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ISSN

1514-3465
 
O
Fest Verão de São Pedro da Aldeia e o currículo escolar: desafios e
possibilidades
The
Fest Verão of São Pedro da Aldeia and the School Curriculum: Challenges and
Possibilities
El Fest de Verão de São Pedro da Aldeia y el currículo escolar: desafíos y
posibilidades
 
André
de Brito Oliveira*
profandre.ef@gmail.com
Renata
de Sá Osborne da Costa**
rerafadeo@gmail.com
 
*Graduado
em Educação Física. Esp. Treinamento Desportivo
Universidade
Salgado de Oliveira (UNIVERSO)
Especialista
em Educação Especial pela UNIRIO
Mestre
em Ciências da Atividade Física pela UNIVERSO
Doutorando
em Ciências do Exercício e do Esporte pela UERJ
Docente
do Curso de Educação Física da Unilagos/Araruama-RJ
**Doutora
em Liderança Educacional pela Florida Atlantic University
Mestre
em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Graduada
em Licenciatura Plena em Educação Física
pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Atualmente
é professora titular do Mestrado
em
Ciências da Atividade Física da Universidade Salgado de Oliveira.
Leciona
aulas sobre métodos qualitativos de pesquisa e relações
entre
Educação Física, esportes, atividades físicas e sustentabilidade
(Brasil)
 
Recepção:
02/02/2021 - Aceitação: 18/03/2022

Revisão: 23/07/2021 - 2ª Revisão: 03/03/2022
 

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trabalho está sob uma licença Creative Commons
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4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0)
https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt

Citação
sugerida: Oliveira, A.B., e Osborne,
R. (2022). O Fest Verão de São Pedro da Aldeia e o currículo escolar:
desafios e
possibilidades. Lecturas: Educación Física y Deportes,
27(288), 43-62. https://doi.org/10.46642/efd.v27i288.2840
 
Resumo
   
O Fest Verão é um evento cultural e esportivo de praia, realizado no
município de São Pedro da Aldeia, RJ, há 50 anos.
Trata-se do maior
evento esportivo de massa do interior do Estado do Rio de Janeiro e um dos
mais antigos do Brasil. Apesar
de praticado desde 1969, forjado na cultura
local e nos princípios do lazer, praticado por homens e mulheres adultos,
além de
crianças e adolescentes, as práticas corporais de praia ainda
não fazem parte do currículo escolar, distanciando-se do habitus
instituído.
Este estudo tem como objetivo verificar/discutir a relação das práticas
culturais do Fest Verão na categoria de base
(sub-11 a sub-17) com os
conteúdos abordados pelo currículo da Educação Física, desenvolvidos na
escola local. Para tanto,
sob a perspectiva da pesquisa qualitativa, três
diferentes fontes foram trianguladas para que se chegasse à interpretação
dos
dados: I) análise do currículo escolar local; II) entrevista
semiestruturada aplicada a um técnico de equipe; III) entrevista
semiestruturada aplicada a atletas de uma equipe sub-17. Apesar da
existência do megaevento cultural aldeiense em torno dos
esportes de praia,
percebe-se que a escola local continua reproduzindo massivamente o ensino
das práticas hegemônicas
corporais nacionais (futsal, voleibol,
basquetebol, handebol). Este distanciamento entre currículo escolar e
práticas culturais
impede a existência de um protagonismo comunitário
reflexivo e consciente, nascido da apropriação de um saber acumulado
historicamente e vivo na cultura local.
   
Unitermos: Eventos esportivos. Beach
soccer. Currículo.
 
Abstract
   
The Fest Verão is a cultural and sporting beach event, held in the city of
São Pedro da Aldeia, RJ, for 50 years. It is the
largest mass sporting
event in the interior of the State of Rio de Janeiro and one of the oldest
in Brazil. Despite being practiced
since 1969, forged in the local culture
and in the principles of leisure, practiced by adult men and women, as well
as children
and teenagers, beach corporal practices are still not part of
the school curriculum, distancing themselves from the established
habitus.
This study aims to verify/discuss the relationship of the cultural practices
of the Fest Verão in the base category (sub-
11 to sub-17) with the contents
covered by the Physical Education curriculum, developed in the local school.
Therefore, from
the perspective of qualitative research, three different
sources were triangulated in order to arrive at the interpretation of the
data: I) analysis of the local school curriculum; II) semi-structured
interview applied to a team technician; III) semi-structured
interview
applied to athletes from an sub-17 team. Despite the existence of the local
cultural mega-event around beach sports,
it is clear that the local school
continues to massively reproduce teaching of national hegemonic corporal
practices (futsal,
volleyball, basketball, handball). This distance between
the school curriculum and cultural practices prevents the existence of a
reflexive and conscious community role, born from the appropriation of
historically accumulated knowledge that is alive in the
local culture.
   
Keywords: Sports events. Beach
soccer. Curriculum.
 
Resumen
   
El Fest Verão es un evento cultural y deportivo en la playa, realizado en
el municipio de São Pedro da Aldeia, RJ, desde hace
50 años. Es el mayor
evento deportivo masivo del interior del Estado de Río de Janeiro y uno de
los más antiguos de Brasil.
Iniciadas en 1969, forjadas en la cultura local
y en los principios de la recreación, practicadas por hombres y mujeres
adultos,
además de niños y adolescentes, las prácticas corporales en la
playa aún no forman parte del currículo escolar, alejándose del
habitus
establecido. Este estudio tiene como objetivo verificar/discutir la
relación entre las prácticas culturales del Fest Verão en
las
categorías de base (sub-11 a sub-17 años) con los contenidos abordados por
el currículo de Educación Física, desarrollado
en la escuela local. Por
lo tanto, desde la perspectiva de la investigación cualitativa, se
triangularon tres fuentes diferentes para
llegar a la interpretación de los
datos: I) análisis del currículo escolar local; II) entrevista
semiestructurada aplicada a un
técnico de equipo; III) entrevista
semiestructurada aplicada a deportistas de una selección sub-17. A pesar de
la existencia del
megaevento cultural local en torno a los deportes de
playa, es claro que la escuela local sigue reproduciendo masivamente la
enseñanza de prácticas corporales hegemónicas nacionales (futsal,
voleibol, baloncesto, balonmano). Esta distancia entre el
currículo escolar
y las prácticas culturales impide la existencia de un protagonismo
comunitario reflexivo y consciente, nacido
de la apropiación de saberes
históricamente acumulados y vivos en la cultura local.
   
Palabras clave: Eventos deportivos.
Fútbol playa. Currículo.
 
Lecturas:
Educación Física y Deportes,
Vol. 27, Núm. 288, May. (2022)

 
Introdução 
 
   
A prática formal e informal de diversos esportes de praia no interior do Estado
do Rio de Janeiro é uma constante durante todo o ano e, junto
ao atrativo e
potencial turístico natural desta região como as praias, colabora para a
economia das cidades, como relata o Caderno de Turismo do
Estado do Rio de
Janeiro (2010). Especificamente, na cidade de São Pedro da Aldeia – uma das
cidades turísticas que integra a chamada Região
dos Lagos-, estes esportes
são reunidos todos os anos, ofertando, entre outras modalidades, o Futevôlei,
o Vôlei de Praia e o Beach Soccer –
carro-chefe da competição
(Oliveira, 2020). Em 21 de dezembro de 1969, a Praia do Centro sediava o
torneio-início dos Jogos de Verão de São
Pedro da Aldeia (Imagem 3), o que
viria a se tornar o maior e mais antigo evento esportivo de massa do interior do
Estado do Rio de Janeiro,
denominado nos dias atuais de Fest Verão.
 
Imagem
1. Time Campeão do Torneio-Início dos
Jogos de Verão de São Pedro 
da Aldeia realizado em 21 de dezembro de 1969, na
modalidade Futebol de Praia

Fonte:
Arquivo do autor. Nota: Equipe Carapicu

 
   
Por se tratar de um evento amador, as equipes são formadas por membros de
bairro, o que propicia uma efetiva participação das
comunidades nas práticas
esportivas durante o evento, ao invés de serem meras expectadoras, como ocorre
na maioria dos megaeventos.
(Bracht, e Almeida, 2013)
 
   
Na modalidade Beach Soccer – esporte que atrai maior público -, as
categorias são divididas em: base, adulta e veterana. A categoria de base
compreende atletas de 10 a 17 anos, oriundos, em sua maioria, de escolas
públicas do município. Na categoria adulta, há a presença de
mulheres e
homens a partir dos 18 anos. Já a categoria veterana é composta por homens com
idade igual ou superior a 40 anos. Essa subdivisão
permite, nesta modalidade,
maior participação e inclusão de diferentes pessoas e faixas etárias.
 
   
A partir de um levantamento feito junto ao Departamento de Esportes da cidade,
em 2020 – ano em que se comemorou 50 anos de existência
dos jogos de praia da
cidade (Imagem 2) -, o evento contou com a inscrição de 10 equipes somente na
categoria de base, reunindo diretamente
na competição, 480 crianças e
adolescentes, distribuídos de 9 a 17 anos. Como esta categoria, por tradição,
está sempre envolvida no evento,
fortes indagações instigam o início deste
estudo: as escolas se apropriam das práticas produzidas neste evento como
conteúdos ressignificados?
As crianças e adolescentes das categorias de base
recebem alguma orientação escolar no sentido de protagonizar anualmente, este
grande
evento? Como e quem organiza e orienta estas crianças para a
competição? O Beach Soccer e outras modalidades de praia são desenvolvidas no
currículo da Educação Física Escolar?
 

Imagem
2. Equipe de Base Baleiense parabeniza
evento por seus 50 anos
Fonte:
Arquivo do autor. Nota: Foto extraída do Fest Verão 2020, nos meses anteriores
ao período de reclusão social devido à 
pandemia do Coronavírus. A pandemia
fez com que a competição fosse suspensa no momento em que se ia disputar às
semifinais

 
   
Neste sentido, ao analisar o Fest Verão de São Pedro da Aldeia-RJ e seu
desdobramento na cultura aldeiense, torna-se objetivo deste trabalho
verificar a
relação das práticas culturais deste evento na categoria de base com os
conteúdos abordados pelo currículo da Educação Física,
desenvolvidos na
escola local.
 
O
Beach Soccer e o currículo da Educação Física Escolar 
 
   
Recorrendo aos aspectos culturais do currículo escolar amplamente divulgados
por Saviani (2006, p. 33), encontra-se fundamentos que
justificam a necessidade
da construção de uma organização curricular que contemple “elementos da
cultura passíveis (e desejáveis) de serem
ensinados / aprendidos na Educação
escolar”. Desse modo, o que se propõe é um currículo que seja consolidado
por práticas pedagógicas
motivantes, que tenham significado e, de certa forma,
possam levá-los a uma autonomia reflexiva acerca de sua participação futura
no mundo
(Daolio, 1995; Perrenoud, 2005; Libâneo, 2006, Farinatti, e Ferreira,
2006). Este aluno autônomo e crítico existirá somente se o currículo
permitir
que o estudante se sinta parte integrante do processo de ensino,
identifique-se com ele (Sacristán, 2000) e, não, como normalmente ocorre,
alheio a ele.
 
   
Nos últimos 20 anos, a abordagem dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(Brasil, 1998) buscou ressignificar a prática docente no momento
em que propôs
a valorização de uma cultura viva, cheia de sentidos, pela qual o homem
construiu sua história corporal e pela qual o mesmo se
manifesta.
Consensualmente, esta cultura de movimento é absorvida pela escola e
transmitida ao aluno como promoção cultural e valorização
social. Para
Libâneo (2006, p. 75) a escola deve “colocar à disposição das camadas
populares os conteúdos culturais mais representativos do que
de melhor se
acumulou, historicamente, do saber universal (...)”.
 
   
Por meio da Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, o Conselho Nacional de
Educação do Brasil definiu Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a
Educação Básica. Em seu Artigo 9, a referida resolução aponta que para uma
escola atender ao quesito de qualidade social, tendo
o discente como centro do
processo de ensino, faz-se necessária a “consideração sobre a inclusão, a
valorização das diferenças e o atendimento
à pluralidade e à diversidade
cultural, resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade”.
(Brasil, 2010)
 
   
Na mesma direção, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) concebeu a
Educação Física Escolar como componente curricular na área das
linguagens e,
como tal, valoriza a cultura corporal de movimento como uma forma de
comunicação e expressão sociocultural, individual e
coletiva. Desse modo, no
que cabe à Educação Física Escolar:

   
A vivência da prática é uma forma de gerar um tipo de conhecimento muito
particular e insubstituível e, para que ela seja
significativa, é preciso
problematizar, desnaturalizar e evidenciar a multiplicidade de sentidos e
significados que os grupos
sociais conferem às diferentes manifestações da
cultura corporal de movimento. Logo, as práticas corporais são textos
culturais
passíveis de leitura e produção. (Brasil, 2018, p. 210)
   
Compreende-se, nesta realidade, que o ensino deve estar integrado a um contexto
social significativo, necessitando romper com paradigmas
hegemônicos esportivos
existentes na expectativa de que os educandos sejam competentes para a vida
(Perrenoud, 2005). E por falar neste
assunto, a primeira dentre as dez
competências estabelecidas para o ensino fundamental por meio da BNCC (Brasil,
2018, p. 219) é:
“compreender a origem da cultura corporal de movimento e
seus vínculos com a organização da vida coletiva e individual”.
 
   
Percebe-se neste sentido, a necessidade de um estreitamento entre cultura,
escola e protagonismo comunitário. Esta relação se dá por meio
do
currículo, que segundo Saviani (2006, p. 49) “nada mais é que uma seleção
da cultura, uma filtragem do conhecimento de modo a torná-lo
acessível aos
diferentes grupos (...)”. Logicamente, que esta seleção se dá quase sempre
sob uma relação de poder, baseado em aspectos
ideológicos sociais, os quais,
neste texto, não se pretende discutir.
 
   
Considerando aspectos culturais como importantes na formação do cidadão,
Bracht (2003) contraria a perspectiva hegemônica do esporte ao
observar que:

   
Se buscarmos com o esporte escolar que os indivíduos se apropriem de um
elemento da cultura a ser vivenciado pelo resto
da vida, a referência precisa
ser o esporte praticado a partir de códigos como a saúde, a sociabilidade, o
prazer, o divertimento
(o esporte como atividade de lazer). Para a massa da
população, o esporte normatizado e de rendimento tem pouca
importância
enquanto referência para a prática. (Bracht, 2003, p. 98)

   
O beach soccer, em São Pedro da Aldeia, RJ, por sua tradição, é uma
manifestação esportiva tipicamente ligada à cultura corporal de praia

entre
os aldeienses, expressamente percebida na culminância do megaevento Fest Verão1 (Oliveira et al., 2019). Os saberes acumulados
historicamente a partir
da realização deste evento remete-se à apropriação destes conhecimentos
(Bourdieu, 2004) como conteúdos escolares
ressignificados.
 
   
Esta apropriação propõe ao aluno que, além de ter acesso às práticas
corporais da cultura local na e pela escola, o mesmo possa estabelecer
uma
relação contextual sustentável onde vive (Costa, Silva, e Votre, 2011;
Unesco, 2005), identificando-se de forma mais responsável com o seu
meio, de
maneira crítica, participativa e emancipada para toda a vida (Farinatti, e
Ferreira, 2006). A não apropriação deste contexto social,
segundo Darido
(2012, p. 98), prospera para práticas desmotivadoras e, consequentemente, para
“aumentar as chances de evasão na prática
das aulas e também em situações
de aprendizagem futuras”.
 
   
Ao estudar, por exemplo, sobre práticas esportivas nas praias da cidade, é
importante que a criança compreenda a relação que estas práticas
têm não
só com os fatores socioculturais e de saúde, mas também com o meio ambiente
numa concepção de educação e sustentabilidade, o que
remete à
preservação, interação e utilização responsável desses espaços, uma vez
que “o ser humano é um agente que pertence a essa teia de
relações entre o
social, natural e cultural”. (Costa et al., 2011, p. 2)
 
   
Infelizmente,
na análise de Nunes, e Rocha (2019), eventos esportivos em meio à natureza nem
sempre levam em conta a totalidade do
ambiente natural. Para os autores, “existe
um fosso entre a utilização, prevenção e recuperação das áreas”. Este
contexto promove o
entendimento de eventos com fins em si mesmos, sem maiores
reflexões e comprometimentos com o meio natural usufruído (Imagem 3). Esta é
uma realidade inconcebível no atual momento e uma questão de extrema
relevância a ser abordada no meio escolar.
 

Imagem
3. Lixo deixado na orla da praia após
evento do Fest Verão

Fonte:
Arquivo do autor

 
   
Chernushenko (2011), em sintonia com esta questão, diz que “o esporte é
sustentável quando satisfaz as necessidades atuais da comunidade
desportiva,
contribuindo simultaneamente para a melhoria das futuras oportunidades
esportivas para todos e para a integridade do meio
ambiente natural e social do
qual ele depende” (p. 21, tradução dos autores).
 
   
Neste sentido de corresponsabilidade, Oliveira (2017, p. 167) questiona: “será
que o Fest Verão, ao usufruir do ambiente que está inserido há
quase 50 anos,
atende às necessidades atuais da comunidade desportiva local?”. Na mesma
direção, o próprio autor responde: “no momento em
que esta comunidade se
engaja em um projeto verdadeiramente de e para todos, ela passa a fazer algo que
tem importância para a coletividade
não só momentaneamente, mas para o futuro”.
(Oliveira, 2017, p. 167)
 
Métodos 
 
   
O presente estudo foi estruturado sob o método qualitativo, a partir de
entrevistas semiestruturadas, análise de documentos, bem como
observação
participante (Thomas et al., 2012). Enquanto instrumento de pesquisa, a
observação participante se deu no desenrolar do Fest Verão,
entre os meses de
janeiro, fevereiro e março. Os documentos considerados importantes para este
estudo foram: tabelas de jogos do Fest Verão
2020 e o currículo de Educação
Física do Município de São Pedro da Aldeia. As entrevistas foram direcionadas
por conveniência a uma equipe de
beach soccer e seu professor. Foram
sabatinados: 1) professor e presidente da equipe Baleiense; 2) atletas da equipe
Baleiense sub-17,

envolvidos no evento 20202. Estes atletas são oriundos de


escolas públicas (estaduais e municipais), localizadas em vários bairros da
cidade.
 
   
A escolha desta equipe se deu pelo fato de ser a mesma, a agremiação com maior
vínculo sociocultural com o tradicional evento da cidade;
por possuir todas as
categorias envolvidas no evento, exceto o feminino; por ser o mais antigo
projeto social sem fins lucrativos que atende a
crianças e adolescentes de
diversas idades na modalidade beach soccer; por ser o único projeto que
possui um programa permanente de aulas
semanais, na Praia do Centro da cidade.
As entrevistas aplicadas a este grupo foram as do tipo semiestruturadas,
abertas, enviadas e devolvidas
por meio de grupos de uma rede social – grupos
estes já existentes para o diálogo entre técnicos, responsáveis e atletas.
As pesquisas realizadas
com levantamento de dados a partir de recursos on-line,
segundo Flick (2013) “são enviados por e-mail a destinatários previamente
selecionados. O questionário é anexado a uma mensagem com a expectativa que os
recipientes respondam às perguntas e devolvam o
questionário anexado à sua
resposta por e-mail” (p. 168).
 
   
O recurso on-line, no caso desta pesquisa, foi o WhatsApp, estando o pesquisador
inserido aos grupos criados e organizados por ocasião da
competição do Fest
Verão – 2020, sendo autorizado pela presidência da equipe, bem como pelos
responsáveis dos atletas. Um questionário foi
enviado a 12 alunos da categoria
Sub 17, mas apenas nove deram retorno à pesquisa. A seleção desta faixa
etária foi por conveniência,
entendendo que se trata de adolescentes que já
passaram pelo Ensino Fundamental e estão iniciando ou terminando o Ensino
Médio.
 
   
Este corte é relevante pelo fato de serem alunos que têm condições de opinar
de forma crítica e consciente sobre as perguntas direcionadas,
baseando-se em
suas vivências discentes ao longo da vida acadêmica. O teor das perguntas
realizadas aos alunos gira em torno da compreensão
sobre a motivação em
participar do evento; se há ensinamento da modalidade em suas aulas de
Educação Física Escolar; como se dá o
aprendizado da modalidade para que
eles participem da competição, entre outras questões afins.
 
   
No que se refere à análise do currículo de Educação Física Escolar do
município, objetivou-se verificar a presença de esportes de praia – ao
menos
o Beach Soccer – listados como conteúdos em algum ano de escolaridade,
considerando a dimensão temporal deste projeto de praia
inserido na cultura
local.
 
   
De acordo com o desenrolar da pesquisa, o professor/presidente/técnico desta
equipe foi sabatinado com a intenção de verificar informações
relevantes
sobre o processo de preparação e condução de uma equipe de base dentro do
Fest Verão.
 
Resultados 
 
O
currículo local 
 
   
O currículo de Educação Física analisado compreendeu aquele em vigência
até o ano de 2018, onde se percebeu a ausência de práticas
esportivas de
praia, isto é, aquelas práticas que fazem parte do cotidiano dos alunos da
cidade. Na verdade, o currículo analisado é composto
essencialmente por
práticas esportivas hegemônicas, uma vez que se percebe a constante presença
dos esportes coletivos de quadra, sem
nenhuma relação aos esportes de praia.
Estes esportes coletivos (o vôlei, o basquete, o futsal e o handebol) aparecem
de forma repetitiva
durante todos os anos de escolaridade (6º ao 9º ano), sem
levar em conta a realidade local e os diferentes níveis de maturação e
desenvolvimento motor, próprios de cada faixa etária. Esta realidade configura
o chamado quarteto fantástico (Bracht, 2010; Brandt et al., 2015)
e integra o
perfil hegemônico do trabalho desenvolvido no Brasil, exclusivamente em torno
do esporte de rendimento. (Ferreira, 2018; Betti,
1999)
 
   
A partir do processo de formação docente do município ocorrido no ano de
2019, em 2020, iniciar-se-iam por ocasião do estreitamento com as
diretrizes da
Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018), práticas mais voltadas para a
realidade local. Percebe-se que no novo documento

municipal, há menção de
habilidades3 que contemplam as manifestações locais, sobretudo os esportes
de praia. No entanto, com o advento da
Pandemia do Sars-Cov-2, acometendo a
população mundial ao coronavírus, estes conteúdos, ainda que experimentais,
não puderam ser
colocados em prática, pelo menos ao longo dos anos de
2020/2021.
 
   
Documentos e imagens disponíveis na Internet acerca dos jogos
escolares/estudantis ocorridos no ano de 2014, na cidade, mostraram a
existência da prática do Beach Soccer como modalidade competitiva entre alunos
do município. Porém, naquele ano, não existia no currículo
escolar, qualquer
menção à conteúdos que abordassem práticas do contexto praiano. Diante
destes dados, é possível questionar: como se deu a
preparação dos alunos no
que se refere à (in)formação acerca do Beach Soccer? Ocorreram nas escolas,
aulas de Educação Física que
contemplassem conhecimentos acerca desta
modalidade? Os professores receberam alguma formação continuada que tivesse
relação com o
referido esporte de praia.
 
   
Estes questionamentos não imputam à escola o dever de preparar alunos para
competições, nem mesmo, responsabilizar as aulas e o
professor de Educação
Física para esta finalidade. No entanto, por se tratar de uma manifestação
cultural local, a competição é consequência de
um habitus esportivo
nascido do lazer (Oliveira, 2017) e que precisa ser apropriado e ressignificado
pela escola no sentido de se estreitar a
relação ensino-aprendizagem.
 
A
formação das equipes 
 
   
Considerando a modalidade Beach Soccer, das 10 equipes da categoria de base
inscritas nos jogos culturais realizados por meio do Fest Verão
no início de
2020, apenas três eram regidas por profissionais de Educação Física. As
equipes representam bairros, formadas a partir de projetos
sociais, liderados
por mão-de-obra voluntária. Desse modo, não há condições de arcar com
pagamentos de profissionais. Esta é a justificativa
para que a organização do
Fest Verão não cobre das equipes (independente da categoria), a existência de
técnicos formados em Educação Física.
Se fosse exigida a presença destes
profissionais em todas as equipes, não haveria condições sequer de realizar o
evento devido aos custos com
honorários. Deve-se lembrar que apesar de ser uma
justificativa plausível, trata-se de uma ação contrária às exigências do
Conselho Federal de
Educação Física.
 
   
A questão central a se discutir neste ponto se refere a (in)formação que o
aluno/atleta recebe acerca do esporte e do evento praticado na
competição. No
momento em que a escola local não se apropria dos esportes de praia como
conhecimentos a serem pedagogizados ao longo do
ano letivo, aproximando-se da
realidade discente, de fato, o voluntariado parece ser a única e última
opção que o aluno possui para conhecer,
ainda que minimamente, o esporte que
praticará, seja como esporte de lazer ou de competição.
 
A
fala do professor-treinador 
 
   
Ao entrevistar o professor de Educação Física J.M.S.A. do tradicional time
Baleiense, buscando informações acerca da estruturação de seu
trabalho para
o evento, o mesmo relatou que começa a preparar seus atletas com treinamentos
específicos para a competição pelo menos
dois/três meses antes do início do
evento (outubro/novembro), o que se perpetua durante a competição caso a
equipe siga se classificando.
Fazendo uma análise temporal, os alunos ficam
envolvidos diretamente com o evento por pelo menos seis meses, entre o período
de preparação,
início, desenvolvimento e final do mesmo. Esta preparação,
segundo o professor, ocorre no próprio campo de jogo da competição – único
campo

mais acessível às crianças, localizado na Praia do Centro4 da cidade


(Imagem 4). As aulas incluem conhecimentos sobre a regra do beach soccer,
fundamentos, técnicas e táticas de jogo.
 
   
Segundo o professor entrevistado, seu objetivo é participar da competição em
igualdade de condições com as demais equipes, embora seu
foco seja fazer com
que o máximo de crianças participe direta ou indiretamente do evento.
 

Imagem
4. Professor J.M.S.A. instruindo a equipe
Baleiense nos treinos que antecipam o Fest Verão, na Praia do Centro
Fonte:
Acervo do autor. Nota: Baleiense é um projeto social sem fins lucrativos
de responsabilidade
do professor J.M.S.A., que funciona ininterruptamente desde
2007 com práticas de Beach Soccer.

 
   
Uma importante observação realizada pelo docente em questão é sobre a
apropriação do espaço por outras atividades culturais que de certa
forma,
apresentam risco aos praticantes de esporte no Campo do Centro. Segundo o mesmo,
nos últimos anos, o espaço tem sediado encontros,
por exemplo, de motoclubes,
onde são instalados, palco e área de alimentação. O professor registra que
por várias vezes, após um evento
desses, retirou da areia da área do campo,
cacos de vidro e palitos de churrasco de pontas afiadas, deixados por
consumidores não conscientes
no espaço que usufruem. Esta realidade degrada o
meio ambiente e põe em risco as pessoas que frequentam este meio natural tão
importante
para a qualidade de vida das pessoas. Satisfazer as necessidades da
comunidade ao usufruir de práticas no meio natural de maneira inconsciente
contrapõe aquilo que Chernushenko (2011) chamou de esporte sustentável.
 
A
percepção dos alunos/atletas 
 
   
A partir do acesso ao grupo destes alunos (sub-17), dos nove que responderam ao
questionário virtual, todos relataram que não receberam
em suas escolas,
quaisquer (in)formações (teórica ou prática) da modalidade beach soccer.
Há de se destacar que na cidade há escolas que
ficam distantes da praia.
Porém, há aquelas que estão localizadas às margens da lagoa, em comunidades
pesqueiras, que também não
desenvolvem atividades próprias de praia.
 
   
O fato de a escola não possuir quadra de areia, materiais específicos ou
ainda, estar longe da praia, não impede que os alunos recebam
conteúdos e
aulas acerca dos esportes praianos. Na verdade, esta pode até ser a desculpa
para o não trabalho, mas o que seria da Educação
Física se esse comodismo
impedisse as belas práticas que ocorrem Brasil afora, desenvolvidas sem
quaisquer materiais ou espaços adequados?
 
   
Parafraseando Rufino, e Darido (2015) sobre o ensino de lutas, a ausência dos
esportes de combate nas escolas se dá por vários motivos,
dentre os quais
também estão inclusos, problemas na formação acadêmica, falta de
conhecimento e insegurança na dinamização das aulas. Este
paralelo com os
esportes de praia se faz importante para compreender que a ausência destes como
conteúdo curricular, segundo os autores, dá-
se não por falta apenas de
espaços e materiais específicos, mas pela inabilidade docente, que tem
múltiplas origens.
 
   
Destes alunos entrevistados, há aqueles que participaram do evento pela
primeira vez em 2020, sendo inclusive, convidados de cidades
vizinhas, que
comungam de espaços e atividades corporais muito semelhantes. No entanto, a
grande maioria possui certa experiência no Fest
Verão, variando de dois a
quatro anos de participação. Quando questionados sobre a participação no
evento, todos relataram gostar muito de
jogar no mesmo, a ponto de competir em
edições futuras, caso sejam convocados.
 
   
Sobre a aula deste esporte (beach soccer) ou o ensino de outra prática
de praia nas aulas de Educação Física Escolar, todos afirmaram que
nunca
tiveram acesso a estes conteúdos no currículo escolar, mas gostariam que a
escola abordasse esses assuntos. Há alunos que relataram
adquirir conhecimento
sobre o esporte, por exemplo, por meio da Internet. Em relação ao ensino
escolar, assim se expressou um atleta: “(...)
gostaria sim, porque iria dar
mais uma vantagem (...) porque quero ganhar experiência”. A ‘vantagem’
expressa aqui tem relação com o saber
para fazer, com o conhecimento prévio
dado pela escola, o que proporciona a aquisição de melhores resultados
(evento) e difusão do
protagonismo comunitário.
 
   
Estranhamente,
outro aluno relatou: “na minha escola não ensina, mas minha educação
física é na praia”. Uma reflexão se faz necessário
neste momento: se a
aula de Educação Física ocorre na praia, o que é ensinado lá? Será que
ocorrem naquele ambiente as mesmas práticas
hegemônicas experimentadas na
quadra da escola? Para a maior parte dos alunos brasileiros, o esporte jogado
com os pés é futebol (Faria,
2003), não importa o local de sua prática. Como
relatado por Oliveira (2017), o golzinho de praia também é jogado nas quadras
da escola.
Então, se na escola, o futsal – esporte também praticado com o
pé – é chamado de futebol, será que na praia, o beach soccer também
o é? Será
que o aluno pratica o beach soccer e, ao pensar que é
futebol, entende que não aprendeu ali qualquer esporte de praia ou, realmente,
por conta
de vários fatores, incluindo a falta de conhecimento, o professor
não aborda de forma satisfatória esta modalidade?
 
   
Ao visualizar o currículo municipal de Educação Física, a dinâmica do
evento do Fest Verão, a organização das equipes, a orientação dos
professores por equipe, a opinião dos alunos acerca dos esportes de praia e os
conteúdos trabalhados, é possível triangular todas estas
informações e
compreender o distanciamento da escola desta realidade cultural, ainda que o
município possua uma forte trajetória histórica,
geração após geração,
acerca dos esportes de praia.
 
Discussão 
 
   
Decerto, os conteúdos da Educação Física Escolar se mantêm pautados na
hegemonia esportiva, sobretudo nos esportes coletivos
midiatizados, de sorte que
ainda é necessário dar respostas ao questionamento feito por Paula, e Lima
(2013): “como superar a hegemonia do
esporte nas aulas de Educação Física?”.
Ao perceber esta dimensão hegemônica ainda presente no currículo analisado,
uma inquietação
específica redirecionou a pesquisa para outra indagação:
considerando as centenas de crianças e adolescentes que participam do Fest
Verão,
como eles aprendem o beach soccer se este não está presente no
currículo da Educação Física escolar?
 
   
As respostas são muitas, mas o que se destaca neste estudo é a
desvalorização da cultura local por parte da escola e das políticas públicas
de
educação. A não apropriação de práticas culturais que dão sentido ao
fazer pedagógico distancia o ensino da realidade do aluno, de suas
vivências e
experiências do cotidiano. Segundo Torres et al. (2017), o ensino deve ser
baseado no contexto do aluno, em situações práticas de
sua realidade, gerando
o interesse e, consequentemente, a aprendizagem significativa.
 
   
Neste contexto de experiências reais, o sociólogo Murad (2009) faz uma
interessante análise sobre o a reprodução social a partir do conceito
de habitus,
gerado pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1983).

   
É um conceito básico para todos que trabalham com educação, seja escolar
ou não escolar, na medida em que as matrizes e
as identidades culturais que
serve de referência às coletividades de um determinado local devem ser
levadas em conta na hora
de estabelecer objetivos, planejar, executar e
avaliar os processos pedagógicos. Assim, o conceito de habitus é uma
ferramenta
necessária para a interação entre os planos e programas de
ensino-aprendizagem e matrizes culturais. (Murad, 2009, p. 123)

   
O campo, outro termo conceituado por Bourdieu (1983), é o local onde se dá o habitus.
No caso do Fest Verão, a região praiana constitui o
campo e, a prática dos
esportes de praia, o habitus. Para Murad (2009, p. 123), “os
profissionais de educação física, que trabalham com práticas
diretamente
ligadas àquilo que tem a ver com o conceito de habitus e que por isso
são tão motivadoras, (...) têm em mãos instrumentos
pedagógicos muito
importantes, mais até que os dos professores de outras matérias”.
    
   
Ao abordar apenas de forma hegemônica os esportes coletivos, os quais muitas
vezes são descontextualizados de significado (Bracht, 2013;
Darido, 2012;
Betti, 1999), a escola perpetua o modelo vigente da reprodução irreflexiva
presente nos currículos, confirmando ainda mais, as
relações de poder
existentes. (Paula, e Lima, 2013; Oliveira, e Silva, 2007; Saviani, 2006)
 
   
O curioso desta questão é que alunos e alunas aldeienses passam todos os anos
letivos, durante toda a vida acadêmica, ouvindo e praticando
estas modalidades.
No entanto, no início de cada ano, incoerentemente, participam da celebração
cultural do esporte na sua cidade – o Fest
Verão – praticando uma
modalidade teoricamente desconhecida.
 
   
Outra questão curiosa é que a Secretaria Municipal de Educação da cidade,
segundo dados, ao realizar os jogos estudantis em 2014, incluiu o
beach
soccer no conjunto de esportes e atividades oferecidos aos alunos, mas como
dito, esta modalidade esportiva não aparece na grade
curricular daquele ano
como proposta de ensino. Percebe-se então, a prática pela prática,
descontextualizada do mundo real do aluno, apesar de
fazer parte dele.
 
   
Para Oliveira et al. (2019), a apropriação da realidade local – o campo
praiano, bem como o contexto do Fest Verão – deve ocorrer sob uma
ótica
interna, isto é, de dentro, no sentido de compreender como os sujeitos
culturais se apropriam destas manifestações corporais. Sob a ótica
interna
deste evento, os autores propõem que o Fest Verão:
   
seja mantido na cultura local por meio do fomento às práticas esportivas de
praia, aproximando-se mais do sujeito local, de
seu cotidiano, vivificando a
relação entre criador e criatura. Dessa forma, experimentá-lo, vivenciá-lo
e manifestá-lo torna-se
urgente, não somente por meio da oferta de práticas
de lazer informal, ocorridas diariamente em contexto social, mas
salvaguardá-lo como conhecimento escolar, desenvolvido como conteúdo,
dinamizado como prática cultural em um currículo
que valorize a identidade
dos sujeitos, sua história e memória e, na medida do possível, insira os
alunos neste mesmo contexto
identitário através de práticas recorrentes e
conscientes. (Oliveira et al., 2019, p. 126)

   
No momento em que a escola se distancia da realidade local, deixa de cientificar
o conhecimento discente adquirido nas experiências do
cotidiano. Neste caso, o
aluno passa a legitimar como verdadeiro e ideal, o trabalho desenvolvido por
colaboradores comunitários, intitulados
como professores (pseudoprofessores).
Ainda que em contexto de competição, esta realidade dá créditos aos estudos
de Bettanim et al. (2017),
onde afirmam que a função de treinador no Brasil
ainda não é mérito da formação acadêmica de nível superior, mas da
experiência neste ofício.
    
   
Pessoas envolvidas de alguma forma com o esporte municipal, inclusive com o Fest
Verão, a partir de associações, igrejas, ONG’s, clubes,
organizam suas
equipes e as inscrevem no evento. Assim que se forma o chaveamento dos jogos por
sorteio, as lideranças das equipes tentam
atualizar seus atletas quanto às
regras da modalidade e, de alguma forma, na prática, realizam treinamentos para
a competição, disputando o
único espaço viável denominado de Campo do
Centro. Muitas vezes, esta atualização se dá, inicialmente, por meio de
contato com árbitros do
evento ou pessoal da organização, ou ainda, entre os
diferentes sujeitos da cultura local.
 
   
Mas, será que tal experiência dá conta da imprevisibilidade presente nos
jogos, da variabilidade psicológica e emocional de crianças em
diferentes
faixas etárias, da exigência de pais e pressão da torcida, dos processos
fisiológicos envolvidos, das estratégias, técnicas e regras,
sobretudo quando
se trata do Fest Verão, que desde a Categoria de Base mais pueril, o nível
competitivo é acirradíssimo?
 
   
Não se quer com estes questionamentos e reflexões, consolidar a ideia de que
tais colaboradores comunitários não devam mais participar
como responsáveis
na competição, nem mesmo, que as equipes só possam participar deste
megaevento cultural com professores devidamente
formados. A ideia aqui, é
destacar o real papel da escola neste contexto, como instituição que deve se
apropriar da realidade cultural e
problematizar as questões que a envolve. Em
uma visão mais ampla, é preciso pensar como Saviani (2006, p. 56): “É nisto
que consiste a função
política da escola: socializar o conhecimento
sistematizado, tornando-se um instrumento às classes populares na aquisição
de conhecimentos e
habilidades para a luta contra as desigualdades e para a
participação no processo de transformação social”.
 
   
Segundo o professor J.M.S.A., que também é praticante do futebol de praia na
categoria veterano, o esporte deveria ser difundido e valorizado
por meio da
escola e do poder público, dada a sua importância na cultura local.

   
Este trabalho deve ser inserido nas escolas por meio de um currículo que
contemple a realidade local, tendo nos esportes de
praia, um caminho para
criar a cultura do esporte sustentável em torno deste megaevento. Neste
contexto, é preciso que o
poder público municipal promova um desdobramento
deste grandioso evento, promovendo não só escolinhas esportivas nas
areias
ou águas, mas que cative comportamentos sociais para prática de atividade
física consciente, disseminando hábitos
saudáveis para uma vida mais ativa.
(Oliveira et al., 2019, p. 129)

   
Ainda que se reconheça o Fest Verão e a escola local como reais objetos deste
trabalho, principalmente no que se refere à cultura específica
em que estão
inseridos, é possível compreender que a ausência dos esportes de praia no
currículo escolar ultrapassa as fronteiras da cidade
aldeiense, uma vez que
alguns dos alunos entrevistados são oriundos de pelo menos, dois municípios
vizinhos. Em suas escolas, segundo os
mesmos, também não há aulas
relacionadas aos esportes de praia.
 
   
Isto leva a crer que tal como ocorre em nível nacional, o discurso da aula
esportivista tradicional que forjou o chamado quarteto fantástico
(Darido, e
Rangel, 2005; Milani, e Darido, 2016; Brandt et al., 2015) também está
consolidado nas regiões praianas. Apesar de parecer
precipitada tal afirmação
devido ao baixo número de alunos entrevistados, deve-se lembrar de que a visão
e experiência destes representam a
totalidade do universo escolar. Logo, não
se trata apenas de uma opinião, mas da constatação da realidade, da memória
que o aluno possui de
suas aulas.
 
   
Retomando a fala dos alunos sobre o desejo de que as práticas corporais de
praia devam ter vez na escola como conteúdos ressignificados,
compreende-se que
se trata do interesse em vivificar aquilo que de fato lhes pertence, que lhes é
importante, que está no cotidiano de suas
práticas, no habitus
instituído (Bourdieu, 2004). Ao longo de 50 anos, geração após geração, a
cultura aldeiense tem experimentado a prática do

futebol de praia à
conta-gotas, como uma produção cultural que influencia o habitus5
local (Oliveira, 2017) e aproxima os sujeitos envolvidos
nesta infinita teia de
relacionamentos. (Oliveira et al., 2019; Geertz, 2011; Daolio, 2005)
 
   
A apropriação dos conhecimentos produzidos na e pela cultura local dá sentido
às práticas escolares, sobretudo às aulas de Educação Física,
quando esta
assume o papel não só de vivificar a cultura por meio do movimento, mas quando
reflete sobre este movimento e como ele ocorre
na comunidade. Esta realidade vai
de encontro àquilo que a BNCC denomina de protagonismo comunitário (Brasil,
2018), onde o aluno coloca
em prática, na comunidade, os saberes aprendidos e
acumulados por meio do ensino escolar.
 
   
Por falar em protagonismo comunitário, o planejamento curricular da Educação
Física Escolar aldeiense, a partir de 2019, introduziu em seu
corpo textual, a
valorização de atividades tipicamente praticadas na região praiana. Tal
inserção ocorreu em resposta às exigências e sugestões
indicadas na BNCC
(Brasil, 2018). Isto por si só, não sugere a garantia de ruptura com as
práticas hegemônicas, mas já é um grande passo dado
na direção da
valorização da cultura corporal de movimento estabelecida no contexto local.
 
Conclusões 
 
   
O Fest Verão é, de fato, uma produção cultural que comemorou seu meio
século de existência em 2019/2020, podendo ser considerado forte
candidato à
patrimônio imaterial da cidade aldeiense. No entanto, como toda produção
cultural, ela deve ser vivificada pelas pessoas e, não há
melhor lugar para
dar vez às manifestações que a escola. Infelizmente, o que se percebe é que
as práticas escolares ainda estão distantes de
sua realidade local,
desprovidas de sentido.
 
   
Em se tratando de práticas culturais como a descrita neste estudo, é
importante que a Educação Física Escolar dê voz ao habitus
instituído, de
maneira que os alunos inseridos na realidade praiana sejam
verdadeiros protagonistas comunitários de suas ações. Para tanto, a escola
precisa
ser um local das expressões identitárias da comunidade.
 
   
Certamente, o que mais se percebe na dinâmica desta cultura é a expressão
deste evento histórico como linguagem própria da comunidade,
porém, não como
protagonismo comunitário – aquilo que o aluno aprende na escola e põe em
prática, dando sentido às suas experiências. Isto
porque anualmente, muitos
destes alunos celebram esta grande festa de linguagem corporal própria sem
qualquer intervenção do conhecimento
escolar. O entendimento desta linguagem
favorece o trabalho e a dinâmica de projetos de iniciativa pública (e privada)
e educacional, que
possam dar sentido ao que é feito continuamente pelos
sujeitos locais, valorizando, de fato, a realidade em que vivem.
 
   
Neste sentido, sugere-se que tais esportes de praia, sobretudo aqueles que
estão na dinâmica do Fest Verão enquanto manifestação cultural
local,
alcancem o espaço escolar, valorizando as experiências comunitárias e
garantindo a perpetuação destas linguagens advindas das massas.
Ainda nesta
linha, considerando o Brasil um país de vasto litoral, onde se encontram as
cidades mais populosas do país, sugere-se que os jogos e
esportes praianos
façam parte da dinâmica escolar, não meramente como memória e tradição,
mas como apropriação do conhecimento no
sentido de conservação do ambiente
natural e geração de novas formas de aprendizado e práticas docentes mais
significativas.
 
Notas 

1. Fest
Verão: trata-se de um grande evento com modalidades de praia que surgiu na
cidade em 1969/1970 com o nome de Jogos de
Verão, tornando-se uma prática
contínua desde então. Por isso, com meio século de existência, é o
maior e mais longo evento de praia
do Estado do RJ e, atualmente, tem
atraído a atenção de atletas nacionais e internacionais.

2. Fest
Verão – 2020: O evento foi interrompido nas quartas de final devido ao
surgimento da Pandemia do Sars-Cov-2. Este evento tem
início, oficialmente,
no mês de janeiro/fevereiro e vai até abril. Pretendia-se retomar às
fases restantes ainda em 2021, mas devido a
protocolos de saúde, não foi
possível. Então, a organização do evento deu por encerrada a o Fest
Verão – 2020, premiando as equipes

de base por índice técnico (melhores


resultados).
3. Habilidades:
No que se refere à Base Nacional Comum Curricular na área de Educação
Física, a mesma foi apresentada e organizada em

seis áreas temáticas,


objetos de conhecimento e habilidades. Estas habilidades poderiam ser
acrescentadas pelos Estados e municípios
de acordo com as suas
peculiaridades socioculturais.
4. Praia
do Centro: área de lazer de grande balneabilidade turística, localizada na
entrada da cidade de São Pedro da Aldeia-RJ, banhada

pela Lagoa de
Araruama.
5. Teoria
do habitus: Segundo Bourdieu, e Passeron (1975), o conceito de habitus
refere-se ao sistema de disposições duráveis inculcados
historicamente no
indivíduo, como produto da interiorização dos princípios de um
arbitrário cultural, que orienta as práticas individuais e

coletivas
enquanto esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e de
ação.

 
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