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E

Afrénio Men‘des Catani


Maria Alice Nogueira
Ana Paula Hey e
Cristina Carta Cardoso de Medeiros
(Orgs.)

Vocabulério

OURDIEU

auténtica
Copyright © 2017 05 Organizadores
Copyright © 2017 Auténtica Editora

Todos os direitos reservados pela Auténtica Editora. Nenhuma parte desta publicagao podera' ser reproduzida, seja por
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possiveis falhas em edigées subsequentes.

EDrTORA RESPONSAVEL DIAGRAMACAO


Rejane Dias Larissa Can/alho Maaoni
EDrrORA ASSISI’ENTE Waldenla Alvarenga
Cecilia Martins CONFECCAO DOS lNDlCES
REVISAO Os organizadores
LUcia Assumpga‘o Carla Neva?
Renata Silveira
CAPA
Alberto Bittencourt
(sabre imagem de fotégrafo desconhecido)

Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicagéo (CIP)


(Cémara Brasileira do Livro)
Vocabulario Bourdieu / Afrénio Mendes Catani [et all. (Orgs.). -- 1. ed. ~
Belo Horizonte : Auténtica Editora, 2017.

Outros organizadores: Maria Alice Nogueira, Ana Paula Hey, Cristina


Carta Cardoso de Medeiros.

iSBN 978-85-513-0229-3

1. Bourdieu, Pierre, 1930—2002 - Glossén’os, vocabularies, etc


2. Bourdieu, Pierre, 1930—2002 ~ Linguagem 3. Sotiologia I. Catani, Afranio
Mendes. II. Nogueira, Maria Alice. III. Hey, Ana Paula. IV. Medeiros, Cristina
Carta Cardoso de.

17—05006 COD-301
indice para catélogo sistemético:
1. Vocabulario de Bourdieu : Sociologia 301

@ GRUPO AUTENTICA
Belo Horizonte Rio de Janeiro 550 Paulo
Rua Carlos Turner, 420 Rua Debret, 23, sale 401 Av. Paulista, 2.073,
Silveira . 31 140620 Centre . 20030080 Conjunto Nacional, Horse 1
Belo Horizonte . MG Rio de Janeiro . RJ 23“ andar . Con}. 2301 .
Tel.: (55 31) 34654500 Tel.: (55 21) 3179 1975 Cerqueira César. 01311—940
1' Séo Paulo . SP
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Tradutores 3 398
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'7;";.L
VERBETES

A Campo intelectual 83
Campo juridico 86
Acao 23
Campo literario 88
Actes de la Recherche en Sciences Sociales 25
Agente 26 Campo politico 90
Campo religioso 93
Algérie 60: structures économiques et
Campo universitario 95
structures temporelles 28
Canguflhem, Georges 98
Amorfati 28
Capital 101
Amor pela arte (O): 08 museus de arte na
Capital cultural 103
Europa e seu pfiblico (L’amour de l’art: les
Capital economico 107
muse’es d'art européens et leur public) 28
Capital simbélico 109
Anélise de correspondéncias multiplas 31
Capital social 113
Antropologia reflexiva 33
Arbitrario cultural 36 Categorias de pensameuto 117
Argélia _ 38 Causalidade do provavel 118
Ciéucia 118
Art moyen (Un): essai sur les usages
Classe social 118
sociaux de la phatographie

EESES'S
Classificacao (lutas de) 123
Ascetismo
Coisas ditas (Chases dites) 123
Ativismo
Collége de France 124
Autonomia e homologia dos campos
Conatus 125
Condicao de classe 126
B Conhecimento prafiologico 126
Bachelard, Gaston 49 Construtivismo 128
Bal des ce'libataires (Le): crise de la société Contrafogos: téticas para enfrentar a invaséo
paysanne en Be’arn 51 neoliberal (Contre—feux: propos pour servir 61
Béam 52 la resistance contre l’invasion ne’o—libe’rale) 130
Bens simbélicos (economia dos) 55 Contrafogos 2: por um movimento
Boa vontade cultural 58 social europeu (Contre-feux 2: pour un
Bourdjeu editor 61 mouvement social européen) 131
Burguesia 63 Corpo 132
Crenca 134
135
C Cultura
Cultura popular 137
Cabflia 64
Campo 64
Campo artistico 66 D
Campo cientifico 68 Denegacéo 140
Campo cultural 71 Déracinement (Le): la crise de l’agriculture
Campo da alta costura 73 traditionnelle en Algérie - 141
1 Campo do poder 75 Desencantamento do mundo (O): estruturas
Campo econ‘émico 77 econémicas e estruturas temporais 141
Campo esportivo 797 Destino 142
Campo filoséfico 81 Determinismo 143
Diploma 145 H
Disposicao 146
D' tincio 146 Habitus 213
IS . .
H d , Martin 217
Distincfio (A): critica social do julgamento H:l‘a:l:§e:1flmral 217
(La dzstmctzon: cntzque socmle dujugement) 148 Herdeiros (Os): os estudantes e a cultura
Dom.(ideologia d0) , 151 (Les he’ritiers: les étudiants et la culture) 219
Seminacao ulin A d . . 151 Hexis corporal 222
omuliacao masc a ( ) (La ommatzon Histéria 222
32:: me) 1:: Homo academicus 225
, _ , Honra (Sentido da) 228
Durkhelm, Emile 159 Hysteresis 228

E I
Ecole Normale Supencure’ -
‘ I u
16 2
Ideologia 230
Economia das trocas linguistlcas (A): o Illusio 231
qoe falar qua: dlzer’(Ce qua p'arlef vcut Ilusao bio , [ica 233
dzre: leconomle des echanges lmguzstxques) 162 .
. . , , 1nconsc1ente 233
Economia das trocas sunbohcas (A) 164 In corporacao
- .
_ 234
Educacao 165 -
Eli N b Inculcacao 234
Elias, or ert 165 Individuo — sociedade 234
E ‘65 167 Intelectuais 236
Eféliregol , 169 Interesse 239
pm emo Ogla , , , 169 Interventions, 1961-2001: sciences sociales
Esboco de auto—anahse (Esquzsse pour une t t' l'ti 239
to-anal 53) 173 2 ac ton PM que
au y Investimento V 240
Escola 176
Escritos de Educacao 176 J
Espaco social 177 .
Esprit de corps 179 Iogo (5enudo do) 241
Esquisse d’une théorie de la pratique, préce’de’ Iornallsmo 243
de Trois études d’ethnologie kabyle 181 Iuventude 243
Esquisses algériennes 184 L
Estado - 184 245
Estilo de escrita de Bourdieu 186 Legitimidadellegifimacio
Estilos de Vida 187_ Lévi—Strauss, Claude 246
Estratégia/Estratégias de reproducéo 189 Li§5€S ‘13 31113 (LBFOYI 51” la 18W”) 249
Estrutura (social 3 mental) 191 Linguagem 250
Estruturalismo 192 Linguistico (Capital; Mercado) 250
Ethos 194 Livre—troca: diélogos entre ciéncia e arte
(Libre-e’change) 255
F
Famflia 195 M
Fenomenologia 197 Manet. Une révolution symbolique 257
Filosofia 199 Marx, Karl 259
Fotografia 201 Mauss, Marcel 262
Foucault, Michel 201 Meditacfies pascalianas (Méditations
pascaliennes) 265
G Mercado linguistico 267
Goffman, Ewing 205 Mercado simbélico 267
Gosto , 208 Merleau—Ponty, Maurice 267
Grandes Ecoles 210 Metodologia 268
Grupos dominantes 212 Midja 268

8
Mjséria do mundo (A) (La misére du monde) 271 Reproducéo (A): elemeotos para
Mobilidade social 271 , uma teoria do sistema de ensino (La
Mundjalizacéo/Internacionalizagéo 272 reproduction: e'léments pour une théorie du
Mundo social 274 systéme d’enseignement) 316
Rito (de instituicfio) V 318
N
Neoliberalismo 275 S
Noblesse d’Etat (La): Grandes Eagles at
Sartre, Jean-Paul 321
esprit de corps 277
Science de la science et réflexivité. Cours du
Nobreza 281
College de France (2000—2001) 323
Nomos 281
Senso prético (0) (Le sens pratique) 324
O Sistema de ensino 327
Sobre a televiséo (Sur la television, suivi de
Ontologia politica de Martin Heidegger (A)
L’emprise dujournalisme) 329
(L’Ontologie politique de Martin Heidegger) 282
Sobre o Bstado. Cursos no College de France
Opim'éo pfiblica/sondagem 283
(Sur L’Etat. Cours au College de France) 330
Sociedade 332
P Socioanélise 332
Passeron, Jean—Claude 286 Sociodiceia 335
Patronato 288 Sociologia 335‘
Pedagogia racional 288 Sociologia da sociologia 341
Pensamento relacional 288 ' Sociologia e reflexividade 342
Pequena burguesia 290 Sociologie de li‘llgérie ' 345
PicturingAlgeria 290 Sociologie est un sport de combat (La) 345
Pierre Boutdieu. Sociologia 292 Structures sociales de l’e’conomie (Les) 346
Poder simbélico 292 Sujeito ‘ 348
Poder simbélico (O) 295
Politica 296 T
Posicéo de classe 296 Taxionomia 349
Préfica (Teoria da) 296 Televiséo 349
Profisséo de socio'logo (A): preliminares Tempo 350
epistemologicas (Le métier de sociologue: Teoria 352
pre’alables épiste’mologiques) 298 Trabalho 352
Projeto 301 Trajetéria 354
Propos sur Ie champ politique 301 Trocas simbélicas 356

Q U
Questoes de sociologia (Questions de
sociologie) Usos sociais da ciéncia: por uma sociologia
302
clinical do campo cientifico (Os) (Les
R usages sociaux de la science: pour une
sociologie clinique du champ scientifique) 357
Razoes préticas: sobre a teoria da acéo
(Raisonspratiques: sur la théon'e de l’action) 303
Reconvetsio de capitais 304
*3 V
Reflexividade 305 Veredicto escolar 359
Regra 308 Violéncia simbélica 359
Regras da Arte (As): génese e esu'utura do Visio e diviséo, Principios de 361 V
campo Iiterério (Les régles de l’art: genése et
structure du champ litte’raire) 309 W
Re'ponses: pour une anthropologie Weber, Max 365
reflexive 311 Wittgenstein, Ludwig 367
Reprodugéo 313
AUTORES

Afrénio Mendes Catani


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Ana Maria de Oliveira Galvao


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS — BRASIL

Ana Maria Fonseca de Almeida _


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS — BRASIL

Ana Paula Hey


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO _ BRASIL

Ana Paula Simioni


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Ana Teresa Martinez


UNIVERSIDAD NACIONAL DE SANTIAGO DEL ESTERO ~ ARGENTINA

Andréa Aguiar
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL

Angela Xavier de Brito


UNIVERSITE RENE DESCARTES — PARIS V — FRANCA

Anne-Catherine Wagner
UNIVERSITE PARIS 1 — PANTHEON — SORBONNE - FRANCA

Anténio Augusto Games Batista


CENTRO DE ESTUD OS E PESQUISA EM EDUCACAO, CULTURA E ACAO COMUNITARIA ~ BRASIL
‘3
Bernard Lahire
ECOLE NORMALE SUPERIEURE DE LYON — FRANCA

Brasflio Sallum Junior


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Carlos Benedito Martins


UNIVERSIDADE DE BRASLLIA — BRASIL

11
Christophe Charle
UNIVERSITE PARIS 1 — PANTHEON - SORBONNE w FRANCA

Clarice Ehlers Peixoto


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE IANEIRO — BRASIL

Claudio Marques Martins Nogueira


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS — BRASIL

Cristina Carta Cardoso de Medeiros


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA — BRASIL

Denis Baranger
UNIVERSIDAD NACIONAL DE MISIONES — ARGENTINA
Edison Ricardo Bertoncelo
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Elisa Kliiger
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO —- BRASIL

Enio Passiani
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL — BRASIL

Enrique Martin Criado


UNIVERSIDAD PABLO DE OLAVIDE — ESPANHA

Ernesto Seidl
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA — BRASIL

Fernando Antonio Pinheiro Filho


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Francois de Singly
UNIVERSITE RENE DESCARTES — PARIS V —- FRANCA

Francois Denord
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA

Frédéric Lebaron
ECOLE NORMALE SUPERIEURE PARIS - SACLAY - FRANCA

Geraldo Romanelli
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO —— BRASIL

Gérard Manger
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES —— FRANCA

Gilson Ricardo de Medeiros Pereira


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE -— BRASII.

Giséle Sapiro
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES —- FRANCA

Igor Gastal Grill


UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHAO — BRASIL

12
lgww
Iosé Carlos Garcia Durand
UNIVERSIDADE DE SAC PAULO —- BRASIL

Iosé Luis Moreno Pestafia


UNIVERSIDAD DE CADIZ 7 ESPANHA

Iosé Sérgio Leite Lopes


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE IANEIRO - BRASIL

Julien Duval
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES —- FRANCA

Juliana Ferreira de Melo


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL

Kétia Maria Penido Bueno


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL

Leticia Bicalho Canédo


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS »- BRASIL

Lo’ic Wacquant
UNIVERSITY OF CALIFORNIA —, ESTADOS UNIDOS

Louis Pinto
ECOLE DES HAUTES‘ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA

Magda Becker Soares


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS BRASIL

-
Marcos César Alvarez
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Maria Alice Nogueira


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS — BRASIL

Maria Amalia de Almeida Cunha


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS — BRASIL

Maria Andréa Loyola


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE IANEIRO — BRASIL

Maria Arminda do Nascimento Arruda


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO BRASIL
-
Maria da Graca Jacintho Setton ‘7»

UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Maria José Braga Viana


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS — BRASIL
Marilia Pontes Sposito
UNIVERSIDADE DE 3A0 PAULO — BRASIL

Michel Daccache
V ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA
Monique de Saint Martin
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA

Pascal Ragouet
UNIVERSITE DE BORDEAUX - FRANCA

Pascale Casanova ,
DUKE UNIVERSITY — ESTADOS UNIDOS

Patrick Champagne
INSTITUT NATIONAL DE LA RECHERCHE AGRONOMIQUE — FRANCA

Paula Montero
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO —- BRASIL

Remi Lenoir
ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES — FRANCA

Roberto Griin
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO CARLOS — BRASIL

Sergio Miceli
UNIVERSIDADE DE SAO PAULO — BRASIL

Sylvia Gemignani Garcia


UNIVERSIDADE DE SAO PAULO BRASIL
-
Tania de Freitas Resende
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS — BRASIL

Vincent Bontems
LABORATOIRE DES RECHERCHES SUR LES SCIENCES DE LA MATIERE — FRANCA

Wanderley Marchi Jfinior


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA BRASIL
-
Yves Winkin .
CONSERVATOIRE NATIONAL DES ARTS ET METIERS — FRANCA
Zaia Brandao
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DO RIO DE IANEIRO — BRASIL

14
ABRINDO A CAIXA DE FERRAMENTAS

A elaboracao de um vecabulério dedicado a Pierre Bourdieu (1930-2002) nae é tarefa das


mais féceis, sobretudo quande consideramos e quante antibenrdieusiano é apresentar nocoes,
constructos, definicoes descolados daquilo que caracteriza de mode precise 8 original seu tra—
balho cientifice, qual seja, fernecer instrumentos de construcao da anélise socielégica que nae
se censtituam em mares cenceitos descritivos, mas que envelvam uma epistemologia pratica.
Bourdieu foi um dos grandes pensadores de nosso tempo, tende dado, ja em fins dos anes
1950, uma contribuicae essencial para afinnar a seciolegia come disciplina cientifica na Euro-
pa. Detade de rigeresa acuidade intelectual, preveniente da fermacao filoséfica desenvolvida
nos setores mais consagrades da academia francesa, propicieu uma visae anah’tica refinada
de objetos complexes e diversos que compoem e munde social em que vivemes. Alcado a
pesicao de cientista imprescindivel a quem se envelve com a ciéncia social contemporanea,
tomeu—se autor de use frequente em campos disciplinares os mais variades, come sociologia,
antrepelogia, educacao, histéria, economia e psicelogia. Sua obra abrangeu desde sensivel
etnolegia do mundo tradicional dos cabilas, na Argélia, envelveu a crise da reproducao das
sociedades tradicienais francesas, desvendeu as funcées sociais do sistema de ensino de seu
pals, descreveu praticas culturais distintivas alinhadas a constituicae e classificacae das
classes sociais, exploreu as peculiaridades de seu proprio universe intelectual, desveleu es
cenfrontos no interior de distintes campes de producae simbélica, expos formas dissimu—
ladas de deminacao e de exercicie consentide do poder, além de refletir e pelemizar sobre
preblemas sociais emergentes com seu enérgico ativismo politico. A construcao de tode um
aparate conceitual estabelecide ae longo e a partir de incursoes em terrenes empiricos bas-
tante diversificados resulteu na elaboracée de petentes nocoes operacionais que permitem,
per sua vez, perscrutar os mais variades dor‘hinies do mundo social.
Nesse sentido, apresentames a0 leitor a pessibilidade de interagir com a grande multiplici—
dade de elementos constitutivos da teoria de Beurdieu, exibidos de mode singular pelos auteres
dos diferentes verbetes, mas que, em seu conjunto, ensejam uma visae global da contribuicao
de suas analises sociolégicas. Com isso afirmames que nossa motivacao foi a de apresentar
uma sistematizacae, dotada de valor pedagégice, daquile que censtitui o pensarnento e a
prética cientifica de sua sociologia, centrada no tripe teeria—histeria-empiria, come auxilie
a leitura e compreensao de seus textos e direcienado a um pfiblico ample. I

15
A selegéo dos verbetes que integram este Vocabuldrio Bourdieu reflete um esforgo para
se aproximar dos aspectos nodais de seu pensamento e da contribuigao a0 campo das ciéncias
humanas e sociais. Tal escolha desconsiderou as modulagées presentes em sua obra, ou seja,
os verbetes tanto podem refletir conceitos maduros de sua escrita analitica como conviver
com noqoes apenas esbogadas; podem se referir ao ambito nacional ou a uma pequena regiao
geogréfica; permitir generalizagoes on se cingir ao contexto de uma investigaqao especifica.
Aqueles que manusearem este Vocabuldrio seréo, portanto, convidados a interagir com um
corpus teérico concebido no processo mesmo de construgéo dos problemas cientificos, com
cbndicionantes ligados as disposigoes para fazer ciéncia, as instituigoes que lhe déo sustenta»
Q50, ao habitus de cada disciplina e ao sistema de posigoes e tomadas de posigéo no interior
do campo cientifico, nacional e internacional. .
A importéncia de se publicar uma obra dessa natureza no Brasil prende‘se a0 fato de que os
trabalhos de Bourdieu suscitam, desde 0s anos 1960 e de modo continuo, grande interesse no
meio académico local. Com momentos marcados por uma apropriagfio mais intensa do autor nos
dominios especificos da sociologia e da antropologia, expandindo-sé por polémicas no campo
educacional, até ser tornado como referéncia de base em areas mais amplas, o nfimero constante
de pesquisas inspiradas nas ferramentas epistémicas e empiricas que ele desenvolveu evidenciam
sua apropriaqio vasta e amalgamada ao nosso espago cientifico. Nessa diregéo deve-se ressaltar,
ainda, o convite a releitura do conjunto da obra que produziu, impulsionado pela organizagéo
de livros inéditos publicados apés seu desaparecimento, a proliferagao de pesquisas realizadas
aqui e em vérios paises, deslocando empiricamente a abordagem cientifica que concebeu.
Por todas essas razées, decidimos oferecer ao leitor a oportunidade de acessar teorica~
mente um universo conceitual e metodolégico considerado denso em complexidade e em suas
formas de expresséo. O préprio Bourdieu empreendeu algumas inciativas nessa diregio, ao
organizar antologias com artigos de cunho teérico, além de fartas transcrigoes de palestras,
entrevistas, conferéncias e seminérios, tais como Questions de sociologie (1980), Chases
dites (1987), Réponses: pour une anthropologie réfle’xive (1992), Raisons pmtiques — sur
la théorie de l’action (1994).
Poderiamos sintetizar nosso objetivo com a organizagéo deste Vocabula’rio com as préprias
palavras de Bourdieu em uma passagem do prefécio a edigéo brasileira de Razfies prdticas,
datada de outubro de 1995: “se posso fazer um voto, é 0 de que meus leitores, especialmente os
mais jovens, que comeqam a se envolver em pesquisas, n50 leiam este livro como um simples
instrumento de reflexao, um simples suporte de especulagéo teérica e da discusséo abstrata,
mas como uma espécie de manual de ginéstica intelectual, um guia prético que é preciso
aplicar a uma prética, isto é, a uma pesquisa prazenteira, liberta de proibigoes e de divisoes
e desejosa de trazer a todos esta compreenséo rigorosa do mundo que, estou convencido, é
um dos instrumentos de liberagéo mais poderosos com que contamos".
Os desafios que enfrentamos em trabalho de tal envergadura foram diversos, desde a
selegio dos verbetes e a extensao adequada a ser conferida a cada um deles, até a identificaqéo
dos especialistas encarregados de redigi-los. Quanto a este ponto, o Vocabuldrio congrega
autores situadps em distintas posigoes nos espaqos da reflexao académica, mas que possuem
em comum uma agenda intelectual convergente em termos de pressupostos teéricos, proce-
dimentos anah’ticos, metodologias de pesquisa.

16
Expressamos desde jé nosso agradecimento 2105 65 colaboradores, provenientes de vérias
instituigoes brasileiras e de diferentes paises como Franga, Espanha, Argentina e Estados
Unidos, muitos deles parceiros de trajetéria ou ex—alunos do préprio Bourdieu e representantes
de distintos campos disciplinares’. Eles foram responséveis pela elaboragéo dos 164 verbetes,
distribuidos em trés categorias: os relativos és nogoes centrais e correlatas, os dedicados aos
livros publicados pelo pensador francés e 05 que se referem a um seleto grupo de interlocutores
com os quais ele dialogou ao longo do processo de constituigéo de seu pensamento.
Os verbetes foram editados com a finalidade de uniformizar as referéncias feitas pelos
autores aos escritos de Bourdieu, indicando-os a partir de siglas compostas pelas primeiras
letras dos titulos dos livros, grafadas em maifisculas. Acrescentou-se uma letré minfiscula,
“p”, para versoes da obra em portugués, on “i”, para tradugoes em lingua inglesa.
A listagem completa da bibliografia do autor encontra—se no indice de seus livros publicados
na Franga e no Brasil. 0 Vocabuldrio conta ainda corn uma “Cronologia de Pierre Bourdieu”,
que detalha sua biobibliografia.
Gostariamos, por fim, de agradecer duplamente 2‘1 Auténtica Editora: pela oportunidade
aberta a obras desta natureza, que permitern expor ern amplitude e com total liberdade o
conjunto dos trabalhos de Bourdieu e, também, por respeitar o tempo demandado £1 finali-
zagéo deste empreendimento coletivo. L

Afrfinio Mendes Catani


Maria Alice Nogueira
Ana Paula Hey
Cristina Carta Cardoso de Medeiros

Silo Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, maio de 2017.

17
SIGLA GLOSSARIO DE OBRAS E TEXTOS DEV PIERRE BOURDIEU

ARSS Actes de la Recherche en Sciences Sociales ' _


A60 Alge’rie 60: structures économiques et structures temporelles
AAp Amorpela arte (O): as museus de arte na Europa e seu publico
AA Amour de l’art (L’): les muse’es d’art europe’ens et leur public
. AM Art moyen (Un): essai sur les usages sociaux de la photographie
BC VBal des ce’libataires (Le): crise de la sociéte’paysanne en Be’arn
BCi Ball ofBachelors (The)
CE Campo economico (O): a dimensao simbélica da dominacao
PVD Ce que parler veut dire: l’e’conomie des e’changes linguistiques
CD Chases dites
CDp Coisas ditas
CF1p Contrafogos: ta'ticas para enfrentar a invasao neoliberal
CFl Contre—feux: propos pour servir a la resistance contre l’invasion neo-libe’rale
CF2p Contrafogos 2: par um movimento social europeu ’
CF2 Contre—fetix 2: pour un mouvement social europe’an
RP Convite c‘z sociologia reflexiva (Um) (
DR De’racinement (Le): la crise de l’agriculture traditionelle en Alge’rie
DMEE Desencantarnento do mundo (O): estruturas econémicas e estruturas temporais
LDp Distincao (A): critica social dojulgamento
LD Distinction (La): critique sociale clujugement
LDi Distinction: a Social Critique ofthe Judgment of Taste
DMp Dominacao masculina (A)
. DM Domination masculine (La)
PVDp Economia das trocas linguisticas (A): o quefalar quer dizer
ETS Economia das trocas simbélicas (A)
EAAp Esboco de auto-analise
ETPp Esboco de uma tearia da pratica, precedido de trés estudos de etnologia Cabila
EB Escritos de Educacao 7
ETP Esquisse d’une the’orie de lapratique, précédé de Trois e’tudes d’ethnologie kabyle'
EAA Esquisse pour une auto—analyse V
EA Esquisses alge’riennes
LEE Etudiants et leurs études (Les)
LHp Herdeiros (Os): os estudantes e a cultura
LH He’ritiers: les étudiants et la culture (Les)

19
HA Homo academicus
HAP Homo academicus
IA Images de lAlge’rie: une afiinité e’lective
INT' Interventions, 1961—2001: sciences sociales et action politique
Ri Invitation to Reflexive Sociology (An)
LPS Langage etpouvoir symbolique
LL Lecon sur la [econ
L1 Liber 1
LE Libre—e’change
LLp Licoes da aula
LEp Livre—troca: dialogos entre ciéncia e arte
SPi Logic ofPractice (The)
SM Manet. Une revolution symbolique
MPp Meditacoespascalianas
MP Meditations pascaliennes
MS Me’tier de sociologue (Le): préalables e’piste’mologiques
MM Misére du monde (La)
MMp Miséria do mundo (A)
NB Noblesse d’Etat (La): Grandes Ecoles et esprit de corps
OPp Ontologia poli’tica de Martin Heidegger (A)
OP Ontologiepolitique de Martin Heidegger (L’)
MPi Pascalian meditations
IAi PicturingAlgeria
PBS Pierre Bourdieu. Sociologia
OPS Poder simbélico (O)
PC Producao da crenca (A): contribuicao para uma economia dos bens simbolicos
PID Production de l’ide’ologie dominante (La)
MSp Profissdo de sociologo (A): preliminares epistemolégicas
PCP Propos sur le champ politique
QS Questions de sociologie
QSP Questoes de sociologia
Raisons pratiques: sur la the’orie de l’action
Razoespraticas: sabre a teoria da acao
Régles de l’art (Les): genese et structure du champ litte’raire
Regras da arte (As): génese e estrutura do campo litera’rio
Réponses: pour une anthropologie reflexive

20
n}
v 2m
LRp Reproducao (A): elementos para uma teoria do sistema de ensino
LR Reproduction (La): e’le’ments pour une the’orie du systeme d’enseignement
SSR Science de la science et réflexivité
SP Sens pratique (Le)
SPp Senso prético (O)
SMS Si le monde social m’est supportable, c’estparce queje peux m’indigner
STp Sobre a televisao '
SEp Sobre o Estado. Cursos no College de France (1989—92)
SSBi Social Structures ofthe Economy (The)
SA Sociologie de l’Algérie
SSE Structures sociales de l’e’conomie (Les)
ST Sur la te’le’vz'sz'on, suivi de L’emprise dujournalisme
SE Sur L’E‘tat. Cours au College de France (1989-1992)
TTA Travail et travailleurs en Algérie
USS Usages sociaux de la science (Les):pour une sociologie clinique du champ scientzfique
USSp Usos sociais da ciéncia (05): par uma sociologia clz'nica do campo cientz’fico

21
Clziudio Marques Martins Nogueim

O modo como Bourdieu concebe a acao social dos agentes esté relacionado aos sens posicio-
namentos teoricos e epistemolégicos mais amplos (SPp; RPp; CDp; PBS). 0 autor'busca se afastar,
por um lado, das perspectivas fenomenologica, individualism ou, mais amplamente, subjetivista,
que tenderiam a conceber as acoes a partir do ponto de vista individual ou subjetivo, ou seja, como
resultados dos projetos, preferéncias, escolhas, intencoes e, em algumas abordagens, do célculo
racional consciente dos custos e beneficios envolvidos. Bourdieu considera essas perspectivas
nao apenas limitadas, no sentido de que nao investigariam as condicoes sociais objetivas que
estariam na base da experiéncia subjetiva, mas também ilusorias, no sentido que confeririam
aos sujeitos uma autonomia e uma consciéncia na conducao de suas acoes e interacoes que nao
corresponderia aos fatos. Por outro lado, o autor busca também se afastar das abordagens de
inspiiacao estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas. Essas abordagens, na perspectiva
de Bourdieu, reduziriam a acao a uma simples execucéo de regras sociais, sem explicar ade-
quadamente como e por que os atores participam do processo de produgao e reproducao das
regularidades presentes no seu contexto social. Ele insiste que o fato de um individuo agir de
acordo com o que é mais previsivel para alguém de sua posicao social em dada situacao nao é
suficiente para que se conclua que esse individuo seguiu regras explicitas de comportamento e
nem mesmo que tenha plena consciéncia dos modos regulates de acao identificados pelo sociélogo.
Para superar as limitacoes e 03 equivocos das concepcoes subjetivista e objetivista da
acao, Bourdieu (PBS, 60) afirma entao que seria “necessario e suficiente it do opus operatum
ao modus operandi, da regularidade estatistica ou da estrutura algébrica ao principio de
producao dessa ordem observada”. A esse principio de producao, incorporado nos préprios
individuos, o autor denomina “habitus”, entendido como sistema de disposicoes duraveis,
estruturadas de acordo com o meio social dos agentes e que seriam “predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, isto é, como principio gerador e estruturador das préticas e
das representacoes” (PBS, 61). O conceito de habitus faria, assirn, a ponte, a mediacao entre
as dimensoes objetiva e subjetiva do mundo social, ou, simplesmente, entre a estrutura e a

A010 23
acao pratica. O argumento de Bourdieu é que a estruturacao das praticas sociais nao é um
processo que se faca mecanicamente, de fora para dentro, de acordo com as condicoes objetivas
presentes num determinado espaco ou situacao social. N50 seria, por outro lado, um processo
conduzido de forma autonoma, consciente e deliberada pelos sujeitos individuais. As préticas
sociais seriam estruturadas, isto é, apresentariam propriedades tipicas da posicaosocial
de quern as produz, porque a prépria subjetividade dos individuos, sua forma de perceber
e apreciar o mundo, suas preferéncias, seus gostos, suas aspiracoes estariam previamente
estruturados em relacao ao momento da acao.
Segundo Bourdieu, cada individuo, em funcao de sua posicao no espaco social, vivenciaria
uma série caracteristica de experiéncias que estruturariam internamente sua subjetividade,
constituindo uma espécie de “matriz de percepcées e apreciacoes” que orientaria, estrutu—
raria suas acoes ern todas as situacées subsequentes. Essa matriz, ou seja, o habitus, nao
corresponderia, no entanto, a um conjunto inflexivel de regras de comportamento a serem
indefinidamente seguidas pelo sujeito, mas, diferentemente disso, constituiria urn “principio
gerador duravelrnente armado de improvisacoes regradas” (PBS, 65).
Bourdieu realca essa dimensao flexivel do habitus, o que ele chama de relacao dialética
on n50 mecanica do habitus com a situacao, antes de mais nada, como forma de evitar uma
recaida no objetivismo. O autor insiste que 0 habitus seria fruto da incorporacao da estru—
tura e da posicao social de origem no interior do préprio sujeito. Essa estrutura incorporada
seria colocada em acao, no entanto, ou seja, passaria a estruturar as acoes e representacoes
dos sujeitos, ern situagoes que diferem, em alguma medida, daquelas nas quais o habitus foi
formado. O agente social, para usar o termo preferido por Bourdieu, precisaria, entao, ajustar
suas disposicées duraveis para a acao, seu habitus, formado numa estrutura social anterior,
a conjuntura concreta na qual ele age. 0 gram de ajustamento necessario variaria conforme
a maior ou menor similaridade entre as condicées objetivas‘dentro das quais o habitus foi
forjado e as caracten’sticas objetivas do contexto de acao. Nos casos de maior similaridade,
predominantes segundo o autor, os agentes estariam, por assim dizer, pré-adaptados ao seu
contexto de acao. Eles teriam o conhecimento pratico sobre as regras on o “sentido do jogo”
e saberiam, assim, reconhecer como evidentes os cursos de acao mais viéveis e adequados
para individuos corn sua origem social.
E importante, entao, observar que o conceito de habitus desempenha, na obra de Bourdieu,
o papel de elo articulador entre trés dimensoes fundamentais de anélise: a estrutura das
posicées objetivas, a subjetividade dos individuos e as situacées concretas de acao. A posicao
de cada sujeito na estrutura das relacées objetivas, ou seja, no espaco social, propiciaria um
conjunto de vivéncias tipicas que tenderiam a consolidaI—se na forma de urn habitus ajustado
a sua posicéo social. Esse habitus, por sua vez, faria com que esse sujeito agisse nas mais
diversas situacoes sociais, nao como um individuo qualquer, mas como urn membro tipico de
um grupo ou classe social que ocupa urna posicéo determinada na estrutura social. A0 agir
dessa forma, finalmente, o sujeito colaboraria, sem sabé-lo, para reproduzir as propriedades do
seu grupo social de origem e a prépria estrutura das posieées sociais na qual ele foi formado.
Assign, o conceito de habitus permite a Bourdieu sustentar a existéncia de uma estrutura
social objetiva, baseada em mfiltiplas relacées de luta e dominacao entre grupos e classes
sociais '-. das quais os sujeitos participam e para cuja perpetua'cao colaboram por meio de

24 An
suas acées cotidianas, sem que tenham plena consciencia disso -— sem necessitar sustentar
a existéncia de qualquer teleologismo ou finalismo consciente de natureza individual on
coletiva. A conviccao de Bourdieu é a de que as acées dos sujeitos tém um sentido objetivo
que lhes escapa. Eles agem como membros de uma classe, mesmo quando n50 possuem
consciéncia Clara disso; exertem o poder e a dominacao econémica (e, sobretudo, simbolica)
frequentemente, de modo nao intencional. As marcas de sua posicao social, 03 simbolos que
a distinguem e que a situam na hierarquia das posicoes sociais, as estratégias de acao e de
reproducao que lhe sao tipicas, as crencas, os gostos, as preferéncias que a caracterizam, ern
resume, as propriedades correspondentes a uma posicao social especifica, sao incorporadas
pelos sujeitos, tornando—se parte da sua prépria natureza. A acao de cada sujeito tenderia,
assim, a refletir e a atualizar as marcas de sua posicao social 6 as distincdes estruturais que a
definem, nao, em primeiro lugar, por uma estratégia deliberada de distincao e/ou de dominacao,
mas, principalrnente, porque essas marcas se tornaram parte constitutiva de sua corporeidade
e de sua subjetividade. Os sujeitos r1510 precisariam ter uma Visao de conjunto da estrutura
social e um conhecimento pleno das consequéncias objetivas de suas acoes, particularmente,
no sentido da perpetuacao das relacées de dominacao, para deliberadamente decidirem on
11510 a agir de acordo corn sua posicao social. Eles simplesrnente agiriam de acordo corn o que
aprenderam ao longo de sua socializacao no interior de uma posicao social especifica e, dessa
forma, nos termos de Bourdieu, confeririam as suas acoes um sentido objetivo que ultrapassa
o sentido subjetivo diretamente percebido e intencionado.

2. ACTES‘DE LA RECHERCHE EN SCIENCES SOCIALES


Afrfim’o Mendes Catam’

Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS) foi lancada em 1975 e dirigida por Pierre
Bourdieu até 2001, coordenando uma equipe de trabalho bem consolidada. O periédico, de natu-
reza interdisciplinar, esforcou-se para “desnacionalizar a ciéncia social”, inovar na representacao
grafica e nos resultados da pesquisa. Miceli (2002) escreveu que a revista procurou dar conta
de um triplice desafio: “afirmar um rosto teérico original para o oficio de sociélogo, lancar as
bases de aliancas com cientistas sociais estrangeiros considerados pares [...] e testar os graus de
universalizacao dos achados e dos conceitos derivados dos seus experimentos de investigacao”.
A publicacao, hoje trimestral, divulgou, além das teméticas que perpassavam 0 tecido social,
artigos dedicados a economia dos bens culturais (pintura, livros, literatura, moda, rm'lsica,
museus, academia, mito, ciéncia e as respectivas interrelacoes), a logica da classificacao social
e a fabricacao de coletivos sociais; textos referentes a etm'cidade, a regiao, a magic, a Vida social
— envolvendo a familia, a empresa, o partido, o Estado (WACQUANT, 2002, p. 106). A este inven-
tario tematico podemase acrescentar estudos das estratégias sociais de dominacao, distincao e
reproducao, bem como as préticas e 305 poderes intelectuais. Mencionem-se nfimeros sobre as
novas formas de desigualdade social e marginalidade originadas nos anos 1990 (WACQUANT,
2002, p. 105—6). Através daARSS Bourdieu manteve proficuo dialogo com intelectuais estrangei—
ros de primeira linha — Howard Becker, Aaron Cicourel, Robert Darnton, Norbert Elias, Brving
Goflirnan, Eric Hobsbawrn, Carlo Ginzburg, Gershom Scholem, loan Scott, Carl Schorske, Paul

ACTES DE LA RECHERCHE EN SCIENCES SOCIALES 25


Willis, William Labov, Raymond Williams, etc. Grande quantidade de colaboradores franceses
também frequentaram as paginas da revista: Robert Caste], Luc Boltanski, Claude Grignon,
Patrick Champagne, Abdelmalek Sayad, Jean-Claude Chamboredon, Yvette Delsaut, Monique
de Saint Martin, Yves Dezalay, Remi Lenoir, Louis Pinto, Mihai Gheorghiu, Gisele Sapiro,
Jean-Pierre Faguer, Gabrielle Balazs, Michael Pollack, Lo‘ic Wacquant, Francine Mud—Dreyfus,
Roger Chartier, Yves Winkin, Nathalie Heinich, Christophe Charle, Alain Accardo, Jean Bollack,
Louis Marin, Maurice Agulhon, Jacques Bouveresse, Robert Linhart, Bruno Latour.
Como lembra Wacquant (2002, p. 106), o éxito de ARSS foi total, com um publico leitor
regular préximo a dez mil. A revista se estendeu, portanto, para além da academia, uma vez
que na Franca ha apenas cerca de mil sociélogos.

Referéncias
MICELI, S. Uma revolucao simbélica. Tendéncias 6 Debates, Folha de S.Paulo, 27, p. 3-A, jan. 2002.
WACQUANT, L. O legado sociologico de Pierre Bourdieu; duas dimensoes e uma nota pessoal. Revista
de Sociologia e Politica, Curitiba: UFPR, n. 19, p. 95—110, novembro 2002.

3.AGENTE
Cldudio Marques Martins Nogueira

A adocao do termo “agente” por Bourdieu esta relacionada ao seu esforco de construcao
de uma teoria da acao prética, ou seja, de um conhecimento sobre o modo como agentes con-
cretos, inseridos e111 uma posicao determinada do espaco social 6 portadores de um conjunto
especifico de disposigoes incorporadas, agem nas situacées sociais.
E preciso considerar que Bourdieu constroi toda sua obra em contraposicao, por um
lado, a0 que ele chama de forma subjetivista ou fenomenolégica de conhecimento e, por
outro, as abordagens de natureza estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas. Bourdieu
(SPp; PBS) argumenta que o conhecimento fenomenolégico, representado 11a sociologia por
correntes como a Etnometodologia e o Interacionismo, restringir—se-ia a captar a experiéncia
e a percepcao imediata do mundo social, tal como vivida cotidianamente pelos membros da
sociedade. Essa forma de conhecimento, segundo o autor, excluiria do seu campo de investi-
gaeao a questao das condicoes de possibilidade dessa experiéncia subjetiva. Descrever-se-iam
as acées e interacoes sociais, mas nao se questionaria a respeito das condicoes objetivas que
poderiam explicar o curso dessas interacoes. Bourdieu estende essas observacoes criticas a urn
conjunto de teorias que vao além das correntes estritamente fenomenologicas — incluindo-se,
muito especialmente, a abordagem de Sartre e as teorias da escolha racional, estas filtimas
inspiradas no pensamento economico. O problema de todas essas abordagens, rotuladas
por ele de subjetivistas, nao seria apenas seu escopo limitado, o fato de elas nao atingirem as
bases sociais que supostamente condicionariam as experiéncias praticas, mas, sobretudo,o
fato de contribuirem para uma concepcao ilusoria do mundo social, que confere aos sujeitos
excessiva autonomia e consciéncia na conducao de suas acoes e interaeoes.
Em contraposicao a0 subjetivismo, o conhecimento objetivista, associado ao estruturalismo,
caracterizar—se- ia pela ruptura que promove em relacao‘a experiéncia subjetiva imediata. Essa

26 AGENTE
experiencia seria entendida como estruturada por relacoes objetivas que ultrapassam o plano da
consciencia e intencionalidade individuais. Segundo essas abordagens, seria necessa’rio investigar
as estruturas sociais que organizam, que estruturam a experiéncia subjetiva; inclusive para escapar
a concepcao de que os individuos séo seres autonomos e plenamente conscientes do sentido de suas
acoes. A0 mesmo tempo em que' considera necessaria essa ruptura com a dnensao subjetiva que
o objetivismo promove, Bourdieu mostra-se preocupado com a dificuldade dessa perspectiva de
construir uma teoria da prética, ou seja, de explicar como se dé a articulacéo entre os planos da
estrutura e da acao. O objetivismo tenderia a conceber a prética apenas como execucao de regras
estruturais dadas, sern investigar o processo efetivo por meio do qual as regularidades sociais sao
produzidas e reproduzidas pelos agentes por meio de suas acoes préticas.
O conhecimento praxiolégico e a nocao de agente a ele associada é apresentado e defendido,
entao, pelo autor como uma alternativa capaz de solucionar os problemas decorrentes das pers-
pectivas subjetivista e objetivista. O conhecimento praxiolégico néo se restringiria a identificar
estruturas objetivas externas aos individuos, tal come 0 faz o objetivismo, mas buscaria investigar
como essas estruturas se encontram interiorizadas nos agentes, constituindo um conjunto estavel
de disposicoes estruturadas, um habitus, que, por sua vez, estrutura as préticas e as representa-
coes das praticas. Essa forma de conhecimento apreenderia, entao, a prépria articulacéo entre os
planos da acéo ou das préticas subjetivas e o plano das estruturas, ou, como repetidamente diz o
autor, captaria o processo de “interiorizacao da exterioridade e de exteriorizacao da interioridade”.
. O uso recorrente do termo "agente” por Bourdieu nao se justifica, portanto, por uma sim-
ples preferéncia pessoal do autor. O termo marca, por um lado, a distancia que Bourdieu quer
estabelecer em relacao as concepcées subjetivista ou individualista, que fendem a se limitar a
experiéncia imediata dos sujeitos. Bourdieu insiste que as ciéncias sociais podern ir além da
simples descricao fenomenolégica do universo subjetivo em busca de suas condicoes objetivas de
possibilidade. Na perspectiva dele, seria possivel e necessario investigar as relacées entre o plano
subjetivo e objetivo, entre as escolhas, as percepcoes, as apreciacées e a localizacéo sincrénica e
diacronica dos individuos no espago social. Essa afirmacao do caréter socialmente situado das
subjetividades implica ainda uma rejeicao frontal de qualquer concepcao universalista sobre os
individuos e suas propriedades, como as que estao subtendidas na hipétese de um ator racional,
orientado por preferéncias universahnente dadas. Por outro lado, o termo “agente7’ também
permite um distanciamento em relacao ‘as concepcoes estruturalistas ou objetivistas, que
reduziriam os atores a simples executores de regras estruturais estabelecidas a partir do ponto
de vista do observador. O termo poe em relevo a dimensao concreta da acao, ou seja, o modo
como os individuos efetivamente agem em situacoes efetivas, modo esse que, 11a perspectiva de
Bourdieu (CDp), seria muito diferente da obediéncia estrita de um conjunto de regras.
Vale ainda ressaltar que as nocoes de agente e de habitus permitem a Bourdieu compreender o
funcionamento macroestrutural da sociedade, particularmente os processes de dominacao social,
sem precisaI supor que esses sao intencionalmente constituidos, seja pelos individuos isolados,
seja pelos grupos. O raciocinio de Bourdieu comp6e~se, na verdade, de duas partes. Em primeiro
lugar, afiIma que os agentes agem de acordo corn 0 habitus herdado do seu grupo social. Os indi-
viduos percebem os elementos envolvidos nas situacoes, estabelecem seus objetivos prioritarios e
selecionam as estratégias a serem utilizadas em cada acao, sempre de acordo com seu sistema de
disposicées socialmente estruturado. Em outros tennos, isso significa que os agentes nao escolheriam

AGENTE 27
seus cursos de acao de uma forma conscientemente calculada, considerando racionalmente os
custos e beneficios de cada possibilidade alternativa de acao, mas que, inversamente, tenderiam
a seguir os modos de comportamento caracteristicos do seu grupo de origem. No entanto, e a1’
se chega a segunda parte do racio cinio, apesar de nao terem sido consciente e estrategicamente
seletionados, mas sim socialmente configurados, os cursos de acao adotados pelos agentes
seriam, objetivamente, os mais adequados. As acées apresentariam um sentido estratégico,
uma adequacao em relacao as condicoes objetivas, que ultrapassaria irnensamente o sentido
conscientemente atribuido pelos sujeitos ‘as suas préprias acoes. Primeiro, os agentes tende-
riam a selecionar objetivos considerados razoaveis, adequados as possibilidades objetivas de
realizacao; segundo, tenderiam a manipular os meios disponiveis para a acao, recursos mate~
riais e simbolicos, da forma estrategicamente mais pertinente para sujeitos localizados na sua
posicao social; terceiro, agiriam da forma que mais contribui para a manutencao e legitimacao
da estrutura de dominacao social, basicamente, reeditando e reforcando constanternente os
processos de distincao e hierarquizacao social.
Essa aparentemente paradoxal racionalidade nao consciente ou intencional da acao indi—
vidual seria explicada por Bourdieu pelo fato de 0 habitus de cada grupo social ser fruto de
um processo histérico de adequacao do grupo ‘as possibilidades e necessidades préprias a sua
condicao objetiva de existéncia. A ideia é que, pelo acfimulo histérico de experiéncias de éxito
e de fracasso, os grupos sociais iriam constituindo um conhecimento pratico relative a0 que
é possivel on n50 de ser alcancado pelos seus membros dentro da realidade social concretalna
qual eles agem e sobre as formas mais adequadas de fazé-lo. Na perspectiva de Bourdieu, ao
longo do tempo, as melhores estratégias acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam,
entao, incorporadas pelos agentes como parte do seu habitus.

4. ALGER/E 60: STRUCTURES ECONOMIQUES ETSTRUCTURES TEMPORELLES

Ver: Desencantamento do mundo (O)

5. AMOR FATI

Ver: Conatus

6. AMOR PELA ARTE (0): OS MUSEUS DE ARTE NA EUROPA E SEU PUBLICO


(L’amour de /’art.' les musées d'art européens et leur public)

Afrfinio Mendes Catanz'

BOURDIEU, P; DARBEL, A. O amorpela arte: as museus de arte na Europa e seu pdblico. Cola—
boracéo de Dominique Schnapper. Séo Paulo: EDUSP; Zouk, 2003.

Publicado originalmente em 1966, revisto e ampliado, com nova edicao em 1969 — que é a
base da traducao brasileira ~, 0 amorpela arte: as museus de arte na Europa e seu pdblico é

28 ALGERIE 60: STRUCTURES ECONOMIQUES ET SWUUURES TEMPURELLES


«A.

.,
fruto de pesquisa dirigida por Bourdieu (colaboracao de Dominique Schnapper), enquanto Alain
Darbel construiu o plano de sondagem e elaborou o modelo matemético destinado a anélise da
frequéncia das visitas a museus (AAp, 13). O trabalho, envolvendo grands equipe de pesquisadores
e auxiliares, recebeu o financiamento parcial do Service de Estudos e Pesquisas do Ministério das
Questoes Culturais da Franca, e resultou da aplicacao de questionérios em amostras selecionadas
de museus na Franca, Espanha, Grécia, Itéh'a, Holanda e Polonia, em 1964 e 1965.
O amorpela arte organiza—se a partir de um curto preambulo, breve introducao, capitulo
dedicado aos procedimentos da pesquisa, concluséo, cronologia das pesquisas efetuadas,
detalhados apéndices, breve bibliografia e em trés grandes partes, a saber: “Condicoes so-
ciais da prética cultural”, “Obras culturais e disposicao culta” e “Leis da difusao cultural”.
Bourdieu, quando o livro foi editado, era urn intelectual em ascensao, com 36 anos, diretor
de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, diretor do Centre de
Sociologie de l’Education et de la Culture, além de ja ter publicado sete livros -— quase todos
com colaboradores (A. Darbel, I. P. Rivet, C. Seibel, A. Sayad, I. C. Passeron, L. Boltanski, I. C.
Chamboredon, M. de Saint Martin): Sociologie de lilllgérz'e (1958); Travail et travailleurs en
Algérie (1963); Le déracinement, la crise de l’agriculture traditionnelle en Alge’rie (1964);
Les étudz’ants et leurs études (1964); Les héritiers. Les étudiants et la culture (1964); Un art
moyen, essai sur les usages sociaux de la photographie (1965) e Rapportpédagogique et
communication (1965) -, alérn de alguns capitulos de livros e mais de uma duzia de artigos
em conceituados periédicos académicos (Etudes Rurales, Sociologie du Travail, Revue
Francoise de Sociologie, Les Temps Modernes) .
Nas orelhas da edicao brasileira, Iosé Carlos G Durand escreve que a partir das pesquisas
realizadas através de questionarios corn milhares de visitantes de museus em seis paises da
Europa, o livro “revela que 0 mode como as pessoas descrevem e justificam seus hébitos culturais
jamais pode ser aceito pelo seu valor nominal. Tornar por realidade as crencas e 03 discursos
das pessoas (mesmo as ricas e cultivadas), a respeito de arte e culture, significa converter
, em principio de explicacao o que esté pedindo para ser explicado. E ai entra a sociologia”.
Bourdieu entende que os museus abrigam tesouros artisticos que se encontram, ao mesmo
tempo — e paradoxalmente —-, abertos a todos e interditados a maioria das pessoas. Aqueles
pertencentes a qualquer classe social 6 corn distintos graus de escolarizacao podem frequentar
museus, nao é verdade? Sim e 1150; ou melhor, em termos: para se poder viver a plenitude desse
amor, sem condicionamentos ou limitacoes, é preciso que os amantes possuam determinadas
disposicoes que foram sendo adquiridas lentamente, envolvendo dedicacao, perseveranca’ e o
cumprimento de uma gama de obrigacées. N50 existe nern pecado nern perdao, tal amor surge de
maneira “natural”, apos a assimilacao do principio do prazer culto, produto artificial da arte e do
artificio, que vem a ser “a verdade oculta do gosto oculto”. Os autores se perguntam se a pratica
obrigatéria pode conduzir ao verdadeiro deleite on se 0 prazer cultivado é irremediavelmente
marcado pela impureza de suas origens. A0 longo de 0 amorpela arte mostra~se como o cora—
céo obedece a razao, pois séo desvendadas as condicoes sociais de acesso ‘as praticas cultivadas,
fazendo ver que a cultura nao é um privilégio natural, mas bastaria que todos possuissem os
meios para que pudessem dela tomar posse para que pertencesse a todos.
A frequéncia dos museus em todos os paises pesquisados aumenta de maneira consideravel
a medida que se eleva o nivel de instrucéo, correspondendo quase que exclusivamente a um

AMOR PELAARTE (0): OS MUSEUS DEARTE NA EUROPA E SEU PUBLICO 29


(L’ amour de /’art: [95 musées d' art européens et Ieur public)
modo de ser das classes cultas (AAp, 37). A “necessidade cultural” é produto da educacao,
da acao da escola. Acho que talvez nao seja por outra razao que a epigrafe da parte 3 do
livro, “Leis da difusao cultural”, foi extraida do filésofo e matematico alemao Leibniz:
“a educacao consegue tudo: faz dancar os ursos”. A acao escolar, bastante desigual - em
razao de atuar sobre individuos previamente dotados, pela acéo familiar, com distintos
niveis de competéncia artistica —, envolve jovens ja “iniciados” nesse dominio cultural.
A escola, a0 inculcar disposicées duradouras a prética culta, auxiliando decisivamente
na transmissao do cédigo das obras de cultura erudita, transforma as desigualdades
diante da cultura em desigualdades de sucesso. Fecha-se 0 circulo que faz com que
capital cultural leve a0 capital cultural (AAp, 111). Os individuos assimilarn parte das
disposicées cultas, produto de uma educacao distribuida de forma desigual, tratando
“as aptidoes herdadas como se fossem virtudes préprias da pessoa [‘dons’], ao mesmo
tempo naturais e meritérias” (AAp, 169).
Os questionérios aplicados correlacionam, com detalhe, uma série de variaveis, tais como
categoria socioprofissional, nivel de escolaridade, profisséo, renda, sexo, local de residéncia,
faixa etaria, museu visitado, dia e horério em que ocorreu a visita, tempo médio da visita,
correlacao entre visita(s) a museu(s), cinemas e teatros, influéncia familiar e de amigos para
a(s) visita(s) segundo o nivel cultural, juizos sobre os museus e as exposicoes, tipo de arte
preferido, motivo(s) declarado(s) da visita, nome(s) de pintor(es) e de escola(s), etc.
A pesquisa em tela possui caréter pioneiro, procurando evidenciar a dimensao eminente-
mente social dos meios de apropriacao dos bens culturais existentes em museus -— dimensao
essa que se constitui em privilégio apenas daqueles dotados da faculdade de se apropriarem
das obras. O texto dos pesquisadores franceses foi conclul'do ha cerca de quarenta e cinco
anos e, de la para ca, 0 quadro sofreu alteracoes significativas. 0 turismo cultural e a visita a
museus, por exemplo, experimentaram transformacoes de monta, nao mais se beneficiando
apenas das categorias socioprofissionais munidas de diplomas, isto é, o publico ja tradicio-
nal que os frequentava. Pode-se dizer o mesmo do estégio relativamente amador em que se
encontrava a “museologia” — hoje consideravelmente alterada ~, on ainda quando fala dos
conservadores de museus, pertencentes aos'extratos superiores pouco afeitos a questoes que
envolviam gama relativamente ampla de papéis (homem de ciéncia, comerciante, diretor
administrativo, educador): hoje equipes com quadros diversificados participam desse circuito,
encarregando‘se de projetos referentes a acées educativas, a busca de patrocinios, a utilizacao
de leis de incentives fiscais, a edicao de catalogos, a maior divulgacao em geral.
Em 1969, cético com relacao aos limites que a acéo do conservador impunha-se a qual—
quer tipo de incitacéo direta a prética cultural, Bourdieu escrevia: “quem acredita na eficacia
milagrosa de uma politica de incitacao para visitar museus e, em particular, de uma acao
publicitéria pela imprensa, radio on televisao -— sem se dar conta de que ela limitar-se-ia a
acrescentar, de forma redundante, informacoes ja fornecidas em abundancia pelos guias,
postos de turismo ou cartazes afixados a entrada das cidades turisticas — assemelha—se ‘as
pessoas que imaginam que, para serem mais bem compreendidas por um estrangeiro, basta
gritar mais alto” (AAp, 149).
Em siuna, pela leitura de Varios textos de Bourdieu é possivel compreender os mecanis-
mos pelos quais apenas parte dos individuos consegue obter as chaves para a plena fruicao

30 AMOR PELAARTE (0): OS MUSEUS DE ARTE NA EUROPA E SEU PflBUCO


(L’amour de /’art: les musées d'art et leur public)
das obras de arte — ou, para falar como Max Weber, gozam “do monopélio da manipulacao
dos bens de cultura e dos signos institucionais da salvacao cultural” (AAp, 169). On, em
palavras mais claras, o cronista Rubem Braga, visitando Jean Cocteau em Paris em 1950,
escreveu que o escritor em determinado dia estava com Picasso, e o pintor perguntou a um
rapaz, restaurador de quadros, o que achava de certa pintura. “O rapaz confessou que nao
podia dizer nada porque nao compreendia aquele quadro. E o espanhol: Vocé-compreende
chines? O rapaz disse que nao. Pois chinés se aprende; isso tambérn” (BRAGA, 2013, p. 38—39)

Referéncias
BRAGA, R. Visita a Jean Cocteau. In: . Retratos parisienses. Selecao e apresentacao Augusto
Massi. Rio de Ianeiro: Iosé Olympic, 2013. p. 37—40 (Escrito originalmente para o jornal Correio
da Martha, 19 mar. 1950).
CATANI, A. M. A cultura nao é um privilégio natural. Apresentacao. BOURDIEU, P.; DARBEL, A.
O amorpela arte: 05 museus de arte na Europa e seu pfiblico. Colaboracao de D. Schnapper. Sao
Paulo: EDUSP; Zouk, 2003. p. 7-11.

7.:0N5???.PFEQBEFSPF’NDENC'AS WWW?........................................
Denis Baranger

Ao falar de analise fatorial, Bourdieu refere-se, em geral, a Analise de Correspon~


déncias Mfiltiplas (ACM), um método especialmente adaptado a0 processamento de
dados extraidos de pesquisa por meio de questionario, concebido no ambito da Analise
dos Dados (ADD). Para a Escola Francesa de Estatistica, fundada por ].-P. Benzécri, seu
principio fundamental é o seguinte: “O modelo deve seguir os dados, Him 0 inverso [...]
temos necessidade de um método rigoroso que seja capaz de extrair estruturas a partir dos
dados” (BENZECRI et al., 1973, p. 6).
A0 contrario da anélise fatorial psicornétrica classica, que lida com variéveis quantitati~
vas, a ACM opera com modalidades de variaveis qualitativas e produz planos fatoriais que
oferecem urna representacao visual das relacées que ligam um conjunto de propriedades
(fala-se, também, de Geometric Data Analysis).
A0 servir—se de um quadro disjuntivo complete (on de um quadro de Burt), a ACM
permite estabelecer correspondéncias entre o espaco multidimensional das propriedades
(das modalidades das variéveis) e o espaco dos individuos (os entrevistados). Foi no artigo
“L’Anatomie du gout” (1976, com M. de Saint Martin) que Bourdieu recorreu, pela primeira
vez, a uma anélise fatorial concebida no ambito da ADD; mas foi o sucesso de La distinction
(1979) ~ obra na qual esse longo artigo foi retomado integralmente — que garantiu destaque
ao método dentro da sociologia.
Em La distinction, trata-se de estabelecer uma correspondéncia, uma relacao de homolo-
gia, entre a estrutura das préticas desvendadas pela ACM 6 a estrutura das classes 6 das fracoes
sociais, defim'das pelas categorias socioprofissionais (CSP). Além das variéveis ativas (aquelas
cujas modalidades sao levadas em conta pela geracao do espaco multidimensional), e das ilus-
trativas (projetadas no plano), Bourdieu atribuiu um papel diferente a CSP, cuja intervencao se

ANALISE DE CORRESPONDENCIAS MULTIPLAS 31


fez por intermédio dos individuos, projetando sucessivamente os individuos de cada CSP para
verificar em qual regiao do plano fatorial eles viriam a se posicionar (LD, 296 e 392).
A ACM permite visualizar a determinacao de uma estrutura (o espaco das préticas) por
outra estrutura (o espaco das posicoes), além de substituir a analise positivista das variéveis,
centfada na influéncia de certas variéveis artificialmente isoladas a partir de outras. Em La
distinction, a “verificacao empirica” de Bourdieu procede dos efeitos (a estrutura das praticas
produzida a partir de uma ACM realizada em um conjmxto de propriedades, referentes aos
gostos e pra’ticas culturais, em matéria de pintura, mfisica, cinema, etc.) para remontar a seu
principio (a estrutura das posicoes identificadas pelas CSP). Desse modo, a ACM permitiu
a Bourdieu transformar suas intuicoes relativas ao espaco social em uma representacao
geometricamente construida.
Posteriormente, a ACM funcionaré como a ferramenta privilegiada gracas a qual Bourdieu
podera mostrar a estrutura dos diversos campos que compoem o principal espaco social.
A ACM parece ser realmente a técnica perfeita para sua teoria: “Trata-se de uma técnica
relacional de analise dos dados, cuja filosofia corresponde exatamente ao que é, a men ver,
a realidade do mundo social. E uma técnica que ‘pensa’ em termos de relacoes, como tenho
tentado fazé—lo justamente com a nocao de campo” (R, 72). Apés “L’Anatomie du gofit”,
Bourdieu voltara a utiliza-la em “Le patronat” (1978) e, em seguida, continuara a aplicé—la
em numerosos campos: as Faculdades de Letras (HA), as Grandes Ecoles (NE), as editoras
(1999), OS construtores de moradias individuals (SSE).
Em seu livro Les structures sociales de l’e’conomie Bourdieu reafirma as virtudes da
ACM nestes termos: “Pode~se esperar da anélise de correspondéncias — a qual, utilizada deste
modo, nada tem do método pummente descritz‘vo quepretende ver nela aqueles que a
opoem o‘ andlise de regressdo - que seja capaz de desvendar a estrutura das posicoes on, O
que vem dar no mesmo, a estrutura da distribuicao dos poderes e dos interesses especificos
que determina e explico as estratégias dos agentes” (SSE, 128—129). A “simples descricao”,
Bourdieu opoe o “verdadeiro modelo explicativo”, superando a oposicao entre aprofundamento
e confirmacao: "A anélise de correspondéncias — mediante a distribuicao segundo os dois
primeiros fatores ~ manifesta a distribuicao das forcas em confronto e, através do vinculo
de implicacao sociolégica (e 1150 logica) que une as tomadas de posicao as posicoes, revela o
principio das estratégias de luta que visam conserva—la ou transformé-la” (SSE, 140).
E na evocacao desse “vinculo de implicacao sociolégica” que se baseia a explicacao: a see
melhanca do que ocorre em La distinction, trata-se ainda de mostrar a homologia entre dois
espacos, o das posicoes e o das tomadas de pOSicao. Mas, apés a utilizacao do procedimento,
é o inverso: todas as modalidades ativas selecionadas para a-geracao da ACM e dos planos
fatoriais correspondem a indicadores do capital economico, cultural e social, da filiacao
institucional, etc., isto é, a indicadores das posicoes. As tomadas de posica'o, por sua vez,
deixam de ser visiveis como tais no diagrama; ou, mais exatamente, é necessério deduzir que
elas se manifestam nos individuos identificados cada qual por seu nome préprio.
Nada de equivalente ao papel desempenhado pela CSP em La distinction que permitia
fixar solidamente o que significavam os individuos segundo essa variével. Dai em diante,
tudo o que podemos saber sobre as tomadas de posicao é o que Bourdieu nos elucida em
seus comentarios acerca do plano fatorial. Ia em Homo academicus (1984), era possivel ver

32 ANALlSE DE CORRESPONDENCIAS MULTIPLAS


"c": ‘ L

.J
um procedimento anélogo, quando os professores universitarios eram langados no espago
das faculdades de letras, estruturado com base em indicadores de posigao. Ao observar
esses individuos, escrevia Bourdieu, “saltaré aos olhos de todos os observadores habituados
ao detalhe dos acontecimentos universitarios de 1968” que a estrutura das posieoes esté em
correspondéncia com a distribuieao das tomadas de posieao. O que se vé bem nesse exemplo
é que a variével — a modalidade correspondente a uma propriedade denotada por urn nome
comum - é substituida pelo nome préprio.
Trata-se, como serfipre, de mostrar a relaeao de homologia segundo a qual as tomadas de
posieao dependem das posigoes ocupadas pelos agentes na estrutura do campo. Mas, apés
La distinction, os dados da ACM referem~se a um 86 dos termos dessa relagao, enquanto as
tomadas de posieéo aparecem apenas no comentério de Bourdieu baseado em outras fontes
que nao intervém na ACM, nem sao processadas quantitativamente. No proprio cerne do.
esquema explicativo de Bourdieuencontra-se a intervengao insubstituivel do qualitative.
Posteriormente a La distinction, todas as ACM de Bourdieu mostram essa mesma es~
trutura explicativa. A ACM é engendrada a partir de variéveis de base (processadas como
V modalidades ativas), o que permite tornar visivel a estrutura do campo e as posigoes dos
individuos. Depois o plano fatorial é o elemento fundamental para a interpretaeao de outros
materiais que poderao ser de natureza quantitativa ou qualitativa. Assim, a ACM tera sido
para Bourdieu tanto uma ajuda para pensar quanto urn meio de exposigao dos resultados
de suas analises.

Referéncias
BENZECRI, LP. etal.1. L’Analyse des données;II.L1‘1nalyse des correspondarzces. Paris: Dunod, 1973.
BOURDIEU P. Une revolution conservatrice dans 1’édition.ARSS, v. 126—127, p. 328, 1999.
BOURDIEU R; SAINT MARTIN, M. L’Anatomie du gofit. ARSS, v. 2 , n. 5, p. 1‘81, 1976.
BOURDIEU P.; SAINT MARTIN, M. Le patronat. ARSS, v. 20—21, p. 3~82, 1978.

8. ANTROPOLOGIA REFLEXIVA
Paula Montero

Se ha uma palavra—chave que resume perfeitamente a trajetoria intelectual de Pierre


Bourdieu, esta é, certamente, a reflexividade. Embora nao constituisse ainda um conceito
em seus estudos sobre a Argélia da década de 1960, ja estava certamente presente em seu
modo de observagao etnogréfica. Em Esbogo de auto—andlise (2005), Bourdieu volta
sobre si mesmo o esforgo da reflexao sociolégi‘éa e explicita o impacto de suas origens no
mundo rural francés, de sua experiéncia opressiva como aluno interno no liceu e, poste-
riormente, de combatente na guerra contra a libertaeéo da Argélia, na conformaqao de
seu estilo rebelde e insubmisso de observar o mundo e de conceber o trabalho intelectual
de uma forma geral.
' Em um sentido mais amplo pode-se dizer que a reflexividade consiste em uma atitude
intelectual ou cognitiva autorreferida na qual o observador e suas aeoes se tornam parte do
modo de conhecer o mundo. Na Antropologia essa nogéo ganhou duas significagoes distintas.

ANTROPOLOGIA REFLEXIVA 33
Uma diz respeito a consciéncia do pesquisador de que sua formacao, seus modos de pensar e
agir, sua insercao social e suas relacoes afetam a situacao que esté sendo observada. A outra
se refere a pei‘cepcao de que toda prética cultural envolve, por parte do agente, consciéncia
e comentério sobre ela mesma. Pierre Bourdieu transformou essas duas dimensoes em pro—
blemas teérico-metodolégicos centrais da sua reflexao sobre as condicoes de objetividade
nas ciéncias humanas.
Esquisse d’une théorz'e de la pratique, publicado em 1972, e o compéndio de ensino em
pesquisa, s’cio do sociélogo (1973), podem ser consideradas as obras mais importantes para o
entendimento de sua critica epistemologica ‘as teorias e praticas cientificas correntes no campo
das ciéncias sociais. No trabalho de 1972 o autor constréi sua teoria das préticas sociais em um
dialogo critico com os limites heuristicos do estruturalismo e da hermenéutica. No primeiro
caso, observa que o modo de conhecimento objetivista implicito no estruturalismo apreende
as praticas de forma externalista sem perguntar-se sobre os principios que a geram. A0 fazer
uma transposicao do modelo linguistico desacompanhada de uma reflexao epistemolégica
das condicoes e dos limites dessa transposicao, a antropologia estruturai identificou cultura e
lingua e, ao fazé-lo, privilegiou a estrutura dos signos em detrirnento das funcoes politicas, de
comunicacao e de conhecimento presentes em toda pratica. 12'; o modo de conhecirnento intera~
ciom’sta pecaria, no seu entendimento, pela reducao das estruturas objetivas que determinam
toda interacao social 51 subjetividade das relacoes de um individuo com o outro.
Em Ofl’cio do sociélogo, Bourdieu afirma a necessidade de submeter toda prética cientifica
a critica da razao epistemologica. Isto significa romper, por um lado, com o empirismo que
faz do ato de conhecimento cientifico uma simples constatacao do mundo real 6, por outro,
com o convencionalismo de uma sociologia esponténea que apenas sistematiza as opinioes
correntes no universo social em uma metalinguagem. Ele formula entao os dois posicionamen—
tos bésicos que definem as condicoes de possibilidade de todo discurso cientifico nas ciéricias
sociais: contra o empirismo é preciso considerar que todo fato cientl’fico é construido pela
critica incessante das evidéncias; contra a filosofia humanista da acao é preciso ter em conta
que a Vida social nao deve ser explicada pela concepcao que dela tém os sujeitos. Ao promover
as relacoes estabelecidas em campo como meio privilegiado de conhecimento, a “observancao
participante” corre o risco de deixar-se seduzir pelas demandas do objeto.
Os fundamentos da vigilancia epistemologica e suas relacoes com a critica teérica e meto-
dologica na producao do conhecimento cientifico foram bem delineados nessas duas obras do
inicio dos anos 1970. No entanto, foi o seu trabalho em colaboracéo corn Lo'ic I. D. Wacquant
publicado em 1992 — Réponses - que tornou mais explicito o que seria para Bourdieu uma
ciéncia social reflexiva. Editado na forma de um dialogo com o autor, o livro refine os principais
posicionamentos de Pierre Bourdieu com relacao a0 debate da ciéncia social anglo~americana
da década de 1980. Os temas e conceitos mais importantes foram agrupados por Wacquant
sob duas grandes rubricas: “as finalidades da sociologia reflexiva”, que refine as questoes de
seus alunos em seminario de pesquisa na Universidade de Chicago em 19864987, e “a prética
da antropologia reflexiva”, que faz o mesmo a partir de um seminério na Ecole des Hautes
Etudes en Sciences Sociales, Paris, no mesmo ano.
Percorrendo em perspectiva esse conjunto de textos, pode-se perceber que a reflexivi—
dade é- tomada como uma forma de auto-objetivacao e de objetivacao dos pontos de vista

34 ANTROPOLOGIA REFLEXWA
a partir dos quais o mundo social é visto e construido. No caso da sociologia, a reflexivi-
dade diz respeito a necessidade de uma critica ‘epistemologica ao pensamento realista. A
maior parte dos pesquisadores em ciéncias sociais toma por objeto problemas relativos a
populacoes delimitadas de maneira mais ou memos arbitréria: velhos, jovens, imigran-
tes, etc. Para romper com essa ilusao realista é preciso objetivar o trabalho historico de
construcao dessas unidades sociais relativamente homogéneas que se tornam de maneira
impensada objetos pré-construidos da ciéncia. Por meio da reflexibilidade o sociologo
pode evitar que o mundo social opere através do pesquisador oferecendo-lhe, como se jé
estivessem prontos, os problemas cientificos que cabe a ele construir. Com efeito, as ciéncias
sociais estao permanentemente expostas a acolher os problemas do mundo social como se
fossern objetos de ciéncia. Muitos dos objetos reconhecidos pelas disciplinas académicas
nada mais 350, na verdade, do que problemas sociais contrabandeados para a sociologia
(pobreza, delinquéncia, juventude, educacao, lazer, esportes, etc). Bourdieu nos lembra,
reiteradamente, que o mundo social constroi sua representacao de si servindofise também
da sociologia e dos sociologos. Pode-se dizer o mesmo do mundo cultural e dos antropo-
logos. A objetivacao de sua posicao e do seu préprio pensamento p‘ermite a0 sociélogo/
antropélogo romper com essa persuasao clandestina da linguagem corrente do Estado, da
burocracia, dos meios de comunicacao, do nativo, etc. Somente a partir da disposicao para
a reflexibilidade é possivel evitar que o pesquisador se torne instrumento daquilo mesmo
que ele pretende pensar. A socioanalise proposta por Bourdieu exige urn retorno reflexivo
no qual a desconstrucao critica do objeto se aplica também ao pesquisador. Foi esse esforco
de objetivacao que o autor empreendeu ao examinar o mundo académico francés no Homo
academicus. Em contraponto ao campo intelectual francés, o que mais falta na tradicao
sociolégica norte~americana é, no entender de Bourdieu, uma analise verdadeiramente
critica de suas proprias instituicées universitarias.
No caso da antropologia, a reflexibilidade diz respeito ‘a necessidade do pesquisador
de, ao mesmo tempo em que observa o mundo social, refletir sobre sua prépria posicao de
observador erudito. E claro que, para falarmos do mundo, somos de certo modo obrigados
a abstrair o fato de que-também estamos nele. No entanto, essa posicao cognitiva, quando
nao objetivada, cria um viés intelectualista, préprio a abordagem estruturalista. Com
efeito, observa Bourdieu, “o conhecimento teérico deve infimeras de suas propriedades
mais essenciais ao fato de 'que as condicoes de sua producao 11510 550 as da prética” (R, 50).
No entanto, a reflexibilidade exige objetivar a pretensao heuristica dessa posicao de um
observador imparcial e externo, onipresente e ausente, quase divino para nao transformar
a antropologia 1mm simples instrumento de luta politica ao invés de poderoso instrumento
de conhecimento dessas lutas. Para evitar o int‘electualismo é preciso objetivar os esquemas
de percepcao e cognicao do préprio observador. Isto nao significa um retorno complacente
e intimista ‘a pessoa do pesquisador, essa espécie de observacao do observador inaugurada
pela pés—modernidade antropologica que fala mais do autor do que de seu objeto de estudo.
Objetivar os esquemas do senso prético nao tem por objetivo demonstrar que as ciéncias
sociais constituem apenas mais um ponto de vista sobre o mundo, nem mais nem menos
cientifico do que qualquer outro. A reflexividade significa para Bourdieu a condicao mesma
de uma prética cientifica rigorosa.

ANTROPOLOGlA REFLEXIVA 35
Maria Alice Nogueira

V “Arbitrério cultural” er o termo utilizado por Bourdieu para designar o fenomeno social
que consiste em erigir a cultura particular de uma determinada classe social (a “classe do—
minante”) em cultura universal. A arbitrariedade do processo residiria, segundo o sociélogo
francés, na ocultacao da origem de classe dessa variante cultural, isto é, no apagamento do
fato de que ela nao possui, em si mesma, nenhurn valor intrinseco, retirando toda a sua su-
perioridade do fato de estar em posicao dominante nas relacoes de forcas entre os diferentes
grupos sociais. Ia em 1970, em La reproduction, obra escrita corn Jean-Claude Passeron e
uma das mais importantes da primeira etapa de sua trajetéria intelectual, Bourdieu escrevia:
“A selecao de significados que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma
classe como sistema simbélico é arbitréria, na medida em que a estrutura e as funcées
dessa cultura nao podern ser deduzidas de nenhum principio universal, fisico, biolo—
gico ou espiritual, nao estando unidas — por nenhuma espécie de relacao interna — a
natureza das coisas ou a natureza humana” (LR, 22).
Portanto, desde o im’cio de sua carreira, Bourdieu formulava a tese de que um poderoso traba—
lho social ~ que se da em escala societéria — de “legitimacéo” da cultura das classes dominantes
resultou na producao de uma cultura“leg1’tirna” — posto que legitimada pelos agentes sociais —,
cuja origern ficou esquecida num processo dito de “amnésia da génese”. “Em uma formacéo
social determinada, a cultura legitima, i.e., a cultura dotada da legitirnidade dominante,
nao é outra coisa 5611510 0 arbitrario cultural dominante, na medida em que ele é ignorado
em sua verdade objetiva de arbitrério cultural e de arbitrério cultural dominante” (LR, 38).
' Desenvolvendo melhor o argumento, diriamos que Bourdieu defende que nenhuma cultura
pode ser objetivamente definida corno superior a outra cultura. Os conhecimentos, signifi-
cados e valores que orientariam cada classe ou grupo social em suas disposicoes e condutas
seriam, por definicéo, arbitrarios, ou seja, nao estariarn fundamentados em nenhuma razao
objetiva, universal. Porém, apesar de arbitrarios, esses significados e valores — isto é, a cultura
de cada grupo — seriam concebidos e Vividos pelos individuos como os unicos possiveis ou,
pelo menos, corno os unicos Validos. .
Na perspectiva de Bourdieu, a conversao de um arbitrario cultural em cultura legitima so
pode ser compreendida quando se considera a relacéo entre os varios arbitrérios em disputa
em uma determinada sociedade e as relacoes de forca entre os grupos ou classes sociais exis-
tentes nessa mesma sociedade. No caso das sociedades de classes, a capacidade de imposicao,
de inculcacao e de legitimacao de um arbitrario cultural corresponderia a forca da classe
social que o sustenta. Assim, de um modo geral, os significados (conhecimentos, valores,
etc.) arbitrarios, capazes de se impor como cultura legitima, seriarn aqueles sustentados
pelas classes dominantes.
Além disso, é fundamental, no pensamento bourdieusiano, a ideia de que a eficécia on
a forca social desse processo de imposicao de um arbitrario cultural repousa sobre o fato de
que ele se da de modo dissimulado, o que ~ de resto — aconteceria corn todas as formas de
hierarquia social que retiram sua legitimidade do fato de que a arbitrariedade, que esté na
origem de sua constituicao, passa despercebida aos olhos dos atores sociais. E a esse processo

36 ARBITRARIO CULTURAL
de mistificacao de um arbitrario cultural corno cultura universal que o autor da o nome de
“violéncia simbélica”. _ ‘
Para Bourdieu, o mesmo fenomeno ocorreria no caso da instituicao escolar. Os saberes e
todos os conteudos curriculares transmitidos e veiculados pelos sistemas de ensino, e consi-
derados como a cultura legitirha, nao constituiriarn senao o arbitrario cultural dominante,
isto é, a cultura e 05 saberes das classes dominantes, sern nenhumarelacao de superioridade
'intrlnseca corn as outras variantes culturais. Observa, no entanto, que a autoridade pedago—
gica, ou seja, a legitimidade da instituicao escolar e da acao pedagogica que nela se exerce so
pode ser garantida na medida em que o caréter arbitrario e socialmente imposto da cultura
escolar é ocultado.
Portanto, apesar de arbitréria e socialmente vinculada a uma dada classe, a cultura escolar
precisaria, para ser legitimada, se apresentar como uma cultura neutra. A autoridade alcan-
cada por uma acao pedagogica, ou seja, a legitimidade conferida a essa acao e aos conteudos
que ela distribui seriarn propOrcionais a sua capacidade de se fazer ver como nao arbitréria
e nao vinculada a nenhuma classe social. Assim, na medida em que impoe e inculca em seu
publico, de modo dissimulado, um arbitrério cultural como cultura universal, a instituicao
escolar pratica ~ a sua maneira e sobre aqueles desprovidos, pelo nascirnento, de “heran’ca
cultural” — urn ato de “violencia sirnbolica”.
Segundo Bourdieu, no que concerne aos grupos sociais dominados, o maior efeito dessa
“violéncia simbolica” exercida pela escola nao é a perda da cultura familiar de origem e a
“aculturacao” em urna nova cultura exégena, mas o reconhecirnento, por parte dos membros
desses grupos, da superioridade e legitimidade da cultura dominante. No inicio dos anos
1960, em Les hérz‘tiers, Bourdieu e Passeron escreviam: “Para os filhos dos camponeses,
dos operérios ou dos pequenos comerciantes, a aquisicao da cultura escolar é aculturacao”
(LH, 37). Esse reconhecimento se traduziria numa desvalorizacao do saber e do saber fazer
tradicionais dos meios populares, em favor do saber e do saber fazer socialmente legitimados.
A esse respeito, na obra La distinction, corn base em resultados de pesquisa sobre as
préticas culturais dos franceses, que demonstravam, entre outras coisas, a tendéncia dos
entrevistados menos instruidos em disfarcar sua ignorancia e em exibir comportamentos e
opinioes que lhes pareciam as mais préxirnas da legitimidade cultural, Bourdieu (197-9) conclui
que “Os membros das diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau em que
reconhecem a cultura do que pelo grau em que eles a conhecem: as declaracoes de
indiferenca sao excepcionais e mais ainda as rejeicées hostis - ao menos na situacao de
imposicao de legitimidade que a relacao de pesquisa cultural como um quase exame
provoca. Urn dos mais seguros testemunhos do reconhecimento da legitimidade reside
na propensao dos mais desrnunidos a dissi'fnular sua ignorancia ou sua indiferenca
e a homenagear a legitimidade cultural da qual o entrevistador é, aos seus olhos, o
depositario, escolhendo em seu patrimonio aquilo que julgam o mais conforme com
a definicao de legitimidade" (LD, 365).
' Vérias $510 as criticas dirigidas hoje a teoria da legitimidade cultural. Uma das mais im-
portantes emana de dois antigos colaboradores de Bourdieu, Claude Grignon e Iean~Claude
Passeron (1989), que reconhecem nessa teoria urna “forca” e urna “limitacao”. A primeira viria
do fato de que ela representa urn justo golpe no relativismo cultural, por se negar a conceber

ARBITRARIO CULTURAL 37
a cultura dos diferentes grupos sociais fora do quadro das relacées de dominacao existentes
entre eles. Por outro lado, segundo eles, ela nao conseguiria “descrever positivamente o
arbitrério das culturas dominadas, isto é, descrever em todas as suas dimensoes simbélicas
_o que existe e ainda funciona, mesmo quando se trata da cultura dos dominados”. De tal
modo que “as praticas e os tracos culturais das classes populares se veem privados do sentido
que eles retiram de seu pertencimento a um sistema simbélico” (GRIGNON; PASSERON, 1989,
p. 36) na medida em queo sociologo so 05 enxerga pelo lado negativo da falta, da infracao,
do erro, enfim da distancia envergonhada dos padroes legitlmos.

Referéncia
GRIGNON, C.; PASSERON, I. C. Le savant et le populaire. Paris: Gallimard/Le Seuil, 1989.

'1 o. ARGELIA
Enrique Martin Criado

A Argélia desempenha um papel essencial na obra de Bourdieu. E nesse pais onde, apos
haver estudado filosofia, comeca a se dedicar a sociologia. Na Argélia realiza sua primeira
pesquisa e sobre a Argélia escreve seus primeiros textos. Urna regiao desse pals, a Cabflia,
lhe proporciona 0 material fundamental a partir do qual propoe uma de suas principais
contribuicées, a teoria da pratica. Na Argélia comeca seu compromisso politico pfiblico, de-
fendendo a causa da independéncia diante da Franca. Este compromisso com o povo argelino
continuara até 0 final de sua Vida, denunciando a cumplicidade do governo francés com o
governo militar argelino na guerra que se desencadeia depois da anulagao, em 1992, das
eleicoes ganhas pela Frente Islamica de Salvacao (PIS), fundando corn outros intelectuais, em
1994, o Comité Internacional de Apoio aos lntelectuais Argelinos (CISIA), ou denunciando o
fechamento das fronteiras da Franca, impedindo o exflio de dezenas de milhares de pessoas
cuja Vida corre perigo no cruzamento de massacres entre islamitas e militares argelinos
(alguns desses textos encontram-se em INT).
Depois de estudar filosofia em Paris e trabalhar durante um breve periodo corno professor
em um liceu cle Moulins (centre da Franca), Bourdieu é recrutado. Destinado inicialmente a
Versalhes, é enviado no inicio de 1956 para a Argélia, em plena guerra de independéncia da
Franca (19544962). Depois de alguns meses na regiao de Chélif, é transferido para o Governo
Geral de Argel. Ali entra em contato com varies pesquisadores que, corno ele, sao muito cn’ticos
em relacao ‘a colonizacao francesa ~ como André Nouschi, que pesquisa a desestruturacao do
mundo rural argelino a custa da colonizacao e de suas leis. Nessa época, Bourdieu comeca a ler
Sociologia — uma disciplina menosprezada na Ecole Normale Supérieure onde havia estudado —,
ao mesmo tempo em que escreve seu primeiro livro, Saciologie de l’Algérie (1958). Isolaose
na biblioteca do Governo Geral, onde lé a literatura etnolégica colonial sobre a Argélia, que
se constituira na matéria-prima de seu livro. Nele examina, também, os autores que entao
esta conhecendo: Weber, Marx, mas, sobretudo, Durkheim, Levi-Strauss e Margaret Mead,
a quem lé com entusiasmo e de quem toma os principais esquemas analiticos para o livro
(MARTI’N CRIADO, 2008). Além do mais, esse trabalho constitui uma critica a colonizacao

38 ARGELIA
(compilados em EA). 0 livro foi
argelina ~ que Bourdieu continuara em artigos posteriores
ente opostos a independéncia
muito mal recebido entre os franceses de Argel, majoritariam
e entre os quais predominavam posturas de extrema direita.
nte na Faculdade de Letras
Apés seu service militar, Bourdieu é contratado como assiste
lmalek Sayad. Entra em contato com
da Universidade de Argel, onde tern como aluno Abde
Economique et Sociale (ARDES), forma da
a Association pour la Recherche Démographique,
recebe o encargo do exército francés
por estatisticos franceses e aigelinos. Esta associacao
milhoes de pessoas haviam sido
de investigar as populagoes deslocadas pela guerra (dois
ento e seus povoados foram
deslocadas pelo exército francés para campos de reagrupam
e realizar a interpretacao sociolégica
destruidos). Bourdieu é chamado para dirigir a pesquisa
na qual combina todas as técnicas
dos dados estatisticos. Organiza uma grande pesquisa,
administrativos, observacao participante,
de investigacao — enquetes, anélises de registros
a desestruturacao e a miséria da
entrevistas... —, centrada no alojamento e no emprego, sobre
a e sobre a passagem de uma sociedade
sociedade argelina por causa da colonizagao e da guerr
pré~capitalista a uma sociedade capitalista.
vermelha das associacoes de
Em 1960 Bourdieu, avisado de que se encontra na lista
a agitacao repleta de atentados, que
extrema direita (O que significa, naquela época de intens
Raymond Aron na Sorbonne. Entre—
sua Vida corre perigo), volta a Paris, como assistente de
partir dds quais escreveré dois livros:
tanto, continua analisando os materiais da pesquisa, a
nt (1964). Ambos os trabalhos
Travail et travailleurs en Algérie (1963)e Le déracineme
na no memento da independéncia. Seu
oferecem uma detalhada descricao da sociedade argeli
ional a uma sociedade moderna
fio condutor é a anélise da passagern de uma sociedade tradic
. Travail et travailleurs en Algérie se
nas dramaticas condicées da colonizacao e da guerra
subproletarios, operérios, artesaos - dentro
centra especialmente nos trabalhadores urbanos —
déracz'nement, por sua vez, analisa a
de uma anélise geral da estrutura social argelina. Le
nos campos de reagrupamento. Além
populacao camponesa a partir da pesquisa realizada
o francés, Bourdieu, em tais obras, jé
de realizar uma documentada dem’mcia do colonialism
s textos a estrutura social argelina, os
se revela como um profundo sociélogo. Analisa ne'sse
o das condicoes de existéncia, a relacao
comportamentos trabalhistas, os arranjos em funca
tipos de disposicoes e habitat, o “contégio
entre aspiracoes e condicoes objetivas, a relacao entre
mo a partir dos modelos urbanos de classes
das necessidades” nos comportamentos de consu
o nas relacoes familiares, na concepcao do
médias, as consequéncias do trabalho assalariad
s, a introducao de medidas homogéneas -
tempo ou na transformacao das sociedades rurai
ncas que provoca, a transformacao dos
de tempo, de produtos... — e as resisténcias e muda
concepeao de enfermidade. O fio condutor
rituais de sociabilidade cotidiana, a mudanca na
lista e a capitalista, a passagem de uma
é a contraposicao entre a racionalidade pré-capita
'
sociedade tradicional a uma sociedade moderna.
sua teoria do habitus: as condicoes de
Nesses livros ele jé p6e em pratica o que seré
disposicoes que tendem a reproduzir as con.—
existéncia produzem urn determinado tipo de
s, iguahnente, a relacao entre projecao a0
dicfies das quais sao produto. Nelas jé encontramo
de de realizar projetos sensatos de future
futuro e condicoes de existéncia — a probabilida
a ~ e a transferibilidade dos esquemas
depende das protecoes que a situaeao presente oferec
a dominios muito diferentes da pratica.
do habitus — os mesmos esquemas sao aplicados
ARGELIA 39
A diferenga dos textos posteriores em que teorizaré o habitus ~ onde insiste no ajuste do
habitus a situagao —, aqui tudo é questéo de desajuste. Caniponeses e subproletérios se
acham em perpétua tensao entre uns esquemas adqujridos em uma sociedade tradicional e
anova situagao de extensao das relagoes capitalistas. Este desajuste tem duas consequéncias.
Em primeiro lngar, a desestruturaqao da sociedade tradicional leva os individuos a consciéncia
do desajuste entre seus esquemas e a realidade e, a partir dela, ao retomo reflexivo sobre tais
esquemas. Passa~se de um ethos implicito a uma ética explicita. A segunda consequéncia é
o constants funcionamento, nos mesmos sujeitos, de duas logicas distintas; a tradicional em
que foram socializados e a nova em que estéo aprendendo. A maioria dos argelinos utilizaria
constantemente ambas as logicas segundo a situagao ou realizaria sinteses mais ou menos
instéveis: viveria uma experiéncia de desdobmmento.
Todavia, os textos mais conhecidos de Bourdieu sobre a Argélia sao aqueles que dedica a
uma regiao bebere, a Cabflia. Em suas pesquisas no pais, Bourdieu também havia se dedicado a
compilar informagao etnolégica sobre esta regiao, perguntando a seus informantes sobre ternas
téo variados como os rituais, a honra, os intercambios de dons, os calendérios agricolas on a
genealogia. Na sua volta a Franga trabalha sobre esses materiais e escreve, ao longo da década
de 1960, trés artigos: sobre o sentido da honra, a casa cabflia e as estratégias de parentesco na
Cabflia. Os trés trabalhos se integram em Esquisse d’une théorie de la pmtz’que, pre’céde’ de
Trois e’tudes d’ethnologz'e kabyle (1972) ~ onde Bourdieu realiza a primeira exposigao sisternatica
de sua teoria do habitus — e em diferentes capitulos de Le sens pratique. De fato, se tais artigos
tém tanta relevancia é porque Bourdieu os utiliza como exemplos modelo de sua teoria da prética.
Com efeito, os artigos podem ser lidos como etapas da viagem de Bourdieu desde o
estruturalismo de Lévi—Strauss ~ representado, sobretudo, por “A casa cabflia” e, em menor
gran, por “O sentido da honra” — até o estrutumlismo genético, que ja se pode ver em “0
sentido da honra”, mas, sobretudo, em “0 parentesco como representaqao e como vonta-
de”. Aqui néo so rejeita a anélise do parentesco de Lévi—Strauss, como também introduz
plenamente o conceito de estratégia como oposto ao de regm, analisando as préticas ma~
trimoniais nao como atualizagées de um sistema de regras subjacente, mas como préticas
que jogam com as regras na persecugao de determinados interesses — contra as préticas e
os interessas de outros agentes — que héo de ser entendidos no conjunto das estratégias de
reprodugao dos grupos sociais.
De fato, Bourdieu — como ele mesmo reconheceu em numerosas ocasioes ~ havia estado
muito influenciado por Lévi~Strauss e seu método estruturalista. Um sinal evidente disso
é o artigo sobre a casa cabflia: aqui nos apresenta o sistema de oposigoes fundamental -
masculino/feminino, etc. —, suas correspondéncias nos diferentes ambitos, assim como suas
transformagées ~ a casa como espago onde se invertem os termos. Por sua vez, o artigo
sobre o sentido da honra tenta recompor e formalizar a estrutura inconsciente — conjunto de
oposigées e regras — de todas as préticas de honra, que se aplicaria também a outras préticas,
como o intercambio de dons. No entanto, nesse artigo jé introduz novidades que caracterizam
sua teoria da prética: o habitus como principio incorporado das préticas, a importéncia das
estratégias de reprodugéo, 0 capital simbolico. A ruptura com Lévi-Strauss é mais evidente
no arfigo sobre o parentesco, onde analisa as relagoes de parentesco como estratégias préticas
de reprodugéo social dos diferentes grupos soci‘ais.

4O AHGELIA
‘\/
Esses artigos, desse modo, proporcionam casos exemplares de uma sociedade onde a
integracao social se produziria a partir do habitus e onde o habitus estariam perfeitamente
integrados e aplicariam seus esquemas basicos aos diferentes ambitos da pratica. Cabilia seria
um caso exemplar porque seria uma sociedade tradicional.
Assim, na Cabilia as criancas seriam socializadas por meio da prética e da mimese,
per set uma sociedade desprovida de escrita e de escolas: dai que nela se possa observar
muito melhor a aquisicao prética, corporal, das disposicoes que conformam o habitus. Na
Cabilia, sern aparato juridico dotado do monopolio da violéncia fisica, a ordern juridica
se basearia, sobretudo, nos principios implicitos do habitus. Ela seria uma sociedade
agricola pré-capitalista sem economia de mercado que produziria, por meios tradicionais,
para o autoconsumo e que excluiria o desenvolvimento das forcas produtivas e a concen~
tracao de capitais: dai que se constitua em urn exemplo privilegiado de uma sociedade
onde as estratégias de acumulacao se baseiam no capital simbolico ~ na honra, nesse
caso. Sociedade simples e perfeitamente integrada, nela todos os dominios da prética se
organizariam a partir do mesmo conjunto reduzido de esquemas que conformariam uma
doxa que nao necessitaria passar pela consciéncia ou reflexao a0 ser compartilhada por
todos e ao se achar perfeitamente ajustada a situacao nessa sociedade estével e homogénea.
Como sociedade simples, na Cabilia se observariam melhor as légicas puras do habitus
e do capital simbélico.
Este é o aspecto mais discutivel desses estudos cabflios: a sociedade cabflia havia deixado
de ser uma sociedade tradicional muito tempo antes de que Bourdieu a conhecesse. Ia no
século XIX teria como principal atividade o cornércio; desde as invasoes islamicas se regia
por codificacoes juridicas — complicadas com a colonizacao francesa — e desde os fins do
século XIX era a zona mais escolarizada da Argélia (MAHE, 2001). Longe de ser uma socie»
dade tradicidnal, era a regiao mais modernizada da Arge’lia, onde as relacoes salariais e a
economia monetéria mais se haviam desenvolvido. Bourdieu nao ignorava tudo isso: de fato,
o assinalava em publicacoes como Travail et travailleurs en Algérie. Talvez tenha construido
uma imagem da Cabilia tradicional porque era a que mais convinha para defender sua teoria
da pratica, para oferecer um exemplo modelo do habitus (MARTiN CRIADO, 2013).

Referéncias
BOURDIEU, P. The Sentiment of Honour in Kabyle Society. In: PERISTIANY, I. G. (Ed). Honour
and Shame. The Values ofMediterranean Society. Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1965.
p. 191-24.
BOURDIEU, P. La maison kabyle ou le monde renversé. In: POUlLLON, 1.; MARANDA, P. (Eds).
Echanges et communications. Mélanges ofierts a Claude Lévi-Strauss a l’occasion de son 60e
anniversaire. Paris: Mouton, 1970.
MAHE, A. Histoire de la Grande Kabylz’eXIX-XX siécles. Anthropologie historique du lien social
dans les communautés villageois. Paris: Bouchéne, 2001. I
MARTlN CRIADO, E. Les deuxAlgéries de Pierre Bourdieu. L’enracinementde la théorie de I’habitus.
Paris: Croquant, 2008.
MARTlN CRIADO, E. Cabilia: la problemética génesis del concepto de habitus. Revista Mexicana
de Sociologia, v. 75, n. 1, p. 125451, 2013.

ARGELIA 41
, ,l'
11. ART MOYEN (UN): ESSA] SUI? LES USAGES SOC/AUX
DE LA PHOTOGRAPH/E

Iosé Carlos G. Durand

BOURDIEU, P.; B‘OLTANSKI, L.; CASTEL, R.; CHAMBOREDON, }.—C. Un art moyen: essai sur les
usages sociaux de la photographie. Paris: Minuit, 1965.

A0 lado da moda, da historia em quadrinhos, do romance popular e dojazz, a fotografia


foi vista por Bourdieu como um género artistico “menor”, atalho fitil para se entenderem os
fundamentos da dominacao cultural e da correspondente hierarquia de géneros, encabecada
pela pintura cléssica, pela literatura erudita, pela opera e pelo teatro de vanguarda.
A fotografia reintegra a famflia, solenizando e perenizando espacos, objetos, pessoas e mo~
mentos marcantes. Esta é sua funcao social basica, razao de sua grande difusao, a despeito de seu
parco prestigio como prética cultural. Das fotos de famflia 56 se pede que sejam fiéis o suficiente
para que alguém se veja e se reconheca, e para que se aponte as novas geracoes a importancia de
cada um no circulo de parentesco. Nelas 1150 ha lugar para improvise, tudo tendendo a0 regulado
e convencional, definindo, no limite, o universo do “fotografavel” on “1150 fotografave ”.
Por isso, nada a estranhar que os casados (com filhos) fotografem mais do que os sem
filhos, e estes mais que os solteiros, ou que o casamento continue a ser 0 evento social mais
fotografado. So conhecendo as condicoes de Vida e 03 sistemas de pensamento e de percepcao
de um grupo sera possivel entender o sentido de suas praticas fotogréficas. Seu habitus é a
sede dos valores éticos e estéticos que definem o que merece ser fixado, conservado.
As praticas e as ambicoes propriamente estéticas em fotografia se constroem na contramao
de sua funcao integrativa, o que se vé pela forte incidéncia de celibatarios entre os aficionados,
ou “devotos”, da fotografia. Eles $50, a rigor, os “desviantes”, ou autodidatas as voltas com
uma penosa e quase sempre nao compensada aspiracao estética.
Diferentes pesquisas acerca dos habitos de fotografar entre camponeses, operérios,
classes médias e altas e afiliados de fotoclubes forneceram 0 material de campo. Posse de
camera, frequéncia e ocasiées de uso, costume de mostrar albuns estao entre os quesitos cujos
resultados foram cruzados pela condicao socioeconémica, idade, estado civil, nivel de esco—
laridade e demais préticas culturais dos respondentes.

12. ASCETISMO

Ver: Boa vantade cultural

13.AT|V|SMO
Afi'anio Mendes Catam'

Uma simples consulta a Interventions, 1961-2001: science sociale et action politique,


coletanea organizada por Franck Poupeau e Thierry Discepolo, que refine uma centena de

42 ART MOYEN (UN): ESSA] SUI? LE5 USAGES SOC/AUX DE [A PHOTOGRAPH/E

g A
artigos escritos por Bourdieu ao longo de quarenta anos, consistindo—se em uma sumula de seu
engajamento em distintos movimentos sociais franceses e estrangeiros, revela a intensidade e
a contundéncia de seu pensamento. Principio com tais consideracoes acerca desse livro com
a finalidade de destacar que praticarnente desde o inicio de sua longa carreira o sociélogo
francés jamais deixou de intervir nos movimentos sociais que considerava significativos
para a transformacao de uma dada realidade social adversa a grandes setores da populacao.
Nas décadas de 1980 e 1990, Bourdieu intensificou sua acao, comecando por assinar a
peticao publica, com Michel Foucault, em 15 de dezembro de 1981, publicada no jornal Li-
beration, “Les rendez—vous manqués: aprés 1936 et 1956, 1981?”, contra a recusa do governo
socialista francés em apoiar o sindicato polonés Solidariedade, atacado pelas tropas do general
Jaruzelski. Em 1985 coordenou o documento “Propositions pour l’enseignement de l’avenir”,
elaborado por professores do College de France, obtendo ampla repercussao em vérios paises.
A exemplo de Emile Durkheim, postulando que os interesses da ciéncia podern ser resolvidos
apenas pelos préprios cientistas, criou, em 1989, a Liber: Revista Europeia de Livros (depois,
com o subtitulo Revista Internacional de Livros, adotado em 1994), que circulou até 1998. Era
uma publicacao trimestral encartada na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales.
“Comparado aveiculos similares nos Estados Unidos e em diversos paises europeus — The New
York Review ofBooks, Times Literary Supplement, London Review ofBooks, Le Monde des
Livres, etc. — com projetos gréficos dispendiosos e soflsticados, tiragens em escala comercial
compe'nsadora e esquemas empresariais de producéo e difusao, Liber procura tirar partido
de sua autonomia perante os grandes orgaos da imprensa, os maiores impérios editoriais, o
establishment de celebridades politicas, artisticas e intelectuais, as agendas dos radicalismos
de direita e de esquerda, voltando-se para urn publico de estudantes, pesquisadores especiall-
zados e produtores de cultura, junto aos quais garante o acesso por intermédio de sua lingua
nativa. Afora as versoes em francés, alernao e italiano desta ‘revista internacional de livros’
trimestral [...], Liber é também publicado em bulgaro, em hungaro, em sueco, em romeno, em
grego, em noruegués e em turco, ampliando desse modo sua forca de penetracao no interior
de cada urn desses campos nacionais de producao cultura ” (MICELI, 1997, p. 15). Foi definida
por Bourdieu corno uma forma de resisténcia a uma situacéo de ajuste intelectual, propondo—se
o resgate da capacidade de aliar a autonomia da esfera intelectual com o engajamento critico,
em um espaco publico e politico, tendo sido definidos o modelo e a “missile” dos intelectuais:
em lugar do intelectual total sartriano, tern-se o intelectual transdisciplinar e internacional,
alternativo aos poderes economicos, politicos e a midia (MICELI, 1997, p. 12—13).
Liber 1 (1997), editado apenas no Brasil, pela Editora da Universidade de 8510 Paulo,
tern 321 péginas e a colaboracao de 26 autores em 31 artigos; procura refletir sobre a crise
politica, economica e cultural atravessada p‘ela Europa no fun do século passado. Dividido
em trés partes concentra—se, na primeira (“Impasses da questao nacional”), no estudo do
tema em paises corno Alemanha, Escécia e Irlanda, corn artigos de Bourdieu, Christophe
Charle, Ifirgen Habermas, Girgit Muller, Keith Dixon, Tom Nairn, Hugh Trevor~Roper,
Terry Eagleton, Gerry Adams e Bill Rolston. Os artigos da segunda parte (“Mestres do penv
samento”) concentram-se no trabalho de homenagem e reconhecimento de alguns autores
mais inventivos da ciéncia social contemporanea, como Marcel Mauss, Georges Duby, E. P.
Thompson e Georges Dume’zil, com textos de Marcel Fournier, Enrico Artifoni, Maria Luisa

ATIVISMO 43
Pesante, Huw Beynon, Didier Eribon e Frédérique Verrier. Na terceira parte (“Arte, Litera—
tura e Industria Cultural”), dedicada a arte, a literatura e a industria cultural, destacam-se
artigos sobre o papel politico e cultural dos intelectuais, os novos campos e areas do saber
nas humanidades, o perfil de alguns géneros de ponta da industria cultural, como a ficcao
multinacional e a arte globalizada — temas que normalmente encontram uma recepcao
reverencial em jornais, revistas e televisao. Escrevem ai Bourdieu, Louis Pinto, Ursula e
Wolfgang Apitzsch, Robert Darnton, Didier Eribon, Pascale Casanova, Ioseph lurt, Miha‘i
D. Gheorghiu, Ines Champey e Isabelle Graw (MICELI, 1997, p. 1344).
Em 1989 divulga “Principes pour une réflexion sur les contenus de l’enseignement”, relatério
da comissao que preside com Francois Gros, ministro da Educacao Nacional, da Iuventude e
dos Esportes; em 1991 torna-se membro do Conselho Cientifico do Instituto Maghreb—Euro-
pa e, nessa mesma data, cria a Associacao de Reflexao sobre o Ensino Superior e a Pesquisa
(ARESER), a qual preside. Em 1993 tem intensa participacao no Parlamento Internacional
dos Escritores e no Comité Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA).
No inicio da década de 1990, em que as desigualdades sociais e a marginalidade jé ha—
viam se manifestado de forma acachapante, fazendo com que os tradicionais instrumentos
de protesto coletivo ficassem superados, Bourdieu, através da revista Actes de la Recherche
en Sciences Sociales, que dirigiu de 1975 a 2001 (ver verbete ARSS), editou varios artigos
baseados em biografias e depoimentos que homens e mulheres confiaram a varios autores,
"a proposito de sua existéncia e de sua dificuldade de viver” (MM, 9). Depois, tais estudos
foram ampliados, resultando em livro corn quase mil paginas, trabalhando a questao da
miséria e do sofrimento social na Franca contemporanea: trata-se de A miséria do mundo,
que se tornou um sucesso de vendas, sendo inclusive editado em muitos paises. Coordenado
por Bourdieu, que também escreveu varios capitulos, 0 volume conta com o trabalho de
outros 22 autores. '
Bourdieu acompanhou de perto o conjunto de manifestacoes de rua ocorridos na Franca
em dezembro de 1995 e, na ocasiao, fez brilhante intervencao na Gare de Lyon (“Contra a
destruicao de uma civilizacao”), posteriormente incluida em seu livro Contrafogos: tatz'cas
para enfrentar a invasao neoliberal (1998), em que investe contra as posturas tecnocréti-
cas do governo socialista francés — em 1996, com um grupo de intelectuais criou a editora
Liber ~ Raisons d’agir, depois apenas Raisons d’agir, publicando pequenos livros densos,
bern documentados e baratos sobre problemas politicos e sociais da atualidade, escritos por
sociologos, economistas, escritores e artistas que possuiam “a vontade militante de difundir
o saber indispensével a reflexao e a acao politica em uma democracia” (WACQUANT, 2002, p.
99401). A maioria desses livros — de Bourdieu ainda se incluem Sur la téle’vision, suivi de
L’emprise du journalisme (1996), Contre-feux 2: pour un mouvement social européen
(2001), além do livro coletivo da ARESER, Quelques diagnostics et remédes urgentes pour
une université en péril (1997) — foi publicada contra uma situacao de cerceamento da midia
e do mercado editorial, que se recusavam a discutir, aprofundar e editar varios temas que, se
escamoteados, contribuiriam para a manutencéo do que o autor denominou “os fundamentos
ocultos da dominacao”. Alguns titulos merecem destaque: Keith Dixon, Les évange’listes du
marché (1998); Lo'ic Wacquant, Les prisons de la misére (1999); Frédéric Lordon, Fonds
de pension, piége a cons? Mirage de la de’mocratie actionnariale (2000); Christian de

44 ATlVISMO
";
Montlibert, Savoz’r a vendre: l’ensez'gnement supe’rieur et la recherche en danger (2004);
Serge Halimi, Les nouveaux chiens de garde (1997).
Ainda em 1996, em 13 de outubro, Bourdieu e outros intelectuais se posicionam favo-
ravelmente ao movimento dos sem documentos; em janeiro de 1998 realiza intervencoes
publicas em prol do movimento dos desempregados e em 8 de abril escreve “Pour une gauche
de gauche”, no jornal Le Mamie. A partir dai se intensifica uma campanha orquestrada
contra ele 11a midia. No ano seguinte redige ‘Maitres du monde, savez—vous ce que vous
faites?”, publicados nos jornais Liberation e Le Monde, em 13 e 14 de outubro, 6 na Folha
de 8.Paula em 19 de outubro de 1999 Em 2000 deu seu apoio a0 “Manifeste pour les états
généraux du mouvement social européen” (1° de maio) e aos movimentos de luta contra
a mundializacao neoliberal, reunidos em Nice (dezembro) e em Québec (abril de 2001).
Acredito que o ativismo e 0 engajamento de Bourdieu possam ser exemplarmente
resumidos em algumas passagens de seu livro A mise’ria do mundo, quando escreve
que “levar ‘a consciéncia os mecanismos que tornam a Vida dolorosa, inviével até, nao é
neutraliza—los; explicar as contradicoes nao é resolvé-las”. N50 se pode anular o efeito
que a mensagem sociolégica pode exercer, por mais cético que se possa ser acerca 'de sua
eficécia social, “ao permitir aos que sofrem que descubram a possibilidade de atribuir
seu sofrimento a causas sociais e assim se sentirem desculpados; e fazendo conhecer
amplamente a origem social, coletivamente oculta, da infelicidade sob todas as suas
formas, inclusive as_mais intimas e as mais secretas” (MM, 944). Tal constatacao nao tem
nada de desesperadorz “o que o mundo social fez, o mundo social pode, armado deste
saber, desfazer. Em todo caso, é certo que nada é menos inocente one o laisser~faire2 se é
verdade que a maioria dos mecanismos econémicos e sociais que estao no principio dos
sofrimentos mais cruéis, sobretudo os que regulam o mercado de trabalho e o mercado
escolar, nao sao féceis de serem estancados ou modificados, segue—3e que toda politica
que nao tira plenamente partido das possibilidades, por reduzidas que sejam, que sao
oferecidas a acao, e que a ciéncia pode ajudar a descobrir, pode ser considerada culpada
de 1130 assisténcia a pessoas em perigo” (MM,944).

Referéncias
DELSAULT, Y.; RIVIERE, M.-.C Bibliographie des travaux de Pierre Bourdieu, suivz' d un entretierz
sur l’esprit de la recherche. Paris: Les Temps des Cerises, 2002.
MICELI, S. Apresentacao. In: BOURDIEU, P. (Ed.); MICELI, S. (Selecéo e organizacao). Liber 1. 5210
Paulo: Ed. da USP, 1997. p. 11-15.
WACQUANT, L. O legado sociolégico de Pierre Bourdieu: duas dimensoes e uma nota pessoal. Revista
de Sociologia e Politica, Curitiba: UFPR, 11. 19,:p. 95—110, nov. 2002.

14.AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS


Ge’rard Mauger

Os conceitos de autonomia e de homologia ocupam um lugar central na teoria dos cam—


pos, na medida em que, por um lado, a “autonomia” (relativa) é a condicéo sine qua non da

AUTONOMIA E HOMOLOGlA DOS CAMPOS 45


ro ria existéncia dos “camP 03” e, P or outro, a no G 50 de “homolo ia” é mobilizada 11a anélise
tanto de suas estruturas e de seu funcionamento interno quanto das relacoes entre os campos.

Autonomic:

O surgimento de campos relativamente autonomos deriva da divisao social do


trabalho (Durkheim) on da diferenciacao das atividades sociais (Weber). Os campos
mais autonomos sao aqueles que definiram uma légica propria irredutivel a de outros
campos ("nomos"): “a arte pela arte”, “negécio é negécio”, etc. Tal logica peculiar convoca
e torna ativa uma “illusio” especifica: reconhecimento técito do valor dos interesses
envolvidos no campo. O pertencimento ao campo pressupoe, além do dominio prético
das regras e regularidades que definem o seu funcionamento normal, um senso do jogo
e de suas implicacoes (um “habitus especifico”), assim como a detencao de recursos
eficientes no campo: “capital especifico”, que é uma arma nas lutas internas ao campo
e, ao mesmo tempo, 0 pretexto dessas lutas (o valor do capital economico, do capital
cultural, do capital social, etc., varia de acordo com os campos). Os limites do campo
estao ern jogo nas lutas internas ao campo, onde se trata de levar ao reconhecimento
de uma definicao de pertencimento, de impor um “direito de entrada” informal ou
institucionalizado, além de lutas externas entre os campos (a imposicao, a0 Estado,
de critérios de racionalidade economica traduz, por exemplo, o predominio crescente
do campo economico em relacao ao campo politico).
Assim, a autonomizacao da economia seria o produto da lenta evolucao que a
conduziu “a constituir-se como tal, néo so na objetividade de um universe separa-
do — regido por leis proprias, isto é, as do calculo interessado, da concorréncia e da
exploracao — mas tambérn, posteriorrnente, na teOria economica (‘pura’)” (MP). Se 0
Estado permitiu ao campo da arte e ao campo musical emancipar—se do comando da
Igreja e do clientelismo, a formacfio do mercado esta na origem da autonomizacao do
campo literério e do campo de arte, libertando—os progressivamente do controle do
Estado. Inversamente, se 0 mercado permitiu afrouxar a coercéo estatal, ele impoe,
por sua vez, a lei do lucro geradora de uma heteronomja crescente que o Estado pode
compensar pela implementacao de uma politica cultural. A autonomia (relativa)
aparece, assim, como o ponto culminante de um processo reversivel de autonomizacao
e de “depuracao” sempre inacabado, “tanto do lado da economia que reserva ainda
um lugar importante aos fatos e aos efeitos simbélicos quanto do lado das atividades
simbolicas as quais a dimensao econémica continua sendo negada” (MP),
0 “grau de autonomia” de um campo pode ser avaliado pela importancia do “efeito
de retraducao ou de refracao” que sua logica especifica impoe ‘as influéncias ou aos
comandos externos, pelo rigor das sancoes negativas infligidas as praticas heterono~
mas, pelo vigor dos incentivos positivos a resisténcia contra a intrusao dos poderes
associados a urn campo no funcionamento de outro campo (por exemplo, a tirania
de acoijdo com Pascal), pelo grau ao qual o principio de hierarquizacao interna esta
subordinado a principios de hierarquizacao externos (RA). E possivel, finalmente, nos
interrogarmossobre os efeitos da autonomizacéo de um campo. A “razao cientifica”

45> AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS


afirma-se a medida que aumenta a autonomia do campo cientifico em relacéo ‘as de-
terminacées externas. O privilégio concedido a “forma” em detrimento da “funcao”
(“a arte pela arte”) esta subordinado a autonomizacao dos campos da arte em relacao
ao campo econémico e a0 campo politico. Mas a autonomia dos campos de producéo
simbélica tem como conti'apartida seu “corte escolastico com o mundo da producao”:
“ruptura libertadora”, mas também “desconexao que encerra a virtualidade de uma
mutilacao”, geradora das “trés formas de erro escoléstico” (MP).

Homologias
A nocio de homologia estrutural desempenha também um papel—chave na teoria
dos campos. Olivier Roueif (2013) colocou em evidéncia a dupla funcao que ela exe-
cuta na analise das estruturas internas dos diferentes campos de producao simbélica:
1°) Tendo em vista que todo campo é definido como um “espaco de posicées”
organizado pela distribuicao das propriedades atuantes e um “espaco de tomadas
de posicao” definido pela distribuicéo das préticas peculiares a0 campo, a relacao
entre espaco de posicées e espaco de tomadas de posicao é uma relacao de homolo~
gia estrutural. Essa homologia é efetuada pela mediacéo do “espaco dos possiveis”,
associado a0 “ponto de vista” préprio de cada posicao no interior do campo. Na
medida em que esse ponto de vista depende, simultaneamente, do “ponto” (isto é,
da posicao) e da “vista” (ou seja, dos esquemas de percepcéo do habitus), a homo—
logia entre “espaco das posicoes”, “espaco dos possiveis” e “espaco das tomadas de
posicao” pressupoe igualmente a homologia entre espaco das posicoes e “espaco
das disposicoes” (habitus).
2°) Em cada campo, a homologia estrutural entre o espaco dos produtores e o
espaco dos consumidores fundamenta “a magia social” do ajuste inintencional entre
a oferta e a demanda: “o acordo que se estabelece [...] objetivamente entre os tipos
de produtos e 05 tipos de consumidores 56 se realiza nas acoes de consumo por meio
dessa espécie de sentido da homologia entre bens e grupos, que define o gosto” (LD).
Mas a nocao de homologia é igualmente crucial na analise das relacoes entre os
campus:
1°) As homologias estruturais regulam, por um lado, as circulacées entre 03 di—
ferentes campos e o campo do poder e, por outro, as trocas e 03 deslocamentos dos
agentes entre os diferentes campos. Considerando que cada campo esta associado a
uma espécie de capital, a passagem de um campo a outro pressupée uma conversao de
um capital especifico que se detérn, portaflto, uma taxa de conversao que é um objeto
de lutas no seio do “campo do poder”.
2°) Enfim, se cada campo possui uma forma prépria, os diferentes campos tém
igualmente propriedades invariantes, de modo que o estudo de um campo passa pelos
testes da pesquisa das propriedades gerais dos campos, colocadas em evidéncia no
decorrer de pesquisas anteriores: as relacées de homologia entre os campos autori«
zam as transferéncias racionais de esquemas explicativos de um campo a outro (LD;
BOURDIEU, 2013). Assim, Bourdieu (LD) teria enfatizado a homologia entre as oposicées

AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS 47


constitutivas dos diferentes campos de producéo simbélica (2‘1 semelhanca daquela
entre “campo de producéo restrita” e “campo da grande producéo”); a homologia
entre o campo politico (definido como o campo das lutas de classes ordinérias ou
extraordinérias, dissimuladas ou abertas, individuais ou coletivas, esponténeas ou
organizadas, etc.) e o campo de producéo ideolégica; a homologia entre o espaco da
classe dominante e o espaco das classes medias (fundada em sua estrutura em quias-
ma), etc. Tais homologias entre os campos permitem explicar n50 so solidariedades
parciais e aliancas de fato entre dominados ou entre dominantes de diferentes campos,
mas também a logica dos atos dai decorrentes, culmiuando em um duplo resultado:
tal como satislfazer, no campo intelectual, seus interesses de intelectual sob o pretexto
de servir, no campo das classes sociais, aos interesses do proletariado.

Referéncias
BOURDIEU, P. De la méthode structurale an concept cle champ. ARSS, n. 200, p. 12—37, déc.
2013. (Ihéorie des champs).
ROUEFF, 0. Les homologies structurales: une magie sociale sans magiciens? La place des in—
termédiaires dans la fabrique des valeurs. In: COULANGEON, Ph.; DUVAL, J. (Org). Trente
ans aprés La distinction de Pierre Bourdieu. Paris: La Découverte, 2013. p. 153-164.

48 AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS


25;.BACHELABQFASTQN (78844962
Vincent Bontems

' Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884 na aldeia de Bar-sur—Aube. O pai era
de
sapateiro, enquanto a mic mantinha uma banca de tabaco e jornais. A sensibilidade
Bachelard guardaré a—marca desse meio rfistico e convivial, assim como sua fala conservaré
o sotaque de sua regiao, a Champagne. Apés ter concluldo o ensino rnédio, foi bem—sucedido
no concurso de admissao aos Correios e Telégrafos, em 1903, tendo prosseguido os estudos na
area das ciéncias, gracas aos cursos noturnos. Depois da Primeira Grande Guerra, tornou—se
professor de fisica e de quimica em sua cidade natal e empreendeu estudos de filosofia. Em
1927, defendeu duas teses: Essai sur la connaissance approchée, orientada por Abel Rey,
e Etude sur l’évolution d’un probléme de physique: la propagation thermique dans les
solides, sob a orientacao de Léon Brunschvicg. Na primeira, insiste particularrnente sobre
o do
o papel desempenhado pela dupla formada pela técnica e pela matemética na construca
fato cientifico, bem como na razfio de que todo o conhecimento cientifico é, por esséncia, uma
aproximacéo. Ele guarda, assim, seu distanciamento tanto do idealismo que supoe categorias
fixas do entendimento quanto do empirismo que parte do pressuposto da existéncia de objetos
oferecidos 2‘1 observacao e coloca, no primeiro plano da anélise, as relacées entre o sujeito e
0 objeto. Na segunda tese, que se refere mais a historia das ciéncias do que a filosofia, ele jé
manifesta a principal carateristica de sua epistemologia, que consiste em apreender a ciéncia
de maneira dinamica através do progresso das teorias (cuja evolucao descontinua esté também
em relacéo com os progressos da precisao dos instrumentos de avaliacao). Essas duas obras
rompem com a nocao positivista do progresso corno acfimulo continuo.
Sua contribuicao decisiva para a filosofia das ciéncias deve muito a sua solida formacao
cientifica inicial, mas também e, sobretudo, ao fato de nao ter deixado de reatualizé—la ern
contato com revolucoes teéricas representadas pelas teorias, seja da relatividade restrita e
geral, seja da mecénica quantica. Sua escrita toma uma feicao polémica, produzindo francas
demarcacoes: em 1929, diante de Emile Meyerson, com La valeur inductive de la relativité,
obra em que mostra que a estrutura das relacoes mateméticas da teoria de Albert Einstein

BACHELARD, GASTON (1884—1962) 49


“induz” as possibilidades da realidade fisica; em seguida, diante de Henri Bergson, a partir de
1932, com L’Intuz'tion de l’instant, livro que critica a nocéo da duracao absolute e continua
em nome da relatividade dos tempos proprios e de uma concepcao instantanea do tempo.
Em 1934, o Nouvel esprit scientifique preconiza a substituicao do método cartesiano —
considerado por ele como ultrapassado — por um método mic cartesiano; a reducéo de um
fenomeno a seus elementos mais simples jé nao é operante quando se impoe, com a mecanica
quantica, a complexidade fundamental dos fenomenos. Além disso, a certeza absoluta obtida
ao termo de uma dfivida hiperbélica é ilusoria quando o trabalho do pesquisador se carac-
teriza, pelo contrério, por uma certeza provisoria e perpetuamente revisivel em funcao da
experiencia. Ele introduz também os conceitos “nfimeno matemético” e “fenomenotécnico”,
ambos tornando-se a caracteri’stica da fisica contemporanea: a matemética nao é apenas
uma linguagem, mas exprime a estrutura da realidade fisica. Por outro lado, os fenomenos
estudados pelos fisicos nao sao fatos oferecidos a observacao direta, mas efeitos produzidos
no interior de dispositivos tecnolégicos que atualizam potencialidades naturais. Em 1938,
em seu livro, La Formation de l’esprit scientifique: contribution a une psychanalyse
de la connaz‘ssance objective, ele coloca em evidéncia os obstaculos epistemologicos
que impedem o progresso da mente, seja no ensino ou na historia das ciéncias. Seu bom
conhecimento do alemao permitiu-lhe também, no decorrer dos anos 1930, manter—se a0
corrente dos trabalhos germanicos (Hans Reichenbach, Martin Buber, a fenomenologia,
a psicanélise). Durante a Segunda Grande Guerra, ele desafiou os rigores da ocupacao do
territério francés pelas tropas nazistas e retomou a cétedra de Rey na Sorbonne (assim
como a presidéncia do Institut d’Histoire des Sciences), escreveu La Philosophie du non,
que insiste na necessidade de reformar a filosofia em funcao dos progressos da ciéncia, e
desenvolveu uma nova linha de pesquisa sobre o imaginario dos elementos. Apés o fim da
guerra, produziu ainda obras decisivas em epistemologia: Le rationalisme applique (1949),
livro em que define o conceito de “ruptura epistemolégica”; e L’Activite’ rationaliste de la
physique contemporaine (1951), obra em que mostra o caréter recorrente dos progressos
cientificos. Ele encarna entao a figura dominante da filosofia das ciéncias, mas deixa de
produzir nesse dominio apos a publicacao, em 1953, do livro, Le matérialisme rationnel,
para se consagrar a poética. Durante esse periodo de consagracao, recebeu honras civis e
foi solicitado pela radio e, em seguida, pela televiséo.
Nao é certo que Bourdieu tenha seguido suas aulas na Sorbonne; no entanto, com toda
a certeza, acabou recebendo o eco de suas licoes atrave's do ensino de Georges Canguflhem,
além de citar profusamente seus livros. De Bachelard, Bourdieu retém a exigéncia primordial,
a saber, que um fato cientifico é uma canstrucéo racional e técnica. Fazer obra de cientista
consiste em desprender—se das evidéncias do senso comum, que $50 outros tantos obstéculos
epistemologicos, a fun de operar uma “ruptura epistemologica". Como o fato social nao pode
resultar da simples observacao, ele reclama uma objetivacao quantitative e objetiva. A obra
Le métier de sociologue (1968), escrita com Jean—Claude Passeron e lean-Claude Chambo-
redon, constitui, nesse sentido, um manual verdadeiramente “bachelardiano”: a critica das
prenoqoes, preconizada por Emile Durkheim, é apresentada nesse livro como a dissolucéo
dos obstéculos epistemologicos, enquanto os processes de objetivacao quantitativa, tais
como as estatisticas, sao considerados como um esforco de dessubjetivacao. Bourdieu retoma

50 BACHELARD, GASTON (18844962)


mt.
também de Bachelard a exigéncia do controle reflexive do pesquisador sobre sua prépria
producao: a insisténcia em relacao a necessidade de uma “sociologia da sociologia” apa-
renta—se com a “Vigilancia racionalista” do espirito cientifico. Em seu livro Science de la
science at re’flexivite’ (2001), lembra o que sua prética da sociologia deve, nesse aspecto,
a Bachelard. Enfim, 0 mode de construcao analégica dos conceitos da sociologia, assim
como a ontologia relacional que lhe é inerente, sao pensados precisamente em relacao com
as analises de Bachelard. Bourdieu destaca, a propésito do conceito de “campo”: “O modo
de pensamento relacional e analogico, que o conceito de campo favorece, permite captar a
particularidade no interior da generalidade e a generalidade no interior da particularidade,
facilitando considerar o caso francés [do ~heme academicus], enquanto ‘caso particular
do possivel’, como diz Bachelard” (R, 54). '
O paradoxo da filiacao entre Bachelard e Bourdieu resulta do fato de que as ferra-
mentas conceituais, forjadas para tirar a filosofia do trilho escoléstico, sao mobilizadas
por Bourdieu para assegurar a autonomia relativa da sociologia, desvinculando—a da
filosofia que é apresentada, muitas vezes, como uma disciplina puramente retorica.
Assim, a ruptura epistemological parece revirada contra seu campo. Mas esse paradoxo
se desfaz desde o momento em que se percebe, por trés das criticas acerbas contra “a”
filosofia, que a fronteira metodolégica da construcao racional atravessa realmente todas
as disciplinas. Na maior parte dos livros de Bourdieu encontram-se referéncias esparsas,
as vezes alusivas, mas sempre elogiosas, a Bachelard, particularmente quando se trata
de explicitar o método. A semelhanca do que ocorreu com alguns outros filosofos (Ernst
Cassirer, Jules Vuillemin, Ludwig Wittgenstein), o filésofo de Bar—sur-Aube passa per set
urn heterodoxo frequentével, tendo eie préprio criticado bastante as pretensoes abusivas
dos filésofos presuncosos para poder ser citado sem correr o risco de por em causa a
cientificidade da sociologia.

16. EAL 055 CELIBAMIRES (LE): CRISE DE LA SOCIETE


PAYSANNE EN BEARN
Afrfinia Mendes Catani

BOURDIEU, P. Le bal des célibataires: crise de la sociéte’paysanne en Be’arn, Paris: Seuil, 2002.

Bourdieu morreu dois meses antes de esse livro ser publicado. Ele escreveu uma introducao,
em julho de 2001, mapeando o contefido da obra, explicando que os trabalhos remetem em
trés ocasioes ao mesmo problema, porém, em cada caso, com “uma bagagem teérica mais
profunda, perque é mais geral e, nao obstante, tern maior base empirica”. Assim, podem
ser interessantes para aqueles que desejam seguir uma investigacao segundo a logica de sen
desenvolvimento e convencédos de que “quanto mais se aprofunda a analise teérica, mais
Préximo se esta dos dados da observacao”.
O primeiro artigo, “Célibat et condition paysanne”, foi publicado em Etudes rurales
(1962); “Les stratégies matrimoniales dans le systéme de reproduction” nos Annales (1972),

EAL 055 (EL/EA TAIRES (LE): CRISE DE LA sum-‘75 PAYSANNE EN BEARN 51


enquanto “Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique”
em Etudes RumZes (1989). Ha, ainda, um posfécio, “Une classe objet”, originalmente divul~
gado em Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1978).
Sua analise é matizada a partir de questao fundamental: como é possivel que, em uma
sociedade assentada tradicionalmente no direito dos primogénitos, sao justamente estes que
ficam solteiros? No artigo inicial elabora o que chama de “um Tristes trépz'cos as avessas”,
entrevistando velhos solteiros de sua geracéo e da de seu pai (que o acompanha em grande
parte delas, falando bearnés e ajudando “com sua presenca e discretas intervencoes, a des—
pertar a confianca e a confidéncia”). Acrescenta que a contencao objetivista de seu propésito
se deve, em parte, "ao fato de que tem a sensacao de cometer uma espécie de traicao, O que
me levou a rechacar qualquer reedicéo de textos, a 1150 ser em revistas eruditas de escassa
difusao, protegidos contra as leituras mal-intencionadas ou voyeuristas”.
“Les strategies matrimoniales dans le systeme de réproduction” marca de forma manifesta a
ruptura com 0 paradigma estruturalista através da passagem da regra a estratégia, da estrutura
ao habitus e do sistema ao agente socializado, “por sua vez animado on influenciado pelas
estruturas das relacoes sociais da qual e’ produto’l Publicado em Annales, uma revista de
histdria, “como para assinalar melhor a disténcia com relacao a0 sincronismo estruturalista”,
foi escrito com Marie~Claire Bourdieu. .
“Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination” permite compreender
de forma data a unificacao do mercado de bens simbélicos em escala nacional, condenando
a “uma repentina e brutal desvalorizacéo aqueles que tinham a ver com o mercado protegido
dos antigos intercambios matrimoniais controlados pelas famflias”. A busca da parceira vai
depender, entao, diretamente da iniciativa do interessado.
Bourdieu mostra o éxodo das jovens que jé nao querem mais trabalhar em oficios de
camponeses e fala da exclusao do mercado das trocas matrimoniais de um grande contin-
gente de primogénitos solteiros na faixa dos 30 anos. No baile, que representa urn verdadeiro
choque de civilizacoes, eles ficam ao redor da pista, mas n50 dancam, privilégio reservado
aos mais jovens. Atrave’s do baile o mundo da cidade penetra na Vida do campo, revelando
seus modelos culturais, sua musica, suastécnicas corporais. As mudancas nos costumes,
impostas pela Vida moderna, tornaram obsoletas as praticas tradicionais, convertendo
este livro, dedicado a0 seu Béarn natal — regiao rural do sudoeste da Franca, préximo aos
Pireneus —, em uma obra intima e bela e, o que é mais relevante, em trabalho etnografico
de primeira linha.

Denis Baranger

“Lucas, jovem sociélogo parisiense, retorna a seu Béarn natal para empreender uma
pesquisa sobre o celibato entre os camponeses” — eis o que era anunciado pelos jornais, em
2004, por ocasiao do lancamento, nas salas de cinema, do filme Vert Paradis [Parai’so verde]
de Emmanuel Bourdieu, o filho cagula de Pierre Bourdieu que, ale’m de filésofo formado
na Ecole Normale Supérieure, é cineasta. Alias, uma versao abreviada dessa pelicula jé

52 BEARN
tinha sido difundida anteriormente pelo canal de televisao ARTE, sob o titulo Les cadets de
Gascogne [Os caculas da Gasconha}.
NamgadoBanLoflhmwdehmwmméamnanmdeohgudamfinda&
Pierre Bourdieu, antes de ele se tornar sociologo, em Paris. Seu pai, Albert, que pertencia
a uma familia de meeiros, acabou exercendo a profissao de carteiro (e, posteriormente,
contador) na agéncia de correios local, depois de se casar corn Noémie, que fez um ca-
samento socialmente desfavoravel (por ser filha cacula de uma importante familia de
agricultores da regiéo). Pierre Bourdieu cursou o ensino rnédio como alunoointerno no
Lycée Louis—Barthou, em Pau, a capital da regiao, manifestando—se simultaneamente born
aluno e menino travesso, ou seja, seu jeito de viver a contradicao “entre uma elevada
consagracao escolar e uma baixa extracao social” (BAA, 127). Gracas a0 diretor desse
estabelecimento de ensino, Bernard Lamicq - “um dos raros, senéo o unico estudante
natural do Béarn, a se formar na Ecole Normale” —, ele conseguiu uma vaga, em Paris, para
fazer a khégne (curso preparatorio para a Escola Normal Superior), igualmenre como alu-
no—interno, no Lycée Louis-le—Grand e, depois, na propria Escola Normal Superior, situada
na rua d’Ulm, em Paris. Tal percurso ira transforma-lo em um “milagroso” social — ou ‘
urn “transfuga filho de transfuga” -. habitado por urn habitus clivado “gerador de toda a
espécie'de contradicoes e tensoes” (SSR, 214).
Mas, para Bourdieu, o Béarn é sobretudo seu terreno privilegiado, comecando por sua
pesquisa de 1959 60, que culminara em urn de seus mais célebres artigos de juventude sobre
o mistério do celibato dos primogénitos, nessa regiao de pequenos produtores agricolas em
que “a funcao primordial do casamento consistia em garantir a continuidade da linhagem
sem comprometer a integridade do patrimonio (BOURDIEU, 1962, p. 34). E ele nao cessaré
mais de retomar o estudo dessa questao (BOURDIEU, 1972,1989)
Quando 1niciou sua pesquisa na regiao do Béarn, Bourdieu ainda residia na Argélia,
desenvolvendo esse estudo simultaneamente aquele sobre os cabilas. $510 as mesmas ques-
toes que o preocupam, e sua reflexéo sobre cada um desses campos se alimenta daquela que
produz sobre o outro. Em Varias oportunidades, ele definiu seu retorno ‘a terra natal como
“um Tristes tropiques ‘as avessas”: “Minhas pesquisas sobre o casamento no Béarn forarn
para mim o ponto de passagem, e de articulacao, entre a Etnologia e a Sociologia. De saida,
havia concebido esse trabalho sobre minha propria regiao de origem como uma espécie de
experimentacao epistemologica: analisar como etnologo, num universe familiar (a 1150 ser
pela distancia social), as praticas matrimoniais que eu havia estudado nurn universo social
mais distante, a sociedade cabila, significava me dar uma oportunidade dc objetivar o ato de
objetivacao e o sujeito objetivante” (CD, 75).
A transicao da Etnologia para a Sociologia éfvisivel no fato de que, no artigo de 1962, veri-
fica-se o recurso insistente ‘a estatistica, procedimento deplorado por alguns autores que nao
deixam de reconhecer sua natureza grandemente etnografica (JENKINS, 2006). No entanto, ele
deve ser entendido, sobretudo, em relacao ‘a passagem de um universo estranho — a Cabflia,
que representa o tipo de objeto tradicionalmente antropologico — ao mundo de sua infancia
E, por conseguinte, a uma relacao mais “sociologica” com o objeto. Esse é o primeiro nivel de
significagao — se quiserrnos, “epistemologica” — dessa reviravolta mencionada por Bourdieu
(mesmo que, na realidade, ele nunca tenha se importado muito com as diferencas disciplinares).

BEARN 53
Mas, e isso é importante, a reviravolta refere~se também — depois de “La maison Kabyle”, seu
“filtimo trabalho de estruturalista feliz” (SP, 22) — a uma evolucao decisiva de seu sistema teérico:
a passagem “da regra ‘as estratégias” (CD), em ruptura com o estruturalismo de Levi-Strauss, a firm
de deixar de conceber a prética como uma execucao mecanica da regra. Uma observacao banal
desua mae é que ira ajuda-lo a operar essa passagem: “Eles viraram parentes dos fulanos, desde
o momento em que urn deles se formou na Polytechnjque” (EAA, 86). Desse modo, ele mostra
que a prética é criada, nao pela regra — menos ainda, pelo modelo ~, mas pelos préprios agentes,
dotados de uma capacidade de manipular, nao necessariamente de forma consciente, as regras.
As arvores genealogicas 1130 Sac senao uma invencao do etnélogo e, portanto, a0 paren-
tesco oficial, convém opor o parentesco prdtico, aquele que se encontra verdadeiramente
em acéo através dos habitus; “As relacoes de parentesco efetiva e atualmente conhecidas,
reconhecidas, praticadas e, como se diz, ‘mantidas’, sao, para a genealogia construida, o
que a malha rodoviéria mantida, de fato, em boas condicées, frequentada, desimpedida,
portanto, facil de acesso - ou melhor ainda, o que o espaco hodolégico dos entroncamentos
e dos percursos realmente efetuados — é para o espaco geométrico de um mapa enquanto
representacao imaginéria de todos os caminhos e de todos os itineraries teoricamente pos-
? siveis. Prolongando a metéfora, as relacées genealégicas desapareceriam rapidamente, como
caminhos abandonados, se elas nao recebessem uma manutencao continua, mesmo que se
forem utilizadas de forma descontinua” (BOURDIEU, 1972, p. 1108).
O te‘ma fundamental dos “usos sociais do parentesco” sera desenvolvido plenamente em
Le sens pratique e, por esse meio, é todo o estatuto da teoria juridica e antropolégica do
parentesco que se encontra questionado, considerando que “as relacoes de parentesco sao
algo que se faz e com as quais se faz algo” (SP, 279).
E fécil mostrar como essa reflexéo culmina rapidamente na ideia de capital social (embora,
na época, tal nocao ainda tendesse a se confundir com a de capital simbélico): “Se as pessoas
socialmente mais bem situadas tém também as maiores famflias, enquanto os ‘parentes pobres’
sao também os mais pobres em parentes, é porque, neste dominio como em outros setores,
0 capital converge para 0 capital, tanto mais que a meméria da parentela e a propensao a
manté—la sao funcao dos lucros materiais ou simbélicos que podem ser auferidos quando se
pratica o parentesco” (BOURDIEU, 1972, p. 1109).
Certamente, em “as categorias de parentesco instituem uma realidade” (SP, 287), trata-se
de construcées sociais. Mas os agentes tém a capacidade de servir-se dessas “realidades”, tendo
como implicacao que “alguns casamentos idénticos, miicamente sob o aspecto genealégico,
podem revestir significacoes e desempenhar funcées diferentes, inclusive opostas, dependendo
das estratégias em que estao inseridos” (SP, 290), afirma ele, em ruptura igualmente com o
nominalismo positivista da antropologia britanica. De fato, “contra a tradicao antropolégica
que aborda cada casamento como uma unidade auténoma [...] cada transacao matrimonial so
pode ser compreendida como um memento. em uma série de trocas materiais e simbélicas.
Deste mode, 0 capital economico e simbélico que uma famflia pode investir no casamento
de um de seus filhos vai depender, em grande parte, da posicao ocupada por essa troca na
historia matrimonial da famflia” (BOURDIEU, 1972, p. 1120).
Assim, “o casamento nao é o produto da obediéncia a uma regra ideal, mas o desfecho
de uma estratégia que, pondo em acao os principios profundamente interiorizados de uma

54 BEARN
tradicéo particular, pode reproduzir —— de maneira mais inconsciente do que consciente —-, esta
ou aquela solucio tipica nomeada explicitamente por essa tradicao” (BOURDIEU, 1972, p. 1107).
A regiéo do Béarn, longe de ser um capitulo encerrado na evolucao do pensamento de
Bourdieu, nunca deixou de figurar no amago de sua teoria da prética.

Referéncias
BOURDIEU, P. Célibat et condition paysanne. Etudes Rurales, v. 5-6, p, 32—136, 1962.
BOURDIEU, P. Les strategies matrimoniales dans le systéme de reproduction. Annales, v. 4—5,
p. 1105—1127, 1972.
'BOURDIEU, P. Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique.
Etudes Rurales, v. 113-14, p 15-36, 1989.
JENKINS, T. Bourdieu’s béarnais ethnography. Theory, Culture 69 Society, v. 23, n. 6, p. 45—72, 2006.

18. BENS SIMBOLICOS (Economia dos)


Gisele Sapiro

A economia dos bens simbélicos desenvolvida por Bourdieu esté enraizada em uma critica
do economicismo que :eduz as trocas a0 calculo interessado. Seus primeiros estudos sobre
sociedades pré-capitalistas ~ 21 Cabilia, na Argélia ainda colonia francesa, e sua regiéo natal do
Béarn, no sopé dos Pirineus — e, em seguida, seus trabalhos sobre os campos literério, artistico,
religioso e cientifico, revelam a dimensao simbélica das trocas, cuja funcao consiste em torné—las
irreconheciveis como tais. O economicismo que se consolidou a partir do século XVIII é apenas
uma forma particular da economia das préticas e das trocas. Além disso, se ele se impos como
paradigma dominante com o capitalismo triunfante, alguns universos — tais como os campos
de producéo cultural ou cientifica — continuam funcionando de acordo com os principios da
' economia pré-capitalista, enquanto o paternalismo mostra que tais formas denegadas de domi—
nacao subsistem no préprio {image do campo econémico. Essa teoria passou por reformulacoes
sucessivas ao longo de sua obra, desde Esquisse d’une théorie de lapratique (1972) até Raisons
‘ pratiques (1994), livro em que se encontra sua versao mais acabada e mais sintética, passando por
Le sens pmtique (1980). Os trabalhos sobre a literatura, a arte, a religiio e a ciéncia — universes
em que prevalece “o interesse pelo desinteresse” — constituem sua ilustracéo.
0 sense de honra e o dom $50 05 dois exemplos paradigméticos do modo de funciona—
mento da economia dos bens simbélicos: eles se baseiam na recusa do célculo, da logica do
valor, que esté na origem do economicismo. Nao é suficiente objetivar a realidade da troca,
tal corno faz Levi—Strauss a propésito do dom e do contradom, para levé-la em conta, porque
ela é dissimulada pelo intervalo temporal que introduz também alguma incerteza relativa—
mente a reciprocidade.
Assim, a primeira caracteristica da economia dos bens simbélicos é a denegacao da
economia economicista, ou seja, do calculo em termos de interesse: o interesse economico
é “recalcado”, “censurado”. A segunda, correlata da primeira, é a transfiguracao dos atos
economicos em atos simbélicos: essa alquirnia requer um investimento constante por parte

BENS SIMBOLICOS (Economia dos) 55


dos agentes para eufemizar o carater interessado da troca, investimento que nao depende
de uma estratégia cinica, mas de um conjunto de disposiqées para instalar as formas, para
dissimular as expectativas de reciprocidade no dom, por exemplo, ou para ocultar o valor (tal
como ocorre quando se retira a etiqueta do preco em urn objeto destinado a ser oferecido).
Ao deslocar a explicacao do ato da intencao para as disposicées, Bourdieu destaca o papel
do processo de socializacao na transmissao dessas praticas institur’das, cuja transgressao é
suscetivel de ser punida ou repreendida. O “trabalho coletivo de recalcarnento” (RP, 212) so
é possivel se 05 agentes compartilharem os mesmos esquemas de percepcao e de apreciacao.
Em decorréncia desse trabalho constante de transfiguracao, a economia dos bens s'unbolicos é
uma “economia fluida e indeterminada” que se apoia no “tabu da explicitacao”; as préticas dal’
oriundas 3510, por conseguinte, “sempre amblguas, corn dupla face 8, até mesmo, aparentemente
contraditdrias (por exemplo, os bens tém al um preco e 5510 ‘sem preco’)” (RP, 211). Terceira
caracteristica da economia dos bens simbdlicos: é no decorrer da circulacao dos bens que
se acumula 0 capital simbdlico, espécie de capital cuja eficiéncia tern a ver com a percepcao
pelas pessoas a volta (cla, trlbo, classes, campo) de uma propriedade, tal como a riqueza, o
valor do guerreiro ou o valor cultural. Ainda neste aspecto, o valor simbélico é reconhecido
com base em categorias compartilhadas de percepcao e de julgarnento.
E também essa partilha dos valores fundamentals que sustenta a illusio, ou seja, a crenca
no principle da adesao dos agentes aos campos literario, artistico, cientifico, religioso. Para
compreender a origem dessa crenca, Bourdieu decide estudar, em um artigo publicado em
1971, as condicoes de surgimento de um “mercado dos hens simbolicos” que é correlato do
processo de autonomizacao dos carnpos literario e artistico ern relacao ao clientelisrno e ao
mecenato. A aparigao de instancias especlficas de difusao (editores, galeristas) e de consagra—
oao (academias, saloes de pintura, prérnios), produtores de valor nesse mercado, faz com que
os bens culturais nao possam ser avaliados de acordo com critérios puramente economicos
(faturamento, preco dos quadros); ou, em todo caso, faz com que 0 valor economico desses
itens seja medlado por seu valor simbolico. O julgamento estético é paralelamente objeto de
especializagao: crltlcos literarios, de arte, de mdsica participam do processo de valorizacao das
obras e, diante dos profanos, reivindicam o monopolio da competéncia sobre a area do criacao
em pauta. Como mostra Bourdieu em Les régles de l’art (1992), essas diferentes instancias
contribuem para a formacao, a partir de meados do século XIX, de urn polo de producao
restrita dos bens culturais que proclama a supremacia do valor estético sobre os critérios do
sucesso economico que prevalece no polo da grande producao (tais corno o faturamento a
curto prazo). Trata—se, portanto, de uma “econornia invertida”, que se baseia na denegacao
da dimensao economica da atividade de criacao (BOURDIEU, 1983).
A dissociacao entre valor estétlco e valor mercantil, que caracteriza 0 polo de producao
restrita desse mercado de bens simbolicos, além de servir de fundamento a autonomizacao
dos campos de producao cultural, assume formas variadas segundo 0 medium ou sob
configuracoes diferentes, desde a figura romantica do dandy até a sacrallzacao do “artista
maldito”, mas elas 5210 a expressao da ética do desinteresse do artista ou, pelo menos, de sua
recusa em submeter-se as condicionantes externas (economicas, pollticas, morals) que a
sociedade tenta lhe impor. Se os modelos “empresariais” de um Balzac ou de um Beethoven
lembram que as carrelras artisticas nao escapam a essas pressoes, elas mostram também o

56 BENS SIMBOLICOS (Economia dos)


trabalho de negociacao necessério para se impor sern fazer concessées as expectativas sociaiS.
Mas, quase sempre, tais negociacoes sao assumidas por urn intermediario — editor, dono de
galeria, agente— que, ao livrar o artista da suspeita do interesse implicada inevitavelrnente
pelos atos de autopromocao, participa da cadeia da producao da crenca” na obra, de acordo
corn 0 titulo do artigo que, em 1977, Bou‘rdieu dedicou a relacao entre o escritor e o editor. A
semelhanca da grife do costureiro, o editor apoe de fato sua rnarca sobre a obra, contribuindo
para conferir-lhe seu valor por uma operacao “mégica ’de transferéncia de capital sitnbélico
Essa troca simbélica faz com que a relacao entre o autor e o editor nao possa ser reduzida a
um simples contrato: altarnente personalizada, ela oscila entre o encantamento das relacoes
baseadas nas afinidades eletivas e o ressentimento engendrado pela dependéncia e pelas
formas de exploracao que a acompanham.
Essa relacao complexa entre o autor e seu editor, on entre o artista e o dono da galeria, deve-se
ao fato de que a economia dos bens simbolicos apoia—se corn maior frequéncia no investimento
desinteressado nao apenas do criador, mas tambérn do intermediério que aposta em sua obra.
Com efeito, esse investirnento baseado na crenca 11a obra esta marcado pela incerteza e pelo
risco, nomeadamente em relacao ‘as obras inovadoras que térn dificuldade para se impor no
mercado. E é um investimento - muitas vezes, deficitario no piano economico — que aposta no
, ,longo prazo. De fato, uma das caracteristicas da economia dos bens simbolicos é a temporali-
dade: o trabalho de reconhecirnento de uma obra requer tempo e inscreve-se na longa duracao.
E apenas no decorrer on no final do'processo de consagracao ~ se isso vier a acontecer — que
o valor simbolico é suscetivel de se reconverter em valor mercantil. As vezes, respaldado pela
obtencao de prémio, esse processo pode avancar até a entrada no panteao escolar quando a
obra é consagrada corno um classico (muitas vezes, bem depois do obito do autor), mas nao
hé nada de linear ou de garantido. Esse investirnento de longo prazo do intermediario nao
é totalmente desinteressadoz ele lhe granjeia recompensas simbolicas, tais como a estima e
0 reconhecirnento do circulo literario e artistico por seu discernimento e por sua coragem,
contribuindo assirn para manter e reforcar seu “crédito”, ou seja, seu capital simbolico. No
entanto, tais apostas arriscadas exigem urna economia complexa de distribuicao igualitaria
que consiste ern compensar as perdas relacionadas a urna obra por ganhos obtidos em outra,
3a consagrada ou que faz parte do circuito da grande producao, de ac'ordo com uma formula
praticada cornurnente pelos grandes editores. Essa economia apoia~se também Inuitas vezes
em ajudas, publicas ou privadas (fundacoes filantropicas, mecenato), que sio outras tantas
formas modernas de patrocinio que dao testemunho do reconhecimento social, adquirido
pela criacao artistica. As estruturas menores recorrem tambe'rn ao trabalho voluntario, que
é a forma mais extrema de investimento desinteressado por parte dos intermediarios, e a
expresséo mais pura de sua crenca em tal investirnento.
Essa economia dos bens simbolicos, observa—se igualmente no campo religioso que,
inclusive, forneceu 0 respectivo modelo aos campos de producao cultural. Bourdieu (RP)
mostra, corn efeito, que a Igreja é um empreendirnento economico que se denega corno tal. Essa
denegacao é manifesta na recusa em reconhecer as relacoes de trabalho no seio da Igreja e no
recurso macico ao voluntariado. As relacoes de producao e de exploracao dentro da Igreja sao
eufemizados através do modelo das relacoes familiares, ao qual é tornado de empréstimo o ideal
da fraternidade. De forma mais geral, o trabalho de transfiguracao observa—se na economia

BENS SIMBOLICOS (Economia dos) 57


da oferenda que caracteriza todas as religioes: 0 material nunca é oferecido a divindade em
sua forma bruta, mas sob uma forma trabalhada (ouro trabalhado).
O campo cienti'fico é outro universo caracterizado pelo interesse no desinteresse quando
sao preenchidas as condicoes de sua autonomia (BOURDIEU, 1976). Esse universe tern a seguinte
propriedade: os principais clientes das producoes 550 os pares e, portanto, os concorrentes na
luta pela autoridade cientifica. O interesse especifico que orienta as estratégias dos agentes
neste campo tern sempre, por conseguinte, uma dupla natureza: interesse cientifico “puro”
e interesse no sentido da busca de reconhecimento que permanece, no entanto, irredutivel
unicarnente ‘as motivacoes politicas ou economicas. E por isso que Bourdieu rejeita, alias, o
relativismo epistemologico. O interesse no desinteresse, associado a0 controls coletivo exercido
pelo campo, é uma das condicoes de sua autonomia, mesmo que ela nunca deixe de ser relativa.
Finalmente, a economia dos bens publicos e do campo burocrético é igualmente um espaco
caracterizado pela denegacao da economia, através das nocoes de servico publico e de interesse
geral que pressupoem o desinteresse dos agentes investidos em tais funcoes, mesmo que —
como sublinha Bourdieu (RP, 211) — este campo n50 tivesse chegado a “obter dedicacoes tao
completas quanto aquelas conseguidas pela famflia (ou, até mesmo, pela Igreja)”. Essa ética esté
atualmente ameacada pelas politicas neoliberais e pelo newpublic management, que introduz
a racionalidade economica na gestao das politicas publicas, em detrimento da nocéo de service
publico. A partir de meados dos anos 1990, Bourdieu mobilizou-se vigorosamente contra essa
ideologia neoliberal. Urn de seus ultimos livros foi dedicado as Structures sociales de l’éco—
nomie (2000): nesse texto ele analisa, através do caso do mercado da habitacao, na década de
1980, 05 rnecanismos sociais que regulamentam o funcionamento da economia, reintegrando
a dimensao simbélica e social das préticas dissimulada pelos economistas, sem deixar de levar
em conta as logicas de campo (o dos construtores) e o papel do Estado (através das politicas de
moradia). Ele teré assim levado a seu termo a reflexao que havia empreendido em suajuventude.

Referéncias
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Année Socialogique, v. 22, p. 49—126, 1971.
BOURDIEU, P Le champ scientifique ARSS,'n. 2 3, p 88-104, jun. 1976.
BOURDIEU, P La production de la croyance: contributiona‘ une éconornie des biens symboliques.
ARSS, v. 13, p. 3 43,1977.
BOURDIEU, P. The Field of Cultural Production, or: The Economic World Reversed. Poetics, v. 12,
11.4-5, p. 311-356, 1983.

19. BOA VONTADE CULTURAL


Andre'a Aguiar

E em La distinction: critique sociale dujugement (1979) que Bourdieu desenvolve mais


amplamente sua nocao de boa vontade cultural”, ao descrever as caracteristicas particulares
que definem a relacao das classes médias com a cultura. Uma relacao que, segundo ele, se
constitui no elemento mais tipico do estilo de Vida desse grupo social, cuja trajetoria registra

58 BOA VONTADE CULTURAL


a passagem do estado de privacao aquele da pretensao (PVD, 54). Fazendo uso do termo “pe—
quena—burguesia”, no entanto, que ele se reportou a tais segmentos, no intuito de demarcar,
com o adjetivo “pequeno”, a moral, a hexis corporal, enfim, “tudo o que diz, pensa, faz, tem
ou é o pequenovburgués [...] urn homem que deve fazer-se pequeno para passar pela porta
estreita que dé acesso a burguesia” (BOURDIEU, 1974, p. 25).
O principio da “boa vontade cultural” reside na distancia entre o reconhecimento — do valor
e dalegitimidade — de determinados produtos e praticas culturais, e o conhecimento - de fato,
em termos de apropriacao, incorporacao — destes. A prova de tal reconhecimento o autor aponta
na propensao dos sujeitos ~ sobretudo em situacao de entrevista ~ a esconder sua ignorancia e a
tomar corno suas praticas e escolhas que avaliam como as mais legitimas, as mais nobres: um
modo, segundo ele, de homenagear a legitimidade cultural. Sua obstinacao, admiracao e devo—
cao a cultura — recurso cuja auséncia é percebida corno privacao — sao expressos em avaliacoes,
escolhas e investimentos marcados por uma “reverencia indiferenciada que mistura avidez
e ansia”, geralmente acornpanhada de um sentimento de indigm'dade. “O pequeno-burgués é
reveréncia diante da cultura [...] inclina—se diante de tudo aquilo que pode parecer cultura [...]”
(LD, 370). Ansia que se traduz no apelo permanente a autoridades e modelos de conduta, bem
come no evitamento de riscos. Como exemplo tipico, citado pelo autor, figuram as preferéncias
, de leitura, que nao ousam ultrapassar a linha de seguranca dos classicos ou prérnios literérios.
Avidez que se faz visivel, por sua vez, na inclinacao a acumulacao, ao entesouramento, a exemplo
da interpretacao do homem culto corno detentor de um tesouro de conhecimentos.
As propriedades que definem umaposturaparticular dlante do capital cultural sao identificadas
pelo autor 11a relacao desses individuos com a moral. Isso significa que a “boa vontade cultural”
tern um correspondente no plano moral: o ascetisrno dos grupos intermediérios, expresso numa
disciplina, muitas vezes imposta a todos os membros da familia, inteirarnente subordinada aos
imperativos de uma ascensao vivida e que deve ser perpetuada por meio de renuncias, contencoes
e boa vontade. Uma disciplina ascética que se constituj numa forma de pagamento em sacrificio,
’ funcionando como garantia moral a avalizar seu baixo volume de capitais. Dal as disposicées
marcadas pelo rigor, pelo esforco, pelo controle, a exemplo daquele exercido na limitacao da prole
(malthusianismo), restrita, em geral, a um ou dois descendentes, sobre os quais recai concentrada
toda a esperanca futura da famflia, de prolongamento de uma trajetoria ascendente iniciada. Para
essa classe interrnedjéria, tudo ocorre como se 0 passado de privacoes atuasse em seu presente,
exercendo uma forca contraria, negativa, como poder de limitacao e contencao, manifestada em sua
conduta: “uma sede quase insaciavel de técnicas e regras de conduta que leva a submeter toda a exis~
téncia a uma rigorosa disciplina e a se governar em todas as coisas, por principios e preceitos [...]”
(LD, 382). E nesse sentido que as préticas, que concentram investirnentos e regulam gastos,
revelam—se menos voltadas para o presente — este inteiramente comprometido corn as exigéncias
da ascensaoz “Toda a existéncia do pequeno—burgués ascendente é antecipacao de um futuro que,
na malaria das vezes, nao poderé viver, senao por procuracao, por intermédio dos filhos, para os
quais ‘transfere, como se diz, suas ambicoes’. Espécie de projecao imaginéria de sua trajetéria
passada, 0 future que sonha para o seu filho devora seu presente” (BOURDIEU, 1974, p. 20).
Assinalando a importancia do sentido da trajetoria, mais do que a posicao de fato, ele loca-
liza, entre trés fracoes da pequena burguesia (LD, 398—421), urn maior ou menor gran de boa
vontade e ascetismo. Assim, sao préprios da “pequena burguesia de execucao” — em trajetoria

BOA VONTADE CULTURAL 59


ascendente ~ a boavontade cultural em seu estado puro, bem como um rigorismo ascético mais
acentuado, enquanto a “pequena burguesia em declinio” seria mais demarcada pelo pessimismo
e um conservadorismo que orienta acoes e preferéncias austeras e tradicionais. Em oposicao
mais evidente a0 primeiro grupo figura a terceira fracéo, a “nova burguesia”, relativamente
mais dotada de capitais — cultural, social ou economico —, atuante em profissoes novas e em
expansao, mais aberta aos riscos e, nesse sentido, memos refém da boa vontade e do ascetismo.
Quando tomados em seu conjunto, os grupos em questao distinguem-se por sua in-
capacidade de estabelecer com a cultura uma relacéo de real familiaridade que autoriza
liberdades e audacias (LD, 381). 1530 porque 0 mode tardio, metédico e esColar de aquisicao
de capital cultural deixa marcas indeléveis em suas disposicoes, distantes daquelas de
desenvoltura e seguranca de 31 — e de suas escolhas — que definem as acées dos detentores
da cultura legitimada. E nesse sentido que a “boa vontade cultural” dos pequeno-burgueses
acaba por trair seus esforcos vigilantes, mas fracassados — a exemplo da hipercorrecao
linguistica —, incessantemente empregados na tentativa de apagar, eliminar os vestigios
dessa “marca de origem” (PVD). Todos os seus movimentos, estratégias e investimen-
tos, que visam também evidenciar sua distancia das fracoes mais desprovidas de capital
cultural, so fazem realcar sua deferéncia e tornar, por vezes, caricatural uma relacao com
a cultura construida por meio da racionalizacao, do esforco e dependente de regras e
preceitos. O caso extremo dessas condicoes, a boa vontade cultural em seu estado exacer—
bado, pode ser identificado no autodidata, cujo empenho em fazer reconhecer seu saber,
nao certificado e sancionado pela instituicao escolar, remete inevitavelmente a seu modo
herético de aquisicao da cultura legitima. A esse tipo de postura construida, Bourdieu
opoe aquela que resulta da aquisicao natural, que se da pela familiarizacao insensivel,
progressiva e lenta, uma incorporacao precoce iniciada na socializacao primaria, desde
a infancia, no ambiente familiar: uma “postura estética”, que se constréi ao longo do
tempo, de maneira imperceptivel, que pressupoe uma distancia objetiva, mas igualmente
subjetiva das urgéncias préticas.
O e’squema interpretativo que esta na base da nocao de boa vontade cultural tem sido
explorado em analises mais recentes de fenomenos sociais especificos, a exemplo da “boa
vontade linguistica” (DUBOIS, 2003), que aborda a relacio particular dos grupos intermediaries,
na atualidade, com os modelos linguisticos legitimados; on da “boa vontade internacional”
(NOGUEIRA; AGUIAR, 2008), que diz respeito ‘a atencéo recente e aos investimentos desses
mesmos segmentos em estratégias que possam aproximé—los do estilo internacionalizado
de Vida das elites.

Referéncias
BOURDIEU, P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Francaise de Sociologie, v. XV, n. 1,
p. 3-42, jam/mars 1974.
DUBOIS, V. Comment la langue devient une affaire d’Etat. La défense de la langue francaise au milieu
des années 1960. In: LAGROYE, J. (Org). La politisation. Paris: Belin, 2003. p. 461474.
NOGUEIRA, M. A.; AGUIAR, A. La formation des élites et l’internationalisation des études:
peut-on‘parler d’une “boune volonté internationale”? Education et Sociétés, Paris, v. 21, n. 1, p.
105-119, 2008. '

60 BOA VONTADE CULTURAL


~\.
20. BOURDlEll EDITOR
l Afrc‘mio Mendes Catani

Bourdieu, quando retorna da Argélia no inicio da década de 1960, torna—se assistente de


Raymond Aron (1905-1983) ha Faculdade de Letras de Paris e integra-se ao Centro de So-
ciologia Europeia (CSE), fundado e dirigido por Aron na 63 seeao da Escola Pratica de Altos
Estudos (BPHE). De 1961 a 1964 leciona na Faculdade de Letras de Lille; em 1962 é designado
secretario~geral do CSE e no ano seguinte publica Trai/ail et travailleurs en Algeria, com
Alain Darbel, Jean~Paul Rivet e Claude Seibel. 0 arm 1964 foi importante em sua carreira,
sendo eleito, aos 34 anos, diretor de estudos na 66 secao da EPHE, além de assumir a direcao
adjunta do CSE. Nessa mesma data lanca, pelas Editions de Minuit, a colecao Le Sens Common,
organizada por ele até 1992. Passa também a lecionar na Escola Normal Superior, onde per-
manece até 1984. Quanto as publicacoes, datam desse mesmo 1964, Le déracinement: la
crise de l’agriculture traditionnelle en Alge’rie (com Abdelmalek Sayad), Les héritiers: les
e'tudiants et la culture e Les étudiants et leur études, ambos com Jean—Claude Passeron.
Ou seja, nessa mesma data, jé dispondo de condicoes objetivas para promover um trabalho
coletivo, evitando as distracoes do estrelato midiatico e procurando salvaguardar a autonomia
intelectual, pré«condicao para uma Sociologia rigorosa 6 para uma politica vigorosa, devota
“suas energies a construir instituicoes de producao cientifica protegidas das dependencias
gémeas do comando estatal e das regras do mercado” (WACQUANT, 2002, p. 99).
As atividades editoriais do sociologo, que se iniciam em 1964, sao realizadas com suas
assistentes Rosine Christin e Marie—Christine Riviere, que colaborani" com ele até 0 fun de
sua Vida. Na colecao Le Sens Commun ele editou um ambicioso conjunto de livros dos mais
variados matizes: entre obras classicas se destacam Emile Durkheim, Marcel Mauss, Maurice
Halbwachs, Ernst Cassirer, Joseph Schumpeter, Mikhail Bakhtin, Emile Benveniste, Erwin
Panofsky; traducées de autores contemporaneos relevantes ~ Theodor W. Adorno, Gregory
’ Bateson, Basil Bernstein, John Blacking, Moses Finley, Erving Goffman, Albert Hirschrnan,
Richard Hoggart, William Labov, Ralf Linton, Herbert Marcuse, A. R. Radcliffe-Brown,
Edward Sapir; pesquisas originais de jovens sociélogos e historiadores franceses e mesmo es—
trangeiros (Luc Boltanski, Robert Castel, Patrick Champagne, Christophe Charle, Jean~Louis
Fabiani, Claude Grignon, Sylvain Maresca, Francine Muel—Dreyfus, Charles Suaud, Jeannine
Verdes—Leroux, Anna Boschetti, Dario Gamboni), além de livros de seus grandes amigos Jean
Bollack e Louis Marin, de seu antigo mestre Jules Vuillemin, sem contar obras de sua autoria
e em parcerias ~ sairam na colecao, apenas de Bourdieu, Algérie 60: structures économiques
et structures temporelles; La distinction: critique sociale du jugement; Le sens pratique;
Questions de sociologie; Lecon sur la leeon; Homo academicus; Chases dites; L’Ontologie
politique de Martin Heidegger; La noblesse d ’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps; de
Bourdieu com colaboradores: Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en
Alge’rie (com Abdelmalek Sayad); Les he’ritiers: les e’tudiants et la culture (com Jean—Claude
Passeron); Un art moyen: essaz’ sur les usages sociaux de laphotographie (com Luc Boltanski,
Robert Castel e Jean-Claude Chamboredon); L’Amour de l’art: les muse’es d ’art européens et
leur publique (com Alain Darbel e Dominique Schnapper); La reproduction: éléments pour
une the’orie du systeme d’enseignement (com Jean~Claude Passeron).

BOURDIEU EDITOR Bl
Em 1975, "com a béncao e o apoio de Fernand Braudel, diretor da Maison des Sciences
de l’Homrne [...], cria a revista Acres de la Recherche en Sciences Sociales, que se firmou
como ulna das mais importantes publicacoes em ciéncias sociais no mundo. Embora tenha
permanecido altamente singular em seu formato, tom e missao [...] a revista procurou
pnblicar os mais avancados produtos da pesquisa social a fim de impingi-los sobre a cons—
ciéncia coletiva e sobre a discussao pfiblica na Franca e no exterior”. Bourdieu a dirigiu
de 1975 a 2001 (WACQUANT, 2002) — ver, sobre a revista, o verbete “Actes de la Recherche
en Sciences Sociales”. '
Nos anos 1980-1990 Bourdieu continuou sua acao, entendendo, a exemplo de Emile
Durkheim, que os interesses da ciéncia so podem ser resolvidos pelos proprios cientistas.
Na perseguicao desse objetivo, criou, em 1989, a Liber: Revista Europez'a de Livros (depois,
com o subtitulo Revista Internacional de Livros, adotado em 1994), que durou até 1998.
Era uma publicacao trimestral encartada na Actes, que saia simultaneamente em varios
paises, nos seguintes idiomas: francés, alemao, italiano, bfilgaro, hl'mgaro, sueco, romeno,
grego, noruegués e turco, sendo definida por Bourdieu como uma forma de resisténcia a uma
situacao de “ajuste intelectual”, propondo o resgate da capacidade de aliar a autonomia da
esfera intelectual com o engajamento critico, em urn espaco pt’iblico e politico. Q modelo e a
“missao” dos intelectuais sao redefinidos: em lugar do intelectual total sartriano, tern—5e o
intelectual transdisciph'nar e internacional, alternativo aos poderes econémicos, politicos e
a midia. Sergio Miceli destaca na apresentacao a coleténea Liber 1, que refine 32 textos sele—
cionados do suplernento, que o desafio inicial de um empreendimento dessa natureza foi 0 de
“firmar aliancas supranacionais corn vistas a montagem de uma rede de autores e correntes
guiada por liderancas intelectuais independentes” (MICELI, 1997, p. 12). As bases de tal acordo
operacional e doutrinario eram “o respeito intelectual reciproco e, tao ou mais importante
num momento de resisténcia aos arautos da modernidade 'neoliberal”, constituindo-se ern
“contraveiculo de combate intelectual e divulgacao cultural de qualidade” (MICELI, 1997,
p. 12-13). Voltando—se para urn pfibiico de estudantes, de pesquisadores especializados e de
produtores de cultura, Liher tinha entre seus colaboradores Georges Duby, Robert Darnton,
Terrv Eagleton, Iiirgen Haberrnas, E. P. Thompson, Keith Dixon, Didier Eribon, Christophe
Charle, Pascale Casanova, ale’m de vérios outros intelectuais originérios da Franca e de outras
nacoes em que o suplernento era publicado.
Ainda nos anos 1990, Bourdieu capitaneou a criacao da editora Liber — Raisons d’agir,
depois apenas Raisons d’agir, publicando pequenos livros, bem documentados e a precos
baixos, sobre ternas politicos e sociais da atualidade — ver verbete “Ativismo”.
Em 1997, o sociélogo criou a colecao Liber, nas Editions du Seuil, editando, de sua
autoria, Meditations pascaliennes, La domination masculine e Les structures sociales
de l’économie ~ Esquisses algériennes (2008), postumo, reunindo textos que escreveu
ern vérios momentos sobre o pais africano, organizado por Tassadit Yacine. Nessa colecao
foram editados livros de seu amigo e colaborador Abdelmalek Sayad, Olivier Christin,
Jacques Bouveresse, Frédéric Lebaron, Jacques Dubois, Bertrand Geay, Iulien Duval, Yves
Dezalay, Bryant G. Garth, Anna Boschetti, Ian Hacking e Aaron Victor Cicourel, entre
outros.’ Apos sua morte, em janeiro de 2002, a colecao, que passou a ser dirigida por seu
filho, Jerome Bourdieu, por Johan Heilbron e Yves Winkin, prosseguiu com a publicacao

62 BOURDIEU EDITOR
de livros de autoria de Louis Pinto, Pascal Durand, Sébastien Chauvin, Sylvie Tissot, Marie—
France Garcia-Parpet, Philippe Mary, etc.
Bourdieu, durante mais de quarenta anos, sempre devotou especial atengéo para a pu—
blicagéo dos resultados de suas investigagoes, bem como daquelas desenvolvidas por colegas
franceses e estrangeiros, divu'lgadas sob a forma de livros e de artigos em periodicos cienti-
ficos. Na maior parte de sua trajetéria académica, conforme se escreveu aqui, teve 0 controls
do conteudo que publicou, inclusive possuindo o senso de oportunidade politica de editar,
quando julgou necessério, textos de intervengéo (néo poucos de sua autoria) em que ajudou
a colocar o saber intelectual numa linguagem apropriada, a servigo de parcelas da populagao
‘que nao possuem as chaves para decifrar obras que normalrnente circulam apenas entre os
produtores da cultura erudita.

Referéncias
MICELI, S. Apresentaqz‘io. In: BOURDIEU, P. (Ed). MICELI, S. (Org). Liber 1. Séo Paulo: Ed. da USP,
1997. p. 11-15.
WACQUANT, L. O legado sociolégico de Pierre Bourdieu: duas dimensoes e uma nota pessoal. Revista
de Sociologia e Politica, Curitiba: UFPR, n. 19, p. 95410, nov. 2002.

21. BURGUESIA

rVer: Classe social

BURGUESIA B3
:2, CABlLlA

Bernard Lahire

E muito raro encontrar uma concordancia cientifica de fundo entre o conjunto das correntes
sociologicas que se defrontarn com questoes dos mais diferentes tipos. Todavia, se ha urn fendmeno
que suscita a unanimidade, é exatamente 0 da diferenciacao social das atividades. Qualificadas
como modernas ou industriais, nossas sociedades s50 consideradas pelos mais diversos autores
como conjuntos caracterizados por urna forte diferenciacéo social das atividades ou fungoes. Neste
aspecto, elas se distinguem das sociedades quase sempre mais limitadas do ponto de vista demo-
-
grafico — em que a divisao social do trabalho é infinitarnente menos pronunciada. De Adam Smith
a Pierre Bourdieu, passando por Herbert Spencer, Karl Marx, Emile Durkheim, Georg Simmel,
Max Weber, Maurice Halbwachs, Karl Polanyi, TalcottParsons, os sociélogos da Escola de Chicago,
Marshall Sahlins, Norbert Elias, Peter Berger e Thomas Luckmann ou Niklas Luhrnann, todos
concordam pelo menos em relacao a0 fato de que essaheterogeneidade crescente deve ser estudada.
Com sua teoria dos campos, Pierre Bourdieu pretendeu propor um modelo bastante geral
para pensarmos nossas sociedades diferenciadas. “Nas sociedades altamente diferenciadas”,
escreveu ele, “o cosmo social é constituido pelo conjunto desses microcosmos sociais relati-
vamente autonomos, espacos de relacoes objetivas que 550 o lugar de uma logica e de uma
necessidade especificas e irredutiveis aquelas que regem os outros campos. Por exemplo, o
campo artistico, 0 campo religioso ou o campo economico obedecem a logicas diferentes:
o campo economico emergiu, historicamente, enquanto universo no qual, como se diz,
‘amigos, amigos, negécios a parte’, business is business, e do qual as relacoes — envoltas em
encantamento —— de parentesco, amizade e amor 5510, cm principio, excluidas. Pelo contrario,
o campo artistico constituiu‘se na e pela recusa, ou inversao, da lei do iucro material” (R, 73).
Bourdieu definiu seu conceito de campo, combinando propriedades pertencentes a uni—
versosteéricos diferentes, em particular, os de Durkheim e de Weber. Nao é fécil resumir as

64 CABILIA
1x5)"
propriedades essenciais de um campo. Na verdade, se a tarefa é facflitada pelo proprio autor — que
retornou em Varias ocasioes urn conceito que havia ocupado, desde a década de 1980, um lugar
[central em sua sociologia (BOURDIEU, 1980, 1991) —, ela se tornou dificil pelas minfisculas
inflexoes quevo conceito sofre por ocasiao de cada utilizagao particular que Bourdieu faz dele.
, Os elementos fundamentais e’ relativarnente invariantes da definigao de campo, suscetiveis
de serem extraidos das diferentes obras e artigos do autor sobre a questao, 850 OS seguintes:
L - . Um campo é um microcosmo incluido no macrocosmo constituido pelo espago social
global (nacional ou, mais raramente, internacional).
. Cada campo possui regras do jogo e desafios especificos, irredutiveis as regras do jogo e
aos desafios dos outros campos. Por exemplo, o que mobiliza um matematico — e a maneira
como mobiliza — nada tern a ver corn o que mobiliza — e a maneira corno o faz — urn indus-
trial ou urn grande costureiro. Os interesses sociais sao sempre especificos a cada campo e,
portanto, 1150 se reduzem ao interesse de tipo economico.
. Um campo é um “sistema’? 011 um “espago” estruturado de posigoes ocupadas pelos dife—
rentes agentes do campo. As praticas e estratégias dos agentes 56 se tomam compreensiveis se
forem relacionadas as suas posigoes no campo. Entre as estratégias invariantes, encontra—se a
oposigao entre as estratégias de conservagao e as estratégias de subversao do estado da relagao
”readeforgas existente: as primeiras sao mais frequentemente as estratégias dos dominantes,
enquanto as segundas correspondem as dos dominados (e, entre eles, mais particularmente,
dos “recém-chegados” no campo). Essa oposigao pode assumir a forma de um conflito entre
“velhos” e “novos”, “ortodoxos” e “heterodoxos”, “conservadores” e “reyolucionarios”, etc.
. Esse espago é um espago de lutas, nma arena onde esté em jogo fima concorréncia on
competigao entre os agentes que ocupam as diversas posigoes.
- O objetivo dessas lutas reside na apropriagao do capital especifico do campo (obtengao
do monopélio do capital especifico legitimo) e/ou a redefinigao desse capital.
. Esse capital é desigualmente distribuido no seio do campo. Por conseguinte, existem,
nele, dominantes e dominados. A distribuiqao desigual do capital determina a estrutura do
campo que é definido, portanto, pelo estado de uma relagao de forgas histérica entre as forgas
(agentes e instituiqoes) em confronto no campo.
- Em luta uns contra os outros, todos os agentes de um campo tém, contudo, interesse
em que o campo exista. Eles mantém, portanto, uma “cumplicidade objetiva” para além das
lutas que os opéem.
- A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposigoes incorporadas) préprio
do campo (habitus filolégico, habitus juridico, habitus futeboh'stico, etc.). Apenas os que
tiverem incorporado o habitus préprio do campo estao em condigoes de disputar o jogo e
de acreditar na importancia dele. ‘
- Todo campo possui uma autonomia relativa: as lutas que se desenrolam em seu interior
tern uma logica prépria, mesmo que o resultado das lutas (economicas, sociais, politicas, etc.) .
externas ao campo pese forternente no desfecho das relagoes de forga internas.
Essa lista de propriedades deve ser considerada como um resumo provisorio do estado da
Pesquisa na Inatéria — baseado em uma série (limitada, mesmo que ja importante) de estudos
de casos, mais ou menos bem conduzidos e mais ou menos detalhados — que permite orientar
0 pesquisador no decorrer de suas pesquisas;

CAMPO 55
Beurdieu tinha indubitavelmente o sentimento de ter feito justica a especificidade dos
campes, assim come deter enfatizade os invariantes constitutives de qualquer campe, ao lutar
contra e reducionismo econémice que vé, em tude, o interesse de tipo economice e a busca
de maximizacao do Iucro econémico. Ao mostrar que es interesses, es capitais, as estratégias
e, ’até mesme, as formas de luta eram especificos de cada campo, ele permitia efetivamente a
pessibilidade de fazer diferencas: “O universe ‘puro’ da ciéncia mais ‘pura’, escrevia ele, é um
campe social come qualquer outro, com suas relacees de forca e seus monopolies, suas lutas
e estratégias, seus interesses e suas vantagens, mas no qual todas essas invariantes revestem
formas especificas” (BOURDIEU, 1976, p. 89). Entretanto, e modelo permaneceu insensivel
em relacae a eutras diferencas que sao também cruciais e podem levar a designar, de outre
mode, determinados “campes”: o grau de profissionalizacao do campe e, em particular, de
estabilizacae dos ateres no campo; a relacae entre es agentes do campe e o “pi’iblico” ae qual
eles se dirigem on a quem eles destinam suas producees (obras, discursos, competéncias,
etc.); o grau de esoterismo ou exetismo com o qual es agentes do campe podem praticar
sua atividade, etc. Pode-se falar de “jogo” para designar um “campo secundario” no qual
a remuneracao, a institucionalizacao e a prefissionalizacae sao precarias (LAHIRE, 2006).

Referéncias
BOURDIEU, P. Le champ scientifique. ARSS, n. 2, p. 88-104, 1976.
BOURDIEU, P. Quelques prepriétés des champs. In: Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1980.
p. 113-120.
BOURDIEU, P. Le champ litte’raire. ARSS, n. 89, p. 3—46, 1991.
LAHIRE, B. La condition littémire: la double vie des e'crivains. Paris: La Découverte, 2006.

24. CAM PO ARTlSTlCO


Ana Paula Simioni

O conceito de campe artistico comeceu a ser desenvolvido per Pierre Beurdieu em meades
da década de 1960, tendo come ebjetive diferenciar-se das anélises estéticas que deminavam os
debates intelectuais do memento. Per um lado, tratava—se de superar as explicacees sociologicas
caudatérias do marxisme (come as de Lukacs, Goldman e Hauser) que tendiam a reduzir as obras de
arte a simples “reflexes” das relacées sociais, subordinande es criadores as coercees sociais de seus
grupes sociais e clientela. Per eutro, a0 ponderar a erdsténcia de uma légica particular a0 campe
artistjco, Bourdieu nae pretendia subscrever as teorias ditas “internalistas”, as quais pestulam que
as ebras so pedem ser explicadas per si mesmas, per meio de seus elementos fermais. Para ele, tais
deutrinas temam come evidente e mite da obra de arte come uma “criacae” feita per um criador
“incriade”, aceitando come fate aquile que é, na realidade, o produto final e mais bem acabado
de um processe social e histérico a ser explicado, a saber, e da autonemizacao do campo artistice.
Em As regras do arte, Beurdieu detém-se nas transfermacees levadas a cabe pele munde
literérie francés do sécule XIX, de serte a cempreender a emergéncia de uma nova pesicao es—
tética, ada “arte pura”, exemplarmente postulada per Gustave Flaubert. Partinde da anah'se do
romance A educaczio sentimental, recenstréi as pesicees existentes no campe literario francés

55 CAMPO ARTlSTICO
de entao, tais como aquela representada pelos partidérios de obras "socialmente engajadas”, on a
dos produtores mais afinados com os pfiblicos ampliados, também chamados como “burgueses”
ou “comerciais”. Recuperava, assim, o universo de disputas que os defensores da “arte pela arte”,
como Flaubert, tiveram de enfrentar a firm de conseguir'impor seu ponto de vista como o domi-
nante. Com tal anélise, Bourdieu demonstra que a crenqa na qualidade formal das obras foi gerada
pelo préprio campo artistjco, ao longo da trajetoria de disputas entre grupos e visoes de mundo
distintas. A0 historicizar a génese da crenga na “autonomia da obra de arte”, vendo-a como resul-
tado da hegemonia conquistada pelos defensores da arte puxa, permite que se reavah'e a suposta
universalidade do paradigma estético formalista, o qual se projetou, ao longo do século XX, corno
vélido, independentemente do tempo e da sociedade em que as obras teriam sido produzidas.
O campo artistico constitui—se corno urn espago estruturado de posiqées objetivamente
definidas, por meio das quais individuos, grupos e instituigoes lutam pelo monopélio da au~
toridade artistica, ou seja, pelo direito de definir quem é ou nao é artista, controlando entao
os critérios de apreciagao e legitimagao das obras de arte. Como todos os campos sociais, o
canipo artistico é um espago de forgas que se irnpoe sobre todos os agentes que dele querem
participar. Mas, diferindo dos demais (como o académico, por exemplo), caracterizase pelo
baixo grau de codificagao de suas fronteiras; para nele ingressar, os agentes nao precisam
' ' estar munidos de diplomas especificos, formagoes escolares prévias on outros tipos de capitais
formalmente regulamentados. O que esta em jogo nesse campo é, justamente, o direito ao
controle de tais fronteiras, on seja, todos os agentes ai competem por um capital especificoz
0 da autoridade artistica que lhes permite impor a definigao de quem é on n50 artista, de
quem faz ou nao parte desse universo na medida em que suas produgoes sao percebidas, on
mac, como propriamente “artisticas”.
Vale notar que, para além da definigao mais geral de um campo de forgas estruturado em
torno de posiqoes em disputa pelo monopolio da autoridade artistica, que pode ser tomada
como estruturalmente vélida, o campo artistico possui configuragoes distintas que variam
conforme o momento e a sociedade em que se inscreve. No caso da Franqa do século XIX,
a revolugéo provocada pela imposigao do principio da “arte pura” come 0 mais legitimo
implicou a autonomizagao plena do campo, isto é, que, doravante, esse passasse a se carac—
terizar pelo “principio economico invertido”. Com isso, os julgamentos sobre as qualidades
da obra ocorrem a partir de valores distintos dos econémicos, contra os critérios do lucro e
da aceitagao do mercado. Nesse universe afirma-se uma légica particular por meio da qual
os agentes interessam—se pela defesa do “desinteresse” como um estilo de Vida, da criagao em
detrimento ao comércio, da gratuidade em relagao aos rendimentos. Esse campo constitui assim
uma légica de valorizagao propria, fruto de um desenvolvimento historico de longa duragao
no qual as obras de arte'foram paulatinamente dissociando-se do universe das mercadorias
triviais. Diferindo dessas que séo costumeiramente avaliadas por sua simples materialidade,
as obras de arte foram sendo consideradas fruto de habilidades incomensuréveis de um ponto
de vista exclusivamente economico, por exemplo, pautando-se pela habilidade dos artistas.
. Como produtos eminentemente simbélicos, as obras de arte necessitam de certas condigoes
para sua execugao: a de que sejam fruto de um ato de consagragao operado por alguém socialrnente
reconhecido como capaz de efetuar sua transmutaqao, como os artistas. Segue que a produqao
da obra de arte corno uma mercadoria especifica dotada de valor singular exige a produgao da

CAMPO ARTISTICO 67
crenca social no valor do artista. A sociologia da arte deve, entao, debrucar~se nao apenas nas
posicées sociais constitutivas do campo artistico 6 nos déterminantes sociais que
levam certos
artistas a ocuparem certas posicoes, mas fundamentalmente o modo com que os campos
sao
capazes de produzir os artistas como produtores Iegitimos de objetos de crenca, de valor
e de
prazer estético. Nesse sentido, a pergunta central deve ser “n50 o que faz o artista, mas quem
faz o artista”. E o campo que produz a crenca na raridade social do produtor e, com isso,
no
valor que sua assinatura é capaz de conferir aos objetos que cria. Assim, para entender a
obra
e seu valor é‘ preciso reconstitujr a génese da posicao e da crenca na singularidade do artista, a
qual é construida por meio de um conluio que envolve a todos os participantes desse universo,
corno os criticos, colecionadores, historiadores da arte, museologos, galeristas, pfiblicos,
etc.
Trabalhar com a nocao de campo artistico exige trés operacées fundamentals: em primeiro Iugar,
a analise do campo de criacao cultural em relacao ao campo do poder, ou seja, uma reflexao sobre
o grau de autonomia que este possui no memento em que esté sendo analisado. Em segundo,
uma
analise de sua estrutura interna, o que significa o mapeamento das posicoes objetivas
ai existentes
e as relacoes entre elas, envolvendo assim uma descricéo da concorréncia porlegitimidade que as
perpassa. Finalmente, é preciso investigar a génese do habitus de cada um dos ocupantes dessas
posicées, posto que as préticas artisticas resultam de uma dialética entre as necessidades estru-
turais do proprio campo e das acoes exercidas pelos proprios agentes. Compreender as trajetérias
desses, e as sistemas de disposicoes internalizados que possuern, é fundamental para entender
suas condutas, se essas atualizarao on n50 as potencialidades inscritas nas posicoes
que ocupam.
O conceito de campo artistico tem se mostrado extremamente frutr’fero para as analises
contemporaneas. Metodologicamente permite transcender as oposicées entre as teorias
determi-
nistas e as formaljstas, conforms ja foi dito. Possui também um papal critico e desmistificador:
a0 considerar as lutas pela autoridade artistica come 0 centro das disputas que envolvem
todos 03
56115 agentes, traz consigo a possibilidade de anélises que se detenham nao apenas nas definicées
,
estilos e artistas consagrados, mas em todos aqueles relegados, inferiorizados, esquecido
s, os
“perdedores” de tais batalhas, os quais, porém, sao fundamentais para dotar o campo, e suas lutas,
de inteljgibilidade. O conceito permite compreender como nascem os canones artisticos e,
corn
isso, repensé—los, questioné—los, subverté-los. E, porém, necessério lembrar que o conceito, em
sua
configuracao completa, nasce para explicar uma realidade histérica e social bastante especifica
,
como a da Franca do século XIX. Cabe ao analista atualizé-lo, testar seus limites e potenciah'dades
a
luz dos casos, circunstancias e agentes concretos com que se defronta em sua prépria investigac
ao.

25. CAMPO ClENTlFICO

Pascal Ragouet

O conceito 'de campo cientifico, exposto pela primeira vez em 1975, surgiu do distanciamento
critico em relacao a concepcao pacifica de ciéncia desenvolvida por Merton (BOURDIEU,
1975,
1976). Pode-se considerar o campo cientifico corno um espaco concorrencial e,
ao mesmo
tempo,j_ como um espaco de integracao social.
Na sociologia de Bourdieu, qualquer campo social é um espaco de concorréncia estrutura
da
em torno de desafios e de interesses especificos no image do qual os “agentes” se
distribuem

68 CAMPO CIENTIFICO
em fungao do volume e da estrutura de capitais detidos por eles e que constituem os recursos
da aqao. A forma de interesse especifico no campo cientifico consiste na'imposigao de uma
concepgéo particular de ciéncia graeas a mobilizagao de recursos aos quais Bohrdieu atribui
a denominagéo de “capital cientifico”.
Ele distingue, de fato, duas formas de capital: um, “temporal”, remete a uma espécie de poder
institucional sobre os meios de produgao e reprodugéo; enquanto o outro, “cientifico”, estavinculado
ao reconhecimento dos pares, pouco institucionalizado e mais exposto a contestagao (USS; SSR).
Essas duas formas de capital conhecem diferentes leis de acdmulo: um, adquire-se pela produgao
de contribuigoes atribuidas ao progresso da ciéncia, enquanto o outro, obtém-se pela estratégia
politica e institucional. Além disso, se 0 primeiro e’ djficilmente transmissivel, a transmissao do
segundo ocorre com maior facilidade. As possibflidades de conversao de um capital em um outro
sao igualmente assimétricas: 0 capital cientifico pode permitir, com o decorrer do tempo, a obtengao
de créditos economicos e politicos, mas é mais frequente observar agentes dotados de um elevado
capital temporal obterem capital cientifico sem se investir fortemente na produqao cientifica.
A existéncia dessas duas formas de capital confirma o caréter relativo da autonomia do
campo cientifico. 0 capital temporal é um indicio da dominagao burocrética de poderes
temporais (ministérios, administragao da pesquisa, instituigoes economicas, midia, etc.)
sobre os campos cientificos. A autonomia relativa de um campo depende, portanto, do grail
de diferenciagao da hierarquia segundo a distribuigao do capital cientifico e da hierarquia
segundo a distribuigao do capital temporal. Quanto mais essas hierarquias estiverem emba-
ralhadas, mais a avaliagao cientifica das contribuigoes sera contaminada por critérios ligados
propriamente ao conhecimento das potencialidades sociais dos individiios.
A estrutura do campo cientifico é determinada pelo estado das relaeoes de forga entre os
cientistas, o qual resulta, por sua vez, das lutas anteriores e vai orientar as estratégias de cada um.
Qualquer especialista em ciéncias investe em fungao da sua dotagao atual em capitals e de suas
aspiragoes — e, por conseguinte, em funeao da posieéo efetiva que ocupa no campo cientifico e da—
quelapretendida por ele. Deste modo, as propriedades estruturais e morfolégicas do campo exercem
influéncia sobre a configuragao da competigao cientifica. Bourdieu opoe dois tipos de estratégias
correspondentes a duas categorias de pesquisadores: os dominantes desenvolvem “estratégias de
conservagao”, tendo em vista a perenidade da ordem Cientifica; de outro lado, Bourdieu coloca
os “recérn—chegados” que, desprovidos ou muito precariamente dotados em capital temporal e
cientifico, implementam, seja “estratégias de sucessao”, consistindo em “aplicaqoes seguras", seja
“estratégias de subversao” que tém a ver com escolhas arriscadas suscetiveis de redundar em uma
“redefinieao dos principios de legitimagao e da dominaeao”. Enquanto as estratégias de conservaeao
vém reforgar a ciéncia oficial em seu funcionamento e em sua estrutura epistémica, as estratégias
de subversao tém em mira a fundagao de uma ordem cientifica herética e, ao mesmo tempo, dao
a partida a um processo de acrimulo mediante uma agao impositiva.
Em Bourdieu, as préticas dos cientistas tornam—se possiveis pela existéncia de um habitus,
de competéncias e de interesses especificos. Em Le sens pratique (1980), Bourdieu define a
nogao de habitus como resultado de “condicionamentos associados a uma classe particular de
condigées de existéncia”; trata-se de “sistema de disposigoes duréveis e transponiveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como principios
geradores e organizadores de préticas e de representagées que podem ser objetjvamente adaptadas

CAMPO CIENTIFICO 69
a seu objetivo sem supor a intencao consciente de fins, nem o dominio expresso das operacoes
necessérias para alcancé~los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser em nada o produto
da obediéncia a regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser 0 produto da
acao organizadora de um maestro” (SP, 8889). Essa longa citacao poderia credenciar a ideia
de que Bourdieu nao desenvolve, de modo algum, uma sociologia que atribua ‘as normas um
peso importante na explicacao das préticas. Tal pressuposto seria erroneo. Bourdieu admite a
existéncia de regras peculiares da atividade cientl'fica; no entanto, a capacidade das mesmas
para suscitar uma orientacao das préticas eruditas depende, em seu entender, das disposicoes
interiorizadas pelos cientistas. Dito de outra maneira, a capacidade coercitiva e incitativa das
normas depende da capacidade dos agentes de percebé—las, de aprecié-las e de implementé-las. E
Bourdjeu néo deixa de sublinhar que essa atividade de percepcfio é inseparavelmente da ordem
tanto do conhecimento quanto do reconhecimento prético.
Em outras palavras, em Bourdieu, a explicacao da prética pelas normas se encontra
estreitamente articulada a urna explicacao pelas disposicoes: pelo fato de que os agentes
estao “dispostos” — por interme’dio de uma aprendizagem social — é que eles sao “sensiveis”
as restricées advindas das normas e podem dar—lhes uma resposta de modo “sensato” ou,
ainda, mais ou memos apropriado. No agir disposicional descrito por Bourdieu, existe
urna dimensao interpretativa sob a condicao, todavia, de ter em mente a ideia de que as
latitudes de interpretacao sao circunscritas. Se é o individuo que seleciona e identifica
as normas on as regras a fim de interpretar seu sentido e responder-lhes da maneira que
ele julga adequada, essa atividade interpretativa nao se desenrola, de modo algum, em
urn vazio social; 0 campo tem uma historia, no qual 11308 e tradicoes se sedimentaram,
e ele se construiu progressivamente a partir de um suporte de crencas aparentemente
néo questionadas que constituem a base do “jogo” da ciéncia. E, assim, chega-se aqui a
nocao de illusio. ,
Contrariamente a sociologia funcionalista de Merton, a qual inscreve a competicao em
um quadro meritocrético, cujo functionamento é pouco discutido, em Bourdieu tudo parece,
a primeira vista, objeto de lutas: o acesso ao reconhecimento, mas, também, a definicao dos
critérios que presidem a atribuicéo desse capital simbolico, as fronteiras das especialidades
e das disciplinas, os critérios de uma boa reproducao das experiéncias, etc. Entretanto,
Bourdieu insiste no fato de queIhé sempre, em um espaco concorrencial, realidades que nao
ocasionam debate, o que ele designa por illusio. A filiacéo a0 campo cienti’fico impoe aos
atores o respeito de principios geradores constitutivos de uma espécie de axiomética pratica,
cuja incorporacao condiciona a participacao de cada um no jogo da concorréncia cientifica.
As lutas que contribuem para a estruturacao do “campo cientifico” desenvolvern-se, por
conseguinte, no respeito de normas que escapam aos conflitos de definicao: prestar~se ao
jogo da argumentacao e da contra~argumentacao, submeter-se a critica, etc. Trata-se, entao,
das condicoes sociais que tornam possivel o conhecimento objetivo.

Referéncia
BOURDIEU, P. La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progres
de la rai-
son. Sdciologie et Sociétés, v, 7, n. 1, p. 91—118, 1975. [Nova ed. Le champ scientifique. ARSS,
v. 2/3,
p. 88403, 1976.]

70 CAMPO CIENTlFlCO
Enia Passiam'
Maria Arminda do Nascimento Arruda

A teoria dos campos de Pierre Bourdieu, inspirada 11a ideia das esferas da acao de Weber, é,
claramente, uma resposta as definicoes de cultura e sociedade que algumas correntes teérico»
metodolégicas das ciéncias sociais oferecem. E, por assim dizer, a ferramenta por meio da
qual'e possivel acessar a totalidade social, composta por mundos sociais distintos. A0 preferir
a nocao de campo em detrimento de conceitos como “”grupos , “populacoes”, “organizacoes”
ou “instituicoes”, Bourdieu pretende cham‘ar a atencao para os jogos de interesses e lutas que
modelam a exiSténcia do mundo social, apresentando-se como uma metéfora espacial-chave
em sua sociologia. Ern suas préprias palavras, a sociologia é uma espécie de topologia social
preocupada com a construcao de uma teoria do espaco social.
De um 56 golpe, Bourdieu rompe com aquelas representacoes mais tradicionais da hierarquia
socialbaseadas numa visao piramidal da sociedade, tipicas do materialismo vulgar e, igualrnente,
com a cuncepcao de que existea “ ” sociedade, um todo homogéneo, urn conjunto unificado O
conceito de“campo cultura ” '
etarnbém uma reacao contra, basicamente, duas tendéncias —
, urna sociolégica, outra 1150 ~, que pesquisarn os bens culturais: a primeira é representada por
certo mandsmo que pensa as manifestacoes culturais como determinacoes da infraestrutura
economica da sociedade, meros epifenomenos, numa operacéo de reducionismo que nega a
cultura qualquer autonomia; a segunda, ao contrério, profundamente formalista, encara a arte
e a cultura corno apartadas da realidade social, livres das influéncias mundanas da sociedade e
do conjunto de relacoes (politicas, econémicas e sociais) que a forma, e supostamente dotadas
de uma pureza absoluta, como pretendem certas vertentes da semiética e da semiologia.
Segundo Bourdieu, a realidade social é formada por trés campos principais: o campo
politico, o economico e o cultural on da producao simbélica. Cada um desses campos é
composto por infimeros outros subcampos, e tanto os campos quanto os subcampos, embora
apresentern uma historia e um desenvolvimento particulares, agentes einstituicoes sociais
especificos, logicas de funcionamento peculiares, exibem “homologias estruturais” entre
si, isto é, propriedades comuns, “leis gerais” invariaveis ou “mecanismos universais” que
os estruturam. Os campos sao atravessados por relacoes de forca, por formas especificas de
luta que visam acumular os capitais gerados por cada urn dos campos e subcampos, sendo
que é a propriedade do capital que vai definir a posicao dos dominantes e dos dominados e
do exercicio do poder de uns sobre outros.
O conceito de “carnpo cultural” torna visivel as disputas e 05 conflitos que constituem um
dos principios fundamentais da producao cultural. Ainda que Bourdieu admita a existéncia
dos subcampos, raramente utiliza o termo, preferindo a expressao “campo” para se referir, a
rigor, aquilo que seriam os subcampos do campo cultural, como o literario, 0 da moda, 0 do
jornalismo, 0 da pintura, o cientifico, o religioso e outr’os. Como se disse, cada (sub)campo
é composto por agentes e instituicoes sociais especificos: o campo literério, por exemplo, é
formado por escritores, editoras, premios literérios, academias literérias, criticos, editores,
professores; o cientifico, por cientistas, universidades, centros de pesquisa, divulgadores, e
assim sucessivamente para cada uma das regiées sociais que formam o campo da producao

CAMPO CULTURAL 71
simbélica. Os produtores culturais, proprietarios de um elevado capital cultural, encou-
tram-se em disputas constantes, procurando manter e aumentar seu capital simbolico, que
podern on 11510 ser reconvertidos em capital monetario. Os bens simbolicos ern disputa $510 0
reconhecimento, o prestigio, 0 status, a autoridade em determinada area de atuacao cultural.
‘Os agentes refinem-se em grupos, formarn aliancas, elegem adversaries para levar adiante as
contendas, cuja Vitoria significa conquistar a hegemonia do campo, posicionar-se e manter-se
corno grupo dominante, o qual, inevitavelmente, sofrera a concorréncia constante dos grupos
subordinados. Entronizar-se como grupo ou agente hegemonico significa adquirir e exercer
o poder de nomeacao, de classificacao, atribuindo e distribuindo titulos, rétulos oficiais,
batizando, consagrando certos intelectuais e obras em detrimento de outros.
Aquele(s) que ocupa(1n) a posicao dominante goza(m) do direito de definir quern é 0 me-
lhor on o pior escritor, qual obra é grande ou mediocre, quais musicas devem ser ouvidas ou
esquecidas, qual teoria apresenta maior poder explicativo, quais livros devem ser lidos - no
limite, definir o que é literatura, o que é arte e o que é ciéncia. O campo cultural funciona como
um sistema hierérquico de classificacoes que vai do mais ao menos legitimo, constituindo~se
numa auténtica arena de lutas por reconhecimento, pelo direito de instituir o que é e o que
1150 e culturalrnente legitimo, legitimando, por conseguinte, a propria posicao dominante.
Auténomos, os campos nao se encontram isolados, mas cornunicam-se entre si a partir de
suas areas de contato, ou seja, existem entre 0s campos zonas de interseccao ocupadas por
individuos e instituicoes que exercem uma dupla funcao, agentes duplos que transitam por
campos distintos e realizam as mediacées e trocas necessérias entre logicas sociais diferentes.
Podemos citar, como ilustracao, o caso dos editores, que agem, simultaneamente, no
campo economico e no literario; situacao semelhante é a do marchand, que serve de elo de
ligacao entre o campo economico e 0 da pintura. Pica claro, assim, que o campo cultural nao
esta livre das influéncias e demandas externas oriundas dos demais; contudo, elas séo sempre
retraduzidas cle acordo com suas regras e principios organizativos internos, convertendo
tais demandas e influéncias em problemas, questoes, respostas e linguagens simbélicos. Tal
porosidade deixa evidente que hé uma homologia entre a estrutura social mais abrangente e
03 campos sociais, envolvendo, dessa maneira, o campo cultural na reproducao das relacées
e dominacao de classe: as diferentes classes e fracoes de classe estao empenhadas numa luta
simbolica para impor a definicao de rnundo social que mais convém aos seus interesses,
e tal disputa pode ser conduzida diretamente, nos conflitos simbolicos da Vida cotidiana,
ou indiretamente, por procuracao, a partir da luta travada pelos especialistas da producao
simbélica, proprietarios do monopolio da violéncia simbélica legitima.
A definicao de campo cultural de Bourdieu, infelizrnente, sofreu leituras equivocadas por
parte de seus criticos. O primeiro desses equivocos diz respeito a certo relativismo atribuido
a Bourdieu quanto a producao cultural: fruto das disputas pelo poder simbélico, é como
se as obras culturais fossem desprovidas de virtudes internas, formais, e sua classificacao
dependesse apenas da boa vontade do grupo hegemonico no interior do campo. Na verdade,
o que Bourdieu nos mostra é que os campos impoem formas especificas de luta; assirn, no
caso do campo cultural, os querelantes, para validar ou invalidar esta ou aquela obra, se
utilizam, como suas armas, de critérios rigorosos de interpretacao, avaliacao e validacao. Por
isso, nao é qualquer obra, autor ou teoria que recebe o aval dos participantes do campo. Essas

72 CAMPO CULTURAL
$50 as regras da disputa, elaboradas e aceitas por todos os jogadores — é a illusio do campo
ou, simplesmente, a crenca nas regras que o fundam e o fundamentam. O segundo equivoco
é aquele que vé Bourdieu apenas como urn teérico da reproducao. Se, por um lado, de fato
o campo cultural reproduz a luta e a dominacao de classe que lhe sao externas, por outro, a
dinamica intensa das lutas intestinas ao campo geram obras culturais (artisticas e cienti’ficas)
extremamente criticas, que abalam certezas e podem oferecer perspectivas alternativas ao
status quo, ensejando mudancas internas e externas ao campo.

27. CAMPO DA ALTA COSTURA


Iosé Carlos G. Durand

Tomando a alta costura como caso particular de bens de luxo, e examinando‘a como um
campo, Bourdieu reconstitui a historia das principais maisons, atento a sua dinamica entre 1945
e 1975, que foi um periodo-chave de mudancas. E de 1975 a publicacao, com Yvette Delsaut, de
“Le couturier et sa griffe: contribution a une théorie de la magic”, longo artigo nutrido de
dossiés dos principais costureiros, montados a partir de entrevistas e matérias de imprensa geral
, , e de moda. Ano de fundacao, origem social do fundador, localizacao na geografia social de Paris,
estilo de decoracao da loja (eventualmente da residéncia do costureiro), visual de apresentacao
das vendedoras, 550 05 elementos que os autores combinam para mostrar as afinidades de cada
um com o pfiblico a que serve. Assim como em outros campos, a dinamica da alta costura
aciona uma dupla de opostos, no caso a ortodoxia dos dominantes, os domes consagrados, que
insistem em autenticidade, exclusividade e refinamento, e em seus componentes especificos:
sobriedade, elegancia, equili'brio e harmonia. E, no polo oposto, a heresia dos nao confirmados,
que glorifica a audécia, a liberdade de criacao, a juventude e a fantasia.
Quanto a clientela, os dominantes servem as mulheres em “idade canonica” (isto é, ma—
duras) da alta burguesia tradicional e seu discurso respeita o orcamento farto, a discricao e
0 classicismo de gosto implicitos em sua cultura de classe. O polo dominante da alta costura
fornece marcas de "classe”, marcas que 550 de rigueur nas cerimonias exclusivas do culto
que a classe burguesa presta a si propria, por meio da celebracao de sua distincao, sendo os
costureiros, pois, produtores de emblemas de classe (BOURDIEU; DELSAUT, 1975, p. 29).
Id os costureiros nao confirmados lutam por conquistar outro segmento — a nova bur-
guesia — representada por mulheres profissionais liberais ou esposas de executives e altos
funcionarios. Esbeltas, bronzeadas, de corpo cultivado, elas se vestem nao mais para ocasioes
solenes (extraordinarias), mas para o cotidiano, dentro e fora de casa. A elas se agregam as
jovens da burguesia tradicional, vistas como portadoras de um gosto, de um estilo de Vida
e talvez mesmo de um alinhamento politico distante ou oposto a0 de sua classe de origem,
e de orcamento curto. Exemplo; a mulher para quem Courréges diz costurar é alta, jovem,
bronzeada, cabelo curto, limpa, sorridente, radiante (BOURDIEU; DELSAUT, 1975, p. 30).
O que esta em jogo na oposicao que polariza o campo da alta costura é a emergéncia de novos
signds de distincao. Esportes de elite, turismo em locais exoticos, residéncias secundarias, dietas
e exercicios fisicos sao, entre outros, sinais de um aggiornamento do cerimonial tradicional da
distincao burguesa, instilando intolerancia em relacao ao cerimonial antigo. A nova burguesia

CAMPO DA ALTA COSTURA 73


aprendeu a desafiar o simbolismo por meio do qual a burguesia tradicional reivindicava sua
superioridade; nesse sentido, a reestruturacao do campo da moda deve ser vista corno um equi-
valente (e ao mesmo tempo como efeito) da reestruturacao do campo do poder. Com a ressalva
de que o ofuscamento do ritual antigo e o brilho do novo jamais podem ser interpretados como
fim da dominacao, mas apenas como resultado da reestruturacao do campo do poder, na qual o
trabalho de dominacao se reorganiza e incorpora novas categorias sociais que, através de novas
estrate’gias, passam a ter acesso aos lucros e aos encantos da existéncia burguesa.
A oposicao assim construida recobre aquela que distingue “burgués” de “intelectual”,
definindo uma posicao “a direita” e outra “a esquerda”, retraduzindo na logica relativamente
autonoma do campo da alta costura (e, por extensao, da moda) a clivagem social ao mesmo
tempo cultural e economica em que se exprime, na contemporaneidade, a luta de classes (on,
em outro léxico, a divisao do trabalho de dominacao e de sua contestacao).
Sabe~se que é longo o ciclo de consagracao nas ciéncias e nas artes “maiores”, como a pintura
ou 0 romance. Quanto mais demorada a consagracao, mais facil é fazer crer que as estratégias de
artistas e demais produtores sirnbolicos sao economicamente desinteressadas. So que o campo
da alta costura opera uma temporalidade mais curta, cujas “rupturas” devem ocorrer em in-
tervalos regulares, conforme o calendério oficial de desfiles, quando cada maison é obrigada a
mostrar suas novidades, convertendo as do ano anterior a0 “fora de moda”. Tais rupturas “com
data marcada”, a partir das quais se hierarquizam economicamente os produtos, estao na raiz
do de’gradé de precos que forca a comercializacao a se aproximar do momento de fabricacao.
Bourdieu observa que, do inl’cio a0 apogeu, o percurso de uma maison é de trinta anos. A
moda, assim como outras artes “menores” (cancao, fotografia ou romance popular), situa—se
na curta temporalidade dos bens pereciveis, que so produzem efeitos de distincao jogando
com diferencas temporais, ou seja, com a mudanca.
Uma vez chegada a0 apogeu, coloca-se a maison o sério problema da sucessao do “criador”,
ou de como preservar ou aumentar o prestigio do nome sem ameacar o faturamento da casa. No
fundo, instala—se o confronto entre o carisma da “criacao” e a racionalidade da gestao. O sucessor
nao pode ser apenas alguém “criativo”; antes, é alguém que precisa cultivar o carisma de criador
ao mesmo tempo em que garante o respeito pela aura do fundador e assegura sua continuidade.
O sucessor é, pois, um “criador”, mas que nao surge a partir do nada, sendo, antes, alguém com
repertorio e projeto de Vida sintonizados com os do fundador. Eis porque os sucessores das casas
de alta costura sac, em geral, trénsfugas de maisons preexistentes, portadores, em maior ou
menor grau, do habitus especifico do campo, capazes de operar a sintese entre o carismético e
o racional, como, alias, 0 mode como é tratado o posto de sucessor: “responsavel da criacao”.
Bourdieu e Delsaut emprestam de Mauss o conceito de magia. A mesma alquimia da transubs-
tanciacao, que transforma o péo em corpo de Cristo, se verifica na possibilidade de alterar para
cima, em preco e aceitacao estética, a pega de vestuério feita por terceiros, mas que urn acordo
de licenga permite receber uma etiqueta de prestigio. Assim como na religiao, o que desencadeia
essa forca n50 é o trabalho de ninguém isoladamente, mas o campo corno espaco de luta entre
forcas coletivas, por meio de um processo de conspiracfio (collusion) objetiva de interesses.
No conjunto de suas pesquisas de campo, Bourdieu procura mostrar, sempre que possivel,
individuos de corpo inteiro, pois é 11a hexis corporelle que se inscrevem melhor as deter—
minacoes sociais. Reacées, gestos, posturas, modos de falar, de andar, de se alimentar e de

74 CAMPO DA ALTA COSTURA


se limpar, tudo operando de modo prético, constituem urn imenso mapa que muito diz da
origem de classe, da insercéo familiar, da identidade de género, da posicao social passada e
presente e do momento no ciclo de Vida. Sendo o corpo o mais irrefutével locus de objetivacao
do gosto de classe, é impossivel entender a maneira legitima de manté-lo e apresentado sem
considerar a roupa (a “tenué”). No livro sintese A distingfio o autor examina rico e variado
elenco de hébitos de lazer (teatro, cinema, TV, leitura, mi'isica, esportes, praticas alimentares)
para configurar estilos de Vida Observa tambe’m gastos familiares com itens de apresentacao
social, entre OS quais, a vestimenta Muitas insercoes fotogréficas confirmam o interesse de
Bourdieu em mostrar a relacao com o corpo e a roupa na luta pela distincao social.

Referéncia
BOURDIEU, P.; DELSAUT, Y. Le couturier et sa grille: contribution a une théorie de la magie. ARSS,
n. 1, p. 766, jan. 1975.

28. CAMPO D0 PODER


Francois Denord

A nocao de “campo do poder” deve ser compreendida em referéncia a trés contextos de


elaboracéo: a sociologia da classe dominante, proposta por Pierre Bourdieu no inicio dos anos
1970; a teoria geral dos campos que ele elabora desde essa época e vai desenvolver ao longo
de toda a sua obra; e a sociologia historica do Estado esbocada por ele entre 0 final dos anos
1980 e meados dos anos 1990.
Introduzida em sua sociologia no inicio dos anos 1970, a nocao de campo do poder
permite, em primeiro lugar, superar a oposicao entre monismo e pluralismo que serve de
estrutura a sociologia empirica das elites, desde 05 anos 1950. Por um lado, alguns sociélogos
de inspiracao marxista apresentam as elites sob a forma de uma classe dirigente unificada e
consciente de seus interesses; por outro, sociélogos de orientacao mais liberal afirmam que
diversos interesses e maneiras de agir coexistem no seio das categorias dirigentes. A esta
oposicéo teorica sobrepoe—se uma outta que é de natureza mais metodolégica: enquanto os
defensores da unidade estudam a classe dirigente, privilegiando a abordagem monogréfica
e o recurso a informantes (a tese desses autores comporta uma dimensao criptolégica), os
adeptos do pluralismo entregam—se a analises setoriais ou decisérias.
Pierre Bourdieu entendia distanciar—se dessas duas abordagens. Por um lado, considerava
que a escala da analise pertinente 1130 e’ o individuo, mas o espaco posicional que lhe confere
suas propriedades; por outro, ele rejeitava o pr‘essuposto comum ao monismo e ao pluralismo
segundo o qual a tomada de decisao implica uma coordenacao consciente das acoes individuais.
Pelo contrério, ele insistia sobre o papel da socializacao na reproducao da estrutura social
e sobre a orquestracao, “sem maestro”, que permite uma similaridade de habitus de classe.
A expressao “campo do poder” é usada como sinonimo da expressao “classe dominante”.
Enquanto objeto empirico, esta se revela, de fato, suficientemente diferenciada para ser analisada
como um campo, isto é, um espaco de posicoes estruturado por uma distribuicao desigual
de capitais, cujo acfimulo constitui um conflito de poder. De maneira mais abstrata, pode-se

CAMPO D0 PODER 75
definir o campo do poder como o espaco em que se estabelece o valor relativo dos diferentes
tipos de capitais que proporcionam um poder sobre o funcionarnento dos diferentes campos.
O desafio peculiar a esse espaco de lutas é a imposicao do principio legitimo de dominacao.
Desde entao, as estratégias de reproducio ~ irnplementadas pelos dominantes dos diversos campos —
comportam uma dimensao simbélica que visa legitimar a espécie de capital em que repousa seu
poder. Bis a razao pela qual a coexisténcia entre poderes temporais e espirituais, sublinhadajé por
Marx e Engels em L’Ide’ologie allemande (MARX; ENGELS, 1976, p. 45) permanece um invariante
estrutural do campo do poder, assim como de todos os campos. O poder tern necessidade de ser
legitimado, de se tornar irreconhecivel enquanto arbitrério para se perpetuar. Bxistem intelectuais
(em sentido ample) que participarn assim dos “circuitos de legitimacao” da classe dominante, cuja
eficacia sera tanto maior quanto maior for a extensao desses circuitos: se a proximidade real on
potencial dos membros da classe dominante fosse conhecida por todos, as formas de legitimacao
cruzada a que eles se submetem em pfiblico perderiam uma grande parte da sua eficécia. E se esses
circuitos de legitimacao deixam de aparecer de maneira tao nitida é, em parts, porque os agentes que
povoam o campo do poder se revelam frequentemente multiposicionais. Assirn, corre‘se o risco de
atribuir suas tomadas de posicao a posicoes as quais elas sao pouco tributarias (BOLTANSKI, 1973).
Em relacao a coabitacao praticamente constante entre poderes temporais e espirituais,
a estrutura do campo do poder nao é fixa no tempo. Trata-se de um produto do aprofunda—
mento da divisao do trabalho social e da emergéncia de uma pluralidade de campos sociais.
Em seu curso, Sur Z’Etat, Bourdieu mostra que o campo do poder esta igualmente vinculado
a0 Estado 6, a0 mesmo tempo, é distinto dele: preexistindo a0 Estado, o campo do poder
nao deixa de enfrentar em seu amago o controle do Estado como um de seus desafios prin—
cipais. Com efeito, o Estado aproprioufise progressivamente do monopolio do use legitimo
da violéncia fisica e simbélica; portanto, possui a capacidade de tomar medidas suscetiveis
de modificar o valor relativo das diferentes espécies de capital. Esse metacapital constitui o
objeto de uma concorréncia no cerne desse metacampo, que é 0 campo do poder. Para expli-
cé—lo, Bourdieu descreve o longo processo que, desde o século XII até a Revolucao Francesa,
assistiu ao confronto entre nobreza armada e nobreza togada, entre o rei e o Parlamento. O
campo do poder tira sua dinamica interna da oposicao entre dois modos de reproducao: por
um lado, a reproducao hereditaria e, por outro, a reproducao burocrética. O desenvolvimento
da instrucao e o aumento do nfimero de assalariados da funcao pfiblica, cuja autoridade se
baseia na competéncia, poem em causa a hereditariedade assente nos lacos de sangue. A
autonomizacao de um campo buro'crético (o Estado) e a constituicao correlata dos “grands
corps” desfazem, em parte, a contradicao entre esses dois modos de reproducao. Uma nova
nobreza se constitui em nome de suas competéncias escolares que sao garantidas pelo Estado.
Bourdieu dedicou numerosos trabalhos a0 estudo das Grandes Ecoles -— bastante seletivas
do ponto de vista social — que alimentam os “grands corps” do Estado. O campo dessas “écoles”
e o campo do poder revelam um funcionamento homologo: em seu livro, La noblesse d’Etat,
ele mostra que ambos térn urna estrutura quiasmética. A distribuicio segundo a desigual
dotacao em capital econémico é cruzada com a distribuicéo segundo 0 capital cultural pos-
suido que, por sua vez, hierarquiza os campos segundo uma ordem inversa. Desse mode, 0
campo do poder seria organizado pela oposicao entre posicoes dominantes do ponto de vista
economico ou temporal, mas dominadas culturalmente, por um lado e, per outro, posicoes

76 CAMPO D0 PODER
Lg,..»-
dominantes do ponto (la vista cultural e dominadas economicamente. Nesse espaqo, a nobreza
do Estado ocupa uma posiqéo intermediéria;
Trabalhos recentes mostram que a desvinculagao do poder pfiblico em relagéo a esferaprodutiva
teve o efeito de levar a aproximagéo entre o patronato do Estado e o patronato do setor privado:
o primeiro perdeu a intensidade como tal, mas reconverteu—se aos negécios privados, enquanto
o segundo incrementou sua formaeio e ganhou em prestigio. Esse duplo movimento produz as
desregulamentaqoes, as privatizaeoes e0 humor ideologico dos anos 1980, além de diminuir os
lucros simbélicos que as fragées intelectuais podjam tirar da exploragéo de seus conhecimentos.
Elas deixam deter o monopélio absoluto nesse dominio e 550 afetadas fortemente pelo recorrente
questionamento da cultura cléssica. O relativo declinio dessas categorias nem por isso significa o
desaparecimento do Estado; alias, os individuos mais Vinculados a0 pfiblico é que se encontram
sempre em posieao de estabelecer o vinculo entre patronato, administraeao e dirigentes politicos.
A estrutura do campo do poder, na Franga, na época contemporanea, pode ser analisada
a partir de quatro critérios principais: a integragao no campo econémico; a antiguidade
da filiaqéo '21 burguesia; a proximidade ao Estado; e a visibilidade pfiblica. Notar-se—é que
principios de diviséo comparéveis (pelo menos, os dois citados em primeiro lugar) 36 re-
velam operatérios em outros paises. Aliés, eles sfio bastante semelhantes aos que Bourdieu
colocou em evidéncia nos anos 1980. A estrutura do campo do poder resulta sempre deste
duplo processo: por urn lado, de diferenciaqéo e, por outro, de estratificaqéo. No momento
em que 0 capital economico se impos como principio dominante de classificagéo, a posse
(ou mad) de um poder sobre os meios de produgao cria a separagao entre as elites, cuja
hierarquizagéo esté sempre, por sua vez, estreitamente vinculada a antiguidade na classe.
Esta permite evitar o recurso a longas estratégias de reprodugao na transmisséo dos poderes
e oferece, com menor dispéndio, uma parte néo desprezivel do capital simbélico familiar.

Referéncias
MARX, K.; ENGELS, F. L’Idéologie allemande. Paris: Sociales, 1976.
BOLTANSKI, L. L’Espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe.
Revue Frangaise de Sociologie, p. 3-26, jam/mars 1973.
DENORD, F.; LAGNEAU‘YMONET, P.; THINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, n. 190,
dez. 2011.
HIELLBREKKE, 1.; LE ROUX, B.; KORSNES, 0.; LEBARON, E; ROSENLUND, L.; ROUANET, H. The
Norwegian Field of Power Anno 2000. European Societies, n. 2, p. 245-273, 2007. '

29. CAMPO ECONOMICO


Fréde’ric Lebaron

Antes de se servir da locugao “campo economico", Bourdieu ~ ao trabalhar, no final dos


anos 1950, sobre as estruturas economicas e sociais da Argélia — utiliza de preferéncia os termos
“sistema” ou “cosmos” econémico, designando com isso um universe relativamente “fechado”,
regido por uma “lei” prépria (“nomos”). O cosmos “capitalism” teria, mais particularmente,
uma tendéncia a expanséo e esta teria o efeito de destruir as estruturas sociais “tradicionais”,

CAMPO ECONOMICO 77
mesmo que fossem altamente sofisticadas e milenares, tais como as da Cabilia. Essa visao
(“expansionista” e “destrutiva”) da ordem economica capitalista subentende sua concepcao
da “insercao social da economia” (“embeddedness”). Ela esta em coeréncia com sua analise
sociopolitica, desenvolvida nos anos 1990, da ameaca que a dominacao da ordem economica
faz pairar sobre- os campos mais autonomos (ciéncia, arte...) e, até mesmo, sobre universos
com menor autonomia, tais como a funcao publica e o jornalismo. No entanto, a imposicao do
cosmos capitalista tornou-se possivel, para Bourdieu, na Argélia, assim como na globalizacao
neoliberal contemporanea, pela violéncia social 6 politica da colonizacao. Além disso, as analises
da economia de mercado nunca serao dissociadas por Bourdieu de sua sociologia do Estado,
corno é demonstrado oportunamente pela publicacao de seu curso Sur I’Etat, no inicio de 2012.
A existéncia do campo economico é o resultado de um processo de autonomizacao que
levou a légica economica a definir—se sob uma forma tautolégica: “amigos, amigos, negécios
a parte”, como todos os outros campos, segundo as anélises desenvolvidas em seu livro
Raisons pratiques (1994). Esse processo, proximo do “desencastramento” analisado por
Polanyi (1983), tornou autonoma uma ordem da realidade social — a ordem economica —,
por ter tornado autonoma uma illusio, uma crenca particular no valor do jogo, uma
forma de libido, de energia especifica que impele os atores economicos, sejam eles quais
forem, a maximizar seu ganho individual. A extensao dessa illusio é o produto de um
longo processo conflitante no qual o Estado desempenhou um papel decisivo, mediante a
unificacao monetéria, a edificacao de um monopélio fiscal, em suma, gracas a constituicao
de um espaco relativamente estabilizado de trocas e de circulacao monetaria (SSE, 24~26).
Mas a unidade mais profunda do campo economico esta vinculada ao fato de que os agentes
economicos jogam o mesmo jogo, lutam pelo mesmo objetivo, etc. 0 ethos econémico “racional”
(a lei do campo economico) teve tendéncia a difundir-se e a generalizar—se, mas de acordo com
determinadas condicoes economicas particulares, como é demonstrado a partir do exemplo da
Cabilia (A60, 83—116). Durante esse mesmo processo histérico, instalarn-se as instituicoes e as praticas
associadas a ordem capitalista “moderna”: o empréstimo ajuros, o sistema financeiro e as técnicas
bancérias, a contabilidade, a oposicao trabalho/lazer sob sua forma “moderna”, o assalariado, etc.
Paralelarnente, desenvolvem—se as predisposicoes ao célculo, a antecipacao, ao acumulo, a
poupanca, etc., que estao associadas ao funcionamento “normal” desse universo e pressupoem
um minimo de capitais (economico, cultural, social). A existéncia de universos antieconomicos -
ou seja, de espacos em que a busca de capital simbolico repousa em urn recalque da economia
monetaria (campo artistico, campo cientifico, campo burocratico...) — mostra até que ponto a
illusio economica é apenas um caso particular de investimento em um jogo social.
0 campo econérnico é um universo de lutas incessantes. Até mesmo no interior do campo
das empresas, as lutas de concorréncia térn uma dimensao simbélica: o dominante impée sua
definicao do jogo, suas escolhas, sua concepcao do produto, etc. Todas as estratégias do domi~
nante térn em vista reforcar sua posicao, apoiando-se em todos os recursos possiveis, incluindo
todos os recursos propriarnente simbélicos (criacao de marcas, etc). 0 proprio campo patronal é
atravessado por lutas entre detentores de formas diferentes de capital - em particular, de capitais
escolares — associadas a trajetérias diferenciadas e a disposicoes diferentes que lhes sao inerentes.
A teoria economica neoclassica é uma formalizacao, uma racionalizacao erudita da
illusio do campo economico, tanto mais forte em uma sociedade em que essa illusio, por sua

7B CAMPO ECONfiMlCO
vez, se impée. A illusio economica pode ser definida como a crenca, mais ou menos exposta
falsa
claramente, na necessidade de maximizar os lucros monetarios. A teoria neocléssica é
lidade”
ao atribuir comportamentos que os atores economicos sao incapazes deter: a “raciona
estrito célculo racional, enquanto sua
desses atores esté mais préxima do “raioavel” que do
Contudo , a “ver-
prética esta baseada em uni senso pratico, senso de orientacao imprecise.
dade” da teoria neocléssica se mantém pelo fato de retraduzir, de forma bastante fidedigna
co. Ela
em seu principio, sob uma forma escoléstica, a illusio particular do campo economi
outra logica com a qual
a “consolida”, “separando” a racionalidade “economica” de qualquer
ical for-
ela esté sempre intimarnente ligada. Deste modo, no ponto em que'a teoria neoclass
seus objetivos,
mula a hipétese de um ator consciente, transparente a si préprio em relacao a
nde a acao dos agentes
preferéncias e escolhas, ela radicaliza urna visao implicita que subente
ideal-tipo sem
economicos e tende, nos universos “mais racionalizados”, a aproximar~se desse
de submissao
nunca, todavia, ser capaz de alcanca-Zo. Ela participa assim do trabalho geral
dos resultad os da pesquisa
da ordern social as logicas dominantes do universo economico. Um
em evidéncia
sobre o mercado imobih'ério, levada a efeito nos anos 1980, consistiu em colocar
de um mercado. '
o papel decisive da politica e das lutas politicas no processo de construcao
i, organiza e define
Em vez de se contentar em regularnentar o mercado, o Estado o constro
de maneira mais
em sua estrutura e em suas funcoes. Procedendo deste modo, ele modifica,
r os fatores poli-
ou menos irreversivel, o processo de desenvolvimento economico. Ao reavalia
a a represe ntacao — dai em diante,
ticos na construcao social da economia, Bourdieu question
como se desenvolve
muito dominante —, segundo a qual o processo de “mundializacao”, tal
economica e,
hoje, seria inelutavel e natural. A sociologia da economia desfataliza a ordern
forcas de inércia que tém origern
ao mesmo tempo, coloca em evidéncia sua lentidao e suas
nos habitus economicos e nos sistemas de crencas que lhes sao inerentes.

Referéncia
iques de notre temps.
POLANYI, K. La grande transformation: aux originespolitiques et e’conom
Paris: Gallimard, 1983. '

39.29554??? ESPQRT'VO .......‘ ..........................;.................


Wanderley Marchi Ifinior

o. Para
Pierre Bourdieu preconizava uma forma particular de entender o esporte modern
de praticas
ele, as manifestacoes que compoem o fenomeno esportivo ocupam um espaco
com 0 capital social,
sociais denominado campo, no qual se atribuern posicées compativeis
formas de
economico on cultural de cada componente. No interior desse espaco, existern
, além
disputas, lutas e concorréncia na busca pela hegemonia de determinadas préticas
al de poder simbélic o.
da distincao social das pessoas envolvidas, conforme o seu potenci
introjet ada
Para 0 esporte moderno, Bourdieu reserva a caracterizacao de uma prética,
contorn os da légica mercan til estabele cida no
Ila formacao da sociedade, que respeita os
l respons ével pelo movi-
universo das relacoes humanas. Nesse sentido, define que o principa
a por determi nadas
mento dessa engrenagem é a relacao construida entre a oferta e a demand

CAMPO ESPORTWO 79
préticas culturais. O conjunto dessas relaeées pode ser comparado, analogicamente, aos
pressupostos e leis que regem o mercado de produtos e consumidores. Pode-se incluir nessa
analise o estabelecimento de processos de concorréncia nas configuragoes ou campos sociais.
Desse modo, o esporte é tido corno um produto que respeita e reflete as estratégias mer-
cadologicas que a sociedade moderna define por conta das'mumeras formas de intervengao
e insergao social. A dinamica instalada nesse campo goza de determinada autonomia, pois,
segundo o autor, cada campo constroi suas préprias leis funcionais, sua cronologia especifica e
seus objetos de disputa, que refletem posiqoes sociais e estilos de Vida. Bourdieu entende que,
para discutirmos o desenvolvimento das modalidades esportivas, temos que té-las inseridas
no processo de mercantilizagao, o qual determina as estruturas constituintes da sociedade
e as relaeoes que sao estabelecidas no interior dos campos.
Assim sendo, o surgimento, as transformaqées e a evolugao dos esportes sao estudados
a partir de uma proposta de leitura da historia estrutural relativamente auténoma das mo»
dalidades. A analise da constituieao do campo esportivo deve estar associada, diretamente,
ao espaeo social em que as manifestaeoes esportivas construirarn suas estruturas. Sobre as
transiqoes e transformagoes do esporte, Bourdieu é incisive: “Parece indiscutivel que a pas—
sagem do jogo a0 esporte propriamente dito tenha se realizado nas grandes escolas reservadas
as “elites” da sociedade burguesa, nas public schools inglesas, onde os filhos das familias
da aristocracia on da grande burguesia retomaram algunsjogos populares, isto é, vulgares,
impondo‘lhes uma mudanga de significado e de fungao Inuito parecida aquela que o campo
da musica erudita impos ‘as dangas populares, bourrées, gavotas e sarabandas, para fazé-las
assumir formas eruditas como a suite” (QSp, 139, grifos do original).
Objetivamente, podemos dizer que Bourdieu admite a constituigao do campo esporfivo a partir
da evolugao, ruptura e transformagao dos antigos jogos populares em esportes modernos, estes
detentores de especificidades mercantis e convergentes para um modelo estrutural de sociedade
de consumo. Entretanto, esse processo de transigao 11510 é o finico existente no estabelecimento das
manifestaeoes esportivas. Houve algumas modalidades que foram inventadas sem a necessidade de
respeitar urn processo evolutivo da forma priméria do jogo popular on passatempo aristocratico.
Os esportes modernos, sejam eles invengao ou manifestaeao evolutiva de jogos popu-
lares, segundo Bourdieu, sao praticas institucionais construidas para agentes sociais com
variado e distintivo potencial de consume, 0 qual é manifestado pelas demandas no interior
do campo. Nesse contexto, a complexidade do fenomeno esportivo passa a ser regido pelas
relagées proprias da légica do mercado nas quais os esportes sio conduzidos ao processo de
espetacularizagao e mercantilizagao.
Para entender essa dinamica e logica do campo esportivo, Bourdieu afirma que é ne—
cessario o reconhecimento da posigao que determinada modalidade ocupa no espago dos
esportes. Esse espaeo, ou campo, é identificado por um conjunto de indicadores, tais como: a
relagao dos praticantes e determinadas modalidades conforme sua posigao ou extrato social;
as diferentes representatividades federativas; o numero de praticantes e seus respectivos
capitais; as caracteristicas politico—sociais dos dirigentes; o tipo de relaeao com o corpo que
determinados esportes exigern (de contato ou de interposieao corn bola). O passo seguinte
é relacionar no campo esportivo a manifestagao do seu espago social, representado em seus
elementos de distingao e “gostos de classe”. Para tanto, o autor considera a possibilidade de

80 CAMPO ESPORTIVO
estudos de um “subespaeo” no interior de um espaeo, de um subcampo em um campo ou de
uma modalidade no universe dos esportes (PBS,- 82~121; QSp, 127-135; CDp, 208~213),
Ha, na anélise do sociélogo francés, um pressuposto de que o campo esportivo contribui para
produzir a necessidade de seus proprios produtos; entretanto, ela n50 desconsidera alégica da prética
esportiva inscrita pela unidade de disposieoes pertinentes a uma fraeao de classe. Assim sendo,
percebemos que no campo esportivo sao estabelecidas relaeoes estruturantes entre disposieoes
sociais e a composigao da oferta e demanda de um esporte. Acrescenta~se a esse contexto, como .
destacado inicialmente, a efetivaeao das transformaeées ocorridas nas modalidades no decorrer
da suahistoria. Bourdieu analisa esse mote, considerando: “[...] que o principio das transformagoes
da
das praticas e dos consumos esportivos deve ser buscado na relagao entre as transformaeoes
o de
oferta e as transformaeées da demanda: as transformaeoes da oferta (inveneao ou importaea
esportes ou de equipamentos novos, reinterpretaeao dos esportes ou jogos antigos, etc.) 5510 en-
gendradas nas lutas de concorréncia pela imposiqao da pratica esportiva legitima e pela conquista
e, no
da clientela dos praticantes cornuns (proselitismo esportivo), lutas entre diferentes esportes
ou tradigoes (por exemplo, esqui de pista, fora
interior de cada esporte, entre as diferentes escolas
nesta concorrén Cia
da pista, de fundo, etc), lutas entre as diferentes categorias de agentes engajados
(esportistas de alto nivel, treinadores, professores de ginastica, fabricante de equipamentos, etc.); as
,
transformaeoes da demanda sao uma dimensao da transformagao dos estilos de Vida e obedecern
portanto, ‘as leis gerais desta transformaeao” (QSp, 152).
deve
O campo esportivo-como uma nogao que permite variadas perspectivas de analise
6
ser contextualizado em relaeao a outros conceitos geradores, tais corno habitus, campo
corn as perspect ivas do
capital, além de considerar que o autor trabalhou essa definigao
nas
esporte moderno e que, talvez, a contemporaneidade do objeto, alocada, por exemplo,
questoes da globalizaeao, da mundializaeao das préticas culturais e da inexoravel insereao
dado
socioeconomica dos legados e megaeventos esportivos em dimensoes planetérias tenha
dos
outras possiveis dimensées para repensarmos, senao a definigao, pelo memos o conjunto
_ contornos e de relaeées sociais estabelecidas no campo esportivo.

fiiE‘iMPP FILOSOF'CO .....................................


Louis Pinto

ario
A semelhanea de outros sociologos franceses, Pierre Bourdieu seguiu um cursus universit
de filosofia (Ecole Normale Supérieure, agrégation) que lhe forneceu uma grande familiaridade com
e Hegel. Para
autores classicos, tais como Platao, Descartes, Pascal, Spinoza, Leibniz, Hume, Kant
os aprendizes filésofos de sua geraeio, o espaeo das probleméticas estava estruturado pela oposieao
entre o polo da fenomenologia (Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau—Ponty) e 0 da epistemologia
francesa (Bachelard, Canguilhem) — oposieao que permaneceu importante em seus trabalhos
de sociologo mediante o binomio objetivismo-subjetivismo. Mais tarde, os autores anglo—saxoes
contemporaneos tomararn parte crescente em sua reflexao (especialmente, Wittgenstein e Austin).
Bour—
Apesar de 1150 ter construido uma teoria do campo filoséfico como tal, Pierre
dieu forneceu numerosas analises tanto conceituais (sobre o campo, as disciplinas ) quanto
concretas. Os filosofos sao individuos que ocupam as posigées inscritas em determinado estado do

CAMPO HLOSOFIco 81
campo: dotados de desafios especificos, visam impor uma definigfio legitima da filosofia ajustada ao
tipo de capital (cientifico, literério, religioso, etc.) que eles detém. Apos o século XIX, a instituigao
universitéria parece ter conseguido monopolizar, 1150 so a formaqao dos filésofos, o percurso de
suas carreiras, mas tambérn a definieéo dos programas, a lista dos autores canénjcos, o contefido e
a forma dos exercicios escolares (dissertaqao, tese). Dizer que a filosofia funciona como urn campo
significa que ela tern a garantia de certa autonomia, a qual supoe a delimitagao de fronteiras, a
ruptura com os interesses exteriores, a constituiqao de desafios internos, a existéncia de um elenco
de profissionajs dedicados ao tratamento de objetos proprios. O valor filosofico de um problema
ou de um autor é aquilo que é reconhecido pelos profissionais possuidores dos saberes distintos
do senso comum (uma filosofia do senso cornum n50 é o senso comum). Mas, essa autonomia
é fundamentalmente ambigua: por um lado, ela permite a formagao de um dominio separado,
voltado expressamente para objetos especificos. E, por outro, ela pode ser menos real que formal:
o estatuto filoséfico do discurso pode ser tributério apenas do que Bourdieu designa como urna
“retérica do corte falso”, recurso destinado a dissimular a reinscrigao de contefidos profanos
(ideologicos) no campo filoséfico sob as aparéncias de qualidade filoséfica.
Espaqo diferenciado, o campo filoséfico é um lugar de lutas entre profissionais. A se-
melhanga do que ocorre em qualquer campo, podem—se anah'sar hierarquias, inversao de
hierarquias, estratégias intelectuais (combinadas com estratégias institucionais, editoriais,
politicas, etc). Em sua tentativa para “reconstruir o espago dos possiveis” no campo filoséfico
dos anos 1950, Pierre Bourdieu refere-se a uma clivagem observada pelos contemporaneos:
por urn lado, Jean-Paul Sartre, “intelectual total” que ocupava uma posigao dominante, mas
ambigua (considerada demasiado mundana) e Maurice Merleau—Ponty, propenso "a conceber
a fenomenologia como uma ciéncia rigorosa” aberta as ciéncias humanas. E, por outro, “uma
historia da filosofia muito estreitamente Iigada a historia das ciéncias”, “uma epistemologia
e urna histéria das ciéncias representadas por autores, tais como Gaston Bachelard, Georges
Canguflhem e Alexandre Koyré”. Essa clivagem nao deve ser autonomizada, mas relacionada
as condigoes sociais de produgao das hierarquias filosoficas: os lugares mais prestigiosos 550
a “khagne” e a Ecole Normale Supérieure, que contribuem para a integragao logica e ética de
uma “nobreza escolar”, inculcando um senso da proeminéncia ou da profundidade através
do culto de pensadores proféticos (Heidegger) e um desdém pelos objetos triviais, empiricos,
escolares ou simplesrnente eruditos. Deste modo, a “improvisagao retérica” do aprendiz e as
“exibigoes teatralizadas da improvisagéo filoséfica” do mestre séo instrumentos de apren—
dizagem, gragas aos quais sao adquiridos um senso da posiqio no espago intelectual, uma
doxa e um espago de assuntos e de maneiras de pensar que evitem a transgress
ao e sejam
a garantia de elevadas ambigoes. Toda a logica do campo transformava o polo racionalista
da historia das ciéncias em uma regiao dominada, votada a “submissao ao modelo filosofico
dominante”. Apesar das aparéncias, a referéncia a ciéncia nos anos 1960 (Althusser, Foucault)
nao assinala, segundo Bourdieu, uma ruptura com essa dominagao: tal postura liberta os
filosofos das condicionantes da heranga acadérnica e metafisica sem impor~lhes urna con—
versao total, tampouco uma renfincia as vantagens do aristocratismo filoséfico. Eis o que é
testemunhado pelo “efeito-logia” que consiste em dar as aparéncias da ciéncia a urna nova
disciplina (“arqueologia”, “gramatologia”) constitur'da com o objetivo de contornar as ciéncias
sociais e remeté—las ‘as zonas inferiores da empiria.

82 CAMPO FILosoHco
LVJNi
Outra descricao do campo filoséfico foi esbocada por Bourdieu no seu livro sobre Heidegger.
Um dos objetivos desse filosofo consistiu em subverter as hierarquias, impondo uma nova forma de
filosofar: era necessario arrancar a filosofia ‘as ciéncias sociais, radicalizando contra essas ciéncias a
critica que elas podiam fazer daphilosophiaperennis e, mais precisamente, inscrevendo o tempo
no amago do Ser. Heidegger salirava a filosofia, mediante esse salto paradoxal, do relativismo his-
toricista, assegurando-lhe a preeminéncia na ordem do pensamento fundamental, do pensamento
do fundamento (“ontologia-fundamental”). A0 reinterpretar a fenomenologia, Heidegger desfazia
o vinculo com o racionalismo cartesiano, do qual Husserl era herdeiro, e questionava diretamente
' a hegemonia do neokantismo, outra corrente racionalista que tendia a reduzir a filosofia a uma
“teoria do conhecimento” e da cultura. A razao, o espaco e o tempo “objetivos”, o sujeito e o objeto
da tradicao filoséfica estavam desvalorizados em beneficio de uma experiéncia mais “originaria”:
a do “estar-no-mundo”, da finitude, da angfistia, etc. Mas o sucesso de Heidegger n50 pode ser
compreendido unicamente no campo filosofico: no ceme deste, o pensador reproduz urn sistema
de oposicoes homélogo aquele que esté presente entre os pensadores alemées “revolucionérios—
conservadores” da e’poca ~ Spengler, Moeller van den Bruck, Iiinger —, que refutavam tanto o
conservadorisrno tradicionalista quanto o pensamento progressista. Bourdieu esforca—se por
mostrar o caréter essencialmente equivocado do discurso heideggeriano construido a partir de
“significacoes suspeitas” que podem ser apreendidas em um registro politico ordinério (critica
das massas, do socialismo, do intelectualismo, dos judeus) e, simultaneamente, em um registro
propriamente filosofico (o ser contra o ente, a ontologia contra o naturalismo). Heidegger leva a
seu apice certas virtualidades do discurso filosofico que, gracas aos meios da “eufemizacfio”, pode
dizer as coisas dizendo que nao as djz. Desse rnodo, tirando partido das raizes do termo “Sarge”,
erigido em conceito ontologico (a “Apreenséo” como dimensao fundamental do Da—sein, estar—ai),
a critica filosofica da assisténcia (Farsorge), do “alguém”, da “tagarelagem” ~ termos que tern como
antagonicos a existéncia-auténtica (Eigentlichkeit) e a resolucao (EntschluSs) diante da morte
assumida — permite transfigurar, em uma forma elevada e inatacével, um velho tema do discurso
,conservador, a critica politica da seguranca social (Sozialffirsorge) e do bem~estar.
A atencao atribuida as palavras mostra corno o corte entre abordagem externa e abordagem
interna e’ inapropriada a sociologia da filosofia que deve aplicar-se a descrever o funciona—
mento do campo filosofico e, ao mesmo tempo, a considerar sua autonomia sem deixar de
estar continuamente em jogo através dos compromissos com forcas exteriores ao campo,
além das importacoes de temas e de ideias.

32. CAMPO INTELECTUAL


Christophe Charla

Bourdieu elaborou o conceito de campo intelectual ~ nocao que vai desempenhar um papel
cada vez mais importante em seu método de pesquisa e em seus trabalhos da maturidade - a
partir de 1966, com o artigo “Champ intellectuel et projet créateur” e, depois, em 1971,
“Champ du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe”. Esses dois artigos, focalizados
na sociologia do campo literério — cuja insuficiéncia foi criticada, mais tarde, por Bourdieu ~,
foram completados e corrigidos por suas duas importantes contribuicoes sobre outros espacos

CAMPO iNTELECTUAL 83
simbélicos, o campo religioso e o campo artistico, permitindo generalizar essas proposig
oes
ao campo intelectual global: “Une interpretation de la théorie de la religion selon Max
Weber”
e “Le marché des biens symboliques”.
Com esse conceito, trata-se de romper com uma sociologia que estabelece uma relaqao direta
— Como fazia a sociologia da Iiteratura mandsta na época (Gyiirgy Lukacs, Lucien Goldman
n)
on o funcionalismo — entre interesse de classe, por um lado e, per outro, orientaeo
es ideo-
logicas e intelectuais. Essa abordagem questiona igualmente a tradigao letrada, idealista
e
intelectualista, dominante desde sempre no estudo desses temas: ela limita a interpret
agao
dos conflitos intelectuais a um conflito de ideias puras, autonoma em relagéo aos contextos
mais amplos, privflegiando o estudo do discurso, a exegese dos textos e a abordagem
herme—
néutica enfética. A vulgarizagao da expressao “campo intelectual”, nos ultimos trinta
anos, a
medida de seu sucesso e das discussoes que ela suscitou no cerne das disciplinas envolvida
s
e, frequentemente, hostis (historia da filosofia, histéria das ideias, historia da literatura
, his'
téria da arte, eta), manifestou tendéncia a fazer‘lhe perder varias de suas Virtudes criticas
e
incomodas im'ciais, transformando-a em uma nogao puramente descritiva que reduz
“campo
intelectual” ‘a “Vida intelectual” ou “esfera intelectual” e, até mesmo, intelligentsia. Tratava-s
e
de fato, para Bourdieu — e trata-se sempre, se pretendemos ser fiéis a sua inspiraga
o através do
uso rigoroso deste conceito —, de elaborar com ele um questionério e um programa de
pesquisa
para testar diversas hipéteses: em tal periodo on em tal contexto geogréfico, seré
que se pode
identificar, on 1150, um campo intelectual (ou Iiterério), ou seja, um conjunto de posieoes
e
oposigées entre grupos (intelectuais) em luta pela hegemonia e pela autonomia relativam
ente
a outros grupos (intelectuais on n50)? Em que desafios se baseiam suas oposigoe
s e debates?
De que maneira tern sido sua evolugéo? Serao eles especificos, como ocorre
em determinados
campos cientificos ou ainda heteronomicos como é o caso nos dominios que dizem
respeito
mais de perto ao p'oder e a economia? Que trunfos, disposiqoes, caraten’sticas dos
produtores
em concorréncia explicam suas trajetérias, sucessos e fracassos, tornadas de posigao?
Qual a
margem de liberdade a disposieao desse campo intelectual em relagéo a0 campo
do poder, a0
campo economico, ao campo religioso, etc? Em que sentido evolui essa margem,
segundo as
conjunturas historicas? Responder a essas questoes pressupfie, por conseguinte, diferente
s tipos
de pesquisas complementares: morfolégicas, sociolégicas, ideolégicas e politicas. Isso
implica,
por exemplo, estabelecer biografias sociais (isto é, construidas), cruzadas e compara
das, dos
principais intelectuais; anéfises institucionais das instancias de legitimaeéo, de
produeao ou
de reprodugéo das posigoes no campo intelectual; estabelecimento de multiplas relagoes
entre
esses diversos fatores e condicionantes, sem esquecer a analise relacional
das caraten’sticas dos
textos, das tomadas de posigéo e das obras produzidas no cerne dessas diferentes configura
eoes.
E possivel encontrar tais tentativas em aeao nos trabalhos empreendidos por
Bourdieu e por
sens colaboradores a0 tentarem proceder a descrigoes aprofundadas deste ou daquele
campo
intelectual (ou artistico, ou religioso, ou literério) singular e, até mesmo, desta ou
daquela obra,
deste ou daquele autor. Assim, na primeira aplicaeao dessas hjpéteses de pesquisa
ao campo
literério francés, através do caso de Flaubert, Bourdieu coloca em evidéncia
a oposigao que
atravessa esse campo entre os raros autores que reivindicam sua autonom
ia em relagao aos
desafios econérnicos de uma literatura em via de comercializaeao acelerad
a pela imprena
sa, teatro, romance, por um lado, e, por outro, urna maioria de literatos que
aceitam essa

84 CAMPO INTELECTUAL
subordinacao e renunciam a defender sua autonomia estética contra as injuncoes do mercado.
Mas a exaltacao da literatura pura e artistica, em Flaubert, nao se limita a deploracao de uma
ordem simbélica caduca (e, em parte, mitica, uma vez que o antigo regime literario estava
submetido a outras formas de restricées, como ficou demonstrado pelos trabalhos de Alain
Viala, Daniel Roche on Robert Darnton sobre os séculos XVII e XVIII). Se 0 autor de Madame
Bovary rejeita o compromisso on o profetismo da geracao romantica, esfacelada pelo fracasso da
Revolucao de 1848, e, em suas obras mais célebres, trabalha a denfincia das ilusoes romanticas,
ele fixa também a seu empreendimento uma ambicao critica e ironica da literatura de consumo
corrente por uma escrita desconcertante que embaralha os cédigos estabelecidos. Trata—se de
outta maneira, intrinseca a0 trabalho do escritor, de reivindicar a autonomia em relacao a todas
as convencoes estabelecidas do campo literario contemporaneo. Essa dupla negacao e essa dupla
reivindicacao explicam que a Education sentimentale (1869) ~ romance amplamente baseado
em uma autoanélise de Flaubert e em uma reconstituicao feita pelo romancista da principal
crise atravessada pela Franca em torno de 1848 ~ propoe praticamente uma anélise sociolégica
das relacées entre campo intelectual e campo do poder, na Franca de meados do se’culo XIX,
através do conjunto dos personagens e de suas trajetorias. Essa primeira aplicacao do método
de analise em termos de campo intelectual seré prolongada e aprofundada no livro Les régles
de l’art (1992), integrando as contribuicées dos trabalhos de igual inspiracao de C. Charle, R
Ponton e A.-M. Thiesse sobre o campo intelectual e literario no final do século XIX e suscitando
outras pesquisas que hao de aperfeicoar e enriquecer o esquerna geral e as hipéteses iniciais
sobre outros penodos complexos, tais como 05 da Guerra de 1940 e da Liberacao (SAPIRO, 1999)
on comparar o campo literério e intelectual na Franca com outros campds de outros paises ou
de outras épocas (cf.V1ALA, 1985; CHARLE, 1996; OP; CASANOVA, 1999).
Tais ampliacoes permitiram avaliar em melhores condicoes as especificidades da evolu-
céo dos diferentes campos intelectuais em diferentes paises e 03 fenomenos de dominacao
entre eles, em conformidade com os subconjuntos (campo universitério, campo literério,
campo artistico, etc.) 0 processo de autonomizacao, se estiver ativo em toda a parte, assume
formas e segue caminhos fortemente divergentes, até mesmo em nacoes aparentemente
préximas. Ele nunca seré definitivamente alcancado e pode passar por questionamentos
Iadicais, inclusive, na Franca (na e'poca do governo de Vichy) ou nos Estados Unidos (no
periodo do macarthismo). Ora, essas duas nacoes nao deixam, no entanto, de reivindicar,
desde o século XVIII, seu papel de vanguarda nesses dominios. A abordagem transnacio—
nal permitiu também destacar a importancia dos fenomenos de dominacao cultural en‘tre
grandes e pequenas nacoes, entre grandes e pequenos idiomas que exercem uma grande
influéncia sobre as caracteristicas dos campos literérios e intelectuais, nao so entre nacoes
imperiais e nacoes colonizadas ou antigamente colonizadas, mas até mesmo no interior do
espaco europeu, segundo as relacoes de forca entre os mercados literérios 011 intelectuais;
tal dominacao foi avaliada, por exemplo, pela sociologia da traducao, como ficou demons-
trado por Gisele Sapiro e por seus colaboradores no que se refere ‘a época contemporanea
(SAPIRO et al., 2008). Todos estes exemplos mostram a fecundidade sempre Visivel e a
diversidade dos programas de pesquisa implicados pelo conceito de campo intelectual
ou de campo literério. Com efeito, ele pode ser declinado na escala tanto de um pequeno
grupo e, até mesmo, de um autor importante (sob a condicao de reposiciona—los no espaco

CAMPO INTELECTUAL 85
das mfiltiplas relagoes, permitindo compreender seus projetos e sua situagfio
) quanto de
espagos globais e, até mesmo, internacionais, o que obriga, em qualquer caso,
a adaptar o
questionério, a implementar os métodos de anélise ou de comparagéo adaptad
os és espe—
cificidades e és fontes para evitar a queda, de novo, nas armadilhas
positivistas e eruditas,
ou o‘recurso aos esquemas convencionais das abordagens contra as quais
essa ferramenta
havia sido concebida.

Referéncias
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v. 246, p. 895-906, nov. 1966.
BOURDIEU, P. Champ du pouvoir, champ intellectual et habitus de classe.
Scolies, Cahiers de
Recherche de I’Ecole Normale Supérieure, v. 1, p. 7-26, 1971.
BOURDIEU, P. L’Invention de la vie d’artiste. ARSS, n. 2, p. 6794, mars 1975.
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Année Sociologique,
V. 22, p. 49—126, 1971.
BOURDIEU, P. Une interprétation de la théorie de la religion selon Max Weber.
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de Sociologie, Paris, v. XII, n. 1, p. 3-21, 1971.
CASANOVA, P. La re'publique mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999.
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CHARLE, C. Les intellectuels en Europe au XIXe sie‘cle. Paris: Seuil, 1996.
PONTON, R. Le champ litte’raz're de 1865 El 1905. Paris: EHESS, 1977.
'Ihése.
SAPIRO, G. (Org.). Translatio. Paris: CNRS, 2008.
SAPIRO, G. La guerre des écrivains (1940-1953). Paris: Fayard,
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THIESSE, A.- M. Le roman du quotidien. Paris: Le Chemin Vert, 1984.
VIALA, A. Naissance de l’e’crivaz'n: saciologie de la littérature L‘z l’fige
classique. Paris: Minuit, 1985.

33. CAMPO JURlDlCO

Remi Lenoir

As anélises de Bourdieu sobre o direito incidem sempre sobre um objeto


que supera a
definiqéo que se dé comumente para préticas e produgfies juridicas: assim,
“a forga do direito”
remete ao que ele designa como “a magia do Estado” e o efeito de oficializ
agéo e certificaqéo
que lhe é inerente. O certificado escolar é seu ato tipico. O diploma faz
parte da categoria
dos atos de certificaqéo, de validagio, pelos quais o Estado garante e
consagra determinado
estado de coisas sociais: neste caso concreto, um m’vel escolar, mas,
em outros setores da
atividade social, 0 émbito de competéncia de uma profisséo, uma
identidade, um estado
civil. O Estado, ao reconhecer esses estados de fato, leva—os
a submeter~se ao que Bourdieu
designa por uma promogéo ontologica, uma transmutaqéo. Os atos
de registro realizados
pelos agentes do Estado conferem um status oficial a situagées reais:
o que néo altera nada e,
ao mesmo tempo, modifica tudo. Como se confirma, por exemplo, pela
diferenga entre uma
ligaqéo 6 dm casamento. Os atos juridicos sio atos de reconhecimento
que prescrevem o que
eles consagram por serem dotados “de uma objetividade e de uma
universalidade que [as

35 CAMPO JURlDlCO
prepriedades estatutarias] impoern a percepcae de todos [...],- come inscritas em uma esséncia
de natureza socialmente garantida”, aquela que é conferida pele Estado. Para Bourdieu, o
direito consagra a erdem estabelecida ao recenhecer come legitima uma visae dessa erdern,
que é uma visao de Estado e garantida pelo Estado. '
As referéncias ao direito insc'revem»se, na maier parte das vezes, nos estudos empreendidos
per Bourdieu sobre as formas e 03 efeitos da dominacae sirnbélica. O direito, em seu entender, age
come em suplernento “ae formalizar” e “a0 colecar formas nas relacoes de poder”, de acordo com
suas expressoes. E Bourdieu ainda fornece a seguinte precisao: “A forca da ferma [juridica] — a
visformae mencionada pelos antigos — é a ferca prepriamente simbolica que permite a forca
exercer-se plenamente, fazende-se descenhece’r enquanto forca e fazende-se reconhecer, aprevar e
aceitar pelo fate de se apresentar sob as aparéncias da universalidade, aquela da razao on da moral".
O Estado é uma ficcae de juristas, os primeires “nobres do Estado”, que desenvolveram
uma visao pelitica do service do Estado come um service pfiblico, ou seja, come uma atividade
desinteressada orientada para fins universais e 11:30 unicamente para 0 service e a gloria do
rei, a fortiorz’ nae para a defesa de sees proprios interesses.
A nebreza do Estado, come escreveu repetidamente Bourdieu, fundou sua razao de ser
social e sua dominacao ao afirmar e defender a autonomia do service pfiblice em Home do
direito em relacao ao peder régie, em nome da cempeténcia em relacao a nobreza hereditaria
e em neme do interesse geral por oposicao ae universe economico. O que nae evita a questao
da finalidade social do direito que nae poderia reduzir-se a invencae de um mode racional de
gestao administrativa, nem a burecracia, tampeuco ao ideal de neutralidade, de desinteresse
e de universalidade que lhe é inerente.
Corn efeito, 0 “universal” nae preexiste, de acordo com Bourdieu, a formacao do Estado
moderno. Os funcionérios desse tipo de Estado Die 0 utilizam para dissimular seus privilégies
e seus interesses propries. Ao elaborar principios normativos e o direite que lhes cerresponde,
es juristas e 05 parlamentares dos séculos XVII e XVIII precuraram justificar a autoridade I
superior que eles tentam encarnar, produzindo uma filesofia juridica e politica do Estado pela
qua] é desvalorizada, para nae dizer desqualificada, qualquer outra teeria imediatamente
reduzida aos interesses dos grupos, desde entao constituidos como particulares, corporativos,
em suma, pré-estatais. “Eles tiveram de inventar 0 universal ~ 0 direito, a ideia de service
pl'lblico, de interesse geral, de populaeao, etc. — e, se é que se pode dizer, a deminacao em
nome do universal para ter acesso a deminacae”.
A semelhanca do que ocorre corn todos os universes que conquistaram sua autenomia
de funcionamente — come é confirmado pela constituicao de uma doutrina, ou seja, de um
direito erudite —, a producao juridica nae pederia ser interpretada, de acordo corn Beurdieu,
come urn sistema fechado e unicamente do ponte de vista de sua logica interna (degmatismo
legal), nem come 0 reflexe direto de fatores que Ihe sae, em diversos graus, exteriores (eco—
nomices, politicos e midiéticos). A 110930 (16 campo aplicada ao universe juridico lembra que
este filtimo deve ser pensado de um mode relacional, tanto em seu funcienamento interno
quanto em suas relacoes com os outros campos, come um espaco estruturado de pesicoes —
' e de postos que lhes correspondem — ‘as quais estao vinculadas propriedades relativamente
independentes daquelas peculiares aos individuos que as ecupam. Ela permite estabelecer
as relacoes objetivas entre essas pesicoes ~ a estrutura das disciplinas juridicas, aquela das

CAMPO JURIDICO 87
hierarquias prefissienais, aquelas das homenagens académicas — e entre estas filtimas e as
diferentes formas de producao juridica, inclusive as definicoes da prepria atividade juridica.
O estabelecimente de relacees entre essas posicees e as propriedades sociais e culturais de
seus ocu’pantes nae teria sentido se nae fossem definides os desafios especificos do universe
e dos subuniversos juridices. E evidente, per example, que distincees cemo aquela que epee
e direito pfiblico ae direito privado remetem ainda a interesses Inuite diferentes, embora os
agentes tenham em comum urna disposicae a jegar o jege exigido pele espaco da disciplina,
ou seja, um habitus que implica e conhecimento e e reconhecimento das regras do jogo e do
interesse do que esta em jego (eu seja, a illusio especifica deste campo que, muitas vezes, é
designada come “um espirito”, neste case concrete, 0 “espirito juridico”). Tern a ver também,
e antes de mais nada, com oficios, um conjunto de técnicas, de referéncias, de cenhecimentos
e de “crencas” propries desse espaco, tratando-se, seja da hierarquia dos principios funda—
mentais, das disciplinas, das faculdades, seja das revistas e das editeras, sem falar da maneira
de redigir textes e da importancia atribuida as chamadas e notas de redapé.

Referéncia
BOURDIEU, P. La force du dreit: éléments pour une sociologie du champ juridique. ARSS, n. 64,
p. 3—19, sept. 1986.

34. CAMPO LlTER/XRIO

Giséle Sapiro

O conceito de campo literario, ferjado per Pierre Bourdieu, apreende e mundo das letras come
um universe social dotado de uma relativa autenomja, no sentido em que é regide per regras
préprias que se referern a sua historia, ale'm de determinarem as condicées de actimule do capital
especifico a esse universe. Esse conceito visa escapar de uma dupla armadilha. Contra a ideologia
romantica do “criader incriado”, que encontrou sua expressao mais acabada na nocao sartrz'arza
de “projeto criader” e que serve de fundamente a aberdagem puramente hermenéutica das obras,
ele chama a atencao para o fate de que es produtores nae escapam as restricoes que governam e
mundo social. Uma sociologia da literatura tern o direite de formular a seguinte perguntaz. “Mas
quem teria criado es criadores?”, ou seja, per quais processes se forma e valor simbelico das obras?
No entanto, contra a seciolegia marxista que reduz a obra as caracteristicas sociais de seu pfiblice
ou de seu autor, e contra a abordageni economicista que se interessa apenas pelas condicoes Ina-
teriais da producao e do consume concernentes a indfistria do livro, Pierre Beurdieu afirma que
é impossivel explicar os universes culturais sem levar em censideracao sua autonemia relative e
sua principal propriedade que é a crenca. Do ponto devista metodelogico, tal abordagem pretende
superar a tradicional opesicao entre analise interna e analise externa: a primeira esta fecalizada
na decifracao, a0 invés do ato criador. Inversamente, a segunda tende a reduzir as ebras a suas
condicees de producao e recepcao. Enquanto a analise interna se interessa pela estrutura das obras,
a analise externa enfatiza, sobretude sua funcao social. 0 conceito de campe visa articular esses
dois aspectos da analise, tendo em centa as mediacoes entre essas duas erdens de fenérnenos. Tal
cenceite aparece pela primeira vez sob a pena de Beurdieu no artigo “Champ intellectual et projet

88 CAMPO LITERARIO
créateur”, publicado em 1966, na revista Les Temps Modernes, fundada e dirigida por Jean-Paul
Sartre. Se a ideia de um universo social relativamente autonomo, dotado de uma historia prépria
e de regras especificas, jé esta presente nesse texto, Bourdieu iré. renegar essa primeira elaboracao,
que considera como demasiado interacionista, em beneficio de uma concepcao mais objetivista e
topologica do campo, desenvolvida em varios artigos publicados entre 1971 e 1991 — “Le marché
des biens symboliques” (1971); “Quelques propriétés des champs” (1980); “Mais qui a créé les
créateurs?” (1980), “The field ofcultural production” (1983) e “Le champ littéraire” (1991) —, antes
de elaborar uma obra maior: Les régles de l’art (1992).
De acordo com essa definicao objetivista 6, a0 mesmo tempo, relacional — inspirada pela nocao
fisica de campo magnético (principio de atracao-repulsao) —, o campo designa, simultaneamente,
um espaco de posicoes que se definem umas em relacao ‘as outras em funcao da distribuicao desigual
do capital especifico e um espaco de tomadas de posicao inscritas em uma historia, que também
adquirem sentido umas em relacéo ‘as outras. Esses dois espacos mantém uma relacéo de homologia.
Com efeito, se 0 espaco das possibilidades se apresenta aos escritores sob a forma de escolha a fazer
entre opcoes mais ou menos constituidas como tais no decorrer de sua historia ~ rimas ou verso
livre, narrador extradiegético ou interdiegético, etc. ~, essas escolhas estéticas sao correlatas
das posicoes ocupadas por seus autores no campo, em funcéo do volume e da composicao
, do capital sirnbolico especifico detido, ou seja, do gran e do tipo de reconhecimento que haviam
adquirido enquanto escritores. Para compreender essa distribuicao do capital especifico, irnpoe¥se
relaciona—la com as principais oposicoes que estruturam o campo literario.
A prirneira limita—se a ser a especificacao no campo de uma clivagem que serve de estrutura ao
espago social e se encontra em todos os universos sociaiszela opoe os “dominantes” aos “domina-
dos”, segundo 0 volume global do capital com cotacao nesse universo, no caso concreto, 0 capital
de reconhecimento. Essa clivagem coincide, frequentemente, com a oposicao entre “velhos” e “jo—
vens”, escritores reputados e recém—chegados. Ela pode ser ilustrada pelos membros daAcadémie
Frangaise, por um lado, e, por outro, pelas vanguardas (por exemplo, os surrealistas). Enquanto os
dominantes estao interessados na conservacao do estado das relacoes de forca, os dominados, que
procurarn subverter tal situacfio, rompem com as convencoes e 03 codigos estabelecidos. Ao extrair
elementos da teoria da religiao de Max Weber para pensar esses confrontos, Bourdieu recorre as
nocoes de ortodoxia e heterodoxia. A0 evocar as seitas reunidas em torno de uma figura profética,
as vanguardas aparecem, com efeito, como heterodoxas em sua tentativa de subverter as convencoes
de escrita de sua época, suscitando reacoes mais ou menos acirradas por parte dos defensores da
ortodoxia, comparaveis aquelas dos sacerdotes porta—vozes de determinada igreja. As lutas entre
os partidarios da ortodoxia e os hereges sao recorrentes e, em grande parte, constitutivas da his-
téria do campo. O principio da originalidade que rege o mundo das letras desde o Romantismo
faz com que as lutas de concorréncia para a imposicao da definicéo legitima da literatura tenham
assumido uma forma aberta e, as vezes, violenta, ilustrada perfeitamente pela forma do manifesto.
A segunda oposicéo é mais especifica aos universos da producao cultural, definindo a relacao
de tais universos corn as condicionantes externas: ela distingue tipos de reconhecimento, simbo-
lico on temporal, de acordo com seu grau de autonomia em relacéo a demanda, tratando—se das
expectativas do publico ou da demanda ideologica. Segundo a logica heteronoma, o valor da obra
é reduzido, seja a seu valor de mercado, cuja vendagem constitui o indicador ~ por exemplo, os
best—sellers —-, seja a seu valor pedagégico, de acordo com critérios morals ou ideologicos. No lado

CAMPO LITERAmo 89
oposto, a logica autonoma faz prevalecer o valor propriamente estético da obra, o qual somente os
especialistas — ou seja, os pares e 03 criticos — estao em condicées de apreciar: o reconhecimento
dos pares sera, portanto, o critério de acumulo de capital simbélico especifico no campo.
A producao literaria autonomizou-se da demanda das classes dominantes e do grande publico,
ao‘valorizar o julgamento dos especialistas. Se Bourdieu situa esse processo de autonomizacao
do campo literario em meados do século XIX, sob o Segundo Império, alguns historiadores da
literatura — tais como Denis Saint-Jacques e Alain Viala (1994) — detectam seus primordios desde
o século XVII. No entanto, esse processo nao é linear, nemhomogéneo (SAPIRO, 2012), tendo assu—
mido diversas modalidades em funcao dos paises. Assim, no Brasil, foi no im'cio do século XX, no
periodo modernista, que se assiste a autonomizacao de um campo literario nacional (MICELI, 2001).

Referéncias
BOURDIEU, P. Champ intellectuel et projet créateur. Les TempsModernes, v. 246, p. 895—906, nov. 1966.
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Anne’e Sociologique, v. 22, p. 49—126, 1971.
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BOURDIEU, P. Le champ littéraire. ARSS, n. 89, p. 4-46, 1991.
_
MICELI, S. Intelectuais £1 brasilez'ra. 850 Paulo: Companhia das Letras, 2001.
.,
SAINT-JACQUES, D.; VIALA, A. A propos du champ littéraire: histoire, geographic, histoire littéraire.
I
Annales, Histoire, Sciences Sociales, v. 49, n. 2, p. 395-406, 1994.
SAPIRO, G. Autonomy Revisited: The Question of Mediations and its Methodological Implications.
Paragraph, v. 35, p. 30-48, 2012.

35. CAMPO pou’nco ' ................


Leticia Bicalho Canédo

Em seu modelo de funcionamento e dinémica histérica, o campo politico é explicitado


pela primeira vez no artigo “La representation politique. Elements pour une théorie du
champ politique” (BOURDIEU, 1981a). Bourdieu o formula sem o estudo empirico detalhado
g
que caracteriza suas descricoes da logica dos campos de producao simbélica (intelectual,
religioso, da alta costura, etc). A coeréncia da nocao se sustenta em suas pesquisas anteriores,
nascidas de inquietacoes praticas de seu envolvimento com questoes politicas (colonialismo
na Argélia e escola) e na assimilacao da vasta literatura de sociologia politica (Weber, Marx,
Michels), que ele reinterpreta. Assim, neste artigo fundador, pode reconstruir os objetos
classicarnente abordados pela ciéncia politica (representatividade, partidos, etc.) e aplicar a
sua teoria geral dos campos para o caso particular da politica, podendo doté~la dos conceitos
associados de capital (social, cultural e simbélico), estratégia, trajetoria e habitus. Parte da
ambicao de Bourdieu de elaborar uma sociologia comparada dos modos de legitimacao do
poder e das formas de violéncia simbolica, o artigo foi publicado dois anos apés a revolucao
que sua teoria do espaco social, composicao de grupos e competicao simbélica efetuou no
estudo das classes e das culturas (La distinction, 1979). Equivale, portanto, a urn programa

90 CAMPO POLlTlCO
de pesquisa que inspirou e renovou numerosos trabalhos da ciéncia politica, ao trazer como
problematica fundamental o corte que se estabelecera entre o politico em relacao ao social.
0 campo politico é definido como urn espaco relativamente autonomo, dependente de um
universo de regras, crencas e papéis préprios. E “o lugar em que se geram — na concorréncia
entre os agentes que nele se a'cham envolvidos -— produtos politicos, problemas, programas,
anélises, comentérios, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadaos comuns, reduzidos
ao estatuto de ‘consumidores’, devern escolher" (BOURDIEU, 1981a). E escolher com grandes
chances de mal—entendidos, pois o acesso aos meios de participacao politica ai se distribuem
de forma desigual, tanto do ponto de vista da socializacao quanto da posicéo no espaco social.
Esta definicao, que sublinha a concentracao dos meios de producéo propriamente politi-
cos nas maos de profissionais e o desapossamento desses meios pela maioria da populacao,
condensa sua oposicao aos postulados classicos da ciéncia politica (dissociacao da politica do
mundo social, escolha racional, delegacao, etc.) centrados na figura do cidadao esclarecido
e competente, dado como proprietario de uma opiniao. Ao contrario, faz ver os constrangi-
memos que pesam nas opcoes dos “consumidores” desprovidos de competéncia social para
a politica e de instrumentos proprios de producao de discursos ou atos politicos: abster—se on
se conformar com as escolhas de sens representantes. Na sequéncia de Weber, e utilizando a
, linguagem da anélise marxista da economia capitalista (produtores, consumidores, concen~
tracao de capital, etc.) para definir uma distribuicao desigual de forcas no campo, Bourdieu
questiona a natureza do laco que une representantes e representados.
A definicao retoma o processo de deslocamento do politico em relacao a Vida social or»
dinéria que atravessou todo o século XIX, ou seja, um fendrneno que se‘explica na sociedade
ocidental moderna, quando do aparecimento de dominios separados de atividades, presos
a formaslegais especificas (direito, politica, esfera académica, etc.). Sob este prisma, e com
um conjunto de ferramentas metodologicas e teoricas extraidas da sociologia, antropologia e
historia, Bourdieu evoca Max Weber na sua sa brutalidade materialista (“pode-se viverpara
a politica e da politica”) para refletir sobre esse “microcosmo” social, no interior do enorme
mundo social, onde se geram problemas que agitam os politicos em suas posicées hierérquicas
dentro do campo, permitindo-lhes se distinguir entre eles, mas que, entretanto, nao interessam
a0 cornum dos mort‘ais. Um microcosmo que comporta fenomenos e objetos que parecem
ter existido desde sempre (a democracia, o voto, os partidos politicos, o cidadao eleitor, as
sondagens, os deputados), mas que sao invencoes recentes presas a conjunturas historicas.
Enfim, com a ferramenta analitica do campo, Bourdieu deixa claro desde seu artigo inau-
gural que seu objeto de investigacao nao é a politica, mas o espaco social onde se confrontam
as elites politicas. Com isso, ele restitui a especificidade dos fenomenos politicos em relacao as
logicas sociais de onde derivam: desnaturaliza as instituicoes politicas e o proprio Estado pela
apreensao das relacoes que unem individuos e grupos concorrentes que pretendem falar em
seu nome (BOURDIEU, 1993). A ferramenta permite estabelecer de que maneira os mecanismos
genéricos que regulam a aceitacao ou eliminacéo dos novos entrantes na dinamica do campo
politico (luta de geracoes, reputacao), on a concorréncia entre os diferentes produtores (trajetoria
de acumulacao de capital), determinam os discursos a serem produzidos ou reproduzidos e a
aparicao de ideias—forcas, relativamente independentes de suas condicoes sociais de producao,
e que térn por alvo “impor a visao legitima do mundo social” (BOURDIEU, 1981b).

CAMPO POLITICO 91
A forca das ideias propostas pelos agentes politicos mede-se, diferentemente do que acon—
tece no terreno da ciéncia, nao pelo seu valor de verdade, mas pela forca de mobilizacao que
encerram, pela forca do grupo que a reconhece. Depende, pois, da autoridade daquele que a
pronuncia, da sua capacidade de fazer crer sua veracidade e seu mérito. Ou seja, o anuncio
de urn projeto, de uma esperanca ou simplesrnente de um futuro se executa desde que os
destinatérios se reconhecam nele, conferindo-lhe a forca simbélica e material — em forma de
votos, mas também de subvencoes, quotizacoes ou luta militante (BOURDIEU, 1981b).
0 campo politico, diferentemente dos campos de producao cultural e cientifica, nao pode, pois,
se libertar totahnente dos interesses sociais e dos grupos em Home dos quais a politica se organiza.
Mesmo porque os profissionais da representacao agem em nome de representados que eles mesmos
contribuirarn para fazer existir e unificar (os “trabalhadores”, as “classes médias”, “osjovens”, etc).
A nocao de campo politico nao prevé, portanto, um corte fatal entre profissionais e “profanos”.
Seu objetivo é revelar o conjunto de transacoes operadas entre esses dois lados, capazes de produzir e
manter uma legitimidade na base da crenca politica, vista em analogia a crenca religiosa (BOURDIEU,
1971). Nessas transacées, o desapossamento dos “profanos” tende a se aprofundar a medida que
o campo ganha mais autonomia, torna—se mais profissionalizado e aparecem as instituicoes en-
carregadas de selecionar e formar, além dos politicos propriamente ditos, os especialistas da area:
jomalistas, institutos de sondagens, cornentaristas politicos, assessores em comunicacao. Ai, mesmo
os semiprofissionais (militantes, colaboradores) contribuem para transformar as questoes politicas
em “casos de especialistas que aos especialistas compete resolver", desapossando o cidadao comum
dos meios de producao dos atos socialmente reconhecidos como politicos (BOURDIEU, 1984, 2001).
A grande utilidade da nocéo de campo politico situa—se no fato de as operacoes a serern
realizadas para a sua analise nao se originarem nas categorias de pensamento e problemas
levantados e praticados pelos proprios agentes politicos. Nao partem, tampouco, do que é
formulado nos registros do direito, da histéria das ideias on da ciéncia politica. A logica
estrutural prépria do conceito convida ao levantamento e estudo das propriedades sociais
dos agentes que trabalham em concorréncia pelo monopolio da manipulacao dos bens po-
liticos (posicoes de controle) e do estabelecimento das regras do jogo (cabine eleitoral para
voto secreto, urna eletronica, sufrégio para menores de 18 anos, obrigatoriedade do voto). A
forca da nocao esté em apreender o que une os titulares que ocupam posicoes dominantes
nos diversos espacos sociais (campo politico, economico, burocrético, mediético), opondo-os
nas lutas simbélicas travadas no espaco politico corn armas, capitais e poderes desiguais,
bem como em cornpreender as formas de organizacao coletiva que possibilitam fazer parte
do jogo. A nocao abarca, assim, as transformacoes estruturais do universo politico trazendo
novas reflexoes sobre a problematica das condicoes que possibilitam a acao politica e seus
limites (BOURDIEU, 1985).

Referéncias
BOURDIEU, P. Genése et structure du champ religieux. Revue Frangaise de Socialagie, 11. 12-3, p.
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BOURDIEU, P. De’c‘rire et prescrire. ARSS, v. 38, p. 69—73, 1981b.

92 CAMPO POLITICO
.J
“5:7
BOURDIEU, P. La délegation et le fétichisme politique. ARSS, v:52—53, p. 49-55, 1984.
BOURDIEU, P. Quand les Canaques prennent la parole. ARSS, v. 56, p, 68—85, 1985.
BOURDIEU, P. Esprits d’Etat. ARSS, v. 96—97, p. 49—62, 1993.
BOURDIEU, P. Le mystére du minist‘ere. ARSS, v. 140, p. 7-11, 2001.

36. CAMPO RELIGIOSO


Maria Andre'a Loyola

O texto de Pierre Bourdieu sobre o campo religioso, inspirado nos estudos sobre reli-
giao de Max Weber, constitui uma primeira elaboracao do conceito qu'e, juntamente com
aquele de habitus, sustenta a estrutura do pensamento sociolégico desse autor. De fato, a
sua concepcao do conjunto da sociedade como espaco multidimensional em que as posicoes
diferenciadas ocupadas por agentes sao definidas umas em relacao as outras segundo uma
série de variéveis, notadamente 0 volume e a composicao de capitais — economico, cultural,
social e simbélico — detidos pelo agente e pertinentes para o contexto considerado, Bourdieu
sobrepos o conceito analitico de campos.
A diferenciagao progressiva do mundo social a0 longo da histéria levou a0 surgimento de campos
' mais ou menos autonomos, produzidos pela divisao social do trabalho. A0 contrério da divisao
técnica do trabalho, que se restringe a organizacao da producao, a divisao social do trabalho recobre
toda a Vida social 6 esté relacionada a um processo de diferenciacao que distingue funcoes espea
cializadas, come as funcoes politica, econémica, artistica, entre outras. Em cada campo, operando
dentro de sua autonomia relativa e obedecendo a sua légica especifica, os agentes, posicionados
de acordo com seu volume 6 composicao de capitais, interagem como jogadores em um mercado,
enfi'entando-se para conservar e acumular as formas de capital que permitem dominar o campo.
A génese histérica de um campo religioso relativamente autc‘momo esté relacionada a certos
aspectos especificos das transformacoes socioeconomicas e da divisao social do trabalho.
O desenvolvimento da urbanizacao caracterizou uma ruptura entre campo e cidade, que é
diretamente associada a divisao entre trabalho material e trabalho intelectual. A progressiva
autonomia do trabalho intelectual na cidade emancipou a consciéncia humana da concre-
tude da natureza, permitindo que ela se imaginasse como a representacao de algo nao real.
Emancipada do mundo concreto e da praxis, a consciéncia humana pode chegar a formacao
de teorias “puras” e abstratas, como a filosofia e a religiéo.
O desenvolvimento de um corpo de especialistas encarregados da gestao dos bens de
salvacao, preparados e legitimados para o exercicio monopolizado dessa funcao, constitui
outro aspecto da divisao social do trabalho que contribuiu com a génese da religiao como
campo autonomo. De fato, a formacao de um campo religioso pressupos uma distincao entre
especialistas religiosos, detentores de capital religioso, e leigos profanos, destituidos desse
tipo de capital. Tal desapropriacao valeu nao apenas para distinguir sacerdotes e fiéis, mas
também os grupos anteriormente reconhecidos como legitimos especialistas religiosos, que
passaram a ocupar uma posicao inferior na estrutura do campo, com seu conhecimento sendo
classificado como magiajeiticaria ou outras formas profanas de manipulacao do sagrado.
Os limites do campo religioso relativamente autonomo se consolidaram, assim, na distincao sim~
bélica entre o monopélio do sabersagmdo e a ignorfinciaprofana, que a nocao de segredo/mistério

CAMPO RELIGIOSO 93
exprime e reforca. A religiao, como todos os sistemas simbolicos, cumpre uma funcao de distincao
entre a manipulacao legitima do sagrado e formas inferiores de religiao, tanto formas passadas
quanta concomitantes, que passam a ocupar uma posicfio dominada na estrutura das préticas
e
crencas simbolicas associadas a urna forinacao social determinada. Toda prética ou crenca domi-
nada aparece como profanadora, pois, por sua propria existéncia, constitui uma contestaca
o ou
resisténcia a0 monopélio e a legitimidade da gestao do sagrado pelo corpo sacerdotal hegeménico.
Assim estruturada, a religiao é um sistema simbélico que funciona como principio que constréi a
experiéncia. Ela delimita o que merece ser discutido e o que deve ser admifido sem discussao, como
dogma ou miste'rio da fé. Ela converte os preceitos implicitos de um ethos desejével, consagrando~os
como normas e’ticas explicitas, racionalizadas e sistematizadas. A religiao, portanto, cumpre uma
fimcao ideolégica possivel de ser mobilizada por um grupo ou classe na medida em que permite
a consagracao das propriedades caracten’sticas de um estilo de Vida determinado. Tajs proprie-
dades, associadas a urn grupo ou classe que ocupa uma posicao determinada na estrutura social
e, portanto, sempre arbitrarias, podem ser legitimadas pela re 'giao, que as sacraliza e naturaliza
em sistemas de representacées consagrados cuja estrutura reproduz, de forma transfigurada e,
portanto, irreconhecivel, a estrutura das relacoes socioeconomicas vigentes.
Em uma sociedade dividida em classes, 05 sistemas religiosos préprios as diferentes clas—
ses contribuem para a reproducao da ordem social, na medida em que a consagra, sanciona
e sacraliza, justificando a hegemonia das classes dominantes e impondo aos dominados a
legitimacao da dominacao. Dissimulando em seus simbolos que a dominacao é arbitraria, bem
como as formas pelas quais se opera, a religiao reforca o ethos da resignacao e da renfincia
associado ‘as condicoes de existéncia dominada. A crenca na eficacia simbélica da religiao
exige que o interesse politico que a determina seja mantido velado e apresentado como unidade
aparente, tanto para os profanos quanto para os especialistas religiosos.
Dentro do proprio campo religioso, os diferentes agentes (individuos ou grupos) que disputam
posicoes na estrutura das relacoes de forca podem lancar mao do capital religioso na concorrén—
cia pela hegemonia, dominacao ou monopélio da gestao dos bens de salvacao. Tal monopolio
garante aos agentes o exercicio legitimo do poder religioso, ou seja, o poder de influenciar de
forma duradoura as representacoes e préticas de leigos, incutindo neles um habitus religioso
que passa a ser principio gerador de pensamentos, percepcées e acoes, em concordancia com
as normas de uma representacao religiosa do mundo que é ajustada a uma determinada visao
politica d0 mundo social. 0 capital de autoridade de que dispée um agente religioso se associa
diretamente a forca material e simbélica dos grupos ou classes que ele pode mobilizar, ofere—
cendo—lhes bens e services capazes de satisfazer seus interesses religiosos e politicos.
Dessa forma, no campo religioso, segundo uma logica prépria de mercado, as Igrejas domi-
nantes tendem a impedjr a entrada de novas empresas de salvacao concorrentes, como as seitas.
Elas se esforcam para preservar 0 capital de controle do acesso aos meios de producao, reproducao
e distribuicao dos bens de salvacao. Esse acesso privilegiado é delegado aos sacerdotes que atuam
na ponta, continuamentejunto aos fiéis, conferindo‘lhes autoridade na medjda em que sao funcio-
narios de uma estrutura burocratizada detentora de capital institucional sacramental. Oprofeta
ou ofeiticeiro e sua seita, concorrentes da Igreja hegemonica, colocam em questao o monopél
io
dos instrumentos de salvacao, mas, para tanto, precisam operarurna acumulacao inicial de capital
religioso,a fim de disputar o exercicio legitimo do poder religioso sobre os leigos. Na condicao de

94 CAMPO RELIGIOSO
~x
empresério independente da salvacao, o profeta ou feiticeiro depende da aptidao de seu discurso e
sua pratica para mobilizar os interesses religiosos de fiéis potenciais e para operar uma subversao
da ordem sirnbélica vigente e uma reordenacao simbéh‘ca dessa subversao, dessacralizando o sa-
grado e sacralizando o sacrilégio. Toda seita que logra sucesso tende a tornar~se Igreja depositaria
e guardia de uma ortodoxia, detentora de hierarquias, dogmas e legitimidade. Da mesma forma,
no interior de uma mesma Igreja, é possivel que se estabelecarn relacées de concorréncia entre a
ortodoxia e a heresia. O conflito teologico pela autoridade religiosa entre especialistas se combina
com o conflito por poder 11a hierarquia eclesiéstica, tornando a forma de heresia quando uma
parte do clero contesta o monopélio eclesiastico nas maos das classes sacerdotais hegemonicas.
Este modelo inicial de campo, exaustivarnente retrabalhado por Bourdieu,’e posteriormente
aplicado a analise dos movirnentos e das relacoes de poder em diferentes dominios sociais
— economico, politico, cultural, cientifico, jornah’stico, etc. —, que, embora interligados, nao
podem ser remetidos a uma logica social finica, mas que, em conjunto, garantern a produgao,
a reproducéo e a irnposicao do poder simbolico em nossas sociedades e, portanto, seu préprio
funcionamento (ver também: ETS; OPS; LOYOLA, 2002).

Referéncias
” ’LOYOLA, M. A. Bourdieu e a Sociologia. In: . Pierre Bourdz’eu entrevistado por Maria
Andréa Loyola. Rio de Ianeiro: Eduerj, 2002.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasilia: UNB; Sao Paulo: Imprensa Oficial, 2000. v. I.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasilia: UNB; Séo Paulo: Imprensa Oficial, 2004. v. II.

37. CAMPO UNIVERSITARIO


Afrdm'o Mendes Catani

Homo academicus (1984), um dos principais livros de Bourdieu dedicado ao campo uni-
'versitério francés — o outro é La noblesse d’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps (1989) ~,
estuda duas de’cadas de expansao do sistema de ensino superior de 5611 pais até 03 anos
1970. Nesse trabalho o autor leva as filtimas consequéncias aquilo que afirmava ern sua aula
inaugural no College de France: “qualquer proposicao formulada pela ciéncia da sociedade
pode e deve aplicar~se a propria pessoa do sociélogo” (LL, 7).
Em algumas péginas de Réponses: pour une anthropologie réflexive, comenta que Homo
academicus lhe custou muito em termos de tempo, de reflexéo, de redacfio e pesquisa, irritando
. bastante os colegas universitérios quando examina a si mesmo, pois o texto contém varias paginas
reservadas a sua pessoa todas as vezes que analisa categorias ‘as quais pertence — ao falar de si
revela verdades que atingem a outros. Iustamente o capitulo primeiro, “Um ‘livro para queimar’?”,
se inicia com um periodo revelador do que viré ao longo das mais de trezentas paginas: “Ao tomar
como objeto urn mundo social no qual se estépreso, somos obrigados a reencontrar, numa forma
que se pode dizer dramatizada, um certo nfimero de problemas epistemolégicos fundamen—
tais, todos vinculados ‘a questao da diferenca entre o conhecimento pratico e o conhecimento
erudito e, principalrnente, a dificuldade particular da ruptum com a experiéncia autéctone e
com a restituicao do conhecimento obtido, a custa dessa ruptura” (HA, 11, grifos do original).

CAMPO UNIVERSITARIO 95
No posfécio (“Vingt ans apres”), datado de janeiro de 1987, diz que "analisar cientificarnente o
mundo universitario é tomar como objeto uma institujcao que é socialmente reconhecida como
fundada para realizar uma objetivacao que pretende a objetividade e a universalidade” (HA, 291).
Em La noblesse d’Etat, por sua vez, o foco analitico recai no estudo da estrutura do espaco
de‘educacao das elites na Franca a partir da segunda metade dos anos 1960, estendendo-se até
a década de 80. Bourdieu, ao trabalhar o campo das grandes escolas e a producao e a reprodu—
gao dos grupos dirigentes, mostra a divisao existente entre as escolas (grandes e pequenas) e,
também, entre instituicées que salvaguardam os valores intelectuais e aquelas que preparam
quadros para os postos econémicos e politicos. No entender de Wacquant (2007), tal procedi~
mento permite, nas sociedades capitalistas avancadas, analisar simultaneamente as conexoes
e intersecoes estruturantes do espaco social, do sistema de educacao e do campo do poder.
A partir das ideias centrais de Homo academicus e de La noblesse d’Etat, pretende—se
apresentar as concepcoes de Bourdieu acerca do que denominou campo universitario.
Ao longo de sua obra, escreveu que pensar em termos de campo significa pensar em
termos de relagoes, chegando a falar que “0 real é relacional”: o que existe no mundo social
sao relacoes, “independentemente da consciéncia e da vontade individuais”, corno disse
Marx (R, 57). Analiticamente, um campo se estrutura como uma rede de relacoes objetivas
entre posicoes — e estas se definem objetivamente em sua existéncia e nas determinacoes
que impoem a seus ocupantes (agentes ou instituicoes) por sua situacao atual e potencial
na distribuicao das diferentes espécies de capital on de poder, “cuja posse implica o acesso
.
aos lucros especificosque estao em jogo no interior do campo e, também, por suas relacoes
objetivas corn as demais posicées (dominacao, subordinacao, homologia, etc)” (R, 57—58).
Para 0 sociologo, uma analise em termos de campo implica em trés momentos necessa-
rios e inter-relacionados. De inicio, é preciso que se verifique a posicao do campo em relacao
a0 campo do poder. Em seguida, deve-se estabelecer a estrutura objetiva das relacoes entre
as posicoes ocupadas - por agentes on instituicoes — que competem no interior do campo.
For fun, “56 devem analisar o habitus dos agentes, os diferentes sistemas de posicoes que
estes adquiriram mediante a interiorizacao de um tipo determinado de condicées sociais e
economicas e que encontraram, em uma trajetéria definida dentro do campo considerado,
uma oportunidade mais ou menos favorével de atualizar—se” (R, 64-65).
0 campo universitario, para ele, é 0 espaco social especifico onde se trava uma luta encarni—
cada para estabelecer o monopolio legitimo da verdade académica ou universitaria, espaco esse
marcado por continuas controvérsias corn relacao a0 sentido do 111m e desse proprio mundo.
Todavia, esse campo possui forte particulaiidade: sens veredictos estéo entre os mais poderosos
socialmente (R, 50). Constitui—se em um locus de relacoes que envolve como protagonistas agentes
que possuem a delegacao para gerir e produzir politicas universitérias, isto é, uma modalidade de
producao consagrada e legitimada. E um espaco social institucionalizado, delimitado, corn objetivos
e finalidades especificas onde se instala uma verdadeira luta para classificar o que pertence on n50
a esse mundo e onde sao produzidos distintos enjeux de poder. As diferentes naturezas de capital 6
as disposicoes académicas geradas e atuantes no campo materializam—se nas tomadas de posicao,
é dizer, no sistema estruturado das praticas e das expressoes dos agentes (CATANI, 2013, p. 74-75).
Devern ser analisados os diferentes tipos de capital que déo 0 tom no campo universitario,
tais como escolas que os individuos frequentam, titulos obtidos, premiacoes, projetos de pesquisa

95 CAMPO UNIVERSITARIO
‘74”?
financiados, pertencimento a comités editorials de revistas cientificas, indices de citacao, publicacoes
relevantes, curriculo “internacionalizado”, orientacoes de doutorado, tomadas de posicao politicas,
relacionamento com a midia, etc. Precisam ser levados em conta indicadores detalhados sobre
‘ os professores, os diferentes corpos estudantis, as préprias universidades, as hierarquias univer-
sitarias, as classificacoes dos depaflamentos e institutes. Entretanto, é fundamental estabelecer
de forma precisa a relacao que os cientistas mantém com as distintas institm'coes que integram o
que ele denominou "campo do poder”. Na Franca, por exemplo, considera~se o pertencimento a
comissoes administrativas oficiais, comités governamentais, conselhos de administracao, etc. Nos
Estados Unidos é essencial verificar os comités e relacoes de experts cientificos, a integracao as
grandes fundacoes filantrépicas, aos institutes de policy research, etc. No Brasil, por sua vez, ha
que se observar o aparato que o Estado assegura para garantir a producao, circulacao e mesmo o
consume de bens simbélicos que lhe sao inerentes, envolvendo o conjunto das organizacoes dedi—
cadas a educacao superior pt’iblica e privada, em seus mais variados niveis, formatos e naturezas;
as agéncias financiadoras e de fomento ‘a pesquisa, nacionais e estaduajs; os orgaos estatais de
avaliacao de politicas educacionais; 0(3) setor(es) do Ministério da Educacao responsével/eis pela
educacao superior e os institutos de pesquisa que possuem a mesma finalidade (Inep); os setores
ou camara dos Conselhos de Educacao em distintos niveis; as associacoes e entidades de classe
w(CRUB, Andifes, Andes/SN, PROIFES Federacao, ABMES, ANUP, ABRUC, ANAMEC, ANAFI,
SEMESP, etc.) e as comissoes governamentais (CATANI, 2013, p. 75). No entender de Bourdieu, tais
comissoes representarn urna forma tipicamenteburocrética de consulta, em que os agentes do estado
tém condjcoes de impor nomes que referendem suas posicoes conservando assim o monopélio
da preparacao das decisoes coletivas, da sua acao e da avaliacao dos resultados (SSE, 130-134).
A estrutura do espaco da educacao superior francesa de elite encontra—se organizada em
Grandes Ecoles - “escolas de graduacao seletivas, baseadas em numerus clausus, em classes
especiais de preparacao e exames de acesso uacionais competitivos, com passagem direta para
postos de trabalho e elevado perfil” (WACQUANT, 2007, p. 302) — e universidades, organismos
de massa, abertos a todos que concluem o curso secundario. No interior do préprio campo
das Grandes Ecoles, observa-se a divisao entre as “melhores” e as “piores” e, também, entre
as voltadas a valores intelectuais e as que preparam para posicoes econémico—politicas. Ha as
que sao “intelectuais”, como a Ecole Normale Supérieure, que forma os intelectuais .da nacao
e tém corno estudantes as fracoes cultivadas da burguesia. Ha outras que preparam dirigentes
industriais e do Estado, como a Ecole des Hautes Etudes Commerciales e a Ecole Polytech~
nique, espaco dos oriundos e destinados as fracées ricas da alta burguesia francesa. Por sua
Vez, a Ecole Nationale d’Administration encontra-se ao meio do caminho entre os dois polos,
dela originando os ocupantes dos gabinetes e altos funcionarios da administracao, mescla
de competéncia culturais e economicas, recrutando estudantes cujo patrimonio familiar é
composto “de diplomas raros e riqueza antiga” (WACQUANT, 2007, p. 300, 302; CATANI, 2013).
Essa caracterizacao de diferentes instituicoes corresponde a funcoes sociais distintas e,
principalrnente, produz agentes determinados que exercem papéis sociais de acordo corn
prerrogativas externas ao mundo universitario, mas que se transfiguram em legitimidade
' através do titulo obtido. Bourdieu explicita a compreensao do campo do poder como rede
cruzada das ligacoes estruturais e funcionais que entrelacam o espaco das escolas de elite
com o das classes dirigentes, segundo suas articulacoes. Nas atuais sociedades complexas,

CAMPO UNIVERSITARIO 97
a escola se converte em organizacao encarregada do trabalho de consagracao das divisoes
sociais, além de exigir duas espécies de capital que dao acesso a posicoes de poder, definindo o
espaco social e regulando as oportunidades e trajetérias de grupos e individuos, quais sejam,
0 capital econémz’co e 0 capital social (WACQUANT, 2007, p.298). A generalizacao dos titulos
educativos constitui-se em pré-requisito para a ascensao a0 vértice das empresas privadas e
das burocracias do Estado, consolidando um novo modelo de dominacao (CATANI, 2013, p. 70).
Bourdieu chama a atencao, ainda, para uma dimensao de carater universal: quer na Franca
on em vérias outras formacoes sociais, ser “herdeiro” tem custo cada vez mais elevado, financei—
ramente falando, mas, sobretudo, quanto aos custos emocionais e Vivenciais. As escolas de elite
submetem seus estudantes a regimes de trabalho severos, a estilos de Vida austeros, a praticas
de mortificacao social e mesmo intelectual. Sio sacrificios pessoais terriveis a que nem todos
conseguem ou querern se submeter. Apesar de se beneficiarem de uma série de vantagens desde a
tenra idade, nem todo filho de dirigente empresarial, me’dico cirurgiao ou cientista tem a garantia
de obtencao de uma posicao de destaque. Nem todos os jovens da elite apresentam trajetérias
escolares exitosas, nao sendo poucos os que abandonam‘as escolas preparatérias, on 5510 expul-
sos, ou tentaIn o suicidio ou simplesmente optam por outras carreiras (CATANI, 2013, p. 71—72).
Em La noblesse d’Etat destaca—se, igualmente, que um dos obstéculos principais a socio—
logia do Estado reside na incapacidade que este possui para tornar secreto o seu proprio poder.
Em primeiro lugar, o Estado é o “banco central de crédito simbélico” que endossa os atos de
nomeacao por meio dos quais “as divisoes e 08 altos cargos sao atribuidos e proclamados, i.e., .
promulgados corno universalmente validos no campo de acao de um determinado territorio
e populacao [...]. O titulo académico é a manifestacao paradigmatica desta ‘magia do Estado’
através da qual, a pretexto da certificacéo, as identidades e os destinos sociais sao produzidos,
as competéncias técnicas e sociais fundidas e 05 privilégios exorbitantes transmutados em
direitos devidos” (WACQUANT, 2007, p. 307-308).
A violéncia do Estado é exercida sobre nos através da inculcacao de categorias por meio
do sistema educacional, que produz “memes déceis” e, 1150 é supérfluo recordar, docilis
deriva de docere, ensinar.

Referéncias
CATANL A. M. Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2013.
WACQUANT, L. Lendo 0 “Capital” de Bourdieu. In: PINTO, I. M.; PEREIRA, V. B. (Orgs.). Pierre
Bourdieu: a teoria da prdtica e a construgfio da sociologia em Portugal. Porto: Afrontamento,
2007.

38. CANGUILHEM, GEORGES (7904—7995)


Vincent Bantams

Nascido em 4 dejunho de 1904, Georges Canguilhem concon'eupara a Ecole Normale Supérieure


em 1924. Comecou por ser “alanista”, isto é, discipulo do filésofo, Emile—Auguste Chartier, dito
Alain (18684951), que tinha sido seu professor no Liceu Henri IV e cujo pacifismo exerceu uma
influéncia decisiva sobre ajuventude no periodo entre as duas Grandes Guerras. No final dos anos

98 CANGUILHEM, GEORGES (1904—1995)


1930 desligou-se dessa corrente por razoes, ao mesmo tempo, politicas (confere prioridade ‘a luta
antisfacista) e teoricas (voltou—se para a histéria das ciéncias). Durante a Segunda Grande Guerra,
adere a0 movimento de Resisténcia contra o invasor nazista e defende sua tese de medicina, em
1943, Essaz' sur quelques problémes concernant le normal et le pathologique, publicada pela
PUF sob o titulo Le normal et [6 pathologique. Nesse estudo critica o positivismo da fisiologia,
manifesta um vitalisrno nietzschiano e, do personalismo, mantém a atencao prestada a0 individuo,
De acordo com sua tese, a0 invés de conceber as relacoes do normal e do patologico ao definir a
patologia por um desvio da norrna (definida como média), deve-se, sobretudo, levar em conside-
racao a normatividade variével do individuo em funcao de seu meio, além de conceber a safide
como a “atitude” [“allure”] mediante a qual o individuo é capaz de cometer excesses, enquanto a
doenca significa estar reduzido a tuna norma fixada por uma deficiéncia.
Apés a guerra, ensinou na Universidade de Estrasburgo, antes de se tornar inspetor geral
(1947), funcao que exercera corn-severidade, tendo escolhido Gaston Bachelard para dirigir sua
tese sobre La formation du concept de réflexe aux XVII“ et XVIIIE siécles, texto em que o
método bachelardiano se manifesta pelo uso dos conceitos de “obstéculo epistemolégico” e de
“fenomenotécm'co”. Em 1955, logo apos a defesa da tese, foi eleito para a cétedra de filosofia das
ciéncias da Sorbonne, deixada recentemente por Bachelard que, além disso, vai legar—lhe a pre-
, sidéncia do Institut d’Histoire des Sciences. Investido de tais funcées, Canguilhem desenvolve
uma histéria dos conceitos da biologia e da medicina -— La connaiSsance de la vie — e transmite a
heranca bachelardiana mediante seus cursos na Sorbonne e no IHS: “Ao dar continuidade a obra
de Gaston Bachelard, sobre a qual ofereceu de uma apresentacao admirévelflGeorges Canguilhern
produziu urna contribuicao decisiva para a epistemologia histérica ou, mais; para a historicizacao
da epistemologia, para a anélise rigorosa da génese dos conceitos cientl'ficos e dos obstéculos his—
téricos a sua emergéncia, sobretudo por meio de descricoes clinicas das patologias do pensamento
cientx’fico, das falsas ciéncias e dos usos politicos da ciéncia, em especial da biologia” (BAA, 41).
Nomeado presidente do jfiri da agrégation de filosofia (1964-1968), promove a exigéncia
de cientificidade e encarna o espirito de rigor para a geracao de estudantes de filosofia da
Ecole Normale Supérieure das décadas de 1950-1960: “Condiscipulo de Sartre e de Aron na
Ecole Normale, dos quais se distingue por uma origem popular e provinciana, Canguilhem
podera ser reivindicado, ao mesmo tempo, pelos ocupantes de posicoes opostas no campo
universitério: enquanto homo academicus exemplar — tendo desempenhado, durante um
longo periodo, e corn 0 mais extremado rigor, as funcoes de inspetor geral do ensino secun—
dario —, ele serviré de emblema a professores que ocupam posicées inteiramente homélogas
a sua nas instancias de reproducao e consagracao do corpo; entretanto, enquanto defensor
de uma tradicao de historia das ciéncias e de epistemologia, o refugio herético por exceléncia
da seriedade e do rigor na época do triunfo do existencialismo, ele sera consagrado, junto
com Gaston Bachelard, como mestre do pensamento por parte de filésofos mais afastados
do nucleo da tradicao académica, tais como Althusser, Foucault e alguns outros” (MP, 49).
Foi escolhido por Bourdieu para orientar sua tese sobre “Les structures temporelles de la
vie affective”. Ainda que, nesse estudo, nao faca nenhuma referéncia as obras de Canguilhem,
Bourdieu exibe a mesma forma de expressao, laboriosa e austera. Além disso, a proximidade dos
dois homens era tambérn, sem duvida, grandemente tributaria da semelhanca de suas trajeté-
rias: de origem rural e modesta, ambos tinharn sido “salvos” pela educacao, até fazerern parte

CANGUILHEM, GEORGES (1904-1995) 99


da elite intelectual parisiense (a ENS) sem deixarem de manter—se apegados a uma identidade
provinciana (como prova, por exemplo, o fato de ambos conservarem o sotaque meridional).
Todavia, apesar da atencao benevolente que lhe presta seu “irmao mais velho”, as escolhas de
carreira de Bourdieu vao distancié-los: este se esquiva quando Canguilhem lhe propoe um posto
que ele préprio ja havia ocupado em um liceu de Toulouse. Em seguida, Bourdieu abandona
sua tese de filosofia, em 1957, para empreender pesquisas de campo; finalmente, rompe com a
disciplina. Produziu-se entao uma ruptura, tanto intelectual quanto afetiva, entre os dois homens:
“Ele se afeicoara a mini, por um desses movimentos de simpatia obscura que se enraiza na
afinidade dos habitus. Lembro que, apos a agrégation, havia me proposto um cargo no liceu
de Toulouse, acreditando me dar o maior prazer devolvendo-Ine a0 ‘interior’, e ficou deveras
espantado, quem sabe até um tanto chocado, a0 ver- me recusar (preferi oliceu de Moulins,
que me aproximava de Clermont‘Ferrand e de Jules Vuillemin). Quando pensei numa tese,
voltei—me para ele, em vez de Jean Hyppolite, por exemplo, como preferiram outros, numa
espécie de relacao de identificacao cujos signos, em sua maioria, levam—me a crer que se trav
tava de algo em mao dupla (ele me arrumava uma carreira universitaria e cientifica calcada
na sua). Em seguida, quando ia vé-lo, em seu escritério da rue du Four, segurava-me tardes
inteiras (escarafunchava em sua biblioteca, para presentear—me, artigos em separatas
, as
vezes com dedicatérias de grandes cientistas estrangeiros, como Cannon) e en 56 o deixava
com o cair da noite [...] Apés um periodo de desavenca (ficou muito magoado comigo
por
nao haver aceitado o cargo que me reservara no Liceu Pierre Fermat, de Toulouse, onde
ele
mesmo tinha comecado), retomarnos nossas trocas e tivemos conversas frequente
s durante
as jornadas de maio de 1968: ele fazia parte desses oblatos que haviam dado tudo a Escola
e
vivenciavam a simpatia de seus alunos (da minha geracao) pelo movimento estudantil como
uma traicao inspirada pelo oportunismo ou pela ambicao” (BAA, 42—44).
A diferenca de geracao entre os dois homens sugere que a figura tutelar de Canguilhem
péde desempenhar o papel de “pai” em um complexo de Edipo académico, mas convém,
sobretudo observar que a escolha de deixar a filosofia, mesmo rigorosa, para se tornar
sociologo, prolonga e ultrapassa as exigéncias de cientificidade de Canguilhem. E forcoso
constatar a auséncia de referéncias aos trabalhos do mestre, do qual ele retém, sobretudo, a
rejeicao do brilho fécil e o gosto pela arida demonstracao que $510 a marca da epistemo
logia
bachelardiana. De certa maneira, Bourdieu é ainda mais bachelardiano do que
Can-
guilhem. A fim de assegurar a autonomia relativa da sociologia, ele precisava insurgir—
se
contra a pretensao da filosofia no sentido de apoderar-se das questoes sociais sem
fazer as
pesquisas empiricas e os investimentos teéricos necessaries. Evidentemente, sua
critica nao
é, neste caso, contra Canguilhem, mas tern em mira, por exemplo, os discipulos marxista
s
de Louis Althusser (a quem Canguilhem tomara de empréstimo o conceito de ideologia
:
Idéologz'e et rationalite’ dans l’hz’staz're des sciences de la vie, 1977). Os althusserianos‘
consideravam que o materialismo histérico constituia a unica ciéncia social (veja-se,
em Ce
que parler veut dire, a critica do “discurso de importancia" de Etienne Balibar). Assim,
a ruptura epistemolégica realizada por Bourdieu implicava uma franca desvinculacao
em
relacao a filosofia institucional de que Canguilhem permanecia, mesmo que de maneira
critica, um modelo. De acordo com as palavras do préprio Bourdieu: “A Vida cientifica
estava em outro lugar” (EAA, 45-46).

100 CANGUILHEM, GEORGES (7904—1995)


39. CAPITAL
Frédéric Lebaron

Conceito tornado de empréstimo a economia, 0 “capital” é radicalmente repensado por


Bourdieu, desde o inicio dos anos 1960, na perspectiva de uma “economia geral das préti~
cas” que ele nao cessaré mais de aprofundar ern seus trabalhos. O processo da transmissao
hereditéria do “patrimonio” é um dos modelos anah’ticos que lhe permitem operar urna
dupla transformacao: extensao (a zona de pertinéncia da nocao é ampliada, em particular, a
cultura) e, simultaneamente, redefinicao profunda (a nocao é desmonetizada e desvencilhada
de qualquer a priori utilitarista, em uma perspectiva durkheimiana).
Urn “capital” é um “recurso”, segundo o modelo do “patrimonio”, isto é, um estoque de
elementos (ou “componentes”) que podern ser possuidos por urn individuo, um casal, um
estabelecimento, urna “comunidade”, um pals, etc. Urn capital é também uma forma de
“seguranca”, especialmente do ponto de vista do futuro; tern a caracteristica de poder, em
determinados casos, ser investido e acumulado de modo mais ou menos ilimitado.
Na escala do individuo biologico, o patrimonio genético, os estados fisico e fisiologico
de uma pessoa fazern parte evidentemente desses “recursos”. O segundo depende de fatores
sociais, levando a ideia de um “capital corporal” ou “fisico” individual,»vinculado a diversas
propriedades fisiologicas (incluindo a saude “objetiva”). Esse capital corporal nao é apenas
urn dado (fixado, a semelhanca do tamanho na idade adulta), na medida em qua ele é sus—
cetivel de conhecer variacoes culturais e sociais. Ele determina muito diretamente diversas
modalidades de satisfacao e de bem-estar, sob sua forma fisica. fl
Os outros tipos de capital existem no estado objetivado - por exemplo, sob a forma de bens
imobiliérios ou de pertences financeiros que podem ser avaliados ern determinado momento,
gracas aos precos do mercado ou de outras convencoes de avaliacao. Eles existem tambérn no
estado incorporado, sob a forma de disposicoes inscritas nos cérebros e nos corpos (e, nessa
qualidade, dependem de uma forrna alargada de capital corporal). Este segundo aspecto enfatiza
o caréter social ou psicossocial das dimensoes corporais do comportamento. Enfim, eles tém
igualmente uma forma institucionalizada que remete ao direito e a0 reconhecimento dos capitals
por instituicoes. Um diploma, a carteira de habilitacao, o direito de votar, etc., 350 outras tantas
formas objetivadas, institucionalizadas, de um capital particular (escolar, técnico-pratico, etc).
Fora do capital corporal evocado acima, quatro grandes famflias de capital podem ser distingujdas:
0 capital econémico. Esta nocao corresponde a uma extensao da nocao corrente de
“patrimonio”. Ele é “naturalrnente” avaliado ern unidades monetérias, mas é tambérn muitas
vezes fisico: terra, bens imobiliarios, automével, equipamentos (doméstico on industrial...),
“posses” diversas, etc. 0 capital financeiro (a pOupanca) é apenas um componente particular
do capital economico em sua acepcao mais ampla. 0 capital economico produz igualmente
rendimentos (em particular, 05 rendimentos do patrimonio, como aluguéis ou dividendos)
e pode estar associado, sobretudo, a diversas formas de “conforto”: tamanho das moradias,
nfimero e qualidade dos meios de locomocao, etc. Os fluxos de proventos (especialmente
salariais) nao constituern, em 51 mesmos, um capital economico, mas permitem eventual-
Inente constitui-lo. sac, contudo, urn indicador de posicao economica, Vinculado a outras
formas de capital (corno tudo o que se refere a nocao de “qualificacao”). Eles sao também o

CAPITAL 101
fundamente possivel de um acumule patrimenial. Mesmo que es rendime
ntos nae sejam
uma boa aproximacao do capital economico, sua avaliacéo continua
sendo um elemento
central em toda a anélise socioeconomica, particularmente em matéria
de distribuicae dos
fluxes de riqueza. Os rendimentos e o consume sac, evidentemente
, fatores importantes de
“bem-estar material”. Nesta matéria, uma das discussées mais classicas incide
sobre o vinculo
entre o nivel de riqueza (rendimentes, patrimonio) e a “felicidade” subjetiv
a. Em funcao do
ethos economico (que pode, per exemplo, ser mais ou menos asce’tico ou hedonis
ta), a relacao
entre es dois nae é idéntica: as estruturas sirnbolicas devem ser levadas em
consideracao para
cempreender es efeites e o valor dado ae capital econémico.
0 capital cultural. Construida nos anos 1960 para explicar as desigua
ldades sociais em
matéria educativa, cultural ou, ainda, certas diferenciacoes nos compor
tamentos em maté-
ria de saude, de relacao com o corpo, etc, a nocao de capital cultural remete
a um cenjunte
multidimensional de ‘.‘competéncias” (per exemplo, o dominio da lingua,
do célculo, etc.) e
de disposicoes (que constituem sua versao incorporada, sob a forma de conexoe
s neurais e
de auternatismos mentais e corporais). Ela institucionaliza—se per meio de
diversas entidades
juridicas (diplomas escolares, qualificacoes, etc). A restricao do capital cultura
l a “competen-
cias” valorizadas pelo mercado (valorizacao acompanhada frequentemente
de uma medida
monetéria), sob a ferma do que se designa por “capital humane”, é uma
reducao manifesta
das competéncias culturais, assim come a limitacao destas as competéncias
mais institucio-
nalizadas ou mais legitimas. Pede-se perguntar em que medida 0 capital
cultural aprimora,
on male, 0 bem~estarz a relacao nae é, evidentemente, mais direta do que
no case do capital
economico, mas as praticas culturais e de lazer sao potencialmente fontes
de diversas formas
de bem-estar e valorizadas come tais.
.
0 capital social. No plano individual, trata-se das “relacoes pessoais” enquan
to recursos
pessuidos por uma pessea, uma familia, e constitutivas deuma “rede”..
. Em um nivel cole-
tivo, 0 capital social remete, de preferéncia, a nocao durkheimiana de
integracae social: é
possivel concebé-lo no plano de um bairro, de uma “cemunidade” ou de
qualquer entidade
politico-administrativa. Sua medida é controversa, mas as relacoes pessoa
is constituem um
elemento importante da Vida coletiva. Alguns autores, na esteira de Putnam
, transformam
esse componente em um fater determinante da “confianca” e de feneme
nos politicos e eco—
nomicos (democracia, crescimento, etc). Essa associacao parece, no memen
to, peuco estével
entre es estudiesos, mas é mais comum que eles enxerguem em certo
m’vel de integracao
social, uma condicae do bem-estar, o que, a0 inverse, a perda dos laces
sociais dos desem~
pregados demonstra. De qualquer mode, com Durkheim e Halbwachs,
pode—se pensar que
0 volume e a composicfie dos laces sociais determinam formas de “centra
lidade”, de poder e
de reconhecimento no amago de determinada sociedade.
0 capital simbélico. 0 capital simbolico de um individuo (mas também
de um grupo,
de uma instituicao, de um pais, etc.) é definido pelo “olhar” depositado
(o “valor” dado) pele
resto da sociedade sobre esse individuo (e, respectivamente, sobre esse
grupo, essa instituicao,
esse pais). Ha, portanto, uma dimensao intrinsecamente “relacienal” e
coletiva. E, antes de
tude, e-estatuto simbélice, em sua dimensao mais concreta, que corresp
onde ao fate de ser
“recenliecido” e “valerizado” (“considerade”, “apreciado”, “amado
”, etc). Tal reconhecimento
assume formas mais ou menos institucionalizadas: pode-se integrar ai o
estatuto reconhecido

102 CAPITAL
~\¢-—‘"L
ao individuo como “cidadao” 'e 05 diversos direitos associados a qualquer estatuto, mas tam~
bém — sobretudo, nos grupos dominantes — as condecoracoes, os titulos, as “honrarias” em
geral. A exposicao midiatica esta, por exemplo, na origem de formas particulares de capital
s'unbélico que erigem individuos em personalidades publicas (05 “people”, as “personalidades”,
etc.). No lado oposto, a discrim'inacao on a estigmatizacao (seja qual for a origem: cor de pele,
posicao na ordem das castas, deficiéncia, etc.) 350 fontes de diversas formas de opressao que
fortalecem os efeitos de dotacoes inferiores nas trés precedentes espécies de capital. 0 capital
simbolico esta sempre associado ‘as outras formas de capital.
Os diferentes tipos de capital ~ definidos deste modo ~ podem ser acumulados, conver—
tidos uns nos outros, transmitidos de geracéo em geracao, mas de maneiras muito variaveis
e sempre dependentes dos contextos sociais que condicionam seu “valor” social. Urna parte
importante das estratégias dos individuos e dos grupos visa manter ou estender sua dotacao
(absoluta e relativa) nesses diferentes tipos de capital. No entanto, essas estratégias nao sao,
em geral, estratégias de “maximizacao” conscientes e explicitas. Assim, o valor relative dos
diferentes tipos de capital torna~se, por sua vez, um fator de lutas simbolicas. ’

f9-..CA'3'.T.ALC9.':TURAL ........
Maria Alice Nogueim

A nocao de capital cultural é fundamental na obra de Pierre Bourdieu. Formulada pelo


sociologo a partir dos anos 1960, tal nocao tornou-se uma das mais fioderosas categorias
analiticas da teoria social e da pesquisa educacional contemporéneas.
No inicio de sua carreira de pesquisador, Bourdieu estava em busca de uma ferramenta
conceitual que conseguisse explicar as oportunidades desiguais de sucesso escolar de alunos
pertencentes aos diferentes meios sociais. Em outras palavras, era preciso explicar sociologica—
mente a alta probabilidade de fracasso escolar existente entre as criancas e jovens socialmente
desfavorecidos, sem recorrer as teses essencialistas da “ideologia do dom”. E que, até meados
do século XX, 21 explicacao predominante para essa desigualdade fundava~se na ideia de que os
seres humanos seriam dotados de capacidades cognitivas inatas que faziarn deles sujeitos natural
e desigualmente munidos dos atributos intelectuais requeridos pelas aprendizagens escolares.
Corn base em uma série de grandes levantamentos quantitativos produzidos a partir dos anos
1950, na Franca, que demonstravam uma alta correlacao estatistica entre a origern social do alone
(sobretudo o nivel de escolaridade dos pais) e seu desempenho escolar, Bourdieu comeca entao a
testar novas hipéteses que tinham por sustentacao o pressuposto de que as criancas originarias
das classes sociais superiores herdam de suas familias um patriménio cultural diversificado
composto de estruturas mentais (maneiras de pensar o mundo), dominio da lingua culta, cultura
geral, posturas corporais, disposicoes estéticas, bens culturais variados (livros e outros materiais
de cultura), etc., os quais se transformam em vantagens, urna vez investidos no mercado escolar.
Mas, obviamente, 1350 so é possivel porque os contefidos curriculares irnpostos aos alunos e 05
sistemas de avaliacao da aprendizagem praticados pela instituicao escolar se assentarn em uma
cultura tida como “legitima”, isto é, constituida pelos produtos simbélicos socialmente valorizados
(as letras, as ciéncias, as artes) que emanarn dos grupos sociais dominantes, os quais exercem,

CAPITAL CULTURAL 103


por isso mesmo, urna acéo de “violéncia simbélica” sobre os grupos domina
dos. De tal modo
que a selecao e a classificacao escolar dos alunos se revestem da aparéncia
(socialmente aceitavel) .
do mérito individual, dissimulando a realidade do privilégio social. A
instituicao escolar seria,
portanto, um fator de “reproducao” (e 1150 de "democratizacao") da socieda
de.
' Esse conjunto de ideias foi sistematizado nos livros Les he'rz'tiers (1964)
6 La reproduction
(1970), obras da prirneira etapa da carreira dedicadas a0 estudo dos sistema
s de ensino e escritas
com Jean—Claude Passeron. Mas a partir dessa origem, fortemente associa
da ao universo escolar,
o conceito mi se irradiar para a analise de outras esferas da Vida social,
onde se sup6e que a
riqueza cultural exerca efeitos poderosos sobre a classificacao dos individu
os nas diferentes
hierarquias sociais. Para citar apenas alguns dos mais expressivos
exemplos, jé em 1966, no
livro L’Amour de l’art, Bourdieu abordava os efeitos do capital cultura
l sobre o acesso e a
apropriacao das obras de arte pelos sujeitos, bem como sobre sua prépria
experiéncia estéti-
ca. Mais tarde, em uma de suas obras magnas — La distinction
(1979) —-, diferentes préticas
culturais (alimentacao, indumentaria, decoracao, esporte, lazer, etc.)
que compoem o estilo
de Vida dos individuos e dos grupos sociais serao encaradas como
sistemas classificatérios
que opoem o “bom gosto” ao gosto “vulgar”, configurando estratégias
de distincao nas lutas
simbolicas e cotidianas pela classificacao social. Em Homo academ
icus (1984), a nocao de
capital cultural seré utilizada na analise dos determinantes sociais
da producao intelectual
e do corpo docente da universidade francesa. Posteriormente, no
livro La noblesse d’Etat
(1989), o autor examinara a producao de uma elite burocratica, a
partir de mecanismos de
selecao e de consagracao de um grupo cuja reproducao social repous
a na conversao de seu
capital cultural em exceléncia escolar.
Partindo do pressuposto de que o mundo social é multidimensional
e que, portanto, os
bens economicos ou financeiros n50 constituem a unica forma de
riqueza que fundamenta
a divisao da sociedade em classes on estratos sociais, o autor fornece
u, ao longo de sua obra,
infimeras e robustas evidéncias empiricas da existéncia de outros
tipos de recursos que
atuam na definicao da posicao ocupada por um individuo (on per
urn grupo de individuos),
no interior das hierarquias sociais. Ele defende que as diferencas
relativas ‘as condicées ma-
teriais de existéncia se transmutam — por. meio de um process
o subjetivo de internalizacao
de disposicoes e de competéncias — em diferencas no estilo de viver,
isto é, na maneira de se
usufruir os bens materiais possuidos, engendrando distincées simbél
icas entre os individuos
on, em outras palavras, distincoes relativas a posse de bens cultura
is.
Por analogia a0 pensamento de Marx sobre o processo de acumu
lacao dos recursos
materiais nas macs de um determinado grupo social, Bourdieu toma-l
he de empréstimo o
termo “capital”, acoplando‘o a0 qualificativo “cultural”, para deixar
bem claro que se trata
de uma outra dimensao da realidade social, a qual — ainda que menos
tangivel — implica
igualmente na producao, distribuicao e consumo de (um tipo especifi
co de) bens capazes de
render dividendos, ou seja, de proporcionar lucros simbélicos
a seus detentores.
Para 0 autor, esse conjunto de bens simbélicos abarcados sob
a expressao de “capital
cultural” pode existir sob trés modalidades (EB):
a) em seu estado incorporado, apresenta—se como disposicoes
ou predisposicoes dura-
douras que se entranharn no corpo de uma pessoa, tornando-se suas
propriedades fisi-
cas (ex; posturas corporais, esquemas mentais, habilidades linguis
ticas, preferéncias
104 CAPITAL CULTURAL
1%,.»
estéticas, competéncias intelectuais, etc) Esse’e, para Bourdieu, o estado‘ fundamen-
tal” do capital cultural;
b) em seu estado objetivado, configura—se come a posse de bens materiais que represen-
tam a cultura dominante (ex; livros, obras de arte e toda sorte de objetes armazena-
dos em bibliotecas, museus, laboratories, galerias de arte, etc);
c) em seu estade institucionalizade, manifesta-se come atestado e reconhecimento ins—
titucional de competéncias culturais adquiridas (ex; 0 diploma e todo tipo de certifi-
cados escolares).
Como se vé, para se constituirem em “capital”, é precise que esses bens tenham come
{mica fonte aquela parte da producao cultural humana identificada com o produto e com as
propriedades intelectuais das classes dominantes, configurando aquilo que o auter denomina
de “cultura legitima” porque tern curse e validade na escala da sociedade come um todo. O
que significa dizer que esse repertério cultural — que é particular porque emanado de um
determinado grupo social — tern o poder de se impor e de se fazer reconhecer per todes,
adquirindo a aparéncia (enganosa) de universal.
No que concerne a suas origens histéricas, e no case da Franca, Bourdieu associaré o apa-
recimente do capital cultural a0 surgimente do Estado moderno, difusor das ideias de bem e
de service publico, e qual se assenta em um corpo de burocratas, originéries da aristocracia
e da nebreza togada, cuja legitimidade deriva de suas credenciais escolares obtidas em insti-
tuicees de ensino que se desenvolveram desde o século XVIII, chegande ‘as Grandes Eceles
da atualidade. “Assim, para se impor nas lutas que a epoem a outras fracoes dominantes,
nobres de espada e também burgueses da indfistria e dos negécios, a nova classe, cujo poder
e auteridade repousam sobre 0 move capital, 0 capital cultural, deve alcar seus interesses
particulares a um grau de universalizacae superior, e inventar uma versao que podemos
chamar de “progressista” [...] da ideologia do service publico e da meritocracia” (RPp, 41).
Mas o precesso de expansao e valorizacao do capital cultural so encentraré seu pleno
_ desenvolvimente nas sociedades capitalistas avancadas, em decorréncia depmudancas estru—
turais advindas da industrializacao e do desenvolvimento social e economico. A expansao
massiva das taxas de escolarizacao, a ampliacao do acesse aes niveis mais avancados do
sistema de ensino, 0 surgimento e forte crescimento de uma indfistria cultural e dos meios
de comunicacao de massa, tude isso acarretaré e aparecimento de uovas profissees ligadas
‘a divisae do trabalho cultural e promovera a acumulacéo dessa “nova” espécie de riqueza.
De mode que, segundo Bourdieu, em sociedades come as nossas, o espaco social esta
estruturado per deis principios principais de diferenciacae que repousam sobre as duas
mais impertantes fermas de capital — 0 capital economice e 0 capital cultural —, as quais
se encontram desigualmente distribuidas entre a populacao e operam em favor da repro—
ducao das estruturas de dominacae, embora es bens simbolicos e facam de um mode mais
indireto e menes perceptivel.
Ne que diz respeito as leis de aquisicae do capital cultural, o pressuposto central da argu-
mentacao bourdieusiana é e de que ela se da, principalmente, per meie da familia e de suas
acees socializadoras. De tal mode que as familias cultas transmitiriam, a $8115 descentes, urn
conjunto socialmente legitimade de recursos, competéncias e disposicoes de natureza diver-
sificada que rendem a eles lucros materiais ou simbolicos em diferentes mercados sociais: “De

CAPITAL CULTURAL 105


fato, a famflia tem um papel determinante na manutencao da ordem social, na reproducao,
nao
apenas biologica, mas social, isto é, na reproducao da estrutura do espaco social 6 das relacoes
sociais. Ela é um dos lugares por exceléncia de acumulacao de capital sob seus diferentes
tipos
e de sua transmissao entre as geracoes: ela resguarda sua unidade pela transmiss
ao e para a
transmissao, para poder transmitir e porque ela pode transmitir” (RPp, 131).
Entretanto, e' necessério estabelecer uma distincao entre as logicas de transmissao do
capital cultural em seu estado objetivado e em seu estado incorporado. No primeiro
caso, a
transmissao de um bem material é instantanea, “mas o que é transmissive] é a proprieda
de
juridica e 1150 (on n50 necessariamente) o que constitui a condicao da apropriacao especific
a,
isto é, a possessao dos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar
uma
maquina” (BE, 77).
Ia no caso do capital cultural em seu estado incorporado, as leis de apropriacao sao
pre-
coces, e muito mais sutis e dissimuladas (e, por isso mesmo, mais eficazes), operando
~ no
mais das vezes — de modo insensivel e através de um processo que se desenrola no
tempo.
, “Sabe~se, por outro lado, que a acumulacao inicial do capital cultural [...] so comeca
time
a origem, sem atraso, sem perda de tempo pelos membros das familias dotadas de um
forte
capital cultural; nesse caso, o tempo de acumulacao engloba a totalidade do tempo de
socia-
lizacao” (BE, 76, grifos do autor).
Além disso, a aquisicao de capital cultural supoe um investimento do proprio sujeito
que
deve se expor as acoes de inculcacao e assimilacao do patrimonio cultural, entregando—se
a um trabalho pessoal sobre si mesmo, pois, “tal como o bronzeamento, essa incorpora
cao
nao pode efetuar-se por procuracéo. Sendo pessoal, o trabalho de aquisicao é um
trabalho
do ‘sujeito’ sobre si mesmo (fala-se em cultivar-se)” (EB, 74, grifos do autor).
Disso decorre que o tempo de aquisicao constitui o melhor estaléo para medir 0 volume
do capital cultural. “Segue—3e que, de todas as medidas do capital cultural, as menos
inexatas
sao aquelas que tomam por padrao de medida o tempo de aguisicao com a condicao, certa-
mente, de 1150 o reduzir ao tempo de escolarizacao e de levar em conta a primeira educacao
-
familiar” (EB, 74, grifos do autor).
Por fim, cabe ainda acrescentar que, na visao de Bourdjeu, cada uma das diferente
s espécies
de riqueza que tém curso em nossas sociedades (0 capital economico, 0 capital cultural, 0 capital
social e 0 capital simbolico) pode ser transformada ern outra espécie. Isso ocorre porque,
embora
sendo de natureza muito diversa, elas mantém entre si relacoes muito fortes; o que faz com que

no ambito das dinamicas sociais — elas se reconvertam incessantemente umas nas
outras,
segundo leis que o autor trabalhava arduamente para desvendar. No que tange ao capital
cultural, o autor insistiré, sobretudo nas logicas que presidem a sua reconversao em
capital
economico e vice—versa. “Ao conferir ao capital cultural possui'do por determinado agente
um
reconhecimento institucional, o certificado escolar [...] permits também estabelec
er taxas de
convertibilidade entre 0 capital cultural e 0 capital economico, garantindo o valor em
dinheiro
de determinado capital escolar. Produto da conversao de capital econémico em capital
cultu-
ral, ele estabelece o valor, no plano do capital cultural, do detentor de determinado
diploma
em relacao aos outros detentores de diploma e, inseparavelmente, o valor em dinheiro
pelo
qual podelser trocado no mercado de trabalho — o investirnento escolar so tem sentido
se um
minimo de reversibilidade da conversao que ele implica for objetivamente garantido”
(EB, 79).

106 CAPITAL CULTURAL


Roberto Grim

Em aula ministrada no College de France em 21 de fevereiro de 1991, posteriormente


editada, Bourdieu escreve que “A riqueza material jamais funciona somente como riqueza. O
reconhecimento concedido a riqueza varia segundo as sociedades e 05 momentos e 05 préprios
efeitos da representaeao dessa riqueza fazem corn que a forga economica mais bruta acabe se
beneficiando de um efeito simbélico suplernentar que fortalece esse mesmo reconhecimento”
(SE, 303). Nessa chave, Bourdieu se inspira em autores de uma geraqao anterior a dele que
discutiram o funcionamento da economia de sociedades que antecederam o capitalismo e suas
especificidades face a contemporaneidade, especialrnente Moses Finley e Karl Polanyi. Essa
aproximagao aparece especialmente em Le sens pratique (1980) e, a partir dessa genealogia,
pode~se ligar o autor a “nova sociologia econémica” que entao comegava a aparecer no cenario
anglo~saxao e que se refere a Polanyi como mestre fundador.
Em seguida, a partir dos anos 1980, Bourdieu se aproxima mais explicitamente do universo
intelectual norte-americano e estabelece uma zona de dialogo com os neoinstitucionalismos,
notadarnente o econémico (R). Tais correntes de pensamento pregam a importéncia das
instituigées na explicaeao do funcionamento das esferas economical ou politica. A sociologia
de Bourdieu fornece pistas e metodologias para investigar 11510 56 as formas explicitas de
institucionalizagao como também, através da noqao de habitus e das sugestoes sobre como
investigé-la, aquelas maneiras implicitas e bem memos recuperaveis através das metodologias
tradicionais das ciéncias sociais e do direito (FLIGSTEIN, 1990; POWELL; DIMAGGIO, 1991).
Indo além, aponta tautologias no conceito central da “escola das convenqées”, uma corrente
economica contemporanea importante na Franea, com razoavel difusao internacional (MP).
A teoria geral dos capitais de Bourdieu diz que eles funcionarn de maneira e intensidade
diferentes em cada espago, ou campo, em que séo utilizados. Isso parece evidente para os outros
,capitais, mas é pouco intuitivo para o economico. Essa é outra virtude heuristica do conceito
de Bourdieu: ele nos conduz a procurar essa diferencialidade e suas consequéncias. Em espaqos
come 0 religioso e o intelectual, 0 capital economico funciona caprichosamente, tendo que ser
denegado. Se isso nao acontecer, ele pode perder a condigao de trunfo e até virar urn problema
para seu portador. Ia em universes corno o financeiro, mesmo as pulsées ernocionais térn de ser
expressas na“fria1inguagern do dinhe'rro”. Caso contrario elas serao consideradas desproposi-
tadas e seu locutor seré visto como destituido da condigao de agente legitimo daquele espago.
Aplicado em universos corno o cultural, nos quais o principio legitimador rejeita a riqueza
material e em especial'a sua ostentagao, 0 capital econémico esté sujeito a “taxas de cambio”
variaveis. Nesse sentido, as estratégias de denegaqao do seu 1150 e agao latente variarn no tempo
1 e no espago. Por exemplo, se urn capitalista quiser promover a carreira artistica de seu filho, ele
nao pode simplesrnente comprar uma galeria para expor seus trabalhos, ou contratar urn critico
de arte para elogr‘é—lo. A “sua” galeria deveria passar anos expondo artistas consagrados ou de
vanguarda até poder programar seu parente. Se, alternativamente, ele pretender fazer trocas com
outro galerista, expondo o filho dele enquanto o outro exporia o seu filho, a pouca distancia entre
eles atrain'a suspeitas sobre a operagao conjunta e 03 eventuais méritos artisticos dos promovidos
seriam desprezados. E 215a que a possibilidade de alavancar uma carreira artistica a partir

CAPITAL ECONOMIco 107


do capital econémico demandaria nao so dispéndio monetario, corno também urn periodo de
caréncia mais ou menos longo para legitimar a aplicacio de capital economico num espaco em
que ele nao é sinénirno de virtude. O montante de dinheiro e o tempo de caréncia iréo variar de
acordo com o grau de independéncia do espaco artistico em relacao ao econémico. A comparacéo .
dessas duas variéveis entre dois periodos de um mesmo espaco social ou mesmo entre espacos
sociais diferentes acabam dando boas medidas das especificidades e dos graus de autonomizacao
de cada campo em cada momento e assim ela se torna uma boa estIate’gia investigativa. Da mesma
forrna poderiamos olhar para a distancia social entre as sponsors que estariam trocando favores.
O gran de proximidade que seré percebido como ilegitimo varia segundo os locals e 03 momentos,
tarnbém servindo para comparacoes e a construcao de gradientes de autonomizacao.
No decorrer da trajetéria intelectual de Bourdieu, a nocao de capital economico foi se especifi-
cando para dar conta de perguntas geradas por ambientes intelectuais diferentes. N0 final dos anos
1950 e inicio dos 1960, a Francavivia o império do marxismo. 0 capital, no sentido que os marxistas
davarn a ele, tinha algo de reificado, pois escondia as condicoes de utilizacao desse trunfo chamado
dinheiro. O ramo do empresariado mais proxirno do Estado estava crescendo em importancia e
impunha aos outros sua prépria légica de reproducao social. A abordagern marxista nao conseguia
captar alégica das formas de legifimacao que se configuravam daquele periodo em que as credenciais
escolares estavam ganhando urn peso bem superior ac dc momentosanteriores no reconhecimento
social e nas estratégias de reproducao dos privilégios sociais para as geracoes seguintes. A nocao de
capital economico deixava claro que os trunfos mobilizados pelos capitalistas naquele momento
n50 eram diretamente os economicos, mas os culturais e as simbélicos de maneira geral.
Entre as obras mais conhecidas de Bourdieu, o artigo “O patronato”, escrito com Monique
de Saint Martin, depois consolidado no livro A distincfio, no interior de uma analise mais siste~
matica da estrutura social como urn todo, expressa bem os problemas que ele tentava resolver e
o sentido do conceito para essa fase. Além disso, elas ja apontam a evolucao dos usos do conceito
numa nova fase em que as ciéncias sociais comecavam a incorporar alguns conceitos,
como 0
de network, que iré adquirir centralidade em diversos dos seus segmentos. No topico riqueza
economica, Bourdieu foi seguido pelos sociologos Michel Pincon e Monique Pincon—Charlot,
que dedicam décadas de pesquisa ‘as formas de sociabilidade e de legitimacao das camadas
mais elevadas das burguesias economicas europeias contemporaneas, inclusive adaptand
o
o conceito mainstream de rede a sociologia de Bourdjeu para dar sentido as transformacoes
ocorridas nesse segmento privilegiado da estrutura social (PINQON; PINQON—CHARLOT, 2010).
A publicacao do livro postumo contendo o curso sobre o Estado explicita outros desenvolvi—
mentos do conceito de capital economico, agora vinculado a construcao dos Estados moderno
s.
Dialogando com Elias (1976), Tilly (1990), Baker (1990), Hanley (1983), Corrigan
e Sayer (1985),
entre outros, Bourdjeu rnostra como a coleta de recursos que acontecia na sociedade europeia
medieval vai se transformando no imposto contemporaneo e, nesse sentido, sistemat
izando
ao mesmo tempo as centralidades economica e cultural do Estado. Nesse carninho analitico
se
estabelecem diversas relacées insuspeitas. Uma delas é a invencio do patriotismo como
urna
forma dejustificacao da imposicao fiscal permanente. Era faciljustificar a coleta de recursos
para
custear gastos extraordinérios causados por guerras, mas mais difi'cil nos periodos de paz
relativa.
Insistindo na indissociabilidade entre histéria economica e historia cultural, Bourdieu
recoloca no sentido inverso uma de suas teses fundamentais sobre a centralidade do
Estado

108 CAPITAL ECONOMICO


Lg,..:-‘
na constituicao do poder simbolico. De um lado, o Estado produz e mantém a sua forca e o
seu capital econémico através da centralizacao do imposto e da constituicao do monopo-
lio da emissao de moeda. Da mesma forma, através do controle da emissao dos diplomas
escolares, controla o fundamento filtimo da distribuicao dos capitais cultural e simbélico.
A partir desse topico podemos fazer inferéncias sobre as preocnpacoes a propésito do enfra—
quecimento dos estados nacionais tanto na esfera simbélica quanto na propriamente economica.
Esses temas estavam presentes no filtirno Bourdieu e se tornaram mais relevantes nos anos
posteriores a0 do seu falecimento. Assistimos na primeira década do século XXI a construcao
de estruturas estatais supranacionais como a Uniao Europeia, que retirou o poder de emissao
de moeda dos estados nacionais nela incluidos e que também impés mudancas significativas
nos sistemas de ensino nacionais. Na economia mundial vimos o aumento de intensidade e
velocidade da circulacéo internacional de capitais provocada pela chamada “financeirizacao da
economia”. Essas duas novidades alteraram a relacao entre os estados nacionais e 05 detentores
de capitais economicos e simbolicos. Os individuos e organizacoes financeiras nao estatais au—
mentaram sua forca diante do Estado, que Bourdieu costumava comparar a um Banco Central
1150 so estritamente economico, como também simbolico. Essas transformacées sociais foram
seguidas por pesquisadores préximos de Bourdieu, como Dezalay e Garth (2011) e Wagner (2011).

Referéncias
BAKER, K. M Inventing the French Revolution: Essays on French Political Culture in the Eigh~
teenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
CORRIGAN, P. R. D; SAYER, D Clhe GreatArch: English State Formation as Cultural Revolution
Oxford: Blackwell, 1985.
DEZALAY, Y.; GARTH, B. G. Lawyers and the Rule ofLaw in an Era ofGlobalization. Abingdon:
Oxon; New York: Routledge, 2011.
ELIAS, N. La dynamique de l’Occident. Paris: Calmann—Lévy, 1976.
, FLIGSTEIN, N. The Transformation ofCorporate Control. Cambridge: Harvard University Press, 1990.
HANLEY, S. The Lit de Justice ofthe Kings ofFrance: Constitutional Ideology in Legend, Ritual,
and Discourse. Princeton: Princeton University Press, 1983.
PINCON, M.; PINCON-CHARLOT, M. Les ghettos du gotha: au coeur de la grande bourgeoisie.
Paris: Points, 2010.
POWELL, W. W.; DiMAGGIO, P. The New Institutionalism in Organizational Analysis. Chicago:
University of Chicago Press, 1991.
TILLY, C. Coercion, Capital, and European States, AD 990—1990. Cambridge: Blackwell, 1990.
WAGNER, A.—C. Les classes dominantes a l’épreuve de la mondialisation. ARSS, Paris, v. 190, p. 49, 2011.

42. CAPITAL SIMBOLICO

Monique de Saint Martin

O conceito de capital simbolico foi elaborado por Pierre Bourdieu desde seus primeiros
trabalhos, empreendidos no final da década de 1950 e no inicio dos anos 1960, sobre o Béarn
e sobre a sociedade cabila na qual o acfimulo de capital simbélico é, de acordo com Bourdieu,

CAPITAL SIMBoLIco 109


a unica forma possivel de acumulo; tal conceito permeia quase toda a sua obra e ostenta, sem
qualquer duvida, a grife de Bourdieu. Ele é forjado progressivamente pelo autor, desde seus
primeiros artigos, nos quais é frequentemente associado a0 capital material, sem deixar de
distinguir~se dele, assim como em um de seus primeiros livros, Esquisse d’une the'orie de la
pratique (1972), até suas ultimas obras, tratando-se seja de Me’ditatz'onspascaliennes (1997)
on de Le Bal des célibataires (2002) e val retoma—lo incessantemente, abrindo entao novas
perspectivas, por exemplo, em seus trabalhos sobre alinguagem (PVD; LPS) on em seus cursos
sobre o Estado, ministrados no College de France, entre 1989 e 1992 (SE). Nenhum artigo
foi dedicado ao capital simbélico, de maneira especifica, na revistaActes de la Recherche en
Sciences Sociales, diferentemente do que ele fez em relacao ao capital cultural ou ao capital
social. No entanto, reflexoes bastante aprofundadas — as vezes, capitulos completos — foram
elaboradas sobre esse conceito em vérias obras.
Nao hé duvida algurna de que é dificil propor uma definicao — mesmo que provisoria — do
capital simbélico em Bourdieu: por um lado, pelo fato de que ele desconfiava das definicées,
julgando que tal espécie de proposta constitui'a “urn ritual cientifico urn tanto positivista”
(BOURDIEU, 2007), mas tambéin pelo fato de que 0 capital simbolico é, para ele, urn “capital
denegado”, “desconhecido enquanto capital”, e que se apoia, em parte, na crenca on no reco—
nhecirnento (SP). 0 capital simbélico funciona, conforms explica em Le sens pratique, como
“um crédito, mas no sentido mais amplo do termo, ou seja, uma espécie de adiantamento, de
desconto, de promissoria” que os membros de um grupo atribuem somente aqueles que — em
razao de sua posicao, do trabalho que eles executam para manté—lo — lhe fornecern o maior
numero de garantias. A manutencao desse capital pode, alias, entrar ern contradicao com a
gestao dos interesses economicos, profissionais ou até mesmo culturais.
Se é imposslvel dar uma definicao precisa, varnos mesmo assirn tentar, no minimo, cir—
cunscrever o conceito e identificar suas principais caracten’sticas. Por ocasiao de uma inter-
vencéo em um coloquio realizado em Toulouse, em 1994, intitulado “Anciennes et nouvelles
aristocraties de 1880 a nos jours”, cujo texto foi publicado apés sua morte, Bourdieu indicava
com precisao e explicitava com suficiente clareza, djante de historiadores e de sociologos, o
que entendia por esse conceito: “0 capital simbélico é um capital com base cognitiva que
se apoia no conhecimento (nao intelectual, mas um dominio pratico, um senso pratico).
Qualquer propriedade — conchas nas Ilhas Trobriand, numero de voltas do colar de pérolas
na corte da Suécia [. . .] ~, qualquer diferenca pode tornar—se capital simbolico, distincao, se
a distincao makes sense, ‘adquire sentido’ para as pessoas que dispoem de categorias de
percepcao para apreendé-la” (BOURDIEU, 2007, p. 388). E, em seguida, sublinhava que, em
seu entender, capital simbolico é algo “melhor que prestigio, o qual destroi, pela banalizacao,
o que ele designa; inclusive, melhor que carisrna porque ele tern a ideia de que, sob certas
condicoes, 0 capital simbolico pode ser uma importante fonte de ganhos”. “E algo da honra,
da posicao, da diferenca que existe paraalguém que é capaz de fazer diferencas, de ver a
primeira vista a diferenca entre trés posicoes e quatro voltas do colar de pérolas”. Bourdieu
referia-se, nesse caso, a intervencao de Angela Rundquist que, nesse coléquio, analisava o
ritual de apresentacao publica das damas, jovens e mais idosas, em vigor até 1962 na corte
real da Suécia, na qual estas ultirnas iam fazer uma profunda reveréncia as damas da familia
real a lira de serern assim conhecidas e reconhecidas (RUNDQUIST, 2007).

110 CAPITAL SIMBOLICO


.3
an.
0 capital simbélico possui propriedades bastante particulares e diferentes das outras
espécies de capital: nao é uma espécie de capital semelhante a do capital economico, do
capital cultural e, também, do capital social; ele é, por sua vez, particularmente labil, frégil
e vulnerével. De acordo com a explicacao de Bourdieu, tal fragilidade deve-se ao fatode que
ele é “um capital alienado por definicao, um capital que se apoia necessariamente nos outros,
no olhar e na fala dos outros” (BOURDIEU, 2007, p. 389). Ele pode perder—se facilmente, tal
como a honra que pode se perder por uma ninharia — por exemplo, no teatro do Século de
Ouro espanhol. Ele é também distribuido de maneira bastante desigual; “Dentre todas as
distribuicoes, uma das mais desiguais e, sem duvida, a mais cruel — explicava Bourdieu — é
decerto a reparticao do capital simbolico, ou seja, da importancia social 6 das razoes de Viver”
(MP, 284). Essa distribuicao é tao desigual que Bourdieu chegou a falar da “maldicao de um
capital simbélico negativo” a proposito do “péria estigmatizado” que podia ser 0 judeu da
época de Kafka ou, atualmente, o preto dos guetos, o arabe on o turco dos subi'irbios operérios
das cidades europeias (BOURDIEU, 2007, p. 389).
N50 se pode avaliar nem padronizar 0 capital simbolico, que é dificilmente objetivével
na medida exata em que é um conjunto de propriedades distintivas que existem na 6 pela
percepcao de agentes dotados das categorias de percepcao adequadas. Ora, tais categorias se
adquirem, nomeadamente, através da experiéncia da estrutura dadistribuicao desse capital ,
no interior do espaco social ou de um microcosmo social particular, por exemplo, o campo
cientifico on o campo da alta costura.
A fragilidade do capital simbolico também tem a ver, sem duvida, com o fato de ser des~
tituido, de certa forma, de autonomia: sera, ou nao, uma espécie de capital autonomo, on n50
teré tendéncia a confundir—se com as outras espécies de capital? A questao pode ser suscitada
quando se lé, por exemplo, em Raisons pratiques: “Designo por capital simbolico qualquer
espécie de capital (economico, cultural, escolar on social) quando ela é percebida segundo
categorias de percepcao, principios de visao e divisao, sistemas de classificacao, esquernas
classificatorios, esquemas cognitivos que sao, pelo menos em parte, 0 produto da incorpora-
cao das estruturas objetivas do campo considerado, ou seja, da estrutura da distribuicao do
capital no campo considerado” (RP, 161). 011 ainda, em Méditationspascaliennes: “Qualquer
espécie de capital (economico, cultural, social) tende (em graus diferentes) a funcionar como
capital simbolico (de modo que, talvez, fosse preferivel falar, a rigor, de efeitos simbélicos
do capital) quando obtém um reconhecimento explicito ou prético, 0 de um habitus estru~
turado segundo as mesmas estruturas do espaco em que foi engendrado. Em outros térmos,
0 capital simbélico (a honra masculina das sociedades mediterréneas, a honorabilidade do
homem ilustre on do mandarim chinés, o prestigio do escritor renomado, etc.) 1150 constitui
uma espécie particular de capital, mas aquilo em que se torna qualquer espécie de capital
quando é des'conhecida enquanto capital, on seja, enquanto forca, poder ou capacidade de
exploracao (atual ou potencial), portanto, reconhecida como legitima” (MP, 285). Assim, se
nao chegou a duvidar do rigor desse conceito, o préprio Bourdieu se questionou, pelo memos,
para saber 36 I150 seria preferivel focalizar a atencao nos efeitos simbolicos do capital, seja ele
economico, cultural on social, em vez de se concentrar no capital simbolico.
0 capital simbélico pode, efetivamente, ser difuso, baseado unicamente no reconhecimento
coletivo; no entanto, e de acordo com a observacio de Bourdieu em seus trabalhos e reflexoes

CAPITAL SIMBOLICO m
sobre o Estado, esse capital pode tornar—se objetivado, codificado, delegado e garantido pelo
Estado, até mesmo, burocratizado.
O acfimulo primitivo do capital simbélico esté, segundo Bourdieu, na origem da emergéncia
do Estado, principal agente e instrumento primordial de construcao da realidade social. Bour-
dieu, observa Remi Lenoir (2012), utilizava com frequéncia — nomeadamente em seus cursos
sobre o Estado, no College de France — o exemplo da transformacao dessa espe’cie particular
de capital simbolico que é a honra feudal, baseada no reconhecimento prodigalizado pelos
pares (e pelos plebeus), honra que deve ser incessantemente conquistada e mantida, em honras
burocréticas reconhecidas e conferidas pelo Estado (LENOIR, 2012). Ele entendia assim explicar
que o Estado tornara—se o finico a garantir o valor das diferentes espécies de capital ou, em
outros termos, 0 capital simbolico pode, entao, ser considerado como um capital de autoridade
de modo que, no caso concreto, somente o Estado esta autorizado a dizer de um individuo o
que ele é, a consagra—lo socialmente, em suma, a nomeé-lo (PW), 99~100, 126-127). Ao fixar a
identidade social de um individuo ou de um grupo, esse ato de classificacao tern a forca de algo
oficial e se imp6e a todos (e, simultaneamente, impoe o Estado a todos). “Os atos de nomeacao,
desde os mais triviais da ordem burocrética ordinéria, tais como a outorga de uma carteira de
identidade ou de um atestado de doenca ou de invalidez, até os mais solenes que consagram
as nobrezas, conduzem, ao termo de uma espécie de regressao ao infinite, até essa espécie de
realizacao de Deus sobre a terra que vein a ser 0 Estado que garante, em liltirna instancia, a série
infinita dos atos de autoridade, atestando por delegacao avalidade dos certificados de existéncia
legitima (como doente, invélido, professor titulado ou péroco)” (MP, 288). Esse monopolio, a
semelhanca do que ocorre em relacao as outras espécies de capital, e' entao o resultado de um
processo de objetivacao que inscreve as lutas em prol da identidade e da sobrevivéncia sociais
na longa duracéo; neste sentido é que, a respeito do Estado, Bourdieu chegou a afirmar que ele
é uma “reserva” ou um “banco central” de capital simbélico, “lugar em que se engendram e 3510
garantidas as moedas fiduciarias que circulam no 111m social” (SE, 196).
Assim, 0 capital simbélico teria sido apreendido por Bourdieu em diversas socieda~
des, em numerosos grupos e em contextos bastante diferentes (desde a sociedade cabila
ao Estado da Era Moderna, passando pelo campo artistico ou pelo campo cientifico). O
conceito pode, sem di'ivida, prestar-se a equivocos, até mesmo, a confusoes: com efeito,
alérn de remeter 21 um grande ni'irnero de situacoes ou realidades diferentes, seus alicerces
(crenca, reconhecimento pelos outros, conhecimento), assim como sua area de influen—
cia, parecem incertos. Apesar disso, ele encontra—se entre os conceitos mais heuristicos
propostos por Bourdieu.

Referéncias
BOURDIEU, P. Postface. La noblesse: capital social et capital symbolique. In: LANCiEN, D.; SAINT
MARTIN, M. (Orgs.). Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 d nos jours. Paris: Ed. de la
MSH, 2007.
LENOIR, R. L’Etat selon Pierre Bourdieu. Sociétés Contemporaines, Paris, 11. 87, p. 123—154, 2012.
RUNDQUIST, A. Pompe en noir et blanc. Presentation officielle des dames. In: LANCIEN, D.; SAINT
MARTIN, M. (Orgs). Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 (‘1 nos jours. Paris: Ed. de la-
MSH, 2007.

112 CAPITAL SIMBOLICO


Monique de Saint Martin

Poi em 1980 que Pierre Bourdieu publicou, em ARSS, o que designou por “Notes provi-
soires” sobre 0 capital social, como introducao a0 mfimero 31 da revista que term 0 titulo geral
“Le capital social” (BOURDIEU, 1980). Esse curto artigo é considerado, pela maior parte dos
comentaristas e amalistas, como o pivo central de suas reflexoes e comtribuicoes sobre essa
nocao, além de ser citado com frequémcia. E, com efeito, messe texto — traduzido em 1998
(EB) ~ que Bourdieu explicita de mameira mais Clara sua concepcao acerca desse conceito.
“A mocao de capital social impos—se cormo 0 (mice meio de desigmar o fumdamemto de efeitos
sociais que, mesmo sendo claramente compreendidos no plamo dos agentes simgulares — em que
se situa inevitavelmemte a pesquisa estatistica -, néo sao redutiveis ao comjunto das propriedades
individuais possuidas por determinado agemte. Tais efeitos, em que a sociologia espomtamea
recomhece, de bom grado, a acao das ‘relacoes’, sao particularmemte visiveis em todos os casos
em que diferentes imdividuos obtéim um remdimemto muito desigual de um capital (economico
on cultural) mais ou memos equivalemte, segumdo o grau em que eles podem mobilizar, por pro-
curacao, 0 capital de um grupo (familia, antigos alunos de escolas de ‘elite’, clube seleto, mobreza,
etc.) mais ou memos comstituido como tale mais ou memos provido de capital. 0 capital social é o
conjumto de recursos atuais ou potenciais que estao ligados 2‘1 posse de uma rede duradoum de
relacoes mais ou memos imstitucionalizadas de interconhecimemto e de inter-recomhecimemto;
ou, em outros termos, a vinculacfio a um grupo, como comjumto de agemtes que, ale’m de serem
dotados de propriedades comuns (passiveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros
ou por eles mesmos), estao umjdos por ligacoes permanentes e uteis” (BOURDIEU, 1980, p. 2).
Assim, sua comeepcao de capital social vai muito além da defimicao mais corremte, on do que
Bourdieu designa por “sociologia espomtémea”. Com frequéncia ele é defimido como “caderno
de emderecos” ou “rede de relacoes”, o que evoca, sobretudo, urn conjunto de imdividuos e
tende a apagar tamto a vimculacao a urn grupo, a urna familia on a uma corporacao, os efeitos
produzidos por esta filiacao quanto a necessidade de levar em comsideracao os outros tipos
ou outras espécies de capitals (economico, cultural, simbélico) aos quais 0 capital social esté
estreitamemte ligado (e sobre os quais ele pode exercer um “efeito multiplicador’l).
Avinculacao a urn grupo e 05 efeitos dessa filiacao sao decisivos ma comcepcio de Bourdieu;
eles timham sido enfatizados em particular por ocasiao da pesquisa sobre os presidemtes dire-
tores~gerais das grandes empresas framcesas. No artigo “Le patromat” (1978), escreviamosz‘ “Se
0 capital social é relativarmemte irredutivel as diferentes espécies de capital — e, em particular,
a0 capital economico e ao capital cultural (cujo rendimento pode ser multiplicado por ele), sem
ser completamemte imdepemdemte deles -, é porque 0 volume do capital social possuido per mm
agemte individual (portanto, pelo grupo a que pertence) depende do volume do capital que de-
tém cada um de seus membros e do grau de integracao do grupo” (BOURDIEU; SAINT MARTIN,
1978, p. 28). E, no mesmo artigo, a fotografia do funeral de Francois de Wendel [engenheiro
da Ecole de Mines, foi presidemte do Comité das Forges de France e proprietario de empresas
metalurgicas], em janeiro de 1949 — soleme agruparmento que permitiu proceder a uma exibicéo
publica e oficial do capital social ~, assim como a apresentacao da familia Debré, reumindo
politicos, médicos famosos, altos fumciomérios do governo, presidentes de grandes empresas, *‘

CAPITAL SOClAL 113


professores universitai’ios, arquitetos, artistas, propunham duas ilustracoes, entre outras,
do
peso importante de vinculacao a um grupo que pode ser uma famflia, mas também umagrande
école, uma grande corporacao, um conselho de administracao ou um clube. 0 capital social
é,
com efeito, possuido coletivamente e permite a cada um dos membros de um grupo participa
r
do'capital possuido individualmente por todos os outros (NE). Tal vinculacéo proporcio
na
diferentes ganhos, que constituem o alicerce da solidariedade mediante a qual eles se tornam
possiveis. No grupo, nem todos detém o mesmo volume de capital social que tampouco tern
a
mesma antiguidade; dai, uma das questoes formuladas por Bourdieu, em 1980, se refere
aos
“mecanismos de delegacao e de representacao”, além de saber quem, entre os seus numeroso
s
membros, pode ou néo representar on, mais ainda, aplicar 0 capital social desse coletivo.
Alias, a aplicacao do capital social do grupo so é possivel por alguém que tenha realizado
um importante trabalho de instauracao e manutencao desse capital. “A existéncia de
uma
rede de ligacées nao é um dado natural, nem mesmo um ‘dado social’, constituido
de uma
vez por todas 6 para sempre por um ato social de instituicao (representado, no caso do grupo
familiar, pela definicao genealégica das relacoes de parentesco que é caracteristica
de uma
formacao social), mas o produto do trabalho de instauracao e manutencao que é necessar
io
para produzir e reproduzir ligacoes duradouras e uteis, aptas a proporcionar ganhos materiais
e simbolicos” (BOURDIEU, 1980, p. 2).

Desde suas pesquisas sobre os camponeses do Béam e das respectivas estratégia
s matrimd
niais, Bourdieu jé estabelecia a distincéo entre relacoes de parentesco efetivamente “conhecid
as,
reconhecidas, praticadas e, como se diz, ‘mantidas’”, que haviam exigido trabalho e
relacoes
genealégicas que “nao tardariam a desaparecer, a semelhanca do que ocorre com as veredas
abandonadas, se elas nao recebessem uma manutencao continua, mesmo que sejam utilizada
s
apenas de maneira descontinua”. Evoca-se frequentemente, acrescentava ale, “0 quanto é dificil
restabelecer uma relacao que nao tenha sido mantida em acao, mediante trocas regulares de
visitas,
cartas e presentes” (BOURDIEU, 1972). As relacées e a vinculacao a um grupo podem perder
sua
eficécia e seu valor, até mesmo desaparecer, se nao houver um trabalho continuo por part6
dos
atores envolvidos. Sem mobilizacao nem trabalho sobre 0 capital social, este cone 0 risco
de se
tornar uma espécie de peso morto. E esse trabalho pode ser efetuado em diferentes contextos
,
desde a forma mundana realizada pelos aristocratas até os coquetéis dos editores, passando
pelos
intercambios de relatérios elaborados por professores universitérios ou pesquisadores
(QS).
Associacoes, clubes e rallyes de diversos tipos encontram—se entre os espacos que desenvolv
em a
aptidao para constituir e manter redes, que permitem trabalharsobre 0 capital social e fortalecé-
lo.
Além disso, esse capital social que pode ser herdado da famflia, adquirido, seja pelo
casamento
-
ou pela frequéncia aos melhores estabelecimentos de ensino, seja pfiblico ou privado, de Grandes
Ecoles, de associacoes, de clubes, que é acumulado, transmitido e reproduzido — tern—se
tornado,
com uma frequéncia cada vez maior, internacional. Como lembra Anne—Catherine Wagner,
as
classes superiores distinguiram-se sempre por seu cosmopolitismo, constitutive
do estilo de
Vida aristocrata (WAGNER, 2007). Seja come for, 0 volume do capital social enquanto carteira
de
relacées deixa um espaco cada vez maior aos diferentes tipos de ligacoes e de relacoes
internacio—
nais, constituindose de maneira bastante desigual e, quase sempre, sendo o acesso a ele
dificil.
Nao se pode, com efeito, compreender o que é 0 capital social, segundo Bourdieu
, se essa
nocao 11510 for relacionada ‘as outras espécies de capital: econémico, cultural e
simbélico.

“4 CAPITAL SOCIAL
Alias, esse capital nao é completarnente independente deles (BOURDIEU; SAINT MARTIN, 1978,
p.28), de tal modo que é impossivel, frequentemente, isolé—lo das outras espécies ou tipos de
capitais. A0 mesmo tempo, nao pode ser reduzido a esta en aquela das diferentes espécies de
capital, em particular, ao capital economico e ao capital cultural (cujo rendirnento pode ser
multiplicado por ele). No teito de 1980 Bourdieu sublinha que, “embora seja relativamente
irredutivel a0 capital economico e cultural possuido por urn agente determinado ou, até
mesmo, pelo conjunto de agentes a quem esté ligado (como bem se Vé no caso do move rico),
0 capital social nao é jamais completamente independente deles pelo fato de que as trocas
que instituem 0 inter-reconhecimento supoem o re-conhecimento de um minimo de homo-
geneidade ‘objetiva’, e de que ele exerce urn efeito multiplicador sobre 0 capital possuido corn
exclusividade” (BOURDIEU, 1980, p. 2).
A0 escrever as “Notes provisoires”, Bourdieu nao utilizava pela primeira vez esta nocao
de capital social, mas é a primeira vez que a tornava central em um trabalho. Ble iré indicar
corn precisao, vinte anos mais tarde, que havia forjado efetivarnente tal conceito em suas
producoes iniciais de etnologia na Cabflia on no Béarn, “para explicar as diferencas residuais
associadas, grosso modo, aos recursos que podem ser reunidos, por procuracao, através das
redes de ‘relacées’ mais ou menos numerosas e mais ou menos fecundas” (SSE). Foi, de fato,
ao empreender suas pesquisas no final dos anos 1950 e na década de 1960, Ha Argélia e no
Béarn, sobre a crise das sociedades camponesas e tradicionais, que pode observar e analisar,
entre outros aspectos, as familias (seja de condicao inferior ou superior), os casamentos ou ‘
aliancas e os casamentos desiguais feitos corn pessoa de condicao inferior, o celibato dos
caculas no Béarn e a reproducao das linhagens, alérn de elaborar de forma progressiva
essa nocao que ele nao utiliza diretamente, na época, em seus textos. A familia — conforme
sublinhara posteriormente — é o espaco principal do acumulo e da transmissao do capital
social (BOURDIEU, 1980); por conseguinte, ela constitui ponto de partida decisivo para suas
anélises 6 para a elaboracao de tal conceito.
, Foi nas décadas de 1970-1980, no momento em que Bourdieu empreende pesquisas,
simultaneamente, sobre o gosto nas diferentes classes sociais, sobre as Grandes Ecoles e
sobre O que ele designa como o campo do poder — de maneira mais concreta, por ocasiao
das pesquisas que serviram de suporte para seus livros, La distinction (1979) e La noblesse
d ’Etat (1989) —, que recorre com maior frequéncia a nocao de capital social, explicitando-a,
mediante o aporte de precisoes em diferentes artigos e obras. Na impossibilidade de
esbocar o percurso completo dessa nocao, varnos fornecer aqui alguns pontos minimos
de referéncia. I
0 capital social é evocado em rapidas tintas como “um capital de relacoes mundanas,
capital de honorabilidade e capital de respeitabilidade”, no artigo “Reproduction culturelle
et reproduction sociale” (1971), que aborda prioritariamente a estrutura da distribuicao do
capital cultural, assim como a estrutura da distribuicao do capital economico. Em “Anatomic
du gout” (1976), a concepcao e a definicao do capital social sao apresentadas de forma mais
detalhada. Assirn, no momento de analisar os clubes, sublinha-se o seguinte: “E reduzido, sern
duvida, o nfimero de instituicoes (se excetuarmos, em determinados cases, 0 casarnento) que
estejam mais diretamente orientadas para o acumulo racional de capital social: sem mesmo
falar de todos os ganhos, atuais ou potenciais, que proporcionam ou prometem ‘relacées’ tao

CAPITAL SOCIAL 115


interessantes, a comecar pelas informacoes raras, e sem contar — o que, no entanto, nao deixa
deter sua importancia — todas as gratificacoes afetivas que estao associadas a vinculacao
plena a um grupo, ao mesmo tempo, ram 6 homogéneo, em que o individuo se sente em casa
e entre pares, essa espécie de sociedades por acoes — que sao ricas da riqueza acumulada de
todos os seus membros - permitem a cada um de seus membros participar do capital acu-
mulado desse modo e retirar dessa participacao um ganho tanto maior quanto seu aporte
pessoal é mais baixo e/ou quanto seu sucesso profissional e social depende sobretudo de seu
capital social” (BOURDIEU; SAINT MARTIN, 1976, p. 105). Reflexoes mais aprofundadas ao
capital social aparecem em Varios artigos - entre os quais “Le patronat”, ja citado —, e mais
tarde, no livro La noblesse d’Etat.
Nos anos de 1990 e até sua morte, Bourdieu mobiliza com menor frequéncia o conceito
de capital social, um pouco como se tivesse duvidas sobre sua centralidade, talvez também
porque o conceito, um tanto polissémico — dai em diante difundido amplamente por Iames
Coleman (1988) e, em seguida, por Robert Putnam (2000) —, acaba sendo utilizado com sentidos
e acepcoes bem diferentes daqueles que ele havia pretendido atribuir‘lhe ou, ainda, porque
julgava ter sido suficientemente explicito no texto de “Notes provisoires”. 0 capital social é
citado de passagem em La mise‘re du monde (1993) e 1150 figura no indice de Me’ditatz'ons
pascalz'ennes (1997); é, efetivamente, mencionado nesse livro em uma evocacao ‘as diferentes
espécies de capital, mas nao da lugar a nenhuma analise. Ele nao aparece, por exemplo, em
Les régles de l’art. No entanto, 0 capital social é citado em uma de suas ultimas obras, Les
structures sociales de l’économz'e, ao evocar um sistema de conceitos que “poderia apresen-
tar-so como uma teoria alternativa para compreender a acao economica”, depois do habitus
e do capital cultural, e antes do capital simbolico e do campo (SSE, 12).
Se tentarmos fazer um balanco, podemos dizer que 0 capital social é forjado por Bourdieu
desde suas primeiras pesquisas, mas nomeado somente no inicio dos anos 1970, utilizado
frequentemente nos escritos dos anos de 1976 a 1989 5, cm seguida, raramente. Em suma,
apesar de ser muito mencionado, é pouco utilizado e objetivado em raras ocasioes. No
mo-
mento em que se desenvolve, em meados dos anos 1990, uma abundante literatura
em torno
da nocao de capital social, Bourdieu deixa-de lhe dedicar anélises substanciais.
Esse conceito é provavelmente aquele que suscitou o maior numero de trabalhos e deba-
tes, de amplitude internacional, em sociologia, em ciéncia politica e em economia, desde a
ultima década do século passado (BEVORT; LALLBMENT, 2006). Com efeito, uma abundant
e
literatura tern sido publicada sobre ele. A variedade das questoes para as quais 0 capital
social é mobilizado merece a perplexidade de Sophie Ponthieux, que assim observa:
do
sucesso escolar das criancas a0 éXito de alguns projetos de desenvolvimento, da mortalida
de
nos paises em transicao ao sucesso economico dos managers ou a0 crescimento no Sudeste
Asiético, fica a impressao de que ele pode ser aplicado a quase tudo (PONTHIEUX, 2006).
A
énfase é colocada, daqui em diante, por vérios autores, sobre a reciprocidade, a
solidariedade
on a confianca entre os membros de um grupo e sobre as caracteristicas institucio
nais — ou
até mesmo culturais de toda uma sociedade. E impossivel analisar aqui esses trabalhos
,
-
cujo traco comum consiste em aventar a hipétese segundo a qual a eficécia economica de um
individuo, de uma empresa ou de uma nacao nao depende tanto da quantidade de capital
economico a sua disposicao, rnas da qualidade das relacoes sociais no amago das quais
se

115 CAPITAL SOCIAL


insere sua atividade. Bourdieu procurava afastar—se vigorosamente nao so dessa concepcao
do capital social, encarnada por James Coleman e, em seguida, por Robert Putnam, mas
também da sociologia das redes sociais. Poi Coleman, urn adepto das ideias de Gary Becker,
quem nos Estados Unidos (EUA) impos o conceito 11a agenda cientifica. Seu artigo de 1988
significativamente intitula—sé “Social Capital in the Creation ofHuman Capital" (COLEMAN,
1988), no qual propoe urna definicao do conceito bastante imprecisa, permitindo-lhe re—
unir fenomenos de naturezas muito diferentes, cujo denominador comum é unicamente
sua funcao. 0 capital social é produtivo e torna possivel a realizacao de alguns objetivos
que, em sua auséncia, nao poderiam ser efetuados. Os trabalhos de Putnam permitem ao
capital social, por sua vez, adquirir um pfiblico mais amplo, incluindo os campos politico
e midiético: em 2000, seu livro Bowling Alone — que utilizava numerosos dados sobre a
evolucao das relacoes sociais nos EUA, pais em que mostrava que se assistia a uma queda
da participacao politica, civica, religiosa e sindical, além de relacoes sociais informais ~
obteve enorme repercussao (PUTNAM, 2000). A nocao acabou sendo instrumentalizada pelas
instituicées internacionais, como 0 Banco Mundial on a Organizacao para a Cooperacao
e Desenvolvimento Economico (OCDE). ‘
Para além das controvérsias, gostariamos de lembrar que 0 capital social permeia parcela
significativa da obra de Bourdieu, sem deixar de ser, em parte, uma nocao relativamente
provisoria, em decorréncia do grande nfimero de dificuldades para dissocié~la das outras
espécies de capital, nomeadamente, do capital simbolico, conceito mais fortemente enraizado
e mais bem explicitado, a0 qual Bourdieu nao cessou de retornar.

Referéncias
BEVORT, A.; LALLEMENT, M. Le capital social: performance, e’quité et réciprocité. Paris: La
Découverte, 2006.
BOURDIEU, P. Reproduction culturelle et reproduction sociale. Information Sur Les Sciences 80—
ciales, v. 10,11. 2, 1971. '
BOURDIEU, P. Les strategies matrimoniales dans le systeme de reproduction. Annales, v. 4-5,
juil./oct. 1972.
BOURDIEU, P.; SAINT MARTIN, M. de. Anatomic du gofit. ARSS, v. 5, oct. 1976.
BOURDIEU, P; SAINT MARTIN, M de Le patronat. ARSS, v. 20-21, mars/avr. 1978.
BOURDIEU, P. Le cap1tal soc1al notes provisoires. ARSS, v 31, jan 1980
COLEMAN, I S Social Capital 1n the Creation of Human Capital. The American Journal of
Sociology, v. 94, p. 95—120, 1988.
PONTHIEUX, S. Le capital social. Paris: La Découverte, 2006.
PUTNAM, R. Bowling Alone: the Collapse and Revival ofAmerican Community. New York:
Simon & Schuster, 2000.
WAGNER, A.~C. Les classes sociales dans la mondialisation. Paris: La Découverte, 2007.

44. CATEGORIAS DE PENSAMENTO

Vet: Taxionomia; Classificacc‘io (lutas de)

CATEGORIAS DE PENSAMENTO “7
45. CAUSALIDADE DO PROVAVEL

Ver: Destino

45. CIENCIA
Pascal Ragouet

Para Bourdieu, a ciéncia constitui urn "mundo a parte”, n50 so por ser produzida no ambito
de um campo social especifico, mas também por constituirum modo de conhecimento objetivo
da realidade com estatuto epistemolégico particular. No entanto, a objetividade da ciéncia é uma
producao social coletiva: “O processo de validacao do conhecimento como legitimacao diz respeito
a relacao entre o sujeito e o objeto, mas igualmente a relacéo entre os sujeitos e, sobretudo, as
relacoes entre os sujeitos a propésito do objeto” (SSR, 143). Bourdieu gosta de lembrar a tese de
Bachelard segundo a qual “o fato é conquistado, construido, constatado”. Conquistado contra a
ilusao do saber imediato; construido gracas a0 trabalho de conceitualizacao e a implementacao
do raciocinio hipotético-dedutivo; e constatado, ou seja, validado pela coletividade através de
um trabalho de comunicacao. Bachelard insiste sobre esse aspecto em sua obra, Laformation
de l’esprit scientifique: “Qualquer doutr'ma da objetividade acaba sempre por submeter o
conhecimento do objeto a0 controle de outrem” (BACHELARD, 1938, p. 241).
Mas como, entao, os atores envolvidos em uma dinémica concorrencial — para impor sua
definicao tanto do verdadeiro quanto dos meios legitimos para dizer o verdadeiro — chegam a
um consenso racional 301116 a validade cientifica de um enunciado? Para Bourdieu, esse consenso
resulta de uma dinamica intersubjetiva de circulacao critica— que leva a uma “desparticula-
rizacao” e a uma “universalizacao dos resultados” ~, enquadrado socialmente pela existéncia
de normas que sao os produtos da histéria do campo cientifico e arbitrado igualmente pelo
“”rea1,cuja existéncia e'postulada tacitamente pelos pesquisadores Nessas condicoes, o discurso
cientifico nao poderia ser assimilado a “um reflexo direto da realidade, a 11111 puro registro”,
nem ao “produto de uma construcao, orientada por interesses e estruturas cognitivas, que
viesse a produzir visées mfiltiplas ~ subdeterminadas pelo mundo ~ desse mundo” (SSR, 151).

Referéncia
BACHELARD, G. La formation de l’esprit scientifique: contribution a 11118 psychanalyse de la
connaissance objective. Paris: Vrin, 1938.

4.7. CLASSE SOCIAL


Brasilia Sallum Ir.
Edison Ricardo Bertoncelo

Trata——se de um conceito cuja compreensao depends de se conceber a sociedade como es~


paco social. Entendida a sociedade desta forma, os agentes sociais ocupam distintas posicoes
relativas, definidas conforme se distribuem as propriedades entre eles, o que lhes confere
poder nas relacoes com os outros. Assim, os agentes sociais sao distinguidos e distinguem—

118 CAUSALIDADE D0 PROVAVEL


5e conforme a posicao relativa que ocupam no espaco social, todas elas dependentes das
propriedades de que dispoem. As classes sociais, para Bourdieu, devem ser entendidas como
conjuntos de agentes situados em posicoes préximas no espaco social, que se ‘distinguem de
outras classes, situadas em posicoes relativas distintas. Em suma, as distincées‘de posicao,
fundadas em diferencas de pro‘priedade, conferem poder de umas classes em relacao as outras
(OPS, 133—135; MP1), 164).
O significado dado por Bourdieu aos termos “propriedade” e “distincao” ~ centrais ja
na primeira aproximacao, abstrata, do seu conceito de classe social - permite demarcar sua
perspectiva em relacao a marxista, usada frequentemente por ele como contraponto da sua.
Vejamos, primeiro, o que ele entende por propriedade. Trata~se, desde logo, de propriedades ——
no plural — atuantes, quer dizer, que permitem aos agentes exercerem poder sobre os outros
situados em distintas posicoes do espaco social. As propriedades sao, pois, recursos de poder
e as relucoes de classe sdo relacoes de poder. As propriedades atuantes, ademais, referem-se
a distintasformas de capital, nao so a modalidades de capital economico, mas também ao
que chama capital cultural, ao capital social e ao capital simbélico. As vérias modalidades de
recursos econémicos ~ fundiarios, financeiros, monetarios, etc. — correspondem ao que ele
entende por capital economico. O conjunto dos recursos culturais — saberes, incorporados on
n50 — possuidos pelos agentes, constituem o seu capital cultural. O conjunto dos relaciona—
mentos sociais a que cada um pode recorrer para alcancar seus objetivos é denominado, por
ele, como capital social dos agentes. Por ultimo, 0 capital simbélico diz respeito ao modo como
o agente social, portador dos seus vérios recursos, é percebido pelos outros agentes. Como o
espaco social é multidimensional, cada uma destas formas de capital tem relevancia variavel
em cada urn de seus campos ~ economico, cultural, politico, etc. O que importa para Bourdieu
é enfatizar que tais recursos (ou capitais) permitem aos agentes exercerem poder nas disputas
que ocorrern no espaco social on em campos particulates deste. Quanto mais se apropriarem
de recursos, mais possibilidades objetivas de ganho terao as classes de agentes nas disputas que
ocorrem no espaco social.
I O outro termo em questao, “distincao”, diz respeito a exclusdo mutuu dos agentes si-
tuados em posicoes relativas diferentes, cada classe situando-se em lugar distinto em relacao
‘as outras — posicoes acima, entre ou abaixo, préximas ou distantes. As diferentes posicoes so
tém sentido em contraponto umas com as outras.
Em suma, o espaco social é um espaco multidimensional de posicoes relativas. Nele cada
posicao pode ser definida em funcao de um conjunto multidimensional de coordenadas, cujos
valores correspondem ao volume total de capital possuido pelos agentes (primeira dimensao)
e a sua composicdo, quer dizer, ao peso relativo que as diferentes espécies de capital tém no
conjunto (segunda dimensao). Além disso, a posicao social de um agente ou de um conjunto
de agentes nao é apenas uma posicao relativa em uma estrutura social em dado memento;
ao invés, a posicao social é sempre um ponto em uma trajetéria (individual 6 coletiva, de
ascensao ou descenso) que orienta os agentes para pontos de chegada mais ou menos provaveis
segundo seus diferentes pontos de partida (terceira dimensao).
Em seus estudos sobre a sociedade francesa, Bourdieu costumava representar as posicées
que os agentes ocupam no espaco segundo essas trés dimensoes. Duas delas estabelecem um
corte sincronico na estrutura social e correspondem ao volume total de capitol economico e

CLASSE SOCIAL 119


cultural que possuem os agentes em um dado momento (eixo vertical) 6 a0peso relativo que
essas espécies de capital térn no conjunto (eixo horizontal). Assim, no topo da estrutura da
sociedade franCesa, encontrarn-se os grapes dominantes (grandes empresérios, profissionais
e intelectuais), que se diferenciam dos demais grupos (operarios, funcionérios de escritério)
em termos do volume de capital que possuem e entre si, segundo o peso que os capitais
cultural e economico tém na composicao do capital total. A outra dimensao estabelece um
corte diacronico na estrutura social, apreendendo cada posicao em uma trajetérz'a entre
uma origem e um destino. Assim, determinadas posicoes intermediérias na estrutura social
(como ocupacoes de escritério) podem ser, para alguns individuos, posicoes temporarias em
uma trajetoria que os orienta para posicoes gerenciais ou de direcao.
Com base nessas propriedades e posicoes relativas, Bourdieu sustenta que se podem definir
classes no sentido logico do termo — conjuntos de agentes que ocupam posicoes semelhantes
e estao sujeitos a condicionamentos sociais semelhantes. Em funcao, podemos sapor que tém
boa probabih'dade de terem atitudes e interesses semelhantes e, consequentemente, praticas e
tomadas de posicao similares. E o que denomina, para sublinhar seu ponto de vista, classes
no papal; nao uma classe efetiva, um grupo mobilizado para a luta, mas uma classe provavel,
conjunto de agentes que oporao memos resisténcia a mobilizacao coletiva do que se mesclados
com outros situados em lugares distintos do espaco social. Assim, tais classes “n50 existem como
grupos reais embora expliquem a probabilidade de se constituirem em grupos préticos, familias
(homogamia), clubes, associacoes e mesmo ‘movimentos’ sindicais e politicos” (OPS, 137).
Este é o primeiro esquema corn que Bourdieu analisa as classes sociais, as classes definidas “no
papel”. Ele de fato vai além. Tenta mostrar, ademais, como elas se manifestam na prética social.
0 habitus é o elemento mediador entre as classes provéveis e as préticas. Ele é um sistema
de disposicb‘es de conduta duraveis e transponz’veis, que funciona corno princz’pio gerador
de préticas e representacoes. Ele 1150 se confunde, pois, com o-que é “habitual”. A0 invés, 0 ha—
bitus é um conjunto de esquernas subjacentes as préticas diversas e improvisacoes reguladas,
dentro de limites associados ‘as condicoes sociais de sua génese. Vé~se aqui outra caracteristica
do habitus: ele é produto da incorporacao pelos agentes de uma condicao de classe, que de-
corre, simultaneamente, de uma situacao de classe, quer dizer, das “propriedades intrinsecas”
a determinadas condicoes de existéncia, e de umaposicao de classe, ou seja, das propriedades,
relativamente independentes das anteriores, que se devem ‘as relacoes que unem uma classe
social as “outras partes constituintes da estrutura social.” Assim, a condicao do camponés, sua
condicao de classe, se deve, em parte, a situacao de trabalhador da terra, que envolve certo tipo
de relacao com a natureza, “feito de dependéncia e submissao e correlativo de determinados
tracos recorrentes da religiosidade camponesa”, e, também, a sua posicao na estrutura social,
que “é sempre dominada pela relacao com o citadino e com avida urbana” (ETS, 4).
As propriedades de posicao estao ligadas, também, ao sentido provavel da trajetoria do agente
e/ou pela classe a que pertence. Sobretudo se esse sentido for vivenciado como parte de uma tra-
jetoria de classe, ele tende a produzir, por meio das disposicoes de conduta inscritas no habitas,
percepcoes comuns acerca do passado e do future e do valor conferido a eles: “o gran em que os
individoos 6 OS grupos estao voltados para o futuro, a novidade, o movimento, a inovacao, 0 pro-
gresso [...] ou, ao contrério, estao orientados para o passado, movidos pelo ressentimento social 6
pelo conservadorismo, depends [...] de sua trajetéria coletiva, passada e potencial [...]” (LDp, 425).

120 CLASSE SOClAL


O habitus, o principio ndo escolhido das “escolhas” cotidianas, com sua dupla capacidade
de engendrar préticas e de produzir juizos praticos sobre as préticas, transmuta o espaco das
classes sociais, o espaco das diferencas objetivas, em espaco simbélico, que é o espaco dos estilos
de Vida. As marcas ou signos de distincao —— o conjunto de traces de um estilo de Vida ~ 550,
na verdade, retraducoes expreSsivas, por meio da formula geradora do habitus, das diferencas
objetivas. Assim sendo, diferentemente de Max Weber, que entendia classe e status como prin—
cipios opostos de diferenciacao social, Bourdieu articula a ordem economica e a ordem social.
Dissemos antes que o habitus consiste de disposicoes dumveis e transpom’veis. Sao duraveis
porque o habitus tende a carregar as "mamas” do passado do qual'e produto, sobretudo das“pri-
meiras experiéncias”, relacionadas com as “manifestacoes propriamente familiais” de uma dada
condicéo de classe. Tais experiéncias de ma condicao de classe e de seus condicionamentos sociais
tendem a se inscrever no habitus como esquemas de avaliacao e percepcao de toda experiéncia
posterior (SPp, 89). Além disso, as disposicoes do habitus sao transponz’veis porque os esquemas
de acao e percepcao que orientam as praticas dos agentes se manifestam nos diferentes campus
em que se organiza a Vida social segundo as logicas que lhes séo especificas (campo economico,
campo politico, campo cultural, etc). Como consequéncia, as préticas dos agentes nos diferentes
campos sociais tendem a se organizar através de oposicoes que sio homélogas entre si e também
, homologas em relacéo ao espaco das relacoes de classe. Nesse sentido, as transposicoes sisteméticas
produzidas pelo habitus conforme os campos em que ele opera conferem certa homogeneidade
as préticas dos agentes de uma mesma classe independentemente de qualquer intencionalidade.
Isso porque, diferentemente da tradicao marxista, que vé 11a consciéncia de classe o elo que liga
estrutura e acao, Bourdieu sublinha que 'o habitus é muito mais um incorlsciente de classe, pois
opera em um m’velpré-reflexivo, aquém da representacao explicita.
O gosto de classe— a “formula geradora que se encontra na origem do estilo de Vida” ~ é o
produto da transponibilidade do habitus (LDp, 165). Assim, dizia Bomdieu em seus estudos sobre
as camadas populates na Franca, as escolhas e préticas das classes populares em diferentes
dominios da Vida social exprimem o gosto de necessidade: “[a] submissao a necessidade que
[...] leva as classes populates a tuna ‘estética’ pragmatica e funcionalista, recusando a gra—
tuidade e a futilidade dos exercicios formais e de toda espécie de arte pela arte, encontra—se,
também, na origem de todas as escolhas da existéncia cotidiana e de uma arte de viver que
impée a exclusao, como se tratasse de ‘loucuras’, das intencoes propriamente estéticas” (LDp,
353). For meio do gosto de classe, as “preferéncias distintivas” que compoem um estilo de
Vida exprimem “a mesma intencao expressiva” em diversos subespacos simbélicos (mobflia,
vestuario, alimentacao, etc.) segundo as légicas que lhes sao especificas (LDp, 165).
0 modelo teorico proposto por Bourdieu implica, portanto, 11a sobreposicao de trés esquemas
anah'ticos: o espaco social, habitus e o espaco dos estilos de Vida, sendo o habitus o elemento
que medeia a transmutacao das diferencas objetivas em signos distintivos. Vé-se, assim, que o
espaco social é, simultaneamente, uma estrutura de relacées objetivas que esta na origern dos
esquemas de percepcao, classificacao e acao que orientam a prética, e um conjunto de lugares
estrate'gicos a partir dos quais os agentes lutam pela apropriacao de bens economicos e culturais
e em torno da distribuicao dos capitals. E como tais lutas pela apropriacao dos bens néo passam
de disputas em torno da possibilidade de apropria~los enquanto sinais distintz’vos, o espaco dos
estilos de Vida tende a exprimir "urn balanco, em determinado momento, das lutas simbélicas

CLASSE SOCIAL 12"


cujo pretexto é a imposicao do estilo de Vida legitimo”, seja através da monopolizacao dos “em-
blemas da classe” ou do “modo de apropriacao legitimo desses bens” (LDp, 233).
O fundamento das disputas simbolicas que 3510, de fato, lutas poll’ticas em torno das cate»
gorias de percepcao do mundo e de construcao do senso comum, reside na relativa indeter-
minaca'o do mundo social. Isso porque, embora as relacées objetivas tendam a se reproduzir
nas Visoes de mundo por meio do habitus, o sentido que o agente possui de sua posicao no
mundo nunca é totalmente definido: ao invés, os objetos do mundo social carregarn algo de
vago e indeterminado que, aliado ao carater pré—reflexivo do habitus, abrem espaco para as
disputas que tém como pretexto a verdade do mundo social (OPS, 141—142). E mais: embora o
mundo social se apresente aos agentes de uma forma parcialmente estruturada, sob a forma
de objetos (por exemplo, instituicoes e pessoas que nelas encontram) cujas propriedades es-
tao combinadas de maneira muito peculiar, os agentes sociais reintroduzem, em suas vidas
cotidianas, a indeterminacao no mundo social, por meio das estratégias de apresentacao de si
que envolvem o manejo de simbolos ou signos distintos e que tendem a “mascarar” a relacao
entre préticas e posicoes (BOURDIEU, 1987).
Ainda assim, as classes dominadas tém menor probabilidade de ter sucesso na irnposicao
de sua visao de mundo as demais classes porque a forca relativa dos agentes ern tais disputas ‘
depende de sua posicao relativa na estrutura de distribuicéo do capital nos vérios campos. Por
isso, diz Bourdieu, as classes dominadas tendem a “intervir” em tais disputas essencialmente
como “referéncia passiva”. E assim que o gosto que orienta as “escolhas” das classes populares
,
é gosto “de necessidade”, em oposicao ao “ascetismo aristocratico” do intelectual on a “es-
tética hedonista da naturalidade e da facilidade” da burguesia (LDp, 167). Porque reduzido
a escolha do necessdrio, define-3e pelo comum, pelo grosseiro, pela primazia que confere a
funcao em detrimento da forma; serve, portanto, tao somente de contraste para aquilo que
esta no centro das lutas simbolicas, a disputa entre as diferentes classes e suas fracoes em
torno da maneira legitima de viver, disputa que se expressa na Franca, para Bourdieu, pela
dialética entre a pretensdo e a distinccio.
A pretenscio é a forma tipicarnente pequeno-burguesa de perceber o mundo social e agir
nele. Presa a contradicao entre o pertencimento a uma posicao dominada e a aspiracao por
participar dos valores dominantes, a pequena burguesia busca apropriar—se da distincao,
ainda que sob a forma do blefe on da imitacao, para distanciar-se daqueles que estao excluidos
desse jogo porque desprovidos das disposicoes para priorizar o parecer em detrimento do
ser. Aspirando adquirir as propriedades mais distintivas, banalizando-as, os “pretendentes
pretensiosos” inclinam os "detentores distintos” (a burguesia) a buscarern em novos objetos
on em novas maneiras de apropriacao o fundamento de sua exclusividade ou raridade.
Vé-se, pois, que tais disputas cotidianas 1150 550 meramente individuals; nelas manifestam-se
também asformas coletivas das lutas sirnbélicas. Nessas disputas, o que esta ern jogo é funda—
mentalmente a imposicao da visao legitima do mundo social e de suas divisoes, que tern no poder
de nomeacao mantido pelo Estado seu meio oficial de consagracao (BOURDIEU, 1987, p. 13—14).

Referéncia ,
BOURDIEU, P. What Makes a Social Class? On The Theoretical and Practical Existence
of Groups.
Berkeley. Journal ofSociology, v. 32, p. 1-17, 1987.

122 CLASSE SOCIAL


tg-EWf'lf'EtlSdQ.(Wlasfie) '
Maria Alice Nogueira

Derivada da expressao “luta de classes”, prépria do vocabulério marxista, o termo “lutas


de classificacao” (luttes de classement) foi criado por Bourdieu para assinalar que, mas
sociedades capitalistas contemporaneas, a luta entre as classes sociais se desdobra numa
luta simbélica para impor a visao de mundo e as categorias de pensamento dos grupos
dominantes. Ela constitui, em outras palavras, uma versao modificada e suavizada (e, por
isso mesmo, socialrnente admitida) das lutas de classes frontais e brutais ocorridas, ao
longo da histéria, entre patricios e plebeus, servos da gleba e senhores feudais, proletariado
e burguesia, etc.
No entanto, Bourdieu a considera como “uma dimensao fundamental da luta de classes”
'
(CDp, 167) porque, além de dar conta da luta dos agentes sociais pela distribuicao e apropriacao
dos bens raros, ela é uma luta pela hierarquizacao e pelo monopélio dos principios e modos
legitimos de percepcao e de acao no mundo social.
Em 1980, em seu livro Le sens pratz'que, o autor escrevia: “As classificacoes, e a propria
elas nao
nocao de classe social, nao seriam urn aspecto da luta (de classes) tao decisivo se
' contribuissern para a existéncia das classes sociais, ao acrescentar a eficacia dos mecanismos
objetivos — que determinam as distribuicoes e asseguram sua reproducao — o reforco que lhes
‘ proporciona a adesao das mentes que elas estruturam” (SP, 144).
Em suma, uma “luta de classes no cotidiano” (ACCARDO, 2006, p. 213), a luta pela classifica-
s
cao social deve ser vista como uma luta que se trava, sobretudo, no plano dos bens simbolico
e da qual dao prova as lutas pelo “born gosto”, pelo “born senso” (ACCARDO, 2006, p. 213), etc.

Referéncia
ACCARDO, A. Introduction 61 une sociologie critique: lire Pierre Bourdieu. Marseille: Agone, 2006.

f?.-.F9.'§t‘.5..P!T‘.‘.§.l§’19.5..e.5..WIT???................................. ..................................
Cristina Carta Cardoso de Medeiros

BOURDIEU, P. Coisas ditas. Sio Paulo: Brasiliense, 1990.

Publicado originalmente pelas Editions de Minuit (1987), Coisas ditas segue de perto o
objetivo fixado por Bourdieu quando do lancamento de Questées de sociologia (1983), qual
Na
seja, 0 de compilar transcricoes de palestras,'entrevistas, conferéncias e comunicacoes.
apresentacao da obra ele se refere ao discurso escrito, sempre a margem de qualquer expe~
riéncia direta de relacao social — dai sua preocupacao constante em fazer-se compreender a
partir da comunicacao oral e de poder realizar, nessas ocasioes, “contracoes, abreviacoes,
aproximacoes, favoraveis a evocacao de totalidades complexas” (CDp, 10). Como afirmado
pelo autor, o discurso oral pode propiciar a revelacao de um pensamento em acao que a obra
, escrita por vezes pode dissimular. Dividido em trés partes, em Coisas ditas Bourdieu co-
menta sua formacao intelectual, nomeando autores lidos por ele em seu processo de transicao

COISAS DITAS (Chases dites) 123


da filosofia para etnologia e, por fim, para a sociologia, referéncias estas que foram sendo
incorporadas em suas proposicées fundamentais. Também aborda a sociogénese de alguns
de seus conceitos, que foram repensados e reinterpretados. Admite, nesta primeira parte, ser
um estruturalista genético que busca analisar as estruturas objetivas de forma inseparavel a
analise da génese das estruturas mentais, produto da incorporacao das estruturas sociais nos
agentes. Na segunda parte explora as nocoes de estratégia, adaptacoes ao jogo social, regras,
senso pratico e senso do jogo, com a finalidade de abordar as logicas da pratica. Na terceira e
filtima parte, priorizando temas corno o espaco social e o poder simbolico, tece comentarios
sobre o campo intelectual, suas relacées de forca, capital de reconhecimento e consagracao,
ale’rn de analisar o campo politico, a delegacao e a autoconsagracao dos mandatérios. Um
texto bem relevante e que exemplifica a forca intelectual de Bourdieu e a operacionalidade de
seu quadro de analise é o que discorre sobre um programa para uma sociologia do esporte,
importante igualmentepara uma sociologia do corpo, ocasiéo em que procura propiciar urna
ruptura teérica que instale um clima cientifico decisivo para a criacao de uma sociologia
empirica com identidade especifica, tendo o esporte como foco de suas preocupacoes.

50. COLLEGE DE FRANCE


Afn‘mio Mendes Catani

0 site do College de France revela que a instituicao vai fazer, em breve, 500 anos, tendo sido
criada em 1530 pelo rei Francisco I, vivendo va'rias transformacoes ao longo dos séculos, desde
que era denominada College Royal até o momento, em que rer’me 57 professores trabalhando
corn outros pesquisadores, auxiliares, técnicos e funcionérios administrativos. 0 College é
organizado em cétedras, que abarcam um vasto conjunto de disciplinas: das matematicas
a0 estudo das grandes civilizacoes, passando pela fisica, quimica, biologia e medicina, pela
filosofa e literatura, pelas ciéncias sociais e economia, pela pré-historia, arqueologia e a his—
toria, pela linguistica. Das 57 catedras, 5 550 anuais e recebem a cada ano um novo titular.
0 College de France define relacoes especiais com seus usuérios,1egalmente denominados
ouvintes e nao alunos, onde as pessoas que assistem ‘as aulas e aos cursos 11230 550 acompanha-
das, nao passam por controle de frequéncia nem por provas e exames. As aulas funcionam
como conferéncias, nao havendo debates nern perguntas e tao pouco ocorre o dialogo entre
ouvintes e professores (ALMEIDA, 1999, p. 17). Para Levi-Strauss, “inteiramente senhor de
suas escolhas no quadro de sua cétedra, o professor esté preso a uma finica, porém rigorosa,
obrigacao: tratar em cada ano de um terna novo” (1986, p. 10). On, segundo Serge Haroche
(2013), Presidente da Assembleia de Professores do College, a instituicao possui urna carac-
teristica singular: os docentes apresentam “o saber sendo elaborado em todos os dominios,
das letras, das ciéncias, das artes”. Para isso, cada professor recebe uma bolsa vitalicia de
pesquisa e, anualmente, presta contas de suas atividades ministrando 12 aulas.
0 College é organizado em catedras que podem ser transformadas pela Assembleia de
Professores. Cada vez que uma catedra se encontra vaga, é redefinida para o novo titular em
um processo de votacao em duas etapas. A Assembleia decide, na primeira fase, o titulo da
catedra que deve substituida. Tao logo 3 cétedra é recriada e declarada vaga, a Assembleia
elege o titular. Na pratica a cétedra ja é criada para um candidato especifico, com a segunda

124 COLLEGE DE FRANCE


fase funcionando' como mera formalidade. Destaque-se que 1150 se exige dos candidatos
qualquer grau universitario, sendo eles avaliados em razao da importancia e originalidade
dos seus trabalhos (ALMEIDA, 1999, p. 18).
0 College de France, esta instituicao publica de ensino superior, goza de grande liber~‘
dade para realizar suas pesquisas, constituindo—se em instancia maxima de valorizacio da
autonomia e do trabalho intelectual. Apenas a titulo ilustrativo, foram (ou s50) professores
na casa, entre outros humanistas, Lucien Febvre, Marcel Mauss, Maurice Halbwachs, Emile
Benveniste, Maurice Merleau—Ponty, Paul Veyne, Georges Duby, Georges Dume’zil, Fernand
Braudel, Claude Levi—Strauss, Pierre Boulez, Raymond Aron, Ierzy Grotowski, Michel Foucault,
Roland Barthes, Pierre Bourdieu, Roger Chartier, Pierre Rosanvallon.

Referéncias
ALMEIDA, A. 0 College de France e o sistema de ensino francés. In: CATANI, A. M.; MARTINEZ, P.
(Org). Sete ensaios sobre a College de France. 850 Paulo: Cortez, 1999p. 15-30.
CATANI, A. M. Aulas no College de France. In: CATANI, A. M; MARTINEZ, P. (Orgs). Sate ensaios
sobre 0 College de France. Sao Paulo: Cortez, 1999. p. 7~13.
ERIBON, D. Michel Foucault (1926—1984). 850 Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HAROCHE, S. Enseigner la science en train de sefaire. DiSponivel’em: <Www.colege-de-france.fr>.
Acesso em: 8 maio 2013.
LEVI—STRAUSS, C. Minlias palavras. Séo Paulo: Brasiliense, 1986.

, 51. CONATUS
Maria Alice Nogueira

Expresséo de uso esporédico e infrequente na obra de Bourdieu, o termo “conatus” tern


, sua origem etimolégica no verbo latino conari, que significa “esforcar—se”, e do qual constitui
0 participio passado. De modo resumido, é possivel defini—lo corno uma tendéncia incons-
ciente dos agentes, ao longo de sua trajetoria de Vida, a manter sua posicéo no espaco social.
Na obra Homo academicus (1984), o autor esclarece que se trata de uma “combinacao
das disposicoes e dos interesses associados a urna classe particular de posicao social que
inclina os agentes a se esforcar para reproduzir, sem sequer precisar sabé~lo ou queré—lo, as
propriedades — constantes ou ampliadas — constitutivas de sua identidade social” (HA, 230).
’ Mas é no texto “As contradicoes da heranca”, presente no livro A mise’ria do mundo
(1993), que o conceito encontra sua aplicacao plena, ao ser empregado numa acurada reflexao
sobre o papel da familia, especialmente do pai (“aquele que em nossas sociedades encarna
a linhagern”), na transmissao de um projeto de manutencao da historia familiar, e sobre os
efeitos subjetivos pesados desse fenomeno na Vida dos filhos “herdeiros”. “O pai é o lugar e
o instrumento de um “projeto” (ou, melhor, de um conatus) que, estando inscrito em suas
disposicoes herdadas, é transmitido inconscienternente em e por sua maneira de ser, e também,
explicitamente, por acoes educativas orientadas para a perpetuacao da linhagem” (MM, 712).
Ainda nesse mesmo texto, em nota de rodapé, Bourdieu revela o motivo que o levou a
forjar a nocao de “conatus” e, ao mesmo tempo, a colocar aspas na palavra “projeto”:

CONATUS 125
“Para evitar a légica da intengao consciente que a palavra projeto evoca, nos falaremos de
canatas, mesmo com o risco de aparentar uma afetagéo de linguagem” (MM, 712).
Conatus é, portanto, uma nogao correlata ao conceito de habitus e ‘a mosaic de amorfatz'
(amour de son destin) também usada esporadicamente por Bourdieu. Esta filtima para se
reférir as expectativas subjetivas que escondem o papal determinante das condigoes objetivas
de Vida, ‘as quais se ajustam perfeitamente.

52. CONDIn DE CLASSE


Ver: Classe social

-.3. CONHECIMENTO PRAXIOLOGICO


Gise‘le Sapiro

Em Esquisse d’une the’orie de la pratique (1972), Pierre Bourdieu define as trés modos de
conhecimento teérico de que o mundo social pode ser objeto, tendo em comum o fato de se oporem
a0 modo de conhecimento prético, ou seja, a0 senso comum: o conhecirnento “fenomenolégico”, o
conhecimento "objetivista” e 0 conhecimento “praxiolégico”. O conhecimento “fenornenologico”
explicita a familiaridade com o 111m circundante, percebido como natural, obvio, taken for
granted. Esse modo de conhecimento é privilegiado, nas ciéncias sociais, pelo interacionismo
simbo’lico e pela etnometodologia. Sem negar o interesse de ta] abordagem, adotada no decorrer
de sua formagao em filosofia, Bourdieu vai criticé—Ia por permanecer no nivel subjetjvo ou in-
tersubjetivo, sem nunca se questionar sobre as condigoes de possibilidade desse conhecimento.
O segundo modo de conhecimento teérico identificado por Bourdieu é o procedimento
“objetivista”, ao qual ele vai dedicar~se durante urn periodo mais longo, considerando a posiqéo
dominante que tal modalidade havia adquirido no campo intelectual da década de 1960 com
o marxismo e o estruturalisrno. Esse procedimento consiste em construir relagoes objetivas
(economicas, linguisticas) que estruturam as préticas e as representagoes independente-
mente das consciéncias individuals. Assim, no lado oposto da abordagem fenomenolégica,
o objetivismo caracteriza-se precisamente por seu questionamento sobre as condigoes de
possibilidade do conhecimento, mas a0 prego de uma ruptura com as evidéncias do senso
comum — portanto, com os pressupostos que tornam o mundo familiar. Ele opera, assim,
uma “desnaturalizagio” da percepgao do mundo.
Esse é o caso do marxisrno ao se interessar pelas relagoes de forga economicas. Da mesma
forma, a linguistica saussuriana toma como objeto a lingua enquanto sistema de regras que
torna pOSsivel a comunicagao, em vez da fala, reduzida a manifestagoes individuais desse
sistema: assim, ela se coloca do lado do ato de decifragao, decodificagao, e 1150 do lado da 21a
do locutor. Na historia da arte, a iconologia (tal como é desenvolvida, por exemplo, por Erwin
Panofsky, 1967) considera, da mesma forma, que o sentido objetivo da obra é irredutivel a
vontadej: do artista on ‘as percepgées subjetivas do espectador. Neste aspecto, a operagéo de
decifragao é colocada ainda no cerne do questionamento. Na esteira do modelo da linguistica,
a antropologia estrutural de Lévi-Strauss apreende, por sua vez, as praticas como a execugao

125 CONDICAO DE CLASSE


de um sistema de regras: por exemplo, a proibigao do incesto é interpretada, nesta perspectiva,
como a expressao da regra do intercambio entre- clas.
Se Bourdieu se congratula com a ruptura epistemolégica que o objetivismo, diferentemente do
conhecimento fenomenolégico, opera em relagao ao senso comum, ele vai critical—lo por negligenciar
o ponto de vista subjetivo dos‘agentes e sua experiéncia do conhecimento primeiro do mundo
social como evidente, ou por reduzii" ambos a categoria de “falsa consciéncia”, de “alienagao”. Essa
negligéncia e, até mesmo, esse menosprezo, devevse a0 que Bourdieu designara mais tarde — em
Le sens pmtique (1980) e, posteriormente, em Méditations pascaliennes (1997) — por “viés
intelectualista” ou “viés escolastico”,.a saber, o esquecimento, pelo pesquisador, de sua propria
condigao que o conduz a projetar o modelo construido por ele sobre 0 real. Bourdieu lembra, por
exemplo, que se a lingua aparece como a condigao da fala do ponto de vista logico, intelectualista,
ocorre que, na pratica, verifica-se o inverso: a h’ngua, o sistema de regras, nunca se manifesta
separadamente das praticas que a encarnam e atfializam. E mais do que isso, a aprendizagem da
lingua se faz pela fala, e esta se encontra na origem das transformaeoes da lingua. Além disso, o
intelectualismo leva a erigir como modelo as situagoes de compreensao perfeita que, na realidade,
sao apenas um caso particular das situagoes de comunicaqao, em detrimento de todos os casos,
tao frequentes, de dissonancia cognitiva. Com efeito, a comunicagao, a emissao e a recepgao da
mensagem, o sentido que ela encerra, sao amplamente dependentes da situagao e do contexto, ou
seja, das relagoes sociais em que elas se inserem e que condicionam também a forma da comu~
nicagao. Recusando-se a escolher entre o “modelo” e a “situagao” — segundo os termos do debate
que, na época, opos Iean~Pau1 Sartre a Claude Levi-Strauss -, Bourdieu preconiza uma abordagem
que nao reduza as praticas a execugao mecanica de uma regra, independentemente dessa regra
se referir a uma norma (juridicisrno), a um inconsciente coletivo on a um modelo teérico.
O modo de conhecimento “praxiolégico” visa precisamente a reposicionar a prética no amago
que,
do questionamento. Sem rejeitar a construqao objetivista, como faz o humanismo ingénuo —
alias, a considera como um “anti—humanismo” -, Bourdieu pretende integrar as proprias refle-
o
exoes a0 modo de conhecimento praxiologico, superando~oz ele reintroduz o que o objetivism
como
I foi obrigado a excluir, ou seja, a questao da experiéncia primeira do mundo como natural,
da realidade a ser observad a.
ébvia e, portanto, o ponto de vista dos atores corno fazendo part6
o
Por conseguinte, seu objeto nao é somente o sistema das relaqoes objetivas, mas também
de estrutura
processo de interiorizagao desse sistema sob a forma de disposigoes. Ao servirern
agentes, tais
ao comportamento — encamando-se nas praticas individuais — e a percepgao dos
ento
disposiqoes fazern corn que esse sistema lhes apareea como natural. 0 mode de conhecim
dade da percepqao do
praxiolégico adota, assim, os meios de estudar as condigoes de possibili
de fora, mas
mundo como obvia. As praticas e representagoes nao sao apenas capturadas do lado
estruturan tes
no processo de sua interiorizagao — através da educaeao — sob a forma de estruturas
das disposigoes para agir e perceber o mundo. Vé—se aqui, em aeao, o trabalho de construqao do
conceito de habitus para explicar o principio gerador de praticas e das representagoes estruturadas.
cer da obra’
Se 0 conceito de “praxiologia”, com conotagao marxista, iré bem cedo desapare
de Bourdieu, a abordagem que ele desenvolve sob este conceito iré permanecer fundamental 1150
so para a construgao de uma teoria da pratica, mas também em sua prética sociologica propria-
a sua
mente dita; testemunho disso é o lugar que Bourdieu atribui ao ponto de vista dos agentes,
visao do mundo, na construgao do objeto e na metodologia de investigagao — ponto de vista que

CONNEClMENTO PRAXIOLOGICO 127


é restituido por entrevistas ou fontes escritas —, cuja ilustracio mais bem acabada é seu livro La
misére du monde (1993). No entanto, fiel a sua critica do modo de conhecirnento praxiologico,
Bourdieu nunca chegaré a endossar as abordagens subjetivistas que limitam a analise cientifica
a explicitacao do ponto de vista dos individuos. Essa é, sem dfivida, a razao pela qual, na nova
edicao de Esquisse d’une théorz'e de la pratique, em 2000, ele acrescentou um trecho em que
critica o subjetivismo on o intersubjetivismo fenornenologico que se tinha tornado dominante
nas ciéncias sociais, desde 05 anos 1980 (em Le senspratique, 1980, sua critica da antropologia
imaginéria do subjetivismo concentrava—se ern Sartre 6 Has teorias da acao racional): de acordo
corn Bourdieu, de fato, a ciéncia do mundo social nao pode ser reduzida a construcoes de cons-
trucoes — ou construcoes de segundo grau —, como havia sugerido Alfred Schiitz, ou ainda a
accounts ofaccounts segundo Harold Garfinkel, porque ela n50 seria, entao, nada além de um
“registro do dado tal coma ele se dd, ou seja, da ordem estabelecida”. O modo de conhecimento
praxiologico exige que se relacione o ponto de vista dos individuos, assim como suas crencas,
com suas condicoes economicas e sociais; nesse aspecto é que a sociologia do conhecimento é,
“inseparavelmente, uma sociologia da politica” no sentido em que ela revela os “mecanismos
gnoseologicos que contribuem para a manutencao da ordem estabelecida” (ETP, 241).

Referéncia
PANOFSKY, E. Architecture gothz'que et pensée scolastique. Traducao e posfacio de P. Bourdieu.
Paris: Minuit, 1967.

54. CONSTRUTIVISMO
Denis Baranger

E na década de 1980 que Bourdieu utiliza esta palavra. A seu respeito, conviria distinguir
dois sentidos, mesmo que estes nao sejam totalmente independentes urn do outro: por urn
lado, trata—se da construcao significativa do mundo social, de acordo com o titulo original
do livro de Schiitz (1932), on seja, da capacidade dos agentes de construir a sociedade; por
outro, continua sendo a construcdo do objeto bachelardiana. Assim, Bourdieu pode definir
a ciéncia social como “urna construcao social de uma construcao social” (SSR, 172); mas nao
seria possivel, de modo algum, qualificar Bourdieu como construtivista propriamente dito.
Para Bourdieu, a semelhanca do que se passa com Bachelard, o oximoro é a figura retérica
predileta para se desvencilhar da armadilha de um binémio epistemologico. Quando Bourdieu,
em sua conferéncia proferida em San Diego, escolhe o rotulo “construtivisrno estruturalis-
ta” — ou “estruturalismo construtivista” — para caracterizar seu trabalho (CD, 147), pode—se
ver nessa postura urna transfiguracao do binomio objetivismo/subjetivismo, presents desde
seus primeiros trabalhos, culminando em Esquisse d’une théorie de la pratique, nos “trés
modos de conhecimento teorico” (ETP, 163).
Assim, o estruturalismo levisstraussiano seria uma forma particular de manifestacao
do objetivismo (do mesmo modo que a linguistica saussuriana, a semiologia e a estatistica),
enquanto a fenornenologia e o pensamento de Sartre -— assim como a etnornetodologia,
o interacionismo e a rational choice theory — seriam expressoes do subjetivismo. Com

128 CONSTRUTIVISMO
essa formula, Bourdieu procura reconciliar a estrutura com a acao: “Por estruturalismo
ou estruturalista, pretendo dizer que, no préprio mundo social — e 11:10 apenas nos siste—
mas simbélicos, linguagem, mitos, etc. 4, existem estruturas objetivas, independentes da
consciéncia e da vontade dos agentes, que sao capazes de orientar ou restringir as praticas
ou representacoes desses agéntes. Por construtivismo, quero dizer que ha uma génese
social de uma parte dos esquemas de percepcao, de pensamento e de acao que sao cons-
titutivos do que designo como campos e grupos, nomeadamente do que é denominado,
de modo habitual, corno classes sociais” (CD, 147). Ele sublinha a complementaridade
entre essas duas abordagens, “em boa logica, inseparéveis” (NE, 7). Todavia, do ponto de Vista
da construcdo do objeto, existe uma preeminéncia do momento objetivista, unico meio de
, garantir a indispensavel ruptura com o sensocomum e a doxa.
Se Bourdieu fala de construtivismo em vez de subjetivismo, é para indicar que os agentes
participam ativamente da producao e reproducao das estruturas sociais, que o mundo social
é efetivamente construido pelas acoes desses agentes. No entanto, isso nao significa, de modo
algum, que o mundo social seja uma pura criacao das decisoes conscientes dos mesmos: “Se
é conveniente lembrar, contra certa visao mecanicista da acao, que os agentes sociais cons—
troem a realidade social, individual e também coletivamente, impoe-se nao esquecer — como
‘ '- ocorre, muitas vezes, com os interacionistas e etnometodélogos —, que eles nao construiram
as categorias que estao empregando nesse trabalho de construcao” (NE, 47).
Em matéria de sociedade, o construtivismo se opoe a naturalizacao da ordem social e, portanto,
combina perfeitamente com a ideia de arbitrdrio cultural. O construtivismo tern uma vantagem:
ele desfataliza por implicar que a sociedade poderia ser, certamente, construida de outra manei-
ra. Mas, pode ter também uma desvantagern se induzir a acreditar que, por serem construidas, as
estruturas deixam de ser reais - essa é a “rigidez do mundo”, diria Robert Castel (2003, p. 347) —,
e que a liberdade dos agentes para se livrarem dos determinismos sociais é ilimitada.
O mesmo ocorre no que se refere ao conhecimento cientifico. Em seu filtimo curso mi-
nistrado no College de France (2000-2001), 0 termo "construtivismo” permanece quase
imperceptivel, embora esse ro’tulo pudesse ser apropriado para designar a regiao do “campo
das ciéncias da ciéncia” que Bourdieu toma como objeto de estudo. Ele se assume ainda como
construtivista contra o “paradigma norte—americano” (SSR, 41), mas essa era apenas a maneira
de se diferenciar melhor do construtivismo radical e do relativismo, os quais unificam o
subcampo pés-modernista na “guerra das ciéncias”. O que Bourdieu rejeita absolutamente é
a ideia de que as verdades cientificas possam ser reduzidas a relacfies de forca politicas: em
um campo cientifico auténtico (portanto, auténomo), as proposicoes so devem ser tributarias
“da prova da coeréncia e do veredito da experiéncia” (MP, 132-133).
A0 tomar o campo cientifico como objeto, Bourdieu é levado a rejeitar tame a visao realista
ingénua quanto a visao construtivista relativista, superando assim “a alternativa do constru-
tivismo idealista e do positivismo realista em favor de um racionalismo realism” (SSR, 151).
Para ele, isso tern a ver ainda com um oxirnoro, jé que se trata aqui, evidentemente, de um
realismo epistemolégico (e 11:10 ontolégico, a semelhanca do que ocorre com 0 de Popper).
F. Vandenberghe (1999, p. 62) refere-se a uma carta em que Bourdieu declarava que, “a
exemplo de [Roy] Bhaskar, do qual havia descoberto recentemente os trabalhos, ele tinha sido
sempre urn realista”. Por sua vez, 1. Hacking (2004, p. 161) evoca o realismo inferno de H.

CONSTRUTIVISMO 129
Putnam: “interno pelo fato de que todos os critérios da verdade sao internos a nossas préticas
cientificas”, explica ele. Bachelard nao teria escolhido, certamente, a expresséo, mas n50
estaria assirn tao longe da ideia. Hacking (2004, p; 156) toma distancia em relacéo a Popper:
“Bourdieu pretendeu transformar as lutas de confronto travadas no campo cientifico em um
fator constitutive da objetividade e, até mesmo, da verdade dos enunciados cientificos. Para
Popper, a verdade é sempre uma correspondéncia com algo de diferente, algo de absoluto,
enquanto Bourdieu rejeita qualquer espécie de teoria da verdade como correspondéncia”.
Hacking esté cheio de razéo ao opor, neste ponto, Bourdieu a Popper, mas vai talvez longe
demais quando conclui por sua rejeicao de qualquer ideia de correspondéncia.
I. Bouveresse (2003, p. 29), por filtimo, que se define de born grado corno discipulo e
amigo de Bourdieu, partilha com ele “a necessidade de reabilitar — e, se for o caso, contra
os préprios sociélogos — uma filosofia das ciéncias e uma teoria do conhecimento de tipo
realista” (BOUVERESSE, 2003, p. 132).
Bourdieu havia tornado sempre o partido da ciéncia contra os exageros construtivistas
que, em filtima instancia, conduzem a negacao da ciéncia social. Ele teria subscrito, sern
nenhuma dfivida, as simples questées de bom senso formuladas por Bernard Lahire (2001)
a propésito da deriva construtivista pés-modernista: “Se 0 ator comurn é maior sociologo
que o sociélogo, que tipo de legitimidade tern o sociélogo para lhe atribuir urn certificado de
sociologia? Se 0 relato dos atores é mais completo e exprime melhor do que poderia ser dito
pelo sociélogo, por que motivo este filtimo correria o risco de destruir essa verdade em estado .
bruto ao escrever sobre o assunto? Se 0 ator cornurn revela—se mais erudito que 0 cientista,
por que razéo este continua vivendo como funcionério do Estado?” (SSR, 111).

Referéncias
BOUVERESSE, I. Bourdieu: savant etpolitique. Marseille: Agone, 2003.
CASTEL, R. Pierre Bourdieu et la dureté du monde. In: ENCRBVE, P.; LAGRAVE, R.—M. (Orgs).
Travailler avec Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003. p. 347—355.
ENCREVE, P.; LAGRAVE, R.—M. (Orgs.). Travailler aver: Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003.
HACKING, 1. La science de la science chez Pierre Bourdieu. In: BOUVERESSE, 1.; ROCHE, D. (Orgs.).
La liberté par la connaissance. Paris: Odile Jacob, 2004. p. 147-162.
LAHIRE, B. Les limbes du constructivisme. Contretemps, v. 1, p. 101-112, 2001.
SCHUTZ, A. Der sinnhafte Auflrau der sozialen Welt: eine Einlez’tung in die verstehende Sozio-
logie. [A construcao significativa do mundo social: introducéo a sociologia compreensiva] Viena: I.
Springer—Verlag, 1932.
VANDENBBRGHE, F. “The Real is Relational”: an Epistemological Analysis of Pierre Bourdieu’s
Generative Structuralism. Sociological Theory, v. 17, n. 1, p. 32—67, 1999.

55. CONTRAFOGOS: TATICAS PARA ENFRENTAR A INVASAO NEOLIBERAL


(Contre-feux: propos pour servir a la résistance contre /’/'nvasion néo-libéra/e)

Patrick Champagne

BOURDIEU, P. Con trafogos: taticaspara enfientar a invasao neoliberal. Rio de Ianeiro: Jorge Zahar, 1998.

130 CONTRAFOGOS:TAT1CAS PARA ENFRENTAR A INVASAO NEOLIBERAL


(Contre—feux: propos pour servir é la resistance contre I'invasion néo—Iibérale)
Em dezembro de 1995 desencadeou—se na Franca um grande movimento social — marcado
pela greve, durante um més, de diversos servicos‘ pi’iblicos - para protestar contra a revisio,
pelo governo de direita, de ‘direitos sociais ja adquiridos” e, em particular, dos regimes de
aposentadoria. Além desses aspectos, o pensarnento neoliberal questionava, no final das contas,
o Estado~Providéncia e seu papel na sociedade. Se Pierre Bourdieu, desde o inicio, pretendeu
que as ciéncias sociais deveriam estar ativamente presentes nos debates politicos, ocorre que,
até 0 final dos anos 1980, sua participacao se limitou, em grande parte, ao campo intelectual e
aproducao de obras, algumas das quais — cf. Les héritiers, 1964; La reproduction, 1970; La
distinction, 1979, etc. — haviarn obtido algum sucesso entre o pi'iblico. No entanto, La misére .
- du monde, livro publicado em 1993, marca urna virada no sentido em que Bourdieu manifesta
mais diretamente sua preocupacao em se envolver na luta politica, intervindo por meio de to—
madas de posicao pontuais, de artigos enviados para a imprensa, de assinaturas de peticao, etc.
No final de 1996, em consonancia com as lutas sociais, ele cria uma pequena editora militante
— Editions Raisons d’agir — por meio da qual pretende prosseguir, em companhia de outros
autores, o combate contra o neoliberalismo através da publicagao de opfisculos bastante aces—
siveis, redigidos por pesquisadores. Contre—feux inscreve-se, pois, precisamente nessa logica.
O livro é publicado e111 1998 e agrupa diversas intervencoes pontuais de Bourdieu, cujo
ponto de convergéncia reside na dem’mcia dos lugares comuns e das falsas evidéncias, pro—
duzidos pela ideologia neoliberal. Entre outros, é de se destacar a importancia do texto “La
main gauche et la main droite de I’Etat”, que abre a coletanea e torna explicita a oposieao entre
uma pequena nobreza de Estado que, sofrivelmente, gerencia os danos da politica neoliberal
empreendida por urna alta nobreza do Estado privilegiada, e o texto principal que encerra
o livro, “Le néo-libéralisme, utopie (en voie de realisation) d’une exploitation sans limites”.

56. CONTRAFOGOS 2: FOR UM MOVIMENTO SOCIAL EUROPEU


(Contre—feux 2: pour un mouvement social européen)
Patrick Champagne

BOURDIEU, P. Contrafogos 2: par um movimento social europeu. Rio de Ianeiro; Jorge Zahar, 2001.

Na precedente obra Contre-feux (1998), Pierre Bourdieu havia elaborado uma critica radical
do neoliberalismo, condicao prévia para qualquer aqao racional. Em Contre-feux 2 (2001) ele
refine, segundo o mesmo principio adotado para a primeira obra, diversos textos de intervengao
que visam lancar as bases de uma agao em escala europeia. Bourdieu explica sua participacao,
cada vez mais ativa e visivel, no movirnento social: “Acabei por pensar que todos aqueles que
térn a oportunidade de dedicar suas vidas ao estudo do mundo social nao podem permanecer
neutros e indiferentes, longe das lutas que poem em jogo o futuro deste mundo”, escreve ele na
introdugao ao livro. Os textos reunidos neste volume sao, em comparaqao com o precedente,
menos pontuais, mais longos, mais construidos e mais elaborados, talvez por se inscreverem
em lutas intelectuais que, em sua esséncia, sao “lutas teoricas nas quais os dominantes podem
contar com milhares de cumplicidades”. Em suas diversas intervenqoes, analisa o novo modo de
dominacao, tao complexo quanto refinado, que o neoliberalismo implantou: verdadeira méquina

CONTRAFOGOS 2: FOR UM MOVIMENTO SOCIAL EUROPEU 131


(Contre-feux 2: pour un mouvement social européen)
cega e sern condutor, na qual o poder sirnbéh'co ocupa um lugar importante, o que justifica, em
seu entender, o papel eminente que os pesquisadores deverao desempenhar em um movimento
social europeu que ainda esta por criar. O artigo central dessa coletanea de intervencao é, sern
duvida, aquele que se intitula: “Contre la politique de dépolitisation”. Nesse longo texto, Bourdieu
mostra que aquilo que se encontra descrito sob o nome de “globalizacao” é o efeito, nao de uma
fatah'dade economica, mas de uma politica deliberada, inconsciente de suas consequéncias, que
visa libertar as forgas econémicas de qualquer controle. Contra essa politica de despolitizacao, ele
preconiza a restauracao da politica. Mas, doravante, convém agir em um nivel que se situa para
além das fronteiras do Estado nacional: o movimento social deve posicionar—se em escala europeia.

Cristina Carta Cardoso de Medeiros

A partir de uma genealogia deste tema nos escritos de Bourdieu, percebe-se que as reflexoes
sobre o corpo jé estavam presentes desde 03 anos 1960, em suas pesquisas realizadas na Argélia.
Foi observando que a inversao simbélica entre 0 interior e o exterior da casa cabila era também
uma inversao geométrica, e assim corporal, que Bourdieu (ETPp) comecou a introduzir em
suas analises uma sociologia do corpo. Paralelarnente ‘as investigacoes na Argélia, ele tambérn
verificava o celibato dos filhos mais velhos no Béarn e desenhava a condicao campesina a partir
do corpo (BC). Realizando a observacao de determinados eventos sociais, descreveu e interpre-
tou as técnicas corporais como verdadeiros sisternas solidarios a todo um contexto cultural.
Em “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps” (1977), Bourdieu afirma que
o corpo, como urna forma perceptivel que causa uma impressao, é, de todas as manifestacées
do individuo, a que menos se deixa modificar, apesar de investimentos de ordem variada. O
corpo deve ser levado em consideracao por significar, de maneira mais adequada, a natureza
de uma pessoa, funcionando, portanto, como um meio de linguagem da identidade social em
que “se é falado, mais do que se fala” (BOURDIEU, 1977, p. 51). No corpo se leria a linguagem da
natureza cultivada em que se trai o mais escondido e o mais verdadeiro, ja que é o menos cons~
cientemente controlado e controlavel e que contamina e determina as mensagens percebidas e
despercebidas. O corpo seria entao urn produto social desde as dimensoes de sua conformacao
visivel, derivada de condicoes sociais, até as formas de se portar e de se comportar, expressando
toda a relagao com o mundo social.
Em A distinpdo: crz’tica social do julgamento (1979), Bourdieu destaca que as aquisi~
(goes incorporadas sao determinadas socialmente e se inscrevem no corpo na maneira de se
movimentar e de cuidar do corpo. O sociélogo destaca a manipulacao entre o ser e o dever
ser em tudo que concerne a imagem on a utilizacao do corpo, que conta com a cumplicidade
inconsciente daqueles que contribuem para a produgao de um mercado inesgotével de produtos
que sac oferecidos para impor uma nova hexz's corporal, dimensao fundamental do senso
de orientacao social. Bourdieu (LD, 210) afirma que “o gosto contribui para fazer o corpo
de classe” pela cultura tornada natureza, ou seja, incorporada, que escolhe e modifica tudo
que o corpo ingere, digere e assimila. O corpo é, portanto, “a objetivacao mais irrecusavel do
gosto de classe”'(LD, 210).

132 CORPO
No artigo “Os trés estados do capital cultural”, Bourdieu destaca o estado incorporado
como uma das trés formas de existir do capital cultural e, mais ainda, afirma que este seria
seu estado fundamentalLigado a0 corpo e pressupondo sua incorporacao, a acumulacao
desse tipo de capital cultural demandaria um trabalho de inculcacao e de assimilacao que
custaria tempo de investirnent'o do agente social, tal como um “bronzeamento” (BE, 74).
Em Questfies de sociologia (1980), por sua vez, aborda Varios textos sobre a problemé~
tica do corpo, as préticas corporais e a mimesis corporal. Refere—se, na obra, a histéria feita
coisa e a histéria feita corpo, afirmando que “a historia esta inscrita nas coisas, ou seja, nas
instituicoes e também no corpo” (Q8, 74). Todo seu esforco teria consistido em descobrir a
histéria onde ela se esconde melhor, a saber, nos cérebros e nas dobras do corpo.
As reflexoes sobre o corpo ainda se fazem presentes em Coisas ditas (1987), Meditacées
pascalianas (1987) e A dominacfio masculina (1998), onde se'exploram o conhecimento
pelo corpo, a incorporacao das disposicoes e a coercao pelo corpo.
Na abordagem sociolégica desenvolvida por Bourdieu fica claro que a maneira de estar no
mundo se deve a um processo de pertencirnento social. 0 individuo e’ um coletivo encarnado,
um social incorporado. A relacao do corpo com o mundo e’, implicita e explicitamente, ligada a
imposicao de uma representacao legitima do'corpo. O corpo social é o corpo do individuo portador
do habitus, uma vez que as disposicoes incorporadas moldam o corpo a partir das condicoes
materiais e culturais. Este é o processo de socializacao, produzindo um ser individual forjado
nas e pelas relacoes sociais, fazendo da prépria individualizacao um produto da socializacao. Por
isso a nocao de habitus articula 0 individual e o coletivo e engloba o corpo, porque, enquanto
disposicao, passa a orientar as praticas corporais que traduzem uma maneira de ser no mundo.
“O que se aprende pelo corpo nao é algo que, como urn saber, se possa segurar diante de si, mas
e'algo que seeé” (SP, 123). Nessa afirmacéo o autor se refere a ideia de que o saber aprendido pelo
corpo, entendendo este saber como um esquema de sisternas de investimento social que o corpo
incorpora, 11510 6’: palpavel. O corpo nao representa urn papel, nao interpreta um personagem, e
Sim se identifica corn este formato determinado socialmente, constituindo a partir deste formato
a imagem de si. Reconhecida como sua maneira de ser, 0 agente nao consegue perceber que
grande parte do investimento no corpo que visa a sua construcao socializada é responsavel por
determinar sua posicao de ocupacao no espaco social
Bourdieu (LD) utiliza tambérn em seu quadro teérico de analise a nocao de capital corpo,
Ial, afirmando que as propriedades corporais podern funcionar corno capital para a obtencao
de lucros sociais, para conceder a representacao dominante do corpo um reconhecimento
incondicional. Além das propriedades corporais, 0 capital corporal também abrangeria a
habilidade corporal para a pratica de esportes. A aprendizagem de uma habilidade especi-
fica seria mais rentével na medida em que se daria de forma precoce. A tradicao familiar, a
postura, as técnicas de sociabilidades e a aprendizagem precoce de uma habilidade motora
podem interditar alguns esportes e praticas corporais as classes populares.
Destacando a importancia do que é apreendido pelo corpo e que se encontra velado a
Compreensao do agente, Bourdieu (1998, p. 3) escreve que “as injuncoes sao particularmente
' poderosas porque elas se dirigem primeirarnente ao corpo e 1150 passam necessariamente pela
linguagem e pela consciéncia”. A submissio ‘as determinacées das disposicoes se origina na
prépria incorporacao destas disposicoes. Esta submissao se aloja profundamente no corpo

CORPO 133
socializado, sendo a expressao do que ele denomina a somatizacao das relacoes
sociais de
dominacao. Para 0 autor, a somatizacao progressiva das relacoes fundam
entais que sao cons-
titutivas da ordem social inscreve~se na hexis corporal, ou seja, nas postura
s, disposicoes e
relacées do corpo interiorizadas pelo individuo, induzindo sua maneira de agir,
sentir e pensar.
' Os efeitos da dominacao se exercem por intermédio de uma relacao de adesao
corporal e
o vocabulario da dominacao estaria repleto de metéforas corporais, sendo que
a submissao a
uma “ginastica” da dominacao encontra-se inscrita nas posturas, na maneira
como se curva
o corpo, onde a ordem social se inscreve de forma duradoura, e nos automat
ismos do cérebro
(BOURDIEU, 1982). Os investimentos no corpo e em suas posturas tém
destaque no protesso
de dominacao, corno principio de atuacao do poder. A concretude desse investim
ento pode
ser verificada, por exemplo, nas instituicoes de ensino, onde se atesta a associac
ao de duas
formas de comunicacao e inculcacao, a saber, os discursos e amodulagem de um
corpo social
encarnado em um corpo biologico, servindo de porta—voz das crencas socialm
ente determi-
nadas e aceitas. E o que evoca a nocao de “esprit de corps”, formula que, segundo
Bourdieu
(1982), e sociologicamente fascinante e aterrorizante.
O efeito da dominacao simbélica sobre o corpo é tratado por Bourdieu (DMp,
50) corno
urna “forca mégica”, ou seja, urna forca simbolica'como “forma de poder que
se exerce sobre
os corpos, diretamente, e corno que por magia, sem qualquer coacao fisica; mas
essa magia sé
atua corn-o apoio de predisposicoes colocadas, como molas propulsoras, na zona
mais profunda
dos corpos”. E sob forma de esquernas de percepcées e de disposicoes que se
inscreve urn ,
sistema de estruturas nos corpos dos domjnados, tornando-os sensiveis a certas
manifestacoes,
simbolicas do poder e aptos a entrar no jogo social. A ordem social determina
entao a ordern
do corpo, tornando—o a0 mesmo tempo lugar de investimento e principio de
sua eficécia.
Referéncias
BOURDIEU, P. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. ARSS,
v. 14, p. 51-54, abr. 1977.
BOURDIEU, P. Ce que parler veut dire. Entrevista com Didier Eribon. Libe’mti
on, Paris, 19 out. 1982.
BOURDIEU, P. Le corset invisible. Entrevista com Catherine Portevin. Téléramc
z, Paris, v. 3, n. 2534,
5 ago. 1998.

58. CRENQA
Maria da Gracajacintho Setton
Herdeiro do pensamento sociolégico classico, Bourdjeu se apropria do termo “crenca”
para
analisar o caréter magico e oculto de processos de interiorizacao de valores sociais
realizados
em uma acao pedagégica anonima extremarnente poderosa. Tributério do raciocin
io de autores
como Max Weber (1991) — carisma —, Emile Durkheim (2009) — conform
ismo moral e logico —,
e Marcel Mauss (1974) - a economia das reciprocidades sirnbolicas
—, Bourdieu faz uso da
nocao de crenca para expressar rnecanismos dialéticos de reforco entre estrutur
as sociais e
estruturas mentais nao facilmente identificéveis. Ainda que a analise desses
autores, nesse
particular, se refira, sobretudo, a esfera da Vida religiosa e cultural dos
grupos, Bourdieu
vai alérn, extrapolando sua utilidade para outras dimensoes da Vida social —
ou seja, todas
aquelas responséveis pela producao dos sentidos (SP).

134 CRENCA
kw.»
O uso da nocao de crenca passa por um desejo do autor de provocar e sensibilizar o olhar
do observador social sobre o carater arbitrario e sagrado do universo simbolico das sociedades.
De carater naturalizado, as crencas sao sempre coletivas e sempre produtos de construcoes
que remetem a umjogo de forcas entre agentes ou grupos sociais diferentemente posicionados
na estrutura social. Derivam do conhecimento de uma “verdade”, de seu conhecimento e
reconhecimento social e individual, que se realiza como uma segunda natureza. As crencas
se constituem no pano de fundo que orientam as condutas, os pensamentos, um conjunto de
disposicoes éticas e estéticas que alimentam o sentido pratico das acoes individuais.
Nesse sentido, poderiamos afirmar que “crenca” nao é um simples vocabulo na estrutura
do pensamento de Bourdieu. Trata-se de um termo que revela significativa contribuicao
para se compreenderem os processos de construcao do social, tornando—se um importante
. instrumental para perscrutar o universo inconsciente das acoes individuais e coletivas. Nao
fazendo uso das distincées entre as ciéncias humanas, Bourdieu entende que o cientista social
deve se armar de todo o tipo de ferramenta conceitual para penetrar na complexidade das
realidades sociologicas. Tudo leva a crer que a nocao de crenca encerra essa complexidade,
remetendo a um feixe de condicionamentos socializadores que mescla dimensoes obfetivas e .
materiais bem como subjetivas e simbolicas da Vida grupal e individual. Sem di’ivida tal nocao
éreveladora de um esforco original de compreensao das relacoes dialéticas entre individuo e
sociedade, expressando a forca do pensamento interdisciplinar do autor bem como seu esforco
em revelar os mecanismos de orquestracao dos sentidos que tecem as urdiduras do social.

Referéncias
DURKHEIM, E. Asformas elementares da vida religiosa, Silo Paulo: Martins Fontes, 2009.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dédiva. Forma e razao da troca nas sociedades arcaicas. Sociologia e
Antropologia, Séo Paulo: EPU/EDUSP, v. II, 1974.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasilia: Ed. da UNB, 1991.

59. CULTURA
Enio Passiani
Maria Arminda do Nascimento Arruda

O conceito de cultura elaborado por Bourdieu, como toda a sua obra, é o resultado do esforco de
integrar as tradicoes dos “pais fundadores” da sociologia, Marx, Durkheim e Weber. Desse modo,
a cultura refere-se aos elementos simbolicos da Vida social, ou seja, um conjunto de representacoes,
valores morais e ideais que institui e organiza a sociedade. Os aspectos simbélicos de uma dada
Organizacao social nao existem acima dos individuos, como “estrutura estruturada”, mas a partir
da acao dos préprios individuos uns em relacao aos outros, sujeita a mudancas, como “estrutura
estruturante”. A acao, pois, nao se resume a mera execucao determinada pela estrutura, mas
torna—se a fonte da qual brotam as significacoes do Inm social, 03 seus possiveis sentidos; em
' suma, a cultura é, a partir da acao dos agentes, a elaboracao de esquemas de percepcao do mundo,
uma maneira de descrevé—lo e compreendé—lo. Os agentes sociais, por sua vez, ocupam posicées
0bj6tivamente definidas na estrutura socioeconomica da sociedade; sao suas posicoes de classe,

CULTURA 135
responsaveis per neles criar certas inclinacoes, disposicées, inclusive as culturais. Esse sistema de
dispesicoes duraveis, transfen’veis, mas nae imutaveis (o habitus), determina, em boa medida,
as préticas subjetivas dos agentes. A cultura, assim, passa per um processo social de objetivacao
,
ganhando materialidade e tornando-se o deminio das praticas e bens culturais, que se comportam
Como suportes dos sentidos. O universe simbolice conhecido come cultura, espécie de instancia
metafisica e subjetiva, é objetivade em praticas que se relacienam com as posicées de classe dos
individues, pertanto, com suas cendicoes materiais de eidsténcia. O cenhecimento e e consume dos
bens culturais sae classificantes, isto é, es agentes sociajs se classificam e se opoem reciprocamente
no memento em que se dedicam a esta ou aquela pratica per meio das quais manifestam os seus
gostos (estéticos): frequentacao aos museus, 05 uses e a apreciacao da fotegrafia, os gostos literario
e musical, 0 tipo de vestimenta, a gastronomia e até mesmo a hexis corporal.
Nesse sentido, as capacidades de preduzir, reconhecer, consumir, admirar e apreciar os bens
cultuxais nae cerrespondem a predisposicoes ou competéncias inatas, mas sao arbitrairios cul—
turais inculcados por processes de aprendizagem desenvolvidos per instituicoes sociais come a
famflia e a escela: a primeira transmite come heranca as geracoes mais jovens uma disposicao
cultivada per meie de experiéncias extraescelares e de mode muitas vezes ludico, livre das ebri—
gacoes impestas pela escola (é 0 capital cultural incorporado), porém, ao mesmo tempo, crucial
para garantir o bom desempenho e o éxito educacienais; a segunda é respensével per transmitir
o conhecimento e a cultura (obras, auteres, cientistas, teorias, etc.) oficiais de forma metodica
e
organizada, sancionades e reconhecides posteriormentepelos diplomas e certificados escolares. Se
0 volume de capital cultural herdade e acumulado varia de acordo com a posicao socioeconomica
do agente, entae seu consume cultural e gosto estético vaIiam de acorde com as classes sociais.
As elites detentoras de elevade capital cultural (que se encontra em estreita relacao com 0 capital
escolar), provavelmente bem posicionadas na estrutura socioeconémica da sociedade, 550 as res-
ponséveis per elaborar uma ideia de gosto e estética legitimos, que, num movimento de retorne,
legitimam 0 proprie capital cultural de que dispoem. O gosto cultivado se manifesta come “gosto
pure”, supostamente livre das pressoes e necessidades da Vida cetidiana e independente de toda e
qualquer funcae, reforcando a ideia de que as préticas culturais sao inatas, manifestacées naturais
de individuos, em tese, bem dotades 'mtelectualmente, portadores de capacidades e competéncias
que outros nae possuem, ocultando o fate de que, no interior das seciedades Capitalistas, as Varias
formas de capital — o economico, e cultural e 0 social — sae desigualmente distribuidos entre as
classes 6 fracoes de classe, comportando-se come recurses existentes e acumulados que constituem
o fundamento da distincéo.
Em sintese, a pesicao social gera uma certa disposicao, o habitus, que, por sua vez, tende a
fortalecer a propria pesicao, gerando a distancia social entre individues e grupos. Tal disposicao
corresponde a “ebjetividade interierizada”, a estrutura de classes interiorizada pele agente mediante
o condicionamento exercido per determinadas instituicfies a0 lengo de toda a sua trajetoria social,
intimamente associada a certas condicoes de Vida. Se as disposicoes sao ajustadas de acordo com as
posicoes sociais, entae pode—se afirmar que sao ajustadas de acordo com a estrutura de classes. Ha
tode um sistema de relacoes (economicas, sociais e culturais) a0 qual todas as classes e fracoes de
classes se remetem. O estilo de Vida de uma classe ganha sentide na medida em que diz respeito
a prépria classe e, ainda, na medida em que se refere a outta classe, uma vez que um sistema
de
posicoes sociais é sempre relacional, quer dizer, eles se definem uns em relacao aos outros e nae

136 CULTURA
em si mesmos. As oposicoes entre as classes, portanto, 1150 se restringem aposse de bens materiais,
mas também se verificam nos estilos de Vida configurados pelas préticas culturais, manifestacoes
fenoménicas da cultura, principalmente o gosto estético. A dominacéo de classe, nos termos de
Bourdieu, supoe a mobilizacao de um poder simbélico que consegue impor certas significacoes
como legitimas. Dessa perspe'ctiva, as relacoes Socials sao igualmente relacoes de concorréncia entre
“arbitrios culturais”, sao lutas de classificacao. E a luta entre classes e fracoes de classes transpostas
para a dimensao cultural. A imposicao do arbitrario cultural, auténtico ato de violéncia simbélica,
garante a cultura dominante se apresentar como {mica cultura legitima, tornando a dominacao
reconhecida e aceita pelos demajs grupos. As hierarquias culturais (a alta cultura, a cultura das
classes médias e a cultura popular) reproduzem, de forma eufemizada, as hierarquias sociais e a
estrutura de dominacao da sociedade. Assim, os individuos nao percebem que a culturadorninante
é a cultura das classes dominantes; eles acreditam que ela é dominante porque é intrinsecamente
superior as demais. Ou seja, os individuos percebem como hierarquias simplesmente simbélicas o
que sao, principalmente, hierarquias sociais. Atransfiguracao das hierarquias sociais em simbolicas
permite, aponta Bourdieu, a legitimacao e a justificacao das diferencas sociais, revelando que as
préticas culturais nada tém de ingénuas ou inofensivas, pois estabelecem, de maneira dissimulada,
uma logica da distincao que é, ao mesmo tempo, produto e reprodutora de uma hierarquia social;
por conseguinte, o significado das coisas, o sentido do mundo social que as préticas culturais car-
regam e difundem sao aspectos da dominagéo simbélica exercidapelas classes dominantes. E por
meio das praticas que as representacoes dominantes — que correspondem ao conjunto de opinioes
comuns, crencas estabelecidas, ideias preconcebidas, definido como dogca — sao objetivadas e se
impéem. Cultura e politica, para Bourdieu, apresentam-se como elemehtos indissociéveis, uma
vez que é por meio da primeira que se torna possivel o exercicio eficaz do poder e da dominacao.
Sua nogao de cultura se apresenta corno uma via de acesso privilegiado para o conhecimento da
sociedade, das formas de poder e dominacao que a configuram e sustentam. Isso n50 quer dizer
que a cultura se reduza a simples determinacao da politica e da economia, mero reflexo dessas duas
instancias do mundo social. A0 contrario, a cultura possui uma linguagem peculiar e é dotada de
uma dinamica, organizacfio e regras proprias definidas por aqueles agentes e agéncias sociais que
compoem um campo especifico da sociedade, o campo cultural.

60. CULTURA POPULAR


Ana Maria de Oliveira Galvdo
Juliana Ferreira de Melo

Bourdieu raramente utiliza, em sua obra; a expressao “cultura popular”. Quando o termo
é usado, é posto sempre entre aspas, pois, para o autor, as nocoes que se referern ao “povo” e ao
“popular” 5510 “conceitos de geometria variéve ”, uma vez que eles podem ser ampliados conforme
avontade de quem os usa (BOURDIEU, 1996). Nessa direcéo, Bourdieu chega a afirmar, em outra
publicacao, que a “cultura popular” é “um saco de gates”, na medida em que “as proprias catego—
rias empregadas para pensa-la, as questées que lhe sao colocadas sao inadequadas” (CDp, 186).
Segundo o sociologo (BOURDIEU, 1978), a ambiguidade da expressao inicia~se na contradicao
existente nos préprios termos que a compoem, pois, se cultura significa “cultura dominante”,

CULTURA POPULAR 137


a culture par le peuple somente existe quando ela torna as formas reconhecidas pela “cultura
dominante” come as fermas de uma cultura. Mesmo quando se evidencia a existéncia da culture
du peuple, que apresenta formas que nae cerrespondem a definicao normalizada, o problema
persiste per causa da palavra cultura. Na visae do auter, o jego entre essas palavras —- cultum e
povo — é, portanto, polémico. Para ele, nae faz sentido discutir a existéncia da “cultura popular”
em si, mas somente em relacao a modes dominantes de julgamento e classificacao culturais,
que a remetem a um lugar de “empobrecimento”.
Para Beurdieu, 0 use das aspas serve tambe’rn para demarcar que falar de “cultura popular"
é, sobretudo, referir—se a urna socielegia da producao do discurso sobre a classe popular; on
seja, a sociologia das classes pepulares é, em outras palavras, uma questao da sociologia dos
intelectuais e de suas disputas simbolicas. O autor afirma que a maier parte dos discursos que
“feram ou sao pronunciados em favor do povo sao obra de produtores que ecuparn posicoes
dominadas no campode preducae” (CDp, 183). A preocupacae dos dominades do campo
intelectual e artistice em reabilitar as culturas socialmente inferiores ou formas minoritarias
de cultura, tornando-as um “popular positive” é, entao, inseparével “da preocupacao de seu
préprio enebrecimente” (CDp, 182).
Talvez, per essas razees, é que a expressao apenas apareca na obra do autor em mementos
em que ele é provocade a falar sobre ela come em um coléquio organizado pelo Centre de
Recherche de I’Education Spécialisée et de l’Adaptation Scolaire (CRESAS), em 1978, cu em
urn seminario realizado na Universidade de Chicago, em 1987. No conjunto de sua ebra, é
mais cemumente utilizade o terme popular come adjetivo nae da cultura, mas da estética,
do gosto e da lz’ngua/linguagem. Nesses cases, Bourdieu (LDp) refere-se, sobretude, a estilos
de vida, que encontram a sua mais elevada frequéncia nas classes populares e variam em
razae inversa a0 capital escolar. A este’tica popular, per exemplo, define—3e em centraposicao
a0 desinteresse, a fruicao, a0 distanciamento do mundo natural e social, quande se trata de
préticas culturais. Caracteriza-se, assim, per urna espécie de continuidade entre a arte e a
Vida. Nesse sentido, a apreciacao de individuos das carnadas populares, segundo o autor,
teria a tendéncia de seguir e principie ético, que subordina a forma a funcao. Aplicande,
no espaco da cultura, es esquemas que opera na pratica, o “povo” acreditaria nas coisas re—
presentadas, enquanto os intelectuais acreditariam, sobretudo na representacao, operando
com um desprendimento préprio do olhar pure. Os sujeites que adquiriram a disposicao
estética, possivel apenas fora das necessidades economicas, nae se submeteriam, assim, ‘as
necessidades e pulsoes primarias. Esse olhar pure implica, desse mode, “urna ruptura com a
atitude habitual em relacao ao mundo que é, per isso mesme, uma ruptura social (LDp, 34).
Nae se trata, pertante, de algo que esté inscrite naturalmente nas pessoas, que pudesse ser
identificado a um dom especial on a uma aptidao para a apreciacae estética. Para Bourdieu
(LDp), 1150 ha, entao, possibilidade de atribuir a existéncia a urn objeto apenas per critérios
puramente “artisticos” on “estétices”. Ele entende que somente é possivel definir a “estética
popular” em relacae‘as estéticas eruditas e aos seus efeitos de Iegitirnidade, que a desqualificam,
atribuindo-lhe urn julgamente negative. Para aqueles que ocupam posicees dominantes na
sociedade, e gesto popular'e, desse modo, censiderado“barbaro”e“r1'lstico’;para as proprias
camadas populares, é, per eutre lado, uma afirmacao, por example, do masculine sobre a
feminilidade, da linguagem crua/direta sobre o eufemismo on da festa/sociabilidades sobre

138 CULTURA POPULAR


~xa
' a contengao (BOURDIEU, 1996). A palavra “popular”, assim como outras que se encontram
reunidas no mesmo conjunto semantico - “baixo, inferior, para todos” — encontra—se, no
espago social, em oposicao a0 queeé “alto, legitimo, superior, raro (BOURDIEU, 1996), por
um efeito, socialmente construido, de crenea.
Muitas foram as criticas recebidas por Bourdieu em relagao as suas formulaqoes sobre
cultura popular (ver, por exemplo, GRIGNON; PASSERON, 1989). O préprio autor (CDp) de-
fendease daqueles que o acusaram de consagrar a diferenca entre a cultura denominada de
popular e a cultura erudita. Para ele, qualquer que seja a nossa opiniao pessoal on o nosso
julgamento de valor sobre essa dicotomia, ela existe, na realidade, sob a forma de hierarquias
que estao inscritas na objetividade dos funcionamentos sociais e na subjetividade dos siste-
mas de classificacao e dos gostos, eles mesmos hierarquizados. Afirma que é imitil denunciar
verbalmente essa hierarquia; o que é necessario mudar $210 as condigoes que a fazem existir,
na realidade 6 “nos cérebros”.
A problematizacao da expressao “cultura popular” feita por Bourdieu certarnente tern
trazido impactos, nas ultimas décadas, para as a'reas de conhecimento que normalmente
dela se ocupam, como a antropologia, a historia e 03 estudos sobre folclore. No campo da
histéria, por exemplo, traz elementos importantes para a histéria cultural que, principalmente
a'partir dos estudos de Michel de Certeau (1994) e de Roger Chartier (1990), tern colocado
o foco nao apenas na analise dos diferentes objetos culturais, mas, sobretudo, nos diversos
modos de apropriagao dos mesmos objetos, renovando a tradigao de estudos sobre o tema
realizados até meados dos anos 1960, como aquele de Robert Mandrou (1964), que tendiam a
associar alguns desses objetos— os destinados, em sua produgao, ao ‘”povo — a urna suposta
“mentafidade popular” (ver CHARTIER, 1995).
Certamente, a problematizacao realizada por Bourdieu, ao colocar no centro de sua
analise as relacoes de poder e 03 processos de legitimagao das diferengas sociais, constitui
urn poderoso instrumento para a superacao de ideias, ainda muito presentes em estudos
contemporaneos sobre cultura popular, que a vinculam, por um lado, a espontaneidade, a
pureza e a ingenuidade, e, por outro, ao “empoderamento” das camadas populares e as lutas'
dos movimentos sociais.

Referéncias
BOURDIEU, P. La sociologie de la culture populaire. In: Le handicap socio—cultarel en question.
Paris: ESF, 1978. p. 117420.
BOURDIEU, P. Vocé disse popular”? Revista Brasileira de Educagao, Sao Pau1o,v. 1, n. 1, p. 16-26,
jan./abr. 1996.
CERTEAU, M de. A invengao do cotidiano: aftes defazer. Petrépolis, RI: Vozes, 1994.
CHARTIER, R. A histérz'a cultural: entre praticas e represenz‘apoes. Lisboa: Difel; Rio de Ianeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
CHARTIER, R. “Cultura popular”: revisitando um conceito historiogréfico. Estudos Histéricos, Rio
de )aneiro, v. 8, n. 16, p. 179—192, 1995.
GRIGNON, C.; PASSERON, I.-C. Le savant et lepopulaire: misérabilisme etpopulisme en sociologie
et en littérature. Paris: Gallimard/Seuil, 1989.
MANDROU, R. De la culture populaire aux 17" at 18” siécles. Paris: Stock, 1964.

CULTURA POPULAR 139


51, DEN EGAn
Patrick Champagne '

Oriundo da psicanalise, denegagao (Verneinung), significa"recusa de reconhecer”, “o


que nao se pode confessar como tal” e designa um processo de ‘recalque”. Esse conceito
aparece muito cedo na obra de Bourdieu, desde seus trabalhos sobre a sociedade tradicional
camponesa 11a Argélia, e designa o processo pelo qual a economia camponesa resiste ao
“toma la dé ca” de uma economia capitalista que tende a se introduzir na sociedade rural,
a solapé—la e a desestruturar todas as relaeoes de ajuda mfitua e de solidariedade nas quais
esta assente a economia do dom. Ao apoiar-se em Lukécs, Bourdieu descreve — brevemente,
em Algérie 60: structures e’conomiques et structures temporelles (1977) e, de forma mais
aprofundada, em Le sens pratique (1980) — essa recusa de conferir ‘a realidade economica
seu sentido propriamente e puramente'economico: recusa no plano dos individuos, mas
sobretudo processo de recalque coletivo de uma sociedade inteira que trabalha para a re-
cusa do reconhecimento da verdade objetiva das trocas e, de forma mais geral, do mundo
social. 0 conceito é amplamente utilizado em La distinction (1979) e designa aquilo que,
por uma espécie de hipocrisia socialmente incentivada, leva a “fazer o que se faz como se
nao se 0 fizesse”, a classificar objetivamente, por exemplo, em fungao das classes sociais,
como se Classificasse subjetivamente em fungao de variéveis propriamente escolares. Em
La distinction, a denegagao designa, portanto, um processo muito geral que Bourdieu
ilustra por esta formula: “A verdade é dita, mas de um modo tal que ela nao é dita”. O
conceito é mobilizado também em sua analise do campo filoséfico (L’Ontologie politique
de Martin Heidegger, 1988) em que Bourdieu mostra que a existéncia de uma linguagem
propriamente filosofica torna possivel o processo de denegaqao do mundo social real, on
seja, neste caso, de neutralizagéo do social.

14o DENEGAn
52. DERACINEMENT (LE): LA CRISE DE L’AGRICULTURE ‘
TRADITIONNELLE EN ALGERIE ’
Enrique Martin Criado

BOURDIEU, P.; SAYAD, A. Le de’racinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie.


Paris: Minuit, 1964.

Esse livro que Bourdieu escreveu com Abdelmalek Sayad em 1964, cujo titulo em portu-
gués seria O desenmizamento, recolhe parte do trabalho empirico que o sociologo francés
desenvolveu em plena guerra da Argélia, liderando um grupo de jovens pesquisadores. O
texto analisa a desestruturacao da sociedade rural argelina em consequéncia da extensao
das relacées capitalistas, da politica colonial e das acoes de guerras francesas — que deslo—
cam mais de dois milhoes de camponeses para campos de reagrupamento, a0 mesmo tempo
em que destroem seus povoados. Essas transformagées solapavam as bases ~ objetivas e
subjetivas - da agricultura tradicional. Objetivas: a legislacao colonial, as expropriacoes de
terras e 05 deslocamentos impedem a subsisténcia da agricultura tradicional. Subjetivas: ao
, , desaparecerem as condicoes objetivas 6 a0 se estenderem as relacées salariais, desaparecem
os fundamentos do ethos camponés. Os camponeses se veem, assim, em uma situacao de
desdobmmento entre o ethos tradicional pré-capitalista ~ que nao media a atividade por seu
beneficio — e o capitalista — que toma como base de comparacao das atiyidades seu rendjmento
economico e a relacao salarial: situacoes que antes se viam como atividade, agora se veem
como desemprego. Em funcao desta realidade, os camponeses agora ativam uma logica ou
outra, ou — quando as condicoes de existéncia impedem toda projecao no futuro — se fundem
n0 fatalismo on no tradicionalismo. .
O livro constitui uma das primeiras denfincias contundentes da destruigao da sociedade
argelina pelo colonialismo francés e um dos primeiros estudos onde Bourdieu p6e em prética ~ sem
formula-la explicitamente — sua teoria do habitus. Essa formulacao, entretanto, é muito distinta da
que realizara em obras posteriores, como Le sens pratique (1980): enquanto aqui Bourdieu
insiste no ajuste do habitus as condicoes objetivas de existéncia, em Le déracinement analisa
o constante desajuste entre o habitus e as condicoes atuais de existéncia.‘

Referéncia '
MARTIN CRIADO, E. L’Algérie comme terrain d’apprentissage du jeune Sociologue In: LEBARON,
E; MAUGER, G. (Orgs.). Lectures de Bourdz'eu. Ellipses: Paris, 2012. p. 77-94.

63. DESENCANTAMENTO D0 MUNDO (O): ESTRUTURAS ECONOMICAS E


ESTRUTURAS TEMPORAIS
Enrique Martin Criado

BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: estruturas econémicas e estruturas temporais.


Silo Paulo: Perspectiva, 1979.

DESENCANTAMENTO DO MUNDO (0): ESTRUTURAS ECONOMICAS E ESTRUTURAS TEMPORAIS 141


No livro publicado pela Minuit (1977), com o t1’tulo Alge’rie 60: structures économiques
et structures temporalles, Bourdieu retoma as pesquisas realizadas na Argélia, especial-
mente Travail et travailleurs en Algérie (1963), para analisar o tipo de disposicoes que
requer e fomenta uma atividade econémica capitalista. Ele defende que a busca do beneficio
economico nao é uma racionalidade universal: encontra—se historicarnente situada e supoe
condicées de possibilidade que nao ocorrem em todas as sociedades e estratos sociais. Ilustra
tal afirmacao analisando a passagem de uma racionalidade pré—capitalista a uma capitalista
na situacao colonial argelina. A racionalidade pré-capitalista 1150 media a atividade pelo seu
rendimento econémico, 6 Sim por sua funcao social dentro de uma ordem tradicional, sem
distinguir entre atividades produtivas e improdutivas. As logicas imperantes eram a honra
e o intercarnbio de dons. A racionalidade capitalista mede toda atividade por seu beneficio
economico, introduzindo o calculo constants entre inversao e beneficio. Ora, esta raciona-
lidade requer algumas condicoes — especialmente uma seguranca economica que permita a
projecao no futuro —— que nao ocorrem em todas as camadas sociais — como os subproleté-
rios, condenados a viver 0 dia a dia. As esperancas subjetivas dependem das possibilidades
objetivas: a disposicao ao calculo a longo prazo necessita‘de uma estabilidade econémica que
nem todas as camadas sociais possuem. Bourdieu também aplica esta anélise ‘as disposicoes
politicas: perante aqueles que, como Frantz Fanon, confiam no subproletariado e no campe-
sinato para fazer avancar o socialismo, Bourdieu afirma que a nova ordem argelina haveré de
ser construida a partir daquelas camadas que, gracas a sua estabilidade economica — como a
classe operaria estavel —, podem fazer projecoes racionais no futuro. O livro introduz também
uma nova analise das disposicoes e praticas frente a0 realojamento de antigos favelados que
nao aparecia em Travail et travailleurs en Algérz'e.

64. DESTINO

Maria Andréa Loyola

Destino é uma expressao que pode ser usada para descrever 0 resultado das acées impul-
sionadas pelo habitus, nocao bésica da teoria de Bourdieu. Os individuos nao agem apenas
sob a determinacfio de estruturas objetivas, mas de acordo com sistemas de disposicées
duréveis, em part6 assimilados das estruturas sociais e em parte como respostas préprias,
individuais, a situacoes ocorridas em suas experiéncias de Vida — o habitus. E, sendo este,
além de esquema de acao, um sistema adquirido de preferéncias, principios de visao e divisao,
e estruturas cognitivas duradouras, ele é principio gerador que engendra também aquilo que
se costuma chamar de gosto que, por sua vez, produz escolhas que, probabflisticamente,
conduzem a um determinado destino social ou de classe (EB).
A variacao do gosto e das préticas culturais entre as classes sociais é menos resultado de uma
sensibflidade inata do que fruto de um processo educativo que acontece na famflja e na escola.
Individuos de um mesmo grupo ou classe tém major chance devivenciar experiéncias semelhantes
e, assim, gendem a incorporar um habitus, um gosto, um destjno social de grupo ou de classe. Em
uma sociedade hierarquizada e desigual, poucas $50 as famflias que dispoem de capital cultural
para transmitir a sua prole, o que leva a um descompasso entre as competéncias culturais exigidas

142 DESTINO
e promovidas na escola e as competéncias incorporadas pelos individuos de famflias de classes
mais baixas. Por essa razao, a escola, em vez de oferecer acesso democrético a cultura, acaba por
reforcar as distincoes sirnbolicas de capital cultural, corn seus desdobramentos materiais.
Assim, a0 contrario da méxima de que “gosto 1150 se discute”, ele deve ser discutido e cri—
ticado. Na sociologia de Bourdieu sobre o jogo de poder das distincoes economicas e culturais
numa sociedade hierarquizada, as distincoes do gosto revelam, antes de tudo, as desigualdades
da ordem social, em que diferencas de cultura e de origem sao convertidas em diferencas entre o
bom e 0 mm: gosto, que tanto em sua origem como em seu final se ligam a destinos diferentes.

65. DETERMINISMO
Gisele Sapiro

A sociologia de Pierre Bourdieu é frequentemente tachada de “determinista” por ter reve~


lado alguns determinismos sociais que orientam a acao e as preferéncias dos individuos. No
entanto, como sublinha o filosofo Jacques Bouveresse (2004) no livro que dedicou a Bourdieu,
o determinismo é uma postura metodolégica sem a qual é impossivel elaborar qualquer
ciéncia. Em sua obra, Le métier de sociologue, Bourdieu e seus coautores se referiam, por
um lado, a Claude Bernard, que considera que “a admissao de um fato sem causa — ou seja,
indeterminado em suas condicoes de existéncia - é, nem mais nem menos, a negacao da
ciéncia” (MS, 31); e, por outro, a Emile Durkheim, para quem os fatos sociais estéo ligados
entre side acordo com determinadas relaqoes (MS, 154457). L
A questao do determinismo remete ao debate sobre a causalidade nas ciéncias humanas e
sociais. As oposicoes encontradas pela sociologia incipiente, na Franca do século XIX, tinham
a ver com a recusa de considerar a acao humana como compelida por causalidades que lhe
sao exteriores. Eis por que, ao determinismo, é oposto muitas vezes o conceito de liberdade. V
Na Alemanha, as “ciéncias da mente” constituiram~se, na mesma época, em oposicao as
ciéncias naturais corn base na ideia de que as acoes humanas sao orientadas em relacao a
valores e fins; por conseguinte, conviria privilegiar uma abordagem hermenéutica para o
estudo dos fenomenos culturais. Da mesma forma, a abordagem finalista desenvolvida pela
fenomenologia rejeita a causalidade mecanica do behaviorismo.
Iniciado na fenomenologia no curso de sua formacao em filosofia, Bourdieu iré criticar o
estruturalismo por transformar os agentes em suportes mecanicos das estruturas. E contra essa
determinacao mecanica que ele desenvolve o conceito finalista de estratégia. Mas trata-se de
uma liberdade restringida por determinacoes sociais: a estratégia tern a ver com a improvisacao
regulada, no ambito de um espaco de possiveis circumscrito pelo habitus. A teoria do habitus
permite-lhe superar a oposicao causalidade e finalismo, entre reacao mecanica a determinacoes
e acao racional. Como é explicado em seu artigo intitulado “Avenir de classe et causalité du
probable”, ela permite compreender “a légica especifica de todas as acoes que trazem a marca
da razao sem serem o produto de uma meta racionalizada on, mais ainda, de um célculo ra-
cional; que sao habitadas por uma espécie de finalidade objetiva sem serem conscientemente
organizadas em relacao a um fim explicitamente constitur’do; [. . .] que sao ajustadas ao future
sem serem o produto de um projeto ou de um plano” (BOURDIBU, 1974, p. 3).

DETERMINISMO 143
Segundo a teoria do habitus, as estruturas sociais sio interiorizadas pelos individuos no
decorrer de sua socializagao sob a forma de disposigoes para agir, pensar ejulgar, orientando suas
préticas e escolhas em todas as areas. Elas levam, quase sempre, os individuos 11:10 so a ajustar
suas expectativas subjetivas as possibflidades objetivas, mas também a renunciar de imediato
ao que “nao é para eles”. Assim, longe de detectar esquemas de causalidade mecanica, pode—se
dizer que a sociologia de Bourdieu baseia—se em uma causalidade estrutural que determina
probabilidades — por exemplo, as possibilidades de acesso a universidade que, de acordo com a
demonstragao de Bourdieu e Passeron em Les héritiers: les e’tudz’ants et la culture (1964), 5210
desigualmente distribm’das segundo a origem social dos estudantes — e leis tendenciais inerentes
aos fenomenos de reprodugao que, em compensagao, as reforoam por uma causalidade circular:
por exemplo, a propensao da “noblesse d’Etat” (1989) para se reproduzir.
No entanto, o ajuste entre as disposigoes e as estruturas pressupée que o individuo evolui
em um espago social relativamente estabih'zado, ou seja, que as estruturas sociais que ele havia
interiorizado durante seu periodo de socializagéo sao semelhantes aquelas que enfrenta enquan-
to adulto, o que é apenas “um caso particular do possivel”, de acordo com uma expressao que
Bourdieu (1974, p. 5) toma de empréstimo de Gaston Bachelard. A0 verificar‘se alguma mudanqa
em tais estruturas, esse ajuste nao é automatico e pode se tornar dificil, como mostrou Bourdieu
(1962) no caso dos subproletérios argelinos, antigos camponeses que passam por grandes difi~
culdades para 56 adaptar as estruturas temporais de um capitalismo imposto pela colonizagao.
O que leva a nos questionar sobre as condigoes da mudanga social. Com efeito, existe outra
forma de causalidade em Bourdieu: trata~se da causalidade histérica, definida em seu livro
Homo academicus (1984), come 0 encontro entre séries causais independentes que fazeln
o acontecimento (no caso concreto, Maio de 1968). A1', ocorre algo que nada tem a ver com
um determinismo histérico: esses encontros entre séries causais independentes, que podem
caracterizar também o encontro entre uma trajetoria e um campo concebido como espaqo
dos possiveis, implica uma parcela de indeterminagao que leva a elaboragéo de estratégias
individuais e coletivas, mais ou menos ajustadas ‘as situaqoes e dispondo de um maior ou
menor grau de possibilidade de sucesso face a outras. Eis a razao pela qual, no curso dado no
Coflége de France Sur Z’Etat (2012), Bourdieu explica que o trabalho de sociogénese consiste
em reconstituir os possiveis nao ocorridos em determinada situagao historica.
Ao retomar em seu livro Médz’tations pascaliennes (1997) a questao do determinismo —
lembrando que nao se trata de “uma questao de crenga” (MP, 14) ~, Bourdieu sugere estender
a explicagao das condutas humanas uma proposigao de Gilbert Ryle (1949): “Do mesmo modo
que 1150 se deve dizer que o vidro se quebrou pelo fato de ter sido atingido por uma pedra, mas
que se quebrou quando a pedra o atingiuporque era quebrével, assim também, [...] nao se deve
dizer que urn acontecimento histérico determinou uma conduta, mas que teve esse efeito de—
terminante porque um habitus suscetivel de ser afetado por esse acontec'unento lhe conferiu tal
eficécia” (MP, 177). Bourdieu baseia—se na attribution theory segundo a qual as causas que os
individuos atribuem a uma experiéncia estao entre os determinantes significativos da conduta
que adotarao como resposta a essa experiéncia. No entanto, sublinha Bourdieu, se, por esse
fato, o individuo participa na construgao da situaqao que o determina, deve-se ter presente na
mente “que ele nao escolheu o principio de sua escolha”, ou seja, seu habitus. A este respeito,
prossegue Bourdieu, “o habitus contribui também para determinar o que o transforma” (MP, 14).

144 DETERMINISMO
Assim, como ele explica no mesmo livro: ‘iApesar de 11:10 serem indiferentes a0 jogo e, an mesmo
tempo, capazes de nele instaurar diferencas, as disposicoes (preferéncias, gostos) so podem se
constituir em meio a relacao com as tendéncias imanentes de um universo social, com as pro-
babilidades inscritas em suas regularidades e suas regras ou nos mecanismos que garantem a
distribuicéo das oportunidades de ganho nos diferentes ‘mercados’; e tais disposicoes podem
engendrar esperancas ou desesperancas, expectativas ou impaciéncias [. . .]” (MP, 255).
Longe de uma conclusao pessimista sobre a condicao humana, a reflexao empreendida
por Bourdieu sobre as determinacoes sociais tem uma finalidade emancipatéria, como é
testemunhado por esta frase mediante a qual ele transpoe o paradoxo do conhecimento de
sua propria condicao, enunciado por Pascal: “Sendo determinado (miséria), o homem pode
conhecer suas determinacoes (grandeza) e trabalhar para superé-las” (MP, 157).

Referéncias
BOURDIEU, P. Les sous-prolétaires algériens. Les Temps Modernes, v.' 199, dez. 1962 [reproduzido
em Esquisses algérz'ennes. Paris: Seuil, 2010. p. 193‘212].
BOURDIEU, P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Francaise de Sociologie, v. XV,
p. 3-42, 1974.
~ » BOUVERESSE, I. Bourdz'eu, savant e’r politique. Marseille: Agone, 2004.
RYLE, G. The Concept ofMind. Chicago: The University of Chicago Press, 1949.

66. DIPLOMA
Antt‘mio Augusto Games Batista

A analise bourdieusiana do diploma integra nao apenas o estudo da reproducao das


desigualdades sociais pela escola, mas também o das estratégias de reproducao dos grupos
sociais por meio da escola, em contextos de inflacao e desvalorizacao de diplomas (BE).
V Para 0 sociélogo, o diploma constitui um capital cultural institucionalizado, uma “certidao
de competéncia cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e
juridicamente garantido no que diz respeito a cultura’ (EB, 78).
A outorga desse “titulo de nobreza cultural’ (LDp) resulta de um ato performatico, baseado
na crenca coletiva, por meio do qual uma instituicao produz uma realidade, uma “diferenca
de esséncia”, entre aqueles que tém seus conhecimentos reconhecidos e aqueles que nao o tém.
A0 criar essa diferenca, produz um efeito estatutério, um “grupo como realidade” (BE, 78),
transcendente aos individuos, marcado por uma fronteira juridica e organizado pela crenca
6m seu préprio valor e pela oposicao a outros’grupos.
Sendo um tipo de capital, 0 diploma pode ser convertido em outros tipos de capital. Evidente—
mente, em capital economico: “ele [o diploma] estabelece o valor [...] do detentor de determinado
diploma em relacao aos outros detentores de diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo
qual pode ser trocado no mercado de trabalho” (EB, 79). Permite também a conversao em capital
simbo’lico ouprestz’gio. A posse de um diploma também implica possibilidades maiores ou menores
de aquisicao de um capital social. 0 proprio processo de aquisicéo do titulo oferece possibilidades
diferentes de aquisicao de relacoes permanentes e uteis, capazes de perrnitir a mobilizacao, “por

DIPLOMA 145
procuracao, [dlo capital de um grupo” (EB, 67). Permite a possibilidadede estabele
cimento de
ligacées duraveis, dentre elas o matrimonio, em cujo mercado tende a fundona
r como um dote
(SINGLY, 1977, 1982). For fun, apesar de 0 titulo escolar ser, por definicao, uma garantia
de posse
de um capital cultural, pode, ele mesmo, induzir a aquisicao de mais capital cultural
por estu—
dantes com menor capital cultural herdado. Bourdieu (LDp, 28) denomina “autodid
axia legitima”
a um efeito simbélico do diploma, que consiste no desenvolvimento de um conjunto
de esforcos e
estratégias para ajustar condutas e praticas culturais aos ideais organizados em tomo
do diploma,
sobretudo em matéria de cultura livre, nao ensinada diretamente pelas instituicées
escolares.

Referéncias
SINGLY, F. de. Mobilité féminine par le mariage et dot scolaire. Economie
at Statistique, n, 91,
p. 33-44, juil./aofit 1977.
SINGLY, F. de. Mariage, dot scolaire et position sociale. Economie et Statistique, n.
142, p. 8—25, mars 1982.

67. DISPOSIQAO

Ver: Habitus

68. DISTINQAO

Iulien Duval

Através de sua anélise dos mecanismos de distincao — em particular em seu livro


de 1979,
La distinction —, Pierre Bourdieu introduziu uma nova nocao nas ciéncias sociais
que, as vezes,
é equiparada a0 conceito de conspicuous consumption que Veblen (1899) tinha
desenvolvido
para designar os consumos de luxo pelo qual as classes mais ricas manifestam
a superioridade
de seu status social. No entanto, ela é mais ambiciosa e se situa em um contexto
de anélise
menos intencionalista. Bourdieu n50 deu uma definigao explicita dessa nocao,
que, alias, é
acompanhada por nogoes derivadas: “estratégias distintivas”, “ganhos [profits]
de distincao”,
“senso da distincao”... Ela aparece, em primeiro lugar, como um produto de
suas pesquisas.
Ora, se suas origens se encontram na filosofia (nomeadamente, escoléstica),
ela procede de
um jogo sobre a polissemia que ~ pelo menos, em francés — caracteriza o termo
“distingao”:
se, com efeito, este designa a operacao cognitiva pela qual se identifica uma
diferenga entre
duas palavras, é tambe’m na linguagem corrente um meio de nomear a elegénc
ia e a nobreza
de maneiras de ser. Ele designa, finalmente, recompensas que — por exemplo
, a semelhanca das
medalhas escolares ou militares —, atestam o valor social reconhecido
a determinada pessoa.
A atencao prestada por Bourdieu ‘as logicas de distincao remete a sua analise
da existéncia
social como diferenca (“existir é ser diferente”). A Vida social é uma
luta pelo reconhecimento;
no entanto, como mostra o exemplo das medalhas ou dos “ritos de instituic
ao”, o reconheci—
mento de um agente tem sempre como contrapartida a relegagao dos outros
em urna forma de
indiferenciacéo (MP). A Vida social nao cessa de instituir diferencas, de operar
distincoes entre
os agentes sociais. A necessidade de se distinguir dos outros parece ser particul
armente forte nos
campos que valorizam mais a “originalidade”: nos dominios da arte e da ciéncia,
determinados

146 DISPOSICAO
produtores propoem, muitas vezes, bens que n50 diferem dos que sao oferecidos pelos concorrentes
a 11510 ser poi: ténues diferencas que, alias, séo valorizadas extremamente por eles. Os agentes
estao implicados em jogos sociais que, por sua vez, se apresentam como conjuntos de opcoes
ou escolhas desigualmente distintivas: por exemplo, entre todos os esportes ~ que, em teoria,
se pode praticar em determinada época ~, alguns sao muito menos divulgados do que outros e
pressupoem uma série de condicoes (a aquisicao de uma técnica, o acesso a locais especificos,
aparceiros...) que, de fato, os reserva a uma rninoria. Em La distinction é sublinhado que, em
determinado espaco, o valor distintivo de uma prética ou de um bem é tanto maior na medida
em que sua apropriacao pressupoe propriedades ou competéncias raras nesse espaco.
Os mecanismos de distingao resultam da relacao entre bens e préticas desigualmente
distintivos, por um lado, e, por outro, agentes e grupos sociais cuja existéncia so é possivel a0
se distinguirem uns dos outros. Os agentes estao mais ou menos equipados para identificar
os bens e as préticas raros e suscetiveis de produzir ganhos de distincao. A propensao para
distinguir—se em determinado dominio é inseparével de uma competéncia rara e especifica que
é uma arte prética de perceber diferencas sutis. A capacidade do amador de arte de identificar
“raridades” pressupoe, assim, a possibilidade de fazer distingoes. Enquanto o 1150 entendido
se limita a ver quadros indiferenciados (ou estabelece diferencas inadequadas, estranhas a
historia da arte), o conhecedor reconhece movimentos pictéricos, estilos pessoais no ambito
da mesma escola, periodos e influéncias diferentes no interior da obra de determinado artista.
O exemplo das classes médias recentemente escolarizadas que — segundo um mecanismo
chamado allodoxia em La distinction, tomam pelo qualificativo de f‘grande arte” obras de
valor secundario —, constituern um caso de grupo que, desprovido dessa competéncia, faz
escolhas que, longe de serem valorizadas por seu valor distintivo, acabam por estigmatizé-lo.
O “senso da distincao” culmina no topo do espaeo social. A lingua francesa, alias, qualifica
como “distinguidas” as maneiras de ser (maneiras de se comportar, de falar...) proprias das
classes dominantes. Elas sao, certamente, pelo me‘nos, em parte, 0 produto do “processo de
Civilizacao” analisado por Norbert Elias (1939) e se caracterizam por uma estilizacao que as
torna muito diferentes das maneiras de ser mais “instintivas”, que $210 as mais frequentes
nos meios populares. Em vez de considerar essas maneiras de ser como uma espécie de qua-
lidades naturals ou inatas, Bourdieu vai concebé—las como um produto da educacao que é
prodigalizada, desde a primeira infancia, nas camadas sociais mais elevadas e que inscreve
nos corpos uma diferenca distintiva em relacéo a todas as outras classes.
Sem dfivida, particularmente acentuados na aristocracia e na grande burguesia, os me~
canismos de distincéo sao atuantes em todo o espaeo social e tém uma dimensao dinamica
(uma prética distintiva em determinado memento pode perder tal caracteristica). Bourdieu
desenvolve esse tema desde a década de 1960; em um contexto marcado, na Franca, por forte
crescirnento economico e pelo acesso de novas camadas sociais a bens de consumo, até entao
reservados aos mais privilegiados. Enquanto alguns sociélogos consideravarn tais alteraqoes
como um fator de reducao das desigualdades entre os grupos sociais, Bourdieu enfatiza que
a “democratizacao” dos bens de consumo tern como contrapartida um deslocamento das
préticas distintivas. A0 adotar determinadas caracteristicas do nivel de Vida das categorias
superiores, as classes médias encontram uma oportunidade para marcar sua distancia em
relacao ‘as classes populares. Por sua vez, as camadas privilegiadas conservam sua distancia

olsrmcixo 147
através de diferentes estratégias conscientes ou inconscientes (por exemplo, o estigma
dos usos
que as classes médias fazem dos novos bens a que térn acesso). As questoes
muito especificas
formuladas na pesquisa de La distinction confirmarn essa visao das coisas:
se, por exemplo,
o fato de escutar mfisica classica jé nao é o monopolio das camadas superior
es, mesmo assim
subSistem fortes diferencas entre as classes quando se leva em conta, de forma
mais sutil, a
amplitude dos conhecimentos musicais ou a familiaridade com trechos pouco
vulgarizados.
Embora possa parecer tautologica, é muito irnportaiite a ideia de que os grupos
que estao
mais orientados para os bens distintivos sao aqueles que possuem o mais sutil
“senso da dis-
tincao”. Ela sublinha, por um lado, que o interesse pelos mecanismos de distinca
o se inscreve
em uma analise da tendéncia a reproducao do mundo social: na concorréncia pela
distincao, os
mais “distintos” encontram-se na dianteira dos outros. Além disso, ela transfor
ma as légicas de
distincao no produto de um senso prético, de um habitus: o amador de arte que
aprecia as rari-
dades 1150 e’ movido pela obsessao de se distinguir do comum dos mortais, mas
por uma forma
de instinto, um “armor pela arte” (AA) que pode ser muito sincero. Nesse sentido,
Bourdieu nao
diz, de modo algum, que a busca da distincao seria a mola propulsora das conduta
s humanas
(MP, 161); a logica dos jogos sociais - por exemplo, aquela que leva os campos
culturais a propor
aos consumidores urna oferta diversificada, em constante renovacao — é que produz
a distincao.
Uma questéo que podem colocar essas anélises - alias bastante fiteis para
os estudos
histéricos e sociologicos de diferentes setores, como a moda, a cultura, o esporte
ou 0 con—
sumo — é a de saber se elas sao generalizaveis a outras sociedades, além da
Franca do século
XX. Alguns trabalhos, como 0 de Craig Clunas (1991) sobre a China dos séculos
XVI e XVII,
fornecem os primeiros elementos de resposta.

Referéncias
CLUNAS, C. Superfluous filings: Material Culture and Social Status
in Early Modern China.
Cambridge: Polity Press, 1991.
ELIAS, N. Uber den Prozefl der Zivilisation: soziogenetische undpsychogenet
ische Untersuchungen.
Basel: Verlag Haus zum Falken, 1939.
VEBLEN, T. Theory of the Leisure Class: an Economic Study ofInstitu
tions. London: Macmillan
Publishers, 1899.

69. DISTINQAO (A): CRlTlCA SOCIAL D0 JULGAMENTO


(La distinction: critique soc/ale du jugement)

Iulien Duval

BOURDIEU, P. A distincdo: critica social dojulgamento. Séo Paulo:


Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.
Publicada em 1979, La distinction. Critique sociale dujugement é, corn
Le senspratique
(1980), um dos dois volumosos livros que Pierre Bourdieu publicou
nas Editions de Minuit
no meio de sua carreira académica e nas vésperas de sua eleicéo para
0 College de France.
Se Le sens pratique opera urn retorno aos trabalhos de etnologia empree
ndidos na Arge’lia,
La distinction é uma espécie de sintese das pesquisas efetuadas por Bourdie
u sobre a sociedade

148 DISTINCAO (A): CRlTlCA SOCIAL DO JULGAM


ENTO
(La distinction: critique socia/e du jugement)
fiancesa apartir do im'cio da década de 1960, no ambito do centre de pesquisas que ele dirigia em
Paris. Alias, o livro baseia—se na exploracao estan'stica de uma sondagem realizada nesse centre,
durante a década de 1960, Ha continuidade das pesquisas sobre as relacoes dos estudantes com a I
cultura, mas envolvendo uma amostra que abrangia toda a populacao francesa. Esse livro prelonga
também as reflexoes que Bourdieu tinha elaborado, na mesma época — em junho de 1965 —, em
companhia de economistas e especiah‘stas de estatistica sobre a questao da democratizacao do
acesso aos bens economicos e culturais, na Franca, nas décadas do pos-guerra (BOURDIEU, 1966),
ale'm de retomar, sob uma nova forma, a analise do “amer pela arte”, nae come um dom natural
ou uma capacidade universal, mas come disposicae herdada relacionada com a frequéncia precoce
a culture legitima, em particular, nos circulos cultivados. La distinction herda, sirmfltaneamente,
as preocupacoes e es instrumentos desenvolvidos per Bourdieu no decorrer da década de 1970: as
reflexoes sobre as “classes sociais” e sua reproducao (que aprofundavam as analises dos anos 1960
sobre o sistema de ensino); e es trabalhos sobre a “opiniao publica”. O livre se beneficia igualmente
do progresso da “teoria dos campos”, sistematizada per Beurdieu a partir do im’cio da década de
1970 e que esté associada a técnica de analise das correspondéncias utilizada em La distinction.
Em resume, esse livro é uma construcao fecunda e complexa: do ponto de vista teérico, ele
propoe uma teoria relacional da estrutura social e, a0 mesme tempo, uma critica sociolégica das
teses de Immanuel Kant sobre o jm’zo de gesto. Do ponto de vista empirico, fomece uma descricao
extremamente precisa da sociedade francesa de seu tempo e das lutas que entao se travam entre
classes e fracoes de classes, abordando, para além do deminio privilegiade da cultura, os consumes
alimentares, os gostos espertivos, a competéncia politica... La distinction que, por alguns de
I seus aspectos, evoca também empreendimentos literérios -— em particular, e de Marcel Proust —, é
igualmente o produto de uma reflexao aprofundada sobre a escrita em ciéncias sociais: a construcao
das frases e 0 use intensive de documentos — trechos de entrevistas, recursos fotogréficos, gréficos
oriundos de analises estatisticas... ~ visam nae so conjugar, de uma forma nova, a analise abstrata V
e a evecacao empirica, mas também restituir a complexidade dos mecanismos sociais analisades.
, A ideia central desse livro — per natureza, dificil de resumir — é a de que es agentes sociais
tendem a ter gostes relacionados com suas condicees economicas e sociais. As opcoes que
eles fazem em dominios diversificados ~ estética, préticas esportivas, escolhas matrimoniais,
inclinacees de caréter moral, alimentacao, politica... —~ 5230 predutos do mesmo principio: o
habitus. Em tais condicées, essas escolhas apresentam urna robusta coeréncia e tendem a
exprimir a posicao no espaco social. As diferencas de estilos de Vida e 05 desacordos de gosto
sao, deste mode, objetivamente julgamentos de classe; eles participam de uma “luta simbolica”
pela qual, cotidianamente, os agentes e es grupos sociais, ae classificarem bens de consume,
nae cessam de se classificar uns em relacao aos outros. La distinction mostra que os estilos de
Vida identificaveis na Franca da de’cada de 1970 formam um espaco homologo do espaco social
que é estruturado, em primeiro lugar, em funcao do volume, da estru’tura e da antiguidade do
capital pessuido. Trés capitulos do livro incidem, sucessivamente, sobre trés estilos de Vida e
suas variantes: “0 sense da distincao” caracteristice das classes dominantes; “a boa ventade
cultural” associada ‘as classes medias; e “0 sense do necessario” prevalecente nas classes po-
pulares. As transfermacoes, no decorrer do tempo, do espaco dos gostos e do espaco social,
sao aberdadas igualmente em La distinction: determinadas praticas podem deixar de ser
distintivas - por exemplo, ao se “democratizarem” — e as transformacoes economicas, assim

DISTINcAe (A): CRITICA SOClAL D0 JULGAMENTO 149


(La distinction: critique sociale du jugement)
como as mudancas do sisterna escolar, estao na origem de uma modificacao
das relacoes de
forca entre as classes on as fracoes de classes. Um capitulo inteiro mostra
também que — ao
contrério do que pressupoem muitas vezes a ciéncia politica on as sondagens
— a capacidade
de format uma opiniao pessoal é tao pouco universal quanto o julgamento
estético 5‘puro”:
ela' depende de uma competéncia politica muito desigualmente distribui’da no
espaco social.
La distinction exerceu muita influéncia tanto na Franca quanto no exterior
(as primeiras
traducoes integrais — para o alemao e, em seguida, para o inglés - datarn
de 1982 e 1984). O
livro tornou—se uma referéncia classica para a sociologia da cultura, mas, também
, ‘as vezes,
para a sociologia do esporte, para o estudo da participacao politica... Suas teses
foram objeto de
comentarios e debates. Na Franca, a obra foi discutida, em particular, por sua
analise demasiado
“legitimista” da cultura popular (GRIGNON; PASSERON, 1989). Mais recenternente,
a coeréncia do
habitus e dos estilos de Vida tem sido questionada com a nocao de “dissonancia”,
que insiste na
dimensao individual da-formacao dos gostos (LAHIRE, 2004). Uma pesquisa compara
tiva, citada
frequentemente, chegou a conclusao que, se a analise desenvolvida em La distinct
ion é, talvez,
adequada para a sociedade francesa, ela nao seria generalizével para um pais
corno os Estados
Unidos (LAMONT, 1992). Além disso, a partir da década de 1990, um grande numero
de pesquisas
de sociologia da cultura enfatizou — na esteira dos trabalhos de Richard Peterson
(1992) — que
as relacées entre as categorias eruditas e a “cultura popular” podern ter passado
, desde o tempo
das pesquisas de Pierre Bourdieu, por importantes transformacoes corn, nomead
amente, 0 de-
senvolvirnento espetacular de um “ecletisrno cultural” nas regifies superiores
do espaco social. ,
A posteridade internacional de La distinction passa também pelos trabalho
s que constroem '»
espacos de estilos de Vida em outros contextos espaco—temporais: assim, pesquisa
s recentes tern
sido empreendidas na Australia (BENNET et al., 1999), Nomega (ROSEN
LUND, 2000), Portugal
, (BORGES PEREIRA, 2005), Gra-Bretanha (BENNET et al., 2008) e Dinamarca
(PRIEUR etal., 2008).

Referéncias
BENNETT, T.; EMMISON, M.; FROW, I. Accountingfor Tastes: Austral
ian Everyday Cultures.
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
BENNETT, T.; SAVAGE, M.; Da SILVA, E.; WARDE, A.; GAYO-CAL, M.; WRIGHT
, D. Culture, Class,
Distinction. London: Routledge, 2008.
BORGES PEREIRA, I. V. Classes e culturas de classe dasfamz’liasport
uenses: classes sociais e “mo~
dalidades de estilizagdo da vida” na cidade do Porto. Porto: Afronta
rnento/Instituto de Sociologia
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005.
BOURDIEU, P. Differences et distinction. In: DARRAS. Le partage des
bénéfices: expansion et
ine’galité en France. Paris: Minuit, 1966. p. 117429: Coléquio do “Cercle
du Noroit d’Arras”, em
colaboracao com Alain Darbel. ‘
GRIGNON, C.; PASSERON, InC. Le savant et le populaire, Paris: Gallimard-EHES
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LAHIRE, B. La culture des individus: dissonances culturelles et distinct
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Découverte, 2004.
LAMONT, M. Money, Morals and Manners: the Culture of the French
and American Upper—
Middle Class. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.
PETERSON, R. Understanding Audience Segmentation: From elite
and mass to omnivore and
univore. Poetics, n. 21, p. 243—258, 1992.

150 DISTINCAO (A): CRlTlCA SOCIAL D0 JULGAM


ENTO
(La distinction: critique sociale du jugement)
PRIEUR A.,' ROSENLUND, L.,' SKIOTT—LARSEN, J. Cultural Capital Today: A Case Study from Den—
mark. Poetics, n. 36, p 45 —,71 2008
ROSENLUND, L Cultural Change 111 Norway: Cultural and Economic Dimensions International
Journal of Contemporary Sociology, v. 37, n. 2, p. 245—275, 2000.

70. DOM (/deo/ogia do)


Kdtz‘a Maria Penido Bueno

A0 longo da década de 1960, Bourdleu formula uma severa critica a0 papel da escola,
denunciando sua incapacidade de promover a igualdade de oportunidades entre os indivi—
duos. Suas pesquisas de entao concluem que a instituicao escolar desempenha uma funcao
de reproducéo (conservacao) social, sancionando, legitimando e perpetuando desigualdades
preexistentes a ela. E nesse contexto intelectual que surge sua critica a ideologia do dom, a
qual confere ao termo “ideologia” o sentido marxiano de falsa representacao da realidade,
apontando, desse modo, a mistificacao em que se incorre quando se atribui a propriedades
individuais, e até mesmo inatas, aquilo que é social e culturalmente con'struido. Ao atribuir
,_ aos dons (dotes) pessoais a responsabilidade pelas diferengas de éxito verificadas entre os
alunos, a escola erige a ideologia do dom em explicacao legitimadora para resultados escolares
desiguais, mascarando desigualdades reais do ponto de vista das condicoes socioculturais
dos educandos. O sucesso nos estudos assumiria, segundo ele, a aparéncia enganosa de uma
esséncia pessoal, e nao sua real condicao de produto de um contexto social e cultural.
Em trabalhos posteriores, tal concepcao e a referéncia a ideologia do dom se estenderao
a analise das disposicoes estéticas e de outras habilidades correntes nos campos artistico,
esportivo, literario, académico, juridico, etc. Em suma, Bourdieu detecta na ideologia do
dom urn viés substancialista, em que se faz abstracéo da estrutura das relacées sociais e das
circunsténcias nas quais vivem os individuos.

Ana Paula Hey

Da mesma forma que ocorre com outros constructos elaborados por Bourdieu, derivados
de apropriacées, interpretacoes e ajustes de autores diversos, desde cléssicos da filosofia, da
sociologia, da etnologia, passando por seus contemporaneos nestes dominios e em outros, e
operacionallzados por meio de insergées empiricas bastante diversificadas, a dominacao nao
pode ser descolada do processo generative pelo qual a abordagem ganha corpo. Trazendo
para o debate a dominacao corno aquilo que permite a uma ordem social reproduzir-se no
reconhecimento e no desconhecimento da arbitrariedade que a institui, ela é inscrita nas dis—
cussées mais amplas acerca de quais $510 05 mecanismos sociais que produzem e reproduzem
as estruturas e como elas $510 (6 estao) incorporadas nos individuos, agindo como um sistema
de disposicoes préticas. A correlacao entre estruturas objetivas e estruturas cognitivas seria,
para ele, a fundacao de uma verdadeira teoria realista da dominacao (R1, 168).

DOMINAn 151
A0 falar de dominacao, ele esta se referindo aos mecanismos sociais disponiveis para
engen-
drar a reproducéo social, nao meramente no plano da garantia da perpetuacao econom
ica, mas,
sobretudo, no ambito da reproducao cultural. No intuito de afastar a dominacao da caracteri
zacao
de seu pertencimento apenas ao reino da apropriacao econémica ou determinada
por ele e, ainda,
como um processo que envolve magic on subrnissao exterior a0 individuo, Bourdie
u desloca o
foco para a dimensao simbélica dos processes sociais e a maneira como os agentes
ordenam a
realidade. A énfase recai em verificar a eflcacia da dominacao se realizando por meio
dos instru-
mentos simbolicos direcionados para cumprirern suas funcoes de comunicacao
e conhecirnento
(criando 0 consenso sobre o mundo), mas, também, em conferir seu carater politico
(legitimando
as diferencas sociais), correlacionando—se estritamente com Violéncia e poder simbélic
os, nucleos
fortes da sua teoria sociologica. Invocando a base dos processos de incorporacao
das divisées
sociais e dos esquemas mentais para reproduzi-la por meio do reconhecirnento
e da cumplici—
dade, sua leitura é condicionada pelo entendirnento de nocées como estrutura e habitus,
campo
e espécies de capital, visoes e divisoes sociais, classificacoes sociais e cognitivas.
Bourdieu afirma, em entrevista de 1989, que o centro de seu trabalho “é
analisar os
fundamentos das formas simbolicas de dominacao, a violéncia simbélica
do poder do tipo
colonial, da dominacao cultural, da masculinidade, poderes estes que tém em
comum o fato
de serem exercidos, de algum modo, de estrutura para estrutura. Silo poderes
que estao nas
estruturas objetivas [...], mas que para funcionar precisam da cumplicidade dos
agentes que
interiorizam as estruturas segundo as quais o mundo é organizado. Todas as
lutas simbélicas
comecam sempre por uma denuncia [...] das formas objetivadas da dominac
ao, porque elas
podem ser Vistas, porque se pode tocé~1as” (SMS, 20—21).
A dominacao simbélica, a dimensao simbélica de ouflas formas de dominacao
e as relacoes
de dominacao em si constituem a originalidade do autor, ao situé—las no
plano estrutural,
como instrumentos de poder que atuam na ordenacao da realidade a ser percebid
a e viven—
ciada. Assim se expressa: “Mesmo quando repousa sobre a forca nua e crua,
a das armas on
a do dinheiro, a dominacao possui sempre uma dimensao simbélica. Por sua
vez, os atos de
submissao, de obediéncia, sao atos de conhecimento e de reconhecimento
os quais, nessa
qualidade, mobilizam estruturas cognitivas susceptiveis de serem aplicada
s a todas as coisas
do mundo e, em particular, as estruturas sociais” (MPp, 209). Essa dimensao simbolic
a, marco
central de seu pensamento, envolve sernpre o exercicio consentido do poder
e da dominacao
relacionado a luta pelas classificacoes e pela obtencao do direito de classific
ar.
Apesar de se constatar que o conceito de dominacao aparece pouco nos indices
analiticos
das obras de Bourdieu (SAINT MARTIN, 2003, p. 27), entendo que o interess
e do autor é de-
monstrado no decorrer de sua feitura sociolégica ao valer~se da ideia segundo
a qual alguns
dominam a producao de sentido sobre o mundo social (ou parte dele),
forjando uma visao
sobre ele que engendra sua direcao. Traz assim, como eixo fundamental,
as classificacoes
sociais e as taxionomias ai geradas como uma forma de dominacao, pois
elas resultam da
luta travada a partir da ocupacéo cle diferentes posicéés nesse sistema de
classificacao, em
que alguns adquirem a posicao dominante e outros, a dominada. Parafra
seando o poeta René
Char (1967), para quem ha certas guerras que nao acabam nunca, a domina
cao como sisterna
se constitui em motor de luta permanente entre grupos e individuos represe
ntatives de grupos
sociais especificos; por ser luta institui—se como dominacao, com dinamic
a especifica e sujeita

152 DOMINAcAo
‘f:"r__1_

.J
a transformacoes decorrentes dessas lutas; corno luta exige o engendramento de processos
de legitimacao, que podem assumir diferentes formas em distintas configuracoes historico-
sociais. Mas o elemento invariante é a luta pela acumulacao e apropriacao dessas duas espécies
de capital, 0 economico e o cultural, e pelas outras formas dai derivadas.
Embora a dominacao possua um carater estrutural, a ideia em 51 de dominacao pode ser vista
duplamente: tanto como estrutura geral de anélise quanto a maneira como engendra diferentes
principios 6 modes em cada campo social possivel de escrutinio, tornando imperativa a necessi-
dade de se utilizar um método para objetiVa-la, orientado por principios epistemolégicos. Para
Bourdieu, a busca da construcao de um modelo das estruturas fundamentais da visao e divisao
do mundo, postas nos mecanismos objetivos, “contribuem para a instauracao de relacoes duraveis
de dominacao, mas também para a dissimulacao dessas relacées. Para compreender as producoes
simbolicas ha que se construir “nao somente a estrutura das producoes simbolicas, ou melhor, o
espaco das tomadas deposicdo simbolicas num determinado dominio da prética [...], mas também
a estrutura do sistema dos agentes que as produzem [...], ou melhor, 0 espaco deposicfies que eles
ocupam na concorréncia que opoe uns aos outros” (MPp, 216, grifos do original).
Evitando imprimir uma direcao {mica a0 conceito, vale destacar a classificacao de Pinto
(1998), que aponta trés conjuntos de pesquisas desenvolvidos por Bourdieu acerca da dominacao
entendida como condicao de possibilidade de submissao a ordem social como “ordem das coisas”.
O primeiro grupo envolve o sistema escolar e seu papel na reproducao das desigualdades sociais,
ressaltando os mecam’smos de consagracao das classificacoes sociais transmutadas ern selecoes
escolares. A énfase recai na legitimidade da triagem ali operada, uma vez Que a distribuicao de
titulos Validos socialmente transfigura a objetividade de estruturas, que agém de forma desigual
conforme as disposicoes constituidas no interior das diferentes classes e fracoes de classe pelos
seus membros. A segunda matriz de trabalhos relativa a0 espaco social 6 campo do poder dialoga
com os escritos que evidenciam a composicao do mundo social por variados campos sociais,
os quais se caracterizam por um sistema de posicoes determinado por espécies diferentes de
capital, mas em homologia com a distribuicao geral entre capital economico e cultural. A partir
da oposicao entre dominantes e dominados em cada campo social, a constituicao do campo do
poder se da por individuos que detém uma espécie de capital que lhe confere posicéo legitima para
lutar pela imposicao de um principle de classificacao dominante. Ha, na pratica, o afastamento
dos principles de cada campo para o exercicio de funcoes que respondem a forma simbélica de
dominacao — corno constituir “o” ponto de Vista acerca do mundo social. 0 ultimo conjunto de
investigacoes refere—se a construcao social da realidade, enfatizando aquelas sobre os distintOs
campos produtores de bens simbolicos (politico, jornah'stico, economico, intelectual, sociolégico,
Cientifico), os quais se encontram envolvidos na luta politica pela definicao legitima do 111m
social e na producao ou refutacao da doxa. Nesse sentido, aponta a necessidade de se inquirir
sobre “os circuitos de circulacao dos bens politicos” e, também, das tecnologias de formalizacao
e representacao da realidade préprias ‘as diferentes categorias de agentes”, que tandem a ratificar
“ulna definicao de realidade produzida no campo politico” (PINTO, 1998, p. 173).
Devern ser destacados, ainda, artigos seminais para a génese da nocao, publicados em
' ARSS, que propiciam seu entendimento pela logica do autor. Os textos apresentam a sistema~
tizacao de dominacao centrados nos estudos sobre a sociedade cabila, o mundo camponés de
Béarn e a sociedade francesa dos anos 1970, dialogando intensamente com a etnografia 6 corn 0

DOMINAcAo 153
estruturalisrno, representados por “Les modes de domination” (1976), “Strateg
ies de reproduction
et modes de domination” (1994) e 0 desenvolvido c0111 Luc Boltanski, “La product
ion de l’idéologie
dominante” (1976). Apesar de aparentemente exporem mundos muito distante
s, estes trabalhos
discorrem de forma direta corn as batalhas simbolicas para instituir formas
de classificacao e de
visao do mundo social engendradas na pratica cotidiana. O interesse pelas
estruturas cognitivas,
pelas taxionomias e pelas atividades classificatérias dos agentes é enfatiza
do tanto ao expor a
criacao de estruturas objetivas que vao atender ao preceito de eficécia simbolic
a da dominacao
a0 se incarnarern institucionalmente (o Estado, o sistema de ensino, o aparato
juridico) como por
atos de conhecimento e reconhecirnento dos agentes (o cabila, os campon
eses, as mulheres, os
politicos, os especialistas) e pelo Estado corno legitimo para formatar uma
ordem social, tornan—
do-a universal e fornecendo a forma oficial publica para essa ordem. Ao
submeter o conceito de
dominacao as condicoes historicas das estruturas sociais, destaca a funcao
ideolégica e politica do
simbdlico na producao de legitimidade por meio dos diversos dispositivos de
producao simbélica.
Nesse ponto, Bourdieu recorre as instituicoes — entendidas em sua
dupla forma, na
realidade e nos cérebros (SEp, 228) —, envolvidas no trabalho de domina
cao simbélica para
demonstrar a translacao de um modo de dominacao simples para um
mais complexo. Na
primeira situacao,.estratégias constantemente renovadas precisa
m ser instauradas para garan-
tir as condicoes de apropriacao direta do trabalho, dos bens, dos service
s, das homenagens,
uma vez que estao ausentes mecanismos indiretos, tais como
o Estado, o sistema de ensino
e o aparato juridico, caracterizando sociedades desprovidas de mercad
o autorregulado. No
outro modo de dominacéo, a mediacao exercida pela posse dos meios
~ capital economico e '
cultural — de se apropriar dos campos de producao economica e cultura
l tende a assegurar
a propria reproducao deles por Via exclusiva de seu funcionarnento,
independentemente de
qualquer intervencao intencional dos agentes. Assim, continua Bourdie
u (1976, p. 122), é no
grau de objetivacao do capital social acumulado que reside o fundamento
de todas as diferencas
pertinentes entre os modos de dominacao — quer dizer, entre os univers
os sociais em que as
relacoes de dominacao se estabelecern por meio da interacao pessoa
l e pelo uso do capital
simbélico, e as formacoes sociais em que a dominacao é mediada por
uma estrutura que a
legitima. Os mecanismos objetivos e institucionalizados promovem
a distribuicao desigual de
recursos sociais e permitern seus usos dife'renciais no interior das classes
e fracoes de classe.
Na mesma direcao analitica, Bourdieu e Boltanski (1976) eviden
ciam o modo de domi-
nacao exposto na filosofia social das “fracoes dominantes da classe
dominante” da sociedade
francesa dos anos 1970. Expondo o “born senso” das visoes de mundo
dos politicos e seus
experts (economistas, demégrafos, politologos, estatisticos, sociélo
gos), mas também dos
lugares neutros (centros de calculos e previsoes, circulos de debate
s de conjuntura), escruti-
nam atores e lugares que concebem a “mudanca” que sera impost
a a todos e cuja expressao
reside na ideia de “novas tendéncias”. Esse modo de dominacao,
que consiste em “mudar
para conservar”, comporta a passagem de uma forma simples,
na qual as instancias de
poder sao orientadas para a manutencao da ortodoxia e pelo afastam
ento da critica, para
um modo mais aperfeicoado, operando justamente pela incorpo
racao da critica ou de seus
tracos mais superficiais; engajando dispositivos de poder (empresas,
administracoes, Estado)
nas continuas séries de reformas; incorporando—as a um processo
de acompanhamento de
mudancas permanentes (BOLTANSKI, 2008, p. 139) e, sobretudo, recebe
ndo o selo da visao
neutra atestada pelas competéncias dos especialistas. Demonstrarn,
assim, a especificidade

154 DOMINAcAo
de formas de exercer o poder nas sociedades capitalistas-democraticas que, sem recorrer 2‘1
violéncia fisica, permitem proteger os interessesde uma classe e assegurar a dominacao por
meio da viséo de mundo incorporada a uma politica (BOLTANSKI, 2008, p. 139).
Ressalta—se, por firm, 0 papel do Bstado na dominacéo que, além de tornar possivel a integracéo
logica e moral do mundo social, age como produtor de sistemas classificatorios, reivindicando
o monopolio dos principios de classificacao susceptiveis de serem aplicados a todas as coisas
do mundo social (SEp, 227). Se 0 essencial da dominacao passa pela incorporacao das estru-
turas por meio da socializacao e pela introjecao de principios de classificacao, a investigacao
dos mecanismos que permitern a submissao ao Estado, sem que este precise exercer a coercio
permanente, inscreve—o como aquele que contribui plenarnente para a reproducao da ordem
simbolica e das ferramentas cognitivas de construcao da realidade social. Dessa maneira, a
anélise da dominacao nao pode excluir o ato de submissao doxico a ordem estatal, e mais, de
como o Estado exerce a “funcéo simbolica” de producao de um consenso entre as estruturas
cognitivas e as estruturas objetivas, por meio da prépria logica de “funcionamento desse universe
de agentes de Estado que fizeram o discurso do Estado”, revelando tambérn os interesses que
eles possuiam em funcéo da posicao que ocupavam no espaco dessas lutas (SE, 239).
Afastando a ideia de que a dominacao se instituiria pela razao imediata entre quem
domina e quem é dominado, vale lembrar que “a dominacéo néo é o efeito direto e simples
da acéo exercida por um conjunto de agentes 7(a“c1aVSSedOminante”) investidos de poderes
de coercéo, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de acées que se engendram na
rede cruzada de limitacoes que cada urn dos dominantes= dominado assim pela estrutura
do campo através do qual se exerce a dominacéo, sofre de parte de todos os outros” (RPp,
52). Essa forma de pensamento exige desvelar mecanismos histérico-sociais complexos e 05
arranjos construidos para perpetuar modos de dominacao cada vez mais eficazes, porquanto
mais dissimulados, pelo fato de legitimarem uma ordem simbélica que é incorpOrada.

Referéncias
BOLTANSKI, L. Rendre la re’alz’té inacceptable. Paris: Demopolis, 2008.
BOURDIEU, P. Les modes de domination. ARSS, Paris, n. 2—3, p. 122—132, juin 1976.
BOURDIEU, P. Stratégies de reproduction et modes de domination. ARSS, Paris, 11. 105, p. 3-12, déc. 1994.
BOURDIEU, R; BOLTANSKI, L. La production del’idéologie dominante. ARSS, Paris, 11. 2—3, p. 3-73, juin 1976.
CHAR, R. Fureur et mystére. Paris: Gallimard, 1967 [1948].
PINTO, L. Pierre Bourdieu et la the’orz'e du monde social. Paris: Albin Michel, 1998.
SAINT MARTIN, M. de. Dominacéo social, dominacao escolar. Educagdo 65‘ Realidade, v. 28, n. 1,
p. 21-29, jan./jul. 2003.

2.2.29.9141‘545959.‘Y'ASCPF'NA (A) (L?.9’Omifiéil97.T€§FH/if??l..................


Clarice Ehlers Peixoto

BOURDIEU, P. A dominagdo masculina. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil, 1999.

Década e meia apos a publicacao de A dominagfio masculimz, e numerosas criticas pu~


blicadas mundo afora, como redigir um verbete que dé conta da anélise elaborada pelo autor

DOMINACAO MASCULINA (A) (La domination masculine) 155


sobre as relagoes de d’ominacao entre os sexos na sociedade contemporénea, tendo a sociedade
Cabila como contraponto reflexive, e de tudo o que foi dito e analisado a partir dele, sem ser
repetitiva? Ha que se considerar que, antes mesmo do lancamento do livro, o préprio Bourdieu
publicou textos nos quais jé esboeava as ideias que nele aprofunda. Dois se destacam: em 1990,
o'artigo de mesmo nome em ARSS (n. 84) e, em agosto 1998, o preambulo do livro em Le
monde diplomatique (p. 24). Escrevia no prefacio a0 livro: “E contra estas forcas historicas
de des-historicizacao que deve orientar—se, prioritariamente, uma iniciativa de mobilizacao
Visando repor em marcha a historia, neutralizando os mecanismos de neutralizagao da historia.
Esta mobilizacao marcadamentepolitical, que abriria as mulheres a possibilidade de uma acao
coletiva de resisténcia, orientada no sentido de reformas juridicas e politicas, opoe-se tanto a
resignacao a que encorajam as visoes essencialistas [...] da diferenqa entre os sexos quanto a
resisténcia reduzida a atos individuais [. . .]. Convocar as mulheres a se comprometerem
corn
uma acao politica que rompe com a tentaqao da revolta introvertida de pequenos grupos de
solidariedade e ajuda mutua [. . .] é desejar que elas saibam trabalhar para inventar e impor
[. . .]
formas de organizacao e de agao coletivas e armas eficazes, simbélicas sobretudo, capazes de
abalar as instituicoes [. . .] que contribuem para eternizar sua subordinagao”.
Diria que a teoria da dominagao é o fio condutor de toda sua obra e nela formula nocoes e
conceitos — habitus, campo, violéncz’a simbélz‘ca, mercado de [Jens simbélicos, e outros -
que serao suas ferramentas de analise. Para Bourdieu, os dominantes sao grupos sociais ou
etnias
e, nesse livro, os homens. Eles impoem seus valores e regras aos dominados que os internalizam
_
inconscientemente, adotam seus esquernas cle pensamento e, por isso, a 6163 se submetem. Trata—se,
aqui, de seguir a mesma linha de pensamento, evocando os mesmos conceitos. Assim, a dominacao
masculina, e o modo como é imposta, é o “resultado daquilo que eu chamo de violéncia simbé»
lica, violéncia suave, insensivel, invisivel a suas proprias vitimas, que se exerce essencialmente
pelas Vias puramente simbélicas da comunicagao e do conhecimento, ou, mais precisamente,
do desconhecimento, do reconhecimento on, em ultima instancia, do sentimento” (DMp,
7).
O livro tern trés capitulos. No primeiro — “Uma imagem ampliada” —, Bourdieu se apoia nas
culturas da sociedade pré—capitalista e dos Berberes da Cabflia para analisar o androcentrismo
ocidental, solidificado nas estruturas sociais e cognitivas. Diz ele: “a visao androcéntrica é, ass‘un,
continuamente legitimada pelas proprias praticas que ela determina: pelo fato de suas disposicoe
s
resultarem da incorporacao dopreconceito desfavorével contra o feminine, institm’do na ordem
das coisas, as mulheres nao podem senao confirmar seguidamente tal preconceito” (DMp,
44).
Para Corréa, “ao empurrar a dominacao masculina para um ponto remoto da nossa historia — 6
para um “estado arcaico” — fazendo—a enraizar—se em um difuso inconsciente cultural
que é um
ainda que mac 0 seja mais, Bourdieu se coloca também numa perspectiva exterior a ela, isto 6',
na de um analista isento da logica que analisa, nao contaminado nem pela “visao masculin
a”,
que denuncia, nem pelo “inconsciente masculino”, que é, nio obstante, o nosso inconscie
nte
cultural” (1999, p. 45). No capitulo 2 “ ‘iAnamnese das constantes ocultas” —, o autor elabora
uma rica descricao das formas constantes e ocultas de dominacao, introduzindo a nocao
de
“vocagao” para reafirmar a dominacao consentida, cuja logica produz “encontros harmonio
sos
entre as disposicoes e as posicoes, encontros que fazem com que as Vitimas da dominaeao
sim-
bolica possam cumprir comfelicidade (no duplo sentido do termo) as tarefas subordinadas
ou
subalternas que lhes sao atribuidas por suas virtudes de submissao, de gentileza, de docilidad
e,

156 DOMINACAO MASCULINA (A) (La domination masculin


e)
de devotamento e de abnegacao” (DMp, 73). Ainda nesse capitulo, 0 casal Ramsey, do romance
de V. Woolf, To the Lighthouse (1927), serve de base para o autor elaborar uma bela analise da
“visao feminina da visao masculina”, e ele usa pares de oposicao (alto/baixo, seco/umido, ativo/
passivo, leve/pesado, etc.) para “ilustrar o que seria uma ‘ordern das coisas’” (FOURNIER, 2002).
Ainda que critique a “visao meramente ‘serniolégica’ de Lévi~Strauss”, esses dois capitulos sao
profundamente estruturalistas, corno diz Fine (1998, p. 3), mas bastante operatorios “na medida
em que ele insiste, a justo titulo, sobre a coeréncia e o peso de um sistema sirnbolico que, em
todas as sociedades, hierarquiza o masculino e o feminino”. Para ela, a anélise de Bourdieu é
muito proxima da definicao de sistema simbélico de Lévi~Strauss. O capitulo termina com a
relacao entre 0 amor do dominante e de sua dominacao (libido dominantis).
No capitulo 3 — “Permanéncias e Mudanca” -, o autor reconhece que o mundo muda, a
economia idem, mas as estruturas sexuais permanecem as mesmas, sendo que isso nada tern
a ver com “a ordem das coisas”. Para ele, esta constancia é fruto de um trabalho de “(re)cria—
cao continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominacao masculina, que se realiza
permanentemente, desde que existem homens e mulberes [...]” (DMp, 100). Os pilares dessa
dominacao $510 a familia, a igreja, o Estado e a escola. O autor nao avanca na analise dessas
a
instituicoes e dos agentes que, historicarnente, perpetuam essa dominacao. Se a familia é
principal responsavel pela reproducao da dominacao, a escola surge como a possibilidade de
mudanca nas relacoes entre os sexos.

Referéncias \
CORREA, M. Bourdieu e o sexo da dominacéo. Novos Estudos, CEBRAP, V 54, p. 4363, 1999.
PINE, A. Pierre Bourdieu. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998. '
FOURNIER, M. La domination masculine. Sciences Humaines, p. 50-53, 2002. Numéro Spécial:
L’ceuvre de Pierre Bourdieu.

Louis Pinto

A palavra grega doxa é mais frequentemente traduzida em francés por “opiniao”. Em Platao,
este termo designa uma forma degradada de crenca que se opoe ao conhecimento solido e rigoroso
da ciéncia (episteme), do qual a filosofia é o modelo supremo. Enquanto a ciéncia é apropriada pelos
filésofos, a mera opiniao é o destino do homern comurn, mergulhado no falso clarao da Cavema.
Este termo é retornado por Husserl, mas utilizado com um sentido muito diferente em suas
descricoes do “mundo da Vida” (Lebenswelt): ele pretendia construir o estatuto fenomenologico
especifico de uma modalidade da experiéncia que se distingue das formas de intencionalidade
Visando a um objeto, analisadas até entao. A doxa deixa deter o significado negative que tinha na
tradigao da filosofia intelectuah‘sta. Em vez de concebé~la na esfera do julgamento, na medida em
que ela nao se refere a contefidos apresentados de maneira “temética”, Husserl vai entendé—la, de
preferéncia, como urna forma de relacao com o 111m que inclui um segundo piano de evidéncias,
ao mesmo tempo, onipresentes e despercebidas, certezas e expectativas sobre o estado do mundo,
julgamentos implicitos. E a Alfred Schiitz (1899-1959), autor bem conhecido de Bourdieu, que

DOXA 157
se deve uma reinterpretacao socielégica dessa problemética: tratava-se, para.
ele, de descrever a
parcela do evidente (takenforgranted) propria de nossa experiéncia erdinéri
a, raramente ques-
tionada e explicitada a nae ser em situacoes de estranhamento ou de crise. Tais
evidéncias estae
baseadas na pratica e estruturadas’por operacees de tipificacao que favorece
m a compreensae e
a acao. “Na atitude natural, escreve Alfred Schlitz, considero come sendo evidente
que es outros
existam, que atuem sobre mim come eu atuo sobre eles, que a comunic
acéo e a cempreensao
mfituas possam se estabelecer entre nos [...] tudo isso gracas a uni sistema de
signos e simboles
e no ambito de uma erganizacao e de instituicoes sociais que 1150 $50 obra
minha” (1962, p. 145).
Para Bourdieu, é impossivel se contentar com “essas poucas constatacoes antropol
égicas gerais
e a~historicas” (MP, 208), mesmo que o projeto de uma ciéncia da experiéncia
ordinéria mereca
ser levado a série. A doxa contém e sentimento de familiaridade que engendr
a, sob determinadas
cendicoes, o ajuste das estruturas do habitus ‘as estr'uturas objetivas, da “histéria
feita corpo"
e da “histéria feita coisa”. Como tal, ela contribui para reproduzir a ordem
existente, imponde
evidéncias que, per 1150 serem da ordem dos pensamentos, acabam sendo mais
eficientes. Essa
é uma das razoes pelas quais Bourdieu opée a doxa a ideologia: “Se aos
poucos fui baninde o
emprego da palavra ‘ideologia’, n50 é somente em razéo de sua polissemia
e dos equivocos dai
resultantes. Ae evocar a ordem das ideias, bem come da acao pelas ideias
e sobre as ideias, esse
termo tende a cancelar um dos mais potentes mecanismos de manutencae da
ordem simbélica, qual
seja, a dupla naturalizacc‘zo que resulta da inscricao do social nas coisas e nos
corpos” (MP, 216).
Bourdieu esforcou-se para completar essa abordagem da relacao pré-reflexiva
com o mun—
do, inspirada pela fenomenolegia, com outra linha de inspiracao, sobretu
de durkhez‘miana. .
0 sense comum de um agente é determinado pela interiorizacao das oposico
es objetivas da
sociedade sob a forma de sistemas de classificacao (alto/baixo, rate/curve,
masculine/femi—
nine...). A adesao déxica ao mundo social esta baseada na relacae de harmon
ia entre duas
ordens de coisas: as classes e as classificacées, as posicoes e as disposicoes,
as probabilidades
objetivas e as expectativas subjetivas, as estruturas objetivadas e as estrutur
as incorporadas.
Ninguém Vive sem uma dose (16 “algo evidente”, mas a mesma doxa nae
é compartilhada
por-todos es individuos: uma pessoa pode sentir~se estranha ao universe
de outra. E o mesmo
ocorre em relacao a cada campo: “Come 0 campo artistice, cada universe erudite
possui sua dexa
especifica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos
e avaliatives cuja aceitacao é
inerente a prepria pertinéncia” (MP, 121). O grau de ajuste pode ser apreend
ide através das ex—
periéncias que se distribuem entre o polo da familiaridade, da facilidade,
e e do incemode e da
confuséo. Corn certeza, a linha divisoria entre o evidente e o inconcebivel,
longe de ser fixa, nae
cessa de se deslocar sob o efeite de lutas e de “revolucees simbélicas” que oferecem
novos instru—
mentos de percepcao. O que era evidente, até entao, pode tomar-se objeto
de discurso explicito:
“O trabalho dos guardiees da ordem simbelica, que tém um trato
com o bom senso, consists em
tentar restaurar, no mode explicito da orto-dexia, as evidéncias primitiv
as da doxa” (MP, 224).
Deve—se procedgzr a uma distincao entre, per um lado, 0 sense comum
de que dispeem, sem
aprendizagem codificada, todos os agentes no interior de uma sociedade
e que é a condicao de um
mundo cemum, suscetivel de ser controlado e manifestado e, per outro, as
crencas compartilhadas
per grupos de especialistas envolvidos na producae, relativamente sistema
tica e duradoura, de
bens eruditos. Pode-se afirmar que qualquer universe erudite contém
algo indiscutido, seja na
forma de crencas teéricas, de valeres ou de hierarquias institucionais,
sociais. Os “doxosofos”

158 DOXA
l‘M-i
(BOURDIEU, 1972), cuja figura emblematica é o produtor e intérprete de sondagens de opiniao,
sao eruditos de aparéncia e das aparéncias, os “sernieruditos” que dao ares de cientificidade a um
discurso sobre o mundo social baseado em pressupostos nao elucidados, os mesmos utilizados
pelos politicos, jornalistas e ensaistas Tal doxa, que pode eventualmente assumir a forma sis—
tematica de um discurso ideologico a “opiniao”, expressao e reflexo democréticos” do povo, -
tern a propriedade de acumular os lucros do rigor e 05 da evidéncia (QS). Para se desvencilhar
das categorias de pensamento proprias a esse universo, convém trazer ‘a luz as questoes que,
nas sondagens de opiniao (ou em entrevistas), pressupoem a posse universal de uma opiniao
(“vocé acha quen.,”) de um cédigo comum de nocoes univocas (o “Estado”, as “reformas”, o
“déficit orcamentario”, a “a”.Europ .). Essas perguntas impostas de fora a individuos doceis e
incapazes de reconhecer os pressupostos das mesmas e de contesta—los, suscitarn urna forma
de adesao iluséria baseada na “allodoxia, que consiste em se reconhecer erroneamente numa
forma particular de representacao e de explicitacao publica da doxa” (MP, 221).
For razoes tanto cientificas quanto politicas, a sociologia deve empenhar—se para elucidar
o que diz e o que nao diz a doxa, o que ela incita a pensar implicitamente; e isso é, em conso-
nancia com a exigéncia de reflexividade, uma condicao prévia para a analise dos universos
de producao simbolica. A nao ser que se submeta a repetir, sob um modo erudito, o ponto de
, Avista dos agentes, a sociologia nao pode deixar de exercer efeitos criticos sobre as visoes do
mundo social. E121 nao propoe uma denfincia suspeitosa ou desconfiada das aparéncias, mas
urna anélise das crencas e das condieoes sociais de producao das mesmas, a qual se inscreve
na tradicao weberiana de analise da dominacao e da legitimidade. 1.
Se 0 conhecirnento cientifico contribui para tornar menos evidente a realidade social, ele
Cleve levar ern consideracao a forca dos mecanismos sociais que tendem a manter a crenca.
E13 0 motivo pelo qual os intelectuais nao devern superestimar o poder de sua critica. Uma
tomada de consciéncia pode ser suscitada, seja por acontecimentos biogréficos singulares, seja
por conjunturas historicas que conturbam as referéncias anteriores e revelam a arbitrariedade
do que aparecia como a ordem natural das coisas.

Referéncias
BOURDIEU, P. Les doxosophes Minuit, n. 1, p 26-45, nov. 1972.
SCHUTZ A. Collected Papers, I, YheProblem ofSoczal Realzty LaHayez1MartinusNijhoff, 1962, p. 145

Louis Pinto

Com seus escritos, Pierre Bourdieu contribuiu para dar a conhecer a obra de Durkheim e
dos durkheimianos. Alérn disso, providenciou a republicacao de alguns trabalhos desses auto-
res em Les Editions de Minuit. No entanto, durante o periodo em que Bourdieu era estudante
de filosofia, Durkheim era considerado um autor antiquado, sendo desacreditado tanto por
filosofos quanto por sociélogos Foi, ern particular, a obrigacao de dar cursos sobre Durkheim
que, no inicio da década de 1960,1he permitiu descobrir algo diferente do pensador estéril que
ele esperava encontrar.

DURKHEIM, EMILE (7858~1917) 159


Os dois sociologos seguiram o mesmo percurso escolar (Ecole Normale Supérieure, agre’gati
on
de filosofia), sendo que o projeto intelectual de ambos pode ser caracterizado em termos
quase
idénticos, a comecar pela recusa da mundanidade e da tradicao letrada. Enquanto racionali
stas,
eles mostraram também relutancia no tocante as correntes relativistas que assumem
as apa-
réncias radicais da liberdade e da imaginacao. Contra adversarios, tais como o empirism
o do
senso comum e o amadorisrno erudito, eles criticaram a ideia de que seja possivel
prescindir
de “teoria”. A ciéncia se adquire contra a “pré-nocéo”, contra o que é pré-construido,
ao qne
ela opoe uma construcao propria. Eles compartilham também a ideia de uma unidade
funda-
mental das diferentes especialidades envolvidas no conhecimento do mundo social,
a comecar
pela historia. Para eles, o estudo tanto do presente quanto do passado é indissociavel.
Bourdieu
pode apoiar—se na ideia durkheimiana, flustrada em L’Evolutz'on pédagogique
en France, de
que o inconsciente é um dos efeitos de uma historia desconhecida mas sempre ativa,
ideia essa
que esta no centro da sociologia da educacao e da sociologia do conhecimento,
bastante inter-
ligadas, segundo Bourdieu. Vérias décadas depois das criticas de Durkheim a0 positivis
mo dos
historiadores contemporaneos (Charles Seignobos), Bourdieu dirige acusacoes semelha
ntes aos
historiadores de sua época: culto excessive dos fatos e da preciséo, relacéo ambival
ente com a
teoria, considerada assunto de filosofos e sociologos (BOURDIEU; RAPHAE
L, 1995).
O preceito durkheimz’ano segundo o qual convém “explicar 0 social pelo social”
deve
ser entendido “unicamente” como “o lembrete da decisao metodologica de 1150
abdicar
prematuramente do direito a explicacao sociologica [...] enquanto a eficécia
dos métodos.
de explicacao propriamente sociologica nao tiver sido completamente compro
vada” (MS,
42). O antipsicologismo tem um contefido puramente metodolégico ou “proviso
rio” (MS,
43), que diz respeito a fase inicial do trabalho de pesquisa. Durkheim poderia
ter sido ci—
tado sobre este ponto, jé que havia declarado o seguinte: se 0 sociélogo, “no
inicio de seus
esforcos, parece afastar~se do homem, é com a intencao de retornar a ele e para
conseguir
compreendé—lo melhor [...]. Portanto, bem longe de ser estranha a psicolog
ia, a sociologia
entendida assim chega, por sua vez, a ser uma psicologia, mas muito
mais concreta e com-
plexa do que aquela elaborada pelos psicologos propriamente ditos” (DURKH
EIM, 1975, p.
185). Na esteira de Durkheim, Bourdieu leva em conta a especificidade do coletivo
sem cair
no “holismo”, porque a oposicao individual-coletivo é imanente ao mundo
social; é essa
oposicao que é pertinente, mais do que cada um dos dois termos. Ela pode ser
considerada
de um ponto de vista empirico.
O conceito de integracao fol mobilizado desde os primeiros trabalhos destinados
a analisar
a coesao de grupos sociais, sua maneira de existir como grupo. As pesquisa
s sobre fotografia
permitiram revelar o quanto a fotografia esta associada a famflia e seus tempos
fortes (festas, ‘
batizados, casamentos). A probabilidade de possuir uma méquina fotogra
fica aumenta com
o tamanho da famflia: enquanto os camponeses 550 um dos grupos mais
apegados aos usos
familiares da fotografia, as classes superiores urbanas tendem a tomar distanc
ia em relacao a
esses usos exclusivos. Essa mesma logica preside as praticas “desviantes” proprias
de individuos
que, desprendidos de lacos familiares on mais isolados, podem dedicar~se
com maior empenho
a utilizacoes estetizantes, amplamente liberadas das cerimonias familiar
es.
Os conceitos durkhez'mianos podem funcionar nao s6 no case de grupos objetiva
e subjetiva»
mente unificados, tais come as famflias camponesas tradicionais, mas também
, de forma bastante

160 DURKHEIM, EMILE (1858—1977)


paradoxal, no case de grupos desprovidos de meios objetivos de coesao. Assim, a unidade dos
estudantes, por néo estar baseada nem numa cornunidade de trajetorias, nern na intensidade do
enquadramento pedagégico ou na vitalidade de tradicoes, deve-se essencialmente a um conjunto
de ritos destinados a manifestar a filiacao ao grupo (frequéncia a determinados lugares, inte—
resse pelos grandes debates, etc'.). “Condenado, pela condicao transitéria e preparatéria em que
é colocado, a ser apenas o que projeta ser ou, até mesmo, puro projeto de ser”, 0 estudante esta
destinado a manifestar sua filiacao, seu ser, mediante “comportamentos simbélicos” (LH, 59).
A analise durkheimiana dos sistemas de pensamento e de classificacao concerne prin-
cipalmente a religiao e ao conhecimento, estreitamente associados no livro Les formes
élémentaires de la vie religieuse: deste ponto de vista, Bourdieu retOma o procedimento
de seu predecessor. Em relacao a0 sistema mitico~ritual cabila, Bourdieu formulou questoes
muito semelhantes aquelas que haviam sido abordadas por Durkheim e Mauss no famoso
artigo sobre os sistemas de pensamento (DURKHEIM; MAUSS, 1969). A contribuicao de
Durkheim consistiu em enfatizar o trabalho cognitivo — nos sistemas simbolicos, em geral,
e na religiao, em particular ~, trabalho que tern o efeito de estruturar a ordem do pensavel
gracas a um reduzido ruimero de esquemas mitico-rituais. No entanto, ao assumir uma postura
intelectualista, Durkheim é levado a ignorar as “relacées de forca”, incapaz de reconhecer, na
sequéncia, que essas relagoes so podem ser realizadas precisamente por meio de “relacoes de
sentido”, que ele tern razao em sublinhar (contra Marx e Weber), mas que ele tende a tratar
de maneira idealista corno termos ultimos.
Ao citar Durkheim, Bourdieu fazia apelo, em seu livro Meditations pascaliennes, a nocao
aparentemente paradoxal de “condicoes sociotranscendentais do conhecimento” (MP, 155,
158), semelhante a “gramética” Wittgensteiniana. A ideia segundo a qual o fundamento do
Valor so pode ser social, imanente ao mundo social para além do qual nada existe, pode ser
atribuida a Durkheim mesmo que os termos sejam diferentes (em vez de capital, Durkheim
fala de grupo enquanto fonte especifica de urna autoridade que so poderia ser supraindividual).
O campo é o lugar em que circula 0 capital, 0 valor coletivo: “O verdadeiro ‘sujeito’ das obras
humanas mais bem~sucedidas nao é outro senao o campo” (MP, 137).
Finalmente, Durkheim esta presente em um trecho privilegiado de Méditationspascaliennes,
na frase final em que Bourdieu evoca 0 capital sirnbolico como um capital das razoes (sociais) de
existir. Esse capital, de que o Estado é a garantia maxima, nao poderia ser confundido com um
simples acumulo de sinais de distingao: ele é a medida e a expressao da exceléncia, socialmente
reconhecida, de um individuo, de que sua existéncia esta justificada, que ela merece ser vivida,
imitada, honrada. “Como se vé, Durkheim n50 era tao ingénuo como se quer fazer crer quando
dizia, assim como Kafka poderia té—lo feito, que ‘a sociedade é Deus’” (MP, 288).

Referéncias
BOURDIEU, R; RAPHAEL, L. Sur les rapports entre l’histoire et la sociologie en France et en Alemagne.
ARSS, 11. 106—107, 1995.
DURKHEIM, E. Elements d’une histoire sociale. In: . Textes. Paris: Minuit, 1975. Tome 1.
DURKHEIM, 13.; MAUSS, M, De quelques formes primitives de classification. Contribution a l’étude
des representations collectives. Année Sociologique, v. 6, p. L72. (Reproduzido em MAUSS, M.
(Euvres. Paris: Minuit, 1969 v. 2).

DURKHEIM, EMILE (1858-1917) 161


75. ECOLE NORMALE SUPERIEURE

Ver: Grandes Ecoles

76. ECONOMIA DAS TROCAS LINGUiSTICAS (A): O QUE FALAR QUER DIZER
(CE QUE PARLER VEUT DIRE.‘ L’ECONOMIE DES ECHANGES LINGUIST/(DUES)

Magda Becker Scares E

BOURDIEU, P. A economia das trocas linguisticas: o quefular quer dizer. Sao


Paulo: Edusp, 1996.

Obra publicada originahnente em 1982 com o titulo Ce queparler veut dire: l’econom I
z'e des
échanges linguistiques, foi Iangada em tradugao para o portugués (1996), com prefécio
de Sergio
Miceh'. A tradugao opta por intitular a Obra com o subtitulo do original, passando
o titulo a ser
subtitulo, talvez para criar uma relagao com A economia das trocas simbélicas,
coletanea de
textos de Bourdieu traduzidos e publicados anteriormente (1974), relagao sem dfivida
pertinente,
jé que as trocas linguisficas 550, na teoria de Bourdieu, uma dimensao das trocas
simbéh‘cas. O
titulo do original, subtimlo da tradugao, anuncia, corn 0jogo depalavrasfalar/querer
dizer, a tese
defendida pelo autor: a discrepancia entre 0 use objetivo das palavras, tomadas como
referéncia
linguistica a referentes objetivos — ofalar, e a atn'buigao de sentido ‘as palavras, segundo
as condigoes
de produgao do falar — o que as palavras querem dizer, para além de seu significa
do. Cinco dos
dez capitulossao artigos publicados anteriormente, a partir de 1975, em ARSS.
O livro se divide em trés partes. A primeira recebe como titulo o subtitulo da
obra — A
economia das trocas linguisticas. Constituida de dois capitulos, “A produgao
e a reproduqéo
da lingua legitima” e “A formagao dos preqos e a antecipagao dos lucros”,
é a retomada, sob
forma reestruturada, de artigo publicado em 1977 em Langue Frangaise, em nfimero
temético
sobre Iinguistica e sociolinguistica, artigo que tem como titulo precisamente
o subtitulo da
obra: “L’Economie des échanges linguistiques”.
Bodrdieu introduz a primeira parte com uma critica a Saussure e a Chomsky que,
diferen~
ciando, o primeiro, lingual defala, e o segundo, competéncia de desempenho,
elegem como

152 Econ: NORMALE SUPERIEURE


objeto da linguistica a lingua (o primeiro), a competéncia (o segundo), desconsiderando ambos
as interferéncias e 05 efeitos de condigoes e situagoes sociais no uso da lingua. Bomdieu afirma que
“a competéncia definida por Chomsky é apenas outro nome da lingua segundo Saussure” (PVDp,
30), e esclarece, com citagao de Chomsky (em Aspectos da tearia do sintaxe), que o que interessa
a teoria linguistica “é um locutorlauditor ideal, inserido numa comunidade linguistica completa~
mente homogénea, que conhece perfeitamente sua lingua e a salvo dos efeitos gramaticalmente nao
pertinentes” (PVDp, 30). Para Bourdieu, cabe a sociologia romper com 6352. concepgao de lingua,
considerada uma abstragéo, uma vez que, dorponto de Vista sociolégico, 1150 ha “locutor~auditor
ideal”, e 1130 ha “comunidade linguistica completamente homogénea”: as trocas linguisticas sao
' relagoes de poder simbolico, decorrentes de relagoes deforga entre interlocutores inseridos em
determinado mercado linguistico, isto é, em situagao de trocas linguisticas em que uma deter-
minada modalidade de lingua é reconhecida como lingual legitima, outras modalidades sendo
submetidas a sangoes e censuras, conferindo-se valor e poder a0 discurso dos que dominam o
habitus linguistico reconhecido no mercado como legitimo: habitus linguistico algado a capital
linguistico. Assim, Bourdieu substitui o conceito de lingua, de competéncia, pelo conceito de
lingua legitima; o conceito de interaqoes linguisticas entendidas como relagoes de comunicagao,
pelo conceito de trocas linguisticas entendidas como relagoes deforga simbolicas; a atribuigao
as interagoes linguisticas da funqéo apenas de comunicar, pelo reconhecimento de sua fungao de
exercicio de violéncia simbélica, em que 0 discurso dos detentores de capital linguistico se reveste
de valor e poder. Enquanto para o linguista a aceitabilidade do discurso se reduz a gramatica—
lidade, esta, na perspectiva da economia das trocas linguisticas, nao é condigao suficiente, nem
mesmo necessaria, para a construqao do sentido; o que realmente conta é a dceitabilidade social
do discurso, que depende da competéncia de uso da lz’ngmz legitima no mercado linguistico em
que esse uso ocorre, isto é, depende do “dominio prético de um uso da lingua e o dominio prético
das situaqoes nas quais esse uso da lingua é socialmente aceitdvel” (PVDp, 70) Assim, o mercado
linguistico se caracteriza, tal como o mercado economico, por “leis de formagao de pregos,
leis capazes de definir as condiqoes sociais da aceitabiljdade” (PVDp, 64) e determinantes
de uma antecipagdo das possibilidades de lucro (PVDp, 65). Segundo Bourdieu, “o que se ex—
prime através do habitus linguistico é todo o habitus de classe do qual ele constitui uma
dimensao, ou seja, de fato, a posigao ocupada, sincrénica e diacronicamente, na estrutura
social” (PVDp, 71). Diferengas de habitus linguistico se associam a diferengas sociais, de modo
que as préticas linguisticas dominantes se impoem como finicas legitimas, realizando assim a
unificagdo do mercado e operando “comogml capital linguistico capaz de assegurar um
lucro de distingao em sua relagao com as demais competéncias” (PVDp, 44).
A segunda parte tematiza mais amplamente o poder simbélico em instancias em que a
linguagem é instrumento essencial de seu exercicio, o que se evidencia no subtitulo que engloba
os capitulos da segao, “Linguagem e poder simboh'co”. Séo quatro capitulos, em que Bourdieu
analisa a violéncia simba’lica exercida pelo discurso em quatro instancias: o discurso ritual
religioso; o discurso de imposigao de identidade, nos ritos de passagem, considerados ritos de
rinstituigdo; o discurso que constréi representaqoes regionais ou étnicas; o discurso politico que
produz e impoe representagées do mundo social, prescrevendo, sob a aparéncia de descrever.
A terceira parte, “Anélises de discursos”, refine trés capitulos em que Bourdieu evidencia
os recursos discursivos que revelam as condigoes sociais de produgao e circulagao de textos

ECONOMIA DAS TROCAS LlNGUlSTlQAS (A): 0 QUE FALAR QUER DIZER 1 53


(CE QUE PARLER VEUT DIRE: L’ECONOM/E DES ECHANGES LINGUISTIQUES)
filosoficos, sendo analisada a retorica de Heidegger, sob o critério das estratégias de
ruptura
entre a Iinguagem comum e a linguagem especializada; denunciado o “discurs
o de impor-
tancia” em texto de Etienne Balibar sobre Marx e, também, a “retorica da cientifici
dade” a
partir da anélise da teoria dos climas de Montesquieu.
' A teoria da economia das trocas linguisticas é um componente, com presenca explicita
ou
implicita, de grande parte de suas pesquisas e anélises sociologicas, e representa
uma contriv
buicao de inestimével valor para a compreensao do papel da linguagem nas interacoes
sociais,
quer nas situacoes distensas das trocas cotidianas, quer nas situacoes tensas de trocas
formais,
orais ou escritas.

Referéncia
BOURDIEU, P. L’Economie des échanges linguistiques. Langue Francaise, Paris, IL 34,
p. 17-34, maio 1977.

33-F99NQMFAPAS T309“? SFMWFFC‘E-fi f‘.............................................


Ana Paula Hey

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbélicas. Sao Paulo: Perspectiva, 1974.

O Iivro, organizado por Sergio Miceli, que também traduziu 7 dos 10 textos que o compoem
, -
foi a primeira obra editada no Brasil a apresentar de modo sistemético o pensamento
e as pes— >
quisas de Bourdieu até o inicio dos anos 1970. Antes, havia apenas a edicao de poucos
artigos
do autor, sem qualquer apresentacao metédica — a longa introducao, “A forca do
sentido”, de
Miceli, situava o sociélogo francés diante do estado da arte da producao relativa aos
estudos
da ideologia e da cultura, em especial a sociologia dos sistemas simbolicos.
Nesse A economia das trocas simbo’licas, ha capitulos basicos para entender o autor, publi‘
cados originalmente nos entao periédicos académicos dos mais legitimos de sociologi
a, a saber:
“Condicao de classe e posicao de classe” e “Urna interpretacéo da teoria da religiao de Max
Weber”
(Archives Europe’ennes de Sociologie); “Génese e estrutura do campo religioso” e “Sistema
s de
ensino e sistemas de pensamento” (Revue Francaise de Socialogie); “A exceléncia e 03
valores do
sistema de ensino francés” (Annales); “Campo do poder, campo intelectual e habitus
de classe”
(Scolies); “Reproducao cultural e reproducao social” (Information sur les Sciences Sociales)
, além
de “Modos de producao e modos de percepcao artisticos” (Les Temps Modernes), “Estrutu
ra, ha—
bitus e pratica” (posfacio ao Iivro de Erwin Panofsky, Architecturegothique etpense’e
scolastique,
de 1967, editado por Bourdieu na colecao Le Sens Commun, que coordenou na Minuit,
de 1964 a
1982) e "O mercado de bens simbolicos” (original mimeografado de 1970).
Let essa obra é se deparar com vérios capitulos que possuem, até hoje, extrema
atuali-
dade, bem como, em alguns outros, perceber uma série de antecipacoes de uma
sociologia
que Bourdieu viria disseminar, sobretudo em relacao ao dialogo que ele trava
com autores
dominantes das ciéncias sociais acerca da construcao da realidade social como
distinta do
objeto real, cabendo posicionar esta producao simbélica em um sistema prético
dos bens
simbolicos. Ademais, anunciarmse estudos empiricos envolvendo distintos
campos sociais
tomados corno possibilidade de desvelar estruturas de relacoes objetivas.

154 ECONOMlA DAS TROCAS SIMBOLICAS, A


78-59995???........... *
Ver: Sistema de ensino

79- 595.55.51.95??? (7.5974990) ........


Fernando A. Pinheiro Filho

Se Norbert Elias e Pierre Bourdieu adquiriram a0 longo da segunda metade do século


XX 0 estatuto de classicos modernos da sociologia, isso se deve em grande parte, e para além
do acerto no enfrentamento especifico das questoes colocadas pelo trabalho de cada um, a
uma caracteristica comum ao projeto de ambos, qual seja, a tentativa de superar a antinomia
entre acao e sistema na teoria social. Esse problema, colocado jé no periodo de formacao da
disciplina e que, sob diferentes roupagens e concernente aos mais variados dominios empi—
ricos, permaneceu subjacente ao debate intelectual na sociologia orientando, de forma mais
ou rnenos consciente, escolhas no piano teérico e metodolégico, teve uma inflexao decisiva
a partir do impacto da obra dos dois sociélogos,"condicionando os desdobramentos rnais
recentes do debate. Nesse sentido, o paralelo entre eles desenvolvido a partir desse ponto
' lanca luz sobre afinidades e diferencas, e pode contribuir para explicar o padrao de recepcao ,
que se constituiu no sentido de aproxima-los. O exame de trés nficleos das obras seré usado
corno meio de acesso: o objeto da sociologia, o estatuto da historia e o fenomeno do poder.
Em linhas gerais, o dilema mencionado diz respeito a énfase na explicacao, entre uma
perspectiva objetivista e outra subjetivista. Ou, noutros termos, a considerar prioritariamente
as constricoes objetivas que modelam os agentes, oriundas de dimensoes da realidade social
descritas geralmente em termos de estrutura ou sistema; e, de outro lado, privilegiar a agéncia
dos sujeitos sociais como a dimensao do real capaz de gerar padrées que podem ser descritos
s
em termos estruturais ou sistémicos. No primeiro caso, o sociélogo atenta para as constricée
que pesam sobre os agentes, mas perde o foco em suas préticas, que afinal 550 um produto
derivado; no segundo, o dominio das préticas ganha autonomia, mas o enraizamento social
desse sujeito perde relevancia, restringindo-se a contingéncia das interacoes.
Elias pensa o problema na oposicao entre “individuo” e “sociedade”, notando que, jé no
plano linguistico, o uso dos termos como antagonicos impoe uma relacao de exterioridade
entre eles. Com apoio da filosofia da linguagem de Wittgenstein, mostra como a tradicao
sociologica ficou refém do preconceito substancialista da linguagem comum, em que cada
substantivo parece corresponder a uma substancia, de modo que as realidades abrangidas
pelos dois termos seriam claramente separadas, duas coisas com fronteiras fixas e nitida
delimitacao. A solucao consiste entao ern redefinir o objeto da sociologia ~ nao mais a so—
ciedade on o individuo, was 03 homens interdependentes. A nocao de interdependéncia
é posta assim como vinculo social logicamente originério, resolvendo a antinomia: se a
dependencia reciproca nos constitui como seres sociais, 1150 ha mais espaco para um sujeito
autoinstituido. Nurn movimento conexo, as redes de interdependéncia (que Elias chama de
figuracoes) devem ser abordadas como formacoes historicas, de maior ou menor amplitude
e duracao. Assim, a histéria é o recurso heuristico por exceléncia, pois é em seu ambito que
as figuracoes se cristalizam ern estruturas ou sistemas.

ELlAS, NORBERT (1897-7990) 165


Na mesma direcao do seciélogo alemao, as nocees bourdiesianas de campe e habitus in-
tentam mestrar que a sociologia enredara—se num false dilema. De fate, Beurdieu evita
pensar
a relacée entre agente e munde social cenferme o medele da dinamica entre uma consciénc
ia
e seu ebjete, perque este ultimo supoe um certe que nae dé conta da cumplicidade efetiva
entre
es termes da relacée: ha um entrelacamento ontologico entre as disposicees internas do
sujeito
(habitus) e e espace, limitado pela disputa de um poder especifico (campo), cuja frequenta
cao
duradeura deu erigem a elas. Cabe entao a analise reconverter os paradigmas em tensae
em
mementos do andamento do trabalhe, que abandona previseriamente as representacees
dos
agentes para censtruir o espaco de pesicees vincado pela distribuicae desigual de recursos
que
cendicienam as interacees e representacees; para, em seguida, reportar a acao
exteriorizada a
estrutura subjetiva do agente que a projeta a partir do interior, revelando seu mode de apreensa
e
prética do munde. Assim, o passe ebjetivista implica numa ruptura epistérnica da naturaliza
cao
da ligacae entre agente e munde social vivido de forma espentanea, e deve ser cempleta
de pelo
passe subjetivista que corresponde a compreensao das razées do agente do interior,
mas nae
necessariamente da consciéncia que tern de seus ates. Come diz o auter, tudo se passa
como
se a realidade social existisse duas vezes, nas coisas e nos sujeitos, de mode que a primazia
da
analise socielégica nae esté em nenhum deles, mas em suas relacees.
As afinidades entre es autores tratades remetem justamente a esse ponto crucial: ambes
procuram centernar a antinomia per meie de uma socielogia radicalmente relaciona
l, seja
incorporande essa dimensao na descricae do objete (Elias) seja evitando eleger entre
poles de
um continue a0 proper que acao e estrutura (bem come 0 habitus, predute de sua interacée)
,
nae tém peso substantive proprie, existinde de fate coma 6 ml relacae. A sua maneira, es
deis
sociélegos encentram as ferramentas conceituais para dizer ao mesmo tempo “hemem
na
sociedade” e “sociedade no homem” a0 referir—se a seu ebjete. E, em ambes, esse mode
de ver
acarreta pensar e peder come dimensae indisseciével da cendicae social. Em Elias, isse se
da pela
assimetria inescapavel das relacees de dependéncia reciproca, que cenfere peder ao que
depende
menos sobre o que depende mais. Ia Beurdieu’filia-se nesse aspecto a tradicao da antropolo
gia
social francesa que entende a troca come base da sociabilidade. Mas comentande
a triade do
dom desenvelvida per Mauss, Bourdieu temperaliza um processe que a tradicae estrutura
lista
via come puramente legice: no circuite entre dar, receber e retribuir instaura—se um
lapse de
tempo entre e recebimento do dem e a contraprestacae, periede em que o devedor assume
a
pesicao de dominade em relacao ae doador. O fundamente da associacao remete ass'un
a0 de-
curso do tempo e, pertante, a histéria, e as ligacees sao geneticamente assimétricas.
A histéria
ganha relevancia no precedimento analitico, mas come fundamento ultimo e nae
principie
explicativo per exceléncia, diferenca impertante em relacae a Elias. A prepria racionali
dade
cientifica desenvelVe-se nas relacées de producao do conhecimento que se objetivam
no campe
intelectual, nae havendo qualquer eutra instancia de producfie da razao.
As peucas mencoes criticas expressas de Beurdieu sobre a seciologia eliasiana remetem
a essa diferenca no estatute da historia, sobretudo na censideracao dos macropr
ocessos (de
que 0 processa civilizador (1939), obra maior de Elias, é um marco fundame
ntal), ja que a
mirada nos desenvolvimentos do munde social em amplitude secular tenderia
a nublar as
diferencas, rupturas e descentinuidades significativas, abrinde o risco de fazer submerg
ir e
objeto em meio ‘as generalidades captaveis nesse arco mais longo. A seciolegia de
Beurdieu

166 ELIAS, NORBERT (7897—7990)


nao é histérica no mesmo sentido que a de Elias; nao obstante, ambos desenvolvem formas
de temporalizacao de seus objetos, que no primeiro funciona como garantia contra a inter-
vencao indevida de categorias metafisicas no andamento da explicacao, e no segundo remete
:1 discussao sobre a natureza social do tempo herdada da tradicao durkheimiana.
Do ponto de vista metodologico, um paralelo entre as obras levaria menos a marcar sin-
gularidades pelo uso desta ou daquela estratégia do que a notar a adocao de instrumentos
adequados ao problema especifico de pesquisa a ser enfrentado. Talvez a coincidéncia mais
curiosa esteja na atencao a0 momento instituinte de uma formacao social como aspecto
condicionante de seu estado atual, o que nos leva de volta a importancia da histéria. A titulo
de exemplo, lembremos que o interesse de Elias pela sociedade de corte explica-se porque ela
é vista como o berco dos paradoxes fundantes da modernidade; e que Bourdieu dedica~se a
compreensao da emergéucia da autonomia do campo literério porque é esse o memento de
instauracao da lei imanente que vai regular as relacoes em seu interior até o tempo presente.

so. ELITES
Frédérz’c Lebaron

Se ele critica a nocao de “elite” — tal como esta é empregada em pesquisas empiricas
internacionais dos anos 1960, sob o impulse nomeadamente de Paul Lazarsfeld (1901-1976),
Pierre Bourdieu nem por isso deixa de ser considerado, acertadamente, como um dos principais
teéricos e analistas da formacao e da “reproducao” das elites, desde seus trabalhos da década de
1960, em particular,‘as pesquisas sobre o sistema francés das Grandes Ecoles. Alias, o subtitulo
da traducao em lingua inglesa de sua obra, La noblesse d Etat (1989)'e Elite Schools In the
Field ofPower (1996) Escolas de formacao das futuras elites sociais, as Grandes Ecoles sao,
antes de mais nada, ramos do ensino superior elitizados, do ponto de vista escolar e social, cujo
acesso é destinado a um reduzido mimero de estudantes das classes populates, numero ainda
memos elevado do que ocorre nas universidades (com excecéo de setores como a medicina).
Para 0 estudo das elites, Bourdieu aventa a hipétese, inovadora, do papel central da “cultura”,
enquanto conjunto de disposicoes interiorizadas ~ 11m patrimonio, a um 56 tempo, linguistico
e comportamental - que facilitam nao so 0 “sucesso escolar”, mas também a adocao de estilos
de Vida especificos, propicios a contribuir para a permanéncia das desigualdades sociais. 0
capital cultural “pesa”, assim, tanto quanto a posse de patrimonio ou de rendimentos eleva-
dos. As “elites” ou “grupos dominantes” sao, portanto, definidos por Bourdieu em termos
“relacionais”, ou seja, a partir de sua dotacao relativa, mais elevada, em diferentes espécies
de capital: economico, cultural, social e simbélico. Assim, as elites sociais sao apreendidas
de maneira multidimensional, levandor—se em consideracao a diversidade de recursos que as
caracterizam, o que conduz a uma nitida distincao entre as diferentes fracoes das elites: elites
culturais, elites economicas, etc.
A partir do final dos anos 1960, Pierre Bourdieu e seus colegas do Européenne (CSE, que se
tornou CSEC, Centre de Sociologie del’Education et de la Culture apos a ruptura com Raymond
Aron, em maio de 1968) empreendem a elaboracao de um conjunto de pesquisas coletivas
sobre diferentes fracées das “classes dominantes”, de acordo com a terminologia utilizada

ELITES 167
durante esse periodo: professores universitérios, artistas, funcionérios de alto escalao, patroes,
etc. Paralelamente, a pesquisa chamada “Gosto” da lugar a analises sobre as diferenciacoes
entre as referidas fracoes em matéria de estilos de Vida, as quais serao publicadas no artigo
“L’Anatomie du gofit” (1976) e na obra La distinction (1979).
' Cada vez mais, as pesquisas sao realizadas a partir de dados prosopograficos (biografi-
cos) coletados nos anuérios especificos (em particular, 0 Who’s Who?) e em diversas fontes
(jornalisticas, etc). Até hoje, com os trabalhos de Francois Denord, Paul Lagneau-Ymonet e
Sylvain Thine (2011), essa tradicao de pesquisa prosopografica sobre as elites nunca chegou
a ser interrompida no ambito do CSEC—CSE e, mais amplamente, da “escola bourdieusiana”.
Pode-se acrescentar, ainda, as pesquisas de Luc Boltanski sobre os produtores de ideologia
dominante (nomeadamente, os professores de Sciences Po/Paris); as de Christophe Charla
sobre as elites da Republica Francesa no século XIX; os trabalhos de Monique de Saint Martin
sobre a nobreza; alérn de numerosas teses de doutorado, cujo tema incide sobre grupos espe-
cificos " escritores, economistas, jornalistas, etc. — no amago das elites.
Essas diversas pesquisas coletivas vao conduzir Bourdieu, por um lado, a formalizar
a nocao de “campo do poder”, que é o ponto culminante de sua sociologia das elites e, per
outro, a enfatizar a homologia estrutural entre o campo do poder e 0 campo das “escolas da
elite” (Grandes Ecoles, na Franca).
O campo do poder é o subespaco social composto por agentes que lutam em prol do exer—
cicio da dominacao. Mas esse “principio unificador”, essa illusio comum, é acompanhado por
consideréveis diferencas, em particular, aquela que se estabelece entre um polo dominante
no plano economico e um polo dominante do ponto de vista intelectual, que os distingue em
termos de estilos de vida, assim como de posicoes e de tomadas de posicao.
Essa oposicao seré reencontrada no campo das Grandes Ecoles com, por um lado, escolas
voltadas para a reproducao do poder intelectual e cientifico (em primeiro lugar, Normale Supé-
rieure); e, por outro, “escolas do poder” economico e politico (Hautes Etudes Commerciales,
Ecole Nationale d’AdIninistration. . .). A evolucao das relacoes de forca entre essas diferentes
escolas ilustra a transformacao do campo do poder, na Franca, e de maneira mais especifica, o
fortalecirnento do polo do poder diante da marginalizacio das escolas “intelectuais”.
Se, do ponto de vista conceitual e empirico, ele e’ inovador, Bourdieu responde também a questoes
mais “classicas”, tais como aquela — lancinante nos trabalhos sobre a estratificacao social — que
incide sobre o fundamento da existéncia das elites. Em sua construcao teorica, a permanéncia das
classes dominantes remete a nocao de modo de reproducdo que caracterizaria cada sociedade:
trata~se das modalidades pelas quais uma sociedade organiza a transmissao das posicoes sociais
dos pais aos filhos. Neste aspecto, a transmissao hereditaria do patrimonio (a terra e 0 capital)
desempenha tradicionalmente o papel central. As sociedades dominadas pelas forgas econérni»
cas atribuem, assim, ao patrimonio, um lugar determinante no acesso as posicoes dominante
s.
Nas sociedades contemporaneas, esse lugar — que n50 desapareceu — é contrabalancado por
diversos processes: 0 papel crescente do sistema escolar e sua traducao na ideologia meritocrética;
a ascensao dos executives e assalariados com alto m’vel de qualificacao que detém expertises
relativamente raras. Bourdieu fala, entao, de “modo de reproducao com componente escolar”.
A acentuacao da competicao escolar conduz ao incremento do papel do sistema educativo no
funcionamento da ordem social, inclusive entre as fracoes econémicas, tais come 0 patronato.
Dai

168 ELITES
uma tensao potencialmente cada vez mais forte, no cerne deste, entre umalegitimidade expert e
técnica (a dos diplomados em management) e uma legitimidade patrimonial e prética (0 capital
simbélico e 0 capital economico dos “herdeiros” da burguesia). Essa caracteristica, observa—se no
émago do patronato francés estudado por Bourdieu e de Saint Martin, em 1978. A fracao dominante
do patronato francés é, na época, altamente diplomada (ENA, Polytechnique. . .) e associada ao
Estado, em particular, ao polo financeiro do Estado (o Ministério da Fazenda, 0 Banco Central. . . ).
As relacoes entre as diferentes fracoes das elites sao, portanto, mais facilmente com—
preensiveis se forern analisadas do ponto de vista da sociologia da educacao, a qual se torna
assim uma peca central da sociologia do poder, corno é evocado por Bourdieu em La noblesse
d’Etat. No seio do campo politico, por exemplo, as elites “tecnocraticas” (na Franca, aqueles a
quem é atribuido o qualificativo de énarques) sofrem a concorréncia de novas fracoes, diplo-
madas, notadamente, pelas escolas de cornércio (business schools) on pelos departamentos
universitérios de economia e gestao.
A progresséo da economia e do management na formacao das elites contemporaneas é
uma caracteristica frequentemente enfatizada em numerosos paises. Ela explica amplarnente
a tendéncia para o economicismo dos grupos de elite, ou seja, o predominio em seu cerne
de uma visao centrada na esfera “economica” definida de maneira restritiva, quase sempre,
, em termos, antes de tudo, financeiros. Ela conduz a constituicao de um mercado mundial de
ensino superior, focalizado nos MBA, e a0 desenvolvimento de trajetérias académicas inter-
nacionais, associado aredes sociais transnacionais. Os grupos dominantes que emergem do
processo de globalizacao sao, nomeadamente, os executives da financa — traders, dirigentes
dos bancos e das instituicoes financeiras, etc. —, os consultores, os advogados de negécios e
03 economistas, os quais constituem grupos profissionais fortemente internacionalizados e
relativamente homogéneos para alérn das fronteiras nacionais.

Referéncias
BOURDIEU, P. The State Nobility: Elite Schools in the Field ofPower. Stanford: Stanford University
Press, 1996.
BOURDIEU, P.; SAINT MARTIN, M. L’anatomie du gofit. ARSS, v. 2, n. 5, p. 1~81, 1976.
BOURDIEU, P.; SAINT MARTIN, M. Le patronat. ARSS, v. 20—21, p. 3—82, 1978.
DENORD, E; LAGNEAUeYMONET, P.; THINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, v. 190,
p. 24—57, 2011.

87. EMPREGO ’

Ver: Trabalho

82. EPISTEMOLOGIA
Denis Baranger

Se Bourdieu nunca deixou de refletir epistemologicamente, ele se recusou na maior parte


do tempo a manter urn discurso especificamente epistemologico: “O discurso sobre a pratica

EPISTEMOLOGIA 169
cientifica, quando toma o lugar da prética cientr’fica propriamente dita, é completamente
desastroso. A verdadeira teoria é aquela que se dissipa e se realiza no trabalho cientifico
que
ela permitiu produzir” (R,134~135).
E dificil falar da epistemologia de Bourdieu sem levar em conta suas opinioes a respeito
da teoria e da metodologia na medida em que, em seu entender, se tratava de trés niveis
inseparéveis da pratica cientifica, o que explica a razao pela qual ele denunciava
tanto o
teorismo quanto “0 absurdo cientifico que é designado por ‘metodologia’” (R, 137).
Se é
possivel, sem dfivida, determinar afinidades eletivas entre epistemologia, metodolo
gia e
teoria, no entanto, cada uma dessas instancias mantém uma relativa autonomia,
permitindo
por exemplo que, em seus primeiros trabalhos sociolégicos, Bourdieu tenha utilizado
a
anélise de variéveis de Lazarsfeld, sem ter deixado de rejeitar a epistemologia positivis
ta
desse autor (BOURDIEU, 1991, p. 247).
Bourdieu defendeu sempre uma sociologia cientifica, 0 que é considerado jocosam
ente
por alguns comentaristas como uma postura cientificista e, até mesmo, positivist
a. N0 en-
tanto, quando ele subscreve com Passeron a formula de Bachelard, “o vetor epistemologico
[...] vai do racional ao real [...]” (MS, 14; BACHELARD, 2003), isso se da por razoes
idénticas
as de Popper, o qual defendia — diante da indutividade dos positivistas légicos - a primazia
da teoria sobre os dados. Com efeito, é sobretudo na tradicao francesa (fundame
ntalmente
antipositivista) da histéria e da filosofia das ciéncias que se pode encontrar a origem de
suas
ideias epistemolégicas.
.
E costume buscar a epistemologia de Bourdieu em seu livro, Le métz’er de sociologue
(1968). Essa obra, concebida explicitamente como um manifesto antipositivista (BOURDIE
U,
1991, p. 247), tern a desventura de comecar por uma citacao de Auguste Comte (MS, 7).
Em
seguida, afirma—se que "a sociologia é uma ciéncia como as outras que esbarra somente
em
uma dificuldade particular de ser uma ciéncia como as outras” (MS, 43). Uma tese que
se
presta a uma interpretacao positivista, se a formula — coma as outras ~ for entendid
a como
“unidade de método”, e se se levar em consideracao que o problema para as ciéncias humanas
nao seria o fato de se deixar guiar por uma epistemologia das ciéncias naturais, mas por
uma
representagdofalsa de tal epistemologia (MS, 26).
Mas o que é, afinal de contas, essa “dificuldade particular” da sociologia para ser
uma
ciéncia come as outras? Nesse livro, Le métier de sociologue, ela esté na base da necessida
de
de uma teoria do conhecimento sociolégico (TCS). Com efeito, Bourdieu
, Chamboredon
e Passeron 1150 se limitam a retomar as principais categorias de Bachelard (o autor
mais
citado), complementadas por diversas fontes (francesas e outras) da filosofia
das ciéncias,
mas pretendem realizar tambe’m urna sintese das contribuicées metateoricas dos trés
“pais
fundadores” da sociologiaz Marx, Weber e Durkheim. Trata-se de uma tentativa de
constru~
cao dos principios epistemolégicos gerais que estes teriam implementado em suas
teorias
parciais do social (MS, 55). Assim, os autores podiam afirmar a filiacao da TCS a ordem
de
uma metaciéncia sociologica. '
Nessa obra, Le métier de sociologue, tal nocao de metaciéncia era referida explicitamente
a K. Polanyi (1983). No entanto, é possivel também associé-la a distincéo althusseriana
entre
Teoria (com T maifisculo) e teorias, ou seja, entre o materialismo dialético e as ciéncias.
So-
bretudo porque, na mesma época (outubro de 1967), Althusser, em seu “Cours de philosop
hie

170 EPISTEMOLOGIA
pour scientifiques”, falava da “philosophie spontanée des savants” (filosofia espontanea dos
cientistas [PSS, 1974]), enquanto em Le méti‘er de sociologue, com todas as aparéncias de
um eco, tratava~se de uma “sociologie spontanée des sociologues” (sociologia espontanea
dos sociologos [588]).
Do mesmo modo que. a PSS althusseriana, assim também a SSS é engendrada de
maneira permanente e necessaria pela pratica social e, neste sentido, evoca indubita~
velmente as “ideologias praticas” althusserianas: i‘[...] a familiaridade com o universo
social constitui, para o sociologo, o obstéculo epistemologico por exceléncia pelo fato de
produzir continuamente tanto concepgoes ou sistematizagao ficticias quanto as condigoes
de sua credibilidade. O sociélogo nunca conseguira eliminar a sociologia espontanea [...]”
(ALTHUSSER, 1968, p. 35). ‘
Na realidade, a SSS, assim como a PSS, esté enraizada em Bachelard, que nao
aceitava de modo algum a ideia de uma metaciéncia que viesse a se posicionar not
base das ciencias. No entanto, a ideia de uma TCS em luta contra a SSS é essencial
para a argumentagao adotada em Le métier du sociologue e, por conseguinte, para a
epistemologia de Bourdieu nessa época. Para nao cairem ern contradigao, a solugao dos
autores dessa obra consiste em desdobrar o termo “teoria”: por urn lado, tem-se “TCS”
—' formulagao ambigua, de acordo com De lpola (1970, p. 133), dado que ela abrange, ,
de fato, nada menos do que a epistemologia ~ e, por outro, tem-se teoria sociolégica
propriamente dita: Gragas a esse artificio é que se realiza o milagre da Santissima
Trindade, ufiindo Marx, Durkheim e Weber em uma unica e mesma epistemologia.
Em suma, a epistemologia geral negada por Bachelard ressusci‘Ea como uma TCS que,
supostamente, deveria ser defendida a contragosto pelos sociélogos.
De fato, depois de Le métier du sociologue, a TCS é encontrada em Bourdieu so~
mente em duas oportunidades: em sua obra, La reproduction, na qual um primeiro
axioma referente a forga propria da violéncia simbolica é seguido por um escolio que o
transforma em “um principio da TCS” (LR, 18); e em uma entrevista com Otto Hahn,
em que se trata da TCS e, ao mesmo tempo, do campo cientifico (BOURDIEU, 1970, p.
13), o que faz com que esse texto possa ser considerado como um indicio da transigao
de uma categoria para a outra.
151 na conclusao dos “Preliminares epistemolégicos”, a TCS comegava a dar lugar a uma
sociologia da sociologia: “A questao de saber se a sociologia é, on n50, uma ciéncia — e uma
ciéncia como as outras - deve ser substituida, portanto, pela questao do tipo de organizaqao
e de funcionamento da cidadela erudita mais favoravel a aparigéo e ao desenvolvimento de
uma pesquisa submetida a controles estritamente cientificos” (MS, 111).
Em Le métier du sociologue, nao é utilizada a nogao de campo cientzjfico. Se nesse livro
é possivel encontrar o termo “campo” (p. 105), este nao aparece no lndice tematico que se
refere a cidadela erudita e a comunidade. A ideia de cidadela cientifica vem de Bachelard,
enquanto a de comunidade cientl’fica é tomada de empréstirno principalmente de Polanyi
(Kuhn, Merton e Popper so aparecem em nota de rodapé).
Em 1975, Bourdieu publicou “Le champ scientifique”, um artigo decisivo para a conforma-
950 de sua epistemologia, no qual ele define a caracteristica fundamental desse campo; o fato
de que nele o principal fator em jogo é intrinsecamente duplo, 11a medida em que o interesse

EPISTEMOLOGIA 171
dos agentes é ai tanto intelectual quanto politico. Essa duplicidade, Ionge de ser um obstaculo
para o desenvolvimento do campo, é a prépria base do mecanismo que, de maneira natural,
orienta seu funcionamento: “A luta pela autoridade cientifica [...] deve o essencial de suas
caracten’sticas ao fato de que os produtores tendem a 1150 ter outros possiveis clientes além
de seus concorrentes [...] Isso significa que, em um campo cientifico fortemente autonomo,
urn produtor particular so pode esperar que o reconhecimento de seus produtos [...] venha
dos outros produtores que, sendo tambérn seus concorrentes, $50 03 menos inclinados a lhe
conferir, sem discussao nem analise, tal reconhecimento” (BOURDIEU, 1975, p. 95). Esse é o
mecanismo fundamental do campo cientifico, mecanismo que tinha sido, alias, formulado
anteriormente em termos semelhantes por Kuhn ([1968] 1977, p. 143). .
E obvio que, apés Le métier du sociologue, Bourdieu leu Kuhn de maneira mais atenta:
ele vai cité—lo em seis oportunidades, por necessidade de se distinguir de um pensamento
que nao lhe era assim téo estranho porque, em seu entender, tudo o que Kuhn havia trazido
de novo para o mainstream epistemologico anglo-saxao jé estava presente em Bachelard
(BOURDIEU, 1975, p. 114). file critica o funcionalismo de Kuhn, apresentando sua teoria como
a simples contrapartida do positivismo (BOURDIEU, 1975, p. 106), e também se opoe a esta
“prescricfio dissimulada: a existéncia de um paradigma é um sinal de maturidade cientifica”
(Idem, p. 114), a luz da qual as ciéncias sociais n50 seriam cientificas.
Em seu ultimo curso no College de France, Bourdieu mostra-se mais favorével as ideias
de Kuhn, com quem compartilha sua oposicao ao logicismo dos positivistas e de Popper, ou.
seja, ‘a ideia de que haveria “regras gerais a priori para a avaliacao cieutifica e'um cédigo de
leis imutaveis para estabelecer a distincao entre ciéncia verdadeira e falsa” (SSR, 12).
No entanto, ele continua julgando que o modelo de revolucao cientifica de Kuhn é exces-
sivamente internalista, além de reservar demasiado espaco aos fatores irracionais. Bourdieu
pensa que nao se pode compreender a mudanca de paradigma como um processo nao cientifico,
quando ela é realizada nao pelos mais desprovidos, mas pelos mais ricos em capital cienti'fico
entre os recém-chegados a0 campo, o que faz com que “o revolucionério seja necessariamente
alguém que tem capital [...] * ou seja, um enorme controle dos recursos coletivos acumulados
~ e que, por isso, conserva necessariamente consigo aquilo que ultrapassa” (SSR, 39). Bourdieu
é, certamente, menos relativista que Kuhn e mais favorével a ideia de progresso cientifico.
Nesse livro Bourdieu volta a questao das ciéncias sociais e parece estar mais inclinado
a atribuir—lhes um estatuto epistemolégico distinto (SSR, 167). As ciéncias sociais tém “um
objeto importante demais”, o que as torna mais expostas a heteronomia. Devido a falta de
autonomia da sociologia para com a sociedade, “uma liberdade muito grande é dada, inclusive
no interior do campo, aqueles que contradizem o proprio nomos do campo” (SSR, 171). A
conclusao de Bourdieu é a seguinte: “A sociologia é socialmente frégil e, tanto mais, talvez,
quanto mais cientifica for” (SSR, 173). A verdade sociolégica, em ruptura com 0 senso co—
mum, sera aquela que mais dificuldade tem de se impor, em razao das oposic‘oes suscitadas
por sua propria verdade. Nao ha nenhuma “forca intriuseca a ideia verdadeira”, lamenta-se
Bourdieu, inspirando-se em Spinoza. O problema, entao, em vez de ser epistemologico, é
polz’tica. Observemos que essa afirmacao considera resolvido o unico problema realmente
importante: 0 da existéucia de um nomos reconhecivel da sociologia. Se esse nomos — ou esse
unico paradigma — existisse efetivamente, nao haveria nenhum problema epistemologico.

172 EPISTEMOLOGIA
Tudo O que Bourdieu nos diz poderia ser resumido em uma finica diferenca para com
as ciencias naturais, diferenca que consiste em uma resisténcia ativa do objeto. Nas ciéncias
sociais, afirma ele, “impoe—se dar um passo suplementar, do qual as ciéncias naturais p0»
dem se eximir [...] é necessario historicizar o sujeito da historicizacao, objetivar o sujeito da
objetivacao, ou seja, o transcendental histérico” (SSR, 168). A necessidade da socioanélise
seria, finalmente, a finica especificidade da ciéncia social. Se se concorda com a necessidade
de “objetivar o sujeito”, surge a questao de saber como proceder a tal objetivacao. No que
diz respeito a Bourdieu, a resposta parece ébvia: a objetivacao so pode ser feita a partir das
ferramentas fornecidas por sua prépria teoria do espaco social e dos campos, o que faz com
que se volte incessantemente ao ponto de partida.
Mas por que atribuir todo o onus ao sujeito e 1150 ao objeto? Sem que isso signifique renunciar
a um conhecimento cientifico do social, sem voltar a cair na ilusao hermenéutica, pode—se pensar
que existem caracteristicas desse objeto que exigem abordé—lo de maneira diferente das “outras”
ciéncias. Esse é o sentido adotado por ].—C. Passeron em Le raisonnementsociologique (2006),
a propésito do estatuto argumentative da sociologia enquanto ciéncia de um mundo historico.
Mas, mesmo que Bourdieu tenha reconhecido, no final, algum mérito a essa abordagem (SSR,
146), ele nunca se resignou a aceitar que é justamente porque as ciéncias sociais nao funcionam
“como as outras” que é impossivel para elas chegar a um acordo sobre urn nomos unificado.

Referéncias
ALTHUSSER, L. Philosophie etphilosophie spontane’e des savants. Paris: Maspero, 1974.
BACHELARD, G. Le nouvel esprit scientifiqae (1934). 7. ed. Paris: PUF, 2003.
BOURDIEU P. La théorie Entretien avec Otto Hahn. VH 101, Revue Trimestrielle, v. 2, p. 1221, 1970.
BOURDIEU, P. La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progrés de la raison.
Sociologie et Sociétés, v. 7, n. 1, p. 91-118, 1975. [Nova ed; Le champ scientifique. ARSS, v. 2/3,
p. 88—103, 1976].
BOURDIEU, P.; KRAIS, B. Meanwhile, I Have Come to KnowAll the Diseases ofSociological Understanding.
In: BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, I.-C.; PASSERON, I.-C. Cllze Craft of Sociology. New York: _
Walter de Gruyter, 1991. p. 247—259.
DE lPOLA, E. Vers une science du texte social: 16 (re)commencement de la sociologie marxiste.
Sociologie et Sociéte’s, v. 2, n. 1, p. 123-43, 1970.
KUHN, T. S. The History ofScience (1968). International Encyclopedia ofthe Social Sciences, Nova York:
Crowell Collier and Macmillan, p. 74—83, 1977. ‘
PASSERON, ].~C. Le raisonnement sociologique: an espace non poppérien de l’argumentation.
Paris: Albin Michel, 2006.
POLANYI, K. La grande transformation: aux originespolitiques et économiques de notre temps.
Paris: Gallimard, 1983.

§?.-FT5.5999..DE AUTO'ANAL'SE “SW/5551.39”?W549I914N447§53.


Afrc‘mio Mendes Catani

BOURDIEU, P. Esboco de auto-amilz’se. Séo Paulo: Companhia das Letras, 2005.

ESBogo DE AUTO-ANALISE 173


(ESQUISSE POUR UNE AUTO—ANALYSE))
Parte de Esboco de auto-anélise foi redigido entre outubro e dezembro de 2001 no
hospital, embora Bourdieu trabalhasse no texto havia anos. Foi concebido a partir de seu
ultimo curso no College de France, como versao desenvolvida e reelaborada do capitulo
final de Science de la science et réflexivité. E um testemunho tocante, com linguagem
enxuta, comovida e ferina. Publicado antes na Alemanha (2002), saiu na Franca em 2004.
Da mesma forma que elaborara em 1982, quando de seu ingresso no College, uma Aula
sabre a aula, onde a extrema reflexividade dava 0 tom, nesse curso subrneteu ele mesmo,
como derradeiro desafio, “a0 exercicio da reflexividade que havia constituido a0 longo
de sua Vida de pesquisador num dos requisites necessaries ‘a pesquisa cientifica”. Na
apresentacao a edicao brasileira (2005), Sergio Miceli escreve que Bourdieu recorrera a
palavra esboco em Esboco de uma teoria da prdtica (1972), considerada “a obra matriz
da etapa afirmativa de seu projeto intelectual”, em que fazia um acerto de contas corn 0
estruturalismo, testava hipoteses corn relacao a congruéncia de fontes e materiais, “dando
arremate a viagem iniciatica ao enlacar as vivéncias do Béarn ‘as do trabalho de campo
na Argélia, e um baita desafio as teorias e modelos de parentesco entao hegemonicos na
antropologia” (p.19). A obra introduzia longa digressao sobre os modos de conhecimento,
em especial “aquele suscitado pela préxis, que esta na raiz do conceito de habitus”, que
plasmaria “uma sociologia nucleada na razao pratica, marca que o distinguiria tanto das
correntes interacionistas como das vertentes estruturalistas” (MICELI, 2005, p. 19). Bour-
dieu escreve que no esforco que faz para explicar—se e compreender-se, iré apoiar~se “nos
cacos de objetivacao de mim mesmo que fui deixando pelo caminho, a0 longo de minha
pesquisa, e tentarei aqui aprofundar e ainda sistematizar” (EAAp, 39).
Para justificar as tomadas de posicao que marcaram sua carreira, realiza uma analise
do campo intelectual francés nos anos 1950, quando concluiu seus estudos de filosofia na
Ecole Normale Supérieure (ENS) e, também, de sua prépria formacao, caracterizada pelo
éxito escolar e per origern social modesta: seu pai era carteiro num povoado do sudoeste
da Franca. Seus primeiros trabalhos exploram o desenraizamento das origens ~ a familia
numa comunidade rural da regiéo do Béarn —— e a necessaria familiarizacao com os espa-
cos sociais de adocao, em Paris. Afirrnou, em entrevistas, que tal familiarizacao forcada
levou-o, inclusive, a perda de seu forte sotaque — so aos 11 anos, no liceu de Pau, deixou
de falar apenas o gascao.
De 1951 a 1954 foi aluno da ENS cursando filosofia, época em que era a disciplina domi—
nante, sendo o campo intelectual dominado por Jean-Paul Sartre. Entende que “0 choque de
1968” foi decisivo para que os filésofos ingressantes nos arms 40 e 50 se confrontassem com o
problema do poder e da politica —- cita os casos paradigmaticos de Deleuze e Foucault (EAAp,
42). Além da corrente intelectualmente dominante, representada por Sartre, havia outras,
em
que se destacavam Martial Gueroult, Jules Vuillernin, Gaston Bachelard, Georges Canguilhern,
Alexandre Koyré, Eric Weil, Maurice Merleau—Ponty. A revista Critique, dirigida por Georges
Bataille e Eric Weil, a0 dar acesso a urna cultura internacional e transdisciplinar, “permitia
escapar a0 efeito de clausura exercido por qualquer escola de elite” (EAAp, 47).
Atacafas posturas de Sartre, fala de seu mentor, Raymond Aron, da simpatia por Canguilhem
e pelos colegas filésofos de sua geracao, Jean—Claude Pariente, Henry Joly e Louis Marin. Recons-
titui o espaco de possiveis que se abria diante dele nesse periodo de transicao entre a filosofia
ea

174 ESBOCO DE AUTO-ANALISE


(ESQUISSE POUR UNE AUTO‘ANALYSE)
sociologia. Nesta disciplina pontificavam Georges Gurvitch, Jean Stoetzel 6 Raymond Aron, além
dos que se encontravam em ascensao: Alain Touraine, Jean-Daniel Reyn'aud e lean-Rene Tréanton
(sociologia do trabalho); Viviana Isambert—Iamati (sociologia da educacao); Frangois—André Isambert
(sociologia da religiéo); Henri Mendras, Paul-Henry Chombart de Lauwe e Ioffre Dumazedier se
dedicavam, respectivamente; as sociologias rural, urbana e do lazer (EAAp, 62-63). Havia poucas
revistas (Revue Prancaise de Sociologie, Les Cahiers Internationaux de Sociologie, Archives
Européennes de Sociologie, Saciologie du Travail e Etudes Rurales), mas nada era tao moti~
vador, a ponto de escrever que “a Vida cientifica estava em outro lugar” (EAAp, 62), enaltecendo
a acao de Fernand Braudel e a grande influéncia exercida pela revista L’Homme, tendo a frente
Lévi-Strauss, ocupando posicao dominante no campo académico francés (EAAp, 68).
Dedica varias péginas ao periodo passado na Argélia, a partir de 1955, ac iniciar seu ser-
vico militar, onde faz suas primeiras pesquisas de campo sobre a sociedade cabila e publica
Sociologie de l’Algérie (1958). Retorna a Paris e torna—se assistente de Aron, apés lecionar
filosofia e sociologia na Faculdade de Letras de Argel. Inicia carreira exitosa, fazendo sua
conversao as ciéncias sociais, como etnologo e sociélogo, no momento de uma guerra de
libertacéo que, para ele, marcou a ruptura decisivacom a experiéncia escolar (EAAp, 71).
Apesar das discordancias que manteré corn Levi-Strauss, reconhece que ele, com Braudel e
Aron, lhe garantiram a entrada,rbern jovem, na EscolarPrética de Altos Estudos (EAAp, 74).
Publica outros trabalhos sobre a Cabflia e o Béarn, regiao onde nasceu, em Etudes Rurales,
nos Annales e em Les Temps Modernes (EAAp, 87).
Apresenta as pesquisas desenvolvidas nos anos 1970, 80 e 90, que consolidariam sua reputacao,
além de elementos autobiogréficos e informacoes familiares responsaveis pela formagao de seu
habitus primério. Seu pai era filho de meeiro e, por volta dos 30 anos (quando nasceu Pierre), tor-
nou-se funcionario dos correios, depois promovido a carteiro~cobradorg foi, a Vida toda, empregado
numa Vila proxima a Pau. “A experiéncia infantil de transfuga filho de transfuga, pesou bastante
na formacao de minhas disposicoes em relacao a0 mundo social” (EAAp, 109). Muito préximo de
, seus colegas de escola priméria (filhos de pequenos agricultores, artesaos ou comerciantes), tinha
com eles “quase tudo em comum, exceto o éxito escolar, que me fazia sobressair” (EAAp, 110). As
passagens em relacao ao paj, suas tornadas de posicao politicas e sociais, sao tocantes. Sua mae
provinha de uma “grande famflia” camponesa, pelo Iado materno, enfrentando a-vontade dos
pals “para fazer um casarnento percebido como uma alianca desastrosa” (EAAp, 111). Filho finico,
a experiéncia do internato nos liceus de Pau (19414947) e no liceu Louis-le-Grand (19484951),
em Paris, 350 vistas como uma "terrivel escola de realismo social, onde tudo jé se faz presente,
por conta das necessidades da luta pela Vida” (EAAp, 115). Fala do frio passado 110 inverno, os
constrangimentos para se usarem os banheiros, as admoestacoes, a luta para obter seu quinhéo e
conservar seu lugar, a prontidao para dar um safanaose necessério. Sua narrativa autobiogréfica
retoma o argumento desenvolvido em As regras da arte (1992): “a ficcao e a sociologia sao inter-
cambiéveis, pelo fato de possuirem o mundo social como referente” (MICELI, 2005, p.18). Recebeu
mais de 300 “suspensoes” e “reprimandas” a0 longo de sua escolaridade. Vivia angustiado: “eu
finha 11 on 12 anos, ninguém em que pudesse confiar ou que pudesse apenas compreender” (EAAp,
119). “Eu vivia minha Vida de interno numa espécie de furor obcecado [...] Plaubert nao estava
de todo errado ao pensar que, como escreve nas Memérias de um louco, ‘aquele que conheceu
o internato conhece, aos doze anos, quase tudo na vida’” (EAAp, 120).

ESBoco DE AUTO-ANALISE 175


(ESQUISSE POUR UNE AUTO—ANALYSE))
Fala das dificuldadesque enfrentou com os colegas na classe preparatéria no Louis~leeGrand
e que comegou a praticar o rfigbi, com os colegas de intemato, para eVitar que seu éxito escolar
o afastasse da chamada comunidade Viril da equips esportiva, “finico lugar [...] de verdadeira
solidariedade, muito mais solida e direta do que aquela Vigente no universo escolar, na luta co-
mum pela Vitéria, no apoio mi’ituo em caso de briga, ou na admiraqéo irrestrita pelas faqanhas”
(EAAp, 123). A sala de aula “divide a0 hierarquizar”; o internato “isola ao atomizar”.
Ha péginas saborosas sobre seu ingresso no College de France e seu entendimento segundo o
qual “a ficgao e a sociologia sao intercambiaveis, pelo fato de possuirem o mundo social como refe-
rente” (MICELI, 2005, p. 18). Retomando o que se escreveu antes, através da evocagao das condigoes
historicas em que seu trabalho foi elaborado, conseguiu “assq 0 ponto de Vista do autor”, como
dizia Flaubert. lsso implica em “colocar—se ern pensamento” exatamente “no lugar que, escritor,
pintor, operario ou empregado de escritério, cada um deles ocupa no mundo social” (EAAp, 134).
Miceli aponta o siléncio de Bourdieu “acerca de seu casamento, dos filhos, das mulheres
importantes em sua Vida”, falando que o pudor de classe lhe impediu isso: “ele nao dispunha
da prontidao de habitus requerida para tamanha autocomplacéncia, que lhe teria habili-
tado a aprontar uma versao enevoada de sua experiéncia afetiva, similar aquela veiculada
,
por exemplo, nas narrativas memorialisticas de Sartre ou Leiris, tao ao agrado de letrados
estetas” (MICELI, 2005, p. 18). A favor do trabalho sociologico do autor, termino com a frase
de Ricardo Piglia, que ilustra com felicidade o processo de autoanalise desenvolvido por
Bourdieu: “A critica é a forma moderna de autobiografia. A pessoa escreve sua Vida quando
cré escrever suas leituras [...] O critico é aquele que encontra sua Vida no interior dos textos
que lé” (2004, p. 117).

Referéncias
MICELI, S. A emoqéo racionada. In: BOURDIEU, P. Esbago de auto-ana’lise. Sao Paulo:
Companhia
das Letras, 2005. p. 7-20.
PlGLIA, R. Formas braves. Séo Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Ver: Sistema de ensino

.8?-.FS.SR.'.T9§ DE. EPUCACAO .............


Geraldo Romanelli

BOURDIEU, P. Escritos de Educagdo. Organizado por M. A. Nogueira e A. Catani.


Petrépolis, RI:
Vozes, 1998.

Escritos de Educagdo, coletanea cuja primeira edigao é de 1998, trouxe ao piiblico


brasi-
leiro doze textos de Bourdieu redigidos entre 1966 e 1998, acompanhados de apresenta
gao dos
organizadores esclarecendo o contefido de cada artigo e de dois anexos relevante
s contendo
informaeoes acerca do sistema escolar francés.

176 ESCOLA
Os escritos reunidos nesse volume constituem excelente introducao aos temas trabalha-
dos por Bourdieu e tornaram acessivel sua abordagem teérica da educacao e da reproducao
cultural, inclusive para estudiosos de outras areas das ciéncias humanas que incorporaram
o aparato analitico e metodologico que fundam suas reflexoes sociologicas.
Ordenados em terna’ticas’dedicadas a variadas dimensoes do aparelho escolar em sua
relacao com o contexto social e com a reproducao cultural, os artigos foram selecionados
procurando difundir aspectos seminais do sistema teorico elaborado por Bourdieu em dife-
rentes mementos de sua trajetéria intelectual. Alguns textos apresentam e discutem conceitos
fundamentais para a compreensao da educacao, enquanto outros se dedicarn a analises de
pesquisas acerca de facetas dessa ternatica. ’
No conjunto, os artigos revelarn a inovacao que o pensamento de Bourdieu trouxe para a
sociologia da educacao, abrindo novas perspectivas para 56 proceder a reflexao do processo
de escolarizacao, articulando—o com as desigualdades de acesso aos estabelecimentos de
ensino por educandos de distintas fracoes das classes sociais, com a reproducao cultural,
corn 0 sistema de avaliacao escolar e com analises de outros aspectos que incidem sobre o
sistema educacional.
A pertinéncia e 0 alcance desses escritos podem ser documentados pela utilizacao que
inumeros pesquisadores tém feito deles e também pelo fato, de esta coletanea ter experimen-
tado varias reedicées, o que constitui indicador significativo da repercussao desses textos na
area da educacao.

Cldudz'o Marques Martins Nogueim

A nocao de espaco social é utilizada por Bourdieu (CDp; RPp; LDp) para se referir ao
sisterna formado pelo conjunto das posicoes sociais ocupadas pelos agentes em urna dada
formacao social. Influenciado pela perspectiva estruturalista, dominante nos anos 1960 e
70,0 autor eufatiza que as propriedades sociologicamente relevantes dos individuos ou das
instituicoes sociais dependem, em grands medida, da posicao relativa que eles ocupam na
estrutura social Assim, o grau de prestigio, de riqueza ou de poder de um agente individual
on de uma instituicao coletiva (uma universidade, urn sindicato, uma igreja, uma familia,
etc.) so poderiam ser considerados em termos das distancias que esses mantém em relacao
aos demais agentes individuais ou coletivos. Ter urna escolarizacao basica numa sociedade
em que a maioria nao teve acesso a escola pode ser suficiente, por exemplo, para se ocupar
uma posicao de prestigio ou mesmo para se garantir algum poder e renda. Individuos com
esse mesmo nivel de instrucao numa sociedade altamente escolarizada tendern a ocupar, a0
contrario, uma posicao social subalterna
E importante observar que na perspectiva de Bourdieu as posicoes no espaco social nao'
se definem apenas pela dimensao economica. Contrapondo se ‘a tradicao marxista, que tende
a considerar a localizacao dos agentes nas relacoes de producao como o critério definidor
da posicao ou classe social dos mesmos, Bourdieu enfatiza que o espaco social se define a
partir do modo como se distribuem numa dada sociedade diferentes formas de poder, ou

ESPAco SOCIAL 177


seja, diferentes tipos de capital. Além do capital economico, formad
o por recursos financeiros
e bens materiais, o autor realca especialmente a importancia do que
ele chama de capital
cultural, ou seja, a posse da cultura legitima ou dominante, nas suas
formas incorporada,
objetivada e, sobretudo, institucionalizada. Aponta, também, o papel
que podem desem-
penhar outros tipos de capital, corno 0 social (conjunto de relacoe
s socialmente uteis) e o
simbolico (prestigio relacionado a suposicao da posse dos demais
capitais, como no caso
de um sobrenorne tipico das elites). Afirrna, no entanto, que nas
sociedades modernas, os
dois tipos mais importantes de recurso 5:30 o cultural — em boa medida
, sancionado pelos
titulos escolares — e o economico. Assim, a posicao de um
agente no espaco social dessas
sociedades define~se basicamente em funcao do volume total desses
capltais e pelo peso
relative de cada um deles no interior de seu patrimonio.
Estudando o caso francés, Bourdieu (LDp, 118) sintetiza o modo
como os agentes se
distribuem no espaco das posicoes sociais por meio de um grafico formad
o por dois eixos
transversais dispostos em forma de cruz. Na parte superior do
eixo vertical estariam os
detentores de um grande volume de capitais. Bourdieu cita, entre outros,
os empresérios!
os profissionais liberais, os professores universitérios e os artistas
. Na parte inferior, es—
tariarn 0s detentores de um volume menor. O autor menciona 0s
técnicos, os operérios,
os professores primarios, os artesaos, os trabalhadores rurais,
entre outros. Essa primeira
diviséo corresponderia a contraposicao, apontada por Bourdieu,
entre classes dominantes
e dominadas. Cada urna dessas partes seria, por outro lado, subdiv
idida ~ tendo como
referéncia o eixo horizontal e transversal em relacao ao primei
ro — conforme o peso maior
do capital economico on cultural na composicao do patrimonio
de seus agentes. Assim,
teriarnos na parte superior a diferenca entre elites cultura
is e empresariais. Da mesma
forma, entre os dominados, poderiamos contrastar, por exemplo,
a situacao dos professores
primaries, cujo patriménio esté baseado na posse de algum capital
cultural, com a dos
pequenos comerciantes, cujo principal recurso é econémico.
Essas diferencas no peso de
cada um dos capitais no patrimonio total dos individuos corresp
onderiam ‘as diferencas
entre fracoes de classe.
Bourdieu argumenta ainda que na definicao da posicao de um agente
individual on coletivo
no espaco social é precise considerar sua trajetéria, ascendente
ou descendente. A mesma
posicéo objetiva, definicla em termos do volume e da estrutura do
capital possuido, pode ser
ocupada por agentes que se diferenciarn bastante em funcéo de suas
origens sociais e de suas
perspectivas de mobilidade social. Assirn é possivel contrastar, por
exemplo, diferentes fracées
das elites economicas ou culturais em funcao da antiguidade do
seu patrimonio. Do mesmo
modo, seria posslvel diferenciar as fracoes das classes medias que
realizam ulna trajetéria
ascendente em relacao as classes populates das fracées oriundas
dos estratos decadentes das
camadas dominantes.
Na perspectiva do autor, seria possivel, portanto, observando esses
trés critérios — volume,
estrutura e trajetéria do patriménio —, distinguir e delimitar
posicoes sociais relativamente
homogéneas no espaco social. Os individuos que compartilham
cada uma dessas posicoes
teriam condicées objetivas de existéncia razoavehnen
te semelhantes, que propiciariam ex—
periencias de Vida similares e que tenderiam a se traduzir subjeti
vamente em urn habitus
ou sistema de disposicoes tipico da posicao. Esse habitus, por
sua vez, orientaria “tomadas

178 ESPACO SOCIAL


de posicao”, ou seja, escolhas, preferéncias, acées, tipicas dos ocupantes dessa posicao, e que
configurariam, assim, urn estilo de vida caracteristico. I
A nocao de espaco social 6' construida e operacionalizada por- Bourdieu, portanto, como
forma de ressaltar as homologias (evitando as acusacoes de determinismo ou me‘canicismo)
' entre condicoes objetivas, disposicées incorporadas e acoes préticas simbolicamente classificadas e
classificantes, ou seja, tipicas e demarcadoras de uma determinada posicao social. Em outras pala-
vras, é possivel dizer que por meio desse instrumento conceitual Bourdieu busca demonstrar
como as tomadas de posicao, as estratégias e as acoes dos agentes, bem come as disposicoes
incorporadas que supostamente as orientam estao relacionadas e se distribuem em funcao
das condicoes objetivas diferenciadas em que esses agentes se encontram, ou seja, do acesso
mais ou menos privilegiado que eles tém ‘as diferentes formas de riqueza que configuram urn
dado espaco social e que caracterizam dentro desse urna dada posicao social.
E importante, ainda, ressaltar que o espaco social nao seria um constructo fixo, a-histérico
e diretamente Valido em termos universais. Caberia a cada sociélogo —- sobretudo quando
analisa contextos histérica ou socialmente afastados das sociedades capitalistas desenvolvidas ~
identificar as formas de riqueza mais importantes na formacao social em questao, o modo
como as posicoes sociais ai se definem e as maneiras como isso se traduz nas disposicoes dos
agentes e em suas tomadas de posicao cotidianas, ou seja,,em seus estilos de Vida.
E preciso considerar também que, na perspectiva de Bourdieu, os préprios agentes estao l
continuamente lutando por meio do que o autor chama de estratégias de reproducao da
posicao social para conservar ou transformar o espaco social e para manter ou melhorar sua
localizacao no interior dele. Os agentes mais bem posicionados tenderiam a adotar estratégias
de conservacao, legitirnando os critérios vigentes de classificacao das posicées sociais e em—
penhando-se em manter distancia em relacao aos grupos inferiores, incluindo os emergentes.
Os agentes em posicoes menos privilegiadas tendem, por sua vez — conforme as expectativas
reais de sucesso que vislumbram, dados os recursos de que dispoem e o contexto especifico
no qual agem —, a adotar alternativarnente as estratégias mais conformistas, de legitimacao e
acumulacao dos recursos valorizados, corno é o caso do investimento educacional intenso e da
boa vontade cultural das classes médias, on as estratégias de questionamento dos critérios de
classificacao vigentes, como se observa nas lutas por maior valorizacao do capital cultural face
ao econémico, ou nos esforcos de legitimacéo da cultura popular frente a cultura dominante.

iifim’IPE CORPS ..............................................


Ana Paula Hey
Elisa Kliiger

As nocées esprit de corps (espirito de corpo) e efiet de corps (efeito de corpo) aparecem
no percurso da obra de Bourdieu em meados dos anos 1980, extrapolando a associacao uni-
camente feita a La noblesse d’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps (1989), livro em que o
termo “esprit de corps” foi consagrado. Nesse trabalho, ao estudar o campo das instituicoes
dc ensino superior na Franca e, male, as especificidades das escolas preparatérias e das Grandes
Escolas destinadas a reproducao das elites, empreende o uso do termo “espirito de corpo” para

ESPRIT DE CORPS 179


designar os sentimentos de afeto, de admiracao e de solidariedade entre
aqueles que por elas
passam decorrentes da homogeneidade de suas estruturas mentais, ou seja,
do compartilha-
mento dos esquemas de percepcao, de apreciacao, de pensamento e de
acao de sujeitos que
funda a conivéncia de inconscientes bem orquestrados. Conforme o autor,
o “espirito de corpo”
é um dos fundamentos desse encantamento afetivo, que nasce de poder
se amar e se admirar
a si mesmo nos seus pares (NE, 111). Essa comunhao de reciprocidades inscrita
s na aparéncia
do natural é que vai garantir a instituicao de poderes associados a frequén
cia distintiva desses
espacos controlados de reproducao social.
Ao agregar sujeitos cuja identidade esté fundada na coincidéncia dos esquem
as de visao e
divisao do mundo social, 0 “espirito de corpo” pode dar origem a corpos (profissi
onais, sociedades,
clubes), grupos que sao capazes de conferir identidade, estabelecer vinculo
s de solidariedade e
promover 0 reforco mfituo de espécies de capital, sobretudo 0 social, dos particip
antes. O “efeito
de corpo”, por sua vez, seria a expressao da forca dos corpos sobre a socieda
de e deve ser tanto
maior quanto mais intenso for o “espirito cle corpo” do corpo que 0 exerce.
Em Homo academicus (1984), o autor procura explicar como sao constitu
idos esses
coletivos que se reconhecem como corpos, ou seja, como se dé o process
o de cooptacao/de
adesao a urn grupo e a seus valores. Sendo o “espirito de corpo” o liame
de coesao do corpo,
quer dizer, as verdades que fundarn a identidade do grupo, a adesao ao
“espirito de corpo”
constituiria o verdadeiro direito de entrada no grupo. Assim, a selecao dos
membros do corpo
seria irredutivel ‘a aquisicéo de determinadas competéncias técnicas, devendo
-se, sobretudo, ‘a
convergéncia das competéncias sociais e das estruturas mentais do candida
to, de seus ethos, >
habitus e hexz's corporal, em relacao aquelas dos outros membros do
grupo.
No artigo Eflet de champ etefiet de corps (1985), Bourdieu vincula o termo
“espirito de corpo”
a ideia de que um corpo poderia exercer um “efeito de corpo”. Os corpos, como
grupos socialmente
conhecidos e reconhecidos através de um nome — que atua como um marcad
or simbélico consa-
grador daqueles que comungam do capital do grupo —, dotados de uma forqa
prépria, poderiam
tentar imprimir no mundo social suas orientacoes e a chance de que lograsse
exercer efeitos sobre
o campo seria tanto maior quanto mais forte a coeséo do corpo, ou seja, o seu
“espirito de corpo”.
Em texto escrito com Monique de Saint Martin nas ARSS (1987),
acerca da relacao entre
o campo das Grandes Escolas e o campo do poder, explora a relacao de homolo
gia talhada na
divisao entre as escolas intelectuais e as de poder (filosofia versus econom
ia, por exemplo)
e a oposicao no campo do poder que separa o polo intelectual e artistic
o daquele do poder
economico e politico. Afirma que ha uma verdadeira solidariedade organic
a reunindo alunos
eleitos socialmente e que asseguram a exceléncia dessas escolas, consag
rando as identidades
sociais, ao mesmo tempo concorrentes e complementares, produz
indo um “grande corpo”
unido, apesar dos antagonismos devidos a posicao no campo do
poder.
Como id 36 afirmou, é em La noblesse d ’Etat que o termo “espirito
de corpo” tem maior
destaque. Dedicado em grande parte a anélise da estrutura e do
funcionamento do apice do
sistema de ensino superior francés e a0 papal desempenhado por ele
na producao e na repro-
ducao dos grupos dominantes, o livro de Bourdieu analisa a incorpo
racao pelos individuos
de disposicoes e de espécies de capital no processo de socializacao
transcorrido em espacos
sociais bern delimitados. Esse tipo de estabelecimento escolar é aprese
ntado por ele como o
espaco por exceléncia da conformacao das afinidades e dos afetos que
estao na esséncia da

180 ESPRIT DE CORPS


que déo origem a
Solidariedade dos dominantese 11a origem de suas tramas de vinculos sociais
de corpo”
corpos dotados de espiritos comuns. A coeséo criada nessas instituigoes, o “espirito
coeséo dos grupos dominan tes, constitu indo
dos dominantes, é visto como elemento essencial é
suas divergén cias
uma solidariedade capaz de amalgamar e fortalecer as elites, n50 obstante
éo.
e as disputas que travam pela imposigéo dos principios prevalecentes de dominag
‘a consagragéo social outorgad a pela nomina~
A constituiqéo do “espirito de corpo” deve-se
os, moldand o a identida de
qéo que funda uma verdadeira solidariedade de interesses simbolic
dade com
individual a uma identidade coletiva. Em sintese, e16 é um sentimento de solidarie
s, o que comanda a
o préprio grupo, seu nome, sua honra, mas também com seus membro
de sua identida de, daquilo que
‘submissfio és exigéncias da reproduqio do corpo, quer dizer,
o constitui como tal, sua solidariedade (BOURDIEU, 1985).
daqueles
O “espirito de corpo” deve, portanto, ser pensado como um elemento de coeséo
de viséo e diviséo do mundo social
cujas afinidades e lagos devem‘se é partflha dos esquemas
Os vinculo s refor-
forjados na frequéncia a meios de socializagéo comuns ou semelhantes.
de capital dos
gados pelo espirito de corpo, por sua vez, incrementam as diferentes espécies
de exercer urn “efeito de corpo”,
que por ele séo aglutinados e fortalecem o poder do coletivo
imprimindo suas orientagoes sobre o mundo social.

Referéncias
1985.
BOURDIEU, P. Effet de champ et efiet de corps. ARSS, v. 59, p. 73, set.
Agrégat ion et segréga tion: 1e champ Ldes Grandes Ecoles et le
BOURDIEU, R; SAINT MARTIN, M.
'
champ du pouvoir. ARSS, v. 69, p. 2-50, set. 1987.

as. ESQUISfiE D’UNE THEORIE DE LA PRATIQUE, PRECE‘DE DE


TROIS ETUDES D’ETHNOLOGIE KABYLE
Gisele Sapiro

études d’ethnologie kabyle.


BOURDIEU, P. Esquisse d’une théorie de lapratique, précédé de Trois
Essais].
Genebra: Droz, 1972. [Nova ed. aum. Paris: Le Seuil, 2000. Colegio Points

da prética de
Esse livro, publicado em 1972, representa a primeira elaboragio de uma teoria
retorno da Argélia,
Bourdieu. E precedido por trés estudos de etnologia cabila, redigidos apos seu
(1963»1964) e
cujos temas 3510 “O. sentido da honra” (1960), a “Casa cabila on o mundo ao avesso”
1970). Esses trés estudos foca-
“O parentesco como representagéo e como vontade” (entre 1960 e
géo da sociedade cabila
1izados nas implicagoes simbolicas que sustentam o sistema de reprodu
objetivo consistia
faziam parte de um projeto mais amplo —- e que permaneceu inacabado -, cujo
estrutu ra é ordem economica e
em reconstituir o sistema das relagoes objetivas que servern de
a do livro revelador do
é
politica dessa sociedade. O lugar ocupado por esses estudos na abertur
ida com base em
procedimento que iré caracterizar toda a obra de Bomdieu: a teoria é constru
um constan te vaivém em relaeéo a0
pesqujsas empiricas aprofundadas, de maneira indutiva e em
ais elaborados
terreno. Esse é o aspecto que diferencia essateoria damaior parte dos sistemas conceitu

ESQUISSE D’UNE THEDRIE DE LA PRATIQUE, 181


PRECEDE DE TROIS ETUDEs D’ETHNOLOGIE KABYLE
nas ciéncias sociais, os quais procedem quase sempre de manei
ra dedutiva. Outra originalidade
dessa obra tem a ver com a trajetéria singular desse “aprendiz de filésofo
” que se tomou etnélogo:
a articulaqao de descrieoes etnograficas sutis com as infimeras referén
cias filoséficas mobilizadas
para apoiar a reflexao teérica (Spinoza, Leibniz, Hegel, Husserl, Heideg
ger, Sartre, Merleau—Ponty,
Wittgenstein, Quine...), a0 lado de referéncias das ciéncias sociais (Durkh
eim, Mauss, Lévy-Bruhl,
Weber, Schiitz, Levi-Strauss, Malinowski, Lowie, etc).
Analisadas a partir da teoria dos jogos, a qual pressupée a capaci
dade de antecipar as
reagoes dos parceiros, as condutas guiadas pelo sentido da honra
sao apreendidas como es-
tratégias que visarn a reprodugao do capital simbélico individ
ual 6 coletivo nas sociedades
pré—capitalistas. A nogao de estratégia adquire, nesse trabalho,
sentido no que diz respeito a
relativa imprevisibilidade das trocas. A0 mesmo tempo em que
se serve dos ensinamentos da
abordagem relacional do estruturalisrno — alias, irnplementado
por ele no estudo seguinte —,
Bourdieu se distancia, aqui, dessa corrente ao restituir
aos agentes uma margem de improvi-
sagao diante das condicionantes sociais, a0 invés de transformé-lo
s em simples suportes das
estruturas. Redigido inicialmente para a coletanea de estudo
s, Mélanges, em homenagem a
Levi—Strauss, o estudo sobre a casa cabila complementa o preced
ente ao mostrar a inscrigao
da divisao sexuada [gendered] do mundo nas estruturas do habita
t, o qual situa o feminine
no Iado de dentro, da obscuridade, da umidade, da natureza,
enquanto o masculino fica do
lado de fora, da clareza, do seco e da cultura. O estudo sobre o
parentesco é uma critica, ainda
mais explicita, da antropologia estrutural. Baseando-se na regra
do casamento com a prima
paralela para questionar seus pressupostos —- ou seja, a magic
de unifiliagéo e o principio da »
exogamia ~, Bourdieu vai criticar a antropologia estrutu
ral por negligenciar as fungoes sociais
(econémicas e politicas) das relagoes de parentesco e de seus usos.
Desse estudo surgiu a critica
da propria nogao de regra, que se encontra no {image de sua
teoria da pratica.
O que se entende quando se diz “a regra segundo a qual eleprecede”?
— quesnona~se Bourdieu em
Esquisse, retomando uma pergunta formulada por Wittgenstein
. A regra, no sentido juridico, que
os agentes seguem de maneira consciente (norma)? Ou, ainda, aquela
que eles seguem de maneira
inconsciente (esquerna) e que a analise estrutural (modelo
teérico) reconstitui? A0 observar 0 use
polissémico do termo pela antropologia estrutural, Bourdieu critica
seu “juridicismo”, formulando
a questéo da diferenga entre o modelo de analise e a realidade: com
a mosaic de “regra”, desliza-se
de fato sub-repticiamente do modelo da realidade para a realida
de do modelo.
Ora, a imitagao 1150 se refere a modelos, mas its aqoes dos
outros: tal é o postulado de
Bourdieu que o leva a elaborar uma teoria da prética, supera
ndo a alternativa entre “situagoes”
e “modelos”, a qual, na época, opunha Sartre e as interacionista
s simbélicos aos estruturalistas.
O modo de conhecimento praxiolégico que Bourdieu precon
iza contra a abstragao operada
pelo objetivismo estruturalista convida a passar do opus apem
tum para o modus operandi,
ou seja, para a logica da agao.
A teoria do habitus, que nesse livro conhece sua primeira
elaboragao completa, tern o
objetivo de apreender a maior ou menor capacidade dos agente
sde se ajustarem as situagées
em fungao de suas disposieoes, ou seja, das estruturas
cognitivas e comportamentais que
eles haviam interiorizado no decorrer-de sua socializagao
primaria e secundéria (tendo as
primeiras experiéncias um peso determinante) e que orient
am suas estratégias de maneira
mais ou menos consciente. As possibilidades de ajuste
dependem, em grande parte, da

182 ESQ_Ul_SSF: D'UNE THEQRIE DE LA PRATIQUE,


PRECEDE DE TROIS ETUDES D’ETH NOLOGIE KABYLE
adequacao das estruturas sociais atuais as do passado. E por isso que as situacoes de crise
provocam perdas de referéncia e dificuldades de— ajuste desigualmente superadas. Operador
da improvisacao regulada em situacoes sempre novas, o habitus permite compreender corno
as praticas podem ser reguladas e regulares, sem ser 0 produto da obediéncia a urna regra,
nem da acao orquestrada de hm regente. Contra a flusao ocasionalista que tende a explicar
as préticas pela situacao, Bourdieu sublinha, no entanto, que “a verdade da interacao nunca
reside inteiramen’te na interacao” (ETP, 275), mas que esta reflete as relacoes objetivas entre
os agentes. O habitus sustenta as afinidades eletivas (simpatia, amizade, amor), corno é con-
firmado pela homogamia de classe constatada com muita frequéncia, através daharmonia
I dos ethos e dos gostos. O corpo é o principal operador pratico dessas interacoes: um corpo
socializado, habituado, adestrado (polidez, precedéncia, autocontrole), urn corpo “geometra”
(capaz de se situar em urn espaco significante) e “estruturado temporalmen’te” (segundo a
logica do prazo e do desvio, implicando a antecipacao e o célculo), que é o lugar de emocoes
e de manifestacoes somaticas, ocultadas pela abordagem intelectualista.
Os modelos geométricos ou genealogicos, construidos pelo erudito, ocultam também a
dimensao temporal das trocas que os inscreve na longa duracao, tornando-os irreversiveis.
Ora, é gracas ao intervalo de tempo, gerador de incerteza, que a troca pode ser irreconhecida
enquanto tal, como é ilustrado pelo exemplo paradigmético do dom e do contradom, Até
mesmo nas préticas mais ritualizadas, como a resposta a ofensa ou a vinganca, a temporall-
dade torna possivel a implementacao de estratégias, nocao que Bourdieu coloca no lugar do
conceito de regra, a firm de romper com a concepqao da acao como uma simples execucao.
O livro termina com uma critica a0 economicismo que oculta a diniensao simbélica das
trocas nas economias chamadas pré-capitalistas, dimensao que, no entanto, nao deixa de ser
central em universos nao diferenciados que se caracterizam pela convertibilidade do capital
economico e do capital simbolico (por exemplo, o prestigio e a reputacao Vinculados a uma
familia, ou as condutas de honra). Portanto, o patrimonio da famflia on da linhagem nao se
reduz a terra, nem aos instrumentos de producao, mas 'mclui a parentela e a clientela, a rede
I de aliancas ou de relacionamentos que devem ser mantidos e que constituem urn capital
social. Eis a razao pela qual, de acordo com Bourdieu, “a teoria das préticas propriamente
economicas é apenas um caso particular de uma teoria geral da economia das préticas”.
Assim, a teoria da prética redunda em uma economia dos bens simbolicos que Bourdieu
desenvolveu paralelamente nessa época.
v Alguns anos mais tarde, Bourdieu vai retomar e sistematizar essa reflexao em seu livro,
Le sens pmtique (1980). Ele voltou a lancar Esquisse (2000) com algumas modificacoes, em
particular 0 acréscimo — antes da critica ao objetivismo estruturalista, que omite de levar em
consideracao a experiencia dos atores ~ de uma critica contra o subjetivismo (ETP, 235236),
que se tornou, nesse intervalo de tempo, 0 paradigma dominante no lugar do objetivismo
que prevalecia na década de 1970.

Referéncia
BOURDIEU, P. La maison kabyle ou le monde renversé. In: POUILLON, L; MARANDA, P. (Orgs.).
Echanges et communications. Mélanges ofierts ti Cl. Lévi-Strauss pour son 60“” anniversaz're.
Paris-La Haye: Mouton, 1970. p. 739~758.

esomssg D’UNE THEORIE DE LA PRATIQUE, 183


PRE'CEDE” DE TROIS ETUDES D’ETHNOLOGIE KABYLE
Ver: Argélia

90.-ESTAD_0 . ............
Remz’ Lenoir

O interesse manifestado por Bourdieu em relacao a0 Estado deve—se, no essencia


l, a seus
estudos sobre os modos de dominacao e a suas pesquisas sobre as diferentes fracoes
da classe
dominante — a “noblesse d’Etat” — que contribuiram muito para a elaboracao
da nocao de
capital simbélico, cuja acumulacao primitiva esté, segundo ele, na base
da emergéncia do
Estado, principal agente e instrumento primordial de construcao da realidade
social.
E a partir da definicao de Estado forjada por Weber que Bourdieu critica esta nocao
nao apenas
estendendo o alcance do monopélio do Estado a todas as formas de violéncia, em
especial a vio—
léncia simbolica, mas, sobretudo, estudando—o em relacao a construcao de um “campo
do poder”.
O campo do Estado resulta de um duplo processo dado pela autonomizacao
dos campos
e das espécies de capital que lhes correspondem e, também, pela concentracao
dos poderes
no respective valor destas ultimas. “Essa espécie de metacapital, capaz de
exercer um poder
sobre as outras espécies de capital e, em particular, sobre as taxas de cambio entre
elas ~ 6, a0
mesmo tempo, sobre as relacoes de forca entre seus detentores —, define o poder
propriamente
do Estado”. Ao retomar a oposicao entre Estado dinéstico e Estado burocré
tico, Bourdieu .
mostra em quais aspectos a transicao de um para o outro constitui 1150 so uma
mudanca de
modo de governo, mas uma verdadeira revolucao simbélica. E nessa dimensa
o ~ e, de forma
geral, na nocao de capital simbolico, cuja acumulacao primitiva é a condicao
necessaria da
monopolizacao das outras espécies de capital —— que Bourdieu-esté interessado,
em particular
em seu curso Sabre 0 Estado, fornecendo ali urna contribuicao decisiva
para seu projeto
teorico principal: construir uma teoria materialista do simbélico.
Um dos tracos distintivos, sublinhados corn insisténcia por Bourdieu, do Estado
burocra—
tico em relacao a0 Estado dinastico é a passagem de um poder direto com
base pessoal para
um poder indireto com base territorial, exercendo-se por intermédio de delegad
os, tendo os
feudos se transformado ern “provincias”. Essas “provincias” sao definidas
progressivamente
corno fragmentos de um todo, agregando pessoas unidas mais pela proximi
dade espacial do
que pela proximidade genealogica e, de forma geral, de natureza vassalética.
Essa unificacao
é acornpanhada, entre outros aspectos, de uma padronizacao das normas
de medicao (pesos
e medidas, sirnbolos monetarios, regras juridicas...), da homogeneizacao
do espaco, do espaco
geogréfico, em detrimento daquilo que, por isso mesmo, se torna particul
aridade local (a
capital engendra o provincianismo). .. De maneira geral, o Estado
contribui para integrar o
espaco economico (mercado nacional), o espaco social, 0 espaco simbolico
e o espaco cultural
(unificacao dos codigos juridico,lingu1’stico, vestimentar, burocrético...) Essa
coesao passa,
no essencial, pelo sistema escolar, que forma os cidadaos para uma nova
visao do mundo e
uma nova estruturacao do mundo, aquela da qual deriva o conceito de
nacao.
Para explicitar a estrutura e a funcao do Estado, a exemplo de sua analise
sobre o campo
religioso,,Bourdieu recorre as grandes tradicoes sociologicas — as de Marx, Durkhe
im e Weber.
184 ESQUISSES ALGERIENNES
Desse confronto, emerge um modelo explicativo. Se, diferentemente de Durkheim e de Weber,
Marx se questiona sobre as funeoes do Estado — ‘-‘quem se beneficia com o Estado?” —, no en~
tanto, de acordo com Bourdieu, ele 1150 as relaciona com as particularidades de seu funciona~
mento, a saber, as operagoes préprias e as condicoes especificas em que ele opera. A0 deslocar
a questao das funcoes do Estado para aquela que se refere a eficécia da dominacao baseada na
opiniao comum — “como se explica a obediéncia dos dominados?” — é que Bourdieu rompe
com a abordagem marxista. E é em Durkheim que ele encontra os elementos que lhe permitem
estabelecer os alicerces do poder simbolico do Estado. Com efeito, no entender de Bourdieu, o
que esté na origern da coesao social que contribui para engendrar o Estado é o “conformismo
logico”, expressao tomada de empréstimo a Durkheim e sobre a qual ele insiste de forma parti-
cular: “Os agentes sociais corretamente socializados dispoem em comum de estruturas logicas
semelhantes, de modo que prescindem de se comunicar, de colaborar para estarem de acordo”.
E a integracao légica produzida pelo Estado é a prépria condicao da dominacao exercida pelo
Estado a service daqueles que podem apropriar—se dele. De tal modo que o Estado é a instituicao
que tern o poder extraordinario de produzir um mundo social ordenado sern necessariamente
dar ordens, sem exercer uma coercao permanente (1150 ha um policial atrés de cada motorista).
E a “essa espécie de efeito quase magico”, a essa “espécie de milagre da eficacia simbélin
ca”, que é essencialmente dedicado o curso de Bourdieu, Sabre 0 Estado, que foi publicado
na Franca. O Estado modela as estruturas mentais através do conjunto das instituicoes de
construcao da realidade social como sao, nomeadamente, os sistemas escolares, judiciais
e sociais, ao inculcar sistemas de classificacao, principios de visao e divisao comuns e, por
conseguinte, o que é constituido como “a identidade nacional”. O “conformismo légico”
que produz e reproduz o Estado é uma forma de integracao social muito mais profunda e
mais estével que aquela garantida, por exemplo, pelas propagandas politicas, contribuindo
assim para a producao e reproducao da ordem simbélica e, por conseguinte, da ordem
social. Deste modo, além de um simples instrumento de coercao, o Estado é muito mais
um instrumento de producao e reproducao do consenso, urn senso comum constituinte, de
acordo com Bourdieu, um conjunto oficial de instrumentos estruturados e estruturantes de
conhecimento e de comunicacao - alias, os mesmos que sao compartilhados por aqueles
que estao submetidos a ele. .
A semelhanca do que ocorre em qualquer campo, o campo burocré’cico é em si mesmo
um espaco de lutas em prol do poder, onde o campo tern o monopélio dos instrumentos
de gestao e administracio dos bens pfiblicos. Na medida em que os campos autonomos se
diversificam e se multiplicam, as grandes burocracias do Estado tém a funcao de coordenar
0s interesses concorrentes, retraduzindo~os segundo a logica propria desse universo do qual
Bourdieu analisou o funcionamento, sobretudo a proposito da politica de moradia, ao estudar
a composicao e o desenrolar de um comité que reunia os atores “eficientes” encarregados de
definir suas orientagoes, Tais atores, alias, encontram “apoios” estruturais no campo das
instituicoes pfiblicas. O comité é o préprio tipo de instituicao que resulta da transacao entre
as classes, entre as fracoes de classe, procurando aparentar que tudo esta situado para além
dos interesses de classe. O controle sobre o Estado — ou seja, sobre os recursos econémicos e
politicos permitindo que o Estado exerca poder sobre todos os campos ~ é um fator dotado
de configuracoes variaveis segundo os desafios no amago do campo do poder.

ESTADO 185
O campo do Estado é relativamente autonomo em relacao a todos os campos,
assim como
a0 proprio campo do poder. Ora, de acordo com a anélise que Bourdieu jé havia
empreendido a
proposito do sistema de ensino, tal autonomia é a garantia de sua eficécia simbolic
a, de sua funcao
legitimadora, que consiste em transmutar os interesses de grupos particula
res em interesse s do
conjunto dos grupos, ou seja, em favor do “pi’iblico”, no sentido em que ele é
constituido como
“universal” em determinado contexto social. 0 processo segundo o qual se constitu
i essa instancia
de gestao do universal é inseparavel da aparicao de uma categoria de agentes que
tém a proprie-
dade de se apropriar do universal, ou seja, os juristas que teorizam a nocao de
bem pfiblico e que,
a0 assim procederem, tendiam a apropriar—se dele e dele tirar proveito. Assim, ao
produzirem 0
universal para seus interesses particulares, os juristas fazem progredir 0 universa
l.

91. ESTlLO DE ESCRITA DE BOURDIEU


Antonio Augusto Games Batista

Tanto em seus livros quanto na revistaActes de la Recherche en Sciences


Sociales (ARSS),
Bourdieu e sua equipe realizarn experimentos no modo de comunicagao da pesquisa
sociologica.
Embora recorram a procedimentos do campo literario, respondem a problem
as sociologicos
comuns a pratica de pesquisa de um grupo num determinado estado do académ
ico francés.
Na medida em que, porém, a figura de Bourdieu se desprende desse grupo, essas
disposicoes V
estili’sticas ganham outros matizes e e’ mais correto falar, a partir de entao, de
um estilo de
escrita de Bourdieu.
Exemplos das experimentacoes de carater bourdieusiana $50 as “montagens discursiv
as”
(R, 66). Muito frequentes nos artigos da ARSS e especialmente em livros como A
distinpdo, sao
construidas como “assemblages”. Ao lado do texto anah'tico, trechos de entrevistas,
fotografias, e
recortes de revistas buscam fornecer urna descricao do fenémeno analisado, mas
a partir de uma
“intuicao imediata” que é exclui'da da explicacao anah'tica (R, 66). A0 leitor é também
permitido
reconhecer o mundo social tal como lhe é familiar, mas essa familiaridade e',
como necessario,
desfeita pelo conjunto. Também é exemplo. dessas experimentacoes literarias
0 use do discurso
indireto livre (SPELLER, 2012), especialmente quando registra classificacoes do
mundo social, bus-
cando apreender os distintos pontos de vista dos agentes sobre os demais. Como
esse tipo de regio
do discurso de outrem nao emprega aspas, consegue—se transmitir uma forte
carga emocional.
A sintaxe de Bourdieu é o traco mais identificado com seu estilo. Suas sentenca
s nao apenas
sao longas, mas possuem um grande nt’lmero de oracoes e apostos intercala
dos que exigem uma
sobrecarga da memoria em seu processamento e na hierarquizacao das informa
eoes principais
e secundarias. Segundo Bourdieu, essas caracteri'sticas, assim
como a presenca constante da
negacao e do paradoxo, devem~se fundamentalmente a duas necessi
dades do trabalho sociolo-
gico. Por um lado, o sociologo deve se bater contra as representacoes
do leitor sobre o mundo
social, mas para isso deve usar o mesmo material que alicerca essas
representacoes: a linguagem.
Assirn, deve criar uma ruptura com a linguagem cotidiana. Em
segundo lugar, para Bourdieu,
‘ »\ o que éscomplexo, hierarquizado e articulado, precisa ser
dito de maneira complexa, hierarqui—
‘dag‘fortemente” articulada (CDp). Se para alguns (JENKI
NS, 1992) esses tracos estili'sticos
Fm deuma busca de distincao no campo intelectual francé
s, para outros (SPELLER,

VITILO DE ESCRITA DE BOURDIE


U
2012), realizam uma aproximacao rica com o discurso literario, especialmente com 0 romance
moderno, que abre novas possibih'dades para o discurso sociologico.

Referéncias
JENKINS, R. Pierre Bourdieu. iondon: Routledge, 1992.
SPELLER, I. R. W. Bourdieu and Literature. Cambridge: Open Books, 2012.

92. ESTILOS DE VIDA


Iulien Duval

Apesar de ter sido utilizada por Bourdieu apenas em La distinction (1979), a nocao de
“estilo de Vida” 11:30 deixa de desernpenhar nesse livro um papel importante. No quadro teérico
que lhe é préprio, a nocao de lifestyle ~ popularizada a partir dos anos 1930 pelas ramificacées
da psicologia e da sociologia, associadas ao marketing — parece ter sido reformulada por ele
para designar o conjunto de préticas e de consumos que‘tendem a ser adotados pelo mesmo
individuo ou grupo. Convém observar, no entanto, que nocdes semelhantes ja se encontram em
’ autores classicos, citados com frequéncia por Bourdieu. Em particular, Max Weber, em trechos
deA étz'ca protestante e o “espirz'to” do capitalismo (1905), trata da emergéncia, mediante os
imperativos de condutaascética, de um estilo de Vida “moderno” ou “burgués”, marcado pela
recusa do luxo ostensivo e por um retraimento ao espaco doméstico. Da mesma forma, Maurice
Halbwachs — sociologo francés durkheinu'ano do periodo do entre guefras — havia forjado as
nocées de “nivel de Vida” (1913) e, em seguida, de “género de Vida” (1930) que, a semelhanca do
conceito de “estilo de Vida” em Bourdieu, chamam a atencao para a coeréncia e a interdepen-
déncia fundamentais dos elementos, aparenternente bastante heterogéneos que os constituem.
O “estilo de Vida” em Bourdieu é, com efeito, inseparavel da tese segundo a qual os dominios
, da existéncia que, na aparéncia, obedecem a logicas muito diferentes (consumo de alimen—
tos, praticas esportivas e culturais, concepcoes éticas e politicas do mundo...), se organizam
de acordo com principios homélogos. O estudo estatistico do consumo de alimentos nos
diferentes grupos sociais, de suas préticas esportivas ou de seus lazeres, faz aparecer, assim,
uma série de ecos. Em relaeao aos alimentos constata‘se, por exemplo, na Franca da década
de 1970, uma oposicao entre alimentos baratos e bastante nutritivos (came de porco, p510,
batatas...), consumidos particularmente nas categorias populates, e alimentos mais cams e
mais leves (peixe, frutas...), preferidos pelas classes superiores. Essa oposicao baseia—se em
principios que se encontram, em parte, na area esportiva, dominio em que esportes coletivos
que pressupéem um importante dispéndio fisico e podem ser praticados praticamente em
qualquer lugar (tal como o futebol) se opoern a esportes individuais submetidos a compe-
ticoes ritualizadas (esgrirna, ténis...), cuja prética pressupée recursos economicos, as vezes
bastante consideréveis, e que sao praticados em lugares reservados do ponto de vista social.
Uma oposicao parcialmente similar opée as atividades de lazer populates que, a exemplo
das festas juninas, sao acompanhadas da participacao do pfiblico, aos lazeres mais refinados
e mais ritualizados que, 11a Franca, sao apreciados, sobretudo pelas classes superiores (por
exemplo, o teatro on a opera).

ESTILOS DE VlDA 187


De maneira geral, Bourdieu defende a ideia de que os grupos sociais se opoem, nos diferentes
dominios da existéncia, de acordo com légicas que se referem a principios que distribue
m os
agentes e grupos no espaco social segundo 0 volume, a estrutura e a antiguidade dos
capitais
que eles detém. Isso possibilita a construcao de um “espaco dos estilos de Vida” que, de
alguma
forma, resultapda sobreposicao dos espacos que cada dominio analisado constitu
i (alimentos,
esportes, etc.). Uma vez que ele concebe as praticas como um produto do habitus e das
condi-
coes economicas e sociais da existéncia, Bourdieu considera que as préticas de determin
ado
agente social, nos diferentes dominios da Vida, tendem a ser 0 produto dos mesmos
principios
e a apresentar um “at de famflia” que faz a unidade do “estilo de Vida”. Pela
mesma razao, ele
observa que os agentes da mesma classe, pelo fato de terem de enfrentar condicoes de existénci
a
muito semelhantes, tendern a ter as mesmas praticas e o mesmo tipo de “estilo de Vida”.
A demonstracao empirica dos “estilos de Vida” combina o estudo estatistico da distribuic
ao
diferencial das praticas em funcao dos grupos sociais, com observacoes etnogréficas. Segundo
um exemplo dado por Bourdieu, tais observacOes mostram o quanto os diferentes
aspectos
da Vida de um marceneiro (sua maneira de exercer a profissio, seu cuidado com o corpo,
seu
modo de falar...) sao marcados pela mesma mistura de meticulosidade e de paciéncia
. La
distinction apoia-se assim, simultaneamente, em fontes estatisticas,
entrevistas e observacoes
para identificar os estilos de Vida peculiares a cada classe, para desvendar seus principio
s
unificadores, assim como as variantes de acordo com as fracoes de classes. As préticas
mais
especificas das classes populares, na Franca da década de 1970 (futebol, truco, acordeao, vinho
,
tinto), compoem assim um estilo de Vida marcado pelos efeitos da necessidade economic
a
e pela recusa do luxo. Ele se opoe a0 estilo de Vida prevalecente nas categorias superiore
s,
materializando-se nomeadamente na pratica do bridge ou do ténis: a disténcia da necessida
de
economica engendra uma tendéncia a denegar as necessidades primérias e a adiciona
r uma
dimensao simbolica a qualquer prética. As classes médias parecem replicar esse estilo de
Vida,
mas com menor grau de legitimidade: nelas predominam o gosto pela opereta (a0
invés da
opera), 0 consumo de cerveja (em vez de uisque), assim como tocar violéo (em vez de piano).
Esses estilos de Vida se especificam segundo as fracées de classes, de acordo com 05
re-
cursos especificos que cada uma delas possui. No seio das classes superiores, por exemplo,
os
artistas on 03 professores do ensino superior tendem a desenvolver urn estilo de Vida
que, nos
diferentes setores, privilegia préticas relativamente pouco onerosas economicamente
, mas
com um born desempenho cultural. A pratica do xadrez, de andar a pé ou das caminha
das
na montanha, assim como o gosto pelas culinérias “exéticas”, materializam esse
estilo de
Vida bastante ascético que se opoe ao estilo de Vida mais hedonista das fracoes economic
as da
burguesia, simbolizado pela equitacao, pela caca ou pelo consumo de champanhe. No
interior
das fracoes de classes é possivel estabelecer numerosas distincées: diferencas de estilos
de
Vida separam, por exemplo, nos recintos esportivos ou politicos, a aristocracia e as
antigas
fracoes da burguesia economica, cuja orientacao nacionalista é duplicada por um
gosto em
prol dos esportes de luta ou belicosos (aviacao, boxe...), e as novas fracoes dos executivos de
grandes empresas, mais internacionalizadas e praticantes de esqui ou dos esportes
de vela.
Em resume, La distinction faz urn uso particularmente elaborado da nocéo de “estilo
de
Vida”. A maneira como ela se articula com os conceitos de habitus e de espaco social, bem
como
a variedade dos dominios abrangidos pela obra opéem—se, assim, a utilizacao mais rudimen
tar

188 ESTILOS DE VIDA


que, muitas vezes, se faz dessa nocao no ambito de uma simples psicolOgia do consumidor. Além
disso, La distinction propoe uma descricao empin'ca detalhada de um espaco dos estilos de Vida:
se algumas observacées sao, sem dfivida, especificas a situagao investigada, outras (por exemplo,
aquelas resultantes da distancia da necessidade economica 011 a oposicao entre estilos de Vida
ascéticos e hedonistas) sao, coin certeza, transponiveis para outros contextos. Uma dificuldade
que pode surgir na aplicacao do conceito é que ela exige um importante material empirico,
obtido por métodos bastante variados (os finicos que permitem a nocao funcionar em niveis de
agregacao muito diferentes). Além disso, ela é solidaria a uma tese bem consolidada, qual seja, a
coeréncia das praticas induzidas pelo habitus. A tese contraria segundo a qual os principios que
orientam as praticas do mesmo individuo, nas diferentes esferas de sua existéncia, podem ser
de tipos diferentes (LAHIRE, 2004) obrigaria, sern di'lvida, a reajustar a nocao de “estilo de Vida”.

Referéncias
HALBWACHS, M. La classe ouvrie‘re et les niveaux de vie. Paris: Alcan, 19l3.
HALBWACHS, M. Les causes du suicide. Paris: Alcan, 1930.
LAHIRE, B. La culture des individus: dissonances culturelles et distinction de 501'. Paris: La
Découverte, 2004. .
' WEBER, M. Die protestantische Ethik und der “Geist” des Kapitalismus. Archiv Fur Sozialwissen-
schafi‘ Und Sozialpolitik, 1905.

9.3.25§T35TF§WESTWEGFAS PE RFPRQDQEAQ ............ ...........................


Ernesto Seidl

A nocao de estratégia ocupa lugar central no esquema analitico de Pierre Bourdieu e esta
conectada ao nficleo de'sua teoria, primeiramente apresentado de forma articulada no texto
Esquisse d’une théorie de la pratique (1972). Naquele mesmo ano o autor também publicava
o artigo “Les strategies matrimoniales dans le systeme de reproduction” (1972), cujo
titulo sugeria a importancia daquela nocao e sua associacao estreita com a de reproducao
social. Ao lancar mao da nocao de estratégia, Bourdieu procura enfrentar o problema do uso
da nocao de regra, cara aos etnologos, como crenca na obediéncia exclusiva dos agentes a
regras, codificadas em leis on 1130, e romper com uma visao racional da acao social.
A0 contrario do sentido racional e utilitarista comumente sugerido pelo termo “estratégia”,
associado a ideia de calculo intencional, acao consciente e planejada voltada ‘a maximizacao
de interesses, no esquema de Bourdieu essa perspectiva é praticamente invertida. Isso porque
sua teoria da pratica esté calcada na ideia de' 21930 Social como fruto do habitus, principio
que organiza a relacao dos agentes com o mundo social, fornecendo-lhes um sentido prético.
Assim, embora as estratégias reflitam objetivamente interesses socialmente orientados - ma-
nutencao do patrimonio economico, reproducao do grupo familiar —, nao sao necessariamente
objeto de reflexao corno calculo ou intencao estratégica pelos agentes que as levam a cabo,
Situando—se, na maioria das vezes, no nivel pré—reflexivo ou infraconsciente.
Bourdieu emprega com frequéncia a metafora dojogo para esclarecer sua visao das logicas
da acao social e, em especial, das estratégias, como produto do dominio pratico das formas de

ESTRATEGIAIESTRATEGIAS DE REPRooucAo 189


conduta nos diferentes espacos do mundo social. Esse dominio é explicado pelo habitus, que
pode ser entendido ao mesmo tempo como sentido do jogo e como o préprio jogo incorporado
individualmente por cada agente ao longo do tempo. E nesse Viés que a estratégia é encarada
come 0 produto do sentido prético como sentido do jogo, que se adquire desde a infancia
ao se participar das atividades sociais. Entretanto, a capacidade de dominio do jogo
esté
distribuida de‘forma desigual entre os agentes; logo, reflete—se nas condicoes de adocao das’
melhores estratégias, come no caso da escolha do conjuge, de investimento em determinada
forma de educacao para os filhos ou de opcao por certa carreira.
Foi com base, sobretudo em estudos sobre matriménio e sucessao familiar — elementos-chave
do sistema de reproducao social - ern sociedades rurais em transformacao, como a Cabflia, na
Argélia e o Béarn, na Franca, que inicialmente Bourdieu desenvolveu o uso da nocao de estra-
tégia em oposicao a de regra. Esta perspectiva em seguida seria incorporada e expandida
a muitas outras pesquisas enderecadas a sociedade francesa como um todo on a espacos e
grupos sociais especificos, corno os intelectuais, o patronato, o espaco da literatura e 0 do
poder. Com auxilio em especial da estatistica, Bourdieu demonstrou como a reproducao
social em parte das sociedades argelina e francesa dependia de complexas aliancas ma-
trimoniais e de escolhas de herdeiros cujas logicas nao se ajustavam as regras explicitas
(escritas on 1150) cu implicitas. A analise tratava como estratégias as recorréncias nas formas
de acao — escolhas dos conjuges, dos herdeiros das terras — que ganhavam sentido como
respostas (socio)légicas a outros complexos de interesses, como a melhor transmissao do
patrimonio, a manutencao biologica da linhagem on a reproducao da forca de trabalho.
Ao conceber as estratégias de reproducao social como sistema formado por um conjunto
de diferentes e'stratégias -— de fecundidade, sucessorais, educativas, matrimoniais, profilaticas,
economicas, de investimento social, de sociodiceia — e situa—las no vértice de seu instrumen
tal,
Bourdieu explicita uma concepcao da sociologia como, em grande medida, o estudo da reproducao
social. A perspectiva do 111m social e de seus espacos especificos (campos) como lugar no quais
grupos de agentes desigualmente dotados de recursos lutam pela manutencao ou melhorarnento
de suas posicoes relatives esta, assim, na base do emprego da nocao de estratégia como chave
para a compreensao do modo de reproducao dominante em cada sociedade.
Embora cada campo determine em maior ou menor grau as modalidades de sua re—
producao, duas légicas principais orientam as estratégias de reproducao. De um lado,
uma
légica doméstica que tende a favorecer a integracao e a distincao do grupo familiar pelo
entretenimento de relacées de parentesco e o acfimulo de um capital simbo’lico encarnad
o
no nome da familia e na reputacao, associada primordialmente a sociedades sem Estado
on em que este é pouco desenvolvido. Em tais configuracées, as diferentes estratégias de
reproducao ~ com forte peso das estratégias matrimoniais, mas também das sucessorais e
economicas — tendem a ser coordenadas como forma de garantir a posicao de todo o grupo
familiar e de preservar seu capital simbélico. De outro lado, uma légica regida pela Vigéncia
de instituicoes e mecanismos objetivos que mediatizam a distribuicao de diferentes tipos
de recursos (titulos escolares ou economicos, por exemplo) e 05 fazem valer em mercados
impessoais, caso das sociedades estatais em que a dominacao legitima~se com base
em
principios universais e abstratos. Nestes universos sociais estruturados fundamentalment
e
em torno da distribuicao do capital economico e do capital cultural e caracterizados ainda

190 ESTRATEGIAIESTRATEGlAS DE REPRODUCAO


pela existéncia de tipos especificos de recursos segundo os diferentes campos, as estratégias
de reproducao dependem progressivamente do acesso a instituicoes reguladas pelo Estado,
sabretudo o sistema escolar. No entanto, como demonstrado especialmente em La noblesse
d’Etat (1989), essas duas légicas do sistema derreproducao podem combinar-se, come 0 atesta
a perpetuacao da logica da fa'rnflia em certos espacos regidos, em principio, por mecanismos
impessoais, como é 0 case do espaco escolar.
As formas e o grau com que os agentes e 05 grupos utilizam as estratégias de reproducao variam
em funcao do volume e da estrutura do patrimonio de recursos dispom’vel. Isso se reflete nas
diferentes propensoes que tém a investir em determinadas atiuidades ou mercados, como nos
estudos, em atividades economicas on financeiras on no acfimulo de relacoes pessoais. Desse
modo, por exemplo, quanto mais rico em capital economico um agente ou grupo for, menos depen~
dera do capital cultural para sua reproducao — logo, menor sua propensao a investir em diplomas
. escolares e a se submeter a logica do sistema escolar como forma de assegurar a perpetuacao do
patrimonio. lnversamente, uma menor dotacao em capital economico tende a se refletir num
maior e mais intenso investimento no dominio dos mecanismos e recursos oferecidos pela escola.
Em situacoes de ameaca de desvalorizacao dos capitais detidos por determinados gru-
pos — como as revolucoes ou mudancas de regimes —, as estratégias de reconversao social
aparecem como saida face a impossibilidade de manutencao da posicao no estado anterior ,
de estruturacao do espaco social. As reconversées de espécies de capital em processo de
desvalorizacao (titulos de nobreza) em outras espécies mais rentéveis ou legitimas (diplomas
social do
I universitérios) implicam, portanto, ao mesmo tempo, uma constancia na posicao
grupo e uma alteracao substancial no conteudo de suas propriedades}

Referéncia ,
4-5,
yBOURDIEU, P. Les stratégies matrimoniales dans le systéme de reproduction. Annales, v.
p. 1105-1127, 1972.

axeawu (social e mental) Ana Paula Hey

A nocao de estrutura acompanha o pensamento de Bourdieu desde seus estudos iniciais,


representando estreito diélogo com as bases da sociologia e da etnologia, mas, ainda, com os
terrenos empiricos originérios de exposicoes acerca do camponés cabila ou beamés e das alteracoes
em seu modo de producao e de reproducao (expostos, entre outros, em Esquisse d’une théorz'e
de la pratique e em Le sens pratique). O mundo social passa a ser objeto de entendimento a
partir da relacao entre suas divisoes objetivas 6 OS esquemas de percepcao, de pensamento e de
acao instituidos nas préticas. Tal preocupacao, que assume facetas relacionadas a seus trabalhos
especificos, é sistematizada na introducao de seu livro La noblesse d’Etat, publicado em 1989.
A0 evocar a relacao entre estrutura social/objetiva e estrutura mental/cognitiva, o autor traz
a tona a constituicao dos esquemas geradores de classificacoes e de praticas classificatérias que
funcionam em estado prético por serern produtos da incorporacao de uma posicao social. Como
méquinas cognitivas, os agentes n50 sao simplesmente o efeito de uma estrutura, pois estao

ESTRUTURA (social e mental) 191


engendrados na construcao de um espace amalgamado resultante de percepcoes e acoes anterio-
res. O desafio sociologico reside em apreender em que medida ha 0 acordo entre as categorias de
percepcao e de acao empregadas nos ates individuais e as estruturas de um espace social, sendo
tais categorias produto da incorporacae destas estruturas. Explorar a correspondéncia entre as
divisées objetivas — entre es dominantes e 03 dominados nos diferentes campes — 6 0s principios
de visao e divisao acionados pelos agentes permite abordar es processes de naturalizacae e de
submissio a uma ordem, bem come 0 encontro entre as expectativas dos agentes e seus sistemas
,
de preferéncia come cumplicidade a um espaco forjado para a realizacfio de seus interesses.
Nae é por outra razao que no posfécio de um livre anterior, cujo fece é o campe universitérie,
afirrna: “Se es agentes centribuem efetivamente para construir as estruturas é, a cada memento,
nos limites dos constrangimentes estruturais que se exercem sobre seus ates de construcao ae
mesme tempo de fora, através dos determinantes asseciados asua posicae nas estruturas objetivas
e, de dentro, per meio das estruturas mentais — per exemple, as categorias do juizo professoral —,
que organizam sua percepcéo e sua apreciacao do inm social” (HA, 293).

Gisele Sapiro

Formado em filesofia, Bourdieu orientou—se para a etnolegia no memento em que 0 es— V


truturalisrno se impunha cerno paradigma dominante nas ciéncias humanas e sociais. Se sua,
obra é intensamente marcada per esse paradigma sob determinades aspectos, em particular
0 interesse pelos sistemas simbolices e pela abordagem relacional, ela construiu-se também
no confronto e na critica a um grande nfirnero de seus pressupostes.
Na introducao de seu livre, Le sens pratique (1980), Bourdieu evoca e “cheque insepara-
velmente intelectual e emocional” que havia representado para ele a leitura de Race at histoire
(1952) de Claude Levi-Strauss: longe de qualquer etnocentrismo, esta ebra analisava as mito—
legias dos indies americanos corno uma linguagem de pleno direito, em urn memento em que
Bourdieu estava envolvide tetalmente em pesquisas sebre a sociedade cabila no amago de uma
Argélia em guerra. E, de fate, Bourdieu deve ao estruturalisme — mas tambérn a Durkheim,
Mauss e Cassirer ~ a atencao prestada aes sistemas sirnbelicos, dissirnulades muitas vezes pelas
abordagens funcionalistas. E de maneira mais manifesta em sua contribuicao para a coletanea
de textos, Mélanges, em hemenagem a Levi-Strauss — cujo seminério Bourdieu frequenteu na
Escola de Altos Estudes em Ciéncias Seciais, ao reternar a Franca —, que se observa a marca
do métode estrutural na elaboracao de sua obra. Intitulado “La maison kabyle ou le monde
renversé” (BOURDIEU, 1970), esse texto, que expee o sistema de oposicees simbelicas que serve
de estrutura a casa cabila, constitui urn modele do género. Nele, Bourdieu mostra que a 0pe~
sicae mitica entre masculine e feminine sustenta tal estrutura, opondo 0 interior ao exterior,
a obscuridade a luz, o umide a0 sece, a natureza a cultura. A proposito desse texto, redigido
em 1963, Bourdieu diré que ele tinha side seu “ultimo trabalho de estruturalista feliz” (SP, 22).
Ne; entante, para além do interesse peles sistemas simbélicos, a aberdagem relacienal
que o estruturalismo opoe tanto a0 essencialismo que naturaliza a ordem social quanto ao
funcionalismo que reduz o sentido a funcao iré marcar vigeresamente a ebra de Bourdieu.

192 ESTRUTURALISMO
A tal pento que ele ira opera-la no nivel 1150 so dos sistemas de representacoes, mas também
das relacees sociais. Em 1968 publica 11a revista Social Research um artigo dedicado ao es-
truturalismo, no qual expoe a contribuicao epistemolégica desta corrente para a socielegia e,
em seguida, desenvolve a prépria abordagem relacional da realidade social (BOURDIEU, 1968).
O estruturalismo rompe com o procedimente substancialista a0 interpretar es elementos
come parte de um sistema de relacees, ‘as quais eles ficam devendo suas propriedadese sua
significacao social. O que é vélide r1510 56 para as representacées sociais mas também para as
relacoes objetivas entre os sujeitos, que 1150 550 redutiveis as interacoes nem a intersubjetividade:
existem relacoes objetivas entre agentes que nunca chegaram a se encontrar, a semelhanca do
s
» que ocerre entre as pessoas instruidas e aquelas que 1120 0 sale. 0 sentido que os individue
eriundes de diferentes classes atribuem a suas praticas, “vulgares” ou “distintas”, é mediado
pelo sistema das relacoes objetivas que os une naquile que os diferencia. Assim, enquanto o
marxismo considerava os sistemas simbélicos come superestruturas das relacoes economicas,
Bourdieu vai integra-los a uma economia das préticas, em que o simbélico e o economice
em fun—
interagem para estruturar o espace social, de acordo com oposicoes hierarquizadas
céo da significacao e do valor que lhes sao atribuidos em determinada configuracao social, e
transforméveis de acorde com os principles da homologia estrutural.
Ne entanto, es limites e as contradicoes inerentes ao me’tedo estrutural foram sendo detecta-
des, aos pouces, per Bourdieu, no memento em que ele tentava aplica—le as praticas dos cabilas,
conforme sua descricaona introducao de Le sens pratique (1980). Sen esforco para encentrar
ex—
uma ceeréncia perfeita estava votade, com efeito, ao fracasso porque, de acorde com sua
plicacao em Esquisse d’une the’orie de la pratique (1972), OS sistemas simbélico s sao regides
a
per uma coeréncia prética e 1150 logica. Assim, os elementos inclassificéveis que dificultam
ivos per sua propria ambiguid ade. A
sistematizacao das homologias estruturais sao significat
busca de uma coeréncia logica precede, segundo Bourdieu, de um erro intelectualista tipico, a
acéo
saber, a propensao a transformar o “modelo” construido pelo pesquisador na origem da
dos individues, ou seja, no principie que determina ria a sua prética. Tal erro reside na passagem
per
' das regularidades observadas para a “regra”, concebida ora come “norma” (juridicisrno) —
(1948) —,
exemplo, na ebra de LéVi—Strauss sobre Les structures e’le’mentaires de la parente’
ele
Ora come “modelo” que orienta inconscientemente as condutas. A critica do que, mais tarde,
definira come um “viés escolastico”, devide a posicao privilegiada do pesquisado r, que usufrui
do tempo da reflexao, esté 11a origem de uma teoria sobre a prética que atribui a0 corpo um lugar
central na producéo de condutas mais ou menos ajustadas ‘as situagoes. Em vez dos conceitos
de “regras” e de “modelos”, Bourdieu propée assirn es de “estratégias-” e de “esquernas”, cujo
operader e’ e habitus, estruturas incorporadas sob a forma de disposicées que orientam a acae.
Além do erre intelectualista, o estruturalismo peca, na epiniée de Bourdieu, por seu duplo
preconceite antigenético e antifuncionalista, de que é acusado per seus adversaries existen-
cialistas e marxistas. Per um lade, o estruturalismo se desinteressa da génese das estruturas
objetivas e das estruturas interiorizadas peles agentes; per outre, ele eculta as funcées sociais,
econémicas e politicas que es sistemas simbélices desempenham 11a reproducao da ordem
social. Eis a razao pela qual, a partir de meades da década de 1960, Beurdieu se distancia
do estruturalismo. Em novembre de 1966, ele participa da edicae especial que Les Temps
Modernes, a revista de Sartre, dedica aos “pr'oblernas do estruturalismo”, abordando questoes

ESTRUTURALISMO 193
como a relacao entre estruturas e mudanca ou, ainda, estruturas e préxis. Bourdieu publica,
entéo, seu artigo “Champ littéraire et projet créateur”, no qual o coordenador da edicao, Jean
Pouillon, vé a prova de que “a préxis e a causalidade estrutural nao sao antinémicas, mas
complementares e vinculadas inextricavelmente” (BOURDIEU, 1966, p. 789), articulando as pro-
priedades dos elementos situados em um campo estruturado com propriedades de posicéo. Esse
artigo, posteriorinente renegade por Bourdieu em decorréncia do fato de estar ainda marcado
demais pelo interacionismo simbolico, lanca as primeiras bases da teoria dos campos enquanto
espacos de posicoes definidas por relacées de afinidade e de oposicao, teoria que Bourdieu vai
sistematizar por meio da combinacao entre método estrutural e anélise topological. Assim, os
campos se caracterizam pela oposicao entre os individuos que ocupam posicoes dominantes ~
e aqueles que ocupam posicoes dominadas. Na mesma época, ele comeca a aplicar o método
estrutural a todo o espaco social para pensar a diferenciacéo das pra’ticas e das representacoes
em funcao da distribuicéo desigual das diferentes espécies de capital (economico, cultural,
social), procedimento que culminara na elaboracao de La distinction (1979).

Referéncias
BOURDIEU, P. Champ intellectuel et projet créateur. Les Temps Modern es, n. 246, p. 895906, nov. 1966.
BOURDIEU, P. Structuralism and Theory of Sociological Knowledge. Social Research, v. XXXV, n. 4,
p. 681—706, 1968.
BOURDIEU, P. La maison kabyle ou le monde renversé. In: POUILLON, L; MARANDA, P. (Org).
Echanges et communications. Mélanges ofi'erts d Cl. Lévi—Strauss pour son 60“" anniversaire. . V
Paris-La Haye: Mouton, 1970. p. 739-758.
BOURDIEU, P. Esquisse d’une théorie de lapratique, pre'ce’de’ de Trois études d’ethnologie kabyle
~ Le sens de l’honneur; La maison ou le monde renverse’; La parenté comme representation et comme
volonté. Genévez Droz, 1972. [Nova ed. aum. Paris: Seuil, 2000].
LEVI—STRAUSS, C. Les structures e’lémentaz’res de laparente' (1948). Paris: Editions de l’Ecole des Hautes
Etudes en Sciences Sociales, 2002.
LEVI-STRAUSS, C. Race et histoire. Paris: 1952. [Nova ed. Paris: Gallimard, 2007].
LES TEMPS MODERNES. Paris, 11. 246, nov. 1966. Textos de Jean Pouillon, Marc Barbut, A. I.
Greirnas, Maurice Godelier, Pierre Bourdieu, Pier_re Macherey, Jacques Ehrmann.

Ver: Habitus I

194 ETHOS
97. FAMlLlA
Fran§0i5 de Singly

Na colegao Le Sens Commun (Editora Minuit), dirigida por Pierre Bourdieu, os indices
teméticos eram objeto'de um trabalho muito cuidadoso. Ora, no que se refere aos livros do
sociélogo — nem em Les héritiers (1964), nem em La reproduction (1970) —, o termo “familia”
figura nos respectivos indices. Tal ocorréncia pode parecer algo estranho, a posteriori, uma
vez que nessas duas obras é analisada a transmissao do capital cultural no seio da famflia
entre pais e filhos. Se nos permitimos fazer uma leitura sintomética, apreciada por Louis
Althusser, temos realmente o direito de nos questionar sobre essa auséncia. Nas décadas de
1960-1970, a utilizagao desse termo era entendida na Franga — pelo menos, para a esquerda
- como algo que fortalecia essa instituigao e indicava urna posigéo “familiarista” de quem
viesse a servir-se de tal palavra. Bourdieu, a semelhanga de numerosos sociologos franceses,
preferia o termo "classes”.
Pelo que sabernos, foi necessério esperar pelo nfirnero 100 da revista ARSS (1993) para que
Bourdieu utilizasse essa palavra no titulo de um de seus artigos: “A propos de la famille comma
catégorie réalisée”. Tudo se passa como se a relagao distante de Bourdieu com a'categoria
“familia” tivesse por funqéo evitar sen fortalecimento, como se, a0 contornar essa palavra,
ele tentasse nao perpetuar a ordem social desigual, cuja criagao conta com a contribuigao
dessa instituigao. A semelhanga do que ocorre corn qualquer luta simbolica, o evitamento
constitui, por si 56, um fator a ser considerado. Algurnas décadas mais tarde verifica-se a
, reviravolta da situagao ideologica, jé que se trata, pelo contrério, de fornecer uma existéncia a
“familias sem nome” (BOURDIEU, 1996): desde ’éntéo, o uso do termo torna-se progressivo. E
no século XXL nos darnos conta de que a expressao “famflia homoparen’ral” constitui, de fato,
um reconhecimento social a0 conectar essa maneira de organizar a Vida privada a famflia
“de papel passado”. Esse longo evitamento n50 impede Bourdieu de propor, implicitamente,
desde o cornego de sua obra, uma sotiologia da familia.
Para Bourdieu, a visao da sociedade, de todas as sociedades, é centrada nas desigualdades
6 na maneira como elas se produzem e se reproduzem. Nesse quadro, a familia ocupa, apesar
da quase auséncia do termo, uma posigao central. Desde Les héritiers e La reproduction, a

FAMILIA 195
funcao da familia esté posta: a de contribuir para a reproducao das relacoes sociais, em dois
aspectos: nao somente pela transmissao de uma heranca cultural, mais ou menos proxima
da cultura escolar legitima, mas também pela naturalizacao que ela opera sob o disfarce dos
dons que dissimula o trabalho social da heranca. No entanto, foi necesséria uma segunda
etapa, com a publicacao de dois artigos — “Les stratégies matrimoniales dans le systérne de
reproduction” (1972) e “Avenir de classe et causalité du probable” (1974) -, para que o couceito
central da sociologia da familia em Bourdieu fosse apresentado: o das estratégias de repro-
ducao e, de forma mais precisa, 0 de “sistema das estratégias de reproducao”. Trata—se “de
sequéncias objetivamente ordenadas e orientadas de praticas que todo grupo deve produzir
para reproduzir—se enquanto grupo” (BOURDIEU, 1974, p. 32). O termo “objetivamente” é
importante porque essas préticas “desempenham sempre, em parte, funcoes de reproducao:
quaisquer que sejam as funcoes que seus autores on o grupo em conjunto lhes atribuam ofi-
cialmente, elas sao objetivamente orientadas para a conservacao on o aumento do patrimonio
e, correlativamente, para a manutencao ou melhoria da posicao do grupo dentro da estrutura
social” (BOURDIEU, 1974, p. 30).
Bourdieu estabelece a distincao entre as estratégias “negativas de reproducao que visarn
evitar o esfacelamento do patrimonio”, incluindo as estratégias de fecundidade, e as estratégias
positivas, tais como as estratégias sucessoriais, as estratégias educativas e, nomeadamente,
as escolares, as estratégias profilaticas destinadas a proteger 0 capital “sadder”, as estratégias
propriamente economicas, as estratégias de investimento social para acumular capital social,
as estratégias matrimoniais e, por fun, as estratégias ideolégicas para tornar legitima a posse
do capital. Essas estratégias formam um sistema, “cada nova estratégia encontra seu ponto
de partida e seus limites no produto das estratégias anteriores” (BOURDIEU, 1974, p. 34). E
possivel apresentar, como exemplo de articulacao das estratégias em conjunto, a escolha do
domicilio: ela determina tanto escolha do estabelecimento de ensino para os filhos como a
configuracao do capital social posto a disposicao deles.
Em um terceiro momento, corn seu estudo sobre “Le patronat” (1978), Bourdieu introduziu
um elemento histérico em sua anélise das estratégias de reproducao, o que ele designa como
“o modo de producao com dominante estolar”. Nas sociedades tradicionais, 0 capital de refe-
réncia para ocupar uma posicao e justificé—la é 0 capital economico (em particular, a terra ou
um comércio); nas sociedades modernas, 0 capital de referéncia torna—se progressivamente 0
capital escolar. No modo de reproducao com componente economica e com dominante familiar,
o poder da familia é mais robusto porque ela “tern o dominio das escolhas sucessorais, ou
seja, o poder de designar [...] aqueles que estao destinados a reproduzir a classe corn todas
as suas propriedades on a serern excluidos da classe” (BOURDIEU, 1978, p. 23). No modo de
reproducao corn componente escolar, predomina uma logica estatistica: “Diferentemente da
transmissao direta dos direitos de propriedade entre o detentor e o herdeiro designado pelo
préprio detentor, a transmissao operada por intermédio da escola apoia-se na agregacao esta—
tistica das acoes isoladas” e “garante a classe, em seu conjunto, propriedades que ela recusa a
este ou aquele de seus elementos considerados separadamente” (BOURDIEU, 1978, p. 25). Sob o
modo. de producao com dominante escolar, a familia perde objetivamente poder, mesmo que
ela procure compensar essa perda mediante a implementacéo das estratégias de reproducao
escolar. As relacoes no interior da familia, a hierarquizacao dos/das filhos/as de acordo com

196 FAMILIA
seu destino provével de herdeiros, alteram~se de acordo mm o modo de producao. Segundo
Bourdieu, as mudancas na familia derivam, antes de mais nada, das alteracoes no rnodo de
producao e de reproducao da sociedade.
No artigo “Strategies de reproduction et modes de domination” (1994), Bourdieu coloca
’ uma questao, pouco presente'nos outros textos escritos por ele: “Quem é, afinal de contas,
o ‘sujeito’ das estratégias de reproducao?” (p. 11). Com toda a clareza, ele responde que “o
‘sujeito’ da maior parte das estratégias de reproducao é a famflia, que age como uma espécie
de sujeito coletivo e nao como urn simples agregado de individuos” (BOURDIEU, 1994). Essa
_ tomada de posicéo apoia-se no pressuposto segundo o qual a familia esta unida, integrada; e
, as “forces de fusao” levam a melhor em relacao as “forcas de fissao”. E possivel se questionar,
no entanto, sobre a pertinéncia de tal pressuposto quando se conhece a taxa de separacao e
de divorcio dos casais. Para Bourdieu isso significa, sem dfivida, que “as transformacées das
estratégias de reproducao tendem a reduzir a necessidade da unidade doméstica”. Se isso é
verdade, seria necessario, no minimo, modificar o tipo de enunciado jé que se torna inexato
considerar “a familia” (enquanto grupo homogéneo) corno “sujeito”. Pode-se também pensar
que outros elementos sociais — notadamente o processo de individualizacao (SINGLY, 2010)
- venharn a produzir perturbacoes nas estratégias de reproducao familiar e, portanto, que
ha certa disjuncao entre as familias e 05 imperativos da reproducao. , ,

Referéncias
BOURDIEU, P. Les strategies de reproduction dans le systeme de reproduction. Annales ESC, V. 27,
11. 4—5, p. 1105—1125, 1972.
BOURDIEU, P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Frangaise de Sociologie, v. XV, n. 1,
p. 3-42, 1974.
BOURDIEU, P.; SAINT MARTIN, M. de. Le patronat. ARSS, p. 3—83, 1978.
BOURDIEU, P. A propos de la famille comme catégorie réalisée. ARSS, v. 100, p. 32-36, 1993.
,BOURDIEU‘, P. Strategies de reproduction et modes de domination. ARSS, v. 105, p. 342, 1994.
BOURDIEU, P. Des families sans nom. ARSS, v. 113, p. 3—5, 1996. I
SINGLY, F. de. Sociologie de lafamz’lle contemporaine. 4.ed. Paris: A. Colin, 2010.

Ri'EENQMENQEQG'A ..............................................
Iosé Luis Moreno Pestafia

E possivel rastrear em trés pianos a vinculacao de Bourdieu com a fenomenologia. Por


um lado, (1) Bourdieu torna partido nos debates fenomenologicos que conheceu durante seu
periodo de formacao e, desse modo, formula sua prépria filosofia. Por outro, (2) Bourdieu
utiliza sua formacao fenomenologica para se distanciar das filosofias do mundo social de
seus concorrentes no campo da sociologia. Por ultimo, (3) Bourdieu utiliza as ferramentas
da fenomenologia para produzir problemas empiricos que determinam corn precisao nosso
conhecimento do mundo social.
1) Bourdieu escolheu Jean-Paul Sartre como exemplo de uma filosofia subjetivista do
mundo social. Sartre — segundo Bourdieu - converte os papéis sociais em resultados do projeto

FENOMENOLOGIA l97
pessoal dos sujeitos. Diante dele, Bourdieu considera que os postos que os agentes ocupam,
com uma trajetéria especifica, 3510 o resultado de uma histéria coletiva personificada tanto nas
funcoes sociais como nos corpos. A uniao entre a histéria feita corpo e a histéria feita coisa
so em rarissimas ocasiées se converte em objeto de realizacéo intelectual. Semelhante critica
a Sartre mostra como Bourdieu critica certas versoes da fenomenologia com ferramentas —
sociologicamente elaboradas ~ oriundas de outras modificacées da mesma. Em um texto — no
qual a critica mordaz contra Sartre acompanha uma severa revisao, entre outras, da filosofia
de Althusser e Foucault ~ 0 préprio Bourdieu declara que sua concepcao do vinculo intimo
entre o agente e o mundo é uma declinacéo sociolégica daquilo “que o Heidegger dos liltimos
escritos e Merleau—Ponty (especialmente em Le visible et l’invisible) tentaram exprimir na
linguagem da ontologia, quer dizer, um aquém ‘selvagem’ ou ‘barbaro’ ~ eu diria simplesmente
prético - da relacao intencional com o objeto” (BOURDIEU, 1980, p. 7).
2) Pode-se ver - e passamos a segunda dimensao — que Bourdieu utiliza suas compe—
téncias corno filésofo para pensar a filosofla implicita no trabalho sociologico. Assim, e
continuando com o problema anterior, ele considera que todo juizo de um agente constitui
uma liga variével entre juizo reflexivo e tendéncias pré—reflexivas. Um individuo pode, por
exemplo, conscienciosamente, decidir como se vestir para parecer mais elegante. De tal pro—
cesso se deduz que esse sujeito atuou reflexivamente e, portanto, corno urn agente racional?
Nao. Certamente o sujeito nao se veste de uma forma automética: para es que sao incapazes
I
de detectar as coacées sociais que nao se expressam de modo mecanicista, isso testemunha.
sua liberdade e sua reflexividade. N50 obstante, na base da atividade eletiva se encontram
juizos cujas “pregacoes” em absoluto se revisam e que permitern e condicionam a atividade
subjetiva: em nosso exemplo, o juizo de que a vestimenta é algo que serve para aparentar e
r1510 para estar confortavel. Esse modo de tratar o problema da vinculacao entre liberdade
e determinacao, atividade e passividade, procede de uma tradicao fenomenologica que tem
origem ern Husserl. Para ela, os juizos que conduzem nossa atividade tém diferentes graus
de formalizacaoz temos alguns completamente bem definidos e explicitos, outros se alojam
obscuramente ern nés e definem a realidade que nos desmente com uma distorcao peculiar.
Ambos os tipos de juizos se comunicam entre si e 1150 é facil discernir quanto ‘a atividade coti—
diana do agente deve a um e a outro (HERAN, 1987, p. 407-408). Nela, as tendéncias do habito
e as decisées criativas se superpoem de modo instével. A bagagem filosofica de Bourdieu lhe
permite, desse modo, complicar a diferenca filos‘éfica entre liberdade e necessidade que faz o
que quer — ocasionalmente de maneira despercebida — em muitos debates das ciéncias sociais.
3) Essa complicacao teérica ajuda Bourdieu a interrogar melhor os casos de figura que
se apresentam no trabalho empirico. Dado que os agentes tém graus variéveis de distancia
e de absorgao por suas labutas, 0 habitus se apresenta corn diferentes graus de integracao
interna, resultado de uma dialética complexa com a posicao social que ocupa. Portanto, a
vinculacao entre o habitus e seu lugar no mundo pode set: a) de co-pertenca absoluta; b) de
decalage entre umas disposicoes, resultado de uma trajetéria social e um mundo que, a0 56
transformar, jé nio as acolhe; c) de suspensao momenténea da identificacao e, portanto, de
abertnra de certo grau de indeterminacao em uma atividade que até entao funcionava sem
questionamento; (1) de insercao diferente segundo os dominios de atividade nos quais se (16*
senvolve o agente — em alguns pode estar vinculado absolutamente com seu papel, enquanto

198 FENOMENOLOGIA
que em outros pode se distanciar — on segundo a posieao no espago social que ocupa — uma
' pessoa que quer modificar sua posigao social tende a revisar os “prirneiros movimentos” de sen
habitus corn muito mais precisao que aquela que se sente intensamente alegre ou fatalmente
destinada a um tipo de Vida (MP, 184-193).

Referéncias
BOURDIEU, P. Le mort saisit le vif: les relations entre l’histoire réifiée et l’histoire incorporée. ARSS,
11. 32—33, 1980.
HERAN, F. La seconde nature de l’habitus: tradition philosophique et sens commun dans le langage
sociologique. Revue Frangaise de Sociologie, v. XXVHI, 1987.

99. FILOSOFIA
Louis Pinto

Um dos mais importantes pressupostos da pratica de Bourdieu enquanto sociélogo é


o que poderia ser denominado como um racionalisrno nao intelectualista que consiste em
defender, por um lado, que a sociologia é uma disciplina cientifica portadora de pretensoes de
objetivagao muito ambiciosas, nao recuando diante da conquista de novos objetos, amplos ou
minfisculos, nobres on humildes; e, por outro, que essa ciéncia deve ter como objeto 0 sense
prético, do qual ela difere, senao radicalmente, pelo menos, de forma bastante sensivel. Os
principais classicos de referéncia de Bourdieu sao, em relaeao a corrente‘racionalista, Descar-
tes, Spinoza, Leibniz e Kant; quanto a filosofia e a historia das ciéncias, ele se refere a Gaston
Bachelard e Georges Canguilhem. Enfim, sens pensadores da pratica sao Pascal, Hume, Marx
(o jovem), Husserl, Heidegger, MerleauuPonty, Wittgenstein, Austin.
Racionalista na contracorrente, Bourdieu nunca cedeu ao jogo perigoso do humor filo-
séfico p63—moderno, da French theory, da desconstrugao que tinha como alvo os absolutos
do pensamento “ocidental”, quais sejam, a razao, a verdade e a ciéncia. Evitou tal postura,
em primeiro lugar, devido a seu ethos intelectual que o privava de qualquer crenea na illusio
académica, incluindo suas variantes radicais e, em segundo lugar, por convicgao progressista,
na medida em que a defesa do progresso social estava, para nao dizer arruinada, pelo rne-
nos, seriamente enfraquecida a0 prescindir dos apoios da razao e do universal. As ciéncias
historicas nao sao em si relativistas nem irracionalistas e, apesar de “derrubarem a ilusao da
transparéncia de uma razao trans—histérica e transpessoal”, elas tern o insubstituivel mérito de
“permitir o prolongar e radicalizar a intenqao critica do racionalisrno kantiano” (MP, 143). O
racionalisrno nunca e’ denunciado, mas somente repensado ern fungao do acervo de conheci—
mentos de uma sociologia que é efetivarnente sua ilustragao e que incentiva a envolver-se na
via original de um “historicismo racionalista” e, até mesmo, de uma “Realpolitik da razao”,
preocupada em inscrever concretamente na vida civica as normas do debate democrético
e do intercambio critico. Bourdieu insere-se na linhagem do “racionalismo aplicado” de
Bachelard: o sociologo dispoe, necessariamente, de “pressupostos teéricos” e sua tarefa, em
vez de ignora-los, consiste em explicité-los no decorrer do trabalho de construgao do objeto,
em retifica—los e envolvé-los em uma pratica concreta de pesquisa. ‘

FILOSOFiA 199
“Decidi discutir certas questées que teria preferido deixar por conta da filosofia porque
me convenci de que ela mesma, alias tao questionadora, 1150 as abordava” (MP, 9). Portanto, '
nao se deve esperar algo corno uma filosofia de Bourdieu, a nao ser uma “filosofia negativa”,
semelhante ao procedimento critico-terapéutico de estilo wittgensteiniano em que o impor—
tante é livrar-sc dos “feiticos da linguagem” e clarificar os usos.
A contribuicao do sociélogo para a filosofia negativa, de que fala Bourdieu, é, em primei- .
ro lugar, a sociologia da filosofia que se interessa pelos fundamentos sociais dos conceitos
e problemas. Pelo fato de questionar o efeito de autonomia e de confinamento peculiar a tal
universo erudito, essa sociologia nao é certamente para ele uma “mera preliminar cujo unico
proposito seria introduzir a uma critica propriamente filoséfica mais radical e mais especifica”
(MP, 41): sua conviccao é a “de que nao existe atividade mais filoséfica [...] do que a analise
da légica especifica do campo filosofico, das disposicoes e crencas socialmente reconhecidas
como ‘filosoficas’ que ai se engendram e se realizam” (MP, 40).
Em vez de desqualificar a filosofia, o objetivo de Bourdieu consiste apenas em recusar-lhe
o estatuto, frequenternente reivindicado, de excecao e, portanto, em favorecer sua libertacao
em relacao a contingéncia de uma histéria desconhecida e a seu inconsciente académico. Ao
aristocratismo espontaneo do filésofo, Bourdieu opoe o caréter fundamentalmente demo-
crético da sociologia que se ocupa de pessoas e coisas ordinérias corn meios desprovidos de
prestigio e de‘mistério. Trés temas estao estreitamente ligados: o senso prético, a critica da
razao escoléstica e um racionalismo historicista. V
Em Pascal, sob a égide do qual foi escrito Me’ditations pascaliennes (1997), Bourdieu ,
encontrou argumentos sobre o poder simbolico e sobre o “cancelamento da ambicao do
fundamento”. Pascal mostra, contra os poderosos, a forca dos costumes e das ceriménias;
contra os cientistas, a importancia do pensamento comum e da prética. Finalrnente, em
uma reviravolta do pro a0 contra, mostra a multiplicidade dos pontos de vista: “0 povo tern
opinioes muito sadias: por exemplo [...] de ter escolhido o divertirnento e a caca em lugar
da poesia. Os semieruditos zombam e triunfam em mostrar corn isso a loucura do mundo;
mas, por uma razao de que nao se dao conta, o povo tern razéo” (PASCAL, 1976, p. 141—142).
A ciéncia enquanto ciéncia é construida,-sobretudo contra os semieruditos e 1150 contra o
povo, cujas “opinioes sadias” encerram alguma razao que, nao sendo ciéncia, tem a ver com
uma ciéncia liberada de seu menosprezo para com os profanos.
Aqueles que tém a profissao e a ambicao de pensar o mundo, entre os quais os filésofos,
consideram sua atividade como uma evidéncia que nao exige nenhurna reflexao particular
(basta uma evocacao ritual a0 “estalo” do filosofo, segundo Platao). Como o mundo lhes aparece
espontaneamente como objeto de pensamento, eles omitem de levar em consideracao as con-
dicoes sociais de possibilidade relativamente a atividade de pensar que esté longe de ser dada a
todos e a qualquer momento. A relacao teérica com 0 Lnm nao passa de uma possibilidade
socialrnente determinada que deve ser colocada em contraste com a relacao prética marcada
pela pressao das coisas, pela urgéncia, pela implicacao do agente no que ele vé e faz. A consta-
tacio desse dualismo redunda em um reforco da vigilancia critica: o teorico ~ que é 0 status,
propriamente falando, do sociélogo — deve se esforcar em controlar os efeitos da postura de
conhecirnento sobre o objeto de conhecirnento ou, mais simplesmente, em reconhecer que em
relacao ao m'undo o ponto de Vista dos agentes nao é 0 do observador desinteressado.

200 FILOSOFIA
Se a ciéncia é uma obra humana — e, nessa qualidade, frégil e falivel -, como sera possivel
o conhecimento da verdade? Como escapar a alternativa do realismo metafisico e do relati-
vismo? O campo é gerador de skholé, condicao social da aparicao de uma postura teorica,
“forma de Vida” dedicada inteiramerrte a0 conhecimento desinteressado. O campo, criacao
histérica, oferece “o principio da independéncia relativa da razao perante a historia, da qual
é o produto” (MP, 130—131), on seja, a solucao para o problema tradicional das relacoes entre
a histéria e a verdade, entre o fato e o valor, entre a atividade de pesquisa e a objetividade.
Bourdieu serve-se, de bom grado, de oximoros: “[...] as ciéncias sociais, assumindo sern
subterffigios a historicidade radical da razao e encharcadas pela prova da historicizacao
permanente, poderiarn tornar—se o sustentaculo mais seguro de um racionalismo historicista
ou de um historicismo racionalista” (MP, 145).
Esse racionalismo radical nada cede ao valor intrinseco dos bens produzidos em um campo,
mas defende que os locais de producao tém um estatuto fundamentalrnente histérico. “Se
existe uma verdade, é o fato de a verdade constituir um movel de lutas” (MP, 140). A verdade
é engendrada na histéria por urna luta, por um confronto que tern uma logica virtuosa: a0
lutarem para se impor no campo, os agentes travam seu combate apenas‘em conformidade
com o nomos préprio do campo, esforcando-se para que os pares ou concorrentes venham
a reconhecer seus conceitos e argumentos como dotados de valor.

Referéncia ~
PASCAL, B. Pense’es. Paris: Garnier7Flammarion, 1976.

100. FOTOGRAFIA

Ver: Art moyen (Un): essaz’ sar les usages sociaux de la photographie

101.FOUCAULT, MICHEL (7 926-7984)


Marcos César Alvarez

Diversos comentadores ja indicaram as afinidades existentes entre os percursos intelectuais de


Pierre Bourdieu e de Michel Foucault. Tanto a perspectiva historico—filoséfica, adotada por Foucault,
quanto a sociologia da cultura, desenvolvida por Bourdieu, buscararn romper com as tentacées
fundacionistas da tradicao filosofica, diversificar os objetos sociais de investigacao considerados
legitimos e transferir questoes da filosofia para o plano da investigacao empirica (PINTO, 2000, p. 31).
A constelacao intelectual em que se moviam tambérn era préxima. Em “Fieldwork in
Philosophy”, embora Bourdieu afirmasse que estava separado de Foucault em termos geracio-
nais, tendo inclusive sido seu aluno, admitia, em contrapartida, que compartilhava de muitas
das mesmas disposicoes intelec’cuais do filésofo que havia estudado a loucura e as prisoes (CDp).
A referéncia a0 estruturalismo, ainda segundo Bourdieu, seria importante para ambos, apesar
das distancias tomadas posteriormente. E 05 pontos de referéncia a0 mesmo tempo intelectuais
e pessoais — quer em termos de atracao, quer em termos de repulsao ~ tambérn seriam conver-
gentes, nas figuras de Georges Canguilhern, de Lévi—Strauss, de Louis Althusser, entre outros.

FOUCAULT, MICHEL (1925-7984) 201


Mesmo separados pela origern social, mas compartilhando experiéncias cornuns de certas
geracoes de intelectuais franceses, chegaram inclusive a ter grands proximidade pessoal e
politica (EAAp). Enfim, Foucault e Bourdieu poderiam ter encontrado muitos pontos de con~
vergéncia em suas reflexfies. No entanto, nem o diélogo explicito, 116111 a cooperacao intelectual
sistématica entreos dois realrnente efetivou-se. Essa n50 convergéncia talvez se explique mais,
no que diz respeito a Foucault, pelo seu distanciamento em relacao 2‘1 reflexao sociologica e111
geral, ao passo que, em Bourdieu, de forma simétrica, se explique por sua postura critica em
relacao a tradicao filosofica entao praticada 11a Franca no pés-guerra.
E conhecida a reticéncia de Foucault em relacao a sociologia. Embora sua gtande quanti—
dade de livros, cursos e entrevistas tenham descortinado inumeros novos ternas e questoes
que tiveram significativa ressonancia nas assim chamadas ciéncias sociais — ao abrir novas
perspectivas para os estudos de género e sexualidade, acerca das relacées entre corpo, saude e
doenca, sobre crime, desvio e punicao, entre muitos outros temas —, o proprio Foucault nunca
buscou um enfrentarnento sistematico das investigacées sociolégicas. Em diversos mementos,
Foucault manifestou mesmo alguns déficits em relacao‘a compreensao de autores da propria
tradicao sociologica, como no caso de Weber, lido de forma um tanto quanto inapropriada,
ainda nos anos 1970, corno admite um comentador proximo, corno Paul Veyne (2008, p. 56),
6 so posteriormente visto como uma espécie de autor em paralelo corn seu proprio projeto,
assim come 03 autores da assim chamada Escola de Frankfurt (FOUCAULT, 2001).
A recepcéo dos livros de Foucault pela sociologia francesa foi, igualmente, bastante
ambigua. Se uma sociologia mais operatéria iré empregé—los cada vez corn mais frequéncia, p
por exemplo, para uma critica da autoridade e das instituicoes e também em lutas setoriais, .
voltadas ao problema das prisoes, dos servicos de saude, das normas sexuais, etc., haveré uma
recepcao limitada e por vezes hostil dos estudos de Foucault por parte da sociologia univer—
sitaria — exemplificada por algumas figuras emblematicas, como Alain Touraine, Raymond
Boudon e Michel Crozier (BERT, 2006).
Bourdieu nao deixou de expressar tal relacao ambigua da sociologia francesa com a postura
intelectual de Foucault, embora aspectos dessa postura possam ser explicados igualrnente a
partir de aspectos especificos do proprio percurso intelectual do sociologo francés, sobretudo
seu deslocamento da formacao filosofica para a pesqujsa sociologica, sua busca por libertar
as ciéncias sociais do imperialismo da filosofia (EAAp).
Ao contrario de Foucault, que 1150 se deteve nos trabalhos de Bourdieu, em diversas
passagens de seus escritos, o sociologo francés ensaia criticas aos trabalhos de seu colega
filésofo. Tais criticas, no entanto, 550, com frequéncia, circunscritas a um momento da tra-
jetoria do pensamento de Foucault, como no exemplo de Meditacées pascalianas (2001),
em que o Foucault de As palavras e as coisas (FOUCAULT, 1981) é visto por Bourdieu corno
urn representante da postura estruturalista, que teria “o imenso mérito de se empenhar em
captar a coeréncia dos sisternas simbolicos, considerados como tais”, mas “estaria condenada
a ignorar a dimensao ativa da producao simbolica” (MP, 214). On 110 Esboco de auto-andlise,
em que afirrna que para “o Foucault da teoria pés 68 do poder, a fronteira com as ciéncias
sociais, em especial, a sociologia, permanece sociahnente intransponivel” (EAAp, 49), sem,
no entanto, uma preocupacao maior, por parte do sociélogo francés, em acompanhar a logica
dos deslocamentos cle Foucault da arqueologia para a genealogia e a ética (DAVIDSON, 1988).

202 FOUCAULT, MICHEL (7926-7984)


Ainda no Esboco de auto~andlise, Bourdieu se detém rapidamente na maneira como
se situava em relacao a Michel Foucault, mas noVamente expressa a1 uma relacao ambigua,
ao enfatizar tanto as proximidades quanto as diferencas que aproximariam os dois estilos
intelectuais (EAAp, 104-106). Afirma, no entanto, que buscava, sobretudo, evitar as “aparentes
semelhancas” e enfatiza, em contrapartida, as “diferencas profundas nas disposicoes e nas
posicées respectivas” (EAAp, 106), ao indicar que, apesar de suas experiéncias de engajamento,
Foucault sempre teria permanecido refém das expectativas relacionadas a0 erudito tradicional,
ao passo que Bourdieu se autoatribui, como traco intelectual fundamental, a ruptura com as
expectativas e as exigéncias do mundo intelectual parisiense.
Se em Esboco de auto—andlise Bourdieu esta muito preocupado em demarcar a diferenca
de seu habitus intelectual em relacao a postura considerada ainda por demais filoséfica de
Foucault, em outros pequenos textos, em que presta homenagem a Foucault, apés a morte deste,
outras possibilidades de entrecruzarnento dos dois percursos intelectuais aparecem descor»
tinadas, pois Bourdieu explicita muito 1112113 o que haveria de comum entre suas experiéncias
de pensamento. Em texto redigido poucos meses apés a morte de Foucault, Bourdieu atribui
ao filosofo francés uma série de disposicées intelectuais que na verdade compartilhavam: o
anticonformismo em relacao a todas as categorizacoes e classificacoes intelectuais, a busca
por situar em termos materialistas as formas de conhecimento, a distancia em relacao aor
oportunisrno politico de certos intelectuais, o empenho em revelar o impensado da ciéncia,
o rompimento corn 0 estilo tradicional de segmentar ciéncia e politica, préprio do homo
academicus, etc (BOURDIEU, 2013).
Em outro texto, apresentado num congresso na Franca, anos depois da morte de Foucault,
Bourdieu se preocupa em desmontar as armadilhas que se interporiam a uma recepcao mais
pertinente da obra de Foucault. Contra a fetichizacao do pensamento do autor, o sociélogo
francés defende que seria necessario submeter as, citacoes rotineiras a uma critica sistematica,
questionar, como fez Foucault em diversas ocasioes, o estatuto mesmo da figura social do
autor; afinal, o que seria “fazer falar urn autor”? (BOURDIEU, 1996). Para 0 sociologo, so respei-
tariamos de fato um pensamento ao desfetichizarmos a relacao com os proprios pensadores,
ao evitarrnos o comentério ritualistico e restituirmos o campo de producao e de recepcao das
ideias em jogo. De modo ainda mais interessante, Bourdieulanca a hipotese de que um dos
desafios, em termos de recepcao das ideias no ambiente universitério, consistiria ern que os
contemporaneos se leem pouco, que a recepcao de novas ideias pelos colegas, pelos jornais,
pelos estudantes, ocorreria, sobretudo por meio de rumores intelectuais, por meio da circula~
qio de slogans, palavras-chave ou mesmo apenas pelos titulos dos livros ~ “loucura”, “vigiar
e punir”, “panoptismo”, “saber-poder”, etc. —, o que levaria ao empobrecirnento do debate
intelectual. Outro desafio, para a compreensao‘de um autor entre seus pares, ainda segundo
Bourdieu, seria 0 de que uma obra esta acessivel em sua totalidade apenas postumamente; os
contemporaneos, em contrapartida, so teriam acesso a uma parte infima dos trabalhos de um
autor, a0 geralmente ignorar o conjunto das entrevistas, dos textos publicados na imprensa,
da correspondéncia privada, etc. Bourdieu abre, assim, a interessante perspectiva de que
tanto o seu percurso intelectual quanto 0 de Foucault poderiam ser melhor compreendidos
apartir de um trabalho meticuloso feito pela posteridade, por meio do qual as proximidades
e distancias entre os diferentes estilos intelectuais pudessem ser elucidadas. Tal exercicio de

FOUCAULT, MICHEL (7925—1984) 203


pesquisa, que implicaria em reconstruir os contextos deproducao e de circulagao das ideias desses
dois pensadores-chave da contemporaneidade, pode abrir espaco para novas leituras paralelas,
r1510 voltadas para o comentario estéril — quer a favor, quer contra um ou outro autor —, mas para
o emprego das “caixas de ferramentas” legadas por esses intelectuais, tendo em vista 0 efetivo
avanco do conhecimento no ambito das ciéncias sociais.

Referéncias
BERT, I. F. Réserve, juxtaposition et adhésion: la place de Michel Foucault dans la sociologie. Sociologie
et Sociéte’s, v. 38, n. 2, p. 189—208, 2006
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BOURDIEU, P. Um pensador Iivre: “Néo me pergunte quem sou en" (1984). Tempo Social, v. 25, n. 1,
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DAVIDSON, A. I. Arqueologia, genealogia, ética. In: HOY, D. C. (Comp). Foucault. Buenos Aires:
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VEYNE, P. Foucault: sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008.

204 FOUCAULT, MICHEL (79264984)


102'.9955'Y'AN..ERVFNG (79227798?) .......................................
Yves Winkin

Gragas a Bourdieu é que as principais obras de Erving Goffman foram traduzidas para
o frances, entre 1968 e 1991, na coleeao Le Sens Commun da Les Editions de Minuit. Foram
publicados exatamente seis livros: Asiles, em 1968; La présentation de 501' e Les relations en
public (tomos 1 e 2 de La mise en scene dela vie quotidienne), em 1973; Les rites d’inte—
raction, em 1974; Stigmate, em 1975; Pagans deparler, em 1987; Les cadres de l’expérience,
em 1991. Além disso, Pierre Bourdieu publicou Vérios textos de Gofiman em ARSS: extratos
de GenderAdvertisements (n. 14, 1977); um capitulo de sua tese de doutorado (n, 100, 1993);
e um comentario-sintese que elaborei de “The Arrangement Between the Sexes” (n. 83, 1990).
Bourdieu iria, igualmente, acornpanhar de perto a redagao da primeira biografia intelectual
de Goffman (WINKIN, 1988).
Qual seria o motive de tamanho interesse pela microssociologia, aparentemente tao
afastada de sua concepeao do mundo social? Foi, no entanto, o préprio Bourdieu quern
escreveu em Esquisse d’une the’orie de la pratique: “A verdade 'da interagao nunca reside
inteiramente na interaeao” (ETP, 184). De fate, ele nao visava a Goffman, mas de preferéncia
aos interacionistas simbélicos radicais e aos etnometodologos, cujos trabalhos estavam che-
gando a seu conhecimento. Contrariamente a urn grande nfimero de sociologos franceses,
Bourdieu compreendera muito rapidamente que Gof’fman tinha urna visao durkheimiana
da sociedade, plenamente compativel com a sua, e bastante afastada, por exemplo, das con—
cepeoes de Blumer ou de Garfinkel. A hipersensibilidade comum a ambos em relagao aos
“simbolos de status de classe”, para fazer alusao a um texto de Goifman (1951) que poderia
ser lido como a sinopse de La distinction (1979), ira consolidar ainda mais a aproxirnagao
entre eles. A homologia dos habitus fara o resto: Bourdieu considerava Goffman como um
irmao na resisténcia, Intando corn suas palavras contra a sociologia dominante. Ele sentia—se
' proximo dos livros de Goffman que exprimiarn o ponto de vista de diversas vitimas da
violéncia simbéiica: os doentes mentais, os portadores de deficiencia e as mulheres. Exemplo
emblemético: Bourdieu fazia uma equiparagao entre sua Legon sur la legon (1982) e “The

GOFFMAN, ERV1NG (1922-1982) 205


Lecture” (1981), de Goifman. Ele ficou impressionado com a sirnilitude dos dois textos, com
a capacidade de Goffman de produzir urna “distancia do papel a desempenhar” que nao seja
apenas ironica, mas urna Inaneira exigente de desconfiar das complacéncias da autoanalise.
Assim, compreende‘se melhor o motivo que 1evara Bourdieu, pouco depois da morte dc
Goffrnan, a escrever no jornal Libération: A sociologia deixara de ser, apos Goffrnan, o que
ela havia sido anteriormente: tanto por aquilo que ele tornou possivel, quanto por aquilo que
tornou impossivel ou insuportavel” (1982a).
Foi Robert Castel (1933-2013) quem chamou a atencao de Bourdieu para a obra de Gof~
fman, ao propor--1he uma traducao de Asylums (1961), para a quad Bourdieu escreveu urna
magistral introducéo. Na época, Castel era préximo de Foucault e preparava seus estudos
sobre “psicanalismo” (1973) e “ordern psiquiétrica” (1977). B111 1972-1973, Bourdieu é eleito
membro do Institute for Advanced Study (IAS) de Princeton. Ele vai a Filadélfia e encontra-se
com Goffman. lnicia-se, desse modo, urn born entendimento entre os dois. Bourdieu propoe
a candidatura de Gofiman corno rnernbro permanente do IAS de Princeton, ideia que seré
rejeitada corn desdérn pelos grandes eleitores desse instituto. Bourdieu iré transformar essa
rejeicao em um elemento suplementar de sua cumplicidade com Goffman Os dois pesquisado-
res manterao uma correspondéncia regular. Em duas oportunidades e a convite de Bourdieu,
Goffrnan visitaré Paris, norneadamente em maio de 1982, acompanhado da esposa, Gillian
Sankoff, e da filha de ambos, Alice, nascida alguns meses antes. Por sua vez, Bourdieu faré
uma visita a Gillian Sankoff, em maio de 1986, na Filadélfia.
Em varios de seus livros, Bourdieu retoma expressées de Goffman, em particular “the
sense of one’s place” (GOFFMAN, 1951). Se essa formula se torna recorrente nos textos
de Bourdieu, é, sern duvida, pelo fato de exprimir particularmente bem a ideia de uma
autoatribuicéo de lugar por parte dos atores sociais que reconhecem, imediatamente, o
perimetro de seus territories sociais. Bourdieu nunca discutiré, de maneira aprofunda-
da, as ideias de Goffman, mas daré sempre a impressao de profundo respeito por elas.
Seré que é possivel afirmar que Goffman exerceu “influéncia” sobre o pensamento de
Bourdieu? Certarnente que n50, mas pode-se facilmente sugerir que o procedimento de
Goffman, descrito por Bourdieu como “o descobridor do infinitamente pequeno” (1982b),
iré influenciar a escrita “etnogréfica” de algumas péginas de La distinction (1979), assim
como de La misére du monde (1993). Nelas, Bourdieu mostra uma paixao pelo detalhe
sociologicamente pertinente, aspecto que remete efetivamente a obra de Goffman. Essa
escrita pontilhista jé estava presente nos primeiros estudos antropolégicos de Bourdieu
— por exemplo, nos belissimos retratos de Travail et travailleurs en Algérie (1963) ~,
que nao deixam de lembrar fotografias da época (IA). Mas tudo se passou como se 0
patrocinio etnogréfico de Goffman tivesse conferido uma nova legitimidade aos estudos
ulteriores redigidos com esse espirito.
Inversamente, sera que se pode dizer que Bourdieu influenciou Goffman? Nao realmente:
basta dizer que, em seu ultimo livro, Forms of Talk (1981), Goffman cita Bourdieu uma so
vez, um pouco como se se tratasse de pagar com a mesma moeda. Mas a presenca de Bour-
dieu em seu universe intelectual teré contribuido para torné—lo, no minirno, mais atento a0
cenério sociologico europeu, o que jé é bastante significativo. Apesar de sua imensa cultura,
Goffrnan estava longe de ser um sociélogo intercontinental a maneira de Sennett, Sassen ou

206 GOFFMAN, ERVlNG (1922-7982)


Calhoun. Ele tinha tendéncia a “cultivar seu jardim”. Suas trocas com Bourdieu, até mesmo
episédicas, acabaram por leva-lo a plantar nesse canteiro algumas sementes exéticas. Para
ser mais concreto em relacao a essas trocas, que seja permitido a0 autor destas linhas fornecer
urn testemunho pessoal.
A0 final do ultimo seminario cle Pierre Bourdieu, n0 ano universitario de 1975-76,
tomei a liberdade de ir a sea encontro e dizer—lhe que eu estava indo para a Universidade
da Pensilvania onde permaneceria durante dois anos. Visivelmente muito feliz com
essa noticia, ele me pede para apresentar seus cumprimentos a Erving Gofiman. A0
encontrar o pesquisador americano em agosto de 1976, este me pergunta, de imediato,
“how is Pierre?” e em que ponto se encontra a traducaofrancesa de “Frame Analysis”...
No decorrer da conversacao, Gofiman comunica—me sua perplexidade diante da nocao
de classe social em Bourdieu. Por ocasiao de meu retorno no Natal, evoco essa questao
com Bourdieu que me diz que, no seu caso, nao compreende como Gofi‘man pode re-
duzir a nocao de classe social a uma categoria descritiva. Em janeiro de 1977; evoco o
assunto com Goflman que me explica que osfranceses nunca chegarao a compreender
as relacoes entre Durkheim e Warner...[W. Lloyd Warner (1898-1970), antropélogo, uma
das maiores influéncias exercidas sobre Gotfman quando ele cursava seu doutorado na Uni—
, versidade de Chicago].
Piquemos por aqui Essa historieta tinha o 1’1nico objetivo de ilustrar a relacao entre
Bourdieu e Goffrnan, feita simultaneamente de common miscognition (MP) e de working
consensus (GOFPMAN, 1959), com um fundo de apreciacao pessoal, sem estratégia nem
intencao de provocar alguma 1mpressao.

Referéncias
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BOURDIEU, P. La mort du sociologue Erving Golfman. Le découvreur de l’infiniment petit. Le Monde,
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GOFFMAN, E. The Presentation ofSelf in Everyday Life. New York: Doubleday Anchor, 1959.
GOFFMAN, E. Asylums: Essays on the Social Situation ofMental Patients and Other Inmates.
New York: Doubleday Anchor, 1961.
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Hall, 1963.
GOFFMAN, B. La ritualisation de la féminité. ARSS, v. 14, p. 34-50, avr. 1977. (Extratos de Gender
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GOFFMAN, E. The Lecture. In: . Forms of Talk. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1981. p. 160—195.
GOFFMAN, B. La communication en défaut. ARSS, v. 100, p. 66-72, déc. 1993. (Capitulo da tese de
’ doutorado).
. WINKIN, Y. (Org). Erving Gofi'man: les moments et leurs hommes. Paris: Seuil-Minuit, 1988.
WINKIN, Y. Goffman et les femmes. ARSS, Masculin/Féminin—l, v. 83, p. 57—61, juin 1990. (Sintese
comentada de The Arrangement Between the Sexes).

GOFFMAN, ERVING (1922-1982) 207


Iulien Duval

Como indica seu subtitulo — critica social do julgamento, La distinction (1979) aborda,
mas com os recursos da sociologia, a questao do gosto tal como ela havia sido formulada pela
filosofia. Para Kant, “o gosto é a faculdade de julgar e apreciar um objeto, 011 um modo de re-
presentacao, por uma satisfacao ou um desprazer, independentemente de qudlquer interesse.
A0 objeto de tal satisfacao atribui—se o qualificativo de belo” (KANT, 1990, p. 139). For sua vez,
Bourdieu define o gosto como “uma disposigao adquirida para ‘diferenciar’ e ‘apreciar’” (LD,
543), mas ele abandona a referéncia ao belo e a hierarquia de que ela é solidéria com o agradével
e o sublime. A analise desenvolvida em La distinction, da qual um primeiro ensaio havia sido
proposto ja em 1965 (AM), desmente a concepgao segundo a qual o gosto “puro” que se afirma
-
no dominio da arte — seria um tipo radicalmente diferente dos prazeres corporais.
Em La distinction, a esfera alimentar tende a constituir, pelo contrério, um modelo para
pensar todos os gostos, incluindo os mais intelectuais..Para Bourdieu, os gostos culinérios que se
adquirem na primeira infancia e se revelam extremamente duradouros fazem aparecer, sob uma
forma particularmente visivel, caracteristicas gerais dos gostos: estes dependem essencialmente
de automatismos inscritos no corpo e estao solidamente associados a sistemas de preferéncias
integrados desde a primeira infancia. Uma passagem de La distinction é dedicada, assim, a0 papal
desempenhado pelo lugar de origem, chamado metaforicamente “a tetra natal”, na formagao dos
gostos: o ambiente em que ocorre o crescimento dos agentes sociais engendra apegos e repugnan}
cias duradouros. Neste aspecto, é sugestivo o exemplo das infancias privilegiadas, marcadas de
imediato pelo que caracteriza os interiores burgueses (atmosfera aconchegante dos apartamentos,
carpetes e paredes de cores suaves e tranquilizantes, muitas vezes, um piano familiar em que é
tocada mfisica classica...) e as experiéncias corporais quase inconscientes que lhes sao associadas.
O gosto aparece, assim, como profundamente vinculado ‘as condieoes materiais de exis-
téncia em que se formou: incide, em primeiro lugar, sobre o que nos é familiar, sobre o que ,
nos é acessivel. Neste ponto, Bourdieu retoma 0 argumento do amorfati: os agentes sociais
tendem a desenvolver o gosto por aquilo que suas condicoes de existéncia lhes acostumaram
e por aquilo que elas lhes permitem aspirar de modo razoa’wel. Eles tendem a gostar do que
tém. As pessoas oriundas do meio popular tém, assim, tendéncia a valorizar, em seus gostos,
os produtos e 05 consumos “fiteis”, “necessarios”, em detrimento daqueles que lhes parecem
associados a0 luxo ou a0 supe’rfluo. O exemplo de pessoas de condicao social inferior que,
frente ao aumento de sua renda, conservam o nivel de Vida anterior, confirma as analises
que levam a observar o gosto como um elementa-chave nos mecanismos que garantem o
ajuste dos agentes sociais a suas condigoes de existéncia e, por conseguinte, a ordem social.
Uma particularidade dessa anélise do gosto é seu caréter relacional. O atrativo por um
alimento 011 um bern é indissociavelmente repulsao por outros bens. Os gostos de uma pessoa
sao sempre acompanhados por repugnancias e, ate’ mesmo, por uma rejeicao dos gostos de
outros agentes sociais que podem, as vezes, exprimir-se sob a forma de reacoes corporais e
violentas. No Brasil, algumas aversoes a0 samba, segundo parece, podem ser perfeitamente
analisadas neste contexto (RIVRON, 2010). Em geral, os gostos se inscrevem profundamente nas
relacoes entre os agentes e 03 grupos sociais. Como os gostos estao relacionados ‘as condieées de ‘

208 GOSTO
existéncia, a proximidade dos' gostos tende a diminuir com a distancia social ent're indivi—
duos ou classes. Bourdieu sublinha que os gostos sao um dos principios da aproximacao
das pessoas, como é ilustrado pelos fenomenos de homogamia on homofilia. Eles intervém
simetricarnente nos conflitos e nos sentimentos de inimizade. 'Por estar, mais geralmente
ainda, na origem de numero‘sas escolhas dos agentes sociais, o gosto constitui urna “espécie
de senso da orientacao social” (LD, 544).
Bourdieu abordou também as modalidades concretas pelas quais os gostos se transformam
ern escolhas ou préticas efetivas. Vérios trechos de La distinction incidem, assim, sobre os
“taste markers”, que 350 05 criticos de literatura ou de teatro. As lutas intestinas que lhes
séo peculiares retraduzem os gostos concorrentes em seus leitorados. Para encontrarem
produtos ou bens ajustados a seus gostos — que sao “sisternas de classificacao incorporada”
(LD, 505) ~, os consumidores podem apoiar—se também nos "sistemas de classificacao in—
corporados” que se referem ‘a posicao dos produtores (preco, hierarquia das editoras, etc.) no
campo da producao. Eles podem circunscrever igualmente suas escolhas a uma unidade de
producao (marca de carro, editora, etc.). La distinction evoca também o problema, familiar
aos anunciantes, das preferéncias de consumo que tém aver, nao com um individuo, mas
com um sujeito coletivo que, a semelhanca de um casal ou de uma familia, é composto por
,' membros cujos gostos individuais sao, Inuitas vezes, parecidos, mas sem nunca coincidirem
completarnente. Na Franca das décadas de 1960 e 1970, tirando os grupos mais diplomados,
uma concepcao tradicional fazia prevalecer o gosto tanto da mulher em dominios que afetam
0 interior das casas (mas também as roupas do homem) quanto do homem em dominios,
tais como a politica. ‘
A anélise do gosto em La distinction abrange, finalmente, urna caracterizacao das grandes
famflias de gostos na sociedade francesa da época. Ao primeiro principio que organiza o espaco
social -— ou seja, 0 volume global de capital —, esta associada urna tendéncia para a estilizacao
dos gostos: as classes superiores tendem a exibir gostos em que prevalece a forma em relacao
a funcao e que exercem efeitos de legitimidade. O segundo principio —- ou seja, a estrutura do
capital — tende a opor gostos voltados para a ascese, acentuados particularmente nas fracoes
culturais das classes superiores, aos gostos mais hedonistas das fracoes economicas. A anélise
sociologica conduz, por fun, a conceber as observacoes de Kant como situadas do ponto de
vista social: a0 condenar os prazeres “vulgares” e ao afirmar a superioridade de um “gosto
puro” ascético, Kant sublima e legitima os sistemas de preferéncias que, no final do século
XVIII, eram dominantes na “intelligentsia burguesa” e que, na Franca, segundo parece,
estao, sobretudo difundidos nas fracoes culturais das classes superiores e, particularrnente,
entre os professores (a respeito de queIn Bourdieu lembra que eles constituem os principais
leitores da filosofia de Kant).
A analise do gosto proposta por Bourdieu pode, obviamente, ser mobilizada em historia
e em sociologia, na medida em que ela pode servir também para o estudo de dominios muito
especificos, como mostra, por exemplo, uma "anatomic du gofit philosophique” (SOULIIé, 1995),
que serve de suporte ‘as analises de La distinction para compreender os gostos que animarn
alguns estudantes de filosofia na escolha de seus temas de pesquisa. De maneira talvez mais
inesperada — sem deixar de ser muito pertinente ~, essa analise pode tambérn ser investida
em economia por questionar as hipéteses neocléssicas que consideram o consumo corno uma

GOSTO 209
fungao da renda, além de considerarem que o equilibrio entre oferta e demanda passa pelos
pregos. La distinction lernbra que nao existe o consumjdor indiferenciado, postulado pelos
economistas. Na realidade, cada consumidor possui gostos especificos que orientam suas
escolhas economicas e organizam a percepgao particular que ele tem da oferta.

Referéncias
KANT, E. Critique de lafaculté dejugemem‘ (1790). Paris: Gallimard-Folio, 1990.
RIVRON, V. Le gofit de ces choses bien a nous. ARSS, 11. 181-182, p. 127—141, 2010.
SOULIE, Ch. Anatomie du gofit philosophique. ARSS, n. 109, p. 3—28, 1995.

104. GRANDES ECOLES


Afra‘m'o Mendes Catani

Na grande maioria dos paises as universidades se encontram no topo do sistema de


educaeao superior. Se alguém disser que ingressou em determinada universidade que goza
de grande prestigio, certamente teré grande probabilidade, assim que obtiver seu diploma
6 iniciar sua trajetoria profissional, de receber como retribm'gao as gratificagoes materiais I
e simbélicas esperadas. Entretanto, na Franga a situagao é diferente. Isso porque o sistema
universitério do pais é integrado por universidades e Grandes Ecoles. O decreto do Ministério
da Educagao Nacional e da Cultura, de 27 de agosto de 1992, publicado no Journal Ofiiciel
de 11 de setembro do mesmo ano, referente a terminologia da educagao, define uma grande
école como “um estabelecirnento de ensino superior que recruta seus alunos por concurso
e assegura a formagao de alto nivel”. A qualidade da formagéo oferecida confere enorme
prestigio a essas instituigoes, sendo nelas preparadas as elites politicas e cientl’ficas francesas.
O termo ‘Zgrande e’cole” teve origern em 1794, apos a Revolugao Francesa, quando foram
criadas a Ecole Polytechnique, a Ecole Normale Supérieure e o Conservatoire National des
Arts et Métiers. Tais escolas tiveram suas precursoras nos séculos XVII e XVIII, devendo ser
mencionadas a Ecole d’Arts et Métiers (1780); a Ecole des Mines de Paris (1783); a Ecole Royale
des Ponts et Chaussées (1747); a Ecole des Ingénieurs—Constructeurs des Vaisseaux Royaux
(1741), além de academias militares de engenharia e escolas de artilharia, estabelecidas
no
século XVII, como a Ecole de l’Artillerie de Douai. Posteriormente, no inicio dos anos 1800,
Napoleao Bonaparte criou a Ecole Spéciale Militaire de Saint—Cyr, para a formagao de oficiais
do exército. Ao longo dos séculos XIX e XX Inuitas outras foram constituidas, até alcangar,
nos dias de hoje, um total aproximado de 250 estabelecimentos. -
O objetivo da criagio das Grandes Ecoles ao longo da historia francesa, néo é demais
demarcar, é 0 de fornecer as estruturas técnicas (e militares) dos mais elevados cargos
do
estado, nos dominios essenciais da sociedade: administragao central, exército, pontes e
estradas, agricultura, éguas e florestas, minas, ciéncias médicas e veterinarias, formaeéo
de professores, portos e arsenais, etc. Atualmente, o Ministério da Educagao Nacional, do
Ensino Superior e da Pesquisa da Franea assegura a tutela dos cursos preparatérios a todas as
Grarzales= Ecoles, mas estas se encontram sob a supervisao de outros ministérios, de acordo
com a natureza de cada escola.

210 GRANDES ECOLES


As Grandes Ecoles consomem cerca de 30% do orcamento universitério nacional, sendo
responsaveis por quase 5% do total das matriculas em instituicoes de educacao superior do
pais. Os estudantes que desejam ingressar nestas escolas normalmente necessitam realizar urn
curso preparatério com a finalidade de enfrentar exame em nivel nacional, que envolve grande
competicao. Tal curso, chamado Classes Préparatoires aux Grandes Ecoles (CPGE), tern, em
geral, a duracfio de dois anos, periodo no qual o candidato é preparado através de intensivo e
exaustivo programa de estudos. A quantidade de trabalho exigida por semana é muito grande
e apenas quem obtérn born indice no baccalauréat — exame realizado no final do ensino se—
cundério, necessério para o ingresso na educacao superior, dividido em trés areas: Scientifique
(para exatas e sat’rde), Sciences économiques et sociales (para humanas) e Littéraire (para
literatura) — pode se matricular no CPGE, ministrado ern apenas alguns poucos liceus. Tal curso
equivale aos dois primeiros anos de urna universidade. Assim, quem nao consegue aprovacao em
uma grande école apés a conclusao do préparatoire tern a possibilidade de ingressar em anos
mais avancados de um curso de graduacéo. A competiefio interna e a pressao sao fortissimas e 05
alunos necessitam dispor da capacidade de lidar com essa situacao estressante para conseguir
sobreviver e ter éxito nos exames, que duram varias semanas e envolvern provas orais e escri-
tas. Apenas poucas centenas de estudantes sao admitidos em cada grande école todos 03 anos.
Entretanto, mais recentemente, observam~se modificacoes nesse processo de admissao, que se
abre a estudantes universitérios oriundos de outras escolas, que obtiverern born desempenho
escolar. A maioria das Grandes Ecoles é gratuita (excecfio nas business schools) e, em algumas
outras (casos da Ecole Polytechnique, da Ecole National d’AdIninistration, da Ecole Normale
Supérieure), os estudantes sao pagos para estudar.
As Grandes Ecoles de maior prestigio sao, além das citadas no paragrafo anterior, outras
que se inscrevem nos dominios da engenharia, da administracéo, da economia, da politica,
etc., merecendo destaque a Ecole Nationale Supérieure des Mines de Paris, a Ecole National
des Ponts et Chaussées, a Ecole des Hautes Etudes Commerciales,ra Ecole Centrale de Paris,
0 Institut d’Etudes Politiques de Paris (Sciences Po), a ESSEC Business School, além daquelas
‘ voltadas as areas militares. Entre as Grandes Ecoles que nao exigem curso preparatorio,
mas um excelente resultado no baccalauréat e em outras provas, mencionem-se a Ecole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, a Ecole Nationale Supérieure des Arts-Décoratifs,
a Ecole Nationale Supérieure des Beaux—Arts, etc. Com frequéncia, seus alunos acabam se
direcionando, em seguida, para escolas de administracao e comércio.
Bourdieu publicou, sobre o tema, livro cuja leitura é indispensavel: La noblesse d’Etat:
Grandes Ecoles et esprit de corps, mostrando como a educacao recebida nestas escolas de
elite consagra uma “nobreza” de novo tipo, possuidora de titulos académicos que asseguram
sua prépria exclusividade através de rigorosos mecanismos de selecéo e filtros sutis. Assim,
os postos de trabalho acabam se definindo a partir dos estabelecimentos escolares de origem,
desde o modesto professor de escola priméria de uma pequena cidade do interior a0 funcioné—
rio de alto escalao na administracao pfiblica ou privada. Como jé fizera em outros trabalhos
(Os herdeiros e Homo academicus), ele desnuda os segredos da magia social que assegura,
através da educacao, a reproducao das hierarquias sociais. Nao é por outra razao que no
prologo de La noblesse d ’Etat, intitulado “Estruturas sociais e estruturas mentais”, Bourdieu
escreveu que “a sociologia da educacao é um capitulo, e néo dos menores, da sociologia do

GRANDES ECULES 21 1
conhecimento e também da sociologia do poder — para n50 falar da sociologia dos filosofos
do poder. Longe de ser essa espécie de ciéncia aplicada, portanto inferior, e boa apenas para
os pedagogos, situa—se no fundamento de uma antropologia geral do poder e da legitimidade:
leva, com efeito, ao principio dos ‘mecanismos’ responsiveis pela reproducéo das estruturas
sociais e pela reproducéo das estruturas mentais que, como estéo genética e estruturalmente
ligadas a ela, favorecem o desconhecimento da verdade dessas estruturas objetivas 6, com isso,
o reconhecimento de sua legitimidade [...]. A estrutura do especo social, tal como se observa
nas sociedades diferenciadas, é o produto de dois principios de diferenciacéo fundamentais,
0 capital economico e 0 capital cultural, com a instituicéo escolar desempenhando papel
determinante na reproducéo da distribuicao do capital cultural e, portanto, na reproducéo
da estrutura do espaco social, tornando-se uma aposta central nas lutas pelo monopélio das
posicoes dominantes” (NE, 13).

Referéncias
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1.05. GRUPOS DOMINANTES

Ver: Classe social

212 GRUPOS DOMiNANTES


.1
a a.
105. HABITUS
Loi'c Wacquant

Habitus é uma nocao filoséfica antiga, originaria no pensamento de Aristételes e na Escolastica


medieval, que foi recuperada e retrabalhada depois dos anos 1960 por Pierre Bourdieu para forjar
, uma teoria disposicional da acao capaz de reintroduzir na antropologia estruturalista a capacidade
inventiva dos agentes, sern com isso retroceder ao intelectualismo cartesiano que enviesa as abor~
dagens subjetivistas da conduta social, do behaviorismo ao interacionismo simbélico passando pela
teoria da acao racional. A nocao tern urn papel central no esforco levado a cabo durante uma Vida
inteira por Bourdieu (ETPp; SP1; SSEi) para construir uma economia das praticas generalizada”
capaz de subsumir a economia, historizando e, por ai, pluralizando as categorias que esta 1'11tima
toma como invariantes (tais como interesse, capital, mercado e racionalidade) e especificando
quer as condicoes sociais da emergéncia dos atores economicos e sistemas de troca, quer o modo
concreto como estes se encontram, se propulsionam ou se contrariam uns aos outros.
As raizes do habitus encontram—se na nocao aristotélica de hexis, elaborada na sua
doutrina sobre a virtude, significando um estado adquirido e firmemente estabelecido do
caréter moral que orienta os nossos sentimentos e desejos numa situacao e, como ta1, a
nossa conduta. No século X111 0 termo foi traduzido para latim como habitus (participio
passado do verbo habere, ter ou possuir) por Tomas de Aquino na sua Summa fleologiae,
em que adquiriu o sentido acrescentado de capacidade para crescer através da atividade, ou
disposicao duravel suspensa a meio caminho entre poténcia e acao propositada. Foi usado
parcimoniosa e descritivamente por sociélogos da geracao classica como Emile Durkheim
(no seu curso sobre L’Evolution Pédagogique en France, de 1904—1905), pelo seu sobrinho
e colaborador proximo Marcel Mauss (mais especificamente no seu ensaio sobre “As técnicas
do corpo”, de 1934), assim como por Max Weber (em sua discussao sobre o ascetismo religioso
6m Wirtschaft and Gesellschafi, de 1918) e Thorstein Veblen (que medita sobre o “habitus
mental predatorio” dos industriais em 'Ihe Theory of the Leisure Class, de 1899). A nocao
ressurgiu na fenomenologia, de forma mais proeminente nos escritos de Edmund Husserl,
que designava por habitus a conduta mental entre experiéncias passadas e acoes vindouras.
Husserl (1973) também usava como cognato conceptual o termo ‘Habz'tualita’t”, mais tarde

HABITUS 213
traduzido para inglés pelo seu aluno Alfred Schiitz como “conhecimento habitual” (dai a sua
adocao pela etnometodologia), uma nocao que se assemelha com a de hébito, generalizada
por Maurice Merleau-Ponty (1947) em sua analise sobre o “corpo vivido” como 0 impulsor
silencioso do comportamento social. 0 habitus também figura de passagem nos escritos de
outro estudante de Husserl, Norbert Elias, que fala de “habitus psiquico das pessoas ‘civili-
zadas’” no estudo cléssico Uber den Prozefl der Zivilisation (1937).
Mas e no trabalho de Pierre Bourdieu, que estava profundamente envolvido nesses debates
filosoficos, que encontramos a mais completa renovacao sociolégica do conceito delineado para
transcender a oposicao entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma nocao mediadom que
ajuda a romper com a dualidade de senso comurn entre individuo e sociedade a0 captar “a inte—
riorizacao da exterioridade e a exteriorizacao da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade
se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposicées duraveis, ou capacidades treinadas e
propensoes estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que entao as guiam
nas suas respostas criativas aos constrangirnentos e solicitacoes do seu meio social existente.
Bourdieu comecou por reintroduzir a nocao de uma forma denotativa nos seus estudos
empiricos de juventude sobre a antropologia economica da mudanca na sociedade camponesa
do seu Béarn natal, no sudoeste da Franca, ou nas comunidades cabilas de expressao berbere,
na Argélia colonial (BCi; DR), e elaborou—a analiticamente no seu Esquisse d’une théorie
de la pratz'que (2002). Neste e noutros escritos subsequentes, Bourdieu propoe que a pratica
nao é nem o precipitado mecanico de ditames estruturais, nem o resultado da perseguicao
intencional de objetivos pelos individuos; é, antes, “o produto de uma relacao dialética entre a .
situacao e o habitus, entendido como um sistema de disposicées duraveis e transponi’veis que,
integrando todas as experiéncias passadas, funciona em cada memento como uma matriz de
percepcées, apreciacdes e acées e torna possivel cumprir tarefas infinitamente diferenciadas
gracas ‘a transferéncia analégica de esquernas” adquiridos numa prética anterior (ETPp, 261).
Como histéria individual e grupal sedimentada no corpo, estrutura social tornada estru-
tura mental, o habitus pode ser pensado em analogia com a “gramética generativa” de Noam
Chomsky, que permite aos falantes proficientes de uma dada lingua produzir impensadarnente
atos de discurso corretos de acordo com re‘gras partilhadas de um modo inventive, mas, nao
obstante, previsivel. Designa uma competéncia prética, adquirida na 6 para a acao, que opera
sob o nivel da consciéncia. Entretanto, ao contrario da gramatica de Chomsky, o habitus (i)
resume nao uma aptidao natural, mas social que é, por esta mesma razao, variavel através
do tempo, do lugar e, sobretudo, através das distribuicoes de poder; (ii) é transferz’vel para
vérios dominios de pratica, o que explica a coeréncia que se verifica, por exemplo, entre vérios
dominios de consumo — musica, desporto, alimentacao, mobilia e, tambe’m, nas escolhas
politicas e matrimoniais -— no interior e entre individuos da mesma classe e que fundamenta
os distintos estilos de Vida (LDi); (iii) é duravel mas nfio estético ou eterno: as disposicoes
sao socialmente montadas e podem ser corroidas, contrariadas ou mesmo desmanteladas
pela exposicao a novas forcas externas, como demonstrado, por exemplo, a propésito de
situacoes de migracao; (iv) contudo, é dotado de inércia incorporada, na medida em que o
habitus tende a produzir praticas moldadas depois das estruturas sociais que as geraram e na
medida em que cada uma das suas camadas opera corno um prisma através do qual as ultimas
experiéncias sao filtradas e os subsequentes estratos de disposicoes sao sobrepostos (dai o peso

214 HABITUS
desproporcionado dos esquemas implantados na infancia); (v) introduz um desfasamento e,
por vezes, urn hiato entre as determinacoes passadas que o produziram e as determinacoes
atuais que o interpelam: como “histéria tornada natureza”, o habitus “é aquilo que confere ‘as
préticas a sua relativa autonomia no que diz respeito as determinacoes externas do presente
imediato. Esta autonomia é a do passado, ordenado e atuante que, funcionando como capital
acumulado, produz historia na base da historia e, assim, assegura que a permanéncia no
interior da mudanqa faca do agente individual um mundo no interior do mundo” (SPi, 56)
Contra o estruturalismo, a teoria do habitus reconhece que os agentes fazern ativamente o
111m social através do envolvimento de instrumentos incorporados de construcao cognitiva; mas
tarnbérn afirma, contra o construtivismo, que estes instrumentos foram também eles proprios feitos
pelo mundo social (MPi, 175-177). O habitus fornece, a0 mesmo tempo, urn principio de sociacao
e de individuacao: sociacdo porque as nossas categorias de juizo e de acao, vindas da sociedade,
sao partilhadas por todos aqueles que foram submetidos a condicoes e condicionamentossociais
similares (assim podemos falar de um habitus masculino, de um habitus nacional, de um habitus
burgués, etc); individuacdo porque cada pessoa, ao ter uma trajetoria e uma localizacao finicas
no mundo, internaliza uma combinacao incomparavel de esquemas. Porque é simultaneamente
estruturado (por meios sociais passados) e estruturante (de acoes e representacoes presentes), o
, habitus opera como o “principio nao escolhido de todas as escolhas” guiando acoes que assumem o
caréter sistema’tico de estratégias mesmo que nao sejam o resultado de intencao estratégica e sejam
objetivamente “orquestradas sem serem o produto da atividade organizadora de um maestro” (SP1,
256). Para esta filosofia da acao disposicional, o ator economico nao é o individuo egoista e isolado
da teoria neoclassica, uma maquina computadorizada que procura deliberadamente maximizar
a utilidade na perseguicao de objetivos claros. E, antes, um ser carnal habitado pela necessidade
historica que se relaciona com o mundo através de uma relacao opaca de “complicidade ontolégica”
e que esta necessariamente ligado aos outros através de uma “conivéncia implicita” sustentado
por categorias partilhadas de percepgao e de apreciacao (MPi, 163; SSEi).
Retracar as origens filosoficas e o uso inicial do habitus por Bourdieu (2000) para dar
conta da ruptura economica e da desconexao social trazida pela guerra argelina de libertacao
nacional permite—nos clarificar quatro incompreensoes recorrentes sobre o conceito. Prirneiro,
o habitus nunca é a replica de uma (mica estrutura social, na medida em que é um conjunto
dinarnico de disposicoes sobrepostas em camadas que grava, armazena e prolonga a influéncia
dos diversos ambientes sucessivamente encontrados na Vida de uma pessoa. Em segundo lugar,
o habitus nao é necessariamente coerente e unificado, mas revela graus variados de integracao
e tensao dependendo da compatibilidade e do caréter das situacoes sociais que o produzirarn
a0 longo do tempo: universos irregulares tendem a produzir sisternas de disposicoes divididos
entre si, que geram linhas de acao irregulares e por vezes incoerentes. Terceiro, o conceito nao
esté menos preparado para analisar a crise e a mudanca do que esta para analisar a coesao e a
perpetuacao. Tal acontece porque o habitus nao esté necessariamente de acordo com o mundo
social em que evolui. Bourdieu (SPi, 62~63) nos adverte que deveremos “evitar universalizar
inconscientemente o modelo da relacao quase-circular da quase-perfeita reproducao, que é
plenamente valido apenas no caso em que as condicoes de producao do habitus sao idénticas
ou hornélogas as suas condicoes de funcionamento”. O fato de 0 habitus poder “falhar” e de
ter “momentos criticos de perplexidade e discrepancia" (MPi, 191) quando é incapaz de gerar

HABITUS 215
préticas conformes ao meio constitui urn dos principais impulsionadores de mudanca economica
e inovacao social — o que confere ‘a nocao de Bourdieu uma grande afinidade corn as concepcées
neoinstitucionalistas de racionalidade limitada e de preferéncias maleaveis, como na teoria da
regulacao (BOYER, 2004). Por filtimo, o habitus nao é um mecanismo autossuficiente para a
geracao da acao: opera como uma mola que necessita de um gatilho externo e 11:10 pode, por-
tanto, ser considerado isoladamente dos mundos sociais particulates, ou “carnpos”, no interior
dos quais evolui. Uma anélise completa da pratica requer uma tripla elucidacao da génese e
estrutura sociais do habitus e do campo e das dinamicas da sua “confrontacao dialética” (MPi).
' Embora filésofos corno Charles Taylor, Jacques Bouveresse 6 John Searle tenham discutido a
elaboracao de Bourdieu sobre o habitus na sua relacao com a filosofia da rnente, da linguagem e
do self, deve ser destacado que para Bourdieu a nocao é, em primeiro lugar e acima de tudo, um
modo estenogréfico de designar uma postura de investigacdo, a0 apontar um camjnho para
escavar as categorias implicitas através das quais as pessoas montam continuadamente o seu
mundo vivido, que tern informado pesquisas empiricas em torno da constituicao social de agentes
competentes numa gama variada de quadros institucionais. Assim, Suaud (1976) esclareceu a
formacao e a desestruturacao da vocacao sacerdotal na regiao francesa da Vendée mostrando
corno, durante 03 anos 1930, o seminario atuava em continuidade com a comunidade aldea
fechada para desencadear chamarnentos em massa, mas perdendo a sua capacidade para forjar
um habitus religioso robusto quando, por altura dos 8.1105 1970, a igreja cedeu a sua proeminéncia
simbélica a escola. Charlesworth (2000) captou a formacao e desdobramento de uma sensibi—
lidade operéria distintiva, criando siléncio e falta de clareza, nascida da incorporacao de uma,
experiéncia duradoura de desapossamento economico e de impoténcia politica numa pequena
cidade em declinio no sul de Yorkshire, na Inglaterra. Lehmann (2002) tracou o rnodo come as
disposicoes musicais inculcadas pelo treino instrumental se combinarn com disposicoes de classe
herdadas da famflia para determinar a trajetoria e as estratégias profissionais dos mi’isicos no
interior do espaco hierérquico da orquestra sinfonica. Wacquant (2003) dissecou a producao do
nexo de competéncias, categorias e desejos incorporados que compoem o boxe profissional corno
um oficio corporeo masculino no gueto negro americano, revelando que a feitura do habitus
pugih’stico acarreta r150 56 o dominio individual da técnica, mas, mais decisivarnente, a inscri—
cao coletiva na carne de uma ética ocupacional heroica no interior do microcosrnos do ginasio
de boxe. Estes estudos demonstram que a convocacao e o emprego dos esquemas cognitivos e
motivacionais que compoern o habitus é acessivel a observagao metédica. Em liltima analise, a
prova do pudim teorico do habitus deve consistir em comé—lo empiricamente.

Referéncias
BOURDIEU, P. Making the Economic Habitus: Algerian Workers Revisited. Ethnography, v. 1, n. 1,
p. 17—41, jul. 2000.
BOYER, R. Pierre Bourdieu et la théorie de la regulation. ARSS, Paris, n. 150, p. 65—78, fev. 2004.
CHARLESWORTH, S. I. A Phenomenology of Working Class Experience. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000.
HUSSERL, E. Experience and Judgment (1947). London: Routledge and Kegan Paul, 1973.
LEHMANN, B. L’Orchestre dans tous ses éclats: ethnographie des formations symphoniques.
Paris: La De’couverte, 2002.

216 HABITUS
MERLEAU—PONTY, M. Phenomenology ofPerception (1947). London: Routledge, 1962.
SUAUD, Ch. La vocation: conversion et reconversion des prétres rumux. Paris: Minuit, 1976.
WACQUANT, L. Body and Soul: Notebooks ofan Apprentice Boxer (2000). New York: Oxford University
Press, 2003. V

107. HEIDEGGER, MARTIN (1889-1976)

Vet: Ontologia politica de Martin Heidegger (A) (L’Ontologie politique de Martin


Heidegger)

108. HERANCA CULTURAL


Ana Maria F. Almeida

Central 210 argumento desenvolvido no livro Les héritiers, a nocao de heranca cultural
foi objeto de intensa e minuciosa elaboracao em diferentes obras de Pierre Bourdieu. Ela
,ancora hipéteses e demonstracées em A reproducao e nos escritos das décadas de 1960 e
1970 sobre os grupos camponeses da Argélia e do Béarn. Desempenha urn papel central na
anélise proposta em As regras do arte e conclui o inventario do sofrimento contemporaneo
apresentado em A mise’ria do mundo
A nocao oferece instrumentos para examinar o problema da tran5111issao intergeracional
da cultura que, atr1bu1da a processos de socializacao e aprendizagem 11a antropologia classica
e contemporanea, foi apenas raramente tornada como objeto de estudos em 51. Na obra de
Pierre Bourdieu, ela constitui um dos organizadores do programa de pesquisa encarregado
de examinar as condicoes que presidem a permanéncia e a mudanca social. Mobilizar a ideia
de heranca cultural nessa discusséo representou uma ruptura em diferentes niveis com os
' modos tradicionais de pensar a transmissao e sua relacao com a organizacao social.
Apresentada de maneira explicita e mesmo brutal no titulo de Les he'ritiers, a nocao per—
mitiu mostrar que a reproducao social nas sociedades contemporaneas nao dependia apenas
da transmissao de bens materials de uma geracao a outra, mas estava subordinada cada vez
mais a transmissao de um patrimonio cultural. A0 mesmo tempo, ao identificar a escola
como instancia encarregada de definir o maior ou menor valor dos diferentes patrimonios
transmitidos pelas familias, como demonstrado em A reproducdo, revelou a contribuicao
particular dada pelo Estado a reproducao social. Por fim, ao explicitar o ponto de vista dos
que estao submetidos aos processes de transmissao, sejarn eles camponeses do Béarn, es~
tudantes das Grandes Ecoles ou escritores, expos as contradicoes e tensoes que definem os
processos de transmissao nas sociedades diferenciadas, nas quais herdar significa em boa
parte se distinguir dos pals e as vezes ultrapassé-los.
Discutidas a luz de duzentos anos de debates sobre o controle da heranca dos bens
materials que, atrelados a lutas p01 igualdade e pela neutralidade do estado em relacao aos
interesses privados, haviam produzido na Franca uma das legislacées mais restritivas da
Europa (BECKERT, 2008), tais revelacoes representararn urn abalo de proporcoes significativas

HERANCA CULTURAL 217


nas percepcoes em vigor sobre a justica social. Talvez isso explique, pelo menos em parte,
as
controvérsias que cercaram sua recepcao.
O estudo dos processos de transmissao cultural ganhou uma forca particular nas analises
sobre o seu rendimento no sistema de ensino. Sua iinporténcia, no entanto, 11510 SE esgota ai.
Mesmo que mas sociedades contemporaneas o valor da pessoa esteja cada vez mais associado
as credenciais escolares, outros principios de hierarquizacao se mantém e a escola nao define
a entrada em todas as posicoes dominantes. ‘
Heranca cultural diz respeito a transmissao, de uma geracao a outra, de maneiras de ser
8 de se portar, mas também de habilidades, competéncias e sensibilidades que os individuos
adquirem muitas vezes sem sentir e, certamente, sem escolher. A unidade de analise dos
processos de transmissao é, antes de tudo, a familia. Seu estudo exige, em primeiro lugar,
a definicao precisa do patrimonio a ser transmitido pela primeira, isto é, a identificacao do
volume e da estrutura dos capitais ali reunidos num momento dado, assim como o modo
como se chegou a essa situacao particular — a maior on a menor rapidez, a caracterizacao do ‘
processo como acumulacao ou dilapidacao, etc. Exige, em segundo lugar, o exame circunstan~
ciado das microinteracoes entre os membros (LAREAU, 2011), preferencialmente apoiada por
uma sociologia dos afetos (MAUGER, 2003) que problematize as relacoes no interior do grupo
familiar, dissecando as marcas geracionais, de género, etc. Por fim, exige também situar essa
familia no espaco social que a cerca, identificando os principios que estruturam a percepcao
que os membros tern de si mesmos e dos outros. Cabe, portanto, ness‘e eixo, uma interrogacao V
sobre o espaco de relacoes no qual estao imersas as famflias em estudo, os pertencimentos,
étnicos e raciais, religiosos, politicos, assim como o significado atribuido a eles.
Modos de transmissao podem ser mais ou menos implicitos, mais ou menos estruturados.
Por isso, embora se trate de um trabalho que as geracoes mais velhas desenvolvem sobre as mais
novas, a transmissao nem sempre é percebida como tal. A nocao é util, portanto, para revelar ‘
a vantagem obtida pela imersao precoce nos ambientes em que competéncias valorizadas em
certas esferas de acao social estao incorporadas nos individuos sob a forma de disposicées
duréveis, hexis corporal, sensibilidades ou quando estao incorporadas no mundo material,
isto é, nos objetos e na sua disposicao, estruturando a experiéncia do mundo daqueles que
sao destinados a circular ern meio a eles. Esses 550 03 casos em que a transmissao pode se
dar de maneira eufemizada e implicita. Sua apropriacao depende de longa exposicao, de um
trabalho de inculcacao que, para ser bem—sucedido, exige o autoengajamento por parte da
crianca, supondo a concordancia, por parte daquele que se submete, em “ser herdado por
sua heranca” (BOURDIEU, 1975). Nessas circunstancias, o resultado pode ser muitas vezes
tomado como 0 final de um processo natural de desenvolvimento de qualidades que passam
a ser vistas como pessoais, isto é, individuais e preexistentes.
Quando sao forcadas a se submeter a medida escolar, isto é, a0 veredito da escola, essas
maneiras de ser e de se portar, essas habilidades, competéncias e sensibilidades sao desigual-
mente apreciadas. Apresentarn, por consequéncia, uma rentabilidade, que varia ern funcao da
maior ou menor valorizacao, pela escola, da cultura do grupo de origem. Podem, por isso, ser
tratadas como capital. A transformacao do capital incorporado em Capital cultural institu-
cionalizado, isto é, em capital escolar, exige um trabalho especial por parte das familias. Bsse
trabalho sera tanto mais explicito quanto a familia nao tiver interiorizado nas suas préticas

218 HERANQA CULTURAL


cotidianas as disposicoes mais rentéveis com relacao a escola — como é o caso do dominio
do corpo e da relacao controlada corn 0 tempo, entre outros. .
E esse trabalho minucioso e exaustivo que define a poténcia heuristica do conceito. Do-
cumentada nas infimeras investigacées que inspirou, o estudo dos processos de transmissao
e heranca cultural constitui lioje uma das areas mais ricas da sociologia que se interessa
em desvendar a contribuicao da escola para a producao e a reproducao das desigualdades.
Parte dessas pesquisas se dedicou a examinar os processos sutis de transmissao doméstica
do capital cultural, outra vertente cuidou de explorar os casos daqueles que, submetidos‘a
transmissao de competencias e modos de ver desvalorizados pelo sistema de ensino, ainda
assirn erarn bem-sucedidos na escola. Por fim ha ainda, embora menos numerosas, pesquisas
que exploram casos de transmissao mal-sucedidos, situacoes em que 0 capital cultural dos
pais nao serviu para garantir trajetérias escolares valorizadas.
Poucos, no entanto, tém sido os estudos que aprofundararn ou estenderam o exame da
maneira como a escola fixa o valor da cultura transmitida pe1a famflia. Pierre Bourdieu e
seus colaboradores promoverarn incursoes reveladoras nas rnicrointeracoes que, mobilizando
saberes especificos e relacoes particulares com esses saberes, constituem a relacao pedagégica
e contribuem para definir as diferencas de desempenho entre os estudantes (BOURDIEU et al.,
' 1965). Diante das tensées e dos dilemas que perpassam a escola contemporanea, essa é uma
area que definitivamente mereceria maior investirnento.

‘Referéncias .
BECKERT, I. Inherited Wealth. Princeton: Princeton University Press, 2008
BOURDIEU, P. L’Invention de la vie d artiste. ARSS, n. 2, p. 67 93, 1975.
BOURDIEU, P.; PASSERON, I.—C.; SAINT MARTIN, M. Rapport pe’dagogique et communication.
Paris: Mouton, 1965.
LAREAU, A. Unequal Childhoods: Class, Race and Family Life. 2. ed. Berkeley,lCA: University of
California Press, 2011.
MAUGER, G. Election parentale, élection scolaire In: HUERRE, P.; RENNARD, L. (Orgsu) Parents
et adolescents. Paris: ERES, 2003. ‘

109. HERDEIROS (05): OS ESTUDANTES E A CULTURA


(Les héritiers: les étudiants et la culture)

Cristina Carta Cardoso de Medeiros

BOURDIEU, P. PASSERON, I C. 05 herdeiros: os estudantes e a cultura. Plorianépolis: Ed da


UFSC, 2014.

Pierre Bourdieu e Jean—Claude Passeron publicaram Les héritiers: les étudiants et la


culture em 1964. Fruto de pesquisas empiricas realizadas em 1962-1963, eles descreveram
os mecanisrnos e processos pelos quais o sistema de ensino legitima os privilégios sociais,
eliminando os “deserdados”, seja no acesso a instituicao de ensino superior, fato percebido

HERDEIROS (05): OS ESTUDANTES E A CULTURA 219


(Les héritiers: les étudiants et la culture)
na representacao desigual das diversas camadas sociais nesse grau de escolarizacao, seja no
interior da mesma, provocando préticas escolares comuns, embora tais experiéncias nao
possam ser consideradas “idénticas e, sobretudo, coletivas” (LH, 25).
V E justamente essa questao que da im’cio ao livro: “seria suficiente constatar e lamentar a
representacao desigual das diferentes classes sociais no ensino superior para estar dispensado de
qualquer obrigacao com relacao ‘as desigualdades frente a escola?” (LH, 11). A partir dai, Bourdieu
e Passeron deixam claro que a intencao nao é a realizacao de um trabalho de pesquisa estatistico
e monogréfico sobre os problemas de desigualdade de acesso a0 ensino superior, mas efetivar o
desvelamento de um quadro sociologicamente estabelecido na educacao e detectar os possiveis
mecanismos que desfacam tal légica. Mesmo que as anélises contidas no livro se atenham ao
ensino superior, é evidente que o quadro que se apresentouvinha se delineando progressivamente
nos niveis de escolaridade precedentes, que poderiam ser relacionalmente examinados. Urn
exemplo disso é a constatacao dos autores sobre a nocao de democracia desencantada do sistema
escolar, das vias multiplas e desviadas pelas quais a “escola elimina continuamente os alunos
originérios dos meios memos favorecidos e que culminam nos obstéculos culturais, pErcebidos
nas diferencas de atitudes e de aptidoes significativamente ligadas ‘a origem social, interferindo
na formacao do estudante, mesmo que esse tenha permanecido durante quinze avinte anos sob
a acao homogeneizante da escola” (LH, 19—22). A escola seria a via real da democratizacao da
cultura se ela nao consagrasse, ignorando-as, as desigualdades iniciais diante da cultura. Esta
ignorancia seria no sentido de 1150 reconhecer que existem alunos corn déficit cultural, que nao
podem ser percebidos da mesma forma, como categoria homogénea.
Apesar de escapar da eliminacao decorrente das chances simbolicas de acesso aos m’veis de
ensino superior e conseguindo ingressar na universidade, novas desigualdades serao imputadas
para esses estudantes, que devem escolher as areas que podem ser objetivamente frequentadas por
urna determinada classe social, sendo que ainda terao que lidar com as desigualdades de infor~
macées sobre os estudos, aptidao do manejo de instrumentos intelectuais, os modelos culturais
associados a certas profissoes e a adaptacao das regras evalores que regem a escola. Para Bourdieu
e Passeron, no desempenho escolar existe urna tendéncia de atribuir ao passado imediato o sucesso
on o fracasso escolar, quando na verdade de‘pendem de orientacées precoces que sao feitas, por
definicao, no meio familiar. A acao direta dos habitos culturais e das disposicoes herdadas do
meio de origem é redobrada pelo efeito multiplicador das orientacoes iniciais, desencadeando na
logica escolar as sancoes que consagram as desigualdades sociais sob a aparéncia de ignora-las.
Isso se deve em grande parte em razao da escola valorizar a cultura livre, a cultura herdada
dos individuos das classes favorecidas adquirida nas experiéncias extraescolares, desvalori—
zando a cultura que ela propria transmite. A cultura escolar, segundo os autores, “nao seria
entao urna cultura parcial ou uma parte da cultura, seria sim uma cultura inferior” (LH,
33). Os elementos que a compoem nao possuem o sentido que teriam em urn conjunto mais
amplo. Isso se prova quando é percebido que os individuos de origem social inferior e que so
adquiriram a cultura escolar, em uma aprendizagem de remincia de sua prépria cultura, em
uma aculturacao, sao inferiorizados diante da exaltacao da cultura dos herdeiros.
Outro aspecto levado em consideracao no espaco escolar e destacado no livro é que tal espaco
contribui para acentuar as desigualdades frente a cultura pela falta de integracao no meio estu-
dantil. Os contatos entre os estudantes que objetivem trocas de experiéncias para a transmisséo

220 HERDEIROS (OS): 05 ESTUDANTES E A CULTURA


(Les héritiers: Ies étudiants et la culture)
de informacoes técnicas e de incitacoes intelectuais sao raros. Percebe-se que os estudantes nao
constituem um grupo social homogéneo, independente e integrado. Esta passividade do ser estu—
dante também esté ligada a condicao do aluno em direta associacao com seu futuro profissional.
Os professores, por seu turno, em suas praticas pedagégicas, so reconhecem os alunos como
iguais em deveres e direitos. Nas préticas escolares cotidianas, normalmente, serao enxergadas
apenas as lacunas culturais grosseiras que possuem determinados alunos em sua formacao esco~
larizada. Essa situacao destacada pelos autores é bastante significativa, pois interfere na relagao
que o aluno procura no corpo professoral, que é a de mestre e aprendiz, em uma tentativa de
obter referéncias intelectuais e de valores culturais. O professor tem a funcao de criar o desejo
do consumo do saber ao mesmo tempo em que busca satisfazé—lo. Para Bourdieu e Passeron,
“o carisma professoral seria uma incitacao permanente a consumacao cultivada” (LH, 64) — e
também neste aspecto se prova que o ensino nao tern influenciado nada nem ninguém, jé que
tern suscitado nos alunos a necessidade de produtos que eles tém dispensado. Isso se da pela
légica existente no sisterna escolar e 05 produtos deste sistema, ou seja, os alunos e 03 professores
experimentarn tal logica. “Os esrudantes nao contribuem com a orientacao ou a transmissao do
saber. Os professores nao consultam os alunos sobre suas necessidades e, quando 0 fazern, se
deparam com a passividade e espanto dos discentes, que demandam dos professores respostas
sobre suas urgéncias e escolhas que possam satisfazer suas necessidades” (LH, 64). A escola é
responsavel, entao, “por produzir um lote de consumidores particularmente conformados”
(LH, 65), como utilizadores e transmissores de uma cultura criada por outros. Para os autores,
estudar neste sistema escolar em curso nao é produzir, mas se produzir corno capaz de produzir.
Na conclusao se retomam alguns pontos centrais discutidos, sendo sistematizada a descricao
das diferencas sociais e das desigualdades escolares e questionando—se as ideias hegemonicas
sobre as quais o sistema escolar se fundamenta. Desvelar o privilégio cultural e a ideologia do
dom a partir de uma reflexao critica e denunciadora coloca em xeque afirmativas corriqueiras
corno, por exemplo, “os estudantes nao leern mais” ou “o nivel dos estudantes baixa a cada
ano”. Explora-se ainda o caso de uma mae que, na presenca do filho, afirma que ele nao é bom
em francés, ignorando que os resultados que ele apresenta encontram-se “djretamente ligados
a atmosfera cultural da famflia, que ela esta transformando em urn destino individual o que é
fruto de uma educacao, e que pode ainda ser corrigido, ao menos parcialmente, por uma acao
educativa” (LH, 109). Assim, para os autores, a autoridade legitimadora da escola pode redobrar
as desigualdades sociais, ja que as classes menos favorecidas, conscientes demais de seu destino
e sem a consciéncia das vias pelas quais esse se realiza, contribuem para a sua realizacao.
Bourdieu e Passeron revelam ainda que cadaprogresso no sentido da explicitacao clas exigéncias
reciprocas de alunos e professores, bem como da organizacao dos estudos para permitir que os
estudantes desfavorecidos possam superar suas de‘svantagens, é um avanco em direcao ‘a igualdade
de condicoes no interior da escola. Entendem o ensino realmente democratico como “aquele que
permite que o maior nLZmero passivel de individuOs conquiste, no menor tempo possz’vel, e da
melhorforma, as aptidées que estrutumm a cultura escolar em um dado momenta” (LH, 114,
grifos' do original). Percebe—se que este modelo democratico se opoe tanto ao ensino tradicional,
orientado em direcao a forniaeao e selecao de uma elite bem-nascida, como ao ensino tecnocratico,
voltado ‘a producao em série de especialistas sob medida. A democratizacao real do ensino nao pode
acontecer sern “uma pedagogia racional que se dedjque a neutralizar, metodica e continuarnente,

HERDEIROS (OS): 05 ESTUDANTES E A CULTURA 221


(Les héritiers: Ies e'tudiants et la culture)
da educacao infantfl ‘a universidade, a acao dos fatores sociais de desigualdade cultural e a possuir
a vontade politica para dar a todos chances iguais diante do ensino” (LH, 114—115).

'20. HEX/5 CORPORAL


“5

Ver: Corpo; Habitus

m. HISTORIA
Christophe Charla

“E somente a historia pode nos livrar da histéria” — P. Bourdieu, Aula inaugural


proferida no College de France, sexta-feira, 23 de abril de 1982.
Na Franca, as relacoes entre a historia e a sociologia foram marcadas, durante muito
tempo, por tensoes e incompreensoes desde as origens, inclusive da sociologia universitéria
na época de Durkheim (18584917). Convém evocar, aqui, a polemica de 1903 entre Charles
Seignobos, defensor da historia critica, e o discipulo de Durkheim, Francois Simiand, repr0~
vando o empirismo dos historiadores, suas prenocfies e sua recusa em detectar leis sociais
da evolucao das sociedades humanas, através de procedimentos rigorosos e de comparacoes *
no tempo e no espaco. Essa tensao atenuou-se um pouco com o sucesso das ideias dos fun—’
dadores da revista Annales d’Hz‘stoz're Economique et Sociale (primeiro numero publicado
em 1929), em particular com o reconhecimento por parte de seus diretores — Marc Bloch e
Lucien Febvre - da importancia dos trabalhos de Durkheim, Simiand e Halbwachs para
os historiadores que desejavam, como eles dois, desbravar novos terrenos fora da classica
historia politica e baseada em grandes acontecimentos. 0 interesse que a histéria acabou
suscitando entre os sociélogos da geracao que precede a de Bourdieu, em particular Raymond
Aron, assim como a influéncia da antropologia social e da sociologia sobre os historiadores
proximos de Bourdieu — Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet ou Georges Duby —,
redefinirarn de maneira duradoura as relacoes entre essas duas disciplinas.
No inicio, a reflexao de Bourdieu sobre a historia foi alimentada por esse novo clima, ainda
que seus primeiros trabalhos — pesquisas empiricas na Argélia e na regiao natal de Béarn ~ se
tivessem inspirado, inicialmente, nos métodos da etnologia e da antropologia, em um dialogo
critico com o estruturalismo de Claude Levi-Strauss. Todavia, seu primeiro trabalho de sintese,
Sociologie de l’Alge’rz'e (1958), ale’m de suas pesquisas de campo anteriores, apoia-se em um
solido conhecimento da historia e do passado colonial desse territério que estava passando
por uma terrivel guerra de independéncia (1954-1962).
A histéria é concebida por Bourdieu — que, nesse aspecto, se posiciona na linhagem das
ideias de Simiand ~ como um repertorio de experiéncias sociais especificas na qua] é possivel
detectar leis sociologicas, cuja validade é mais ampla do que a simples interpretacao de um
caso isolado, construindo~se rigorosamente o modelo estrutural dos fatores comuns e diver-
gentes de um caso historico em relacao a outro. Embora a qualificacao de “estruturalistas”
atribui‘da aos primeiros trabalhos de Bourdieu seja abusiva, as estruturas que condicionam

222 HEXIS CORPORAL


as agoes dos grupos e dos individuos (seja a crise da sociedado rural tradicional na Argélia
on no Béarn on as transformagoes do sistema educacional com o crescimento do nl’lmero
de alunos do ensino médio e superior nos anos 1960) estao permeadas sempre pela duragao
historica e por urn movimento oriundo das tensoes e da impossivel reprodugao inalterada das
relaqoes de dominaqao. A historia é marcada pela discordancia entre o habitus dos grupos
ou dos individuos, produto de um estado antigo das estruturas sociais, e as novas condi—
goes sociais emergentes que implicam “reconversoes” ou adaptagoes das estratégias sociais
habituais. Eis o que explica a predilegao de numerosos trabalhos de Bourdieu, ou de seus
estudantes, pelas situaqées de crise em que as antigas estruturas ou os habitus manifestam
de modo tao explicito sua légica especifica que sao ameagados on se veem a contracorrente
das transformagées ~ o que implica, por parte de seus defensores ou partidarios, a elaboragao
de estratégias de defesa que os obrigam a explicitar seu impensado ou a justificé—las diante
daqueles que as questionam. A analise sociologica deste ou daquele campo é, portanto, uma
forma de apreender, ao mesmo tempo, a historia estrutural de tal campo e as relaqées de
forga entre seus polos, assim como a transformagao, realizada on 1150 de um campo, per-
mite avaliar a dinamica dos individuos ou dos grupos em competigao tanto para definir os
respectivos desafios e limites quanto para obter a posigao dominante em seu seio. Todos os
elementos estao sempre em movimento e em questao, em fungao 1150 so das lutas intestinas,
mas também da posiqao desse campo no espago social mais global - em particular, do campo
do poder — e da conjuntura geral. Portanto, a historia e a sociologia sao, segundo Bourdieu,
ciéncias sociais praticamente indistintas, pelo menos no pressuposto de que lhes sejam
fixados os objetivos de compreensao dinamica das estruturas e das est‘ratégias coletivas ou
individuais: “A oposigao (entre a historia e a sociologia) é, a um so tempo, muito profunda
por estar baseada em diferengas de tradigao e de formagao, além de completamente ficticia,
porque a sociologia e a histéria tém o mesmo objeto e poderiam ter 05 mesmos instrumentos
teoricos e técnicos para construi~lo e analisa-lo” (BOURDIEU, 1995, p. 111). A derradeira
diferenga reside, em particular, segundo os assuntos e as épocas estudados, nas fontes e nos
materials utilizados e, sobretudo, utilizaveis, jé que a informagao necesséria para a construgao
do modelo de compreensao é cada vez mais fragmentada, parcial, incompleta ou dificil de
interpretar , na medida em que o investigador se afasta da sociedade atual, em que‘é possivel
empreender diretamente a pesquisa, interrogar os atores e as testemunhas, além de cons-
truir o questionério sem intermediario opaco (historiografia anterior, arquivos privados ou
publicos pré~construidos, etc.).
A proposito do Homo academicus — livro em que Bourdieu tenta fazer uma anélise critica
de seu proprio circulo —, afirma: “Trabalhei como um historiador por ter tomado previamente
uma decisao metodolégica. Eu pretendia romper com a imagem do sociologo enquanto revo—
lucionério ou policial. Limitei—me portanto a utilizar fontes escritas e publicas, mesmo que o
acesso a esse ‘publico’ seja, muitas vezes, dificil. [...] No entanto, minha maneira de proceder
distingue-se do método dos historiadores. Penso que nao se pode compreender o que se passa
no campo universitario se esse conteudo 11510 for reposicionado em urn espago que possa ser
designado por campo do poder ou espago da classe dominante” (BOURDIEU, 1985, p. 177).
Quanto maior foi seu progresso na obra teérica ou reflexiva, tanto mais solidamente Bourdieu
se apoiou em material histérico emprestado de diversos contextos a serem comparados, ou

HISTORIA 223
refletiu a partir de trabalhos de historiadores que, em seu entender, tinham afinidade com
suas proprias orientacoes. Neste caso, pode-5e citar seu longo posfécio para o livro de Erwin
Panofsky (1967); as pesquisas de historia e de historia literéria mobilizadas ou desenvolvidas
para o livro Les régles de l’art (1992); a analise do contexto historico da emergéncia da pin-
tura moderna com a figura de Manet (BOURDIEU, 1987); a crise universitéria e cultural, na
Alemanha, analisada por Fritz K. Ringer, autor em que Bourdieu se apoia no livro L’Ontologie
politique de Martin Heidegger; o nfimero da revista ARSS (1995) on do Le Bulletin de la
Socie’te’ d’Histoire Moderne et Contemporaine (SHMC, 1999), nos quais entabula dialogo
critico com os historiadores (BOURDIEU, 1995 ~ nesse mesmo nfimero ha artigos de Carola
Lipp, Hartmut Kaelble, C. Charle e E. Francois); os trabalhos e cursos sobre o Estado que se
baseiam em uma importante bibliografia e em reflexoes histéricas tomadas de empréstimo a
diversos conteX-tos. Do mesmo modo, ARSS publicou numerosos artigos escritos por historia-
dores e sociologos da area da historia para mostrar com maior nitidez a complementaridade
e a convergéncia dessas duas ciéncias sociais, separadas artificialmente pela histéria e pela
organizacao universitérias, destacando-se as contribuicbes de Maurice Agulhon, Michael
Baxandall, Enrico Castelnuovo, Roger Chartier, Robert Darnton, Eric Hobsbawm, Hartmut
Kaelble, Iiirgen Kocka, Ernest Labrousse, Carl Schorske, etc. Nessa prética, Bourdieu situava—se
1130 56 na longa tradicao de Durkheim (L’Evolution pédagogique en France, 1938), de Max
Weber (Econ'omie et socie’té, 1971), de Marc Bloch (La sociétéfi’odale, 1939—1940, verdadeira
sociologia historica das sociedades medievais), mas também esforcava~se por lutar contra
“o confinamento escoléstico” em disciplinas e subdisciplinas que nao cessou de se acentuar, ’ l
desde 05 anos 1960, corn 0 forte crescimento do nt’lmero de pesquisadores e de professores
universitérios, e em razao do maior conforto de se criarem territorios confinados, ao invés
de se abordarem grandes questoes em ampla escala ou na longa duracao. Em seu entender,
o conhecimento da historia social de cada disciplina era a condicao prévia para controlar
rnelhor os impensados transmitidos pela tradicao e livrar-se dos falsos debates e dos falsos
conceitos herdados do passado: “Por conseguinte, somente um uso reflexivo da historia pode
nos dar a liberdade em relacao a historia, pode nos fornecer algurnas possibilidades de 1150
veicular conceitos obnubilados por sua historicidade” (BOURDIEU, 1999, p. 18).
A despeito do desaparec‘unento de Bourdieu e do inacabado de alguns de seus filtimos
canteiros de obras em que a dimensao historica estava particularrnente presente, a renovacao
da histéria global e transnacional entre os historiadores do mundo inteiro e o atrativo crescente
da sociologia historica entre alguns sociélogos das jovens geracoes confirmam que o projeto
de convergéncia da historia e da sociologia, preconizado por Bourdieu, continua mantendo
grande atualidade cientifica e, até mesmo, politica.

Referéncias
BOURDIEU, P. Sur les rapports entre la sociologie et l'histoire en Allemagne et en France. ARSS,
11. 106—107, mars 1995.
BOURDIEU, Pt Les professeurs de I’Université de Paris a la veille de mai 1968. In: CHARLE, C.;
FERRE,;R. (Orgs). Le personnel de l’enseignement supérieur en France aux XIX" etXXé siécles.
Paris: CNRS, 1985.

224 HISTORIA
BOURDIEU, P. Prefécio. In: PANOFSKY, E. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris:
Minuit, 1967.
BOURDIEU, P. L’Institutionnalisation de l’anomie. Les Cahiers du Muse’e National d ’Arz‘ Moderne,
p. 6a19,juin 1987.
BOURDIEU, P. Les historiens et la sociologie de Pierre Bourdieu. Le Bulletin de la S.H.M.C., 1999.

Hz. HOMO ACADEMICUS


Ana Paula Hey

BOURDIEU, P. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.

Editada em 1984, a obra foca o sistema universitério francés nas duas décadas de expansao
ocorridas até 03 anos 1970. Resultado de mais de 20 anos de pesquisas, insere-se em uma
Iinhagem de analises do campo intelectual, debatendo as relagoes subjacentes a0 inconsciente
cientifico que regula a prética e o poder dos professores como produtores simbélicos especi-
ficos. Ao trazer a tona tal universe, arrisca-se a tomar como objeto seu préprio mundo, sua
posigao e as relagées ai geradas, para o qual mobiliza as ferramentas de objetivagao de um
campo composto por diferentes espécies de capital que forjam a estrutura de distribuigao
de poderes particulares constitutivos do principio das tomadas de posigao tanto intelectuais
quanto politicas. .
Nessa diregao, duas maneiras distintas de leitura do livro emergemf‘A primeira, relativa
a construgao empirica do sistema universitario, realiza a distribuigao das faculdades — Cién-
cias, Letras, Direito, Medicina — conforme a posieao de cada urna na estrutura universitéria,
por meio da classificaeao de poderes e de posigées ali constituidos, bem como se dedica a0
ordenamento do espago das disciplinas no interior das faculdades de Letras e de Ciéncias
Humanas. Demonstrando as mudangas morfologicas das faculdades e das disciplinas, visa
apreender as formas, os niveis da legitimidade e do poder universitérios e seus principios de
funcionamento e de transformaeao em interface com o campo do poder como principio deter-
minante do espago social. A segunda refere-se ao poder de cientificidade da sociologia como
mecanismo de objetivagao pertinente e vélido de uma “instituigao socialmente reconhecida
como fundamentada para operar uma objetivagao que aspira a objetividade e a universalidade”
(CD, 144), inscrevendo a abordagem nas preocupagoes do autor sobre a natureza do métier
cientifico. Vista “como urn experimento sociologico a propésito do trabalho sociolégico”, o
livro fornece principios para a investigaqao critica e teérica, fundada na pesquisa empirica,
bem como para a defesa da autonomia do campo intelectual em relagao as forgas externas,
sejam politicas, midiéticas ou religiosas.
A discussao empreendida baseia—se no poder da Sociologia como socioanélise a0 produzir
ferramentas de objetivagao que podem neutralizar os vieses entre o observador sociolégico
e seu objeto, visto que o observador ocupa uma posieao nesse universe de investigagao (WA-
' CQUANT, 1989). A0 se referir a sua publicagao, Bourdieu afirma que o trabalho causou~lhe
mais problemas do que qualquer outro, uma vez que se corria o risco de reduzir ao terreno
da luta no interior do campo universitario uma anélise cuja finalidade era objetivar esse

HOMO ACADEMICUS 225


embate, dando ao leitor um dominio dessa luta (CD, 117). Se 0 universo social é o Iugar de
uma luta para saber o que é o mundo social, a universidade tambérn é locus de uma batalha
para saber quem, no interior desse espago socialmente mandatério para dizer a verdade sobre
o mundo, esté realmente fundamentado para dizer a verdade (CD, 116). Assirn, de caréter
indubitavelrnente polémico, funciona como uma pedagogia de pesquisa ao demonstrar o
rigor na apreensao de um objeto que ultrapassa a experiéncia cornurn para chegar a expo-
siqao logica e empirica das condigoes de realizagao do discurso cientifico. E nessa diregao
que a obra se filia aos estudos voltados as condigoes sociais de produgao da razao cientifica
e, em particular, da analise sociologica, e ao entendimento da logica do campo universitério
em relagao aos fundamentos das categorias ali geradas que o estruturam e possibilitam sua
permanéncia ou mudanga.
A obra apresenta, de inicio, urn escopo amplo que problematiza questoes epistemolégicas
presentes na analise do espago universitério, cuja relaqao de proximidade pode gerar urn
efeito de exemplificagao, sobretudo ao se tomar como foco nomes proprios, incitando o leitor
a reduzir o individuo construido — “que somente existe como tal no espago teorico das relagoes
de identidade e de diferenga entre o conjunto explicitamente definido de suas propriedades
e 05 conjuntos singulares de propriedades, definidas segundo os mesmos principios, carac—
terizando os outros individuos” (HA, 11) — a0 individuo concrete.
Quanta as categorias teoricas em pauta, sobressai n50 so a nogao de campo universitario —
referindo~se ao sistema de relaqoes em que urn conjunto finito de propriedades (cientificas, eco~ V
nomicas, politicas, institucionais) sao atuantes e no qual as posigoes se estabelecem mediadas ,
pelo habitus e pelas tomadas de posigao correspondentes, isto é, entre o ponto ocupado no espago
e o ponto de vista sobre o préprio espago, que age no presente e no futuro (1316 (HA, 31) —, mas
também a de uma espécie particular de poder, o universitério, relacionado ao controle da reprodu-
«:50 e das relagoes ali perpassadas, possivel de ser demonstrado pela coalizao entre determinantes
objetivos, propriedades que produzern efeitos no campo e determinantes relativos ‘a postura
intelectual e cientifica, que sao menos percebidos, mas eficazes no interior do campo e fora dele.
Bourdieu expoe em detalhes a construgao dos elementos para a distribuigao de poderes
no campo universitario, demonstrando o manuseio de fontes bastante diversificadas relativas
a morfologia das faculdades e as transformagoes das disciplinas. A utilizagao de mfiltiplas
informagoes visou abarcar os indicadores principais e gerar as variaveis utilizadas na anélise
de correspondéncia. Os dados sao organizados em relagao aos diferentes tipos de capital ali
atuantes, tais corno: anuérios de universidades; Who’s Who, da Franga; dicionarios biogra—
ficos; perfis docentes realizados por instituigées de ensino; noticias necrolégicas; dossiés de
jornal acerca de personalidades rnarcantes; anuarios de ex—alunos de escolas consagradas;
prémios em concursos; obtengao de titulos; pertencirnento as instituigoes de pesquisa e de
orgaos de financiamento; bancas de concurso; comités de revistas cientificas; frequéncia de
publicagoes; obras traduzidas; coiegoes de livro de grande difuséo; indices de Citagao cientifica;
estégios profissionais no exterior; participagao em emissoes de TV; publicagoes em jornal e em
revistas intelectuais; participagao em gabinetes ministeriais; comissoes do governo; apoios a
abaixo-assinados, apoio a candidatura de presidentes da Repfiblica e a causas ligadas a uni-
versidade; frequéncia em coléquios sobre reformas de ensino; opiniao sobre a universidade
e suas transformagoes, alérn de se recorrer a informantes e a entrevistas.

226 HOMO ACADEMICUS


Centrada na posse de capital cultural institucionalizado, os professores universitérios
se situariam no polo dominado do campo do poder, constitui'do pelos patroes da indfistria
e do cornércio, mas ocupando posicao temporalmente dominante no campo de producao
cultural, o que os aproxima dos altos funcionarios e 05 opoern aos escritores e artistas. Os
professores das distintas faculdades se distribuem — considerando o polo do poder economico
e politico e 0 do prestigio cultural ~ segundo 0s mesmos principios que as diferentes fracées
da classe dominante, ou seja, ha 0 crescimento de propriedades caracteristicas das fracoes
preponderantes das classes dominantes partindo das faculdades de Ciéncias ‘as faculdades
de Letras e, dessas, as faculdades de Direito e de Medicina. Demonstra, ainda, que a depen-
déncia em relacao a0 campo politico ou economico varia em razao inversa ‘a hierarquia social
das faculdades, sendo que a sujeicao as normas tipicas do campo intelectual predomina nas
faculdades de Letras e de Ciéncias Humanas, embora de maneira desigual, segundo a posicao
no espaco (HA, 57-58). A analise também desvela que o campo universitério se organiza de
acordo com dois principles de hierarquizacao opostos: a hierarquia social (determinada pelo
capital herdado e pelo capital economico e politico) se opoe ‘a hierarquia especifica (centra-
_ da no capital de autoridade especifica ou de notoriedade intelectual). Assim, as estruturas
do campo universitério estariam sujeitas ao confronto de dois principles de legitimacao
concorrentes. O primeiro, de carater temporal e politico, se impoe de modo mais claro das
faculdades de Letras as faculdades de Direito e Medicina, tornando o campo universitério
dependente de principios vigentes no campo do poder; o segundo, fundado na autonomia
da ordem cientifica e intelectual, se aplica de modo mais intenso quando se vai do Direito ou
Medicina as Ciéncias (HA, 7071).
Referindo—se as faculdades de Letras e de Ciéncias Humanas, Bourdieu demonstra que
ambas se enquadram no principio geral do espaco das faculdades em seu conjunto, que opoe
agentes e instituicoes mais voltados a pesquisa e aos contenciosos cientificos on do campo
intelectual e seus respectivos contenciosos culturais, aqueles mais voltados a reproducao da
ordern cultural e do corpo dos reprodutores e em direcao aos interesses associados ao exercicio
do poder temporal na ordern cultural (HA, 99—100). Assirn, estas faculdades constituem-se ern
locus privilegiado para observar a disputa entre dois tipos de poder universitario: o centrado
no acumulo de posicées — que permitem controlar outras posicoes e seus ocupantes — e o que
privilegia o prestigio cientifico. O primeiro é aquele propriamente universitério, disposto no
dominio dos instrumentos de reproducao do corpo professoral (juris, comités), um tipo de
capital adquirido na universidade, em particular na Escola Normal Superior 6 na Sorbonne,
e detido pelos professores das disciplinas canonicas, tais como a Filosofia. O segundo refe-
re-se ‘a autoridade cientifica, ao prestigio e a notoriedade intelectual, cuja énfase recai no
reconhecirnento pelo carnpo cientifico, sobretudo no exterior. Tipico das novas disciplinas
cientificas, tais corno Sociologia e Etnologia, se afirmam em principios corno “ciéncia contra
criacao, trabalho coletivo contra inspiracao individual, abertura internacional contra tradicao
nacional, esquerda contra direita” (HA, 155).
A0 realizar a classificacao de seu préprio universo por meio da materialidade das relacoes
entre o habitus, a posicao e as tomadas de posicao no campo universitario, ao mesmo tempo
revela o movimeuto de transformacao do estado de relacoes de forca dessas estruturas e o
modo de reproducao que ali se opera, contribuindo ora para a analise das condicées sociais

HOMO ACADEMICUS 227


da producao cientifica, ora para a autonomia do campo universitério e do papel politico
desses produtores simbélicos.

Referéncia
WACQUANT, L'. For a Socio—Analyses of Intellectuals: on Homo Academicus. Berkeley Journal of
Sociology, Symposium on the Foundations of Radical Social Science, v. 34, p. 1-29, 1989.

‘23 HONRA (Sentido da)

Enrique Martz’n Criado

Em 1965 Bourdieu publicou o artigo “The Sentiment of Honour in Kabyle Society”, que,
corn modificacoes, foi incorporado a0 livro Esquisse d’une the’orie de la pratique, pre'ce’dé
de Trois études d’ethnologie kabyle (1972). Esse artigo é crucial na elaboracao dos conceitos
de habitus, estratégias de reproducao e capital simbélico. Seu objetivo é explicar as condutas
de honra na sociedade cabflia. Sua logica bésica é o desafio e a manutencao do grupo: o homem
de honra sabe responder aos desafios e guardar a responsabilidade de seu grupo. Isto se aplica
tanto aos ataques como aos dons: um dorn é um desafio ao qual é preciso responder por meio
de um contradom. Para manter esse jogo de intercémbios, o homem de honra ha de saber se _
controlar e responder no momento adequado com os meios adequados. Bourdieu parte do
método estrutural de Levi-Strauss para recompor o complexo espaco de regras e oposicoes que
regem os intercambios de honra. Porém, realiza duas transformacoes fundamentais frente a0
método estrutural. Em primeiro lugar, constitui como principio das condutas de honra um
ethos interiorizado pela socializacao, jé integrando o conceito de habitus como essencial para
entender as préticas. Em seguida, afirma que as condutas de honra nao podem ser entendidas
como simples continuacao das regras, mas sim como estratégias de reproducao mediante as
quais os grupos mantém e acumulam seu capital simbélico: sao jogadas préticas, realizadas
na urgéncia 6 na incerteza, que so podem ser compreendidas se situadas novamente no con-
junto das estratégias de reproducéo. Essas transformacoes sao bésicas para a elaboracao de
sua teoria da prética — dai Bourdieu integrar esse artigo em Esquisse d’une the’orie de la
pratique e utflizar muitas de suas analises em Le sens pratique (1980).

Referéncia
BOURDIEU, P. The Sentiment ofHonour in Kabyle Society. In: PERISTIANY, I. G. (Ed). Honour and
Shame: The Values ofMedz’termnean Society. Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1965. p. 191-241.

'1 1 4. HY5TERESIS
Cristina Carta Cardoso de Medez’ros .

A nocao de hysteresis (histerese), efeito de hysteresis ou hysteresis do habitus, é abordada


por Bourdieu em Vérios textos e livros (verificar em Questoes de sociologia, Coisas ditas,

228 HONRA (Sentido da)


Esbago de uma teoria da prdtica, La noblesse d’Etat, A distingdo, O sensoprdtico).Ta1
nogao, emprestada de um conceito de mesmo nome existente na fisica, cuja tradueao do grego
husterein significa estar atrasado, é utilizada para explicar que pode haver uma “defasagem
estrutural” entre as ocasioes e as disposieoes, ou seja, as categorias de percepea'o e de apre—
ciagao ficariam mal ajustadas‘ as possibilidades objetivas do funcionamento de um campo
porque o entorno com o qual se confrontam seria demasiado distante daquele com o qual se
ajustam. Para Bourdieu (CDp), o habitus torna-se eficiente, operante, quando encontra as
condigoes de sua eficécia, isto é, condieoes idénticas ou analogas aquelas de que ele é produto.
Toma-5e gerador de praticas ajustadas ao presente 6 ac futuro inscrito no presente, mas de um
universo semelhante. Assim, basta os agentes se deixarem levar por sua “natureza” e estarao
como “peixes dentro d’agua”, naturalmente ajustados ao mundo historico com o qual se de»
frontam. Entretanto, para o autor, existiria uma hysteresis do habitus que, tendencialmente,
perpetuariam as estruturas correspondentes as suas condieoes de produeao, permanecendo
no presente com condicionamentos do passado e revelando uma desadaptaeao as condiqoes
em vigor. O principio da inadaptagao, o desajuste, as “ocasioes falhadas”, segundo Bourdieu
(ETPp, 179), poderiam ser explicadas a partir dos condicionamentos primérios e do que
ocorre ao longo do processo de socializagao. As disposigoes funcionam a contratempo por
sua tendénciar de serem duréveis, capazes inclusive de sobreviver as condieoes economicas
e sociais de sua propria produeao. Para exemplificar a hysteresis do habitus Bourdieu, em
varios mementos de sua produgao, se refere ao efeito de “Dom Quixote”. Para 0 autor, a
situaeao do personagem em questao buscaria colocar em agao, em umlespaeo economico e
social transformado, um habitus que é produto de um estado anterior do mundo em que esta
inserido. Em O senso prdtico, Bourdieu tambérn utiliza o exemplo do efeito de Dom Quixote
e o efeito de hysteresis para falar do conflito de geraeoes.

HYSTERESIS 7—29
HS. IDEOLOGIA
Roberto Griin

Em diversos textos Bourdieu deixa claro a sua aversao ao conceito marxista de ideologia
(MP, 205). A ideologia é um sistema de ideias que pode ser discutido enquanto tal e também
como forma de apreensao, de denegagao ou, principahnente, de construgao da realidade e
do mundo. Nesse sentido podemos anotar trabalhos importantes do autor e de seu primeiro
circulo de colegas, come “A produgao da ideologia dominante”, um dos principais artigos da
fase inicial de ARSS, posteriormente reeditado como livro (PID). Nessa maneira de entender
o conceito, Bourdieu se aproxima e se inspira em historiadores dos Annales, como Duby
(1978) e Veyne (2007).
Para Bourdieu o conceito de ideologia é muito problematico no seu uso mais frequente,
quando é apresentado como o fundamento filtimo da dominagio social. Ele faz deslocar para
o terreno do racional e do logico uma realidade que deve ser buscada nas formas em que a
ordem social se inscreve no corpo e na fisiologia dos individuos, no habitus que a socializagao
produz nos individuos e grupos. Consequentemente, aquela nogao mais comum de ideologia
é um mau instrumento heuristico, pois torna o investigador incapaz de entender as razoes
da submissao e as reais possibilidades de revolta diante de situagoes que podem parecer
impossiveis de serern vividas quando apreendidas apenas pelo intelecto.
Buscando inspiraqao na antropologia da Argélia, a dominagao masculina é registrada
come 0 arquétipo, como 0 fundamento filtimo de todas as dominagoes sociais (DM). 0 texto
apresenta sistematicamente as ideias do autor sobre como se faz a inscrigao da dominagao
no corpo, a enorme dificuldade de combater os efeitos desse “assinalamento”, bem como os
Iimites muito estreitos das estratégias de tratar a dominagao como “ideologia” no sentido
marxista. Ao tempo em que Bourdieu escrevia a primeira versio do texto, sua colaboradora,
Mud-Dreyfus (1996), desenvolvia os argumentos e mostrava essas circunsténcias para a
Franga no governo de Vichy 6 na ocupagéo nazista.

Referéncias
DUBY, G. Les trois ordres ou l’imaginaire duféodalisme. Paris: Gallimard, 1978.

230 IDEOLOGlA
MUEL—DREYFUS, F. Vichy etl éternelféminin: contribution a. une sociologiepolitique de l ordre
des corps. Paris: Seuil, 1996.
VEYNE, P. Quand notre monde est devenu chrétien. Paris: A. Michel, 2007.

115. ILLUSIO
Andre’a Aguiar

E sobretudo em seus filtirnos trabalhos, em particular aqueles publicados nos anos 1990
— Réponses (1992), Raisons pratiques (1994) e Meditations pascaliennes (1997) —, que
Bourdieu passa a adotar de forma mais regular a nocao de illusio, em substituicao ‘aquela de
“interesse”. A referéncia ao termo — cuja origem vem da raiz ludus (jogo) -— ele extrai da obra
de Huizinga, Homo ludens, essai sur lafonction sociale du jeu (1938), onde a illusio surge
associada a ideia de estar no jogo, estar envolvido no jogo, levar o jogo a sério. Com essa opcao,
o autor afirma seu propésito de demarcar uma distancia Clara das interpretacoes que tomam
o interesse como universal, atemporal e trans—histérico — proprias das visoes economicistas e
utilitaristas —, circunscrevendo seu significado e sentido a universes sociais delimitados, os
campos. Cada campo — espaco social relativamente autonomo, caracterizado por disputas entre
seus participantes, que giram em torno de determinados capitais - “requer e aciona urna forma
de interesse, urn investimento, urna illusio especifica ’,(R 93), que expressa o reconhecimento
tacito de seus participantes no valor do que ali esta em jogo. Segundo Bourdieu, a nocao de
illusio representa de forma mais rigorosa, e portanto, mais fiel, o sentido que ele sempre atribuiu
aquela de interesse: “Quando e11 digo interesse [...] me refiro sempre a interesse especifico, um
interesse socialrnente constituido e que so existe em relacao a determinado espaco social, no
qual certas coisas sao importantes e outras nao” (BOURDIEU,1989, p. 14).
De modo similar, também a ideia de investimento tern sua abrangéncia ampliada para além
da perspectiva economica, na medida em que a illusio reforca seu sentido de crenca, de envel-
vimento, de empenho no jogo (LD, 94). Investir e atuar nas disputas concorrenciais que estao
a base da dinarnica de funcionamento de um campo — travadas em torno de capitais: recursos
simbolicos ou objetivados interpretados como atrativos — significa reconhecer ali alvos dignos
de serem perseguidos. Pertencer aquele universo e dele participar é, portanto, compartilhar da
mesma illusio, da crenca fundamental em seu interesse. E essa forma de encantamento ~ que
decorre de um reconhecimento irnediato — que marca a caracteristica essencial da perspectiva
de Bourdieu sobre a nocao de investimento: mais como produto e principio das acoes praticas
préprias a um espaco social delimitado, e menos como resultante de um calculo racional que
prevé lucros. “Por investimento eu entendo a propensao a agir que nasce da relacao entre 11111
~ campo e um sistema de disposicoes ajustadas a ele, um sentido do Jogo, das apostas em jogo, que
implicam, ao mesmo tempo, urna inclinacao e uma atitude a participar do )0go, ambas social
e historicamente constituidas, e nao universalmente dadas” (R, 94).
O que a nocao de illusio reflete, como interesse em um campo, é uma cumplicidade e 0
ajustamento entre as estruturas mentais dos sujeitos (seu habitus 011 suas disposicoes) e as
estruturas objetivas (os proprios campos, suas regularidades, os alvos em jogo, as disputas),
manifestados numa tendéncia a acao, ao investimento, que nasce desse acordo. “A illusio é essa

ILLUSIO 231
relagao encantada com um jogo que é o produto de uma relagao de cumplicidade ontologica
entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaqo social” (RP, 151). Compartilhar
da mesma illusio significa ter em comum sistemas de expectativas, de esperangas, principios
de classificagao, avaliagao, enfim, disposigoes, que se adequam e se ajustam as regularidades de
um universo social especifico. Sao essas regularidades — e 1150 regras explicitas que moldam
o habitus dos sujeitos, na medida em que sao incorporadas e resultam em disposigées que,

-
por sua vez, traduzem urn sentido e dominio prético daquele jogo e de seu funcionamento.
Essa espécie de saber pratico favorece antecipagées justas sobre as evolugées que ali 56 die:
as estratégias dos sujeitos, suas maneiras de agir e investir, orientadas por um sentido do
jogo, sao antecipagoes praticas das tendéncias imanentes do campo, jamais enunciadas sob
forma de previsées explicitas.
E nesse sentido, de reconhecimento e adesao imediatos, refletidos nas agoes praticas,
que a illusio nao passa pela consciéncia: “A illusio nao é da ordem dos principios explicitos,
de teses que apresentamos ou defendemos, mas da aeao, da rotina, de coisas que fazemos
porque sempre fizemos as’sim” (MP, 147). A imersao na dinamica do campo é mais préxima
de uma ilusao na qual 0 sujeito nao se vé como é, uma adesao que se dé sem seu consenti-
mento intelectual. Essa ilusao necessaria sobre si mesmo e sobre o rnundo decorre exata-
mente da adesao ao conjunto de dogmas implicitos, crengas fundamentais, enfim a mesma
doxa, que veicula os valores daquele universe, determina o que é importante, as apostas
em jogo, ou o que deve ser negligenciado. Dai as agoes, os investimentos e as disputas ali .
travadas — que podern parecer desprovidas de senso a agentes externos a0 campo - serem .
tomadas como evidentes, naturais, familiares, como “o que se faz”, por individuos total-
rnente imersos naquelas praticas 8 Has logicas que as sustentam. Esse modo de ser, estar
e agir no jogo distingue quern dele participa de outros, que lhe sao indiferentes, ou seja, a
forma de interesse que funda tal adesao é o estado oposto da indiferenga, da nao motivagao,
do nao reconhecimento. “A illusio é 0 oposto da ataraxia” — que significa 0 estado de 1150
turbarnento, de nao inquietagao ~, on seja, é o fato de estar investido (BOURDIEU, 1989,
p. 12). Agentes externos a logica de um campo sao indiferentes a0 que ali se passa porque
nao reconhecem alvos a investir, 1150 se sentem motivados, turbados pelas disputas em
questao, nao atribuem valor ‘as apostas em jogo e tampouco conseguem identificar as
hierarquias que tais concorréncias acabam por definir.
Mas o termo “illusio”, alérn de frequentemente acompanhado das nogoes de interesse e
investimento, surge associado ainda ‘a ideia de libido: “a nogéo de interesse deve ser subs—
tituida pela nogao de illusio, ou de investimento, ou mesmo de libido” (BOURDIEU, 1989,
p. 10). Segundo o autor, a forma originéria da illusio é o investimento no espago doméstico.
E na esfera familiar que tern inicio o processo gradual de socializagao que transforma pul-
sées em interesses especificos; a transformagao da libido originéria, indiferenciada, prépria
da organizagao narcisica, em libido socialmente constituida, especifica e orientada para o
outro. “O trabalho de socializagao especifica tende a favorecer a transformagao da libido
originaria, isto é, dos afetos socializados constitul’dos no campo doméstico, em urna ou
outra forma de libido especifica, gragas, sobretudo, a transferéncia dessa libido em favor
de agentes ou instituigoes pertencentes a0 campo...” (MP, 237). A aquisigao de disposigoes
especificas, ajustaveis a um ou mais campos, depende, entre outras coisas, das disposigoes

232 ILLUSIO
primarias, do quanto podem ser mais ou menos distantes das exigéncias e regularidades
proprias aqueles espaeos. E em nome da compreensao dessa “génese do investimento em
um campo de relagoes sociais” que Bourdieu faz apelo a uma necessaria uniao de esforgos
entre os campos da sociologia e da psicanélise.

Referéncias
BOURDIEU, P. Intérét et désintéressement. Cours du College de France a la Faculté d’Anthropologie
et de Sociologie de l’Université Lumiere Lyon 2, les 1“et 8 décembre 1988. Cahiers de Recherche du
GRS (Groupe de Recherce sur la Socialisation), Lyon, 11. 7, 1989.
HUIZINGA, I. Homo ludens: essai sur lafonction sociale du jeu (1938). Paris: Gallimard, 1951.

"2:7. ILUSAO BIOGRAFICA

Ver: Trajeto’ria

HS. INCONSCIENTE
Paula Montera

Para Bourdieu, o inconsciente resulta, fundamentalmente, de um duplo trabalho da historia:


a histéria coletiva, que produz nossas categorias de pensamento e a historia individual, por
meio da qual essas categorias nos sao inculcadas a despeito de nossa vontade. Nesse sentido,
a noeao de inconsciente com a qual trabalha se distancia nao apenas da concepeao freudiana
que 0 define como urn lugar no sistema da vida'psiquica onde significagoes permanecem re~
calcadas, como também da abordagem universalista e logica implicada na nogao de estruturas
inconscientes de Lévi-Strauss. Bourdieu rompe com o suposto estruturalista de uma razao
humana universal capaz de determinar externamente a agao dos homens no mundo social.
Ele busca rein’troduzir em sua analise a ideia de agente e propor que, embora determinados,
eles tém capacidades criadoras e certa latitude para decidir o curso de suas praticas. Essa volta
do sujeito que o estruturalismo havia banidotem seu debate com a fenomenologia sartriana
dos anos 1950 (LEVI-STRAUSS, 1962, p. 280) e com o marxismo, nao significou, no entanto,
urn retorno a0 subjetivismo individualista on a um irracionalismo. Para escapar a dicotomia
que dominava o debate filosofico de sua época, entre o objetivismo das estruturas sern sujeito
e o subjetivismo das filosofias da consciéncia, ele sugere que as ciéncias humanas superem
o empirismo descritivo prevalecente nesse campo e levem em conta as categorias imanentes
‘as préticas. No limite, trata-se de propor uma teoria geral da crenga (CD): a crenea entendida
nao como um ato soberano da consciéncia, mas, ao contrario, como um efeito simbélico
socialmente eficaz (illusio) inscrito no corpo sob a forma de disposieées para a agao (habi-
tus). Como a crenga, as disposigoes tampouco podem ser reduzidas a urn conjunto de fatos
privados internos: a maior parte da agao humana nao tern por base a inteneao on o célculo.
A forma como percebemos o mundo esté situada aquém do plano objetivo e subjetivo. Mais
do que o inconsciente é a mic consciéncia que governa a aqao (RP).

INCONSCIENTE Z33
Referéncia
LEVI-STRAUSS, C. Histoire et dialectique. In: . La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.

119. INCORPORAQAO

Ver: Capital cultural; Corpo; Habitus

no. INCULCAcAo
Ver: Arbitrdrio cultural; Sistema de ensino

321. lNDlVlDUO -- SOCIEDADE


' Louis Pinto

A oposicao individuo-sociedade, oriunda do senso comum, é para Bourdieu, assim corno


para Durkheim, superficial, oposta ‘as intencoes descritivas e explicativas da sociologia e,
portanto, filndamentalmente pré-cientl’fica: se 0 individuo é dado com seus talentos e seus
sistemas de preferéncia, como é preconizado pelo individualismo metodolégico, so restaria a V
sociologia constatar a pluralidade dos individuos e estudar sua “agregacao”; mas, esse “dado”,
apresenta-se, entao, como um mistério.
Bourdieu considerava as teorias individualistas como uma simples ilustracao da postura
“‘escoléstica”. Apesar de suas dfividas em relacao a solidez teérica de tais concepcées, ele nao
subestimava seu alcance politico. Ao levar a sério o retorno do individualismo na filosofia
6 na sociologia, ele o considerava como uma “espécie de profecia autorrealizante que tende
a destruir os fundamentos filosoficos do welfare state e, em particular, a nocao de respon~
sabilidade coletiva (nos acidentes de trabalho, no caso de doenca, on ma miséria, que é essa
conquista fundamental do pensamento social (e sociolégico)” (CPI, 14). Corn a ascensao d0
neoliberalismo, desde o inicio da década de 1980, o individuo foi posicionado na dianteira
1150 so contra a sociedade, mas sobretudo contra o Estado, “jacobino” e “totalitario”, contra as ’
“instituicées” (partidos, sindicatos...). Ele foi associado ao retorno a uma “filosofia do sujeito”
que rejeita a ambicao desmesurada das ciéncias sociais no sentido de explicar tudo pelo social.
Pode-se dizer que toda a obra de Bourdieu é uma superacao “em ato” da oposicao individuo—
sociedade on, se preferirmos, que tal superacao é uma tarefa a ser retomada continuamente,
porque a sociologia nao cessa de trabalhar contra os efeitos da naturalizacao do social que é
exercida sobre o individuo (ideologias do dom, da pessoa, etc).
Como é que a sociologia de Bourdieu se esforca para analisar fendmenos muito dispares,
reunidos sob o termo “individualismo”? A sociologia dos gostos e dos estilos de vida permite
mostrar o quanto as préticas de distincao fazem parte da relacao com a cultura dos grupos
privilegiados, assombrados pelo horror da “massa” e do "nivelamento”. Ter gostos “pessoais” é
algo que esta inscrito nas posicées sociais superiores que cultivam os valores de originalidade
e de requinte. Esse tipo de incentivos, associado ao ambiente familiar, é fortalecido pela acao

234 INCORPORACAO
da Escola que, independentemente de qualquer mensagem explicita, dota os individuos de
pretensoes estatutarias que levam a recusar as opinioes pré~fabricadas on a autoridade dos
porta~vozes, além de “reivindicar uma opiniao pessoal" em matéria de politica, moral e religiao.
Finalmente, as transformacoes da estrutura das classes sociais e dos modos de reproducao
atribuiram importancia creécente ao capital escolar. Pode~se compreender, nessa perspectiva,
a predominancia assumida pelas formas “brandas” de autoridade que tendem a eufemizar as
relacées de forca, dissimulando-as por trés da celebracao da cooperacao, do intercambio e da
criatividade individual. O que esta em causa é a aparicao de um modo de dominacao onde
a competéncia e a racionalidade substituiram a obediéncia, o conformismo, a autoridade.
Dito isso, a forca dos coletivos continua sendo muito importante, mesmo que venha a en-
veredar por vias menos solenes e mais discretas. A modalidade da adesao pode bem ser feita
mediante formas mais pessoais, como escolha puramente individual. 0corre que a integracao
das classes dominantes se efetua através das escolas de prestigio, das instituicoes de elite (La
noblesse d’Etat, 1989), dos casamentos no seio de grandes famflias, dos clubes seletos, etc.,
contribuindo assim para a reproducao dessas classes, cujos membros podem nutrir o sentimento
de seguir seus sentimentos pessoais. Por contraste, a demolicao dos coletivos associados ao
Estado social, descrita ern La misére du monde (1993), teve o efeito de privar os membros das
classes populares de referéncias simbélicas e de precipita~los ern um isolamento, ao qual seria
inconveniente atribuir o termo “individualismo”. A unica forca de transformacao social para
os dominados é a classe mobilizada (oposta a classe no papel, para o teérico).
A relacao do individuo com o grupo é uma questao que exige ser tratada de maneira empirica
e 1150 metafisica. Para Bourdieu, assim como para Durkheim, cada individuo é duplo: por um
lado, pessoa singularizada por um corpo limitado e perecivel; por outro, membro de uma Vida
coletiva da qual participa e que lhe proporciona reconhecimento, estima, identidade oficial e
publica. Os individuos singulares “participam da eternidade e da ubiquidade do grupo, para
o qual contribuem a fazer existir como algo permanente, onipresente, transcendente” (MP,
287). O ritual regulamenta as relacoes entre os dois aspectos: “O rito de investidura existe para
tranquilizar o impetrante sobre sua existéncia enquanto membro de pleno direito do grupo,
sobre sua legitimidade, rnas também para reassegurar o grupo sobre sua prépria existéncia
como urn grupo consagrado e capaz de consagrar” (MP, 287). Mesrno que tenha aparéncias
de transcendéncia, o grupo existe apenas através das crencas e expectativas dos membros;
portanto, ha diversos graus de integracao, assim como de crenca. A heranca implica a pre—
senca do grupo que recorre ao herdeiro, cujo desejo consiste em herdar. Bourdieu designa
por capital simbélico essa forma de capital acumulada pelo grupo e que proporciona valor,
legitimidade, razao de ser a seus membros. A importancia desse capital varia com 0 volume
dos capitals possuidos (economico, cultural; social), reproduzindo a sua maneira a desigual
distribuicao desses capitais: os dominantes sao também aqueles que detém mais valor social,
reconhecido socialmente. E na sociedade que se encontra o fundamento derradeiro do valor
que arranca os individuos da insignificz‘mcia e da arbitrariedade.
Como analisar sociologicamente os agentes concretos? Deve~se comecar por se livrar da
ilusao nominalista que consiste em partir do individuo singular considerado como o unico
verdadeiramente real, “individuo empirico” percebido na experiéncia ordinaria e dotado
‘ de um numero indefinido de caracteristicas. Em vez de propor uma espécie de decalque

lNDIVlDUOI-SOCIEDADE 235
“empreendimento, alias, infrutifero”, o conhecimento objetivo consiste em promover prim»
cipios de inteligibilidade. Para retomar a terminologia de Homo academicus (1984), pode-se
dizer que “o individuo epistémico” é metodicamente construido pela ciéncia, gracas a selecao
e a construcao de certo nfimero de variéveis dotadas de uma grande densidade informativa
e de um elevado valor explicativo (por exemplo, origem social, sexo). Salvo a limitar~se a
“enumerar os fenomenos”, como dizia Kant, o sociélogo n50 pode evitar a construcéo de
classes de individuos relativarnente homogéneas e baseadas no real. E na obra La distinction
(1979) que se encontram as explicacoes mais detalhadas sobre esse ponto. Em urna “classe
construida”, as variéveis 11510 $510 justapostas, mas formam urn sistema em que a significacao
de cada uma depende da relacao com as outras. Ao perguntar qual é a parte da profissao,
sexo, religiao nesta ou naquela prética, corre—se o risco de formular uma pergunta artificial,
corno faz a anélise multivariada que pressupoe a independéncia de cada variével da qual
ela pretende isolar a eficacia (grandes patroes e intelectuais ilustres tern frequentemente a
caracten’stica “nascido em Paris”, “estudante de Grandes Ecoles”, etc.). A partir do conjunto
das propriedades pertinentes, trata-se de construir uma “posicéo” que so adquire sentido em
determinado espaco, jé que é precisamente esse espaco que determina a natureza e a forca
das propriedades: o sociélogo nao impoe uma grade intemporal, mas planeja um conjunto
de posicoes diferenciais que é um produto historico. A trajetoria é a sucessao das posicoes
ocupadas, posicoes que podem reunir trajetérias ascendentes, descendentes, etc. Através dessas
posicoes, o que esté em causa é 0 volume e a natureza dos capitais possuidos que permitem
a “persisténcia no set” (social) e a reproducao da posicao.

122. INTELECTUAIS
Christophe Charle

A questao do tratamento sociolégico dos intelectuais aparece, em Bourdieu, em meados


da década de 1960, no memento em que ele efetua varias pesquisas com seus colaboradores
sobre os estudantes e, em seguida, sobre os professores universitérios; mas também quando
ele comeca a trabalhar sobre o campo literario. Essa questao era dominada, na época, pelos
debates politicos e pela figura do intelectual engajado, encarnada por Sartre. Nessa mesma
época encontravam-se as anélises de tipo sociologico derivadas de K. Mannheim (Ideologia
e utopia), I. Schumpeter (Capitalismo, socialismo ou democracia) on Max Weber (Econo~
mia e sociedade), conhecidas, sobretudo na Franca, através de sua vulgarizacao pelos livros
polémicos de Raymond Aron (1955), com quem Bourdieu estabelece uma relacao estreita, jé
que este filtimo dirige 0 Centro de Sociologia Europeia, da VI secao da EPHE (Escola Prética
de Altos Estudos), da qual Bourdieu foi o subdiretor até o desmantelamento desse centro apos
os acontecimentos de Maio de 1968. A maneira como Bourdieu vai repensar a questao dos
intelectuais situa—se no prolongamento e em reacao contra essas duas abordagens, parciais,
unilaterais e marcadas fortemente por a priori ideolégicos e pelo confronto entre marxisrno
e funcionalismo, teoricismo e empirismo. Contra a visfio marxista ou marxizante, a anélise
dos intelectuais proposta por Bourdieu rejeita reduzi~los a sua origem social, a sua funcao
ideolégica ou politica de apoio a luta de classes, seja a0 lado dos dominantes, seja ao lado dos

236 INTELECTUAIS
dominados (tema dos “intelectuais organicos” em Gramsci; dos “caes de guarda” em Nizan;
dos intelectuais engajados ou “companheiros d'e estrada” em Sartre; ou dos intelectuais co—
munistas “a servico do Partido”). As pesquisas empreendidas por ele e seus colegas sobre os
estudantes, aprendizes intelectuais, o convenceram da multiplicidade dos fatores que entram
em jogo nas tomadas de posicao, no interesse on no desinteresse relativamente ao compromisso
politico ou ideolégico entre os jovens (ou menos jovens) intelectuais. As mobilizacoes dos
estudantes por ocasiao da Guerra da Argélia (1954~1962) on em torno dos acontecimentos
de Maio de 1968 demonstraram o quanto as sociologias anteriores on as analises politicas
classicas a priori sao insuficientes quando aplicam esquemas classistas ou politico-ideolo-
gicos, ou recorrem a tipologias psicossociolégicas. Bourdieu pretende tambérn reagir contra
a visao “romantica” ou heroica que ressurge com a temética, na moda durante 05 anos 1960,
do conflito de geracées on da rejeicao das instituicoes, mobilizada nos trabalhos da sociologia
norte—americana sobre as novas formas de engajamento dos intelectuais, jovens ou menos
jovens, a proposito de 1968. Para sair dessas aporias e simplificacoes, deve-se reconstituir com
paciéncia a rede das relacées entre os grupos e o espaco estrutural do campo intelectuai que
orientam as opinioes preconcebidas. Convém, igualmente, produzir uma microssociologia
das trajetorias e do habitus em conflito para analisar plenamente os modos de compromisso
dos intelectuais em uma dada conjuntura on em determinado periodo. A Guerra da Argélia,
assim como as manifestacoes de Maio de 1968, forneceram uma ampla matéria para esse
tipo de analise que combina corte estrutural e historia genética. Apesar de testemunha e ator
dessas crises que provocaram uma profunda divisao entre os intelectuais franceses, Bourdieu
faz seu balanco apenas posteriormente, em particular no livro Homd academicus (1984) e
em Esquisse pour une auto~analyse (2004), no que tange a Guerra da Argélia.
Reconcfliar a abordagem individual em profundidade com a perspectiva coletiva; resenhar
os invariantes gerais e as variacoes peculiares aos diversos grupos ou subcampos (professores
universitarios, intelectuais “livres”, jornalistas, artistas, etc); reposiciona-los nas conjunturas
histéricas especificas (a crise social e politica, na Franca, em torno de 1848, do ponto de vista
de Flaubert; no momento do Caso Dreyfus, 1894-1906; on nas décadas de 1930-40) ~ (OP; RA;
CHARLE, 1990); Sapiro, 1999; reencontrar correspondéncias trans—historicas entre determina-
das configuracoes homélogas de opinioes preconcebidas, ou de reacées sociais e ideologicas
de alguns tipos de intelectuais, sem reduzi—los a simples porta—vozes de “interesses de classe”
ou de “ideologias” - serao esses os objetivos constantes das analises teoricas, assim como dos
estudos empiricos empreendidos por Bourdieu e por seus discipulos a respeito dos intelectuais.
A definicao abstrata e sociolégica — “fracao dominada da classe dominante”, proposta
em 1971 e desenvolvida em 1980 (BOURDIEU, 1971, 1980) —, assim como os estudos empiricos
aprofundados sobre intelectuais ilustres, tentam sustentar as duas pontas desse programa
de pesquisa. Definir os intelectuais como “fracao dominada da classe dominante” implica
situa-los no espaco mais amplo do campo do poder, avaliar seu grau de autonomia e de
unidade relativas, determinar as linhas de clivagem variéveis segundo as relacoes entre as
diversas espécies de capital — economico, cultural, simboiico — em determinada sociedade. A0
mesmo tempo, conve’m estar atento aos modos de designacao e de representacao dessa fracao
segundo os momentos historicos e as sociedades, sob pena de extrapolar indevidamente de
um caso particular (aqui, o francés) para outros casos da Europa on do mundo. As conotacoes

INTELECTUAIS 237
diferentes do termo “intelectual”, segundo as culturas politicas, sua aparicao diferenciada de
acordo com os paises e as épocas, a divergéncia de seus equivalentes, constituem importan-
tes indicadores para situar os intelectuais em relacao ao campo do poder e as outras classes
sociais, assim como para compreender as linhas de corte entre eles, retraducao, segundo
cada caso, de clivagens religiosas, sociolégicas, territoriais, politicas, etc. A experiéncia da
Argélia e da ambiguidade dos intelectuais autéctones em uma sociedade colonial e rnarcada
fortemente pela presenca do 1515; o conhecimento indireto da sociedade brasileira através da
tese de Sergio Miceli, elaborada no ambito do Centro de Sociologia Europeia (MICELI, 1981); a
leitura e a interpretacao aprofundada dos filésofos e sociélogos alemaes (Cassirer, Heidegger,
Max Weber); a necessidade de se situar perante a sociologia empirica dominante no mundo
universitério, oriunda dos Estados Unidos e defendida vigorosamente por alguns sociologos
concorrentes ou adversarios de Bourdieu — tudo isso acabou por torna-lo, bem cedo, sensivel
a0 interesse e as dificuldades do rnétodo comparative para esse tipo de tematica.
As analises que Bourdieu dedicou a alguns grupos ou personalidades forarn felizmente
completadas pelos numerosos trabalhos que seu método e suas sugestoes suscitararn em seus
estudantes, diretos ou indiretos, na Franca e no exterior. Todo esse corpus teérico e empirico
permite esbocar uma verdadeira historia social e estrutural dos intelectuais, em urn periodo
de média e longa duragao, nao so no ambito francés (RA; CHARLE, 1998; BOSCHETTI, 1985;
SAPIRO, 1999, 2011; PINTO, 1995), mas também em escala parcialmente europeia (OP; CHARLE,
1996; CASANOVA, 1999; SAPIRO, 2009; BOSCHETTI, 2010) e, até mesmo, internacional. Essa
abordagern historico-sociologica permite que Bourdieu e aqueles que se inspiram ern sua obra
escapem ao eterno presente dos ensaios polémicos sobre os intelectuais ou a sociologia depre-
ciativa e carente de perspicacia que caracteriza a maior parte desses escritos de circunsténcia.
Na filtima- fase de sua obra, na medida em que sua notoriedade o levava a implicar~se
em novas formas de engajamento, Bourdieu tentou igualmente definir uma nova figura do
intelectual, baseada nessas analises teéricas e historicas, embora adaptada a nova conjuntura
historica das décadas de 1980 e 1990, marcadas pelo que ele designou como a restauracao
conservadora e neoliberal. Esta, tanto na Franca quanto em urna grande parte do mundo,
redundou em urn novo ataque aos intelectuais, como a Franca tern conhecido periodicarnente,
e no advento de figuras que lhes fazem concorréncia, submetidas aos imperativos do mercado
e do poder, para defender e ilustrar a ordem estabelecida: intelectuais midiaticos, jornalistas,
think tanks, peritos, etc. Diante dessa nova alianca entre poder, dinheiro e saber, Bourdieu
reafirmou tanto em seus livros e em suas intervencées quanto em sens escritos militantes a
necessidade de criar um intelectual coletivo, apoiado nos conhecimentos das ciéncias sociais
que estariam a servico do ideal universalista das Luzes e da defesa dos dominados, alicerce,
alias, da tradicao do intelectual de esquerda na Franca. Com efeito, na nova situacao politica
e internacional, as formas antigas, pontuais ou partidarias do compromisso deixaram de ser
suficientes pela seguinte razao: o que esta em jogo é a prépria autonomia dos intelectuais e a
apropriacao do saber pelos diferentes grupos sociais em luta. Eis ai a explicacao para o texto
que encerra o livro Les régles de l’art, “Pour un corporatisme de l’universel”; para a fundav
cao da associacao “Raisons d’agir”; para a publicacao de opfisculos militantes na colecao
que exibe esse mesmo nome —- ern particular, Sur la télévision (1996), que tem obtido
uma grande repercussao e suscitado numerosos debates midiaticos; para a necessidade

238 INTELECTUAIS
de conciliar ciéncia e compromisso, autonomia do pensamento critico e vinculo com os
movimentos sociais que resistem ‘as investidas das politicas neoliberais e autoritérias,
ameacando liquidar o restante do Estado~Providéncia (ver Contre-feux, 1998; e Contre~
feux 2, 2001); para a importfincia da presenca das ciéncias sociais no ensino médio, para
a defesa de um ideal aberto‘ de ensino superior como mola propulsora de emancipacéo e
de progresso social, além de espaco de formacao dos futuros intelectuais, para a fundacéo
com C. Charle, em 1992, da Association de réflexion sur les enseignements supérieurs et
la recherche (ARESER), assim como a publicacao de um livro coletivo (1997). Esse novo
combate dos intelectuais trava-se no plano 1150 so nacional, mas também internacional,
como pode ser observado em seu Interventions, science sociale et action politique (2002).

Referéncias
ARON, R. L’opium des intellectuels. Paris: Calmann—Levy, 1955.
BOSCHETTI, A. Sartre et Les Temps Modernes. Paris: Minuit, 1985.
'BOSCHETTI, A. (Org). L’espace cultural transnational. Paris: Nouveau Monde, 2010.
BOURDIEU, P. Champ du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe. Scolies, Cahiers de
Recherche de l’Ecole Normale Supérieure, v. 1, p. 726. 1971.
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BOURDIEU, P. et al. Quelques diagnostics et reme‘des urgents pour une université en pe’ril. Paris:
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123. INTERESSE

Ver: Illusio

124. INTERVENTIONS} 196 7-200 1: SCIENCE SOC/ALE ETACTION POLITIQUE


Afranio Mendes Catani

BOURDIEU, P. Interventions 1961-2001: science sociale et action politique. Marseille: Agone, 2002.

INTERVENTIONS, 1967-2001: SCIENCE SOC/ALE ETACTION POLITIQUE 239


a antiguidade na condicao de jogador, sao trunfos ao alcance de uma minoria e cujo privilégio
lhes tende a dar vantagem considerével frente aos demais. '
Sob este angulo, o préprio conceito de habitus é entendido por Bourdieu a0 mesmo tempo
como sentido do jogo e como o proprio jogo incorporado, funcionando corno urn operador
d'e racionalidade prética que fornece a0 agente um saber agir aprendido ao longo do tempo
por meio de sua insergao no mundo social. 0 sentido do jogo pode ser entao tornado como
uma forma de conhecimento da posicao (de cada agente e do conjunto) no campo e corno
capacidade de antecipacao, isto é, uma forma de ajuste antecipado as exigéncias de um
espaco especifico que indica o encontro ‘entre um habitus (uma historia e um jogo social
incorporados) e um campo (uma historia objetivada). Tal corno no esporte, o born jogador
é aquele que consegue prever as jogadas dos adversarios e organizar as suas, inclusive corn
improvisacoes, em funcio disso.
A participacao em determinado campo social — cientifico, religioso, economico — depende
intrinsecarnente da atribuicao de sentido pelo agente aquele jogo especifico, do reconhecimento
de valor nas questoes em disputa e da aceitacao de suas regras. Esta adesao ou crenca no jogo
e em todos seus pressupostos, que Bourdieu chama de illusio, é o que garante a existéncia
do jogo como crenca coletiva inteligivel e dotada de sentido e razao de ser para todos (e
apenas para eles) aqueles envolvidos e tomados pelo jogo. Vale dizer, para que um campo se
constitua e funcione corno tal, sao necessérias nao somente questoes que lhe sejam proprias,
mas também pessoas dispostas a jogar o jogo e que p'ossuarn urn habitus que implique o_
conhecimento e o reconhecimento das leis intrinsecas do jogo e do que esta em jogo. Assirn,
por exemplo, se 0 investirnento no campo da ciéncia on no das artes pressupoe que 03 par—
ticipantes ou candidatos a participantes, antes de mais nada, acreditern no valor ern si das
atividades cientificas ou artisticas e de tudo que lhes diga respeito e, em seguida, obedecam
‘as exigéncias impostas corno condicao para atuar legitimamente naqueles espacos, a auséncia
desta crenca nos individuos alheios aquele espaco torna o jogo e as acoes nele realizadas sern
sentido; logo, sem atrativo, desinteressante e, até mesmo, absurdo.
Em funcao da distribuicao desigual de recursos sociais entre as classes de agentes, a pro-
babilidade de haver interesse e investimento em determinados campos varia de acordo com a
logica de funcionamento de habitus diferenciados. Aposicéo ocupada no espaco social segundo
a dotacao de capital (volume e estrutura) tende a definir, portanto, a orientacao dos agentes
sociais em relacao a possiveis interesses nos diferentes campos. Desse modo, quanto mais
valorizado for certo tipo de capital (cultural, economico, simbolico, social) em determinado
campo, maior a probabilidade de 03 agentes mais bem dotados daquele recurso atribuirem
sentido e investirern naquele jogo social especifico, com maiores chances de rentabilidade,
isto e', de acfimulo do tipo de capital especifico a0 campo (cientifico, artistico, religioso). Este
principio explica, por exemplo, por que dificilmente, do ponto de vista probabilistico, um filho
de operério ou de pequeno comerciante se sentiré atraido e investiré no mundo das artes; e
caso aconteca, por que sao reduzidas as chances de se manter naquele espaco, alcancar uma
posicao de destaque ou obter seus principais beneficios.
Nessa perspectiva, a nocao bourdz'eusiana de estratégia corno produto do sentido prético,
ou mesmo como o préprio sentido do jogo, ocupa lugar central na compreensao das diferentes
condicoes de entrada e de movimentacao dos agentes sociais nos campos. Uma vez que a

242 JOGO (Sentido do)


habilidade em compreender e se orientar no jogo implica que os agentes faoam uma leitura
tanto de sua posigao no espago social quanto dos recursos de que dispoem — captando dessa
forma as hierarquias e relagdes de forga em seu interior —, suas estratégias tendem a obedecer
a uma légica de maximizagao dos recursos de que dispoem. Embora néo necessariamente
reflitam um calculo explicito e conscienté dos agentes, as estratégias adotadas no jogo social
mobilizam nos jogadores o sentido do jogo a fun de que operem suas aqoes (escolhas, lances,
apostas) voltadas a conservagao, melhoramento on, em alguns casos, a subversao do jogo e
de suas regras.
Por outro lado, a medida que os agentes se deslocam dentro do campo segundo a orientagao
objetiva de suas trajetérias — de uma posigao dominada para uma intermediaria ou domi»
nante, por exemplo —, eles tendem a ajustar suas estratégias em funqéo das novas posigées
ocupadas. Este efeito explica por que ao longo da Vida social um agente ou grupo de agentes
pode assumir estratégias, sobretudo na forma de tomadas de posigéo em relagao as regras
do jogo e das questoes emjogo, que variam de arriscadas ou desafiadoras a conservadoras
ou voltadas a preservagéo da situagéo atual.

TNJORNAUSMO

Ver: Midia

naJUVENTUDE
Marilz'a Ponies Sposito

Bourdieu tmta diretamente do tema juventude em dois textos, pouco extensos, mas den-
sos. O primeiro, A “juventude” é apenas uma palavm (1978), é uma entrevista concedida a
Anne-Marie Métailié (QSp, 143-154). 0 segundo, Do quefalamos quando sefala do “problema
da juventude? (1986), é um trabalho apresentado em Vaucresson, na Franga. No primeiro, a0
criticar o caréter abstrato da palavra juventude, retoma postura jé anunciada nos anos 1960,
V quando recusava uma definiqéo homogénea da categoria estudante 11a anélise dos universiférios
franceses. Para Bourdieu as divisdes entre as idades sao arbitrarias, uma vez que as fronteiras
entre os grupos etarios sao objeto de disputa nas formagoes sociais. A compreensao sociologica
dos grupos de idade exige o conhecimento dos campos sociais que possuem suas préprias leis
de envelhecimento. Propoe que sejam consideradas as diferengas entre os jovens a partir de
suas posigées sociais em espagos sociais desiguais, o que levaria a uma necesséria pluralidade
no estudo desses segmentos. Apresenta, também, sugestées importantes para o estudo das
geragdes ao ressaltar que as aspiragoes das sucessivas geragoes, de pais e de filhos, séo também
produto dos diferentes estados da estrutura da distribuigao de bens e de diferentes oportu—
Didades de acesso a esses mesmos bens. Conflitos de geraqoes seriam, entao, conflitos entre
sistemas de aspiragées constituidos em épocas diversas. No segundo texto, insiste em afirmar
que a juventude, bem como a opiniao pdblica, nao existe. O debate. em torno do “problema da
juventude” (delinquéncia, violéncia, drogas, entre outros) revelaria que as préprias categorias

JUVENTUDE 24-3
de inteligibflidade em torno dos jovens séo também produto do mundo social, sendo necessério
ir além dessas primeiras classificacoes. O que se anuncia por meio da construcio “problema
da juventude” é a existéncia de conjunturas em que a ordem social e a ordem das geracoes néo
estéo ’asseguradas. Em contextos de forte mudanqa do modo de reproducéo ocorreriam crises
de sucesséo, tanto no sentido cronolégico come no sentido juridico da heranca legitima.

Referéncias
BOURDIEU, P. De quoi parle—t-on quand on parle du “probléme de la jeunesse”? In: PROUST, F.
(Org.). Les jeunes et les autres: contributions des sciences de l’hamme 51 la question desjeunes.
Vaucresson/CRIV, 1986. p. 229-235.
METAILIE, A. Lesjeunes et le premier emploz'. Paris: Association de Ages, 1978. p. 520-530.

244 JUVENTUDE
’T'flf."

.a
.139: LEGITIMIDADEILEGITI MAG/10 ,
Maria Iosé Braga Viana

Bourdieu fundamenta ern Weber a sua teoria da legitimidade, transpondo para a ordem
cultural as teses weberianas acerca dos efeitos de uma “ordem legitirna” — religiosa, politica,
juridica — sobre o conjunto dos grupos sociais. A sua maneira, Bourdieu formula urna economia
dos bens culturais (objetos, saberes, praticas, competéncias e habflidades), definindo como
legitimos aqueles que a sociedade considera superiores, no quadro de relacoes de dominacao.
As nocoes de arbitrério cultural e de violéncia simbélica assumerrl centralidade nessa
teoria. Para 0 sociologo francés, nenhurna cultura é intrinsecarnente superior a outra, sendo
o arbitrério cultural a imposicao — e o reconhecimento — de uma cultura, a dominante, como
uma verdade universal. Nesse fenomeno ocorre a0 mesmo tempo uma violéncia simbolica
dos grupos dominantes sobre os dominados, violéncia que se exerce de diferentes maneiras
e em ambitos distintos. Bourdieu e Passeron (LR, 38) defendem que “numa formacao social
determinada, a cultura legitima, isto é, a cultura dotada de legitimidade dominante, nao é
outra coisa que o arbitrario cultural dominante, na medida em que ele é desconhecido em
sua verdade objetiva de arbitrario cultural e de arbitrario cultural dominante”.
O reconhecimento da cultura legitima pelos dominados funda—se no exercicio de um
poder que aparece como legitimo e que teria suporte num conjunto de representacoes sobre
a realidade, compartilhado por dominantes e dominados; ou seja, numa crenca coletiva na
legitimidade de um bem. Essas representacoes/crencas justificariam a dominacao estabelecida,
tornando-a aceitavel, e até desejével, em nome de uma definicao, supostamente universal, do
Born, do Bem, doJusto, do Sagrado, da Verdade, do Normal, do Natural (ACCARDO, 1991, p. 42).
No entanto, as diferentes classes sociais se distinguem, sobretudo pelo grau de conke—
cimento da cultura legitima. Bourdieu (PBS, 94) escreve a respeito: “as diferentes classes
sociais se distinguem menos pelo grau em que reconhecem a cultura legitima do que pelo
grau em que elas a conhecem”. A relacao que as camadas populares mantém com a cultura
legitima, por exemplo, seja na sua dimensao artistica, literaria ou cientifica, seria marcada pelo
“desapossarnento”, que constitui uma forma de desconhecirnento (PBS; LDp). Um indicador
desse desapossamento pode ser encontrado na separacao “entre as habilidades (savoir—faz're)

LEGITIMIDADEILEGITIMACAO 245
préticas, parciais e téticas, por urn lado, e, por outro, os conhecimentos teéricos, sisteméticos
e explicitos [...]; entre a ciéncia e a técnica, a teoria ea prética, a “concepcao” e a “execucao”, o
"intelectual” on o “criador” [...] e o “bracal”, simples servidor de uma intencao que o supera,
um executante desapossado do pensamento de sua prética” (LDp, 361662).
Urn campo privilegiado no qual Bourdieu analisa o funcionamento da legitimidade cultural
é constituido pelos gostos e estilos de Vida, entendidos como uma propriedade central dos
diferentes grupos sociais (ao lado de crencas, opinioes, praticas de consumo desses grupos)
e definidos como “a propensao e aptidao a apropriacao (material e/ou simbolica) de uma
L determinada, categoria de objetos ou préticas” (PBS). 0 autor desenvolve parte importante
de sua anélise a respeito desse terna no livro A distincdo (2007).
Ofuncionamento da escola contemporfinea, por sua vez, é também exemplar para
ilustrar o fenorneno da legitimidade cultural, na perspectiva de Bourdieu. Por urn lado, a
escola apresenta a cultura que veicula corno neutra e universal, embora adote de fato a cultura
da classe dominante, cultura que exige de todos, independenternente da origem dos alunos.
Bourdieu forjou o conceito de capital cultural — entendido como a cultura legitima no carnpo
das artes, das letras, das ciéncias — para explicar as desigualdades de escolarizacao entre os
diferentes grupos sociais. Por outro, o sistema escolar é considerado como locus privilegiado
na producao de um determinado tipo de relacao com as obras de cultura consideradas legi.
timas relacao expressa na frequéncia a bibliotecas, museus, teatros, concertos, etc. Nesse
-
sentido, o autor afirrna que “[...] as desigualdades frente as obras da cultura erudita nao sao
senao urn aspecto e um efeito das desigualdades frente a escola, que cria a necessidade cultural
ao mesmo tempo em que da e define os meios de satisfazé—la” (EB, 60).
“Poderiarnos dizer que a distancia em relacao as obras legitimas se mede pela distancia em
relacao ao sisterna escolar...” (PBS, 94). Dessa maneira, o carnpo escolar se apresenta como rica
possibilidade de identificacao e Visibilidade do funcionarnento do arbitrario cultural, da violéncia
sirnbélica e da producao de desigualdades sociais; em suma, dalegitimacao cultural. Cabe assi-
nalar, ainda, a existéncia de aspectos em que a pertinéncia e avalidade da teoria da legitimidade
cultural se apresentarn relatives, conforme pode ser observado em Grignon e Passeron (1989).

Referéncias
ACCARDO, A. La légitimité. In: ACCARDO, A. Initiation ()1 la sociologie: une lecture de Bourdieu.
Bordeaux: Le Mascaret, 1991. p. 39—70.
GRIGNON, C.; PASSERON, IxC. Le savant et lepopulaire: mise’mbilisme etpopulz'sme en sociologie
et en lite’mture. Paris: Gallirnard/Le Seuil, 1989.

239-..FEY'75T359551 9'79”.“ (79082009) .......................


Michel Daccache

Claude Levi-Strauss foi, no século XX, um dos mais importantes pensadores no campo
1150 86 da antropologia, rnas tambérn das ciéncias sociais e humanas ern sentido amplo. Essa
importancia esta associada a introducao, no estudo das sociedades, do paradigma estrutura-
lista, tornado de empréstirno a linguistica. Nesse sentido, sua obra alimentou abundanternente

246 LEVI-STRAUSS, CLAUDE (7908-2009)


my“

.J
os trabalhos de Pierre Bourdieu no piano teérico e conceitual. Mas ele é igualmente uma das
principais figuras do campo intelectual francés. Eis o motivo pelo qual Levi—Strauss é um
objeto de estudo privilegiado no ambito da sociologia critica do mundo académico desenvol~
Vida por Bourdieu. Alias, para o sociélogo, a analise da trajetéria e das propriedades sociais
de Lévi~Strauss é condicao para uma apropriacao reflexiva dos instrumentos propostos pela
antropologia estrutural. Portanto, n50 se deve estabelecer nenhuma distincao nos trabalhos
de Bourdieu, entre aqueles que tomam por objeto o campo intelectual (Homo academicus,
Esboco de aut0~andlise...) e as obras mais teéricas que discutem a antropologia estrutural
e seus aportes (Esboco de uma teoria da prdtica, O senso przitico, Razfies prdticas...)
Na década de 1960, o trabalho de Levi-Strauss teve participacao na redefinicao da paisa~
gem intelectual francesa, contribuindo para tornar possivel a obra de Bourdieu. LévLStrauss
empreende, com efeito, uma estratégia ambiciosa de revalorizacao das ciéncias humanas,
baseada no acfimulo do prestigio da filosofia (o termo “antropologia” — preferido, a época, ao
de etnologia faz referéncia a Kant) e da ciencia (o conceito de estrutura é, por sua vez, tornado

-
de empre’stimo as ciéncias chamadas “duras”) — (CD, 16). Com a antropologia estrutural, uma
ciéncia social se irnpoe, pela primeira vez, como disciplina dominante, inclusive aos olhos dos
‘ filosofos: ela revaloriza autores, tais como Durkheim ou Mauss, negligenciados durante muito
tempo pela tradicao filosofica, e que se constituirao em importante fonte de inspiracao para
Bourdieu. Levi-Strauss encarna, entao, a figura do “marginal consagrado”, na qual Bourdieu
se reconhecera mais tarde (HA, 140-141). Efetivamente, sua trajetoria desvia—se da ordem
universitaria “normal” (e, portanto do estilo de pensamento e do modode Vida que lhe sao
inerentes), a qual nao faz senao levar a mera reprodugao académica. O que 1150 o impede, em
nada, de ocupar uma posicao dominante no espaco das letras e das ciéncias humanas, ficando
a falta relativa de poder universitario amplamente compensada pelo reconhecimento cientifico
e pela notoriedade intelectual. O prestigio da antropologia estrutural permite a Bourdieu, que
efetuava entao suas primeiras pesquisas na Argélia, deixar de se pensar como filosofo, mas
sem concretizar uma ruptura definitiva com a “disciplina rainha”. Considerando-se, antes
de mais nada, como urn antropologo, ele inscreve seus trabalhos na tradicao estruturalista:
L’Homme, revista dirigida por Levi-Strauss, exerce sobre o sociélogo uma forte atracao (SSR,
191—192); e “La maison kabyle ou le monde renversé”, texto em que Bourdieu aplica corn rigor o
método de anélise proposto pela antropologia estrutural, é dedicado a Levi-Strauss (BOURDIEU,
1970). No entanto, 0s trabalhos sobre a aculturaeao (Le déracinement) e as estratégias fa-
miliares (La parenté comme repre’sentatiorz et comme volonté) — que suscitam questoes
ignoradas pela tradicao estruturalista (principalmente as do desajuste entre as representacoes
e as préticas) — romperao com a abordagem levisstmussiana.
Trajetérias sociais e modos de entrada no campo intelectual tao diferentes quanto as de
Lévi~Strauss e de Bourdieu so poderiam levar a préticas de pesquisa e abordagens teoricas
também muito diferentes. Com efeito, segundo Bourdieu, o percurso de Levi—Strauss, apesar
de nao conforme ‘as carreiras modais do mundo universitario, é o produto de disposicoes
a assumir riscos associados a uma origem social nitidamente favorecida (HA, 143). Nele
' Bourdieu Vé igualmente uma das causas da relacao “desrealizante” e estetizante com o
mundo social (a esse proposito, ele evoca uma “denegacao” no sentido freudiano do termo).
Essa distancia do mundo social manifesta-se tanto nas escolhas dos terrenos de pesquisa

LEVI-STRAUSS, CLAUDE (7908—2009) 247


(frequentemente “exéticos”) quanto na relacao com os nativos (o “olhar distanciado”) ou,
ainda, no estilo de escrita (com as inflexoes romanticas de Tristes tropiques ou de My-
thologiques). No plano teorico, ela se traduz na importancia atribuida ao simbélico em
detrimento do material (EAA, 59-63). Com efeito, a0 concentrar-se quase unicamente na
coeréncia interna dos sistemas simbélicos ~ por exemplo, as categorias de classificacao —,
a antropologia praticada por Lévi-Strauss acaba por fazer abstracao das funcoes que tais
sistemas sao chamados a desempenhar nos diferentes modos de dominacéo. E isso que
permite compreender que a antropologia estrutural substitui as préticas efetivas pelo
sistema légico construido pelo analista. Ao confundir os diferentes sentidos da palavra
“regra” (RP, 219), ela suprime progressivamente a diferenca entre a realidade e o modelo
elaborado para explicit-la, confundindo assim as coisas da logica com a logica das coisas.
Ela ignora, por isso mesmo, as variacoes, as lacunas e as incoeréncias inerentes as praticas
humanas, veiculando uma teoria da acao na qual os individuos sao reduzidos ao estatuto
de executantes de um programa que lhes é como que imposto de fora. Bsse é particular—
mente o caso das regras de parentesco, dominio de predilecao da antropologia estrutural:
de fato, Lévi-Strauss substitui as praticas observéveis no terreno pelo sistema elaborado a
partir das regras oficialmente aceitas pelos nativos. Ora, o que é considerado como algo de
principio nao constitui forcosamente a regra: Bourdieu observa, por exemplo, que o casa-
mento apresentado como legitimo, nas sociedades arabo-berberes, com a prima paralela,
constitui na realidade apenas uma infima minoria das aliancas efetivas. Assim, enquanto a
antropologia estrutural — caracterizada por seu “juridicismo” —— enfatiza as regras logicas, ,
Bourdieu se interessa pelo jogo com a regra. Eis o que o leva a reintroduzir os agentes e
suas capacidades generativas — descartadas pelo estruturalismo puro, tanto na linguistica
quanto na antropologia ~ mediante nocoes, tais como as de habitus e de estratégia. E por
isso inclusive que ele reintroduz na analise uma dimensao negligenciada pela antropologia
estrutural: a do tempo. Em seu estudo relativo a dinamica do dom e do contradom — um
dos temas fundamentais da antropologia ~, Bourdieu mostra, por exemplo, que somente
um distanciamento temporal (ignorado por Lévi-Strauss) pode explicar a coexisténcia da
ideologia do dom, vislumbrado como ato de pura gratuidade, e de sua verdade objetiva
como simples troca “economica” (ETP, 337—341).
Nao resta dt'ivida de que a antropologia estrutural constituiu uma importante fonte de
inspiracao para Bourdieu, o que 11:30 0 impede de julgar que ela padece de um viés particular
~ 0 epistemocentrz’smo escoléstico -, do qual Levi—Strauss seria a perfeita encarnacao. Essa
forma especifica de flusao erudita é, com efeito, o produto de uma relacao “altiva e distante”
(CD, 31) do cientista com seu objeto, o que conduz a projetar “na prética [. . .] uma relacao
social impensada que nao é outra senao a relacao escolastica com o mundo” (MP, 67). Ora,
foi justamente para romper com essa forma de intelectualismo que Bourdieu, ao dedicar~se
essencialmente ao estudo de sua prépria sociedade, desenvolveu uma abordagem gene’tica
e reflexiva. Enfim, se a oposicao entre esses dois pensadores se exprime, antes de tudo, no
terreno cientifico, ela nao deixou de se manifestar sob a forma de relacoes bastante diferen~
tes ao c‘ompromisso politico: a reserva voluntaria de Lévi—Strauss e a0 conservadorismo das
posicoes que seus trabalhos inspiraram (sobretudo sobre a familia) opoe—se a militancia
intelectual e critica desenvolvida por Bourdieu.

248 LEVI-STRAUSS, CLAUDE (1908—2009)


' Referéncia
BOURDIEU, P. La maison kabyle ou le Inonde renversé. In: . P. Echanges et commu-
nications. Mélanges oflerts (1 Claude Lévi—Stmuss pour son soixantie‘me anniversaire. Paris‘La Haye:
Mouton, 1970. '

Afranio Mendes Catani

BOURDIEU, P. Lecon sur la lecon. Paris: Minuit, 1982.

Sexta—feira, 23 de abril de 1982, Bourdieu profere sua aula inaugural no Collage de France,
cadeira de Sociologia, completando o processo de sua eleicao e nomeacao para aquela insti—
tuicao de pesquisa, criada em 1530 pelo rei Francisco I. Ele se vale de varios pensadores das
areas de filosofia, psicanalise, letras, ciéncias sociais e matemética, ale'm da literatura classica
em diversos desses dominios. lnicia sua exposicao considerando que a aula sobre a aula vem
a ser um “discurso que reflete a si mesmo no ato do discurso”, lembrando da propriedade
basica da sociologia como a concebe: todas as proposicoes que a sociologia anuncia podem
e devem aplicar-se ao sujeito que faz a ciéncia. Praticando a sociologia da sociologia, analisa
o discurso sociolégico a partir da posicao social ocupada na estrutura do campo social pelo
sociélogo que o produz, pois a critica epistemolégica nao se da sern uma critica social” (LL, 7).
No interior de cada campo social existe urn movimento perpétuo dos diferentes agentes
em suas acoes e reacoes constantes, procurando lutar para manter ou melhorar sua posicao
no campo. Na relacao entre “o jogo e o sentido do jogo” é que se engendram os moveis da con~
corréncia e se constituem valores que, “mesmo que nao existam fora dessa relacao, impoem—se
no interior da mesma, com uma necessidade e uma evidéncia absolutas. Essa forma original
de fetichismo esté no principio de toda acao”. Entende os investirnentos como “ilusoes bem
fundadas”, que “superam os lucros explicitamente visados (salario, preco, recompensa, troféu,
titulo, funcao)” e fazem com que cada agente saia do anonimato e se afirme como “atuante,
envolvido pelo jogo, ocupado [. .] e dotado de uma missao social” (LL, 30-31). E apenas a
sociedade que atribui, em diferentes graus, “as justificacoes e as razoes de existir”. Assim,
“sem chegar a dizer, como Durkheim, que ‘a sociedade é Deus’, eu diria: Deus nao é nada
mais do que a sociedade. O que se espera de Deus somente se consegue obter da sociedade,
da contingéncia, do absurdo [...]. O juizo dos outros é o juizo final; e a exclusao social é forma
concreta do inferno e danacao. E tambérn porque o homem é um Deus para o homem que o
homem é um lobo para o homem” (LL, 33).
Bourdieu experimentou um terrivel mal-estar por ocasiao da leitura de sua aula. Nesse
ritual de consagracao questiona o rito de instituicao no préprio rito, gerando grande cons-
trangimento, dada a violéncia da situacao, pois questionava a crenca e a colocava“em perigo
exatamente no momento e no lugar em que seria apropriado celebré—la e reforca~la” (EAAp,
131). Tern dificuldade para concluir a leitura, sua voz quase some, verifica que vérios colegas
estao atonitos. “Depois, sinto um terrivel mal—estar, ligado a0 sentimento da gafe, mais que
da transgressao” (EAAp, p. 132).

LICOES DA AULA (Lecon sur la lecon) 249


Tal postura reforga, acredito, o exercicio pleno do compromisso intelectual do autor, de nao
"pregar aos convertidos”; talvez fosse esse o sentido, para ele, da “aula de uma aula inaugural
de sociologia consagrada a sociologia da aula inaugural” (LL, 34).

Referéncia
BOURDIEU, P. Legon Inaugurale (fait le Vendredi, 23 avril 1982). Chaire de Sociologie. College
de
France. Paris, 1982. (Exemplaire hors commerce, n. 370).

132. LINGUAGEM

Ver: Linguistico (capital; mercado)

333. LINGUiSTlCO (Capital; Mercado)


Antonio Augusto Games Batista

De modo geral, o interesse de Bourdieu pela linguagem nao se diferencia do movimento


que 0 faz se interessar por fenomenos aparentemente dispares como a fotografia, as estraté-
gias matrimoniais, o campo académico, o espago, a literatura. Ao compreender seu trabalho
como uma “teoria cientifica”, o sociologo deseja progressivamente construir urn “programa de.
percepgao e de agao — um habitus cientifico [...] que se revela somente no trabalho empirico.
13 um construto temporario que toma forma para e pelo trabalho empirico” realizado, tendo
em vista diferentes objetos e esferas do mundo social (Ri, 161).
De modo especifico, porém, a ateneao de Bourdieu a linguagem parece ter duas motiva-
goes principais. Fundamentalmente, essa analise integra, para a construgao de sua teoria da
pratica, sua critica aos pressupostos do estruturalismo, especialrnente aos daquela ciéncia que
se tornara, a partir de Ferdinand de Saussure e, mais tarde, de Noam Chomsky, o paradigma
das demais ciéncias humanas e sociais, da antropologia a psicanélise. E nessa empreitada que
o sociologo situa, na primeira nota da Parte 1 de A economia das trocas linguisticas (1996)
o objetivo de seu trabalho: “Tentei analisar em outra parte 0 inconsciente epistemologico
do estruturalisrno, ou seja, os pressupostos que Saussure empregou com muita lucidez na
construgéo do objeto proprio da linguistica, mas forarn esquecidos ou recalcados por aqueles
que utilizaram ulteriormente o modelo saussuriano” (Ver SP, 51; PVDp, 23).
A segunda e 1150 menos importante motivagao especifica da atengao de Bourdieu a lingua
reside na prépria compreensao do funcionamento do mundo social. Forma mais naturali-
zada, distintiva e, por isso, desconhecida, de capital cultural, a h’ngua e préticas linguisticas
legitimas constituem um capital linguistico capaz de gerarlucros nos diferentes campos e de
exercer uma das formas mais sutis e eficazes de Violencia simbolica. Por essa razao, 0 capital
linguistico atravessa, com maior ou menor énfase, praticamente toda sua obra.
O estudo sistematico desse tipo de capital, porém, sera feito por um conjunto de artigos,
em parte posteriormente reunidos, com modificaqoes, em 1982, em Ce que parler veut dire:
l’économz’e des échanges linguistiques (traduzido no Brasil em 1996 como A economia das
trocas linguisticas: o quefalar quer dizer). Embora na coletanea se note a busca de uma

250 LINGufsnco (Capital; Mercado)


sintese, especialmente entre as partes I e II, preferiu-se aqui, em diferentes momentos, recor-
rer aos artigos que originaram as partes, a saber: “Le fétichisme de la langue” (1975), que
raramente é citado nos estudos do sociélogo sobre a linguagem, e “L’Economie des échanges
linguistiques” (1977), publicado em nfimero especial da revista Langue Frangaise sobre o
tema. A escolha se deve a uma inflexao no pensamento bourdieusiano decorrente, acredito, V
da leitura da obra de Bakhtin-Volochinov (2006) ~ citado no artigo, numa primeira nota,
que desaparece no livro. Avalia~se, aqui, que o procedirnento permite acompanhar melhor
o pensamento de Bourdieu.
Para Bourdieu, 0 capital linguistico é uma dimensfio do capital cultural, talvez uma das
mais dissimuladas, por diferentes razoes. Por urn lado, o aprendizado de uma lingua é fruto
de um aprendizado muito precoce no interior da famflia, nao sendo, a partir de certo estégio
da construcao do habitus primario (on do estégio de formacio do cérebro, de acordo corn
pesquisas neurolinguisticas), facilmente modificavel — como comprovam fenornenos como o
“sotaque” na aprendizagem de linguas estrangeiras on a manutencio de tracos regionais estig-
matizados, mesmo apés uma longa escolarizacao de sucesso (corno o R retroflexo ou “caipira”,
por exemplo). Por outro, e mais importante, para Bourdieu, o uso da lingua é um fenomeno
semiotico total em que o elemento puramente linguistico por assim dizer (a fonética, o léxico,
a morfossintaxe), nao pode ser isolado do conjunto do corpo e da performance do falante,
que também funcionam corno signos: o que escolhe dizer, o modo como inicia e interrompe
uma interacao, como se comporta na troca de turnos, seu tom de V02, 0 modo de se sentar,
gesticular, a proximidade que guarda do outro, como se move, sua he’xis corporal, em suma.
Todos esses signos, do uso de “diminoi” ern vez de “diminui”, de “um tom de voz Inuito
alto” ou de uma linguagem muito “elevada” ou “fluente” funcionam como indicadores da
posicao social do agente, desde que haja uma expectativa, garantida objetivamente, sobre
o desempenho esperado nas situacoes, nos distintos campos e esferas do mundo social. A
definicao dessas expectativas é possivel por meio da unificacéo de mercado linguistico.
, Primeiramente, em sua argumentacao, Bourdieu se apoia em estudos histéricos sobre a
formacao das linguas nacionais no espaco europeu. As “linguas”, antes de serern associadas a
escrita e de constituirern um corpus literério, bem corno antes de um trabalho de descricao,
elaboracao e normatizacao, feito pelos graméticos e lexicografos, existiriam apenas em estado
prético. Existiriam apenas como habitus linguistico, de modo internalizado. E todo esse tra-
balho de objetivagdo de um determinado habitus linguistico, do grupo que assume 0 poder
politico na formacfio do Estado e per sua associacéo a instituicoes destinadas a representé-lo
e responsabilizadas por transmitir essa lingua objetivada e zelar por ela — como a escola e a
propria gramética e 03 dicionérios ~, tornando-a lingua da nacao, lingua oficial, on a lingua,
lingua legitima, que construiria, historicarnente, um mercado unificado.
De modo correlate, todas as outras linguas — 011, majs precisarnente, habitus linguisticos —
mais ou menos préximas que conviviam no mesmo espaco on em espacos contiguos, que também
permitiarn a cornunicacéo entre diferentes falantes, e que nao sofreram esse processo de objetivacao
e de associacao corn 0 Estado, tornaramse nao lingua, desvios, erros, dialetos, variacoes. A lingua
legitima ou oficial torna—se o padrao a partir do qual se pode medir o desempenho de todos no
mercado dos bens linguisticos e ela é garantida objetivamente por um conjunto de instituicoes que
vao da gramética a escola, passando pela literature e por toda a burocracia do Estado.

LINGUISTICO (Capital; Mercado) 251


Dadas as diferengas entre 0 mode de transmissao familiar e escolar — o primeiro promo-
vendo uma aprendizagem precoce, insensivel, em contexto de emprego da lingua legitima;
o segundo possibilitando urna aprendizagem tardia, sistemética, descontextualizada, que se
apresenta como aprendizado e em substituigao avariante linguistica aprendida na socializagao
primaria ~, 0 modo de transmissao escolar tende a possibilitar um reconhecimento da lingua
oficial, sem seu dominio ou conhecimento de fato, ao contrario do que se passa com aqueles
que dominam a lingua legitima por familiarizaeao. Trata—se seinpre do aprendizado de uma
segunda lingua que, por mais bem-sucedido, sempre deixa marcas (estruturas morfossinté»
ticas, “sotaque”,_léxico) por se fazer com base nas estruturas do habitus linguistico primério.
Mesmo aqueles nao submetidos a agao escolar estao expostos, nas interaeées sociais, a saneoes
do mercado ~ quanto mais este for unificado — que “se transmitem sem passar pela lingua-
gem nem pela consciéncia” (PVDp, 38), por meio de olhares, gestos, censuras, insinuagoes.
Assim, a unificagao do mercado linguistico, correlata a criagao da lingua legitima, altera,
quanto mais forte for essa unificagao, a relaeao do conjunto dos falantes com suas préticas
linguisticas, pois seus produtos linguisticos passam a serjulgados pelo metro ou pela medida
da lingua oficial e pela antecipagao — dado o reconhecimento dessa medida ~ das possiblidades
de lucro que esses produtos terao no mercado. Quanto menores as possibilidades de lucro,
maiores as chances objetivas e independentes dos falantes, de exercicio da Violencia simbélica
na interaqao: os que reconhecem sem conhecer a lingua legitima tendem a se debater entre o
constrangimento da hipercorregao (recorrer a estilo excessivamente formal para uma situagao
distensa; generalizar regras para casos em que elas nao se aplicam), a hesitagao e todas as
manifestagoes de dificuldade, o siléncio; es que dominam a lingua tendem a desconhecer a
Violencia que por meio deles se exerce; empregada como um direito ou uin dever educacional
ou debater~se a0 ver suas estratégias de hipocorregao transformarem-se em condescendéncia.
Mas tendem, sempre, a auferir lucros de distingao nas interagoes, nao por sua capacidade de
falar, mas por sua capacidade de falar um bem desigualmente distribuido. Em outros termos,
por sua “capacidade de falar a lingua legitima que, por depender do patrimonio social, tra—
duz distingées sociais na légica propriamente simbolica dos desvios diferenciais ou, numa
palavra, da distineao” (PVDp, 42).
E apenas na medida em que se forma um mercado linguistico que se pode falar em capital
linguistico, mesmo que certas situagoes sociais, alerta Bourdieu, como da Vida privada, as
leis do mercado possam ser suspensas, embora pesem “virtualmente” e sempre se imponham
tao logo as falantes se afastem “das regioes francas” (PVDp, 58).
Dessa anélise mais geral decorre a critica fundamental que Bourdieu dirige a linguistica
moderna, especialmente a Saussure e, secundariamente, a Chomsky (no caso de seus artigos),
apesar das marcantes diferengas entre um e outro linguista. Tomando o caso do Saussure, ao
distinguir a lingua (langue) da fala (parole), o linguista genebrino define a lingua como objeto
da linguistica em oposieao a fala — trata-se de um sistema abstrato de regras, independents
dos falantes, homogénea, de natureza social, mas depositado na meme de cada falante; a fala
nao se prestaria a ser objeto da linguistica, apesar de ser sua atualizagao; seria heterogénea,
variével’, individual, contendo muitos elementos n50 linguisticos. Embora nao discuta a
complexidade da teoria Chomskyana, nem os pressupostos epistemologicos que separam 0
linguistanorte-americano de Saussure, Bourdieu encontra as mesmas ideias de independéncia

252 LlNGUlSTICO (Capital; Mercado)


e uniformidade da lingua em relagao aos falantes em Chomsky. Para 0 linguista, é necessério
distinguir dois conceitos: 0 de competéncia, que déscreve o conhecimento interno que o falante
tern do sistema linguistico e que lhe permite produzir um conjunto infinito de sentengas em
sua lingua, conhecimento esto construido corn base numa capacidade inata; 0 de desempe-
nho, que se refere ao comportamento linguistico do falante e que resulta n50 somente de sua
competéncia linguistica, mas também de fatores nao linguisticos de ordem variada, como
convenqées sociais, crengas, atitudes emocionais.
Seja decorrente de uma capacidade inata, seja de natureza social, para Saussure e Chomsky,
segundo Bourdieu, a lingua é um sistema de regras dado, que tern existéncia auténoma e in—
dependente dos individuos que a produzern. Ambos entendem que essa imposigéo da lingua
aos individuos se faz por sua “forga intrinseca” (BOURDIEU; BOLTANSKI, 1975, p. 2), na medida
em que pertencem a uma mesma “comunidade linguistica”. A0 contrério, argumentarao
Bourdieu e Boltanski (1975, p. 2-3), cm fungao da criagao dos mercados linguisticos promovida
na criagao dos Estados, “é a politica que dé a ela [a lingua oficial] suas fronteiras geogréficas
e demograficas [...]. E facil perceber, a propésito de diferentes casos historicos, como, com a
nogao de ‘comunidade linguistica’, tradicionalmente definida, desde Bloomfield, ‘como um
grupo de pessoas que utilizam um mesmo sistema de signos linguisticos (1958, p. 29)’, [...] os
' linguistas nada mais fazem que incorporar ateoria um objeto pré—construido, de cujas leis
sociais de produgao eles se esquecem e cuja génese social eles mascaram [...]”.
Ainda segundo Bourdieu, essa amnésia da génese que resulta da apreensao da lingua fora
de suas condigoes sociais e politicas de instituigao contribui para “fundar a legitimidade
da lingua oficial e 05 efeitos sociais que ela produz e dos quais nao escapam nem mesmo os
linguistas” (BOURDIEU; BOLTANSKI, 1975, p. 3). Essa amnésia contribuiria para a criagao do
fetichismo da lingual e, assim, contribuir para reproduzir seus efeitos de dominagéo: o que
chama de lingua é, na verdade, a lingua, a lingua oficial, a lingua legitima.
Corn a difuséo da obra de M. Bakhtin e de 5611 circulo na Franga, Bourdieu revisita sua
analise sociologica dos usos da linguagem (ANGENOT, 1984), bem como dos estudos linguis—
ticos, especialmente dos pressupostos Chomskyanos.
Seu primeiro argumento é que a nogao de competéncia linguistics ~ a capacidade de
produzir e compreender urn nfirnero infinito de sentengas a partir de mimero reduzido de
regras de uma determinada lingua — deve ser ampliada ern razao de constituir uma abstra-
550. A razao principal é que linguas sao feitas para serem faladas, e em situagao. A nogao
de competéncia deveria incluir, desse inodo, primeiramente, saber utilizar a competéncia
numa dada situagéo (o que dizer, quando, em que momento se calar, que “estilo” usar). Em
segundo lugar, para Bourdieu continua—56 no campo da abstragao a0 36 separar competéncia
e situagaoz como a competéncia linguistica é aprendida em situagao, ela é, inseparavelmente,
“conhecimento prético da linguagern e conhecimento pratico das situagoes, que permitem
produzir o discurso adequado a uma situagao determinada” (BOURDIEU, 1977, p. 18).
Essas situagoes nao podem ser reduzidas as relagoes concretas de interagao, corno tendern
a fazer os interacionistas simbélicos: para Pierre Bourdieu, os produtos dessa competéncia
(ampliada) estao sempre situados num mercado on, em outros termos, no quadro das con-
digoes sociais de possibilidade de produgao ede circulagao linguisticos. Isto se dé porque as
caracten’sticas dos discursos decorrem das relagoes de produgao linguisticas presentes num

LINGUISTICO (Capital; Mercado) 253


campo, ele mesmo “uma expressao particular da estrutura das relagoes de forqa entre os
grupos que possuem competéncias correspondentes (ex.: lingua “pura” ou lingua “vulgar”
ou, nos casos de multilinguismo, lingua dominante e lingua dominada)” (BOURDIEU, 1977,
p. 19). O sentido de uma palavra, exemplificando, pela relagao entre seu nucleo invariante e
o valor assumido em determinado pelo campo: é 0 caso, exemplifica Bourdieu, dos diversos
sentidos assumidos pela palavra “grupo” no campo escolar, no campo da pintura, da litera-
tura, da economia, etc.
Inseridas num campo que as determina, as relagoes de produgao linguistica tém sua
estrutura dependente da relagao de forqa simbolica entre os locutores: de seu capital de
autoridade, que nao se reduz a sua capacidade linguistica em seu sentido restrito. Trata—se
da capacidade de se fazer ouvir, de poder dizer o que se diz, da forma que se diz, numa de—
terminada situagao, a quem se diz.
Bourdieu amplia,’ assim, a nogao de lingua Iegitima: 1150 se trata apenas de um conjunto
de formas e modos de dizer tornados “corretos”, “melhores”; tampouco se trata apenas da
capacidade de usar essas formas nas situagoes adequadas; trata—se também de compreender
a competéncia como “direito a fala” (BOURDIEU, 1977, p. 20), como uso legitimo da lingua,
linguagem autorizada e de autoridade. Ele chama atengao, portanto, para uma distribuigao
desigual do uso da lingua legitima nas diferentes situagées sociais, mesmo entre aqueles que
a dominam. Ou seja, é preciso buscar compreender as condigées sociais de instauragao das
relagoes de comunicagao, evitando a redugaodas trocas linguisticas a uma relagao de mera
comunicagao. O que funda, em primeiro lugar, a comunicagao é uma relagao de crenga na
autoridade de quem toma a palavra e na autoridade de tomar a palavra. Essa relagao, além de
comunicar, se destina a fazer obedecer, a admoestar, a interpelar, etc. Assim, uma sociologia
da linguagem deve buscar compreender as relagoes de forga que organizam a distribuigao
desigual do poder dizer e do deverescutar presentes numa situagao, num grupo, num campo,
enfim, num mercado de trocas linguisticas.
Para ser escutado — ou, segundo Chomsky, para ter sua aceitabilidade garantida ~, um
discurso legitimo deve ser proferido por um locutor legitimo, a uma audiéncia legitima,
numa situagao legitima, usando as formas linguisticas e 05 assuntos legitimos para aquela
situagao. Na reflexao bourdieusiana, a nogao de lingua legitima se amplia: é todo 0 uso da
lingua — discurso e o processo enunciativo legitimos que passam a ser 0 foco de sua analise.
Desse modo, tendem a sofrer alteragoes as nogoes de capital linguistico e mercado. Em
primeiro lugar, Bourdieu assume que o discurso é “um bem simbolico” (BOURDIEU, 1977,
p. 22) cujo valor depende dos distintos mercados nos quais é proferido. Em outros momentos,
porém, Bourdieu se refere ao capital corno “habitus linguistico”, considerando, assim, tanto 0
produto da enunciaqao quanto o processo enunciativo ou discursivo corno capitais. Ele parece,
além disso, a0 longo de todo o artigo, reforgar a relativa autonomia dos mercados e campos na
definigao dos pregos dos discursos. De qualquer modo, como capital incorporado e nao mais
restrito a uma competéncia merarnente gramatical, Bourdjeu chama a atenqao para o fato de
que “uma lingua vale o que valern aqueles que a falam, quer dizer, o poder e a autoridade nas
relagoes de forga economicas e culturais da competéncia correspondente” (BOURDIEU, 1977, p. 22).
Assim, apesar de concordar com os sociolinguistas que todas as linguas se equivalem 110
plano linguistico, elas, no plano social, possuem valor distinto e qua r150 36 podem mudar

254 LlNGUlSTICO (Capital; Mercado)


categorias de apreciacao e de valoracao das linguas sem mudar todo o mercado que fixa o
preco das competéncias linguisticas (em seu sentido ampliado) — é o caso da perda de prestigio
do francés a favor do inglés; do quase desaparecimento do russo nos paises da antiga Cortina
, de Ferro (sobre 0 case do inglés no campo intelectual, cf. ORTIZ, 2008).
Resumindo o pensament‘o de Bourdieu sobre 0 capital e o mercado linguisticoz “a
competéncia dominante so funciona como um capital linguistico, assegurando um lucro
de distincao, na sua relacao com outras competéncias (BOURDIEU, 1975, p. 4), na medida'
em que os grupos que detém sao capazes de impor como a (mica legitima nos mercados
linguisticos legitimos (mercado escolar, administrativo, mundano...). As chances objetivas
de lucro linguistico dependem do grau de unificacao do mercado linguistico, isto é, do gran
com que a competéncia dos dominantes é reconhecida como legitima, como padrao do valor
dos produtos linguisticos; as chances diferenciais de acesso aos instrumentos de producao
da competéncia legitima (das chances de incorporar 0 capital linguistico objetivado e aos
lugares de expressao legitimos”) (BOURDIEU, 1977, p. 24).

Referéncias
ANGENOT, M. Bakhtine, sa critique de Saussure et la recherche contemporaine. Etudes Francoises,
v.20, n. 1, p. 7~19, 1984.
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). Marxismo efilosofia da linguagem: problemasfundamentais
do método sociolégico dulinguagem Sao Paulo: Hucitec, 2006.
BLOOMFIELD, L Language. London: George Allen, 1958.
BOURDIEU P L’Econornie des échanges linguistiques. Langue Francaise, n. 34, p 17—34,1977.
BOURDIEU P.; BOLTANSKI, L. Le fétichisme de la langue. ARSS, n. 4, p. 2 32, juil. 1975.
ORTIZ, Renato. A diversidade dos sotaques. Sao Paulo: Brasiliense, 2008.

134.LIVRE-TROCA: DIALOGOS ENTRE CIENCIA E ARTE (Libre-échange)


Ana Paula Simioni

BOURDIEU, P.; HAACKE, H. Livre—troca: dicilogos entre ciéncia e arte. Rio de Ianeiro, Bertrand
Brasil, 1995. I

Desde a década de 1980, o sociologo francés Pierre Bourdieu e o artista de origem


alema Hans Haacke se encontraram em diversas ocasioes e perceberam as afinidades que
os uniam. Resultado das trocas entre ambos, especialmente da discussao travada em Pa-
ris em 1991, o livro é escrito na forma de um diélogo livre, por meio do qual as barreiras
disciplinares que usualmente dificultam o debate pfiblico das ideias sao transpostas. Tal
0pcao deliberada por uma forma menos codificada vai ao encontro do objetivo primordial
dos autores: 0 de suscitar a tomada de consciéncia sobre o carater intrinsecamente politico
das préticas artisticas na contemporaneidade.
Hoje, os impactos dos novos tipos de mecenato, no qual empresas subsidiam museus,
artistas e exposicoes por meio de mecanismos de isencao fiscal, associam-se a0 poder de
seducao e consagracao exercido pela imprensa junto a0 pi’lblico ampliado. Em ambos os

LIVRE-TROCA: DIALOGOS ENTRE CIENCIA E ARTE (Libre-échange) 255


casos, esté-se diante de um momento em que a logica economical volta a impor~se sobre o
universo artistico, o qual, como bem demonstrou Bourdieu, constituiu—se por um processo
de autonomizaqfio no sentido da constituigéo de um espago com logica e regras préprias,
assentado no “principio economico invertido”, na hegagéo da légica do lucro, e, assim, do
prép'rio universo economico moderno.
Tal independéncia conquistada pelo campo artistico ao Iongo do século XIX, cujo co-
rolério encontra—se no Iema da “arte pela arte”, trouxe consigo também uma renfincia das
fungées politicas da obra. Como, pore’m, é possivel hoje apregoar tal isengéo diante de um
universe sujeito a interferéncias constantes de politicos neoconservadores, os quais logram
impor mecanismos de censura a obras vistas como “'unorais”, senéo diretamente, a0 memos
por meio de cortes as subvengoes outorgados ‘as instituiqées? As obras de Hans Haacke séo
paradigméticas das préprias possibilidades de resisténcia na contemporaneidade, que passa
pela necesséria consciéncia critica dos mecanismos politicos e economicos de produqéo e
insergéo da arte, e revelam, especialmente, o extraordinério potencial de transformagéo que
pode ser provocado por um finico individuo.

255 LlVRE-TROCA: DIALOGOS ENTRE ClENCIA E ARTE (Libre-écharnge)


‘Ti'cr’;

.J
{35. MANETI UNE REVOLUTION SYMBOL/QUE
Pascale Casanova

BOURDIEU, P. Manet. Une révolution symbolique. Editado por Pascale Casanova, Patrick Champagne,
Christophe Charla, Franck Poupeau e Marie-Christine Riviére. Paris: Seuil—Raisons d’agir, 2013.

Manet (1832—1883), além de Flaubert (1821‘1880),,é um dos modelos de Bourdieu. Ele


comecou a falar sobre Manet em 1987, em seus cursos, quando pretendeu explicar o que era,
para ele, uma “revolucao simbélica”, ou seja, uma revolucao que coloca em questao as categofi
rias que nos, 03 espectadores das obras simbélicas, adotamos para lé-las ou percebé~las. Era,
portanto, dificil delinear e compreender uma revolucao simbélica sem tomar um exemplo
concrete: para isso, ele se serve de Manet.
Para Bourdieu, existe um “Manet” enquanto objeto de estudo histérico e teérico, e um
Manet enquanto objeto autobiogréfico (em urn de sens cursos, ele confessou sua admiracao,
desde a adolescéncia, por este pintor — em particular, por Le balcon).
Como objeto de estudo histérico, ele se debruca em primeiro lugar sobre o campo da
critica contemporanea a Manet. Tal analise permite-lhe compreender no que consistia a
critica da época que, com sua indole historicista, visava verificar a conformidade dos fatos
histéricos expostos numa pintura, com a realidade supostamente representada por ela, n50
desempenhando de modo algum 0 papel que lhe atribuimos hoje. Permite-lhe também analisar
o surgimento do campo da critica moderna e, de passagem, censurar 11510 36 aqueles que, na
Franca, atacam a arte chamada “contemporénea”, por retomarem Manet dos historiadores
da arte (frequentemente maltratados nesse curso), mas tambérn de forma mais geral todos
aqueles que abordam a historia como um afastamento. Ele “mergulha (também) de cabeca”,
para retomar uma metéfora de Manet, adotada e cornentada inicialmente por Mallarmé e, em
seguida, por ele mesmo. Bourdieu “mergulha” no “oceano” dos comentérios contemporaneos
sobre o pintor ~ em parte, diz ele, por ingenuidade —, indicando assim que, por si 36, a visao
formalista de Manet nao é suficiente para dar conta plenamente de sua pintura, mas que
se deve tambérn acrescentar os trabalhos de histéria social, em particular 05 de histéria da
educacao, que mostram a importancia dos efeitos da superproducao de diplomados. Ele se

MANET. UNE REVOLUTION SYMBOL/QUE 257


serve de Manet, sobretudo para fazer um contraponto (como diz Edward Said) a0 Flaubert
de Les régles de l’art (1992), obra que dedicou a0 campo literério, aproveitando assim para se
debrugar, de um modo diferente, sobre o campo pictérico, consagrando a pintura um 1ivro~
gémeo, como diria Baudelaire. No entanto, segundo a explicagao de Christophe Charle em
seu posfécio a edigao do curso de Bourdieu, o sociologo nao logrou realizar tal objetivo, tendo
abandonado essa ideia. Enquanto objeto teorico, Manet 1he permite igualmente refletir sobre
o campo pictorico, além de dar a compreender (o que ele fez também em seu artigo “L’Insti-
tutionnalisation de l’anomie”, 1987) que se passa do corpo ao campo: do corpo acadérnico ao
campo da pintura. Bourdieu se interroga igualmente sobre a razao e o modo como o campo
pictérico é dominado pelo campo literério (e, desse ponto de vista, as relaeoes de Manet com
Zola e, sobretudo, com Mallarmé sao prenhes de ensinamentos); e sobre o motivo pelo qual
a revolugao nao ocorreu na Gra-Bretanha. Mas, acima de tudo, o caso Manet 1he permite — é
o que ele afirma nos cursos ministrados no College de France, entre 1998 e 2000 ~ refletir
sobre a nogao de “campo”, como instrumento de analise e de compreensao.
Uma revolugao simbolica, escreve ele, sobretudo quando é bem—sucedida, torna dificil sua
explicagao por afetar as categorias através das quais a pensamos. Quando Manet apresenta
seus primeiros quadros (incluindo o famoso Le déjeuner sur l’herbe, que é insistentemente
mencionado por Bourdieu) no Salon — espago em que, anualmente, eram mostradas todas as
obras francesas que o ji’i'ri considerava dignas de serem expostas e, entre as quais Manet fazia
absoluta questao que seus quadros viessem a figurar —, Le déjeuner parece incongruente e ,
desencadeia risadas e reagoes escandalizadas. N50 sabemos mais o motivo que teria levado os
espectadores de Manet a rir on a se melindrar. E Bourdieu usa esse exemplo para demonstrar
o que é uma revolugao simbolica. Ele insiste na arte académica contra a qual Manet inscreve
sua obra, e seus desdobfamentos relatives a0 percurso, a estética, aos cursos, aos ateliés, a0
trabalho arduo, aos temas e ao tratamento académico, dizendo que se trata (por homologia, on
seja, pela “semelhanga na diferenga”) de uma arte de escola, portanto, de uma arte do Estado,
logo, de uma arte de homo academicus. Ele compara os ateliés da Escola de Belas Artes aos
khfignes (cursos preparatérios as Grandes Ecoles), mostrando que, em ambos os casos, existe
a mesma submissao a hierarquia, a mesma chantagem nos concursos, o mesmo conformismo
nos temas e em seu tratamento. Ha uma doxa, algo como “isso é assim mesmo”, certas pre—
caugoes caracteristicas do academicismo. E ele explica que Manet, apesar de ter recebido sua
formagao naAcade’mz'e, transformou-se em um bloco inquebrantavel CONTRA os imperativos
do academicismo, bem corno contra a crenga na onipoténcia da Académie, apesar de conti-
nuar almejando ser exposto no Salon. E impossivel compreender a atitude de Manet, se nao
entendermos em que se apoiava o academicismo. Assim, Le déjeuner néo satisfaz os critérios
de formato, de tema, de “acabado”, de modelado — ou seja, de estética -, de luz, de saber-fazer
(principalmente, em matéria de perspectiva), exigidos pela Académie. E Manet sera recusado
no Salon em numerosas ocasioes porque, sem nunca ter feito concessao a pintura académica
mm a seus critérios, que ele nao reconhecia, o pintor ansiou durante toda a sua Vida ser exposto
no seio de uma instituiqao para cujo descrédito ele contribm'u consideravelmente.
Bourdieu insiste no fato de que Manet nao so era de origem burguesa, mas que mantinha
muitos relacionamentos na alta sociedade que o haviam ajudado em diferentes momentos d6
sua carreira e, sobretudo, tinham—lhe servido de apoio, evitando que “ficasse louco”, apesar

258 MANET. UNE REVOLUTION SYMBOL/QUE


das repetidas recusas do Salon, que constitul’a, entéo, a {mica insténcia de legitimacao para a
pintura. A época, a pintura académica com seus témas histéricos ou mitolégicos triunfava na
Franca, embora a burguesia preferisse, para seus apartamentos de reduzidas dimensoes, premiar
os “paisagistas”, tais como Corot: falsos revolucionarios que nao chegaram a alterar os habitos.
Bourdieu enfatiza também as nocoes de “senso prético”, de habitus e de “disposicao” ao
propor o conceito e a teoria do “disposicionalismo”, em oposicao a teoria intencionalista. Em
urn trecho do Curso no Collége de France, ele refaz Le déjeuner sur l’herbe, imaginando as
disposicoes culturais de Manet cujo conhecimento e dominio da historia da pintura eram
muito mais aprofundados do que 05 de seus contemporaneos. Ele chega a conclusao — de
maneira “materialista” — de que Manet era um olho, uma mao, uma cultura, um savoir-faire...
em sintese, urn habitus inimitével. A0 inspirar-se na teoria das disposicoes, Bourdieu nos
ensina a observar a pintura de um modo totalmente diferente: nao como uma obra feita
(opus operatum), nao como um problema teorico a ser resolvido, mas como uma obra a fazer
(modus operandi), um problema prético praticamente resolvido. Ele acredita, assim, em uma
revolucao da crenca e o colapso da crenca geral no ambito da Académie.
Como objeto autobiografico (secreto), Manet enquanto “revolucionério simbélico” é uma
figura de identificacio que nos ensina a conhecer Bourdjeu corn major profundidade. O sociologo
identifica-se, sem dfivida, com esse revolucionério elegante, ligado a famflia, culto e refinado,
que n50 aprecia muito os “boémios” barulhentos e desmazelados, mas que apesar disso abriu
a porta para a arts 6 para os artistas modernos; que recusou os clichés da arte académica, que
transformou em profundidade a maneira de olhar a pintura, por intermédio de quem os forma-
tos, os proprios temas, a hierarquia dos temas, a maneira de pintar... forarn transformados. Em
suma, alguém que obteve tamanho sucesso em relacao a “revolugao simbélica” em que esteve
envolvido que nos fez esquecer os risos da multidao e o motivo dessa reacao. Essa figura ilustre
que Bourdieu tanto admirava acabou por ajudé—lo, sem duvida, a manter com firmeza seu rumo
quando, do mesmo modo, foi (e continua sendo) atacado sem tréguas e provocou o escérnio
da multidao que também nao compreendia a revolucao que ele estava operando na sociologia.

Referéncia
BOURDIEU, P. L’institutionnalisation de l’anomie. Les Cahiers du Musée National d’ArtModerne,
p. 6-19, 19:29 jun. 1987.

1.3.6.: MAM.FAN..(737.3:7853.). .............................................................


Ge’rard Mauger

A obra de Marx esté inscrita na historia da filosofia e no repertério dos classicos das ciéncias
Sociais. Nesse aspecto, ela mantém urna posicao indiscutivel no campo intelectual, nao dei-
xando de ocupar também um lugar indubitavelmente singular no campo politico, no qual foi
e continua sendo, até certo ponto, a doutrina de referéncia da esquerda socialista e comunista.
Esse é o motivo pelo qual a compreensao das relacoes de um autor com o marxismo tem a ver
com o confronto de um habitus com um estado, simultaneamente, do campo intelectual e do
campo politico. As ligacées iniciais de Bourdieu com o marxismo, como estudante da t‘lgne

MARX, KARL (7878-1883) 259


(curse preparatério) e, em seguida, da prépria Escola Normal Superior (ENS) na década de 1950,
refletem essa ambiguidade. Na épeca, o marxismo fazia parte do "programa”: “eu havia feito
naquele memento uma leitura escolar de Marx; eu me interessava, sebretudo pelo jovem Marx
e estava apaixonado pelas Teses sabre Feuerbac ”, escreve Beurdieu (CD, 13). Mas a forca de
atracao (ou de repulsa) do marxismo, entao reivindicado pele stalinisrno, era politica. Bourdieu
fazia parte do grupo daqueles que manifestavam irritacao diante do stalinismo. Apesar de sua
separacae, durante alguns anos, da “geracao estruturalista” (a de Althusser e Foucault, cujos
cursos foram assistidos por ele), Bourdieu cempartilhava um grande numere de disposicees
intelectuais que a caracterizam e que, em sua epiniao, se explicam “pela ventade de reagir contra
[...] o ‘humanismo’ frouxo que estava no ar” (CD, 14). No entanto — efeito do habitus e/ou efeito
de geracao -, Bourdieu toma suas distancias em relacao ao “estruturalismo” (de Lévi Strauss, de
Foucault, assirn cemo de Althusser) e ao que ele designa come “0 efeito~logia” [...] arqueologia,
gramatologia, semiologia, etc, expressao visivel do esforco dos filesofos no sentide de embara-
lhar a fronteira entre a ciéncia e a filosefia” (CD, 16). Assim, ele iré se distanciar, em particular,
dos filosefos althusserianos aos quais critica, a um sé tempo, “0 aristocratismo filosofico”
(BOURDIEU, 1975) e a reducao dos agentes a0 status de simples epifenémenos da estrutura.
Nas lutas simbélicas que permearao posteriermente o campo intelectual na Franca — em que
a posicao adotada em relacao ao marxismo serviu, durante muite tempo, come “marcader” —,
a imputacae de “marxisme” toruou—se urna tética banalizada de desqualificacao académica:
rudimentar, ela consiste, apes a investida dos “nevos filésofos”, em estabelecer a filiacae entre
Marx e o autor visado, no pressuposte de que “Marx = materialismo celetivista = Gulag”. Tal é, '
em substancia, o procedimento que utiliza, per exemplo, Jeffrey C. Alexander em relacao a obra
de Bourdieu: “Na nossa época, marcada pelo fim do comunismo, [a obra de Pierre Bourdieu] pode
ser considerada come a encarnacae mais impenente de umatradicae neomarxista que, triunfante
ha apenas uma década, esta lutando atualmente para sobreviver” (ALEXANDER, 2000, p. 19). De
maneira geral, esse tipo de critica exprime as acusacees da doxa politico‘midiatica em relacae a
qualquer empreendimento sociolégico que manifeste a minima pretensae a cientificidade. Nessa
postura, é possivel identificar trés motives de acusacao, cujo alvo é unicamente o prejeto de um
conhecimento cientifico do mundo social: protesto subjetivista contra o materialismo, o ebjetivis-
me e o determinismo; protesto moral contra o utilitarismo associade a0 conceito de “estratégia”;
e protesto politico contra as representacoes fundamentalmente agonisticas do munde social.
Se, para além desse tipe de anétemas, nos nos questionarmos sebre es usos que Bourdieu
chegou a fazer da obra de Marx, convém comecar, sem dfivida, per lembrar as “relacees
bastante pragméticas” que ele mantinha com os autores canonicos, sejam eles quais forem.
Assim, a maior parte des uses que Bourdieu chegou a fazer da obra de Marx — para além
de uma afinidade terminologica (capital, reproducao, classes, etc.) - associa o empréstimo
a critica. Eis alguns examples: a teeria sobre a prética, a sociologia economica, a teeria da
producae simbélica, a teoria da dominacao ou a Visao do espaco social.
Tende construide sua teoria sebre a prética contra Levi—Strauss e contra e marxismo
estruturalista dos althusserianos que havia transformado o agente em um simples “suporte
da estrutura”, Bourdieu nae deixa de inspirar-se em Marx. Contra Feuerbach e, de maneira
geral, contra e pensamento escolastico — que considera, segundo a expressao de Marx, “as
coisas da logica come a logica das ceisas” -« e com Marx, mas rejeitando as leituras humanista

260 MARX, KARL (7818-7883)


e estruturalista de Marx, a teoria da prética de Bourdieu visa apreender o mundo sensivel
“enquanto atividade humana concreta”, “enquanto pratica”.
Ao estudar a sociedade cabila, Bourdieu inspira-se explicitamente em Marx. Mas, para o
sociélogo, trata-se também de romper com o economicismo e de compreender a contribuicao
determinante que as representacoes e’ticas e miticas podem fornecer a reproducao da ordem
economica da qual elas 550 o produto. Ao proceder desse modo, Bourdieu funda, ao mesmo
tempo, uma “econornia ‘radicalmente sociologica’” (LEBARON, 2001) e — contra “a dicotomia
do economico e do 1150 economico” — uma “ciéncia geral da economia das praticas, capaz de
tratar todas as praticas, incluindo aquelas que pretendem ser desinteressadas ou gratuitas,
portanto liberadas da economia, como préticas economicas, orientadas para a obtencao do
maior lucro possivel, material on simbolico” (ETP, 375).
Sintese original das abordagens marxista e weberiana, a teoria dos campos aparece como
uma saida para os impasses da reducao das estruturas simbélicas as estrnturas economicas e
aquelas da “teoria do reflexo”, como uma solucao para o “curto—circuito” que relaciona dire—
tamente os tracos pertinentes de tal producao simbélica com as caracteristicas da fracao de
classe de seu produtor, e também como uma resposta ao “funcionalismo do pior” associado
aos “aparelhos ideologicos do Estado” de Louis Althusser (1970). A0 pressupor uma autonomia
relativa da producao de bens simbélicos em relacao as condicionantes externas, essa teoria
rejeita tanto a pretensao das producoes simbélicas a autonomia absoluta quanto sua reducao
direta as condicoes mais gerais de sua producao. I l
A teoria da Violencia simbélica ilustra perfeitarnente o modus operandi dc Bourdieu em ‘
relacao as teorias classicas dos fundamentos do poder. “Marx se opoe a Durkheim — explicam
Bourdieu e Passeron — pelo seguinte: naquilo que ele percebe como o produto de uma domi-
nacao de classe, Durkheim [...] limita~se a ver 0 efeito de uma condicionante social indivisa.
Sob outra perspectiva, Marx e Durkheim se opoem a Weber no fato de que eles contradizem
' [...] a tentacao de considerar as relacoes de poder como relacées interindividuais de influéncia
ou de dominacao. Enfim, Weber se opée a Durkheim, como a Marx, por ser 0 unico a adotar
expressamente como objeto a contribuicao especifica que as representacoes de legitimidade
fornecem ao exercicio e a perpetuacao do poder” (LR, 18—19).
A visao do espaco social proposta por Bourdieu opera uma dupla ruptura com a teoria
marxista das classes sociais. Ruptura com o economicismo que conduz a definir a estrutura do
espaco social através da distribuicao das diferentes espécies de capital - “capital economico”,
“capital cultural” e “capital social” ~ suscetiveis de serem convertidos em “capital simbélico”.
E, por outro lado, ruptura com “a ilusao intelectualista que leva a considerar a classe teérica,
construida pelo cientista, como uma classe real” e “que conduz a ignorar as lutas simbolicas
que sao travadas nos diferentes campos e cujo pretexto é a propria representacao do mundo
socia ” (BOURDIEU, 1984). Para explicar a passagem da “classe provave ” (classe “logica”, classe
“no papel”) para a “classe mobilizada”, da “classe em si” a “classe para si” na terminologia de
Lukacs (1960), é necessario analisar o trabalho simbolico e politico que consegue produzir,
senao a classe mobilizada, no minimo a crenca na existéncia da classe.
- Em suma, com e contra Marx, Bourdieu nao é mais “marxista” do que “weberiano” ou
“durkheimiano”: ele nao é nada disso, ou tudo isso a0 mesmo tempo. Ele é herdeiro de Marx,
de Weber e de Durkheim. Apropria-se de suas obras e, a partir deles (e de outros autores),

MARX, KARL (1878-1883) 261


avanca 11a resolucao de problemas suscitados, a partir dessa heranca, pela confrontacao e
demonstracao empirica, assim como na descoberta de novas dificuldades.

Referéncias
ALEXANDER, I- C. Lu réduction: critique de Bourdieu. Paris: CERF, 2000.
ALTHUSSER, L. Idéologie et appareils idéologiques d’Etat: notes pour une recherche. La
Pense'e, n. 151, juin 1970.
BOURDIEU, P. La lecture de Marx: quelques remarques critiques a propos de “Quelques
remarques critiques de Lire le Capital”. ARSS, 11. 5-6, p. 65-79, 1975.
BOURDIEU, P. Espace social et genese des classes. ARSS, 11. 52-53, p. 3—14, juin 1984.
LEBARON, F. Toward a New Critique of Economic Discourse. 'Zheory, Culture and Society,
V. 18, n. 5, p. 123429, 2001.
LUKACS, G. Histoz're et conscience de classe. Paris: Minuit, 1960.

13.7. MAUSS, MARCEL (7872-7950)


Remi Lenoir

Pierre Bourdieu se notabilizou na histéria do pensamento sociolégico pela referéncia cons—


tante 1150 so aqueles que, em seu entender, eram os fundadores da disciplina (Marx, Weber,
Durkheim), mas também aqueles que haviam contribuido para a magistral obra coletiva que foi
L’Anne’e Sociologique (revista fundada em 1898 por Emile Durkheim): Marcel Mauss, Maurice
Halbwachs, Henri Huber e Georges Sirniand. A semelhanca do que havia feito em relacio a
Halbwachs — e apesar de ter deixado de praticar tal género de atividade ~, ele pronunciou uma
homenagem a Marcel Mauss exatamente para insistir sobre a importancia que atribuia a esses
pensadores, ou seja, a disciplina sociologica, tal como ele a concebia, praticava e defendia.
Mauss constituiu, para Bourdieu, urna referéncia importante tanto através de sua prépria
obra de antropélogo — prolongada por Bourdieu em alguns de seus aspectos — quanto através
da interpretacao que Levi-Strauss fez dela. E em relacao a‘essa interpretacao que Bourdieu se
situa, sobretudo em seus textos teoricos — principalmente a propésito de Essaz’ sur le don —,
opondo sistematicamente o “subjetivismo” de Sartre ao “objetivismo” de Levi-Strauss.
Essui sur le don constitui a obra de Mauss, senéo a mais citada, pelo menos, a mais
debatida nos livros de Bourdieu, e per duas razées. Em primeiro lugar, porque o autor de Le
senspratique vai situa-la na base de sua teoria da acao social, da pratica 1150 so indigena, mas
também cientifica; alias, duas coisas inseparaveis, em seu entender. Sem dfivida, Bourdieu
nao chega a se apropriar da teoria de Mauss que, em sua opim’ao, atribui demasiado valor ‘as
representacées feitas pelos atores sociais a esse tipo de troca. Contra a interpretacao objetivista
tanto de Levi—Strauss quanto dos economicistas, Bourdieu mostra que tais representacoes
participam diretamente do objeto a estudar e que, nesse sentido, elas nao poderiam ser, na
pior das hipoteses, descartadas da analise (corno o Lévi—Strauss de Les structures éle’men—
tuires de la parenté) ou, no rnelhor dos casos, analisadas a parte, em 51 mesmas e por si
mesmas, come 0 fazern alguns trabalhos inspirados no estruturalismo (nomeadamente 0 de
Levi-Strauss em Mythologiques).

262 MAUSS, MARCEL (7872-7950)


Com efeito, para Bourdieu, Mauss n50 vai até 0 final da explicacao. E provavel que este filtimo
tenha razao em decompor analiticamente o dom em Seus trés'momentos — “dar, receber, retribuir”
e, portanto, em reposicionar esse ato em um conjunto, senao invisivel, pelo menos, inconsciente
aos agentes. E é somente essa totalidade que lhe confere sentido. Mas, por nao ter levado em conta
uma das dimensoes essenciais da acao social — aquela a qual, desde seu projeto de tese, Bourdieu
ha de prestar especial atencao (ou seja, a dimensao temporal que é indispensavel para compreender
a pratica dos agentes e suas representacoes dessa pratica) -, Mauss se priva de apreender a acao
social em termos de estratégia. Mauss teria ficado, de acordo com Bourdieu, no meio da explicacaoz
como se opera 0 trabalho social de denegacao da verdade da troca, quais sao suas condicoes de
possibilidade? A duracao da operacao é, para Bourdieu, o que permite explicar as formas especifi—
cas da troca — o dom — nesse tipo de sociedade que, conforme a frase de Mauss frequentemente

-
_ retomada por Bourdieu — “se paga a si mesma com a falsa moeda de seu sonho”.
Com efeito, segundo Bourdjeu, o intervalo entre 0 dom e o contradom é o que permite trans—
formar a troca, cuja definicao objetiva so pode ser estabelecida pelo dentista, em uma 'sucessao
desconfinua de atos, tanto mais percebidos como mais generosos quanto mais afastados estiverem
no tempo. Mauss descreve perfeitamente o trabalho social - a “alquimia”, nos termos de Bourdjeu -
pelo qual o “economico” se transforma em “simbélico”, ou seja, em algo de irredutivel ao valor
' ‘ mercantil dos bens trocados, como é o caso de todas as economias simbélicas que se constituiram
em objeto privilegiado dos trabalhos de Bourdieu (a alta costura, a arte, a literatura, a edicao. . .).
Tal alquimia é o resultado da denegacao da natureza da troca pelos parceiros. Alias, ela so é pos-
sivel se estes filtimos estiverem tacitamente de acordo em recusar a verdade objetiva dessa troca.
O Essai sur le don esté também, e de maneira inseparével, na base da teoria da pratica e
da acao que Bourdieu nao deixara de elaborar e de aprimorar, ao longo de sua obra, tanto da
pratica nativa quanto da prética cientifica. Com efeito, segundo Bourdieu, esse ensaio é um
desafio: trata—se de encontrar a razao ao que pretende ser sem razao (gratuito, arbitrario) e
sem determinacao (de graca), no pressuposto de que nem toda pratica tern a racionalidade
como principio. A teoria da acao racional — repetia frequentemente Bourdieu — substitui a
experiéncia do nativo pela experiéncia do cientista e, de forma geral, generaliza o caso bas—
tante particular da atividade economica a0 conjunto das préticas, tendendo, assim, a COnferir
intencoes racionais a todas as condutas humanas. Alias, uma das principais dimensées da
antropologia de Bourdieu consiste em reconstituir a logica pratica nos contextos sociais que
lhe servem de fundamento e lhe conferem sentido. Mauss, de acordo com Bourdieu, lembra
que a racionalidade economica pressupée a autonomizacao do universo economico resultarite
de um processo que afeta os sistemas de disposicées (poupanca, crédito...) e as instituicées
que o fazem funcionar (bancos, moeda. . .) e que, mesmo quando esse universo econémico esté
constituido, os outros universos sociais nao tém esse tipo de racionalidade como principio.
Pode-se igualmente observar essa forma de etnocentrismo dos intelectuais, nomeada—
mente dos filésofos, por nao levarem em consideracao o corpo, o corpo socializado, como
principio das condutas.
Se Bourdieu se refere ao artigo fundador de Mauss, “Les techniques du corps”, é pelo fato
de reconhecer a novidade que representava essa comunicacao apresentada 11a Sociedade de
Psicologia em 1934. No entanto, em sua opiniao, Mauss nao levou a analise alérn da observacao
do que ele designava como as “técnicas” — ou seja, os atos corporais —, sem ter problematizado

MAUSS, MARCEL (1872—7950) 263


esse aspecto, a semelhanca do que havia feito em relacao ao doin, a magia ou ao sacrificio.
Em Bourdieu, o corpo nao se limita a ser uma “técnica”, urn instrumento, mesmo que seja
socializado, mas é, antes de mais nada, um meio de conhecimento, gracas aos sentidos e ao
cérebro, conhecimento pela corpo, enfatiza ele, que assegura uma compreensao prética do
mundo completamente diferente do ato de “decifracéo consciente que se costuma colocar
na ideia de compreensao”. Para Bourdieu, as mais fortes injuncoes sociais dirigern—se nao ao
intelecto, mas a0 corpo tratado como um repositério de lembrancas.
Com 0 Essaz' sur le don -— no qual Bourdieu se apoia para fundar a especificidade da eco—
nomia dos bens simbélicos e, portanto, da economia dos campos de producao e de consumo
desse tipo de bens -, Bourdieu se refere a Esquisse d’une théorz'e génémle de la magic para
elaborar e construir a nocao de campo, cujo paradigma é, em seu entender, o campo religioso.
O que produz a “magia” seria a totalidade do espaco social em que sao engendradas e exercitadas ,
as disposicoes e crencas que tornam possivel a eficécia da magia. Bourdieu baseia—se em Mauss nao
tanto para explicitar as especificidades dos interesses magicos e religiosos — alias, em sua opiniao,
estes so podem ser caracterizados em referéncia a determinados grupos sociais (dominantes ou
dominados) —, mas paralembrar que a magia é o que Mauss, 11aesteira de Durkheim, designava como
uma “crenca coletiva” ou, de preferéncia, segundo sua expresséo, um “desconhecirnento coletivo”.
De maneira geral, é a0 conjunto da obra de Mauss e de Durkheim concernente as fun—
coes sociais do sagrado que Bourdieu se refere em seus trabalhos sobre a eficacia simbolica,
principalmente a dos ritos de instituicao, ou seja, “do poder que eles tém de agir sobre 0 real,
atuando sobre a representacao do real”. Tratando-se seja do Essai de Henri Hubert e Marcel »
Mauss sobre “a natureza e a funcao do sacrificio” on do prefacio de Me’langes d ’histoire des
religions, “A introducao a analise de alguns fenomenos religiosos”, ou ainda do texto da pri-
meira parte da tese sobre La prie‘re que Mauss nao chegou a terminar (tampouco Bourdieu
conseguiu redigir a sua): todos esses textos incidem sobre o que eles designavarn como “a
busca do mecanismo e da eficacia de um rito”. Os atos de magia social, a semelhanca dos
ritos de instituicao — Bourdieu se serve, corno exemplo, da circuncisfio e do casamento, mas
tambérn dos concursos de ingresso ‘as Grandes Ecoles, na Franca ~, so obtém sucesso se a
instituicio, no sentido ativo de investidur'a, for “garantida pelo grupo inteiro ou por uma
instituicao reconhecida, encontrando esta filtirna seu fundamento na crenca de um grupo
inteiro”. Tal anélise nao deixa de ecoar aquela que Mauss fazia dos ritos — sobretudo os ritos
religiosos, aqueles que sao "tradicionais, ou seja, realizados segundo uma forma adotada pela
coletividade ou por uma autoridade reconhecida” -, que encontra sua eficécia nao em si mesma,
mas “na maneira como essa eficacia é concebida", ou seja, de acordo com as crencas do grupo.
No coloquio “A heranca de Mauss”, realizado no College de France em 1997, Bourdieu
prestou homenagem ao estudioso lendo e comentando extratos de sua obra. Desse modo, ele
confirmou as afinidades intelectuais — e politicas — profundas que, em seu entender, vincu—
lavam ambos para além dos efeitos de geracao, a saber: o arbitrério (no sentido de Saussure)
de qualquer fenomeno social, 3 dupla inscricao do social nos corpos e nas coisas e— Bourdieu
insiste nisso uma filosofia da pratica que distingue logica pratica e logica escolastica. Para
além dessas aproximacoes que nao se reduzem a propositos de autocelebracao que “se dis—
simulam sob uma celebracao anexionista”, segundo sua propria expressao, o que aproxima
fundamentalmente esses dois filosofos convertidos a sociologia e 2‘1 antropologia é sua cornurn

264 MAUSS, MARCEL (7872—7950)


desconfianca em relacao a todas as formas de irracionalismo que pervertem as respectivas
disciplinas em qualquer época e em todo lugarfinas particularmente na Franca.

130. MEDITAQOES PASCALIANAS (Médiz‘az‘ions pascal/ennes)


Iosé Sérgz'o Leite Lopes

BOURDIEU, P. Meditacbes pascalz‘anas. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Meditacoespascalianas, escrito por Bourdieu em 1997, é um dos filtimos da vasta obra que
publicou em Vida. Nele o autor lida com seus principais conceitos sociolégicos retrabalhados
num dia'logo critico com o pensamento e a pratica filosoficos. O livro pode ser entendido corno
uma sistematizacao de sua obra no momento mesmo em que ela passa a ter uma repercussao
mais ampla que os circulos académicos; em que ele pode fechar o circulo de seu percurso desde
a filosofia dos seus anos de juventude e dar coeréncia a sua trajetéria inovadora pela antro-
pologia e sociologia. E interessante que na contracapa da edicéo francesa original, Bourdieu,
que nao deixa passar nada sem seu controle no processo de edicao, é apresentado como antro~
pologo e sociologo. Num momento de balance na maturidade parece incorporar o conjunto
de sua trajetoria e 1150 apenas sua apresentacao insistente como sociologo que privilegiava o
combate no interior deste campo. E como se tambe’m, neste memento de sua obra, o retorno
aos problemas com que se defrontou como antropélogo no estudo do campesinato argelino e
francés dos anos 1950 e 1960 fizesse sentido diante da questao social urbana e metropolitana
candente enfrentada pelos descendentes daqueles campesinatos anteriormente estudados.
A publicacao de Meditacoes pascalianas em portugués, com preciosa traducao de Sergio
Miceli, dé oportunidade a0 leitor brasileiro de atualizar—se com o pensamento de Pierre Bomdieu
numa obraque lida corn seus principais conceitos retrabalhados ern sua plena maturidade, e que,
vista a posteriori, praticamente delineia seu testamento intelectual. Colocando—se sob a égide
de Pascal, Bourdieu procura fazer uma critica sistemética da razao e da pratica escolésticas em
que estao imersas as atividades filosoficas, mas também as cientifiCas, artisticas e intelectuais.
Tal é o contefido dos dois primeiros capitulos do livro, incluindo um esboco de sua prépria
socioanalise (“confissoes impessoais”) num apéndice de capitulo, quando temos — através de
sua experiéncia de aluno-bolsista originério das classes populates, sua transformacao pelo
internato e pela escola republicana de elite, e suas experiéncias posteriores de distanciamento
da filosofia e de aproximacao com a etnologia e a sociologia -— uma ilustragéo dc suas analises
reflexivas sobre a importancia das socializacoes e internalizacoes corporais. (Esse apéndice
constituia—se numa versao de trecho de seu livfo postumo, em elaboracao, ainda desconhecido
na época, Esboco de auto—andlise.) Nesses capitulos, ele dé novos argumentos e novo formato a
temas jé tratados em obras sobre a escola, o campo intelectual, o homo academicus, a nobreza
de Estado, e inicia uma reflexao sobre a génese dos campos e em particular do campo filosofico,
que por sua vez é desenvolvida no capitulo dos “fundamentos histéricos da razao” (com uma
anélise da historicidade do campo cientifico e suas relacées com o poder).
Mas o livro é também um meio para o autor reafirmar, através de novas abordagens, suas
teorias e anélises da dominacéo simbélica em diferentes esferas sociais sintetizadas pelos

MEDITAQGES PASCALIANAS (Méditations pasca/iennes) 255


conceitos nao somente de campo como também de habitus, com os quais construiu o conjunto
de sua obra por meio da comparacao sisternética de resultados de pesquisas empiricas em
diferentes areas de conhecimento das ciéncias humanas. Relacionado a este ultimo conceito,
0 autor desenvolve no capitulo do “conhecimento pelo corpo” toda a dimensao da acao in-
fraconsciente da logica da prética que é ignorada pelo que ele chama de epistemocentrismo
escoléstico. Ele pode assim compreender a dimensao “subjetiva” da incorporacao, interioriza—
céo, reconhecimento e legitimacao da dominacao pelos préprios dominados, que se manifesta
para além da verdade de sua exploracéo objetiva, estabelecendo assim a dupla verdade de
certos fenomenos sociais relacionados a violéncia simbélica e ‘as lutas politicas — como a dupla
verdade do dom e a dupla verdade do trabalho. Ble assim adverte os analistas (de certa forma
ajustando contas também com algumas de suas formulacoes do passado que enfatizavam a
outra direcao) da tentacéo objetivista que omite a visao nativa e a sociologia espontanea dos
grupos sociais, sejam eles os mais dominados e despossuidos de capital economico e capital
cultural. E assim ele retoma analiticamente o elo entre seus estudos de juventude do pouco
escolarizado campesinato francés e argelino e dos trabalhadores e subproletérios argeliuos
dos anos 1960, com os estudos coletivos recentes dos novos subproletérios modernos mais ou
menos escolarizados da sociedade globalizada (e seus aliados da “mao esquerda” do Estado,
devotados e aflitos praticantes de politicas sociais despriorizadas), emA mise’ria do munda.
Tendo como ponto de partida o tempo “livre” caracteri’stico da pratica escoléstica, a skholé,
Bourdieu volta a anélise dos usos sociais comparados do tempo, com a oposicao eutre o
estresse sobreagendado do executive e o tempo vazio do desempregado e a auséncia de futuro
dos velhos e novos subproletarios. Aqui encontramos, reforcadas por mais de trinta anos de
analises cumulativas, as preocupacoes com o tempo dos camponeses e proletérios argelinos
dos primeiros artigos de Bourdieu e de seu livro Travail et travailleurs em Algérie (1964).
Assim como o tempo, os temas filosoficos do ser social e do sentido da existéncia recebem
um tratarnento socioantropolégico por intermédio de uma renovacao do conceito de capital
simbélico, tornado como efeito simbélico das outras espécies de capital (economico, cultural,
social), 6 come um concentrado do reconhecimento social e da razao de viver, fornecendo a
todo ser social nao somente carisma, mas também uma teodiceia de sua existéncia e de sua
identidade (e aqui podemos pressentir também, nas entrelinhas, o caréter de testamento
intelectual impresso nesse livro, em vista da aposentadoria institucional por idade que n50
tardava a chegar para ele).
E assim as Meditacfiespascalianas vém enfatizar, em meio a anélise critica das mfiltiplas
determinacoes historicas da dominacao, uma pequena margem de liberdade e de esperanca:
o poder simbélico dos dominados, que os arranca da insignificéncia, “pode introduzir um
certo jogo na correspondéncia entre as esperancas e as chances e abrir um espaco de liber-
dade pela posicao,'mais ou menos voluntarista, de possiveis mais ou menos improvéveis,
utopia, projeto, programa ou plano, que a légica pura das probabilidades conduziria a ter
por praticamente excluidos” (MPp, 286-287). Esse livro é assim uma sintese da vasta obra
de l30urdieu, desde a reflexao sobre seus resultados cientificos anteriores até a reflexao mais
recente, que sustenta seu engajamento politico-intelectual, ocupando uma posicéo central
nos debates dos efeitos das transformacées neoliberais internacionais sobre o conjunto dos
grupos sociais e sobre a sociedade.

265 MEDlTAgéES PASCALIANAS {Méa’x‘tat/bns pasca/I'ennesj


Ver: Linguistico (capital; mercado)

mo. MERCADO SIMBoLIco


Ver: Bens simbo’licos

W. MERLEAU-PONTY, MAURICE (7908- 7967)


Jose’ Luis Moreno Pestafia

Durante 05 anos de formagao de Bourdieu, Merleau-Ponty desempenhou um lugar impor-


tante. Primeiro, institucional: Merleau-Ponty fazia parte do jfiri que permitia o acesso a Ecole
Normale Superieure. Segundo, intelectual: Merleau—Ponty ocupava um lugar particular no
espago da fenomenologia. Propunha uma discussao estreita dos avangos das ciéncias humanas
(discussao que punha em pratica a partir de uma informagao de primeira mao dos avangos
da psicologia e da biologia), separava—se de toda versio da fenomenologia, como a de Sartre,
que defendesse a subordinagao das ciéncias do homem e da filosofia e, enfim, embarcava
na discussao politica mediante 0 use criativo das ferramentas filoséficas. Em seus textos,
Bourdieu recorre com frequéncia a Merleau-Ponty. Dele resgata uma concepqao do corpo e '
uma noeao especifica da atividade pratica. ‘
Comecemos pelo corpo. Segundo Bourdieu, o corpo esté organizado por disposigées; estas
procedem do contato reiterado com determinadas condiqoes de existéncia. Tais disposigoes
550 OS intersticios que vinculam a natureza e a cultura. Merleau—Ponty, para Bourdieu, foi
sem dr’m'da um dos pensadores que elaborou melhor semelhante Vinculo. O corpo, assegurava
Merleau—Ponty, nao é um conjunto de orgaos justapostos; ele se parece mais propriamente com
um esquema que articula — temporal e espacialmente ~ nossa relagéo com o mundo. O corpo
se converte na fonte primogénita de nosso sentido da identidade pessoal, de nossa relagao
com os objetos e, em geral, de nossa experiéncia do mundo. Essa vinculagao intima entre o
corpo e o mundo se apoia em duas teses que servem cada uma de contrapeso tanto no que diz
respeito a Cila do intelectualismo como a0 Caribdis do naturalismo. Por uma parte, 0 corpo
nao é uma simples continuagao das leis da natureza. E, antes de tudo, distancia temporal da
natureza; capacidade de se evadlr das demandas desta filtima. Semelhante distancia temporal
permite ao ser humano sair da espontaneidade dos animals - cuja falta de liberdade procede
dos condicionamentos de uma natureza demasiado forte — e definir‘se a partir de habitos
préprios. Por outra parte, 0 corpo nao é jamais um territério liberado da natureza nem um
espago inteiramente definido pelas relagoes de significado que organizam o universo huma-
no. Merleau-Ponty assinala que o corpo é ambiguo: 11210 0 dominio da dotaeao natural, 1150
0 da consciéncia; tampouco o ”entenderiamos como a simples adigao de natureza e cultura
(o homem seria por uma parte regulagao e, per outra, liberdade): “O homem concretamente
considerado nao é um psiquismo unido a urn organismo, mas este vaivém da existéncia que
ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais” (MERLEAU~P0NTY, 1945, p. 104).

MERLEAU‘PONTY, MAURICE {7.9084967} 267


Esse tipo de giros anah'ticos e retéricos —~ “0 corpo nao é nem um nem outro, mas 31111 as duas
coisas ao mesmo tempo” — serao constantes nas descricoes que Bourdieu venha a realizar dos
cruzamentos entre a dotacao fisiolégica e a dotacao social no corpo humane.
E assim entramos na descricao da prética, questao para a qual Bourdieu também se apoia
na filosofia de Merleau-Ponty. Se aceitamos que a experiéncia humana é ambigua, 1150 se pode
considerar pertinentes as descricoes da mesma que se baseiem na diferenca entre liberdade e
necessidade, entre o sujeito livre on o automate condicionado. Ha uma inteligéncia do agente
que, sem ser a reproducao da mecanica fisiolégica, psicolégica e social, nao esté tampouco
baseada na reflexao intelectual: “O agente envolto na prética conhece o mundo por um co~
nhecimento que, como mostrou Merleau~Ponty, 1150 se instaura na relacao de exterioridade
de uma consciéncia conhecedora. Ele o entende num sentido bastante razoével, sem distancia
objetivante, como sendo algo evidente, justamente porque ele se encontra enredado nele, com o
corpo colado nele, onde ele habita como se fora um uniforme ou um habitat familiar” (MP, 170).
Pois bem, Bourdieu recolhe a inspiracéo teérica de Merleau—Ponty reformulando-a socio-
logicamente: a experiéncia basica dos sujeitos esté condicionada por trajetorias de classe e de
género, os diversos modos de reflexividade dependem da capacidade dos individuos para se
liberarem da necessidade, a relacao temporal se incuba nas experiéncias desiguais do mundo
social que os agentes fazem e de sua diversa antecipacao do futuro. 0 agents humano corpo~
ralizado reproduz e cria a prosa de um mundo, mas 1150 de qualquer mundo, porém de um
mundo atravessado por desigualdades e dominacéo. Assim, a ontologia renuncia a sua augusta
generalidade e ganha em pertinéncia empirica — talvez fosse melhor dizer simplesmente em
veracidade: A visao dualista que nao quer conhecer senéo 0 ate de consciéncia transparente a si
mesmo on a coisa determinada como experiéncia, é preciso, portanto, opor a logica real da acao
que coloca em presenca duas objetivacées da histéria, a objetivacao nos corpos e a objetivacio
nas instituicoes on, o que da no mesmo, dois estados do capital, objetivado e incorporado,
pelos quais se instaura uma distancia em relacao a necessidade e as suas urgéncias” (SP, 95).

Referéncia
MERLEAU-PONTY, M. Phe’noménologie dela perception. Paris: Galh'mard, 1945.

142. METODOLOGIA

Ver: Epistemologia

143.MlDlA
Patrick Champagne

O primeiro texto de Bourdieu que trata da midia é o artigo “Sociologos das mitologias e mito—
logias dos sociologos” (1963), publicado em Les Temps Modernes, em coautoria com Jean-Claude
Passeron. A0 se debrucar sobre os discursos dos ensaistas a respeito dos meios de comunicacao
de massa, esse trabalho tem grande interesse 11a medida em que traz 0 germe das evolucoes
ulteriores das pesquisas empreendidas por Bourdieu nesta area. Tratando—se de apreender 05

268 METODOLOGIA
efeitos exercidos pelos modernos meios de comunicacao sobre as diversas categorias de publico, '
ele denuncia a falta de investigacao rigorosa, assim corno as explicacoes essencialmente verbais e
os trocadilhos em torno da expressao mass media”:midia de massa que Se dirigiria macicamente
a uma massa indistinta. As pesquisas que Bourdieu efetua na época sobre a frequéncia aos museus
mostram que existem leis da difusao cultural que se aplicam também a midia. Ele pretende ser 0
portador de um modo rigoroso e cientifico de abordar as ciéncias sociais que deveriarn se apoiar,
a semelhanca do que ocorre corn as ciéncias exatas, em pesquisas, alérn de se valer de dados
fatuais. A midia deveria, portanto, ser igualmente objeto de investigacées meticulosas, a partir
das quais sera possivel empreender uma reflexao teorica, o que nao era entao realrnente o caso.
De fato, a midia dava lugar, quase sempre, a um discurso profético e a mobilizacao da ternética
das “mutacoes”, discurso epistemologicamente associado a sondagens puramente empiricas,
sem'reflexao teorica. Em 1970 Bourdieu providenciou, para a colecao que dirigia nas Edicoes
de Minuit, a traducao do livro de Richard Hoggart, The Use ofLiteracy (1957) sob o titulo de
La culture du pauvre, que constitui uma pesquisa etnogréfica minuciosa sobre os consumos
culturais em meios populares. Esse livro, que significa a abertura dos cultural studies, é, de certa
forma, erigido por Bourdieu em exemplo de analise do Inm da midia.
Alérn da necessidade de se realizarem pesquisas rigorosas 11a area, 0 artigo de 1963 esboca o
perfil do (1116 deveria serla'nova figura do inteleCtual: ao filésofoxncarnado por Sartre, que pode
falar a respeito de tudo sem que seja realmente especialista do assunto, Bourdieu pretends proper
uma nova imagem do intelectual que se baseia nas ciéncias sociais. O intelectual seria, assirn, aquele
que deve ser capaz de se impor no debate publico por suas pesquisas e que, por conseguinte, deve
limitar-se a intervir em seu dominio de competéncia. Ora, no final da década de 1970, aparece uma
nova categoria de intelectuais que vai envolver fortemente a acao dos meios de cornunicacao de
massa, jé que esses “novos intelectuais” devem sua notoriedade 1150 as suas obras, mas a midja e,
em particular, a televisao, cuja difusao, desde o inicio dos anos 1970, atinge na Franca praticarnente
a populacao inteira e comeca a produzir efeitos de legitimacao especificos (cf. 0 conhecido "passou
na TV”). Essa figura concorrente do intelectual — cujo arquétipo é o filésofo Bernard—Henri Levy, e
que so existe, tendencialmente, por e para a midia, a tal ponto que sao conhecidos por “intelectuais
midjaticos” — vai conduzir Bourdieu a um grande numero de observacoes sobre o funcionamento
da esfera jornalistica em suas relacoes com o campo intelectual.
Os“meios de comunicacao de massa”r1ao darao lugar a uma grande pesquisa especi—
fica — eles sao demasiado diferenciados —, nem a uma obra comparavel a La distinction,
Le sens pmtz’que on La noblesse d’Etat, considerando que seu objeto é demasiadamente
pré—construido. Pelo contrario, é possivel encontrar 11a obra de Bourdieu nao so ferramentas
teéricas para pensar o jornalismo — em particular, sua teoria dos campos —, mas também
numerosas reflexoes pontuais dedicadas ao campo jornalistico, como caso peculiar de campo.
De fato, se ha efetivarnente uma sociologia da midia em Bourdieu, ela esté dispersa e como
que fragmentada em sua obra, na medida em que os meios de comunicacao de massa sao
abordados principalmente a partir de duas entradas: por um lado, como campo de producao
e de consumo de um tipo particular de bens que ele chama de “bens simbélicos”, ou seja, bens
que, diferentemente dos bens materiais, supc'Jem um ato de decifracao ou, se preferirrnos,
de apropriacao mental; por outro, como campo que tende a exercer de maneira crescente,
conforme o desenvolvimento da midia, certo predominio sobre os outros campos.

Mom 269
Embora seus primeiros textos se refiram marginalmente ao campo jornalistico, eles trazem
elementos essenciajs para a construgéo das ferramentas teoricas que posteriormente lhe permitirfio
pensar tal campo. Em 1966 Bourdieu publica “Campo intelectual e projeto criador”, artigo q1'1e
langa as bases de uma abordagem relacional e convida a pensar as instituigoes culturais umas
em relagéo és outras pelo fato de formarem um sisterna e de apresentarem relativa autonomia em
relagéo {as forqas politicas e economicas. Esse artigo é completado em 1971 por um Iongo texto,
“O mercado de bens simbélicos”, no qual, entre outros aspectos, ele mostra a existéncia de uma
homologia estrutural entre o campo de produgéo das obras culturais e o campo do consume.
Bourdieu cita como example, em especial, os criticos culturajs da imprensa e precede 51 anéh’se
das relagées sutis entre eles e seu pfiblico. No capitulo 8 de La distinction, dedicado ‘a logica
que rege a produgfio das opinioes na esfera politica, analisa a contribm'géo da midia a partir da
construgéo do campo dos jornais, de suas divisoes, dos principios de legitimidade especifica que
se exerce nesse campo. Em 1992, ele publica Les régles de l’art, uma obra de sintese fundamental
em que, principahnente a partir da anélise do campo de produqéo das obras estéticas (edieoes,
galerias, etc), desenvolve uma teoria dos campos bastante genérica com base na qual se pode
fazer uma anélise do campo jornah'stico. Em 1996, em seu livro Sur la téle’vision, esboea esse
tipo de anéljse: lembra que o mundo do jornalismo é também urn microcosmo que tern suas
leis préprias e é definido por sua posiqéo no mundo global. No entanto, contra o reducionismo
economico, ele esclarece: a afirmaeéo de que esse campo é (relativamente) autonomo equivale
a dizer que n50 se pode compreendé-lo de maneira direta a partir de fatores externos ~ o que
néo significa que se possa prescindir de levar em consideragéo os fatores economicos.
Bourdieu insists no fato de que uma das questoes que deve ser formulada a urn campo ~
questio especialmente importante quando se trata do campo jornalistico - é aquela que
se refere a seu grau de autonomia. A este respeito, o campo jornalistico caracteriza-se por
um elevado grau de heteronomia: é um campo muito precariamente autonomo. Ocorre que
tal autonomia, por mais frégfl que seja, faz com que 1150 se possa compreender tudo o que
acontece na esfera do jornalismo a partir unicamente do conhecimento do mundo circun-
dante: quem financia, quem 8510 05 anunciantes, quem paga a publicidade, de onde vém as
subvengoes, etc. Uma parte do que se produz no mundo do jornalismo so é compreensivel se
esse microcosmo for pensado como tal, e se houver um esforqo de compreenséo dos efeitos
que as pessoas envolvidas nesse microcosmo exercem umas sobre as outras.
Em 1984, ARSS publica um texto curto intitulado “O hit-parade dos intelectuais franceses,
ou quern seré o juiz da legitimidade dos juizes?”. Esse importante comentério inaugura, de 211-
guma forma, 0 segundo eixo da anélise da midia empreendida por Bourdieu. Nessa explicagio
suméria ele procede 2‘1 anélise — prética jornah’stica frequente - de um hit parade dos “mais
importantes intelectuais vivos” na Franga, e mostra que essa operagéio oculta a composieio do
j1’1ri que produz a classificagéo e que, no essencial, é composto por jornalistas. Ele revela como
essa~ simples operagéo de classificagéo tende a submeter o mundo intelectual aos veredictos do
circulo jornah’stico. Bourdieu iré prosseguir esse combate em prol da autonomia dos intelec~
tuais com a publicagéo de Sur la te’lévision (1996) e sua denfincia dos intelectuais midiéticos.

Referén'cias
BOURDIEU, P; PASSERON, I —.C Sociologie des mythologies etmythologies de sociologues Les Temps
Modernes,n. 211, p. 998 1021, déc 1963.

270 MIDIA
~‘
BOURDIEU, P Champ intellectuel et projet créateur Les Temps Modernes, n. 246, p. 865 906,
nov. 1966
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Année Sociologique, v. 22, p. 49-12, 1971.
BOURDIEU, P. Le hit-parade des intellectuels francais, ou qui sera juge de la légitimité des juges?
ARSS, 11. 52-53, p. 13—14, juin'1984.

14a. MISERIA DO MUNDO,A (La misére du monde) .


Patrick Champagne

BOURDIEU, P. A miséria do mundo. Petrépolis, R]: Vozes, 1997.

Em marco de 1993, algumas semanas antes das eleicoes legislativas na Franca, foi pu—
blicado La misére du monde, obra coletiva concebida por Bourdieu explicitamente como
intervencéo no campo politico. Esse livro — de quase mil paginas e contendo cerca de sessenta
entrevistas realizadas em ambientes onde impera o sofrirnento ~ se propoe a dar voz aqueles
que nao séo ouvidos no espaco pfiblico, aqueles que so 550 ouvidos através do filtro defor~
Inador cla midia ou dos levantamentos estatistico’s. Trata’-se de entrevistas comentadas que
descortinam os sofrimentos socialmente engendrados pelo neoliberalismo, sofrimentos
muitas vezes inaudiveis e invisiveis para os dirigentes politicos.
O livro, relativamente inclassificével, baseiavse em urn conjunto‘de pesquisas empreen~
didas, havia Varies anos, por cerca de quinze pesquisadores, mesclando depoimentos e
histérias de Vida com an'élises cientificas, mas sem os jargées habituais da sociologia, no
intuito de se tornar acessivel ao leitor n50 especialista. LA diagramacao, os titulos com base
em conceitos, os textos de apresentacao das entrevistas constituem outros tantos procedi-
mentos que permitem compreender aquilo que, para além das falas singulares, pode ser
lido de maneira geral sobre o mundo social. Em suma, trata—se de uma obra destinada a
introduzir a sociologia no debate politico, trazendo a perspectiva e as anélises da ciéncia
social sobre um mundo que os politicos contribuem— de forma mais inconsciente que
conscientemente— para produzir.
A obra foi bem recebida de imediato, tanto pela maioria da imprensa que publicou vérias
entrevistas com Bourdieu quanto pelo pfiblico em geral, e obteve rapidamente importante
divulgacao. Além disso, alguns diretores cle teatro serviram—se dos textos das entrevistas
para realizar montagens teatrais, fazendo com que as representacoes propiciassern uma
oportunidade de reflexao, de caréter estético-politico, sobre o lugar do teatro nas lutas
sociais. Nos bairros desfavorecidos, essas representacoes teatrais foram, muitas vezes,
seguidas de debates que incidiram nao tanto sobre o teatro, mas sobre a crise social, a
precariedade e 0 desernprego.

145. MOBILIDADE SOCIAL

Ver: Classe social

MOBILIDADE SOCIAL 271


Anne~Catherine Wagner

0 terna da mundializaeao aparece em Pierre Bourdieu no final da década de 1990, em


conferéncias profe'ridas em eventos de caréter politico,pub1icadas nos dois volumes de Contre—
feux (artigos “Le mythe de la ‘mondialisation’ et I’Etat social Européen”, Contre-feux 1, 1998,
p. 34-50, e “Unifier pour mieux dominer”, Contre-feux 2, 2001, p. 93408), aos quais conve'm
acrescentar o post~scriptum do livro Les structures sociales de l’e’conomie, intitulado “Du
champ national au champ mondial”.
A mundializaeao é considerada nesses textos como um “pseudoconceito, simultaneamente,
descritivo e prescritivo” que deve ser objeto de um trabalho de desconstrueao e de ruptura. No
sentido descritivo, a mundializaeao designa a unificaeao do campo economico, nomeadamente
na area financeira, sob o efeito das politicas estatais de liberalizaeao e desregulamentaeao.
Mas a palavra tem igualmente, quase sempre, um sentido normative ou prescritivo que
designa uma politica economica orquestrada e imposta pelas grandes organizaeoes multila-
terais (OMC, FMI, Comisséo Europeia) visando a eliminaeéo de obstaculos — em sua maioria
relacionados ao EstadoaNagao e, em particular, ao Estado-Providéncia — a essa empreitada.
Esse duplo sentido é que faz a ambiguidade da noeao, conferindo-lhe sua forea simbolica. O
termo permite transformar o processo de unificaeao do campo mundial da economia e das
finaneas em urn destino inevitével e em urn projeto politico.
A mundializaeao é, portanto, antes de mais nada, uma doxa, um conjunto de creneas e
ideias preconcebidas. Elemento da filosofia social da classe dominante, o termo substituiu 0 de
“modernizaqao” e desempenha, como este, funeoes de legitimaeéo da ordem existente. Para exe-
cutar sua tarefa performativa, a noeao de mundializaeio se integra em uma retorica que infringe
todas as regras do discurso sociologico. Os “teéricos da mundi'alizagao” — que, a semelhanea
de Anthony Giddens, Ulrich Beck ou Zygmunt Bauman, retomam por sua conta esse vocabulo
sem questionar sua construeao, nern sua funeéo social — estao fadados a se limitar a discursos
gerais sem fundamento empirico, contribuindo, com seus ensaios, para reforgar essa doxa.
Para'combater o mito da mundializaeao, Bourdieu recomenda uma ida aos fatos. Os Estados
estiveram na origem das medidas economicas de desregiflamentaeao e continuarn desempenhando
um papel a0 dar sua caueao a politica que lhes retira o poder. Tudo o que se descreve sob o termo
“mundializaeao” é o efeito nao de uma fatalidade economica, mas de uma politica de despoli»
tizaeio. Enquanto o termo “mundializaeao” oculta os Estados—Naeao, assiste-se na realidade a
uma redefinigao parcial da divisao do trabalho internacional em favor dos paises dominantes. A
mundializaeao encarna, assim, “a forma mais bem—acabada do imperialismo do universal”, aquela
que consiste, em uma dada sociedade, em universalizar suaprépria particularidade, instituindo—a
tacitamente como modelo universal. Com efeito, as politicas de globalizaeao séo bastante tribu-
tarias das tradieoes sociais de um Estado particular, os Estados Unidos (EUA), em que o Estado
Federal é historicamente fraco, modelo que se universaliza, graeas aos think tank e as redes
internacionais de experts. Contra essa mundializaeao liberal, Bourdieu convoca para um novo
universalismo que trabalharia em prol da universalizagao das condieoes de acesso ao universal.
Se 0 termo “mundializaeao” aparece apenas tardiamente, e de maneira relativamente
periférica, na obra cientifica de Bourdieu, essas anélises baseiam—se em uma reflexao teorica

272 MUNDIALIZACAO/INTERNACIONALIZACAO
mais antiga sebre os desafies e as cendicees sociais dos processes de internacienalizacao. Em
' seus trabalhos sobre a estrutura social e sobre o campo do peder, ele analisou, corn efeito, 05
uses seciais, no 3610 das classes dominantes, da internacionalizacao das atividades ecenemicas.
Sua ebra, La distinction, demenstra come a internacionalizacao redistribui as eportuni—
dades no seie da burguesia, a‘favor de uma nova burguesia que se opee a antiga burguesia de
negécios per um estilo de Vida “modernista” e voltado para o estrangeiro. A internacienalizacao
das atividades ecenémicas alimenta lutas de classificacae, desencadeadas peles membros
das fracees das classes dominantes que operaram a reconversae necessaria para adaptar—se
a transformacao do campo das empresas. E essa vanguarda, executives das empresas multi-
nacienais dotados frequenternente de certificados escolares internacionais, que importa dos
EUA e nove mode de dominacéo, baseado na maneira alternativa de viver e em urn estile de
Vida despojado (LD, 338 e segs.). A internacienalizacao contribui para nevas estratégias de
distineao e de legitimacae da dominacao. Ela transforma tambérn as estratégias de reprodu‘
(310. Per sua vez, La noblesse d’Etat (p. 305-328) precede a analise do desenvelvimento das
escolas de gestae internacionais, “escelas refiigio” que oferecem uma segunda eportnnidade
aos filhos da burguesia de negécies, descartados da concorréncia nacienal, garantindo-lhes
saidas profissionais incessanternente ampliadas pela internacionalizacao do campo econemice.
Beurdieu prosseguiu a anélise da internacionalizagao das classes dirigentes no ambito
de um trabalhe coletive de cemparacae internacional da fermacao das elites, coordenado
per Monique de Saint Martin, na década de 1990. Nesse estudo, ele mostra que as novas ne—
brezas nacionais tendem cada vez mais a se internacienalizar, tanto em seu funcienamento
quanto em sua formacao e reproducae. Assiste-se a uma unificacée do campo mundial da
formacao dos dirigentes que preduz seus efeitos sobre es campes nacienais, introduzinde
novos principies de legitimidade em cada uma das estruturas sociais no plane nacional
(BOURDIBU, 1992, p. 281—283).
A comparacae internacional construida rigorosamente é, de acerdo com Pierre Beurdieu,
a melher - para nae dizer, a (mica — maneira de enfrentar e processo de internacienalizacao.
A mundializacae nae plana no vazie e nae pede ser estudada sem urn pento de sustentacao
nacional bern sélido. Somente urn trabalhe coletive internacienal sobre os efeites nos dife~
rentes paises desse processo de internacionalizacao — na medida ern que estabelece relacees
entre pesquisas empiricas situadas do ponto de vista histérice e geografico — torna possivel
a construcae de 11111 modele de conjunto.
Essas operacees de cemparacae internacional forarn também a ecasiao, para Bourdieu, de
pensar as condicees seciais de possibilidade de outras fermas de internacienalizacao, nemea—
damente no campo intelectual. Ainda que exista urna internacienalizacao dos dominantes
— on, no campe académico, uma internacional do establishment ~, a Vida intelectual nae é
espontaneamente internacional; A diversidade das tradicees intelectuais no plane nacienal
esta na origem das numeresas defermacoes sefridas pelas ideias que circulam de um espaco
nacional a outro, e de mal—entendidos em torne de textes reinterpretades em funcao de
,
interesses nacionais dos receptores. O cenhecirnento das categorias de percepcao nacionais
herdadas da histéria e inscritas em fermas escolares de classificacao, é que permite superar
tais ebstéculos. A internacionalizacao on a desnacionalizacao das categorias de pensamento
é a cendicao primordial de um verdadeiro universalisme intelectual (BOURDIEU, 2002).

MUNeIALIZAgAO/INTERNACIeNALIZAn 273
Assim, o conhecimento dos mecanismos da mundializacio — se apoiado no trabalho coletivo
de pesquisadores de diferentes paises — pode ser uma das armas de um internacionalismo
critico, capaz de resistir a nova internacional cultural dos dominantes.

Referéncias _
BOURDIEU, P. Quelques remarques sur les conditions et les résultats d’une entreprise collective
et
international de recherche comparative. In: SAINT MARTIN, M.; GHEORGHIU, M. D. (Eds).
Les
institutions deformation des cadres dirigeants: e’tude comparée. Paris: MSH/CSE, 1992.
BOURDIEU, P. Les conditions sociales de la circulation international des biens culturels. ARSS,
n.
5, p. 3—8, 2002.

147.MUNDO SOCIAL
Michel Daccache

A nocao de 111m social deve ser distinguida tanto das prenocées do senso cornum (fala-se
de “esferas sociais”) quanto de determinadas conceitualizacées eruditas. Sobretudo a corrente
interacionista, com A. Strauss e H. Becker, serviu—se do plural “mundos sociais” para designar
universes dotados de propriedades especificas (os mundos da arte, da mfisica. . .). Na obra de
Bourdieu, a semelhanca do que ocorre com a fenomenologia de A. Schiitz, o 111m social pode ,
ser definido, antes de mais nada, como aquilo de que temos a experiéncia sob o modo da evis
déncia (o “é assim”). E a realidade tal qual ela é apreendida subjetivamente ~ 0 Lebenswelt de
E. Husserl — e que se retraduz objetivamente na forma de comportamentos tipicos, associados
a algumas possibilidades de éxito. Assim, o mundo social é, de certa maneira, a representacao
que a pessoa faz dele. E, portanto, urn assunto que interessa a todos na medida em que cada
um tern interesse que venha a irnpor-se urna visao de mundo conforme a seus interesses (o que
explica que se nega frequentemente qualquer caréter cientifico a tal objeto). Ao afastar‘se, nesse
ponto, da tradicao fenomenolégica, Bourdieu lembra assim que o “ser~no—mundo” resulta de
esquemas de percepcao e de acao que, por sua vez, sao produtos de uma histéria. Mas o mundo
social é igualmente, em urn nivel mais geral, uma ordem particular de coisas. De fato, essa
nocao nao remete a uma série de objetos (arte, religiao, economia...), nem mesmo a dominios
precisos de atividade, mas a urn reino especifico que obedece a “leis” proprias: o mundo social
é, para o sociologo, o que o mundo fisico é para o fisico. Vé—se, pois, que a magic de mundo
social nao pode ser reduzida a nocéo de sociedade no sentido de Durkheim, pois esta segunda
nocao veicula uma metafisica que a primeira ignora. Ela também 1150 se sobrepoe ao conceito de
espaco social, igualmente presente na obra de Bourdieu, mas que se refere a estrutura relacional
constituida pelo conjunto das posicoes ocupadas pelos agentes sociais.

Referencias
LENOIR, R. Espace social et classes sociales chez Pierre Bourdieu. Sociéte’s ei- Représentations,
v. 1,
n. 17, p.385-396, 2004.
PINTOiL. Pierre Bourdieu et la the’orie du monde social. Paris: Albin Michel, 2002.

274 MUNDO SOCIAL


148. NEOLIBERALISMO
Roberto Grim

Esse termo aparece explicito mais frequentemente em escritos de Bourdjeu considerados


militantes ou de circumstfincia. Ressalva feita, em seus filtimos anos de atividade o autor produziu
urn extenso ferramental para lidar com o enfraquecimento dos Estados do Bem-Bstar Social que
permite analisar diversa‘s facetas dos aspectos que normalmente sao associados ao neoliberalismo.
De im'cio a grande obra coletiva focada nas consequéncias do enfraquecimento das politicas de
agéo do Estado para diminuir as consequéncias das desigualdades sociais e culturais (MM).
Em seguida, podemos anotar diversos textos de intervengao nos quais ele desvenda a légica da
construgéo intelectual neoliberalismo, em especial “O neolibemlismo como revolugdo con-
servadbra” (CPI), além de trechos das aulas de seu livro postumo (SE), também djrigidos para
pfiblicos nao especialistas.
A forga do neoliberalismo pode ser explicada a partir da sua apresentagao como mensagem
revestida de linguagem cientifica, aparentemente neutra e isenta de criticas: “Poi se armando das
mateméticas (e do poder da midja) que o neoliberalismo se tornou a forma suprema da sociodi~
ceia conservadora que comegou a aparecer no final dos anos 1960 através da expressao ‘fim das
ideologias’ ou, mais recentemente, ‘fim da historia’” (INT, 350). Aplicando seu conceito de efeito~
teoria, Bourdieu diz que “0 neoliberalismo é uma teoria economica poderosa, que aumenta muito
através da sua forga simbélica a forqajé existente das realidades economicas que ele aparenteménte’
apenas exprime” (INT, 350). A teoria poderosa é apresentada como uma crenga racional que deve
ser abragada globalmente: “Esse evangelho, ou melhor, a vulgata mole que nos é proposta de
todos os lados sob o nome de liberalismo é feita' de um conjunto de palavras mal definidas como
‘globalizagao’, ‘flexibilidade’, ‘desregulaqao’, etc. as quais, pelas suas conotagoes liberals e mesmo
libertarias podem conferir uma aparéncia de mensagem de liberdade e de liberagéo para uma
ideologia conservadora que se pensa como oposta a todas as ideologias” (INT, 351).
No contexto polémico em que os textos foram apresentados, Bourdieu também destaca
efeitos perversos do neoliberalismo, na esfera da arte e da cultura e avanqa sugestoes sobre
corno ele poderia ser combatido. A arte e a cultura, depois de terem conqm'stado a necesséria
autonomia no decorrer do século XX, comegam a perder a independéncia relativa que gozarn

NEOLIBERALISMO 275
num contexto em que o Estado e 05 patrocinadores privados v50 progressivamente retomando as
rédeas dos processos de criacao através do controle dos recursos materiais para ela. Essa situacao
representa nada menos do que um retrocesso civilizatério que deve ser combatido com todas
as forcas pelos intelectuais e artistas que prezam o seu oficio (LE). E justamente a mobilizacao
das diversas categorias profissionais cujo fazer esté sendo afetado de forma negativa pela nova
onda de “tecnocratizacao” que poderia combater eficientemente a nova ideologia liberal. Para
isso Bourdieu preconiza a criacao de associacoes internacionais de artistas, intelectuais e demais
profissionais que apontem, com autoridade moral e profissional, as deficiéncias das intervencoes
neoliberais nas suas respectivas areas de atuacao. A partir dessa construcao internacional alter-
nativa Bourdieu considerava ser possivel contrabalancar o poder politico e cultural das agéncias
internacionais dominadas pelos economistas e altos funcionérios partidarios do neoliberalismo.
Em termos heuristicos, Bourdieu vai, a partir de A miséria do mundo, progressivamente
lapidar a particao entre mao direita e mdo esquerda do Estado. Essa divisao lanca luz sobre as
diferencas de perspectiva e de acao entre os agentes do Estado encarregados da politica econémica,
préximos da légica e dos agentes do capital, que ele chama de mao direita do Estado; e aqueles que
se ocuparn das diversas funcées de politica social, educacional, cultural, de seguranca, ambiental e
outras. A esses filtimos denomina “mao esquerda do Estado”, sendo a divisao proposta a partir da
observacao das dificuldades e mesmo do desespero deles diante da quase impossibilidade de cumprir
suas tarefas no contexto em que a “mic direita” cerceia cada vez mais suas atividades (MM, 222).
Na sua teoria geral do Estado, .Bourdieu chama a atencao para o papel fundamental des—
ses agentes do interesse geral na geracao dos bens coletivos que tornam possivel o convivio
civilizado. E é na corrosao dos fundamentos da atuacao e da autoestima desses agentes que
poderia ser localizada uma das principais criticas que Bomdieu faz ao neoliberalismo. lmbui—
dos da ideologia neoliberal, os agentes da mao direita do Estado acabam criando mecanismos
cognitivos que obliteram a sua percepcao dos problemas enContrados pela mao esquerda e
acabam dessensibilizados para os problemas que a omissao do Estado provoca nas parcelas
da populacao menos bem providas de capitals economico e cultural. Essa énfase na teoria
economica como mecanismo produtor de cegueira institucional é préxima daquela desenvol~
Vida nos trabalhos histéricos de E. P. Thompson (1993) sobre a economia moral e sua relacéo
com a teoria economica nascente. Essa proximidade é digna de nota, jé que Bourdieu publicou
esse autor marxista nos primeiros volumes de ARSS, quando ele era ainda pouco conhecido
fora da Inglaterra, no volume sobre a producao da ideologia dominante (THOMPSON, 1976).
O espaco empirico que Bourdieu observou foi principalmente 0 da construcao das estruturas
da Uniao Europeia do final do século XX. A légica da construcao dessas entidades supranacionais
num periodo de predominancia cultural do neoliberalismo privilegiou a construcao do espago
economico comum e foi o alvo especifico das principais intervencées criticas de Bourdieu sobre
o tema. Ele observou que nesse processo as duas maos do Estado v50 36 distanciando progres—
sivamente e o poder efetivo vai se concentrando naquela localizada na direita. Essa construcao
supranacional se torna uma oportunjdade para a experimentacao neoliberal.
Na logica analitica de Bourdieu é impossivel pensar em construcao institucional sem
especificar quem $510 05 construtores e quais $510 05 motivos e as crencas que os impulsionam.
No caso do neoliberalismo, é ressaltado o papel dos economistas ortodoxos na construcéo da
doxa sobre como a economia deve ser‘gerida e de suas estratégias mais diretas para tomar

276 NEOLIBERALISMO

conta dos espacos decisorios da economia, como os bancos centrais (LEBARON, 2000, 2008).
No interior da equipe de Bourdieu a atencao sobre esse grupo nao diminui a necessidade de
observar outras comunidades profissionais, em especial aquelas ligadas a esfera judiciéria. E
assim que Yves Dezalay empreende uma extensa anélise dos subgrupos das diversas elites na-
cionais “produtoras de direito”,‘vincu1ados a internacionalizacao ao mesmo tempo da profissao
e do arcabouco juridico. E no interior dessa batalha entre setores tradicionais mais ligados as
tradicoes nacionais do direito e as grupos mais jovens, dotados de formacao internacional,
que se produz o novo direito internacional e que por reflexo tambe’m renova 0 nacional, que
consagra 0 neoliberalismo. A prevaléncia do grupo mais jovem significa passar por cima .
das tradicoes e mecanismos de defesa que‘cada comunidade nacional construiu no passado I
para se defender do império absoluto do mercado capitalista e essa institucionalizacao do
neoliberalismo so pode adquirir inteligibilidade sociologica se levarmos em conta a dinarnica
de atores que ela deflagra e consagra (DEZALAY; GARTH, 1996, 2002a, 2002b, 2010, 2011).

Referéncias
BOURDIEU, P. La lecture de Marx. ARSS, v. 1, 11. 5—6, p. 65—79, 1975.
DEZALAY, Y.; GARTH, B. G. Dealing in Virtue: International Commercial Arbitration and the
Construction ofa Transnational Legal Order. Chicago: University of Chicago Press, 1996. , ,
DBZALAY, Y.; GARTH, B. G. Global Prescriptions: the Production, Exportation, and Importation
ofa New Legal Orthodoxy. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002a.
DEZALAY, Y.; GARTH, B. G. The Internationalization ofPalace Wars: Lawyers, Economists, and
the Contest to Transform Latin American States. Chicago: University of Chicago Press, 2002b.
DEZALAY, Y.; GARTH, B. G. Asian Legal Revivals: Lawyers in the Shadow ofEmpire. Chicago:
The University of Chicago Press, 2010. '
DEZALAY, Y.; GARTH, B. G. Lawyers and the Construction of Transnational Justice. New York:
Routledge, 2011.
LEBARON, F. La croyance e’conomique: les économistes entre science etpolitique. Paris: Seuil, 2000.
LEBARON, F. Central Bankers in the Contemporary Global Field ofPower: a “Social Space” Approach.
The Sociological Review, v. 56, p. 121—144, 2008.
THOMPSON, E. Modes de domination et revolutions en Angleterre. ARSS, v. 2, n. 23, p. 133—151,
1976.
THOMPSON, E. P. Customs in Common. New York: New Press, 1993.

3??- NQBLES.” BTW (W: GRAND.” 5?“?”577553511?.99.???........


Ana Paula Hey
Elisa Kliiger

BOURDIEU, P. La noblesse d’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps. Paris: Minuit, 1989.

O livro resulta de um conjunto de pesquisas desenvolvidas com Monique de Saint Martin


sobre a estrutura do espaco de educacao das elites na Franca a partir da segunda metade dos
anos 1960, estendendo—se a década de 1980, sendo parte dos textos ja publicados em ARSS

NOBLESSE D'E’TAT (LA): GRANDES ECOLES ET ESPRIT DE CORPS 277


entre 19814987. No sistema de ensino superior francés ha uma distincao entre grandes escolas
(estabelecimentos seletivos e competitivos, com vagas limitadas e com classes preparatérias) e
as universidades (instituicoes de massa, com ingresso apés a conclusao do ensino médio a partn-
da classificacao no exame nacional, o baccalaure’at), que ensejam diferencas no processo de
recnitamento formal (0s exames) e social (a origem social). Dedicando-se a analise do campo das
grandes escolas e a producao e reproducao dos grupos dirigentes, precede ao mapeamento da
divisao entre as grandes e as pequenas escolas, bem como a cisao entre as instituicées voltadas
ao cultivo dos valores intelectuais e aquelas direcionadas a ocupacao de posicoes econémicas e
politicas. Tais homologias permitem a analise das oposicées e, a0 mesmo tempo, das interconexoes
que estruturam o espaco social, 0 sistema de educacao e o campo do poder (WACQUANT, 2007).
A obra é organizada a partir da anélise de fontes diversificadas, compreendendo relatérios de
professores sobre o desempenho de seus alunos, questionarios aplicados as propriedades sociais
e dotacao de capitais dos estudantes de cada instituicao, entrevistas, obituarios de ex—alunos das
grandes escolas, o relato da rotina de um grande empresério, etc., valendo—se da etnografia, da
analise documental, da construcao de dados estati’sticos e da anélise de correspondéncias para
elaborar empiricamente o universo do apice do sistema de educacao superior. Nessa edificacao
fornece grande parte dos elementos epistémicos que caracterizam sua teoria sociolégica: as nocoes
de campo, habitus, estrutura social e estrutura mental, modos de dominacao, reproducao social
e escolar, violencia simbélica, classes sociais e cultura, Estado e poder estao presentes em sentido
prético, permitindo realizar um verdadeiro desenho de investigacao global centrado em clivagens
sociais, Estado e educacao. Apesar do ambito e do recheio empirico referirem-se a Franca, o carater
analitico da obra é essencialmente universalizante, fornecendo “um poderoso projeto teérico que a
situa no epicentro de debates sobre poder, cultura e razao no flm do século” (WACQUANT, 2007, p 38).
Dividido em cinco partes, cada uma comporta recortes empiricos especificos, mas que se entre-
lacam do ponto de vista analitico. Na primeira, a partir das caracten'sticas sociais e escolares e das
redacoes dos aprovados no concurso geral — competicao nacional que premia os Inelhores alunos
do filtimo ano do ensino médio, por disciplina e restrito a 8% do contingente de cada escola —, em
1966—1968 e depois em 1986, bem como dos julgamentos dos professores, analisa-se o sistema de
classificacao social implicito nas formas escolares de classificacao, nas categorias de entendimento
professoral e o efeito de imposicao simbélica desses esquemas praticos de percepcao e de apreciacao.
O julgamento escolar, procura demonstrar Bourdieu a0 analisar os veredictos que os professores
emitem sobre os alunos, estabelece classificacées escolares que 1150 s50 apenas técnicas e, portanto,
indiferentes as propriedades sociais dos alunos. A0 contrario: elas correspondern estreitamente as
estruturas sociais que os estudantes incorporam a partir de sua posicao social de origem. Nesse
sentldo é possivel pensar na educacao como um sistema de reproducao dos grupos dominantes que
passaram a transmitir sua posicao social e capital simbolico, tendo a escola como intermediério.
A segunda comporta 0 estudo das classes preparatérias as grandes escolas, utilizando-
se questionarios e entrevistas corn alunos dessas classes, resultados de pesquisas anteriores
com estudantes de ciéncias e de letras, entrevistas e depoimentos de professores das classes
preparatérias e de faculdades de Paris e do interior. A discussao foca essas classes como caso
particulag do universe das escolas de elite e como instituicoes encarregadas de conferir uma
formacao e uma consagracao aqueles que sao chamados a participar do campo do poder, de
onde sao, em sua maioria, ja provenientes (NE, 102).

278 NOBLESSE D'ETAT (LA): GRANDES ECOLES ET ESPRIT DE CORPS


A socializacao experimentada pelos dominantes na instituicao escolar é essencial para a
criacao de uma cultura, de valores e de estilos de Vida comuns que, fundados na coeréncia do
habitus, configuram os atributos sociais necessarios para o exercicio do poder. Ademais, esse
espaco constitui vinculos sociais duréveis que perfazem o E‘espirito de corpo”, o sentimento de
solidariedade e fraternidade Que é condicao de constituicao do capital social partilhado pelos
grupos dominantes e base para a cooptacao sucessiva de pares para as posigées dirigentes. O
cultivo das disposicoes requeridas para ocupar os postos de poder compoe um rito de instituicao
do grau de elite, no qual os eleitos sao submetidos a rigorosos constrangimentos, exercicios
ascéticos e formais, introjetando a capacidade de dominacao em sua natureza e adquirindo
a conduta que comprova a sua distincao, expressa no estilo, nas maneiras 6 na certeza de si.
A terceira parte dedica-se ao campo das grandes escolas, visando construir uma rede
de relacoes objetivas entre os estabelecimentos de educacao superior: grandes ou pequenas
escolas, faculdades, classes preparatérias, etc. Para delinear o campo, procede a coleta 6 com-
paracao de informacoes sobre o conjunto das propriedades pertinentes, ou seja, aquelas que,
analisadas de modo relacional, delimitam variacoes significativas entre os estabelecimentos
escolares e seus estudantes. A demonstracao dessa estrutura de relacoes por meio da analise
de correspondéncias objetiva a distribuicao das propriedades ou poderes ali atuantes.
A0 interpretar as clivagens observadas no campo, Bourdieu afirma existir uma primeira
oposicao que separa as instituicoes prestigiosas e reconhecidas das instituicoes menos destacadas
(as grandes escolas e as pequenas escolas) e uma segunda oposicao entre, de um lado, instituicoes
corn major autonomia escolar e cienn’fica que configuram um polo intelectual e cientificamente
dominante do campo, mas social 6 economicamente dominado (escolas infelectuais); e, de outro,
instituicoes com menor autonomia intelectual, situadas no polo escolarmente dominado, mas
social e economicamente dominante do campo (escolas do poder temporal). A polarizacao entre
os detentores do poder temporal e os detentores do poder intelectual nao bloqueia a génese de uma
solidariedade organica que os aproxima, sobretudo quando os sustentéculos da estrutura social
encontram—se ameagados. Essa solidariedade permite que prevalecam os interesses coletivos dos
dominantes em detrimento dos interesses particulates das fracoes que compoem o campo do poder.
Na quarta parte a anélise se desloca da formacao das disposicoes e oposicoes nos esta-
belecimentos para o estudo da estrutura do préprio campo do poder para o qual as grandes
escolas direcionam seus egressos. O autor relaciona os padroes de insercao dos grandes patroes,
dirigentes dos setores pfiblico e privado, ‘as trajetérias por eles percorridas e a composicao
dos capitais por eles acumulados, procurando desvendar 0s mecanismos préticos de costura
da solidariedade entre os grupos dirigentes: os casamentos, as passagens do setor pfiblico
ao setor privado, os conselhos e dominios societérios cruzados. Paginas densas expoem o
campo do poder como uma “rede cruzada de ligacoes estruturais e funcionais que entrelacam
os espacos das escolas de elite com o das classes dirigentes” (WACQUANT, 2007, p. 40), sendo
que sua estrutura é definida pelo estado da relacao de forca entre as formas de poder, pela
dependéncia das diferentes espécies de capital mobilizadas nas lutas pela dominacao e pelo
peso relativo que esses capitais assumem na referida estrutura.
A quinta parte preocupa-se em examinar como o titulo escolar é ligado ao Estado ou como
manifestaqao da magia do Estado, a outorga de um diploma como ato de certificacao ou de
validacao por meio da qual uma autoridade oficial garante e consagra certo estado de coisas e

NOBLESSE D'ETAT (LA): GRANDES ECOLES ET ESPRIT DE CORPS 279


como atestacao pfiblica de uma competéncia. As demonstracées desenvolvidas durante o livro
culminam na anélise do poder como constituinte de relacées complexas entre campos, Hesse caso,
o universitério e o burocrético, ou entre esses campos e o econémico e o politico. O poder passa
a ser coextensivo da estrutura do campo do poder, deixando de se encarnar nas pessoas on em
instituicées especificas, manifestando—se e se realizando por meio de um conjunto de campos e
de espécies de capital unidos por uma solidariedade orgém'ca, exercendo—se de maneira invisivel
e andnima por mecanismos que asseguram a reproducao do capital economico e do cultural,
de acoes estruturadas de redes de agentes e de instituicées concorrentes e complementares, e
engajados nos circuitos de trocas legitimadoras cada vez mais longas e complexas (NE, 554).
A perspectiva adotada no livro é a de uma histéria estrutural, que nao busca apenas
descrever as préticas existentes em um determinado momento e em um ponto do espaco,
mas detectar qual a es'trutura social existente e quais $50 as lutas travadas para assegurar
a permanéncia ou provocar a transformacao dessa estrutura. As escolhas e estratégias dos
agentes sao constrangidas pela estrutura que, incorporada pelos individuos, se transformam
em esquemas geradores de préticas, percepcoes e preferéncias. Os capitulos costuram a
hipotese de que ‘as estruturas mentais - principios incorporados, e portanto inconscientes,
de visao e divisio do mundo social que geram e unificam as tomadas de posicéo dos agentes
nos diversos dominios da prética — corresponderiam estruturas sociais. As preferéncias
estéticas, politicas, afetivas, escolares, profissionais e as acoes que delas resultam tenderiam
a ser homologas ‘a posicao ocupada pelo individuo 11a estrutura social.
0 estudo do campo das instituicées de ensino superior objetiva explicar como as estru—-
turas sociais e mentais sao produzidas e reproduzidas em uma sociedade na qual a escola é
reconhecida como o espaco legitimo da transmisséo de conhecimentos e do credenciamento
dos individuos mais destacados para ocupar as posicoes sociais de maior prestigio. De acordo
com Bourdieu, sem compreender a funcao desempenhada por estas instituicées nao é possivel
entender como o poder se estrutura, uma vez que operam uma alquirnia social ao reproduzir
uma hierarquia social dissimulada na crenca da inteligéncia, cujo fundamento legitima a do~
minacao dos mais bem dotados em capital cultural atribuido pelo sistema escolar e daqueles
que tém maiores chances de acumular eSSe tipo de capital.
A iluséo de democratizacao da possibilidade de ascensao social, gerada pela ampliacéo
do acesso ao sistema educacional, levaria os dominados a reconhecerem e investirem-se no
jogo educacional. Simultaneamente, desconhecem o caréter arbitrério da selecao que se opera
na escola que, em sua maioria, consagra — considerando talentosos, vocacionados, geniais,
excelentes — aqueles que sao capazes de converter 0 capital cultural herdado no meio familiar
em capital escolar. Se a reproducao pela via escolar é mais permissivel a entrada de pessoas
que nao pertencem ao meio dominante do que a transmissao direta da posicao social, seus
mecanismos de transmissao séo duplamente ocultos, uma dissimulacao da agregacao esta—
tistica e uma dissimulacao da transmissao direta do capital cultural, o que reforca a crenca
na legitimidade do mecanismo de selecao operado pela escola.
A tarefa a qual se entrega o sociologo é demonstrar os processos de producao de uma nobreza
escolargque tern o diploma como patente de cultura e cujo monopélio garante sua mobilizacéo nos
espacos dominantes. Na medida em que atribui nomes e titulos distintivos aos mais bem adapta-
dos, a selecao esColar institui fronteiras que apartam, de maneira duradoura, os comuns de mm

280 NOBLESSE D’ETAT (LA): GRANDES ECOLES ET ESPRIT DE CORPS


elite apresentada e reconhecida celetivamente come legitima; A posse dos titulos, juridicamente
garantides pelo Estade e representatives do exercicio de suavieléncia sirnbelicalegitima, autentica
a competencia técnica dos seus detenteres para monepelizarem determinadas pesieoes de poder.
Porérn, em tal competéncia reside urn cenjunte de dispesieees sociais pelivalentes, materiais e
simbelicas, do qual devem disper aqueles que legram ebter es signes rares de distineae, que séo
es diplomas de elite. Assim, a ebra responde ae exame dos modes de deminaeée nas seciedades
cemplexas ae demonstrar come as instituigees escelares encarregam-se da tarefa de consagraeao
das divisees seciais, articulande e sistema de relagees entre as estruturas cegnitivas e as estruturas
sociais, e habitus e es campes, e a dinamica que lhe é irnanente (R, 115).

Referéncia
WACQUANT, L. Lende 0 “capital” de Bourdieu. Educaga'o €52 Linguagem, Sire Bernardo do Campo, SP,
11, 16, p. 37—62, ju1./dez. 2007.

250:_N0|_3REZA ................
Ver: Classe social

22.».II0III02 ’ ______......................
Cristina Carter Cardoso de Medeiros

A negae de names, palavra que etimelegicamente vem do verbe partilhar (em grege,
néme), aparece na aberdagem socielégica de Pierre Bourdieu quande e autor explicita
e cenceite de campo. Apentade come principio de visae e de divisée constitutive de um
campo, tal principle atuaria cerno uma “lei fundamental” (RAp, 78; MPp, 117), uma erdern
instituida nas estruturas objetivas de um universe socialmente regulade e nas estruturas
mentais daqueles que nele se inserern e-que tendem, per isse, a aceitar come evidentes as
injuneoes inscritas na légica imanente de seu funcienamente. Para 0 autor, 0 names nae
tern antitese per suas caracteristicas de principie legitimado e aplicavel a tedes es aspectos
fundamentais da existéncia: “defininde o pensavel e e impensével, o prescrite e e prescrite, ele
acaba permanecende impensade” (MPp, 117), constituinde-se em matriz de todas as questees
pertinentes e incapaz de produzir as questees aptas a questioné-lo. Segundo Beurdieu (SPp),
a necessidade arbitréria (name) pela qual o grupe se constitui e institui aquile que o une e o
separa, uma vez que a identidade social se define e se afirma na diferenea, é imposta per urna
adesao técita. Para ele, e arbitrérie se situa no principio de tedes es campes, mas es names,
as leis fundamentais, diferem de um campe para eutre, ou seja, “... cada campo cenfina es
agentes a seus proprios moveis de interesse es quais, a partir de outro pente de Vista, on seja,
d0 pente de vista de outre jege, ternam~se invisiveis on pele menes insignificantes ou até
fluseries” (MPp, 117—118). A identificaeao dos ganhos prepostes per cada um dos diferentes
campes e seus principies de Visao e divisae seriam, para o seciélege, uma forma de identificar
os limites do campe que se situariam ae pente ende cessariam seus efeites (R).

NOM05 281
5:. ONTOLOGIA POLiTlCA DE MARTIN HEIDEGGER (A)
(L’ONTOLOG/E POL/TIQUE DE MARTIN HEIDEGGER)

Iosé Luis Moreno Pestafia

BOURDIEU, P. A ontologia politica de Martin Heidegger: Campinas, SP: Papirus, 1989.

Heidegger foi uma das inspiraeoes fenomenologicas da sociologia de Bourdieu. Além


disso, foi um de seus objetos de anélise sociolégica. A0 filosofo dedicou uma obra de enorme
repercusséo (L’Ontolagie politique de Martin Heidegger, 1988). Nela, Bourdieu expos as
linhas mestras de sua sociologia da filosofia ao mesmo tempo em que as aplicava a um dos
maiores pensadores do século XX. Pode-se resumir em quatro movimentos a reconstrugéo
sociologica de Heidegger realizada por Bourdieu.
Em primeiro lugar, situa a produeio filosofica de Heidegger em seu entorno especifi-
camente filosofico. Desse modo, Bourdieu exige da sociologia da filosofia uma anélise 11510
reducionista dos espaeos culturais. Segundo Bourdieu, Heidegger produziu uma revolugéo
conservadora na filosofia a0 colocar no centro do sistema kantiano a temporalidade eXiS-
tencial, convertendo o filosofo de referéncia do neokantismo positivista de seu tempo — para
quem a filosofia devia tirar as conclusoes de uma ciéncia que funcionava sem discusséo -
em referente de uma filosofia que recuperava sua posieio de preeminéncia a respeito das
disciplinas positivas.
Em segundo lugar, mostra como o talento de Heidegger tem, entre suas condieoes de
possibilidade, uma trajetoria socialmente rara. Heidegger foi um intelectual de primeira
geraeéo, portanto resultado de um trajeto ascendente por mundos sociais variados, o que
ajuda a compreender a capacidade polifonica de sua mensagem, cheia de referéncias erudi-
tas e de alusoes politicas ocultas, de evocaeoes poe’ticas e de termos de ressonéncia rural. A
linguagem académica funcionava em Heidegger como uma linguagem com a qual mantinha
uma reiaqéo distante, como se ela se tratasse de uma segunda lingua diferente da original:
essa disténcia social em relaeéo ao mundo académico ajudou seu autor a mic ficar aprisionado
nas oposigoes que organizavam o campo intelectual de sua época.

282 ONTOLOGIA POLITICA DE MARTIN HEIDEGGER (A)


(L'ONTOLOGIE POLITIQUE DE MARTIN HEIDEGGER)
Em terceiro lugar, explica como a experiéncia social se filtra no sistema de categorias que
organizam a filosofia de Heidegger. O discurso de Heidegger esté repleto de oposieoes primitivas,
mas destiladas até o virtuosismo em um discurso filosofico. Portanto, as regras da arte filoséfica
se manifestam de modo magistral em Heidegger sem que por isso ele deixe de ser um ideologo. E
o fato é que os duplos sentidos da linguagern heideggeriana continuam funcionando e a ideologia
reacionéria se aloja atrés das locuqoes e polifonias que estruturarn um erudito comentério de
Aristételes. Assim, Bourdieu consegue mostrar que é o que torna politica urna grande filosofia,
ao mesmo tempo em que expoe tudo o que a separa do ensaisrno panfletério. Entre a simples ex—
posiqao ensaistica de fantasmas sociais e a formalizagao filoséfica de um pensamento existe urna
grande distancia que a sociologia nao pode deSconhecer O trabalho de formalizaa filoséfica das
pulsées expressivas aprimora as produeoes culturais; a sociologia se equivoca associando——se a0
negocio das redugoes brutais do filosofo‘a simples ideologia. Assim'e: a censura reprime as pulsées
do autor, mas 11510 as elimina. Continuam se instalando nos jogos de palavras e nas classificaeoes
que subjazern os mesmos. Por exemplo, a oposieao heideggeriana entre a existéncia auténtica e a
existéncia inauténtica se nutre do velho topico elitista da distancia entre elites e massas, mas o faz
de um modo que proibe a leitura direta sem deixar de aludir sub—repticimnente aos fantasmas —
brutalmente sociologicos — que se encontram na sua base. Somente uma dupla leitura, capaz de dar
, conta do grau de censura do texto tanto quanto da permanéncia dos significados negados, ainda
que nao eliminados, pode fazer justiga ‘as conquistas autonomas do pensamento sem se inclinar
a mera celebragao dos idioletos filosoficos.
Ern quarto lugar, delimita como Heidegger se situa no espaeo de possibilidades da tradigao
de discursos filosoficos e de que modo define uma posieao que teré éxito na filosofia depois dele.
Heidegger'e o filosofo ilustre de uma posigao discursiva que outorga ao filésofo o estatuto do ad—
ministrador de uma tradieéo de textos filosoficos, suscetiveis de eterno comentério e, ao mesmo
tempo, emissor inspirado do auténtico sentido da mesma. Desse modo, Heidegger “confere sua
justificaeao mais elevada a uma das mais prestigiosas formas da prética tipicamente professoral
do comentério: tal teoria autoriza e encoraja o lector a se pensar como um auténtico auctor” (MP,
58). Assim, graeas a Heidegger, muitos filosofos sentirao mais urgéncia em dissertar sobre uma
tradueao do grego ou do alemao do que ern saber algo de economia, sociologia ou fisica. E, para-
doxalrnente, isso nao lhes implicaré nenhum obstéculo para se permitirem dizer os disparates mais
peremptorios acerca de como as ciéncias determinam nosso mundo subordinado a “era da te’cnica”.

153. OPINIAO PUBLICAISONDAGEM


Patrick Champagne

A posieao de Bourdieu sobre a questao das sondagens chamadas “de opiniéo publica”
revela~se plenamente em uma breve conferéncia intitulada, de modo provocativo, “A opiniao
,
pfiblica nao existe’ ’pronunciada em janeiro de 1971 na cidade de Arras, na Associagao Cultural
Noro1t Essa conferéncia sera publicada na revista Les Temps Modernes (janeiro de 1973)
' e republicada no livro Questoes de sociologia (1980). Tal conferéncia, que obteve grande
. repercussao, ilustra perfeitamente o papel que, segundo Bourdieu, deveria ser desempenhado
pela sociologia: disciplina cientifica cujo objeto é o mundo social, a sociologia néo deveria

OPINIAO PUBLICAISONDAGEM 283


permanecer distante dos debates e problemas que agitam a sociedade. Essa conferéncia
inscreve—se, portanto, no que poderia ser designado como uma “intervencao sociologica”.
Com efeito, a Franca experimentou, desde 1965 — data da primeira eleicao presidencial por
sufragio universal, uma verdadeira mania politico—jornalistica pela técnica das sondagens na
politica. O atrativo por elas exercido deve-5e a0 fato de que os pesquisadores haviam previsto,
contra a opiniao dos comentaristas tarimbados que confiavam na prépria intuicao, que 0
general De Gaulle seria obrigado a disputar o segundo turno nessa eleicéo presidencial. Tal
sucesso de previsao eleitoral acarretou, a curto prazo, uma multiplicacao de sondagens, néo
apenas eleitorais, mas tambe’m de opiniao propriamente ditas (ou seja, sondagens que comecam
por “Pessoalmente, o que vocé acha de... ”), a respeito de todos os assuntos possiveis ~ temas
frivolos, bem como debates de sociedade — cujos resultados eram publicados e comentados
nos editoriais dos jornais e, sobretudo, por especialistas da ciéncia politica. Gragas a essa
tecnologia, os pesquisadores pretendem conhecer, de modo pretensamente cientifico — logo,
indiscuti’vel -, “o estado da opiniao pt’iblica”, tendendo assim a se tornarem a finica autoridade
legitima para revelar “a opiniao pfiblica”, ou seja, “o que pensam os franceses” a respeito de
todos os assuntos, incluindo aqueles que alimentam a luta politica. Bourdieu vai criticar tais
pesquisas de um ponto de vista puramente cientifico, a0 lembrar as precaucées elementares
que devem ser postas em prética, considerando o artificialismo que caracteriza uma situa-
cao de pesquisa como essa. Sua reflexao apoia-se num trabalho especifico de investigacao
e na coleta sistemética de materiais empiricos. A investigacao consiste na aplicacao de um
questionério por meio da imprensa incidindo sobre a apreciacao do sistema escolar apés os
acontecimentos de Maio de 1968, enquanto os materials empiricos dizem respeito a uma
coleta exaustiva de perguntas formuladas pelos institutes de sondagem, entre 1965 e 1970.
Em sua conferéncia Bourdieu enfatiza os trés pressupostos inerentes a essas pesquisas, pres-
supostos que se devem a0 simples fato de formularem uma mesma questao a ma amostra popw
lacional que é, supostamente, "cientifica” por ser “representativa” de toda a populacao (em geral,
a populacao com idade para votar). Tais sondagens cuidam, segundo uma logica mais politica do
que cientifica, de entrevistar “democraticamente” todo mundo, até mesmo aqueles que se recu-
saIn a responder on n50 se sentem envolvidos pela questao. Esse dispositivo de pesquisa postula,
portanto, que todo mundo tern uma opiniao, pode e, inclusive, deve fornecé~la. Eis ai o primeiro
pressuposto dessas sondagens: todo mundo é capaz de produzir uma opiniao pessoal a respeito
de tudo. Ora, a analise, feita em muitas sondagens, da “nao resposta” as perguntas formuladas em
amostras representativas da populacao nacional - o que é flequentemente esquecido -, embora
constituidas de entrevistados que aceitaram responder a0 questionario (alias, as recusas a entrevista,
que sao numericamente significativas, constituern nao respostas invisiveis, mas nao levadas em
conta) mostra que, apesar dos esforcos dos pesquisadores para minimizar as nao respostas (seja
por meio da técnica das perguntas fechadas que coletam urn m’imero menor de opinioes de que de
respostas pré-fabricadas a questées de opiniao, seja através de instrucoes dadas aos aplicadores),
existe uma desigual distribuicéo da “nao resposta” em funcao do tipo de pergunta formulada,
do nivel de instrucao do entrevistado, de seu sexo, de sua posicao social, etc. A sondagem por
questionario, aplicada por intermédio da imprensa, que convidava os leitores que o desejassem a
retornar os questionarios preenchidos, confirma o fato de que somente urna fracao da populacao é
capaz de produzir uma opiniao pessoal. Bourdieu lembra que ha também outro tipo de opiniao 11510

284 OPINIAO PUBLICA/SONDAGEM


1‘,»-
~ ~
levado em conta nas sondagens, que ele denomina como as opinioes delegadas, ou seja, opinioes
1150 sobre as questoes colocadas, mas sobre os grupds, partidos, sindicatos e instituicoes aos quais
os individuosconfiam a producao de opinioes em seu lugar.
O segundo pressuposto das sondagens de opiniao — pelo menos da forma como elas sao
realizadas pelos institutos de sondagern — reside no fato de que, supostamente, os entrevistados
se colocam a mesma pergunta que os institutos lhes formulam (11a realidade, a pergunta que
deve ser formulada por exigéncia de quem encomendou a sondagem) e, portanto, de que todos
os entrevistados seriam capazes de produzir tais perguntas, de compreender as motivacoes e os
significados que lhes sao subjacentes, muitas vezes de natureza politica. Ora, é impossivel que
a mesma pergunta formulada a uma populacao muito diversificada do ponto de vista social e
cultural seja compreendida de maneira idéntica e, portanto, que todos os entrevistados venham
a responder realmente a mesma pergunta. Ao fazer de conta que as perguntas colocadas pelos
pesquisadores sao formuladas efetivamente a todos os entrevistados, procede-se de fato a uma
verdadeira imposicao de problematica que torna possivel uma distorcao, pelos comentaristas,
do sentido das respostas fornecidas pelos individuos entrevistados no memento da sondagem.
Em outros termos, os entrevistados emitern suas respostas sem suspeitar do sentido que lhes
sera atribuido por comentaristas, editorialistas ou analistas politicos.
Finalmente, o terceiro pressuposto apontado por Bourdieu em tais sondagens reside nos efeitos
induzidos pela adicao de respostas formalmente idénticas, mas cujo significado é, de fato, muito
variavel. Na verdade, os Entrevistados compreendem, de acordo com a capacidade de cada um,
e reinterpretam as questoes em funcao de suas propriedades sociais e culturais, assirn corno de
seus sistemas de interesses Dai que as respostas dadas aos pesquisadores, apesar de terern signi—
ficacoes Inuito heterogéneas, sao de algurna forma neutralizadas pela consideracao exclusiva das
respostas mais ou menos extorquidas aos individuos. A apresentagao dos resultados sob a forma
de percentagens que adicionarn respostas formalmente idénticas oculta o fato de que nem todas as
opinioes possuern socialmente o mesmo valor e que, portanto, nao poderiam ser adicionadas. Com
base nas sondagens efetuadas por intermédio da imprensa, Bourdieu mostra que o ensinamento
mais interessante a reter seria, ao invés da distribuicao das respostas, o fato de que somente uma
fracao da populacao se mobilizou para dar sua opiniao sobreo assunto em questao. As respostas
extorquidas pela situacao de sondagern junto a uma populacao formalmente representativa, ele
opoe a amostra de entrevistados representativa das forcas sociais mobilizadas, ou potencialmente
mobilizaveis, a respeito de determinado tema— e, ‘as opinioes aparentes produzidas pelo dispositivo
de pesquisa (um simples artefato), opoe as opinioes de tipo “ideia~forca”, opinioes mobilizaveis
e realmente atuantes que pretendem influenciar os debates pfiblicos. Esse liltimo pressuposto,
que constitui uma mera constatacao e 1150 um julgamento de valor (nern todas as opinioes tém 0
mesmo peso social), provocou ataques violentos por parte dos analistas politicos, a ponto de de»
nunciarern Bourdieu corno “nao democrata”, uma vez que suas criticas seriam aplicéveis também
a0 sufrégio universal... Bourdjeu respondeu antecipadamente aos ataques daqueles que ele chama
de doxésofos, ou seja, sébios aparentes das aparéncias (1972), opondo sua leitura sociolégica das
sondagens de opiniao aquela oriunda da ciéncia politica.

Referéncia
BOURDIEU, P. Les doxosophes. Minuit, n. 1, 1972.

OPINIAo POBLICAISONDAGEM 285


154. PASSERON, JEAN-CLAUDE (7 930)
Iosé Luis Moreno Pestafia

Os primérdios da trajetoria intelectual de Pierre Bourdieu certamente n50 poderéo ser


compreendidos sem fazer referéncia a Jean-Claude Passeron, coautor de alguns de seus
trabalhos
mais conhecido desse periodo (Os herdeiros e A reprodugdo). Neste verbete, procedo a anélise
do texto epistemolégico, A profissdo de sociélogo, assinado por Bourdieu, Chamboredon e
Passeron, tentando mostrar, por um lado, como a 'epistemologia de Passeron (representada

em sua obra maxima, O raciocz'nz'o sociologico, 1991) jé estava envolvida nas alternativas
que seu trabalho em parceira com Bourdieu abria e, por outro, como eles reproduzem, com
as respectivas diferengas, as alternativas teoricas de que séo herdeiros.
A profissdo de sociélogo constituiu o manifesto epistemolégico do Centro de Sociologia
Europeia. A primeira edigao do Iivro contém uma apresentagéo de 113 péginas seguida de
vasta selegao de textos para ilustré—lo (BARANGER, 2004): entre 1966 e 1968, ac
sabor das
necessidades pedagégicas, Bourdieu e Passeron redigiram o texto teérico de introdugé
o,
enquanto Jean-Claude Chamboredon ocup'ava-se de encontrar os textos de ilustragéo. A es-
colha dos textos é eclética e confirma a vontade de se distanciar tanto do modelo de “escola”
cientifico—literéria quanto de seu prolongamento e de sua transformagao em uma série de seitas
politico—teéricas que, mas lutas que os opunham, tentam ampliar o mercado de suas profecias.
Mas as exigéncias cientificas eram insuficientes para impedir o descaminho da pesquisa
sociolégica. O fetichismo metodolégico dissimulava, frequentemente, uma posigao filoséfica
absurda. Passeron evoca suas conversagoes com o matemético Jean-Paul Benzécri, a propo-
sito da anélise de correspondéncias e de sua convicqéo de que a anélise fatorial conseguia
situar as forgas reais que atuam no mundo. De acordo com Passeron, Benzécri
era tomista e,
a semelhanga de um grande nfimero de cientistas, aliava a competéncia técnica com uma

filoséfica que nao estava a altura de seu tempo, nem de suas qualidades de pesquisador. Na
sociologia a competéncia técnica sem uma consciéncia filoséfica aprofundada pode engendrar
perfeitarnente uma competéncia metodolégica, mas n50 cientl’fica.
A luta contra o empirismo e o fetichismo das técnicas é uma chave do livro A profissdo
de sociologo. Para romper com o senso comum (a ciéncia descobre 0' oculto), o vocabulér
io

286 PASSERON, JEAN~CLAUDE (7930/


cientifico deve explicar completamente as suposigoes em que ele se apoia. Além disso, a
realidade deve ser compreendida come 0 produto de relagoes histéricas e nao corno essén-
cias antropologicas ou psicologicas.
O empirismo nao pode afetar urna suposta fidelidade aos dados: estes sao sempre anall—
sados no ambito de uma teoria. Os enunciados resultantes das observagoes contém uma base
teorica. Os fatos nao falam, mesmo que as ciéncias humanas se apoiern em informadores que
tomam a palavra. Os ensinamentos de Koyré, de Duhem e de Popper mostram que o empirismo
tem uma visao erronea das ciéncias naturaisz em vez de terem comegado pela coleta de fatos,
baseiam-se sempre em conjeturas que dialogarn com a realidade empirica. Qualquer trabalho
técnico pressupoe uma reflexao epistemologica prévia e uma opgao intelectual a proposito das
caracteristicas do objeto estudado. O apego aos modelos e aos tipos ideals procede dessavisao
construtivista do trabalho cientifico. Ao se apoiar na epistemologia posfempirista da ciéncia, A
profissfiode sociélogo concluia que a sociologia é uma ciéncia corno as outras, mas que para
sé-lo enfrenta mais problemas do que as outras ciéncias. As pressoes do discurso dominante,
os atrativos do jornalismo, o convite ao profetismo, a oferta de ministérios, a forea dos pre-
conceitos que se aninham em qualquer experiéncia afetiva do mundo convidam o sociélogo
a extraviar—se de seu caminho. A reflexao epistemologica n50 tern de se preocupar com uma
suposta natureza especifica da sociologia. Quando se abandonam os mitos empiristas em
relagao ‘a ciéncia real, as diferengas entre ciéncias sociais e naturals perdem sua pertinéncia.
Fundamentalmente, a vigilancia epistemolégica é um controle das pressoes sociais que se
exercem para desviar da verdadeira sociologia. O cruzarnento de corrtroles efetuados pela
comunidade cientifica e a autoanélise permanente do sociélogo tern cohdigoes de garanti-la:
Bourdieu manteve-se fiel a esse programa com o assentimento de Passeron. Mas o acordo
epistemologico corn Bourdieu era precério, a colaboragao cientifica iré interrornper-se em 1972,
e vai se verificar a bifurcaqao dos percursos institucionais de cada urn deles. Entre 1968 e 1977,
Passeron trabalhou corn Foucault, no ambito da universidade experimental de Vincennes.
Apos um periodo no Centro Nacional de Pesquisa Cientifica (CNRS), entre 1977 e 1981, ml
integrar, em 1982, a Escola de Altos Estudos em Ciéncias Sociais, como diretor de estudos,
tendo se mudado para Marselha a firn de promover 211 as atividades desta escola. Durante esse
periodo, desenvolveu uma reflexao sobre as culturas populares (GRIGNON; PASSERON, 1989)
que enfatizava a amplitude de seu desacordo intelectual e politico em relagao a Bourdieu.
Parece que Passeron havia sido atraido pela ligao weberiana, enquanto Bourdieu tinha
seguido a tendéncia durkheimiana para construir um paradigma na sociologia capaz de
se impor diante de modelos teéricos opostos. Além disso, o tipo ideal, construgao sempre
precéria, tende em Bourdieu para a categoria genérica, enquanto em Passeron, ao contra~
rio, observa—se o caracter provisorio de qualquer conhecimento de realidades captadas sob
certos aspectos com a exclusao de outros. Em sua obra epistemolégica de referéncia (1901),
traduzida na Franqa em 1965 (Essais sur la théorie de la Science), Weber defendia algumas
teses indigestas para qualquer partidario de um paradigma sociologico unificado. As ciéncias
sociais, explicava Weber, trabalham a partir dos individuos histéricos ou dos conglomerados
de acontecimentos, cuja origem resulta sempre de um encadeamento particular: nenhurna
teoria pode deduzi~los do conjunto anterior de fatos, jé que as vias da causalidade histérica sao
imprevisiveis. As variéveis econémicas, lembrava Weber aos marxistas, atuam sempre em

PASSERON, JEAN-CLAUDE (7930/ 287


conjuneoes historicas e adquirem ai um sentido que é desconhecido de anteméo
. Nenhum
instrumento anah’tico tem condigoes de fornecer uma viséo exaustiva dessas
realidades
historicas. Qualquer categoria enfatiza uma faceta da realidade e oculta as
outras: ora, as
facetas de qualquer fenomeno sao inumeréveis. Desse modo, é apenas mediante o
autoengano
que somos capazes de imaginar que nossas categorias 3510 um reflexo fidedign
o da realidade,
Existe e continuara existindo, na opiniao de Passeron, uma tarefa epistemolégica
que 1150
se deixa dissolver nas precaugoes da sociologia do conhecimento: a de explicar a razéo
pela qual
a pluralidade teérica reina nas ciéncias sociais, motive pelo qual as avaliagoes cientifica
s nessa
area so podem ser unificadas mediante a violéncia administrativa. Em surna, a razéo
pela qual
é tao dificfl comparar teorias diferentes. O problema das ciéncias sociais n50 tem
a ver com o
fato de que os acontecimentos analisados por elas nao sejam completamente repetive
is: a mesma
situagao se verifica com as ciéncias naturais. Mas, para comparar tais contexto
s, as ciéncias
sociais nao dispoem de um paradigma transcontextual e trans—historico capaz, seja
de djzer o
que deve ser pesquisado e de que maneira, seja de enunciar os pontos de Vista a partir
dos quais
eles devem ser comparados (PASSERON, 1994). Dessa consciéncia, oriunda de uma
das redes
mais intensas de criatividade sociologica do século XX, surgiu um grande livro
de filosofia das
ciéncias sociais, O raciocz’nio sociolégico, uma obra escrita com Bourdieu
e contra Bourdieu .

Referéncias
BARANGER, D De El oficio de sociélogo a El razonamienta sociolégico. Denis
Baranger entrevista
Jean—Claude Passeron. Revista Mexicana de Sociologia, n. 2, aha/jun. 2004.
GRIGNON, C.; PASSERON, LC. Le savant et lepopulaire: mise’rabilisme etpopulis
me en sociologie
et en litte’rature. Paris: Gallimard-Seuil, 1989.
PASSERON, I.—C. Dela pluralité théorique e11 sociologie: théorie de la connaissa
nce sociologique et
theories sociologiques. Revue Europe’enne des Sciences Sociales, v. 32, n. 99,
p. 71-116, 1994.
PASSERON, I.~C. Le raisonnementsociologique. Paris: Nathan, 1991 [2.
ed. Paris: Albin Michel, 2006].
WEBER, M. Essais sur la théorie de la Science. Paris: Librajrie Plon, 1965.

Ver: Elites; Campo do poder

“:56. PEDAGOGIA RACIONAL

Ver: Sistema de ensino

1 7. PENSAMENTO RELACIONAL
1J1

Gilsan Ricardo de Medeiros Pereim

O modo de pensar relacional, ou pensamento relacional, define uma atitude mental,


em
ciéncia, inarcada pela importéncia que concede es relaeoes. A mais antiga referéncia a este
modo de pensar é a de Ernst Cassirer, que em Substfincia efungdo, obra de 1910, defende
a

288 PATRONATO
tese segundo a qual o desenvolvimento da ciéncia pode ser descrito a partir da transigao dos
conceitos substancialistas, tipicos do Mito e, também, da filosofia aristotélica, para os conceitos
operativos ou relacionais caracteristicos da ciéncia moderna. Os conceitos substancialistas, diz
Cassirer (1994, p. 339), 350 complicados e respondem pelo “estado convoluto” dos primordios
da experiéncia humana. A ciéncia moderna so foi capaz de constituir~se como tal a partir do
Renascimento, quando introduziu um novo esquema de verdade: a simplicidade decorrente
da abstraeao. A ciéncia, entao, criou “uma nova forma de interpr'etagao intelectua ” do mundo
e 1530 11510 pode ser obtido a partir do “alargamento e enriquecimento de nossa experiéncia
ordinaria” (CASSIRER, 1994, p. 340). Essa nova forma de interpretar o mundo, conquistada a
partir de uma ruptura com a percepeao comum, é o pensamento relacional. Como observa
Cassirer, a ciéncia avangou quando renunciou a busca por esséncias e conquistou urn novo
principio de inteligibilidade, a saber, as relagoes funcionais entre as coisas.
Na sociologia, o pensamento relacional, por vezes chamado funcional ou estrutural,
considera que os fatos sociais 11510 $510 explicaveis em si mesmos e por si mesmos, como se
fossem substancias trans-historicas, mas sao trazidos a luz por meio da apreensao das rela»
goes objetivas, o mais das vezes invisiveis, inscritas nas préticas e nas obras. Tais relaeoes,
inacessiveis ao senso comum, precisam ser construidas, conquistadas e validadas pela ciéncia
para se tornarem compreensiveis. E na estrutura das relagées objetivas, portanto, que reside
o principio de inteligibilidade causal dos fatos sociais.
Além disso, o modo de pensar relacional trabalha por homologia, ou seja, pela compa-
ragao e identificagao das semelhangas entre estruturas de espagos sociais diferentes e ate’,
aparentemente, muito distan’res Esta relagao de relaeoes deve ser Conquistada contra as
aparéncias e construida por um verdadeiro trabalho de abstraeao e por meio da comparagao
conscientemente operada” (MSp, 69). Consequentemente, é a comparaeao, preconizada por
Durkheim (1983) como método da prova na sociologia, que da caueao aos procedimentos
técnicos e aos programas de investigagao baseados no pensamento relacional.
Bourdieu adota, desde muito cedo, essa linhagern teorica, identificada também com os traba—
lhos de Erwin Panofsky, de Kurt Lewin, dos formalistas russos, de Norbert Elias e, igualmente, de
Ferdinand Saussure e dos estruturalistas (OPS, 65). Esta atitude mental, conforme revela o proprio
Bourdieu, esteve 11a origem da criaeao e emprego sistemético do conceito de campo de produgao
material e simbolica como espago estruturado de relagoes objetivas. Bourdieu comega com a
analise do processo de autonomizaeao do campo intelectual, passa, em seguida, por homologia,
a0 estudo da génese e estrutura do campo religioso (ETS), no qual, em 0130519510 51 abordagem
interacionalista de Max Weber, constréi o campo religioso como estrutura‘de relagoes objetivas
capaz de explicar as interagoes que Weber explicava a partir de tipos ideais, e termina por estender
essa atitude mental e esse conceito a diversos universos da produgao sirnbélica, a saber, alta costura
(PC), literatura (RAP), filosofia (OPP), politica (PCP), ciéncia (PBS), entre outros, culminando com
a construgao do campo material e simbélico do mercado imobiliario (SSE). Se a0 autor foi possivel
passar do campo intelectual ao mercado imobiliério, foi porque a perspectiva relacional permite,
corno observa Bourdieu (OPS, 67), “as transferéncias metodicas de modelos baseados na hipotese
de que existern homologias estruturais e funcionais entre todos os campos”.
Ao construir, a partir do modo de pensar relacional, os diferentes espaeos de produgao
anteriormente mencionados, Bourdieu também construiu outro conceito, solidario ao de

PENSAMENTO RELACIONAL 289


campo e a ele indissociavel, qual seja, o conceito de habitus. Aproximandoese da grarnatic
a
gerativa de Noam Chomsky, Bourdieu foi conduzido a evidenciar as capacidades criativas dos
agentes sociais, porém interpretando-as nao como manifestacoes de uma natureza humana
imutével, mas corno disposicoes incorporadas de agentes préticos. Ao tomar para si 0 primado
da razao prética, produziu tanto uma teoria constructo-relacional da pratica (SP), aperfeico
ada
a0 longo de toda a Sua Vida, assim como uma epistemologia correspondente (MPp). Urna
das
grandes aquisicoes resultante da mobilizacao por Bourdieu dessa teoria é a explicitacéo
dos
mecanismos de reproducao das estruturas sociais e mentais em sociedades diferencia
das,
tal como realizada no estudo sobre o campo das “Grandes Ecoles” (NE).
0 modo de pensar relacional conduziu Bourdieu, além disso, a descrever uma das mais
notéveis propriedades dos universos sociais, isto é, a relacao de homologia entre a estrutura
das posicoes, que constitui o espaco social, e a estrutura das atividades e bens,
o espaco sim-
bolico. Nesse estudo (LDp), dotado de um enorme protocolo empirico, além das mais variadas
técnicas de organizacao de dados, uma preferéncia social qualquer, a exemplo da prética
de
um esporte, da escolha de uma bebida ou do gosto pela leitura, que parece intrinseca a deter-
minadas classes sociais, é apreendida como uma opgao num universo de opcées disponive
is
e intercambiéveis que configuram uma dada situacao da oferta de bens e praticas possiveis
numa sociedade determinada e numa época determinada. Essa opcao é feita a partir de
uma
posicao no espaco social. Tern-se, portanto, um conjunto de posicoes sociais homélogo
a urn
conjunto de tornadas de posicéo. A comparacao so é possivel entre sistemas cujos compone
ntes
estao relacionalmente definidos e, por sua vez, essas definicoes relacionais constituem dis~
tincoes e separacées entre os componentes (individuos, instituicoes, gostos, classes sociais,
etc). A mediacao entre o espaco social e o espaco simbélico é feita pelo habitus dos agentes,
que proporcionam a unidade entre as préticas e 05 hens — o estilo de Vida dos individuo
s e,
também, das classes sociais. A habilidade de ver a diferenca inscrita na prépria estrutura
do
espaco social, funcionando de modo dissimulado e quase irreconhecivel como estilo de
Vida,
ilustra a fertilidade heuristica do modo de pensar relacional.

Referéncias
CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdugdo a umafilosofia do cultum humana.
$510 Paulo:
Martins Fontes, 1994.
DURKHEIM, B. As regras do me’todo sociolégico (1895). 2. ed. 350 Paulo:
Abril, 1983.

158. PEQUENA BURGUESIA

Ver: Classe social

1S9. PICTURING ALGERIA

Afrdnio Mendes Catani

BOURDIEUI P. PicturingAlgeria. Editado por Franz Schultheis e Christine


Frisinghelli. New York:
Columbia University Press, 2012.

290 PEQUENA BURGUESIA


A versao norte-americana do livro de Bourdieu constitui~se ern edigao ampliada da ori—
ginal, Images d’Algérie (2003), contendo prefacio de Craig Calhoun, introdugao de Franz
Schultheis (também incluindo entrevista realizada com o sociologo em junho de 2001),
comentério sobre as fotos de antoria de Christine Frisinghelli e relaeao dos 35 textos (livros,
artigos académicos, prefécios e intervenqoes jornalisticas) que ele escreveu sobre a Argélia.
Bourdieu chegou a Argélia em outubro de 1955, com 25 anos, para completar o servigo
militar. O envio ao pa1's africano foi, na realidade, uma punieao pela sua oposiqéo a repressao
que a Franea desencadeou contra sua entao colonia, que lutava pela independéncia, numa
sangrenta guerra revolucionéria (1954-1962). Até meses antes de ser mobilizado ele se en-
contrava lotado em Versalhes. Em 1956 e 1957 leu tudo o que péde encontrar sobre a Argélia,
terminou suas obrigagoes militares, voltou ‘a Franga, publicou Sociologie de l’Algérie (1958)
e voluntariamente retornou como professor universitério em Argel.
A obra apresenta mais de 160 fotos tiradas por Bourdieu na Argélia entre 0 firm dos anos
1950 e o inicio dos 1960, em plena agitagao bélica e em momenta particular de sua trajetoria
intelectual: sem se dar conta plenamente, estava se convertendo em cientista social, distancian-
do—se a passos largos de sua formaeao filosofica refinada. Na excelente introdugao, Schultheis
fala que as fotografias — quase duas mil, muitas perdidas, outras sem negatives — ficaram
guardadas em caixas empoeiradas durante 40 anos. Apenas algumas foram utilizadas por
Bourdieu em seus livros — casos de Travail et travailleurs en Algérie (corn Alain Darbel
et al., 1963); Le de’racz'fiement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Alge'rz'e (com
Abdelmalek Sayad, 1964); Algérie 60: structLires économiques et structures temporelles
(1977) - e em artigos. As demais eram inéditas até a publicagao de Images d’Algérie e das
exibigées que ocorreram no Institut du Monde Arabe, em Paris (janeiro e novembro de 2003).
As fotografias de Bourdieu foram tiradas, nao raro, em vérias situagoes dramaticas, como
na regiao de Collo. Fotografar as pessoas era, entendia o pesquisador, uma maneira de dizer
a elas: “eu estou interessado em vocé, estou do seu lado. Irei ouVi-lo e testemunharei o que
vocé esta Vivenciando” (IA, 13). Tais fotos nos ajudam a entender melhor, para o caso argeli-
no, as dimensoes e consequéncias da situaeao economica e da agitagao social que afetavam
crescentemente setores inteiros da populaqao do pais, que se deparava com uma nova logica,
com demandas totalmente flexiveis, que rompiam com a histéria e com os laeos tradicionais
que até entao experimentavam (IA, 4-5). Bourdieu explora e documenta a interdependéncia
entre as estruturas economicas e as estruturas temporais, interessando—se pela fenomenologia
das estruturas emocionais, manifestas na anélise das formas de sofrimento que resulta do
conflito entre as disposiqoes mentais e emocionais (o habitus dos atores sociais) e as estruturas
economicas e sociais da sociedade colonial (IA, 3).
Olhando as fotos que documentam as abjetas condieées e o sofrirnento do povo argelino,
bem como sua dignidade, graga e determinagao, e lendo os excertos fundamentais da obra
de Bourdieu que acompanham tais imagens, e’ possivel estabelecer um paralelo entre o fa-
zendeiro “desenraizado” da Cabila e o empregado desregulado e destruido dos dias atuais
nas sociedades capitalistas. Basta comparar os testemunhos apresentados na obra coletiva
que ele organizou, A miséria do mundo, com aqueles transcritos nos livros sobre a Argélia,
quarenta anos antes. E por esta razao que Bourdieu falou, sobre suas pesquisas argelinas, o
seguinte: “este é meu trabalho mais antigo 6 a0 mesmo tempo 0 mais atual”.

PICTURING ALGERIA 291


Sylvia Gemignanz‘ Garcia

BOURDIEU, P. Sociologia. Organizado por Renato Ortiz. Sz‘io Paulo: Atica, 1983.

Uma concisa e precisa coletanea em h’ngua portuguesa que, em cinco textos, sintetiza a
criacao sociologica de Bourdieu ao longo da década de 1970, programaticamente exposta no
relatério de 1980, que abre o conjunto, e aprofundada no texto seguinte, de 1972, que expoe
as bases de sua teoria das préticas sociais. A analise da producéo social das distancias e dis-
tincées de classe nos padroes de gosto estético e estilos de Vida e a constituicao historica de
um campo relativamente autonomo de producao cientr’fica, ambos de 1976, figuram como
estudos exemplares da aplicacao da abordagem sacrflega, que toma por objeto da explicacao
sociolégica os bens simbélicos de valor mais puro nos dominios da criacao e do intelecto. Por
firm, 0 artigo de 1977 esboca a construcao do mercado das trocas discursivas, no contraponto
a autonomizacao da competéncia linguistica realizada pelo estruturalismo objetivista.
Os textos surnarizam os resultados das principais pesquisas realizadas até entao, envolvendo as
areas da etnologia, da linguistica, da teoria sociologica, dos estudos de estratificacao, da sociologia
da cultural, da arte, da educacao e da ciéncia, que a perspecfiva sociolégica do autor resgata da
extrema especializacéo. O campo e o habitus 550 05 instrumentos relacionais de um conhecimento
praxiologico que busca explicar a dialética entre relacoes estruturadas e disposicées praticas e
revelar os mecam'smos de classe da inculcacao do arbitrério —— mecanismos institucionalizados
pelo desenvolvirnento de um modo de dominacao cuja forca (violéncia) simbolica permjte definir
o belo, ojusto e o verdadeiro universais, ocultando seu préprio condicionamento historico e social.
Explorando em especial o diélogo entre a sociologia de Bourdieu e a filosofia de Sartre,
a introducao de Renato Ortiz formula, na vertente aberta pelas ideias de Gramsci, a questéo
basica acerca da transformacao social, caracteristicamente suscitada pela énfase boardieu—
siana nos mecanismos de reproducao da dominacao e das classes dominantes.

151. PODER SIMBCLICO

Ana Paula Hey

O poder simbélico se inscreve na perspectiva de anélise da dimensao simbolica como es—


truturante da ordem social, relacionando—se diretamente com as nocoes de capital, violéncia e
dominacao simbolicos. Para Bourdieu, esse constructo constitui uma teoria do conhecimento
do mundo social como parte da teoria politica, uma vez que o ajustamento a uma ordem
sim-
bélica se dé pela imposicao de estruturas estruturantes que se ajustam as estruturas objetivas
do mundo social. A implicacao no politico refere-se a0 poder simbolico enquanto “poder de
construcao da realidade que tende a estabelecer uma ordem, um sentido imediato do mundo
social” (OPS, 9), mas também de como ele atua em um sistema de dominacao contribuindo
para ordenar as estruturas cognitivas de entendimento desta ordem.
O simbolico pode ser visto como aquilo que nao precisa ser on n50 esté explicito, porém que
constitui uma est’rutura operante na formacao das disposicoes dos individuos para perceber
,

292 PIERRE BOURDIEU. SOCIOLOGIA


apreciar e agir no mundo social. Para ser eficaz, o poder precisa adquirir a forma de desco—
nhecimento e de reconhecimento, de enraizamento no corpo de estruturas de dominacao,
social e historicamente forjadas, atuantes para gerarem uma ordem social. Tal ordem se
inscreve nas relacoes de forca, sendo tomada como ordem “natural” das coisas. Assim, “é
necessério saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais reconhecido [...]. 0
poder simbolico é, com efeito, essepoder invisivel o qual so pode ser exercido com a cumpli—
cidade daqueles que nao querem saber que lhe estao sujeitos ou mesmo que o exercem” (OPS,
7~8), demandando sua insercao no ajustamento entre as estruturas objetivas e as estruturas
incorporadas, tal qual forca social exercida na aparéncia técita de sempre ter existido.
Nessa direcao, Bourdieu indaga de que maneira se torna possivel que os dominados obedecam
e que uma ordem social seja mantida. Se as relacoes fossem somente de forca fisica, militar ou
economica, seria “provavel que fossern infinitamente mais frégeis e facilimas de inverter”. Todavia,
ao inscrever as relacoes de forca como constituintes de relacoes de sentido e de comunicacao, sendo
que “o dominado tambérn é alguém que conhece e reconhece”, torna o ato de se submeter e obedecer
dependente de uma acao cognitiva. Tal ato cognitivo e’ realizado pelo emprego de categorias de
percepcao, principios de visfio e divisao do mundo produzidas socialmente e que constituem um
objeto de lutas sociais acirradas para a imposicao desses principios classificatérios (SEp, 224—226).
Tais lutas sao sobretudo conflitos entre grupos pela detencao dos principios de classificacao e, ao
final, da legitimidade simbélica para-instituir como o mundo deve ser (DUBOIS et al., 2005, p. 27).
O simbolico transfigura o uso de vérios tipos de capital (economico, social, cultural),
constituidos como poderes que se exercem em espacos socialmente delfinidos e por pessoas
posicionadas distintamente, poderes que atraem e que repelem outros sujeitos, que atuam
mais fortemente em uns agentes do que em outros, mas que atingern a todos envolvidos na
producao de sentido do proprio mundo social. Como forma transmutada de outras formas
de poder, o poder simbolico tende a encobrir'a violencia ignorada — reconhecida corno ne-
cessaria para garantir uma relacao de forca. Ele continua sendo poder e, como tal, age, atua
nos corpos e submete os atos cognitivos. Portanto, nao pode ser visto corno algo que opera no
plano individual, nas subjetividades, mas influente na corporificacao da estrutura objetiva
em estado pratico, na mediacao do habitus com a estrutura de relacoes que o legitima como
poder simbolico, permitindo que funcione no sistema de reproducao da dominagao.
O poder simbolico se diferencia e se dispersa, deixando de se encamax em pessoas ou institui—
goes especiallzadas, se exercendo, “de maneira infisivel e anonima, através de acoes e reacoes, a
primeiravista anérquicas, mas de fato estruturalmente coagidas, de agentes e instituicoes inseridos
em campos concorrentes e complementares [...] e envolvidos em circuitos legitimadores de trocas
cada vez mais distendidos e complexos, por conseguinte mais eficazes simbolicamente, dando
cada vez mais lugar, a0 menos potencialmente, aos conflitos de poder e de autoridade" (MPp, 124).
Como nucleo de sua teoria sociologica, o poder simbolico nao é objeto de uma definicao
genérica, havendo a referéncia a especificidade de um tipo de poder que se constitui e atua em
sociedades historicamente singulares e produtoras de categorias que informam os principios
de diferenciacao social pertinentes, sendo, pois, sociedades capitalistas, muito diversificadas,
centradas em um sistema de classes, com complexa divisao do trabalho e com distribuicao
desigual do capital economico e cultural que engendram mecanismos contemporaneos de
reproducao social. 0 carater so‘ciopolitico do termo remete a0 trabalho constantemente

PODER SIMBOLICO 293


engendrado no mundo social de naturalizacao das divisoes sociais a ponto de torné-las
evidentes e, ao mesmo tempo, de desconhecer suas reais determinacoes, mas que também
assume formas diferentes associadas aos distintos campos sociais.
O desenvolvimento da analise do papel do Estado na construcao dos principios de produ-
cao de estruturas cognitivas que permitem concebé-lo e pensédo permite explicitar o poder
simbolico como pertencente ao corpo social em sua totalidade. O Estado existe enquanto ins-
tituicao capaz de impor de modo “universal, na escala de certa instancia territorial, principios
de visao e de divisao, formas simbélicas, principios de classificacao”, sendo o poder simbolico
pautado na capacidade de “produzir urn mundo social ordenado sem necessariamente dar
ordens, sem exercer coercao permanente”. Para 0 autor, a forma primaria de acumulacéo
do capital estatal se realiza no plano simbolico: hé pessoas que se fazem obedecer, respeitar,
porque sao letradas, religiosas, sagradas, por uma profusao de coisas com as quais a analise
materialista nao sabe o que fazer (SEp, 228—229). A dimenséo simbélica do efeito de Estado
é entendida na logica de funcionamento do universo de agentes do Estado (legisladores,
juristas) que fizerarn o discurso de Estado imbuidos de interesses gerais que tinham uns em
relacao aos outros, mas tambérn pelos interesses especificos dados por sua posicao no espaco
de suas lutas — “por example, a nobreza de toga em relacéo a nobreza de espada” (SEp, 239).
Engendrando relacoes de forca e de sentido e exercendo o poder consentido, o Estado é visto
como principal produtor de instrumentos de construcéo da realidade social, percebidos na
forma de “isso«é-obvio coletivo” na escala de um pais (SEp, 231).
O dominio da linguagern constitui urna espécie aguda de verificacao do poder simbolico ,
agindo no corpo social pelo reconhecimento e desconhecimento, na medida em que o uso
da linguagem é para todos, embora a forma “correta” pertenca a fracoes sociais dominantes
e funcione enquanto Inoeda de distincao tanto no circuito destes grupos dominantes (a
auséncia de sotaques, o uso adequado do tom e dos maneirismos linguisticos, a facilidade
considerada natural do bom falante) quanto no afastamento das classes detentoras de outras
formas de linguagern consideradas menos eruditas (sotaques marcados, uso de girias, erros
linguisticos, uso coloquial de termos). O rechaco a pronfincia nordestina em Sao Paulo n50 é
simplesmente pela origem geografica, mas-pela hierarquja social instituida que posiciona seu
detentor corno menos dotado de recursos sociais, culturais e econémicos dominantes, sendo
que o poder simbolico age classificando e rotulando de forma nao consciente de onde se esté
falando e a partir de quais propriedades sociais validas no mercado dos bens simbolicos.
O poder simbélico associado a urn campo social pode ser verificado em relacao ao sistema
escolar e ao papel desempenhado de distribuicao desigual do capital cultural, em que a apro—
xirnacéo do aluno com a cultura oficial escolar age na qualidade de poder “quase magico” de
sucesso, devido 2‘1 adequacao da estrutura escolar com as estruturas cognitivas desejadas de
grupos sociais dominantes. Pode ser visto também em relacao ao campo cientifico e ao estabe—
lecimento dos objetos legitirnos a serem pesquisados em urn dado momento de sua estrutura
que, resultando de lutas de determinado campo disciplinar, funciona corno poder de instituir
urna agenda a ser perseguida, sendo que quern possui os tipos de capital ali atuantes goza de
maior prestigio na escolha e imposicao destes objetos. Todavia, essa agenda é seguidamente
desenvolvida por todos que queiram gozar de on se aproximar do tipo de prestigio que se
configura como poder simbolico neste espaco de préticas e relacées.

294 PODER SIMBOLIco


Varias manifestacoes desse poder “quase mégico” podem ser apreendidas na obra de
Bourdieu, o que permite afirmar que tal nocao contribui de forma singular para a anélise
das relacées sociais corno determinadas por urna forca de algurna forma dissimulada 6 con
sentida, porém téo eficiente que passa a ser negada pelos dispositivos ideolégicos e politicos
aparentes (DUBOIS et al., 2005, p. 28).-

Referéncia
DUBOIS, 1.; DURAND, P.; WINKIN, Y. Introduction. In: DUBOIS, 1.; DURAND, P.; WINKIN, Y.
(Orgs.). Le symbolique et 16 social: la reception internationale de la pensée de Pierre Bourdieu.
Liége: EULg, 2005. p. 13-28.

V 1.62. PODER SIMBCLICO, 0


Ana Paula Hey

BOURDIEU, Pierre. 0 pader simbélico. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989.

O livro refine dez artigos de Bourdieu publicados ern periédicos franceses e norte~a1ne~
, ricanos no periodo de 1977 a 1987.0 interesse do volume'e apresentar uma recolha de textos
que dialogarn em torno do poder justamente na forma em que ele'e menos reconhecido, como
poder invis1vel, sirnbolico, que “so pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que nao
querern saber que lhe estao sujeitos ou mesmo que o exercern ’,(OPS 8).
A obra'e dividida em dois momentos, que procuram construir o entendimento do titulo O
inicial apresenta capitulos densos, voltados as nocées que permeiam a dificil tarefa de decifrar
em que medida o poder sirnbolico atua nos espacos sociais como urna forma transfigurada de
outros poderes ou propriedades que se constituern por meio do }og0 social Assirn, o primeiro
artigo é emblemético de urn dos chavoes mais associados ao autor, “estruturas estrnturantes”
e “estruturas estruturadas”, referindo-se aos sisternas simbélicos como produtores e produto
' da realidade. Em seguida, oferece uma aula metodologica ensinando a pensar o mundo social
8 a construir o objeto sociologico, utilizando ferramentas que colocam o proprio pesquisador
em exame. Os ulteriores abordarao a discusséo de conceitos e nocées que compoern o entendi—
mento de campo social. Parte da génese de habitus e de campo passa pela ideia de regiao (em
que aborda como a posigfio ocupada no espaco do jogo, central 011 local, pesa sobre a visao do
jogo em 51) e pela discussao da histéria reificada e incorporada, trazendo a tona a relacao entre _
a historia objetivada nas coisas e a encarnada nos corpos, em que o habitus funciona como
forma de entender a maneira pela qual a sociedade se introjeta no individuo. Culmina versando
sobre espaco social 6 génese das classes, por meio da abordagem da multidimensionalidade de
posicoes constitutivas do mundo social, em que os agentes se distribuem hierarquicamente em
funcao do volume global e da composicio do capital atuante nos distintos campos.
No segundo momento encontram-se textos operacionais, deixando extravasar sua sociologia
da construcao dos campos sociais e das nocoes que a acornpanharn, tratando respectivamente
da politica, do direito e da arte. Capitulos que, bern lidos, oferecem oportunidade de apreender
em que rnedida “a teoria cientifica apresenta-se como um programa de percepcao e de acéo
so revelado no trabalho empirico em que se realiza” (OPS, 59).

PODER SIMBOLICO, o 295


Ver: Campo politico

164(POSIQAO DE CLASSE

Ver: Classe social

6.6::RRAI!FA.<.T6Ori6 66?................................
Gisele Sapiro

Bourdieu comega a elaborar sua teoria da prética na década de 1960, apés retornar da
Argélia. O primeiro desenvolvimento completo dessa teoria encontra-se ern Esquisse d’une
théorz'e de la pmtique (1972), seguido de uma reformulaeao sistematica em Le senspmtique
(1980). Surgida do confronto com a antropologia estrutural de LéVi—Strauss, essa teoria nutriu—
se das leituras de MerleauvPonty, Husserl, Heidegger e Wittgenstein, mas esta enraizada, antes
de mais nada, nas pesquisas etnolégicas por ele empreendidas na Cabflia entre 1958 e 1961.
A reflexao sobre a prética ancora—se em urna dupla critica: do subjetivismo e do objetivismo.
Por um lado, as abordagens subjetivistas, desde a teoria de Sartre até a teoria do ator racional,
pressupoem que a agao é o produto da vontade de um sujeito consciente e capaz de se projetar
no future, antecipando as consequéncias de suas agoes. Ora, Bourdieu contesta tanto a ideia da
liberdade total de escolha quanto dalivre projegao no futuro. A0 apoiar-se na nogao de “protenséo”
desenvolvidapor Husserl, estabelece uma distineao entre aprevisao racional de longo prazo voltada
a um “futuro” construido em torno de um projeto (por example, a escolarizagao dos filhos), catac-
teristica das sociedades capitalistas, e a previdéncia como “aspiraeao prética de um porvir inscrito
no presente, logo apreendido como ja estando aqui e dotado da modalidade déxica do presente”,
prevalecente nas sociedades tradicionais organizadas em tomo de um calendério ciclico (CD, 22).
For outro Iado, o objetivismo estruturalista transforma os agentes ern suportes quase
mecanicos das estruturas. 0 use polissémico da nogao de regra na antropologia estrutural,
entre o sentido de norma que os agentes seguiriam conscientemente e o sentido de principio
reconstruido pelo pesquisador para dar conta da regularidade das praticas, alertou Bourdieu
para as lacunas e os Vieses dessa abordagem, criticando-a por seu— intelectualismo (o que,
mais tarde, ele iré definir como o “viés escoléstico”).A1ias, a inscrigao nos tempos de trocas,
come 0 dom e o contradom on o desafio e a réplica, torna insuficiente qualquer explicaqéo
mecanicista das logicas que presidern essas interaeoes.
A teoria da pratica refuta tanto a concepgao racionalista da agao quanto a ideia de agentes
movidos pelas estruturas de maneira inconsciente. Ela enfatiza a especificidade das légicas
da pratica, que se desdobram na situaeéo concreta 6 na urgéncia, diferentemente do tempo e
da reflexividade que caracterizam a atividade de produgao do conhecimento. A razao erudita
fracassa em dar conta da prética porque, de acordo com a frase de Marx, ela considera as coisas
da logica como se fossem a logica das coisas. Ora, a logica da prética difere radicalmente da
logical: trataase de uma logica vaga que escapa as tentativas de sistematizagao avaneada do

295 POLITICA
método estrutural, devido a significaeao ambigua de alguns elementos que pode variar segun»
do as principios de oposigao aos quais eles se referem e que faz com que nao haja homologia
estrutural perfeita entre esses diferentes principios, como foi constatado por Bourdieu em
relaqao a prética ritual na Cabflia (cf. 0 capitulo de 0 senso pnitico, dedicado ao “demonic
da analogia”). Essa logica vaga p6e em relagao elementos segundo o principio da “semelhanga
global”, de acordo com a expressao de Jean Nicod, que leva em conta apenas certos aspectos em
detrimento dos outros (os quais nem por isso desaparecem). Ela se caracteriza pela polissemia
e pela “politetia”, que Bourdieu opoe a definigao husserliana da apreensao “monotética”.
O “senso prético”, senso de orientagao e senso do jogo, simultaneamente, é o que permite aos
agentes se adaptarem a urn numero infinito de situagées sern seguir explicitamente uma norma,
uma regra ou um codigo transmitido (postura que a abordagem estruturalista mecanicista é
incapaz de explicar), mas sem que por isso eles obedegam a0 livre decreto de seu pensamento,
, como pretendem as teorias subjetivistas ou racionalistas. O que torna possivel esse ajuste?
Dois conceitos~chave da teoria da pratica de Bourdieu permitern responder a essa pergunta:
0 de habitus e 0 de estratégia. O habitus é o principio gerador dos esquemas de percepeao,
de avaliagao e de agao. Resultado de um processo de interiorizaeao das estruturas sociais sob
a forma de disposigoes no decorrer da socializagao priméria e secundéria, ele esta na origem
,_,,,da capacidade dos agentes de desenvolver estratégias,mais ou menos ajustadas as situaeoes
vividas, enquanto a noqao de estratégia remete a margem de improvisaqao dos agentes em
fungao de suas disposigoes. Mas a adequagao perfeita entre as situaqoes vividas e as estratégias
nao passa, no entanto, de um caso particular do possivel. Com efeito, em seus estudos sobre a
sociedade cabila e sobre a sociedade camponesa de sua terra natal, o Béarn, Bl‘ourdieu observou
a dificuldade experimentada pelos individuos de se ajustafem a novas situagoes em periodo
de transformaeao social, quando as estruturas sociais ja 1150 correspondern aquelas que eles
haviam interiorizado no passado, e quando 0 sistema de valores ja nao é mais o mesmo.
A inércia do passado faz~se sentir através dos habitos feitos corpo. O termo “habitus”aparece
pela primeira vez na obra de Bourdieu em referéncia a Mauss e a sua anélise das “técnicas do
corpo”. Segundo Mauss, o termo “habitus” - tomado de empréstimo a tradigao aristotélico-
tomista e empregado de maneira ocasional por Hegel, Husserl, Weber e Durkheim, traduz “me-
lhor do que ‘habito’, o ‘exis’, o ‘adquirido’ e a ‘faculdade’ de Aristoteles” (MAUSS, 1950, p. 368):
ele remete aos “habitos” coletivos, que variam de uma sociedade para outra. Diferentemente de
Tarde, que na comunidade das praticas vé o resultado da imitagao, Mauss preconiza que, através
da educagao — e, sobretudo, pelo adestramento dos corpos —- é que sao interiorizadas, incorpo-
radas, nao apenas as representagoes sociais, mas também as regras de conduta e as praticas.
O corpo socializado “pensa”, é um corpo “habituado”, explica Bourdieu em Esquisse d’une
the’orie de la pmtique; “as estruturas temporais [...] introduzem o habitus na logica do prazo
e do desvio, logo, do célculo” ([1972], 2002, p. 297); o corpo é temporalmente estruturado pelo
trabalho pedagogico que consiste em lhe ensinar principalmente a adiar os prazeres, a domes-
ticar as pulsoes (transformar a fome em apetite, etc.). Mas o corpo é também o lugar da prética,
da inveneao e da improvisaeao das condutas mais ou menos ajustadas as situagoes. Faculdade
de improvisaqao que, no entanto, permanece limitada pelas condieoes de sua socializaeao na
» medida em que os habitos incorporados oferecem frequentemente resisténcia (expressao de sua
inércia) ‘as tentativas mais conscientes de controle dos individuos sobre seu corpo. Na medida

PRATICA (Teoria da) 297


em que leva em conta essa faculdade de improvisacéo que nao necessita ser recuperada pela
consciéncia tética para operar eficazmente, o conceito de habitus traca os limites da liberdade
de acao e de controle s'unbolico da prética.
O conceito de habitus permite também passar da prética para as préticas e para seus
' principios de diferenciacao. Nas sociedades de classe, os grupos de individuos diferem por
suas préticas: habitos alimentares, praticas de consumo, préticas culturais, eleitorais, etc.
Essas préticas estao fortemente ligadas entre si e constituem a manifestagéo do habitus de
classe, como Bourdieu mostra em La distinction (1979).
Enquanto sentido do jogo, o “senso prético” é também o que esté em acao no encontro entre
um habitus e um campo (cf. Le sens pratique). Com efeito, longe de se limitar unicamente
‘as préticas ritualizadas, a logica da prética prevalece também nas atividades intelectuais e
de criacao. A aprendizagem prética desempenha um papel importante na preparacao para
os oficios artisticos (arte, musica, danca), paralelamente a formacao teérica que, a1iés,nem
sempre fornece os meios do controle simbélico da prética. Bis a razao pela qual o “projeto
criador”, expressao extrema das teorias intencionalistas, é insuficiente para dar conta de uma
obra como pretendia Sartre. O encontro entre o habitus do autor e o espaco dos possiveis que
o campo lhe oferece é um principio explicativo muito mais poderoso que permite articular
analise externa e interna das obras, com base em uma teoria da prética que enfatiza o modus /
operandi ao invés do opus operatum, inclusive no case de uma arte téo pouco ensinada
como a Iiteratura (RP, 59—99). ,
Essa teoria da pratica serve, assim, de fundamento a uma teoria geral da acao que vai
desde a acéo mais ritualizada até a mais inventiva, sem solucao de continuidade. Teérico
da pra’tica, Bourdieu também empregou tais concepcoes na formacao de seus alunos para a
pesquisa, privilegiando a aprendizagern prética em relacéo ao ensino teorico (SAPIRO, 2004).

Referéncias
BOURDIEU, P. Esquisse d’une théorie de la pratique, préce'dé de Trois études d’etlmologie kabylez
Le sens de l’honneur; La maison ou le monde renversé; La parenté comme representation et comme
volonté. Genebra: Droz, 1972. [Nova ed. aum., Paris: Le Seuil, 2000. (Colecio Points Essais)].
MAUSS, M. Les techniques du corps. In: . Sociologie et anthrapologie. Paris: PUP, 1950.
SAPIRO, G. La formation de I’habitus scientifique. In: BOUVERESSE, 1.; ROCHE, D. (Org). La Liberte'
par la connaz’ssance. Paris: Odile Jacob, 2004. p. 317—325.

166.PROFISSAO DE SOCIOLOGO (A): PRELIMINARES EPISTEMOLOGICAS ,


(Le métier de sociologue: Préalab/es épiste’mo/ogiques)

Sylvia Gemignani Garcia

BOURDIEU, P; CHAMBORBDON, LC. A profissda de sociélago: preliminares epistemolégicas:


Petropolis, R]: Vozes, 1999.

Publicado no Brasil em 1999 e tendo o titulo corrigido em edicoes posteriores para OfiCiO
de socio’logo: metodologia da pesquisa na sociologia, este livro representa exemplarmente

293 PROFISSAO DE SOCIOLOGO (A): PRELIMINARES EPISTEMOLOGICAS


(Le métier de sociologue: Préalables épistémologiques}
uma das vertentes criticas que derrubaram o predominio da so‘ciologia funcionalista norte a-
,' mericana, a partir da década de 1960, tornando——se desde entao referéncia para o entendimento
I, da pratica sociologica.
Contra o empirisrno e o convencionalismo— contra a dissociacao entre teoria e pesqujsa, sua
'representacao como etapas sucessivas predeterminadas e a 1imitagao da epistemologia cléssica‘a
logica da prova v, 08 autores querem transmitir “um sistema de hébitos intelectuais” que funda-
menta a ciéncia sociologica, operando como principios racionais de todo o processo de investiga—
_ gao, ampliando, desse modo, a razao até a logica da invencao. A concepcao sup6e uma unidade
‘ epistemologica entre as ciéncias, que permite transferir o saber epistemologico das ciéncias natu~
rais para as ciéncias humanas, e a convergéncia epistemolégica das grandes teorias sociologicas
- classicas, em torno de uma tearia do conhecimento sociologico. Nessa perspectiva, muitos textos
epistemolégicos e teéricos, de filosofos e de cientistas de diferentes areas, comp6ern 0 volume e
devern ser lidos junto com a exposicao principal, segundo suas indicacoes, para a interiorizacao
desse modo de ver a logica da producao de conhecimento racional do social. ‘
Seguindo Canguilhem e Bachelard, a logica da descoberta cientifica define—5e como
“polémica incessante da razao” contra o erro, envolvendo a “vigilancia epistemologica”, pela
, qual o pesquisador submete seus achados e instrumentos a “uma retificacao metodica perma—
nente”, e a sociologia do conhecimento, recurso essencial para esclarecer as condic6es sociais
de possibilidade do erro e do acerto. A definicao de fato cientifico formulada na perspectiva
do racionalismo aplicado de Bachelard orienta o desenvolvimento da exposicao dos autores
O principal obstaculo ao conhecimento sociologico’e a familiaridade c0111 0 mundo social,
que gera tanto a sociologia espontanea do senso comum, produtora de sistematizac6es ilusorias
sobre 0 social e as proprias condicées de sua credibilidade, quanto o senso comum erudito,
que cede a tranquilizadora explicacao pelo simples”, em uma relacao ambigua com o grande
pfiblico intelectual, alimentando o sentimentalismo do humanismo mgénuo (Nietzsche, Marx).
As técnicas de ruptura pela critica das pré-nocées (Durkheim) envolvem as definic6es
, provisérias, a estatistica e a explicitacao da filosofia do social incrustada no vocabulario
e na sintaxe da linguagem comum. A objetividade do conhecimento sociologico deve ser
conquistada contra a filosofia ingénua da acao. Sua condicao primeira é o princz’pio da mio
consciéncia: o sentido das acoes pertence ao sisterna completo de relac6es nas quaisve pelas
quais elas se realizam. Nao 5510 as representacoes dos sujeitos que conduzem ao principio
explicativo da logica das relac6es sociais; é, antes, a légica objetiva de uma organizacao que
revela o principio explicativo de 5611 funcionamento e das atitudes, opini6es e aspirac6es
de seus membros. E a critica ao subjetivismo das filosofias da escolha que situa a énfase
dos autores na necessidade de objetivacao, pois certamente a construcao do sistema de
‘ Ielac6es visa explicar tanto a objetivacao das subjetividades quanto a interiorizacéo da
_ Objetividade, articulando estrutura e acao. A ruptura, que p6e em questao os fundamentos
L das tradic6es teoricas consagradas segundo urn desenvolvimento histérico descontinuo da
razao, permite revelar a inconsisténcia da perspectiva de Parsons, que buscou sintetizar
, as tradicoes em uma teoria universal dos sistemas sociais. Por outro lado, contra o “hipe—
rempirisrno pontilhista”, as grandes teorias classicas fornecem os fundamentos da teoria
’ do conhecimento do social que rege as teoriasvparciais (limitadas a uma ordern definida
de fatos), funcionando como principio unificador do discurso sociolégico.

PROFISSAO DE 50061060 (A): PRELIMlNARES EPISTEMOLOGICAS 299


(Le me’tier de sociologue: Préalables épistémologiques)
O “dogma da imaculada percepeao” (Nietzsche) do hiperempirismo, favorecido pela
aparéncia de rigor da codificaeao das regras técnicas de utilizaeao das técnicas, deturpa a
reflexao metodologica em doutrina dos preceitos tecnolégicos, enfatizando a manipulagao
,de categorias constituidas e ignorando as operaeoes pelas quais elas foram constituidas.
Essa renfincia ao objeto cientifico produz “meros artefatos” — gravaeoes, questionarios,
entrevistas, medidas - que ora impoem aos informantes as categorias impensadas do
pesquisador, ora consagram as categorias dos informantes como explicaeao do real, ora
confundem formalizaeao (de resto, recurso proficuo de controle, contanto que utilizado
controladamente) com valor explicativo.
Esses erros sao retificados quando se define uma ciéncia por meio das relaeées concei-
tuais entre os problemas que formula (Weber). Diversamente da aparéncia pfé-construida
pela percepeao, o objeto cientifico é construido em funeao de uma problematica teérica
que relaciona aspectos conscientemente selecionados da realidade — como nos tipos ideais
weberianos, “ficeoes coerentes” que guiam a construeao de hipoteses, enquanto construeoes
proximas do real (diversamente dos modelos miméticos, que reproduzem fenémenos de
modo aproximativo, limitando‘se as semelhaneas exteriores). Assim, a pesquisa consiste de
uma abstraeao que constréi as relaeoes que definem um objeto, rompendo com afinidades
aparentes para propor analogias desconhecidas (modelos analégicos), das quais depende,
em geral, toda inveneao cientifica e, especificamente, a comparaeao sociologica, para for-
mular os principios ocultos que permitem descrever, explicar e prever o funcionamento
das realidades que investigam. ’
Nada do que foi dito supoe uma ordem cronologica de um ciclo experimental composto
de fases sucessivas. A hierarquia dos atos epistemologicos é de ordem logica, pois o processo
todo de investigaeao constitui um “procedimento unitario”. O racionalismo aplicado rompe
com a epistemologia espontanea ao inverter a relaeao entre teoria e experiéncia, tornando
inteligivel que, na observaeao on ma experimentaeao, o procedimento é tanto mais cientifico
quanto mais sistematicos os principios teoricos que o guiam. A experimentaeao bem-sucedida
confirma ou desmente um sistema de hipoteses que confere significaeao aos fatos como “os
termos organizados de uma série” (Pahofsky). E pela sistematicidade do conjunto que tudo
ganha sentido: fora dele, cada hipotese, dado ou fato isolado é insignificante (Duhem). Para
isso, o conjunto precisa ser continuamente corrigido, jé que um dos méritos da prova é provocar
certa dfivida acerca de seu resultado (Russell). Assim, os resultados positives ou negativos da
pesquisa sao, principalmente, um “ponto de reflexio” (Brunschvicg).
Essa dialética de ajuste entre dados (fidelidade ao real) e categorias de apreensao dos
dados (coeréncia teorica) torna-se visivel a partir do ponto central da encruzilhada entre
o realismo e o idealismo, perspectiva do racionalismo aplicado que desvela a comple~
mentaridade sistémica dos opostos aparentes (tal como mostra a anélise das afinidades
entre positivismo e intuicionismo), lugar da pratica cientifica capaz de “superar em ato”
as oposieoes entre as quais oscila uma sociologia submetida a uma imagem distorcida das
ciéncias naturais.
Sem ser uma ciéncia de exceeao, a sociologia exige particularmente a ruptura, dada a
interpenetraeao entre “a cidadela erudita” e a sociedade mundana. Por isso a critica episte‘
mologicadepende tambe’m da analise das condieoes histéricas esociais do erro e do acertO-

300 PROFISSAO DE SOCIOLOGO (A): PRELIMINARES EPlSTEMOLOGICAS


(Le métier de sociologue: Préa/ab/es épistémologiques)
Situando as oposicoes epistemolégicas no sistema de posicoes que relacionam instituicoes e
grupos em um campo disciplinar, é possivel identifiCar o horizonte de possibilidades de cada
pesquisador, segundo suas posicoes objetivas no campo e seus enraizamentos sociais, para
avancar na superacao das vérias formas de etnocentrismo, em direcao a institucionalizacao
da vigilancia na sociologia, ou seja, da “rede continua de critica” (Polanyi) capaz de alimentar
, a autonomizacao da razao sociologica.

167. PROJETO

Ver: Conatus

' 168. PROPOS SUR LE CHAMP POLITIQUE


Igor Gastal Grill

BOURDIEU, P. Propos sur le champ politique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000.

“Como pensar a politica sem pensar politicamente?” Indagacao desafiadora proposta por
Pierre Bourdieu e que pode orientar a leitura deSte livro composto por discussoes e nuances
instigantes em torno de uina temética que parece sempre fadada a produzir obstéculos de
diferentes ordens Além de artigos sobre a “politica”, ganham destaqué a conferéncia de
Bourdjeu sobre O campo politico” e a entrevista que concedeu (datam de 11 de fevereiro de
1999), ambas conduzidas por Philippe Fritsch, que assina o texto introdutério e ainda’propoe,
nas paginas finais, uma bibliografia com os “principais trabalhos de Bourdieu sobre as ques—
toes de politica”. Sublinhada a intervencao de Fritsch, cabe ressaltar que a efetivacao desse
projeto parece ter sido tributéria de aspectos proprios a uma etapa do itinerario de Bourdieu,
da sua producao e dos “combates” que travou em um contexto historico especifico. Neste
caso evidenciam—se, notadamente, as énfases atinentes ‘as relacoes entre os campos politico,
jornalistico e das ciéncias sociais, bem como a funcao politica dos intelectuais. Conjuga~se
a isso a possibilidade de atentar para o trabalho de formulacao de um referencial analitico
a partir da problematizacao das condicoes de apreensao do dominio especializado da vida
social em pauta. Ou seja, encontram—se aqui as bases do programa de pesquisas para ponde:
Iar sobre os condicionantes sociais que configuram o microcosmo da politica, os processos
de profissionalizacao intervenientes, a constituicao de regras especificas de funcionamento,
as condicoes de afirmacao de determinadas competéncias para o trabalho de mobilizacao
politica e as mfiltiplas estratégias concorrenciais de imposicao de principios de visao e divisao
do mundo social. Nao por acaso, a essa elucidacao dos entraves decorrentes das ilusoes de
uma “compreensao imediata” da politica corresponderam adesées e reacoes em universos
académicos, midiaticos, militantes e intelectuais.

PROPOS SUR LE CHAMP POLITIQUE 301


159. QUESTOES DE SOCIOLOGIA
(Questions de sociologie)

Cristina Carta Cardoso de Medeiros

BOURDIEU, P. Questées de sociologia. Rio de Ianeiro: Marco Zero, 1983.

Como confirmado pelo autor no “Prélogo”, Questfies de sociologia traz a compflagéo de


transcrigoes orais a partir de entrevistas, intervengoes em coloquios, conferéncias e cornu-
nicagées em congresses, além de palestras em universidades e em instituigoes de pesquisa
Destinados a publicos nao especializados, esses discursos, em forma mais simplificada, teriam
a intengao de esclarecer temas, nogoes e conceitos que jé haviam sido tratados de forma mais
rigorosa e completa em outros trabalhos (artigos 6 ohms) de Bourdieu. Tal preocupagéo em
decifrar e desvelar sempre esteve Clara a0 longo da trajetéria desse sociélogo, convencido de
que a sociologia, ciéncia de acessibilidade exigida, “n50 valeria uma hora de esforgo se fosse
um saber de especialistas reservado aos especialistas” (Q8, 7). Auxiliado pelo formato oral
que aproxima autor e espectador e que, pela urgéncia e linearidade, poderia imprimir um
ritmo de exposigéo mais dinémico em que se acompanharia a construgio de seu pensamento
e suas argumentagoes, adaptadas a0 pfiblico ao qual se dirige, Bourdieu trabalha vérios temas:
da alta costura ao esporte, da sociologia da arte ‘as pesquisas de opiniéo pfiblica e defende o
formato critico da sociologia por sua fungéo de desvelamento das formas de dominagfio e das
logicas da ordem social. Apresenta ainda, em uma configuragéo que se poderia classificar
como didética, algumas propriedades dos campos, por considerar tal nogéo como dotada
de grande forga operacional Os textos trazem também referéncias ‘as nogoes de habitus e
de algumas modalidades de capitais Em varies extratos Bourdieu aproveita para esclarecer
alguns pressupostos de sua abordagem sociolégica que foram criticados ou mal interpretados,
podendo ser mais bem explorados e esclarecidos a partir do estimulo provocado pelas questées
dos entrevistadores on do pfiblico com o qual dialoga. A maioria dos textos selecionados para
o livro apresenta, a0 final, nota explicativa, onde podem ser obtidas, em outros trabalhos d6
Bourdieu, explicagoes complementares dos temas tratados nas comunicaqoes orais.

302 QUESTGES DE SOCIOLOGIA


(Questions de sociologie)
'jz‘p‘.
' 170. RAZGES PRATICAS: SOBRE A TEORIA DA AQAO
(Raisons pratiques: sur la théorie de Faction)
Zaia Brandfia

BOURDIEU, P. Razées préticas: sabre a tearia da again. Campinas, SP: Papirus, 1996.

No prefacio a edigao brasfleira de 1996 (o livro foi publicado originalmente em 1994), Bourdieu
assinala que o conjunto de textos apresentados no livro tern o sentido de urnfetorno refiexivo
sobre o conhecimenta acumulado a partir das infimeras pesquisas que desenvolveu. Trata—se,
portanto, de uma tentativa de sintese das questoes que o ajudaram a elaborar conceitos centrais
da teoria da agao que atravessa boa parte de sua obra. Bourdieu adverte aos pesquisadores
sobre o equivoco que seria desenvolver urna leitura purarnente teorica do conjunto dos textos.
Esclarece que os conceitos presentes na obra, na maioria das vezes, foram desenvolvidos para
resolverproblemas inseparavelmente empiricos e tedricos. Enfatiza ainda a centralidade da
perspectiva relacional no ambito da sociologia, questiona as tendéncias substancialistas, comuns
nas ciéncias sociais, quando tratarn como “fates” - situagoes, posigoes, processes, etc. — aos
quais 36 se chega pela percepgao das relaqoes que mantém com outros fenomenos sociais. Para
0 autor, as relagoes objetivas nao sao percebidas diretamente, mas precisam ser (re)constru1’das
por um rigoroso trabalho cientifico de articulaqao entre os fenomenos.
Razfies prdticas oferece aos leitores palestras/textos que Bourdieu realizou no estrangeiro e '
no Collége de France. Entendo que o conjunto representa o aspecto mais original da construgao
sociologica empreendida pelo autor - ou seja, a hipétese de que a maioria das agoes dos agentes
sociais tern por fundamento razoespra’ticas. Para ele,‘ as razoes praticas sao derivadas do habitus —
disposiqoes para agao, fortemente incorporadas pelos agentes em suas trajetorias sociais — e resul-
tarn da posigao social dos agentes e de suas praticas usuais. No processo de socializagao (familiar,
escolar, profissional, etc.) 05 agentes/atores adquirem formas de agir ajustadas ‘as exigéncias (regras)
dos campos sociais que costumarn frequentar e, por isso, fazem o que é esperado em determinadas
situagoes (circumstancias/contexto), sem que precisem recorrer a razao (raciocinio) para agir con~
~ A ‘ forme as regras. Os conceitos “jogo”, “regra”, .“costume”, “habito”, “aprendizagem” (Wittgenstein)
foram importantes referéncias para o autor na elaboragao do m’icleo conceitual de sua obra.

RAZOES PRATICAS: SOBRE A TEORIA DA An 303


(Raisons pratiques: sur la théorie de Faction)
Bourdieu nao trata os sujeitos (agentes) como meros epifenomenos das estruturas sociais,
como supoem muitos criticos das raizes estruturalistas do autor. A0 se debrucar preferen-
cialmente sobre as “razoes préticas”, que dominam no mundo da prética, destaca a forte
interiorizacao da racionalidade das acoes sociais cotidianas Fundamentadas em processes
de socializacao permanente e praticas rotineiras, nao exigem a cada momento 0 recurso a
“razao racional”, uma vez que incorporaram formas rotineiras e razoaveis de agir no espago
social em que circulam normalmente (campos, contextos, conjunturas temporais).
Para 0 autor, as estruturas sociais sao produto dos esquemas de percepcao, de pensamento
e de acao dos homens. Ele questiona tanto o subjetivisrno, que nao leva em conta a génese
social das condutas individuais, come 0 estruturalismo, que desconsidera a histéria e as
determinacées dos individuos. E neste sentido que afirmou que se tivesse que dar um rotulo
a sociologia que desenvolveu, este seria estruturalismo construtivista.
Cabe destacar que este livro nao deve ser utilizado como obra introdutéria a0 pensarnento de
Bourdieu, e sim como um instrumento para a revisao de alguns dos seus conceitos e de suas formas
de elaboracao desenvolvidos através de um denso trabalho de ordem empirico-teorico pelo autor.

71. RECONVERSAO DE CAPITAIS


Enrique Martin Criado

As estrate’gias de reconversao de capitais fazem parte das estratégias de reproducao.


Cada individuo ou grupo social se define por uma estrutura e volume de capital. A estrutura
de capital remete ao peso relativo das diferentes espécies de capital (economico, cultural,
simbélico, social) que possui. 0 volume designa a quantidade de cada espécie de capital.
Um individuo ou grupo, em suas estratégias de reproducao, tende a continuar acumulando
as mesmas espécies de capital que ja possuia. Porém, quando se produzem mudancas no
sistema dos instrumentos de reproducao — por exemplo,~ transformacoes no valor de um
tipo de capital economico ou cultural que diminuem o rendimento das espécies de capital
que se possui -, a estrate’gia de reprodu‘céo que se impoe é a reconversao dos capitals: a uti-
lizacao de uma espécie de capital para acumular outras espécies de capital mais rentéveis,
acessiVeis ou legitimas. Assim, quando o acesso as posicoes dominantes da hierarquia das
empresas requer cada vez mais titulos escolares, os segmentos da burguesia ricos em capital
economico o utilizam para que seus descendentes adquiram capital cultural objetivado sob
a forma de titulos escolares superiores ~ comparecendo a escolas privadas caras mas pOUCO
exigentes escolarmente.
A reconversao de capitais se da tambe’m em estratégias de acesso social, por exemplo,
quando um académico, rico em capital cultural e simbélico, o coloca‘a disposicao de empresas —
defendendo ou legitimando seus interesses — para acumular capital economico.
O conceito de leis de reconversao de capitais designa transformacoes gerais no estado
dos instrumentos de reproducao que revalorizam (on desvalorizam) uma espe’cie de capital,
pressionando a sua acumulacao (ou abandono a favor de outras espécies de capital) POT
diferentes segmentos de classe. Um exemplo é o peso crescente dos titulos escolares para 0
acesso a posicoes profissionais superiores.

304 RECONVERSAO DE CAPITAIS


.1'7.2.URF1FLE_XIVIDADE
' Gémrd Mauger

Se é verdade que “Bourdieu n50 apreciava a linguagem da ‘consciéncia’ e da ‘tomada de


consciéncia’” (BOUVEREsl, 2004, p. 36), é evidente que nem por isso o homem em sociedade era,
dos
para o sociélogo, um “idiota cultural”. No entender de Harold Garfinkel (2007), “o ator social
estabilida de a sociedade ao agir em conformid ade
sociologos é um ‘idiota cultural’ que produz a
da
corn alternativas preestabelecidas e legitimas que lhe sao fornecidas pela cultura”. Sua teoria
” (CD,
prética traga uma via entre a reduqao do agente a um “simples epifenomeno da estrutura
19) e o sujeito da tradigao humanista (que, “segundo se presume, age unicamente em fungao
te por
de intengées que conhece e controla, e 1150 de causas determinantes, ignoradas totalmen
ele, e sobre as quais nao exerce nenhuma influéncia real” (BOUVERESSE, 1995, p. 580). Segundo
nem
Bourdieu, “o senso prético é' o que permite agir de maneira adequada [. . .] sem interpor
(MP, 166). Ele é indissoci ével do conceito de
executar um ‘é preciso’, uma regra de conduta”
agoes possuem mais
habitus, que “tern por fungao primordial lembrar com enfase que nossas
da com-
frequentemente por principio o senso prético do que o célculo raciona ”. “O principio
nte” (MP, 78), mas sim uma compree nsao sem
preensao prética nao é uma consciéncia cognosce
o habitus como senso praticoi
distancia objetivante do mundo, sem relaeao de exterioridade;
sente em casa
compreende o mundo “como algo evidente”. Se isso é assim é porque o agente “se
174). Ele “‘ai se
no mundo porque o mundo também esté nele sob a forma do habitus” (MP,
r, e faz surgir, sem mesmo pensar
reencontra’ imediatamente, sem ter necessidade de delibera
o carater pré-
nisso, ‘coisas a fazer’ [. . .] e a fazer ‘como convém’” (MP, 174). Em outros termos,
a situagao.
reflexivo do senso pratico resulta do ajuste, mais ou menos aproximado, do habitus
das tendéncias do
Ora, esse ajuste é, por sua vez, o produto da “incorporagao das estruturas e
do senso pratico “nunca
mundo” (MP, 166). Bourdieu sublinha, todavia, que as improvisagées
ento ou mesmo
acontecem sem uma certa presenga de espirito [. . .], uma certa forma de pensam
“o habitus tern
de reflexao prética, reflexao em situagao e em agao” (MP, 192), admitindo que
m: a relaeao de adaptagao
seus fracassados, seus momentos criticos de desconcerto e de defasage
forma de re—
imediata fica suspensa, num instante de hesitagao em que pode se insinuar uma
maneira geral,
flexao que nao tem nada a ver com a do pensador escoléstico” (MP, 191—192). De
ismos do senso prético varia
escreve ele, “o grau com que podemos nos entregar aos automat
ocupada no
conforme as situaeoes e os dominios de atividade, mas também segundo a posigao
espaqo social [...]” (MP, 192).
“tempo
Quanto ‘a reflexividade, ela esté subordinada, de acordo com Bourdieu, a skholé,
livre e liberada com
livre e liberado das urgéncias do mundo que torna possivel uma relagao
as condigoes
tais urgéncias e com 0 mundo”: ela é “a primeira e a mais determinante de todas
icos a que ela in—
sociais de possibilidade do pensamento ‘puro’” (com os obstaculos epistém
l fora da skholé? Seria
duz). Deve-se deduzir dai que 1130 ha nenhum “pensamento” possive
seria a condigao
necessario poder se retirar do mundo para pensa-lo? A condigao escoléstica
agao sobre o
sine qua non de qualquer pensamento e, em particular, de qualquer interrog
dos agentes seria nula
mundo social? A “competencia reflexiva” (BOLTANSKI; THEVENOT, 1991)
, que “somos
fora da condiqéo escolastica? Se é verdade, de acordo com a expressao de Leibniz
interrogarmos sobre
automatos em trés quartos de nossas aeoes”, é possivel, ao menos, nos

REFLEXWIDADE 305
o quarto restante. Quais seriam entao as condicoes sociais que levaln a que nos detenha
mos
sobre nossas praticas? (MAUGER, 2009, p. 61—77).
Para comecar, podemos supor que a experiéncia do 111m “como algo evidente”, associad
a
ao senso pratico que funciona sem obstéculos, é desigualmente distribui’da no espaco
social.
Assim, segundo Bourdieu, “é provavel que os que se encontram ‘em 3611 lugar’
no mundo
social possam mais e mais completamente se entregar ou confiar em suas disposicé
es [...] do
que os que ocupam posicées em falso, tais como os arrivistas on 05 desclassificados”
(MP,
198). De maneira geral, pode-3e aventar a hipotese de que o ajuste das disposicoes
as posicoes
on do habitus interiorizados as situacoes defrontadas seja provavel nos dois polos
opostos
do espaco social — nas classes dominantes e nas classes dominadas - e que o desajuste
ea
substituicao da reflexividade ao senso pratico sejam muito mais provaveis nas regioes
inter-
mediarias desse espaco (as profissées “intermediarias” da pequena burguesia).
Parece, com
efeito, que habitus burgueses e habitus populates confirmam duas propriedades
genéricas
do habitus, segundo Bourdieu: por um lado, sua homogeneidade procede da coeréncia
, da
estabilidade das condicoes materiais e culturais de existéncia; por outro, o habitus
burgués
on popular tendem a se proteger das crises e dos questionamentos criticos, garantin
do sua
seguranca em um meio ao qual se esta tao pré-adaptado quanta possivel (o estar
“entre si”)
(SP, 102). A2) contrario, a ocupacao de posicoes “intermediérias” implica em frequent
ar lu-
gares, acontecimentos ou pessoas situados “mais alto”, assim como lugares, aconteci
mentos
ou pessoas situados “mais baixo”, expondo constantemente o habitus pequeno burgués
a
questionamentos, a crises e, por isso mesmo, a uma suspensao do senso prético. De
acordo
com Bourdieu, os ocupantes de posicoes em falso “tém mais chances de tomarem
conscien-
cia do que para os outros lhes parece evidente, pelo fato de se verem obrigados a se
vigiar e
a corrigir conscientemente os ‘primeiros movimentos’ de um habitus gerador
de condutas
pouco adaptadas ou deslocadas” (MP, 193).
A reflexividade pode ser igualmente uma consequéncia da conjuntura. Bourdie
u evoca,
assim, “situacoes mais criticas” suscetiveis de provocar uma “suspensao total da
submissao
do’xica a ordem estabelecida” (MP, 220), on seja, ao mundo “takenforgranted”: “Os
periodos
de crise nos qu'ais os ajustes rotineiros das estruturas subjetivas as estruturas objetivas
sao
bruscamente rompidos constituem um tipo de circunsténcias em que a escolha racional
pode
preponderar, ao menos entre os agentes que dispoem, se é que se pode dizer, dos
meios de
serem racionais” (R, 107). Pode—se supor que esse tipo de situacao libera uma forma
reprimi-
da de consciéncia da dominacao, autoriza um questionamento das crencas mais
ou menos
a’ssumidas. Considerando que a expressao dessa forma de reflexividade pressupo
e “palavras
para exprimi—la”, i.e., a possibilidade de dar o “salto ontolégico provocado pela
passagem
da préxis ao logos, do senso prético ao discurso, da visao pratica a representacao,
a saber, o
acesso a ordem da opiniao propriamente politica” (MP, 221).
Os deslocamentos de grande amplitude no espaco social e/ou as rupturas biografic
as per-
mitem igualmente dar conta da époché do senso pratico. A mobilidade social
ascendente ou
descendente, e a mudanca de universo social que lhes é inerente, engendram “a inadapta
cao”
do habitus - interiorizado no ambito da classe social de origem — as situacoe
s caracteristi-
cas da classe social de destino. As rupturas biogréficas, por sua vez, podem
ser produzidas
pelas situacées de imigracao e de “transplantacao” individual on coletiva, mais
ou menos

308 REFLEXIVIDADE
deliberadas ou impostas, ou ainda pelas iniciativas deliberadas de conversao do habitus no
interior de “instituicoes totais” (asilos, prisoés, seitas religiosas, etc.)
De maneira geral, quais 550 as condicoes sociais suscetiveis de produzir “fracassados” do
habitus? “O problema esta no fato de que, no essencial, a ordem estabelecida nao constitui
problema”, dizia Bourdieu (MP, 217). “Nunca deixei de me espantar, escrevia ele, diante do que
poderia ser designado como o paradoxo da doxa: o fato de que a ordern do 111m tal como ela é,
com suas permissoes e suas proibicoes, no sentido préprio como no figurado, suas obrigacoes e
suas sancées, sejagrosso modo respeitada, que nao haja um maior numero de transgressoes ou
de subversoes, de delitos e “loucuras” (basta pensar na extraordinaria coordenacao de milhares
de disposicoes — ou de vontades ~ que Se instala na circulacao automobilistica, durante cinco
minutos, na Praca da Bastilha ou da Concorde, em Paris). On, o que é ainda mais surpreenden—
te, que a ordem estabelecida, corn seus privilégios e suas injusticas, se perpetue com tamanha
facilidade, com excecao de alguns acidentes histéricos, e que as mais intoleraveis condicoes de
existéncia possarn ser tidas, com tanta frequéncia, corno aceitéveis ou, até mesmo, naturals”
(BOURDIEU, 1998, p. 24) . Os dois exemplos citados por Bourdieu - a circulacao de automoveis e
o respeito pela ordern estabelecida - colocam um duplo problema: de umlado, 0 do habitus e da
regra; de outro, 0 da doxa e da ideologia. No caso da circulacao de veiculos, “circular a direita”
é, para um motorista francés, uma prética incorporada que dispensa a referéncia explicita a _
uma regra que ele se esforcasse por cumprir. Se, no entanto, ele emigra para a Gri—Bretanha,
deveré nao so controlar e reprimir sua disposicao de “circular a direita” (a situacao pode, alias,
se tornar uma oportunidade de “tomar consciéncia” da regra interiorizada e de seu arbitrério
definido do ponto de vista nacional e historico), mas também aprender a “circular a esquerda”
e, ao menos no inicio de sua aprendizagern, ter constantemente em mente a regra explicita que
deve aprender a seguir. Desse ponto de vista, parece necessario admitir a coexisténcia de habitus
e de regras na Vida social, além de “considerar a regra explicita, cumprida conscientemente, e
o habitus como dois polos entre os quais existe, na realidade social, uma verdadeira gama de
casos intermediarios” (CHAUVIRL‘, 1995, p. 553). O milagre da circulacao de veiculos na Place
de la Concorde supoe que cada um tenha interiorizado as regras de transito. No entanto, tais
regras (o Codigo de Transito) sao, neste caso, as rnesrnas para todos e enunciadas como tais,
isso quando chegam a ser enunciadas. No que diz respeito a ordern social “com seus privilégios
e suas injusticas” ~ defacto, desigualitérias —, as regras que a organizam devem, no momento
de sua enunciacao, justificar as desigualdades, os privilégios, as injusticas “Visiveis a olho nu”.
Esses dois exemplos ilustram a partilha entre a “doxa” e a “ideologia”. A doxa, repertorio
de regras idénticas para todos, pode ser interiorizada como “algo evidente”. A ideologia do—
minanté, por sua vez, deve racionalizar regras que, defacto, estabelecem a de’sigualdade. A
inculcacao e a interiorizacao dessas regras sao solidérias da nocao de “violéncia simbélica”,
mas podem—se enfatizar duas versoes do conceito de “violéncia simbélica” na obra de Bour-
dieu (MAUGER, 2006): a primeira associada aos trabalhos de etnologia cabila que insiste na
incorporacao dos esquemas de percepcao, levando«os assim a escapar ao controle consciente;
a outra vinculada aos estudos sobre a escola, mais proxima das concepcoes marxista, webe-
riana ou durkheimiana da “ideologia”, que insiste no sentido atribuido pelos dominados ao
mundo social e em seu lugar nesse mundo. Nao é demais ressaltar, entretanto, que em Me-
ditacées pascalianas Bourdieu rompe explicitamente com a concepcao weberiana anterior:

REFLEXIVIDADE 307
“0 reconhecimento da legitimidade nao é, como acredita Weber, um ato livre da consciéncia
clara” (MP, 215). A ideologia dominante concebida como empreendimento de racionalizacao
(ou de "justificacao”) dos privilégios, das injusticas, das desigualdades sociais, situa~se na
ordem das representacoes, portanto, da “consciéncia”. Da doxa a ideologia dominante, ha
lugar para a reflexividade.
Finalmente, a prolongacao generalizada das escolaridades é outra razao para universalizar
o privilégio da reflexividade. Além da quebra — ao menos relativa — das divisoes sociais que ela
\implica e, por isso mesmo, a percepcéo inevitével das desigualdades economicas e culturais,
além do acfimulo de instrumentos de expressao e da aprendizagem da transcricao do ethos
em logos, a escolarizacao prolongada implica numa aprendjzagem da condicao escoléstica e
na interiorizacao de disposicoes reflexivas que facilitam a passagem do distanciamento aci—
dental a uma disposicao permanente: “Estando livre da sancéo direta do real, 0 aprendizado
escolar [. . .], escreve Bourdieu, é a ocasiao de adquirir, de lambujem, por forca do habito, a
disposicao permanente para operar o distanciamento do real diretamente percebido, condicao
da maioria das construcées simbélicas” (MP, 28).

Referéncias
BOLTANSKL L.; THEVENO, L. De lajustzfication: les économies de lagrandeur. Paris: Gallimard, 1991.
BOURDIEU, P. De la domination masculine. Le Monde Diplomatique, p. 24, aofit 1998.
BOUVERESSE, I. Bourdieu, savant etpolitz'que. Marseille: Agone, 2004.
BOUVERESSE, I. Régles, dispositions et habitus. Critique, 11. 579/580, aofit—sept. 1995.
CHAUVIRE, C. Des philosophes lisent Bourdieu. Bourdieu/Wittgenstein: la force de l’habitus. Critique,
n. 579/580, aofit—sept. 1995.
GARFINKEL, H. Recherches en ethnome’thodologie (1967). Paris: PUP, 2007. ~
MAUGER, G. Sens pratique at conditions sociales de possibilité de la pensée “pensante”. Cités,
Philosophie, Politique, Histoire, 11. 38, p. 61‘77, 2009.
MAUGER, G. Sur la violence symbolique. In: MULLER, H.—P.; SINTOMER, Y. (Org). Pierre Bourdie u,
théorie etpratique. Paris: La De’couverte, 2006. p. 84-100.

1.73. REGRA

Ernesto Seidl

Em boa medida o esquema conceitual de Pierre Bourdieu desenvolveu—se com base numa
percepcao do mundo social e das praticas que rejeita a nocao de regra, entendida como “principio
de tipo juridico ou quase juridico mais ou menos conscientemente produzido e controlado pelos
agentes”. A teoria da prética de Bourdieu opoe—se em especial a0 formalismo oujuridismo de teorias
segundo as quais a 21930 social é fruto da obediéncia exclusiva a regras, codificadas em leis on n50.
Nesse sentido, propoe que mesmo em sociedades altamente codificadas, reguladas oficialmente por
normas e leis, a acao social é principalmente resultado do habitus, principio gerador que orienta
a relacao dos agentes corn 0 mundo social por meio de um sentido prético irredutivel ‘as regras.
Assim, a observacao de regularidades em determinadas préticas, como nas aliancas
matrimoniais do campesinato do Béarn na Franca, nao significa obediéncia a regras, mas

308 REGRA
agoes (no caso, de reproduqao social) cujas légicas 1150 se ajustam necessariamente a normas
explicitas ou implicitas. Em muitos casos, inclusive, as préticas sociais raramente condizem
com as regras concebidas como norma geral ou mesmo como conduta exemplar. O casa-
mento com a prima paralela patrilinear na sociedade béarnaise fornece born exemplo de
uma estratégia matrimonial corrente em desacordo com as regras oficiais de parentesco. A
noqao boardieusiana de estratégia aparece assim como forma de objetivar cientificamente
as recorréncias nas formas de agao que, independentemente de seu acordo com as regras,
somente séo inteligiveis ‘a 1112 dos diferentes interesses dos agentes, tais como a manutengéo
biolégica da linhagem on a garantia de transmissao do patrimonio.

1.74. REGRAS DA ARTE (AS): GENESE E ESTRUTURA DO CAMPO LITERARIO


(Les reg/e5 de I’art: genése et structure du Champ littéraire)
Gisele Sapiro

a
BOURDIEU, P. As regras da arte: génese e estrutura do campo literdrz'o. Sao Paulo: Companhi
das Letras, 1996, '

Esse livro, publicado em 1992, analisa o modo de funcionarnento do campo literério. A


primeira parte traga o processo histérico de autonomizagao do campo literario no século XIX
e, mais especificamente, sob o Segundo Império francés (1852—1870), na época de Flaubert
e de Baudelaire. A segunda parte propoe os alicerces de uma ciéncia das obras, enquanto a
terceira se concentra nas condiqoes sociais da recepgao estética.
Bourdieu comegou a trabalhar sobre o campo literario desde a década de 1960, com seu
com
artigo “Le marché des biens symboliques” (1971). A pesquisa sobre Flaubert toma forma
“L’Invention de la vie d’artiste” (1975), enquanto ele desenvolv e sua teoria do campo literario
em Varios textos que figuram na obra Questions de sociologie (1980). O livro refine textos
nte
de diferentes periodos (dos anos 1960 ac inicio da década de 1990) em versoes amplame
retrabalhadas e sob titulos, as veies, diferentes (por exemplo, o capitulo intitulado “Le marché
mas
des biens symboliques” nao retoma o artigo anteriorrnente publicado com esse titulo,
sim aquele originalmente intitulado “La production de la croyance”, de 1977).
As regras da arte apresenta, a guisa de prologo, uma analise de L’Education sentimentale
em que Bourdieu mostra que essa obra pode ser lida como uma autosocioanélise elaborada
dois
por Flaubert. Esse estudo aprofundado traz a luz a estrutura oculta do livro que opoe os
polos do campo do poder, ou seja, o polo da arte e 0 da politica (simboliz ado pelo Sr. Arnoux,
do
0 marchand de arte), por um lado e, por‘outro, o polo da politica e dos negécios (encarna
a
pelos Dainbreuse). O protagonista do romance, Frederic Moreau, herdeiro que se recusa
herdar a heranga familiar sem romper realmente com seu meio, encon’cra— se dividido entre
, ele
esses universos. Incapaz de fazer escolhas, como é ilustrado por suas relaqoes amorosas
sua
exemplifica a indeterminagao social — uma das possibilidades que ameagava Flaubert em
pela literatura . Corn seu personag em, o
juventude, se ele nao tivesse optado de corpo e alma
no campo do
escritor compartilha uma ambivaléncia em relagao a todos aqueles que gravitam
ea
poder. Para Bourdieu, a tentativa de controlar os efeitos incontrolaveis dessa ambivaléncia

REGRAS DA ARTE (AS): GENESE E ESTRUTURA D0 CAMPO LITERARIo 309


(Les rég/es de l’art: genése of structure du champ-Iittéraire)
preocupacao correlata de afirmar a distancia para com seus personagens estao na
origem de
um conjunto de tracos estih’sticos de Flaubert, como a discricao do narrador, o encadea
mento
dos estilos direto, indireto e indireto livre, além do uso ambiguo da citacao.
N0 amago do romance, a questao da arte e do dinheiro é aquela que permeia o
campo
literério'nessa época, momento de desenvolvimento espetacular do capitalismo
da edicao
como resultado da industrializacao da imprensa e do texto impresso. A primeira
parte do
livro mostra como se formou, em meados do século XIX, um circuito de produca
o restrito,
baseado no reconhecimento dos pares, contra o circuito da grande producao
regido pela
logica de mercado e pelo volume de vendas. Ao impor o prirnado do valor simbélic
o sobre o
valor mercantil, esse circuito restrito conseguiré derrubar os principios que regern
o espaco
social e o mundo economico. A esse proposito, Bourdieu fala de uma “econom
ia as avessas”,
que serve de suporte a autonomia relativa do campo literario em relacao as condicio
nantes
sociais. A rentabilidade de curto prazo dos best-sellers, o circuito restrito opoe
a consagracao
no longo prazo e a “canonizacao”, ou seja, a integragao das obras que se tornaram “classica
s” no
patrimonio cultural nacional e universal, principalmente, por intermédio do sistema
escolar.
Essa reviravolta foi operada sob o Segundo Império (1852-1870) pelos defensor
es da “arte
pela arte”, que se opunham tanto a “arte social”, ou seja, :‘1 arte engajada, quanto
‘a escola do
“born senso”, a qual reunia os autores do polo mundano do campo literério, proximo
s das
fracoes dominantes da classe dominante. Bourdieu analisa as modalidades da conquist
a da
autonomia através dessa dupla ruptura efetuada, em particular, por Flaubert e
Baudelaire.
A este ultimo, ele atribui o qualificativo de “nométeta” no sentido ern que ele instaura
um
novo nomos no campo literario, caracterizado pela independéncia em relacao
as poténcias
externas, economicas ou politicas, e pela anomia. Ao se libertarem da demand
a burguesa
para afirmar a primazia da estética pura, associada a urn ethos que combina
rigor do tra-
balho e anticonformismo, Flaubert e Baudelaire operam uma revolucao simbélic
a que teré
consequéncias duradouras no campo literario.
Na segunda parte, Bourdieu mostra como o recurso ao conceito de
campo permite su-
perar a alternativa entre analise interna e analise externa das obras. Ele discute
de maneira
aprofundada as teorias literérias que, desde os formalistas russos até os estrutur
alistas,
estao centradas na analise formal sem explorar as condicoes sociais de sua produca
o. Critica
também o reducionismo da tradicao marxista que transforma as obras em
meros reflexos
do mundo social, sem questionar o efeito de refracao exercido pelas logicas
proprias do
campo literério. A teoria do campo baseia~se na ideia de uma homologia
entre o espaco das
posicoes ocupadas no campo e o das tomadas de posicao, ou seja, das opiniées
preconcebi~
das de ordem estética (e, muitas vezes, politica). A ciéncia das obras requer,
portanto, trés
operacoes: 1) a analise da posicao do campo literario no seio do campo do poder
(seu grau
de autonomia) e sua evolucao em diferentes conjunturas sécio-histérica
s; 2) a analise da
estrutura do campo literério segundo as relacoes objetivas entre os individu
os e 03 grupos
que nele concorrem para a aquisicao do capital especifico; 3) a analise do
habitus desses
individuos e de suas trajetorias sociais, em que o efeito de campo nao se exerce
de maneira
rnecanica, mas é mediado pelo espaco dos possiveis, tal como ele se apresen
ta aos agentes
em funcao de suas disposicoes. Esse procedimento se aplica também aos
outros campos
de producao cultural.

31 0 REGRAS DA ARTE (AS): GENESE E ESTRUTURA D0 CAMPO


LITERARID
(Les rég/es de /’art.' genése et structure du champ Iittéraire
}
E, alias, ‘a percepgao das obras de artes plésticas que é dedicado um dos capitulos da terceira
. parte. Interregando-se sobre a génese historica da estética pura segundo Kant, e sua teoria do
prazer estético desinteressado, e sobre a materializacao dessa relacao estética em instituigoes '
come 05 museus, Bourdieu lembra o anacronismo que consiste em fazer como se esse mode de
recepcao tivesse existido desde sempre. Ao contrario da maioria dos trabalhes de historia da
arte que cometem esse erro, a obra de Michael Baxandall sobre L’Giil du quattrocento ofere—
ce, de acerdo com Bourdieu, um modelo alternative, mostrando come esse olhar é modelado
pela religiao, pela educacao e pelos negocios, ou seja, pelas disposigoes e pelos esquemas de
percepcao proprios ao habitus mercantil dessa época. No ultimo capitulo, Bourdieu propoe
“uma teoria em ate da leitura” através da anélise do conto de Faulkner, “A rose for Emily”. Ao
ludibriar as expectativas do leitor, ao embaralhar as referéncias temporais, Faulkner convida~o
a empreender um precedimento reflexive sobre a leitura e sobre a diferenca entre uma leitura
ingénua, crédula, e uma leitura erudita, retrospectiva, capaz de reconstituir as pistas que levam
a reviravolta final, a saber, a descoberta do assassinate perpetrado per Miss Emily Grierson.
Bourdieu conclui o livro pela abordagem do conceito de illusio, que designa a adesao,
a crenca no jogo caracteristica dos universes artisticos, ou seja, a propensao a levar a sério
as ilusoes da arte que foram personificadas nas figuras de Dom Quixote, Emma e Frédéric. ’
No post-scriptum da Obra, Beurdieu deixou seu apelo “Pour un corporatisme del’univer—
sel”, que visava reunir es intelectuais do mundo inteiro para format uma “internacional dos
intelectuais” (conforme o titule original da conferéncia que pronunciou em Turim, em maio
de 1989, publicada na revista Politis, em 1992) 011 um “intelectual coletivo”, comprometido
com a defesa da autonomia da producao cultural e do espirito critico face‘as ameacas exercidas
pelos noves imperatives economicos e tecnocraticos.

Referéncias
BOURDIEU, P. Champ intellectuel et projet créateur. Les Temps Modernes, n. 246, p. 865—906,
nov. 1966.
BOURDIEU, P. Le marché des biens symboliques. L’Anne’e Seciologique, v. 22, p. 49-126, 1971.
BOURDIEU, P. L’Inventien de la vie d’artiste. ARSS, v. 1, n. 2, p. 67—93, 1975.
BOURDIEU, P. La production de la croyance: contribution 2‘1 une écenomie des biens symboliques.
ARSS, v. 13, p. 3-43, 1977.
BOURDIEU, P. The Field of Cultural Production, 01': The Economic World Reversed. Poetics, v. 12,
11.4—5, p. 311-356, 1983.
BOURDIEU, Pierre. Pour une internationale des intellectuels (Turin, mai, 1989). Politics, 1, 1992. p. 9—15.

175. REPONSES: POUR UNEANTHROPOLOGIE REFLEX/V5


Maria Amdlia de Almeida Cunha

BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Re’ponses: pour une anthropologie re'flexive. Paris: Seuil, 1992.

Obra publicada originalmente em 1992, escrita per Pierre Bourdieu e Lo‘ic Wacquant, o
livro teve ampla repercussao na cena intelectual, recebendo traducao para diversas linguas e

REPONSES.’ POUR UNEANTHROPOLOGIE REFLEXIVE 3”


sendo editado em varios paises: Estados Unidos (1992), Italia (1992), Holanda (1992), Noruega
(1993), Bulgaria (1993), Espanha (1994), Catalunha (1994), Alemanha (1996), Polénia (2001),
Turquia (2003), Iapéo (2004) e Lituania (2004). A apresentacéo e a introducao foram escritas
por Wacquant, sendo que a obra se compoe de duas partes distintas, mas complementares. A
primeira — que toma a forma de perguntas e respostas —- tem seu eixo no célebre Seminério de
Chicago, ocorrido no inverno de 1987-1988, onde Bourdieu dialogou corn estudantes e pesqui-
sadores daquela universidade. Foram, alias, suas “respostas” aos participantes do “Graduate
Workshop on Pierre Bourdieu” que deram nome a0 livro. Essa primeira parte oferece ao leitor
aocasiao de voltar, de maneira sintética, aos trabalhos do sociélogo publicados na década de
1980, como Homo academicus, (1984) e La noblesse d ’Etat (1989). O conjunto de perguntas
e respostas que estruturam essa parte permite compreender os principios que governam a pra-
tica cientifica do autor, entre‘eles, a missile imputada a0 sociélogo de desnaturalizar o mundo
social, isto é, de tentar combater os mitos que alimentam o exercicio do poder e perpetuam a
dominacao. Alérn disso, explicita a maneira como o autor produz, organiza e coloca em obra
sua teoria. Por isso Wacquant (R, 7) afirma, na apresentacao, que o livro pretende oferecer a0
leitor urn espirito em acdo, ou seja, a intengao é revelar o modus operandi da sua sociologia
e nao o seu opus operatum. Nesse dialogo, Bourdieu faz a revisao de alguns de seus trabalhos,
explicitando sua prética de pesquisa e refletindo teoricamente sobre essa prética, em termos
claros e acessiveis a0 leitor. A necessidade da logica reflexiva sobre as categorias que ordenam
nosso pensamento justifica-se, segundo ele, porque é a reflexividade que nos permite descobrir 0
social no interior do individual, 0 universal escondido no mais profundo do particular. A logica
da prética e da reflexao teérica sobre a pratica faz da sociologia uma tentativa de transformar
o olhar através do qual nos construimos o mundo social (R, 42).
A segunda parte da obra consiste na transcricao de um seminério de pesquisa realizado
em outubro de 1987 na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), centrado em
questoes metodologicas e epistemolégicas da obra do autor (CORCUFF, 1993, p. 293). Nesse
seminério, segundo Wacquant, o exercicio de Bourdieu néo foi 0 de propor uma teoria
precisamente definida ou um conjunto finito de conceitos, mas o derefletir acerca de uma
disposicao generalizada a criatividade sociologica. Para tanto, o autor inverte a légica pedago—
gica: seu ensinamento vai da aplicacao prética aos principios, segundo o seu modo de pensar
gerativo e (anti) intelectualista, expresso em sua critica a filosofia meramente especulativa.
A busca incessante do autor, explicitada no modo como organiza o seu pensamento no li—
vro, é a de exercitar a reflexividade, procurando transcender as diversas antinomias que,
segundo ele, minam as ciéncias sociais: o antagonismo aparentemente intransponivel entre
os modos de conhecimento subjetivista e objetivista, a separacao analitica do simbélico e
do material, enfim, o divércio persistente entre teoria e empiria (R, 14). Segundo Bourdieu,
essas oposicées artificiais nao derivam de operacoes légicas e/ou epistemologicas constitu—
tivas da prética cientifica, mas Sim de disputas no interior do préprio campo cientifico para
erigir concepcoes particulares em “verdadeiras” praticas cientificas universais (MARTINS,
1994). E pensando em uma sociologia relacional que Bourdieu analisa o papel e o alcance da
ciéncia do social, ciéncia esta que deve ter a reflexividade como fonte de diferenca cognitiva
e também sighificativa na conducao de qualquer pesquisa. Pensar relacionalmente é pensar
dialeticamente entre as estruturas objetivas que conformam o espaco social e as estrutnras

312 RL-‘PONSES: POUR UNEANTHROPOLOGIE REFLEX/V5


w.’
incorporadas no corpo dos agentes sociais em forma de disposicoes e conhécimentos praticos
do mundo (ACEVEDO, 1998), superando o risco das falsas antinomias presentes no campo
cientifico. Para Bourdieu, quanto mais os individuos tomam consciéncia do social no interior
de 51 mesmos, assegurando uma matriz reflexiva de suas categorias de pensamento e acao,
menos chances eles tém de agir de acordo com a exterioridade que os habita. Essa espécie de
vigilancia reflexiva se impoe como preambulo imprescindivel da prética cientifica. Segundo
Corcuff (1993, p. 295), este talvez seja urn dos pontos altos da obra de Bourdieu, a saber, a
tomada de posicao em favor da reflexividade sociolégica, “objetivacao do sujeito objetivante”,
neutralizando os efeitos das determinacoes sociais e da posicao ocupada pelo cientista no
espaco social sobre a construcao de seus objetos de investigacao. O conceito de reflexividade
explicitaria, assim, a relacao dialética entre as estruturas Objetivadas e as disposicoes pelas
quais estas estruturas se atualizam reflexivamente (COUTURIER, 2002). Bourdieu defende
de maneira intransigente a autonomia da pratica sociolégica, uma vez que a disciplina deve
prezar por sua independéncia, sem servir a nenhum grupo ou instituicao, pois sua funcao é
compreender o mundo social, 21 comecar pelas relacoes de poder nele existentes (MARTINS,
1994). Acrescente-se, por fim, que o 11e contém ainda, corno aparato final, urna lista, em
ordem cronolégica, dos escritos de Bourdieu e colaboradores, evidenciando o percurso de
uma trajetéria intelectual extensa, rica e prolifica, compreendida entre 05 anos 1958 e 1990.

Referéncias
ACEVEDO, S A. Habitus cientifico: el oficio incorporado. Epoca II, Estudios sabre las Culturas
Contempora’neas, n. 7, p. 165—168, jun. 1998 (Resenha).
CORCUFF, P Revue Francaise de Sociologie,v. 34, n. 2, p. 293 —296 1993. (Resenha).
COUTURIER, Y. Les réflexivités de l’oeuvre théorique de Bourdieu: entre méthode et théorie de la
pratique. Esprit Critique, v. 4, 11. 3, mars 2002.
MARTINS, C. B. Réponses. Pour une anthropologie réflexive. Revista Brasileira de Ciéncias Sociais,
v. 26, n. 9, p. 179-181, 1994. Disponivel em: <http2/lwww.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00__26/
rbcs26~resenhas.htm>. Acesso em: 14 set. 2011.

Ana Maria Fonseca de Almeidu

Na obra de Pierre Bourdieu, reproducao é uma nocao que permits indagar sobre aquilo
que permite que “a ordem estabelecida, corn suas relacoes de dominacao, sens direitos e
suas imunidades, seus privilégios e suas injusticas, salvo uns poucos acidentes histori-
cos, perpetue—se apesar de tudo tao facilmente, e que condicoes de existéncia das mais
intoleraveis possam ser permanentemente vistas como aceitaveis e até corno naturais”
(DMp, 7). A questao foi trabalhada cumulativamente desde os estudos sobre a Argélia e o
Béarn até os filtimos escritos sobre a sociedade francesa, dando origem a um sofisticado
' argumento, cujos pontos principais podem ser encontrados nos livros A reprodugao, La
noblesse d ’Etat, Meditagoes pascalianas 6 nos cursos do Collége de France publicados
postumamente sob o titulo Sur l Etat.

REPRonuco 313
O argumento dialoga com as teorias classicas sobre o poder propostas por Marx, Durkheim
e Weber. Do primeiro, Bourdieu retérn a ideia de que reproducao social refere-se ‘a reproducao
das relacoes entre as classes. For reproducao social, entende—se a reproducao das relacoes de
forca que estruturam as relacoes entre os grupos sociais. A partir de Durkheim, acrescenta
que a reproducao se da tambe’m pela reproducao do sentido, que, contra Durkheim, é vista
come 0 resultado de uma luta entre as classes para imposicao do sentido legitimo. Por fim,
propoe que a eficacia do reforco simbélico as relacoes de dominacao reside, por um lado, a
partir de Weber, no reconhecimento, pelos dominados, da legitimidade da dominacao, um
dos resultados da luta pela imposicéo do sentido e, por outro, para além de Weber e de novo
com Marx, no desconhecimento das relacoes de forca que fundarn tal legitimidade.
Para além disso, o argumento recusa a alternativa entre estruturalismo e interacionismo
ou, mais precisamente, entre “saber se 05 sinais de submisséo que os subordinados oferecern
continuamente a seus superiores fazem e refazem continuamente, sern cessar, a relacao de
dominacao on se, ao inverso, a relacao objetiva de dominacao impoe os sinais de submissio”
(BOURDIEU, 1994, p. 3). Supoe, entao, que toda sociedade existe no tempo porque esta apoiada
sobre “a relacao entre dois principios dinamicos, desigualmente importantes segundo a so-
ciedade em questao. Um deles é inscrito nas estruturas objetivas [...] e outro, nas disposicoes
[que os agentes apresentam com relacao] a reproducao” (BOURDIEU, 1994, p. 3). A reproducao
social é, nessa logica, o resultado das estratégias de reproducéo que os individuos imple-
mentam a partir do encontro entre essas duas dimensfies! >
As famflias 3510 as autoras dessas estratégias, que podem se dar em dominios muito distintos. p
Elas podern ganhar a forma de um “investimento biolégico”, como é o caso daquelas que dizem
respeito a fecundidade e que guiam as decisoes de se ter um maior ou menor ni’imero de filhos.
Podem também estar associadas a estratégias sucessérias, que orientam, por exemplo, a definicfio
do herdeiro, cujo objetivo é evitar grandes perdas no processo de transmissao do patrimonio.
Podem se apresentar tarnbém como estrate’gias educativas elou corno estratégias de investimento
econornico. Podem, iguahnente, assumir a forma de investimentos sociais — para estabelecer e/ou
cultivar relacoes que possarn ser mobilizadas em algurn momento. Podem ser, por fun, estratégias
de investimento simbélico, que visam conservar ou aumentar 0 capital de reconhecimento. As
estratégias sao pensadas como urn sistema. Isso significa que a maior ou menor énfase atribuida a
uma pode ser efeito de operacoes de compensacao com relacao a outra. Estratégias matrimoniais
podem compensar estratégias de fecundidade malsucedidas, assim como estratégias de investi~
mento economico podem compensar estratégias educativas que nao deram certo.
Apenas urna “analise historica das estratégias que, em contextos muito diferentes, agen—
tes [sociais] muito diferentes implementam” para garantir a continuidade que sua posicao
dominante oferece; portanto, condicoes para se compreender como se dé a reproducao social
(BOURDIEU, 1994, p. 5). Analisar um sistema de estratégias exige, por urn lado, examinar a
composicao do patrimonio que esta sendo transmitido, descrevendo muito precisamen’re 0
peso relativo nesse patrimonio das diferentes espécies de capital — cultural ou economico,
social e simbélico, por exemplo. Por outro, é preciso levar em conta a dimensao institucional
que enquadra tais estrate’gias. Bourdieu refere—se a essa dimensao como o “estado dos meca—
nismos de reproducao” nurn momento dado. Tais mecanismos sao, entre outros, o mercado,
em especial, o mercado de trabalho; o direito, principalmente o direito de heranca e as leis

314 REPRoouc/io
de propriedade; a instituicao escolar, notadamente a organizacao do sistema de ensino e as
formas de obtencao e valorizacao do diploma, etc. A importancia desses mecanismos reside
no fato de que sao eles que definirao tanto os custos do investimento familiar quanto o lucro
obtido pelo grupo em retorno.
Essa anélise comparada foi'o que permitiu a Bourdieu revelar a importancia que o sistema
de ensino e, logo, 0 capital cultural, havia assumido nas estratégias de reproducao dos grupos
dominantes nas sociedades altarnente diferenciadas onde se desenvolveu essa instituicao
particular, 0 Estado burocratizado. Tal importancia deriva diretamente do longo processo
que deu origern ‘a emergéncia do estado, carac'terizado como urn “processo de concentracao de
diferentes espécies de capital”, particularmente 0 capital de forca fisica, 0 capital economico
e, por fun, 0 capital cultural (BOURDIEU, 1993, p. 51). Trata—se ai de dinamicas estreitamente
relacionadas. A concentracao do capital de forca fisica, que corresponde a0 surgimento pro»
gressivo do exército e da policia, depende da concentracao de capitaleconomico, concretizada
numa estrutura fiscal complexa, que, por sua vez, depende de um capital informacional de

-
que 0 capital cultural é um tipo particular — para ser gerida. A condicao de sucesso dessa
monopolizacao progressiva reside na concentracao de um outro tipo de capital — 0 capital
simbolico objetivado, presente, por exemplo na prerrogativa, apropriada pelo Estado, da
nomeacao e da certificacao. , , . , , , ,'
Essas mudancas provocam urna transformacao nas estratégias de reproducao. O cresci—
mento em importancia do capital cultural, por exemplo, corresponde ‘a passagem de uma logica
dinastica, fundada num modo de reproducao familiar, a uma logica burocratica, fundada
sobre urn modo de reproducao “com componente escolar” (BOURDIEU, 1994, p. 10). O processo
de construcao do Estado é, a0 mesmo tempo, um processo de desnaturalizacao associado a0
rompimento progressivo com as lealdades de base familiar. Com a desvalorizacao dos lacos
familiares, o diploma deixa de ser “um atributo estatutario” para se tornar um bilhete de
entrada (BOURDIEU, 1994, p. 10). Estao reunidas, assim, as condicoes para que o sistema de
ensino possa se tornar urn elemento fundamental dos processes de reproducao social.
0 modo de reproducao com componente escolar opera a partir de uma logica estatistica:
“a escola so pode contribuir para a reproducao de uma classe (no sentido légico do termo)
se sacrifica alguns dos seus membros que poderiarn ser poupados se estivesse em vigor um
modo de reproducao mais controlado pela familia” (BOURDIEU, 1994, p. 10). Além disso, ela
so pode desempenhar essa funcao se as criancas menos providas de capital cultural estejam,
e 1150 por acaso, mais inclinadas ‘a autosselecao. Por conseguinte, o sisterna escolar so pode
desempenhar suas funcées de reproducao enquanto essa funcao for dissirnulada.
Vé-se, dessa maneira, como afirma mais explicitamente Passeron (1986), que o modo
de reproducao corn componente escolar so pode funcionar enquanto a ilusao meritocratica
estiver produzindo plenamente seus efeitos sociais e simbélicos.

Referéncias
BOURDIEU, P. Esprits d’Etat. ARSS, v. 9697, p. 4962, 1993.
BOURDIEU, P. Strategies de reproduction et modes de domination. ARSS, v. 105, p. 3-12, 1994.
PASSERON, L-C. Hegel ou le passager clandestin. La reproduction social et l’Histoire. Esprit, p. 63-81,
juin 1986.

REPRooucAo 315
1.77. REPRODUQAO (A): ELEMENTOS PARA UMA TEORIA D0 SISTEMA DE ENSINO
(La reproduction: é/émenrs pour une rhéorie du systéme d’ense/gnement)

Ana Maria Fonseca de Almeida

BOURDIEU, P; PASSERON, I.—C. A reprodupa'o: elementos para uma teoria do sistema


de ensina
Rio de Ianeiro: Francisco Alves, 1975.

Livro escrito por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reproducdo apresenta exten-
sivamente a teoria da violéncia simbélica, hipétese construida para explicar a contribui
cao
da escola para a reproducao social. Publicado na Franca em 1970 e traduzido no Brasil pela
primeira vez em 1975, apresenta as conclusoes parciais de um percurso coletivo
de pesquisa
sobre o sistema de ensino que, desenvolvido desde o im’cio da década de 1960 no Centre de
Sociologie Européenne, havia dado origern a varios artigos e livros, entre os quais, Les
héritiers (1964).
A reproducdo é fruto de um contexto particular que colocou a educacao escolar na linha de
frente dos debates académicos e politicos. Por urn lado, a derrota 11a Segunda Guerra Mundial e o
lancamento do Sputnik pela Uniao Soviética em 1957, em plena guerra fria, alimentava na Franca
um discurso tecnocrético sobre o rendirnento escolar. Por outro, crescia, desde o im’cio do século
XX, a percepcao das desigualdades educacionais como um grave problema social. Decorrente,
pelo menos em parte, das transformacées na concepcao dejustica social advindas da revolucéo
russa, essa percepcao era agucada pelas pressoes originadas das mudancas demogréficas por que
passava a sociedade francesa no pés-guerra, ern especial a chegada da geracao do baby boom aos
anos finais do ensino primério, ao longo da década de 1950, forcando o aumento de matriculas
no ensino secundario. Ela era alimentada também por pressoes das famflias dos grupos me’dios
pelo alongarnento da escolarizacéo dos seus filhos, num contexto em que o desenvolvimento
do setor terciario e o avanco da tecnologia permitiam que as credenciais escolares pudessem
ser vistas como bilhetes de entrada para ocupacoes rnais rentéveis.
Tudo isso ajuda a explicar a difusao de um sentimento de “crise da educacao” que a am-
biguidade das reformas emanadas do gaullismo nao ajudava a superar, na medida em que
buscava ampliar simultaneamente a formacao de elites técnicas e cientificas e o acesso a0
ensino secundario e superior aos grupos médios até entéo excluidos das trajetorias escolares
de longa duracao. Tais reformas deparavam-s'e com a oposicéio dos professores, sindicatos e
partidos de esquerda. Esses ultimos, na auséncia de um projeto proprio, apoiavam~se sobre
o plano de reforma elaborado por dois eminentes intelectuais ligados ao Partido Comunista
Frances, Paul Langevin e Henri Wallon, ao final da ocupacao nazista, segundo o qual a “de-
mocratizacao do ensino” necessaria a implementacao da “justica na escola” “deve ser coman~
dada” nao rnais pela classe social, mas pela “capacidade” individual de “preencher a funcao”.

Concretamente, A reproducdo pouco acrescentou a demonstracao ja amplamente conhecida
e debatida da desvantagem das criancas oriundas dos grupos mais desfavorecidos no sistema
de ensino;Na Franca, por exemplo, isso havia sido objeto dos estudos coordenados por Alain
Girard no ‘Institut National d’Etudes Démographiques (INED), cujos resultados estavam
sendo publicados desde 0 final dos anos 1950, e da pesquisa coletiva sobre os estudantes das

316 REPRODUQl-XO (A): ELEMENTOS PARA UMA TEORIA D0


SISTEMA DE ENSINO.
(La reproduction: éléments pour une théorie du systéme d'enseign
ement)
N“);
« a,‘
faculdades realizada no Centre de Sociologie Européenne sob a direeao de Bourdieu e publi~
cada em Les héritiers em 1964. A demonstraeao havia sido feita também em outros paises: nos
Estados Unidos, pelo Relatério Coleman, encomendado pelo US. Office ofEducation em obedien-
cia ao Civil Rights Act de 1964 e publicado em 1966; na Gra-Bretanha, uma série de relatérios
encomendados por orgies do gorerno - Early Leaving (1954), Crowther (1959), Robbins (1963).
A contribuieao particular do livro encontra-se na ambieao em “tratar como urn objeto
sociolégico aquilo que se apresentava no debate pfiblico corno um n6 inextrincavel de proble-
mas de politica pedagégica” (PASSERON, 2007). Ale’m disso, ele marca a posieao singular do
grupo de pesquisadores reunidos no Centre de Sociologie Européenne frente aos debates
sobre a reprodueao social que mobilizavam autores de inspiragao marxista. O livro apresenta
uma hipétese alternativa a que Althusser vinha desenvolvendo em seu seminério na Ecole
Normale Supérieure, condensada no artigo “Idéologie et appareils idéologiques d’Etat”,
tambe’m publicado em 1970. Por firn, 0 lie se alimenta da decepeao dos autores com a eleieao
do Plano Langevin—Wallon como orientador do projeto de reforma educacional da esquerda.
Essas rupturas sao expressas no livro ern diferentes niveis.’ Em termos formais, elas
aparecem na concisao brutal do titulo, na ambiguidade da epigrafe, cuja reprodueao do
poema “Le pélican”, de Robert Desnos, parece propor a revoluqao (“o pelicano de Jonathan
pée um ovo, de onde sai um outro pelicano que, por sua vez, 1369. um ovo de onde sai outro
pelicano e isso pode continuar por muito tempo se nao se fizer antes uma omelete”), mas a
partir de um poeta cuja notoriedade deriva tambérn do seu rompimento com o movimento
surrealista no momento em que este se aproxima do partido comunista, no final dos anos
1920. Finalmente, mas nao menos importante, elas aparecern também no formato do livro,
composto por duas partes muito desiguais. A primeira refine uma série de “proposigoes” a
que se seguem observaqées complementares, “escolios”, convidando o leitor a associé~lo a
certos tratados filoséficos, apenas para desfazer essa impressao na segunda parte, quando
resultados substantivos de pesquisa empirica séo apresentados como apoio e condieao das
afirmaeoes adiantadas anteriormente.
Em termos substantivos, o livro desenvolve a teoria da violéncia simbélica como teoria da
aeao pedagégica, marcando uma ruptura substantiva com “todas as representaeées espontaneas e
todas as concepgoes espontaneistas da agao pedagégica como agao nao violenta” (LR, 11). Focaliza
fundamentalmente 0 exercicio da aeao pedagégica e 03 arranjos institucionais que permitem tal
exercicio, em contraste, por exemplo, corn La noblesse d’Etat, que examina aqueles que a sofrem.
A primeira parte do livro apresenta, ainda segundo os autores, o resultado de um “esforeo
para constituir, nurn sisterna passivel de controle légico, por urn lado, proposigoes que foram
construidas para e pelas proprias operagées de pesquisa en que apareceram como logicamente
necessérias para fundamentar seus resultados e, per outro, proposigoes teéricas que permitiram
construir, por dedueao ou por especificaeao, as proposieoes diretamente passiveis de controle
empirico” (LR, 9). A segunda parte, por sua vez, refine um conjunto de quatro artigos construidos
em torno de analises empiricas que devem ser consideradas, segundo os autores, “como uma
. aplicagao, a um caso historicamente determinado, de principios que, por sua generalidade,
autorizariam outras aplicaeoes, ainda que essas analises tenham servido de ponto de partida
a construeao” dos préprios (LR, 9). Cada artigo aborda uma dimensao do sistema de ensino,
tratando sucessivarnente suas fungées de comunicagao, de inculcaeao de uma cultura legitima,
E
E REPRODUCAO (A): ELEMENTOS PARA UMA TEORIA D0 SISTEMA DE ENSINO.
317
(La reproduction: é/éments pour une théorie du systéme d'enseignement}
de selecao e, por fim, de legitimacao. Eles permitem explicitar o sistema de relacoes
que une “o
sistema de ensino e a estrutura das relacoes entre as classes sociais” (LR,
9), ponto central da obra.
Sua ambicao, como explicam os autores logo no preambulo, é indicar, por
urn lado, “a
unidade teorica de todas as acoes de imposicao simbolica (LR, 9), seja ela exercida
pelo curau-
deiro, pelo feiticeiro, pelo padre, profeta, propagandista, professor, psiquiat
ra, psicanalista
e, por outro lado, “o pertencirnento dessa teoria das acoes de violencia simbélic
a [...] a uma
teoria geral da violencia e da violéncia legitima” (LR, 9).
Objeto de recepcao controversa na Franca e em outros paises, inclusive no Brasil,
a teoria
continua a ser intensamente mobilizada nos estudos sobre a escola.

Referéncias
PASSERON, I.-C. Que reste-t'il des Héritiers et de la Reproduction (1964497
1) aujourd’hui? Questions,
méthodes, concepts et réception d’une sociologie de l’éducation. Sociological Research
Online, v. 12,
n. 6, p. 13, 2007.

178. RITO (de instituigéo)

Paula Montero

Na antropologia politica de Pierre Bourdieu os ritos sao tratados como préticas simbéli-p
cas aptas a conferir legitimidade social a coisas e pessoas. Nesse sentido, os ritos religiosos
representam apenas um caso particular de todo rito social. Retirando o conceito
do campo
da sociologia religiosa onde ele foi tradicionalrnente elaborado e aplicado, o rito se torna,
na
obra de Bourdieu, urn operador analitico-chave para a compreensao do funcionamento
de
certas formas de poder em nossa sociedade. ,
Levi-Strauss (1971, p. 600602) ja havia definido os ritos corno atos repetitivos vincuiado
s aos
mitos que tém por funcao condensar de maneira concreta e unitéria um sistema de ideias e de
representacoes. Ao subtrair gestos e objetos de sua manipulacao rotineira, o ritual promove
uma
linguagern corn forte eficécia simbolica, isto é, dotada de capacidade de promover a conviccao
em sua habilidade para produzir efeitos esperados sobre o mundo. A eficacia simbélica
reside
menos no que dizem esses gestos do que no modo como eles dizern. Segundo Levi-Strauss, todo
rito lanca mao de dois tipos de procedimento: 0 de divisao — atribuicao de valores discrimin
ativos
‘as menores nuances no interior de uma classe de objetos ou tipos de gestos — e 0
de repeticao
de mesma formula infinitas vezes. Para Levi-Strauss, o recurso sistemético do rito
a esses tipoS
de procedimentos complementares explica—se pela oposicao entre as formas de
pensar do mito,
mais abstratas, e do rito, mais voltadas para a fluidez do vivido. Bourdieu inverte esta
oposicao
levisstraussz'ana entre Vida e pensamento na qual o rito representa apenas o “abastardamento
consentido do pensamento quando submetido a servidéo da Vida” (LEVPSTRAUSS,
1971, p. 603)
e investe positivamente a légica das préticas das mesmas operacoes mentais inerentes ao rito.
As praticas rituais passam a ser compreendidas corno o produto do senso prético
e nao de um
sistema abstrato e inconsciente. Em seu livro Ce queparler veut dire (1982), Bourdieu afirma
que dividir ou classificar é pratica inerente a0 senso comum e, por mais arbitréria
s que sejam

318 RITO (de instituicéo)


a

as classificacoes, sempre visam a producao de efeitos sociais e? consequentemente, contribuern


para designar aquilo que descrevem. A linguagem tern o poder de instituir o mundo porque,
ao nomeé—lo, contribui para a estruturacao da percepcao do mundo.
. Essa capacidade que as praticas de categorizacao tém de produzir efeitos sociais esta no
cerne da teoria da magia de Bourdieu: “fazer coisas com palavras” na versao sintética que
o autor propée da teoria linguistica de John L. Austin sobre os efeitos performéticos dos
enunciados (PC, 159). No entanto, se a analise do tipo austiniano tem para Bourdieu 0 me-
rito de subordinar a questao das propriedades retoricas do discurso a tese de sua eficacia, a
investigacao desses efeitos nao pode encerrar—se, segundo ele, nos limites dalinguistica.1sto
porque a eficacia nao esta nem no formalismo do rito, nem na metalinguagem do analista que
,
reproduz, sob a forma de paréfrases, as representacées nativas; ela esta fundada, ao contrario
nas condicoes sociais que dao poder a palavra “ritua ”. O poder simbolico da palavra — qualidade
e
que a torna apta a constituir o dado pela sua simples enunciacao — reside em sua habilidad
é necessar io, no
em “fazer crer”. Para obter a persuasao implicada em toda forma de crenca,
s. A
entanto, respeitar certas regras de verossimilhanca ou de aceitabilidade dos discurso
o de toda classifica cao. A crenca
mais importante delas é deixar na obscuridade o arbitrari
em
depende da confianca na autenticidade do sistema de categorizacao posto em operacao
poder de
diferentes campos sociais. Toda exibicao do artificialisrno dessa construeao afeta seu
o oficiante de ser
convencimento e, consequentemente, sua eficécia simbélica, arriscando~se
regras
acusado de manipuladorou Charlatao. A segunda, nao menos importante, é aceitar as
palavras
tacitas do jogo do reconhecirnento e da autoridade. A capacidade performativa das
E esta nao pode ser usurpad a; deve,
e dos ritos depende da autoridade de quem os profere.
observa Bourdieu ;
necessariamente, ser delegada. O simbolismo ritual 1150 age por si mesmo,
sacramentais
a observancia rigorosa do cédigo litfirgico que rege os gestos e as palavras
apenas representa esse contrato de delegacao que une o oficiante a seu publico (PVD, 115).
Na teoria do poder simbélico de Bourdieu, o reconhecimento constitu i, pois, urna condi-
aquele
cao fundamental da eficécia dos ritos. Para que a palavra, ou o rito, possa ser eficaz,
do a falar, pols os enunciad os nao podem
que o professa deve ser reconhecido como autoriza
coletivarnente
pretender impor—se apenas pela forca. E preciso, sobretudo, que certas formas
pode dizer
reconhecidas de autoridade tenham sido aceitas como legitimas: “qualquer um nao
condicao esta na base da eficéci’a magica,
qualquer coisa”, observa Bourdieu (PVD, 68). Se esta
ado nas palavras das
a analise de sua dinamica n50 pode separar 0 poder simbolico incorpor
simbélico
condicoes sociais que lhe conferiram sua razao de ser. Mas como opera 0 poder
em duas operacée s bésicas: seu poder de
nas praticas rituais? Sua dinamica esta fundada
instituicao do social e seu poder de consagracao da autoridade.
que elas
A faculdade de instituicao do social inerente as praticas rituals deriva do fato de
por delegaca o. Apoiado em um acordo
estao investidas do poder que o grupo lhes conferiu
o ritual naturaliz a a in-
técito entre oficiante e oficiado a respeito dos esquefnas de percepcao,
as ideias ou
corporacao de certas maneiras de ver, de falar, de apreciar, porque o faz nao sobre
mais dolorosa essa forma de instituicao,
sobre a consciéncia, mas sobre o préprio corpo. Quanto
a de treiname nto,
observa Bourdieu, quanto maior o sofrimento corporal, a ascese on a exigénci
nas formas
mais fortemente o instituido se enraiza no habitus. E ainda, quanto mais enraizado

RITO (de instituicéo) 319


corporificadas do habitus, maior o poder de convencimento da autoridade das palavras e gestos:
desse enraizamento depende a persuasao de autenticidade daquele que oficia.
Os ritos de consagracao tém, por sua vez, o poder de promover uma mudanca no estatuto
ontologico de coisas e pessoas Eles o fazem por meio da atribuicao de valor Para Bourdieu,
o valor esta diretamente associado‘as formas de circulacao das pessoas e das coisas. Quanto
mais longo o flfixo de consagracao, maior seré a energia social consumida 11a circulacao e,
consequentemente, maior a capacidade de um ciclo ritual de conferir autoridade (PC, 170).
Essa dinamica se torna perfeitamente visivel nos campos sociais mais distantes dos interesses
diretamente economicos. Nas artes, no jornalismo, na academia e até mesmo na politica, a
complexidade dos ritos de consagracao demonstra como os processes de legitimacao, isto é, as
formas de dominacao que se desconhecem corno tais, 56 se efetivam por meio da procuracéo
e do consentimento dos dominados.
A antropologia politica de Bourdieu pode ser decifrada nessa leitura dos jogos de producao
de legitimidade, nas quais os ritos sao instrumentos essenciais, como forma de desconheci-
mento. Em sua critica ao conceito de ritos de passagem de Van Gennep, o autor sublinha que
o maior efeito social do rito nao é celebrar a- passagem, mas Sim consagrar urna diferenca de
modo a fazé—la existir como distincao social ou corno exclusao. Na verdade, o efeito social
do rito nao é separar os que passaram por ele daqueles que ainda passarao, mas, sobretudo,
diferenciar aqueles que podem passar daqueles que nunca o farao. Os ritos instituem fronteiras
e identidades; ao fazé-lo, consagram direitos, limites, competéncias. A acao politica comeca,
pois, com a dem’mcia dessa adesao impensada ao arbitrério das classificacoes.

Referéncias ,
AUSTIN, I.-L. How To Do Things With Words. Oxford: Clarendon, 1962.
LEVI—STRAUSS, C. L’Homme nu. Paris: Plon, 1971.

320 RITO (de instituigéo)


Giséle Sapiro

A figura e a obra de Sartre constituiram para Bourdieu, ao mesmo tempo, urn modelo e um
repfidio (BOURDIEU, 1993). “Aspirante a filosofo” em uma época em que o existencialismo era
a corrente dominante no campo intelectual, o futuro sociologo ficou marcado intensamente
por urn pensarnento que estava ern contato com as coisas da Vida corrente 6 com o mundo
contemporaneo. Apesar de nunca ter encontrado Sartre, Bourdieu colaborou em sua revista,
Les Temps Modernes, na qual publicou quatro artigos, entre 1962 e 1971. A partir dessa data
é que, abertamente, ele toma suas distancias com o filosofo.
O confronto com a antropologia de Sartre, transformada por ele no tipo ideal do subjetivis—
mo, teve uma incidéncia consideravel sobre a génese da teoria do habitus (SAPIRO, 2001; 2004).
A0 mecanicisrno das teorias behavioristas que explicarn as emoqoes por suas causas, Sartre
substitui, em Esquisse d’une théorz'e des émotions (1938), urna abordagem de fenomenologia
psicologica que privilegia urna explicaqao de tipo finalista, considerando as emogoes corno
condutas inferiores, mégicas, irracionais. Sartre rejeita também a abordagern psicanah’tica que
explica a emogao por meio dos vinculos, simultaneamente, de causalidade e de compreensao
(a simbolizagao). Do mesmo modo, em L’Etre et le néant, descarta a explicagao freudiana
do comportamento pelo inconsciente, substituindo-a pela noeao de “ma fé" para preservar
a transparéncia da consciéncia a si Inesrna e, portanto, sua liberdade. A partir de semelhante
abordagem finalista e antideterminista das condutas (mesmo irracionais), é que Bourdieu ira
desenvolver o conceito de estratégia, e encontramos ern sua sociologia da adesao a ideia da
crenea no jogo defendida por Sartre. Em compensagao, ele rejeita o principio da néo sinceridade
da emogao e a radicalizagao, em L’Etre et le néant, da tese sobre a liberdade de escolha entre
a interpretagao rriégica ou técnica do mundo, além de se insurgir contra a anafise da ma fé. A
indignagao contra o que Bourdieu ira definir, mais tarde, como urn erro intelectualista é uma
das rnolas propulsoras de sua elaboragao de uma teoria da prética e do conceito de habitus.
Tendo em vista superar a oposigao entre subjetivismo e objetivismo que, nesse memento, se
apresentava sob as aparéncias, por um lado, da fenomenologia e, por outro, do estruturalisrno (e
do marxismo), o conceito de habitus, corno principio gerador das praticas individuais que permite

SARTRE,JEAN-PAUL(7905-1980) 321
explicar a capacidade dos agentes de se orientarern no 111m social e de adotarem condutas adap»
tadas as condicoes objetivas sem obedecerem explicitamente a uma regra, opera urna ruptura com
o dualismo sartreano. Para Sartre, a consciéncia é liberdade com a condicéo de negar o peso da
inércia do passado e do corpo. O corpo é facticidade, esté do lado das coisas, dos objetos, do viscoso,
do gosmento; ele e’ “corpo—para—os—outros”, e esse olhar dos outros, ao objetiva—lo, transforma—o,
ern urn “corpo alienado”. Se Bourdieu nao admite a “nadificacao” [néantisation] sartreanil da
consciéncia, que esta na origem da transcendéncia do sujeito e do dualismo, do mesmo rnodo que
também nao aceita a refutacao do inconsciente, Bourdieu estariapronto, sem dfivida, a concordar
corn Sartre em sua concepcio do corpo corno lugar das inércias e da afienacao, se 0 filosofo mac 0
tivesse transformado na propria esséncia do corpo. Pois, como ele explica em urn artigo de 1977
intitulado “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps”, a alienacao pelo corpo é
um sentimento distribm'do de forma desigual, segundo as condicoes sociais: assim, o constrangi—
mento — que é “a experiéncia por exceléncia do ‘corpo alienado’” (1977, p. 52) - é encontrado com
maior probabilidade nas classes desfavorecidas, ao passo que a experiéncia oposta, a desenvoltura
(corporal), é mais frequente entre os membros da classe dominante que detém o poder de definicao
e de imposicao das normas estéticas legitimas (usos e regras de cortesia, maneira de se comportar,
de se vestir, oposicao entre o elegante e o vulgar, etc).
Mas o corpo nao é sirnplesmente uma coisa, ele n50 é “em si”, jé que é tambérn o lugar da
invencao e da improvisacao das condutas ajustadas as situacoes. Ora, esse corpo que é tao
grudado em seu ser, nao o é suficienternente, segundo Sartre, a ponto de nao poder ser mani-
pulado livremente em funcao da representacao imaginéria de um cargo ou de um papel a ser
desempenhado, como é ilustrado pelo exemplo do garcom de bar. Este, escreve Sartre (1987,
p. 95-96), representa o papel de garcom de bar de maneira a realizar sua condicao, em funcio
da representacao que ele tern do cargo, e descartando os possiveis que nao estao inscritos
nessa condicao (corno o fato de n50 se Ievantar as cinco horas da manha e de ficar na cama,
correndo o risco de ser despedido). Bourdieu voIta ao tema com um olhar critico, em urn
artigo intitulado “Le mort saisit 1e vif” (1980a, p. 8): “O garcom de bar n50 representa o papel
de garcom de bar, como pretende Sartre. [. . .] Seu corpo, no qual esté inscrita uma histéria,
molda‘se ‘a sua funcao, ou seja, uma historia, uma tradicfio que ele nunca tinha visto senao
encarnada em corpos, ou melhor, nos habitos ‘habitados’ por determinado habitus a que se
atribui o nome de garcom de bar”. Assim, segundo Bourdieu, o corpo néo é um automato que
obedece aos ditames da consciencia, mas tern seus préprios principios de inércia. Além disso,
os possiveis nao estao distribuidos de forma igual, segundo as condicoes de existéncia ou a
posicao ocupada no espaco social. 0 senso pratico é aquele que tende a ajustar as expectativ
as
subjetivas as oportunidades objetivas e, portanto, o possivel ao provavel. A0 projetar sobre o
garcom de bar suas proprias possibilidades, Sartre comete o erro intelectuahsta por exceléncia
.
Bourdieu (1993, p. 209) rejeita a concepcao sartreana da mi fé on da alienacao como "a
abdicacao livre da liberdade em beneficio das exigéncias da ‘matéria trabalhada’”. De acordo
corn Sartre, o operario do século XIX “faz—se o que ele é” livremente, em sua livre praxis. O
objeto de contestacao por parte do sociélogo é essa liberdade de se desembaracar de seu passado
para se projetar em um porvir, essa faculdade de conferir um sentido ao futuro, segundo
a
palavra de ordem revolucionéria, de vislumbrar outro estado de coisas possivel, de maneira a
tomar consciéncia da rigidez da situacao presente. Com efeito, segundo Bourdieu, Sartre
1150

322 SARTRE, JEAN-PAUL (1905—7980)


se questiona sobre as condicées de possibilidade da tornada de consciéncia e, menos ainda,
sobre as condicées de atribuicao de sentido a urn porvir que é suficiente, segundo o filosofo,
para alicercar a acao revolucionaria. Ora, no entender de Bourdieu, a recusa das potencialida—
des objetivas e do sentido objetivo conduz Sartre a confiar‘a iniciativa absoluta dos agentes
histéricos’, individuos ou coletivos, corno ‘o Partido’, hipostase do sujeito sartreano, a tarefa
indefinida de arrancar o todo social, on a classe, da inércia do ‘prético—inerte’”.
Critico severo também da figura do "intelectual total”, "engajado em todas as frentes de
combate do pensamento”, encarnado por Sartre, Bourdieu prestou ao filésofo, por ocasiéo de
sua morte, uma homenagem discreta na London Review ofBooks (1980b), num texto ern
que‘analisa a emergéncia de um campo intelectual. No entanto, se, corno Michel Foucault,
ele se desvincula desse modelo para adotar uma postura mais modesta que leva em conta a
divisao do trabalho de pericia nas ciéncias humanas e sociais, Bourdieu nao deixa de esposar
a dimensao critica do compromisso que ele teorizaré atrave’s da nocao de intelectual coletivo.

Referéncias
BOURDIEU, P. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. ARSS, n. 14, avr. 1977.
BOURDIEU, P. Le mort saisit le vif: les relations entre l’histoire réifiée et l’histoire incorporée. ARSS,
11. 32—33, avr.Ijuin 1980a.
BOURDIEU, P. Sartre. London Review ofBooks, v. 2, n. 22, p. 11-12, 20 nov./3 dez 1980b.
BOURDIEU, P. A propos de Sartre... French Cultural Studies, v. IV, p. 209-211,1993.
BOURDIEU, P. Entretien avec Franz Schultheis Der totale Intellektuelle. Bin Gesprach mit Pierre
Bourdieu fiber Jean—Paul Sartre. Siiddeutsche Zeitung, v. 99, 15 apr. 2000 (trad. francaise: L’Intel-
lectuel total. Dialogue avec Pierre Bourdieu sur Jean—Paul Sartre. L’Anne’e Sartrienne, v. 15, juin
2001, p. 194).
SAPIRO, G. Pourquoi le monde va~t-il de soi? De la phénoménologie a la théorie de l'habitus. In: IDT,
Série
G. (Org.). Sartre, une e’criture en actes. Cahiers RITM 24 (Publidix, Université de Nanterre),
Etudes Sartriennes, v. V111, p. 165-186, 2001.
SAPIRO, G. Une liberté contrainte. La formation de la the'orie de l’habitus, suivi d’un entretien avec
sociologue.
Pierre Bourdieu. In: PINTO, L.- SAPIRO, G.; CHAMPAGNE, P. (Orgs.). Pierre Bourdieu,
Paris: Fayard, 2004 p. 49—92
SARTRE, I.-P. LEtre et le néant. Essai d ’ontologie phénome’nologique (1943) Paris: Gallimard,
1987. (Colecao Tel).

180 SCIENCE DE LA SCIENCE ET REFLEX/VITE. COURS DU COLLEGE DE


FRANCE (2000—200 7)
Sylvia Gemignani Garcia

1). Paris:
BOURDIEU, P. Science de la science et réflexivité. Cours du College de France (2000—200
Raisons d’agir, 2001.

Publicado no final de 2001, o curso ministrado no College de France parte da constatacfio


sua autonomla.
de que a ciéncia, e especialmente a ciéncia social, encontra-se ameacada em

SCIENCE DE LA SClENCE ET REFLEXIVITE. COURS DU COLLEGE DE FRANCE (2000-2007) 323


Na perspectiva realista da sociologia como ciéncia da ciéncia, Bourdieu retonstroi a
problematica da sociologia da ciéncia, que oscila entre o logicismo e o relativismo em torno
da questao da génese contingente de verdades universais. Entre “a visao encantada” de Ro-
bert Merton e “o segredo de polichinelo” de Bruno Latour, destaca—se o lugar concedido a
Thomas Kuhn, que aponta para uma solucéo sociotranscendental da antiga oscilacao entre
dogmatismo e ceticismo.
Interpretar a ciéncia como um campo é consideré~1a um aparelho de construcao coletiva que,
pelo controle dos mecanismos de admissao, fecha8se sobre si mesmo, impondo, internarnente, a
arbitragem do “real”. Analisar o campo cientifico é observar empiricamente esse espaco sociocog-
nitivo extraordinario, estruturado por uma espécie particular de capital simbolico que opera 11a
comunicacao e na circulacao, fundado, ao mesmo tempo, no conhecimento e no reconhecimento.
A logica da concorréncia entre pares impoe aos cientistas (unidos pelos conflitos que os opoem
entre Si) a troca racional e o uso de todos os mecanismos acumulados de universah‘zacao. 0 re
conhecimento da verdade assenta na experiéncia coletiva regulada por normas de comunicacao,
argumentacao e verificacao, de modo que a objetividade é o produto intersubjetivo do campo,
sendo o campo cientifico um lugar histérico que produz verdades trans-historicas.
Face aos obstéculos sociais a autonomizacao da ciéncia social, a socioanélise do espirito
cientifico revela as condicoes sociais de possibilidade da construcao sociolégica do “real” e
do sujeito dessa construcao. Assim, a reflexividade (como lei comum do campo sociologico)
é proposta como principio de liberdade, de controle do erro. Aplicada ao exercicio de autoa—
nalise, a reflexividade expoe o “habitus cientifico clivado” do autor, produto do estado dos
campos da filosofia e das ciéncias sociais na Franca e de uma trajetoria pessoal de origern
provinciana, marcada pela experiéncia do internato, que situa seu enraizamento na viséo
racionalista e também sua ambivaléncia em relacao ao mundo intelectual.

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Giséle Sapiro

BOURDIEU, P. O senso pra’tico. Petropolis, R}: Vozes, 2009.

Publicado em 1980 pelas Editions de Minuit, essa volumosa obra retoma e sistematiza a
teoria da prética que Bourdieu havia comecado a desenvolver em Esquisse d’une théorie de
la pratique, publicado em 1972 pela Editora Droz. Ela é composta por dois livros, Critica da
razao teérica e Légicasprdticas, precedidos por um prefécio no qual Bourdieu retorna as con-
dicoes de producio dessa teoria numa Argélia em guerra, as referéncias marcantes — Lévi—Strauss,
Jacques Berque, André Nouschi, Emile Dermenghem e Charles-André Inhen — que rompiam com
o etnocentrismo predominante na etnologia, mas também as limitacoes encontradas na aplicacao
do me'todo estrutural a0 universe cabila. A inadequacio das abordagens existentes para dar conta
da realidade observada levou~o a analisar os vieses induzidos pela razao teérica quando ela
tenta pensar a prética: a disténcia em relacao ao objeto reside menos na diferenca entre as
tradicoes culturais do que “11a diferenca entre duas relacoes com o mundo, teorico e prético”
(SP, 30), e ela nao é especifica dos objetos da etnologia.

324 szmso PRATICO, 0 (Le sens pratique)


Essa é, sem dfivida, a razfio pela qual invertendo a ordem de exposicao de Esquisse,
que colocava os estudos empiricos antes da discussao teérica, Le sens pratz'que corneca por
apresentar uma primeira parte epistemologica que visa apontar tais Vieses. Ao contestar
no preambulo a oposicao binéria entre subjetivismo e objetivismo que serve de estrutura
ao debate sobre a abordagem'adequada nas ciéncias sociais, Bourdieu dedica 11m capitulo a
cada uma dessas opcées para mostrar seus respectivos pontos fortes e limitacoes (cf. verbete
“Conhecimento praxiolégico”).
Se 0 objetivismo tem o mérito de romper com a experiéncia primeira do mundo social, ao
estudar as relacoes objetivas que a sustentam, isso se da ao preco da ocultacao dessa experiéncia
e de seu caréter préareflexivo. Tal ocultacao acarreta um viés intelectualista na medida em
que leva a aplicar ao real as categorias construidas pela analise, colocando entre parénteses
as condicoes proprias a pratica corrente, comoa urgéncia, e as situacoes particulates em
que ela se desenrola. As opcoes, os possiveis, nunca se representam aos agentes segundo a
sistematicidade que caracteriza a analise erudita. Para ilustrar seu ponto de vista, Bourdieu
retorna aos exemplos desenvolvidos em Esquisse: a linguistica estrutural, que transforma
a lingua em seu objeto em detrimento da fala, e a antropologia estrutural, que passa das
regularidades a regra sem se questionar sobre as logicas da acao, reduzida a execucao. A
antropologia imaginaria do subjetivismo, abordada no capitulo 2, é apreendida através da
filosofia sartreana, que constitui sua forma mais extrema, com alusoes ao interacionismo
e a teoria do ator racional, que tém em comum uma propensao a conceber as préticas como
estratégias orientadas explicitamente para fins definidos pelo sujeito de maneira consciente.
No capitulo 3, intitulado “Estruturas, habitus, praticas”, Bourdieu fornece a versao mais
elaborada da teoria do habitus. Contra a tendéncia do objetivismo a hipostasiar as relacoes
objetivas que ele reconstroi, e contra o subjetivisrno que nega qualquer forma de determina»
cao exterior da acao, Bourdieu propoe pensar as praticas e as representacoes como produto
de um processo de interiorizacao das estruturas pelos individuos, na forma de disposicées.
Esses sistemas de disposicées que compoem o habitus sao “principios geradores e organiza—
dores de praticas e de representacfies que podem ser objetivamente adaptadas a seu objetivo
sem supor a visada consciente de fins e o controle expresso das operacoes necessérias para
alcanca—los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem em nada ser 0 produto da obediéncia
a regras, sendo por isso orquestradas coletivamente sem ser 0 produto da acao organizadora
de um maestro” (SP, 88-89). Essa teoria permite explicar a correlacao que se observa entre
as probabilidades objetivas e as expectativas subjetivas, mas também as defasagens em caso
de desajuste das disposicoes e das estruturas (em periodo de crise, de mudanga social ou de
confronto com outta cultura): é o efeito da histerese do habitus que resiste ‘as mudancas, o
que implica muitas vezes sancées, como é ilustrado pela figura emblematica de Dom Quixote.
O capitulo 4 é dedicado a crenca pratica que Bourdieu define como um “état de corps” (SP,
115). A adesao a um campo e 0 sense do jogo que ela implica constituem sua melhor ilustragao.
Produto do encontro entre um habitus e um campo, esse senso do jogo é uma forma exemplar
do senso prético. Diferentemente dos jogos, em que as regras sao explicitas, o funcionamento
dos campos sociais baseia—se, com efeito, na crenca, a illusio, que esta na origem de um in-
vestimento as vezes descrito como vocacao. Realizacao da teoria dos jogos, 0 sense do jogo
é tambérn sua “negacao enquanto teoria” (SP, 136), como explica Bourdieu no capitulo 5, “A

SENSO PRATICO, 0 (Le sens pratique) 325


légica da prética”. A0 ter uma visao sinéptica e sincronica (por meio de esquemas, graficos,
mapas) sobre uma realidade imanente a duracao, a razao erudita dissimula a especificidade
da prética, caracterizada por sua estrutura temporal (irreversibilidade, ritmo, tempo) e pelas
possibilidades que ela oferece de }ogo estratégico no decorrer do tempo, assim como por uma
logica da imprecisao que embaralha qualquer tentativa de reconstrucao logica perfeita A
acao do tempo é o objeto e igualmente 0 titulo do capitulo 6: ela esté estreitamente ligada‘a
incerteza que rege a pratica em um mundo que obedece a leis de probabilidade e da lugar a
diversos tipos de estratégias, como é ilustrado pelos exemplos do desafio e da replica, 011 do
dom e do contradom. E ela que, neste filtimo caso, torna irreconhecivel a relacao de troca,
dando—lhe as aparéncias do desinteresse. Esse trabalho de substanciacao serve de fundamento
a economia dos bens simbolicos, que Bourdieu desenvolve no capitulo 7. A0 refutar o econo—
micisrno, que reduz as trocas ao interesse material, ele reintroduz ai a dimensao simbélica,
inseparével em sua opiniao, da logica economica. “0 capital simbélico”, titulo desse capitulo,
constitui, de fato, um crédito, em sentido lato, que se baseia 11a crenca do grupo Na economia
pré capitalista, na qual a reproducao do modo de dominacao nao esta assegurada, a autoridade
politica surge da dissimetria das trocas, ou seja, da redistribuicao ostentatéria, mas também
de um conjunto de estratégias orientadas para a dominacao das pessoas, pelos mecanismos
préprios da violéncia simbolica, como Bourdieu explica no capitulo 8 (“Os modos de domi-
nacao”). No capitulo seguinte retorna o problema do objetivismo e convida a reintegrar a0
estudo da realidade a relacao subjetiva com o mundo. A verdade objetiva das relacoes sociais
deve-se tanto a relacao de forca objetiva quanto ‘a forma denegada que tal relacao reveste sob
as aparéncias da legitimidade. Nesse capitulo, “A objetividade do subjetivo”, Bourdieu discute
o conceito weberiano de "grupos de status” que, segundo ele, “em vez de serem uma forma
diferente de agrupamento das classes”, assemelham—se “a classes dominantes denegadas on,
se preferirmos, sublimadas e, por conseguinte, legitimadas” (SP, 241).
O segundo livro inclui trés estudos dotados de um valor exemplar para ilustrar a logica
prépria da pratica. Versao revisada de um artigo pnblicado nos Annales (1972), o primeiro
mostra que as regularidades das condutas matrimoniais dos camponeses da regiao do Béarn
nao devem ser analisadas come 0 resultado da obediéncia mecanica ‘a regra sucessoral, segundo
a qual o filho mais velho é o herdeiro, mas sim como estratégias de reproducao que, a seme—
lhanca do legado da terra ao mais velho, visam salvaguardar a integridade do patrimonio. O
segundo estudo apoia—se na inadequacao da linguagem da prescricao e da regra para pensar
0 caso do casamento com a prima paralela, que desafia a regra de exogamia estabelecida pela
antropologia estrutural, para se interrogar sobre “os usos sociais do parentesco”, de acordo
com os interesses economicos e simbélicos em jogo. O filtimo capitulo, intitulado “O demonic
da analogia”, revela os limites do método estrutural a0 ser aplicado a esquemas préticos, que
nao tém nem a sistematicidade nem a coeréncia que a teoria pretende lhes conferir.
1N0 apéndice da obra Bourdieu retomou seu estudo sobre a casa cabila (“A casa 011 o mundo
invertido”), escrito para Me’langes, em homenagem a Claude Levi-Strauss e reeditado em
Esquisse d’une théorie de la pmtique, dando-lhe um estatuto particular como ilustracao
do estado anterior de sua reflexao sobre o método estrutural, cuja aplicacao é feita aqui com
brilhantismo, e como introducao aos estudos mais complexos apresentados em Le sens
pratz'que, onde ele mostra os limites desse método.

325 SENSO PRATICO, 0 (Le sens pratique)


Referéncias
BOURDIEU, P. La maison kabyle ou le monde renversé. In: POUILLON, 1.; MARANDA, P. (Orgs.).
Echanges et communications. Mélanges oflerts 61 Cl. Lévi—Stmusspourson 60“” anniversaire. Paris—La
Haye: Mouton, 1970. p. 739—758. 1
BOURDIEU, P. Les strategies matiirnoniales dans le systeme des strategies de reproduction. Annales
ESC, V. 4-5, p. 1105-1127, jul./out. 1972.

”182.5lSTEMA DE ENSINO
Tania de Freitas Resende

Pierre Bourdieu construiu, em grande parte com a colaboracao de lean—Claude Passeron,


uma teoria inovadora e potente sobre o sistema de ensino e seu papel na sociedade. E verdade que
esse néo foi o objeto central da obra de Bourdieu, ja que suas formulacoes a tal respeito surgem a
partir do enfrentamento de preocupacoes teoricas mais amplas, referentes, por exemplo, a0 desv
velamento dos mecanisrnos de dominacao social e a constituicao de uma abordagern sociolégica
que escapasse simultaneamente do subjetivismo e do objetivismo nas explicacoes da realidade
social (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004). Entretanto, tarnbém é fato que essa teoria ocupa papel de
destaque entre suas producoes, tendo se tornado amplamente conhecida e debatida, tanto no
ambito da sociologia da educacao quanto nos campos cientifico e educacional cle modo geral.
As teses centrais de Bourdieu a respeito do papel da escola na sociedade foram enuncia—
das 13 em seus primeiros trabalhos, a saber: Les he’ritiers (1964) e La reproduction (1970),
ambos publicados em coautoria com Passeron. N0 prefécio do livro A reproduccio, os autores
apresentam o principio que constitui o eixo central da teoria do sistema de ensino por eles
construida: a anélise desse sistema considerando suas relacées com a estrutura das relacoes
entre as classes (LRp). Assirn, combatem a ideia da escola como instituicao neutra, responsavel
pela transmissao de um patrimonio cultural pertencente a toda a sociedade de modo indiviso
Para eles, a tarefa de reproducao cultural precipua a escola nao pode ser dissociada de sua
funcao de reproducéo da estrutura social. Nas sociedades de classes, nao se tern “urna” cultura,
mas diferentes ,variantes culturais (arbitrérios) em disputa. A cultura considerada legitima e
transmitida pelo sistema de ensino e’, na verdade, 0 arbitrério cultural dominante, ou seja, a
cultura dos grupos dominantes, sem superioridade objetiva em relacao as demais. Os alunos
chegam a escola em condicoes desiguais quanta ‘a posse de elementos dessa cultura (na forma
de conhecimentos, habilidades, gostos, disposicoes, etc. — nos termos cle Bourdieu, capital
cultural) e o sistema de ensino, ao trata—los como iguais do ponto de vista formal, acaba por
reproduzir as desigualdades iniciais. Mais do que isso, contribui para legitimé—las, na medida
em que as diferencas nos desempenhos escolares, sob a aparéncia de neutralidade da escola
e de suas formas de avaliacao, sao atribuidas a0 mérito individual.
Nessa perspectiva, a escola exerce também urna funcao mistificadora, em pelo memos dois
sentidos: na medida em que oculta o cara’ter arbitrério e socialmente imposto da cultura que veicula
' como neutra e legitima; .e na proporcéo em que transforma diferencas sociais em desigualdades
socialmente legitimadas, naturalizadas como decorrentes de aptidoes e/ou do esforco individuais,
negando e camuflando, assim, o privilégio cultural dos alunos oriundos das classes dominantes.

SISTEMA DE ENSINO 327


A educacao escolar é vista, nessa teoria, como urn “trabalho prolongado de inculcacao que
produz um habitus durével e transpom’ve ”, sendo o habitus entendido como um “conjunto de
esquemas de percepcao, de pensarnento, de apreciacao e de acéo” (LRp, 57) que gujaré as respos-
tas dos sujeitos nas diferentes situacées sociais. Por meio desse trabalho realizado pelo sistema
escolar, o Estado exerce uma acao unificadora sobre as formas e categorias de pensamento, sob o
signo de uma cultura nacional legitima, base da ideia de sociedade nacional, cultura essa que nao
é, entretanto, nada mais que a cultura dominante, diante da qual os alunos estao desigualmente
posicionados. Assirn, o sistema de ensino une a funcao de inculcacao, isto é, de integracao inte-
lectual e moral, a funcao de conservacao da estrutura de relacoes entre as classes sociais (LRp).
Essa inculcacao, a todos os alunos, de um arbitrario cultural que representa a cultura de
origem de apenas uma parte deles constitui, para Bourdieu, urna forma de violéncia simbélica
que caracteriza a educacao escolar. Outra dimensao em que se revela a violéncia simbolica
da acao escolar é a prépria forma da comunicacao pedagogica (do ensino), que constitui, em
si, 11m modo arbitrario de educacéo, exercido por um poder também arbitrario, o qual reu-
ne, entretanto, todas as condicées para dissimular essa arbitrariedade, apresentar—se como
legitimo e ser reconhecido como tal.
Os exames escolares e seus veredictos, isto é, as classificacoes escolares deles decorrentes
constituem, para Bourdieu, uma ocasiao privilegiada para se observer, por um lado, a arbitrav
riedade da autoridade pedagégica e, por outro, a ocultacao dessa arbitrariedade, desvelando~se
a logical de fimcionamento do sistema de ensino. Em diversos trabalhos, e de modo especial no
texto “As categorias do juizo professoral”, o sociologo demonstra que estao emjogo, nas avaliacoes
escolares, nao somente os conhecimentos e habilidades efetivamente ensinados pela prépria
escola, mas também urn conjunto de normas irnph’citas, de critérios difusos e inconscientes da
percepcao social, que configuram um verdadeiro julgamento de classe; muito mais do que a cul-
tura, uma determinada relaciio com a cultura, a qual tern por parametro os padroes das classes
dominantes (BE). N50 obstante, os exames escolares realizam-se sob a égide da objetividade,
da racionalidade, da equidade, ocultando a origem social das hierarquias escolares e fazendo,
dessas, instrumentos de legitimacao das hierarquias sociais que lhes servem de fundamento e
que elas contribuem para reproduzir. Diante da suposta neutralidade dos veredictos escolares,
tanto aqueles que fracassam quanto os que tém sucesso sao levados a atribuir seu desempenho
ao mérito individual (on a auséncia dele) e, mais do que isso, sao conduzidos a reconhecer a
legitimidade do jogo escolar e da cultura que ele reproduz.
A divulgacao dessa visao critica de Bourdieu e de seus colaboradores a respeito do sistema
de ensino produziu ~ apesar de todas as criticas recebidas e polémicas suscitadas — urn abalo
definitivo da crenca na escola como instrumento neutro de justica social. A equidade formal
da prética pedagégica, significando exigir, de todos, conteudos culturais que as diferentes
classes sociais transmitem de forma desigual e que a escola nem sempre ensina explicita—
mente, seria de fato injusta e transmissora de privilégios (EB). Em seus primeiros trabalhos,
Bourdieu chegou a esbocar uma forma de escapar desse ciclo perverso, a qual consistiria em
uma “pedagogia racional e universal que, partindo do zero e 1150 considerando como dado o
que apenas alguns herdaram” (EB, 53), organizar-se—ia metodicamente no sentido de ensinar
a todos, explicitamente, a integralidade dos conteudos culturais que constam das avaliacoes
escolares, muitosdos quais implicitamente.

328 SISTEMA DE ENSINO


Trata—se, porém, de uma ideia que nao prosperou nos trabalhos subsequentes, nos quais
o que se mantém, mesmo nos contextos mais recentes de democratizacao do ensino em seus
diferentes niveis, é o eixo central de analise do sistema escolar como fator de conservacao
das relacées entre as classes sociais. No texto “Os excluidos do interior”; por exemplo, de
Bourdieu 6 Champagne, pu’blicado originalmente em 1992, os autores reafirmam a tese
da reproducio a0 defender que o sistema de ensino, formalmente aberto a todos a partir
do processo de massificacao, continua reservando as melhores posicoes a alguns. Assim, a
exclusao continua a acontecer, agora “por dentro”, de modo mais dissimulado e com maior
potencial de legitimacao social.

Referéncias
BOURDIEU, P.; CHAMPAGNE, P. Les exclus de l’intérieur. ARSS, Paris, 11. 91/92, mars, 1992. p.71-75,
NOGUEIRA, M. A.; NOGUEIRA, C. M. M. Bourdieu e’y‘ a educacao. Belo Horizonte: Auténtica, 2004.

183. SOBRE A TELEVISAO


(Sur la té/évision, suivi de L’emprise du journalisme)
Patrick Champagne

BOURDIEU, P. Sabre a televisa’o, seguido de A influéncia dojomalismo e as Iagos Olfmpz’cos. Rio de


Ianeiro; Jorge Zahar, 1997.

Em dezembro de 1996, Bourdieu publicou um pequeno livro de capa vermelha com


uma centena depaginas, intitulado Sur la télévision, que inaugurava uma nova cole—
cao, destinada a um pfiblico mais amplo, de obras militantes que apresentam, de modo
acessivel, trabalhos de especialistas em ciéncias sociais. Esse livro reproduz duas aulas
televisionadas proferidas no College de France. A primeira delas analisa os programas de
debates na televisao, enfatizando principalmente os mecanismos de selecao e de censura
invisiveis, dos quais os jornalistas 550 OS agentes, na maior parte das vezes, inconscientes.
A segunda conferéncia desenvolve urna anélise da producao da informacao na televisao
a partir do conceito de “campo”, além de estudar particularmente os efeitos ~ sobre
a producao da informacao — da légica da audiéncia maxima que exerce uma pressao
particular sobre a televisao. Embora a tonalidade da obra seja mais pedagégica do que
polémica, e embora o sociologo nao tivesse relatado em seu livro um décimo do que se
ouve habitualmente nas salas de redacao e mesmo do que se escreve nos panfletos que os
jornalistas publicam regularrnente sobre simesmos, Sur la télévision desencadeou uma
reacao violenta na imprensa.
As reacoes negativas a esse livro Vieram essencialmente dos grandes editorialistas, dos
comentaristas, dos diretores de redacao dos jornais de divulgacao nacional e dos news
magazines; em suma, do “alto clero midiatico”, que ocupa as mais elevadas e influentes po-
sicoes no mundo da midia e dispoe do poder de influenciar a maneira como sao construidos
os grandes debates de sociedade e 0s quadros simbélicos através dos quais a Vida politica
é organizada. Mas as reacoes mais virulentas incidirarn sobre os trechos — em nfimero re-

SOBRE A TELEVISAO 329


(Sur la té/évision, suivi de L'emprise du journalisme)
duzido, mas que nao poderiam passar despercebidos ~ dedicados aqueles a quem Bourdieu
atribui o qualificativo defast thinkers, ou seja, os “intelectuais midiaticos”, os produtores de
fastfood cultural, a quem, pela primeira vez, ele iria designar pelo nome justo, negando-se
a atribuir—lhes o titulo de intelectual.

1.84. SOBRE O ESTADO. CURSOS NO COLLEGE DE FRANCE (7 989—92)


(Sur /’Etat. Cours au Col/ége de France [7989-7992])

Sergio Micelz'

BOURDIEU, P. Sabre 0 Estado. Cursos no Colle‘ge de France (1989—92). Sao Paulo: Companhia das
Letras, 2014.

Em vez de cravar no primado do monopolio fiscal, militar e policial, Bourdieu mobiliza


as evidéncias e as razoes capazes de deslindar o carater e a eficacia dos poderes de violéncia
simbélica exercidos pelo Estado, espécie de meta-poder por cujo controle e apropriagao se
defrontam os grupos de interesse aptos a atuar no campo politico.
Reitera a dimensao simbolica do Estado, espaco de relacoes de forca e de sentido, como
produtor de principios de classificacao suscetiveis de serem aplicados ao mundo social. Tais
categorias sao formas entranhadas em condicoes histéricas de producao, ou melhor, estruturas
mentais em conexao corn estruturas sociais, como que retraduzindo as tensées entre os grupos
em oposicoes légicas. O designio de formular uma teoria materialista do simbolico tem que
dar conta dessa obediéncia generalizada de que se beneficia o Estado sem apelar a coercao.
A contundéncia dessa pegada se evidencia na passagem, em fins da Idade Média, do momento
em que coexistern infimeras modalidades exclusivas de direito ~ a justica do rei, a das comunas,
a das corporacoes, a da Igreja — a extensao progressiva da jurisdicao real com o surgimento dos
prepostos, dos magistrados e do Parlamento. A Franca e a Inglaterra do século XVII ja exibem o
talhe caracten’stico do Estado moderno: um corpo politico separado da pessoa do principe, bem
como dos demais grupamentos atuantes no territério da nacao, inclusive a nobreza feudal e a
Ig‘reja. A diferenciacao do campo juridico, universo sujeito a leis proprias, sucede em paralelo a
concentracao de poder na base do monopolio real do poder judiciério perante as pretensoes dos
senhores. Ajustica real arrebanha as causas criminais antes sujeitas ao arbitrio do proprietério de
terras on da Igreja, em nome de argurnentos ad hoc como a teoria dos recursos. Em sintese, 0 came
de sua concepcao esquadrinha a transicao entre o Estado djnastico-absolutista e o nascimento do
moderno Estado do bem~estar, pontuado pelo protagonismo estratégico dos juristas, dando a ver
03 rumos da diferenciacao de poderes e da concorréncia entre os corpos de especialistas indispen—
saveis ao exercicio do mando na emergente divisao do trabalho de dominacao.
Os juristas se aferrarn a elaboracao de justificativas em favor de uma (mica jurisdicao,
operando como advogados dessa juncao que lhes toca de perto como arautos do “desinte-
resse” e da universalizacao. A realeza se alia aos pleitos dos juristas cujo servico—mor é a
formulacao; de teorias legitimadoras segundo as quais o rei representa o interesse comum e
deve seguranca e justica a todos. Restringem—se as esferas de competéncia das jurisdicoes
feudal e eclesiastica, doravante sujeitas a0 comando da justica a soldo do rei. O nascimento

330 SOBRE_O ESTADO. CURSOS N0 COLLEGE DE FRANCE (1989-92)


(Sur I’Etat. Cours au College de France {798949921}
do Estado se faz acompanhar peia acumulacao matica de informacao ~ servicos secretos,
pesquisas, recensearnentos, orcamentos, mapas, pianos, genealogias, estatisticas —, conver—
tendo o meta~poder em unificador teorico, um totalizador cujo instrumento por exceléncia
é a escrita, a comecar pelos registros de contabilidade.
Busca qualificar a ascensao da nobreza togada, na transicao entre a nobreza feudal e a
nobreza moderna, aquela formada nas escolas de elite do capitalismo contemporaneo. Subjaz
a esse escrutinio urn dos mantras do autor, “a verdade de todo mecanismo politico reside na
logica de sucessao”. Os juristas elaboraram as doutrinas da transicao entre a razao monar—
quica e a de Estado, tendo de se haver, desde o inicio, com os riscos de estorno do patrirnénio
publico — corrupcao, nepotismo, favoritismo 7 por parte daqueles gfupos, inclusive eles,
propensos a fazer do Estado sua “casa”.
Em vez da sucessao de tipo doméstico (o rei e a farnflia real), no qual o patrimonio se transmite
de pai para filho, a reproducao dos juristas, dos funcionarios, dos intelectuais, passa pelo sisterna
escolar, pelo mérito, pela competéncia,‘pelo diploma. 0 Estado se opoe a famflja e condena O ne-
potismo, a0 substituir os lacos primarios por lealdades formais, a sucessao direta pela reproducao
escolar, a designacéo por instancias locais pela nomeacéo determinada pelo poder central.
0 Estado é perpassado pela tensao entre os herdeiros e 05 arrivistas, entre es que dependem
dos lacos de sangue e a nobreza togada, prensada por'sua vez entre os interesses coletivos
da corporacao ern colisao com os apanégios da antiga nobreza e 05 interesses privados que
empurram os togadosa se aliar aos setores do antigo regime. Sendo a um 56 tempo arbitros
e partes interessadas, os juristas exercem o papel decisivo de legitimar o monarca sem abrir
mao da competéncia técnica em prol da universalizacao de seus interesses como detentores
do capital particular de jurista. '
Na condicao de mestres do discurso, eles dispoem de um trunfo formidavel de poder:
fazer crer naquilo que dizern. Sua autoridade lhes permite dizer e fazer como verdadeiro
aquilo que lhes interessa. Ao fazer crer que é verdade para es que tém o poder de fazer existir
o verdadeiro (os poderosos), os juristas podem tornar real aquilo que dizem. Contarn com o
direito como discurso de halite universal e dispoem da capacidade profissional de fornecer
razoes, ou melhor, de converter evidéncias em arrazoados, pelo apelo a principios univer—
sais, pelo recurso ‘a histéria, aos precedentes, aos arquivos, a casuistica e ‘as demais fontes da
jurisprudéncia. A construcao do Estado se revela, portanto, indissociavel da emergéncia de
corporacoes que nele se enraizam.
O processo de delegacao, o qual consiste em parcelamento e multiplicacao de poderes,
esta na raiz da corrupcao corno elemento constituinte na divisao do trabalho de dominacéo.
Assim como o rei se apropria da parte do leao, expediente idéntico se reproduz em escaloes
inferiores, cujos ocupantes se valem da autoridade concedida para extrair lucros proporcio-
nais a0 seu cacife. O caréter estrutural da corrupcao deriva do fato de que as corporacoes
tern a ambicao de se tornar dinasticas, pela alianca com os mandantes do antigo regime,
pela aquisicao venal de cargos ou pela transmisséo hereditéria dissimulada. A redistribuicao
de poderes enseja infimeros escapes nos circuitos de delegacao e, por conseguinte, propicia
espacos de arreglo e de cobranca de pedégio.
A montagem desse dispositivo institucionalizado se apoia, tanto no antigo império chines
corno em formacoes sociais da atualidade, no fluxo de fundos ilicitos que irriga o sistema

SOBRE o ESTAoo. cuasos N0 COLLEGE DE FRANCE (7989-92) 331


(Sur l’Etat. Cours au College de France [1989—1992])
de baixo para cima. O caixa dois vem a ser a extorsao legal de fundos destinados a cobrir
as despesas pessoais e profissionais dos funcionérios, somados aos rendimentos auferidos
pelos escaloes inferiores de que os primeiros dependem para exercer suas tarefas. Na logica
da corrupcao institucionalizada, os mandachuvas térn meios de extrair lucros de grandeza
incomensuravel aquela acessivel aos supervisores de baixo escaléo.
A burocracia enverga dupla armadura: a ambiguidade institucional como contraface da
fachada racional e transparente. Os burocratas efetuam a apropriacao privada do universal
(“bem comum”), com frequéncia tida como abuso de poder e, nao obstante, contribuem
‘mesmo assim a fazer progredir o “interesse coletivo”. As transacoes entre os notéveis e 05
burocratas, que azeitam o funcionamento do servico pfiblico, exemplificam intercambios
movidos por coercao estrutural, que pouco tern a ver com interacoes pessoais téo
a gosto
dos sabichoes arredios ‘as razoes da histéria social. Os juristas sao corretores que também
jogam na posicao de terceiros, a meio caminho entre as demandas da monarquia e dos demais
grupos, cobrando proventos pelo trabalho de mediacao, como responséveis pela alquimia que
transmuta o dote privado em bem pfiblico.
Bourdieu sustenta a tese da constituicao progressiva de um conjunto de campos — juridico,
administrativo, intelectual, parlamentar —, cada um deles como espaco de lutas especificas,
uns competindo com os outros, enfrentamento em cujo transcurso se inventa esse poder
“meta~campo” consolidado no Estado moderno. A inteligibilidade desses campos foi objeto
de investigacao em estudos seminais do autor — A nobreza de Estado, sobre a elite adminis—
trativa egressa das grandes escolas; Homo academicus, sobre a elite universitaria ~, cujo
fecho reflexive imanta os cursos no College de France (1989-1992) enfeixados no volume
Sobre o Estado.
E dessa histéria de lutas que tratam os cursos de Bourdieu, a0 reconstruir as circumstan—
cias em que sucedeu a transicao do poder dinastico, voltado a preservacao das prerrogativas
e dos interesses da casa real, a0 poder do Estado, entendido como um espaco de confrontos
ancorado em instituicoes e corporacoes ‘as quais foram delegados mandatos de justificacao
doutrinéria e intelectual, no caso capital da configuracao da esfera judiciaria, ou entao, as
demandas de se fazer ouvir e representar por meio da insténcia parlamentar.

185. SOCIEDADE '

Ver: Mundo social

186. SOCIOANALISE
Angela Xavier de Brito

Para Bourdieu, a socioanalise eI“ o trabalho através do qual a ciéncia social, ao se tomar
por objeto, utiliza suas préprias armas para compreender e controlar a si mesma” (SSR, 174),
num duplo movimento de critica metodologica e de vigilancia epistemolégica que visa tornar
explicito o que ordinariamente permanece em estado implicito na pratica cientifica. Ia
a au~
toanalise é uma socioanélise em que o individuo trata a si mesmo como se fosse um objeto

332 SOCIEDADE
como qualquer outro. Trata-se de “fazer sua prépria sociologia” (SSR, 184), reconstituindo o
espaco dos possiveis de cada campo e dos individuos que nele estao inseridos. Nesse sentido,
a Lecon sur la lecon (1982) é um exemplo paradigmatico de “distancia ao papel social no
exercicio mesmo desse papel social” (EAA, 138).
A “relacao dialética entre a autoanélise e a (sécio)anélise se encontra no centro do traba-
lho de objetivacao” (SSR, 181), permitindo 11:10 86 a0 sociologo a objetivacao de sua prépria
posicao, que o liberta dos determinismos sociais que pesam sobre si, mas também conferindo
lucidez ao agente, ao “colocar a analise mais objetiva ao service do mais subjetivo" (EAA, 8),
dando aos dominados os meios de controlar a0 memos a representacao do que lhes acontece.
Socioanélise e autoanélise sao projetos distintos, mas complementares. Enquanto a primeira
analisa as condicoes de emergéncia das producées cientificas, objetivando simultanearnente 0
campo académico e o sujeito do conhecimento, a segunda visa objetivar a trajetéria do agente
através da aplicacao efetiva da reflexividade critica sobre si mesmo, sobre sua histéria e sua
prética cotidiana, através de “todos os traces pertinentes [...] necessérios a explicacao e a
compreensao sociologicas” (BAA, 11-12).
Os conceitos de socioanalise/autoanélise atravessarn a obra bourdieusiana desde o
Esquisse d ’une the’orie de la pratique (1972). A primeira se traduz particularmente nos
livros que analisam o campo académico onde o autor esté imerso: Les he’ritiers (1964),
Homo academicus (1984), Lecon sur la lecon (1982), La noblesse d’Etat (1989), Science
de la science et réflexivité (2001). A segunda, nas Meditations pascaliennes (1997) e no
Esquisse pour une aut0~analyse (2004).
0 auto: lembra que, “em uma sociedade dividida em classes, [...] a definicao do real é
objeto de uma luta aberta ou latente entre as classes [. . .] pela imposicao dos sistemas domi-
nantes de classificacéo”. E a ruptura epistemolégica com relacao ao senso comum que vai
contribuir para assentar os “mecanismos gnoseolégicos que contribuem a manutencao da
ordem estabelecida” (ETP, 239-241), contribuindo a producao de uma ciéncia mais acurada
e fornecendo urn potencial de resisténcia e emancipacao politicas. A objetivacao deve ser
conduzida em funcao dos trés tipos de vieses que afetam a Visao analitica do sociologo: suas
etnia,
caracteristicas pessoais (posicao de origem, trajetoria, pertencimentos de género ou
adesao social ou religiosa); a posicao ocupada pelo agente, 0 status de sua disciplina dentro
dos diferentes estados do campo académico e sua relacao com o campo do poder; e 05 pres—
supostos inscritos nas operacoes ou praticas de pesquisa.
Ble retoma esse conceito no prefacio de Le sens pratique (SP, 40), a0 dizer que “todo
verdadeiro empreendimento sociolégico é inseparavel de uma socioanalise e deve contri-
buir para que seu produto se tome também instrumento de uma socioanalise. Ao contribuir
a consciéncia das determinacoes, ao revelar “a verdadeira relacao entre o observador e o
observado e, sobretudo, as consequéncias criticas que incidem na pratica cientifica”, a so-
cioanélise “oferece um meio, talvez o finico [...] para a construcao de algo que se assemelhe
a um sujeito” (SP, 41, 57). Em Science de la science at réflexivz'té (p. 168—169), ele vai evocar
a necessidade de objetivacao do “inconsciente transcendental”, “condicao do acesso da
ciéncia a consciéncia (16 Si, ou seja, ao conhecimento de seus pressupostos historicos [...] e
das determinacoes inconscientes inscritas no cérebro do cientista e nas condicoes sociais
dentro das quais ele produz”.

socmANALISE 333
Por sua vez, a autoanalise deve permitir urn modo de conhecimento baseado numa relacao
dialética entre as estruturas estruturadas e objetivas e as disposicoes estruturantes inscritas
no corpo do agente e expressas em sua pratica, criando condicoes que lhe permitam estabe~
lecer uma distancia critica para com esta filtima. Dessa forma, ela fornece tanto a0 sociélogo
quanto ao agente comum a possibilidade de se reconhecer plenarnente como um sujeito social
socialmente situado, concebido como “representante de uma categoria” ou de um grupo social
(R, 175). As escolhas e as estrate’gias do individuo nao sao mais consideradas como produtos
_ de um projeto consciente, mas sao adotadas em funcao de um campo social determinado. ,
Bourdieu (EAA, 15) observa que “compreender é, em prirneiro lugar, compreender o campo no
qual e contra o qual nos construimos”, o estado do campo no momento em que ingressamos
nele e o espaco de possiveis que ele nos abre. Essa preocupacao constante com a reflexividade
esta presente até mesmo em suas aulas, como testemunharn seus antigos alunos, a quem ele
costumava pedir “uma anélise sociolégica de si mesmos” (FRITSCH, 2005, p. 82).
Originado na psicologia social, 0 termo “socioanalise” foi adotado por Jacques e Maria
Van Bockstaele (1959), que o definem como uma tentativa de interpretacao da dinamica
da acao social através da interacao dialética entre o observador e o observado, na qual o
analista deve questionar seus lacos institucionais, afetivos ou econémicos com o objeto.
Ble foi retomado por Georges Lapassade (1975), cuja ideia de inconsciente coletivo apre-
senta semelhancas com o “inconsciente transcendental” de Bourdieu. No entanto, a tensao
original entre os campos da sociologia e da psicologia na Franca e a posicao dominada que
ocupava esse sociélogo no campo académico impedem a afirmacao do conceito. Vincent
de Gaulejac vai retomar o conceito de socioanélise, associando sociologia e psicanalise.
Para ele, o “trabalho constante e metédico de explicitacao” sugerido por Bourdieu nao
basta para eliminar “os conflitos entre o sujeito e o desejo” (GAULEIAC, 2003, p. 80). Nos
Estados Unidos, Margaret LeCompte (1987) propoe algo bastante similar ‘a autoanalise
bourdieusiana em seu artigo Bias in the biography.
No entanto, a socioanélise so pode ser plenamente exercida quando ela “se aplica ao conjunto
dos agentes engajados nos campos”, onde a reflexividade “foi instituida em lei cornum’’,(SSR
178). Nao se trata apenas de introduzir sua prati'ca na pesquisa, mas sim de converté-la “numa
disposicao constitutiva do habitus cientifico” “que possa garantir—lhe um grau superior de
liberdade com relacao as restricoes e ‘as necessidades sociais que pesarn sobre ela ou sobre
qualquer atividade humana” (SSR, 174, 176).

Referéncias
FRITSCH, P. Contre 1e totémisme intellectual In: MAUGER G. (Org). Rencontres avec Pierre Bour—
dieu. Paris: Croquant, 2005. p. 81-100.
GAULE1AC, V. de. De l’inconscient chez Freud a l’inconscient chez Bourdieu In: BPI. Pierre Bourdz'eu:
les champs de la critique. Paris: Centre Pompidou, 2003. p. 75-86.
LAPASSADE, G. Socianalyse etpotentiel humain. Paris: Dunod, 1975.
LECOMPTE, M. Bias in the Biography. Anthropology and Education Quarterly, v. 18, n. 1, p. 43—52,
march 1987. .
VAN BOCKSTAELB, 1.; VAN BOCKSTAELE, M. Note préliniinaire sur la socianalyse. Bulletin de
Psychologie, v. XII, n. 6—9, p. 277 290,1959.

334 SOCIOANALISE
187. SOCIODICEIA
Ernesto Seidl

Pierre Bourdieu forjou a expressao “sociodiceia” com base no termo “teodiceia”, criado por
Leibniz e empregado posieriormente por Max Weber com o sentido de justificacao de Deus.
Sociodiceia, portanto, refere-se a uma narrativa que procura justificar a sociedade tal corno
ela é, nesse sentido servindo corno alternativa a0 uso da palavra ideologia. Apesar de n50 ter
sido objeto de reflexoes sisteméticas na obra de Bourdieu, a nocao ocupa lugar central em seu
esquema analitico ao se conectar com uma das grandes questoes da sociologia bourdieusiana,
que é a compreenséo dos principios e mecanismos de legitimacao da ordem social. A atencéo
dada ‘as formas como os dominantes elaboram e utilizam discursos destinados a explicar
sua posicao como tais, naturalizando assim diferengas e arbitrariedades e, por essa via, jus—
tificando seus privilégios e garantindo sua manutencao, encontra na nocéo de estratégias de
sociodiceia uma ferramenta-chave para a objetivacao das formas de legitimacao do poder.
As sociodiceias assumem diferentes formas segundo as configuracoes sociais, variando
de acordo com a constrncao histérica de principios de hierarquizacao social que conferem a
alguns grupos (nobres, ricos, sébios, diplomados) acesso privflegiado a tipos variados de poder
(economico; religioso, politiCo, burocrético). Ern toda configuracao, a narrativa Sobre’a origern
e a necessidade do privilégio encobre o arbitrério que fundamenta a ordem social e cujo desco-
nhecimento é condicao para a eficécia de sua legitimidade. Para Bourdieu, a nova sociodiceia
contemporanea repousa na crenca do mérito escolar associado a0 dome em oposicao a0 nas—
cimento, na fé na ciéncia e, sobretudo, “na exaltacéo do desinteresse e da devocao a0 pfiblico”.

188. SOCIOLOGIA
Carlos Benedito Martins

Ao longo de sua carreira académica, Pierre Bourdieu desenvolveu um projeto para a


sociologia no qual delineou sua concepcao de trabalho intelectual tendo corno horizonte
conquistar uma posicao proeminente para a disciplina no contexto das ciéncias humanas
francesas. Segundo sua avaliacao, nos anos 1950 elas se encontravam dominadas pela feno»
menologia, especialmente em sua vertente existencialista, e a sociologia ocupava uma posicao
subalterna na hierarquia do campo (BOURDIEU, 1976) das ciéncias humanas (DROUARD, 1982).
A construcao do seu projeto sociologico o conduziu a travar uma série de lutas internas no
campo da sociologia contra a forma pela qual era ensinada e praticada no contexto francés
nessa época. Concomitantemente, seu empreendimento intelectual impeiiu—o a dialogar
criticamente com varias posturas teoricas e metodolégicas existentes no interior do campo
internacional da sociologia.
Entre as varias dimensoes que integram a concepcao de sociologia presentes na obra de
Bourdieu, seréo salientadas apenas algumas delas, tais como sua disposicao de imprimir um
rigor cientifico aos procedimentos de investigacao na disciplina, sua heterodoxia teorica, a
ambicao de superar oposicoes canonicas existentes no seu interior, a aspiracao de superar as
subespecializacoes de areas de pesquisa, etc'.

SOCIOLOGIA 335
Ao mesmo tempo que beneficiou~se da formagao intelectual obtida na Ecole Normale
Supérieure na década de 1950, simultaneamente investiu contra uma postura intelectual
subjacente a sua formagao académica, ou seja, combateu um ethos filoséfico que ambicionava
explicar uma pluralidade de fenomenos humanos e sociais, calcados, segundo ele, em proce—
dimentos retéricos. Em sua percepgao, a figura de lean-Paul Sartre expressava as disposiqoes
intelectuais peculiares a um‘filésofo normalien (BOURDIEU, 1993; SSR; EAA).
Seu ingresso no campo da sociologia ocorreu gradualmente. O distanciamento com o espirito
filoséfico foi o resultado dos “acasos da existéncia” que o conduziram a Argélia, para servir na
missao de “pacificagao” dessa colonia francesa (1993). Esta experiéncia estimulou seu interesse
pelas transformaqoes da sociedade argelina a partir de uma perspectiva cientifica e politica. Nesse
contexto, produziu seus primeiros trabalhos de campo (SA; TTA; DR; ETP; WACQUANT, 2002).
O advento da abordagem estrutural de Lévi-Strauss foi saudado por Bourdieu como
um acontecimento significativo para as ciéncias sociais francesas, uma vez que propiciou
respeitabilidade cientifica a antropologia. Sens dois priméiros ensaios etnologicos, Le sens
de l’honneur e La maison kabyle ou le monde renversé, exploraram os esquemas inter-
pretativos da anélise estrutural elaborados por LéVi—Strauss, sendo que o derradeiro deles
constituiu o que Bourdieu denominou seu “filtimo trabalho de estruturalista feliz”. Longe de
negar a relevancia do processo de objetivagao dos fenomenos sociais, Bourdieu reconhecia
nesse procedimento metodolégico uma das contribuigoes fundamentais do estruturalismo
a0 processo de ruptura com o saber imediato. Concordava com a primazia das estruturas
objetivas na explicagao da Vida social. N0 entanto, distanciou—se da postura estruturalista a
medida que procurou reintroduzir em suas anélises o agente, cujos sistemas de percepgao,
apreciagao e agéo sao perpassados por injungoes sociais.
A0 reafizar suas primeiras investigagoes empiricas, Bourdieu percebia—se como um filésofo
realizando trabalho de campo. No entanto, surpreendeu—se ao constatar que se tornara etnélo—
go. A partir da metade dos anos 1960, quando retornou a Franga, em colaboragao com outros
pesquisadores, produziu uma série de obras que, em sua apreciagao, poderiarn ser consideradas
de natureza sociolégica como Les héritiers (1964), Un art moyen (1965), L’Amour de l’art
(1966). Procurou incorporar em seu projeto sociolégico o que havia assimilado da filosofia e
da etnologia, a exemplo de determinadas técnicas de investigaqéo, como o uso da fotografia, a
observagéo etnogréfica, o pohteismo metodologico, ou seja, a combinaeao da analise estatl'stica
com a observagao direta de grupos sociais, etc. Sua entrada no campo da sociologia e a disposiqao
de redefinir a posigéo da disciplina, visando enobrecé-Ia (SSR, 196), induziu—o a criticar tanto
as atividades de ensino quanto as de pesquisa que predominavam 11a sociedade francesa entre
05 anos 1950 e metade da década seguinte.
Para ele, a Sorbonne — que constituia o espago central na disseminagao da sociologia,
uma vez que era ens'mada nas Faculdades de Letras — nao conseguiu impulsionar a disciplina,
uma vez que nao introduziu a atividade de pesquisa no seu interior. Os trés professores que
ocupavam a cétedra de sociologia, Georges Gurvitch, Jean Stoetzel 6 Raymond Aron - de
quem Bourdieu foi assistente nesta instituigao — exploravam autores classicos da sociologia
e/ou apresentavam suas proprias concepgoes teéricas (SSR, 190; ARON, 1983, p. 343).
Em sua avaliagao, a nova geragéo de sociélogos que emergiu em meados da década de
1950 modificou a posigao dominada da disciplina, uma vez que n50 recebera uma formaqéo

336 SOCIOLOGIA
académica homogénea, jé que a universidade francesa nao oferecia, nessemomento, cursos
de graduacao nesta area (VALADE, 2000, p. 25). Em funcao disto, persistiu a auséncia de um
sentimento de unidade disciplinar. A0 mesmo tempo, ocorreu uma enorme dispersao de
pesquisas empiricas sem uma consistente fundamentacao teérica. Para ele, construiu-se uma
sociologia fragmentada, alicércada numa nitida divisao de trabalho, estruturada a partir de
subespecializacoes, como sociologia do trabalho, da educacao, da religiao, rural, urbana,
do lazer, etc. Como o meio universitério estava em larga medida preocupado pelas questoes
politicas da época, os engajamentos politicos de pesquisadores comprometeram a autonomia
cientifica da sociologia e reforcaram sua posicao marginal no campo. (SSR, 192; EEA, 52).
Sen projeto para a sociologia mantém certa continuidade com a fase inicial da “escola
francesa de sociologia”, destacadamente com a tradicao durkheimiana de imprimir um estatuto
cientifico a0 contexto universitério (BERTHELOT, 2000, p. 30; KARADY, 1979), ac mesmo tempo
que renova e amplia intelectualmente este objetivo. A determinacao intelectual de imprimir
uma dimensao cientifica a sociologia perpassou sua trajetéria académica. A publicacao da
obra conjunta com Passeron e Chamboredon, Le métier de sociologue (1968), é emblemética
nesse contexto. Em um trabalho bastante posterior, Science de la science at réflexivité (2001),
ao mesmo tempo que reafirmou o carater cientifico da sociologia, assinalou a necessidade do
processo de objetivacao dos sociologos como uma condicao necessaria para imprirnir uma
autonomia cientifica a disciplina. Para Bourdieu, o trabalho sociolégico pressupoe uma série
de rupturas com o saber espontaneo, cuja influéncia se manifesta insidiosamente no seio da
disciplina através de pré—nocoes do senso comum, da ilusao da transparéncia da realidade, da
utilizacao da linguagem cotidiana, fato este que implica a necessidade dé criar uma linguagem‘
artificial, capaz de romper com os automatismos do saber familiar.
A familiaridade do sociélogo com o universo social constitui urn dos principais obstéculos
epistemologicos da pratica cientifica, uma vez que (re)produz continuamente percepcoes
provenientes do saber imediato. Para ele, uma das principais fontes de erros na producao do
conhecimento sociologico deriva da relacao incontrolada que o pesquisador mantém com seu
objeto de estudo, ignorando que a visao e a construcao do objeto devem a posicao ocupada
pelo investigador no espaco social e no interior do préprio campo cientifico (MS, 35-44).
Quando os sociélogos analisam certos objetos com os quais mantém relacéo de proximi‘
dade, tais como a cultura, a ciéncia, o mundo artistico on o campo universitério, avigilancia
reflexiva deve se exercer com maior intensidade, buscando operar uma ruptura nao apenas
com as representacoes espontaneas, mas também com as crencas intimas, conscientes ou
inconscientes, dos profissionais do pensamento, com a doxa especifica que estrutura as
tomadas de posicao no campo das ciéncias sociais (HA, 11~33).
Para Bourdieu, a historia social da sociologia, a0 possibilitar a explicitacao da génese dos
problemas e dos objetos, das categorias de pensamento e dos instrumentos teéricos e empiricos
de analise mobilizados pelo investigador, constitui um dos instrumentos fundamentais da
prética cientifica. Para realizar—se como ciéncia, a sociologia necessita assumir—se a si prépria
como objeto passivel de ser analisado sociologicamente. Em sua visao, a sociologia da socio—
logia ~ concebida por ele como urna das dimensées fundamentais de epistemologia — longe
de ensejar um retorno intimista e um culto narcisista sobre a pessoa do sociologo, deve propi—
ciar~lhe a elucidacéo de tudo que sua prética intelectual deve a sua insercao no mundo social

SOClOLOGlA 337
e no campo da sociologia, possibilitando a objetivacao do investigador e o esclarecimento
tanto da escolha do seu objeto de estudo quanta da forma de abordé-lo e das determinacées
sociais as quais ele se encontra exposto (LL, 8—14; SSR, 173-180).
Na etapa final de sua carreira, quando intensificou sua relacao com distintos movimen-
tos sOciais e articulou mais claramente a relacao entre pesquisa cientifica e intervencao
politica (OP; CFZ; INT). Ele jamais deixou de assinalar que possuia pouca inclinacao para
intervencoes proféticas, defendendo de maneira intransigente a autonomia da sociologia.
Enfatizou diversas vezes que a sociologia deveria ser vigilante quanto a sua independéncia
intelectual, recusando—se a servir a grupos e/ou instituicoes. Em sua percepcao, a eficécia
politica da sociologia consistiria em desvendar as estruturas de dominacao que se encontram
profundamente imersas nos diversos campos sociais e elucidar os mecanismos que tendem
a assegurar a reproducao ou a transformacao desses espacos Nesse empreendimento, cuja
eficécia se deve tao somente a autoridade de sua conduta cientifica, a sociologia torna-se um
vigoroso instrumento de libertacao, uma vez que permite explicitar o jogo no qual os agentes
estao envolvidos, a posicao que ocupam nos distintos campos sociais e o poder de atracao
que esses diversos espacos exercem sobre eles (SP, 209-231).
Seu projeto intelectual conduziu—o a uma atitude “contra-tudo” e “agarra~tudo” em termos
de contribuicoes teoricas, o que lhe permitiu construir uma obra sob o signo da heterodoxia
teérica (SSR,'197). Nesse sentido, ele se contrapos a sociologia americana elaborada sob a égide
de Parsons, Merton e Lazarsfeld, que dominava a disciplina emvaries paises, inclusive a Franga,
desde a década de 1950 (POLLAK, 1979). Bourdieu criticava a separacao entre theory e metho-
dology, representada pela oposigéo entre Parsons e Lazarsfeld. Investiu criticamente contra a
sintese teérica proposta por Parsons em sua obra 1716 Structure afSocialAction, elaborada em
1937, pois considerava que havia mutilado a complexidade da obra de Durkheim e Weber. Em
contrapartida, retomou a relevancia das contribuicées desses dois autores europeus que fertilizaram
teoricamente seus trabalhos. Por outro lado, seu projeto levou-o a se opor a filosofia de “espirito
aristocrético”. Em sua visao, ela representava um obstéculo a0 progresso da sociologia, uma vez
que os filésofos agregés, a0 se considerarem membros de uma casta superior, manifestavam
um desprezo pelas ciéncias humanas, situando a sociologia numa escala inferior na hierarquia
do conhecimento (BOURDIEU, 1983, p. 49-50). Ele procurou integrar contribuicoes teoricas de
cientistas sociais classicos e contemporaneos que, de um modo geral, eram considerados até
entao, como inconciliéveis. Seu arcabouco teorico incorporou de forma criativa autores como
Marx, Durkheim, Weber, Blaise Pascal e dialogou também, de maneira heterodoxa, corn diver-
sos autores contemporaneos, como Martial Gueroult, George Canguilhem, Gaston Bachelard,
Thorstein Veblen, Claude Levi—Strauss, Norbert Elias, Erving Goflinan, Ludwig Wittgenstein,
entre outros (BOURDIEU, 1988, p. 778-783). Sua sociologia foi construida num denso debate com
as herancas do marxismo, do funcionalismo, do estruturalismo, da fenomenologia, do intera-
cionismo simbolico, do individualismo metodolégico, da teoria da escolha racional, etc. Para
ele, o obstéculo que impede a comunicacao entre teorias, conceitos e métodos nao é oriundo de
problemas légico-cientificos intrinsecos, mas deve‘se, antes, as lutas de concorréncia entre seus
respectivos’= adeptos para conquistar posigoes de legitimacéo e prestigio no seio da sociologia.
A0 longo de sua obra, Bourdieu procurou superar determinadas oposicées canonicas no
interior da sociologia que, em sua percepcao, a minavarn por dentro, tais como a separacao

338 SOCIOLOGIA
entre a analise do simbolico e do material, a oposicao entre individuo e sociedade, o embate
entre métodos quantitativos e qualitativos. Essa's oposicoes expressam falsos dualismos que
comprometem uma adequada anélise sociolégica. A existéncia desses dualismos nao derivava,
segundo ele, de op’eracoes légicas ou epistemolégicas constitutivas da prética cientifica, mas
de disputas entre distintas linhagens de pensamento existentes no campo da sociologia, que
buscavam erigir suas concepcoes particulares em verdade cientifica univoca. Essas divisées
dualistas acabavam por produzir profissoes de fé e emblemas totémicos, dilacerando as
explicacées fornecidas pelas ciéncias sociais (R, 156-157).
Sua concepcao de sociologia investiu contra a divisao artificial entre teoria e pesquisa
empirica, mediante a qual certos pesquisadores tendern a cultivar a teoria por si mesma
sem manter uma relacao com objetos empiricos precisos; enquanto outros, inversamente,
desenvolvem urna pesquisa empirica sem referéncia as questoes teoricas (R, 136-137). Res—
saltou que, no trabalho sociolégico, a pesquisa sem teoria é cega e a teoria sern pesquisa é
vazia. Posicionou—se assim contra a postura que leva determinados pesquisadores a colocar
a teoria em primeiro plano, considerando-a corno o trabalho nobre da prética cientifica. Para
Bourdieu, a teoria deveria constituir um programa de percepcao e acao, um habitus cientifico
intimamente ligado a construcao de casos empiricos bem delimitados. Durante toda sua
trajetéria, sempre se recusou a produzir um discurso teorico geral, especulativo, profético ou
programético sobre o mundo social (BOURDIEU, 1986, p. 2—3). Sua obra procurou desrespeitar
deliberadamente as fronteiras disciplinares e as especializacoes no interior da sociologia.
Nessa direcao, procurou articular diferentes procedimentos de pesquisa, tais como descricao
etnografica, modelos estati’sticos e entrevistas em profundidade (LD; BVOURDIEU, 1988; MM)
para tratar empiricamente uma diversidade de temas como moda, arte, desemprego, escola,
direito, ciéncia, literatura, religiao, gosto, classes sociais, politica, esporte, intelectuais, carn—
poneses, televisao, dominacao masculina, etc.
Essa diversidade de temas se explica pelo seu empenho em compreender a prética
humana, que constitui um eixo central d0 seu extenso trabalho de investigacao. Esse
empreendimento o distanciou de um ethos filoséfico que tenderia a analisar a pratica
humana a partir de consideracoes gerais sobre a natureza e a condicao do ser humano.
Afastando-se dessa posicao, sua estratégia de investigacao concentrou~se nurn conjunto
de objetos empiricos, considerados até entao como destituidos de interesse cientifico, tais
como a frequéncia aos museus, a pratica fotografica, as trocas linguisticas, a formacao dos
gostos etc. Buscou compreender, a partir de procedimentos empiricos, 1150 a esséncia da
acao humana, mas a complexa relacao entre a existéncia de uma diversidade de espacos
sociais e a insercao dos agentes envolvidos na producao, reproducao e transformacao
desses espacos, vale dizer, as condicoes de efetivacao da producao da diversidade de
préticas que constitui o mundo social (MARTINS, 2002).
O projeto de compreender sociologicamente a pratica humana serviu»lhe de fulcro para
estabelecer a unidade teérica de uma obra edificada a partir da construcao de um sistema
relativamente parcimonioso de conceitos derivados de um incessante confronto entre atividade
teorica e pesquisa empirica, tais como habitus, illusio, compo, violéncz’a simbélz‘ca, doxa,
hexis corporal, capital cultural, que representaram contribuicoes valiosas para a renova-
cao da analise sociolégica de um modo geral e, particularmente, instrumentos relevantes

SOCIOLOGlA 339
para enfrentar as complexas e intrincadas mediacoes que permeiam as relacoes entre ator
e estrutura social.
0 grupo de pesquisa que Bourdieu construiu expressou sua disposicéo de criar um projeto
cientifico coletivo capaz de integrar as aquisicoes teoricas e metodologicas da sociologia (ENCREVPZ;
LAGRAVE, 2003). 0 Centre de Sociologie Européenne, criado por ele em 1968, tornou~se
um espaco intelectualmente cosmopolita a0 qual afluiam pesquisadores de diversas partes
do mundo. Ao mesmo tempo, criou em 1975, a revista Actes de la Recherche en Sciences
. Sociales, um periodico marcadamente interdisciplinar que expressava sua disposicao de
restaurar a unidade das ciéncias sociais, acolhendo a producio de vasta rede de pesquisadores
franceses e internacionais.
Poi eleito em 1981 para 0 College de France, sendo que sua obra ultrapassou as fronteiras
de seu pais, transformando~o em um dos sociologos mais eminentes do século XX. Objeto
de avaliacoes criticas e positivas, sua influéncia intelectual se estendeu internacionalmen-
te em vérias disciplinas nas ciéncias humanas (ADKINS; SKEGGS, 2005; WEBB; SCHIRATO;
DANAHER, 2002; KING, 2000; CALHOUN; LIPUMA; POSTONE, 1993; DINIAGGIO, 1979; SWARTZ, 1997).

Referéncias .
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BOURDIEU, P. A propos de Sartre. French Cultural Studies, 11. 4, 1993.
D‘LMAGGIO, P. On Bourdieu. American Journal ofSociology, v. 84, n. 96, p. 1460—1474, 1979.
CALHOUN, G.; LIPUMA, E.; POSTONE, M. Baurdieu: Critical Perspectives. Chicago: The University
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DROUARD, A. Re’flexions sur une chronologie du développement des sciences sociales en France de
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ENCREVE, P.; LAGRAVE, R. M. Travailler avec Bourclieu. Paris: Flammarion, 2003.
KARADY, V. Durkheim, les sciences sociales et l’université. Revue Francoise de Sociologie, v. 25,
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MARTINS, C. B. Notas sobre a teoria da prética em Pierre Bourdieu. Novas Estudos Cebrap, n. 62,
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POLLAK, M,Paul Lazarsfeld, fondateur d’une multinationale scientifique. ARSS, n. 25, p. 45-59, 1979.
VALADE, B. De l’école francaise de sociologie a la sociologie contemporaine en France. In: BERTHELOT,
I-M (Org). La sociologiefrancaise contemporaine. Paris: PUP, 2000.

340 SOCIOLOGIA
SWARZT, D. Culture and Power: the Sociology of Bourdieu. Chicago: The University of Chicago
Press, 1977. '
WACQUANT, L. The Sociological Life of Pierre Bourdieu. International Sociology, v. 17, n. 4,
p. 549556, 2002.
WEBB, 1.; SCHIRATO, T.; DANAHER, G. UnderstandingBourdieu. Lendres: Sage Publication, 2002.

189i SOCIOLOGIA DA SOCIOLOGIA


Gisele Sapiro

Para Bourdieu, a ciéncia, come a arte e a literatura, nae escapa a anélise sociologica. E um
universe social semelhante aos outros, do qual é precise, no entanto, compreender as logicas
especificas. O conceito de campo permite apreender as implicacées, es valores e as regras
que orientam as praticas nesses universes, e que sao irredutiveis aos fatores economicos e
politicos, mesmo que estes nae deixem de estar presentes. Para 0 autor de Homo academicus
(1984), que exibia uma visao desencantada dos mecanismos sociai's em acae no mundo uni:
versitério, e fate de produzir a sociologia das atividades cientificas nae leva necessariamente
a0 relativismo: pelo contrario, ela deve ser concebida como um instrumento de reflexividade
e de vigilancia epistemologica. Tal é a posicao que Bourdieu ira desenvolver ern seu ultimo
curse no College de France, publicado sob o titulo Science de la science et re'flexivz'te’ (2001).
Come explica na sessao introdutéria de seu seminério de 1997 sobre a historia das ciéncias
sociais (BOURDIEU, 2004), para ele a sociologia da sociologia (e das ouiras ciéncias sociais)
nae é uma ciéncia come outra qualquer. “A objetivacao do sujeito da objetivacao”, de acordo
com o titulo dessa introducao, é um meie de controle simbélico da pratica da pesquisa no
sentido em que ela desvela o inconsciente académico que esta subjacente a essa pratica. Longe
de qualquer “cornplacéncia narcisista”, a reflexividade censiste em revelar os determinismes
sociais que pesam sobre a pratica dos pesquisadores, com o fim de supera-los.
A sociologia da socielogia e das outras ciéncias sociais compreende trés mementos. Em
primeiro lugar, ela reinstala os sociologos no mundo social em seu conjunto, reconstituindo
suas trajetérias sociais, suas condicoes de acesso a disciplina, suas escolhas de objetos e de
métodos em funcao de suas disposicoes. Per exemplo, a oposicao entre a teoria e a empiria que
serve de estrutura a disciplina e’ intensamente sexuada: os hornens mestram maior propensée
a generalizacao, o que garante maiores lucros simbolicos com menos esforcos, enquante as
mulheres se dedicam a0 laborioso trabalho de coleta e de analise dos dados. A divisao sexuada
do trabalho intelectual se observa também entre disciplinas (ciéncias versus humanidades,
filosofia versus literatura) e especialidades (sociologia das ciéncias versus sociologia da
arte). O que leva ao segundo nivel de analise, e do campo disciplinar, onde os sociélogos se
diferenciam dependendo da posicao que ocupam (per exemplo, novato versus pesquisador
reconhecido), de suas especialidades e de suas escolhas intelectuais, que sao determinadas
1150 86 per suas propriedades sociais, mas também pelo espaco dos possiveis. Esse espaco
dos possiveis é historicamente constituide e estruturado de acordo com as hierarquias entre
disciplinas (per exemple, entre filosofia e sociologia), especialidades, abordagens (teoria versus
empiria), métodos, escolas e tradicees intelectuais, marcadas muitas vezes por suas origens

SOCIOLOGlA DA SOCIOLOGIA 341


“impuras” (por exemplo, o passado colonial no caso da etuologia — QS). Finalmente, em urn
terceiro nivel, a sociologia da sociologia reinstala as praticas dos pesquisadores na logica
escolastica que caracteriza os universos cientificos e que constitui uma fonte de erro intelec—
tualista (o “viés escoléstico”): essa logica acaba por conduzi-los frequentemente a projetar os
modelos que eles. constroem na mente dos agentes que eles observam, sem se questionarem
sobre a distancia entre urn modelo abstrato e a realidade da pratica. A sociologia da sociologia
é, portanto, inseparavelmente uma sociologia do conhecirnento.

Referéncia
BOURDIEU, P. L’Objectivation du sujet de l’objectivation (1997). In: HEILBRON, 1.; LENOIR, R.;
SAPIRO, G.(Org.). Pour une histoire des sciences sociales. Paris: Fayard, 2004. p. 1923.

190. SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE


Gérard Mauger

Se “a sociologia é uma ciéncia como as outras, que encontra someute uma dificuldade
particular em ser uma ciéncia como as outras” (MS, 36), tal constatacao se deve, segundo
Bourdieu, a razoes politicas e, simultaneamente, epistemolégicas. Pelo fato de que, no seio
do mundo social, diferentes categorias de agentes procuram impor seu “ponto de vista” so-
bre a realidade, a sociologia, queira on n50, é, com efeito', parte integrante das lutas que ela
descreve. Pelo fato de que seu objeto — a representacao do mundo social ~ é politicamente
estrate’gico, ela esté constantemente exposta a regressao para a heteronomia e depara~se com
a contestacéo de sua pretensao a cientificidade. Finalmente, pelo fato de que a sociologia é
determinada simultaneamente pelas condicoes de sua producao — mais ou memos autonoma/
heteronoma ~ e pelas determinacoes inscritas nas disposicoes do pesquisador, ela encontra~se,
a cada momento, exposta a “relativizacao”.
0 imperativo de reflexividade irnpoe-se precisamente como tentativa de livrar a sociologia
da relativizacao: ela deve assumir—se a si mesma como objeto, servindo—se de seus préprios
recursos (teéricos e metodologicos) para se compreender e se controlar. Fazer da reflexividade
urna disposicao constitutiva do habitus cientifico significa controlar, ao mesmo tempo, a
relacao subjetiva com o objeto, os efeitos das condicionantes externas que se exercem sobre
a producao cientifica e a antropologia social inconsciente envolvida na pratica cientiflca.
Podem-se distinguir trés ordens de pressupostos: aqueles que estao associados a ocupacao
de uma posicao no espaco social e a trajetoria particular percorrida para atingi-la; aqueles
que estao ligados ‘a posicao ocupada no campo da pesquisa e ao “inconsciente académico”
da disciplina; aqueles que estao associados a0 pertencimento ao universo escolastico e, em
particular, “a ilusao da auséncia de ilusao”, “a ilusao do ponto de vista absoluto” préprio de
qualquer ponto de vista que se ignora como tal.
A autossocioanélise é, em primeiro lugar, uma tentativa de objetivacao de seu proprio
“ponto de vista”: trata—se de situar socialmente “o ponto” de onde “a vista” é tomada para
tentar discernir o que “a vista” deve ao “ponto de vista” e controlar os efeitos proprios de
uma posicao e das disposicoes que sao importadas nessa operacao —ta1procedimento foi

342 SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE


esbocado por Bourdieu em pelo menos trés oportunidades: “Confissoes impessoais”, em
MP; “Esquisse pour une auto-analyse”, ern SSR (184-220); e ern BAA. Rompendo com a
ilusao do ponto de vista absoluto, a objetivacao do ponto de vista do pesquisador esforca-se,
assim, por contribuir para a construcao “desse ponto de vista sem ponto de vista que é o
ponto de vista da ciéncia” (SSR, 222). ldentificar a posicao ocupada no campo supoe uma
planta do campo que indique precisamente a posicao relativa das diferentes disciplinas
no campo das ciéncias sociais e, no campo da sociologia, as divisoes em “especialidades”,
ern “escolas” etc. Caracterizar urn habitus, tentar definir sua “formula genérica”, supoe a
reconstituicao da sociogénese do sistema de disposicoes constitutivas de um habitus no
decorrer de uma trajetoria biografica.
O pertencimento a urn campo — no caso concreto, 0 da sociologia — implica nao so a
crenca no interesse do jogo e no valor daquilo que esté em jogo, ou seja, a participacao na
“illusio especifica” do campo e a interiorizacao do “habitus especifico” do campo, mas
também a interiorizacao mais ou menos bem-sucedida da heranca cientifica coletiva da
disciplina (problemas, conceitos, métodos). Urna pratica reflexiva de pesquisa supoe a
compreensao das opcoes teoricas e metodolégicas adotadas: “o espaco dos possiveis, escreve
Bourdieu, se realiza em individuos que exercem uma ‘atracao’ ou uma ‘repulsa’ dependendo
de seu peso no campo, ou seja, de sua visibilidade, e também do maior ou menor grau de
afinidade dos habitus que leva a achar que seu pensamento e sua agao sao ‘simpéticos’ ou
‘antipéticos’” (SSR, 36). »
O campo cientifico, de acordo com a analise de Bourdieu, é um “mundo social como os
outros”, parcialmente autonomo, com suas relacoes de forca e suas lutas de interesses, suas
coalizoes e seus monopélios (o que é estudado pelo “programa forte”), e, ao mesmo tempo,
urn “mundo 21 parte” dotado de suas préprias leis de funcionamento em que a competicao esté
submetida a regulacoes automaticas (garantidas pelo controle cruzado entre os concorrentes),
em que a libido dominandi (apetite de reconhecimento) deve se converter em libido sciendi
(apetite de conhecimento), em que a censura esté na origem da sublimacao.
A situacao de skholé, “tempo livre e liberado das urgéncias do mundo que torna pos-
sivel uma relacao livre e liberada com tais nrgéncias e com o mundo”, situacao de “lazer
estudioso”, de leveza social, neutralizando as urgéncias e 05 fins praticos (MP, 26), condicao
social do “pensamento puro”, esta na origem da “disposicao escoléstica” (MP, 24). Ela leva
a que se coloque ern suspenso as exigéncias da situacao, as condicionantes da necessidade
economica e social, as urgéncias que ela impoe 6 cs fins que ela propoe, e a entrar no mundo
lt'ldico da conjetura teorica e da experimentacao mental, que é a condicao de todas as formas
de especulacao gratuita, sem outra finalidade a mic ser elas mesmas. De maneira geral,
os mundos escoléSticos oferecem posicoes em que se podem encontrar boas razoes para
apreender o mundo como uma representacao, um espetaculo, para observa-lo de longe e do
alto, para organizé-lo como urn conjunto destinado unicamente ao conhecimento (MP, 33).
De forma mais concreta, a aprendizagem escolar aparece como a modalidade privilegiada
da interiorizacao de disposicoes mais ou menos permanentes para operar o distanciamento
do real diretamente percebido. Ao objetivar a disposicao escolastica (e seus esquernas de
pensarnento impensados), trata-se de explorar metodicamente os limites que o pensamento
escoléstico deve ‘as condicoes de sua emergéncia, tentando livrar~se deles. Em que a disposicao

SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE 343


escoléstica afeta o pensamento que ela torna possivel? Quais s50 03 pressupostos inscritos no
fato de estar em condicoes de se retirar do mundo para pensé—lo? Bourdieu indica trés formas
de erro escolastico, trés modalidades de etnocentrismo escolastico: o epistemocentrismo, o
moralismo e o universalismo estético.
O principio do epistemocentrismo escolastico reside na confusao entre sujeito reflexivo e
agente atuante, entre conhecimento erudite (“razao refletida”, escolastica, teérica) e conheci-
mento prético (compreensao primeira do mundo associada a experiéncia da inclusao nesse
mundo), na imputacao ao agente atuante de um interesse de puro conhecirnento e de pura
compreenséoz “O pesquisador oferece o mundo tal como ele o pensa (isto é, como objeto de
contemplacao, representacao, espetaculo) como se fosse o mundo tal como ele se apresenta
aqueles que nao térn a disponibilidade (on o desejo) de se retirar dele para pensé-lo” (MP, 65).
E por isso que o epistemocentrismo escoléstico engendrado pela condicao escolastica esta na
origem de uma compreensao quase sempre erronea e deformada da compreensao prética: nessa
perspectiva, a rational action theory é um efeito da relacao escoléstica com o mundo. Desse
ponto de vista, a reflexividade (que convida a assumir um ponto de vista teorico sobre o ponto
de vista teérico) é um meio escolastico de luta contra as disposicoes escolasticas: trata-se de
“se colocar em pensamento, mediante um trabalho teérico e empirico [. . .], do ponto de vista
do agente praticamente envolvido”, de reconstruir teoricamente a logica pratica ao incluir a
distancia entre “logica teorica” e “logica pratica”.
A segunda forma do etnocentrismo escolastico reside, de acordo com Bourdieu, na ge—
nerosidade democrética Virtuosa do “universalisrno intelectualista” que conduz a projetar
no campo politico as formas (idealizadas) da discussao racional entre intelectuais em
um
seminério de pesquisa (projecao ilustrada de modo tipico-ideal pelo “espaco pfiblico” e pelo
“agir comunicacional” de Iiirgen Habermas). Assim, ela atribm' a todos uma “opiniao pessoal”
ou uma “escolha economica” esclarecida (com total desconhecimento das condicoes econo-
micas e sociais de possibilidade). O esforco de reflexividade visa, entao, ao universalismo
abstrato que ignora as condicoes economicas e sociais de acesso ao universal. Ele enfatiza
essa espécie de etnocentrismo que reduz as relacoes de forca a relacoes de comunicacéo,
ignorando que “a forca dos argumentos n50 é eficaz contra os argumentos da forca” (MP,
80), e que “a dominacao nunca esta ausente das relacoes sociais de comunicacao” (MP, 80).
Do mesmo modo, ele interpela a boa consciéncia democrética, outra forma de universalismo
ficticio que supoe um controle igualitario dos instrumentos de producao politica e ignora
(recalca) as condicoes de acesso a esfera politica e, em particular, a opiniao politica articulada
(que depende do “pedagio invisivel” do capital escolar) (MP, 89). Uma “Realpolitik da razéo”
propoe, contra o universalismo abstrato que, ao imputar as “caréncias” a uma “natureza”,
justifica a distribuicao em vigor dos poderes e dos privilégios, e contra o relativismo cinico
e desencantado que, sob pretexto de subversao niilista, aceita a ordem estabelecida, meios
reais de realizar esse direito formalmente universal.
A terceira forma do etnocentrismo‘ escoléstico consists em universalizar abstratamente
o “prazer estético”, ou seja, “o prazer suscetivel de ser experimentado por qualquer homem”
(Kant). A'objetivacao sociolégica coloca em evidéncia a dupla condicao desse “prazer puro”:
de um lado, a emergéncia de um campo artistico e, de outro, uma educacao familiar e escolar
capaz de colocar em suspenso os interesses préticos e de inculcar uma postura gratuita e

344 SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE


desinteressada, “disposicao pura” que condiciona o acesso a0 “prazer puro”. Em particular, a
reflexividade adverte contra o estetismo populista cuja preocupacao de reabilitacao converte
a privacio ern pleno ato eletivo e que, atribuindo ao povo urna “estética” ou uma “cultura
popular", ignora que “o mundo social, com suas hierarquias que 1150 se deixarn facilmente
relativizar, 11210 é relativista” (MP, 91).
His 0 motive pelo qual uma “Realpolitik do universal” passa pela “luta politica permanente
em prol da universalizacao das condicoes de acesso ao universal” (MP, 100).

191. SOCIOLOGIE DE L'ALGERIE


Enrique Martin Criado

BOURDIEU, P. Sociologie de l’Algérie. Paris: Presses Universitaires de France, 1958.

Primeiro livro de Bourdieu, publicado em 1958 (coiecao Que sais-je? da editora PUP), é
a sua irnersao inaugural na sociologia, depois de seus estudos de filosofia. O livro é, basica-
mente, um trabalho de biblioteca, onde Bourdieu utiliza a literatura colonial sobre a Argélia,
interpretando-a a partir dos autores que comeca a trabalhar nessa e'poca, fundamentalmente
Levi-Strauss, Margaret Mead, Durkheim e Max Weber.
Os trés primeiros capitulos apresentam trés grupos berberes —>cabilios, chaouias e mo»
zabitas ~, destacando sua perfeita coesao social que lhes permitia sobreviver em um meio
fisico hostil. No quarto capitulo analisa a populacao arabéfona ~ a que divide ern urbanos,
nomades e seminémades, semissedentérios —, destacando também seu equilibrio e coesao
social. 0 quinto capitulo analisa ofundo comum dessas populacées: estruturacao social — em
linhagens, tribos, povos, ligas — a partir das relacoes familiares; tradicionaiismo e primazia
do grupo sobre o individuo; relacoes economicas pré-capitalistas, em que primam os ciclos
de reciprocidade associados a busca da honra e prestigio. O ultimo capitulo analisa a de-
sestruturacao dessas sociedades, devido ao colonialismo francés, que destréi as sociedades
originais ao perseguir exclusivamente os interesses dos colonizadores. A énfase de Bourdieu
na coeréncia das sociedades argelinas originais se deve em parte a influéncia de Durkheim,
Mead e Lévi-Strauss, que descreviam as sociedades primitivas como perfeitamente integra-
das. Mas, também, a seu objetivo politico: ele escreve o livro em plena guerra da Argélia, e a
faccao francesa justifica a guerra como um combate da civilizacio contra a barbarie. Bourdieu
denuncia o colonialismo defendendo a perfeicéo da organizacao social argelina tradicional,
tendo procedido a revisoes no texto nas edicées de 1961, 1963 e 1985.

"i92. SOCIOLOGIE EST UN SPORT DE COMBAT(LA)


Afraim‘o Menzies Catani

O filme de Pierre Carles (2001) acornpanha, ern seus 146 minutes, parte da trajetoria de Pierre
Bourdieu, em especial suas atividades de sociélogo engajado ern alguns movimentos sociais de
seu tempo. 0 titulo, emblemético, refere~se a uma consideracao realizada por ele logo 110 inicio, ao

SOCIOLOGIE EST UN SPORT DE COMBAT (LA) 345


afirmar que “a sociologia serve como um esporte de combate e, como tal, serve para se defender,
n50 deve servir para atacar”. Mas, defender quem, do que? Defender aqueles individuos que se
encontram em situagéo de perigo social real on iminente diante dos poderes que os oprimern ~ 03
governos de direita e/ou de esquerda, que na pratica operam de forma semelhante; a midia, ao
elaborar um discurso que flumina determinadas dimensfies sociais e obscurece outras; as asso-
ciaeoes internacionais trflaterais de crédito e fomento; os organismos patronais, etc. A sociologia
pode ajudar a explicar—lhes melhor a situagao que vivenciam, as causas sociais que conduziram
seus destinos a essa condigéo de desfavorabilidade. Entretanto, explicar, descrever, mostrar n50 é
solucionar nem transformar — dar’ a necessidade dos movimentos sociais organizados.
A fita é repleta de entrevistas concedidas por Bourdieu a pesquisadores, a programas
radiofénicos e televisivos, além de registrar Vérias de suas participagées em debates pfibh’cos
em instituieoes académicas e associaeoes culturais Vinculadas a outras entidades da sociedade
civil. Nao se excluem, ainda, reunioes de trabalho com sua equipe de pesquisadores e com
seus auxiliares administrativos; aulas e exposieoes que integram seu me’tz’er de professor e
répidosflashes que o mostram em momentos de tenséo e de relaxamento. Carles nao parece
tao preocupado com a duragao do filme, pois tudo o que considerou relevante nas andangas de
Bourdieu acabou preservando na montagem: a Ionga explicagfio do sociélogo sobre sua noeao
de capital cultural; as consideragoes acerca de suas origens sociais e formaeio académica; as
conversas com outros intelectuais em que vai delineando seu método de trabalho, a “cozinha
da pesquisa” e formas de artesanato intelectual; sua interpretagéo da dominaeao masculina,
do papel do estado e das reformas neoliberais, baseadas na dissociaeéo do economico e do .
social; 0 combate a tendéncia anti~inte1ectualista, que dé 0 tom em boa parte dos movimen—
tos sociais e seu orgulho em se reafirmar um “agitprop” (“agitador profissional”), que tanto
horror causou a intelectuais ligados ao governo socialista francés no inicio dos anos 2000.
N510 se perde de vista, iguahnente, extensa sessao de debates em um auditério de um banlieue
parisiense, em que Bourdieu passa por mans momentos, recebendo criticas e reagindo, quan-
do um dos participantes sai em sua defesa: “C’est Bourdieu, pas Dieu!”. E acrescenta bem«
humorado que em seu duro cotidiano eles também “tentam ser sociélogos, mas vira-latas”.
Reafirmando que a (mica maneira de enfrentar tal situaqéo adversa seria a organizagao
de movimentos sociais com objetivos bem definidos, defende a necessidade dos sociologos
fazerem sua propria sociologia, fazerem autossocioanalise. “E fazendo a socioanélise da sua
propria experiéncia que se pode servir sociologicamente. Alias, o proprio trabalho da pes-
quisa é uma socioanalise [...] Aprende-se muito sobre si mesmo [...] Um professor aprende
mais sobre seu inconsciente estudando 0 sisterna escolar que estudando a obra de Freud”.

:93. STRUCTURES SOC/ALES DE L 'ECONOMIE (LES)


Roberto Grim

BOURDIEU, P. Les structures sociales de l’e’conomie. Paris: Seuil, 2000.

Bourdieu publicou esse livro a partir de pesquisa coletiva do Centro de Sociologia Europeia
que, inicialmente, saiu na ARSS (1990). Numa primeira aproximaeao, estamos diante de

345 STRUCTURES SOC/ALES DE L’ECONOMIE (LES)


uma anélise setorial do ramo imobiliério da economia francesa. Mas nao é dificil dizer que
o livro é exatarnente o contrario disso. O espaco da politica imobiliéria, construcao, compra,
venda e financiamento de iméveis é aqui utilizado para dar substancia a urna sociologia da
economia. Nela a logica social que impele os atores e fixa instituicées e atos é estudada indu-
tivarnente, num exemplo alentado de conclusoes baseadas na metodologia sociolégica das
“maos sujas” explicitada por Hirsch (1990). A analise se realiza a partir do comportamento
empirico dos envolvidos e da construcao das instituicoes, sem pressupostos extraidos de al—
guma antropologia filosofica que confere racionalidade ao ator e as instituicoes. A0 contrério,
a pesquisa mostra a especificacao progressiva de novos habitus economicos sendo lapidados
a partir da socializacao mais ampla daqueles que se envolvem com o ramo imobiliério, sejam
eles consumidores ou membros dos diversos elos da cadeia produtiva do setor, incluindo os
agentes governamentais.
Nessa primeira versao, na ARSS, cada artigo que depois seré consolidado em capitulo no
livro, tern coautoria de colaboradores constantes de Bourdieu daquele periodo: Monique de Saint
Martin, Rosine Christin, Claire Givry e o estati'stico Salah Bouhedja. O prefacio de Bourdieu na
publicacao em revista, portanto voltada a um pfiblico especializado, indica uma preocupacao central
com os resultados da politica habitacional francesa da década precedente sobre a formatacao das
classes médias e a estruturacao das famflias daquelepais (BOURDIEU, 1990). Na versao publicada
em livro dez anos depois, os objetivos sao mais amplos e indicam uma tentativa de dialogo com
economistas 6 com a florescente “nova sociologia economical”, praticada nos paises anglo~sax6es.
E assim que, além da consolidacao e edicao dos “findings”, 0 livro apresenta prefacio e posfécio v
reescritos, indicando os novos interlocutores e a abrangéncia pretendida.
Os diversos componentes da politica imobiliéria séo expostos como a construcao de um
mercado que, 1150 por acaso, é aquele que alavanca a economia. Um dos indices mais aguar-
dados pelos analistas economicos é 0 da evolucéo da construcao civil, pois, quando cresce
o m’imero de unidades on a nietragem em obras, toda uma série de indi'istrias (materiais de
construcao, eletrodomésticos, moveis e transportes) também é estimulada, aumentando a
atividade no setor de indfistrias de matérias-primas e componentes que as alimentam.
Na analise de Bourdieu, o “produto” residéncia se constréi e se define a partir de dados “objetivos”,
normalmente trabalhados pelos engenheiros civis e economistas e de dados ditos “subjetivos”, que
costumam set a zona de diferenciacao profissional dos arquitetos e especialistas em mercadologia. E
justamente na nova conformacao que o habitus primario adquire quando tern de servir de referéncia
‘as estratégias dos individuos e grupos no novo espago da politica habitacional e do territorio que
estava se formando que se faz ajuncao entre as duas esferas normalmente apartadas da anah'se de
um setor que é da economia, mas também configura tuna esfera central da sociabfljdade. O caso
da politica habitacional fiancesa dos anos 1960 até 1980 é explorado como exemplo das diversas
transformacoes sociais e cognitivas que vao progressivamente configurar a contemporaneidade de
uma sociedade capitalista, como a interacao entre diversas agendas governmentais centralizadas,
governos locais e Varios setores da iniciativa dita “privada”, que se frequentam e acabam per se
constituir em espacos de dialogo e de interpenetracao que irao reconfigurar o espaco social na
mi’iltipla acepcao de novas regulamentagoes, novas habitualidades e novos padroes de sociabilidade.
Assim, estamos diante de uma apresentacao detalhada e consistente da criagao social de um novo
mercado, justamente a ambicao maior da “nova sociologia economica”.

STRUCTURES SOCIALES DE L’ECONOMIE (LES) 347


No terceiro capitulo é analisada a questao do crédito necessario a0 financiamento e, pop
tanto, a expansao do setor imobiliario. Nesse topico ternos também uma analise das interacoes
entre os corretores, agentes bancarios e 05 clientes que se candidatam ao crédito, além da
explicitacao do conjunto de tecnologias sociais e cognitivas que ajustarn as expectativas dos
consirrnidores, em geral superdimensionadas, ‘as suas “reais” condicoes de pagarnento e, por-
tanto, do padrao de residéncia que esta ao seu alcance. A analise das démarches termina por
conformar as expectativas dos clientes a realidade do momento financeiro — seu e da economia.
Os textos injciais e finais trazem o ljvro para as preocupacoes e debates em torno da nova
sociologia economica e da evolucao da doutrina econémica contemporanea e do capitalismo
propriamente dito rumo ao neoliberalismo. Temos uma discussao curta e densa sobre a diferenca
entre sociologia e economia. A primeira é normalmente desprezada pelas elites dominantes e por
isso, paradoxalmente, deixada livre para perseguir sua légica puramente intelectual. A economia,
por sua vez, é vigiada de perto e cobrada sistematicamente, a ponto de se tornar uma “ciéncia de
Estado”, normativa, que nao diz como as coisas sao, mas como deveriam ser se quisermos ser racio4
nais. Nessa apresentacao é exposta de maneiracontundente avisao de Bourdieu sobre o papel mais
frequente da teoria economica na sociedade contemporanea, bastante préxjrno daquele conferido
ao Direito. Essa tendéncia aparece corn 0 préprio advento do capitalismo, sendo exacerbada nos
anos 1990 com o im’cio da construcao das instituicées da Uniao Europeia (SSE, 22—23).
Os dados coligidos pela equipe de Bourdieu permitem uma série de questionamentos sobre o
fundamento cientifico da teoria economica ortodoxa. Ainda que sua prépria analise mostre seu
caréter normative, lembra que ela se impoe, ao menos em parte, pela aura de cientificidade que
goza junto a populacao e especialmente junto as elites. Nos textos finais do livro encontrarnos
uma critica dos fundamentos anah'ticos daquela teoria economical e uma exposicao sobre como
e por que eles se opoem a uma economia das préticas do mercado imobiliario. A teoria econ6~
mica se define justamente contra as praticas efetivas encontradas no trabalho de campo e, por
esse caminho, Bourdieu mostra como ela se constitui numa abordagem normativa (SSE, 241).
Per firn, deve-se consultar o balanco que o economista Robert Boyer, fundador da Escola
da Regulagao, faz da relacao entre a sociologia de Bourdieu e sua propria corrente na econo—
mia, na qual reconhece a contribuicao especifica do sociélogo e a convergéncia possivel, e em
alguns casos efetiva, entre as duas abordagens (BOYBR, 2003).

Referéncias
BOURDIEU, P. Un signe des temps. ARSS, p. 2‘5, 1990.
BOYER, R. L’Anthropologie économique de Pierre Bourdieu. ARSS, v. 150, p. 65-78, 2003.
HIRSCH, R; MICHAELS, 8.; FRIEDMAN, R. Clean Models vs Dirty Hands: Why Economics is Differ
ent from Sociology. In: ZUKIN, S.; DIMAGGIO, P. Structures ofCapital: The Social Organization
of the Economy. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 39—56.

194, SUJEITO

Ver: Agente

348 SUJEITO
795. TAXIONOMIA
Maria Alice Nogueira

“Taxionomia” é um termo de uso corrente na obra de Bourdieu. E empregado para designar


as operacoes mentais ~ cotidianamente efetuadas p605 agentes sociaisl— de categorizacfio
da realidade social 6 de etiquetagem das pessoas e das coisas. Mas adverte que nao se trata
de “uma pura construcao intelectual” (BB, 187), pois essas categorias de pensamento sao
socialmente constituidas.
Na propria definicao do autor, séo “sistemas de classificacao (taxionomias) que organi—
zam a percepcao e a apreciacao, e estruturam a prética” (BB, 187) e que estao gravados na
linguagem corrente. Esses sistemas classificatérios funcionam por meio de pares de oposicoes
(a esquerda e a direita, 0 grosseiro e 0 fine, 0 distinto e o vulgar, etc.) que, subjetivamente
interiorizados, tornam-se principios de visao e de divisao social. A0 mesmo tempo em que
séo estruturados (a partir das condicoes objetivas de existéncia), tém poderes estruturantes
de instituir formas de clivagem social.
Trata—se, com efeito, de um conhecimento prético do mundo, sem o qual 1150 se conse-
guiria viver e agir na realidade social. Segundo Bourdieu, “nossa percepcéo e mssa prética
[...] sao guiadas por taxionomias préticas, oposicoes entre o alto e o baixo, o masculino (on
o viril) e o feminine etc. e as classificacoes que essas taxionomias préticas produzem devem
sua virtude a0 fato de serem ‘praticas’, sem as quais a Vida se tornaria impossivel” (CDp, 92).
Talvez se possa dizer que foi no artigo “As categorias do juizo professoral”, escrito em
coautoria com Monique de Saint Martin e publicado em 1975 em Actes-de la Recherche
en Sciences Sociales, que Bourdieu ilustrou melhor suas ideias sobre a questao, ao se
debrucar sobre o caso da producao da “taxionomia escolar” (exemplos: “brilhante/sem
brilho;1eve/pesado”, etc.).

196.TELEVISAO - . .. .

Ver: Midia

TELEVIsAo 349
197. TEMPO
Ana Teresa Martinez

A nocao de tempo tem na sociologia antropologica de Pierre Bourdieu uma centralidade


que foi pouco destacada. E, por outro lado, urn dos conceitos que permite ver melhor a vin-
culacao de sua obra com a fenomenologia husserliana, assim como suas rupturas.
Em sua ideia do an como substrato de habitualidades, Husserl distingue entre a constituicao
do tempo imanente, objetivo, e a experiéncia antepredicativa do fluxo da consciéncia, constituido
por um agora que conte’m em 51 o instante imediatamente anterior, enquanto “haver sido” ainda
presente, que vai se desvanecendo progressivamente “como a cauda de um cometa”. E o que
chama de retencfio. Porém, no mesmo “agora” em movimento, se antecipa também o porvir, a0
modo em que pressentimos a continuacao de uma melodia, como sendo transportados por sua
estrutura. Husserl chama a esta antecipacao de protensdo. O tempo objetivo, por outro lado, é
produto de um ato segundo, atencional e reflexive, no qual é possivel voltar-se sobre a retencfio
e a protensdo para produzir recordagoes e expectativas que se diferenciam daquelas em seu
caréter de representacao consciente, tematizada (HUSSERL, 1959, 1962).
Essa ideia husserliana é retomada por Bourdieu desde os seus primeiros textos sobre
a Argélia para explicar a diferenca entre a experiéncia do tempo dos camponeses e a expe—
riéncia suposta nas préticas préprias do sistema capitalista ~ centrado no espirito do calculo
(BOURDIEU, 1963; MP, 66) e continuara implicita em sua teorizacao até seus filtimos livros e
artigos sobre a sociedade francesa (SSE). Sc') que para Bourdieu nao é a subjetividade transcen-
dental o substrate dessas fases temporais, mas sim o habitus tal como ele o entende, ou seja, 0
principio de operacoes de um corpo socializado. Desta maneira, as Meditago’es cartesianas
de Husserl dao lugar a suas Meditago'espascalianas. A cumplicidade ontologica entre Dasein
e Welt de Heidegger, o discipulo de Husserl, se converteu em cumplicidade entre habitus e
campo como cumplicidade historica (RP, 172; MP, 37, 170).
A0 longo dos anos fara sujeitar essa transposicao conceitual e critica da filosofia para a
sociologia analisando a heranca, os tipos de capital e a reproducao social; 0 significado do lapso
entre dom e contradom e a manipulacao do tempo para a dominacao nos diversos campos;
o valor classificador dos usos do tempo nos estilos de Vida; a incidéncia das trajetérias sobre
posicoes e tomadas de posicao; a temporalidade especifica da posicao de observador que
assume 0 cientifico e suas consequéncias epistemologicas e éfico-politicas.
0 habitus é o lugar das retencoes, como um fundo de experiéncia que se mantém poten-
cialmente disponivel e que, em uma configuracao especifica do espaco social, antecipando~se
aos acontecimentos razoavelmente esperéveis, se desdobra em estratégias pré~reflexivas. A
capacidade de antecipacao — que nao é, entao, o mesmo que a previsibilidade — do cenario se
torna, assim, fundamental para a reproducao social, que é sempre também producao, dado
o fundo disponivel da potencialidade do habitus — marcado por uma trajetéria social par~
ticular - e as modificacoes que se produzem no campo. Quando neste se geram mudancas
demasiado violentas, on per alguma razao o habitus do agente nao encontra maneira de nele
se apoiar para a antecipacao, o agente se vé jogado ao desconhecido, e pode repetir praticas
conhecidas, porém ineficazes, como os camponeses desenraizados da Argélia, que vendiam
a perda em um mercado cujas regras ignoravam, on 05 berneses, que continuavam aferrados

350 TEMPO
mesmo podem apostar
a tradicoes que trabalhavam contra a transmissibilidade da terra; ou
tes das universidades
quase no vazio, acreditando que tudo se tornou possivel, como os assisten
constit uida pela relacao entre
na crise de 1968, explorada em Homo academicus. A illusio é
m no campo. Porém,
as expectativas incorporadas e as possibilidades reais que se oferece
a coeréncia.
quando a illusio nao se concretiza neste campo, as lusiones perdem
como uma filosofia subjetivista
Deixadas de lado, tanto uma metafisica do tempo objetivo
finito desenvolvendo~se na
da temporalidade, o agente é, enquanto corpo socializado, tempo
social em que habita e que
sucessao de suas praticas, produzindo e reproduzindo o mundo
Deste modo, a experiéncia do
o habita. A pratica nao estd no tempo, mas simfaz o tempo.
que .duram e no use do
tempo'nao é universal nem homogénea. Desde a fixacao nas coisas
de um tempo sempre escasso
tempo gratuito e despreocupado da aristocracia, aos apuros
mas infitil e sem valor social
na pequena burguesia (LD, 241), on ao tempo superabundante,
rais ou acumular capitais
dos desocupados (LD, 264), a possibilidade de herdar dos ancest
éncia desigual do tempo,
diversos a0 longo da Vida esta desigualmente distribuida. A experi
rias se corresponde com distri-
das chances efetivas e das expectativas vinculadas a trajeté
podem ser consideradas como
buicoes desiguais de capital, que em suas diferentes espécies
255, 267).
“um conjunto de direitos de compreensao sobre o futuro” (MP,
solteir os de Béarn, Bourdieu prestou
Desde a anélise do baile que exclui os camponeses
o termo musical “tempo”) como
atencao a0 ritmo (ao qual alude com frequéncia utilizando
uma relacao comp a‘duracao por
um indicador do habitus. E o ritmo o que se grava no corpo
des coletivas se impoe como
meio da qual se incorpora a ordem social: 0 tempo das ativida
larizarem (SP, 127). For outro
imperative de honra aos cabilas, convocados a 1150 se singu
quadros temporais da Vida social,
lado, os estudantes franceses estao habilitados a romper os
(LH, 48; MP, 266). Porérn, se 0 tempo é
invertendo inclusive os horérios do dia e da noite
a hora de analisar a dominacao e
uma chave para os processos de incorporacao da hexis,
m o é. Quanto mais pessoal é a
as estratégias politicas de dominantes e dominados també
percepi de capital, mais inversao de
dominacao e mais pesa 0 capital simbolico enquanto
o: isso ocorre na sociedade cabila
tempo é requerida a0 dominante para sustentar sua posica
lapso que transcorre entre o dom e
e na universidade francesa. No intercambio de dons, o
bilita a denegacao de seu carater
o contradom é o que estabelece uma protecao que possi
dos intercambios estao baseadas as
obrigatorio e interessado. Por isso, no manejo do ritmo
cabila que dilata a resposta diante de
estratégias para tirar o maior proveito, seja no caso do
as vantagens dessa posicéo (SP,
um pedido de casamento para usufruir mais amplamente
o discurso da imaturidade de uma
181), seja no caso do professor de universidade que, sob
a sob tutela e resguardar, assim,
tese, dilata o prazo da defesa para manter o autor da mesm
flexivo, em que a crenca é um
a ordem de sucessao esperada (HA). Neste ambito do pré-re
mais ritualizadas 550 as interacées,
solo implicito sobre o qual se apoia o laco social, quanto
m ocorre o contrério, em situa—
mais eficacia social tem o manejo do tempo. Porém, també
nos momentos de crise ou quando
coes com alto grau de indeterminacao — como acontece
possibilidades de manipulacao
se diversificam os agentes em um campo —, quando ha mais
possivel introduzir uma novidade
das expectativas desconcertadas, mas também quando é
o, programa on plane nao aceitavel
que modifica as posicoes, em termos de utopias, projet
em situacoes de estabilidade (MP, 277278).
TEMPO 351
Finalmente, é fundamental na sociologia de Bourdieu nao confundir esta experiéncia
pré-reflexiva do tempo, que estrutura as préticas cotidianas, urgidas pelo “o que é preciso fazer”,
com o tempo especifico da prética cientifica, tempo objetivo e totalizador daquele que assume
a posieao de observador; e, na atitude analitica, o descontinuo volta a ser continuo, converte a
experiéncia de tempo circular em calendério linear, a experiéncia do espago praticado em mapa
abstrato, os intercambios matrimoniais 0corridos durante geragoes em incerteza’e a negociaeao
em esquemas de genealogias que permitem observé—los tota simul. A skholé, enquanto tempo
livre e liberado das urgéncias do mundo, imprescindivel para a prética cientifica, tende a fazer
esquecer o caréter especifico da temporalidade das préticas sociais e dificulta a compreensao
de seu significado, em uma teoria da agao que confunde razoabilidade com racionalidade e a
logica analogica do sentido prético com a logica univoca da logica como disciplina (MP, 247249).

Referéncias _
BOURDIEU, P. La société traditionnelle. Sociologie du Travail, v. 1, 1963.
HUSSERL, E. Fenomenologt’a de la conciencia del tiempa inmanente (1928). Buenos Aires: Nova, 1959.
HUSSERL, E. Ideas I (1913). México: Fondo de Cultura Econémica, 1962.

"gas. TEORIA

Roberto Grim

Bourdieu se ocupa com a categoria “trabalho” no inicio de sua carreira como antropologo
na Argélia, que entao luta para romper os lagos de dependéncia com a Franea. Nesse contexto,
o termo tern dois enfoques, apenas parcialmente divergentes. De um lado, o trabalho do cam~
ponés nas comunidades rurais ainda nao totalmente incorporadas ao universo capitalista,
mas praticando ainda em grande parte um modo de Vida ditado ou pensado pelos ciclos da
natureza. De outro, a experiéncia de Vida dos camponeses desenraizados e transformados
em subproletarios que tentam escavar a Vida nas cidades coloniais, nas quais. as referéncias
formadas na socializaeao primaria original estao longe de dar conta das circunsténcias efe-
tivas do totidiano. Nessa primeira fase, o termo “trabalho” tem o significado preponderante
de “labuta”, da relagao que o homem tern de estabelecer com a natureza e 05 outros homens
para ganhar, no sentido de ter e merecer, uma Vida digna. E importante termos em conta as
ressalvas necessérias introduzidas por duas tradueéés complexas, a primeira do érabe e do
berbere argelinos para o francés e a segunda do francés para o portugués. Isso porque boa parte
do esforgo de Bourdieu dessa fase estava justamente na tradueao para 'o francés dos termos
argelinos usados nos sistemas simbolicos que davam conta das relagoes sociais e césmicas.
Essa fase do percurso intelectual de Bourdieu esta registrada nos primeiros livros sobre a
Argéliae nas duas grandes sinteses antropologicas generalizantes, ou teoricas (SA; DR; ETP;
SP). Mais recentemente uma recolha sistema’tica realizada por Tassadit Yacine acrescenta a

352 TEORIA
‘ww:
material
série urn conjunto de trabalhos que estavam pouco acessiveis (EA). Temos entao
significa dos do termo “trabalh o” nessa fase em
sistematizado para refletir sobre os diversos
que a antropologia do desenraizamento é a sua preocupagao fundame ntal.
a
A categoria trabalho, num sentido que poden’amos chamar aproximativamente de sociologi
o prefacio
do contemporaneo, aparece em diversos textos posteriores, sendo digno de nota
egados austriacos
de Bourdieu a0 livro de Lazarsfeld; Iahoda et al. (1981) sobre os desempr
E por esse
durante a grande depressao de 1929, que Bourdieu publica na colegao que edita.
a trabalho
caminho da vivéncia do desemprego que Bourdieu faz a ligagao entre a categori
enfatizavam a questao
na antropologia e na sociologia. Os marxisrnos entao prevalecentes
sua experiencia
da alienagao no trabalho como parte da exploragao capitalista e, a partir de
os e grupo na
argelina, Bourdieu enfoca o trabalho como forma de inscrigao dos individu
gia do trabalho ”.
sociedade. E assim que se forma a chamada “socioantropolo
chamou de
Sern ignorar a abordagem marxista, Bourdieu vai insistir a partir dai no que
da questao identita~
“dupla verdade do trabalho”, unindo a ponta da exploragao economica a
de a exploragao
ria. E a grande inovaeao sociolégica estava justarnente na ligagio da identida
situaga o de trabalho ern
como fundamento possante dos constrangimentos produzidos pela
que via a descida ao
regime capitalista. O exemplo do jovem aldeao filho de mineiro de carvao
ilidade de carreira ligada
pogo corno prova de masculinidade, abandonando qualquer possib
que muitos COnsiderariam
a uma escolarizagao mais prolongada e abraqandoum destino
inaceitavel, mostrava historicamente essa questao.
associada a sociologia
A dupla verdade consiste teoricamente na necessidade primeira,
referida ao trabalho como
marxista, de mostrar a realidade objetiva do trabalho, que é aquela
deve ser visto corno pura
exploragéo ,economica. Para aceder a essa percepgao, o trabalho
a percepeao de que se
relaeao cornercial, destituida de qualquer “perturbagao” que impeea
desigua ldade entre a forqa do
trata de um contrato aparentemente entre iguais que encobre a
ga, quaisquer atrativos
empregador e a fraqueza do empregado. Para que essa visao prevale
siderados. Essa é a
ligados a condigao do trabalho on a de trabalhador devem ser descon
idos de Marx para assinalar
“primeira verdade”. Bourdieu se escora em textos memos conhec
que a percepgao de tal verdade é um caso raro e mesmo limite.
o. E ela que correspon—
A “segunda verdade" é a vivéncia subjetiva da situaeao de trabalh
s libidos nas esferas relacional,
de ‘a experiéncia cotidiana, na qual todos investem diversa
é eixo fundamental para a
cultural e identitarias. Como 0 local 011 a situagao de trabalho
ca ligada a “ir trabalhar” e um
constituiqao das redes sociais, ha uma satisfagao intrinse
tornarn cada vez menos
incremento em capital simbolico no “crescimento profissional” que
Bourdieu, “a experiéncia
provavel a preponderancia da “primeira verdade”. Nas palavras de
lmente determinado
do trabalho se situa entre dois limites, o trabalho forgado que é integra
qual o limite é a atividade quase
pelo constrangimento externo e o trabalho escolastico do
ra, menos se trabalha
ludica do artista on do escritor; quanto mais se distancia da primei
o e cresce também o sen~
diretamente por dinheiro, cresce mais o “interesse” pelo trabalh
o, da mesma maneira que cresce o
timento de plenitude ligado ao fato de realizar o trabalh
ao status profissional e a
interesse ligado as gratificagoes simbolicas associadas a profissao,
estreita com o interesse
qualidade das relaeoes de trabalho, que costumam guardar relaqao
intrinseco pelo trabalho” (RP, 241).

TRABALHO 353
A formulacéo “interesse intrinseco pelo trabalho” tem uma enorme importancia em diversos
segmentos da sociologia de Bourdieu. Na sociologia do Estado, ele seré um fator determin
ante
na possibflidade de haver funcionérios dedicados ao aparentemente abstrato interesse coletivo
(RP). Na sociologia do trabalho propriamente dita, ela apaIece como ponto central dos jogos
de Enquadramento que consagram a dominacao capitalista dos diversos arranjos produtivo
s:
“As novas técnicas de gestéo de empresas e em particular tudo o que é englobado na rubrica
de
‘gestao participativa’ pode ser entendido como tentativas de tirar partido, de maneira metodica
e sistemé’u‘ca, de todas as possibilidades que a ambigujdade do trabalho oferece as estratégia
s
patronais” (RP, 244). Mais uma vez é importante ligar essa analise a formulacao sobre habitus
etudo o que a separa da ideia de ideologia normalmente utilizada nas sociologias criticas. A
“segunda verdade” explora a estrutura social incorporada no corpo e alma do trabalhad
or. A
simples revelacao verbal da “primeira verdade” néo impede o funcionamento automético do
habitus. E 11510 é assim por acaso que ela normalmente tende a ser rejeitada, ja que entra em
choque com as estratégias identitérias dos trabalhadores, que sao construidas a partir das refe-
réncias produzidas no trabalho e da sua posicao especifica na hierarquia nos coletivos laborais.
A “primeira verdade” so aparece entao em condicoes muito especiais em que se esvai 0 capital
simbolico normalmente associado as posicoes patronais ou gerenciais.
O coletivo de pesquisadores que acompanhou Bourdieu em distintos momentos de sua
carreira se ocupou de diversas facetas da sociologia do trabalho. Assim, nao é exagero se falar
numa “sociologia do trabalho bourdieusiana”, interessada em diversos topicos da atualidade,
que v50 do trabalho gerencial de enquadramento (VILLETTE, 1979) 210 trabalho nas empresas
.
de alta tecnologia (BALAZS; FAGUER, 1996), passando pelo exemplar trabalho taylorizado nas
montadoras de veiculos (BEAUD; PIALOUX, 1999).

Referéncias
BALAZS, G; FAGUER, LP. Une nouvelle forme de management, l’évaluation. ARSS,
v. 114, p. 68‘78, 1996.
BEAUD, S.; PIALOUX, M. Retour sur la condition ouvriére: enquéte aux usines Peugeot de
Sochaux—Mantbéliard. Paris: Fayard, 1999.
LAZARSFELD, P. E; IAHODA, M. et al. Les Chémeurs de Marienthal. Texte imprimé traduit
de
l’allemand par Francoise Laroche, préface de Pierre Bourdieu. Paris: Minuit, 1981.
VILLETTE, M. La carriére d’un “cadre de gauche” aprés 1968. ARSS, v. 29, p. 64-74, sept.
1979.

200. TRAJETCRIA

Angela Xavier de Brito

Bourdieu tem uma forma particular, embora relativamente tardia, de utilizar a nocéo de
trajetéria, integrando—a as principais nocoes de sua teoria — habitus, campo e as diferentes
formas de capitais. A trajetoria social se refere originalmente “a evolucéo ao longo do tempo
de propriedades”, tais como 0 volume e a estrutura do capital do grupo analisado, “que dé
origem as representacoes subjetivas inerentes ‘a posicéo objetivamente ocupada” por cada
agente desse grupo (LD, 528). Bourdieu (1986, p. 72) pensa que “36 se pode compreender
bem uma trajetoria a condicao de construir anteriormente os estados sucessivos. do campo

354 TRAJETORIA
a0
onde ela se passa, o conjunto das relacoes objetivas que ligam o agente em questao [...]
conjunto dos outros agentes presentes no mesmo campo e que se defrontam com o mesmo
a
espaco de possiveis”. Associada sobretudo ao capital cultural herdado, a trajetéria passa
vos das praticas ” [...] dentro de
ser um dos elementos “do sistema de principios explicati
traje—
um determinado campo (LD; 593). Constata—se, igualmente, uma associacao entre
atuante de
toria e habitus, na medida em que Bourdieu (SP, 94) 0 define como “a presenca
entao a ser mobiliza do como variavel
todo o passado do qual ele é o produto”. O tempo passa
ica da sociedad e.
analitica, dentro de uma abordagem ao mesmo tempo sincronica e diacron
a0 grupo social
As primeiras utilizacoes do conceito de trajetéria ligam estreitamente o agente
dentro
no qual esta inserido. A trajetoria modal, ou seja, a trajetoria mais provével de um agente
ou melhor, de espaco ou
de seu grupo de origem é sempre definida em termos de probabilidades,
es dentro
“campo de possiveis”, na medida em que “a homologia entre as posicoes e as disposico
supor que os individu os separad os por essa
do campo nunca é perfeita” (NE, 259). “Tudo permite
que 5510 part6 integran te de
fronteira estatistica se opoem sob varies angulos [. . .]; oposicoes essas
o de uma profissao”
estilos de Vida ligados ‘as trajetérias sociais e ‘as diferentes condicoes de exercici
ou “singulares”, que
(LD, 522). Reconhece igualmente a existéncia de trajetorias “individuais”
objetiva mente oferecidas
consistem “em respostas a um estado determinado de oportunidades
as a trajetéria de
pela historia coletiva ao conjunto de uma geracao” (LD, 337). As variaveis associad
que levam em conta n50
cada individuo podem revestir uma infinidade de diferencas singulares
ns ‘as quais ele pertence. No
apenas seu ponto de origem, mas igualmente a influéncia das linhage
percurso e a explicar os
entanto, o espaco dos possiveis proprio ao campo continua a limitar seu
individuo socialmente
meandros de cada trajetéria. Nesse sentido, a trajetéria se refere sempre a0
Bourdieu (1986,
construido, nao ao individuo biografico. Em seu artigo “A ilusao biogréfica”,
que favorecem ou
p. 70) enfatiza que é impossivel “esquivar a questao dos mecanismos sociais
de”, pois, segundo ele, a
autorizam a experiéncia ordinéria davida como unidade e como totalida
relacoes sociais.
singularidade dos individuos se forja simultaneamente nas e pelas
u a partir de La
O uso da nocao de trajetoria assume major importancia na obra de Bourdie
de trajetoria”, ou seja, a
distinction (1979), onde evoca pela primeira vez o que chama de “efeito
do a mesma posicao social [podem
ideia de que “agentes dotados das mesmas propriedades e ocupan
(LD, 122, 124). Ele nao deixa,
ter] uma trajetoria social diferente da trajetoria modal de seu grupo”
relacionada as diferencas
porém, de enfatizar que a trajetéria individual permanece “fortemente
do capital cultural herdado”
de estrutura do capital possuido [. . .] e particularmente ao volume
e o agente condicionam
(LD, 90), na medida em que a origem social e a linhagem a que pertenc
ativo que dé unidade as
tipos de experiéncias particulates. Nesse contexto, 0 habitus, principio
individ ual e coletiva, que se trans—
representacoes e ‘as praticas, “é a propensao da trajetéria social,
realizar” (LD, 388).
forma na inclinacao por onde essa trajetéria [. . .] tende a se prolongar e a se
e as de trajetorias
As nocoes de trajetéria modal, coletiva on individual, acrescentam—s
s, interrom pidas, desviantes, dis-
ascendentes e descendentes; passadas e potenciais; cruzada
relacion ada aos processes
persas ou de transfugas. O que as vai diferenciar é a histéria familiar,
oes e reconversoes na
de desclassificacao e reclassificacao decorrentes de sucessivas convers
Vida do individuo, principalmente quando ha mudanca de fracao de classe.
empirica do campo
Dez anos mais tarde, La noblesse d’Etat (1989) apresenta uma anélise
o de consagracio que
das grandes escolas francesas, colocando em relevo a influéncia do trabalh

TRAJETORIA 355
essas instituicoes imprimem sobre as trajetérias de seus ahmos. No restante
de sua obra, esse
conceito merece breve mencao, que nao afeta seu tratamento. Detecta—se,
através da histéria desse
conceito, a influéncia do estado do campo da sociologia francesapor volta
dos anos 1980, das lutas
para abandonar os paradigmas entao dominantes, o estruturalismo e o
marxismo. Nessa época,
o campo comeqa a se abrir em direcao a correntes qualitativas anglo—saxés,
cuja influéncia impoe
a compreensio do devir biogréfico como produto da interacao dialética entre
a determinacao das
estruturas e a acao dos individuos. Antes examinados, sobretudo 11a estrutur
a global e na sincro-
nia, os fenémenos sociais passam a ser analisados também em seus compon
entes individuais 3
na diacronia -— abrindo espaco a emergéncia do conceito de trajetéria. Popular
iza‘se 11a Franca o
uso dos conceitos de “carreira” (BECKER, 1985, p. 47) e “carreira moral”
(GOFFMAN, 1961, p. 127-
128) adequados a construcao de modelos sequenciais, que facultam a analise
da forma pela qual
o ator incorpora ou integra a estrutura social sem que nenhum deles seja determi
nado pelo outro.
Essas lutas levam Daniel Bertaux (1976, 1980) a propor o abandono do paradig
ma neoposi—
tivista através da mterdisciplinaridade e da critica ao pensamento probab
ilista. Sua abordagem
biogréfica conduz a nocao de destinos pessoais, que permite dar
major atencao aos aspectos
concretos dos processos no m’vel do individuo, sempre dentro de Inna estrutur
a de classes. Vin-
cent de Gaulejac (1987) propoe programa semelhante a0 articular a sociolog
ia e a psicologia na
analise de trajetérias individuais em mobilidade ascendente ou descendente
para mostrar como
os mecanismos sociais e as d'mémicas psiquicas se entrecruzam na
sincronia 6 na diacronia. Sua
ideia de que o individuo esté inserido ao mesmo tempo em histérias pessoal
, familiar e social
1150 se afasta muito, no entanto, da concepcao bourdieusiana de incarpompdo
de um habitus
de classe, através do qual as informacées necessarias a prética cotidiana
séo transmitidas de
geracao em geracao enquanto “espécies de programas historicamente montad
os” (Q8, 75). As
dinamicas psiquicas serao, no entanto, analisadas do ponto de vista da
teoria psicanalitica,
levantando o problema da identificacao inconsciente: os individuos néo mais
se definem apenas
em relacao ao grupo a que pertencem on a situacao social que ocupam,
mas em relacao a sua
propria identidade —~ conceito que Bourdieu nao mobiliza em suas analises
.
A introducao da nocéo de trajetoria na obra de Bourdieu revela o papel do
estado do campo
sobre ela e reduz ao mesmo tempo a pertinéncia das criticas dirigidas a teoria
bourdieusiana
por nao levar em conta o individuo e a mudanca social.

Referéncias
BECKER, H. Outsiders. Paris: Métailié, 1985.
BERTAUX, D. Pour sortir de l'orniére néo-positiviste. Sociologie et Socie’tés
, v. 8, n. 2, p. 119—134, 1976.
BERTAUX, D. L’Approche biographique: sa validité méthodologique,
ses-potentialités. Cahiers
Internationaux de Sociologie, v. LXIX, p. 197-225, 1980.
BOURDIEU, P. L’Illusion biographique. ARSS, 11. 62—63, p. 69—72, juin
1986.
GAULEIAC, V. de. La névrose de classe. Paris: Hommes et Groupes
, 1987.
GOFFMAN, E. Asiles. Paris: Minuit, 1961.

3937,5955? §!M.39L!F‘ls .............................


Ver: Bens simbdlicas (economia dos)

356 TROCAS SIMBOLICAS


202. USOS SOCIAIS DA CIENCIA (OS): POR UMA SOCIOLOGIA CLiNICA
D0 CAMPO ClENTiFlCO (Les usages sociaux de la science: pour une
sociologie c/inique du champ scientifique)
Sylvia Gemignani Garcia

BOURDIEU, P. 05 usos sociaz’s da ciéncia: por uma sociologia clinica do campo cientifico. Sao
Paulo: Ed. da UNESP, 2004.

Proferida no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA) em 11 de marco


de 1997, no érnbito das atividades do grupo de trabalho Sciences en Questions, a confe—
réncia—debate de Bourdieu foi revista pelo autor com a colaboracao de Etienne Landais 6
Patrick Champagne, sendo este o autor, também, de elucidativo prefécio. O professor do
College de France inicia sua fala destacando a importancia de uma instituicao cientifica
como o INRA empreender “urna reflexéo coletiva sobre si mesmo”. Ele retorna sua anélise
dos campos cientificos, lembrando que se trata de um espaco de enfrentamento entre
duas formas de poder que corresponds a duas espécies de “capital cientifico”, a saber, um
capital que pode ser nomeado como social, vinculado a ocupacéo de posicoes de destaque
nas instituicoes cientificas, e um capital especifico, que se ancora no reconhecimento pelos
pares. No interior do campo cientifico duas categorias de agentes se opoem: os cientistas
“puros”, que conquistam capital e prestigio cientificos, e 03 “administradores”, cientistas
que ocupam postos de direcao, acumulando Capital institucional e o poder de definir as
politicas cientificas.
O surnério do livro é bastante revelador acerca das linhas de forca pontuadas pelo autor
em seu diélogo com os pesquisadores do INRA, onde aparecern pequenos tépicos corno estes:
‘ “os campos como microcosmos relativamente autonomos”,-"as propriedades especificas dos
campos cientiflcos”, “as duas espécies de capital cientifico , o espaco dos pontos de vista”,
!) l‘

“para alérn das aparéncias e das falsas antinomias”, além daqueles diretamente vinculados
a situacao do INRA e de uma recuperacao dos debates havidos.

usos socws DA CIENCIA (05): FOR UMA SOCIOLOGlA CLINICA no CAMPO cnsmmco 357
(Les usages sociaux de la science: pour une sociologie clinique du champ scientifique)
Bourdieu se recusa a caracterizar o INRA pela oposigéo entre a légica da inveugio dos
cientistas “puros” e a légica da inovaqéo econémica dos pesquisadores “aplicados”, uma vez
que no institute prevalecem ambas. Essa instituigéo pfiblica, investida de vocagéo universal,
liberada da presséo direta do mercado, em que coexistem duas concepgées de pesquisa, auté-
només e compativeis entre si, goza da necesséria autonomia relativa que confere legitimidade
‘a atuagéo pfiblica dos cientistas. Destaca, com énfase, que a autonomia é a condigéo do enga~
jamento. Sendo assim, o caminho indicado por Bourdieu para o INRA residiria mum longo
trabalho de socioanélise coletiva — por meio da qual se fortalece a comunicaqéo racional —,
representando a busca de uma Vida cientifica mais eficaz e menos infeliz, algo que nenhum
diagnéstico de comités de especialistas seria capaz de deflagrar.

358 USOS SOCIAIS DA CIENCIA (05): FOR UMA SOCIOLOGIA CLINICA DO CAMP-O
CIENTIFICO
(Les usages sociaux de la science: pour une sociologie clinique du champ scientifique
)
203. VEREDICTO ESCOLAR

Ver: Sistema de ensino

204. VIOLENCIA SIMBOLICA


Gérard Mauger

Como compreender que “a ordem estabelecida, corn suas relaqées de dominaqao, seus direitos
e seus tratamentos de exceeao, seus privilégios e suas injustigas, consiga perpetuar~se [...] téo
facilmente, com exceeao de alguns acidentes histéricos, e que as mais intoleréveis condigoes de
Vida possam aparecer, corn frequéncia, como aceitéveis e, até mesmo, naturais?” (DM).
Uma primeira resposta a essa questao reside no uso que fazem os dominantes da forga
fisica, simples ou armada para impedir ou derrubar qualquer revolta. Assim, segundo
Weber, “0 Estado é uma comunidade humana que reivindica com sucesso o monopélio do
uso legitimo da violéncia fisica em determinado territério”. Uma segunda resposta encon—
tra-se na coergao economica e, mais precisamente, na separagao entre os meios de produgao
e a forga de trabalho que, no modo de produqao capitalista, obriga os proletérios a vender
“livremente” sua forga de trabalho. No entanto é inevitével constatar que, se na maior parte
dos casos, os dominados nao se revoltarn contra a dominagao que os subjuga, n50 é ~ on 1130 8'
somente - por terem recelo da repressao (policial, militar, parental, marital etc.). Além disso,
se 05 explorados n50 se revoltam contra a exploragao de que sao vitimas, nao é — on n50 é
somente — sob a égide da necessidade, mas também porque tendem a aceitar sua situaqao
corno inelutavel, a percebé-la corno inscrita “na ordem das coisas”. Como explicar tal adesao?
Marx e Engels (em A ideologia alemd), Weber (em Economia e sociedade), Durkheim
e Mauss (no estudo das “formas primitivas de classificagao”) propuseram diversas respostas
para essa questao. Bourdieu néo é, portanto, nem o primeiro nem o finico a sublinhar a adesao
on a contribuigao dos dominados para a sua propria submissao. A novidade, no conceito de
“violéncia simbolica”, reside na explicagio proposta. Oximoro que embaralha as fronteiras
entre 0 material e o intelectual, a forqa e o direito, o corpo e a mente, o conceito de “violéncia

mENCIA SIMBOLICA 359


simbélica” aplica~se a todas as formas “brandas” de dominagéo que conseguem ganhar a
adesao dos dominados. “Brandas” em relacao as formas brutais baseadas na forca fisica ou
armada (mesmo que a violencia fisica seja sempre também simbolica). “Violéncia” porque,
por mais “brandas” que elas possam ser, tais formas de dominacao nao deixam de exercer
uma‘verdadeira violéncia sobre aqueles que a sofrem, engendrando a vergonha de si e dos
seus, o autodescrédito, a autocensura 011 a autoexclusao. “Simbélica”, pelo fato de se exercer
na esfera das significacoes ou, mais precisamente, do sentido que os dominados conferern
ao mundo social 6 a seu lugar nesse mundo (TERRAY, 1996).
Na histéria das sucessivas definicoes de “violéncia simbélica” propostas por Bourdieu,
algumas sao oriundas dos estudos sobre o sistema de ensino (LR; NE), enquanto outras apa-
recem nos trabalhos sobre a etnologia cabila que haviam servido de base para a anélise da
dominacao masculina (MP; DM), traduzindo uma inflexao — a priori paradoxal — de
Marx
em direcao a Durkheim.
Em sua forma inicial, a “violéncia simbolica” é uma violéncia oculta, que opera priori-
tariarnente na 6: pela linguagem e, mais geralmente, na e pela representacao, pressupondo o
irreconhecirnento da violéncia que a engendrou e o reconhecimento dos principios em nome
dos quais é exercida. Ela impoe uma tripla arbitrariedade (a do poder imposto, a da cultura
inculcada e a do modo de imposicao), violéncia disfarcada, ela se exerce 1150 so pela linguagem,
mas também pelos gestos e pelas coisas; auxiliar das relacoes de forca, ela adiciona a propria
forca a essas relacoes. Desse ponto de vista, 0 reconhecimento atribuido pelos dominados aos
dominantes é duplo: reconhecimento da pertinéncia das justificativas “religiosas”, “naturais”,
“eruditas” etc., a respeito dessa dominagao; e reconhecimento suscitado pelas “vantagens”
ou pelos “beneficios secundérios” que ela lhes concede. De modo que a violéncia simbélica
so pode ser exercida na medida em que suas vitimas “se privam da possibilidade de uma
liberdade baseada na tomada de consciéncia” (NE).
Essa versao sofre uma importante inflexao nos trabalhos sobre a etnologia cabila. Em Medi—
tacfiespascalz‘anas (1997) eA dominagdo masculina (1998) avioléncia sirnbélica tornou—se
“a
coercao que se institui unicamente por intermédio da adesio que o dominado nao pode deixar
de dar ao dominante (portanto, a dominacao) quando, para pensé—lo ~ on, melhor ainda, para
pensar sua relacéo corn ele -, o dominado dispée apenas de instrumentos de conhecimento que
tern em comum com o dominante, os quais, limitando-se a ser a forma incorporada da estrutura
da relacéo de dominacao, fazern corn que essa relacéo pareca natural; on, em outras palavras,
quando os esquernas que ele implementa para se perceber e se apreciar ou para perceber e apreciar
os dominantes (alto/baixo, masculine/feminine, branco/preto etc.) 550 o resultado da incorporagéo
das classificacoes, assim naturalizadas, de que seu ser social é o produto”. Enquanto a primeira
concepcao privflegiava a pedagogia explicita na sociogénese do habitus, a segunda enfatiza a
pedagogia implicita e a incorporacao das disposicées, colocando-as assim fora do alcance da,
consciéncia e tendendo a excluir a possibflidade, senao de se fivrar da dominacao, pelo menos
de coloca-la em suspenso. Essa outra versao ~ on, melhor, essa inflexao —- da teoria da violéncia
sirnbélica, ao registrar o fato de que a dominacao pode ser exercida independentemente das
consciéncias e vontades (e de que néo basta tomar consciéncia para se livrar dela), vai inscreVé-la
nos corpos, fora do alcance da consciéncia. Desse modo, além de se desv'mcular dos conceitos
marxistas de ideologia e de alienacéo, ela se aproxima da concepcao durkheimiana segundo a

360 VIOLENCIA SIMBOLICA


qual a interiorizacao das “formas primitivas de classificacao" (inculcadas pelo sistema de ensino)
é o fundamento do “conformisrno logico” e do “conformismo moral” na origem da experiéncia
do mundo enquanto “mundo de senso comum”. E nessa perspectiva que a definicao weberiana
do Estado é ampliada por Bourdieu (SE): além do “monopélio da violéncia fisica legitima”, o
Estado detém 0 da violéncia simbolica.
Seria entao licito considerar que na obra de Bourdieu a versao do conceito de violencia
simbélica assumiria doislaspectos, o que privilegia a pedagogia explicita e a aprendizagem
consciente, enquanto outro enfatiza a pedagogia implicita e o conhecimento pelo corpo on,
em outros termos, uma versao para o erudito e outra para o politico? De fato conviria, sem
. dt’ivida, encarar essas duas versoes como uma solucao conceitual (e também um programa
de pesquisa) para dar conta da inércia da ordem social e, outta, para explicar seu questiona—
mento. O paradoxo — aparente — é que aversao mais desencantada tenha sido contemporanea
da intensificacao dos esforcos empreendidos para que a sociologia se tornasse “um esporte
de combate” e para disseminar as armas da critica sociolégica.

Referéncias
DURKHEIM, E.; MAUSS, M. De quelques formes primitives de classification: contribution a
l’étude des representations collectives. L’Année Sociologique, v. 6, 1903. _
MAUGER, G. Sur la violence symbolique. In: MULLER, H.711; SINTOMER, Y. (Orgs). Pierre
Bourdieu: théorz'e etpratique. Paris: La Découverte, 2006. p. 84-100.
n. 20,
TERRAY, E. Réflexions sur la violence symbolique. Actuel Marx: auteur de Pierre Bourdieu,
p. 11—25, 1996.

395M559 §.P“’.l$"9. PB'NClP'OS D?..............................................


Gémrd Mauger

Nos esquemas incorporados do habitus estao implicados os principios mais fundamentais


da construcao e da avaliacao do mundo social. Geradores de atos de construcao do mundo
(LD,
social — “atos classificéveis” e “atos de classificacao que, por sua vez, sao classificadosf’
544) —, eles estéo na origem do conhecimento prético do mundo social e do sentido da orien—
tacao social (sense ofone’s place) que funcionam aquém da consciéncia. Mas como descrever
a génese social desse sentido das possibilidades e das impossibilidades, das proximidades e
das distancias que sustenta a visao do mundo social? 0 programa do que poderia ser uma
sociologia genética das estruturas mentais e das classificacoes (alto/baixo, forte/fraco, rico/
pobre etc.) conduz a estabelecer uma distincao entre as “sociedades tradicionais integradas”
e as “sociedades modernas diferenciadas” (ver, a respeito, MARTI’N CRIADO, 2010, p. 40-47).
As “sociedades pouco diferenciadas” corresponde uma aprendizagem prética “por simples
Aléin
familiarizacao”: “o que se imita nao sao ‘modelos’, mas as acoes dos outros” (ETP, 285).
disso, “é através de toda a organizacao espacial e temporal da Vida social e, mais especialv
esses
mente, através dos ritos de instituicao [...] que se instituem nas mentes (ou nos corpos),
principios de visao e divisao comuns” (BOURDIEU, 1983, p. 59). No decorrer dessa familia-
rizacao, o aprendiz adquire de forma insensivel e inconsciente as estruturas cognitivas, as

VISAO E DIVISAO, PRINClPIOS DE 351


“formas s'unbélicas” (como diz Cassirer), as “formas de classifi
cacéo” (come diz Durkheim),
os principles de viséo e divisao que criam “o senso comum”.
Nas sociedades diferenciadas, a pedagogia implicita exercida pela
experiéncia prética do
mundo social coexists com uma pedagogia explicita, “inculcacéo,
metodicarnente organizada
corno’ tal, de principles formulados e, até mesmo, formalizados”
(LR, 62). “Adquiridos pelas
aprendizagens metodicamente organizadas da escola e, portan
to, quase sempre explicitos
e explicitamente ensinados, os esquemas que organizam
o pensamento dos homens culti~
vados das sociedades ‘escolarizadas’” desempenham uma funcao
semelhante aquela que é
executada pelas “formas primitivas de classificacao” das sociedades
tradicionais (BOURDIEU,
1967, p. 368). O Estado — em condicoes de impor e inculcar, na escala
de todo um territério,
estruturas cognitivas e avaliadoras idénticas ou semelhantes — “exerce
de forma permanente
uma acao formadora de disposicées duradouras [...] impée e inculca
todos os principios de
classificacéo fundamentais, de acordo com o sexo, a idade,
a compe téncia etc. [...] cria [deste
modo] as condicoes de uma espécie de orquestracao imedjata do habitu
s que, por sua vez, é
o fundamento de uma espécie de consenso sobre esse conjunto de evidénc
ias compartilhadas
que sao constitutivas do senso comum” (BOURDIEU, 1983, p. 58-59).
Mas a aquisicao escolar desse “senso comum” duplica—se com a interior
izacao das dis~
posicées associadas a experiéncia de uma condicéo de classe. As “estrut
uras caracten’sticas
de condicoes de existéncia relativas a determinada classe”
(ETP, 177—178), corresponde um
habitus de classe. O habitus individual é uma variante estrutural
do habitus de classe, em
que se exprime a singularidade da posicéo ocupada no interior da
classe e a da trajetoria. O
desenvolvimento ulterior da teoria dos campos levou Bourdieu a
associar, da mesma forma,
urn “habitus especifico” a cada campo. O conjunto das aprendizagens
irnpll’citas e explici-
tas, associadas a Vida cotidiana de uma classe, a suas possibilidade
-
s/impossibflidades, a suas
liberdades/necessidades, a suas facilidades/proibicoes ~, a percepcao
reiterada de “indicios
concretos do acessivel e do inacessivel, do ‘é para nos’ e do ‘néo é para
nés’” (SP, 107), engen~
dram expectativas subjetivas ajustadas as probabilidades objetiva
s que levarn a “recusar o
recusado” e a “desejar o inevitéve ” (SP, 90). De tal modo que todo
habitus de classe se dis-
tingue de outro néo sé por gostos e aversoes,~mas também por tomada
s de posicao préticas
ou explicitas em relacao a0 mundo social 6, mais especificamente,
por disposicées relativas
ao futuro, um “senso do possivel” e‘ um “senso dos limites”.
Nas sociedades diferenciadas, pedagogia implicita e pedagogia explici
ta coexistern. De
modo que o mesmo aprendizado, como 0 da lingua que se diz “mater
na”, é objeto de uma
pedagogia simultaneamente irnplicita — que esté na origem da interior
izacao de um “habitus
linguistico” — e explicita que se dé no decorrer da aprendjzagem
escolar da “lingua legitirna”.
Esse aprendizado escolar é tanto mais facil ou mais dificil quanto
maior ou menor for sua
proximidade da “competéncia linguistica” inicial. Bourdieu escreve
a respeito o seguinte:
“Aprendemos a falar n50 so escutando falar certa maneira
de falar, mas também falando [...]
nas trocas ocorridas no seio de uma familia que ocupa uma posica
o particular no espaco
social e que, per 1580 mesmo, propée a mimesz's prética [...]
modelos e sancées mais ou memos
afastados do uso legitimo” (PVD, 14).
Podemos, entao, nos interrogar sobre a congruéncia on as discord
éncias entre as disposi—
coes adquiridas explicitamente no ambito escolar (o “habitus nacion
al” na origem do “senso

382 VlSAO E DIVlSAO, PRINCIPIOS DE


comum”) e as disposicoes interiorizadas no decorrer da experiéncia implicita da condicao de
classe (o “habitus de classe”), ou seja, simultaneamente sobre os efeitos préprios seja das incul-
cacoes conscientes e das incorporacoes inconscientes, ou da experiéncia tanto pratica quanto
virtual. Segundo Bourdieu, “assim como o que é transmitido por meio da hereditariedade
biolégica, é, sem dfivida, mais estével do que o que é transmitido por nieio da hereditariedade
cultural, assim tambérn o inconsciente de classe inculcado pelas condicées de existéncia é
um principio de producao de julgamentos e de opinioes mais estével do que os principios
politicos constituidos de maneira explicita pelo proprio fato de ser relativamente independente
da consciéncia” (LD, 529). De maneira geral, a hipétes'e de Bourdieu privilegia, portanto, os
efeitos da pedagogia implicita em relacao aos das pedagogias explicitas. Bourdieu menciona,
igualmente, “o privilégio antropologico conferido ao presente e, ao mesmo tempo, ao espaco
visivel e sensivel dos objetos e dos agentes copresentes” (MM, 165), e concorda com o fato
de que, “mantidas invariaveis as demais condicoes, existe sempre urna espécie de privilégio
pratico daquilo que é diretamente percebido” (MP, 162). Ora, na medida em que, por um
lado, enquanto corpos (e individuos biologicos), os seres humanos estao, ‘a semelhanca do que
ocorre com as coisas, situados em urn lugar (MM, 160) e em que, por outro, nada garante que
o espaco social local ern que “eles tern lugar” seja um modelo reduzido do espaco nacional.
“Salvo excecao, os membros das classes populares ‘nao tern ideia’ do que pode ser 0 sisterna
das necessidades das classes privilegiadas, tampouco de seus recursos a respeito dos quais
eles tém também um conhecimento bastante abstrato e sem nenhuma correspondéncia com
0 real” (LD, 437). Enfim, na medida em que a experiencia real prevalece em relacao a expe—
riéncia virtual associada a pedagogia escolar ou aquela da midia, convém se questionar sobre

a congruéncia on as discordancias, nas “sociedades diferenciadas”, entre “habitus nacional
ia con»
(associado a urn conhecimento abstrato) e “habitus de classe” (associado a experiénc
creta). Nada garante, com efeito, que a incorporacao insensivel das estruturas sociais locais
no decorrer de uma experiéncia concreta, prolongada, alérn de repetida indefinidamente, e
“que confere urn lugar importante ‘a afetividade” (MP, 168—169), corresponda necessariamente
aquelas do espaco social nacional (e, afortiori, mundial).
A interrogacao sobre esse tipo de tensoes aparece bem cedo na obra de Bourdieu. A
passagem acelerada de uma sociedade tradicional (“pouco diferenciada”) a urna sociedade
moderna (“diferenciada”) tern urna dupla consequéncia: por um lado, a experiéncia da divisao
interior [dédoublement] entre o habitus interiorizado na sociedade tradicional e aquele que é
imposto pela sociedade moderna (DR, 161-177); por outro, o retorno reflexivo sobre o habitus
imposto por sua inadequacao a nova situacao a ser enfrentada (ETP, 300). Essa reflexividade
forcada e essa divisao interior, provocadas pela mudanca acelerada das estruturas sociais,
e as
podem ser associadas a outros casos especificos: ern particular, as migracoes geogréficas
migracoes sociais, onde as disposicoes adquiridas, no plano nacional on social, encontram —se
foi
em posicao falseada na nova situacio local ou social. A configuracao propria desses casos
a distancia entre campos da pratica, mas
generalizada por Bernard Lahire, que radicaliza
eidade
tambérn entre instituicoes ou situacoes (LAHIRE, 1988, p. 35), de modo que a heterogen
se trans-
e a incoeréncia dos esquemas do habitus se tornam a regra, enquanto a coeréncia
e
forma em excecao. Além disso, segundo ele, a defasagem entre os esquemas incorporados
as condicoes de sua aplicacao torna—se sistemética.

VISAO E DIVISAO, PRlNClPIOS DE 363


Se é verdade que, de maneira genérica, “as divisées sociais se tornam
principios de divisfio
que organizam a viséo do mundo social” (LD, 549) por interm
édio dos condicionamentos
diferenciados e diferenciadores que estéo associados 2‘15 diversa
s condigées de existéncia, o
estudo da influéncia exercida sobre esses esquemas classificatério
s pelas divisées da ordem
estabel'ecida e pelas modalidades socialmente diferenciadas de sua
interiorizagéo define um
programa de pesquisas empiricas, por enquanto apenas esbogado.

Referéncias ‘
‘ BOURDIEU, P. Esprit d’Etat: genése et structure du champ bureauc
ratique. ARSS, 11. 96-97, mars 1983.
BOURDIEU, P. Systémes d’enseignement et systémes de pensée.
Revue International des Sciences
Sociales, v. XIX, n. 3, 1967.
LAHIRE, B. L’Homme pluriel: les ressorts de l’action. Paris:
Nathan, 1998.
MARTIN CRIADO, E. Les deux Algéries de Pierre Bourdieu. Broissie
ux: Croquant, 2010. p. 40—47.

364 VISAO E DWISAO, PRINCIPIOS DE


206. WEBER, MAX (7864- 7920)
Remi Lenoir

Bourdieu dizia que o que torna dificil para um pesquisador utilizar os trabalhos de Weber
é o fato de que aquilo que é transmitido nas exegeses e nas vulgatas professorais nao é tanto a
logica de seu pensamento com seus fundamentos materiais e intelectuais, isto é, a operagao ,
propriamente intelectual — o opus operandi (a maneira de construir o objeto) —, mas sim
o resultado da pesquisa (as “teses”), o opus operatum, segundo a oposigao classica que ele
utiliza para dar conta de sua maneira de trabalhar e de ensinar. Eis o que Bourdieu tenta
fazer em seus dois artigos sobre a sociologia da religiao de Weber, nos quais procede 1150 so
a urna reapropriaeao verbal do procedimento weberiano, mas a um verdadeiro trabalho de
reconstrugao, analisando minuciosamente trechos relativos a sociologia da religiao, extraidos
de Economia e sociedade, em fungao de 5611 proprio objeto de pesquisa, ou seja, a elaboraqao
da nogao de campo a respeito da qual sempre afirmou que ela se deve, 561150 a uma leitura
”textual de Weber, ao menos a sua tentativa intelectual e, ao mesmo tempo, pedagogica de
apresentar sua eficacia heuristica
A proposito do campo religioso, Bourdieu interpreta as analises de Weber colocando--as
em perspectiva com as de Durkheim e de Marx. Ele vai reposicionar umas em relagao as
outras, referindo-se as duas grandes tradieoes intelectuais que, em seu entender, dividem a
historia da sociologia: a sociologia do poder e a sociologia do conhecimento. Ele coloca Weber
a0 lado de Marx na sociologia do poder. Para este tiltimo, a religiao é concebida em termos
de agoes, em termos de conflitos de atores. Durkheim, por sua vez, é situado por ele na so—
ciologia do conhecimento e da linguagem - no caso desse pensador, a religiao aparece como
taxinomia e ordenagfio do mundo. Assim, em sua analise da génese e do funcionarnento do
campo religioso, Bourdieu conjuga essas duas tradigoes cujos componentes habitualmente
contribuem para separé-las (poder temporal e fenomenos simbolicos). Com efeito, em sua
opiniao, é enquanto instrumento de conhecimento que os fenémenos simbolicos se tornam
instrumentos de poder: através de um sistema de categorias de percepgao do mundo verifica-
se a efetiva implicaeao de toda a estrutura da ordem social 6 de sua legitimagao. ‘

WEBER, MAX (1864—7920) 365


No que ele designa como uma “leitura interpretativa” da anélise feita por Weber a respeito
dos agentes do sistema religioso (o feiticeiro, o padre e o profeta) e da passagem de uma religiao
de tipo mégico para uma religiao de tipo racionalizado e sistematizado, Bourdieu opera duas
rupturas com o procedimento de Weber. Em primeiro lugar reconstitui o procedimento intera-
cionista adotado, “entre linhas”, por Weber em suas analises do fenémeno religioso, rompendo
com a légica tipologica tal como este filtimo a concebia, mediante a qual os agentes sao dotados
de qualidades intrinsecas, de propriedades de esséncia, apesar das numerosas excecoes que sao
continuamente assinaladas pelo pensador alemao. Com efeito, pelo fato de analisar os agentes
‘ do sistema religioso, uns apos outros, Weber foi obrigado, segundo Bourdieu, a pensar nao tanto
suas inter~relac6es, mas Sim suas caracteristicas intrinsecas. Em consequencia disso, o ponto
de vista sobre o universo religioso que ele leva em consideracio em cada circumstancia é 0 do
agente, a partir do qual analisa o sistema. Desse modo, Weber esquece as relacoes objetivas que
se estabelecem entre os agentes sociais, independentemente de qualquer interacao, sendo que
boa parte de seus comportamentos e praticas so podem ser compreendidos tendo em conta a
posicao 11a estrutura do espaco religioso em que os agentes evoluem.
E nesse sentido que Bourdieu opera uma segunda ruptura para com a abordagem in-
teracionista de Weber. A construcao do sistema completo de agentes e das relacoes que se
instauram entre eles no interior de um campo nao é apenas um procedimento heuristico,
permitindo estabelecer as relacoes objetivas entre as posicées que estruturam um campo, mas
que permite tambérn caracterizar o ponto de vista que se pode ter sobre o conjunto do sistema.
Trata—se de tomar como objeto r150 uma posicao em um campo, mas o campo como um todo,
ou seja, o conjunto das posicoes a partir das quais se engendram as estra’régias dos agentes.
Bourdieu ambicionou elaborar uma teoria geral dos modos de dominacao, das formas
de poder e daquilo que lhe esté inextricavelmente associado, uma sociologia comparada dos
modos de legitimacao do poder e das formas de violéncia simbolica que lhes sao inerentes.
Se 0 ponto de partida de sua anélise é efetivamente a definicao weberiana do Estado, onde
se concentra o exercicio da violéncia fisica, ele nao deixara de analisar, desde seus trabalhos
sobre o sistema de ensino, outra dimensao do Estado, primordial a seus olhos, e da qual vai
tracar a génese e as funcoes: a monopolizacao da violéncia simbolica: para ele, a forca age
pela coercao fisica e tambérn, consubstancialmente, pela representacao que dela tém aqueles
que a suportam. A esse respeito, Bourdieu cita frequentemente Pascal: qualquer efeito fisico
é forcosamente acompanhado de um efeito sirnbélico.
Em sua opiniao, Weber reduz a legitimidade ‘as representacoes da legitimidade. Nas socie~
dades tradicionais as relacoes de dominacao ocorrem na e pela interacao entre as pessoas, ao
passo que mas sociedades com forte divisao do trabalho social as relacées sao mediadas por
mecanismos objetivos e institucionalizados, tais como aqueles que produzem e garantern a
distribuicao dos titulos de nobreza, monetarios, escolares, registros de propriedade, titulos de
crédito. . ., e tantas outras aquisicoes juridicamente garantidas, de tal modo que essa objetivacao
assegura a permanéncia e a cumulatividade das aquisicoes tanto materiais quanto simbolicas.
A distincao entre esses dois modos de dominacao é o alicerce dos dois principios da
estratificaga‘o social dos tipos de sociedade distinguidos por Weber: 0 grupo de status e a
classe social. Bourdieu apoia-se nessa oposicao para questionar o principio de umahierarquia
social finica. Mas enquanto Weber, segundo Bourdieu, estabelecia uma correspondéncia

366 WEBER. MAX (7864—7920)


«W»:
a w
entre essa oposigao e entre as sociedades tradicionais e pré—industriais — onde o principio
de estratificaeao era, sobretudo, de ordem da qualidade (status) — e as sociedades de tipo
capitalista onde o principio diferenciador deve set buscado principalmente no plano das di—
ferenqas economicas, o autor de La distinction estende o emprego dos dois conceitos a todas
as sociedades e também a todas as classes nas quais essa distineao é valida, embora de modo
desigual. Ainda que a teoria weberiana do grupo de status permaneqa préxima das teorias
subjetivistas das classes, cujo principio das divisées sociais é baseado unicamente nos estilos
de Vida e nas representagfies, Weber 1150 a enxergava como exclusiva e colocava o problema
.do duplo fundamento da estratificagao social na objetividade das diferenqas materiais e na
subjetividade das representagoes. No entanto, segundo Bourdieu, ele forneceu a essa questao
uma soluqao ingenuarnente realista ao estabelecer a distinqao entre dois “tipos” de grupos,
quando o que ha é tao somente dois modos de existéncia de qualquer grupo.
Bourdieu repetia frequentemente que seus trabalhos se inscreviam na continuidade
dos grandes fundadores da sociologia. No autor de Economia e sociedade ele encontrou
os instrumentos conceituais que lhe permitiram construir a teoria geral da economia das
préticas, a economia dos bens simbolicos, que representou seu projeto cientifico maior e cujos
fundamentos foram localizados em Max Weber.

E9.?:W'.TT§F.N§TE.W:WWI???889.1957) ...................................
Louis Pinto

Associado na Franqa, durante muito tempo, a0 positivismo logico - corrente tanto desconhecida
quanto desdenhada —, Wittgenstein 56 se tomou um autor realmente importante a partir dos anos
1970. E16 {150 fazia parte dos pensadores que os estudantes de filosofia da geragao de Bom'dieu
eram levados a let, tendo sido relegado a obscuridade pelas tradigdes nacionais (filosofia das
ciencias) e pelas sucessivas vanguardas: fenomenologia, “estruturalismo” e “pos—estruturalismo”
em suas diferentes variantes. Nos filtimos anos de sua Vida, Bourdieu demonstrou preocupaqao
com a assimilagao de Wittgenstein ao pos-modernismo, opondo~se a uma interpretagao relativista
das “formas de Vida” tal como ela havia sido proposta pelos partidarios do “programa forte” em
sociologia das ciéncias, como por exemplo, David Bloor (BOURDIEU, 2002).
Inicialmente, Bourdieu havia pensado em dedicar a Wittgenstein o livro que, ao final,
recebeu a denominagéo de Méditations pascaliennes. A anélise minuciosa de jogos‘ de
linguagem de Wittgenstein é a ilustraqao de uma atitude filosofica que rompe com o estilo
que Bourdieu designava por “escolastico”. A0 invés de puros exercicios escolésticos, a ciéncia
e a filosofia podem ser, antes, consideradas como maneiras de reformat nossos modos de
ver. Bourdieu encontra em Wittgenstein uma “boa parte de meus sentimentos a respeito da
filosofia”, citando o préprio filosofo que escrevera: “Qual o interesse de estudar filosofia, se
tudo o que ela faz por nos é nos tornar capazes de expressar de modo relativamente plausivel
certas questoes de légica abstrusas etc., e se isso nao melhora nossa maneira de pensar sobre
as questoes importantes da Vida de todos os dias, se isso nae nos torna mais conscientes do
que qualquer jornalista no emprego de expressoes perigosas que as pessoas dessa categoria
utilizam para seus préprios fins?” (MP, 53).

WITTGENSTEIN, LUDWIG (7889-7957) 357


Mas, para ale'm do que diz respeito a relagao com o saber, ha razoes mais precisas para nos
interessarmos por Wittgenstein. A primeira, talvez até cronologicamente falando, refere-se ao
parentesco de Bourdieu corn Wittgenstein acerca do problema das regras. No filosofo pode-5e
encontrar uma critica da visao rnitologica (platonica) da regra entendida como uma entidade
misteriosa. Para darconta da regularidade das condutas humanas, podemos ser tentados a adotar
uma concepgao objetivista ou intelectualista das regras: estas agiriam a maneira de um mecanismo
ou, entao, de um texto que o individuo seguiria como um “modo de usar”, e que ele deveria inter.
pretar. A principal critica dirigida por Bourdieu a Levi-Strauss incide sobre essa ambiguidade que
caracteriza a nogao de estrutura (modelo, norma, regularidade observada), e ele pensa superar essa
dificuldade ultrapassando a alternativa subjetivismo—objetivismo graeas as noeoes de disposiqoes,
de habitus, como conjunto de esquemas incorporados de aqao e de avaliagao.
A segunda razao, associada a precedente, é o reconhecimento de uma disposigao an~
ti—intelectualista em Wittgenstein. A regra nao é uma questao de conhecimento, nem de
interpretagao: seriam ainda necessérias regras para aplicar as regras. Ora, o autor da agao
é capaz de improvisar, de agir de maneira espontanea e segura em situaqoes relativamente
inéditas, tal corno aqueie que “cumpre a regra” (follow the rule), quando afinal ele age sern
estar na presenga dos casos exemplares através dos quais teria podido se iniciar no emprego
da regra. O que esté implicado no fato de cumprir uma regra nao é uma relaeao de conheci—
mento, mas um poder de fazer, uma capacidade: compreender a regra nao consiste em dar
conta dela, mas simplesrnente em agir de maneira apropriada.
A terceira razao é a concepgao critica-terapéutica da filosofia, préxima da “filosofia nega—
tiva” mencionada por Bourdieu, que nao propoe “teses”, mas simplesmente uma visao mais
Clara do que a utilizaeao das palavras significa, visao em que o que importa é saber o que
dizemos realmente, saber utilizar a linguagem que convém aquilo que fazemos. Na esteira de
Wittgenstein, Bourdieu se esforga para identificar as questoes ficticias, aquelas que se associam
aos equivocos provocados pelos usos metafisicos de uma Iinguagem “esvaziada de sentido”.
“A logica da iinguagem corrente [...] tende a inferir a substancia do substantivo on a atri-
buir aos conceitos o poder de agir na histéria, como atuam nas frases do discurso historico
as palavras que as designam, ou seja, enquanto temas histéricos: de acordo com a observagao
de Wittgenstein, basta deslizar do advérbio ‘inconscientemente’ (‘tenho inconscientemente
dor de dentes’) para o substantivo ‘inconsciente’ (ou para determinado uso do adjetivo ‘in—
consciente’; por exemplo, ‘tenho uma dor de dentes inconsciente’) para produzir prodigios
de profundidade metafisica” (ETP, 173-174).
A sociologia pode ser urn convite para o realismo, para uma maneira de ser realista que é
encontrada 1150 56 em Wittgenstein, mas também em Peirce, que é outro autor de referéncia
de Bourdieu. Devemos nos questionar sobre nossas necessidades, nossos usos concretos, sobre
o que nos leva a formuiar questoes irreais, ficticias, e sobre as consequéncias desse tipo de
questoes sobre nosso conhecimento do mundo. Uma das expressoes prediletas de Bourdieu
era “em estado pratico” (on “em ato”). Por meio dessas expressoes ele acreditava opor o que
funciona realmente ao que é apenas o objeto de declaragoes ou de proclamagoes, aquilo que
so existe no papel. Mediante tal oposieao, ele tomava o partido da pratica, o que nao era 50'
mente uma'escolha teorica uma “teoria da prética” —, mas, sobretudo uma regra de conduta
-
cientifica: descrever as préticas sociais efetivas e submeter o pensamento a prova da prética.

368 WITTGENSTEIN. 'LUDWIG (7889—1957)


A quarta razéo refere-se a maneira como Wittgenstein coloca o problem‘a dos fundamentos.
Os “jogos de linguagem”, 2‘1 semelhanea dos jogos da sensaeéo on da ciéncia, estéo inscritos em
determinadas “formas de Vida” que térn seu proprio regime. Bourdieu percebeu os vinculos
entre esses conceitos e seu préprio conceito de campo. Tendo que dar conta do estatuto da
sociologia que reivindica um valor de verdade, mostrando ao mesmo tempo 0 caréter histérico
de todas as produeoes humanas, ele considera o campo como‘a condieéo de aparecimento de
alguns jogos sociais (tais como a arte e a ciéncia) dotados de um nomos especifico, norma
ou lei imanente, cujo reconhecirnento certifica o pertencimento a0 campo e a conformidade
aos fins que eIe reconhece. Bourdieu entende oferecer uma solueao, denominada “historicis~
mo racionalista” ou “racionalismo historicista”, ao problema tradicional das relaeoes entre
a histéria e a verdade, das relagoes entre o caréter socialmente condicionado da produeéo
dos saberes e o valor objetivo que eles reivindicam, descartando as solueoes consideradas
inaceitéveis: de um lado o “fetichismo platonizante” (MP, 137) e, de outro, o “reducionismo
relativista” (MP, 138). “E na histéria, e téo somente na histéria, que se deve buscar o principio
da independéncia relativa da razao perante a histéria, da qual é o produto" (MP, 130-131).
Wittgenstein é, por exceléncia, um filésofo a quem se pode recorrer para manter juntos a
auséncia de fundamento trans historico da razao e o valor objetivo das produgoes criadas
nos diferentes campos, a comegar pelo campo cient1fico. Em consequencia, a pluralidade ,
das formas de Vida nao poderia ser reduzida‘a unidade de um principio 1'1nico. “P610 fato de
que cada campo como ‘forma de vida é o lugar de um ‘jogo de linguagem que da acesso a
aspectos diferentes da realidade, poder-se~ia indagar sobre a existéncia de urna racionalidade
geral, transcendente as difereneas regionais e, por mais intensa que possa ser a nostalgia
da reunificagao, sem d1'1vida é preciso renunciar, a maneira de Wittgenstein, a buscar algo
assemelhado a urna linguagem de todas as linguagens” (MP, 119).

Referéncia
BOURDIEU, P. Wittgenstein, le sociologisme et la science sociale. In: BOUVERESSE, 1.; LAUGIER, S.;
ROSAT, 1:}. Wittgenstein, derniéres pensées. Marseille: Agone, 2002.

WITTGENSTEiN, LUDWIG (1889—7951) 369


ACCARDO,A1ain,26, 123, 245 BAUDELAIRE, Charles, 258, 309-310
ACEVEDO, Silvestre, 313 BAUMAN, Zygmunt, 272
ADAMS, Gerry, 43 BAXANDALL, Michael, 224, 311
ADKINS, Lisa, 340 BECK, Ulrich, 272
ADORNO, Theodor W., 61 BECKER, Gary, 117
AGUIAR, Andréa, 58, 231 BECKER, Howard, 25, 274,
AGULHON, Maurice, 26, 224 BEETHOVEN, Ludwig van, 56
ALEXANDER, Jeffrey C., 260 BENVENISTE, Emile, 61, 125
ALLEN, George, 255 BENZECRI, Jean-Paul, 31, 286
ALMEIDA, Ana Maria E, 124, 217, 331 BERGER, Peter, 64
ALTHUSSER, Louis, 82, 99—100, 170, 195, 198, BERGSON, Henri, 50
201, 260—261
BERNARD, Claude, 143 ‘
ANGENOT, Marc, 253
BERNSTEIN, Basil, 61 '
APITZSCH, Ursula, 44
BERQUE, Jacques, 324
APITZSCH, Wolfgang, 44
BBRTAUX, Daniel, 356
AQUINO, Tomas de, 213
BERTONCELO, Edison, 118
ARISTOTELES, 213, 283, 297
BEYNON, Huw, 44
ARON, Raymond, 39, 61, 99, 125, 167, 174, 175,
BHASKAR, Roy, 129
222, 236, 336
ARRUDA, Maria Arminda
BLACKING, John, 61
do Nascirnento, 71, 135 BLOCH, Marc, 222, 224
ARTIFONI, Enrico, 43 BLOOMFIELD, Leonard, 253
AUSTIN, John Langshaw, 91, 199, 319320 BLOOR, David, 367
BACHELARD, Gaston, 49-51, 81—82, 99-100, BLUMER, Herbert, 205
118, 128-130, 144, 170—173, 174, 199, 299, 338 BOCKSTAELE, Jacques, 334
BAKER, Keith, 108 BOCKSTAELE, Maria Van, 334
BAKHTIN, Mikhail, 61, 251, 253 BOLLACK, Jean, 26, 61
BALAZS, Gabrielle, 26 BOLTANSKI, Luc, 26, 29, 61, 154, 168, 253
BALIBAR, Etienne, 100, 164 BONTEMS, Vincent, 49, 98,
BALZAC, Honoré de, 56 BOSCHETTI, Anna, 61-62
BARANGER, Denis, 31, 52, 128, 169 BOUDON, Raymond, 202
BARTHES, Roland, 125 BOUHEDJA, Salah, 347
BATAILLE, Georges, 174 BOULEZ, Pierre, 125
BATESON; Gregory, 61 BOURDIEU, Albert, 53
BATISTA, AntonioAugusto, 145, 186, 250 BOURDIEU, Emmanuel, 52

370
L~.,_»?-;
BOURDIEU, Iérome, 62 CHRISTIN, Olivier, 62
BOURDIEU, Marie-Claire, 52 CHRISTIN, Rosine, 61, 347
BOURDIEU, Noémie, 53 CICOUREL, Aaron Victor, 25, 62
BOUVERESSE, Jacques, 26, 62, 130, 143, 216, CLUNAS, Craig, 148
BOYER, Robert, 348 COCTEAU, Iean, 31

BRAGA, Rubem, 31 COLEMAN, James, 116417


BRANDAO, Zaia, 303 COMTE, Auguste, 170
BRAUDEL, Fernand, 62, 125, 175 CORCUFF, Philippe, 313
BRITO, Angela Xavier de, 332, 354 CORREA, Mariza, 156
BRUCK, Moeller van den, 83 CORRIGAN, Philip, 108

BRUNSCHVICG, Léon, 49, 300 COURREGES, André, 73


BUBBR, Martin, 50 CROZIER, Michel, 202

BUENO, Kétia Maria Penido, 151 DACCACHE, Michel, 246, 274

CALHOUN, Craig, 207, 291 DARBEL, Alain, 29, 61

CAMILLE COROT, Jean-Baptiste, 259 DARNTON, Robert, 25, 44, 62, 85, 224

CANEDO, Leticia Bicalho , 90 DE 1POLA, Emilio, 171

CANGUILHEM, Georges, 50, 8182, 98400, DELEUZE, Gilles, 174


174, 199, 201, 299 ‘ DENORD, Francois, 75, 168
CARLES, Pierre, 345—346 DERMENGHEM, Emile, 324
CASANOVA, Pascale, 44, 62, 257 DESCARTES, René, 81, 199
CASSIRER, Ernst, 51, 61, 192, 238, 288-289, 362 DESNOS, Robert, 317
CASTEL, Robert, 26, 61, 129, 206 DEZALAY, Yves, 26, 62, 109, 277

CASTELNUOVO, Enrico, 224 DISCEPOLO, Thierry, 42


CATAN1,Afranio Mendes, 25, 28, 42, 51, 61, 95, DIXON, Keith, 43—44, 62
124, 173, 210, 239, 249, 290, 345 DREYFUS, Alfred, 237
CHAMBOREDON, Jean-Claude, 26, 29, 50, 61, DUBOIS, Jacques, 62
170, 286, 337
DUBY, Georges, 43, 62, 125,222, 230
CHAMPAGNE, Patrick, 26, 61, 130, 131, 140,
DUHEM, Pierre, 287
268, 271, 283, 329, 357
DUMAZEDIER, Ioffre, 175
CHAMPEY, In‘es, 44
DUMEZIL, Georges, 43, 125
CHAR, René, 152
DURAND, José Carlos G., 29, 42, 73
CHARLE, Christophe, 26, 43, 61-62, 83, 85, 168, .
DURAND, Pascal, 63
222, 224, 236, 239, 258
CHARLESWORTH, Simon, 216
DURKHEIM, Emile, 38,43, 46, 50, 61—62, 64,
102, 134, 135, 143, 159-161, 170—171, 184485,
CHARTIER, Emile~Auguste (ALAIN), 98 187, 192, 207, 213, 222, 224, 234—235, 247, 249,
CHARTIER, Roger, 26, 125, 139, 224 261, 262, 264, 274, 289, 297, 299, 314, 338, 345,
CHAUVIN, Sebastien, 63 359-360, 362, 365

CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry, 175 DUVAL, Inlien, 62, 146, 148, 187, 208

CHOMSKY, Noam, 162-163, 214, 250, 252-254, 290 EAGLETON, Terry, 43, 62

[NDICE ONOMAsTlco 371


EINSTEIN, Albert, 49 GRIGNON, Claude, 26, 37, 61, 246
ELIAS, Norbert, 25, 64, 108, 147, 165-167, 214, GRILL, Igor G., 301
289, 338
GROS, Francois, 44
ENGELS, Friedrich, 76, 359
GROTOWSKI, Ierzy, 125
ERIBON, Didier, 44, 62,
GRUN, Roberto, 107, 230, 275, 346, 352
FABIANI, Jean-Louis, 61
GUEROULT, Martial, 174, 338
FAGUER, Jean-Pierre, 26
GURVITCH, Georges, 175, 336
FANON, Frantz, 142
HAACKE, Hans, 255-256
FAULKNER, William, 311
HABBRMAS, Ifirgen, 43, 62, 344
FEBVRE, Lucien, 125, 222
HACKING, Ian, 62, 129-130
FEUERBACH, Ludwig, 260
HAHN, Otto, 171
FINE, Agnes, 157
HALBWACHS, Maurice, 64, 102, 125, 187,
FINLEY, Moses, 61, 107 222, 262
FLAUBERT, Gustave, 66—67, 84—85, 175—176, 237, HALIMI, Serge, 45
257-258, 309—310
HANLEY, Sarah, 108
FOUCAULT, Michel, 43, 99, 125, 174, 198, 201~
HAROCHE, Serge, 124
204, 206, 260, 287, 323
HAUSER, Arnold, 66
FOURNIER, Marcel, 43
HEGEL, Georg, 81, 182, 297
FRANCOIS, Etienne, 224
HEIDEGGER, Martin, 61, 8183, 140, 164, 182,
FRISINGHELLI, Christine, 291
198-199, 217, 224, 238, 282-283, 296, 350
FRITSCH, Philippe, 301
HEILBRON, Johan, 62
GALVAO, Ana Maria, 137
HEINICH, Nathalie, 26
GAMBONI, Dario, 61
HEY, Ana Paula, 151, 164, 179, 191, 225, 277,
GARCIA, Sylvia Gemignani, 292, 298, 323, 357 292, 295
GARCIA—PARPET, Marie—France, 63 HYPPOLITE, Jean, 100
GARFINKEL, Harold, 128, 205, 305 , HlRSCH, Paul, 347
GARTH, Bryant G., 62, 109 HIRSCHMAN, Albert, 61
GAULEIAC, Vincent de, 334, 356 HOBSBAWM, Eric, 25, 224
GEAY, Bertrand, 62 HOGGART, Richard, 61, 269
GENNEP, Arnold van, 320 HUBERT, Henri, 264
GHEORGHIU, Mihai D., 26, 44
HUIZINGA, Johan, 231
GIDDENS, Anthony, 272 HUME, David, 81, 199
GINZBURG, Carlo, 25
HUSSERL, Edmund, 81, 83, 157, 182, 198, 199,
GIRARD, Alain, 316 213214, 274, 296—297, 350
GIVRY, Claire, 347 ISAMBERT, Francois-Andre, 175
GOFFMAN, Erving, 25, 61, 205~207, 338 ISAMBERTJAMATI, Viviane, 175
GOLDMANN, Lucien, 84 IAHODA, Marie, 353
GRAMSCI, Antonio, 237, 292 IARUZELSKI, Wojciech, 43
GRAW, Isabelle, 44 IOLY, Henry, 174

372 lNDlCE ONOMASTICO


IULIEN, CharleseAndré, 324 LORDON, Frederic, 44
IUNGER, Ernst, 83 LOWIE, Robert, 182
IURT, Joseph, 44 LOYOLA, Maria Andréa, 93, 142
KAELBLE, Hartmut, 224 LUCKMANN, Thomas, 64
KAFKA, Franz, 111, 161 LUHMANN, Niklas, 64

KANT, Immanuel, 81, 149, 199, 208—209, 236, LUKACS, Gyargy, 66, 84, 140, 261
247, 311, 344 MALINOWSKI, Bronislaw, 182
KLUGER, Elisa, 179,277 MALLARME, Stéphane, 257-258
KOCKA, Iiirgen, 224 MANET, Edouard, 224, 257-259
KOYRE, Alexandre, 82, 174, 287 MANNHEIM, Karl, 236
KUHN, Thomas, 171~172, 324 MARCHI 11:, Wanderley, 79
LABOV, William, 26, 61 MARCUSE, Herbert, 61
LABROUSSE, Ernest, 224 MARESCA, Sylvain, 61
LAGNEAU-YMONET, Paul, 168 MARIN, Louis, 26, 61, 174
LAHIRE, Bernard, 64, 130, 363 MARTlN CRIADO, Enrique, 38, 141, 228,
LAMICQ, Bernard, 53 304, 345

LANDAIS, Etienne, 357 MARTlNEZ, Ana Teresa, 350


LANGEVIN, Paul, 316 . MARTINS, Carlos Benedito, 335

LAPASSADE, Georges, 334 MARX, Karl, 38, 64, 76, 90, 96, 104, 135, 161,
164, 170—171, 184—185, 199, 259-261, 262, 296,
LATOUR, Bruno, 26, 324
299, 314, 338, 353, 359-360, 365
LAZARSFELD, Paul, 167, 170, 338, 353
MARY, Philippe, 63
LE ROUX, Brigitte, 77 ’
MAUGER, Gérard, 45, 259, 305, 342, 359, 361
LEBARON, Frédéric, 62, 77, 101, 167
MAUSS, Marcel, 43, 61, 74, 125, 134, 161, 166,
LECOMPTE, Margaret, 334 182, 192, 213, 247, 262-264, 297, 359
LEHMANN, Bernard, 216 MEAD, Margaret, 38, 345
LEIBNIZ, Gottfried , 30, 81, 182, 199, 305, 335 MEDEIROS, Cristina C. C. de, 123, 132, 219,
LEIRIS, Michel, 176 228, 281, 302 ~

LENOIR, Remi, 26, 86, 112, 184, 262, 365 MELO, Juliana Ferreira de, 137
LEVI-STRAUSS, Claude, 38,40, 54, 55, 124-125, MENDRAS, Henri, 175
126-127, 157, 175, 182, 192-193, 201, 222, 228, MERLEAU—PONTY, Maurice, 81, 82, 125,174,
233, 246.248, 260, 262, 274, 296,318, 324, 326, 182, 198, 199, 214, 267—268, 296
336, 345, 368 MERTON, Robert, 68, 70, 171, 324, 338
LEVY, Bernard-Henri, 269 METAILIE, Anne-Marie, 243
LEVY‘BRUHL, Lucien, 182 MEYERSON, Emile, 49
LEWIN, Kurt, 289 MICELI, Sergio, 25, 62, 162, 164, 174, 176, 238,
LINHART, Robert, 26 265, 330
LINTON, Ralf, 61 MICHELS, Robert, 90
LIPP, Carola, 224 - MONTERO, Paula, 33, 233, 318
LOPES, Iosé Sérgio Leite, 265 MONTLIBERT, Christian de, 44—45

INDICE ONOMAsrlco 373


MOREAU, Frédéric, 309 PROUST, Marcel, 149
MUEL-DREYFUS, Francine, 26, 61, 230 PUTNAM, Hilary, 102, 129-130
MULLER, Girgit, 43 ' PUTNAM, Robert, 116~117
NAIRN, Tom, 43 QUINE, Willard, 182
NICOD, Jean, 297 RADCLIFFE-BROWN, A. R., 61
NIETZSCHE, Friedrich, 299-300 RAGOUET, Pascal, 68, 118
NIZAN, Paul, 237 REICHENBACH, Hans, 50
‘ NOGUEIRA, Cléudio M. M., 23, 26, 177 RESENDE, Tfinia de Freitas, 327
NOGUEIRA, Maria Alice , 36, 103, 123, 125, 349 REY, Abel, 49
NOUSCHI, André, 38, 324 REYNAUD, Jean-Daniel, 175
ORTIZ, Renato, 292
RINGER, Fritz K., 224
PANOFSKY, Erwin, 61, 126, 164, 224, 289, 300 RIVET, Jean-Paul, 29, 61
PARIENTE, Iean~Claude, 174 RIVIERE, Marie-Christine, 61
PARSONS, Talcott, 64, 299, 338 ROCHE, Daniel, 85
PASCAL, Blaise, 46, 81, 145, 199-200, 265,
ROLSTON, Bill, 43
366, 338
ROMANELLI, Geraldo, 176
PASSERON, lean-Claude, 29, 36—37, 50, 61, 104,
144, 170, 173, 219—221, 245-246, 261, 268, 286- ROSANVALLON, Pierre, 125
288, 315, 316, 327, 337 ROUEFF, Olivier, 47
PASSIANI, Enio, 71, 135 RUNDQUIST, Angela, 110
PEIRCE, Charles, 368 RUSSELL, Bertrand, 300
PEREIRA, Gilson R. M. , 288 RYLE, Gilbert, 144
PESANTE, Maria Luisa, 43-44 SAHLINS, Marshall, 64
PESTANA, José Luis, 197, 267, 282, 286 SAID, Edward, 258
PETERSON, Richard, 150 SAINT MARTIN, Monique de, 26, 29, 108, 169,
PICASSO, Pablo, 31 273, 347

PIGLIA, Ricardo, 176 ' SAINT—JACQUES, Denis, 90

PINCON, Michel, 108 SALLUM In, Brasilia, 118


PINCON-CHARLOT, Monique, 108 SANKOFF, Gillian, 206
PINHEIRO EILHO, Fernando A., 165 SAPIR, Edward, 61
PINTO, Louis, 26, 44, 63, 81, 153, 157, 159, 199, SAPIRO, Gisele, 26, 55, 85, 88, 126, 143, 181,
234, 367 192, 296, 309, 321, 324, 341
PLATAO, 81, 157, 200 SARTRE, lean-Paul, 26, 81—82, 89, 99,127—128,
174, 176, 182, 193, 197—198, 236-237, 262, 267,
POLANYI, Karl, 64, 78, 107, 170-171, 301
269, 292, 296, 298, 321-323, 336
PONTHIEUX, Sophie, 116
SASSEN, Saskia, 206
PONTON, Rérny, 85
SAUSSURE, Ferdinand de, 162-163, 250, 252—
POPPER, Karl, 129-130, 170-172, 287 253, 264, 289
POUILLONJean, 194 SAYAD, Abdelmalek, 26, 29, 39, 61-62, 141, 291
' POUPEAU, Franck, 42, 240 SAYER, Derek, 108

374 INDICE ONOMASTICO


SCHNAPPER, Dominique, 29, 61 VERRIER, Frederique, 44
SCHOLEM, Gershom, 25 VEYNE, Paul, 125, 202, 230
SCHORSKE, Carl, 25, 224 VIALA, Alain, 85, 90
SCHULTHEIS, Franz, 291 VIANA, Maria Iosé Braga, 245
SCHUMPETER, Joseph, 61, 236 VIDAL~NAQUET, Pierre, 222
SCHUTZ, Alfred, 128, 157—158, 182,214,274 VOLOCHINOV, Valentin, 251
SCOTT, loan, 25 ' VUILLEMIN, Jules, 51, 61, 100, 174
SEARLE, John, 216 WACQUANT, Lo'l'c, 26, 34, 44, 96, 213, 216,
311-312
SEIBEL, Claude, 29, 61
WAGNER, Anne—Catherine, 109, 114, 272
SEIDL, Ernesto, 189, 241, 308, 335
WALLON, Henri, 316—317
SEIGNOBOS, Charles, 160,222
SENNETT, Richard, 206 WARNER, William Lloyd, 207
SETTON, Maria da Graga 1., 134 WEBER, Max, 31, 38, 46, 64, 71, 89, 90—91, 93,
121, 134, 135, 161, 164, 170-171, 182, 184—185,
SIMIAND, Frangois, 222
187, 202, 213, 224, 236, 238, 245, 261, 262,
SIMIAND, Georges, 262 287, 289, 297, 300, 307, 314, 335, 338, 345,
SIMIONI, Ana Paula, 66, 255 359, 365—367
SIMMEL, Georg, 64 WEIL, Eric, 174 "
SINGLY, Frangois de, 195 WENDEL, Frangois de, 113
SMITH, Adam, 64 WILLIAMS, Raymond, 26
SOARES, Magda B., 162 WILLIS, Paul, 25-26
SPENCER, Herbert, 64 WINKIN, Yves, 26, 62, 205
SPENGLER, Oswald, 83 WITTGENSTEIN,Ludwig, 51, 81, 165, 182, 199,
SPINOZA, Baruch, 81, 172, 182, 199 296, 303, 338, 367, 368, 369
SPOSITO, Marilia P., 243 WOOLF, Virginia, 157
STCETZEL, lean, 175, 336 YACINE, Tassadit, 62, 352
SUAUD, Charles, 61, 216 - ZOLA, Emile, 258
TAYLOR, Charles, 216
THIESSE, Anne-Marie, 85
THINE, Sylvain, 168
THOMPSON, E. P., 43, 62, 276
TILLY, Charles, 108
TISSOT, Sylvie, 63
TOURAINE, Alain, 175, 202
TREANTON, Iean-René, 175
TREVOR~ROPER, Hugh, 43
VANDENBERGHE, Frederic, 129
VEBLEN, Thorstein, 146, 213, 338
VERDES-LEROUX, Jeannine, 61
VERNANT, lean—Pierre, 222

lNDICE ONOMASTICO 375


Agéo, 23-28, 30, 33, 34, 43-45, 47, 54, 60, 62, 68, 274, 275, 283, 292, 295, 298, 302, 309, 310,
69, 70, 71, 75, 79, 84, 92, 94, 97, 98, 104-107, 311, 320, 339, 341, 369
113, 114, 116, 121, 123, 125-129, 131, 135, Ascetismo, 42, 59, 60, 122, 213
141—143, 155, 156, 158,165,166, 175, 179, 180, Ativismo, 42, 45, 62
182, 183, 189-193, 196, 213-216, 220-223, 229, Autoanélise, 85, 176, 206, 287, 324, 332-334
231-234, 241-243, 248-250, 252, 266, 268, 269, Socioanélise, 35, 173, 225, 265, 324, 332-
274—276, 280, 293, 295-299, 303-305, 309, 312, 334, 346, 358
313, 318, 320, 323, 325, 326, 328, 334, 336, 339, Autonomia, 23, 26, 43, 45-47, 58, 61, 62, 67-69,
341, 343, 352, 356, 361, 362, 365, 368 71, 78, 80, 82-85, 87—89, 92, 93, 111, 125, 165,
A950 pedagégica, 37, 134, 317 167, 170, 172, 186, 200, 215, 225, 227, 237-240,
Agéo social, 23, 189, 218, 241, 262, 263, 254, 261, 270, 275, 279, 310, 311, 313, 323,
304, 308, 334 337, 338, 358
Agente, 23, 24, 26—28, 32—34, 36, 40, 47, 52, 54, Autonomia relativa, 51, 65, 69, 88, 93, 100,
56—58, 65—72, 76, 78-81, 86, 88, 91-94, 96, 97, 261, 310, 358
106, 107, 111-113, 115, 118—125, 127-129, 133, Autoridade, 37, 59, 72, 76, 87, 92, 94, 95, 105, 112,
135, 136, 137, 143, 146, 147, 149, 152-155, 161, 202, 221, 227, 235, 254, 264, 276, 279, 284,
157-159, 165, 166, 168, 172, 177—179, 182-186, 293, 319, 320, 326, 328, 331, 338
188-193, 198, 200, 201, 208, 209, 213, 215, 216, Autoridade artistica, 67, 68
227, 229, 232, 233, 235, 241-243, 248, 249, 251, Autoridade cientifica, 58, 172, 227
260, 263, 268, 274, 276, 280, 281, 290, 293-297, Autoridade pedagégica, 37, 328
303-306, 308-310, 313, 314-, 322, 323, 325, 329, Béarn, 51—53, 55, 109,114, 115, 132, 153, 174, 175,
333, 334, 336, 338, 339, 342, 344, 347-351, 354, 190,214, 217, 222, 223, 297, 308, 313, 326,351
355, 357, 363, 366 Bens, 31, 47, 56, 58, 73, 74, 92—94, 101, 104, 105,
Alquimia social, 280 121-123, 137, 147-149, 153, 154, 158, 178, 185,
Amorfati, 28, 126, 208 201,208, 209, 217, 243, 251, 263, 269, 276, 290
Anélise de correspondéncias, 31, 226, 278, Bens culturais, 25, 30, 56, 71, 103, 104,
279, 286 136, 245
Anélise fatorial, 31, 286 Bens simbélicos, 52, 55-57, 72, 97, 104,
Antropologia, 33—35, 54, 91, 126, 128, 139, 166, 105, 123, 153, 156, 164, 183, 254, 261,
174, 182, 212-214, 217, 222, 230, 246-248, 250, 264, 267, 269, 270, 292, 294, 326, 356,
263-265, 296, 318, 320, 321, 325, 326, 336, 367
342, 347, 353 Biografia, 44, 84, 205
Antropologia reflexiva, 33, 34 Boa vontade cultural, 42, 58—60, 149, 179
Arbitrério cultural, 36, 37, 129, 136, 137, 234, Brasil, 43, 90, 97, 164, 208, 250, 298, 316, 318
245, 246, 327, 328 Burguesia, 59, 60, 63, 73, 74, 77, 80, 97, 108, 122,
Argélia, 33, 38, 40, 41, 53, 55, 61, 64, 77, 78, 90, 123, 147, 169, 188, 259, 273, 290, 304, 306, 351
115, 132, 140-142, 148, 174, 175, 181, 184, 190, Cabflia, Cabilas, 38, 40, 41, 53, 55, 64, 78, 115,
192, 214, 217, 222, 223, 230, 237, 238, 241, 247, 156, 175, 190, 193, 214, 228, 296, 297, 351
291, 296, 313, 324, 336, 345, 350, 352 Campo, 26, 32-34, 39, 42-48, 51—53, 55—58,
Arte, 28—31, 44, 46, 47, 55, 56, 66-68, 71, 72, 74, 64-76, 78-83, 85, 87-93, 95-98, 100, 107, 108,
78, 84, 103-105, 107, 121, 124, 126, 138, 146— 111, 116-119, 121, 122, 129, 137-141, 144, 146,
149, 164, 208, 241, 242, 246, 255-259, 263, 149, 151-156, 158, 161, 164, 166, 168, 171-175,

376
179, 180, 184-186, 190-192, 194, 197, 200, 201, Capital cientifico, 6'9, 82, 172,357
203, 209, 216, 222, 223, 225227, 229, 231233 Capital corporal, 101, 133
2414243, 246, 249—251, 253, 254, 257, 258, 261, Capital cultural, 30, 32, 46, 59, 60, 72, 76,
264-266, 269, 270, 272, 273, 278-281, 289, 290, 79, 90, 102-106, 109-111, 113416, 119,
292-295, 298, 301—304, 310, 318-320, 324, 325, 120, 133, 136, 143, 145, 146, 153, 154,
327, 329, 332339, 341-343, 348, 350, 351, 354— 167, 178, 179, 190, 191, 194, 195, 212,
357, 362, 363, 365, 366, 369 218, 219, 234, 235, 237, 241, 246, 250,
Campo académico, 175, 250, 273, 333, 334 251, 261, 266, 280, 293, 294, 304, 314,
Campo artistico, 64, 66—68, 78, 84, 85, 112, 315, 327, 339, 346, 355
138, 158, 256, 344 Capital de autoridade, 94, 112,227, 254
Campo burocrético, 58, 76, 78, 92, 185 Capital econémico, 32, 46, 54, 76, 77, 79,
Campo cientifico, 47, 58, 68-70, 78, 84, 111, 98, 101, 102, 105-109, 111, 113416, 119,
112, 118, 129, 130, 171,172, 227, 265, 294, 120, 136, 145, 153, 154, 167, 169, 178,
312, 313, 324, 337, 343, 357, 369 183, 190, 191, 194, 196, 212, 227, 235,
Campo cultural, 71—73, 121, 137, 148 237, 261, 266, 280, 293, 304, 314, 315
Campo da alta costura, 73, 74, 111 Capital escolar, 78, 106, 136, 138, 196,218,
Campo de producfio simbélica, 47, 48, 71, 235, 280, 344
90 Capital linguistico, 163, 250252, 254, 255
Campo do poder, 47, 68, 7477, 84, 85, 96, Capital religioso, 82, 93, 94
97, 115, 153, 164, 168, 180, 184—186, 223, Capital simbélico, 40, 41, 54, 56, 57, 70, 72,
225—227, 237, 238, 273, 278-280, 288, 309, 77, 78, 89, 90,102, 103, 106, 109-114, 116,
310, 333 117, 119, 145, 154, 161, 167, 169, 182-184,
Campo econémico, 46, 47, 55, 64, 71, 72, 190, 228, 235, 237, 261, 266, 278, 304,
77, 78, 79, 84, 92, 121, 227, 272, 273 314, 315, 324, 326, 351, 353, 354
Campo escolar, 246, 254 Capital social, 32, 46, 54, 79, 90, 98, 102,
Campo intelectual, 35, 48, 83-85, 124, 126, 106,110, 111,113,114, 115,116,117, 119,
131, 138, 164, 166, 174, 186, 225, 227, 136,145,154, 167, 180, 183, 194, 196, 235,
237, 247, 255, 259, 260, 265, 269, 270, 261, 266, 279,293, 304, 314 '
273, 282, 289, 321, 323 Capital temporal, 69
Campo jornalistico, 269, 270 Espécies de capital, 47, 56, 76, 96, 98, 103,
Campo juridico, 86, 330 111-117, 119, 120, 152, 153, 167, 180, 181.
Campo literério, 46, 66, 71, 72, 83—85, 184, 191, 194, 225, 237, 261, 266, 279, 280,
88~90, 167, 186, 236, 258, 309, 310 304, 314, 315, 357
Campo politico, 46-48, 71, 90-92, 121, 124, Volume de capital, 114, 120, 136, 304
153, 169, 227, 259, 271, 296, 301, 330, 344 Capitalismo, 55, 107, 144, 310,331, 348
Campo religioso, 57, 64, 84, 93, 94, 164, Categoria, Categorias, 30, 31, 49, 54, 69, 74, 75,
184, 264, 289, 365 77, 81, 86,95, 98, 103, 127, 129, 137, 147, 150,
Campo universitério, 85, 95, 96, 99, 192, 153, 167, 170, 171, 186488, 192, 195,207,213,
223, 225227, 337 215,216, 220,226, 229, 233,243,246, 248, 255,
Subcampo, 71, 81, 129, 237 257, 258,269,276, 278,283,287, 288,293, 300,
Capital, 41, 46, 47, 54, 56, 59, 60, 65-67, 69, 71, 72, 312, 313, 325, 328, 330, 334, 337, 342, 349, 352,
75, 76, 78, 80-82, 88-94, 96, 101-116, 1194122, 353, 357, 367 .
124, 133, 136, 145, 146, 149, 161, 168, 172, 178, De pensamento, 92, 117, 123, 159, 233,273,
180, 188, 191, 196, 209, 213, 215, 218, 226, 227, 313, 328, 337, 349
231, 235, 236, 241, 242, 250, 254, 255, 260, 267, De percepcéo, 56, 110, 111, 122, 192,215,
268, 276, 278-280, 292-295, 302, 304, 310, 314, 229, 273, 293, 365
315, 331, 332, 350, 351, 354, 355, 357 Do juizo professoral, 192, 328, 349

lNDlCE REMISSIVO 377


Causalidade do provével, 118 Formas de classificacéo, 154, 273, 359, 361,
Ciéncia, 25, 30, 34, 35, 43, 45,49, 50, 55, 62, 66, 362
68—70, 72, 74, 78, 82, 90, 91, 92, 95, 99, 103, Lutas de classificacéo, 117, 123, 137, 273
118, 124, 128-130, 135, 143, 146, 157, 158, 160, Principios de classificacéo, 153, 155, 232,
170—173, 177, 192, 199—201, 203, 210, 212, 225, 293, 294, 330, 362
227, 233, 236, 239, 240, 242, 246, 247, 249, 250, Sistema de c1assificacéo,72, 111, 139, 152,
255,260, 261, 266, 267, 269, 278, 282—289, 292, 158, 161, 185, 209, 278, 333, 349
299, 300, 302, 309, 310,312,323, 324, 333, 335, Collége de France, 43, 95, 107, 110, 112, 124, 125,
337—343, 348, 357, 367, 369 129, 144, 148, 172, 174, 176, 222, 249, 258, 259,
Ciéncia politica, 90-92, 116, 150, 284, 285 264, 303, 313, 323, 329, 330, 332, 340, 341, 357
Ciéncias sociais, 27, 34, 35,43, 62, 71, 82, Competéncia, 30, 56, 66, 69, 76, 86, 87, 91, 97,
83, 100, 107, 108, 124, 126, 128, 130, 131, 98, 102, 104, 105, 136, 142, 143, 145, 147, 149,
146, 149,164, 172, 173, 175, 182, 198, 201, 150, 155, 162, 163, 180, 198, 214, 216, 218, 219,
202, 204, 223, 224, 234, 238, 239, 246, 247, 235, 245, 253-255, 269, 280, 281, 286, 292, 301,
249, 259, 269, 271, 287, 288, 301, 303, 312, 305, 320, 330, 331, 362
323325, 329, 332, 336, 337, 339341, 343 Conhecimento, 25, 26, 27, 34, 35, 36, 50, 59, 69,
Classe, 25, 30, 31, 36-39, 42, 48, 56,58, 59, 69, 70, 77, 83, 88, 93, 95, 110, 112, 118, 126, 127,
72, 73—75, 77, 80, 84, 90, 92, 94, 95, 97, 104, 128, 130, 133, 135-137, 139, 145, 148, 152, 154,
105, 114, 119423, 125, 132, 133, 136-138, 142, , 156, 157, 160, 161, 166, 170, 174, 182, 185,
143, 146-150, 153-155, 158, 160, 167, 176, 178, 197, 199, 200, 201, 203-205, 212, 214, 222,
179, 183, 185, 187, 188, 193, 195, 196, 205, 209, 224, 236, 238, 241-243, 245, 246, 252, 253,
214,216, 220, 221, 235237, 242, 260, 261, 265, 259, 264, 266, 268, 270, 273, 274, 280, 287,
268,273, 292, 278, 279, 293—295, 298, 304, 306, 288, 292, 293, 296, 299, 303, 312, 324, 327,
314, 315, 318, 322, 323, 326-328, 333, 347, 356, 328, 333—335, 337, 338, 342, 343, 344, 360,
362, 363, 367 361, 363, 365, 368
C1asse dominante, 36, 37, 48, 75, 76, 90, Atos de conhecimento, 34, 152, 154
94, 105, 137, 147, 149, 154, 155, 167, 168, Conhecimento cientifico, 34, 49, 129, 159,
178, 184, 223, 227, 235, 237, 246, 272, 173,247,260
273, 292, 306, 310, 322, 326, 327, 328 Conhecimento prético, 24, 28, 70, 95, 126,
Classe social, 24, 29, 36, 37, 48, 63, 103, 253, 313, 344, 349, 361
115, 118—121, 123, 12,6, 129, 136, 140, Conhecimento praxiolégico, 27, 126, 127,
142, 149, 177, 207, 212, 220, 235, 238, 128, 182, 292, 325
245, 261, 271, 278, 281, 290, 296, 306, Consagracéo, 50, 53, 56, 57, 67, 74, 94, 98, 99,
316, 318, 328, 329, 339, 366 104, 122, 124, 153, 181, 249, 255, 278, 281,
Condicéo de classe, 120, 121, 126, 164, 310, 319, 320, 355
362, 363 Consciéncia, 23, 25—27, 34, 40, 41, 45, 62, 93,
Consciéncia de classe, 121 96, 121, 126, 127, 129, 133, 166, 214, 221, 232,
Pracées de classe, 72, 81, 136, 153, 154, 233, 240, 252, 256, 267, 268, 286, 288, 298,
178, 185, 261, 355 299, 305—308, 313, 319, 321, 322, 333, 344,
Habitus de classe, 75, 83, 163, 164, 298, 350, 360, 361, 363
356,362,363 Tomada de consciéncia, 159, 255, 305, 323,
Posicéo de classe, 120, 135, 136, 164, 296 360 _
Classificacéo, 25, 72, 77, 97, 104, 112, 121, Construcéo social, 54, 79, 128, 153
123, 138, 152, 153, 158, 179, 186, 191, 203, Construtivismo, 128, 129,215
225, 227, 244, 270, 278, 283, 319, 320, 328, Corpo, 73-75, 80, 93, 94, 97, 99, 101, 102, 104,
349, 360, 361 105, 124, 132-134, 147, 151, 158, 180, 181, 183,
Categorias de classificacio, 248 188, 193, 198, 202, 208, 214, 219, 221, 222, 227,

378 INDICE REMISSIVO


230, 233-235, 251, 258, 263, 264, 266-268, 293, Certificado escolar, 86, 105, 106, 136,273
295, 297, 309, 313, 319, 322, 330, 334, 250, 35L Titulo escolar, 146, 178, 190, 279, 304
354, 359, 360, 361, 363 Direito, 46, 52, 67, 72, 86-88, 91, 92, 98, 101, 103,
Corpo social, 133, 134, 294 107, 131, 152, 160, 180, 192, 195, 196, 221, 225,
Técnicas do corpo, 213; 297 227, 235, 252, 254, 277, 295, 313, 314, 320, 330,
Esprit de corps, 61, 95, 134, 179, 211, 277 331, 339, 344, 348, 351, 359
Espirito de corpo, 179-181, 279 Forca do Direito, 86
Efiet de corps, 179, 180 Disposicao, 23, 24, 26, 27, 29, 30, 35, 36, 39, 41,
Crenc‘a, 25, 29, 56, 57, 67, 68, 70, 73, 78, 79, 88, ‘ 47, 56, 59, 60, 65, 68-70, 78, 81, 84, 88, 96, 101-
91, 92, 94, 110, 112, 128, 134, 135, 137,139, 105, 116, 120-122, 125, 127, 133-136, 136, 138,
144, 145, 157-159, 189, 199, 200, 231-233, 235, 142, 144-146, 149, 151, 153, 156, 158, 166, 167,
242, 245, 246, 249, 253, 254, 258, 259, 261, 264, 175, 178-180, 182, 186, 193, 196, 198, 200, 201,
272, 275, 276, 280, 306, 311, 319, 321, 325, 326, 203, 208, 213-216, 218—220, 229, 231-233, 247,
328, 335, 337, 343, 351 ’ 259, 260, 263, 264, 267, 279, 281, 290-292, 297,
Producao da crenca, 57 303, 304, 306-308, 310-314, 325, 327, 334—336,
Cultura, 29, 30, 31, 34, 36—38, 43, 58, 59, 60, 62, 340-345, 355, 360, 362, 363, 368
63, 71, 73, 77, 83, 90, 101, 103, 105, 132, 135- Distincéo, 25, 28, 73-75, 79, 80, 88, 93, 94, 104,
139, 143, 145, 146, 148-150, 156, 164, 167, 174, 106, 108, 110, 114, 119, 121, 122, 132, 135, 136,
178, 179, 182, 192, 201, 206, 210, 217-221, 234, 137, 143, 146-149, 158, 161, 163, 167, 170, 172,
238, 241, 245, 246, 259, 267, 275, 278-280, 292, 186, 188, 190, 196, 228, 234, 246, 247, 252,
294, 305, 317, 325, 327, 328, 337, 360 255, 273, 278, 279, 281, 290, 292, 294, 296,
Aculturacao, 37,220, 247 320, 361, 366, 367
Cultura escolar, 37, 196, 220, 221 Divisao do trabalho, 74, 93, 293, 323, 330, 331
Cultura popular, 137—139, 150, 179, 287, Cultural, 105
345 Intelectual, 93, 341 ,
Cultural, 29-31, 35-38, 43, 44, 46, 52, 55-57, 62, Internacional, 272
68, 71, 72, 74, 77, 88, 89, 92,95, 97, 101, 102, Social, 76, 366
104, 105, 107, 108, 110, 116, 119, 132—134, Dom, 30, 40, 55, 56, 138, 140, 142, 149, 151, 166,
136-139, 142, 143, 145, 150, 151, 154, 156, 183, 196, 228, 241, 248, 263, 264, 266, 296,
167, 178, 184, 188, 218-222, 224, 227, 245, 326,335, 350, 351
246, 254, 259, 269, 270, 274—276, 282, 283, Contradom, 55, 183, 228, 248, 263, 296,
285, 294, 305, 306, 308, 310, 311, 324, 327, 326, 350, 351
328, 330, 346, 353, 363 Ideologia do dom, 103, 151,221, 234,248
Arbitrério cultural, 36, 37, 129, 136, 137, Dominacao, 25, 44, 55, 69, 72-74, 76, 78, 82, 85,
234, 245, 246, 327, 328 87, 94, 96, 98, 105, 134, 137, 151-157, 159, 168,
Heranca cultural, 37, 196, 217-219 181, 185, 190, 230, 240, 245, 260, 261, 265,
Legitimidade cultural, 37, 59, 246 266, 268, 273, 279, 280, 292, 293, 302, 306,
Pratica cultural, 29, 30, 32, 34, 37, 38, 42, 312, 314, 320, 326, 330, 331, 338, 244, 350,
59, 80, 81, 102, 104, 136-138, 142, 146, 351, 354, 359, 360 ‘
187, 298 Dominacao cultural, 42, 85, 152
Denegacao, 55—58, 107, 140, 230, 247, 263, 351 Dominacao masculina, 133, 155-157, 230,
Destino, 98, 118, 120, 142, 143, 157, 197, 221, 339, 346, 360 *
272, 306, 346, 353, 356 ' Dominacao simbélica, 25, 87, 137, 152,
Determinacio social, 74, 143, 145, 313, 338 154, 156, 292
Diploma, 30, 67, 86, 97, 101, 102, 105, 106, Dominacao social, 27, 28, 230, 327
109, 136, 145, 146, 191, 210, 279, 280, 281, Efeitos de dominacao, 87, 134, 253
315, 331 Eficacia da dominacao, 152, 154, 185

[NDICE REMISSIVO 379


Formas simbélicas de dominagéo,
152, 211,221,235, 265, 273, 277-279, 281, 283,
153 288,
316, 331, 332, 348
Modosdedominagao,131,154,155,18
4, Emprego,39, 158, 169, 190, 204, 216, 241,
235, 248,278,281, 292, 326, 366 252,
289,293,367, 368
Relagées de dominagao, 24, 25, 38,
134, Ep1stemolog1a, 49 50, 81, 82, 99, 100,
152— 154, 156, 223, 245, 261, 313, 169172,
314, 268, 286,287, 290,299, 300, 337, 352
359,360,366
Vigilancia epistemolégica, 34,287, 299,
Dominado, 37, 38,48, 65, 71,89, 94,
104, 134, 332,341
138,153,155,156,166,174,178,185,192,
226, Escola, 3031, 37,41, 64, 80, 81, 90, 96—9
235,237, 238, 245, 258, 264, 266,279, 8, 100,
280, 293, 107, 113,136,142,143,145,142151,1
307, 314, 320, 333, 351, 359, 360 57,167—
169,174-177, 179, 180, 191, 196, 202,
Dominante, 36, 37, 48, 50, 55, 65, 67, 210—212,
69, 71-73, 216221, 226, 235, 246, 251, 258, 265, 273, 278—
75—79, 82, 84, 89, 90, 92, 94, 103, 105,
120, 122, 280,286,287, 304,307, 310, 315, 316,
123,126,128,131,133,137,138, 318, 327,
147,149,152- 331, 332, 335, 337, 339, 341, 343, 348,
157,163,164,167169,174,175,177— 355, 362
181,183, Escolar1zaqao,29 105, 106, 177,220,
184, 190, 192, 194, 196, 205, 209, 212, 246,
218, 223, 251,296,308, 316, 353
227, 230, 235 -238, 240, 243, 245 -247,
254, 255, Instituiqéo escolar, 37, 60, 103, 104,
264,272 274,276,278 28,0 287, 292, 146,
294, 304, 151,212,279, 281, 315
306-308, 310, 314, 315, 321, 322, 324,
326 328, Sistemadeensino, 15,37, 95,104,105,1
333, 335, 348, 351, 356, 359, 360 09,
Doxa, 41, 82, 129, 137, 153, 157.159,
149,154,164,165,176,180,186,218,219,
232, 258, 234,278,288, 315-318, 327—329, 359—361,
260,272, 276, 307, 308,337,339
366
Allodoxia, 147, 159
Sistemaescolar,150,153,168,176,1
Doxésofos, 158, 285 84,
Ecole des Hautes Etudes Commerciales
185, 191, 220, 221, 246, 280, 284, 294,
(HEC), 310,315,328, 329,331,346
97, 211
Escolastica,79, 146, 200, 213, 248,
Ecole des Hautes Etudes en Sciences 264, 305,
Sociales 308, 342—344 _
(EHESS), 29, 34, 211, 312
Disposigao escoléstica, 343
Ecole Nationale d Administration
(ENA), 168 Postura escoléstica, 234
Ecole Normale Supeneure (ENS) 38,
52, 53, Prética escolastica, 265,266
81, 82, 97, 98, 99, 160, 162, 174, 210,
211, Espago, 16, 31, 32, 33, 40, 42, 43, 47, 48,
267, 317, 336 54, 58,
62, 64, 65, 67, 68, 70, 76 83, 85-89, 91 93, 96,
EcolePolytechn1que(EP) 97, 210, 211
97,107, 108,111,114,115,119,121,122,138,
Econorma, 25 41, 46, 55 58, 78, 79,8
4, 91, 101, 143,147, 149,150,153,165,166,172,180,183,
107,109,116,124,134,137,140,
157, 162 164, 184, 187-192, 204, 216, 218, 220, 222,
169, 180, 183, 193, 209, 211, 213, 236, 223,
245, 250, 225-,229 232,233, 236, 237,239, 241, 242,
254,261,263,264, 272,274,276,
277, 283,310,
247,
250, 251,256, 258,266, 267, 271,273,276,
326,347, 348, 367 277,
279, 280, 282,283,289, 290, 293, 294, 295,
Economia dos bens simbélicos, 5545
7, 183, 298, 306, 324, 330- 332, 336, 338—340,
264,326, 367 344,
347, 352,356,357, 363,366
Economia geral das praticas, 101
Espagodelutas,6574,76, 185,294,
Educagao, 30, 35, 44, 96, 97, 99,1 332
06,127,147, Espago de posigées, 32,47, 65, 67, 75,
160,165,169,175,176,177,190,210 87,
,211, 89,119,153,166,178, 194,310
220 -222, 240, 257, 277—279, 292,
297, 311, 316, Espago dos poss1ve1s 47, 82, 144, 174, 298,
327, 328,337, 344
Elite/Elites, 60, 73, 75, 77, 80, 91, 310, 333, 334,341, 343, 355
96 98,100, Espago social, 24, 26, 27, 32, 65, 80, 89, 91,
104, 113,136, 167169, 174, 178,
179, 181,210, 92,96,98,105, 106, 108, 111, 118,121,

380 INDICE REMISSIVO


"3;",
124, 125,133,139, 144, 147,149, 150, 153, Bstratégias de reprodugéo, 25,40, 76, 77,
168, 174, 177-180, 184, 188, 191~194,199, ‘ 108, 145, 179,189-191, 196, 197, 228, 273,
209, 212, 218, 223, 225, 226, 231, 232, 304, 314, 315, 326
241—243, 260, 261, 264, 274, 289, 290, Estratégias de subversio,65, 69
295, 304-306, 310, 312, 313, 322, 337, Estratégias de sucesséo, 69, 190, 196, 314
339, 342, 347, 350, 362, 363 Estratégias distintivas, 25, 146, 273
Esporte, 35, 73, 75, 79—81, 104, 124, 133, 147, Estrutura, 23, 24, 27, 28, 31-34, 36, 40, 45, 46,
148, 150, 187, 188, 242, 290, 302, 339, 346, 52, 57, 65, 68, 69, 75—77, 79, 80, 8789, 93, 94,
361 96, 97, 102, 105, 106, 109, 111, 115, 120-122,
Esquemas, 33, 35, 38-41, 43, 47, 60, 85, 86, 104, 127, 129, 134—137, 141-144, 151—155, 157, 158,
111, 120, 121, 133, 138, 144, 152, 156, 161, 164466, 178, 181, 182, 184, 185, 188, 191-194,
180482, 189, 191, 193, 214-216, 237, 267, 274, 209, 210, 218, 222, 223, 225, 227, 229, 231-233.
278, 280, 289, 308, 326, 328, 335, 336, 343, 235, 237, 242, 243, 247, 249, 252, 254, 260, 261,
352, 360—364, 368 270, 274, 276, 277, 279, 280, 289-294, 296, 297,
Esquemas de aqéo, 121, 142, 328, 368 304—306, 309, 312-315, 318, 325-328, 336, 338,
Esquemas de apreciagfio, 56,278, 328 341, 350, 354-356, 360, 362, 365, 366, 368
Esquemas de percepqéo, 35, 47, 56, 121, Bstruturalismo, 26, 34, 40, 54, 126, 128, 129,
129, 134, 135, 180, 191, 278, 987, 304, 143, 154, 174, 182, 192, 193, 201, 215, 222,
307, 311, 319,328 A 233, 248, 250, 260, 262, 292, 304, 314, 321,
Esquisses algériennes, 62, 184 ‘ 336, 338, 356, 367 ’
Estado, 25, 35, 46, 5860, 65, 69, 75—79, 81, 86, Estruturas cognitivas, 118, 142, 151, 152,
87, 89, 91, 97, 98, 101, 104—106, 108-110, 112, 154-156, 182, 191, 281,292,294, 361, 362
122, 130—133, 154-157, 159, 161, 164, 167, 169, Estruturas estruturadas, 69, 135, 295, 334
184-186, 190, 191,210, 213, 217, 223, 224, 227, Estruturas estruturantes, 23, 69, 127, 135,
229, 232, 234, 235, 239, 240, 243, 251, 253, 292, 295
258, 259, 261, 265, 266, 268, 272, 275, 276, Estruturas incorporadas, 24, 193, 293, 312,
278, 279, 281, 284, 289, 293, 294, 304, 314, 313 ,
315, 322, 324, 326, 328, 330—334, 346, 348, Estruturalismo genético, 40, 124
354-356, 359, 361, 362, 366, 368 Estruturas mentais, 103, 124, 134, 180,
Estética, 42, 60, 66, 74, 85, 89, 103-105, 121, 185, 191, 192, 211, 212, 214, 231, 232,
122, 135, 136, 138, 149, 151, 258, 270, 280, 278, 280, 281, 330, 361
309—311, 322, 345, Estruturas sociais, 24, 25, 27, 39, 72, 75, 77,
Estilos de Vida, 58, 67, 73, 75, 80, 81, 94, 98, 104, 94, 108, 119, 120, 124, 129,135, 142, 144,
114, 121, 122, 136—138, 149, 150, 167, 168, 179, 149, 152, 154, 156, 163, 177,183, 191, 196,
187-189, 214, 234, 246, 273, 279, 290, 292, 350, 211, 212, 214216, 223, 273, 278-281, 290,
355, 367, 395, 297, 304, 327, 330, 340, 354, 356, 363
Estratégia, 25, 27, 28, 32, 40, 41, 52, 54, 56, 58, Ethos, 78, 94, 102, 141, 180, 183, 194, 199, 228,
60, 65, 66, 69, 74, 78, 80, 90, 103, 104, 107, 308, 310, 336, 339
108, 114, 122, 124, 143, 144, 146, 148, 154, Etnografia, 153, 278
164, 167, 179, 182, 183, 189, 190, 193, 196, Etnologia, 15,53, 115,124, 148, 151, 181, 191,192,
207, 215, 216, 223, 230, 232, 242, 243, 248, 222, 227, 247, 265, 292, 307, 324, 336, 342, 360
250, 252, 260, 263, 273, 276, 280, 297, 301, Existencialismo, 99, 321
304, 309, 314, 321, 325, 326, 334, 335, 339, Familia, 25, 42, 5264, 57-59, 80, 101-103, 105,
347, 350, 351, 354, 366 ‘ 106, 110, 113-115, 120, 121, 125, 136, 142,
Estratégias de conservaqéo, 65, 69, 179 143, 157, 160, 174, 175, 177, 183, 188, 190, 191,
Estratégias de fecundidade, 190, 314 195497, 209, 216-219, 221, 235, 248, 251, 259,
Estratégias de reconversio, 191, 304 314-316, 331, 347, 362

INDICE REMISSIVO 381


Fenomenologia, 50, 81—83, 128, 143, 158, 197, Habitus clivado, 53, 324
198, 213, 233, 267, 274, 291, 321, 335, 338, Habitus de classe, 75, 83, 163, 164, 298,
350,367 356, 362, 363
Fflosofia, 32, 34, 38, 49-51, 81-84, 87, 93, 99, 100, Hegemonia, 6'7, 72, 79, 83, 84, 94
124, 126, 130, 143, 146, 151, 154, 157, 159, 160, Heranga cultural, 37, 196, 217—219
165, 170, 171, 174, 175, 180, 192, 197—202, 208, Herdeiros, 125, 169, 190, 197, 211, 219, 220,
209, 215, 216, 227, 233, 234, 247, 249, 259, 260, 286, 331
264, 265, 267, 268, 272, 282, 283, 288, 289, Heterodoxia, 89, 335, 338
292, 299, 312, 324, 325, 336, 338, 341, 345, Hexis, 213, 351 -
350, 351, 367, 368 Hexis corporal, 59,74, 132, 134, 136, 180,
Fotografia, 42,74, 113, 136, 160, 186, 201, 206, 218, 222, 251, 339
250, 291, 336 Hierarquia, 25, 36, 42, 69, 71, 82, 83, 88, 95, 97,
Franqa, 26, 29, 38, 40, 44, 52, 62, 67, 68, 77, 85, 104, 137, 139, 158, 208,209,211, 227, 232, 243,
96—98, 103, 105, 107, 108, 121, 122, 131, 143, 258, 259, 280, 294, 300, 304, 328, 335, 338,
147—150, 168,169,174, 179, 185, 187, 188,190, 341, 345, 354, 366
192, 195, 202, 203, 209, 210, 214, 217, 222, 226, Histéria, 15, 42, 49, 50, 52, 54, 70, 71, 73, 80—82,
230, 236-238, 240, 243, 253, 257, 259, 260,264, 84, 88, 89, 91-93, 99, 108, 118, 123-126, 133,
265, 269-271, 277,278, 284, 287, 291, 308, 316, 139, 147, 156,158,160, 165—167, 170, 198-201,
318, 324, 330, 334, 336, 338, 352, 356, 367 209, 210, 214, 215, 222-224, 233, 237, 238, 242,
Funcionalismo, 84, 172, 192,236,261, 338 257, 259, 262, 268, 271, 273-275, 280, 291, 295,
Genealogia, 40, 54, 107, 132, 202, 331, 352 304, 311, 322, 331-333, 337, 341, 355, 356, 360,
Génese, 36, 67, 68,93, 99, 120, 124, 129, 153, 164, 365, 368, 369
193, 216, 233, 253, 265, 279, 289, 295, 304, 309, Homo academicus, 32, 35, 51, 61, 95, 96, 99,
311, 321, 324, 337, 361, 365, 366 104, 125, 144, 180, 203, 211,223, 225, 236, 237,
Globalizagéo, 78, 81, 132, 169, 272, 275 247, 258, 265, 312, 332, 333, 341, 351
Gosto, 24, 25, 29, 32,47, 73, 74, 80, 100, 104, 115, Homologia, 31—33, 4548, 72, 89, 96, 153, 179,
121, 122, 123, 132, 136—139, 142, 143, 145, 149, 180, 205, 258, 278, 289, 290, 310, 355
150, 168, 183, 188, 208210, 234, 246, 290, 292, Homologia estrutural, 47, 71, 168, 193,
327, 332, 339, 362 270, 289, 297
Grandes Ecoles, 32,61, 76, 95, 97, 105, 114, Honra, 40, 41, 50, 55, 110412, 142, 161, 181, 183,
115, 162, 167, 168, 179,210, 211, 217, 236, 258, . 228, 345, 351
264, 277, 290 Sentido da honra, 40, 181, 182, 228
Grandes escolas, 80, 96, 179, 180, 278, 279, Hysteresis, 228
332, 355 Efeito de hysteresis, 228, 229
Grupos dominantes, 72, 103, 120, 123, 167, 169, Hysteresis do habitus, 228, 229
180, 181, 212, 245, 278, 279, 294, 315, 327 Identidade, 75, 86, 100, 112, 124, 163, 180, 181,
Habitus, 16, 23, 24, 27, 28, 39—42, 46, 47, 52, 226, 235, 266, 267, 320, 353, 356
54, 65, 68, 69, 74, 79, 81, 88, 90, 93, 94, ldentidade coletiva, 181
96, 100, 107, 111, 116, 120-122, 126, 127, Identidade nacional, 185
133, 136, 141-144, 146, 148-150, 152, 156, Identidade social, 98, 112, 125, 132, 180,
158, 163, 164, 166, 174476, 178, 180, 182, 281 ,
183, 188—190, 193, 194, 198, 199, 203, 205, Ideologia, 58, 88, 100, 105, 131, 151, 158, 164,
213216, 222, 223, 226-234, 237, 242, 248, 168, 171, 230, 234, 236, 237, 240, 275, 276, 283,
250—252, 254, 259, 260, 266, 278, 279, 281, 307, 308, 335, 354, 359, 360
290293, 295, 297, 298, 302, 303, 305-308, Illusio, 46, 56, 70, 73, 78, 79, 88, 168, 199, 231-
310, 311, 319, 322, 325, 328, 334, 339, 342, 233, 239, 240, 242, 311, 325, 339, 343, 351
343, 347, 350, 351, 354, 355, 360363, 368 Iluséo biogréfica, 233, 355

382 INDICE REMISSIVO


Inconsciente, 40,55, 121, 125, 127, 132, 135, 148, logo incorporado, 190, 242
156, 160, 180, 182, 200, 208, 225, 233, 250,263, Sentido do jogo, 24, 190, 231, 232, 241—243,
271, 280,318, 321,322, 328,329, 333, 334, 337, 249, 298
341, 342, 346, 356, 361, 363 Iornalismo, 71, 78, 243, 269, 270, 287, 320
Incorporagéo, 24, 59, 60, 70, 106, 111, 120, 124, Iuizo professoral, 192, 328, 349
133, 152, 154-156, 180, 191,192, 216, 234, 266, ' Iulgamento escolar, 278
305, 307, 319, 351, 356, 360, 363 Legitimagéo, 28, 36, 67, 69, 76, 84, 90, 94, 108,
Incorporadas (disposiqoes), 26, 65, 133, 179, 118, 137, 179, 227, 245, 246,259,266, 269, 272,
290, 303, 360 273, 317, 328, 329, 335, 338, 365, 366
Inculcagéo, 36, 98, 106, 133, 134, 218, 292, 307, Legitimidade, 36, 37, 59, 68, 94, 95, 97,
317, 328, 362, 363 7 105, 130, 138, 153, 154, 159, 169, 188,
Individualismo, 234, 235, 338 206, 209, 212, 225, 235, 245, 253, 261,
Intelectua1,-15, 16, 25, 29, 33, 35, 36, 38, 4345, 270, 273, 280, 293, 308, 314, 318, 320,
48, 61, 62, 66, 72, 74, 76, 77, 82, 83, 85, 90, 93, 326, 328, 335, 358, 366
96—98, 100, 103-105, 107, 108, 110, 120, 122, Legitimidade cultural, 37, 59, 246
123—125, 131, 138, 151, 153, 157, 159, 160, 161, Processos de legitimaqéo, 139, 153, 320
164466, 168, 172, 174, 177, 180, 183, 186, 190, Libido, 78, 157, 232, 343, 353
192, 198, 199, 201—206, 208, 220, 221, 225—227, Linguagem, 35, 50, 63, 72, 91, 107, 110, 126, 129,
232, 236-239, 246, 247, 250, 255, 259, 260, 132, 133, 137, 138, 140, 146, 163-165, 174, 186,
263270, 273, 275, 276, 278, 279, 282, 286, 287, 192, 198, 200, 216, 250-254, 275, 282,283,
289, 291, 296, 298, 299, 301, 311-313, 316, 321, 294, 299, 305, 318, 319, 326, 337, 349, 360,
323, 324, 328, 330332, 336—341, 344, 346, 348, 365, 367—369
349, 352, 359, 365 Literatura, 25, 38, 42, 44, 55, 72, 84, 85, 88—90.
Intelectual coletivo, 238, 240, 311, 323 116, 124, 190,209,211, 249-251, 254, 263,289,
Intelectuais midiéticos (Fast Thinkers) , 298, 309, 339, 341, 345
269, 270, 330 Légica da prética, 81, 124, 266, 296, 298, 312,
'Ihz'nk Tanks, 238 326,
Interagio, 23, 26, 34, 154, 163—166, 183, 193, 205, Luéros, 46, 54, 64, 66, 67, 74, 79, 96, 105, 159,
218, 219, 251—253, 289, 296, 332, 334, 347, 348, 162, 163, 231, 249, 250, 252, 255, 256, 261,
351, 356, 366 315, 331, 332,
Interesse, 16, 32, 40, 43, 46, 48, 55, 57, 58, 62, Lucros simbélicos, 54, 77, 104, 105, 241
6569, 71, 72, 74, 75, 82, 84, 87, 88, 92, 94, 95, Lucros sociais, 133
105, 110, 118, 120, 125, 126, 148, 152,154, 155, Luta, 24, 32, 35,45, 46,48, 58, 65, 66, 68-76, 78,
161, 167, 171, 181, 184-186, 189, 190, 192, 205, 79,81, 82,84, 89, 91, 92, 96, 99, 105, 112, 117,
208, 213, 217, 222, 227, 231, 232, 237, 238, 242, 120-123, 130, 131, 139, 146, 149, 152, 153, 155,
250, 264, 268, 273, 274, 276, 279, 281, 285, 294, 158, 171, 172, 175, 176, 179, 175, 188, 190, 201,
295, 304, 309, 320, 326, 3304332, 335, 336, 339, 202, 209,212, 217, 223—225, 236, 238, 240, 241,
343-345, 353, 354, 367 249, 266, 279, 280, 284, 286, 294, 314, 332, 333,
Investimento, 5557, 59, 60, 78, 100, 106, 1325 335, 338, 342-345, 352, 356
134, 179, 190, 191, 196, 219, 231233, 242, 249, Lutas de classificagéo, 123, 137, 152,273
314, 315, 325 Lutas simbélicas, 72, 92, 103, 104, 121-123,
Iogo, 46, 65-67, 70, 71, 73, 78, 80, 83, 88, 92, 96, 149, 152, 195, 260, 261
122, 124, 131, 134, 135, 138, 145-148, 162, 171, Lutas sociais, 131, 240, 271, 293
182, 189, 190, 199, 203, 228, 231, 232, 237. Macrocosmo, 65
238, 241-243, 248, 249, 266, 280, 281, 283, Magia, 47, 74, 86, 93, 98, 134, 211, 264, 319
295, 297, 303, 311, 319-321, 325, 326, 328, 338, Marxismo, 66, 71, 108, 126, 193, 233,236, 259,
343, 354, 367, 369 260, 321, 338, 353, 356

1NDICE REMISSIVO 383


Mercado, 41, 44-46, 52, 56-58, 61, 67, 78-80, 85, Notoriedade, 227, 238, 247, 269, 317
89, 93, 94, 101-103, 105, 106, 132, 145, 146, Objetivacéo, 34, 35, 50, 53, 75, 96, 112, 132, 136,
154, 163, 169, 184, 190, 191, 213, 238, 250-255, 154, 173, 174, 199, 225,251,268, 299, 313, 333,
277, 286,289,292, 310, 314, 347, 348, 350, 358 335-338, 341-344, 366
Mercado linguistico, 163, 250-255, 267 Objetivismo, 24, 27, 81, 126—128, 182, 183, 214,
Mercado simbélico, 52, 56, 156, 164,270, 233, 260, 262, 296, 321, 325-327, 368
294 Opiniéo pfiblica, 149, 243, 283-285, 302
Mérito/Meritocracia, 92, 104, 105, 107, 173, 199, Ordem social, 79, 94, 106, 121, 129, 134, 143,
_ 202, 300, 319, 325, 327, 328, 331, 335 151, 153, 154, 168, 185, 192, 193, 195, 208,
Metacampo, 76 230,244, 292, 293, 302, 307, 335,351, 361,365
Metacapital, 76, 184 Ortodoxia, 73, 89, 95, 154
Metodologia, 26, 107, 126-128, 170, 268, 298, 347 Patriménio, 37, 53, 97, 101, 167, 168, 178, 183,
Microcosmos sociais, 64 189—191, 196, 217, 218, 241, 252, 309, 314, 326
Midia, 43-45, 62, 69, 97, 240, 243, 268—271, 275, Patr'unonio cultural, 103, 106, 217, 310,
329, 346, 349, 363 327, 331
Midiético, 61, 87, 103, 117, 225, 238, 260, Patronato, 77, 108, 168, 169, 190, 288
269, 270, 301, 329, 330 Pedagogié racional, 221, 328
Mimese, 41 Pensamento, 26, 35, 36, 42, 43, 55, 83, 92-94, 99,
Mimesis, 133, 362 104, 107, 117, 123,128, 129, 131, 134, 135, 152,
Mobilidade social, 178, 271, 306 155, 156,158, 159,161, 164, 172, 176, 177, 180,
Monopélio, 31, 65, 66, 77, 78, 92, 94-97, 109, 112, 191, 199, 200, 202, 203, 206, 213, 233, 234,239,
123, 148, 155, 185, 212, 280, 330, 343 240, 246, 247, 251, 255, 262, 265, 273, 283, 297,
Da autoridade, 67 302,304, 305, 312, 313, 318, 321, 323, 328, 337,
Da competéncia, 56 339, 343, 344, 349, 356, 362, 365, 368
Da Violéncia, 41, 76, 359, 361 Pensamento escoléstico, 260, 343
Da violéncia simbélica, 72, 76 Pensamento relacional, 51, 288, 289
Do Estado, 184 Pequena burguesia, 59, 60, 122, 290, 306, 351
Do saber, 93 Poder, 15, 25, 32, 43, 46, 47, 59, 62, 69, 71, 72,
Movimentos sociais, 43, 131, 132, 139, 239, 240, 74-77, 84, 87, 90, 92, 94-96, 98, 101, 102, 105,
338, 345, 346 109, 111,118, 119,122, 134, 137, 143, 152-155,
Mundializacéo, 45, 79, 81, 272-274 159, 163, 165,166,168, 169, 174, 177, 180,181,
Mundo social, 15, 23, 26, 32, 35, 45, 71, 72, 88, 184, 185, 190, 196, 202,203, 212, 214, 225—227,
91, 93-96,104, 112, 122,123, 126-132, 135, 137, 238, 245, 247, 251, 254, 255, 261, 264, 272, 275,
140, 148, 152-155, 158-161, 163, 166, 175,176, 276, 278-281, 292-295, 312, 314, 318-320, 322,
180, 181, 185, 186, 189-192, 197, 205, 215,216, 328, 329—332, 335, 338, 344, 346, 349, 357,
225, 233, 240-242, 244, 247, 250-251, 260, 261, 360,366, 368
268, 271, 274, 280, 282, 283, 292-295, 299,301, Poder simbélico, 72, 79, 95, 109, 124, 132,
305-308, 310, 312, 313, 322, 325, 330, 332, 337, 137, 163, 185, 200, 266, 292-295, 319
339, 341-343, 345, 351, 360-362, 364 Relacfies de poder, 87, 95, 119, 139, 163,
Neoliberal, 44, 45, 58, 62, 78, 130, 131, 238,239, 261, 313
266, 276, 346 Politica, 30, 34, 35, 43-46, 56, 58, 61, 63, 65, 69, 71,
Neoliberalismo, 131, 234, 271, 275—277, 348 78, 79, 82—84, 87, 90—94, 96-97, 99, 107, 116, 117,
Nobreza, 76, 87, 105, 112, 113, 145, 146, 168, 191, 122, 128, 129, 131, 132, 137, 141, 142, 149, 150,
211, 273, 294, 330, 331, 366 153—156, 159, 174, 175, 181, 182, 185, 187, 193,
NobreZa de Estado, 77, 87, 131, 265, 332 202, 203, 209—211, 214, 216, 217, 222, 224-226,
Nobreza escolar, 82, 280 235-240, 245, 253, 256, 260, 264, 266, 267, 270,
Nomos, 46, 77, 172, 173,201, 281, 310, 369 272, 275, 276, 278, 280, 282-285, 289, 292, 295,

384 INDICE REMISSIVO


296, 301, 306, 309, 310, 317, 318, 320, 326, 329, 266, 278, 288, 290, 291, 296, 298, 299, 301, 303,
333, 336-339, 342, 344, 345, 347, 350, 351, 357 304, 308, 319, 324-326, 330, 331, 332, 342-344,
Posicéo, 24, 32, 33, 35, 36, 47, 54, 59, 65-69, 72, 350, 368, 369
74, 76, 77, 79, 80-82, 84, 87—89, 91-94, 96-101, Escoléstica, 200, 344
103, 104, 110, 119, 120, 122, 126, 135, 136, Realpolitik da razéo, 199, 240, 344
152, 153, 155, 156, 158, 163, 164, 166, 168, Razées préticas, 174,247, 290, 303, 304
175, 177—180, 190-196, 203, 209, 212, 218, 223, Reconhecimento, 37, 43, 46, 57-59, 69, 70, 72,
225-227, 236, 241-243, 247-249, 259, 260, 266, 80, 86,88, 90, 101, 102, 105-108, 110-112, 124,
270, 274, 278-283, 286, 290, 294, 295, 301, 303, 133, 135, 140, 146, 151, 152, 154, 156, 163, 172,
304,306, 310, 313,314, 317, 329, 332-339, 341, 195, 212, 222, 227, 231, 232, 235, 241, 242, 245,
343, 350-352, 354, 355, 357, 362, 363, 366 247, 252, 266, 293,294, 308, 310, 314, 319, 324,
Poslcéo de classe, 120, 135, 136, 296 343, 357, 360, 368, 369
Posicéo social, 23—26, 28, 68, 75, 80, 119, Desconhecimento, 151, 156,212, 245, 264,
125, 133, 136, 149, 168, 177—179, 191, 198, 293,294, 314, 320, 335, 344
199, 234, 242, 243, 249, 251, 278, 280, Reconverséo, 106, 191, 223, 273, 355
284, 290, 303, 305, 322, 337, 338, 342, Converséo, 36, 47, 69, 82, 104, 106, 145,
355,362 175, 307, 355
Posigées relativas, 114, 118-120, 177, 190 De capitais, 191, 304
Prética, 23-27, 29-32, 34, 35, 37—42, 46, 47, 51- Reflexividade, 33-35, 159, 174, 198, 268, 296,
56, 58-60, 65, 68-70, 75, 78-81, 86, 90, 94-96, 305-308, 312, 313, 324,333,334, 341-345, 363
101, 102, 104, 120—122, 124, 126, 127, 129, 130, Regra, Regras, 23, 24, 27, 40, 46, 52, 54, 59-61,
133, 136-138, 141, 142, 144, 146, 147, 149, 151, 65,66, 70, 72, 73, 88, 89, 91,92, 124, 126, 127,
153, 154, 156, 158, 160, 163-166, 169—171, 174, 137, 145, 156, 172, 175, 182-184, 189, 190, 193,
179, 181-183, 186-189, 191, 193, 194, 196, 199, 214, 217, 220, 228, 232, 241-243, 248, 252, 253,
200, 209, 213-216, 218, 220, 221, 224, 225, 228, 256, 272,283,290, 296,297,300, 301, 303, 305,
229, 231-234, 236, 242, 245—248, 250, 252, 255, 307—310, 319, 322, 325, 326, 341,350,363, 368
260-268, 270, 280, 283, 284, 289, 290, 292, Relativizacfio, 342
294, 296-300, 303-308, 312, 313, 318, 319, 321, Religiio, 55, 58, 74, 89, 93, 94, 161,164, 175, 235,
324-326, 328, 332-334, 337, 339, 341-344, 346, 236, 274, 311, 337, 339, 365, 366
348-352, 355, 356, 361-363, 366-368 Reproducéo, 23, 69, 70, 72, 73, 76, 77, 84, 94, 95,
Préticas sociais, 24, 34, 79, 98, 120, 171, 96, 99, 104-106, 108, 115, 123, 144, 145, 149,
292, 309, 352, 368 154, 155, 157, 162,167, 168, 179-182, 185, 189,
Prestigio, 42, 72, 74, 77, 82, 110, 111, 145, 177, 190, 191, 193, 196, 197, 211, 212, 215, 219, 223,
178, 183,200, 210, 211, 227, 235, 247, 255, 279, 226, 227, 235,236, 247, 260,261, 268, 273, 278,
280, 283, 294, 338, 345, 357 280, 290, 292, 293, 304, 313—317, 326, 327, 329,
Privilégio, Privilégios, 29, 30, 34, 47, 52, 87, 98, 331, 338, 339 »
104, 108, 219,221, 240,242, 276, 307, 308, 313, Estratégias de reproduc éo, 25, 40, 76, 189,
327, 328, 335, 344, 359, 363 190, 191, 196, 197, 228,273, 304, 314, 315,
Projeto, 23, 30, 39, 43, 67,74, 86, 88,92, 96, 116, 326
125, 126, 143, 158, 160, 161, 165, 174, 181, 184,. Modos de reproducéo, 76, 168, 196, 227,
197, 202, 224, 260, 263, 266, 270, 272, 278, 296, 235, 244, 315
298, 301, 316, 317, 333—340, 351, 367 Reproducéo cultural, 152, 164, 177, 227,
Razéo, 29, 30, 34, 36, 42, 46, 49, 76, 83, 87, 99, 327 .
110, 111, 125, 128, 130, 138, 143, 144, 155, 158, Reproducio escolar, 280, 331
159, 161, 166, 170, 172, 174, 183, 188, 192, 193, Reproducéo social, 75, 94, 104, 106, 108,
199, 200, 201, 211, 214, 220, 224, 226, 227, 230, 129, 148, 151—153, 164, 179, 180, 189,217,
233, 235, 238, 242, 249—251, 253, 262, 263, 265, 278, 293, 309, 314-317, 327, 350

INDICE REMISSIVO 385


Resisténcia, 39, 43, 46, 62, 94, 99, 120, 156, 173, Sistema, 23, 27, 36-38, 40, 52, 54, 65, 68, 69, 72,
205, 256, 297, 333 77, 78, 79, 83, 87, 94-96, 98, 103-105, 109, 116,
Rito, Rites, 161, 163, 235, 249, 264, 318-320 120, 126,127, 129,132-134, 136, 142, 149, 150-
Rito de instituigéo, 146, 163, 249,264,279, 155,157, 158,161,164, 165, 167, 168, 176-178,
318,361 180, 181, 184-186, 190-193, 196, 202, 208—210,
Ritos de consag’ragéo, 320 213-215, 218-221, 223, 225, 226, 230-234, 236,
Rito social, 318 243, 246, 248, 252, 253, 263, 270, 278, 280-285,
Senso comum, 50, 82, 122, 126, 127, 129, 158, 288, 290, 292—295, 297, 299-301, 304, 310, 314-
160, 172, 185, 214, 234, 274,286, 289, 299, 318, 319, 325, 327—329, 331, 333, 336, 339, 343, 346,
333, 337, 361, 362 350, 352, 355, 359361, 363, 365, 366
Senso prético, 35, 79, 110, 124, 148, 199, 200, Sistemas de classificagéo, 111, 139, 152,
228, 229, 247, 259, 297, 298, 305, 306, 318, 158, 185, 209,278,349
322, 324-326 Sistemas de pensamento, 42, 161, 164
Sentido, 23, 25, 27, 28, 33, 38, 40, 42, 47, 50, Skholé, 201, 266, 305, 343, 352
58—60, 68, 70, 74, 76, 79, 84, 88, 89, 96, 100, Sociaqéo, 215
106-108,110, 112, 116, 119-122, 126-128, 131, Sociafizagéo, 25, 60, 75, 91, 106, 133, 155, 181, 182,
135-138, 140, 148, 151, 153, 156, 157, 161-165, 228, 230, 232, 241, 252, 265, 279, 297, 347, 352
167, 171, 173,181, 182,186,189, 190, 192, 193, Processo de, 56, 133, 144, 180, 217, 229,
213, 220, 221, 228, 230-234, 236, 241, 242, 232, 303, 304
244, 246—248, 250, 254-256, 260, 262—268, Sociedade, 23, 27, 36, 39-41, 52, 53, 55, 56, 64,
272, 274, 278, 283, 285, 288, 292-294, 296, 67, 71, 78-80, 91, 93—97, 102, 104—109, 111, 112,
298-300, 303, 304, 307, 308, 310, 314, 315, 318, 115, 116, 118, 119, 120, 123, 125, 128, 130,
322, 323, 326-328, 330, 333, 335, 338, 341, 352, 131, 135-138, 140-143, 148-150, 153-158, 161,
353, 355, 360, 361,366, 368 165-168, 172, 175,177-182, 190, 192, 195-197,
Produqéo de sentido, 134, 152, 293 205, 209, 210, 212, 214, 215, 217, 218, 222-224,
Sentido do jogo, 24, 190,231, 232, 241-243, 228, 234-238, 241, 245, 246, 248, 249, 258, 261,
249, 298 263, 266, 272, 274, 280, 281, 284, 290, 291,
Simbélico, 25, 28, 36-38, 40, 41, 46, 52, 54-57, 67, 293, 295-298, 300, 305, 308, 309, 313—316, 318,
70, 72, 74, 76, 77—79, 83, 87-90, 92-95, 97, 98, 327-329, 332, 333, 335, 336, 339, 345-348, 350,
102-114, 116, 117, 119, 121-124, 126, 129, 132, 351, 353, 355, 359, 361-363, 365-367
134-138, 143, 145, 146, 149, 152-157, 161-164, Sociodiceia, 190, 275, 335
167, 169, 171, 178,180-186, 190, 192-195, 200, ‘Sociogénese, 124, 144,343, 360
202, 205, 210, 213, 216, 220, 225, 227, 228, 231, Sociologia, 26, 29, 31, 34, 35,38, 51, 53, 61, 65, 68,
233, 235, 237,242, 245, 246,248,250, 252-254, 70, 71, 75, 78, 79, 83-85, 88, 90, 91, 98, 100, 107,
257, 259-261, 263-267, 269, 270, 272, 275, 278, 108, 113, 116, 117, 123, 124, 128, 130, 132, 133,
281,289, 290, 292-295, 298, 304, 307, 308, 310, 135, 138, 143, 144,150, 151, 159, 160, 163-166,
312, 314—319, 324, 326, 328-330, 338, 339, 341, 168-177, 187, 190, 191, 193, 195-197, 199-202,
351-354, 356, 359, 360-362, 365-367 205, 206, 208, 209, 211, 212, 218, 219, 222-225,
Dimenséo simbélica, 38, 55, 58, 76, 78, 227,228, 233, 234, 236, 238, 247, 249, 250, 254,
135, 152, 183, 188, 292, 294,326, 330 259, 260, 264-266, 269, 271, 282, 283, 286, 287,
Instrumentos simbélicos, 152 289,292, 295, 298, 299, 301-304, 312, 318, 321,
Ordem simbélica, 85, 95,155, 158, 185, 324, 327, 333-343, 345-348, 350, 352-354, 356,
292 357, 361, 365—369
Produqio simbélica, 47, 48, 71, 72, 90, 153, Sociologia da sociologia, 51, 171, 249, 337,
154, 159, 164, 202, 260, 261, 289 341, 342
Revolugio simbélica, 158, 184, 257-259, Sociologia do conhecimento, 128, 160, 211,
310 288, 299, 342, 365

386 INDICE REMISSIVO


«a.-
Sociologia reflexiva, 34 100, 101, 105, 106, 107, 109, 110, 111, 114418,
Sociologia relacional, 312 125, 127—129, 133, 140, 141, 144, 145, 148-154,
Subjetivismo, 26, 81, 128, 129, 183, 214, 233, 262, 157~161, 165-170, 174-176, 179, 182, 186, 190-
296, 299, 304, 321, 325, 327, 368 192, 195, 196, 198, 199, 202, 203, 205, 211, 214,
Subjetividade, 24, 25, 27,34, 139, 293, 299, 218, 219, 220, 222—225, 227, 230—234, 237, 238,
350, 367 240, 243, 247, 248, 250, 251, 257, 258, 261264,
Sujeito, 23-28, 34, 40, 49, 53, 59, 83, 103, 104, 266, 268, 272—274, 276, 283, 284, 286, 287,
106, 107, 118, 120, 138, 161, 165, 166, 173, 180, 289, 291, 293, 295, 297, 301—304, 307, 310-312,
193, 197, 198, 209, 231-234, 249, 256, 268, 293, 314, 323, 326639, 341, 344646, 348, 352-355,
295, 296,299,304, 305, 313, 322~325, 328, 330, 357-360, 365, 366, 367
333, 334, 341, 344, 348 Trajetéria, 33, 36, 58, 59, 63, 67, 68, 78, 84, 85,
Taxionomia, 117, 152, 154, 349 90, 91, 96, 98, 99, 108, 119, 120, 125, 136, 144,
Televiséo, 30, 44, 50, 53, 269, 329, 339, 349 161, 169, 177, 178, 182, 198, 202, 210, 215, 216,
Tempo, 27—30, 35, 38, 39, 41, 46, 50, 57, 60, 6762 219, 233, 236, 237, 243, 247, 265, 268, 279, 282,
74,76, 79, 83, 86, 89, 95, 99, 106-108, 115, 116, 286, 291, 302, 303, 310, 313, 316, 324, 333,
125, 133, 134, 136, 137, 141, 145, 149, 150, 157, 337, 339, 341—343, 345, 350, 351, 354-356, 362
160, 166,167, 169, 171, 180, 182-184,190~193, Efeito de trajetoria, 352
201, 214, 215, 217, 219, 221~223, 227, 230, 231, Trajetéria modal, 355 ,
237, 240242, 245-248, 260, 261, 263, 266, Trajetéria social, 136, 198, 282, 350, 354,
268, 277, 278, 282, 283, 286, 291, 294; 296, TrOcaS, 47, 52, 54, 55, 72, 78, 100, 107, 114, 115,
305, 314, 315, 317, 321, 324, 326, 331, 336, 337, 140, 164, 182, 183, 207, 220, 255, 280, 292,
340, 342, 343, 345, 349, 350-352, 354—356, 293, 296, 326, 362
363, 365, 367, 369 Economia das trocas, 162-164, 250
Dimenséo temporal, 183, 263 Trocas linguisticas, 162464, 250, 254, 339
Teoria, 32, 34, 37, 39, 45, 46, 49, 54, 66, 68, 72, Trocas simbolicas, 62, 164, 356
75, 78, 79, 81, 83, 87, 89, 93, 103, 107, 116, 128, Veredicto escolar, 359
130, 136, 141—144, 147, 151, 152, 156, 160, 162- Violéncia simbélica, 37, 72, 90, 104, 137, 152,
165, 170-172, 174, 184, 193, 202, 213, 215, 216, 156, 163, 171, 184, 205, 245, 246, 250, 252,
233, 234, 245,246,252, 253, 259, 260,262, 265, 261, 266, 278, 281, 292, 307, 316—318, 326, 328,.
275, 276,278, 283, 287, 288, 290, 292, 293, 295, 330, 339, 359—361, 366
299,300, 309, 311,312,314, 316—319,325-328, V1550 e diviséo, 153, 180, 181
330, 338, 339, 341, 348, 354, 356, 360, 366, 367 Divisfio social, 46, 64, 93, 349
Teoria da acfio, 26, 213, 248, 262, 263, 303, Principios de viséo e diviséo, 111, 142, 185,
317, 352 192, 280, 281, 293, 301, 361-362
Teoria da prética, 27, 38, 40, 41, 55, 127,
181-183, 189, 228, 250, 261, 263, 296, 297,
298, 305, 308, 321, 324, 368
Teoria do conhecimento sociolégico, 170,
299
Teoria do espaco social, 71, 90, 173
Teoria dos campos, 45, 47, 64, 71, 149, 194,
261, 269,270, 310, 362
Teoria social, 103, 165
Tomada de posicio, 197, 313
Topologia social, 71
Trabalho, 25, 29, 33—36, 38-40, 43, 44-46, 50—57,
61, 64, 74, 7679, 81, 83-85, 91, 93, 95, 97, 98,

INDICE REMISSIVO 387


1
1
1
<

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' Listagem Iimitada somente a livros e coletz‘meas. Compreende também as obras em coautoria.

388
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BOURDIEU, Pierre. Contre—feux, 2: pour un mouvementsocial europe’en. Paris: Raisons d’agir, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Science de la science et réflexivité. Paris: Raisons d’agir, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Interventions 1961—2001: science sociale et action politique. Marseille: Agone, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Le bal des ce’libataires: la crise de la socie’tépaysanne en Be’arn. Paris: Seuil, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Si le monde social m’est supportable, c’est parce que je peux m’indigner.
Entretien avec Antoine Spire. La Tour d’Aigues: Editions de l’Aube, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Images d’Algérie: une afiinité élective.Ar1es:Actes Sud, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Esquisse pour une auto—analyse. Paris: Raisons d’agir, 2004.
BOURDIEU, Pierre. Esquisses algériennes. Paris: Seuil, 2008.
BOURDIEU, Pierre; BOLTANSKI, Luc. La production de l’idéologie dominante. Paris: Raisons
d’agir/Demopolis, 2008.
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. Le sociologue et l’historien. Marseille: Agone; Paris: Raisons
d’agir, 2010.
BOURDIEU, Pierre. Sur l’Etat. Cours au College de France (1989—1992). Paris: Raisons d’agir/
Seuil, 2012.
BOURDIEU, Pierre. Manet. Une revolution symbolique. Paris: SeuiI/Raisons d’agir, 2013.
BOURDIEU, Pierre. Sociologie ge’ne'rale. Cours au College de France (1981-1983). Paris: Raisons
d’agir, Seuil, 2015. v. 1.
BOURDIEU, Pierre. Sociologie géne’rale. Cours auCollége de France (1983—1986). Paris: Raisons d’agir,
Seuil, 2016. v. 2.

OBRAS DE PIERRE BOURDIEU PUBLICADAS NA FRANCA 389


BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbélicas. MICELI, Sergio (Org). Sao Paulo: Pers-
pectiva, 1974.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodugao: elementos para uma tearia do sistema
de ensino. Rio de Ianeiro: Francisco Alves, 1975 [Petrépolis, RI: Vozes, 2008].

BOURDIEU, Pierre. 0 desencantamento do mundo: estruturas econémicas e estruturas temporaz's.


Sio Paulo: Perspectiva, 1979.
BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu: sociologia. ORTIZ, Renato (Org). Sio Paulo: Atica, 1983.

BOURDIEU, Pierre. Questées de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.


BOURDIEU, Pierre. Ligées da aula: aula inaugural proferida no College de France. Sio Paulo:
Atica, 1988.
BOURDIEU, Pierre. A ontologia polz’tica de Martin Heidegger: Campinas, SP: Papirus,1989.
BOURDIEU, Pierre. 0 poder simbélico. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Sao Paulo: Brasiliense, 1990.
BOURDIEU, Pierre; HAACKE, Hans. Livre-troca: dialogos entre ciéncia e arte. Rio de Ianeiro:
Bertrand Brasil, 1995.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: génese e estrutura do campo literario. Sfio Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
BOURDIEU, Pierre.A economia das trocas linguisticas: o quefalarquer dizer. Séo Paulo: EDUSP, 1996.
BOURDIEU, Pierre. Razées pniticas: sabre a teoria da aedo. Campinas, SP: Papirus,1996.
BOURDIEU, Pierre; BRESSON, Franeois; CHARTIER, Roger (Org). Prdticas da leitura. Sao Paulo: Estaeao
Liberdade, 1996.
BOURDIEU, Pierre. Sabre a televisao. Rio de Ianeiro: Zahar, 1997.

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrépolis, RI: Vozes, 1997.


BOURDIEU, Pierre; ROLNIK, Suely; WACQUANT, Lo’ic I. D.; LINS, Daniel Scares. Cultum e subje-
tividade: saberes nomades. Campinas, SP: Papirus,1997.
BOURDIEU, Pierre; MICELI, Sergio (Org). Liber 1. $50 Paulo: EDUSP, 1997.

' Listagem Iimitada s‘omente a livros e coleténeas. Compreende também as obras em coautoria.

390
‘-\(
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: téticas para enfrentara invasdo neoliberal. Rio de Ianeiro;
Zahar, 1998. '
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educagao. NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrénio (Orgs.).
Petrépolis, RI: Vozes, 1998.
BOURDIEU, Pierre. A domifiagao masculina. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBORBDON, Jean—Claude; PASSERON, Jean—Claude. A profissao de sa—
ciélogo: preliminares epistemolégicas. Petrépolis, RI: Vozes, 1999.
BOURDIEU, Pierre. 0 campo economico: a dimensao simbolica da dominagao. Campinas, SP:
Papirus, 2000.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2: par um movimento social europeu. Rio de Ianeiro: Zahar, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Meditagoes pascalianas. Rio de Ianeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A produga'o da crenga: contribaigao para uma economia dos bens sirnbélicos.
Silo Paulo: Zouk, 2002.
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic I. D. Um convite a‘ sociologia reflexiva. Rio de Ianeiro:
Relume Dumara’, 2002.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amorpela artezos museus de arte na Europa e seu pfiblico.
sao Paulo: EDUSP/Zouk, 2003. '
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciéncia: por uma sociologia clz’rzica do campo cientt’fico.
Sz'io Paulo: Unesp, 2004.
BOURDIEU, Pierre. Esbogo de auto—andlise. Séo Paulo: Companhia das Letras, 2005.
BOURDIEU, Pierre. A distinga‘o: critica social do julgamento. Séo Paulo: Edusp; Porto Alegre:
Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre. 0 senso pratico. Petrépolis, R]: Vozes, 2009.
BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Florianépolis: Ed. da UFSC, 2011.
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. O sociélogo e o historiador. Belo Horizonte: Auténtica, 2011.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: 05 estudantes e a cultura. Florianépolis:
Ed. da UFSC, 2014.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Cursos no College de France (1989.92). 850 Paulo: Companhia
das Letras, 2014.

OBRAS DE PiERRE BOURDIEU PUBLICADAS NO BRASIL 391


BOURDIEU, P.; PASSERON, ).-C. Les e’tudiants et leurs e’tudes. Paris-La Haye: Mouton, 1964.
BOURDIEU, P. Distinction: a Social Critique of the judgment of Taste (1979). Cambridge: Harvard
University Press, 1984.
BOURDIEU, P. The Logic ofPractice (1980). Cambridge: Polity Press, 1990.
BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. I. D. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: The Chicago
University Press, 1992.
BOURDIEU, P. Pascalian Meditations (1997). Cambridge: Polity Press, 2000.
BOURDIEU, P. Esbogo de uma tearia da prdtica, precedido de trés estudos de etnologia Cabila (1972).
Oeiras: Celta, 2002.
BOURDIEU, P. The Social Structures ofthe Economy (2000). Cambridge: Polity Press, 2004. I
BOURDIEU, P. The Ball ofBachelors. Chicago: University of Chicago Press, 2004.
BOURDIEU, P. Picturing Algeria. Editado por Franz Schultheis e Christine Frisinghelli. New York:
Columbia University Press, 2012.

392
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1930 (primeiro de agosto) — Pierre Bourdieu nasce em Denguin, pequeno vilarejo da provincia
do Béarn, regiao rural do sudoeste da Franga, situada nos Pirineus e proxima da Espa~
nha, onde a lingua nativa era 0 occitanico. Seu pai, Albert Bourdjeu, orig'mério de uma
famflla de camponeses, havia se tornado, ao redor dos 30 anos, modesto funcionario
publico dos correios, tendo exercido, a0 longo da Vida, o oficio de earteiro Ina regiao
do Béarn. Sua mae, Noémie Bourdieu, também proveniente do meio rural, pertencia a
uma famflia de agricultores com nivel social um pouco mais elevado.
1941—1947 — Frequenta o Liceu de Pau (capital do Béarn), onde cursa a primeira parte do
ensino secundario e se distingue nos estudos.
de
1948-1951 — Recebe uma bolsa de estudos para cursar o ensino médio e, a conselho de um
seus professores do Liceu de Pau, ingressa no Liceu Louis~le—Grand, em Paris, reputado
por constituir o melhor curso preparatério para o ingresso na Ecole Normale Supérieure
de Paris e por reunir os melhores alunos do pals.
en~
1951~1954 — lngressa na célebre Escola Normal Superior (ENS) da rue d’Ulm, em Paris,
tio o mais importante centro de recrutamento e formagao da elite intelectual francesa.
Diploma-3e, nessa escola, em filosofia, aos 25 anos. Na mesma época, realiza estudos
de graduagao também em filosofia na Faculdade de Letras de Paris (Sorbonne), onde
defendeu a tese intitulada Estruturas temporais da Vida afetiva.
1954 — Obtém — juntamente com Jacques Derrida e Emmanuel Le Roy Ladurie — aprovaeao
no concurso de Agrégation (concurso publico de admissao ao cargo de professor de
liceu ou de faculdade).
1954—1955 — Passa a lecionar filosofia no Liceu de Moulins, pequena cidade situada na regiao
central da Franga.
no
1955—1958 — E convocado e presta o servieo militar na Argélia, entao colonia francesa
norte da Africa, em plena guerra (1954—1962) por sua independéncia da Franga.
1958-1960 — Leciona na Faculdade de Letras de Argel (capital da Argélia), como Professor
Assistente. Durante esse periodo desenvolve um extenso trabalho de campo, que redundou

393
rm“
numa etnologia da sociedade cabila (populacao camponesa habitante das regioes mon-
tanhosas do norte da Argélia).
1960 — Em funcao do agravarnento do conflito colonial e diante das posicoes liberais que
assume face a guerra de independéncia, Bourdieu é obrigado a voltar para a Franca,
tornando—se Professor Assistente na Faculdade de Letras de Paris (Sorbonne).
1962 (2 de novembro) — Casa—se com Marie-Claire Brizard, sociéloga e filha de um me’dico.
Dessa uniao nasceram trés filhos, Iérome, Emmanuel e Laurent.
019614964 - E nomeado professor e orientador pedagégico da Faculdade de Letras de Lille
(cidade localizada no norte da Franca). Na Universidade de Lille, ministra, pela primeira
vez, cursos sobre os “pais fundadores” da sociologia (Durkheim, Weber, Marx), mas
tambe'm sobre a antropologia britanica e a sociologia norte-americana. Paralelamente,
prossegue o trabalho de analise dos dados de campo coletados durante o periodo argelino
e em suas constantes viagens de férias a Arge'lia.
1964 — Passa a lecionar na Escola de Altos Estudos em Ciéncias Socials (EHESS) de Paris,
credenciando~se também como orientador de teses e estudos cientificos. Ao assumir
esse posto, aos 34 anos, tornou-se um dos mais jovens professores dessa instituicao.
1964 — E indicado por Raymond Aron para sucedé—lo na direcao do Centro de Sociologia
Europeia.
1964 — Torna—se diretor da colecéo Le Sens Commun para a editora parisiense Minuit. Por
mais de duas décadas, Bourdieu dirigiu essa colecao, na qual publicou obras cléssicas
(de Durkheim, Mauss, Halbwachs, Cassirer, Bakhtin, entre ounos), bem como traduziu
e divulgou, na Franca, grandes autores contemporaneos (entre eles, Goffman, Bernstein,
Labov, Goody, Hoggart). ‘
1964 — Nessa mesma colecao, publica, em coautoria com Jean-Claude Passeron, o livro Les
héritiers, sua primeira grande obra no campo da educacao.
1967 — Funda 0 Centro de Sociologia da Edueacao e da Cultura (CSEC) na EHESS. Neste
centro, Bourdieu congregou e dirigiu, por mais de trinta anos, uma grande equipe
de pesquisadores dedicados a compreenséo das relacoes que se estabelecem entre o
universe da cultura e o campo do poder e das classes sociais.
1970 — Publica, mais uma vez em coautoria com Jean—Claude Passeron, aquele que se tor-
naria seu mais conhecido livro no terreno da educacao: La reproduction (no Brasil: A
reproducfio). Na década de 1970, dé inicio a intensas afividades académicas no exte-
rior como convidado de instituicoes importantes, corno as universidades de Chicago,
Harvard, Princeton (EUA); Instituto Max Planck (Alemanha); Universidade de Todai
(Japan), entre outras.
1975 ~ Com 0 apoio de Fernand Braudel, entao diretor da Maison des Sciences de l’Homme,
cria o periédico Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS), que dirigira até
os mementos finais de sua Vida. Esse periédico tornou—se uma das mais importantes
publicacoes em ciéncias sociais no mundo.

394 CRONOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU


1979 - Publica, pela Editora Minuit, o livro La distinction, considerado por Inuitos corno
sua obra magna e que l‘ne valera a consagracao internacional. Trata~se de uma analise
dos gostos e julgamentos éticos e estéticos das diferentes classes sociais.
1981 (13 de dezembro) - Em protesto contra a repressao que se abatia sobre a Polonia, Bour-
dieu lanea - juntamente com Michel Foucault ~ um manifesto em favor do movimento
Solidariedade.
1981 — E eleito Professor Titular da catedra de Sociologia do College de France.
1982 (23 de abril) —- Profere, no College de France, a provocadora aula inaugural Lecon sur
la lecon (no Brasil: Licoes do aula).
1984 — Publica, pela Editora Minuit, o livro Homo academicus, obra sobre o universo das
disposicoes e préticas dos professores universitarios.
1989 — Publica, pela Editora Minuit, La noblesse d’Etat, seu L'rltimo grande livro sobre o
sistema escolar.
1989 — Funda a Liber, “revista internacional de livros”, editada em diversos paises europeus
e em nove linguas, que dirigira por dez anos. Seu objetivo era a difusao internacional
de trabalhos originais e inovadores no campo das ciéncias humanas e da literatura.
1989 — Recebe o titulo de DOutor Honoris Causa da Universidade Livre de Berlim.
1989~1990 — Preside uma comissao nacional de reflexao e estudos sobre os “contefidos do
ensino”, nomeada pelo entao presidente da repfiblica, Francois Mitterrand.
1990 — A partir da década de 1990, Bourdieu assume um papel combative nos movimen-
tos sociais antiglobalizacao e de apoio aos desempregados, aos trabalhadores do
campo, aos imigrantes ilegais na Franca, aos intelectuais perseguidos em diversas
partes do mundo.
1993 ~ E lancada a primeira edicao da coletanea, organizada por Bourdieu, A miséria do
mundo (no Brasil: A miséria do mundo), que, apesar de suas mil péginas, teve um
enorme sucesso de vendas, tendo sido adaptada para o video e para o teatro.
1993 ~ Recebe a Medalha de Ouro do Centre National de la Recherche Scientifiqne (CNRS),
um dos mais irnportantes simbolos de reconhecimento conferidos pela cornunidade
cientifica na Franca.
1993 — Funda o Comité Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISLA).
1995 (dezembro) ~1anca um “apelo dos intelectuais em favor dos grevistas” contra o plano
governamental neoliberal que ameacava as politicas pfiblicas do bem-estar social e da
seguridade na Franca.
1996 — Funda a editora Liber—Raisons d’agir, com uma politica editorial que deveria asso— '
ciar a independéncia do trabalho cientifico com a militancia e o compromisso civicos.
1996 — Recebe o titulo de Doutor Honoris Causa da Universidade Johann Wolfgang Goethe
de Frankfurt e da Universidade de Arenas. Recebe o Prémio Erving Goffman da Uni—
versidade de Berkeley, na California.

CRONOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU 395


1997 — Criacio da colecéo Liber nas Editions du Seuil. Obtencéo do Prémio Ernst Bloch da
cidade de Ludwigshafen.
1998 (janeiro) — Intervencées pfiblicas em favor do movimento dos desempregados.
1999 — Doutor honoris causa da Universidade de Ioensuu.
2000 — Apoio ao Manifesto pelos estados gerais do movimento social europeu (1° de maio) e
aos movimentos de luta contra a mundializacéo neoliberal, reunidos em Nice (dezembro).
«2001 (28 de marco) — Da sua liltirna aula no College de France.
2001 (abril) — Apoio aos movimentos de luta contra a mundializacao neoliberal, reunidos
ern Québec. Eleito Fellow Correspondent da Academia Briténica.
2002 (23 de janeiro) — Pierre Bourdieu morre, em Paris, aos 71 anos de idade, vitima de um
cancer.

395 CRONOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU


Afrfinio Mendes Catani é Professor Titular na Faculdade de Educagéo da Universidade
de 350 Paulo. Organizou, em coautoria com Maria Alice Nogueira, a coleténea Pierre Bartr—
dieu — Escritos de Educagfio (Vozes, 1998, 163 edigio 2015). Publicou Origem e destino:
pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Mercado de Letras, 2013).

Maria Alice Nogueira é Professora Titular do Departamento de Ciéncias da Educagéo


da Universidade Federafde Minas Gerais, onde criou e coordenou o Observatério Sociologico
Familia—Escola (OSFE). Organizou, em coautoria com Afrénio M. Catani, coleténea Pierre
Bourdieu — Escritas de Educagdo (Vozes, 1998, 16. edigéo 2015). Publicou, em coautoria
corn Claudio M. M. Nogueira, o livro Bourdieu e’r a Educagfio (Auténtica, 2004).

Ana Paula Hey é professora no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de 550 Paulo, onde integra o grupo de Pesquisa
em Sociologia da Educagéo, Cultura e Conhecimento. Desenvolve pesquisas sobre o campo
académico no Brasil e as relagoes corn outros espagos sociais. Publicou Esbogo de uma so-
ciologia do campo académico. A educagc'io superior no Brasil (EdUFSCar, 2008).

Cristina Carta Cardoso de Medeiros é professora do Departamento de Educagéo


Fisica da Universidade Federal do Parané, onde faz parte do Centro de Pesquisa em Esporte,
Lazer e Sociedade. Defendeu tese sobre a apropriagéo da teoria sociolégica de Pierre Bourdieu
no campo académico educacional (UFPR, 2007). I

397
TRADUTORES

Verbetes traduzidos do francés: Guilherme 1050 de Freitas Teixeira


Anélise de correspondéncias mfiltiplas; Autonomia e homologia dos campos; Bachelard,
Gaston; Béarn; Bens sirnbolicos (economia dos); Campo; Campo cientifico; Campo do poder;
Campo econémico; Campo filoséfico; Campo intelectual; Campo juridico; Campo literério;
Canguilhem, Georges; Capital; Capital simbélico; Capital social; Ciéncia; Conhecimento
praxiologico; Construtivismo; Contrafogos; téticas para enfrentar a invasao neoliberal (Con-
tre—feux: propos pour servir a la resistance contre l’invasion néo-libérale); Contrafogos 2: por
um movimento social europeu (Contre—feux 2: pour un mouvement social européen); Dene—
gacao; Determinisrno; Distincéo; Distincéo (A): critica social do julgarnento (La distinction:
critique sociale du jugement); Doxa; Durkheim, Emile; Elites; Epistemologia; Esquisse d’une
théorie de la pratique, précédé de Trois études d’ethnologie kabyle; Estado; Estilos de Vida;
Estruturalismo; Familia; Filosofia; Goffman, Erving; Gosto; Histéria; Individuo — sociedade;
Intelectuais; Lévi~Strauss, Claude; Manet. Une revolution symbolique; Marx, Karl; Mauss,
Marcel; Midia; Miséria do Mundo (A) (La misére du monde); Mundializacao/Internaciona-
lizacao; Mundo Social; Opiniao publica/sondagem; Passeron, Jean-Claude; Pratica (teoria
da); Reflexividade; Regras da Arte (As): genese e estrutura do campo literério (Les régles de
l’art: genese et structure du champ littéraire); Sartre, Jean-Paul; Senso prético (0) (Le sens
pratique); Sobre a televisao (Sur la télévision, suivi de L’emprise du journalisme); Sociologia
da Sociologia; Sociologia e reflexividade; Violéncia simbolica; Visao e divisao, principios de;
Weber, Max; Wittgenstein, Ludwig.

Verbetes traduzidos do espanhol: Cristina Antunes


Argélia; Déracinement (Le): la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie; Desencanta—
mento do mundo (O): estruturas economicas e estruturas temporais; Fenomenologia; Honra
(sentido da); Merleau—Ponty, Maurice; Ontologia politica de Martin Heidegger (A) (L’Ontologie
politique de Martin Heidegger); Reconversao de capitais; Sociologie de L’Argérie; Tempo.

Verbete traduzido do inglés: Iosé Madureira Pinto e Virgilio Borges Pereira.


Habitus.

398

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