterizar também o encontro entre uma trajetoria e um campo concebido como espaqo
dos possiveis, implica uma parcela de indeterminagao que leva a elaboragéo de estratégias
individuais e coletivas, mais ou menos ajustadas ‘as situaqoes e dispondo de um maior ou
menor grau de possibilidade de sucesso face a outras. Eis a razao pela qual, no curso dado no
Coflége de France Sur Z’Etat (2012), Bourdieu explica que o trabalho de sociogénese consiste
em reconstituir os possiveis nao ocorridos em determinada situagao historica.
Ao retomar em seu livro Médz’tations pascaliennes (1997) a questao do determinismo —
lembrando que nao se trata de “uma questao de crenga” (MP, 14) ~, Bourdieu sugere estender
a explicagao das condutas humanas uma proposigao de Gilbert Ryle (1949): “Do mesmo modo
que 1150 se deve dizer que o vidro se quebrou pelo fato de ter sido atingido por uma pedra, mas
que se quebrou quando a pedra o atingiuporque era quebrével, assim também, [...] nao se deve
dizer que urn acontecimento histérico determinou uma conduta, mas que teve esse efeito de—
terminante porque um habitus suscetivel de ser afetado por esse acontec'unento lhe conferiu tal
eficécia” (MP, 177). Bourdieu baseia—se na attribution theory segundo a qual as causas que os
individuos atribuem a uma experiéncia estao entre os determinantes significativos da conduta
que adotarao como resposta a essa experiéncia. No entanto, sublinha Bourdieu, se, por esse
fato, o individuo participa na construgao da situaqao que o determina, deve-se ter presente na
mente “que ele nao escolheu o principio de sua escolha”, ou seja, seu habitus. A este respeito,
prossegue Bourdieu, “o habitus contribui também para determinar o que o transforma” (MP, 14).
144 DETERMINISMO
Assim, como ele explica no mesmo livro: ‘iApesar de 11:10 serem indiferentes a0 jogo e, an mesmo
tempo, capazes de nele instaurar diferencas, as disposicoes (preferéncias, gostos) so podem se
constituir em meio a relacao com as tendéncias imanentes de um universo social, com as pro-
babilidades inscritas em suas regularidades e suas regras ou nos mecanismos que garantem a
distribuicéo das oportunidades de ganho nos diferentes ‘mercados’; e tais disposicoes podem
engendrar esperancas ou desesperancas, expectativas ou impaciéncias [. . .]” (MP, 255).
Longe de uma conclusao pessimista sobre a condicao humana, a reflexao empreendida
por Bourdieu sobre as determinacoes sociais tem uma finalidade emancipatéria, como é
testemunhado por esta frase mediante a qual ele transpoe o paradoxo do conhecimento de
sua propria condicao, enunciado por Pascal: “Sendo determinado (miséria), o homem pode
conhecer suas determinacoes (grandeza) e trabalhar para superé-las” (MP, 157).
Referéncias
BOURDIEU, P. Les sous-prolétaires algériens. Les Temps Modernes, v.' 199, dez. 1962 [reproduzido
em Esquisses algérz'ennes. Paris: Seuil, 2010. p. 193‘212].
BOURDIEU, P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Francaise de Sociologie, v. XV,
p. 3-42, 1974.
~ » BOUVERESSE, I. Bourdz'eu, savant e’r politique. Marseille: Agone, 2004.
RYLE, G. The Concept ofMind. Chicago: The University of Chicago Press, 1949.
66. DIPLOMA
Antt‘mio Augusto Games Batista
DIPLOMA 145
procuracao, [dlo capital de um grupo” (EB, 67). Permite a possibilidadede estabele
cimento de
ligacées duraveis, dentre elas o matrimonio, em cujo mercado tende a fundona
r como um dote
(SINGLY, 1977, 1982). For fun, apesar de 0 titulo escolar ser, por definicao, uma garantia
de posse
de um capital cultural, pode, ele mesmo, induzir a aquisicao de mais capital cultural
por estu—
dantes com menor capital cultural herdado. Bourdieu (LDp, 28) denomina “autodid
axia legitima”
a um efeito simbélico do diploma, que consiste no desenvolvimento de um conjunto
de esforcos e
estratégias para ajustar condutas e praticas culturais aos ideais organizados em tomo
do diploma,
sobretudo em matéria de cultura livre, nao ensinada diretamente pelas instituicées
escolares.
Referéncias
SINGLY, F. de. Mobilité féminine par le mariage et dot scolaire. Economie
at Statistique, n, 91,
p. 33-44, juil./aofit 1977.
SINGLY, F. de. Mariage, dot scolaire et position sociale. Economie et Statistique, n.
142, p. 8—25, mars 1982.
67. DISPOSIQAO
Ver: Habitus
68. DISTINQAO
Iulien Duval
146 DISPOSICAO
produtores propoem, muitas vezes, bens que n50 diferem dos que sao oferecidos pelos concorrentes
a 11510 ser poi: ténues diferencas que, alias, séo valorizadas extremamente por eles. Os agentes
estao implicados em jogos sociais que, por sua vez, se apresentam como conjuntos de opcoes
ou escolhas desigualmente distintivas: por exemplo, entre todos os esportes ~ que, em teoria,
se pode praticar em determinada época ~, alguns sao muito menos divulgados do que outros e
pressupoem uma série de condicoes (a aquisicao de uma técnica, o acesso a locais especificos,
aparceiros...) que, de fato, os reserva a uma rninoria. Em La distinction é sublinhado que, em
determinado espaco, o valor distintivo de uma prética ou de um bem é tanto maior na medida
em que sua apropriacao pressupoe propriedades ou competéncias raras nesse espaco.
Os mecanismos de distingao resultam da relacao entre bens e préticas desigualmente
distintivos, por um lado, e, por outro, agentes e grupos sociais cuja existéncia so é possivel a0
se distinguirem uns dos outros. Os agentes estao mais ou menos equipados para identificar
os bens e as préticas raros e suscetiveis de produzir ganhos de distincao. A propensao para
distinguir—se em determinado dominio é inseparével de uma competéncia rara e especifica que
é uma arte prética de perceber diferencas sutis. A capacidade do amador de arte de identificar
“raridades” pressupoe, assim, a possibilidade de fazer distingoes. Enquanto o 1150 entendido
se limita a ver quadros indiferenciados (ou estabelece diferencas inadequadas, estranhas a
historia da arte), o conhecedor reconhece movimentos pictéricos, estilos pessoais no ambito
da mesma escola, periodos e influéncias diferentes no interior da obra de determinado artista.
O exemplo das classes médias recentemente escolarizadas que — segundo um mecanismo
chamado allodoxia em La distinction, tomam pelo qualificativo de f‘grande arte” obras de
valor secundario —, constituern um caso de grupo que, desprovido dessa competéncia, faz
escolhas que, longe de serem valorizadas por seu valor distintivo, acabam por estigmatizé-lo.
O “senso da distincao” culmina no topo do espaeo social. A lingua francesa, alias, qualifica
como “distinguidas” as maneiras de ser (maneiras de se comportar, de falar...) proprias das
classes dominantes. Elas sao, certamente, pelo me‘nos, em parte, 0 produto do “processo de
Civilizacao” analisado por Norbert Elias (1939) e se caracterizam por uma estilizacao que as
torna muito diferentes das maneiras de ser mais “instintivas”, que $210 as mais frequentes
nos meios populares. Em vez de considerar essas maneiras de ser como uma espécie de qua-
lidades naturals ou inatas, Bourdieu vai concebé—las como um produto da educacao que é
prodigalizada, desde a primeira infancia, nas camadas sociais mais elevadas e que inscreve
nos corpos uma diferenca distintiva em relacéo a todas as outras classes.
Sem dfivida, particularmente acentuados na aristocracia e na grande burguesia, os me~
canismos de distincéo sao atuantes em todo o espaeo social e tém uma dimensao dinamica
(uma prética distintiva em determinado memento pode perder tal caracteristica). Bourdieu
desenvolve esse tema desde a década de 1960; em um contexto marcado, na Franca, por forte
crescirnento economico e pelo acesso de novas camadas sociais a bens de consumo, até entao
reservados aos mais privilegiados. Enquanto alguns sociélogos consideravarn tais alteraqoes
como um fator de reducao das desigualdades entre os grupos sociais, Bourdieu enfatiza que
a “democratizacao” dos bens de consumo tern como contrapartida um deslocamento das
préticas distintivas. A0 adotar determinadas caracteristicas do nivel de Vida das categorias
superiores, as classes médias encontram uma oportunidade para marcar sua distancia em
relacao ‘as classes populares. Por sua vez, as camadas privilegiadas conservam sua distancia
olsrmcixo 147
através de diferentes estratégias conscientes ou inconscientes (por exemplo, o estigma
dos usos
que as classes médias fazem dos novos bens a que térn acesso). As questoes
muito especificas
formuladas na pesquisa de La distinction confirmarn essa visao das coisas:
se, por exemplo,
o fato de escutar mfisica classica jé nao é o monopolio das camadas superior
es, mesmo assim
subSistem fortes diferencas entre as classes quando se leva em conta, de forma
mais sutil, a
amplitude dos conhecimentos musicais ou a familiaridade com trechos pouco
vulgarizados.
Embora possa parecer tautologica, é muito irnportaiite a ideia de que os grupos
que estao
mais orientados para os bens distintivos sao aqueles que possuem o mais sutil
“senso da dis-
tincao”. Ela sublinha, por um lado, que o interesse pelos mecanismos de distinca
o se inscreve
em uma analise da tendéncia a reproducao do mundo social: na concorréncia pela
distincao, os
mais “distintos” encontram-se na dianteira dos outros. Além disso, ela transfor
ma as légicas de
distincao no produto de um senso prético, de um habitus: o amador de arte que
aprecia as rari-
dades 1150 e’ movido pela obsessao de se distinguir do comum dos mortais, mas
por uma forma
de instinto, um “armor pela arte” (AA) que pode ser muito sincero. Nesse sentido,
Bourdieu nao
diz, de modo algum, que a busca da distincao seria a mola propulsora das conduta
s humanas
(MP, 161); a logica dos jogos sociais - por exemplo, aquela que leva os campos
culturais a propor
aos consumidores urna oferta diversificada, em constante renovacao — é que produz
a distincao.
Uma questéo que podem colocar essas anélises - alias bastante fiteis para
os estudos
histéricos e sociologicos de diferentes setores, como a moda, a cultura, o esporte
ou 0 con—
sumo — é a de saber se elas sao generalizaveis a outras sociedades, além da
Franca do século
XX. Alguns trabalhos, como 0 de Craig Clunas (1991) sobre a China dos séculos
XVI e XVII,
fornecem os primeiros elementos de resposta.
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Iulien Duval
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A0 longo da década de 1960, Bourdleu formula uma severa critica a0 papel da escola,
denunciando sua incapacidade de promover a igualdade de oportunidades entre os indivi—
duos. Suas pesquisas de entao concluem que a instituicao escolar desempenha uma funcao
de reproducéo (conservacao) social, sancionando, legitimando e perpetuando desigualdades
preexistentes a ela. E nesse contexto intelectual que surge sua critica a ideologia do dom, a
qual confere ao termo “ideologia” o sentido marxiano de falsa representacao da realidade,
apontando, desse modo, a mistificacao em que se incorre quando se atribui a propriedades
individuais, e até mesmo inatas, aquilo que é social e culturalmente con'struido. Ao atribuir
,_ aos dons (dotes) pessoais a responsabilidade pelas diferengas de éxito verificadas entre os
alunos, a escola erige a ideologia do dom em explicacao legitimadora para resultados escolares
desiguais, mascarando desigualdades reais do ponto de vista das condicoes socioculturais
dos educandos. O sucesso nos estudos assumiria, segundo ele, a aparéncia enganosa de uma
esséncia pessoal, e nao sua real condicao de produto de um contexto social e cultural.
Em trabalhos posteriores, tal concepcao e a referéncia a ideologia do dom se estenderao
a analise das disposicoes estéticas e de outras habilidades correntes nos campos artistico,
esportivo, literario, académico, juridico, etc. Em suma, Bourdieu detecta na ideologia do
dom urn viés substancialista, em que se faz abstracéo da estrutura das relacées sociais e das
circunsténcias nas quais vivem os individuos.
Da mesma forma que ocorre com outros constructos elaborados por Bourdieu, derivados
de apropriacées, interpretacoes e ajustes de autores diversos, desde cléssicos da filosofia, da
sociologia, da etnologia, passando por seus contemporaneos nestes dominios e em outros, e
operacionallzados por meio de insergées empiricas bastante diversificadas, a dominacao nao
pode ser descolada do processo generative pelo qual a abordagem ganha corpo. Trazendo
para o debate a dominacao corno aquilo que permite a uma ordem social reproduzir-se no
reconhecimento e no desconhecimento da arbitrariedade que a institui, ela é inscrita nas dis—
cussées mais amplas acerca de quais $510 05 mecanismos sociais que produzem e reproduzem
as estruturas e como elas $510 (6 estao) incorporadas nos individuos, agindo como um sistema
de disposicoes préticas. A correlacao entre estruturas objetivas e estruturas cognitivas seria,
para ele, a fundacao de uma verdadeira teoria realista da dominacao (R1, 168).
DOMINAn 151
A0 falar de dominacao, ele esta se referindo aos mecanismos sociais disponiveis para
engen-
drar a reproducéo social, nao meramente no plano da garantia da perpetuacao econom
ica, mas,
sobretudo, no ambito da reproducao cultural. No intuito de afastar a dominacao da caracteri
zacao
de seu pertencimento apenas ao reino da apropriacao econémica ou determinada
por ele e, ainda,
como um processo que envolve magic on subrnissao exterior a0 individuo, Bourdie
u desloca o
foco para a dimensao simbélica dos processes sociais e a maneira como os agentes
ordenam a
realidade. A énfase recai em verificar a eflcacia da dominacao se realizando por meio
dos instru-
mentos simbolicos direcionados para cumprirern suas funcoes de comunicacao
e conhecirnento
(criando 0 consenso sobre o mundo), mas, também, em conferir seu carater politico
(legitimando
as diferencas sociais), correlacionando—se estritamente com Violéncia e poder simbélic
os, nucleos
fortes da sua teoria sociologica. Invocando a base dos processos de incorporacao
das divisées
sociais e dos esquemas mentais para reproduzi-la por meio do reconhecirnento
e da cumplici—
dade, sua leitura é condicionada pelo entendirnento de nocées como estrutura e habitus,
campo
e espécies de capital, visoes e divisoes sociais, classificacoes sociais e cognitivas.
Bourdieu afirma, em entrevista de 1989, que o centro de seu trabalho “é
analisar os
fundamentos das formas simbolicas de dominacao, a violéncia simbélica
do poder do tipo
colonial, da dominacao cultural, da masculinidade, poderes estes que tém em
comum o fato
de serem exercidos, de algum modo, de estrutura para estrutura. Silo poderes
que estao nas
estruturas objetivas [...], mas que para funcionar precisam da cumplicidade dos
agentes que
interiorizam as estruturas segundo as quais o mundo é organizado. Todas as
lutas simbélicas
comecam sempre por uma denuncia [...] das formas objetivadas da dominac
ao, porque elas
podem ser Vistas, porque se pode tocé~1as” (SMS, 20—21).
A dominacao simbélica, a dimensao simbélica de ouflas formas de dominacao
e as relacoes
de dominacao em si constituem a originalidade do autor, ao situé—las no
plano estrutural,
como instrumentos de poder que atuam na ordenacao da realidade a ser percebid
a e viven—
ciada. Assim se expressa: “Mesmo quando repousa sobre a forca nua e crua,
a das armas on
a do dinheiro, a dominacao possui sempre uma dimensao simbélica. Por sua
vez, os atos de
submissao, de obediéncia, sao atos de conhecimento e de reconhecimento
os quais, nessa
qualidade, mobilizam estruturas cognitivas susceptiveis de serem aplicada
s a todas as coisas
do mundo e, em particular, as estruturas sociais” (MPp, 209). Essa dimensao simbolic
a, marco
central de seu pensamento, envolve sernpre o exercicio consentido do poder
e da dominacao
relacionado a luta pelas classificacoes e pela obtencao do direito de classific
ar.
Apesar de se constatar que o conceito de dominacao aparece pouco nos indices
analiticos
das obras de Bourdieu (SAINT MARTIN, 2003, p. 27), entendo que o interess
e do autor é de-
monstrado no decorrer de sua feitura sociolégica ao valer~se da ideia segundo
a qual alguns
dominam a producao de sentido sobre o mundo social (ou parte dele),
forjando uma visao
sobre ele que engendra sua direcao. Traz assim, como eixo fundamental,
as classificacoes
sociais e as taxionomias ai geradas como uma forma de dominacao, pois
elas resultam da
luta travada a partir da ocupacéo cle diferentes posicéés nesse sistema de
classificacao, em
que alguns adquirem a posicao dominante e outros, a dominada. Parafra
seando o poeta René
Char (1967), para quem ha certas guerras que nao acabam nunca, a domina
cao como sisterna
se constitui em motor de luta permanente entre grupos e individuos represe
ntatives de grupos
sociais especificos; por ser luta institui—se como dominacao, com dinamic
a especifica e sujeita
152 DOMINAcAo
‘f:"r__1_
.J
a transformacoes decorrentes dessas lutas; corno luta exige o engendramento de processos
de legitimacao, que podem assumir diferentes formas em distintas configuracoes historico-
sociais. Mas o elemento invariante é a luta pela acumulacao e apropriacao dessas duas espécies
de capital, 0 economico e o cultural, e pelas outras formas dai derivadas.
Embora a dominacao possua um carater estrutural, a ideia em 51 de dominacao pode ser vista
duplamente: tanto como estrutura geral de anélise quanto a maneira como engendra diferentes
principios 6 modes em cada campo social possivel de escrutinio, tornando imperativa a necessi-
dade de se utilizar um método para objetiVa-la, orientado por principios epistemolégicos. Para
Bourdieu, a busca da construcao de um modelo das estruturas fundamentais da visao e divisao
do mundo, postas nos mecanismos objetivos, “contribuem para a instauracao de relacoes duraveis
de dominacao, mas também para a dissimulacao dessas relacées. Para compreender as producoes
simbolicas ha que se construir “nao somente a estrutura das producoes simbolicas, ou melhor, o
espaco das tomadas deposicdo simbolicas num determinado dominio da prética [...], mas também
a estrutura do sistema dos agentes que as produzem [...], ou melhor, 0 espaco deposicfies que eles
ocupam na concorréncia que opoe uns aos outros” (MPp, 216, grifos do original).
Evitando imprimir uma direcao {mica a0 conceito, vale destacar a classificacao de Pinto
(1998), que aponta trés conjuntos de pesquisas desenvolvidos por Bourdieu acerca da dominacao
entendida como condicao de possibilidade de submissao a ordem social como “ordem das coisas”.
O primeiro grupo envolve o sistema escolar e seu papel na reproducao das desigualdades sociais,
ressaltando os mecam’smos de consagracao das classificacoes sociais transmutadas ern selecoes
escolares. A énfase recai na legitimidade da triagem ali operada, uma vez Que a distribuicao de
titulos Validos socialmente transfigura a objetividade de estruturas, que agém de forma desigual
conforme as disposicoes constituidas no interior das diferentes classes e fracoes de classe pelos
seus membros. A segunda matriz de trabalhos relativa a0 espaco social 6 campo do poder dialoga
com os escritos que evidenciam a composicao do mundo social por variados campos sociais,
os quais se caracterizam por um sistema de posicoes determinado por espécies diferentes de
capital, mas em homologia com a distribuicao geral entre capital economico e cultural. A partir
da oposicao entre dominantes e dominados em cada campo social, a constituicao do campo do
poder se da por individuos que detém uma espécie de capital que lhe confere posicéo legitima para
lutar pela imposicao de um principle de classificacao dominante. Ha, na pratica, o afastamento
dos principles de cada campo para o exercicio de funcoes que respondem a forma simbélica de
dominacao — corno constituir “o” ponto de Vista acerca do mundo social. 0 ultimo conjunto de
investigacoes refere—se a construcao social da realidade, enfatizando aquelas sobre os distintOs
campos produtores de bens simbolicos (politico, jornah'stico, economico, intelectual, sociolégico,
Cientifico), os quais se encontram envolvidos na luta politica pela definicao legitima do 111m
social e na producao ou refutacao da doxa. Nesse sentido, aponta a necessidade de se inquirir
sobre “os circuitos de circulacao dos bens politicos” e, também, das tecnologias de formalizacao
e representacao da realidade préprias ‘as diferentes categorias de agentes”, que tandem a ratificar
“ulna definicao de realidade produzida no campo politico” (PINTO, 1998, p. 173).
Devern ser destacados, ainda, artigos seminais para a génese da nocao, publicados em
' ARSS, que propiciam seu entendimento pela logica do autor. Os textos apresentam a sistema~
tizacao de dominacao centrados nos estudos sobre a sociedade cabila, o mundo camponés de
Béarn e a sociedade francesa dos anos 1970, dialogando intensamente com a etnografia 6 corn 0
DOMINAcAo 153
estruturalisrno, representados por “Les modes de domination” (1976), “Strateg
ies de reproduction
et modes de domination” (1994) e 0 desenvolvido c0111 Luc Boltanski, “La product
ion de l’idéologie
dominante” (1976). Apesar de aparentemente exporem mundos muito distante
s, estes trabalhos
discorrem de forma direta corn as batalhas simbolicas para instituir formas
de classificacao e de
visao do mundo social engendradas na pratica cotidiana. O interesse pelas
estruturas cognitivas,
pelas taxionomias e pelas atividades classificatérias dos agentes é enfatiza
do tanto ao expor a
criacao de estruturas objetivas que vao atender ao preceito de eficécia simbolic
a da dominacao
a0 se incarnarern institucionalmente (o Estado, o sistema de ensino, o aparato
juridico) como por
atos de conhecimento e reconhecirnento dos agentes (o cabila, os campon
eses, as mulheres, os
politicos, os especialistas) e pelo Estado corno legitimo para formatar uma
ordem social, tornan—
do-a universal e fornecendo a forma oficial publica para essa ordem. Ao
submeter o conceito de
dominacao as condicoes historicas das estruturas sociais, destaca a funcao
ideolégica e politica do
simbdlico na producao de legitimidade por meio dos diversos dispositivos de
producao simbélica.
Nesse ponto, Bourdieu recorre as instituicoes — entendidas em sua
dupla forma, na
realidade e nos cérebros (SEp, 228) —, envolvidas no trabalho de domina
cao simbélica para
demonstrar a translacao de um modo de dominacao simples para um
mais complexo. Na
primeira situacao,.estratégias constantemente renovadas precisa
m ser instauradas para garan-
tir as condicoes de apropriacao direta do trabalho, dos bens, dos service
s, das homenagens,
uma vez que estao ausentes mecanismos indiretos, tais como
o Estado, o sistema de ensino
e o aparato juridico, caracterizando sociedades desprovidas de mercad
o autorregulado. No
outro modo de dominacéo, a mediacao exercida pela posse dos meios
~ capital economico e '
cultural — de se apropriar dos campos de producao economica e cultura
l tende a assegurar
a propria reproducao deles por Via exclusiva de seu funcionarnento,
independentemente de
qualquer intervencao intencional dos agentes. Assim, continua Bourdie
u (1976, p. 122), é no
grau de objetivacao do capital social acumulado que reside o fundamento
de todas as diferencas
pertinentes entre os modos de dominacao — quer dizer, entre os univers
os sociais em que as
relacoes de dominacao se estabelecern por meio da interacao pessoa
l e pelo uso do capital
simbélico, e as formacoes sociais em que a dominacao é mediada por
uma estrutura que a
legitima. Os mecanismos objetivos e institucionalizados promovem
a distribuicao desigual de
recursos sociais e permitern seus usos dife'renciais no interior das classes
e fracoes de classe.
Na mesma direcao analitica, Bourdieu e Boltanski (1976) eviden
ciam o modo de domi-
nacao exposto na filosofia social das “fracoes dominantes da classe
dominante” da sociedade
francesa dos anos 1970. Expondo o “born senso” das visoes de mundo
dos politicos e seus
experts (economistas, demégrafos, politologos, estatisticos, sociélo
gos), mas também dos
lugares neutros (centros de calculos e previsoes, circulos de debate
s de conjuntura), escruti-
nam atores e lugares que concebem a “mudanca” que sera impost
a a todos e cuja expressao
reside na ideia de “novas tendéncias”. Esse modo de dominacao,
que consiste em “mudar
para conservar”, comporta a passagem de uma forma simples,
na qual as instancias de
poder sao orientadas para a manutencao da ortodoxia e pelo afastam
ento da critica, para
um modo mais aperfeicoado, operando justamente pela incorpo
racao da critica ou de seus
tracos mais superficiais; engajando dispositivos de poder (empresas,
administracoes, Estado)
nas continuas séries de reformas; incorporando—as a um processo
de acompanhamento de
mudancas permanentes (BOLTANSKI, 2008, p. 139) e, sobretudo, recebe
ndo o selo da visao
neutra atestada pelas competéncias dos especialistas. Demonstrarn,
assim, a especificidade
154 DOMINAcAo
de formas de exercer o poder nas sociedades capitalistas-democraticas que, sem recorrer 2‘1
violéncia fisica, permitem proteger os interessesde uma classe e assegurar a dominacao por
meio da viséo de mundo incorporada a uma politica (BOLTANSKI, 2008, p. 139).
Ressalta—se, por firm, 0 papel do Bstado na dominacéo que, além de tornar possivel a integracéo
logica e moral do mundo social, age como produtor de sistemas classificatorios, reivindicando
o monopolio dos principios de classificacao susceptiveis de serem aplicados a todas as coisas
do mundo social (SEp, 227). Se 0 essencial da dominacao passa pela incorporacao das estru-
turas por meio da socializacao e pela introjecao de principios de classificacao, a investigacao
dos mecanismos que permitern a submissao ao Estado, sem que este precise exercer a coercio
permanente, inscreve—o como aquele que contribui plenarnente para a reproducao da ordem
simbolica e das ferramentas cognitivas de construcao da realidade social. Dessa maneira, a
anélise da dominacao nao pode excluir o ato de submissao doxico a ordem estatal, e mais, de
como o Estado exerce a “funcéo simbolica” de producao de um consenso entre as estruturas
cognitivas e as estruturas objetivas, por meio da prépria logica de “funcionamento desse universe
de agentes de Estado que fizeram o discurso do Estado”, revelando tambérn os interesses que
eles possuiam em funcéo da posicao que ocupavam no espaco dessas lutas (SE, 239).
Afastando a ideia de que a dominacao se instituiria pela razao imediata entre quem
domina e quem é dominado, vale lembrar que “a dominacéo néo é o efeito direto e simples
da acéo exercida por um conjunto de agentes 7(a“c1aVSSedOminante”) investidos de poderes
de coercéo, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de acées que se engendram na
rede cruzada de limitacoes que cada urn dos dominantes= dominado assim pela estrutura
do campo através do qual se exerce a dominacéo, sofre de parte de todos os outros” (RPp,
52). Essa forma de pensamento exige desvelar mecanismos histérico-sociais complexos e 05
arranjos construidos para perpetuar modos de dominacao cada vez mais eficazes, porquanto
mais dissimulados, pelo fato de legitimarem uma ordem simbélica que é incorpOrada.
Referéncias
BOLTANSKI, L. Rendre la re’alz’té inacceptable. Paris: Demopolis, 2008.
BOURDIEU, P. Les modes de domination. ARSS, Paris, n. 2—3, p. 122—132, juin 1976.
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BOURDIEU, R; BOLTANSKI, L. La production del’idéologie dominante. ARSS, Paris, 11. 2—3, p. 3-73, juin 1976.
CHAR, R. Fureur et mystére. Paris: Gallimard, 1967 [1948].
PINTO, L. Pierre Bourdieu et la the’orz'e du monde social. Paris: Albin Michel, 1998.
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p. 21-29, jan./jul. 2003.
Referéncias \
CORREA, M. Bourdieu e o sexo da dominacéo. Novos Estudos, CEBRAP, V 54, p. 4363, 1999.
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FOURNIER, M. La domination masculine. Sciences Humaines, p. 50-53, 2002. Numéro Spécial:
L’ceuvre de Pierre Bourdieu.
Louis Pinto
A palavra grega doxa é mais frequentemente traduzida em francés por “opiniao”. Em Platao,
este termo designa uma forma degradada de crenca que se opoe ao conhecimento solido e rigoroso
da ciéncia (episteme), do qual a filosofia é o modelo supremo. Enquanto a ciéncia é apropriada pelos
filésofos, a mera opiniao é o destino do homern comurn, mergulhado no falso clarao da Cavema.
Este termo é retornado por Husserl, mas utilizado com um sentido muito diferente em suas
descricoes do “mundo da Vida” (Lebenswelt): ele pretendia construir o estatuto fenomenologico
especifico de uma modalidade da experiéncia que se distingue das formas de intencionalidade
Visando a um objeto, analisadas até entao. A doxa deixa deter o significado negative que tinha na
tradigao da filosofia intelectuah‘sta. Em vez de concebé~la na esfera do julgamento, na medida em
que ela nao se refere a contefidos apresentados de maneira “temética”, Husserl vai entendé—la, de
preferéncia, como urna forma de relacao com o 111m que inclui um segundo piano de evidéncias,
ao mesmo tempo, onipresentes e despercebidas, certezas e expectativas sobre o estado do mundo,
julgamentos implicitos. E a Alfred Schiitz (1899-1959), autor bem conhecido de Bourdieu, que
DOXA 157
se deve uma reinterpretacao socielégica dessa problemética: tratava-se, para.
ele, de descrever a
parcela do evidente (takenforgranted) propria de nossa experiéncia erdinéri
a, raramente ques-
tionada e explicitada a nae ser em situacoes de estranhamento ou de crise. Tais
evidéncias estae
baseadas na pratica e estruturadas’por operacees de tipificacao que favorece
m a compreensae e
a acao. “Na atitude natural, escreve Alfred Schlitz, considero come sendo evidente
que es outros
existam, que atuem sobre mim come eu atuo sobre eles, que a comunic
acéo e a cempreensao
mfituas possam se estabelecer entre nos [...] tudo isso gracas a uni sistema de
signos e simboles
e no ambito de uma erganizacao e de instituicoes sociais que 1150 $50 obra
minha” (1962, p. 145).
Para Bourdieu, é impossivel se contentar com “essas poucas constatacoes antropol
égicas gerais
e a~historicas” (MP, 208), mesmo que o projeto de uma ciéncia da experiéncia
ordinéria mereca
ser levado a série. A doxa contém e sentimento de familiaridade que engendr
a, sob determinadas
cendicoes, o ajuste das estruturas do habitus ‘as estr'uturas objetivas, da “histéria
feita corpo"
e da “histéria feita coisa”. Como tal, ela contribui para reproduzir a ordem
existente, imponde
evidéncias que, per 1150 serem da ordem dos pensamentos, acabam sendo mais
eficientes. Essa
é uma das razoes pelas quais Bourdieu opée a doxa a ideologia: “Se aos
poucos fui baninde o
emprego da palavra ‘ideologia’, n50 é somente em razéo de sua polissemia
e dos equivocos dai
resultantes. Ae evocar a ordem das ideias, bem come da acao pelas ideias
e sobre as ideias, esse
termo tende a cancelar um dos mais potentes mecanismos de manutencae da
ordem simbélica, qual
seja, a dupla naturalizacc‘zo que resulta da inscricao do social nas coisas e nos
corpos” (MP, 216).
Bourdieu esforcou-se para completar essa abordagem da relacao pré-reflexiva
com o mun—
do, inspirada pela fenomenolegia, com outra linha de inspiracao, sobretu
de durkhez‘miana. .
0 sense comum de um agente é determinado pela interiorizacao das oposico
es objetivas da
sociedade sob a forma de sistemas de classificacao (alto/baixo, rate/curve,
masculine/femi—
nine...). A adesao déxica ao mundo social esta baseada na relacae de harmon
ia entre duas
ordens de coisas: as classes e as classificacées, as posicoes e as disposicoes,
as probabilidades
objetivas e as expectativas subjetivas, as estruturas objetivadas e as estrutur
as incorporadas.
Ninguém Vive sem uma dose (16 “algo evidente”, mas a mesma doxa nae
é compartilhada
por-todos es individuos: uma pessoa pode sentir~se estranha ao universe
de outra. E o mesmo
ocorre em relacao a cada campo: “Come 0 campo artistice, cada universe erudite
possui sua dexa
especifica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos
e avaliatives cuja aceitacao é
inerente a prepria pertinéncia” (MP, 121). O grau de ajuste pode ser apreend
ide através das ex—
periéncias que se distribuem entre o polo da familiaridade, da facilidade,
e e do incemode e da
confuséo. Corn certeza, a linha divisoria entre o evidente e o inconcebivel,
longe de ser fixa, nae
cessa de se deslocar sob o efeite de lutas e de “revolucees simbélicas” que oferecem
novos instru—
mentos de percepcao. O que era evidente, até entao, pode tomar-se objeto
de discurso explicito:
“O trabalho dos guardiees da ordem simbelica, que tém um trato
com o bom senso, consists em
tentar restaurar, no mode explicito da orto-dexia, as evidéncias primitiv
as da doxa” (MP, 224).
Deve—se procedgzr a uma distincao entre, per um lado, 0 sense comum
de que dispeem, sem
aprendizagem codificada, todos os agentes no interior de uma sociedade
e que é a condicao de um
mundo cemum, suscetivel de ser controlado e manifestado e, per outro, as
crencas compartilhadas
per grupos de especialistas envolvidos na producae, relativamente sistema
tica e duradoura, de
bens eruditos. Pode-se afirmar que qualquer universe erudite contém
algo indiscutido, seja na
forma de crencas teéricas, de valeres ou de hierarquias institucionais,
sociais. Os “doxosofos”
158 DOXA
l‘M-i
(BOURDIEU, 1972), cuja figura emblematica é o produtor e intérprete de sondagens de opiniao,
sao eruditos de aparéncia e das aparéncias, os “sernieruditos” que dao ares de cientificidade a um
discurso sobre o mundo social baseado em pressupostos nao elucidados, os mesmos utilizados
pelos politicos, jornalistas e ensaistas Tal doxa, que pode eventualmente assumir a forma sis—
tematica de um discurso ideologico a “opiniao”, expressao e reflexo democréticos” do povo, -
tern a propriedade de acumular os lucros do rigor e 05 da evidéncia (QS). Para se desvencilhar
das categorias de pensamento proprias a esse universo, convém trazer ‘a luz as questoes que,
nas sondagens de opiniao (ou em entrevistas), pressupoem a posse universal de uma opiniao
(“vocé acha quen.,”) de um cédigo comum de nocoes univocas (o “Estado”, as “reformas”, o
“déficit orcamentario”, a “a”.Europ .). Essas perguntas impostas de fora a individuos doceis e
incapazes de reconhecer os pressupostos das mesmas e de contesta—los, suscitarn urna forma
de adesao iluséria baseada na “allodoxia, que consiste em se reconhecer erroneamente numa
forma particular de representacao e de explicitacao publica da doxa” (MP, 221).
For razoes tanto cientificas quanto politicas, a sociologia deve empenhar—se para elucidar
o que diz e o que nao diz a doxa, o que ela incita a pensar implicitamente; e isso é, em conso-
nancia com a exigéncia de reflexividade, uma condicao prévia para a analise dos universos
de producao simbolica. A nao ser que se submeta a repetir, sob um modo erudito, o ponto de
, Avista dos agentes, a sociologia nao pode deixar de exercer efeitos criticos sobre as visoes do
mundo social. E121 nao propoe uma denfincia suspeitosa ou desconfiada das aparéncias, mas
urna anélise das crencas e das condieoes sociais de producao das mesmas, a qual se inscreve
na tradicao weberiana de analise da dominacao e da legitimidade. 1.
Se 0 conhecirnento cientifico contribui para tornar menos evidente a realidade social, ele
Cleve levar ern consideracao a forca dos mecanismos sociais que tendem a manter a crenca.
E13 0 motivo pelo qual os intelectuais nao devern superestimar o poder de sua critica. Uma
tomada de consciéncia pode ser suscitada, seja por acontecimentos biogréficos singulares, seja
por conjunturas historicas que conturbam as referéncias anteriores e revelam a arbitrariedade
do que aparecia como a ordem natural das coisas.
Referéncias
BOURDIEU, P. Les doxosophes Minuit, n. 1, p 26-45, nov. 1972.
SCHUTZ A. Collected Papers, I, YheProblem ofSoczal Realzty LaHayez1MartinusNijhoff, 1962, p. 145
Louis Pinto
Com seus escritos, Pierre Bourdieu contribuiu para dar a conhecer a obra de Durkheim e
dos durkheimianos. Alérn disso, providenciou a republicacao de alguns trabalhos desses auto-
res em Les Editions de Minuit. No entanto, durante o periodo em que Bourdieu era estudante
de filosofia, Durkheim era considerado um autor antiquado, sendo desacreditado tanto por
filosofos quanto por sociélogos Foi, ern particular, a obrigacao de dar cursos sobre Durkheim
que, no inicio da década de 1960,1he permitiu descobrir algo diferente do pensador estéril que
ele esperava encontrar.
Referéncias
BOURDIEU, R; RAPHAEL, L. Sur les rapports entre l’histoire et la sociologie en France et en Alemagne.
ARSS, 11. 106—107, 1995.
DURKHEIM, E. Elements d’une histoire sociale. In: . Textes. Paris: Minuit, 1975. Tome 1.
DURKHEIM, 13.; MAUSS, M, De quelques formes primitives de classification. Contribution a l’étude
des representations collectives. Année Sociologique, v. 6, p. L72. (Reproduzido em MAUSS, M.
(Euvres. Paris: Minuit, 1969 v. 2).
76. ECONOMIA DAS TROCAS LINGUiSTICAS (A): O QUE FALAR QUER DIZER
(CE QUE PARLER VEUT DIRE.‘ L’ECONOMIE DES ECHANGES LINGUIST/(DUES)
Obra publicada originahnente em 1982 com o titulo Ce queparler veut dire: l’econom I
z'e des
échanges linguistiques, foi Iangada em tradugao para o portugués (1996), com prefécio
de Sergio
Miceh'. A tradugao opta por intitular a Obra com o subtitulo do original, passando
o titulo a ser
subtitulo, talvez para criar uma relagao com A economia das trocas simbélicas,
coletanea de
textos de Bourdieu traduzidos e publicados anteriormente (1974), relagao sem dfivida
pertinente,
jé que as trocas linguisficas 550, na teoria de Bourdieu, uma dimensao das trocas
simbéh‘cas. O
titulo do original, subtimlo da tradugao, anuncia, corn 0jogo depalavrasfalar/querer
dizer, a tese
defendida pelo autor: a discrepancia entre 0 use objetivo das palavras, tomadas como
referéncia
linguistica a referentes objetivos — ofalar, e a atn'buigao de sentido ‘as palavras, segundo
as condigoes
de produgao do falar — o que as palavras querem dizer, para além de seu significa
do. Cinco dos
dez capitulossao artigos publicados anteriormente, a partir de 1975, em ARSS.
O livro se divide em trés partes. A primeira recebe como titulo o subtitulo da
obra — A
economia das trocas linguisticas. Constituida de dois capitulos, “A produgao
e a reproduqéo
da lingua legitima” e “A formagao dos preqos e a antecipagao dos lucros”,
é a retomada, sob
forma reestruturada, de artigo publicado em 1977 em Langue Frangaise, em nfimero
temético
sobre Iinguistica e sociolinguistica, artigo que tem como titulo precisamente
o subtitulo da
obra: “L’Economie des échanges linguistiques”.
Bodrdieu introduz a primeira parte com uma critica a Saussure e a Chomsky que,
diferen~
ciando, o primeiro, lingual defala, e o segundo, competéncia de desempenho,
elegem como
Referéncia
BOURDIEU, P. L’Economie des échanges linguistiques. Langue Francaise, Paris, IL 34,
p. 17-34, maio 1977.
O Iivro, organizado por Sergio Miceli, que também traduziu 7 dos 10 textos que o compoem
, -
foi a primeira obra editada no Brasil a apresentar de modo sistemético o pensamento
e as pes— >
quisas de Bourdieu até o inicio dos anos 1970. Antes, havia apenas a edicao de poucos
artigos
do autor, sem qualquer apresentacao metédica — a longa introducao, “A forca do
sentido”, de
Miceli, situava o sociélogo francés diante do estado da arte da producao relativa aos
estudos
da ideologia e da cultura, em especial a sociologia dos sistemas simbolicos.
Nesse A economia das trocas simbo’licas, ha capitulos basicos para entender o autor, publi‘
cados originalmente nos entao periédicos académicos dos mais legitimos de sociologi
a, a saber:
“Condicao de classe e posicao de classe” e “Urna interpretacéo da teoria da religiao de Max
Weber”
(Archives Europe’ennes de Sociologie); “Génese e estrutura do campo religioso” e “Sistema
s de
ensino e sistemas de pensamento” (Revue Francaise de Socialogie); “A exceléncia e 03
valores do
sistema de ensino francés” (Annales); “Campo do poder, campo intelectual e habitus
de classe”
(Scolies); “Reproducao cultural e reproducao social” (Information sur les Sciences Sociales)
, além
de “Modos de producao e modos de percepcao artisticos” (Les Temps Modernes), “Estrutu
ra, ha—
bitus e pratica” (posfacio ao Iivro de Erwin Panofsky, Architecturegothique etpense’e
scolastique,
de 1967, editado por Bourdieu na colecao Le Sens Commun, que coordenou na Minuit,
de 1964 a
1982) e "O mercado de bens simbolicos” (original mimeografado de 1970).
Let essa obra é se deparar com vérios capitulos que possuem, até hoje, extrema
atuali-
dade, bem como, em alguns outros, perceber uma série de antecipacoes de uma
sociologia
que Bourdieu viria disseminar, sobretudo em relacao ao dialogo que ele trava
com autores
dominantes das ciéncias sociais acerca da construcao da realidade social como
distinta do
objeto real, cabendo posicionar esta producao simbélica em um sistema prético
dos bens
simbolicos. Ademais, anunciarmse estudos empiricos envolvendo distintos
campos sociais
tomados corno possibilidade de desvelar estruturas de relacoes objetivas.
so. ELITES
Frédérz’c Lebaron
Se ele critica a nocao de “elite” — tal como esta é empregada em pesquisas empiricas
internacionais dos anos 1960, sob o impulse nomeadamente de Paul Lazarsfeld (1901-1976),
Pierre Bourdieu nem por isso deixa de ser considerado, acertadamente, como um dos principais
teéricos e analistas da formacao e da “reproducao” das elites, desde seus trabalhos da década de
1960, em particular,‘as pesquisas sobre o sistema francés das Grandes Ecoles. Alias, o subtitulo
da traducao em lingua inglesa de sua obra, La noblesse d Etat (1989)'e Elite Schools In the
Field ofPower (1996) Escolas de formacao das futuras elites sociais, as Grandes Ecoles sao,
antes de mais nada, ramos do ensino superior elitizados, do ponto de vista escolar e social, cujo
acesso é destinado a um reduzido mimero de estudantes das classes populates, numero ainda
memos elevado do que ocorre nas universidades (com excecéo de setores como a medicina).
Para 0 estudo das elites, Bourdieu aventa a hipétese, inovadora, do papel central da “cultura”,
enquanto conjunto de disposicoes interiorizadas ~ 11m patrimonio, a um 56 tempo, linguistico
e comportamental - que facilitam nao so 0 “sucesso escolar”, mas também a adocao de estilos
de Vida especificos, propicios a contribuir para a permanéncia das desigualdades sociais. 0
capital cultural “pesa”, assim, tanto quanto a posse de patrimonio ou de rendimentos eleva-
dos. As “elites” ou “grupos dominantes” sao, portanto, definidos por Bourdieu em termos
“relacionais”, ou seja, a partir de sua dotacao relativa, mais elevada, em diferentes espécies
de capital: economico, cultural, social e simbélico. Assim, as elites sociais sao apreendidas
de maneira multidimensional, levandor—se em consideracao a diversidade de recursos que as
caracterizam, o que conduz a uma nitida distincao entre as diferentes fracoes das elites: elites
culturais, elites economicas, etc.
A partir do final dos anos 1960, Pierre Bourdieu e seus colegas do Européenne (CSE, que se
tornou CSEC, Centre de Sociologie del’Education et de la Culture apos a ruptura com Raymond
Aron, em maio de 1968) empreendem a elaboracao de um conjunto de pesquisas coletivas
sobre diferentes fracées das “classes dominantes”, de acordo com a terminologia utilizada
ELITES 167
durante esse periodo: professores universitérios, artistas, funcionérios de alto escalao, patroes,
etc. Paralelamente, a pesquisa chamada “Gosto” da lugar a analises sobre as diferenciacoes
entre as referidas fracoes em matéria de estilos de Vida, as quais serao publicadas no artigo
“L’Anatomie du gofit” (1976) e na obra La distinction (1979).
' Cada vez mais, as pesquisas sao realizadas a partir de dados prosopograficos (biografi-
cos) coletados nos anuérios especificos (em particular, 0 Who’s Who?) e em diversas fontes
(jornalisticas, etc). Até hoje, com os trabalhos de Francois Denord, Paul Lagneau-Ymonet e
Sylvain Thine (2011), essa tradicao de pesquisa prosopografica sobre as elites nunca chegou
a ser interrompida no ambito do CSEC—CSE e, mais amplamente, da “escola bourdieusiana”.
Pode-se acrescentar, ainda, as pesquisas de Luc Boltanski sobre os produtores de ideologia
dominante (nomeadamente, os professores de Sciences Po/Paris); as de Christophe Charla
sobre as elites da Republica Francesa no século XIX; os trabalhos de Monique de Saint Martin
sobre a nobreza; alérn de numerosas teses de doutorado, cujo tema incide sobre grupos espe-
cificos " escritores, economistas, jornalistas, etc. — no amago das elites.
Essas diversas pesquisas coletivas vao conduzir Bourdieu, por um lado, a formalizar
a nocao de “campo do poder”, que é o ponto culminante de sua sociologia das elites e, per
outro, a enfatizar a homologia estrutural entre o campo do poder e 0 campo das “escolas da
elite” (Grandes Ecoles, na Franca).
O campo do poder é o subespaco social composto por agentes que lutam em prol do exer—
cicio da dominacao. Mas esse “principio unificador”, essa illusio comum, é acompanhado por
consideréveis diferencas, em particular, aquela que se estabelece entre um polo dominante
no plano economico e um polo dominante do ponto de vista intelectual, que os distingue em
termos de estilos de vida, assim como de posicoes e de tomadas de posicao.
Essa oposicao seré reencontrada no campo das Grandes Ecoles com, por um lado, escolas
voltadas para a reproducao do poder intelectual e cientifico (em primeiro lugar, Normale Supé-
rieure); e, por outro, “escolas do poder” economico e politico (Hautes Etudes Commerciales,
Ecole Nationale d’AdIninistration. . .). A evolucao das relacoes de forca entre essas diferentes
escolas ilustra a transformacao do campo do poder, na Franca, e de maneira mais especifica, o
fortalecirnento do polo do poder diante da marginalizacio das escolas “intelectuais”.
Se, do ponto de vista conceitual e empirico, ele e’ inovador, Bourdieu responde também a questoes
mais “classicas”, tais como aquela — lancinante nos trabalhos sobre a estratificacao social — que
incide sobre o fundamento da existéncia das elites. Em sua construcao teorica, a permanéncia das
classes dominantes remete a nocao de modo de reproducdo que caracterizaria cada sociedade:
trata~se das modalidades pelas quais uma sociedade organiza a transmissao das posicoes sociais
dos pais aos filhos. Neste aspecto, a transmissao hereditaria do patrimonio (a terra e 0 capital)
desempenha tradicionalmente o papel central. As sociedades dominadas pelas forgas econérni»
cas atribuem, assim, ao patrimonio, um lugar determinante no acesso as posicoes dominante
s.
Nas sociedades contemporaneas, esse lugar — que n50 desapareceu — é contrabalancado por
diversos processes: 0 papel crescente do sistema escolar e sua traducao na ideologia meritocrética;
a ascensao dos executives e assalariados com alto m’vel de qualificacao que detém expertises
relativamente raras. Bourdieu fala, entao, de “modo de reproducao com componente escolar”.
A acentuacao da competicao escolar conduz ao incremento do papel do sistema educativo no
funcionamento da ordem social, inclusive entre as fracoes econémicas, tais come 0 patronato.
Dai
168 ELITES
uma tensao potencialmente cada vez mais forte, no cerne deste, entre umalegitimidade expert e
técnica (a dos diplomados em management) e uma legitimidade patrimonial e prética (0 capital
simbélico e 0 capital economico dos “herdeiros” da burguesia). Essa caracteristica, observa—se no
émago do patronato francés estudado por Bourdieu e de Saint Martin, em 1978. A fracao dominante
do patronato francés é, na época, altamente diplomada (ENA, Polytechnique. . .) e associada ao
Estado, em particular, ao polo financeiro do Estado (o Ministério da Fazenda, 0 Banco Central. . . ).
As relacoes entre as diferentes fracoes das elites sao, portanto, mais facilmente com—
preensiveis se forern analisadas do ponto de vista da sociologia da educacao, a qual se torna
assim uma peca central da sociologia do poder, corno é evocado por Bourdieu em La noblesse
d’Etat. No seio do campo politico, por exemplo, as elites “tecnocraticas” (na Franca, aqueles a
quem é atribuido o qualificativo de énarques) sofrem a concorréncia de novas fracoes, diplo-
madas, notadamente, pelas escolas de cornércio (business schools) on pelos departamentos
universitérios de economia e gestao.
A progresséo da economia e do management na formacao das elites contemporaneas é
uma caracteristica frequentemente enfatizada em numerosos paises. Ela explica amplarnente
a tendéncia para o economicismo dos grupos de elite, ou seja, o predominio em seu cerne
de uma visao centrada na esfera “economica” definida de maneira restritiva, quase sempre,
, em termos, antes de tudo, financeiros. Ela conduz a constituicao de um mercado mundial de
ensino superior, focalizado nos MBA, e a0 desenvolvimento de trajetérias académicas inter-
nacionais, associado aredes sociais transnacionais. Os grupos dominantes que emergem do
processo de globalizacao sao, nomeadamente, os executives da financa — traders, dirigentes
dos bancos e das instituicoes financeiras, etc. —, os consultores, os advogados de negécios e
03 economistas, os quais constituem grupos profissionais fortemente internacionalizados e
relativamente homogéneos para alérn das fronteiras nacionais.
Referéncias
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87. EMPREGO ’
Ver: Trabalho
82. EPISTEMOLOGIA
Denis Baranger
EPISTEMOLOGIA 169
cientifica, quando toma o lugar da prética cientr’fica propriamente dita, é completamente
desastroso. A verdadeira teoria é aquela que se dissipa e se realiza no trabalho cientifico
que
ela permitiu produzir” (R,134~135).
E dificil falar da epistemologia de Bourdieu sem levar em conta suas opinioes a respeito
da teoria e da metodologia na medida em que, em seu entender, se tratava de trés niveis
inseparéveis da pratica cientifica, o que explica a razao pela qual ele denunciava
tanto o
teorismo quanto “0 absurdo cientifico que é designado por ‘metodologia’” (R, 137).
Se é
possivel, sem dfivida, determinar afinidades eletivas entre epistemologia, metodolo
gia e
teoria, no entanto, cada uma dessas instancias mantém uma relativa autonomia,
permitindo
por exemplo que, em seus primeiros trabalhos sociolégicos, Bourdieu tenha utilizado
a
anélise de variéveis de Lazarsfeld, sem ter deixado de rejeitar a epistemologia positivis
ta
desse autor (BOURDIEU, 1991, p. 247).
Bourdieu defendeu sempre uma sociologia cientifica, 0 que é considerado jocosam
ente
por alguns comentaristas como uma postura cientificista e, até mesmo, positivist
a. N0 en-
tanto, quando ele subscreve com Passeron a formula de Bachelard, “o vetor epistemologico
[...] vai do racional ao real [...]” (MS, 14; BACHELARD, 2003), isso se da por razoes
idénticas
as de Popper, o qual defendia — diante da indutividade dos positivistas légicos - a primazia
da teoria sobre os dados. Com efeito, é sobretudo na tradicao francesa (fundame
ntalmente
antipositivista) da histéria e da filosofia das ciéncias que se pode encontrar a origem de
suas
ideias epistemolégicas.
.
E costume buscar a epistemologia de Bourdieu em seu livro, Le métz’er de sociologue
(1968). Essa obra, concebida explicitamente como um manifesto antipositivista (BOURDIE
U,
1991, p. 247), tern a desventura de comecar por uma citacao de Auguste Comte (MS, 7).
Em
seguida, afirma—se que "a sociologia é uma ciéncia como as outras que esbarra somente
em
uma dificuldade particular de ser uma ciéncia como as outras” (MS, 43). Uma tese que
se
presta a uma interpretacao positivista, se a formula — coma as outras ~ for entendid
a como
“unidade de método”, e se se levar em consideracao que o problema para as ciéncias humanas
nao seria o fato de se deixar guiar por uma epistemologia das ciéncias naturais, mas por
uma
representagdofalsa de tal epistemologia (MS, 26).
Mas o que é, afinal de contas, essa “dificuldade particular” da sociologia para ser
uma
ciéncia come as outras? Nesse livro, Le métier de sociologue, ela esté na base da necessida
de
de uma teoria do conhecimento sociolégico (TCS). Com efeito, Bourdieu
, Chamboredon
e Passeron 1150 se limitam a retomar as principais categorias de Bachelard (o autor
mais
citado), complementadas por diversas fontes (francesas e outras) da filosofia
das ciéncias,
mas pretendem realizar tambe’m urna sintese das contribuicées metateoricas dos trés
“pais
fundadores” da sociologiaz Marx, Weber e Durkheim. Trata-se de uma tentativa de
constru~
cao dos principios epistemolégicos gerais que estes teriam implementado em suas
teorias
parciais do social (MS, 55). Assim, os autores podiam afirmar a filiacao da TCS a ordem
de
uma metaciéncia sociologica. '
Nessa obra, Le métier de sociologue, tal nocao de metaciéncia era referida explicitamente
a K. Polanyi (1983). No entanto, é possivel também associé-la a distincéo althusseriana
entre
Teoria (com T maifisculo) e teorias, ou seja, entre o materialismo dialético e as ciéncias.
So-
bretudo porque, na mesma época (outubro de 1967), Althusser, em seu “Cours de philosop
hie
170 EPISTEMOLOGIA
pour scientifiques”, falava da “philosophie spontanée des savants” (filosofia espontanea dos
cientistas [PSS, 1974]), enquanto em Le méti‘er de sociologue, com todas as aparéncias de
um eco, tratava~se de uma “sociologie spontanée des sociologues” (sociologia espontanea
dos sociologos [588]).
Do mesmo modo que. a PSS althusseriana, assim também a SSS é engendrada de
maneira permanente e necessaria pela pratica social e, neste sentido, evoca indubita~
velmente as “ideologias praticas” althusserianas: i‘[...] a familiaridade com o universo
social constitui, para o sociologo, o obstéculo epistemologico por exceléncia pelo fato de
produzir continuamente tanto concepgoes ou sistematizagao ficticias quanto as condigoes
de sua credibilidade. O sociélogo nunca conseguira eliminar a sociologia espontanea [...]”
(ALTHUSSER, 1968, p. 35). ‘
Na realidade, a SSS, assim como a PSS, esté enraizada em Bachelard, que nao
aceitava de modo algum a ideia de uma metaciéncia que viesse a se posicionar not
base das ciencias. No entanto, a ideia de uma TCS em luta contra a SSS é essencial
para a argumentagao adotada em Le métier du sociologue e, por conseguinte, para a
epistemologia de Bourdieu nessa época. Para nao cairem ern contradigao, a solugao dos
autores dessa obra consiste em desdobrar o termo “teoria”: por urn lado, tem-se “TCS”
—' formulagao ambigua, de acordo com De lpola (1970, p. 133), dado que ela abrange, ,
de fato, nada menos do que a epistemologia ~ e, por outro, tem-se teoria sociolégica
propriamente dita: Gragas a esse artificio é que se realiza o milagre da Santissima
Trindade, ufiindo Marx, Durkheim e Weber em uma unica e mesma epistemologia.
Em suma, a epistemologia geral negada por Bachelard ressusci‘Ea como uma TCS que,
supostamente, deveria ser defendida a contragosto pelos sociélogos.
De fato, depois de Le métier du sociologue, a TCS é encontrada em Bourdieu so~
mente em duas oportunidades: em sua obra, La reproduction, na qual um primeiro
axioma referente a forga propria da violéncia simbolica é seguido por um escolio que o
transforma em “um principio da TCS” (LR, 18); e em uma entrevista com Otto Hahn,
em que se trata da TCS e, ao mesmo tempo, do campo cientifico (BOURDIEU, 1970, p.
13), o que faz com que esse texto possa ser considerado como um indicio da transigao
de uma categoria para a outra.
151 na conclusao dos “Preliminares epistemolégicos”, a TCS comegava a dar lugar a uma
sociologia da sociologia: “A questao de saber se a sociologia é, on n50, uma ciéncia — e uma
ciéncia como as outras - deve ser substituida, portanto, pela questao do tipo de organizaqao
e de funcionamento da cidadela erudita mais favoravel a aparigéo e ao desenvolvimento de
uma pesquisa submetida a controles estritamente cientificos” (MS, 111).
Em Le métier du sociologue, nao é utilizada a nogao de campo cientzjfico. Se nesse livro
é possivel encontrar o termo “campo” (p. 105), este nao aparece no lndice tematico que se
refere a cidadela erudita e a comunidade. A ideia de cidadela cientifica vem de Bachelard,
enquanto a de comunidade cientl’fica é tomada de empréstirno principalmente de Polanyi
(Kuhn, Merton e Popper so aparecem em nota de rodapé).
Em 1975, Bourdieu publicou “Le champ scientifique”, um artigo decisivo para a conforma-
950 de sua epistemologia, no qual ele define a caracteristica fundamental desse campo; o fato
de que nele o principal fator em jogo é intrinsecamente duplo, 11a medida em que o interesse
EPISTEMOLOGIA 171
dos agentes é ai tanto intelectual quanto politico. Essa duplicidade, Ionge de ser um obstaculo
para o desenvolvimento do campo, é a prépria base do mecanismo que, de maneira natural,
orienta seu funcionamento: “A luta pela autoridade cientifica [...] deve o essencial de suas
caracten’sticas ao fato de que os produtores tendem a 1150 ter outros possiveis clientes além
de seus concorrentes [...] Isso significa que, em um campo cientifico fortemente autonomo,
urn produtor particular so pode esperar que o reconhecimento de seus produtos [...] venha
dos outros produtores que, sendo tambérn seus concorrentes, $50 03 menos inclinados a lhe
conferir, sem discussao nem analise, tal reconhecimento” (BOURDIEU, 1975, p. 95). Esse é o
mecanismo fundamental do campo cientifico, mecanismo que tinha sido, alias, formulado
anteriormente em termos semelhantes por Kuhn ([1968] 1977, p. 143). .
E obvio que, apés Le métier du sociologue, Bourdieu leu Kuhn de maneira mais atenta:
ele vai cité—lo em seis oportunidades, por necessidade de se distinguir de um pensamento
que nao lhe era assim téo estranho porque, em seu entender, tudo o que Kuhn havia trazido
de novo para o mainstream epistemologico anglo-saxao jé estava presente em Bachelard
(BOURDIEU, 1975, p. 114). file critica o funcionalismo de Kuhn, apresentando sua teoria como
a simples contrapartida do positivismo (BOURDIEU, 1975, p. 106), e também se opoe a esta
“prescricfio dissimulada: a existéncia de um paradigma é um sinal de maturidade cientifica”
(Idem, p. 114), a luz da qual as ciéncias sociais n50 seriam cientificas.
Em seu ultimo curso no College de France, Bourdieu mostra-se mais favorével as ideias
de Kuhn, com quem compartilha sua oposicao ao logicismo dos positivistas e de Popper, ou.
seja, ‘a ideia de que haveria “regras gerais a priori para a avaliacao cieutifica e'um cédigo de
leis imutaveis para estabelecer a distincao entre ciéncia verdadeira e falsa” (SSR, 12).
No entanto, ele continua julgando que o modelo de revolucao cientifica de Kuhn é exces-
sivamente internalista, além de reservar demasiado espaco aos fatores irracionais. Bourdieu
pensa que nao se pode compreender a mudanca de paradigma como um processo nao cientifico,
quando ela é realizada nao pelos mais desprovidos, mas pelos mais ricos em capital cienti'fico
entre os recém-chegados a0 campo, o que faz com que “o revolucionério seja necessariamente
alguém que tem capital [...] * ou seja, um enorme controle dos recursos coletivos acumulados
~ e que, por isso, conserva necessariamente consigo aquilo que ultrapassa” (SSR, 39). Bourdieu
é, certamente, menos relativista que Kuhn e mais favorével a ideia de progresso cientifico.
Nesse livro Bourdieu volta a questao das ciéncias sociais e parece estar mais inclinado
a atribuir—lhes um estatuto epistemolégico distinto (SSR, 167). As ciéncias sociais tém “um
objeto importante demais”, o que as torna mais expostas a heteronomia. Devido a falta de
autonomia da sociologia para com a sociedade, “uma liberdade muito grande é dada, inclusive
no interior do campo, aqueles que contradizem o proprio nomos do campo” (SSR, 171). A
conclusao de Bourdieu é a seguinte: “A sociologia é socialmente frégil e, tanto mais, talvez,
quanto mais cientifica for” (SSR, 173). A verdade sociolégica, em ruptura com 0 senso co—
mum, sera aquela que mais dificuldade tem de se impor, em razao das oposic‘oes suscitadas
por sua propria verdade. Nao ha nenhuma “forca intriuseca a ideia verdadeira”, lamenta-se
Bourdieu, inspirando-se em Spinoza. O problema, entao, em vez de ser epistemologico, é
polz’tica. Observemos que essa afirmacao considera resolvido o unico problema realmente
importante: 0 da existéucia de um nomos reconhecivel da sociologia. Se esse nomos — ou esse
unico paradigma — existisse efetivamente, nao haveria nenhum problema epistemologico.
172 EPISTEMOLOGIA
Tudo O que Bourdieu nos diz poderia ser resumido em uma finica diferenca para com
as ciencias naturais, diferenca que consiste em uma resisténcia ativa do objeto. Nas ciéncias
sociais, afirma ele, “impoe—se dar um passo suplementar, do qual as ciéncias naturais p0»
dem se eximir [...] é necessario historicizar o sujeito da historicizacao, objetivar o sujeito da
objetivacao, ou seja, o transcendental histérico” (SSR, 168). A necessidade da socioanélise
seria, finalmente, a finica especificidade da ciéncia social. Se se concorda com a necessidade
de “objetivar o sujeito”, surge a questao de saber como proceder a tal objetivacao. No que
diz respeito a Bourdieu, a resposta parece ébvia: a objetivacao so pode ser feita a partir das
ferramentas fornecidas por sua prépria teoria do espaco social e dos campos, o que faz com
que se volte incessantemente ao ponto de partida.
Mas por que atribuir todo o onus ao sujeito e 1150 ao objeto? Sem que isso signifique renunciar
a um conhecimento cientifico do social, sem voltar a cair na ilusao hermenéutica, pode—se pensar
que existem caracteristicas desse objeto que exigem abordé—lo de maneira diferente das “outras”
ciéncias. Esse é o sentido adotado por ].—C. Passeron em Le raisonnementsociologique (2006),
a propésito do estatuto argumentative da sociologia enquanto ciéncia de um mundo historico.
Mas, mesmo que Bourdieu tenha reconhecido, no final, algum mérito a essa abordagem (SSR,
146), ele nunca se resignou a aceitar que é justamente porque as ciéncias sociais nao funcionam
“como as outras” que é impossivel para elas chegar a um acordo sobre urn nomos unificado.
Referéncias
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BACHELARD, G. Le nouvel esprit scientifiqae (1934). 7. ed. Paris: PUF, 2003.
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PASSERON, ].~C. Le raisonnement sociologique: an espace non poppérien de l’argumentation.
Paris: Albin Michel, 2006.
POLANYI, K. La grande transformation: aux originespolitiques et économiques de notre temps.
Paris: Gallimard, 1983.
Referéncias
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Companhia
das Letras, 2005. p. 7-20.
PlGLIA, R. Formas braves. Séo Paulo: Companhia das Letras, 2004.
176 ESCOLA
Os escritos reunidos nesse volume constituem excelente introducao aos temas trabalha-
dos por Bourdieu e tornaram acessivel sua abordagem teérica da educacao e da reproducao
cultural, inclusive para estudiosos de outras areas das ciéncias humanas que incorporaram
o aparato analitico e metodologico que fundam suas reflexoes sociologicas.
Ordenados em terna’ticas’dedicadas a variadas dimensoes do aparelho escolar em sua
relacao com o contexto social e com a reproducao cultural, os artigos foram selecionados
procurando difundir aspectos seminais do sistema teorico elaborado por Bourdieu em dife-
rentes mementos de sua trajetéria intelectual. Alguns textos apresentam e discutem conceitos
fundamentais para a compreensao da educacao, enquanto outros se dedicarn a analises de
pesquisas acerca de facetas dessa ternatica. ’
No conjunto, os artigos revelarn a inovacao que o pensamento de Bourdieu trouxe para a
sociologia da educacao, abrindo novas perspectivas para 56 proceder a reflexao do processo
de escolarizacao, articulando—o com as desigualdades de acesso aos estabelecimentos de
ensino por educandos de distintas fracoes das classes sociais, com a reproducao cultural,
corn 0 sistema de avaliacao escolar e com analises de outros aspectos que incidem sobre o
sistema educacional.
A pertinéncia e 0 alcance desses escritos podem ser documentados pela utilizacao que
inumeros pesquisadores tém feito deles e também pelo fato, de esta coletanea ter experimen-
tado varias reedicées, o que constitui indicador significativo da repercussao desses textos na
area da educacao.
A nocao de espaco social é utilizada por Bourdieu (CDp; RPp; LDp) para se referir ao
sisterna formado pelo conjunto das posicoes sociais ocupadas pelos agentes em urna dada
formacao social. Influenciado pela perspectiva estruturalista, dominante nos anos 1960 e
70,0 autor eufatiza que as propriedades sociologicamente relevantes dos individuos ou das
instituicoes sociais dependem, em grands medida, da posicao relativa que eles ocupam na
estrutura social Assim, o grau de prestigio, de riqueza ou de poder de um agente individual
on de uma instituicao coletiva (uma universidade, urn sindicato, uma igreja, uma familia,
etc.) so poderiam ser considerados em termos das distancias que esses mantém em relacao
aos demais agentes individuais ou coletivos. Ter urna escolarizacao basica numa sociedade
em que a maioria nao teve acesso a escola pode ser suficiente, por exemplo, para se ocupar
uma posicao de prestigio ou mesmo para se garantir algum poder e renda. Individuos com
esse mesmo nivel de instrucao numa sociedade altamente escolarizada tendern a ocupar, a0
contrario, uma posicao social subalterna
E importante observar que na perspectiva de Bourdieu as posicoes no espaco social nao'
se definem apenas pela dimensao economica. Contrapondo se ‘a tradicao marxista, que tende
a considerar a localizacao dos agentes nas relacoes de producao como o critério definidor
da posicao ou classe social dos mesmos, Bourdieu enfatiza que o espaco social se define a
partir do modo como se distribuem numa dada sociedade diferentes formas de poder, ou
As nocées esprit de corps (espirito de corpo) e efiet de corps (efeito de corpo) aparecem
no percurso da obra de Bourdieu em meados dos anos 1980, extrapolando a associacao uni-
camente feita a La noblesse d’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps (1989), livro em que o
termo “esprit de corps” foi consagrado. Nesse trabalho, ao estudar o campo das instituicoes
dc ensino superior na Franca e, male, as especificidades das escolas preparatérias e das Grandes
Escolas destinadas a reproducao das elites, empreende o uso do termo “espirito de corpo” para
Referéncias
1985.
BOURDIEU, P. Effet de champ et efiet de corps. ARSS, v. 59, p. 73, set.
Agrégat ion et segréga tion: 1e champ Ldes Grandes Ecoles et le
BOURDIEU, R; SAINT MARTIN, M.
'
champ du pouvoir. ARSS, v. 69, p. 2-50, set. 1987.
da prética de
Esse livro, publicado em 1972, representa a primeira elaboragio de uma teoria
retorno da Argélia,
Bourdieu. E precedido por trés estudos de etnologia cabila, redigidos apos seu
(1963»1964) e
cujos temas 3510 “O. sentido da honra” (1960), a “Casa cabila on o mundo ao avesso”
1970). Esses trés estudos foca-
“O parentesco como representagéo e como vontade” (entre 1960 e
géo da sociedade cabila
1izados nas implicagoes simbolicas que sustentam o sistema de reprodu
objetivo consistia
faziam parte de um projeto mais amplo —- e que permaneceu inacabado -, cujo
estrutu ra é ordem economica e
em reconstituir o sistema das relagoes objetivas que servern de
a do livro revelador do
é
politica dessa sociedade. O lugar ocupado por esses estudos na abertur
ida com base em
procedimento que iré caracterizar toda a obra de Bomdieu: a teoria é constru
um constan te vaivém em relaeéo a0
pesqujsas empiricas aprofundadas, de maneira indutiva e em
ais elaborados
terreno. Esse é o aspecto que diferencia essateoria damaior parte dos sistemas conceitu
Referéncia
BOURDIEU, P. La maison kabyle ou le monde renversé. In: POUILLON, L; MARANDA, P. (Orgs.).
Echanges et communications. Mélanges ofierts ti Cl. Lévi-Strauss pour son 60“” anniversaz're.
Paris-La Haye: Mouton, 1970. p. 739~758.
90.-ESTAD_0 . ............
Remz’ Lenoir
ESTADO 185
O campo do Estado é relativamente autonomo em relacao a todos os campos,
assim como
a0 proprio campo do poder. Ora, de acordo com a anélise que Bourdieu jé havia
empreendido a
proposito do sistema de ensino, tal autonomia é a garantia de sua eficécia simbolic
a, de sua funcao
legitimadora, que consiste em transmutar os interesses de grupos particula
res em interesse s do
conjunto dos grupos, ou seja, em favor do “pi’iblico”, no sentido em que ele é
constituido como
“universal” em determinado contexto social. 0 processo segundo o qual se constitu
i essa instancia
de gestao do universal é inseparavel da aparicao de uma categoria de agentes que
tém a proprie-
dade de se apropriar do universal, ou seja, os juristas que teorizam a nocao de
bem pfiblico e que,
a0 assim procederem, tendiam a apropriar—se dele e dele tirar proveito. Assim, ao
produzirem 0
universal para seus interesses particulares, os juristas fazem progredir 0 universa
l.
Referéncias
JENKINS, R. Pierre Bourdieu. iondon: Routledge, 1992.
SPELLER, I. R. W. Bourdieu and Literature. Cambridge: Open Books, 2012.
Apesar de ter sido utilizada por Bourdieu apenas em La distinction (1979), a nocao de
“estilo de Vida” 11:30 deixa de desernpenhar nesse livro um papel importante. No quadro teérico
que lhe é préprio, a nocao de lifestyle ~ popularizada a partir dos anos 1930 pelas ramificacées
da psicologia e da sociologia, associadas ao marketing — parece ter sido reformulada por ele
para designar o conjunto de préticas e de consumos que‘tendem a ser adotados pelo mesmo
individuo ou grupo. Convém observar, no entanto, que nocdes semelhantes ja se encontram em
’ autores classicos, citados com frequéncia por Bourdieu. Em particular, Max Weber, em trechos
deA étz'ca protestante e o “espirz'to” do capitalismo (1905), trata da emergéncia, mediante os
imperativos de condutaascética, de um estilo de Vida “moderno” ou “burgués”, marcado pela
recusa do luxo ostensivo e por um retraimento ao espaco doméstico. Da mesma forma, Maurice
Halbwachs — sociologo francés durkheinu'ano do periodo do entre guefras — havia forjado as
nocées de “nivel de Vida” (1913) e, em seguida, de “género de Vida” (1930) que, a semelhanca do
conceito de “estilo de Vida” em Bourdieu, chamam a atencao para a coeréncia e a interdepen-
déncia fundamentais dos elementos, aparenternente bastante heterogéneos que os constituem.
O “estilo de Vida” em Bourdieu é, com efeito, inseparavel da tese segundo a qual os dominios
, da existéncia que, na aparéncia, obedecem a logicas muito diferentes (consumo de alimen—
tos, praticas esportivas e culturais, concepcoes éticas e politicas do mundo...), se organizam
de acordo com principios homélogos. O estudo estatistico do consumo de alimentos nos
diferentes grupos sociais, de suas préticas esportivas ou de seus lazeres, faz aparecer, assim,
uma série de ecos. Em relaeao aos alimentos constata‘se, por exemplo, na Franca da década
de 1970, uma oposicao entre alimentos baratos e bastante nutritivos (came de porco, p510,
batatas...), consumidos particularmente nas categorias populates, e alimentos mais cams e
mais leves (peixe, frutas...), preferidos pelas classes superiores. Essa oposicao baseia—se em
principios que se encontram, em parte, na area esportiva, dominio em que esportes coletivos
que pressupéem um importante dispéndio fisico e podem ser praticados praticamente em
qualquer lugar (tal como o futebol) se opoern a esportes individuais submetidos a compe-
ticoes ritualizadas (esgrirna, ténis...), cuja prética pressupée recursos economicos, as vezes
bastante consideréveis, e que sao praticados em lugares reservados do ponto de vista social.
Uma oposicao parcialmente similar opée as atividades de lazer populates que, a exemplo
das festas juninas, sao acompanhadas da participacao do pfiblico, aos lazeres mais refinados
e mais ritualizados que, 11a Franca, sao apreciados, sobretudo pelas classes superiores (por
exemplo, o teatro on a opera).
Referéncias
HALBWACHS, M. La classe ouvrie‘re et les niveaux de vie. Paris: Alcan, 19l3.
HALBWACHS, M. Les causes du suicide. Paris: Alcan, 1930.
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Découverte, 2004. .
' WEBER, M. Die protestantische Ethik und der “Geist” des Kapitalismus. Archiv Fur Sozialwissen-
schafi‘ Und Sozialpolitik, 1905.
A nocao de estratégia ocupa lugar central no esquema analitico de Pierre Bourdieu e esta
conectada ao nficleo de'sua teoria, primeiramente apresentado de forma articulada no texto
Esquisse d’une théorie de la pratique (1972). Naquele mesmo ano o autor também publicava
o artigo “Les strategies matrimoniales dans le systeme de reproduction” (1972), cujo
titulo sugeria a importancia daquela nocao e sua associacao estreita com a de reproducao
social. Ao lancar mao da nocao de estratégia, Bourdieu procura enfrentar o problema do uso
da nocao de regra, cara aos etnologos, como crenca na obediéncia exclusiva dos agentes a
regras, codificadas em leis on 1130, e romper com uma visao racional da acao social.
A0 contrario do sentido racional e utilitarista comumente sugerido pelo termo “estratégia”,
associado a ideia de calculo intencional, acao consciente e planejada voltada ‘a maximizacao
de interesses, no esquema de Bourdieu essa perspectiva é praticamente invertida. Isso porque
sua teoria da pratica esté calcada na ideia de' 21930 Social como fruto do habitus, principio
que organiza a relacao dos agentes com o mundo social, fornecendo-lhes um sentido prético.
Assim, embora as estratégias reflitam objetivamente interesses socialmente orientados - ma-
nutencao do patrimonio economico, reproducao do grupo familiar —, nao sao necessariamente
objeto de reflexao corno calculo ou intencao estratégica pelos agentes que as levam a cabo,
Situando—se, na maioria das vezes, no nivel pré—reflexivo ou infraconsciente.
Bourdieu emprega com frequéncia a metafora dojogo para esclarecer sua visao das logicas
da acao social e, em especial, das estratégias, como produto do dominio pratico das formas de
Referéncia ,
4-5,
yBOURDIEU, P. Les stratégies matrimoniales dans le systéme de reproduction. Annales, v.
p. 1105-1127, 1972.
Gisele Sapiro
192 ESTRUTURALISMO
A tal pento que ele ira opera-la no nivel 1150 so dos sistemas de representacoes, mas também
das relacees sociais. Em 1968 publica 11a revista Social Research um artigo dedicado ao es-
truturalismo, no qual expoe a contribuicao epistemolégica desta corrente para a socielegia e,
em seguida, desenvolve a prépria abordagem relacional da realidade social (BOURDIEU, 1968).
O estruturalismo rompe com o procedimente substancialista a0 interpretar es elementos
come parte de um sistema de relacees, ‘as quais eles ficam devendo suas propriedadese sua
significacao social. O que é vélide r1510 56 para as representacées sociais mas também para as
relacoes objetivas entre os sujeitos, que 1150 550 redutiveis as interacoes nem a intersubjetividade:
existem relacoes objetivas entre agentes que nunca chegaram a se encontrar, a semelhanca do
s
» que ocerre entre as pessoas instruidas e aquelas que 1120 0 sale. 0 sentido que os individue
eriundes de diferentes classes atribuem a suas praticas, “vulgares” ou “distintas”, é mediado
pelo sistema das relacoes objetivas que os une naquile que os diferencia. Assim, enquanto o
marxismo considerava os sistemas simbélicos come superestruturas das relacoes economicas,
Bourdieu vai integra-los a uma economia das préticas, em que o simbélico e o economice
em fun—
interagem para estruturar o espace social, de acordo com oposicoes hierarquizadas
céo da significacao e do valor que lhes sao atribuidos em determinada configuracao social, e
transforméveis de acorde com os principles da homologia estrutural.
Ne entanto, es limites e as contradicoes inerentes ao me’tedo estrutural foram sendo detecta-
des, aos pouces, per Bourdieu, no memento em que ele tentava aplica—le as praticas dos cabilas,
conforme sua descricaona introducao de Le sens pratique (1980). Sen esforco para encentrar
ex—
uma ceeréncia perfeita estava votade, com efeito, ao fracasso porque, de acorde com sua
plicacao em Esquisse d’une the’orie de la pratique (1972), OS sistemas simbélico s sao regides
a
per uma coeréncia prética e 1150 logica. Assim, os elementos inclassificéveis que dificultam
ivos per sua propria ambiguid ade. A
sistematizacao das homologias estruturais sao significat
busca de uma coeréncia logica precede, segundo Bourdieu, de um erro intelectualista tipico, a
acéo
saber, a propensao a transformar o “modelo” construido pelo pesquisador na origem da
dos individues, ou seja, no principie que determina ria a sua prética. Tal erro reside na passagem
per
' das regularidades observadas para a “regra”, concebida ora come “norma” (juridicisrno) —
(1948) —,
exemplo, na ebra de LéVi—Strauss sobre Les structures e’le’mentaires de la parente’
ele
Ora come “modelo” que orienta inconscientemente as condutas. A critica do que, mais tarde,
definira come um “viés escolastico”, devide a posicao privilegiada do pesquisado r, que usufrui
do tempo da reflexao, esté 11a origem de uma teoria sobre a prética que atribui a0 corpo um lugar
central na producéo de condutas mais ou menos ajustadas ‘as situagoes. Em vez dos conceitos
de “regras” e de “modelos”, Bourdieu propée assirn es de “estratégias-” e de “esquernas”, cujo
operader e’ e habitus, estruturas incorporadas sob a forma de disposicées que orientam a acae.
Além do erre intelectualista, o estruturalismo peca, na epiniée de Bourdieu, por seu duplo
preconceite antigenético e antifuncionalista, de que é acusado per seus adversaries existen-
cialistas e marxistas. Per um lade, o estruturalismo se desinteressa da génese das estruturas
objetivas e das estruturas interiorizadas peles agentes; per outre, ele eculta as funcées sociais,
econémicas e politicas que es sistemas simbélices desempenham 11a reproducao da ordem
social. Eis a razao pela qual, a partir de meades da década de 1960, Beurdieu se distancia
do estruturalismo. Em novembre de 1966, ele participa da edicae especial que Les Temps
Modernes, a revista de Sartre, dedica aos “pr'oblernas do estruturalismo”, abordando questoes
ESTRUTURALISMO 193
como a relacao entre estruturas e mudanca ou, ainda, estruturas e préxis. Bourdieu publica,
entéo, seu artigo “Champ littéraire et projet créateur”, no qual o coordenador da edicao, Jean
Pouillon, vé a prova de que “a préxis e a causalidade estrutural nao sao antinémicas, mas
complementares e vinculadas inextricavelmente” (BOURDIEU, 1966, p. 789), articulando as pro-
priedades dos elementos situados em um campo estruturado com propriedades de posicéo. Esse
artigo, posteriorinente renegade por Bourdieu em decorréncia do fato de estar ainda marcado
demais pelo interacionismo simbolico, lanca as primeiras bases da teoria dos campos enquanto
espacos de posicoes definidas por relacées de afinidade e de oposicao, teoria que Bourdieu vai
sistematizar por meio da combinacao entre método estrutural e anélise topological. Assim, os
campos se caracterizam pela oposicao entre os individuos que ocupam posicoes dominantes ~
e aqueles que ocupam posicoes dominadas. Na mesma época, ele comeca a aplicar o método
estrutural a todo o espaco social para pensar a diferenciacéo das pra’ticas e das representacoes
em funcao da distribuicéo desigual das diferentes espécies de capital (economico, cultural,
social), procedimento que culminara na elaboracao de La distinction (1979).
Referéncias
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Ver: Habitus I
194 ETHOS
97. FAMlLlA
Fran§0i5 de Singly
Na colegao Le Sens Commun (Editora Minuit), dirigida por Pierre Bourdieu, os indices
teméticos eram objeto'de um trabalho muito cuidadoso. Ora, no que se refere aos livros do
sociélogo — nem em Les héritiers (1964), nem em La reproduction (1970) —, o termo “familia”
figura nos respectivos indices. Tal ocorréncia pode parecer algo estranho, a posteriori, uma
vez que nessas duas obras é analisada a transmissao do capital cultural no seio da famflia
entre pais e filhos. Se nos permitimos fazer uma leitura sintomética, apreciada por Louis
Althusser, temos realmente o direito de nos questionar sobre essa auséncia. Nas décadas de
1960-1970, a utilizagao desse termo era entendida na Franga — pelo menos, para a esquerda
- como algo que fortalecia essa instituigao e indicava urna posigéo “familiarista” de quem
viesse a servir-se de tal palavra. Bourdieu, a semelhanga de numerosos sociologos franceses,
preferia o termo "classes”.
Pelo que sabernos, foi necessério esperar pelo nfirnero 100 da revista ARSS (1993) para que
Bourdieu utilizasse essa palavra no titulo de um de seus artigos: “A propos de la famille comma
catégorie réalisée”. Tudo se passa como se a relagao distante de Bourdieu com a'categoria
“familia” tivesse por funqéo evitar sen fortalecimento, como se, a0 contornar essa palavra,
ele tentasse nao perpetuar a ordem social desigual, cuja criagao conta com a contribuigao
dessa instituigao. A semelhanga do que ocorre corn qualquer luta simbolica, o evitamento
constitui, por si 56, um fator a ser considerado. Algurnas décadas mais tarde verifica-se a
, reviravolta da situagao ideologica, jé que se trata, pelo contrério, de fornecer uma existéncia a
“familias sem nome” (BOURDIEU, 1996): desde ’éntéo, o uso do termo torna-se progressivo. E
no século XXL nos darnos conta de que a expressao “famflia homoparen’ral” constitui, de fato,
um reconhecimento social a0 conectar essa maneira de organizar a Vida privada a famflia
“de papel passado”. Esse longo evitamento n50 impede Bourdieu de propor, implicitamente,
desde o cornego de sua obra, uma sotiologia da familia.
Para Bourdieu, a visao da sociedade, de todas as sociedades, é centrada nas desigualdades
6 na maneira como elas se produzem e se reproduzem. Nesse quadro, a familia ocupa, apesar
da quase auséncia do termo, uma posigao central. Desde Les héritiers e La reproduction, a
FAMILIA 195
funcao da familia esté posta: a de contribuir para a reproducao das relacoes sociais, em dois
aspectos: nao somente pela transmissao de uma heranca cultural, mais ou menos proxima
da cultura escolar legitima, mas também pela naturalizacao que ela opera sob o disfarce dos
dons que dissimula o trabalho social da heranca. No entanto, foi necesséria uma segunda
etapa, com a publicacao de dois artigos — “Les stratégies matrimoniales dans le systérne de
reproduction” (1972) e “Avenir de classe et causalité du probable” (1974) -, para que o couceito
central da sociologia da familia em Bourdieu fosse apresentado: o das estratégias de repro-
ducao e, de forma mais precisa, 0 de “sistema das estratégias de reproducao”. Trata—se “de
sequéncias objetivamente ordenadas e orientadas de praticas que todo grupo deve produzir
para reproduzir—se enquanto grupo” (BOURDIEU, 1974, p. 32). O termo “objetivamente” é
importante porque essas préticas “desempenham sempre, em parte, funcoes de reproducao:
quaisquer que sejam as funcoes que seus autores on o grupo em conjunto lhes atribuam ofi-
cialmente, elas sao objetivamente orientadas para a conservacao on o aumento do patrimonio
e, correlativamente, para a manutencao ou melhoria da posicao do grupo dentro da estrutura
social” (BOURDIEU, 1974, p. 30).
Bourdieu estabelece a distincao entre as estratégias “negativas de reproducao que visarn
evitar o esfacelamento do patrimonio”, incluindo as estratégias de fecundidade, e as estratégias
positivas, tais como as estratégias sucessoriais, as estratégias educativas e, nomeadamente,
as escolares, as estratégias profilaticas destinadas a proteger 0 capital “sadder”, as estratégias
propriamente economicas, as estratégias de investimento social para acumular capital social,
as estratégias matrimoniais e, por fun, as estratégias ideolégicas para tornar legitima a posse
do capital. Essas estratégias formam um sistema, “cada nova estratégia encontra seu ponto
de partida e seus limites no produto das estratégias anteriores” (BOURDIEU, 1974, p. 34). E
possivel apresentar, como exemplo de articulacao das estratégias em conjunto, a escolha do
domicilio: ela determina tanto escolha do estabelecimento de ensino para os filhos como a
configuracao do capital social posto a disposicao deles.
Em um terceiro momento, corn seu estudo sobre “Le patronat” (1978), Bourdieu introduziu
um elemento histérico em sua anélise das estratégias de reproducao, o que ele designa como
“o modo de producao com dominante estolar”. Nas sociedades tradicionais, 0 capital de refe-
réncia para ocupar uma posicao e justificé—la é 0 capital economico (em particular, a terra ou
um comércio); nas sociedades modernas, 0 capital de referéncia torna—se progressivamente 0
capital escolar. No modo de reproducao com componente economica e com dominante familiar,
o poder da familia é mais robusto porque ela “tern o dominio das escolhas sucessorais, ou
seja, o poder de designar [...] aqueles que estao destinados a reproduzir a classe corn todas
as suas propriedades on a serern excluidos da classe” (BOURDIEU, 1978, p. 23). No modo de
reproducao corn componente escolar, predomina uma logica estatistica: “Diferentemente da
transmissao direta dos direitos de propriedade entre o detentor e o herdeiro designado pelo
préprio detentor, a transmissao operada por intermédio da escola apoia-se na agregacao esta—
tistica das acoes isoladas” e “garante a classe, em seu conjunto, propriedades que ela recusa a
este ou aquele de seus elementos considerados separadamente” (BOURDIEU, 1978, p. 25). Sob o
modo. de producao com dominante escolar, a familia perde objetivamente poder, mesmo que
ela procure compensar essa perda mediante a implementacéo das estratégias de reproducao
escolar. As relacoes no interior da familia, a hierarquizacao dos/das filhos/as de acordo com
196 FAMILIA
seu destino provével de herdeiros, alteram~se de acordo mm o modo de producao. Segundo
Bourdieu, as mudancas na familia derivam, antes de mais nada, das alteracoes no rnodo de
producao e de reproducao da sociedade.
No artigo “Strategies de reproduction et modes de domination” (1994), Bourdieu coloca
’ uma questao, pouco presente'nos outros textos escritos por ele: “Quem é, afinal de contas,
o ‘sujeito’ das estratégias de reproducao?” (p. 11). Com toda a clareza, ele responde que “o
‘sujeito’ da maior parte das estratégias de reproducao é a famflia, que age como uma espécie
de sujeito coletivo e nao como urn simples agregado de individuos” (BOURDIEU, 1994). Essa
_ tomada de posicéo apoia-se no pressuposto segundo o qual a familia esta unida, integrada; e
, as “forces de fusao” levam a melhor em relacao as “forcas de fissao”. E possivel se questionar,
no entanto, sobre a pertinéncia de tal pressuposto quando se conhece a taxa de separacao e
de divorcio dos casais. Para Bourdieu isso significa, sem dfivida, que “as transformacées das
estratégias de reproducao tendem a reduzir a necessidade da unidade doméstica”. Se isso é
verdade, seria necessario, no minimo, modificar o tipo de enunciado jé que se torna inexato
considerar “a familia” (enquanto grupo homogéneo) corno “sujeito”. Pode-se também pensar
que outros elementos sociais — notadamente o processo de individualizacao (SINGLY, 2010)
- venharn a produzir perturbacoes nas estratégias de reproducao familiar e, portanto, que
ha certa disjuncao entre as familias e 05 imperativos da reproducao. , ,
Referéncias
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Ri'EENQMENQEQG'A ..............................................
Iosé Luis Moreno Pestafia
FENOMENOLOGIA l97
pessoal dos sujeitos. Diante dele, Bourdieu considera que os postos que os agentes ocupam,
com uma trajetéria especifica, 3510 o resultado de uma histéria coletiva personificada tanto nas
funcoes sociais como nos corpos. A uniao entre a histéria feita corpo e a histéria feita coisa
so em rarissimas ocasiées se converte em objeto de realizacéo intelectual. Semelhante critica
a Sartre mostra como Bourdieu critica certas versoes da fenomenologia com ferramentas —
sociologicamente elaboradas ~ oriundas de outras modificacées da mesma. Em um texto — no
qual a critica mordaz contra Sartre acompanha uma severa revisao, entre outras, da filosofia
de Althusser e Foucault ~ 0 préprio Bourdieu declara que sua concepcao do vinculo intimo
entre o agente e o mundo é uma declinacéo sociolégica daquilo “que o Heidegger dos liltimos
escritos e Merleau—Ponty (especialmente em Le visible et l’invisible) tentaram exprimir na
linguagem da ontologia, quer dizer, um aquém ‘selvagem’ ou ‘barbaro’ ~ eu diria simplesmente
prético - da relacao intencional com o objeto” (BOURDIEU, 1980, p. 7).
2) Pode-se ver - e passamos a segunda dimensao — que Bourdieu utiliza suas compe—
téncias corno filésofo para pensar a filosofla implicita no trabalho sociologico. Assim, e
continuando com o problema anterior, ele considera que todo juizo de um agente constitui
uma liga variével entre juizo reflexivo e tendéncias pré—reflexivas. Um individuo pode, por
exemplo, conscienciosamente, decidir como se vestir para parecer mais elegante. De tal pro—
cesso se deduz que esse sujeito atuou reflexivamente e, portanto, corno urn agente racional?
Nao. Certamente o sujeito nao se veste de uma forma automética: para es que sao incapazes
I
de detectar as coacées sociais que nao se expressam de modo mecanicista, isso testemunha.
sua liberdade e sua reflexividade. N50 obstante, na base da atividade eletiva se encontram
juizos cujas “pregacoes” em absoluto se revisam e que permitern e condicionam a atividade
subjetiva: em nosso exemplo, o juizo de que a vestimenta é algo que serve para aparentar e
r1510 para estar confortavel. Esse modo de tratar o problema da vinculacao entre liberdade
e determinacao, atividade e passividade, procede de uma tradicao fenomenologica que tem
origem ern Husserl. Para ela, os juizos que conduzem nossa atividade tém diferentes graus
de formalizacaoz temos alguns completamente bem definidos e explicitos, outros se alojam
obscuramente ern nés e definem a realidade que nos desmente com uma distorcao peculiar.
Ambos os tipos de juizos se comunicam entre si e 1150 é facil discernir quanto ‘a atividade coti—
diana do agente deve a um e a outro (HERAN, 1987, p. 407-408). Nela, as tendéncias do habito
e as decisées criativas se superpoem de modo instével. A bagagem filosofica de Bourdieu lhe
permite, desse modo, complicar a diferenca filos‘éfica entre liberdade e necessidade que faz o
que quer — ocasionalmente de maneira despercebida — em muitos debates das ciéncias sociais.
3) Essa complicacao teérica ajuda Bourdieu a interrogar melhor os casos de figura que
se apresentam no trabalho empirico. Dado que os agentes tém graus variéveis de distancia
e de absorgao por suas labutas, 0 habitus se apresenta corn diferentes graus de integracao
interna, resultado de uma dialética complexa com a posicao social que ocupa. Portanto, a
vinculacao entre o habitus e seu lugar no mundo pode set: a) de co-pertenca absoluta; b) de
decalage entre umas disposicoes, resultado de uma trajetéria social e um mundo que, a0 56
transformar, jé nio as acolhe; c) de suspensao momenténea da identificacao e, portanto, de
abertnra de certo grau de indeterminacao em uma atividade que até entao funcionava sem
questionamento; (1) de insercao diferente segundo os dominios de atividade nos quais se (16*
senvolve o agente — em alguns pode estar vinculado absolutamente com seu papel, enquanto
198 FENOMENOLOGIA
que em outros pode se distanciar — on segundo a posieao no espago social que ocupa — uma
' pessoa que quer modificar sua posigao social tende a revisar os “prirneiros movimentos” de sen
habitus corn muito mais precisao que aquela que se sente intensamente alegre ou fatalmente
destinada a um tipo de Vida (MP, 184-193).
Referéncias
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99. FILOSOFIA
Louis Pinto
FILOSOFiA 199
“Decidi discutir certas questées que teria preferido deixar por conta da filosofia porque
me convenci de que ela mesma, alias tao questionadora, 1150 as abordava” (MP, 9). Portanto, '
nao se deve esperar algo corno uma filosofia de Bourdieu, a nao ser uma “filosofia negativa”,
semelhante ao procedimento critico-terapéutico de estilo wittgensteiniano em que o impor—
tante é livrar-sc dos “feiticos da linguagem” e clarificar os usos.
A contribuicao do sociélogo para a filosofia negativa, de que fala Bourdieu, é, em primei- .
ro lugar, a sociologia da filosofia que se interessa pelos fundamentos sociais dos conceitos
e problemas. Pelo fato de questionar o efeito de autonomia e de confinamento peculiar a tal
universo erudito, essa sociologia nao é certamente para ele uma “mera preliminar cujo unico
proposito seria introduzir a uma critica propriamente filoséfica mais radical e mais especifica”
(MP, 41): sua conviccao é a “de que nao existe atividade mais filoséfica [...] do que a analise
da légica especifica do campo filosofico, das disposicoes e crencas socialmente reconhecidas
como ‘filosoficas’ que ai se engendram e se realizam” (MP, 40).
Em vez de desqualificar a filosofia, o objetivo de Bourdieu consiste apenas em recusar-lhe
o estatuto, frequenternente reivindicado, de excecao e, portanto, em favorecer sua libertacao
em relacao a contingéncia de uma histéria desconhecida e a seu inconsciente académico. Ao
aristocratismo espontaneo do filésofo, Bourdieu opoe o caréter fundamentalmente demo-
crético da sociologia que se ocupa de pessoas e coisas ordinérias corn meios desprovidos de
prestigio e de‘mistério. Trés temas estao estreitamente ligados: o senso prético, a critica da
razao escoléstica e um racionalismo historicista. V
Em Pascal, sob a égide do qual foi escrito Me’ditations pascaliennes (1997), Bourdieu ,
encontrou argumentos sobre o poder simbolico e sobre o “cancelamento da ambicao do
fundamento”. Pascal mostra, contra os poderosos, a forca dos costumes e das ceriménias;
contra os cientistas, a importancia do pensamento comum e da prética. Finalrnente, em
uma reviravolta do pro a0 contra, mostra a multiplicidade dos pontos de vista: “0 povo tern
opinioes muito sadias: por exemplo [...] de ter escolhido o divertirnento e a caca em lugar
da poesia. Os semieruditos zombam e triunfam em mostrar corn isso a loucura do mundo;
mas, por uma razao de que nao se dao conta, o povo tern razéo” (PASCAL, 1976, p. 141—142).
A ciéncia enquanto ciéncia é construida,-sobretudo contra os semieruditos e 1150 contra o
povo, cujas “opinioes sadias” encerram alguma razao que, nao sendo ciéncia, tem a ver com
uma ciéncia liberada de seu menosprezo para com os profanos.
Aqueles que tém a profissao e a ambicao de pensar o mundo, entre os quais os filésofos,
consideram sua atividade como uma evidéncia que nao exige nenhurna reflexao particular
(basta uma evocacao ritual a0 “estalo” do filosofo, segundo Platao). Como o mundo lhes aparece
espontaneamente como objeto de pensamento, eles omitem de levar em consideracao as con-
dicoes sociais de possibilidade relativamente a atividade de pensar que esté longe de ser dada a
todos e a qualquer momento. A relacao teérica com 0 Lnm nao passa de uma possibilidade
socialrnente determinada que deve ser colocada em contraste com a relacao prética marcada
pela pressao das coisas, pela urgéncia, pela implicacao do agente no que ele vé e faz. A consta-
tacio desse dualismo redunda em um reforco da vigilancia critica: o teorico ~ que é 0 status,
propriamente falando, do sociélogo — deve se esforcar em controlar os efeitos da postura de
conhecirnento sobre o objeto de conhecirnento ou, mais simplesmente, em reconhecer que em
relacao ao m'undo o ponto de Vista dos agentes nao é 0 do observador desinteressado.
200 FILOSOFIA
Se a ciéncia é uma obra humana — e, nessa qualidade, frégil e falivel -, como sera possivel
o conhecimento da verdade? Como escapar a alternativa do realismo metafisico e do relati-
vismo? O campo é gerador de skholé, condicao social da aparicao de uma postura teorica,
“forma de Vida” dedicada inteiramerrte a0 conhecimento desinteressado. O campo, criacao
histérica, oferece “o principio da independéncia relativa da razao perante a historia, da qual
é o produto” (MP, 130—131), on seja, a solucao para o problema tradicional das relacoes entre
a histéria e a verdade, entre o fato e o valor, entre a atividade de pesquisa e a objetividade.
Bourdieu serve-se, de bom grado, de oximoros: “[...] as ciéncias sociais, assumindo sern
subterffigios a historicidade radical da razao e encharcadas pela prova da historicizacao
permanente, poderiarn tornar—se o sustentaculo mais seguro de um racionalismo historicista
ou de um historicismo racionalista” (MP, 145).
Esse racionalismo radical nada cede ao valor intrinseco dos bens produzidos em um campo,
mas defende que os locais de producao tém um estatuto fundamentalrnente histérico. “Se
existe uma verdade, é o fato de a verdade constituir um movel de lutas” (MP, 140). A verdade
é engendrada na histéria por urna luta, por um confronto que tern uma logica virtuosa: a0
lutarem para se impor no campo, os agentes travam seu combate apenas‘em conformidade
com o nomos préprio do campo, esforcando-se para que os pares ou concorrentes venham
a reconhecer seus conceitos e argumentos como dotados de valor.
Referéncia ~
PASCAL, B. Pense’es. Paris: Garnier7Flammarion, 1976.
100. FOTOGRAFIA
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Gragas a Bourdieu é que as principais obras de Erving Goffman foram traduzidas para
o frances, entre 1968 e 1991, na coleeao Le Sens Commun da Les Editions de Minuit. Foram
publicados exatamente seis livros: Asiles, em 1968; La présentation de 501' e Les relations en
public (tomos 1 e 2 de La mise en scene dela vie quotidienne), em 1973; Les rites d’inte—
raction, em 1974; Stigmate, em 1975; Pagans deparler, em 1987; Les cadres de l’expérience,
em 1991. Além disso, Pierre Bourdieu publicou Vérios textos de Gofiman em ARSS: extratos
de GenderAdvertisements (n. 14, 1977); um capitulo de sua tese de doutorado (n, 100, 1993);
e um comentario-sintese que elaborei de “The Arrangement Between the Sexes” (n. 83, 1990).
Bourdieu iria, igualmente, acornpanhar de perto a redagao da primeira biografia intelectual
de Goffman (WINKIN, 1988).
Qual seria o motive de tamanho interesse pela microssociologia, aparentemente tao
afastada de sua concepeao do mundo social? Foi, no entanto, o préprio Bourdieu quern
escreveu em Esquisse d’une the’orie de la pratique: “A verdade 'da interagao nunca reside
inteiramente na interaeao” (ETP, 184). De fate, ele nao visava a Goffman, mas de preferéncia
aos interacionistas simbélicos radicais e aos etnometodologos, cujos trabalhos estavam che-
gando a seu conhecimento. Contrariamente a urn grande nfimero de sociologos franceses,
Bourdieu compreendera muito rapidamente que Gof’fman tinha urna visao durkheimiana
da sociedade, plenamente compativel com a sua, e bastante afastada, por exemplo, das con—
cepeoes de Blumer ou de Garfinkel. A hipersensibilidade comum a ambos em relagao aos
“simbolos de status de classe”, para fazer alusao a um texto de Goifman (1951) que poderia
ser lido como a sinopse de La distinction (1979), ira consolidar ainda mais a aproxirnagao
entre eles. A homologia dos habitus fara o resto: Bourdieu considerava Goffman como um
irmao na resisténcia, Intando corn suas palavras contra a sociologia dominante. Ele sentia—se
' proximo dos livros de Goffman que exprimiarn o ponto de vista de diversas vitimas da
violéncia simbéiica: os doentes mentais, os portadores de deficiencia e as mulheres. Exemplo
emblemético: Bourdieu fazia uma equiparagao entre sua Legon sur la legon (1982) e “The
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Como indica seu subtitulo — critica social do julgamento, La distinction (1979) aborda,
mas com os recursos da sociologia, a questao do gosto tal como ela havia sido formulada pela
filosofia. Para Kant, “o gosto é a faculdade de julgar e apreciar um objeto, 011 um modo de re-
presentacao, por uma satisfacao ou um desprazer, independentemente de qudlquer interesse.
A0 objeto de tal satisfacao atribui—se o qualificativo de belo” (KANT, 1990, p. 139). For sua vez,
Bourdieu define o gosto como “uma disposigao adquirida para ‘diferenciar’ e ‘apreciar’” (LD,
543), mas ele abandona a referéncia ao belo e a hierarquia de que ela é solidéria com o agradével
e o sublime. A analise desenvolvida em La distinction, da qual um primeiro ensaio havia sido
proposto ja em 1965 (AM), desmente a concepgao segundo a qual o gosto “puro” que se afirma
-
no dominio da arte — seria um tipo radicalmente diferente dos prazeres corporais.
Em La distinction, a esfera alimentar tende a constituir, pelo contrério, um modelo para
pensar todos os gostos, incluindo os mais intelectuais..Para Bourdieu, os gostos culinérios que se
adquirem na primeira infancia e se revelam extremamente duradouros fazem aparecer, sob uma
forma particularmente visivel, caracteristicas gerais dos gostos: estes dependem essencialmente
de automatismos inscritos no corpo e estao solidamente associados a sistemas de preferéncias
integrados desde a primeira infancia. Uma passagem de La distinction é dedicada, assim, a0 papal
desempenhado pelo lugar de origem, chamado metaforicamente “a tetra natal”, na formagao dos
gostos: o ambiente em que ocorre o crescimento dos agentes sociais engendra apegos e repugnan}
cias duradouros. Neste aspecto, é sugestivo o exemplo das infancias privilegiadas, marcadas de
imediato pelo que caracteriza os interiores burgueses (atmosfera aconchegante dos apartamentos,
carpetes e paredes de cores suaves e tranquilizantes, muitas vezes, um piano familiar em que é
tocada mfisica classica...) e as experiéncias corporais quase inconscientes que lhes sao associadas.
O gosto aparece, assim, como profundamente vinculado ‘as condieoes materiais de exis-
téncia em que se formou: incide, em primeiro lugar, sobre o que nos é familiar, sobre o que ,
nos é acessivel. Neste ponto, Bourdieu retoma 0 argumento do amorfati: os agentes sociais
tendem a desenvolver o gosto por aquilo que suas condicoes de existéncia lhes acostumaram
e por aquilo que elas lhes permitem aspirar de modo razoa’wel. Eles tendem a gostar do que
tém. As pessoas oriundas do meio popular tém, assim, tendéncia a valorizar, em seus gostos,
os produtos e 05 consumos “fiteis”, “necessarios”, em detrimento daqueles que lhes parecem
associados a0 luxo ou a0 supe’rfluo. O exemplo de pessoas de condicao social inferior que,
frente ao aumento de sua renda, conservam o nivel de Vida anterior, confirma as analises
que levam a observar o gosto como um elementa-chave nos mecanismos que garantem o
ajuste dos agentes sociais a suas condigoes de existéncia e, por conseguinte, a ordem social.
Uma particularidade dessa anélise do gosto é seu caréter relacional. O atrativo por um
alimento 011 um bern é indissociavelmente repulsao por outros bens. Os gostos de uma pessoa
sao sempre acompanhados por repugnancias e, ate’ mesmo, por uma rejeicao dos gostos de
outros agentes sociais que podem, as vezes, exprimir-se sob a forma de reacoes corporais e
violentas. No Brasil, algumas aversoes a0 samba, segundo parece, podem ser perfeitamente
analisadas neste contexto (RIVRON, 2010). Em geral, os gostos se inscrevem profundamente nas
relacoes entre os agentes e 03 grupos sociais. Como os gostos estao relacionados ‘as condieées de ‘
208 GOSTO
existéncia, a proximidade dos' gostos tende a diminuir com a distancia social ent're indivi—
duos ou classes. Bourdieu sublinha que os gostos sao um dos principios da aproximacao
das pessoas, como é ilustrado pelos fenomenos de homogamia on homofilia. Eles intervém
simetricarnente nos conflitos e nos sentimentos de inimizade. 'Por estar, mais geralmente
ainda, na origem de numero‘sas escolhas dos agentes sociais, o gosto constitui urna “espécie
de senso da orientacao social” (LD, 544).
Bourdieu abordou também as modalidades concretas pelas quais os gostos se transformam
ern escolhas ou préticas efetivas. Vérios trechos de La distinction incidem, assim, sobre os
“taste markers”, que 350 05 criticos de literatura ou de teatro. As lutas intestinas que lhes
séo peculiares retraduzem os gostos concorrentes em seus leitorados. Para encontrarem
produtos ou bens ajustados a seus gostos — que sao “sisternas de classificacao incorporada”
(LD, 505) ~, os consumidores podem apoiar—se também nos "sistemas de classificacao in—
corporados” que se referem ‘a posicao dos produtores (preco, hierarquia das editoras, etc.) no
campo da producao. Eles podem circunscrever igualmente suas escolhas a uma unidade de
producao (marca de carro, editora, etc.). La distinction evoca também o problema, familiar
aos anunciantes, das preferéncias de consumo que tém aver, nao com um individuo, mas
com um sujeito coletivo que, a semelhanca de um casal ou de uma familia, é composto por
,' membros cujos gostos individuais sao, Inuitas vezes, parecidos, mas sem nunca coincidirem
completarnente. Na Franca das décadas de 1960 e 1970, tirando os grupos mais diplomados,
uma concepcao tradicional fazia prevalecer o gosto tanto da mulher em dominios que afetam
0 interior das casas (mas também as roupas do homem) quanto do homem em dominios,
tais como a politica. ‘
A anélise do gosto em La distinction abrange, finalmente, urna caracterizacao das grandes
famflias de gostos na sociedade francesa da época. Ao primeiro principio que organiza o espaco
social -— ou seja, 0 volume global de capital —, esta associada urna tendéncia para a estilizacao
dos gostos: as classes superiores tendem a exibir gostos em que prevalece a forma em relacao
a funcao e que exercem efeitos de legitimidade. O segundo principio —- ou seja, a estrutura do
capital — tende a opor gostos voltados para a ascese, acentuados particularmente nas fracoes
culturais das classes superiores, aos gostos mais hedonistas das fracoes economicas. A anélise
sociologica conduz, por fun, a conceber as observacoes de Kant como situadas do ponto de
vista social: a0 condenar os prazeres “vulgares” e ao afirmar a superioridade de um “gosto
puro” ascético, Kant sublima e legitima os sistemas de preferéncias que, no final do século
XVIII, eram dominantes na “intelligentsia burguesa” e que, na Franca, segundo parece,
estao, sobretudo difundidos nas fracoes culturais das classes superiores e, particularrnente,
entre os professores (a respeito de queIn Bourdieu lembra que eles constituem os principais
leitores da filosofia de Kant).
A analise do gosto proposta por Bourdieu pode, obviamente, ser mobilizada em historia
e em sociologia, na medida em que ela pode servir também para o estudo de dominios muito
especificos, como mostra, por exemplo, uma "anatomic du gofit philosophique” (SOULIIé, 1995),
que serve de suporte ‘as analises de La distinction para compreender os gostos que animarn
alguns estudantes de filosofia na escolha de seus temas de pesquisa. De maneira talvez mais
inesperada — sem deixar de ser muito pertinente ~, essa analise pode tambérn ser investida
em economia por questionar as hipéteses neocléssicas que consideram o consumo corno uma
GOSTO 209
fungao da renda, além de considerarem que o equilibrio entre oferta e demanda passa pelos
pregos. La distinction lernbra que nao existe o consumjdor indiferenciado, postulado pelos
economistas. Na realidade, cada consumidor possui gostos especificos que orientam suas
escolhas economicas e organizam a percepgao particular que ele tem da oferta.
Referéncias
KANT, E. Critique de lafaculté dejugemem‘ (1790). Paris: Gallimard-Folio, 1990.
RIVRON, V. Le gofit de ces choses bien a nous. ARSS, 11. 181-182, p. 127—141, 2010.
SOULIE, Ch. Anatomie du gofit philosophique. ARSS, n. 109, p. 3—28, 1995.
GRANDES ECULES 21 1
conhecimento e também da sociologia do poder — para n50 falar da sociologia dos filosofos
do poder. Longe de ser essa espécie de ciéncia aplicada, portanto inferior, e boa apenas para
os pedagogos, situa—se no fundamento de uma antropologia geral do poder e da legitimidade:
leva, com efeito, ao principio dos ‘mecanismos’ responsiveis pela reproducéo das estruturas
sociais e pela reproducéo das estruturas mentais que, como estéo genética e estruturalmente
ligadas a ela, favorecem o desconhecimento da verdade dessas estruturas objetivas 6, com isso,
o reconhecimento de sua legitimidade [...]. A estrutura do especo social, tal como se observa
nas sociedades diferenciadas, é o produto de dois principios de diferenciacéo fundamentais,
0 capital economico e 0 capital cultural, com a instituicéo escolar desempenhando papel
determinante na reproducéo da distribuicao do capital cultural e, portanto, na reproducéo
da estrutura do espaco social, tornando-se uma aposta central nas lutas pelo monopélio das
posicoes dominantes” (NE, 13).
Referéncias
www.1egifrance.gouv.fr (Acesso em: 7 dez. 2015)
www.french—property.com/guides/france/public-serviceslhigher—educationlgrandes~ecoles (Acesso
em: 8 dez. 2015)
www.cnseignementsup—Iecherche.gouv.fr (Acesso em: 8 dez. 2015)
www.understandfrance.org/France/Education.html (Acesso em: 9 dez. 2015)
HABITUS 213
traduzido para inglés pelo seu aluno Alfred Schiitz como “conhecimento habitual” (dai a sua
adocao pela etnometodologia), uma nocao que se assemelha com a de hébito, generalizada
por Maurice Merleau-Ponty (1947) em sua analise sobre o “corpo vivido” como 0 impulsor
silencioso do comportamento social. 0 habitus também figura de passagem nos escritos de
outro estudante de Husserl, Norbert Elias, que fala de “habitus psiquico das pessoas ‘civili-
zadas’” no estudo cléssico Uber den Prozefl der Zivilisation (1937).
Mas e no trabalho de Pierre Bourdieu, que estava profundamente envolvido nesses debates
filosoficos, que encontramos a mais completa renovacao sociolégica do conceito delineado para
transcender a oposicao entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma nocao mediadom que
ajuda a romper com a dualidade de senso comurn entre individuo e sociedade a0 captar “a inte—
riorizacao da exterioridade e a exteriorizacao da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade
se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposicées duraveis, ou capacidades treinadas e
propensoes estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que entao as guiam
nas suas respostas criativas aos constrangirnentos e solicitacoes do seu meio social existente.
Bourdieu comecou por reintroduzir a nocao de uma forma denotativa nos seus estudos
empiricos de juventude sobre a antropologia economica da mudanca na sociedade camponesa
do seu Béarn natal, no sudoeste da Franca, ou nas comunidades cabilas de expressao berbere,
na Argélia colonial (BCi; DR), e elaborou—a analiticamente no seu Esquisse d’une théorie
de la pratz'que (2002). Neste e noutros escritos subsequentes, Bourdieu propoe que a pratica
nao é nem o precipitado mecanico de ditames estruturais, nem o resultado da perseguicao
intencional de objetivos pelos individuos; é, antes, “o produto de uma relacao dialética entre a .
situacao e o habitus, entendido como um sistema de disposicées duraveis e transponi’veis que,
integrando todas as experiéncias passadas, funciona em cada memento como uma matriz de
percepcées, apreciacdes e acées e torna possivel cumprir tarefas infinitamente diferenciadas
gracas ‘a transferéncia analégica de esquernas” adquiridos numa prética anterior (ETPp, 261).
Como histéria individual e grupal sedimentada no corpo, estrutura social tornada estru-
tura mental, o habitus pode ser pensado em analogia com a “gramética generativa” de Noam
Chomsky, que permite aos falantes proficientes de uma dada lingua produzir impensadarnente
atos de discurso corretos de acordo com re‘gras partilhadas de um modo inventive, mas, nao
obstante, previsivel. Designa uma competéncia prética, adquirida na 6 para a acao, que opera
sob o nivel da consciéncia. Entretanto, ao contrario da gramatica de Chomsky, o habitus (i)
resume nao uma aptidao natural, mas social que é, por esta mesma razao, variavel através
do tempo, do lugar e, sobretudo, através das distribuicoes de poder; (ii) é transferz’vel para
vérios dominios de pratica, o que explica a coeréncia que se verifica, por exemplo, entre vérios
dominios de consumo — musica, desporto, alimentacao, mobilia e, tambe’m, nas escolhas
politicas e matrimoniais -— no interior e entre individuos da mesma classe e que fundamenta
os distintos estilos de Vida (LDi); (iii) é duravel mas nfio estético ou eterno: as disposicoes
sao socialmente montadas e podem ser corroidas, contrariadas ou mesmo desmanteladas
pela exposicao a novas forcas externas, como demonstrado, por exemplo, a propésito de
situacoes de migracao; (iv) contudo, é dotado de inércia incorporada, na medida em que o
habitus tende a produzir praticas moldadas depois das estruturas sociais que as geraram e na
medida em que cada uma das suas camadas opera corno um prisma através do qual as ultimas
experiéncias sao filtradas e os subsequentes estratos de disposicoes sao sobrepostos (dai o peso
214 HABITUS
desproporcionado dos esquemas implantados na infancia); (v) introduz um desfasamento e,
por vezes, urn hiato entre as determinacoes passadas que o produziram e as determinacoes
atuais que o interpelam: como “histéria tornada natureza”, o habitus “é aquilo que confere ‘as
préticas a sua relativa autonomia no que diz respeito as determinacoes externas do presente
imediato. Esta autonomia é a do passado, ordenado e atuante que, funcionando como capital
acumulado, produz historia na base da historia e, assim, assegura que a permanéncia no
interior da mudanqa faca do agente individual um mundo no interior do mundo” (SPi, 56)
Contra o estruturalismo, a teoria do habitus reconhece que os agentes fazern ativamente o
111m social através do envolvimento de instrumentos incorporados de construcao cognitiva; mas
tarnbérn afirma, contra o construtivismo, que estes instrumentos foram também eles proprios feitos
pelo mundo social (MPi, 175-177). O habitus fornece, a0 mesmo tempo, urn principio de sociacao
e de individuacao: sociacdo porque as nossas categorias de juizo e de acao, vindas da sociedade,
sao partilhadas por todos aqueles que foram submetidos a condicoes e condicionamentossociais
similares (assim podemos falar de um habitus masculino, de um habitus nacional, de um habitus
burgués, etc); individuacdo porque cada pessoa, ao ter uma trajetoria e uma localizacao finicas
no mundo, internaliza uma combinacao incomparavel de esquemas. Porque é simultaneamente
estruturado (por meios sociais passados) e estruturante (de acoes e representacoes presentes), o
, habitus opera como o “principio nao escolhido de todas as escolhas” guiando acoes que assumem o
caréter sistema’tico de estratégias mesmo que nao sejam o resultado de intencao estratégica e sejam
objetivamente “orquestradas sem serem o produto da atividade organizadora de um maestro” (SP1,
256). Para esta filosofia da acao disposicional, o ator economico nao é o individuo egoista e isolado
da teoria neoclassica, uma maquina computadorizada que procura deliberadamente maximizar
a utilidade na perseguicao de objetivos claros. E, antes, um ser carnal habitado pela necessidade
historica que se relaciona com o mundo através de uma relacao opaca de “complicidade ontolégica”
e que esta necessariamente ligado aos outros através de uma “conivéncia implicita” sustentado
por categorias partilhadas de percepgao e de apreciacao (MPi, 163; SSEi).
Retracar as origens filosoficas e o uso inicial do habitus por Bourdieu (2000) para dar
conta da ruptura economica e da desconexao social trazida pela guerra argelina de libertacao
nacional permite—nos clarificar quatro incompreensoes recorrentes sobre o conceito. Prirneiro,
o habitus nunca é a replica de uma (mica estrutura social, na medida em que é um conjunto
dinarnico de disposicoes sobrepostas em camadas que grava, armazena e prolonga a influéncia
dos diversos ambientes sucessivamente encontrados na Vida de uma pessoa. Em segundo lugar,
o habitus nao é necessariamente coerente e unificado, mas revela graus variados de integracao
e tensao dependendo da compatibilidade e do caréter das situacoes sociais que o produzirarn
a0 longo do tempo: universos irregulares tendem a produzir sisternas de disposicoes divididos
entre si, que geram linhas de acao irregulares e por vezes incoerentes. Terceiro, o conceito nao
esté menos preparado para analisar a crise e a mudanca do que esta para analisar a coesao e a
perpetuacao. Tal acontece porque o habitus nao esté necessariamente de acordo com o mundo
social em que evolui. Bourdieu (SPi, 62~63) nos adverte que deveremos “evitar universalizar
inconscientemente o modelo da relacao quase-circular da quase-perfeita reproducao, que é
plenamente valido apenas no caso em que as condicoes de producao do habitus sao idénticas
ou hornélogas as suas condicoes de funcionamento”. O fato de 0 habitus poder “falhar” e de
ter “momentos criticos de perplexidade e discrepancia" (MPi, 191) quando é incapaz de gerar
HABITUS 215
préticas conformes ao meio constitui urn dos principais impulsionadores de mudanca economica
e inovacao social — o que confere ‘a nocao de Bourdieu uma grande afinidade corn as concepcées
neoinstitucionalistas de racionalidade limitada e de preferéncias maleaveis, como na teoria da
regulacao (BOYER, 2004). Por filtimo, o habitus nao é um mecanismo autossuficiente para a
geracao da acao: opera como uma mola que necessita de um gatilho externo e 11:10 pode, por-
tanto, ser considerado isoladamente dos mundos sociais particulates, ou “carnpos”, no interior
dos quais evolui. Uma anélise completa da pratica requer uma tripla elucidacao da génese e
estrutura sociais do habitus e do campo e das dinamicas da sua “confrontacao dialética” (MPi).
' Embora filésofos corno Charles Taylor, Jacques Bouveresse 6 John Searle tenham discutido a
elaboracao de Bourdieu sobre o habitus na sua relacao com a filosofia da rnente, da linguagem e
do self, deve ser destacado que para Bourdieu a nocao é, em primeiro lugar e acima de tudo, um
modo estenogréfico de designar uma postura de investigacdo, a0 apontar um camjnho para
escavar as categorias implicitas através das quais as pessoas montam continuadamente o seu
mundo vivido, que tern informado pesquisas empiricas em torno da constituicao social de agentes
competentes numa gama variada de quadros institucionais. Assim, Suaud (1976) esclareceu a
formacao e a desestruturacao da vocacao sacerdotal na regiao francesa da Vendée mostrando
corno, durante 03 anos 1930, o seminario atuava em continuidade com a comunidade aldea
fechada para desencadear chamarnentos em massa, mas perdendo a sua capacidade para forjar
um habitus religioso robusto quando, por altura dos 8.1105 1970, a igreja cedeu a sua proeminéncia
simbélica a escola. Charlesworth (2000) captou a formacao e desdobramento de uma sensibi—
lidade operéria distintiva, criando siléncio e falta de clareza, nascida da incorporacao de uma,
experiéncia duradoura de desapossamento economico e de impoténcia politica numa pequena
cidade em declinio no sul de Yorkshire, na Inglaterra. Lehmann (2002) tracou o rnodo come as
disposicoes musicais inculcadas pelo treino instrumental se combinarn com disposicoes de classe
herdadas da famflia para determinar a trajetoria e as estratégias profissionais dos mi’isicos no
interior do espaco hierérquico da orquestra sinfonica. Wacquant (2003) dissecou a producao do
nexo de competéncias, categorias e desejos incorporados que compoem o boxe profissional corno
um oficio corporeo masculino no gueto negro americano, revelando que a feitura do habitus
pugih’stico acarreta r150 56 o dominio individual da técnica, mas, mais decisivarnente, a inscri—
cao coletiva na carne de uma ética ocupacional heroica no interior do microcosrnos do ginasio
de boxe. Estes estudos demonstram que a convocacao e o emprego dos esquemas cognitivos e
motivacionais que compoern o habitus é acessivel a observagao metédica. Em liltima analise, a
prova do pudim teorico do habitus deve consistir em comé—lo empiricamente.
Referéncias
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p. 17—41, jul. 2000.
BOYER, R. Pierre Bourdieu et la théorie de la regulation. ARSS, Paris, n. 150, p. 65—78, fev. 2004.
CHARLESWORTH, S. I. A Phenomenology of Working Class Experience. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000.
HUSSERL, E. Experience and Judgment (1947). London: Routledge and Kegan Paul, 1973.
LEHMANN, B. L’Orchestre dans tous ses éclats: ethnographie des formations symphoniques.
Paris: La De’couverte, 2002.
216 HABITUS
MERLEAU—PONTY, M. Phenomenology ofPerception (1947). London: Routledge, 1962.
SUAUD, Ch. La vocation: conversion et reconversion des prétres rumux. Paris: Minuit, 1976.
WACQUANT, L. Body and Soul: Notebooks ofan Apprentice Boxer (2000). New York: Oxford University
Press, 2003. V
Central 210 argumento desenvolvido no livro Les héritiers, a nocao de heranca cultural
foi objeto de intensa e minuciosa elaboracao em diferentes obras de Pierre Bourdieu. Ela
,ancora hipéteses e demonstracées em A reproducao e nos escritos das décadas de 1960 e
1970 sobre os grupos camponeses da Argélia e do Béarn. Desempenha urn papel central na
anélise proposta em As regras do arte e conclui o inventario do sofrimento contemporaneo
apresentado em A mise’ria do mundo
A nocao oferece instrumentos para examinar o problema da tran5111issao intergeracional
da cultura que, atr1bu1da a processos de socializacao e aprendizagem 11a antropologia classica
e contemporanea, foi apenas raramente tornada como objeto de estudos em 51. Na obra de
Pierre Bourdieu, ela constitui um dos organizadores do programa de pesquisa encarregado
de examinar as condicoes que presidem a permanéncia e a mudanca social. Mobilizar a ideia
de heranca cultural nessa discusséo representou uma ruptura em diferentes niveis com os
' modos tradicionais de pensar a transmissao e sua relacao com a organizacao social.
Apresentada de maneira explicita e mesmo brutal no titulo de Les he'ritiers, a nocao per—
mitiu mostrar que a reproducao social nas sociedades contemporaneas nao dependia apenas
da transmissao de bens materials de uma geracao a outra, mas estava subordinada cada vez
mais a transmissao de um patrimonio cultural. A0 mesmo tempo, ao identificar a escola
como instancia encarregada de definir o maior ou menor valor dos diferentes patrimonios
transmitidos pelas familias, como demonstrado em A reproducdo, revelou a contribuicao
particular dada pelo Estado a reproducao social. Por fim, ao explicitar o ponto de vista dos
que estao submetidos aos processes de transmissao, sejarn eles camponeses do Béarn, es~
tudantes das Grandes Ecoles ou escritores, expos as contradicoes e tensoes que definem os
processos de transmissao nas sociedades diferenciadas, nas quais herdar significa em boa
parte se distinguir dos pals e as vezes ultrapassé-los.
Discutidas a luz de duzentos anos de debates sobre o controle da heranca dos bens
materials que, atrelados a lutas p01 igualdade e pela neutralidade do estado em relacao aos
interesses privados, haviam produzido na Franca uma das legislacées mais restritivas da
Europa (BECKERT, 2008), tais revelacoes representararn urn abalo de proporcoes significativas
‘Referéncias .
BECKERT, I. Inherited Wealth. Princeton: Princeton University Press, 2008
BOURDIEU, P. L’Invention de la vie d artiste. ARSS, n. 2, p. 67 93, 1975.
BOURDIEU, P.; PASSERON, I.—C.; SAINT MARTIN, M. Rapport pe’dagogique et communication.
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LAREAU, A. Unequal Childhoods: Class, Race and Family Life. 2. ed. Berkeley,lCA: University of
California Press, 2011.
MAUGER, G. Election parentale, élection scolaire In: HUERRE, P.; RENNARD, L. (Orgsu) Parents
et adolescents. Paris: ERES, 2003. ‘
m. HISTORIA
Christophe Charla
HISTORIA 223
refletiu a partir de trabalhos de historiadores que, em seu entender, tinham afinidade com
suas proprias orientacoes. Neste caso, pode-5e citar seu longo posfécio para o livro de Erwin
Panofsky (1967); as pesquisas de historia e de historia literéria mobilizadas ou desenvolvidas
para o livro Les régles de l’art (1992); a analise do contexto historico da emergéncia da pin-
tura moderna com a figura de Manet (BOURDIEU, 1987); a crise universitéria e cultural, na
Alemanha, analisada por Fritz K. Ringer, autor em que Bourdieu se apoia no livro L’Ontologie
politique de Martin Heidegger; o nfimero da revista ARSS (1995) on do Le Bulletin de la
Socie’te’ d’Histoire Moderne et Contemporaine (SHMC, 1999), nos quais entabula dialogo
critico com os historiadores (BOURDIEU, 1995 ~ nesse mesmo nfimero ha artigos de Carola
Lipp, Hartmut Kaelble, C. Charle e E. Francois); os trabalhos e cursos sobre o Estado que se
baseiam em uma importante bibliografia e em reflexoes histéricas tomadas de empréstimo a
diversos conteX-tos. Do mesmo modo, ARSS publicou numerosos artigos escritos por historia-
dores e sociologos da area da historia para mostrar com maior nitidez a complementaridade
e a convergéncia dessas duas ciéncias sociais, separadas artificialmente pela histéria e pela
organizacao universitérias, destacando-se as contribuicbes de Maurice Agulhon, Michael
Baxandall, Enrico Castelnuovo, Roger Chartier, Robert Darnton, Eric Hobsbawm, Hartmut
Kaelble, Iiirgen Kocka, Ernest Labrousse, Carl Schorske, etc. Nessa prética, Bourdieu situava—se
1130 56 na longa tradicao de Durkheim (L’Evolution pédagogique en France, 1938), de Max
Weber (Econ'omie et socie’té, 1971), de Marc Bloch (La sociétéfi’odale, 1939—1940, verdadeira
sociologia historica das sociedades medievais), mas também esforcava~se por lutar contra
“o confinamento escoléstico” em disciplinas e subdisciplinas que nao cessou de se acentuar, ’ l
desde 05 anos 1960, corn 0 forte crescimento do nt’lmero de pesquisadores e de professores
universitérios, e em razao do maior conforto de se criarem territorios confinados, ao invés
de se abordarem grandes questoes em ampla escala ou na longa duracao. Em seu entender,
o conhecimento da historia social de cada disciplina era a condicao prévia para controlar
rnelhor os impensados transmitidos pela tradicao e livrar-se dos falsos debates e dos falsos
conceitos herdados do passado: “Por conseguinte, somente um uso reflexivo da historia pode
nos dar a liberdade em relacao a historia, pode nos fornecer algurnas possibilidades de 1150
veicular conceitos obnubilados por sua historicidade” (BOURDIEU, 1999, p. 18).
A despeito do desaparec‘unento de Bourdieu e do inacabado de alguns de seus filtimos
canteiros de obras em que a dimensao historica estava particularrnente presente, a renovacao
da histéria global e transnacional entre os historiadores do mundo inteiro e o atrativo crescente
da sociologia historica entre alguns sociélogos das jovens geracoes confirmam que o projeto
de convergéncia da historia e da sociologia, preconizado por Bourdieu, continua mantendo
grande atualidade cientifica e, até mesmo, politica.
Referéncias
BOURDIEU, P. Sur les rapports entre la sociologie et l'histoire en Allemagne et en France. ARSS,
11. 106—107, mars 1995.
BOURDIEU, Pt Les professeurs de I’Université de Paris a la veille de mai 1968. In: CHARLE, C.;
FERRE,;R. (Orgs). Le personnel de l’enseignement supérieur en France aux XIX" etXXé siécles.
Paris: CNRS, 1985.
224 HISTORIA
BOURDIEU, P. Prefécio. In: PANOFSKY, E. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris:
Minuit, 1967.
BOURDIEU, P. L’Institutionnalisation de l’anomie. Les Cahiers du Muse’e National d ’Arz‘ Moderne,
p. 6a19,juin 1987.
BOURDIEU, P. Les historiens et la sociologie de Pierre Bourdieu. Le Bulletin de la S.H.M.C., 1999.
Editada em 1984, a obra foca o sistema universitério francés nas duas décadas de expansao
ocorridas até 03 anos 1970. Resultado de mais de 20 anos de pesquisas, insere-se em uma
Iinhagem de analises do campo intelectual, debatendo as relagoes subjacentes a0 inconsciente
cientifico que regula a prética e o poder dos professores como produtores simbélicos especi-
ficos. Ao trazer a tona tal universe, arrisca-se a tomar como objeto seu préprio mundo, sua
posigao e as relagées ai geradas, para o qual mobiliza as ferramentas de objetivagao de um
campo composto por diferentes espécies de capital que forjam a estrutura de distribuigao
de poderes particulares constitutivos do principio das tomadas de posigao tanto intelectuais
quanto politicas. .
Nessa diregao, duas maneiras distintas de leitura do livro emergemf‘A primeira, relativa
a construgao empirica do sistema universitario, realiza a distribuigao das faculdades — Cién-
cias, Letras, Direito, Medicina — conforme a posieao de cada urna na estrutura universitéria,
por meio da classificaeao de poderes e de posigées ali constituidos, bem como se dedica a0
ordenamento do espago das disciplinas no interior das faculdades de Letras e de Ciéncias
Humanas. Demonstrando as mudangas morfologicas das faculdades e das disciplinas, visa
apreender as formas, os niveis da legitimidade e do poder universitérios e seus principios de
funcionamento e de transformaeao em interface com o campo do poder como principio deter-
minante do espago social. A segunda refere-se ao poder de cientificidade da sociologia como
mecanismo de objetivagao pertinente e vélido de uma “instituigao socialmente reconhecida
como fundamentada para operar uma objetivagao que aspira a objetividade e a universalidade”
(CD, 144), inscrevendo a abordagem nas preocupagoes do autor sobre a natureza do métier
cientifico. Vista “como urn experimento sociologico a propésito do trabalho sociolégico”, o
livro fornece principios para a investigaqao critica e teérica, fundada na pesquisa empirica,
bem como para a defesa da autonomia do campo intelectual em relagao as forgas externas,
sejam politicas, midiéticas ou religiosas.
A discussao empreendida baseia—se no poder da Sociologia como socioanélise a0 produzir
ferramentas de objetivagao que podem neutralizar os vieses entre o observador sociolégico
e seu objeto, visto que o observador ocupa uma posieao nesse universe de investigagao (WA-
' CQUANT, 1989). A0 se referir a sua publicagao, Bourdieu afirma que o trabalho causou~lhe
mais problemas do que qualquer outro, uma vez que se corria o risco de reduzir ao terreno
da luta no interior do campo universitario uma anélise cuja finalidade era objetivar esse
Referéncia
WACQUANT, L'. For a Socio—Analyses of Intellectuals: on Homo Academicus. Berkeley Journal of
Sociology, Symposium on the Foundations of Radical Social Science, v. 34, p. 1-29, 1989.
Em 1965 Bourdieu publicou o artigo “The Sentiment of Honour in Kabyle Society”, que,
corn modificacoes, foi incorporado a0 livro Esquisse d’une the’orie de la pratique, pre'ce’dé
de Trois études d’ethnologie kabyle (1972). Esse artigo é crucial na elaboracao dos conceitos
de habitus, estratégias de reproducao e capital simbélico. Seu objetivo é explicar as condutas
de honra na sociedade cabflia. Sua logica bésica é o desafio e a manutencao do grupo: o homem
de honra sabe responder aos desafios e guardar a responsabilidade de seu grupo. Isto se aplica
tanto aos ataques como aos dons: um dorn é um desafio ao qual é preciso responder por meio
de um contradom. Para manter esse jogo de intercémbios, o homem de honra ha de saber se _
controlar e responder no momento adequado com os meios adequados. Bourdieu parte do
método estrutural de Levi-Strauss para recompor o complexo espaco de regras e oposicoes que
regem os intercambios de honra. Porém, realiza duas transformacoes fundamentais frente a0
método estrutural. Em primeiro lugar, constitui como principio das condutas de honra um
ethos interiorizado pela socializacao, jé integrando o conceito de habitus como essencial para
entender as préticas. Em seguida, afirma que as condutas de honra nao podem ser entendidas
como simples continuacao das regras, mas sim como estratégias de reproducao mediante as
quais os grupos mantém e acumulam seu capital simbélico: sao jogadas préticas, realizadas
na urgéncia 6 na incerteza, que so podem ser compreendidas se situadas novamente no con-
junto das estratégias de reproducéo. Essas transformacoes sao bésicas para a elaboracao de
sua teoria da prética — dai Bourdieu integrar esse artigo em Esquisse d’une the’orie de la
pratique e utflizar muitas de suas analises em Le sens pratique (1980).
Referéncia
BOURDIEU, P. The Sentiment ofHonour in Kabyle Society. In: PERISTIANY, I. G. (Ed). Honour and
Shame: The Values ofMedz’termnean Society. Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1965. p. 191-241.
'1 1 4. HY5TERESIS
Cristina Carta Cardoso de Medez’ros .
HYSTERESIS 7—29
HS. IDEOLOGIA
Roberto Griin
Em diversos textos Bourdieu deixa claro a sua aversao ao conceito marxista de ideologia
(MP, 205). A ideologia é um sistema de ideias que pode ser discutido enquanto tal e também
como forma de apreensao, de denegagao ou, principahnente, de construgao da realidade e
do mundo. Nesse sentido podemos anotar trabalhos importantes do autor e de seu primeiro
circulo de colegas, come “A produgao da ideologia dominante”, um dos principais artigos da
fase inicial de ARSS, posteriormente reeditado como livro (PID). Nessa maneira de entender
o conceito, Bourdieu se aproxima e se inspira em historiadores dos Annales, como Duby
(1978) e Veyne (2007).
Para Bourdieu o conceito de ideologia é muito problematico no seu uso mais frequente,
quando é apresentado como o fundamento filtimo da dominagio social. Ele faz deslocar para
o terreno do racional e do logico uma realidade que deve ser buscada nas formas em que a
ordem social se inscreve no corpo e na fisiologia dos individuos, no habitus que a socializagao
produz nos individuos e grupos. Consequentemente, aquela nogao mais comum de ideologia
é um mau instrumento heuristico, pois torna o investigador incapaz de entender as razoes
da submissao e as reais possibilidades de revolta diante de situagoes que podem parecer
impossiveis de serern vividas quando apreendidas apenas pelo intelecto.
Buscando inspiraqao na antropologia da Argélia, a dominagao masculina é registrada
come 0 arquétipo, como 0 fundamento filtimo de todas as dominagoes sociais (DM). 0 texto
apresenta sistematicamente as ideias do autor sobre como se faz a inscrigao da dominagao
no corpo, a enorme dificuldade de combater os efeitos desse “assinalamento”, bem como os
Iimites muito estreitos das estratégias de tratar a dominagao como “ideologia” no sentido
marxista. Ao tempo em que Bourdieu escrevia a primeira versio do texto, sua colaboradora,
Mud-Dreyfus (1996), desenvolvia os argumentos e mostrava essas circunsténcias para a
Franga no governo de Vichy 6 na ocupagéo nazista.
Referéncias
DUBY, G. Les trois ordres ou l’imaginaire duféodalisme. Paris: Gallimard, 1978.
230 IDEOLOGlA
MUEL—DREYFUS, F. Vichy etl éternelféminin: contribution a. une sociologiepolitique de l ordre
des corps. Paris: Seuil, 1996.
VEYNE, P. Quand notre monde est devenu chrétien. Paris: A. Michel, 2007.
115. ILLUSIO
Andre’a Aguiar
E sobretudo em seus filtirnos trabalhos, em particular aqueles publicados nos anos 1990
— Réponses (1992), Raisons pratiques (1994) e Meditations pascaliennes (1997) —, que
Bourdieu passa a adotar de forma mais regular a nocao de illusio, em substituicao ‘aquela de
“interesse”. A referéncia ao termo — cuja origem vem da raiz ludus (jogo) -— ele extrai da obra
de Huizinga, Homo ludens, essai sur lafonction sociale du jeu (1938), onde a illusio surge
associada a ideia de estar no jogo, estar envolvido no jogo, levar o jogo a sério. Com essa opcao,
o autor afirma seu propésito de demarcar uma distancia Clara das interpretacoes que tomam
o interesse como universal, atemporal e trans—histérico — proprias das visoes economicistas e
utilitaristas —, circunscrevendo seu significado e sentido a universes sociais delimitados, os
campos. Cada campo — espaco social relativamente autonomo, caracterizado por disputas entre
seus participantes, que giram em torno de determinados capitais - “requer e aciona urna forma
de interesse, urn investimento, urna illusio especifica ’,(R 93), que expressa o reconhecimento
tacito de seus participantes no valor do que ali esta em jogo. Segundo Bourdieu, a nocao de
illusio representa de forma mais rigorosa, e portanto, mais fiel, o sentido que ele sempre atribuiu
aquela de interesse: “Quando e11 digo interesse [...] me refiro sempre a interesse especifico, um
interesse socialrnente constituido e que so existe em relacao a determinado espaco social, no
qual certas coisas sao importantes e outras nao” (BOURDIEU,1989, p. 14).
De modo similar, também a ideia de investimento tern sua abrangéncia ampliada para além
da perspectiva economica, na medida em que a illusio reforca seu sentido de crenca, de envel-
vimento, de empenho no jogo (LD, 94). Investir e atuar nas disputas concorrenciais que estao
a base da dinarnica de funcionamento de um campo — travadas em torno de capitais: recursos
simbolicos ou objetivados interpretados como atrativos — significa reconhecer ali alvos dignos
de serem perseguidos. Pertencer aquele universo e dele participar é, portanto, compartilhar da
mesma illusio, da crenca fundamental em seu interesse. E essa forma de encantamento ~ que
decorre de um reconhecimento irnediato — que marca a caracteristica essencial da perspectiva
de Bourdieu sobre a nocao de investimento: mais como produto e principio das acoes praticas
préprias a um espaco social delimitado, e menos como resultante de um calculo racional que
prevé lucros. “Por investimento eu entendo a propensao a agir que nasce da relacao entre 11111
~ campo e um sistema de disposicoes ajustadas a ele, um sentido do Jogo, das apostas em jogo, que
implicam, ao mesmo tempo, urna inclinacao e uma atitude a participar do )0go, ambas social
e historicamente constituidas, e nao universalmente dadas” (R, 94).
O que a nocao de illusio reflete, como interesse em um campo, é uma cumplicidade e 0
ajustamento entre as estruturas mentais dos sujeitos (seu habitus 011 suas disposicoes) e as
estruturas objetivas (os proprios campos, suas regularidades, os alvos em jogo, as disputas),
manifestados numa tendéncia a acao, ao investimento, que nasce desse acordo. “A illusio é essa
ILLUSIO 231
relagao encantada com um jogo que é o produto de uma relagao de cumplicidade ontologica
entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaqo social” (RP, 151). Compartilhar
da mesma illusio significa ter em comum sistemas de expectativas, de esperangas, principios
de classificagao, avaliagao, enfim, disposigoes, que se adequam e se ajustam as regularidades de
um universo social especifico. Sao essas regularidades — e 1150 regras explicitas que moldam
o habitus dos sujeitos, na medida em que sao incorporadas e resultam em disposigées que,
-
por sua vez, traduzem urn sentido e dominio prético daquele jogo e de seu funcionamento.
Essa espécie de saber pratico favorece antecipagées justas sobre as evolugées que ali 56 die:
as estratégias dos sujeitos, suas maneiras de agir e investir, orientadas por um sentido do
jogo, sao antecipagoes praticas das tendéncias imanentes do campo, jamais enunciadas sob
forma de previsées explicitas.
E nesse sentido, de reconhecimento e adesao imediatos, refletidos nas agoes praticas,
que a illusio nao passa pela consciéncia: “A illusio nao é da ordem dos principios explicitos,
de teses que apresentamos ou defendemos, mas da aeao, da rotina, de coisas que fazemos
porque sempre fizemos as’sim” (MP, 147). A imersao na dinamica do campo é mais préxima
de uma ilusao na qual 0 sujeito nao se vé como é, uma adesao que se dé sem seu consenti-
mento intelectual. Essa ilusao necessaria sobre si mesmo e sobre o rnundo decorre exata-
mente da adesao ao conjunto de dogmas implicitos, crengas fundamentais, enfim a mesma
doxa, que veicula os valores daquele universe, determina o que é importante, as apostas
em jogo, ou o que deve ser negligenciado. Dai as agoes, os investimentos e as disputas ali .
travadas — que podern parecer desprovidas de senso a agentes externos a0 campo - serem .
tomadas como evidentes, naturais, familiares, como “o que se faz”, por individuos total-
rnente imersos naquelas praticas 8 Has logicas que as sustentam. Esse modo de ser, estar
e agir no jogo distingue quern dele participa de outros, que lhe sao indiferentes, ou seja, a
forma de interesse que funda tal adesao é o estado oposto da indiferenga, da nao motivagao,
do nao reconhecimento. “A illusio é 0 oposto da ataraxia” — que significa 0 estado de 1150
turbarnento, de nao inquietagao ~, on seja, é o fato de estar investido (BOURDIEU, 1989,
p. 12). Agentes externos a logica de um campo sao indiferentes a0 que ali se passa porque
nao reconhecem alvos a investir, 1150 se sentem motivados, turbados pelas disputas em
questao, nao atribuem valor ‘as apostas em jogo e tampouco conseguem identificar as
hierarquias que tais concorréncias acabam por definir.
Mas o termo “illusio”, alérn de frequentemente acompanhado das nogoes de interesse e
investimento, surge associado ainda ‘a ideia de libido: “a nogéo de interesse deve ser subs—
tituida pela nogao de illusio, ou de investimento, ou mesmo de libido” (BOURDIEU, 1989,
p. 10). Segundo o autor, a forma originéria da illusio é o investimento no espago doméstico.
E na esfera familiar que tern inicio o processo gradual de socializagao que transforma pul-
sées em interesses especificos; a transformagao da libido originéria, indiferenciada, prépria
da organizagao narcisica, em libido socialmente constituida, especifica e orientada para o
outro. “O trabalho de socializagao especifica tende a favorecer a transformagao da libido
originaria, isto é, dos afetos socializados constitul’dos no campo doméstico, em urna ou
outra forma de libido especifica, gragas, sobretudo, a transferéncia dessa libido em favor
de agentes ou instituigoes pertencentes a0 campo...” (MP, 237). A aquisigao de disposigoes
especificas, ajustaveis a um ou mais campos, depende, entre outras coisas, das disposigoes
232 ILLUSIO
primarias, do quanto podem ser mais ou menos distantes das exigéncias e regularidades
proprias aqueles espaeos. E em nome da compreensao dessa “génese do investimento em
um campo de relagoes sociais” que Bourdieu faz apelo a uma necessaria uniao de esforgos
entre os campos da sociologia e da psicanélise.
Referéncias
BOURDIEU, P. Intérét et désintéressement. Cours du College de France a la Faculté d’Anthropologie
et de Sociologie de l’Université Lumiere Lyon 2, les 1“et 8 décembre 1988. Cahiers de Recherche du
GRS (Groupe de Recherce sur la Socialisation), Lyon, 11. 7, 1989.
HUIZINGA, I. Homo ludens: essai sur lafonction sociale du jeu (1938). Paris: Gallimard, 1951.
Ver: Trajeto’ria
HS. INCONSCIENTE
Paula Montera
INCONSCIENTE Z33
Referéncia
LEVI-STRAUSS, C. Histoire et dialectique. In: . La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
119. INCORPORAQAO
no. INCULCAcAo
Ver: Arbitrdrio cultural; Sistema de ensino
234 INCORPORACAO
da Escola que, independentemente de qualquer mensagem explicita, dota os individuos de
pretensoes estatutarias que levam a recusar as opinioes pré~fabricadas on a autoridade dos
porta~vozes, além de “reivindicar uma opiniao pessoal" em matéria de politica, moral e religiao.
Finalmente, as transformacoes da estrutura das classes sociais e dos modos de reproducao
atribuiram importancia creécente ao capital escolar. Pode~se compreender, nessa perspectiva,
a predominancia assumida pelas formas “brandas” de autoridade que tendem a eufemizar as
relacées de forca, dissimulando-as por trés da celebracao da cooperacao, do intercambio e da
criatividade individual. O que esta em causa é a aparicao de um modo de dominacao onde
a competéncia e a racionalidade substituiram a obediéncia, o conformismo, a autoridade.
Dito isso, a forca dos coletivos continua sendo muito importante, mesmo que venha a en-
veredar por vias menos solenes e mais discretas. A modalidade da adesao pode bem ser feita
mediante formas mais pessoais, como escolha puramente individual. 0corre que a integracao
das classes dominantes se efetua através das escolas de prestigio, das instituicoes de elite (La
noblesse d’Etat, 1989), dos casamentos no seio de grandes famflias, dos clubes seletos, etc.,
contribuindo assim para a reproducao dessas classes, cujos membros podem nutrir o sentimento
de seguir seus sentimentos pessoais. Por contraste, a demolicao dos coletivos associados ao
Estado social, descrita ern La misére du monde (1993), teve o efeito de privar os membros das
classes populares de referéncias simbélicas e de precipita~los ern um isolamento, ao qual seria
inconveniente atribuir o termo “individualismo”. A unica forca de transformacao social para
os dominados é a classe mobilizada (oposta a classe no papel, para o teérico).
A relacao do individuo com o grupo é uma questao que exige ser tratada de maneira empirica
e 1150 metafisica. Para Bourdieu, assim como para Durkheim, cada individuo é duplo: por um
lado, pessoa singularizada por um corpo limitado e perecivel; por outro, membro de uma Vida
coletiva da qual participa e que lhe proporciona reconhecimento, estima, identidade oficial e
publica. Os individuos singulares “participam da eternidade e da ubiquidade do grupo, para
o qual contribuem a fazer existir como algo permanente, onipresente, transcendente” (MP,
287). O ritual regulamenta as relacoes entre os dois aspectos: “O rito de investidura existe para
tranquilizar o impetrante sobre sua existéncia enquanto membro de pleno direito do grupo,
sobre sua legitimidade, rnas também para reassegurar o grupo sobre sua prépria existéncia
como urn grupo consagrado e capaz de consagrar” (MP, 287). Mesrno que tenha aparéncias
de transcendéncia, o grupo existe apenas através das crencas e expectativas dos membros;
portanto, ha diversos graus de integracao, assim como de crenca. A heranca implica a pre—
senca do grupo que recorre ao herdeiro, cujo desejo consiste em herdar. Bourdieu designa
por capital simbélico essa forma de capital acumulada pelo grupo e que proporciona valor,
legitimidade, razao de ser a seus membros. A importancia desse capital varia com 0 volume
dos capitals possuidos (economico, cultural; social), reproduzindo a sua maneira a desigual
distribuicao desses capitais: os dominantes sao também aqueles que detém mais valor social,
reconhecido socialmente. E na sociedade que se encontra o fundamento derradeiro do valor
que arranca os individuos da insignificz‘mcia e da arbitrariedade.
Como analisar sociologicamente os agentes concretos? Deve~se comecar por se livrar da
ilusao nominalista que consiste em partir do individuo singular considerado como o unico
verdadeiramente real, “individuo empirico” percebido na experiéncia ordinaria e dotado
‘ de um numero indefinido de caracteristicas. Em vez de propor uma espécie de decalque
lNDIVlDUOI-SOCIEDADE 235
“empreendimento, alias, infrutifero”, o conhecimento objetivo consiste em promover prim»
cipios de inteligibilidade. Para retomar a terminologia de Homo academicus (1984), pode-se
dizer que “o individuo epistémico” é metodicamente construido pela ciéncia, gracas a selecao
e a construcao de certo nfimero de variéveis dotadas de uma grande densidade informativa
e de um elevado valor explicativo (por exemplo, origem social, sexo). Salvo a limitar~se a
“enumerar os fenomenos”, como dizia Kant, o sociélogo n50 pode evitar a construcéo de
classes de individuos relativarnente homogéneas e baseadas no real. E na obra La distinction
(1979) que se encontram as explicacoes mais detalhadas sobre esse ponto. Em urna “classe
construida”, as variéveis 11510 $510 justapostas, mas formam urn sistema em que a significacao
de cada uma depende da relacao com as outras. Ao perguntar qual é a parte da profissao,
sexo, religiao nesta ou naquela prética, corre—se o risco de formular uma pergunta artificial,
corno faz a anélise multivariada que pressupoe a independéncia de cada variével da qual
ela pretende isolar a eficacia (grandes patroes e intelectuais ilustres tern frequentemente a
caracten’stica “nascido em Paris”, “estudante de Grandes Ecoles”, etc.). A partir do conjunto
das propriedades pertinentes, trata-se de construir uma “posicéo” que so adquire sentido em
determinado espaco, jé que é precisamente esse espaco que determina a natureza e a forca
das propriedades: o sociélogo nao impoe uma grade intemporal, mas planeja um conjunto
de posicoes diferenciais que é um produto historico. A trajetoria é a sucessao das posicoes
ocupadas, posicoes que podem reunir trajetérias ascendentes, descendentes, etc. Através dessas
posicoes, o que esté em causa é 0 volume e a natureza dos capitais possuidos que permitem
a “persisténcia no set” (social) e a reproducao da posicao.
122. INTELECTUAIS
Christophe Charle
236 INTELECTUAIS
dominados (tema dos “intelectuais organicos” em Gramsci; dos “caes de guarda” em Nizan;
dos intelectuais engajados ou “companheiros d'e estrada” em Sartre; ou dos intelectuais co—
munistas “a servico do Partido”). As pesquisas empreendidas por ele e seus colegas sobre os
estudantes, aprendizes intelectuais, o convenceram da multiplicidade dos fatores que entram
em jogo nas tomadas de posicao, no interesse on no desinteresse relativamente ao compromisso
politico ou ideolégico entre os jovens (ou menos jovens) intelectuais. As mobilizacoes dos
estudantes por ocasiao da Guerra da Argélia (1954~1962) on em torno dos acontecimentos
de Maio de 1968 demonstraram o quanto as sociologias anteriores on as analises politicas
classicas a priori sao insuficientes quando aplicam esquemas classistas ou politico-ideolo-
gicos, ou recorrem a tipologias psicossociolégicas. Bourdieu pretende tambérn reagir contra
a visao “romantica” ou heroica que ressurge com a temética, na moda durante 05 anos 1960,
do conflito de geracées on da rejeicao das instituicoes, mobilizada nos trabalhos da sociologia
norte—americana sobre as novas formas de engajamento dos intelectuais, jovens ou menos
jovens, a proposito de 1968. Para sair dessas aporias e simplificacoes, deve-se reconstituir com
paciéncia a rede das relacées entre os grupos e o espaco estrutural do campo intelectuai que
orientam as opinioes preconcebidas. Convém, igualmente, produzir uma microssociologia
das trajetorias e do habitus em conflito para analisar plenamente os modos de compromisso
dos intelectuais em uma dada conjuntura on em determinado periodo. A Guerra da Argélia,
assim como as manifestacoes de Maio de 1968, forneceram uma ampla matéria para esse
tipo de analise que combina corte estrutural e historia genética. Apesar de testemunha e ator
dessas crises que provocaram uma profunda divisao entre os intelectuais franceses, Bourdieu
faz seu balanco apenas posteriormente, em particular no livro Homd academicus (1984) e
em Esquisse pour une auto~analyse (2004), no que tange a Guerra da Argélia.
Reconcfliar a abordagem individual em profundidade com a perspectiva coletiva; resenhar
os invariantes gerais e as variacoes peculiares aos diversos grupos ou subcampos (professores
universitarios, intelectuais “livres”, jornalistas, artistas, etc); reposiciona-los nas conjunturas
histéricas especificas (a crise social e politica, na Franca, em torno de 1848, do ponto de vista
de Flaubert; no momento do Caso Dreyfus, 1894-1906; on nas décadas de 1930-40) ~ (OP; RA;
CHARLE, 1990); Sapiro, 1999; reencontrar correspondéncias trans—historicas entre determina-
das configuracoes homélogas de opinioes preconcebidas, ou de reacées sociais e ideologicas
de alguns tipos de intelectuais, sem reduzi—los a simples porta—vozes de “interesses de classe”
ou de “ideologias” - serao esses os objetivos constantes das analises teoricas, assim como dos
estudos empiricos empreendidos por Bourdieu e por seus discipulos a respeito dos intelectuais.
A definicao abstrata e sociolégica — “fracao dominada da classe dominante”, proposta
em 1971 e desenvolvida em 1980 (BOURDIEU, 1971, 1980) —, assim como os estudos empiricos
aprofundados sobre intelectuais ilustres, tentam sustentar as duas pontas desse programa
de pesquisa. Definir os intelectuais como “fracao dominada da classe dominante” implica
situa-los no espaco mais amplo do campo do poder, avaliar seu grau de autonomia e de
unidade relativas, determinar as linhas de clivagem variéveis segundo as relacoes entre as
diversas espécies de capital — economico, cultural, simboiico — em determinada sociedade. A0
mesmo tempo, conve’m estar atento aos modos de designacao e de representacao dessa fracao
segundo os momentos historicos e as sociedades, sob pena de extrapolar indevidamente de
um caso particular (aqui, o francés) para outros casos da Europa on do mundo. As conotacoes
INTELECTUAIS 237
diferentes do termo “intelectual”, segundo as culturas politicas, sua aparicao diferenciada de
acordo com os paises e as épocas, a divergéncia de seus equivalentes, constituem importan-
tes indicadores para situar os intelectuais em relacao ao campo do poder e as outras classes
sociais, assim como para compreender as linhas de corte entre eles, retraducao, segundo
cada caso, de clivagens religiosas, sociolégicas, territoriais, politicas, etc. A experiéncia da
Argélia e da ambiguidade dos intelectuais autéctones em uma sociedade colonial e rnarcada
fortemente pela presenca do 1515; o conhecimento indireto da sociedade brasileira através da
tese de Sergio Miceli, elaborada no ambito do Centro de Sociologia Europeia (MICELI, 1981); a
leitura e a interpretacao aprofundada dos filésofos e sociélogos alemaes (Cassirer, Heidegger,
Max Weber); a necessidade de se situar perante a sociologia empirica dominante no mundo
universitério, oriunda dos Estados Unidos e defendida vigorosamente por alguns sociologos
concorrentes ou adversarios de Bourdieu — tudo isso acabou por torna-lo, bem cedo, sensivel
a0 interesse e as dificuldades do rnétodo comparative para esse tipo de tematica.
As analises que Bourdieu dedicou a alguns grupos ou personalidades forarn felizmente
completadas pelos numerosos trabalhos que seu método e suas sugestoes suscitararn em seus
estudantes, diretos ou indiretos, na Franca e no exterior. Todo esse corpus teérico e empirico
permite esbocar uma verdadeira historia social e estrutural dos intelectuais, em urn periodo
de média e longa duragao, nao so no ambito francés (RA; CHARLE, 1998; BOSCHETTI, 1985;
SAPIRO, 1999, 2011; PINTO, 1995), mas também em escala parcialmente europeia (OP; CHARLE,
1996; CASANOVA, 1999; SAPIRO, 2009; BOSCHETTI, 2010) e, até mesmo, internacional. Essa
abordagern historico-sociologica permite que Bourdieu e aqueles que se inspiram ern sua obra
escapem ao eterno presente dos ensaios polémicos sobre os intelectuais ou a sociologia depre-
ciativa e carente de perspicacia que caracteriza a maior parte desses escritos de circunsténcia.
Na filtima- fase de sua obra, na medida em que sua notoriedade o levava a implicar~se
em novas formas de engajamento, Bourdieu tentou igualmente definir uma nova figura do
intelectual, baseada nessas analises teéricas e historicas, embora adaptada a nova conjuntura
historica das décadas de 1980 e 1990, marcadas pelo que ele designou como a restauracao
conservadora e neoliberal. Esta, tanto na Franca quanto em urna grande parte do mundo,
redundou em urn novo ataque aos intelectuais, como a Franca tern conhecido periodicarnente,
e no advento de figuras que lhes fazem concorréncia, submetidas aos imperativos do mercado
e do poder, para defender e ilustrar a ordem estabelecida: intelectuais midiaticos, jornalistas,
think tanks, peritos, etc. Diante dessa nova alianca entre poder, dinheiro e saber, Bourdieu
reafirmou tanto em seus livros e em suas intervencées quanto em sens escritos militantes a
necessidade de criar um intelectual coletivo, apoiado nos conhecimentos das ciéncias sociais
que estariam a servico do ideal universalista das Luzes e da defesa dos dominados, alicerce,
alias, da tradicao do intelectual de esquerda na Franca. Com efeito, na nova situacao politica
e internacional, as formas antigas, pontuais ou partidarias do compromisso deixaram de ser
suficientes pela seguinte razao: o que esta em jogo é a prépria autonomia dos intelectuais e a
apropriacao do saber pelos diferentes grupos sociais em luta. Eis ai a explicacao para o texto
que encerra o livro Les régles de l’art, “Pour un corporatisme de l’universel”; para a fundav
cao da associacao “Raisons d’agir”; para a publicacao de opfisculos militantes na colecao
que exibe esse mesmo nome —- ern particular, Sur la télévision (1996), que tem obtido
uma grande repercussao e suscitado numerosos debates midiaticos; para a necessidade
238 INTELECTUAIS
de conciliar ciéncia e compromisso, autonomia do pensamento critico e vinculo com os
movimentos sociais que resistem ‘as investidas das politicas neoliberais e autoritérias,
ameacando liquidar o restante do Estado~Providéncia (ver Contre-feux, 1998; e Contre~
feux 2, 2001); para a importfincia da presenca das ciéncias sociais no ensino médio, para
a defesa de um ideal aberto‘ de ensino superior como mola propulsora de emancipacéo e
de progresso social, além de espaco de formacao dos futuros intelectuais, para a fundacéo
com C. Charle, em 1992, da Association de réflexion sur les enseignements supérieurs et
la recherche (ARESER), assim como a publicacao de um livro coletivo (1997). Esse novo
combate dos intelectuais trava-se no plano 1150 so nacional, mas também internacional,
como pode ser observado em seu Interventions, science sociale et action politique (2002).
Referéncias
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BOSCHETTI, A. Sartre et Les Temps Modernes. Paris: Minuit, 1985.
'BOSCHETTI, A. (Org). L’espace cultural transnational. Paris: Nouveau Monde, 2010.
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Recherche de l’Ecole Normale Supérieure, v. 1, p. 726. 1971.
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Paris: Minuit, 1980.
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Liber—Raisons d’agir, 1997.
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SAPIRO, G. (Org). L’espace intellectuel en Europe: de la formation des Etats~nations a la mon—
dialisation XIXe.-XXIe. siécle. Paris: La Découverte, 2009.
123. INTERESSE
Ver: Illusio
BOURDIEU, P. Interventions 1961-2001: science sociale et action politique. Marseille: Agone, 2002.
TNJORNAUSMO
Ver: Midia
naJUVENTUDE
Marilz'a Ponies Sposito
Bourdieu tmta diretamente do tema juventude em dois textos, pouco extensos, mas den-
sos. O primeiro, A “juventude” é apenas uma palavm (1978), é uma entrevista concedida a
Anne-Marie Métailié (QSp, 143-154). 0 segundo, Do quefalamos quando sefala do “problema
da juventude? (1986), é um trabalho apresentado em Vaucresson, na Franga. No primeiro, a0
criticar o caréter abstrato da palavra juventude, retoma postura jé anunciada nos anos 1960,
V quando recusava uma definiqéo homogénea da categoria estudante 11a anélise dos universiférios
franceses. Para Bourdieu as divisdes entre as idades sao arbitrarias, uma vez que as fronteiras
entre os grupos etarios sao objeto de disputa nas formagoes sociais. A compreensao sociologica
dos grupos de idade exige o conhecimento dos campos sociais que possuem suas préprias leis
de envelhecimento. Propoe que sejam consideradas as diferengas entre os jovens a partir de
suas posigées sociais em espagos sociais desiguais, o que levaria a uma necesséria pluralidade
no estudo desses segmentos. Apresenta, também, sugestées importantes para o estudo das
geragdes ao ressaltar que as aspiragoes das sucessivas geragoes, de pais e de filhos, séo também
produto dos diferentes estados da estrutura da distribuigao de bens e de diferentes oportu—
Didades de acesso a esses mesmos bens. Conflitos de geraqoes seriam, entao, conflitos entre
sistemas de aspiragées constituidos em épocas diversas. No segundo texto, insiste em afirmar
que a juventude, bem como a opiniao pdblica, nao existe. O debate. em torno do “problema da
juventude” (delinquéncia, violéncia, drogas, entre outros) revelaria que as préprias categorias
JUVENTUDE 24-3
de inteligibflidade em torno dos jovens séo também produto do mundo social, sendo necessério
ir além dessas primeiras classificacoes. O que se anuncia por meio da construcio “problema
da juventude” é a existéncia de conjunturas em que a ordem social e a ordem das geracoes néo
estéo ’asseguradas. Em contextos de forte mudanqa do modo de reproducéo ocorreriam crises
de sucesséo, tanto no sentido cronolégico come no sentido juridico da heranca legitima.
Referéncias
BOURDIEU, P. De quoi parle—t-on quand on parle du “probléme de la jeunesse”? In: PROUST, F.
(Org.). Les jeunes et les autres: contributions des sciences de l’hamme 51 la question desjeunes.
Vaucresson/CRIV, 1986. p. 229-235.
METAILIE, A. Lesjeunes et le premier emploz'. Paris: Association de Ages, 1978. p. 520-530.
244 JUVENTUDE
’T'flf."
.a
.139: LEGITIMIDADEILEGITI MAG/10 ,
Maria Iosé Braga Viana
Bourdieu fundamenta ern Weber a sua teoria da legitimidade, transpondo para a ordem
cultural as teses weberianas acerca dos efeitos de uma “ordem legitirna” — religiosa, politica,
juridica — sobre o conjunto dos grupos sociais. A sua maneira, Bourdieu formula urna economia
dos bens culturais (objetos, saberes, praticas, competéncias e habflidades), definindo como
legitimos aqueles que a sociedade considera superiores, no quadro de relacoes de dominacao.
As nocoes de arbitrério cultural e de violéncia simbélica assumerrl centralidade nessa
teoria. Para 0 sociologo francés, nenhurna cultura é intrinsecarnente superior a outra, sendo
o arbitrério cultural a imposicao — e o reconhecimento — de uma cultura, a dominante, como
uma verdade universal. Nesse fenomeno ocorre a0 mesmo tempo uma violéncia simbolica
dos grupos dominantes sobre os dominados, violéncia que se exerce de diferentes maneiras
e em ambitos distintos. Bourdieu e Passeron (LR, 38) defendem que “numa formacao social
determinada, a cultura legitima, isto é, a cultura dotada de legitimidade dominante, nao é
outra coisa que o arbitrario cultural dominante, na medida em que ele é desconhecido em
sua verdade objetiva de arbitrario cultural e de arbitrario cultural dominante”.
O reconhecimento da cultura legitima pelos dominados funda—se no exercicio de um
poder que aparece como legitimo e que teria suporte num conjunto de representacoes sobre
a realidade, compartilhado por dominantes e dominados; ou seja, numa crenca coletiva na
legitimidade de um bem. Essas representacoes/crencas justificariam a dominacao estabelecida,
tornando-a aceitavel, e até desejével, em nome de uma definicao, supostamente universal, do
Born, do Bem, doJusto, do Sagrado, da Verdade, do Normal, do Natural (ACCARDO, 1991, p. 42).
No entanto, as diferentes classes sociais se distinguem, sobretudo pelo grau de conke—
cimento da cultura legitima. Bourdieu (PBS, 94) escreve a respeito: “as diferentes classes
sociais se distinguem menos pelo grau em que reconhecem a cultura legitima do que pelo
grau em que elas a conhecem”. A relacao que as camadas populares mantém com a cultura
legitima, por exemplo, seja na sua dimensao artistica, literaria ou cientifica, seria marcada pelo
“desapossarnento”, que constitui uma forma de desconhecirnento (PBS; LDp). Um indicador
desse desapossamento pode ser encontrado na separacao “entre as habilidades (savoir—faz're)
LEGITIMIDADEILEGITIMACAO 245
préticas, parciais e téticas, por urn lado, e, por outro, os conhecimentos teéricos, sisteméticos
e explicitos [...]; entre a ciéncia e a técnica, a teoria ea prética, a “concepcao” e a “execucao”, o
"intelectual” on o “criador” [...] e o “bracal”, simples servidor de uma intencao que o supera,
um executante desapossado do pensamento de sua prética” (LDp, 361662).
Urn campo privilegiado no qual Bourdieu analisa o funcionamento da legitimidade cultural
é constituido pelos gostos e estilos de Vida, entendidos como uma propriedade central dos
diferentes grupos sociais (ao lado de crencas, opinioes, praticas de consumo desses grupos)
e definidos como “a propensao e aptidao a apropriacao (material e/ou simbolica) de uma
L determinada, categoria de objetos ou préticas” (PBS). 0 autor desenvolve parte importante
de sua anélise a respeito desse terna no livro A distincdo (2007).
Ofuncionamento da escola contemporfinea, por sua vez, é também exemplar para
ilustrar o fenorneno da legitimidade cultural, na perspectiva de Bourdieu. Por urn lado, a
escola apresenta a cultura que veicula corno neutra e universal, embora adote de fato a cultura
da classe dominante, cultura que exige de todos, independenternente da origem dos alunos.
Bourdieu forjou o conceito de capital cultural — entendido como a cultura legitima no carnpo
das artes, das letras, das ciéncias — para explicar as desigualdades de escolarizacao entre os
diferentes grupos sociais. Por outro, o sistema escolar é considerado como locus privilegiado
na producao de um determinado tipo de relacao com as obras de cultura consideradas legi.
timas relacao expressa na frequéncia a bibliotecas, museus, teatros, concertos, etc. Nesse
-
sentido, o autor afirrna que “[...] as desigualdades frente as obras da cultura erudita nao sao
senao urn aspecto e um efeito das desigualdades frente a escola, que cria a necessidade cultural
ao mesmo tempo em que da e define os meios de satisfazé—la” (EB, 60).
“Poderiarnos dizer que a distancia em relacao as obras legitimas se mede pela distancia em
relacao ao sisterna escolar...” (PBS, 94). Dessa maneira, o carnpo escolar se apresenta como rica
possibilidade de identificacao e Visibilidade do funcionarnento do arbitrario cultural, da violéncia
sirnbélica e da producao de desigualdades sociais; em suma, dalegitimacao cultural. Cabe assi-
nalar, ainda, a existéncia de aspectos em que a pertinéncia e avalidade da teoria da legitimidade
cultural se apresentarn relatives, conforme pode ser observado em Grignon e Passeron (1989).
Referéncias
ACCARDO, A. La légitimité. In: ACCARDO, A. Initiation ()1 la sociologie: une lecture de Bourdieu.
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GRIGNON, C.; PASSERON, IxC. Le savant et lepopulaire: mise’mbilisme etpopulz'sme en sociologie
et en lite’mture. Paris: Gallirnard/Le Seuil, 1989.
Claude Levi-Strauss foi, no século XX, um dos mais importantes pensadores no campo
1150 86 da antropologia, rnas tambérn das ciéncias sociais e humanas ern sentido amplo. Essa
importancia esta associada a introducao, no estudo das sociedades, do paradigma estrutura-
lista, tornado de empréstirno a linguistica. Nesse sentido, sua obra alimentou abundanternente
.J
os trabalhos de Pierre Bourdieu no piano teérico e conceitual. Mas ele é igualmente uma das
principais figuras do campo intelectual francés. Eis o motivo pelo qual Levi—Strauss é um
objeto de estudo privilegiado no ambito da sociologia critica do mundo académico desenvol~
Vida por Bourdieu. Alias, para o sociélogo, a analise da trajetéria e das propriedades sociais
de Lévi~Strauss é condicao para uma apropriacao reflexiva dos instrumentos propostos pela
antropologia estrutural. Portanto, n50 se deve estabelecer nenhuma distincao nos trabalhos
de Bourdieu, entre aqueles que tomam por objeto o campo intelectual (Homo academicus,
Esboco de aut0~andlise...) e as obras mais teéricas que discutem a antropologia estrutural
e seus aportes (Esboco de uma teoria da prdtica, O senso przitico, Razfies prdticas...)
Na década de 1960, o trabalho de Levi-Strauss teve participacao na redefinicao da paisa~
gem intelectual francesa, contribuindo para tornar possivel a obra de Bourdieu. LévLStrauss
empreende, com efeito, uma estratégia ambiciosa de revalorizacao das ciéncias humanas,
baseada no acfimulo do prestigio da filosofia (o termo “antropologia” — preferido, a época, ao
de etnologia faz referéncia a Kant) e da ciencia (o conceito de estrutura é, por sua vez, tornado
-
de empre’stimo as ciéncias chamadas “duras”) — (CD, 16). Com a antropologia estrutural, uma
ciéncia social se irnpoe, pela primeira vez, como disciplina dominante, inclusive aos olhos dos
‘ filosofos: ela revaloriza autores, tais como Durkheim ou Mauss, negligenciados durante muito
tempo pela tradicao filosofica, e que se constituirao em importante fonte de inspiracao para
Bourdieu. Levi-Strauss encarna, entao, a figura do “marginal consagrado”, na qual Bourdieu
se reconhecera mais tarde (HA, 140-141). Efetivamente, sua trajetoria desvia—se da ordem
universitaria “normal” (e, portanto do estilo de pensamento e do modode Vida que lhe sao
inerentes), a qual nao faz senao levar a mera reprodugao académica. O que 1150 o impede, em
nada, de ocupar uma posicao dominante no espaco das letras e das ciéncias humanas, ficando
a falta relativa de poder universitario amplamente compensada pelo reconhecimento cientifico
e pela notoriedade intelectual. O prestigio da antropologia estrutural permite a Bourdieu, que
efetuava entao suas primeiras pesquisas na Argélia, deixar de se pensar como filosofo, mas
sem concretizar uma ruptura definitiva com a “disciplina rainha”. Considerando-se, antes
de mais nada, como urn antropologo, ele inscreve seus trabalhos na tradicao estruturalista:
L’Homme, revista dirigida por Levi-Strauss, exerce sobre o sociélogo uma forte atracao (SSR,
191—192); e “La maison kabyle ou le monde renversé”, texto em que Bourdieu aplica corn rigor o
método de anélise proposto pela antropologia estrutural, é dedicado a Levi-Strauss (BOURDIEU,
1970). No entanto, 0s trabalhos sobre a aculturaeao (Le déracinement) e as estratégias fa-
miliares (La parenté comme repre’sentatiorz et comme volonté) — que suscitam questoes
ignoradas pela tradicao estruturalista (principalmente as do desajuste entre as representacoes
e as préticas) — romperao com a abordagem levisstmussiana.
Trajetérias sociais e modos de entrada no campo intelectual tao diferentes quanto as de
Lévi~Strauss e de Bourdieu so poderiam levar a préticas de pesquisa e abordagens teoricas
também muito diferentes. Com efeito, segundo Bourdieu, o percurso de Levi—Strauss, apesar
de nao conforme ‘as carreiras modais do mundo universitario, é o produto de disposicoes
a assumir riscos associados a uma origem social nitidamente favorecida (HA, 143). Nele
' Bourdieu Vé igualmente uma das causas da relacao “desrealizante” e estetizante com o
mundo social (a esse proposito, ele evoca uma “denegacao” no sentido freudiano do termo).
Essa distancia do mundo social manifesta-se tanto nas escolhas dos terrenos de pesquisa
Sexta—feira, 23 de abril de 1982, Bourdieu profere sua aula inaugural no Collage de France,
cadeira de Sociologia, completando o processo de sua eleicao e nomeacao para aquela insti—
tuicao de pesquisa, criada em 1530 pelo rei Francisco I. Ele se vale de varios pensadores das
areas de filosofia, psicanalise, letras, ciéncias sociais e matemética, ale'm da literatura classica
em diversos desses dominios. lnicia sua exposicao considerando que a aula sobre a aula vem
a ser um “discurso que reflete a si mesmo no ato do discurso”, lembrando da propriedade
basica da sociologia como a concebe: todas as proposicoes que a sociologia anuncia podem
e devem aplicar-se ao sujeito que faz a ciéncia. Praticando a sociologia da sociologia, analisa
o discurso sociolégico a partir da posicao social ocupada na estrutura do campo social pelo
sociélogo que o produz, pois a critica epistemolégica nao se da sern uma critica social” (LL, 7).
No interior de cada campo social existe urn movimento perpétuo dos diferentes agentes
em suas acoes e reacoes constantes, procurando lutar para manter ou melhorar sua posicao
no campo. Na relacao entre “o jogo e o sentido do jogo” é que se engendram os moveis da con~
corréncia e se constituem valores que, “mesmo que nao existam fora dessa relacao, impoem—se
no interior da mesma, com uma necessidade e uma evidéncia absolutas. Essa forma original
de fetichismo esté no principio de toda acao”. Entende os investirnentos como “ilusoes bem
fundadas”, que “superam os lucros explicitamente visados (salario, preco, recompensa, troféu,
titulo, funcao)” e fazem com que cada agente saia do anonimato e se afirme como “atuante,
envolvido pelo jogo, ocupado [. .] e dotado de uma missao social” (LL, 30-31). E apenas a
sociedade que atribui, em diferentes graus, “as justificacoes e as razoes de existir”. Assim,
“sem chegar a dizer, como Durkheim, que ‘a sociedade é Deus’, eu diria: Deus nao é nada
mais do que a sociedade. O que se espera de Deus somente se consegue obter da sociedade,
da contingéncia, do absurdo [...]. O juizo dos outros é o juizo final; e a exclusao social é forma
concreta do inferno e danacao. E tambérn porque o homem é um Deus para o homem que o
homem é um lobo para o homem” (LL, 33).
Bourdieu experimentou um terrivel mal-estar por ocasiao da leitura de sua aula. Nesse
ritual de consagracao questiona o rito de instituicao no préprio rito, gerando grande cons-
trangimento, dada a violéncia da situacao, pois questionava a crenca e a colocava“em perigo
exatamente no momento e no lugar em que seria apropriado celebré—la e reforca~la” (EAAp,
131). Tern dificuldade para concluir a leitura, sua voz quase some, verifica que vérios colegas
estao atonitos. “Depois, sinto um terrivel mal—estar, ligado a0 sentimento da gafe, mais que
da transgressao” (EAAp, p. 132).
Referéncia
BOURDIEU, P. Legon Inaugurale (fait le Vendredi, 23 avril 1982). Chaire de Sociologie. College
de
France. Paris, 1982. (Exemplaire hors commerce, n. 370).
132. LINGUAGEM
Referéncias
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Referéncia
BOURDIEU, P. L’institutionnalisation de l’anomie. Les Cahiers du Musée National d’ArtModerne,
p. 6-19, 19:29 jun. 1987.
A obra de Marx esté inscrita na historia da filosofia e no repertério dos classicos das ciéncias
Sociais. Nesse aspecto, ela mantém urna posicao indiscutivel no campo intelectual, nao dei-
xando de ocupar também um lugar indubitavelmente singular no campo politico, no qual foi
e continua sendo, até certo ponto, a doutrina de referéncia da esquerda socialista e comunista.
Esse é o motivo pelo qual a compreensao das relacoes de um autor com o marxismo tem a ver
com o confronto de um habitus com um estado, simultaneamente, do campo intelectual e do
campo politico. As ligacées iniciais de Bourdieu com o marxismo, como estudante da t‘lgne
Referéncias
ALEXANDER, I- C. Lu réduction: critique de Bourdieu. Paris: CERF, 2000.
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LUKACS, G. Histoz're et conscience de classe. Paris: Minuit, 1960.
-
_ retomada por Bourdieu — “se paga a si mesma com a falsa moeda de seu sonho”.
Com efeito, segundo Bourdjeu, o intervalo entre 0 dom e o contradom é o que permite trans—
formar a troca, cuja definicao objetiva so pode ser estabelecida pelo dentista, em uma 'sucessao
desconfinua de atos, tanto mais percebidos como mais generosos quanto mais afastados estiverem
no tempo. Mauss descreve perfeitamente o trabalho social - a “alquimia”, nos termos de Bourdjeu -
pelo qual o “economico” se transforma em “simbélico”, ou seja, em algo de irredutivel ao valor
' ‘ mercantil dos bens trocados, como é o caso de todas as economias simbélicas que se constituiram
em objeto privilegiado dos trabalhos de Bourdieu (a alta costura, a arte, a literatura, a edicao. . .).
Tal alquimia é o resultado da denegacao da natureza da troca pelos parceiros. Alias, ela so é pos-
sivel se estes filtimos estiverem tacitamente de acordo em recusar a verdade objetiva dessa troca.
O Essai sur le don esté também, e de maneira inseparével, na base da teoria da pratica e
da acao que Bourdieu nao deixara de elaborar e de aprimorar, ao longo de sua obra, tanto da
pratica nativa quanto da prética cientifica. Com efeito, segundo Bourdieu, esse ensaio é um
desafio: trata—se de encontrar a razao ao que pretende ser sem razao (gratuito, arbitrario) e
sem determinacao (de graca), no pressuposto de que nem toda pratica tern a racionalidade
como principio. A teoria da acao racional — repetia frequentemente Bourdieu — substitui a
experiéncia do nativo pela experiéncia do cientista e, de forma geral, generaliza o caso bas—
tante particular da atividade economica a0 conjunto das préticas, tendendo, assim, a COnferir
intencoes racionais a todas as condutas humanas. Alias, uma das principais dimensées da
antropologia de Bourdieu consiste em reconstituir a logica pratica nos contextos sociais que
lhe servem de fundamento e lhe conferem sentido. Mauss, de acordo com Bourdieu, lembra
que a racionalidade economica pressupée a autonomizacao do universo economico resultarite
de um processo que afeta os sistemas de disposicées (poupanca, crédito...) e as instituicées
que o fazem funcionar (bancos, moeda. . .) e que, mesmo quando esse universo econémico esté
constituido, os outros universos sociais nao tém esse tipo de racionalidade como principio.
Pode-se igualmente observar essa forma de etnocentrismo dos intelectuais, nomeada—
mente dos filésofos, por nao levarem em consideracao o corpo, o corpo socializado, como
principio das condutas.
Se Bourdieu se refere ao artigo fundador de Mauss, “Les techniques du corps”, é pelo fato
de reconhecer a novidade que representava essa comunicacao apresentada 11a Sociedade de
Psicologia em 1934. No entanto, em sua opiniao, Mauss nao levou a analise alérn da observacao
do que ele designava como as “técnicas” — ou seja, os atos corporais —, sem ter problematizado
Meditacoespascalianas, escrito por Bourdieu em 1997, é um dos filtimos da vasta obra que
publicou em Vida. Nele o autor lida com seus principais conceitos sociolégicos retrabalhados
num dia'logo critico com o pensamento e a pratica filosoficos. O livro pode ser entendido corno
uma sistematizacao de sua obra no momento mesmo em que ela passa a ter uma repercussao
mais ampla que os circulos académicos; em que ele pode fechar o circulo de seu percurso desde
a filosofia dos seus anos de juventude e dar coeréncia a sua trajetéria inovadora pela antro-
pologia e sociologia. E interessante que na contracapa da edicéo francesa original, Bourdieu,
que nao deixa passar nada sem seu controle no processo de edicao, é apresentado como antro~
pologo e sociologo. Num momento de balance na maturidade parece incorporar o conjunto
de sua trajetoria e 1150 apenas sua apresentacao insistente como sociologo que privilegiava o
combate no interior deste campo. E como se tambe’m, neste memento de sua obra, o retorno
aos problemas com que se defrontou como antropélogo no estudo do campesinato argelino e
francés dos anos 1950 e 1960 fizesse sentido diante da questao social urbana e metropolitana
candente enfrentada pelos descendentes daqueles campesinatos anteriormente estudados.
A publicacao de Meditacoes pascalianas em portugués, com preciosa traducao de Sergio
Miceli, dé oportunidade a0 leitor brasileiro de atualizar—se com o pensamento de Pierre Bomdieu
numa obraque lida corn seus principais conceitos retrabalhados ern sua plena maturidade, e que,
vista a posteriori, praticamente delineia seu testamento intelectual. Colocando—se sob a égide
de Pascal, Bourdieu procura fazer uma critica sistemética da razao e da pratica escolésticas em
que estao imersas as atividades filosoficas, mas também as cientifiCas, artisticas e intelectuais.
Tal é o contefido dos dois primeiros capitulos do livro, incluindo um esboco de sua prépria
socioanalise (“confissoes impessoais”) num apéndice de capitulo, quando temos — através de
sua experiéncia de aluno-bolsista originério das classes populates, sua transformacao pelo
internato e pela escola republicana de elite, e suas experiéncias posteriores de distanciamento
da filosofia e de aproximacao com a etnologia e a sociologia -— uma ilustragéo dc suas analises
reflexivas sobre a importancia das socializacoes e internalizacoes corporais. (Esse apéndice
constituia—se numa versao de trecho de seu livfo postumo, em elaboracao, ainda desconhecido
na época, Esboco de auto—andlise.) Nesses capitulos, ele dé novos argumentos e novo formato a
temas jé tratados em obras sobre a escola, o campo intelectual, o homo academicus, a nobreza
de Estado, e inicia uma reflexao sobre a génese dos campos e em particular do campo filosofico,
que por sua vez é desenvolvida no capitulo dos “fundamentos histéricos da razao” (com uma
anélise da historicidade do campo cientifico e suas relacées com o poder).
Mas o livro é também um meio para o autor reafirmar, através de novas abordagens, suas
teorias e anélises da dominacéo simbélica em diferentes esferas sociais sintetizadas pelos
Referéncia
MERLEAU-PONTY, M. Phe’noménologie dela perception. Paris: Galh'mard, 1945.
142. METODOLOGIA
Ver: Epistemologia
143.MlDlA
Patrick Champagne
O primeiro texto de Bourdieu que trata da midia é o artigo “Sociologos das mitologias e mito—
logias dos sociologos” (1963), publicado em Les Temps Modernes, em coautoria com Jean-Claude
Passeron. A0 se debrucar sobre os discursos dos ensaistas a respeito dos meios de comunicacao
de massa, esse trabalho tem grande interesse 11a medida em que traz 0 germe das evolucoes
ulteriores das pesquisas empreendidas por Bourdieu nesta area. Tratando—se de apreender 05
268 METODOLOGIA
efeitos exercidos pelos modernos meios de comunicacao sobre as diversas categorias de publico, '
ele denuncia a falta de investigacao rigorosa, assim corno as explicacoes essencialmente verbais e
os trocadilhos em torno da expressao mass media”:midia de massa que Se dirigiria macicamente
a uma massa indistinta. As pesquisas que Bourdieu efetua na época sobre a frequéncia aos museus
mostram que existem leis da difusao cultural que se aplicam também a midia. Ele pretende ser 0
portador de um modo rigoroso e cientifico de abordar as ciéncias sociais que deveriarn se apoiar,
a semelhanca do que ocorre corn as ciéncias exatas, em pesquisas, alérn de se valer de dados
fatuais. A midia deveria, portanto, ser igualmente objeto de investigacées meticulosas, a partir
das quais sera possivel empreender uma reflexao teorica, o que nao era entao realrnente o caso.
De fato, a midia dava lugar, quase sempre, a um discurso profético e a mobilizacao da ternética
das “mutacoes”, discurso epistemologicamente associado a sondagens puramente empiricas,
sem'reflexao teorica. Em 1970 Bourdieu providenciou, para a colecao que dirigia nas Edicoes
de Minuit, a traducao do livro de Richard Hoggart, The Use ofLiteracy (1957) sob o titulo de
La culture du pauvre, que constitui uma pesquisa etnogréfica minuciosa sobre os consumos
culturais em meios populares. Esse livro, que significa a abertura dos cultural studies, é, de certa
forma, erigido por Bourdieu em exemplo de analise do Inm da midia.
Alérn da necessidade de se realizarem pesquisas rigorosas 11a area, 0 artigo de 1963 esboca o
perfil do (1116 deveria serla'nova figura do inteleCtual: ao filésofoxncarnado por Sartre, que pode
falar a respeito de tudo sem que seja realmente especialista do assunto, Bourdieu pretends proper
uma nova imagem do intelectual que se baseia nas ciéncias sociais. O intelectual seria, assirn, aquele
que deve ser capaz de se impor no debate publico por suas pesquisas e que, por conseguinte, deve
limitar-se a intervir em seu dominio de competéncia. Ora, no final da década de 1970, aparece uma
nova categoria de intelectuais que vai envolver fortemente a acao dos meios de cornunicacao de
massa, jé que esses “novos intelectuais” devem sua notoriedade 1150 as suas obras, mas a midja e,
em particular, a televisao, cuja difusao, desde o inicio dos anos 1970, atinge na Franca praticarnente
a populacao inteira e comeca a produzir efeitos de legitimacao especificos (cf. 0 conhecido "passou
na TV”). Essa figura concorrente do intelectual — cujo arquétipo é o filésofo Bernard—Henri Levy, e
que so existe, tendencialmente, por e para a midia, a tal ponto que sao conhecidos por “intelectuais
midjaticos” — vai conduzir Bourdieu a um grande numero de observacoes sobre o funcionamento
da esfera jornalistica em suas relacoes com o campo intelectual.
Os“meios de comunicacao de massa”r1ao darao lugar a uma grande pesquisa especi—
fica — eles sao demasiado diferenciados —, nem a uma obra comparavel a La distinction,
Le sens pmtz’que on La noblesse d’Etat, considerando que seu objeto é demasiadamente
pré—construido. Pelo contrario, é possivel encontrar 11a obra de Bourdieu nao so ferramentas
teéricas para pensar o jornalismo — em particular, sua teoria dos campos —, mas também
numerosas reflexoes pontuais dedicadas ao campo jornalistico, como caso peculiar de campo.
De fato, se ha efetivarnente uma sociologia da midia em Bourdieu, ela esté dispersa e como
que fragmentada em sua obra, na medida em que os meios de comunicacao de massa sao
abordados principalmente a partir de duas entradas: por um lado, como campo de producao
e de consumo de um tipo particular de bens que ele chama de “bens simbélicos”, ou seja, bens
que, diferentemente dos bens materiais, supc'Jem um ato de decifracao ou, se preferirrnos,
de apropriacao mental; por outro, como campo que tende a exercer de maneira crescente,
conforme o desenvolvimento da midia, certo predominio sobre os outros campos.
Mom 269
Embora seus primeiros textos se refiram marginalmente ao campo jornalistico, eles trazem
elementos essenciajs para a construgéo das ferramentas teoricas que posteriormente lhe permitirfio
pensar tal campo. Em 1966 Bourdieu publica “Campo intelectual e projeto criador”, artigo q1'1e
langa as bases de uma abordagem relacional e convida a pensar as instituigoes culturais umas
em relagéo és outras pelo fato de formarem um sisterna e de apresentarem relativa autonomia em
relagéo {as forqas politicas e economicas. Esse artigo é completado em 1971 por um Iongo texto,
“O mercado de bens simbélicos”, no qual, entre outros aspectos, ele mostra a existéncia de uma
homologia estrutural entre o campo de produgéo das obras culturais e o campo do consume.
Bourdieu cita como example, em especial, os criticos culturajs da imprensa e precede 51 anéh’se
das relagées sutis entre eles e seu pfiblico. No capitulo 8 de La distinction, dedicado ‘a logica
que rege a produgfio das opinioes na esfera politica, analisa a contribm'géo da midia a partir da
construgéo do campo dos jornais, de suas divisoes, dos principios de legitimidade especifica que
se exerce nesse campo. Em 1992, ele publica Les régles de l’art, uma obra de sintese fundamental
em que, principahnente a partir da anélise do campo de produqéo das obras estéticas (edieoes,
galerias, etc), desenvolve uma teoria dos campos bastante genérica com base na qual se pode
fazer uma anélise do campo jornah'stico. Em 1996, em seu livro Sur la téle’vision, esboea esse
tipo de anéljse: lembra que o mundo do jornalismo é também urn microcosmo que tern suas
leis préprias e é definido por sua posiqéo no mundo global. No entanto, contra o reducionismo
economico, ele esclarece: a afirmaeéo de que esse campo é (relativamente) autonomo equivale
a dizer que n50 se pode compreendé-lo de maneira direta a partir de fatores externos ~ o que
néo significa que se possa prescindir de levar em consideragéo os fatores economicos.
Bourdieu insists no fato de que uma das questoes que deve ser formulada a urn campo ~
questio especialmente importante quando se trata do campo jornalistico - é aquela que
se refere a seu grau de autonomia. A este respeito, o campo jornalistico caracteriza-se por
um elevado grau de heteronomia: é um campo muito precariamente autonomo. Ocorre que
tal autonomia, por mais frégfl que seja, faz com que 1150 se possa compreender tudo o que
acontece na esfera do jornalismo a partir unicamente do conhecimento do mundo circun-
dante: quem financia, quem 8510 05 anunciantes, quem paga a publicidade, de onde vém as
subvengoes, etc. Uma parte do que se produz no mundo do jornalismo so é compreensivel se
esse microcosmo for pensado como tal, e se houver um esforqo de compreenséo dos efeitos
que as pessoas envolvidas nesse microcosmo exercem umas sobre as outras.
Em 1984, ARSS publica um texto curto intitulado “O hit-parade dos intelectuais franceses,
ou quern seré o juiz da legitimidade dos juizes?”. Esse importante comentério inaugura, de 211-
guma forma, 0 segundo eixo da anélise da midia empreendida por Bourdieu. Nessa explicagio
suméria ele procede 2‘1 anélise — prética jornah’stica frequente - de um hit parade dos “mais
importantes intelectuais vivos” na Franga, e mostra que essa operagéio oculta a composieio do
j1’1ri que produz a classificagéo e que, no essencial, é composto por jornalistas. Ele revela como
essa~ simples operagéo de classificagéo tende a submeter o mundo intelectual aos veredictos do
circulo jornah’stico. Bourdieu iré prosseguir esse combate em prol da autonomia dos intelec~
tuais com a publicagéo de Sur la te’lévision (1996) e sua denfincia dos intelectuais midiéticos.
Referén'cias
BOURDIEU, P; PASSERON, I —.C Sociologie des mythologies etmythologies de sociologues Les Temps
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270 MIDIA
~‘
BOURDIEU, P Champ intellectuel et projet créateur Les Temps Modernes, n. 246, p. 865 906,
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BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Année Sociologique, v. 22, p. 49-12, 1971.
BOURDIEU, P. Le hit-parade des intellectuels francais, ou qui sera juge de la légitimité des juges?
ARSS, 11. 52-53, p. 13—14, juin'1984.
Em marco de 1993, algumas semanas antes das eleicoes legislativas na Franca, foi pu—
blicado La misére du monde, obra coletiva concebida por Bourdieu explicitamente como
intervencéo no campo politico. Esse livro — de quase mil paginas e contendo cerca de sessenta
entrevistas realizadas em ambientes onde impera o sofrirnento ~ se propoe a dar voz aqueles
que nao séo ouvidos no espaco pfiblico, aqueles que so 550 ouvidos através do filtro defor~
Inador cla midia ou dos levantamentos estatistico’s. Trata’-se de entrevistas comentadas que
descortinam os sofrimentos socialmente engendrados pelo neoliberalismo, sofrimentos
muitas vezes inaudiveis e invisiveis para os dirigentes politicos.
O livro, relativamente inclassificével, baseiavse em urn conjunto‘de pesquisas empreen~
didas, havia Varies anos, por cerca de quinze pesquisadores, mesclando depoimentos e
histérias de Vida com an'élises cientificas, mas sem os jargées habituais da sociologia, no
intuito de se tornar acessivel ao leitor n50 especialista. LA diagramacao, os titulos com base
em conceitos, os textos de apresentacao das entrevistas constituem outros tantos procedi-
mentos que permitem compreender aquilo que, para além das falas singulares, pode ser
lido de maneira geral sobre o mundo social. Em suma, trata—se de uma obra destinada a
introduzir a sociologia no debate politico, trazendo a perspectiva e as anélises da ciéncia
social sobre um mundo que os politicos contribuem— de forma mais inconsciente que
conscientemente— para produzir.
A obra foi bem recebida de imediato, tanto pela maioria da imprensa que publicou vérias
entrevistas com Bourdieu quanto pelo pfiblico em geral, e obteve rapidamente importante
divulgacao. Além disso, alguns diretores cle teatro serviram—se dos textos das entrevistas
para realizar montagens teatrais, fazendo com que as representacoes propiciassern uma
oportunidade de reflexao, de caréter estético-politico, sobre o lugar do teatro nas lutas
sociais. Nos bairros desfavorecidos, essas representacoes teatrais foram, muitas vezes,
seguidas de debates que incidiram nao tanto sobre o teatro, mas sobre a crise social, a
precariedade e 0 desernprego.
272 MUNDIALIZACAO/INTERNACIONALIZACAO
mais antiga sebre os desafies e as cendicees sociais dos processes de internacienalizacao. Em
' seus trabalhos sobre a estrutura social e sobre o campo do peder, ele analisou, corn efeito, 05
uses seciais, no 3610 das classes dominantes, da internacionalizacao das atividades ecenemicas.
Sua ebra, La distinction, demenstra come a internacionalizacao redistribui as eportuni—
dades no seie da burguesia, a‘favor de uma nova burguesia que se opee a antiga burguesia de
negécios per um estilo de Vida “modernista” e voltado para o estrangeiro. A internacienalizacao
das atividades ecenémicas alimenta lutas de classificacae, desencadeadas peles membros
das fracees das classes dominantes que operaram a reconversae necessaria para adaptar—se
a transformacao do campo das empresas. E essa vanguarda, executives das empresas multi-
nacienais dotados frequenternente de certificados escolares internacionais, que importa dos
EUA e nove mode de dominacéo, baseado na maneira alternativa de viver e em urn estile de
Vida despojado (LD, 338 e segs.). A internacienalizacao contribui para nevas estratégias de
distineao e de legitimacae da dominacao. Ela transforma tambérn as estratégias de reprodu‘
(310. Per sua vez, La noblesse d’Etat (p. 305-328) precede a analise do desenvelvimento das
escolas de gestae internacionais, “escelas refiigio” que oferecem uma segunda eportnnidade
aos filhos da burguesia de negécies, descartados da concorréncia nacienal, garantindo-lhes
saidas profissionais incessanternente ampliadas pela internacionalizacao do campo econemice.
Beurdieu prosseguiu a anélise da internacionalizagao das classes dirigentes no ambito
de um trabalhe coletive de cemparacae internacional da fermacao das elites, coordenado
per Monique de Saint Martin, na década de 1990. Nesse estudo, ele mostra que as novas ne—
brezas nacionais tendem cada vez mais a se internacienalizar, tanto em seu funcienamento
quanto em sua formacao e reproducae. Assiste-se a uma unificacée do campo mundial da
formacao dos dirigentes que preduz seus efeitos sobre es campes nacienais, introduzinde
novos principies de legitimidade em cada uma das estruturas sociais no plane nacional
(BOURDIBU, 1992, p. 281—283).
A comparacae internacional construida rigorosamente é, de acerdo com Pierre Beurdieu,
a melher - para nae dizer, a (mica — maneira de enfrentar e processo de internacienalizacao.
A mundializacae nae plana no vazie e nae pede ser estudada sem urn pento de sustentacao
nacional bern sélido. Somente urn trabalhe coletive internacienal sobre os efeites nos dife~
rentes paises desse processo de internacionalizacao — na medida ern que estabelece relacees
entre pesquisas empiricas situadas do ponto de vista histérice e geografico — torna possivel
a construcae de 11111 modele de conjunto.
Essas operacees de cemparacae internacional forarn também a ecasiao, para Bourdieu, de
pensar as condicees seciais de possibilidade de outras fermas de internacienalizacao, nemea—
damente no campo intelectual. Ainda que exista urna internacienalizacao dos dominantes
— on, no campe académico, uma internacional do establishment ~, a Vida intelectual nae é
espontaneamente internacional; A diversidade das tradicees intelectuais no plane nacienal
esta na origem das numeresas defermacoes sefridas pelas ideias que circulam de um espaco
nacional a outro, e de mal—entendidos em torne de textes reinterpretades em funcao de
,
interesses nacionais dos receptores. O cenhecirnento das categorias de percepcao nacionais
herdadas da histéria e inscritas em fermas escolares de classificacao, é que permite superar
tais ebstéculos. A internacionalizacao on a desnacionalizacao das categorias de pensamento
é a cendicao primordial de um verdadeiro universalisme intelectual (BOURDIEU, 2002).
MUNeIALIZAgAO/INTERNACIeNALIZAn 273
Assim, o conhecimento dos mecanismos da mundializacio — se apoiado no trabalho coletivo
de pesquisadores de diferentes paises — pode ser uma das armas de um internacionalismo
critico, capaz de resistir a nova internacional cultural dos dominantes.
Referéncias _
BOURDIEU, P. Quelques remarques sur les conditions et les résultats d’une entreprise collective
et
international de recherche comparative. In: SAINT MARTIN, M.; GHEORGHIU, M. D. (Eds).
Les
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BOURDIEU, P. Les conditions sociales de la circulation international des biens culturels. ARSS,
n.
5, p. 3—8, 2002.
147.MUNDO SOCIAL
Michel Daccache
A nocao de 111m social deve ser distinguida tanto das prenocées do senso cornum (fala-se
de “esferas sociais”) quanto de determinadas conceitualizacées eruditas. Sobretudo a corrente
interacionista, com A. Strauss e H. Becker, serviu—se do plural “mundos sociais” para designar
universes dotados de propriedades especificas (os mundos da arte, da mfisica. . .). Na obra de
Bourdieu, a semelhanca do que ocorre com a fenomenologia de A. Schiitz, o 111m social pode ,
ser definido, antes de mais nada, como aquilo de que temos a experiéncia sob o modo da evis
déncia (o “é assim”). E a realidade tal qual ela é apreendida subjetivamente ~ 0 Lebenswelt de
E. Husserl — e que se retraduz objetivamente na forma de comportamentos tipicos, associados
a algumas possibilidades de éxito. Assim, o mundo social é, de certa maneira, a representacao
que a pessoa faz dele. E, portanto, urn assunto que interessa a todos na medida em que cada
um tern interesse que venha a irnpor-se urna visao de mundo conforme a seus interesses (o que
explica que se nega frequentemente qualquer caréter cientifico a tal objeto). Ao afastar‘se, nesse
ponto, da tradicao fenomenolégica, Bourdieu lembra assim que o “ser~no—mundo” resulta de
esquemas de percepcao e de acao que, por sua vez, sao produtos de uma histéria. Mas o mundo
social é igualmente, em urn nivel mais geral, uma ordem particular de coisas. De fato, essa
nocao nao remete a uma série de objetos (arte, religiao, economia...), nem mesmo a dominios
precisos de atividade, mas a urn reino especifico que obedece a “leis” proprias: o mundo social
é, para o sociologo, o que o mundo fisico é para o fisico. Vé—se, pois, que a magic de mundo
social nao pode ser reduzida a nocéo de sociedade no sentido de Durkheim, pois esta segunda
nocao veicula uma metafisica que a primeira ignora. Ela também 1150 se sobrepoe ao conceito de
espaco social, igualmente presente na obra de Bourdieu, mas que se refere a estrutura relacional
constituida pelo conjunto das posicoes ocupadas pelos agentes sociais.
Referencias
LENOIR, R. Espace social et classes sociales chez Pierre Bourdieu. Sociéte’s ei- Représentations,
v. 1,
n. 17, p.385-396, 2004.
PINTOiL. Pierre Bourdieu et la the’orie du monde social. Paris: Albin Michel, 2002.
NEOLIBERALISMO 275
num contexto em que o Estado e 05 patrocinadores privados v50 progressivamente retomando as
rédeas dos processos de criacao através do controle dos recursos materiais para ela. Essa situacao
representa nada menos do que um retrocesso civilizatério que deve ser combatido com todas
as forcas pelos intelectuais e artistas que prezam o seu oficio (LE). E justamente a mobilizacao
das diversas categorias profissionais cujo fazer esté sendo afetado de forma negativa pela nova
onda de “tecnocratizacao” que poderia combater eficientemente a nova ideologia liberal. Para
isso Bourdieu preconiza a criacao de associacoes internacionais de artistas, intelectuais e demais
profissionais que apontem, com autoridade moral e profissional, as deficiéncias das intervencoes
neoliberais nas suas respectivas areas de atuacao. A partir dessa construcao internacional alter-
nativa Bourdieu considerava ser possivel contrabalancar o poder politico e cultural das agéncias
internacionais dominadas pelos economistas e altos funcionérios partidarios do neoliberalismo.
Em termos heuristicos, Bourdieu vai, a partir de A miséria do mundo, progressivamente
lapidar a particao entre mao direita e mdo esquerda do Estado. Essa divisao lanca luz sobre as
diferencas de perspectiva e de acao entre os agentes do Estado encarregados da politica econémica,
préximos da légica e dos agentes do capital, que ele chama de mao direita do Estado; e aqueles que
se ocuparn das diversas funcées de politica social, educacional, cultural, de seguranca, ambiental e
outras. A esses filtimos denomina “mao esquerda do Estado”, sendo a divisao proposta a partir da
observacao das dificuldades e mesmo do desespero deles diante da quase impossibilidade de cumprir
suas tarefas no contexto em que a “mic direita” cerceia cada vez mais suas atividades (MM, 222).
Na sua teoria geral do Estado, .Bourdieu chama a atencao para o papel fundamental des—
ses agentes do interesse geral na geracao dos bens coletivos que tornam possivel o convivio
civilizado. E é na corrosao dos fundamentos da atuacao e da autoestima desses agentes que
poderia ser localizada uma das principais criticas que Bomdieu faz ao neoliberalismo. lmbui—
dos da ideologia neoliberal, os agentes da mao direita do Estado acabam criando mecanismos
cognitivos que obliteram a sua percepcao dos problemas enContrados pela mao esquerda e
acabam dessensibilizados para os problemas que a omissao do Estado provoca nas parcelas
da populacao menos bem providas de capitals economico e cultural. Essa énfase na teoria
economica como mecanismo produtor de cegueira institucional é préxima daquela desenvol~
Vida nos trabalhos histéricos de E. P. Thompson (1993) sobre a economia moral e sua relacéo
com a teoria economica nascente. Essa proximidade é digna de nota, jé que Bourdieu publicou
esse autor marxista nos primeiros volumes de ARSS, quando ele era ainda pouco conhecido
fora da Inglaterra, no volume sobre a producao da ideologia dominante (THOMPSON, 1976).
O espaco empirico que Bourdieu observou foi principalmente 0 da construcao das estruturas
da Uniao Europeia do final do século XX. A légica da construcao dessas entidades supranacionais
num periodo de predominancia cultural do neoliberalismo privilegiou a construcao do espago
economico comum e foi o alvo especifico das principais intervencées criticas de Bourdieu sobre
o tema. Ele observou que nesse processo as duas maos do Estado v50 36 distanciando progres—
sivamente e o poder efetivo vai se concentrando naquela localizada na direita. Essa construcao
supranacional se torna uma oportunjdade para a experimentacao neoliberal.
Na logica analitica de Bourdieu é impossivel pensar em construcao institucional sem
especificar quem $510 05 construtores e quais $510 05 motivos e as crencas que os impulsionam.
No caso do neoliberalismo, é ressaltado o papel dos economistas ortodoxos na construcéo da
doxa sobre como a economia deve ser‘gerida e de suas estratégias mais diretas para tomar
276 NEOLIBERALISMO
m»
conta dos espacos decisorios da economia, como os bancos centrais (LEBARON, 2000, 2008).
No interior da equipe de Bourdieu a atencao sobre esse grupo nao diminui a necessidade de
observar outras comunidades profissionais, em especial aquelas ligadas a esfera judiciéria. E
assim que Yves Dezalay empreende uma extensa anélise dos subgrupos das diversas elites na-
cionais “produtoras de direito”,‘vincu1ados a internacionalizacao ao mesmo tempo da profissao
e do arcabouco juridico. E no interior dessa batalha entre setores tradicionais mais ligados as
tradicoes nacionais do direito e as grupos mais jovens, dotados de formacao internacional,
que se produz o novo direito internacional e que por reflexo tambe’m renova 0 nacional, que
consagra 0 neoliberalismo. A prevaléncia do grupo mais jovem significa passar por cima .
das tradicoes e mecanismos de defesa que‘cada comunidade nacional construiu no passado I
para se defender do império absoluto do mercado capitalista e essa institucionalizacao do
neoliberalismo so pode adquirir inteligibilidade sociologica se levarmos em conta a dinarnica
de atores que ela deflagra e consagra (DEZALAY; GARTH, 1996, 2002a, 2002b, 2010, 2011).
Referéncias
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The Sociological Review, v. 56, p. 121—144, 2008.
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Referéncia
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11, 16, p. 37—62, ju1./dez. 2007.
250:_N0|_3REZA ................
Ver: Classe social
22.».II0III02 ’ ______......................
Cristina Carter Cardoso de Medeiros
A negae de names, palavra que etimelegicamente vem do verbe partilhar (em grege,
néme), aparece na aberdagem socielégica de Pierre Bourdieu quande e autor explicita
e cenceite de campo. Apentade come principio de visae e de divisée constitutive de um
campo, tal principle atuaria cerno uma “lei fundamental” (RAp, 78; MPp, 117), uma erdern
instituida nas estruturas objetivas de um universe socialmente regulade e nas estruturas
mentais daqueles que nele se inserern e-que tendem, per isse, a aceitar come evidentes as
injuneoes inscritas na légica imanente de seu funcienamente. Para 0 autor, 0 names nae
tern antitese per suas caracteristicas de principie legitimado e aplicavel a tedes es aspectos
fundamentais da existéncia: “defininde o pensavel e e impensével, o prescrite e e prescrite, ele
acaba permanecende impensade” (MPp, 117), constituinde-se em matriz de todas as questees
pertinentes e incapaz de produzir as questees aptas a questioné-lo. Segundo Beurdieu (SPp),
a necessidade arbitréria (name) pela qual o grupe se constitui e institui aquile que o une e o
separa, uma vez que a identidade social se define e se afirma na diferenea, é imposta per urna
adesao técita. Para ele, e arbitrérie se situa no principio de tedes es campes, mas es names,
as leis fundamentais, diferem de um campe para eutre, ou seja, “... cada campo cenfina es
agentes a seus proprios moveis de interesse es quais, a partir de outro pente de Vista, on seja,
d0 pente de vista de outre jege, ternam~se invisiveis on pele menes insignificantes ou até
fluseries” (MPp, 117—118). A identificaeao dos ganhos prepostes per cada um dos diferentes
campes e seus principies de Visao e divisae seriam, para o seciélege, uma forma de identificar
os limites do campe que se situariam ae pente ende cessariam seus efeites (R).
NOM05 281
5:. ONTOLOGIA POLiTlCA DE MARTIN HEIDEGGER (A)
(L’ONTOLOG/E POL/TIQUE DE MARTIN HEIDEGGER)
A posieao de Bourdieu sobre a questao das sondagens chamadas “de opiniéo publica”
revela~se plenamente em uma breve conferéncia intitulada, de modo provocativo, “A opiniao
,
pfiblica nao existe’ ’pronunciada em janeiro de 1971 na cidade de Arras, na Associagao Cultural
Noro1t Essa conferéncia sera publicada na revista Les Temps Modernes (janeiro de 1973)
' e republicada no livro Questoes de sociologia (1980). Tal conferéncia, que obteve grande
. repercussao, ilustra perfeitamente o papel que, segundo Bourdieu, deveria ser desempenhado
pela sociologia: disciplina cientifica cujo objeto é o mundo social, a sociologia néo deveria
Referéncia
BOURDIEU, P. Les doxosophes. Minuit, n. 1, 1972.
Referéncias
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Baranger entrevista
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PASSERON, I.~C. Le raisonnementsociologique. Paris: Nathan, 1991 [2.
ed. Paris: Albin Michel, 2006].
WEBER, M. Essais sur la théorie de la Science. Paris: Librajrie Plon, 1965.
1 7. PENSAMENTO RELACIONAL
1J1
288 PATRONATO
tese segundo a qual o desenvolvimento da ciéncia pode ser descrito a partir da transigao dos
conceitos substancialistas, tipicos do Mito e, também, da filosofia aristotélica, para os conceitos
operativos ou relacionais caracteristicos da ciéncia moderna. Os conceitos substancialistas, diz
Cassirer (1994, p. 339), 350 complicados e respondem pelo “estado convoluto” dos primordios
da experiéncia humana. A ciéncia moderna so foi capaz de constituir~se como tal a partir do
Renascimento, quando introduziu um novo esquema de verdade: a simplicidade decorrente
da abstraeao. A ciéncia, entao, criou “uma nova forma de interpr'etagao intelectua ” do mundo
e 1530 11510 pode ser obtido a partir do “alargamento e enriquecimento de nossa experiéncia
ordinaria” (CASSIRER, 1994, p. 340). Essa nova forma de interpretar o mundo, conquistada a
partir de uma ruptura com a percepeao comum, é o pensamento relacional. Como observa
Cassirer, a ciéncia avangou quando renunciou a busca por esséncias e conquistou urn novo
principio de inteligibilidade, a saber, as relagoes funcionais entre as coisas.
Na sociologia, o pensamento relacional, por vezes chamado funcional ou estrutural,
considera que os fatos sociais 11510 $510 explicaveis em si mesmos e por si mesmos, como se
fossem substancias trans-historicas, mas sao trazidos a luz por meio da apreensao das rela»
goes objetivas, o mais das vezes invisiveis, inscritas nas préticas e nas obras. Tais relaeoes,
inacessiveis ao senso comum, precisam ser construidas, conquistadas e validadas pela ciéncia
para se tornarem compreensiveis. E na estrutura das relagées objetivas, portanto, que reside
o principio de inteligibilidade causal dos fatos sociais.
Além disso, o modo de pensar relacional trabalha por homologia, ou seja, pela compa-
ragao e identificagao das semelhangas entre estruturas de espagos sociais diferentes e ate’,
aparentemente, muito distan’res Esta relagao de relaeoes deve ser Conquistada contra as
aparéncias e construida por um verdadeiro trabalho de abstraeao e por meio da comparagao
conscientemente operada” (MSp, 69). Consequentemente, é a comparaeao, preconizada por
Durkheim (1983) como método da prova na sociologia, que da caueao aos procedimentos
técnicos e aos programas de investigagao baseados no pensamento relacional.
Bourdieu adota, desde muito cedo, essa linhagern teorica, identificada também com os traba—
lhos de Erwin Panofsky, de Kurt Lewin, dos formalistas russos, de Norbert Elias e, igualmente, de
Ferdinand Saussure e dos estruturalistas (OPS, 65). Esta atitude mental, conforme revela o proprio
Bourdieu, esteve 11a origem da criaeao e emprego sistemético do conceito de campo de produgao
material e simbolica como espago estruturado de relagoes objetivas. Bourdieu comega com a
analise do processo de autonomizaeao do campo intelectual, passa, em seguida, por homologia,
a0 estudo da génese e estrutura do campo religioso (ETS), no qual, em 0130519510 51 abordagem
interacionalista de Max Weber, constréi o campo religioso como estrutura‘de relagoes objetivas
capaz de explicar as interagoes que Weber explicava a partir de tipos ideais, e termina por estender
essa atitude mental e esse conceito a diversos universos da produgao sirnbélica, a saber, alta costura
(PC), literatura (RAP), filosofia (OPP), politica (PCP), ciéncia (PBS), entre outros, culminando com
a construgao do campo material e simbélico do mercado imobiliario (SSE). Se a0 autor foi possivel
passar do campo intelectual ao mercado imobiliério, foi porque a perspectiva relacional permite,
corno observa Bourdieu (OPS, 67), “as transferéncias metodicas de modelos baseados na hipotese
de que existern homologias estruturais e funcionais entre todos os campos”.
Ao construir, a partir do modo de pensar relacional, os diferentes espaeos de produgao
anteriormente mencionados, Bourdieu também construiu outro conceito, solidario ao de
Referéncias
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$510 Paulo:
Martins Fontes, 1994.
DURKHEIM, B. As regras do me’todo sociolégico (1895). 2. ed. 350 Paulo:
Abril, 1983.
BOURDIEU, P. Sociologia. Organizado por Renato Ortiz. Sz‘io Paulo: Atica, 1983.
Uma concisa e precisa coletanea em h’ngua portuguesa que, em cinco textos, sintetiza a
criacao sociologica de Bourdieu ao longo da década de 1970, programaticamente exposta no
relatério de 1980, que abre o conjunto, e aprofundada no texto seguinte, de 1972, que expoe
as bases de sua teoria das préticas sociais. A analise da producéo social das distancias e dis-
tincées de classe nos padroes de gosto estético e estilos de Vida e a constituicao historica de
um campo relativamente autonomo de producao cientr’fica, ambos de 1976, figuram como
estudos exemplares da aplicacao da abordagem sacrflega, que toma por objeto da explicacao
sociolégica os bens simbélicos de valor mais puro nos dominios da criacao e do intelecto. Por
firm, 0 artigo de 1977 esboca a construcao do mercado das trocas discursivas, no contraponto
a autonomizacao da competéncia linguistica realizada pelo estruturalismo objetivista.
Os textos surnarizam os resultados das principais pesquisas realizadas até entao, envolvendo as
areas da etnologia, da linguistica, da teoria sociologica, dos estudos de estratificacao, da sociologia
da cultural, da arte, da educacao e da ciéncia, que a perspecfiva sociolégica do autor resgata da
extrema especializacéo. O campo e o habitus 550 05 instrumentos relacionais de um conhecimento
praxiologico que busca explicar a dialética entre relacoes estruturadas e disposicées praticas e
revelar os mecam'smos de classe da inculcacao do arbitrério —— mecanismos institucionalizados
pelo desenvolvirnento de um modo de dominacao cuja forca (violéncia) simbolica permjte definir
o belo, ojusto e o verdadeiro universais, ocultando seu préprio condicionamento historico e social.
Explorando em especial o diélogo entre a sociologia de Bourdieu e a filosofia de Sartre,
a introducao de Renato Ortiz formula, na vertente aberta pelas ideias de Gramsci, a questéo
basica acerca da transformacao social, caracteristicamente suscitada pela énfase boardieu—
siana nos mecanismos de reproducao da dominacao e das classes dominantes.
Referéncia
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BOURDIEU, Pierre. 0 pader simbélico. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989.
O livro refine dez artigos de Bourdieu publicados ern periédicos franceses e norte~a1ne~
, ricanos no periodo de 1977 a 1987.0 interesse do volume'e apresentar uma recolha de textos
que dialogarn em torno do poder justamente na forma em que ele'e menos reconhecido, como
poder invis1vel, sirnbolico, que “so pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que nao
querern saber que lhe estao sujeitos ou mesmo que o exercern ’,(OPS 8).
A obra'e dividida em dois momentos, que procuram construir o entendimento do titulo O
inicial apresenta capitulos densos, voltados as nocées que permeiam a dificil tarefa de decifrar
em que medida o poder sirnbolico atua nos espacos sociais como urna forma transfigurada de
outros poderes ou propriedades que se constituern por meio do }og0 social Assirn, o primeiro
artigo é emblemético de urn dos chavoes mais associados ao autor, “estruturas estrnturantes”
e “estruturas estruturadas”, referindo-se aos sisternas simbélicos como produtores e produto
' da realidade. Em seguida, oferece uma aula metodologica ensinando a pensar o mundo social
8 a construir o objeto sociologico, utilizando ferramentas que colocam o proprio pesquisador
em exame. Os ulteriores abordarao a discusséo de conceitos e nocées que compoern o entendi—
mento de campo social. Parte da génese de habitus e de campo passa pela ideia de regiao (em
que aborda como a posigfio ocupada no espaco do jogo, central 011 local, pesa sobre a visao do
jogo em 51) e pela discussao da histéria reificada e incorporada, trazendo a tona a relacao entre _
a historia objetivada nas coisas e a encarnada nos corpos, em que o habitus funciona como
forma de entender a maneira pela qual a sociedade se introjeta no individuo. Culmina versando
sobre espaco social 6 génese das classes, por meio da abordagem da multidimensionalidade de
posicoes constitutivas do mundo social, em que os agentes se distribuem hierarquicamente em
funcao do volume global e da composicio do capital atuante nos distintos campos.
No segundo momento encontram-se textos operacionais, deixando extravasar sua sociologia
da construcao dos campos sociais e das nocoes que a acornpanharn, tratando respectivamente
da politica, do direito e da arte. Capitulos que, bern lidos, oferecem oportunidade de apreender
em que rnedida “a teoria cientifica apresenta-se como um programa de percepcao e de acéo
so revelado no trabalho empirico em que se realiza” (OPS, 59).
164(POSIQAO DE CLASSE
6.6::RRAI!FA.<.T6Ori6 66?................................
Gisele Sapiro
Bourdieu comega a elaborar sua teoria da prética na década de 1960, apés retornar da
Argélia. O primeiro desenvolvimento completo dessa teoria encontra-se ern Esquisse d’une
théorz'e de la pmtique (1972), seguido de uma reformulaeao sistematica em Le senspmtique
(1980). Surgida do confronto com a antropologia estrutural de LéVi—Strauss, essa teoria nutriu—
se das leituras de MerleauvPonty, Husserl, Heidegger e Wittgenstein, mas esta enraizada, antes
de mais nada, nas pesquisas etnolégicas por ele empreendidas na Cabflia entre 1958 e 1961.
A reflexao sobre a prética ancora—se em urna dupla critica: do subjetivismo e do objetivismo.
Por um lado, as abordagens subjetivistas, desde a teoria de Sartre até a teoria do ator racional,
pressupoem que a agao é o produto da vontade de um sujeito consciente e capaz de se projetar
no future, antecipando as consequéncias de suas agoes. Ora, Bourdieu contesta tanto a ideia da
liberdade total de escolha quanto dalivre projegao no futuro. A0 apoiar-se na nogao de “protenséo”
desenvolvidapor Husserl, estabelece uma distineao entre aprevisao racional de longo prazo voltada
a um “futuro” construido em torno de um projeto (por example, a escolarizagao dos filhos), catac-
teristica das sociedades capitalistas, e a previdéncia como “aspiraeao prética de um porvir inscrito
no presente, logo apreendido como ja estando aqui e dotado da modalidade déxica do presente”,
prevalecente nas sociedades tradicionais organizadas em tomo de um calendério ciclico (CD, 22).
For outro Iado, o objetivismo estruturalista transforma os agentes ern suportes quase
mecanicos das estruturas. 0 use polissémico da nogao de regra na antropologia estrutural,
entre o sentido de norma que os agentes seguiriam conscientemente e o sentido de principio
reconstruido pelo pesquisador para dar conta da regularidade das praticas, alertou Bourdieu
para as lacunas e os Vieses dessa abordagem, criticando-a por seu— intelectualismo (o que,
mais tarde, ele iré definir como o “viés escoléstico”).A1ias, a inscrigao nos tempos de trocas,
come 0 dom e o contradom on o desafio e a réplica, torna insuficiente qualquer explicaqéo
mecanicista das logicas que presidern essas interaeoes.
A teoria da pratica refuta tanto a concepgao racionalista da agao quanto a ideia de agentes
movidos pelas estruturas de maneira inconsciente. Ela enfatiza a especificidade das légicas
da pratica, que se desdobram na situaeéo concreta 6 na urgéncia, diferentemente do tempo e
da reflexividade que caracterizam a atividade de produgao do conhecimento. A razao erudita
fracassa em dar conta da prética porque, de acordo com a frase de Marx, ela considera as coisas
da logica como se fossem a logica das coisas. Ora, a logica da prética difere radicalmente da
logical: trataase de uma logica vaga que escapa as tentativas de sistematizagao avaneada do
295 POLITICA
método estrutural, devido a significaeao ambigua de alguns elementos que pode variar segun»
do as principios de oposigao aos quais eles se referem e que faz com que nao haja homologia
estrutural perfeita entre esses diferentes principios, como foi constatado por Bourdieu em
relaqao a prética ritual na Cabflia (cf. 0 capitulo de 0 senso pnitico, dedicado ao “demonic
da analogia”). Essa logica vaga p6e em relagao elementos segundo o principio da “semelhanga
global”, de acordo com a expressao de Jean Nicod, que leva em conta apenas certos aspectos em
detrimento dos outros (os quais nem por isso desaparecem). Ela se caracteriza pela polissemia
e pela “politetia”, que Bourdieu opoe a definigao husserliana da apreensao “monotética”.
O “senso prético”, senso de orientagao e senso do jogo, simultaneamente, é o que permite aos
agentes se adaptarem a urn numero infinito de situagées sern seguir explicitamente uma norma,
uma regra ou um codigo transmitido (postura que a abordagem estruturalista mecanicista é
incapaz de explicar), mas sem que por isso eles obedegam a0 livre decreto de seu pensamento,
, como pretendem as teorias subjetivistas ou racionalistas. O que torna possivel esse ajuste?
Dois conceitos~chave da teoria da pratica de Bourdieu permitern responder a essa pergunta:
0 de habitus e 0 de estratégia. O habitus é o principio gerador dos esquemas de percepeao,
de avaliagao e de agao. Resultado de um processo de interiorizaeao das estruturas sociais sob
a forma de disposigoes no decorrer da socializagao priméria e secundéria, ele esta na origem
,_,,,da capacidade dos agentes de desenvolver estratégias,mais ou menos ajustadas as situaeoes
vividas, enquanto a noqao de estratégia remete a margem de improvisaqao dos agentes em
fungao de suas disposigoes. Mas a adequagao perfeita entre as situaqoes vividas e as estratégias
nao passa, no entanto, de um caso particular do possivel. Com efeito, em seus estudos sobre a
sociedade cabila e sobre a sociedade camponesa de sua terra natal, o Béarn, Bl‘ourdieu observou
a dificuldade experimentada pelos individuos de se ajustafem a novas situagoes em periodo
de transformaeao social, quando as estruturas sociais ja 1150 correspondern aquelas que eles
haviam interiorizado no passado, e quando 0 sistema de valores ja nao é mais o mesmo.
A inércia do passado faz~se sentir através dos habitos feitos corpo. O termo “habitus”aparece
pela primeira vez na obra de Bourdieu em referéncia a Mauss e a sua anélise das “técnicas do
corpo”. Segundo Mauss, o termo “habitus” - tomado de empréstimo a tradigao aristotélico-
tomista e empregado de maneira ocasional por Hegel, Husserl, Weber e Durkheim, traduz “me-
lhor do que ‘habito’, o ‘exis’, o ‘adquirido’ e a ‘faculdade’ de Aristoteles” (MAUSS, 1950, p. 368):
ele remete aos “habitos” coletivos, que variam de uma sociedade para outra. Diferentemente de
Tarde, que na comunidade das praticas vé o resultado da imitagao, Mauss preconiza que, através
da educagao — e, sobretudo, pelo adestramento dos corpos —- é que sao interiorizadas, incorpo-
radas, nao apenas as representagoes sociais, mas também as regras de conduta e as praticas.
O corpo socializado “pensa”, é um corpo “habituado”, explica Bourdieu em Esquisse d’une
the’orie de la pmtique; “as estruturas temporais [...] introduzem o habitus na logica do prazo
e do desvio, logo, do célculo” ([1972], 2002, p. 297); o corpo é temporalmente estruturado pelo
trabalho pedagogico que consiste em lhe ensinar principalmente a adiar os prazeres, a domes-
ticar as pulsoes (transformar a fome em apetite, etc.). Mas o corpo é também o lugar da prética,
da inveneao e da improvisaeao das condutas mais ou menos ajustadas as situagoes. Faculdade
de improvisaqao que, no entanto, permanece limitada pelas condieoes de sua socializaeao na
» medida em que os habitos incorporados oferecem frequentemente resisténcia (expressao de sua
inércia) ‘as tentativas mais conscientes de controle dos individuos sobre seu corpo. Na medida
Referéncias
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par la connaz’ssance. Paris: Odile Jacob, 2004. p. 317—325.
Publicado no Brasil em 1999 e tendo o titulo corrigido em edicoes posteriores para OfiCiO
de socio’logo: metodologia da pesquisa na sociologia, este livro representa exemplarmente
167. PROJETO
Ver: Conatus
BOURDIEU, P. Propos sur le champ politique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000.
“Como pensar a politica sem pensar politicamente?” Indagacao desafiadora proposta por
Pierre Bourdieu e que pode orientar a leitura deSte livro composto por discussoes e nuances
instigantes em torno de uina temética que parece sempre fadada a produzir obstéculos de
diferentes ordens Além de artigos sobre a “politica”, ganham destaqué a conferéncia de
Bourdjeu sobre O campo politico” e a entrevista que concedeu (datam de 11 de fevereiro de
1999), ambas conduzidas por Philippe Fritsch, que assina o texto introdutério e ainda’propoe,
nas paginas finais, uma bibliografia com os “principais trabalhos de Bourdieu sobre as ques—
toes de politica”. Sublinhada a intervencao de Fritsch, cabe ressaltar que a efetivacao desse
projeto parece ter sido tributéria de aspectos proprios a uma etapa do itinerario de Bourdieu,
da sua producao e dos “combates” que travou em um contexto historico especifico. Neste
caso evidenciam—se, notadamente, as énfases atinentes ‘as relacoes entre os campos politico,
jornalistico e das ciéncias sociais, bem como a funcao politica dos intelectuais. Conjuga~se
a isso a possibilidade de atentar para o trabalho de formulacao de um referencial analitico
a partir da problematizacao das condicoes de apreensao do dominio especializado da vida
social em pauta. Ou seja, encontram—se aqui as bases do programa de pesquisas para ponde:
Iar sobre os condicionantes sociais que configuram o microcosmo da politica, os processos
de profissionalizacao intervenientes, a constituicao de regras especificas de funcionamento,
as condicoes de afirmacao de determinadas competéncias para o trabalho de mobilizacao
politica e as mfiltiplas estratégias concorrenciais de imposicao de principios de visao e divisao
do mundo social. Nao por acaso, a essa elucidacao dos entraves decorrentes das ilusoes de
uma “compreensao imediata” da politica corresponderam adesées e reacoes em universos
académicos, midiaticos, militantes e intelectuais.
BOURDIEU, P. Razées préticas: sabre a tearia da again. Campinas, SP: Papirus, 1996.
No prefacio a edigao brasfleira de 1996 (o livro foi publicado originalmente em 1994), Bourdieu
assinala que o conjunto de textos apresentados no livro tern o sentido de urnfetorno refiexivo
sobre o conhecimenta acumulado a partir das infimeras pesquisas que desenvolveu. Trata—se,
portanto, de uma tentativa de sintese das questoes que o ajudaram a elaborar conceitos centrais
da teoria da agao que atravessa boa parte de sua obra. Bourdieu adverte aos pesquisadores
sobre o equivoco que seria desenvolver urna leitura purarnente teorica do conjunto dos textos.
Esclarece que os conceitos presentes na obra, na maioria das vezes, foram desenvolvidos para
resolverproblemas inseparavelmente empiricos e tedricos. Enfatiza ainda a centralidade da
perspectiva relacional no ambito da sociologia, questiona as tendéncias substancialistas, comuns
nas ciéncias sociais, quando tratarn como “fates” - situagoes, posigoes, processes, etc. — aos
quais 36 se chega pela percepgao das relaqoes que mantém com outros fenomenos sociais. Para
0 autor, as relagoes objetivas nao sao percebidas diretamente, mas precisam ser (re)constru1’das
por um rigoroso trabalho cientifico de articulaqao entre os fenomenos.
Razfies prdticas oferece aos leitores palestras/textos que Bourdieu realizou no estrangeiro e '
no Collége de France. Entendo que o conjunto representa o aspecto mais original da construgao
sociologica empreendida pelo autor - ou seja, a hipétese de que a maioria das agoes dos agentes
sociais tern por fundamento razoespra’ticas. Para ele,‘ as razoes praticas sao derivadas do habitus —
disposiqoes para agao, fortemente incorporadas pelos agentes em suas trajetorias sociais — e resul-
tarn da posigao social dos agentes e de suas praticas usuais. No processo de socializagao (familiar,
escolar, profissional, etc.) 05 agentes/atores adquirem formas de agir ajustadas ‘as exigéncias (regras)
dos campos sociais que costumarn frequentar e, por isso, fazem o que é esperado em determinadas
situagoes (circumstancias/contexto), sem que precisem recorrer a razao (raciocinio) para agir con~
~ A ‘ forme as regras. Os conceitos “jogo”, “regra”, .“costume”, “habito”, “aprendizagem” (Wittgenstein)
foram importantes referéncias para o autor na elaboragao do m’icleo conceitual de sua obra.
REFLEXWIDADE 305
o quarto restante. Quais seriam entao as condicoes sociais que levaln a que nos detenha
mos
sobre nossas praticas? (MAUGER, 2009, p. 61—77).
Para comecar, podemos supor que a experiéncia do 111m “como algo evidente”, associad
a
ao senso pratico que funciona sem obstéculos, é desigualmente distribui’da no espaco
social.
Assim, segundo Bourdieu, “é provavel que os que se encontram ‘em 3611 lugar’
no mundo
social possam mais e mais completamente se entregar ou confiar em suas disposicé
es [...] do
que os que ocupam posicées em falso, tais como os arrivistas on 05 desclassificados”
(MP,
198). De maneira geral, pode-3e aventar a hipotese de que o ajuste das disposicoes
as posicoes
on do habitus interiorizados as situacoes defrontadas seja provavel nos dois polos
opostos
do espaco social — nas classes dominantes e nas classes dominadas - e que o desajuste
ea
substituicao da reflexividade ao senso pratico sejam muito mais provaveis nas regioes
inter-
mediarias desse espaco (as profissées “intermediarias” da pequena burguesia).
Parece, com
efeito, que habitus burgueses e habitus populates confirmam duas propriedades
genéricas
do habitus, segundo Bourdieu: por um lado, sua homogeneidade procede da coeréncia
, da
estabilidade das condicoes materiais e culturais de existéncia; por outro, o habitus
burgués
on popular tendem a se proteger das crises e dos questionamentos criticos, garantin
do sua
seguranca em um meio ao qual se esta tao pré-adaptado quanta possivel (o estar
“entre si”)
(SP, 102). A2) contrario, a ocupacao de posicoes “intermediérias” implica em frequent
ar lu-
gares, acontecimentos ou pessoas situados “mais alto”, assim como lugares, aconteci
mentos
ou pessoas situados “mais baixo”, expondo constantemente o habitus pequeno burgués
a
questionamentos, a crises e, por isso mesmo, a uma suspensao do senso prético. De
acordo
com Bourdieu, os ocupantes de posicoes em falso “tém mais chances de tomarem
conscien-
cia do que para os outros lhes parece evidente, pelo fato de se verem obrigados a se
vigiar e
a corrigir conscientemente os ‘primeiros movimentos’ de um habitus gerador
de condutas
pouco adaptadas ou deslocadas” (MP, 193).
A reflexividade pode ser igualmente uma consequéncia da conjuntura. Bourdie
u evoca,
assim, “situacoes mais criticas” suscetiveis de provocar uma “suspensao total da
submissao
do’xica a ordem estabelecida” (MP, 220), on seja, ao mundo “takenforgranted”: “Os
periodos
de crise nos qu'ais os ajustes rotineiros das estruturas subjetivas as estruturas objetivas
sao
bruscamente rompidos constituem um tipo de circunsténcias em que a escolha racional
pode
preponderar, ao menos entre os agentes que dispoem, se é que se pode dizer, dos
meios de
serem racionais” (R, 107). Pode—se supor que esse tipo de situacao libera uma forma
reprimi-
da de consciéncia da dominacao, autoriza um questionamento das crencas mais
ou menos
a’ssumidas. Considerando que a expressao dessa forma de reflexividade pressupo
e “palavras
para exprimi—la”, i.e., a possibilidade de dar o “salto ontolégico provocado pela
passagem
da préxis ao logos, do senso prético ao discurso, da visao pratica a representacao,
a saber, o
acesso a ordem da opiniao propriamente politica” (MP, 221).
Os deslocamentos de grande amplitude no espaco social e/ou as rupturas biografic
as per-
mitem igualmente dar conta da époché do senso pratico. A mobilidade social
ascendente ou
descendente, e a mudanca de universo social que lhes é inerente, engendram “a inadapta
cao”
do habitus - interiorizado no ambito da classe social de origem — as situacoe
s caracteristi-
cas da classe social de destino. As rupturas biogréficas, por sua vez, podem
ser produzidas
pelas situacées de imigracao e de “transplantacao” individual on coletiva, mais
ou menos
308 REFLEXIVIDADE
deliberadas ou impostas, ou ainda pelas iniciativas deliberadas de conversao do habitus no
interior de “instituicoes totais” (asilos, prisoés, seitas religiosas, etc.)
De maneira geral, quais 550 as condicoes sociais suscetiveis de produzir “fracassados” do
habitus? “O problema esta no fato de que, no essencial, a ordem estabelecida nao constitui
problema”, dizia Bourdieu (MP, 217). “Nunca deixei de me espantar, escrevia ele, diante do que
poderia ser designado como o paradoxo da doxa: o fato de que a ordern do 111m tal como ela é,
com suas permissoes e suas proibicoes, no sentido préprio como no figurado, suas obrigacoes e
suas sancées, sejagrosso modo respeitada, que nao haja um maior numero de transgressoes ou
de subversoes, de delitos e “loucuras” (basta pensar na extraordinaria coordenacao de milhares
de disposicoes — ou de vontades ~ que Se instala na circulacao automobilistica, durante cinco
minutos, na Praca da Bastilha ou da Concorde, em Paris). On, o que é ainda mais surpreenden—
te, que a ordem estabelecida, corn seus privilégios e suas injusticas, se perpetue com tamanha
facilidade, com excecao de alguns acidentes histéricos, e que as mais intoleraveis condicoes de
existéncia possarn ser tidas, com tanta frequéncia, corno aceitéveis ou, até mesmo, naturals”
(BOURDIEU, 1998, p. 24) . Os dois exemplos citados por Bourdieu - a circulacao de automoveis e
o respeito pela ordern estabelecida - colocam um duplo problema: de umlado, 0 do habitus e da
regra; de outro, 0 da doxa e da ideologia. No caso da circulacao de veiculos, “circular a direita”
é, para um motorista francés, uma prética incorporada que dispensa a referéncia explicita a _
uma regra que ele se esforcasse por cumprir. Se, no entanto, ele emigra para a Gri—Bretanha,
deveré nao so controlar e reprimir sua disposicao de “circular a direita” (a situacao pode, alias,
se tornar uma oportunidade de “tomar consciéncia” da regra interiorizada e de seu arbitrério
definido do ponto de vista nacional e historico), mas também aprender a “circular a esquerda”
e, ao menos no inicio de sua aprendizagern, ter constantemente em mente a regra explicita que
deve aprender a seguir. Desse ponto de vista, parece necessario admitir a coexisténcia de habitus
e de regras na Vida social, além de “considerar a regra explicita, cumprida conscientemente, e
o habitus como dois polos entre os quais existe, na realidade social, uma verdadeira gama de
casos intermediarios” (CHAUVIRL‘, 1995, p. 553). O milagre da circulacao de veiculos na Place
de la Concorde supoe que cada um tenha interiorizado as regras de transito. No entanto, tais
regras (o Codigo de Transito) sao, neste caso, as rnesrnas para todos e enunciadas como tais,
isso quando chegam a ser enunciadas. No que diz respeito a ordern social “com seus privilégios
e suas injusticas” ~ defacto, desigualitérias —, as regras que a organizam devem, no momento
de sua enunciacao, justificar as desigualdades, os privilégios, as injusticas “Visiveis a olho nu”.
Esses dois exemplos ilustram a partilha entre a “doxa” e a “ideologia”. A doxa, repertorio
de regras idénticas para todos, pode ser interiorizada como “algo evidente”. A ideologia do—
minanté, por sua vez, deve racionalizar regras que, defacto, estabelecem a de’sigualdade. A
inculcacao e a interiorizacao dessas regras sao solidérias da nocao de “violéncia simbélica”,
mas podem—se enfatizar duas versoes do conceito de “violéncia simbélica” na obra de Bour-
dieu (MAUGER, 2006): a primeira associada aos trabalhos de etnologia cabila que insiste na
incorporacao dos esquemas de percepcao, levando«os assim a escapar ao controle consciente;
a outra vinculada aos estudos sobre a escola, mais proxima das concepcoes marxista, webe-
riana ou durkheimiana da “ideologia”, que insiste no sentido atribuido pelos dominados ao
mundo social e em seu lugar nesse mundo. Nao é demais ressaltar, entretanto, que em Me-
ditacées pascalianas Bourdieu rompe explicitamente com a concepcao weberiana anterior:
REFLEXIVIDADE 307
“0 reconhecimento da legitimidade nao é, como acredita Weber, um ato livre da consciéncia
clara” (MP, 215). A ideologia dominante concebida como empreendimento de racionalizacao
(ou de "justificacao”) dos privilégios, das injusticas, das desigualdades sociais, situa~se na
ordem das representacoes, portanto, da “consciéncia”. Da doxa a ideologia dominante, ha
lugar para a reflexividade.
Finalmente, a prolongacao generalizada das escolaridades é outra razao para universalizar
o privilégio da reflexividade. Além da quebra — ao menos relativa — das divisoes sociais que ela
\implica e, por isso mesmo, a percepcéo inevitével das desigualdades economicas e culturais,
além do acfimulo de instrumentos de expressao e da aprendizagem da transcricao do ethos
em logos, a escolarizacao prolongada implica numa aprendjzagem da condicao escoléstica e
na interiorizacao de disposicoes reflexivas que facilitam a passagem do distanciamento aci—
dental a uma disposicao permanente: “Estando livre da sancéo direta do real, 0 aprendizado
escolar [. . .], escreve Bourdieu, é a ocasiao de adquirir, de lambujem, por forca do habito, a
disposicao permanente para operar o distanciamento do real diretamente percebido, condicao
da maioria das construcées simbélicas” (MP, 28).
Referéncias
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1.73. REGRA
Ernesto Seidl
Em boa medida o esquema conceitual de Pierre Bourdieu desenvolveu—se com base numa
percepcao do mundo social e das praticas que rejeita a nocao de regra, entendida como “principio
de tipo juridico ou quase juridico mais ou menos conscientemente produzido e controlado pelos
agentes”. A teoria da prética de Bourdieu opoe—se em especial a0 formalismo oujuridismo de teorias
segundo as quais a 21930 social é fruto da obediéncia exclusiva a regras, codificadas em leis on n50.
Nesse sentido, propoe que mesmo em sociedades altamente codificadas, reguladas oficialmente por
normas e leis, a acao social é principalmente resultado do habitus, principio gerador que orienta
a relacao dos agentes corn 0 mundo social por meio de um sentido prético irredutivel ‘as regras.
Assim, a observacao de regularidades em determinadas préticas, como nas aliancas
matrimoniais do campesinato do Béarn na Franca, nao significa obediéncia a regras, mas
308 REGRA
agoes (no caso, de reproduqao social) cujas légicas 1150 se ajustam necessariamente a normas
explicitas ou implicitas. Em muitos casos, inclusive, as préticas sociais raramente condizem
com as regras concebidas como norma geral ou mesmo como conduta exemplar. O casa-
mento com a prima paralela patrilinear na sociedade béarnaise fornece born exemplo de
uma estratégia matrimonial corrente em desacordo com as regras oficiais de parentesco. A
noqao boardieusiana de estratégia aparece assim como forma de objetivar cientificamente
as recorréncias nas formas de agao que, independentemente de seu acordo com as regras,
somente séo inteligiveis ‘a 1112 dos diferentes interesses dos agentes, tais como a manutengéo
biolégica da linhagem on a garantia de transmissao do patrimonio.
a
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v. 26, n. 9, p. 179-181, 1994. Disponivel em: <http2/lwww.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00__26/
rbcs26~resenhas.htm>. Acesso em: 14 set. 2011.
Na obra de Pierre Bourdieu, reproducao é uma nocao que permits indagar sobre aquilo
que permite que “a ordem estabelecida, corn suas relacoes de dominacao, sens direitos e
suas imunidades, seus privilégios e suas injusticas, salvo uns poucos acidentes histori-
cos, perpetue—se apesar de tudo tao facilmente, e que condicoes de existéncia das mais
intoleraveis possam ser permanentemente vistas como aceitaveis e até corno naturais”
(DMp, 7). A questao foi trabalhada cumulativamente desde os estudos sobre a Argélia e o
Béarn até os filtimos escritos sobre a sociedade francesa, dando origem a um sofisticado
' argumento, cujos pontos principais podem ser encontrados nos livros A reprodugao, La
noblesse d ’Etat, Meditagoes pascalianas 6 nos cursos do Collége de France publicados
postumamente sob o titulo Sur l Etat.
REPRonuco 313
O argumento dialoga com as teorias classicas sobre o poder propostas por Marx, Durkheim
e Weber. Do primeiro, Bourdieu retérn a ideia de que reproducao social refere-se ‘a reproducao
das relacoes entre as classes. For reproducao social, entende—se a reproducao das relacoes de
forca que estruturam as relacoes entre os grupos sociais. A partir de Durkheim, acrescenta
que a reproducao se da tambe’m pela reproducao do sentido, que, contra Durkheim, é vista
come 0 resultado de uma luta entre as classes para imposicao do sentido legitimo. Por fim,
propoe que a eficacia do reforco simbélico as relacoes de dominacao reside, por um lado, a
partir de Weber, no reconhecimento, pelos dominados, da legitimidade da dominacao, um
dos resultados da luta pela imposicéo do sentido e, por outro, para além de Weber e de novo
com Marx, no desconhecimento das relacoes de forca que fundarn tal legitimidade.
Para além disso, o argumento recusa a alternativa entre estruturalismo e interacionismo
ou, mais precisamente, entre “saber se 05 sinais de submisséo que os subordinados oferecern
continuamente a seus superiores fazem e refazem continuamente, sern cessar, a relacao de
dominacao on se, ao inverso, a relacao objetiva de dominacao impoe os sinais de submissio”
(BOURDIEU, 1994, p. 3). Supoe, entao, que toda sociedade existe no tempo porque esta apoiada
sobre “a relacao entre dois principios dinamicos, desigualmente importantes segundo a so-
ciedade em questao. Um deles é inscrito nas estruturas objetivas [...] e outro, nas disposicoes
[que os agentes apresentam com relacao] a reproducao” (BOURDIEU, 1994, p. 3). A reproducao
social é, nessa logica, o resultado das estratégias de reproducéo que os individuos imple-
mentam a partir do encontro entre essas duas dimensfies! >
As famflias 3510 as autoras dessas estratégias, que podem se dar em dominios muito distintos. p
Elas podern ganhar a forma de um “investimento biolégico”, como é o caso daquelas que dizem
respeito a fecundidade e que guiam as decisoes de se ter um maior ou menor ni’imero de filhos.
Podem também estar associadas a estratégias sucessérias, que orientam, por exemplo, a definicfio
do herdeiro, cujo objetivo é evitar grandes perdas no processo de transmissao do patrimonio.
Podem se apresentar tarnbém como estrate’gias educativas elou corno estratégias de investimento
econornico. Podem, iguahnente, assumir a forma de investimentos sociais — para estabelecer e/ou
cultivar relacoes que possarn ser mobilizadas em algurn momento. Podem ser, por fun, estratégias
de investimento simbélico, que visam conservar ou aumentar 0 capital de reconhecimento. As
estratégias sao pensadas como urn sistema. Isso significa que a maior ou menor énfase atribuida a
uma pode ser efeito de operacoes de compensacao com relacao a outra. Estratégias matrimoniais
podem compensar estratégias de fecundidade malsucedidas, assim como estratégias de investi~
mento economico podem compensar estratégias educativas que nao deram certo.
Apenas urna “analise historica das estratégias que, em contextos muito diferentes, agen—
tes [sociais] muito diferentes implementam” para garantir a continuidade que sua posicao
dominante oferece; portanto, condicoes para se compreender como se dé a reproducao social
(BOURDIEU, 1994, p. 5). Analisar um sistema de estratégias exige, por urn lado, examinar a
composicao do patrimonio que esta sendo transmitido, descrevendo muito precisamen’re 0
peso relativo nesse patrimonio das diferentes espécies de capital — cultural ou economico,
social e simbélico, por exemplo. Por outro, é preciso levar em conta a dimensao institucional
que enquadra tais estrate’gias. Bourdieu refere—se a essa dimensao como o “estado dos meca—
nismos de reproducao” nurn momento dado. Tais mecanismos sao, entre outros, o mercado,
em especial, o mercado de trabalho; o direito, principalmente o direito de heranca e as leis
314 REPRoouc/io
de propriedade; a instituicao escolar, notadamente a organizacao do sistema de ensino e as
formas de obtencao e valorizacao do diploma, etc. A importancia desses mecanismos reside
no fato de que sao eles que definirao tanto os custos do investimento familiar quanto o lucro
obtido pelo grupo em retorno.
Essa anélise comparada foi'o que permitiu a Bourdieu revelar a importancia que o sistema
de ensino e, logo, 0 capital cultural, havia assumido nas estratégias de reproducao dos grupos
dominantes nas sociedades altarnente diferenciadas onde se desenvolveu essa instituicao
particular, 0 Estado burocratizado. Tal importancia deriva diretamente do longo processo
que deu origern ‘a emergéncia do estado, carac'terizado como urn “processo de concentracao de
diferentes espécies de capital”, particularmente 0 capital de forca fisica, 0 capital economico
e, por fun, 0 capital cultural (BOURDIEU, 1993, p. 51). Trata—se ai de dinamicas estreitamente
relacionadas. A concentracao do capital de forca fisica, que corresponde a0 surgimento pro»
gressivo do exército e da policia, depende da concentracao de capitaleconomico, concretizada
numa estrutura fiscal complexa, que, por sua vez, depende de um capital informacional de
-
que 0 capital cultural é um tipo particular — para ser gerida. A condicao de sucesso dessa
monopolizacao progressiva reside na concentracao de um outro tipo de capital — 0 capital
simbolico objetivado, presente, por exemplo na prerrogativa, apropriada pelo Estado, da
nomeacao e da certificacao. , , . , , , ,'
Essas mudancas provocam urna transformacao nas estratégias de reproducao. O cresci—
mento em importancia do capital cultural, por exemplo, corresponde ‘a passagem de uma logica
dinastica, fundada num modo de reproducao familiar, a uma logica burocratica, fundada
sobre urn modo de reproducao “com componente escolar” (BOURDIEU, 1994, p. 10). O processo
de construcao do Estado é, a0 mesmo tempo, um processo de desnaturalizacao associado a0
rompimento progressivo com as lealdades de base familiar. Com a desvalorizacao dos lacos
familiares, o diploma deixa de ser “um atributo estatutario” para se tornar um bilhete de
entrada (BOURDIEU, 1994, p. 10). Estao reunidas, assim, as condicoes para que o sistema de
ensino possa se tornar urn elemento fundamental dos processes de reproducao social.
0 modo de reproducao com componente escolar opera a partir de uma logica estatistica:
“a escola so pode contribuir para a reproducao de uma classe (no sentido légico do termo)
se sacrifica alguns dos seus membros que poderiarn ser poupados se estivesse em vigor um
modo de reproducao mais controlado pela familia” (BOURDIEU, 1994, p. 10). Além disso, ela
so pode desempenhar essa funcao se as criancas menos providas de capital cultural estejam,
e 1150 por acaso, mais inclinadas ‘a autosselecao. Por conseguinte, o sisterna escolar so pode
desempenhar suas funcées de reproducao enquanto essa funcao for dissirnulada.
Vé-se, dessa maneira, como afirma mais explicitamente Passeron (1986), que o modo
de reproducao corn componente escolar so pode funcionar enquanto a ilusao meritocratica
estiver produzindo plenamente seus efeitos sociais e simbélicos.
Referéncias
BOURDIEU, P. Esprits d’Etat. ARSS, v. 9697, p. 4962, 1993.
BOURDIEU, P. Strategies de reproduction et modes de domination. ARSS, v. 105, p. 3-12, 1994.
PASSERON, L-C. Hegel ou le passager clandestin. La reproduction social et l’Histoire. Esprit, p. 63-81,
juin 1986.
REPRooucAo 315
1.77. REPRODUQAO (A): ELEMENTOS PARA UMA TEORIA D0 SISTEMA DE ENSINO
(La reproduction: é/émenrs pour une rhéorie du systéme d’ense/gnement)
Livro escrito por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reproducdo apresenta exten-
sivamente a teoria da violéncia simbélica, hipétese construida para explicar a contribui
cao
da escola para a reproducao social. Publicado na Franca em 1970 e traduzido no Brasil pela
primeira vez em 1975, apresenta as conclusoes parciais de um percurso coletivo
de pesquisa
sobre o sistema de ensino que, desenvolvido desde o im’cio da década de 1960 no Centre de
Sociologie Européenne, havia dado origern a varios artigos e livros, entre os quais, Les
héritiers (1964).
A reproducdo é fruto de um contexto particular que colocou a educacao escolar na linha de
frente dos debates académicos e politicos. Por urn lado, a derrota 11a Segunda Guerra Mundial e o
lancamento do Sputnik pela Uniao Soviética em 1957, em plena guerra fria, alimentava na Franca
um discurso tecnocrético sobre o rendirnento escolar. Por outro, crescia, desde o im’cio do século
XX, a percepcao das desigualdades educacionais como um grave problema social. Decorrente,
pelo menos em parte, das transformacées na concepcao dejustica social advindas da revolucéo
russa, essa percepcao era agucada pelas pressoes originadas das mudancas demogréficas por que
passava a sociedade francesa no pés-guerra, ern especial a chegada da geracao do baby boom aos
anos finais do ensino primério, ao longo da década de 1950, forcando o aumento de matriculas
no ensino secundario. Ela era alimentada também por pressoes das famflias dos grupos me’dios
pelo alongarnento da escolarizacéo dos seus filhos, num contexto em que o desenvolvimento
do setor terciario e o avanco da tecnologia permitiam que as credenciais escolares pudessem
ser vistas como bilhetes de entrada para ocupacoes rnais rentéveis.
Tudo isso ajuda a explicar a difusao de um sentimento de “crise da educacao” que a am-
biguidade das reformas emanadas do gaullismo nao ajudava a superar, na medida em que
buscava ampliar simultaneamente a formacao de elites técnicas e cientificas e o acesso a0
ensino secundario e superior aos grupos médios até entéo excluidos das trajetorias escolares
de longa duracao. Tais reformas deparavam-s'e com a oposicéio dos professores, sindicatos e
partidos de esquerda. Esses ultimos, na auséncia de um projeto proprio, apoiavam~se sobre
o plano de reforma elaborado por dois eminentes intelectuais ligados ao Partido Comunista
Frances, Paul Langevin e Henri Wallon, ao final da ocupacao nazista, segundo o qual a “de-
mocratizacao do ensino” necessaria a implementacao da “justica na escola” “deve ser coman~
dada” nao rnais pela classe social, mas pela “capacidade” individual de “preencher a funcao”.
‘
Concretamente, A reproducdo pouco acrescentou a demonstracao ja amplamente conhecida
e debatida da desvantagem das criancas oriundas dos grupos mais desfavorecidos no sistema
de ensino;Na Franca, por exemplo, isso havia sido objeto dos estudos coordenados por Alain
Girard no ‘Institut National d’Etudes Démographiques (INED), cujos resultados estavam
sendo publicados desde 0 final dos anos 1950, e da pesquisa coletiva sobre os estudantes das
Referéncias
PASSERON, I.-C. Que reste-t'il des Héritiers et de la Reproduction (1964497
1) aujourd’hui? Questions,
méthodes, concepts et réception d’une sociologie de l’éducation. Sociological Research
Online, v. 12,
n. 6, p. 13, 2007.
Paula Montero
Na antropologia politica de Pierre Bourdieu os ritos sao tratados como préticas simbéli-p
cas aptas a conferir legitimidade social a coisas e pessoas. Nesse sentido, os ritos religiosos
representam apenas um caso particular de todo rito social. Retirando o conceito
do campo
da sociologia religiosa onde ele foi tradicionalrnente elaborado e aplicado, o rito se torna,
na
obra de Bourdieu, urn operador analitico-chave para a compreensao do funcionamento
de
certas formas de poder em nossa sociedade. ,
Levi-Strauss (1971, p. 600602) ja havia definido os ritos corno atos repetitivos vincuiado
s aos
mitos que tém por funcao condensar de maneira concreta e unitéria um sistema de ideias e de
representacoes. Ao subtrair gestos e objetos de sua manipulacao rotineira, o ritual promove
uma
linguagern corn forte eficécia simbolica, isto é, dotada de capacidade de promover a conviccao
em sua habilidade para produzir efeitos esperados sobre o mundo. A eficacia simbélica
reside
menos no que dizem esses gestos do que no modo como eles dizern. Segundo Levi-Strauss, todo
rito lanca mao de dois tipos de procedimento: 0 de divisao — atribuicao de valores discrimin
ativos
‘as menores nuances no interior de uma classe de objetos ou tipos de gestos — e 0
de repeticao
de mesma formula infinitas vezes. Para Levi-Strauss, o recurso sistemético do rito
a esses tipoS
de procedimentos complementares explica—se pela oposicao entre as formas de
pensar do mito,
mais abstratas, e do rito, mais voltadas para a fluidez do vivido. Bourdieu inverte esta
oposicao
levisstraussz'ana entre Vida e pensamento na qual o rito representa apenas o “abastardamento
consentido do pensamento quando submetido a servidéo da Vida” (LEVPSTRAUSS,
1971, p. 603)
e investe positivamente a légica das préticas das mesmas operacoes mentais inerentes ao rito.
As praticas rituais passam a ser compreendidas corno o produto do senso prético
e nao de um
sistema abstrato e inconsciente. Em seu livro Ce queparler veut dire (1982), Bourdieu afirma
que dividir ou classificar é pratica inerente a0 senso comum e, por mais arbitréria
s que sejam
Referéncias ,
AUSTIN, I.-L. How To Do Things With Words. Oxford: Clarendon, 1962.
LEVI—STRAUSS, C. L’Homme nu. Paris: Plon, 1971.
A figura e a obra de Sartre constituiram para Bourdieu, ao mesmo tempo, urn modelo e um
repfidio (BOURDIEU, 1993). “Aspirante a filosofo” em uma época em que o existencialismo era
a corrente dominante no campo intelectual, o futuro sociologo ficou marcado intensamente
por urn pensarnento que estava ern contato com as coisas da Vida corrente 6 com o mundo
contemporaneo. Apesar de nunca ter encontrado Sartre, Bourdieu colaborou em sua revista,
Les Temps Modernes, na qual publicou quatro artigos, entre 1962 e 1971. A partir dessa data
é que, abertamente, ele toma suas distancias com o filosofo.
O confronto com a antropologia de Sartre, transformada por ele no tipo ideal do subjetivis—
mo, teve uma incidéncia consideravel sobre a génese da teoria do habitus (SAPIRO, 2001; 2004).
A0 mecanicisrno das teorias behavioristas que explicarn as emoqoes por suas causas, Sartre
substitui, em Esquisse d’une théorz'e des émotions (1938), urna abordagem de fenomenologia
psicologica que privilegia urna explicaqao de tipo finalista, considerando as emogoes corno
condutas inferiores, mégicas, irracionais. Sartre rejeita também a abordagern psicanah’tica que
explica a emogao por meio dos vinculos, simultaneamente, de causalidade e de compreensao
(a simbolizagao). Do mesmo modo, em L’Etre et le néant, descarta a explicagao freudiana
do comportamento pelo inconsciente, substituindo-a pela noeao de “ma fé" para preservar
a transparéncia da consciéncia a si Inesrna e, portanto, sua liberdade. A partir de semelhante
abordagem finalista e antideterminista das condutas (mesmo irracionais), é que Bourdieu ira
desenvolver o conceito de estratégia, e encontramos ern sua sociologia da adesao a ideia da
crenea no jogo defendida por Sartre. Em compensagao, ele rejeita o principio da néo sinceridade
da emogao e a radicalizagao, em L’Etre et le néant, da tese sobre a liberdade de escolha entre
a interpretagao rriégica ou técnica do mundo, além de se insurgir contra a anafise da ma fé. A
indignagao contra o que Bourdieu ira definir, mais tarde, como urn erro intelectualista é uma
das rnolas propulsoras de sua elaboragao de uma teoria da prética e do conceito de habitus.
Tendo em vista superar a oposigao entre subjetivismo e objetivismo que, nesse memento, se
apresentava sob as aparéncias, por um lado, da fenomenologia e, por outro, do estruturalisrno (e
do marxismo), o conceito de habitus, corno principio gerador das praticas individuais que permite
SARTRE,JEAN-PAUL(7905-1980) 321
explicar a capacidade dos agentes de se orientarern no 111m social e de adotarem condutas adap»
tadas as condicoes objetivas sem obedecerem explicitamente a uma regra, opera urna ruptura com
o dualismo sartreano. Para Sartre, a consciéncia é liberdade com a condicéo de negar o peso da
inércia do passado e do corpo. O corpo é facticidade, esté do lado das coisas, dos objetos, do viscoso,
do gosmento; ele e’ “corpo—para—os—outros”, e esse olhar dos outros, ao objetiva—lo, transforma—o,
ern urn “corpo alienado”. Se Bourdieu nao admite a “nadificacao” [néantisation] sartreanil da
consciéncia, que esta na origem da transcendéncia do sujeito e do dualismo, do mesmo rnodo que
também nao aceita a refutacao do inconsciente, Bourdieu estariapronto, sem dfivida, a concordar
corn Sartre em sua concepcio do corpo corno lugar das inércias e da afienacao, se 0 filosofo mac 0
tivesse transformado na propria esséncia do corpo. Pois, como ele explica em urn artigo de 1977
intitulado “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps”, a alienacao pelo corpo é
um sentimento distribm'do de forma desigual, segundo as condicoes sociais: assim, o constrangi—
mento — que é “a experiéncia por exceléncia do ‘corpo alienado’” (1977, p. 52) - é encontrado com
maior probabilidade nas classes desfavorecidas, ao passo que a experiéncia oposta, a desenvoltura
(corporal), é mais frequente entre os membros da classe dominante que detém o poder de definicao
e de imposicao das normas estéticas legitimas (usos e regras de cortesia, maneira de se comportar,
de se vestir, oposicao entre o elegante e o vulgar, etc).
Mas o corpo nao é sirnplesmente uma coisa, ele n50 é “em si”, jé que é tambérn o lugar da
invencao e da improvisacao das condutas ajustadas as situacoes. Ora, esse corpo que é tao
grudado em seu ser, nao o é suficienternente, segundo Sartre, a ponto de nao poder ser mani-
pulado livremente em funcao da representacao imaginéria de um cargo ou de um papel a ser
desempenhado, como é ilustrado pelo exemplo do garcom de bar. Este, escreve Sartre (1987,
p. 95-96), representa o papel de garcom de bar de maneira a realizar sua condicao, em funcio
da representacao que ele tern do cargo, e descartando os possiveis que nao estao inscritos
nessa condicao (corno o fato de n50 se Ievantar as cinco horas da manha e de ficar na cama,
correndo o risco de ser despedido). Bourdieu voIta ao tema com um olhar critico, em urn
artigo intitulado “Le mort saisit 1e vif” (1980a, p. 8): “O garcom de bar n50 representa o papel
de garcom de bar, como pretende Sartre. [. . .] Seu corpo, no qual esté inscrita uma histéria,
molda‘se ‘a sua funcao, ou seja, uma historia, uma tradicfio que ele nunca tinha visto senao
encarnada em corpos, ou melhor, nos habitos ‘habitados’ por determinado habitus a que se
atribui o nome de garcom de bar”. Assim, segundo Bourdieu, o corpo néo é um automato que
obedece aos ditames da consciencia, mas tern seus préprios principios de inércia. Além disso,
os possiveis nao estao distribuidos de forma igual, segundo as condicoes de existéncia ou a
posicao ocupada no espaco social. 0 senso pratico é aquele que tende a ajustar as expectativ
as
subjetivas as oportunidades objetivas e, portanto, o possivel ao provavel. A0 projetar sobre o
garcom de bar suas proprias possibilidades, Sartre comete o erro intelectuahsta por exceléncia
.
Bourdieu (1993, p. 209) rejeita a concepcao sartreana da mi fé on da alienacao como "a
abdicacao livre da liberdade em beneficio das exigéncias da ‘matéria trabalhada’”. De acordo
corn Sartre, o operario do século XIX “faz—se o que ele é” livremente, em sua livre praxis. O
objeto de contestacao por parte do sociélogo é essa liberdade de se desembaracar de seu passado
para se projetar em um porvir, essa faculdade de conferir um sentido ao futuro, segundo
a
palavra de ordem revolucionéria, de vislumbrar outro estado de coisas possivel, de maneira a
tomar consciéncia da rigidez da situacao presente. Com efeito, segundo Bourdieu, Sartre
1150
Referéncias
BOURDIEU, P. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. ARSS, n. 14, avr. 1977.
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SAPIRO, G. Pourquoi le monde va~t-il de soi? De la phénoménologie a la théorie de l'habitus. In: IDT,
Série
G. (Org.). Sartre, une e’criture en actes. Cahiers RITM 24 (Publidix, Université de Nanterre),
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SAPIRO, G. Une liberté contrainte. La formation de la the'orie de l’habitus, suivi d’un entretien avec
sociologue.
Pierre Bourdieu. In: PINTO, L.- SAPIRO, G.; CHAMPAGNE, P. (Orgs.). Pierre Bourdieu,
Paris: Fayard, 2004 p. 49—92
SARTRE, I.-P. LEtre et le néant. Essai d ’ontologie phénome’nologique (1943) Paris: Gallimard,
1987. (Colecao Tel).
1). Paris:
BOURDIEU, P. Science de la science et réflexivité. Cours du College de France (2000—200
Raisons d’agir, 2001.
Publicado em 1980 pelas Editions de Minuit, essa volumosa obra retoma e sistematiza a
teoria da prética que Bourdieu havia comecado a desenvolver em Esquisse d’une théorie de
la pratique, publicado em 1972 pela Editora Droz. Ela é composta por dois livros, Critica da
razao teérica e Légicasprdticas, precedidos por um prefécio no qual Bourdieu retorna as con-
dicoes de producio dessa teoria numa Argélia em guerra, as referéncias marcantes — Lévi—Strauss,
Jacques Berque, André Nouschi, Emile Dermenghem e Charles-André Inhen — que rompiam com
o etnocentrismo predominante na etnologia, mas também as limitacoes encontradas na aplicacao
do me'todo estrutural a0 universe cabila. A inadequacio das abordagens existentes para dar conta
da realidade observada levou~o a analisar os vieses induzidos pela razao teérica quando ela
tenta pensar a prética: a disténcia em relacao ao objeto reside menos na diferenca entre as
tradicoes culturais do que “11a diferenca entre duas relacoes com o mundo, teorico e prético”
(SP, 30), e ela nao é especifica dos objetos da etnologia.
”182.5lSTEMA DE ENSINO
Tania de Freitas Resende
Referéncias
BOURDIEU, P.; CHAMPAGNE, P. Les exclus de l’intérieur. ARSS, Paris, 11. 91/92, mars, 1992. p.71-75,
NOGUEIRA, M. A.; NOGUEIRA, C. M. M. Bourdieu e’y‘ a educacao. Belo Horizonte: Auténtica, 2004.
Sergio Micelz'
BOURDIEU, P. Sabre 0 Estado. Cursos no Colle‘ge de France (1989—92). Sao Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
186. SOCIOANALISE
Angela Xavier de Brito
Para Bourdieu, a socioanalise eI“ o trabalho através do qual a ciéncia social, ao se tomar
por objeto, utiliza suas préprias armas para compreender e controlar a si mesma” (SSR, 174),
num duplo movimento de critica metodologica e de vigilancia epistemolégica que visa tornar
explicito o que ordinariamente permanece em estado implicito na pratica cientifica. Ia
a au~
toanalise é uma socioanélise em que o individuo trata a si mesmo como se fosse um objeto
332 SOCIEDADE
como qualquer outro. Trata-se de “fazer sua prépria sociologia” (SSR, 184), reconstituindo o
espaco dos possiveis de cada campo e dos individuos que nele estao inseridos. Nesse sentido,
a Lecon sur la lecon (1982) é um exemplo paradigmatico de “distancia ao papel social no
exercicio mesmo desse papel social” (EAA, 138).
A “relacao dialética entre a autoanélise e a (sécio)anélise se encontra no centro do traba-
lho de objetivacao” (SSR, 181), permitindo 11:10 86 a0 sociologo a objetivacao de sua prépria
posicao, que o liberta dos determinismos sociais que pesam sobre si, mas também conferindo
lucidez ao agente, ao “colocar a analise mais objetiva ao service do mais subjetivo" (EAA, 8),
dando aos dominados os meios de controlar a0 memos a representacao do que lhes acontece.
Socioanélise e autoanélise sao projetos distintos, mas complementares. Enquanto a primeira
analisa as condicoes de emergéncia das producées cientificas, objetivando simultanearnente 0
campo académico e o sujeito do conhecimento, a segunda visa objetivar a trajetéria do agente
através da aplicacao efetiva da reflexividade critica sobre si mesmo, sobre sua histéria e sua
prética cotidiana, através de “todos os traces pertinentes [...] necessérios a explicacao e a
compreensao sociologicas” (BAA, 11-12).
Os conceitos de socioanalise/autoanélise atravessarn a obra bourdieusiana desde o
Esquisse d ’une the’orie de la pratique (1972). A primeira se traduz particularmente nos
livros que analisam o campo académico onde o autor esté imerso: Les he’ritiers (1964),
Homo academicus (1984), Lecon sur la lecon (1982), La noblesse d’Etat (1989), Science
de la science et réflexivité (2001). A segunda, nas Meditations pascaliennes (1997) e no
Esquisse pour une aut0~analyse (2004).
0 auto: lembra que, “em uma sociedade dividida em classes, [...] a definicao do real é
objeto de uma luta aberta ou latente entre as classes [. . .] pela imposicao dos sistemas domi-
nantes de classificacéo”. E a ruptura epistemolégica com relacao ao senso comum que vai
contribuir para assentar os “mecanismos gnoseolégicos que contribuem a manutencao da
ordem estabelecida” (ETP, 239-241), contribuindo a producao de uma ciéncia mais acurada
e fornecendo urn potencial de resisténcia e emancipacao politicas. A objetivacao deve ser
conduzida em funcao dos trés tipos de vieses que afetam a Visao analitica do sociologo: suas
etnia,
caracteristicas pessoais (posicao de origem, trajetoria, pertencimentos de género ou
adesao social ou religiosa); a posicao ocupada pelo agente, 0 status de sua disciplina dentro
dos diferentes estados do campo académico e sua relacao com o campo do poder; e 05 pres—
supostos inscritos nas operacoes ou praticas de pesquisa.
Ble retoma esse conceito no prefacio de Le sens pratique (SP, 40), a0 dizer que “todo
verdadeiro empreendimento sociolégico é inseparavel de uma socioanalise e deve contri-
buir para que seu produto se tome também instrumento de uma socioanalise. Ao contribuir
a consciéncia das determinacoes, ao revelar “a verdadeira relacao entre o observador e o
observado e, sobretudo, as consequéncias criticas que incidem na pratica cientifica”, a so-
cioanélise “oferece um meio, talvez o finico [...] para a construcao de algo que se assemelhe
a um sujeito” (SP, 41, 57). Em Science de la science at réflexivz'té (p. 168—169), ele vai evocar
a necessidade de objetivacao do “inconsciente transcendental”, “condicao do acesso da
ciéncia a consciéncia (16 Si, ou seja, ao conhecimento de seus pressupostos historicos [...] e
das determinacoes inconscientes inscritas no cérebro do cientista e nas condicoes sociais
dentro das quais ele produz”.
socmANALISE 333
Por sua vez, a autoanalise deve permitir urn modo de conhecimento baseado numa relacao
dialética entre as estruturas estruturadas e objetivas e as disposicoes estruturantes inscritas
no corpo do agente e expressas em sua pratica, criando condicoes que lhe permitam estabe~
lecer uma distancia critica para com esta filtima. Dessa forma, ela fornece tanto a0 sociélogo
quanto ao agente comum a possibilidade de se reconhecer plenarnente como um sujeito social
socialmente situado, concebido como “representante de uma categoria” ou de um grupo social
(R, 175). As escolhas e as estrate’gias do individuo nao sao mais consideradas como produtos
_ de um projeto consciente, mas sao adotadas em funcao de um campo social determinado. ,
Bourdieu (EAA, 15) observa que “compreender é, em prirneiro lugar, compreender o campo no
qual e contra o qual nos construimos”, o estado do campo no momento em que ingressamos
nele e o espaco de possiveis que ele nos abre. Essa preocupacao constante com a reflexividade
esta presente até mesmo em suas aulas, como testemunharn seus antigos alunos, a quem ele
costumava pedir “uma anélise sociolégica de si mesmos” (FRITSCH, 2005, p. 82).
Originado na psicologia social, 0 termo “socioanalise” foi adotado por Jacques e Maria
Van Bockstaele (1959), que o definem como uma tentativa de interpretacao da dinamica
da acao social através da interacao dialética entre o observador e o observado, na qual o
analista deve questionar seus lacos institucionais, afetivos ou econémicos com o objeto.
Ble foi retomado por Georges Lapassade (1975), cuja ideia de inconsciente coletivo apre-
senta semelhancas com o “inconsciente transcendental” de Bourdieu. No entanto, a tensao
original entre os campos da sociologia e da psicologia na Franca e a posicao dominada que
ocupava esse sociélogo no campo académico impedem a afirmacao do conceito. Vincent
de Gaulejac vai retomar o conceito de socioanélise, associando sociologia e psicanalise.
Para ele, o “trabalho constante e metédico de explicitacao” sugerido por Bourdieu nao
basta para eliminar “os conflitos entre o sujeito e o desejo” (GAULEIAC, 2003, p. 80). Nos
Estados Unidos, Margaret LeCompte (1987) propoe algo bastante similar ‘a autoanalise
bourdieusiana em seu artigo Bias in the biography.
No entanto, a socioanélise so pode ser plenamente exercida quando ela “se aplica ao conjunto
dos agentes engajados nos campos”, onde a reflexividade “foi instituida em lei cornum’’,(SSR
178). Nao se trata apenas de introduzir sua prati'ca na pesquisa, mas sim de converté-la “numa
disposicao constitutiva do habitus cientifico” “que possa garantir—lhe um grau superior de
liberdade com relacao as restricoes e ‘as necessidades sociais que pesarn sobre ela ou sobre
qualquer atividade humana” (SSR, 174, 176).
Referéncias
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Psychologie, v. XII, n. 6—9, p. 277 290,1959.
334 SOCIOANALISE
187. SOCIODICEIA
Ernesto Seidl
Pierre Bourdieu forjou a expressao “sociodiceia” com base no termo “teodiceia”, criado por
Leibniz e empregado posieriormente por Max Weber com o sentido de justificacao de Deus.
Sociodiceia, portanto, refere-se a uma narrativa que procura justificar a sociedade tal corno
ela é, nesse sentido servindo corno alternativa a0 uso da palavra ideologia. Apesar de n50 ter
sido objeto de reflexoes sisteméticas na obra de Bourdieu, a nocao ocupa lugar central em seu
esquema analitico ao se conectar com uma das grandes questoes da sociologia bourdieusiana,
que é a compreenséo dos principios e mecanismos de legitimacao da ordem social. A atencéo
dada ‘as formas como os dominantes elaboram e utilizam discursos destinados a explicar
sua posicao como tais, naturalizando assim diferengas e arbitrariedades e, por essa via, jus—
tificando seus privilégios e garantindo sua manutencao, encontra na nocéo de estratégias de
sociodiceia uma ferramenta-chave para a objetivacao das formas de legitimacao do poder.
As sociodiceias assumem diferentes formas segundo as configuracoes sociais, variando
de acordo com a constrncao histérica de principios de hierarquizacao social que conferem a
alguns grupos (nobres, ricos, sébios, diplomados) acesso privflegiado a tipos variados de poder
(economico; religioso, politiCo, burocrético). Ern toda configuracao, a narrativa Sobre’a origern
e a necessidade do privilégio encobre o arbitrério que fundamenta a ordem social e cujo desco-
nhecimento é condicao para a eficécia de sua legitimidade. Para Bourdieu, a nova sociodiceia
contemporanea repousa na crenca do mérito escolar associado a0 dome em oposicao a0 nas—
cimento, na fé na ciéncia e, sobretudo, “na exaltacéo do desinteresse e da devocao a0 pfiblico”.
188. SOCIOLOGIA
Carlos Benedito Martins
SOCIOLOGIA 335
Ao mesmo tempo que beneficiou~se da formagao intelectual obtida na Ecole Normale
Supérieure na década de 1950, simultaneamente investiu contra uma postura intelectual
subjacente a sua formagao académica, ou seja, combateu um ethos filoséfico que ambicionava
explicar uma pluralidade de fenomenos humanos e sociais, calcados, segundo ele, em proce—
dimentos retéricos. Em sua percepgao, a figura de lean-Paul Sartre expressava as disposiqoes
intelectuais peculiares a um‘filésofo normalien (BOURDIEU, 1993; SSR; EAA).
Seu ingresso no campo da sociologia ocorreu gradualmente. O distanciamento com o espirito
filoséfico foi o resultado dos “acasos da existéncia” que o conduziram a Argélia, para servir na
missao de “pacificagao” dessa colonia francesa (1993). Esta experiéncia estimulou seu interesse
pelas transformaqoes da sociedade argelina a partir de uma perspectiva cientifica e politica. Nesse
contexto, produziu seus primeiros trabalhos de campo (SA; TTA; DR; ETP; WACQUANT, 2002).
O advento da abordagem estrutural de Lévi-Strauss foi saudado por Bourdieu como
um acontecimento significativo para as ciéncias sociais francesas, uma vez que propiciou
respeitabilidade cientifica a antropologia. Sens dois priméiros ensaios etnologicos, Le sens
de l’honneur e La maison kabyle ou le monde renversé, exploraram os esquemas inter-
pretativos da anélise estrutural elaborados por LéVi—Strauss, sendo que o derradeiro deles
constituiu o que Bourdieu denominou seu “filtimo trabalho de estruturalista feliz”. Longe de
negar a relevancia do processo de objetivagao dos fenomenos sociais, Bourdieu reconhecia
nesse procedimento metodolégico uma das contribuigoes fundamentais do estruturalismo
a0 processo de ruptura com o saber imediato. Concordava com a primazia das estruturas
objetivas na explicagao da Vida social. N0 entanto, distanciou—se da postura estruturalista a
medida que procurou reintroduzir em suas anélises o agente, cujos sistemas de percepgao,
apreciagao e agéo sao perpassados por injungoes sociais.
A0 reafizar suas primeiras investigagoes empiricas, Bourdieu percebia—se como um filésofo
realizando trabalho de campo. No entanto, surpreendeu—se ao constatar que se tornara etnélo—
go. A partir da metade dos anos 1960, quando retornou a Franga, em colaboragao com outros
pesquisadores, produziu uma série de obras que, em sua apreciagao, poderiarn ser consideradas
de natureza sociolégica como Les héritiers (1964), Un art moyen (1965), L’Amour de l’art
(1966). Procurou incorporar em seu projeto sociolégico o que havia assimilado da filosofia e
da etnologia, a exemplo de determinadas técnicas de investigaqéo, como o uso da fotografia, a
observagéo etnogréfica, o pohteismo metodologico, ou seja, a combinaeao da analise estatl'stica
com a observagao direta de grupos sociais, etc. Sua entrada no campo da sociologia e a disposiqao
de redefinir a posigéo da disciplina, visando enobrecé-Ia (SSR, 196), induziu—o a criticar tanto
as atividades de ensino quanto as de pesquisa que predominavam 11a sociedade francesa entre
05 anos 1950 e metade da década seguinte.
Para ele, a Sorbonne — que constituia o espago central na disseminagao da sociologia,
uma vez que era ens'mada nas Faculdades de Letras — nao conseguiu impulsionar a disciplina,
uma vez que nao introduziu a atividade de pesquisa no seu interior. Os trés professores que
ocupavam a cétedra de sociologia, Georges Gurvitch, Jean Stoetzel 6 Raymond Aron - de
quem Bourdieu foi assistente nesta instituigao — exploravam autores classicos da sociologia
e/ou apresentavam suas proprias concepgoes teéricas (SSR, 190; ARON, 1983, p. 343).
Em sua avaliagao, a nova geragéo de sociélogos que emergiu em meados da década de
1950 modificou a posigao dominada da disciplina, uma vez que n50 recebera uma formaqéo
336 SOCIOLOGIA
académica homogénea, jé que a universidade francesa nao oferecia, nessemomento, cursos
de graduacao nesta area (VALADE, 2000, p. 25). Em funcao disto, persistiu a auséncia de um
sentimento de unidade disciplinar. A0 mesmo tempo, ocorreu uma enorme dispersao de
pesquisas empiricas sem uma consistente fundamentacao teérica. Para ele, construiu-se uma
sociologia fragmentada, alicércada numa nitida divisao de trabalho, estruturada a partir de
subespecializacoes, como sociologia do trabalho, da educacao, da religiao, rural, urbana,
do lazer, etc. Como o meio universitério estava em larga medida preocupado pelas questoes
politicas da época, os engajamentos politicos de pesquisadores comprometeram a autonomia
cientifica da sociologia e reforcaram sua posicao marginal no campo. (SSR, 192; EEA, 52).
Sen projeto para a sociologia mantém certa continuidade com a fase inicial da “escola
francesa de sociologia”, destacadamente com a tradicao durkheimiana de imprimir um estatuto
cientifico a0 contexto universitério (BERTHELOT, 2000, p. 30; KARADY, 1979), ac mesmo tempo
que renova e amplia intelectualmente este objetivo. A determinacao intelectual de imprimir
uma dimensao cientifica a sociologia perpassou sua trajetéria académica. A publicacao da
obra conjunta com Passeron e Chamboredon, Le métier de sociologue (1968), é emblemética
nesse contexto. Em um trabalho bastante posterior, Science de la science at réflexivité (2001),
ao mesmo tempo que reafirmou o carater cientifico da sociologia, assinalou a necessidade do
processo de objetivacao dos sociologos como uma condicao necessaria para imprirnir uma
autonomia cientifica a disciplina. Para Bourdieu, o trabalho sociolégico pressupoe uma série
de rupturas com o saber espontaneo, cuja influéncia se manifesta insidiosamente no seio da
disciplina através de pré—nocoes do senso comum, da ilusao da transparéncia da realidade, da
utilizacao da linguagem cotidiana, fato este que implica a necessidade dé criar uma linguagem‘
artificial, capaz de romper com os automatismos do saber familiar.
A familiaridade do sociélogo com o universo social constitui urn dos principais obstéculos
epistemologicos da pratica cientifica, uma vez que (re)produz continuamente percepcoes
provenientes do saber imediato. Para ele, uma das principais fontes de erros na producao do
conhecimento sociologico deriva da relacao incontrolada que o pesquisador mantém com seu
objeto de estudo, ignorando que a visao e a construcao do objeto devem a posicao ocupada
pelo investigador no espaco social e no interior do préprio campo cientifico (MS, 35-44).
Quando os sociélogos analisam certos objetos com os quais mantém relacéo de proximi‘
dade, tais como a cultura, a ciéncia, o mundo artistico on o campo universitério, avigilancia
reflexiva deve se exercer com maior intensidade, buscando operar uma ruptura nao apenas
com as representacoes espontaneas, mas também com as crencas intimas, conscientes ou
inconscientes, dos profissionais do pensamento, com a doxa especifica que estrutura as
tomadas de posicao no campo das ciéncias sociais (HA, 11~33).
Para Bourdieu, a historia social da sociologia, a0 possibilitar a explicitacao da génese dos
problemas e dos objetos, das categorias de pensamento e dos instrumentos teéricos e empiricos
de analise mobilizados pelo investigador, constitui um dos instrumentos fundamentais da
prética cientifica. Para realizar—se como ciéncia, a sociologia necessita assumir—se a si prépria
como objeto passivel de ser analisado sociologicamente. Em sua visao, a sociologia da socio—
logia ~ concebida por ele como urna das dimensées fundamentais de epistemologia — longe
de ensejar um retorno intimista e um culto narcisista sobre a pessoa do sociologo, deve propi—
ciar~lhe a elucidacéo de tudo que sua prética intelectual deve a sua insercao no mundo social
SOClOLOGlA 337
e no campo da sociologia, possibilitando a objetivacao do investigador e o esclarecimento
tanto da escolha do seu objeto de estudo quanta da forma de abordé-lo e das determinacées
sociais as quais ele se encontra exposto (LL, 8—14; SSR, 173-180).
Na etapa final de sua carreira, quando intensificou sua relacao com distintos movimen-
tos sOciais e articulou mais claramente a relacao entre pesquisa cientifica e intervencao
politica (OP; CFZ; INT). Ele jamais deixou de assinalar que possuia pouca inclinacao para
intervencoes proféticas, defendendo de maneira intransigente a autonomia da sociologia.
Enfatizou diversas vezes que a sociologia deveria ser vigilante quanto a sua independéncia
intelectual, recusando—se a servir a grupos e/ou instituicoes. Em sua percepcao, a eficécia
politica da sociologia consistiria em desvendar as estruturas de dominacao que se encontram
profundamente imersas nos diversos campos sociais e elucidar os mecanismos que tendem
a assegurar a reproducao ou a transformacao desses espacos Nesse empreendimento, cuja
eficécia se deve tao somente a autoridade de sua conduta cientifica, a sociologia torna-se um
vigoroso instrumento de libertacao, uma vez que permite explicitar o jogo no qual os agentes
estao envolvidos, a posicao que ocupam nos distintos campos sociais e o poder de atracao
que esses diversos espacos exercem sobre eles (SP, 209-231).
Seu projeto intelectual conduziu—o a uma atitude “contra-tudo” e “agarra~tudo” em termos
de contribuicoes teoricas, o que lhe permitiu construir uma obra sob o signo da heterodoxia
teérica (SSR,'197). Nesse sentido, ele se contrapos a sociologia americana elaborada sob a égide
de Parsons, Merton e Lazarsfeld, que dominava a disciplina emvaries paises, inclusive a Franga,
desde a década de 1950 (POLLAK, 1979). Bourdieu criticava a separacao entre theory e metho-
dology, representada pela oposigéo entre Parsons e Lazarsfeld. Investiu criticamente contra a
sintese teérica proposta por Parsons em sua obra 1716 Structure afSocialAction, elaborada em
1937, pois considerava que havia mutilado a complexidade da obra de Durkheim e Weber. Em
contrapartida, retomou a relevancia das contribuicées desses dois autores europeus que fertilizaram
teoricamente seus trabalhos. Por outro lado, seu projeto levou-o a se opor a filosofia de “espirito
aristocrético”. Em sua visao, ela representava um obstéculo a0 progresso da sociologia, uma vez
que os filésofos agregés, a0 se considerarem membros de uma casta superior, manifestavam
um desprezo pelas ciéncias humanas, situando a sociologia numa escala inferior na hierarquia
do conhecimento (BOURDIEU, 1983, p. 49-50). Ele procurou integrar contribuicoes teoricas de
cientistas sociais classicos e contemporaneos que, de um modo geral, eram considerados até
entao, como inconciliéveis. Seu arcabouco teorico incorporou de forma criativa autores como
Marx, Durkheim, Weber, Blaise Pascal e dialogou também, de maneira heterodoxa, corn diver-
sos autores contemporaneos, como Martial Gueroult, George Canguilhem, Gaston Bachelard,
Thorstein Veblen, Claude Levi—Strauss, Norbert Elias, Erving Goflinan, Ludwig Wittgenstein,
entre outros (BOURDIEU, 1988, p. 778-783). Sua sociologia foi construida num denso debate com
as herancas do marxismo, do funcionalismo, do estruturalismo, da fenomenologia, do intera-
cionismo simbolico, do individualismo metodolégico, da teoria da escolha racional, etc. Para
ele, o obstéculo que impede a comunicacao entre teorias, conceitos e métodos nao é oriundo de
problemas légico-cientificos intrinsecos, mas deve‘se, antes, as lutas de concorréncia entre seus
respectivos’= adeptos para conquistar posigoes de legitimacéo e prestigio no seio da sociologia.
A0 longo de sua obra, Bourdieu procurou superar determinadas oposicées canonicas no
interior da sociologia que, em sua percepcao, a minavarn por dentro, tais como a separacao
338 SOCIOLOGIA
entre a analise do simbolico e do material, a oposicao entre individuo e sociedade, o embate
entre métodos quantitativos e qualitativos. Essa's oposicoes expressam falsos dualismos que
comprometem uma adequada anélise sociolégica. A existéncia desses dualismos nao derivava,
segundo ele, de op’eracoes légicas ou epistemolégicas constitutivas da prética cientifica, mas
de disputas entre distintas linhagens de pensamento existentes no campo da sociologia, que
buscavam erigir suas concepcoes particulares em verdade cientifica univoca. Essas divisées
dualistas acabavam por produzir profissoes de fé e emblemas totémicos, dilacerando as
explicacées fornecidas pelas ciéncias sociais (R, 156-157).
Sua concepcao de sociologia investiu contra a divisao artificial entre teoria e pesquisa
empirica, mediante a qual certos pesquisadores tendern a cultivar a teoria por si mesma
sem manter uma relacao com objetos empiricos precisos; enquanto outros, inversamente,
desenvolvem urna pesquisa empirica sem referéncia as questoes teoricas (R, 136-137). Res—
saltou que, no trabalho sociolégico, a pesquisa sem teoria é cega e a teoria sern pesquisa é
vazia. Posicionou—se assim contra a postura que leva determinados pesquisadores a colocar
a teoria em primeiro plano, considerando-a corno o trabalho nobre da prética cientifica. Para
Bourdieu, a teoria deveria constituir um programa de percepcao e acao, um habitus cientifico
intimamente ligado a construcao de casos empiricos bem delimitados. Durante toda sua
trajetéria, sempre se recusou a produzir um discurso teorico geral, especulativo, profético ou
programético sobre o mundo social (BOURDIEU, 1986, p. 2—3). Sua obra procurou desrespeitar
deliberadamente as fronteiras disciplinares e as especializacoes no interior da sociologia.
Nessa direcao, procurou articular diferentes procedimentos de pesquisa, tais como descricao
etnografica, modelos estati’sticos e entrevistas em profundidade (LD; BVOURDIEU, 1988; MM)
para tratar empiricamente uma diversidade de temas como moda, arte, desemprego, escola,
direito, ciéncia, literatura, religiao, gosto, classes sociais, politica, esporte, intelectuais, carn—
poneses, televisao, dominacao masculina, etc.
Essa diversidade de temas se explica pelo seu empenho em compreender a prética
humana, que constitui um eixo central d0 seu extenso trabalho de investigacao. Esse
empreendimento o distanciou de um ethos filoséfico que tenderia a analisar a pratica
humana a partir de consideracoes gerais sobre a natureza e a condicao do ser humano.
Afastando-se dessa posicao, sua estratégia de investigacao concentrou~se nurn conjunto
de objetos empiricos, considerados até entao como destituidos de interesse cientifico, tais
como a frequéncia aos museus, a pratica fotografica, as trocas linguisticas, a formacao dos
gostos etc. Buscou compreender, a partir de procedimentos empiricos, 1150 a esséncia da
acao humana, mas a complexa relacao entre a existéncia de uma diversidade de espacos
sociais e a insercao dos agentes envolvidos na producao, reproducao e transformacao
desses espacos, vale dizer, as condicoes de efetivacao da producao da diversidade de
préticas que constitui o mundo social (MARTINS, 2002).
O projeto de compreender sociologicamente a pratica humana serviu»lhe de fulcro para
estabelecer a unidade teérica de uma obra edificada a partir da construcao de um sistema
relativamente parcimonioso de conceitos derivados de um incessante confronto entre atividade
teorica e pesquisa empirica, tais como habitus, illusio, compo, violéncz’a simbélz‘ca, doxa,
hexis corporal, capital cultural, que representaram contribuicoes valiosas para a renova-
cao da analise sociolégica de um modo geral e, particularmente, instrumentos relevantes
SOCIOLOGlA 339
para enfrentar as complexas e intrincadas mediacoes que permeiam as relacoes entre ator
e estrutura social.
0 grupo de pesquisa que Bourdieu construiu expressou sua disposicéo de criar um projeto
cientifico coletivo capaz de integrar as aquisicoes teoricas e metodologicas da sociologia (ENCREVPZ;
LAGRAVE, 2003). 0 Centre de Sociologie Européenne, criado por ele em 1968, tornou~se
um espaco intelectualmente cosmopolita a0 qual afluiam pesquisadores de diversas partes
do mundo. Ao mesmo tempo, criou em 1975, a revista Actes de la Recherche en Sciences
. Sociales, um periodico marcadamente interdisciplinar que expressava sua disposicao de
restaurar a unidade das ciéncias sociais, acolhendo a producio de vasta rede de pesquisadores
franceses e internacionais.
Poi eleito em 1981 para 0 College de France, sendo que sua obra ultrapassou as fronteiras
de seu pais, transformando~o em um dos sociologos mais eminentes do século XX. Objeto
de avaliacoes criticas e positivas, sua influéncia intelectual se estendeu internacionalmen-
te em vérias disciplinas nas ciéncias humanas (ADKINS; SKEGGS, 2005; WEBB; SCHIRATO;
DANAHER, 2002; KING, 2000; CALHOUN; LIPUMA; POSTONE, 1993; DINIAGGIO, 1979; SWARTZ, 1997).
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Para Bourdieu, a ciéncia, come a arte e a literatura, nae escapa a anélise sociologica. E um
universe social semelhante aos outros, do qual é precise, no entanto, compreender as logicas
especificas. O conceito de campo permite apreender as implicacées, es valores e as regras
que orientam as praticas nesses universes, e que sao irredutiveis aos fatores economicos e
politicos, mesmo que estes nae deixem de estar presentes. Para 0 autor de Homo academicus
(1984), que exibia uma visao desencantada dos mecanismos sociai's em acae no mundo uni:
versitério, e fate de produzir a sociologia das atividades cientificas nae leva necessariamente
a0 relativismo: pelo contrario, ela deve ser concebida como um instrumento de reflexividade
e de vigilancia epistemologica. Tal é a posicao que Bourdieu ira desenvolver ern seu ultimo
curse no College de France, publicado sob o titulo Science de la science et re'flexivz'te’ (2001).
Come explica na sessao introdutéria de seu seminério de 1997 sobre a historia das ciéncias
sociais (BOURDIEU, 2004), para ele a sociologia da sociologia (e das ouiras ciéncias sociais)
nae é uma ciéncia come outra qualquer. “A objetivacao do sujeito da objetivacao”, de acordo
com o titulo dessa introducao, é um meie de controle simbélico da pratica da pesquisa no
sentido em que ela desvela o inconsciente académico que esta subjacente a essa pratica. Longe
de qualquer “cornplacéncia narcisista”, a reflexividade censiste em revelar os determinismes
sociais que pesam sobre a pratica dos pesquisadores, com o fim de supera-los.
A sociologia da socielogia e das outras ciéncias sociais compreende trés mementos. Em
primeiro lugar, ela reinstala os sociologos no mundo social em seu conjunto, reconstituindo
suas trajetérias sociais, suas condicoes de acesso a disciplina, suas escolhas de objetos e de
métodos em funcao de suas disposicoes. Per exemplo, a oposicao entre a teoria e a empiria que
serve de estrutura a disciplina e’ intensamente sexuada: os hornens mestram maior propensée
a generalizacao, o que garante maiores lucros simbolicos com menos esforcos, enquante as
mulheres se dedicam a0 laborioso trabalho de coleta e de analise dos dados. A divisao sexuada
do trabalho intelectual se observa também entre disciplinas (ciéncias versus humanidades,
filosofia versus literatura) e especialidades (sociologia das ciéncias versus sociologia da
arte). O que leva ao segundo nivel de analise, e do campo disciplinar, onde os sociélogos se
diferenciam dependendo da posicao que ocupam (per exemplo, novato versus pesquisador
reconhecido), de suas especialidades e de suas escolhas intelectuais, que sao determinadas
1150 86 per suas propriedades sociais, mas também pelo espaco dos possiveis. Esse espaco
dos possiveis é historicamente constituide e estruturado de acordo com as hierarquias entre
disciplinas (per exemple, entre filosofia e sociologia), especialidades, abordagens (teoria versus
empiria), métodos, escolas e tradicees intelectuais, marcadas muitas vezes por suas origens
Referéncia
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Se “a sociologia é uma ciéncia como as outras, que encontra someute uma dificuldade
particular em ser uma ciéncia como as outras” (MS, 36), tal constatacao se deve, segundo
Bourdieu, a razoes politicas e, simultaneamente, epistemolégicas. Pelo fato de que, no seio
do mundo social, diferentes categorias de agentes procuram impor seu “ponto de vista” so-
bre a realidade, a sociologia, queira on n50, é, com efeito', parte integrante das lutas que ela
descreve. Pelo fato de que seu objeto — a representacao do mundo social ~ é politicamente
estrate’gico, ela esté constantemente exposta a regressao para a heteronomia e depara~se com
a contestacéo de sua pretensao a cientificidade. Finalmente, pelo fato de que a sociologia é
determinada simultaneamente pelas condicoes de sua producao — mais ou memos autonoma/
heteronoma ~ e pelas determinacoes inscritas nas disposicoes do pesquisador, ela encontra~se,
a cada momento, exposta a “relativizacao”.
0 imperativo de reflexividade irnpoe-se precisamente como tentativa de livrar a sociologia
da relativizacao: ela deve assumir—se a si mesma como objeto, servindo—se de seus préprios
recursos (teéricos e metodologicos) para se compreender e se controlar. Fazer da reflexividade
urna disposicao constitutiva do habitus cientifico significa controlar, ao mesmo tempo, a
relacao subjetiva com o objeto, os efeitos das condicionantes externas que se exercem sobre
a producao cientifica e a antropologia social inconsciente envolvida na pratica cientiflca.
Podem-se distinguir trés ordens de pressupostos: aqueles que estao associados a ocupacao
de uma posicao no espaco social e a trajetoria particular percorrida para atingi-la; aqueles
que estao ligados ‘a posicao ocupada no campo da pesquisa e ao “inconsciente académico”
da disciplina; aqueles que estao associados a0 pertencimento ao universo escolastico e, em
particular, “a ilusao da auséncia de ilusao”, “a ilusao do ponto de vista absoluto” préprio de
qualquer ponto de vista que se ignora como tal.
A autossocioanélise é, em primeiro lugar, uma tentativa de objetivacao de seu proprio
“ponto de vista”: trata—se de situar socialmente “o ponto” de onde “a vista” é tomada para
tentar discernir o que “a vista” deve ao “ponto de vista” e controlar os efeitos proprios de
uma posicao e das disposicoes que sao importadas nessa operacao —ta1procedimento foi
Primeiro livro de Bourdieu, publicado em 1958 (coiecao Que sais-je? da editora PUP), é
a sua irnersao inaugural na sociologia, depois de seus estudos de filosofia. O livro é, basica-
mente, um trabalho de biblioteca, onde Bourdieu utiliza a literatura colonial sobre a Argélia,
interpretando-a a partir dos autores que comeca a trabalhar nessa e'poca, fundamentalmente
Levi-Strauss, Margaret Mead, Durkheim e Max Weber.
Os trés primeiros capitulos apresentam trés grupos berberes —>cabilios, chaouias e mo»
zabitas ~, destacando sua perfeita coesao social que lhes permitia sobreviver em um meio
fisico hostil. No quarto capitulo analisa a populacao arabéfona ~ a que divide ern urbanos,
nomades e seminémades, semissedentérios —, destacando também seu equilibrio e coesao
social. 0 quinto capitulo analisa ofundo comum dessas populacées: estruturacao social — em
linhagens, tribos, povos, ligas — a partir das relacoes familiares; tradicionaiismo e primazia
do grupo sobre o individuo; relacoes economicas pré-capitalistas, em que primam os ciclos
de reciprocidade associados a busca da honra e prestigio. O ultimo capitulo analisa a de-
sestruturacao dessas sociedades, devido ao colonialismo francés, que destréi as sociedades
originais ao perseguir exclusivamente os interesses dos colonizadores. A énfase de Bourdieu
na coeréncia das sociedades argelinas originais se deve em parte a influéncia de Durkheim,
Mead e Lévi-Strauss, que descreviam as sociedades primitivas como perfeitamente integra-
das. Mas, também, a seu objetivo politico: ele escreve o livro em plena guerra da Argélia, e a
faccao francesa justifica a guerra como um combate da civilizacio contra a barbarie. Bourdieu
denuncia o colonialismo defendendo a perfeicéo da organizacao social argelina tradicional,
tendo procedido a revisoes no texto nas edicées de 1961, 1963 e 1985.
O filme de Pierre Carles (2001) acornpanha, ern seus 146 minutes, parte da trajetoria de Pierre
Bourdieu, em especial suas atividades de sociélogo engajado ern alguns movimentos sociais de
seu tempo. 0 titulo, emblemético, refere~se a uma consideracao realizada por ele logo 110 inicio, ao
Bourdieu publicou esse livro a partir de pesquisa coletiva do Centro de Sociologia Europeia
que, inicialmente, saiu na ARSS (1990). Numa primeira aproximaeao, estamos diante de
Referéncias
BOURDIEU, P. Un signe des temps. ARSS, p. 2‘5, 1990.
BOYER, R. L’Anthropologie économique de Pierre Bourdieu. ARSS, v. 150, p. 65-78, 2003.
HIRSCH, R; MICHAELS, 8.; FRIEDMAN, R. Clean Models vs Dirty Hands: Why Economics is Differ
ent from Sociology. In: ZUKIN, S.; DIMAGGIO, P. Structures ofCapital: The Social Organization
of the Economy. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 39—56.
194, SUJEITO
Ver: Agente
348 SUJEITO
795. TAXIONOMIA
Maria Alice Nogueira
196.TELEVISAO - . .. .
Ver: Midia
TELEVIsAo 349
197. TEMPO
Ana Teresa Martinez
350 TEMPO
mesmo podem apostar
a tradicoes que trabalhavam contra a transmissibilidade da terra; ou
tes das universidades
quase no vazio, acreditando que tudo se tornou possivel, como os assisten
constit uida pela relacao entre
na crise de 1968, explorada em Homo academicus. A illusio é
m no campo. Porém,
as expectativas incorporadas e as possibilidades reais que se oferece
a coeréncia.
quando a illusio nao se concretiza neste campo, as lusiones perdem
como uma filosofia subjetivista
Deixadas de lado, tanto uma metafisica do tempo objetivo
finito desenvolvendo~se na
da temporalidade, o agente é, enquanto corpo socializado, tempo
social em que habita e que
sucessao de suas praticas, produzindo e reproduzindo o mundo
Deste modo, a experiéncia do
o habita. A pratica nao estd no tempo, mas simfaz o tempo.
que .duram e no use do
tempo'nao é universal nem homogénea. Desde a fixacao nas coisas
de um tempo sempre escasso
tempo gratuito e despreocupado da aristocracia, aos apuros
mas infitil e sem valor social
na pequena burguesia (LD, 241), on ao tempo superabundante,
rais ou acumular capitais
dos desocupados (LD, 264), a possibilidade de herdar dos ancest
éncia desigual do tempo,
diversos a0 longo da Vida esta desigualmente distribuida. A experi
rias se corresponde com distri-
das chances efetivas e das expectativas vinculadas a trajeté
podem ser consideradas como
buicoes desiguais de capital, que em suas diferentes espécies
255, 267).
“um conjunto de direitos de compreensao sobre o futuro” (MP,
solteir os de Béarn, Bourdieu prestou
Desde a anélise do baile que exclui os camponeses
o termo musical “tempo”) como
atencao a0 ritmo (ao qual alude com frequéncia utilizando
uma relacao comp a‘duracao por
um indicador do habitus. E o ritmo o que se grava no corpo
des coletivas se impoe como
meio da qual se incorpora a ordem social: 0 tempo das ativida
larizarem (SP, 127). For outro
imperative de honra aos cabilas, convocados a 1150 se singu
quadros temporais da Vida social,
lado, os estudantes franceses estao habilitados a romper os
(LH, 48; MP, 266). Porérn, se 0 tempo é
invertendo inclusive os horérios do dia e da noite
a hora de analisar a dominacao e
uma chave para os processos de incorporacao da hexis,
m o é. Quanto mais pessoal é a
as estratégias politicas de dominantes e dominados també
percepi de capital, mais inversao de
dominacao e mais pesa 0 capital simbolico enquanto
o: isso ocorre na sociedade cabila
tempo é requerida a0 dominante para sustentar sua posica
lapso que transcorre entre o dom e
e na universidade francesa. No intercambio de dons, o
bilita a denegacao de seu carater
o contradom é o que estabelece uma protecao que possi
dos intercambios estao baseadas as
obrigatorio e interessado. Por isso, no manejo do ritmo
cabila que dilata a resposta diante de
estratégias para tirar o maior proveito, seja no caso do
as vantagens dessa posicéo (SP,
um pedido de casamento para usufruir mais amplamente
o discurso da imaturidade de uma
181), seja no caso do professor de universidade que, sob
a sob tutela e resguardar, assim,
tese, dilata o prazo da defesa para manter o autor da mesm
flexivo, em que a crenca é um
a ordem de sucessao esperada (HA). Neste ambito do pré-re
mais ritualizadas 550 as interacées,
solo implicito sobre o qual se apoia o laco social, quanto
m ocorre o contrério, em situa—
mais eficacia social tem o manejo do tempo. Porém, també
nos momentos de crise ou quando
coes com alto grau de indeterminacao — como acontece
possibilidades de manipulacao
se diversificam os agentes em um campo —, quando ha mais
possivel introduzir uma novidade
das expectativas desconcertadas, mas também quando é
o, programa on plane nao aceitavel
que modifica as posicoes, em termos de utopias, projet
em situacoes de estabilidade (MP, 277278).
TEMPO 351
Finalmente, é fundamental na sociologia de Bourdieu nao confundir esta experiéncia
pré-reflexiva do tempo, que estrutura as préticas cotidianas, urgidas pelo “o que é preciso fazer”,
com o tempo especifico da prética cientifica, tempo objetivo e totalizador daquele que assume
a posieao de observador; e, na atitude analitica, o descontinuo volta a ser continuo, converte a
experiéncia de tempo circular em calendério linear, a experiéncia do espago praticado em mapa
abstrato, os intercambios matrimoniais 0corridos durante geragoes em incerteza’e a negociaeao
em esquemas de genealogias que permitem observé—los tota simul. A skholé, enquanto tempo
livre e liberado das urgéncias do mundo, imprescindivel para a prética cientifica, tende a fazer
esquecer o caréter especifico da temporalidade das préticas sociais e dificulta a compreensao
de seu significado, em uma teoria da agao que confunde razoabilidade com racionalidade e a
logica analogica do sentido prético com a logica univoca da logica como disciplina (MP, 247249).
Referéncias _
BOURDIEU, P. La société traditionnelle. Sociologie du Travail, v. 1, 1963.
HUSSERL, E. Fenomenologt’a de la conciencia del tiempa inmanente (1928). Buenos Aires: Nova, 1959.
HUSSERL, E. Ideas I (1913). México: Fondo de Cultura Econémica, 1962.
"gas. TEORIA
Roberto Grim
Bourdieu se ocupa com a categoria “trabalho” no inicio de sua carreira como antropologo
na Argélia, que entao luta para romper os lagos de dependéncia com a Franea. Nesse contexto,
o termo tern dois enfoques, apenas parcialmente divergentes. De um lado, o trabalho do cam~
ponés nas comunidades rurais ainda nao totalmente incorporadas ao universo capitalista,
mas praticando ainda em grande parte um modo de Vida ditado ou pensado pelos ciclos da
natureza. De outro, a experiéncia de Vida dos camponeses desenraizados e transformados
em subproletarios que tentam escavar a Vida nas cidades coloniais, nas quais. as referéncias
formadas na socializaeao primaria original estao longe de dar conta das circunsténcias efe-
tivas do totidiano. Nessa primeira fase, o termo “trabalho” tem o significado preponderante
de “labuta”, da relagao que o homem tern de estabelecer com a natureza e 05 outros homens
para ganhar, no sentido de ter e merecer, uma Vida digna. E importante termos em conta as
ressalvas necessérias introduzidas por duas tradueéés complexas, a primeira do érabe e do
berbere argelinos para o francés e a segunda do francés para o portugués. Isso porque boa parte
do esforgo de Bourdieu dessa fase estava justamente na tradueao para 'o francés dos termos
argelinos usados nos sistemas simbolicos que davam conta das relagoes sociais e césmicas.
Essa fase do percurso intelectual de Bourdieu esta registrada nos primeiros livros sobre a
Argéliae nas duas grandes sinteses antropologicas generalizantes, ou teoricas (SA; DR; ETP;
SP). Mais recentemente uma recolha sistema’tica realizada por Tassadit Yacine acrescenta a
352 TEORIA
‘ww:
material
série urn conjunto de trabalhos que estavam pouco acessiveis (EA). Temos entao
significa dos do termo “trabalh o” nessa fase em
sistematizado para refletir sobre os diversos
que a antropologia do desenraizamento é a sua preocupagao fundame ntal.
a
A categoria trabalho, num sentido que poden’amos chamar aproximativamente de sociologi
o prefacio
do contemporaneo, aparece em diversos textos posteriores, sendo digno de nota
egados austriacos
de Bourdieu a0 livro de Lazarsfeld; Iahoda et al. (1981) sobre os desempr
E por esse
durante a grande depressao de 1929, que Bourdieu publica na colegao que edita.
a trabalho
caminho da vivéncia do desemprego que Bourdieu faz a ligagao entre a categori
enfatizavam a questao
na antropologia e na sociologia. Os marxisrnos entao prevalecentes
sua experiencia
da alienagao no trabalho como parte da exploragao capitalista e, a partir de
os e grupo na
argelina, Bourdieu enfoca o trabalho como forma de inscrigao dos individu
gia do trabalho ”.
sociedade. E assim que se forma a chamada “socioantropolo
chamou de
Sern ignorar a abordagem marxista, Bourdieu vai insistir a partir dai no que
da questao identita~
“dupla verdade do trabalho”, unindo a ponta da exploragao economica a
de a exploragao
ria. E a grande inovaeao sociolégica estava justarnente na ligagio da identida
situaga o de trabalho ern
como fundamento possante dos constrangimentos produzidos pela
que via a descida ao
regime capitalista. O exemplo do jovem aldeao filho de mineiro de carvao
ilidade de carreira ligada
pogo corno prova de masculinidade, abandonando qualquer possib
que muitos COnsiderariam
a uma escolarizagao mais prolongada e abraqandoum destino
inaceitavel, mostrava historicamente essa questao.
associada a sociologia
A dupla verdade consiste teoricamente na necessidade primeira,
referida ao trabalho como
marxista, de mostrar a realidade objetiva do trabalho, que é aquela
deve ser visto corno pura
exploragéo ,economica. Para aceder a essa percepgao, o trabalho
a percepeao de que se
relaeao cornercial, destituida de qualquer “perturbagao” que impeea
desigua ldade entre a forqa do
trata de um contrato aparentemente entre iguais que encobre a
ga, quaisquer atrativos
empregador e a fraqueza do empregado. Para que essa visao prevale
siderados. Essa é a
ligados a condigao do trabalho on a de trabalhador devem ser descon
idos de Marx para assinalar
“primeira verdade”. Bourdieu se escora em textos memos conhec
que a percepgao de tal verdade é um caso raro e mesmo limite.
o. E ela que correspon—
A “segunda verdade" é a vivéncia subjetiva da situaeao de trabalh
s libidos nas esferas relacional,
de ‘a experiéncia cotidiana, na qual todos investem diversa
é eixo fundamental para a
cultural e identitarias. Como 0 local 011 a situagao de trabalho
ca ligada a “ir trabalhar” e um
constituiqao das redes sociais, ha uma satisfagao intrinse
tornarn cada vez menos
incremento em capital simbolico no “crescimento profissional” que
Bourdieu, “a experiéncia
provavel a preponderancia da “primeira verdade”. Nas palavras de
lmente determinado
do trabalho se situa entre dois limites, o trabalho forgado que é integra
qual o limite é a atividade quase
pelo constrangimento externo e o trabalho escolastico do
ra, menos se trabalha
ludica do artista on do escritor; quanto mais se distancia da primei
o e cresce também o sen~
diretamente por dinheiro, cresce mais o “interesse” pelo trabalh
o, da mesma maneira que cresce o
timento de plenitude ligado ao fato de realizar o trabalh
ao status profissional e a
interesse ligado as gratificagoes simbolicas associadas a profissao,
estreita com o interesse
qualidade das relaeoes de trabalho, que costumam guardar relaqao
intrinseco pelo trabalho” (RP, 241).
TRABALHO 353
A formulacéo “interesse intrinseco pelo trabalho” tem uma enorme importancia em diversos
segmentos da sociologia de Bourdieu. Na sociologia do Estado, ele seré um fator determin
ante
na possibflidade de haver funcionérios dedicados ao aparentemente abstrato interesse coletivo
(RP). Na sociologia do trabalho propriamente dita, ela apaIece como ponto central dos jogos
de Enquadramento que consagram a dominacao capitalista dos diversos arranjos produtivo
s:
“As novas técnicas de gestéo de empresas e em particular tudo o que é englobado na rubrica
de
‘gestao participativa’ pode ser entendido como tentativas de tirar partido, de maneira metodica
e sistemé’u‘ca, de todas as possibilidades que a ambigujdade do trabalho oferece as estratégia
s
patronais” (RP, 244). Mais uma vez é importante ligar essa analise a formulacao sobre habitus
etudo o que a separa da ideia de ideologia normalmente utilizada nas sociologias criticas. A
“segunda verdade” explora a estrutura social incorporada no corpo e alma do trabalhad
or. A
simples revelacao verbal da “primeira verdade” néo impede o funcionamento automético do
habitus. E 11510 é assim por acaso que ela normalmente tende a ser rejeitada, ja que entra em
choque com as estratégias identitérias dos trabalhadores, que sao construidas a partir das refe-
réncias produzidas no trabalho e da sua posicao especifica na hierarquia nos coletivos laborais.
A “primeira verdade” so aparece entao em condicoes muito especiais em que se esvai 0 capital
simbolico normalmente associado as posicoes patronais ou gerenciais.
O coletivo de pesquisadores que acompanhou Bourdieu em distintos momentos de sua
carreira se ocupou de diversas facetas da sociologia do trabalho. Assim, nao é exagero se falar
numa “sociologia do trabalho bourdieusiana”, interessada em diversos topicos da atualidade,
que v50 do trabalho gerencial de enquadramento (VILLETTE, 1979) 210 trabalho nas empresas
.
de alta tecnologia (BALAZS; FAGUER, 1996), passando pelo exemplar trabalho taylorizado nas
montadoras de veiculos (BEAUD; PIALOUX, 1999).
Referéncias
BALAZS, G; FAGUER, LP. Une nouvelle forme de management, l’évaluation. ARSS,
v. 114, p. 68‘78, 1996.
BEAUD, S.; PIALOUX, M. Retour sur la condition ouvriére: enquéte aux usines Peugeot de
Sochaux—Mantbéliard. Paris: Fayard, 1999.
LAZARSFELD, P. E; IAHODA, M. et al. Les Chémeurs de Marienthal. Texte imprimé traduit
de
l’allemand par Francoise Laroche, préface de Pierre Bourdieu. Paris: Minuit, 1981.
VILLETTE, M. La carriére d’un “cadre de gauche” aprés 1968. ARSS, v. 29, p. 64-74, sept.
1979.
200. TRAJETCRIA
Bourdieu tem uma forma particular, embora relativamente tardia, de utilizar a nocéo de
trajetéria, integrando—a as principais nocoes de sua teoria — habitus, campo e as diferentes
formas de capitais. A trajetoria social se refere originalmente “a evolucéo ao longo do tempo
de propriedades”, tais como 0 volume e a estrutura do capital do grupo analisado, “que dé
origem as representacoes subjetivas inerentes ‘a posicéo objetivamente ocupada” por cada
agente desse grupo (LD, 528). Bourdieu (1986, p. 72) pensa que “36 se pode compreender
bem uma trajetoria a condicao de construir anteriormente os estados sucessivos. do campo
354 TRAJETORIA
a0
onde ela se passa, o conjunto das relacoes objetivas que ligam o agente em questao [...]
conjunto dos outros agentes presentes no mesmo campo e que se defrontam com o mesmo
a
espaco de possiveis”. Associada sobretudo ao capital cultural herdado, a trajetéria passa
vos das praticas ” [...] dentro de
ser um dos elementos “do sistema de principios explicati
traje—
um determinado campo (LD; 593). Constata—se, igualmente, uma associacao entre
atuante de
toria e habitus, na medida em que Bourdieu (SP, 94) 0 define como “a presenca
entao a ser mobiliza do como variavel
todo o passado do qual ele é o produto”. O tempo passa
ica da sociedad e.
analitica, dentro de uma abordagem ao mesmo tempo sincronica e diacron
a0 grupo social
As primeiras utilizacoes do conceito de trajetéria ligam estreitamente o agente
dentro
no qual esta inserido. A trajetoria modal, ou seja, a trajetoria mais provével de um agente
ou melhor, de espaco ou
de seu grupo de origem é sempre definida em termos de probabilidades,
es dentro
“campo de possiveis”, na medida em que “a homologia entre as posicoes e as disposico
supor que os individu os separad os por essa
do campo nunca é perfeita” (NE, 259). “Tudo permite
que 5510 part6 integran te de
fronteira estatistica se opoem sob varies angulos [. . .]; oposicoes essas
o de uma profissao”
estilos de Vida ligados ‘as trajetérias sociais e ‘as diferentes condicoes de exercici
ou “singulares”, que
(LD, 522). Reconhece igualmente a existéncia de trajetorias “individuais”
objetiva mente oferecidas
consistem “em respostas a um estado determinado de oportunidades
as a trajetéria de
pela historia coletiva ao conjunto de uma geracao” (LD, 337). As variaveis associad
que levam em conta n50
cada individuo podem revestir uma infinidade de diferencas singulares
ns ‘as quais ele pertence. No
apenas seu ponto de origem, mas igualmente a influéncia das linhage
percurso e a explicar os
entanto, o espaco dos possiveis proprio ao campo continua a limitar seu
individuo socialmente
meandros de cada trajetéria. Nesse sentido, a trajetéria se refere sempre a0
Bourdieu (1986,
construido, nao ao individuo biografico. Em seu artigo “A ilusao biogréfica”,
que favorecem ou
p. 70) enfatiza que é impossivel “esquivar a questao dos mecanismos sociais
de”, pois, segundo ele, a
autorizam a experiéncia ordinéria davida como unidade e como totalida
relacoes sociais.
singularidade dos individuos se forja simultaneamente nas e pelas
u a partir de La
O uso da nocao de trajetoria assume major importancia na obra de Bourdie
de trajetoria”, ou seja, a
distinction (1979), onde evoca pela primeira vez o que chama de “efeito
do a mesma posicao social [podem
ideia de que “agentes dotados das mesmas propriedades e ocupan
(LD, 122, 124). Ele nao deixa,
ter] uma trajetoria social diferente da trajetoria modal de seu grupo”
relacionada as diferencas
porém, de enfatizar que a trajetéria individual permanece “fortemente
do capital cultural herdado”
de estrutura do capital possuido [. . .] e particularmente ao volume
e o agente condicionam
(LD, 90), na medida em que a origem social e a linhagem a que pertenc
ativo que dé unidade as
tipos de experiéncias particulates. Nesse contexto, 0 habitus, principio
individ ual e coletiva, que se trans—
representacoes e ‘as praticas, “é a propensao da trajetéria social,
realizar” (LD, 388).
forma na inclinacao por onde essa trajetéria [. . .] tende a se prolongar e a se
e as de trajetorias
As nocoes de trajetéria modal, coletiva on individual, acrescentam—s
s, interrom pidas, desviantes, dis-
ascendentes e descendentes; passadas e potenciais; cruzada
relacion ada aos processes
persas ou de transfugas. O que as vai diferenciar é a histéria familiar,
oes e reconversoes na
de desclassificacao e reclassificacao decorrentes de sucessivas convers
Vida do individuo, principalmente quando ha mudanca de fracao de classe.
empirica do campo
Dez anos mais tarde, La noblesse d’Etat (1989) apresenta uma anélise
o de consagracio que
das grandes escolas francesas, colocando em relevo a influéncia do trabalh
TRAJETORIA 355
essas instituicoes imprimem sobre as trajetérias de seus ahmos. No restante
de sua obra, esse
conceito merece breve mencao, que nao afeta seu tratamento. Detecta—se,
através da histéria desse
conceito, a influéncia do estado do campo da sociologia francesapor volta
dos anos 1980, das lutas
para abandonar os paradigmas entao dominantes, o estruturalismo e o
marxismo. Nessa época,
o campo comeqa a se abrir em direcao a correntes qualitativas anglo—saxés,
cuja influéncia impoe
a compreensio do devir biogréfico como produto da interacao dialética entre
a determinacao das
estruturas e a acao dos individuos. Antes examinados, sobretudo 11a estrutur
a global e na sincro-
nia, os fenémenos sociais passam a ser analisados também em seus compon
entes individuais 3
na diacronia -— abrindo espaco a emergéncia do conceito de trajetéria. Popular
iza‘se 11a Franca o
uso dos conceitos de “carreira” (BECKER, 1985, p. 47) e “carreira moral”
(GOFFMAN, 1961, p. 127-
128) adequados a construcao de modelos sequenciais, que facultam a analise
da forma pela qual
o ator incorpora ou integra a estrutura social sem que nenhum deles seja determi
nado pelo outro.
Essas lutas levam Daniel Bertaux (1976, 1980) a propor o abandono do paradig
ma neoposi—
tivista através da mterdisciplinaridade e da critica ao pensamento probab
ilista. Sua abordagem
biogréfica conduz a nocao de destinos pessoais, que permite dar
major atencao aos aspectos
concretos dos processos no m’vel do individuo, sempre dentro de Inna estrutur
a de classes. Vin-
cent de Gaulejac (1987) propoe programa semelhante a0 articular a sociolog
ia e a psicologia na
analise de trajetérias individuais em mobilidade ascendente ou descendente
para mostrar como
os mecanismos sociais e as d'mémicas psiquicas se entrecruzam na
sincronia 6 na diacronia. Sua
ideia de que o individuo esté inserido ao mesmo tempo em histérias pessoal
, familiar e social
1150 se afasta muito, no entanto, da concepcao bourdieusiana de incarpompdo
de um habitus
de classe, através do qual as informacées necessarias a prética cotidiana
séo transmitidas de
geracao em geracao enquanto “espécies de programas historicamente montad
os” (Q8, 75). As
dinamicas psiquicas serao, no entanto, analisadas do ponto de vista da
teoria psicanalitica,
levantando o problema da identificacao inconsciente: os individuos néo mais
se definem apenas
em relacao ao grupo a que pertencem on a situacao social que ocupam,
mas em relacao a sua
propria identidade —~ conceito que Bourdieu nao mobiliza em suas analises
.
A introducao da nocéo de trajetoria na obra de Bourdieu revela o papel do
estado do campo
sobre ela e reduz ao mesmo tempo a pertinéncia das criticas dirigidas a teoria
bourdieusiana
por nao levar em conta o individuo e a mudanca social.
Referéncias
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BERTAUX, D. Pour sortir de l'orniére néo-positiviste. Sociologie et Socie’tés
, v. 8, n. 2, p. 119—134, 1976.
BERTAUX, D. L’Approche biographique: sa validité méthodologique,
ses-potentialités. Cahiers
Internationaux de Sociologie, v. LXIX, p. 197-225, 1980.
BOURDIEU, P. L’Illusion biographique. ARSS, 11. 62—63, p. 69—72, juin
1986.
GAULEIAC, V. de. La névrose de classe. Paris: Hommes et Groupes
, 1987.
GOFFMAN, E. Asiles. Paris: Minuit, 1961.
BOURDIEU, P. 05 usos sociaz’s da ciéncia: por uma sociologia clinica do campo cientifico. Sao
Paulo: Ed. da UNESP, 2004.
“para alérn das aparéncias e das falsas antinomias”, além daqueles diretamente vinculados
a situacao do INRA e de uma recuperacao dos debates havidos.
usos socws DA CIENCIA (05): FOR UMA SOCIOLOGlA CLINICA no CAMPO cnsmmco 357
(Les usages sociaux de la science: pour une sociologie clinique du champ scientifique)
Bourdieu se recusa a caracterizar o INRA pela oposigéo entre a légica da inveugio dos
cientistas “puros” e a légica da inovaqéo econémica dos pesquisadores “aplicados”, uma vez
que no institute prevalecem ambas. Essa instituigéo pfiblica, investida de vocagéo universal,
liberada da presséo direta do mercado, em que coexistem duas concepgées de pesquisa, auté-
només e compativeis entre si, goza da necesséria autonomia relativa que confere legitimidade
‘a atuagéo pfiblica dos cientistas. Destaca, com énfase, que a autonomia é a condigéo do enga~
jamento. Sendo assim, o caminho indicado por Bourdieu para o INRA residiria mum longo
trabalho de socioanélise coletiva — por meio da qual se fortalece a comunicaqéo racional —,
representando a busca de uma Vida cientifica mais eficaz e menos infeliz, algo que nenhum
diagnéstico de comités de especialistas seria capaz de deflagrar.
358 USOS SOCIAIS DA CIENCIA (05): FOR UMA SOCIOLOGIA CLINICA DO CAMP-O
CIENTIFICO
(Les usages sociaux de la science: pour une sociologie clinique du champ scientifique
)
203. VEREDICTO ESCOLAR
Como compreender que “a ordem estabelecida, corn suas relaqées de dominaqao, seus direitos
e seus tratamentos de exceeao, seus privilégios e suas injustigas, consiga perpetuar~se [...] téo
facilmente, com exceeao de alguns acidentes histéricos, e que as mais intoleréveis condigoes de
Vida possam aparecer, corn frequéncia, como aceitéveis e, até mesmo, naturais?” (DM).
Uma primeira resposta a essa questao reside no uso que fazem os dominantes da forga
fisica, simples ou armada para impedir ou derrubar qualquer revolta. Assim, segundo
Weber, “0 Estado é uma comunidade humana que reivindica com sucesso o monopélio do
uso legitimo da violéncia fisica em determinado territério”. Uma segunda resposta encon—
tra-se na coergao economica e, mais precisamente, na separagao entre os meios de produgao
e a forga de trabalho que, no modo de produqao capitalista, obriga os proletérios a vender
“livremente” sua forga de trabalho. No entanto é inevitével constatar que, se na maior parte
dos casos, os dominados nao se revoltarn contra a dominagao que os subjuga, n50 é ~ on 1130 8'
somente - por terem recelo da repressao (policial, militar, parental, marital etc.). Além disso,
se 05 explorados n50 se revoltam contra a exploragao de que sao vitimas, nao é — on n50 é
somente — sob a égide da necessidade, mas também porque tendem a aceitar sua situaqao
corno inelutavel, a percebé-la corno inscrita “na ordem das coisas”. Como explicar tal adesao?
Marx e Engels (em A ideologia alemd), Weber (em Economia e sociedade), Durkheim
e Mauss (no estudo das “formas primitivas de classificagao”) propuseram diversas respostas
para essa questao. Bourdieu néo é, portanto, nem o primeiro nem o finico a sublinhar a adesao
on a contribuigao dos dominados para a sua propria submissao. A novidade, no conceito de
“violéncia simbolica”, reside na explicagio proposta. Oximoro que embaralha as fronteiras
entre 0 material e o intelectual, a forqa e o direito, o corpo e a mente, o conceito de “violéncia
Referéncias
DURKHEIM, E.; MAUSS, M. De quelques formes primitives de classification: contribution a
l’étude des representations collectives. L’Année Sociologique, v. 6, 1903. _
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TERRAY, E. Réflexions sur la violence symbolique. Actuel Marx: auteur de Pierre Bourdieu,
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ratique. ARSS, 11. 96-97, mars 1983.
BOURDIEU, P. Systémes d’enseignement et systémes de pensée.
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LAHIRE, B. L’Homme pluriel: les ressorts de l’action. Paris:
Nathan, 1998.
MARTIN CRIADO, E. Les deux Algéries de Pierre Bourdieu. Broissie
ux: Croquant, 2010. p. 40—47.
Bourdieu dizia que o que torna dificil para um pesquisador utilizar os trabalhos de Weber
é o fato de que aquilo que é transmitido nas exegeses e nas vulgatas professorais nao é tanto a
logica de seu pensamento com seus fundamentos materiais e intelectuais, isto é, a operagao ,
propriamente intelectual — o opus operandi (a maneira de construir o objeto) —, mas sim
o resultado da pesquisa (as “teses”), o opus operatum, segundo a oposigao classica que ele
utiliza para dar conta de sua maneira de trabalhar e de ensinar. Eis o que Bourdieu tenta
fazer em seus dois artigos sobre a sociologia da religiao de Weber, nos quais procede 1150 so
a urna reapropriaeao verbal do procedimento weberiano, mas a um verdadeiro trabalho de
reconstrugao, analisando minuciosamente trechos relativos a sociologia da religiao, extraidos
de Economia e sociedade, em fungao de 5611 proprio objeto de pesquisa, ou seja, a elaboraqao
da nogao de campo a respeito da qual sempre afirmou que ela se deve, 561150 a uma leitura
”textual de Weber, ao menos a sua tentativa intelectual e, ao mesmo tempo, pedagogica de
apresentar sua eficacia heuristica
A proposito do campo religioso, Bourdieu interpreta as analises de Weber colocando--as
em perspectiva com as de Durkheim e de Marx. Ele vai reposicionar umas em relagao as
outras, referindo-se as duas grandes tradieoes intelectuais que, em seu entender, dividem a
historia da sociologia: a sociologia do poder e a sociologia do conhecimento. Ele coloca Weber
a0 lado de Marx na sociologia do poder. Para este tiltimo, a religiao é concebida em termos
de agoes, em termos de conflitos de atores. Durkheim, por sua vez, é situado por ele na so—
ciologia do conhecimento e da linguagem - no caso desse pensador, a religiao aparece como
taxinomia e ordenagfio do mundo. Assim, em sua analise da génese e do funcionarnento do
campo religioso, Bourdieu conjuga essas duas tradigoes cujos componentes habitualmente
contribuem para separé-las (poder temporal e fenomenos simbolicos). Com efeito, em sua
opiniao, é enquanto instrumento de conhecimento que os fenémenos simbolicos se tornam
instrumentos de poder: através de um sistema de categorias de percepgao do mundo verifica-
se a efetiva implicaeao de toda a estrutura da ordem social 6 de sua legitimagao. ‘
E9.?:W'.TT§F.N§TE.W:WWI???889.1957) ...................................
Louis Pinto
Associado na Franqa, durante muito tempo, a0 positivismo logico - corrente tanto desconhecida
quanto desdenhada —, Wittgenstein 56 se tomou um autor realmente importante a partir dos anos
1970. E16 {150 fazia parte dos pensadores que os estudantes de filosofia da geragao de Bom'dieu
eram levados a let, tendo sido relegado a obscuridade pelas tradigdes nacionais (filosofia das
ciencias) e pelas sucessivas vanguardas: fenomenologia, “estruturalismo” e “pos—estruturalismo”
em suas diferentes variantes. Nos filtimos anos de sua Vida, Bourdieu demonstrou preocupaqao
com a assimilagao de Wittgenstein ao pos-modernismo, opondo~se a uma interpretagao relativista
das “formas de Vida” tal como ela havia sido proposta pelos partidarios do “programa forte” em
sociologia das ciéncias, como por exemplo, David Bloor (BOURDIEU, 2002).
Inicialmente, Bourdieu havia pensado em dedicar a Wittgenstein o livro que, ao final,
recebeu a denominagéo de Méditations pascaliennes. A anélise minuciosa de jogos‘ de
linguagem de Wittgenstein é a ilustraqao de uma atitude filosofica que rompe com o estilo
que Bourdieu designava por “escolastico”. A0 invés de puros exercicios escolésticos, a ciéncia
e a filosofia podem ser, antes, consideradas como maneiras de reformat nossos modos de
ver. Bourdieu encontra em Wittgenstein uma “boa parte de meus sentimentos a respeito da
filosofia”, citando o préprio filosofo que escrevera: “Qual o interesse de estudar filosofia, se
tudo o que ela faz por nos é nos tornar capazes de expressar de modo relativamente plausivel
certas questoes de légica abstrusas etc., e se isso nao melhora nossa maneira de pensar sobre
as questoes importantes da Vida de todos os dias, se isso nae nos torna mais conscientes do
que qualquer jornalista no emprego de expressoes perigosas que as pessoas dessa categoria
utilizam para seus préprios fins?” (MP, 53).
Referéncia
BOURDIEU, P. Wittgenstein, le sociologisme et la science sociale. In: BOUVERESSE, 1.; LAUGIER, S.;
ROSAT, 1:}. Wittgenstein, derniéres pensées. Marseille: Agone, 2002.
370
L~.,_»?-;
BOURDIEU, Iérome, 62 CHRISTIN, Olivier, 62
BOURDIEU, Marie-Claire, 52 CHRISTIN, Rosine, 61, 347
BOURDIEU, Noémie, 53 CICOUREL, Aaron Victor, 25, 62
BOUVERESSE, Jacques, 26, 62, 130, 143, 216, CLUNAS, Craig, 148
BOYER, Robert, 348 COCTEAU, Iean, 31
CAMILLE COROT, Jean-Baptiste, 259 DARNTON, Robert, 25, 44, 62, 85, 224
CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry, 175 DUVAL, Inlien, 62, 146, 148, 187, 208
CHOMSKY, Noam, 162-163, 214, 250, 252-254, 290 EAGLETON, Terry, 43, 62
KANT, Immanuel, 81, 149, 199, 208—209, 236, LUKACS, Gyargy, 66, 84, 140, 261
247, 311, 344 MALINOWSKI, Bronislaw, 182
KLUGER, Elisa, 179,277 MALLARME, Stéphane, 257-258
KOCKA, Iiirgen, 224 MANET, Edouard, 224, 257-259
KOYRE, Alexandre, 82, 174, 287 MANNHEIM, Karl, 236
KUHN, Thomas, 171~172, 324 MARCHI 11:, Wanderley, 79
LABOV, William, 26, 61 MARCUSE, Herbert, 61
LABROUSSE, Ernest, 224 MARESCA, Sylvain, 61
LAGNEAU-YMONET, Paul, 168 MARIN, Louis, 26, 61, 174
LAHIRE, Bernard, 64, 130, 363 MARTlN CRIADO, Enrique, 38, 141, 228,
LAMICQ, Bernard, 53 304, 345
LAPASSADE, Georges, 334 MARX, Karl, 38, 64, 76, 90, 96, 104, 135, 161,
164, 170—171, 184—185, 199, 259-261, 262, 296,
LATOUR, Bruno, 26, 324
299, 314, 338, 353, 359-360, 365
LAZARSFELD, Paul, 167, 170, 338, 353
MARY, Philippe, 63
LE ROUX, Brigitte, 77 ’
MAUGER, Gérard, 45, 259, 305, 342, 359, 361
LEBARON, Frédéric, 62, 77, 101, 167
MAUSS, Marcel, 43, 61, 74, 125, 134, 161, 166,
LECOMPTE, Margaret, 334 182, 192, 213, 247, 262-264, 297, 359
LEHMANN, Bernard, 216 MEAD, Margaret, 38, 345
LEIBNIZ, Gottfried , 30, 81, 182, 199, 305, 335 MEDEIROS, Cristina C. C. de, 123, 132, 219,
LEIRIS, Michel, 176 228, 281, 302 ~
LENOIR, Remi, 26, 86, 112, 184, 262, 365 MELO, Juliana Ferreira de, 137
LEVI-STRAUSS, Claude, 38,40, 54, 55, 124-125, MENDRAS, Henri, 175
126-127, 157, 175, 182, 192-193, 201, 222, 228, MERLEAU—PONTY, Maurice, 81, 82, 125,174,
233, 246.248, 260, 262, 274, 296,318, 324, 326, 182, 198, 199, 214, 267—268, 296
336, 345, 368 MERTON, Robert, 68, 70, 171, 324, 338
LEVY, Bernard-Henri, 269 METAILIE, Anne-Marie, 243
LEVY‘BRUHL, Lucien, 182 MEYERSON, Emile, 49
LEWIN, Kurt, 289 MICELI, Sergio, 25, 62, 162, 164, 174, 176, 238,
LINHART, Robert, 26 265, 330
LINTON, Ralf, 61 MICHELS, Robert, 90
LIPP, Carola, 224 - MONTERO, Paula, 33, 233, 318
LOPES, Iosé Sérgio Leite, 265 MONTLIBERT, Christian de, 44—45
376
179, 180, 184-186, 190-192, 194, 197, 200, 201, Capital cientifico, 6'9, 82, 172,357
203, 209, 216, 222, 223, 225227, 229, 231233 Capital corporal, 101, 133
2414243, 246, 249—251, 253, 254, 257, 258, 261, Capital cultural, 30, 32, 46, 59, 60, 72, 76,
264-266, 269, 270, 272, 273, 278-281, 289, 290, 79, 90, 102-106, 109-111, 113416, 119,
292-295, 298, 301—304, 310, 318-320, 324, 325, 120, 133, 136, 143, 145, 146, 153, 154,
327, 329, 332339, 341-343, 348, 350, 351, 354— 167, 178, 179, 190, 191, 194, 195, 212,
357, 362, 363, 365, 366, 369 218, 219, 234, 235, 237, 241, 246, 250,
Campo académico, 175, 250, 273, 333, 334 251, 261, 266, 280, 293, 294, 304, 314,
Campo artistico, 64, 66—68, 78, 84, 85, 112, 315, 327, 339, 346, 355
138, 158, 256, 344 Capital de autoridade, 94, 112,227, 254
Campo burocrético, 58, 76, 78, 92, 185 Capital econémico, 32, 46, 54, 76, 77, 79,
Campo cientifico, 47, 58, 68-70, 78, 84, 111, 98, 101, 102, 105-109, 111, 113416, 119,
112, 118, 129, 130, 171,172, 227, 265, 294, 120, 136, 145, 153, 154, 167, 169, 178,
312, 313, 324, 337, 343, 357, 369 183, 190, 191, 194, 196, 212, 227, 235,
Campo cultural, 71—73, 121, 137, 148 237, 261, 266, 280, 293, 304, 314, 315
Campo da alta costura, 73, 74, 111 Capital escolar, 78, 106, 136, 138, 196,218,
Campo de producfio simbélica, 47, 48, 71, 235, 280, 344
90 Capital linguistico, 163, 250252, 254, 255
Campo do poder, 47, 68, 7477, 84, 85, 96, Capital religioso, 82, 93, 94
97, 115, 153, 164, 168, 180, 184—186, 223, Capital simbélico, 40, 41, 54, 56, 57, 70, 72,
225—227, 237, 238, 273, 278-280, 288, 309, 77, 78, 89, 90,102, 103, 106, 109-114, 116,
310, 333 117, 119, 145, 154, 161, 167, 169, 182-184,
Campo econémico, 46, 47, 55, 64, 71, 72, 190, 228, 235, 237, 261, 266, 278, 304,
77, 78, 79, 84, 92, 121, 227, 272, 273 314, 315, 324, 326, 351, 353, 354
Campo escolar, 246, 254 Capital social, 32, 46, 54, 79, 90, 98, 102,
Campo intelectual, 35, 48, 83-85, 124, 126, 106,110, 111,113,114, 115,116,117, 119,
131, 138, 164, 166, 174, 186, 225, 227, 136,145,154, 167, 180, 183, 194, 196, 235,
237, 247, 255, 259, 260, 265, 269, 270, 261, 266, 279,293, 304, 314 '
273, 282, 289, 321, 323 Capital temporal, 69
Campo jornalistico, 269, 270 Espécies de capital, 47, 56, 76, 96, 98, 103,
Campo juridico, 86, 330 111-117, 119, 120, 152, 153, 167, 180, 181.
Campo literério, 46, 66, 71, 72, 83—85, 184, 191, 194, 225, 237, 261, 266, 279, 280,
88~90, 167, 186, 236, 258, 309, 310 304, 314, 315, 357
Campo politico, 46-48, 71, 90-92, 121, 124, Volume de capital, 114, 120, 136, 304
153, 169, 227, 259, 271, 296, 301, 330, 344 Capitalismo, 55, 107, 144, 310,331, 348
Campo religioso, 57, 64, 84, 93, 94, 164, Categoria, Categorias, 30, 31, 49, 54, 69, 74, 75,
184, 264, 289, 365 77, 81, 86,95, 98, 103, 127, 129, 137, 147, 150,
Campo universitério, 85, 95, 96, 99, 192, 153, 167, 170, 171, 186488, 192, 195,207,213,
223, 225227, 337 215,216, 220,226, 229, 233,243,246, 248, 255,
Subcampo, 71, 81, 129, 237 257, 258,269,276, 278,283,287, 288,293, 300,
Capital, 41, 46, 47, 54, 56, 59, 60, 65-67, 69, 71, 72, 312, 313, 325, 328, 330, 334, 337, 342, 349, 352,
75, 76, 78, 80-82, 88-94, 96, 101-116, 1194122, 353, 357, 367 .
124, 133, 136, 145, 146, 149, 161, 168, 172, 178, De pensamento, 92, 117, 123, 159, 233,273,
180, 188, 191, 196, 209, 213, 215, 218, 226, 227, 313, 328, 337, 349
231, 235, 236, 241, 242, 250, 254, 255, 260, 267, De percepcéo, 56, 110, 111, 122, 192,215,
268, 276, 278-280, 292-295, 302, 304, 310, 314, 229, 273, 293, 365
315, 331, 332, 350, 351, 354, 355, 357 Do juizo professoral, 192, 328, 349
—
"3;",
124, 125,133,139, 144, 147,149, 150, 153, Bstratégias de reprodugéo, 25,40, 76, 77,
168, 174, 177-180, 184, 188, 191~194,199, ‘ 108, 145, 179,189-191, 196, 197, 228, 273,
209, 212, 218, 223, 225, 226, 231, 232, 304, 314, 315, 326
241—243, 260, 261, 264, 274, 289, 290, Estratégias de subversio,65, 69
295, 304-306, 310, 312, 313, 322, 337, Estratégias de sucesséo, 69, 190, 196, 314
339, 342, 347, 350, 362, 363 Estratégias distintivas, 25, 146, 273
Esporte, 35, 73, 75, 79—81, 104, 124, 133, 147, Estrutura, 23, 24, 27, 28, 31-34, 36, 40, 45, 46,
148, 150, 187, 188, 242, 290, 302, 339, 346, 52, 57, 65, 68, 69, 75—77, 79, 80, 8789, 93, 94,
361 96, 97, 102, 105, 106, 109, 111, 115, 120-122,
Esquemas, 33, 35, 38-41, 43, 47, 60, 85, 86, 104, 127, 129, 134—137, 141-144, 151—155, 157, 158,
111, 120, 121, 133, 138, 144, 152, 156, 161, 164466, 178, 181, 182, 184, 185, 188, 191-194,
180482, 189, 191, 193, 214-216, 237, 267, 274, 209, 210, 218, 222, 223, 225, 227, 229, 231-233.
278, 280, 289, 308, 326, 328, 335, 336, 343, 235, 237, 242, 243, 247, 249, 252, 254, 260, 261,
352, 360—364, 368 270, 274, 276, 277, 279, 280, 289-294, 296, 297,
Esquemas de aqéo, 121, 142, 328, 368 304—306, 309, 312-315, 318, 325-328, 336, 338,
Esquemas de apreciagfio, 56,278, 328 341, 350, 354-356, 360, 362, 365, 366, 368
Esquemas de percepqéo, 35, 47, 56, 121, Bstruturalismo, 26, 34, 40, 54, 126, 128, 129,
129, 134, 135, 180, 191, 278, 987, 304, 143, 154, 174, 182, 192, 193, 201, 215, 222,
307, 311, 319,328 A 233, 248, 250, 260, 262, 292, 304, 314, 321,
Esquisses algériennes, 62, 184 ‘ 336, 338, 356, 367 ’
Estado, 25, 35, 46, 5860, 65, 69, 75—79, 81, 86, Estruturas cognitivas, 118, 142, 151, 152,
87, 89, 91, 97, 98, 101, 104—106, 108-110, 112, 154-156, 182, 191, 281,292,294, 361, 362
122, 130—133, 154-157, 159, 161, 164, 167, 169, Estruturas estruturadas, 69, 135, 295, 334
184-186, 190, 191,210, 213, 217, 223, 224, 227, Estruturas estruturantes, 23, 69, 127, 135,
229, 232, 234, 235, 239, 240, 243, 251, 253, 292, 295
258, 259, 261, 265, 266, 268, 272, 275, 276, Estruturas incorporadas, 24, 193, 293, 312,
278, 279, 281, 284, 289, 293, 294, 304, 314, 313 ,
315, 322, 324, 326, 328, 330—334, 346, 348, Estruturalismo genético, 40, 124
354-356, 359, 361, 362, 366, 368 Estruturas mentais, 103, 124, 134, 180,
Estética, 42, 60, 66, 74, 85, 89, 103-105, 121, 185, 191, 192, 211, 212, 214, 231, 232,
122, 135, 136, 138, 149, 151, 258, 270, 280, 278, 280, 281, 330, 361
309—311, 322, 345, Estruturas sociais, 24, 25, 27, 39, 72, 75, 77,
Estilos de Vida, 58, 67, 73, 75, 80, 81, 94, 98, 104, 94, 108, 119, 120, 124, 129,135, 142, 144,
114, 121, 122, 136—138, 149, 150, 167, 168, 179, 149, 152, 154, 156, 163, 177,183, 191, 196,
187-189, 214, 234, 246, 273, 279, 290, 292, 350, 211, 212, 214216, 223, 273, 278-281, 290,
355, 367, 395, 297, 304, 327, 330, 340, 354, 356, 363
Estratégia, 25, 27, 28, 32, 40, 41, 52, 54, 56, 58, Ethos, 78, 94, 102, 141, 180, 183, 194, 199, 228,
60, 65, 66, 69, 74, 78, 80, 90, 103, 104, 107, 308, 310, 336, 339
108, 114, 122, 124, 143, 144, 146, 148, 154, Etnografia, 153, 278
164, 167, 179, 182, 183, 189, 190, 193, 196, Etnologia, 15,53, 115,124, 148, 151, 181, 191,192,
207, 215, 216, 223, 230, 232, 242, 243, 248, 222, 227, 247, 265, 292, 307, 324, 336, 342, 360
250, 252, 260, 263, 273, 276, 280, 297, 301, Existencialismo, 99, 321
304, 309, 314, 321, 325, 326, 334, 335, 339, Familia, 25, 42, 5264, 57-59, 80, 101-103, 105,
347, 350, 351, 354, 366 ‘ 106, 110, 113-115, 120, 121, 125, 136, 142,
Estratégias de conservaqéo, 65, 69, 179 143, 157, 160, 174, 175, 177, 183, 188, 190, 191,
Estratégias de fecundidade, 190, 314 195497, 209, 216-219, 221, 235, 248, 251, 259,
Estratégias de reconversio, 191, 304 314-316, 331, 347, 362
' Listagem Iimitada somente a livros e coletz‘meas. Compreende também as obras em coautoria.
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392
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1930 (primeiro de agosto) — Pierre Bourdieu nasce em Denguin, pequeno vilarejo da provincia
do Béarn, regiao rural do sudoeste da Franga, situada nos Pirineus e proxima da Espa~
nha, onde a lingua nativa era 0 occitanico. Seu pai, Albert Bourdjeu, orig'mério de uma
famflla de camponeses, havia se tornado, ao redor dos 30 anos, modesto funcionario
publico dos correios, tendo exercido, a0 longo da Vida, o oficio de earteiro Ina regiao
do Béarn. Sua mae, Noémie Bourdieu, também proveniente do meio rural, pertencia a
uma famflia de agricultores com nivel social um pouco mais elevado.
1941—1947 — Frequenta o Liceu de Pau (capital do Béarn), onde cursa a primeira parte do
ensino secundario e se distingue nos estudos.
de
1948-1951 — Recebe uma bolsa de estudos para cursar o ensino médio e, a conselho de um
seus professores do Liceu de Pau, ingressa no Liceu Louis~le—Grand, em Paris, reputado
por constituir o melhor curso preparatério para o ingresso na Ecole Normale Supérieure
de Paris e por reunir os melhores alunos do pals.
en~
1951~1954 — lngressa na célebre Escola Normal Superior (ENS) da rue d’Ulm, em Paris,
tio o mais importante centro de recrutamento e formagao da elite intelectual francesa.
Diploma-3e, nessa escola, em filosofia, aos 25 anos. Na mesma época, realiza estudos
de graduagao também em filosofia na Faculdade de Letras de Paris (Sorbonne), onde
defendeu a tese intitulada Estruturas temporais da Vida afetiva.
1954 — Obtém — juntamente com Jacques Derrida e Emmanuel Le Roy Ladurie — aprovaeao
no concurso de Agrégation (concurso publico de admissao ao cargo de professor de
liceu ou de faculdade).
1954—1955 — Passa a lecionar filosofia no Liceu de Moulins, pequena cidade situada na regiao
central da Franga.
no
1955—1958 — E convocado e presta o servieo militar na Argélia, entao colonia francesa
norte da Africa, em plena guerra (1954—1962) por sua independéncia da Franga.
1958-1960 — Leciona na Faculdade de Letras de Argel (capital da Argélia), como Professor
Assistente. Durante esse periodo desenvolve um extenso trabalho de campo, que redundou
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numa etnologia da sociedade cabila (populacao camponesa habitante das regioes mon-
tanhosas do norte da Argélia).
1960 — Em funcao do agravarnento do conflito colonial e diante das posicoes liberais que
assume face a guerra de independéncia, Bourdieu é obrigado a voltar para a Franca,
tornando—se Professor Assistente na Faculdade de Letras de Paris (Sorbonne).
1962 (2 de novembro) — Casa—se com Marie-Claire Brizard, sociéloga e filha de um me’dico.
Dessa uniao nasceram trés filhos, Iérome, Emmanuel e Laurent.
019614964 - E nomeado professor e orientador pedagégico da Faculdade de Letras de Lille
(cidade localizada no norte da Franca). Na Universidade de Lille, ministra, pela primeira
vez, cursos sobre os “pais fundadores” da sociologia (Durkheim, Weber, Marx), mas
tambe'm sobre a antropologia britanica e a sociologia norte-americana. Paralelamente,
prossegue o trabalho de analise dos dados de campo coletados durante o periodo argelino
e em suas constantes viagens de férias a Arge'lia.
1964 — Passa a lecionar na Escola de Altos Estudos em Ciéncias Socials (EHESS) de Paris,
credenciando~se também como orientador de teses e estudos cientificos. Ao assumir
esse posto, aos 34 anos, tornou-se um dos mais jovens professores dessa instituicao.
1964 — E indicado por Raymond Aron para sucedé—lo na direcao do Centro de Sociologia
Europeia.
1964 — Torna—se diretor da colecéo Le Sens Commun para a editora parisiense Minuit. Por
mais de duas décadas, Bourdieu dirigiu essa colecao, na qual publicou obras cléssicas
(de Durkheim, Mauss, Halbwachs, Cassirer, Bakhtin, entre ounos), bem como traduziu
e divulgou, na Franca, grandes autores contemporaneos (entre eles, Goffman, Bernstein,
Labov, Goody, Hoggart). ‘
1964 — Nessa mesma colecao, publica, em coautoria com Jean-Claude Passeron, o livro Les
héritiers, sua primeira grande obra no campo da educacao.
1967 — Funda 0 Centro de Sociologia da Edueacao e da Cultura (CSEC) na EHESS. Neste
centro, Bourdieu congregou e dirigiu, por mais de trinta anos, uma grande equipe
de pesquisadores dedicados a compreenséo das relacoes que se estabelecem entre o
universe da cultura e o campo do poder e das classes sociais.
1970 — Publica, mais uma vez em coautoria com Jean—Claude Passeron, aquele que se tor-
naria seu mais conhecido livro no terreno da educacao: La reproduction (no Brasil: A
reproducfio). Na década de 1970, dé inicio a intensas afividades académicas no exte-
rior como convidado de instituicoes importantes, corno as universidades de Chicago,
Harvard, Princeton (EUA); Instituto Max Planck (Alemanha); Universidade de Todai
(Japan), entre outras.
1975 ~ Com 0 apoio de Fernand Braudel, entao diretor da Maison des Sciences de l’Homme,
cria o periédico Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS), que dirigira até
os mementos finais de sua Vida. Esse periédico tornou—se uma das mais importantes
publicacoes em ciéncias sociais no mundo.
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