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CAPÍTULO 10

DESASTRE HIDROLÓGICO OCORRIDO EM JANEIRO DE 2010 NA


PORÇÃO CENTRAL DO RIO GRANDE DO SUL (RS)

Guilherme Garcia de Oliveira 1

Introdução
Neste capítulo, busca-se apresentar e descrever um importante desastre hidrológico ocorrido no
Rio Grande do Sul (RS), entre os dias 03 e 05 de janeiro de 2010. Nesse intervalo de dias, um evento
extremo de precipitação ocorreu na porção central do RS, em especial, nas bacias hidrográficas dos
rios Jacuí, Pardo e Taquari-Antas. Na ocasião, mais de 75 municípios do RS apresentaram algum tipo
de dano humano, material ou prejuízo, em função dos fenômenos relacionados às chuvas torrenciais.
A precipitação intensa e volumosa desencadeou uma série de processos hidrogeológicos, tais
como deslizamentos, enxurradas e inundações, de acordo com as particularidades de cada local
atingido. Nas encostas íngremes, dezenas de deslizamentos foram deflagrados após o acúmulo da
precipitação, ainda no dia 04/01/2010. Neste mesmo dia, próximo às áreas de cabeceiras de drenagem
e vales estreitos com rios encaixados, foram observadas enxurradas de grandes proporções e alto
poder destrutivo, principalmente nos afluentes dos principais rios da região. Por fim, no último dia
do evento, o predomínio de inundações nas planícies e terraços fluviais dos rios Jacuí, Pardo e
Taquari, desalojando e desabrigando milhares de moradores locais.
A região onde o desastre ocorreu enfrenta constantemente os impactos causados por esses tipos
de eventos extremos. Uma parcela considerável das cidades locais cresceu junto às margens dos rios,
sem um adequado planejamento no processo de urbanização. Até hoje, poucos municípios da região
estabeleceram, em suas leis e/ou diretrizes municipais, condicionantes ou restrições para loteamento
e ocupação de áreas suscetíveis a inundações, enxurradas ou movimentos de massa. Com o avanço
da cidade sobre esses locais, amplia-se a exposição da população aos perigos naturais, e tem-se o
agravamento dos impactos, danos e prejuízos causados por eventos extremos hidrológicos,
potencializando os desastres. Os problemas são ainda mais severos quando o fenômeno ocorre em
área ocupada por população vulnerável (Freitas et al., 2012), do ponto de vista econômico, social e
demográfico, pois estes podem ter mais dificuldades no enfrentamento da situação adversa, tanto
durante o evento (resposta imediata) quanto após o evento (na fase de reestruturação).
É interessante explicar a motivação para a pesquisa desse evento extremo, especialmente, no
que se refere à enxurrada histórica que ocorreu no Vale do Rio Forqueta: em 2014, quatro anos após
o desastre, a população e os gestores locais ainda não sabiam explicar o fenômeno, e desconfiavam
que poderia ter alguma relação com as pequenas centrais hidrelétricas (PCH) instaladas na bacia. Isso
porque a enxurrada atingiu uma cota fluvial quase três metros acima da maior cheia da história no
vale, sem contar que o nível subiu em uma velocidade jamais vista ou lembrada pela população.
Nenhuma pesquisa havia sido realizada ou publicada a respeito do evento, o que propiciava esse tipo
de afirmação por parte da comunidade local.
Conhecendo o tamanho reduzido das PCHs e de posse dos dados hidrológicos disponibilizados
pelas empresas que operam as centrais hidrelétricas, iniciou-se um projeto de pesquisa no âmbito da
Universidade do Vale do Taquari, sob minha coordenação. Foram realizadas diversas saídas de campo
e uma investigação exploratória em imagens de satélite de alta resolução espacial, a partir das quais
se identificou dezenas de deslizamentos ocorridos no Alto Rio Fão, além de evidências que indicam
a formação de barreiras naturais e bloqueio do fundo do vale pelos detritos e materiais movimentados.

1
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento Interdisciplinar. Docente Permanente do
PPG em Sensoriamento Remoto. Dr. em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. E-mail: g.oliveira@ufrgs.br
O rompimento abrupto dessas barreiras poderia ser uma explicação plausível para o fenômeno da
enxurrada de proporções jamais antes observadas na região, uma vez que esse tipo de ocorrência já
foi relatado em outros lugares.
Para a melhor compreensão do desastre de 2010, iniciarei a apresentação com uma visão geral
do evento, sobre a área de abrangência, a tipologia e localização dos desastres, a descrição das
condições meteorológicas e hidrológicas, além dos principais impactos observados na região. Em
seguida, a proposta é detalhar um pouco dos resultados da pesquisa realizada por este autor em relação
aos deslizamentos ocorridos no Alto Rio Fão e a enxurrada histórica do Rio Forqueta.

Uma visão geral sobre o desastre

O evento de precipitação ocorrido em janeiro de 2010 desencadeou processos hidrológicos


extremos em uma significativa área da porção central do RS. Na Figura 10.1, observa-se a
abrangência do fenômeno, com a indicação visual dos municípios que relataram danos e prejuízos, e
decretaram situação de emergência. A listagem de municípios foi obtida por meio do Relatório de
danos materiais e prejuízos decorrentes de desastres naturais no Brasil (BANCO MUNDIAL, 2020)
e do Atlas Digital de Desastres no Brasil (CEPED/UFSC, 2020).

Figura 10.1 – Mapa de localização dos municípios atingidos pelos eventos hidrológicos extremos de janeiro
de 2010, na porção central do RS.
Ao todo, 79 municípios relataram algum tipo de impacto (danos humanos, materiais e/ou
prejuízos) provocado pela precipitação intensa, inundações, enxurradas ou movimentos de massa. A
população estimada (IBGE, 2022) dos municípios afetados é de 1,3 milhões de habitantes. Nas áreas
próximas aos rios, mais afetadas pelas inundações e enxurradas, predominam os seguintes usos e
coberturas da terra: áreas edificadas/construídas; cultivos temporários, com destaque para o arroz
irrigado, soja e milho; pastagens; silvicultura, e; matas ciliares (MAPBIOMAS, 2022).
O desastre atingiu basicamente quatro bacias hidrográficas, considerando a divisão da
Secretaria Estadual do Meio Ambiente do RS (SEMA/RS): i) Taquari-Antas, ii) Pardo; iii) Alto Jacuí;
iv) Baixo Jacuí. As três primeiras bacias são caracterizadas pela elevada amplitude altimétrica e forte
controle estrutural das linhas de drenagem, com diversos rios e arroios de águas rápidas e ondas de
cheia que caracterizam a ocorrência de enxurradas. Apenas nos trechos baixos dos rios Taquari e
Pardo que a pendente do canal diminui e existe a formação de terraços e planícies fluviais, com
propensão à ocorrência de inundações.
Como indicado na Fig. 10.1, os deslizamentos ocorreram, em sua maior parte, entre os
municípios de Soledade, Barros Cassal e Fontoura Xavier, próximo às cabeceiras de drenagem do
Rio Fão, importante afluente do Rio Forqueta, que deságua no Rio Taquari. De acordo com a base
cartográfica digital de geomorfologia, disponível em IBGE (2021), o local pertence à Unidade
Geomorfológica da Serra Geral, composta pelas escarpas erosivas do Planalto Meridional, unidade
onde frequentemente se registram episódios de movimentos de massa após intensas precipitações.
As enxurradas, por sua vez, ocorreram de forma mais generalizada na área de abrangência do
evento, especialmente, em seções fluviais mais encaixadas no vale, em trechos declivosos da rede de
drenagem. São exemplos: o Vale do Rio Fão (municípios de Pouso Novo e Progresso); o Vale do Rio
Forqueta (Travesseiro e Marques de Souza); o Vale do Arroio Forquetinha (Forquetinha); o Vale do
Rio Pardinho (Sinimbú, Santa Cruz do Sul e Vera Cruz); o Vale do Rio Pardo (Lagoão, Passa Sete e
Candelária); o Vale do Rio Jacuizinho (Estrela Velha e Arroio do Tigre); entre outros.
As inundações afetaram as localidades à beira do Rio Jacuí, no trecho a jusante de Dona
Francisca e Agudo (após a confluência com o Rio Soturno), além do trecho baixo dos rios Pardo e
Taquari. Os municípios de Rio Pardo, São Jerônimo, Venâncio Aires, Lajeado e Estrela são alguns
dos municípios com ocorrência de inundações mais graduais nesse episódio de evento extremo.

Caracterização hidrometeorológica do evento extremo


A partir do banco de dados de precipitação BDCHUVARS (Brubacher et al., 2021), com chuvas
interpoladas espacialmente a partir das séries históricas disponíveis no Portal HidroWeb (ANA, 2022)
e Instituto Nacional de Meteorologia (INMET, 2022), pode-se visualizar a chuva acumulada entre os
dias 03 e 05 de janeiro de 2010 (Figura 10.2). No mapa, podemos ver claramente que os maiores
acumulados de precipitação foram observados na área de drenagem dos rios Forqueta e Fão, com
valores superiores a 200 mm no período analisado. Outra área de destaque, com acumulados um
pouco inferiores, se refere à cabeceira do Rio Ivaí, um dos principais afluentes da bacia, localizado
no Alto Jacuí.
A partir da extração de estatísticas zonais, pode-se estimar com mais precisão os acumulados
por bacia e munícipios da área de abrangência do evento extremo. A Bacia do Taquari-Antas
apresentou a maior média, com acumulado de 117 mm em sua área de drenagem. Porém, a
distribuição espacial foi bastante irregular e heterogênea, com valores oscilando entre 22 mm e 232
mm. Os menores acumulados, nesta bacia, foram observados na porção leste da bacia, nas cabeceiras
de drenagem do Rio das Antas, em São José dos Ausentes e Cambará do Sul. A Bacia do Alto Jacuí
apresentou precipitação entre 23 mm e 229 mm, com média de 111 mm, ou seja, valores próximos
aos observados no Taquari-Antas. A média na área de drenagem do Rio Pardo foi um pouco inferior,
chuva acumulada de 93 mm. Em relação aos municípios, destacam-se: Ilópolis, Arvorezinha, Putinga,
Soledade, Anta Gorda, Relvado, Fontoura Xavier, Itapuca e São José do Herval, com média na área
municipal superior a 200 mm.
Figura 10.2 – Chuva acumulada entre 03 e 05 de janeiro de 2010 na área atingida pelos desastres.

Da Cas (2016) compilou em seu estudo todos os dados do INMET e da Defesa Civil do RS,
que indicam o mesmo padrão espacial, porém com acumulado superior ao interpolado na Figura 10.2,
com destaque para: i) Fontoura Xavier, 327 mm; ii) Putinga e Progresso, 268 mm; iii) Soledade, 247
mm; iv) Arvorezinha, 225 mm. Destes, apenas a estação de Soledade (A837) se refere à rede oficial
do INMET.
O estudo de Oliveira et al. (2017) fez uma análise do quadro sinóptico relacionado ao evento
extremo de janeiro de 2010. Visando analisar de forma detalhada os mecanismos e dinâmica
atmosférica nesse desastre, os autores compilaram boletins meteorológicos do Centro de Previsão de
Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC-INPE) e do
Núcleo de Informações Hidrometeorológicas da Universidade do Vale do Taquari (NIH-
UNIVATES). Além disso, foram analisadas as imagens dos satélites meteorológicos GOES 12,
obtidas junto à Divisão de Satélites e Sistemas Ambientais (DSA-INPE), para interpretação da
dinâmica atmosférica em um contexto mais continental, o que permitiu compreender a gênese do
sistema atuante no RS. Por fim, os autores exploraram todos os conjuntos de dados disponíveis de
precipitação, incluindo os provenientes do INMET, NIH-UNIVATES, além de alguns pluviômetros
de moradores locais (consultados durante as atividades em campo).
De acordo com os dados do INMET, em Soledade, a precipitação iniciou no dia 03/01/2010,
entre 18h e 19h. Em apenas 21 horas, o acumulado superou os 200 mm em Soledade, como indica a
Figura 10.3. A precipitação foi mais intensa no período entre 11:00 e 16:00 do dia 04/01, com 106
mm em apenas cinco horas. Em Soledade, o total acumulado foi de 247 mm, enquanto em Lajeado o
acumulado foi de 189 mm (NIH-UNIVATES), reforçando a concentração espacial das chuvas nas
cabeceiras do Forqueta e do Fão (Oliveira et al., 2017).

Figura 10.3 - Precipitação acumulada e desagregada em blocos entre 03/01/2010 e 05/01/2010, em


Soledade, RS, na estação automática do INMET. Adaptado de Oliveira et al. (2017).

Na Figura 10.4 é apresentada uma sequência de imagens do satélite meteorológico GOES 12,
obtidas junto ao INPE/CPTEC/DAS, em intervalos de três horas, entre os dias 03 e 04 de janeiro de
2010. Com base nessas imagens, nos boletins meteorológicos do CPTEC e da UNIVATES, e nas
condições meteorológicas das estações automáticas, observou-se a influência de Jatos de Baixos
Níveis (JBN), associados a um corredor de umidade de noroeste, além de um centro de baixa pressão
localizado na Região do Chaco, no centro do continente sul-americano. Esse mecanismo atmosférico
é comum no verão e costuma provocar fortes áreas de instabilidade nas regiões Sudeste e Sul do
Brasil, com o deslocamento de massas quentes e úmidas, e formação de sistemas convectivos como
os Complexos Convectivos de Mesoescala (CCM). O sistema convectivo observado na Figura 10.4,
em alguns intervalos de tempo, apresentou topo das nuvens com temperatura inferior a -70°C, em
uma área suavemente circular com raio superior a 150 km (04/01, entre 12:00 e 18:00). As nuvens,
do tipo cumulonimbos (Cb) apresentaram forte desenvolvimento vertical (Oliveira et al., 2017).
Em relação à dinâmica hidrológica dos rios da área afetada, constatou-se acentuada elevação
do nível fluvial entre os dias 04 e 05 de janeiro de 2010, após a formação do sistema convectivo. O
Rio Jacuí, por exemplo, subiu 8,2 m acima da cota média histórica na seção fluvial referente à Dona
Francisca, estação 85400000 (ANA, 2022). Em Santa Cruz do Sul, o Rio Pardinho chegou à marca
de 6,5 m acima da cota média histórica, considerando os dados da estação 85830000. O Rio Pardo,
sem disponibilidade de dados oficiais no portal HidroWeb, mas baseado em fotografias da época,
estima-se um aumento superior a 8 m acima da cota normal do rio. Tem-se o relato de alguns
moradores de Candelária de que, no estágio mais crítico da enxurrada, o Rio Pardo chegou a subir até
4 m em apenas 1 hora. Inclusive, isso vitimou um cidadão local, que ficou isolado em uma coxilha
enquanto tentava salvar seu rebanho, e acabou sendo arrastado pela correnteza com a rápida elevação
do nível fluvial (GAZETA DIGITAL, 2015).
Na Bacia do Taquari-Antas, o efeito mais grave foi sentido em dois dos seus afluentes, os rios
Fão e Forqueta. Relatos de moradores locais, em Pouso Novo, na localidade de Boa Vista do Fão,
indicam que o Rio Fão subiu mais de 15 m em poucas horas durante o dia 04/01. Marcas na ponte em
curva da BR-386, sobre o Rio Fão, que foi interditada durante o evento extremo em função do alto
risco de ruptura da estrutura, atestam que o rio havia chegado a uma cota nunca observada
(GAUCHAZH, 2011; GRUPO INDEPENDENTE, 2022). De acordo com os dados da estação Passo
do Coimbra (86745000), no município de Pouso Novo, o Rio Forqueta subiu 12,5 m em relação ao
nível médio histórico. A jusante, em Marques de Souza, o mesmo rio subiu mais de 8 m em relação
à cota normal, de acordo com registros fotográficos e entrevistas com moradores. Na casa de um
antigo morador da cidade, a família registrou a famosa cheia de 1941, até então a maior já ocorrida
em Marques de Souza: a enxurrada de 2010 superou a marca anterior em mais de 3 m (GAUCHAZH,
2011).

Figura 10.4 – Sequência de imagens GOES-12, mostrando a formação do processo convectivo que
desencadeou os eventos extremos entre 03/01/2010 e 05/01/2010, no RS. Adaptado de Oliveira et al. (2017).

Por sua vez, de acordo com dados da estação do NIH-UNIVATES, em Estrela e Lajeado, seção
do Rio Taquari a jusante de sua confluência com o Rio Forqueta, o nível atingido foi de 23,95 m,
aproximadamente 11 m acima da cota normal do local, que está sob influência de uma barragem
eclusa que regula o nível para navegação na região. Em Lajeado, essa foi considerada uma cheia de
alcance intermediário, com TR de aproximadamente 4,2 anos (Moraes, 2015). A diferença de
magnitude, em relação ao Rio Forqueta, é explicada pelo fato de que as chuvas se concentraram
justamente na área de drenagem do Forqueta (2.845 km²). Para o Rio Taquari (área de drenagem de
28.382 km²) atingir maiores marcas, é necessário que outros dos seus afluentes também aportem um
bom volume de águas ao canal principal, tais como os rios das Antas, Carreiro e Guaporé.

Análise dos danos e prejuízos na porção central do RS


A análise dos impactos causados pelos deslizamentos, enxurradas e inundações na porção
central do RS se baseia, principalmente, no banco de dados obtidos a partir do Relatório de danos
materiais e prejuízos decorrentes de desastres naturais no Brasil (Banco Mundial, 2020) e do Atlas
Digital de Desastres no Brasil (CEPED/UFSC, 2020). Além disso, foram utilizadas, como material
de apoio, notícias veiculadas em jornais locais e regionais de grande circulação, além de entrevistas
com moradores a partir de atividades de campo.
Na Figura 10.5, observa-se um mapa ilustrativo dos principais impactos registrados na área
afetada pelos desastres de janeiro de 2010. Para elaboração dessa espacialização, foram
sistematizadas todas as informações disponíveis sobre o evento extremo, incluindo matérias e notícias
veiculadas na época. Uma parcela significativa dos municípios registrou danos e destruições
compatíveis com a ocorrência de enxurradas, tais como óbitos, pessoas feridas, pontes e habitações
destruídas.
Figura 10.5 – Espacialização dos impactos mais notáveis do desastre ocorrido em janeiro de 2010, no RS.

Na área que foi afetada por inundações, nos rios Taquari e Jacuí, muitas famílias tiveram que
deixar suas casas, entre os dias 04 e 06 de janeiro. Vias foram interditadas (mais de 20 rodovias em
toda a região) e algumas pessoas ficaram isoladas, com poucos relatos de pessoas feridas, em
Encantado e Colinas. Ao todo, 350 casas foram danificadas, necessitando de algum tipo de reparo,
nos municípios de Arroio do Meio, Venâncio Aires, Rio Pardo e São Jerônimo. No dia 09 de janeiro,
a inundação já havia terminado nos vales, com as últimas famílias retornando às suas casas.
As enxurradas geraram uma série de transtornos e perdas. Foram 829 habitações danificadas,
de forma generalizada em toda a área amarela do mapa. Nos municípios de Nova Palma, Candelária,
Santa Cruz do Sul, Salto do Jacuí, Lagoão, Espumoso, Marques de Souza, Pouso Novo e Dois
Lajeados, tiveram registros de habitações ou outros tipos de construções completamente destruídas.
Travessias e pontes foram destruídas em pelo menos 9 locais, com destaque para a ponte da
RS-287 sobre o Rio Jacuí, em Agudo, que liga a capital Porto Alegre à Santa Maria, cidade mais
importante do centro do estado. Nesse episódio, no dia 05/01, 20 pessoas que estavam sobre a ponte
foram arrastadas junto da estrutura da ponte, abrindo um vão superior a 130 metros na travessia. A
maioria das pessoas se salvou ou foi resgatada a tempo, mas 5 pessoas vieram a óbito no local. Além
dessa ponte, outras foram destruídas, em Arroio do Tigre, Lagoão, Espumoso, Barros Cassal e
Fontoura Xavier. A ponte entre Barros Cassal e Fontoura Xavier, única ligação entre os dois
municípios, com uma estrutura de 75 m de comprimento, foi completamente destruída pela força das
águas do Rio Fão. Em Lagoão, em função da destruição de três pontes, mais de 700 pessoas ficaram
isoladas no interior do município (GAUCHAZH, 2010).
Quanto a outras infraestruturas e serviços, muitos municípios ficaram sem água (por exemplo,
a cidade de Candelária ficou totalmente sem abastecimento público por dois dias), e alguns tiveram
seu fornecimento de energia interrompido entre os dias 04 e 05 de janeiro (GAUCHAZH, 2010;
GLOBO, 2010). Foram inúmeros registros de quedas de árvores sobre fios de energia ou vias na
região. Além disso, foi constatada a destruição parcial de dois cemitérios, um em Candelária e outro
em Marques de Souza (GAUCHAZH, 2011; GAZETA DIGITAL, 2015).
Prejuízos no setor agropecuário foram contabilizados em toda a área de abrangência do desastre.
Como o evento ocorreu no verão, cultivos temporários de arroz, soja, milho, além de hortaliças e
pequenos cultivos foram parcialmente comprometidos em dezenas de propriedades rurais da região.
Houve significativas perdas, também, em lavouras de fumo. A perda de rebanhos foi mais séria em
propriedades à beira dos rios Pardo e Forqueta, com centenas de animais perdendo a vida e sendo
arrastados pela correnteza. Foi o caso em Candelária e Marques de Souza.
Em relação a óbitos e feridos, provocados pelas enxurradas, destacam-se os seguintes
municípios: Agudo, 5 mortes; Candelária, 2 mortes e 4 feridos; Barros Cassal, 2 mortes; Espumoso,
1 morte; Faxinal do Soturno, 1 morte. Quanto aos feridos, Nova Palma registrou 35 pessoas nesta
situação, Marques de Souza (15), Relvado (3) e Doutor Ricardo (2).
Na Figura 10.6, observa-se um panorama geral do número de pessoas afetadas pelo desastre,
tendo como base os dados de CEPED/UFSC (2020). Ao todo, considerando a área de abrangência do
evento, aproximadamente 300 mil pessoas foram afetadas pelo desastre. No índice absoluto,
destacam-se os municípios de Candelária (23.008 pessoas atingidas), Santa Cruz do Sul (17.641), Rio
Pardo (11.995), Encantado (10.653) e Arroio do Tigre (10.550). Porém, analisando
proporcionalmente à população do município no último censo (IBGE, 2010), pode-se considerar que
a abrangência foi mais generalizada em outras cidades da região. Municípios como Marques de Souza
e Travesseiro (Vale do Rio Forqueta), e Nova Palma (Vale do Rio Soturno, afluente do Jacuí)
apresentaram índice relativo de 100%, ou seja, foi reportado pelas autoridades que a população inteira
foi afetada, mesmo que indiretamente. Em outros municípios, o índice também é elevado, como
Progresso (97%), Segredo (95%), Dona Francisca (87%), Relvado (81%) e Pouso Novo (80%).
Considerando o impacto humano/social direto, estima-se que o contingente de óbitos, feridos,
enfermos, desalojados e desabrigados, foi de, aproximadamente, 26 mil pessoas. Destacam-se
Candelária, com 5.348 pessoas (17% da população) e Marques de Souza, com 774 (19%). Cabe
destacar que, Marques de Souza, por exemplo, teve mais de 60% de sua área urbana atingida pela
enxurrada do Rio Forqueta. Porém, apesar da magnitude sem precedentes, a duração do evento foi
curta (poucas horas), fazendo com que a maior parte da população tenha retornado às suas casas no
mesmo dia, não sendo, desta forma, contabilizado em nenhuma das categorias somadas no índice.
Em relação ao custo, envolvendo os danos materiais, prejuízos públicos e privados, a base
utilizada é a mesma que originou o relatório do Banco Mundial (2020), que se fundamenta na
avaliação de danos realizada pelas autoridades locais, prefeituras e Defesa Civil. Na Figura 10.7, é
apresentado o custo estimado do desastre hidrológico de janeiro de 2010 na porção central do RS, por
município.
No total, estima-se que o custo do desastre foi de R$ 796 milhões, a maior parte, de prejuízos
privados (R$ 647 milhões). Em relação ao setor público, destaca-se a construção da nova ponte sobre
a RS-287, que foi inaugurada em dezembro do mesmo ano, com valor da obra de R$ 53 milhões. Em
relação aos municípios, destacam-se: Rio Pardo (R$ 65 milhões); Candelária (R$ 44 milhões); Vera
Cruz (R$ 35 milhões); Forquetinha (R$ 29 milhões); Lagoão e Venâncio Aires (R$ 24 milhões).
Figura 10.6 – Danos humanos provocados pelo desastre hidrológico de janeiro de 2010 na porção central
do Rio Grande do Sul: total de pessoas afetadas.

Figura 10.7 – Custo estimado do desastre hidrológico de janeiro de 2010 na porção central do RS.
Um desastre sem precedentes no Fão e Forqueta: deslizamentos e enxurrada

Breve caracterização da área analisada


As sub-bacias do Rio Fão e do Rio Forqueta pertencem à bacia hidrográfica dos rios Taquari-
Antas, na Região Hidrográfica do Guaíba. O Rio Fão, com área de drenagem de 1.285 km², é o
principal afluente do Forqueta (2.845 km²). A extensão do Rio Forqueta é de aproximadamente 150
km. Seu tempo de concentração foi estimado por Oliveira et al. (2018b) em 25 h. Em média, a vazão
máxima anual é de 1.166 m3.s-1. Considerando um tempo de retorno (TR) de 100 anos, a vazão diária
máxima foi estimada em 3.023 m3.s-1.
O substrato geológico predominante da região se refere à Formação Serra Geral, Fácies
Gramado e Caxias. Essas formações são caracterizadas por derrames basálticos, de composição
intermediária a ácida, datados de aproximadamente 130 milhões de anos (Oliveira et al., 2018a;
Oliveira et al., 2019).
O relevo da bacia apresenta forte amplitude altimétrica, com elevação entre 16 m e 820 m. A
bacia está inserida em quatro Unidades Geomorfológicas (UG): Serra Geral, Planalto dos Campos
Gerais, Patamares da Serra Geral e Planície Alúvio Coluvionar. As três primeiras se referem ao
compartimento morfoestrutural da bacia e cobertura sedimentar fanerozoica, enquanto as planícies
pertencem ao compartimento de depósitos sedimentares quaternários (IBGE, 2003). A Serra Geral é
o compartimento predominante, ocupando 65% da área, podendo ser caracterizada pelas escarpas do
Planalto das Araucárias, desenvolvida sobre rochas efusivas básicas. Em função da declividade
acentuada, essa área é propícia ao desenvolvimento e preservação da Floresta Ombrófila Densa,
Floresta Estacional Semidecidual e Estacional Decidual, tendo apresentado, nas últimas décadas, uma
gradativa redução de áreas agrícolas e consequente regeneração/sucessão de florestas (Rempel, 2000;
Eckhardt et al., 2007). Uma das formas do relevo predominante na área se refere aos vales fluviais
aprofundados, muitos com mais de 300 m de desnível, com fortes índices de dissecação e
predisposição para erosão, além do controle estrutural nas linhas de drenagem (IBGE, 2003). Nesse
compartimento, os processos hidrológicos predominantes se referem aos deslizamentos rasos, fluxos
de detritos e enxurradas.
Por sua vez, a Planície Alúvio Coluvionar corresponde a uma superfície tendendo à plana
(declividades < 5°), localizada no baixo curso do Rio Forqueta e Arroio Forquetinha. Nestas áreas,
os usos e coberturas da terra majoritários se referem às atividades agropecuárias, com plantações de
milho, pastagens, criação de gado leiteiro e de suínos. Nessa UG também estão localizadas áreas
urbanizadas dos municípios de Marques de Souza, Arroio do Meio, Lajeado e Forquetinha. No caso
de Marques de Souza, destaca-se a presença de dezenas de campings e outras áreas de lazer ao longo
do Rio Forqueta, sendo a principal atividade turística da localidade. Em situações normais, o rio tem
a velocidade de suas águas diminuída nesse compartimento geomorfológico, e, por vezes, até
represada pelas águas do rio Taquari, conferindo características próprias de inundação, na maioria
dos eventos extremos hidrológicos (Oliveira et al., 2018a).
O clima da região é o subtropical úmido com verões quentes (Cfa, pela classificação de
Köppen). A precipitação anual é de, aproximadamente, 1.600 mm, com regular passagem de sistemas
frontais, especialmente entre os meses de maio e outubro. No verão, os sistemas convectivos oriundos
da zona tropical predominam, com pancadas de chuva localizadas e de curta duração, porém, as vezes
extremamente intensas, como em 2010 (Oliveira et al., 2019).

Descrição do desastre na Bacia do Rio Forqueta


Historicamente, se conhece a situação crítica da bacia em relação aos recorrentes impactos
causados por eventos extremos hidrológicos. Ferri (1991) já colocava que a região apresentava
concentração de altos volumes de água em episódios de precipitação intensa, e propagação da onda
de cheia com alta velocidade. Mas, mesmo com todo o conhecimento a respeito do histórico de
inundações e enxurradas, muitas pessoas foram surpreendidas pelo fenômeno ocorrido no início do
ano de 2010, quando a região foi atingida pelo maior evento extremo hidrológico, pelo menos, desde
o início da ocupação da área por imigrantes de origem alemã.
Como já vimos anteriormente, a precipitação acumulada nesses dias superou os 250 mm na
maior parte da bacia. Motivado para descobrir a origem do fenômeno, o estudo de Oliveira et al.
(2017) identificou 121 cicatrizes nas encostas, além de extensas manchas de detritos e sedimentos
grosseiros no leito do rio Fão e de seu afluente, o arroio Santa Teresa. A localização precisa da área,
bem como as principais cicatrizes, estão apresentadas na Figura 10.8. Os deslizamentos ocorreram na
divisa entre três municípios da região: Soledade, Fontoura Xavier e Barros Cassal.

Figura 10.8 – Mapa com destaque às áreas de ocorrência de deslizamentos em 04 de janeiro de 2010, no
Alto Rio Fão, RS.

Esse inventário de cicatrizes foi obtido a partir de interpretação e vetorização de imagens


orbitais de alta resolução espacial, em consórcio com expedições de campo em áreas de difícil acesso
e vegetação densa. Moradores locais auxiliaram a equipe de campo para a identificação das cicatrizes
nessas atividades. A busca sistemática pelas cicatrizes de movimentos de massa foi realizada com
auxílio do aplicativo Google Earth, em imagens do satélite GeoEye-1, de 18 de janeiro de 2012 e 12
maio de 2012. A busca foi realizada em direção às áreas de cabeceira de drenagem, seguido o rastro
de detritos facilmente identificados no fundo do Vale do Rio Fão. Desde 2017, a partir da pesquisa
inicial apresentada em Oliveira et al. (2017), acredita-se que esse evento pode ter contribuído para
potencializar a enxurrada a jusante.
Em relação à geometria dos deslizamentos, em campo, constatou-se que predominam cicatrizes
rasas, com profundidade normalmente inferior a 1 m. A largura média das cicatrizes é de 10 m, com
comprimento variando entre 50 e 400 m, de acordo com as particularidades de cada encosta e ponto
de ruptura. De modo geral, a ruptura ocorreu no terço superior dos morros, levando todos os detritos
para o fundo dos vales da região. Em geral, os deslizamentos ocorreram em encostas com declividade
média de 27°, com mais de 75% na faixa entre 20 e 40° (Oliveira et al., 2019). Considerando a
curvatura do terreno, 67% das amostras se localizam em áreas de relevo côncavo, que predominam
na primeira metade das encostas, mais próximo das linhas de drenagem (Oliveira et al., 2017).
Integrando com a curvatura horizontal, pode-se afirmar que a maior parte dos deslizamentos ocorreu
em formas de relevo côncavo-convergente, isto é, em encostas com formato de anfiteatro, com fluxo
convergente da água das chuvas. Por fim, em relação à orientação do terreno predominante, os
deslizamentos se concentram em vertentes sudeste (SE), sul (S) e sudoeste (SW). Essas vertentes
apresentam solos mais úmidos e vegetação mais densa, em função da menor quantidade de iluminação
ao longo do ano.
De acordo com o estudo apresentado por Oliveira et al. (2017), esses deslizamentos ocorreram
em um intervalo de tempo curto (o relato dos moradores locais indica isso), resultando em grande
acúmulo de detritos e formação de barreiras naturais nos vales fluviais da região, acumulando a água
escoada de montante. O barramento do rio se deu pelo solo, blocos de rochas e material vegetal
deslizado até o fundo dos vales. Algumas evidências apontam para áreas propícias para que isso tenha
ocorrido, onde o rio apresenta cotovelos e curvas com forte controle estrutural, o relevo possui
vertentes com curvatura horizontal convergente e curvatura vertical côncava, em forma de anfiteatro,
como mostramos na Figura 10.9. O barramento do rio deve ter sido provocado pelos detritos de solos
e rochas e material vegetal das árvores, que se acumularam em algumas curvas/cotovelos dos rios.
Esse tipo de fenômeno já foi relatado em publicações internacionais, sendo conhecido como Valley
Blocking Landslide. Inclusive, existem indícios de que o mesmo fenômeno ocorreu em outra área da
Serra Geral Gaúcha, no interior do município de Rolante e São Francisco de Paula, em 2017,
conforme o relatório apresentado pelo DRH/SADS (2017).

Figura 10.9 – Ilustração de áreas com ocorrência de deslizamentos em 2010. A: Localização das imagens;
B: Imagem aérea da curva acentuada e margens assimétricas; C: Visada no rumo norte da feição ilustrada;
D: Visada inclinada, obtida a partir do Google Earth. Fonte: Oliveira et al. (2018a).
Todas as evidências de campo, conforme entrevistas e relatos dos moradores, somadas à
modelagem hidrológica realizada por Da Cas (2015), apontam para o rompimento das barreiras
naturais que se formaram ao longo do Rio Fão e Arroio Teresa. Isso porque todos os moradores
mencionam uma grande “onda” no período da tarde do dia 04/01, após a ocorrência dos deslizamentos
a montante. Os moradores do Vale do Forqueta, nos municípios de Pouso Novo, Marques de Souza
e Travesseiro, relataram que o rio subiu de forma muito mais rápida que o normal, chegando a atingir
cotas nunca registradas pela população local. Em alguns pontos do Rio Fão, por exemplo, o nível de
enxurrada superou em 20 m o nível normal (baseado em observação de moradores), cinco metros
acima da maior enxurrada já observada até então.
No estudo de Da Cas (2015) foi realizada uma simulação hidrológica para estimativa de vazões
nos rios da região, considerando os índices de precipitação registrados em 2010. Porém, o autor não
considerou a possibilidade de acúmulo de água a montante e o rompimento das barreiras naturais,
calculando uma vazão máxima de, aproximadamente, 4.300 m3.s-1 em Marques de Souza. O valor
estimado equivale a uma enxurrada resultante de uma precipitação máxima com tempo de retorno de
30 anos, conforme Oliveira et al. (2017), o que não condiz com o observado na realidade. Isso reforça
ainda mais que possivelmente ocorreu um fenômeno hidrológico diferenciado, provável que
associado aos deslizamentos, corridas de detritos e acúmulo de material bloqueando o vale a
montante. Ao romperem as barreiras naturais, o resultado é uma rápida e violenta onda de enxurrada,
que provocou a destruição completa de duas grandes pontes, centenas de edificações, campings,
fábricas e indústrias, um cemitério (do distrito de Tamanduá, com 90% dos túmulos destruídos), entre
outras estruturas (Da Cas, 2015; Oliveira et al., 2018; GRUPO INDEPENDENTE, 2022).
Após os deslizamentos, o nível do Rio Forqueta chegou a subir em taxa superior a 1,1 m por
hora, causando estragos e desabrigando centenas de pessoas no vale. Na cidade de Marques de Souza,
as águas do rio Forqueta subiram rapidamente, não permitindo que os habitantes retirassem seus
pertences, nem resgatassem animais de estimação e rebanhos. As propriedades situadas em áreas
ribeirinhas, baseadas em agricultura e pecuária, foram parcialmente danificadas ou totalmente
destruídas. Em apenas uma instalação agropecuária, de criação de porcos, se perdeu um rebanho de
3.000 cabeças, resultando em prejuízo milionário para o produtor rural. Além disso, muitos campings
tiveram suas estruturas arrastadas pelas águas (três campings nunca foram recuperados, havendo a
desistência da atuação por parte dos proprietários). Ao todo, em torno de 100 famílias ficaram
desalojadas, muitas delas sendo retiradas dos telhados de suas residências pela Defesa Civil. Nos
campings da região, principal atividade de lazer local, pessoas foram resgatadas do alto de árvores
após mais de 10 h da ocorrência do desastre (GLOBO, 2010). A enxurrada sem precedentes causou
grandes prejuízos materiais para boa parte da população, ocasionando também a interrupção do
abastecimento de água e de energia elétrica na cidade. A BR-386, uma das principais rodovias do RS,
e que dá o acesso ao município de Marques de Souza, ficou submersa, com lâmina de água da
enxurrada em diversos pontos (Da Cas, 2015; Oliveira et al., 2017).
A Figura 10.10 ilustra o alcance da enxurrada ao longo dos vales dos rios Fão e Forqueta, tendo
como base os estudos de Oliveira et al. (2018a; 2018b). A estimativa é de que a área atingida pela
enxurrada seja de 106 km², considerando toda a área de drenagem do Rio Forqueta. A enxurrada que
ocorreu em 04/01/2010 é considerada a pior da história da cidade de Marques de Souza, tendo
inundado cerca de 60% do perímetro urbano, ultrapassando em estragos e nível de água a histórica
cheia de 1941 na localidade. Ao todo, aproximadamente, 2.500 pessoas foram afetadas diretamente
pelo evento, com 35 feridos ao longo dos vales do Fão e Forqueta. O total de danos e prejuízos é
estimado em, aproximadamente, R$ 75 milhões (BANCO MUNDIAL, 2020).
Durante o evento extremo, mesmo com a rapidez do processo hidrológico, a população, de
modo geral, conseguiu realizar a evacuação de suas casas, ainda que com grandes perdas materiais.
Como já relatado anteriormente, alguns tiveram que ser resgatados em árvores e sobre os telhados,
mas pronta atuação da Defesa Civil e bombeiros voluntários foi determinante para que a tragédia não
fosse maior. Evidente que alguns fatores aleatórios favoreceram o resultado relativamente positivo
em relação aos danos humanos: o evento ocorreu durante a semana, no final da tarde de uma segunda-
feira, por volta das 18 h. A comunidade local estava acordada e tinham poucas pessoas nos campings
da região, o que resultou em maior prontidão para a resposta rápida da população, mesmo sem um
adequado sistema de alerta instalado na bacia hidrográfica.

Figura 10.10 – Espacialização das áreas atingidas por enxurradas ou inundações no evento de 2010, com
indicação da estimativa da profundidade das águas. Destaque para os vales do Forqueta e do Taquari.

Passados mais de 10 anos do evento extremo, pode-se constatar que a comunidade local se
recuperou de forma rápida em relação aos estragos observados. Depois do episódio, foram instalados
sistemas automáticos de leitura do nível e acumulado de chuva em áreas estratégicas da Bacia do
Taquari-Antas, visando melhorar o monitoramento meteorológico e hidrológico da região. Mas, de
acordo com autoridades locais, ainda falta uma estratégia regional para prevenção e alerta de cheias.
Além disso, pouco tem sido observado em relação à atualização as diretrizes urbanísticas e
planos diretores. Essa medida seria fundamental para, pelo menos, evitar novos loteamentos em áreas
suscetíveis (que já são conhecidas, a partir de diversos estudos que se desdobraram após o evento
extremo). Essa fase, que envolve o planejamento urbano e reorganização das funções das cidades, é
a que necessita de maior atenção no presente e futuro, por parte dos gestores locais, especialmente,
porque a velocidade das águas dificulta a efetividade de qualquer sistema de alerta. O desastre de
2010 deixou essa como uma lição, da importância de considerar no zoneamento urbanístico as áreas
suscetíveis e/ou de perigo, impondo restrições e/ou condicionantes adequadas para a segurança dos
moradores.
Por fim, cabe destacar que desastres como este aqui relatado e descrito, acabam por motivar
pesquisadores a desenvolver estudos que, de alguma forma, contribuem para o melhor conhecimento
dos processos hidrológicos da bacia, alguns deles, citados anteriormente neste capítulo (exemplos:
Da Cas, 2015; Oliveira et al., 2017; Oliveira et al., 2018a; Oliveira et al., 2019). Além dos já
mencionados, pode-se citar os estudos de: Santos (2015), que realizou o zoneamento das áreas
suscetíveis a movimentos de massa, enxurradas e inundações no município de Marques de Souza;
Flores (2018), que desenvolveu uma modelagem e análise das áreas suscetíveis a movimentos de
massa na bacia hidrográfica do rio Fão, a partir de Redes Neurais Artificiais; Bald (2018), que avaliou
a vulnerabilidade e os riscos a inundações e enxurradas na bacia hidrográfica do Rio Forqueta. Todas
essas pesquisas foram fundamentais para a produção de conhecimento, que poderá, em breve, auxiliar
na tomada de decisões para a redução dos riscos à ocorrência de desastres na área de interesse.

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