Você está na página 1de 11

TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

PATOLOGIZAÇÃO DA NORMALIDADE & INDIVÍDUOS SOMÁTICOS

Ana Laura Bueno 1


Raquel Rosa do Vale 2
Renata Cunha Castro Okiyama³

RESUMO

De acordo com Nikolas Rose (2007), que vem se colocando como grande seguidor de Foucault e se faz forte desde a
primeira metade do século XX, uma das formas de se entender a subjetividade humana, visto que “especialmente no
contexto das sociedades liberais avançadas, era considerando nossos ‘eu interiores’ como amplos e profundos territórios
com áreas inacessíveis à consciência. Mesmo parcialmente, seria a biologia humana, por meio dos vocábulos veiculados
pela biomedicina, que nos traria elementos para nossa construção de individualidade, organizando identidades, juízos e
ações.” Assim estaria instaurado uma mescla de discursos oficiais de promoção de saúde, advindas da facilidade de
difundir essa comunicação por meios da mídia, fazendo situações de adoecimento e sofrimento, e também efeitos
psicológicos e físicos de práticas de aptidão física, hábitos alimentares, alterações cirúrgicas, inscrições/perfurações
corporais, uso de drogas lícitas e ilícitas etc., serem rapidamente difundidos. Em suma, surgiria uma ética biopolítica
sustentada por práticas mediante as quais os humanos julgam e agem com ponderação servindo de intermediário na
reflexivamente para seu autogoverno, procurando também modelar preventivamente o futuro em uma economia pessoal
ligada perfeitamente à economia globalizada. A elaboração sobre uma determinada ampliação da psiquiatria que se separa
do terreno ‘psi’ e se vincula vigorosamente ao campo ‘bio’, sustentando a normatização via medicalização e patologização
do que antes seria pertencente ao campo da variabilidade humana. Rose (2007) se propõe, com ousadia, a estabelecer
um momento de ‘viragem psibio’, o que teria ocorrido entre 1987 e 1996. Sandra mostra muito bem a evolução do conceito
de degeneração que serve de sopro de inspiração para as teorias biopsiquiátricas atuais. A psiquiatria biológica não mais
separa transtornos orgânicos e funcionais, nem mente e psiquismo. As manifestações comportamentais têm origem mental
e ocorreriam em razão de desajustes e alterações de elementos descritos como estruturas cerebrais orgânicas. Assim, há
muitos vetores culturais e matrizes discursivas que fazem com que nos consideremos como pessoas passíveis de sofrer
desequilíbrios humorais nos fluxos de nossos neurotransmissores – o que podemos melhorar com acompanhamento
clínico empregando psicofármacos devidamente receitados por especialistas.

PALAVRAS-CHAVE
Medicalização, patologização, evolução, asilo, adoecimento, normatização

INTRODUÇÃO
Ao começar uma busca pelo tema trabalhado: Medicalização, nos deparamos com Sandra Caponi,
que muito nos representa em um olhar de herança mórbida sobre a degeneração e emergências na
psiquiatria ampliada, retrocedendo ainda hoje ao tratamento moral, consolidando uma pratica de
saberes que muito se oferece: ‘Rivotril com suco de abacaxi e hortelã.
Esse último nos trouxe para mais perto uma leitura integra sobre a sua obra: Loucos e degenerados:
uma genealogia da psiquiatria ampliada. Que traz grandes críticas e um olhar apurado na discussão
sobre o uso de psicofarmacos, sua história de construção medica como proposta de cura,
mencionando chistes, falas de colegas que com ironia e bom humor, apregoavam-se as ‘delicias’ de
se desfrutar do uso de tranquilizantes como ‘antídotos’ diante de muitos estresses da vida cotidiana
contemporânea. E assim diante dos teores argumentativos trazidos pelo livro, vale muito esquematizar
uma complexa questão dos modos coo se encara a subjetividade do ser humano diante de tão

1
Graduanda. Curso de Psicologia do Centro Universitário de Anápolis - UniEVANGÉLICA. E-mail laura.buenopsi@gmail.com
2
Graduanda. Curso de Psicologia do Centro Universitário de Anápolis - UniEVANGÉLICA. E-mail raquel.vale@aluno.unievangelica.edu.br
³ Graduanda. Curso de Psicologia do Centro Universitário de Anápolis - UniEVANGÉLICA. E-mail reccastroo@gmail.com

1
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

episódio vivenciado em suas próprias vidas, acreditando serem os protagonistas de uma liberdade
que por outrora se faz por marionetes em um contexto psicofarmacos e saberes advindo de uma
dominação muitas vezes do poder pelo poder. E as vítimas sempre em situações precárias laboral,
convivendo com a ameaça permanente de receberem o diagnóstico de transtorno, anomalias menores
e por vez patologias mentais que são argumento maior para se intervir nos pequenos desvios de
conduta, esses problemas receberão explicações biológicas, como déficit nos neurotransmissores ou
problemas hereditários, sendo a indicação terapêutica predominante a prescrição de medicamentos
psicotrópicos.
Essa reflexão se faz pertinente sobre essa realidade da sociedade contemporânea, considerando
como natural e evidente os fatos, e ter o uso do recuo histórico que nos leva até o ano de 1857 é de
grande relevância e forma de elucidar o assunto.

O TRATAMENTO MORAL E O PODER DISCIPLINAR:

Pinel discute as antigas estratégias de tratamento utilizadas nos asilos psiquiátricos, considerando-as
obsoletas e desnecessárias. Enfatiza a importância de libertar os pacientes das correntes, com base
em estudos empíricos realizados em Salpêtrière, que demonstram a eficácia dessa prática em certos
casos. Pinel define um plano geral para a distribuição dos espaços no asilo, detalha os meios de
repressão admitidos e os diferentes métodos para restabelecer as regras que foram desrespeitadas.
Além disso, ele descreve os cuidados necessários na distribuição e preparação dos alimentos, assim
como a realização de exercícios físicos e trabalhos mecânicos. O tratamento moral exige uma
reorganização interna do espaço asilar, com a distribuição cuidadosa dos diferentes tipos de pacientes
e definição de tempos específicos para as atividades e tratamentos, levando em consideração cada
tipo de doença. As regras são protegidas e cada estratégia disciplinar busca contrastar a loucura com
a racionalidade e o equilíbrio, representada pelo conhecimento médico. Essa abordagem define o
modelo que deve ser internalizado por meio da ortopedia moral nos asilos.

O controle do tempo também é enfatizado, com atividades e tratamentos específicos designados para
cada tipo de doença. As regras são protegidas de antemão, com o objetivo de contrapor a loucura à
racionalidade e à moderação representadas pelo conhecimento médico. Esse modelo de ortopedia
moral governa os asilos, buscando a recuperação dos pacientes.

Michel Foucault, em "O Poder Psiquiátrico", destaca a semelhança entre as estruturas dessas
instituições. No entanto, Pinel, um dos principais representantes da psiquiatria, enfatiza a importância
de identificar os momentos de lucidez presentes na loucura, pois é a partir desses momentos que se
pode iniciar uma intervenção terapêutica.

2
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

Pinel entende o tratamento moral como a criação de estratégias para dominar as paixões e recuperar
a razão, buscando a restituição da normalidade perdida para alcançar a liberdade. Nesse contexto
disciplinar, o fechamento do asilo encontra sua justificativa e razão de ser. No entanto, é importante
questionar a especificidade desse poder disciplinar que não se refira apenas aos corpos, mas também
impedir a existência de diagnósticos diferenciais. A psiquiatria de Pinel se limita a distribuir
binariamente loucura e normalidade, decidindo quem deve ser internado no asilo e quem deve
permanecer fora de seus muros. A figura do médico continua sendo a autoridade dominante na gestão
e normalização dos comportamentos dentro do asilo psiquiátrico.

A MEDICALIZAÇÃO DOS DESVIOS

Pouco a pouco, serão deixados de lado os problemas que eram centrais para a psiquiatria clássica.
Saber se o paciente tem alucinações, escuta vozes, imagina ser UMA pessoa que não é, confunde
realidade com fantasia, ou fazer com que o paciente.

Reconheça sua própria loucura deixarão de ser as questões articuladoras do saber e do poder
psiquiátrico. A teoria da degeneração permite que os pequenos desvios de conduta, os estigmas
físicos ou psíquicos e, em menor medida, os delírios insignificantes se transformem em signos
anunciadores de alienação mental. O tratamento era sempre o internamento psiquiátrico; não existiam
diferenças entre aquele indivíduo que consegue levar uma vida familiar e de trabalho, mas não pode
dominar a compulsão em enunciar certas palavras, a mulher que escolhe alimentar-se exclusivamente
de comida vegetariana para evitar a violência contra os animais, e o indivíduo que sofre alucinações
e que a psiquiatria clássica caracterizaria como um quadro psicótico.

Sobre essa identificação entre condutas cotidianas e patologia psiquiátrica foram se construindo as
bases epistemológicas da psiquiatria moderna.

No entanto, a degeneração não desaparece simplesmente do âmbito da psiquiatria; ela sofre


transformações, adota novos nomes, impulsiona novas estratégias de ação, mas deixa marcas
indeléveis na história da psiquiatria.

Seja com o nome de desequilíbrios, seja com o de predisposições hereditárias ou de configurações


patológicas, a psiquiatria continuará interessada em desvendar os mesmos segredos que alentaram
o programa de pesquisa das degenerações: a relação entre patologias psiquiátricas e herança
mórbida, a construção de uma psiquiatria preventiva atenta ao caráter evolutivo das patologias e a
busca pela localização cerebral de sofrimentos psíquicos

3
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

A teoria da degeneração foi alvo de diversos questionamentos que destacavam a abusiva extensão
das alienações mentais a partir da introdução das patologias de degeneração. Charpentier advertia
em 1885 para as consequências de se aceitar, sem questionamentos, uma classificação de doenças
mentais que incluía as doenças heredodegenerativas.

Para ele, a teoria da degeneração ou das patologias heredodegenerativas permite uma extensão
abusiva do domínio da psiquiatria, possibilita criar um grupo indefinido de ‘loucuras disparatadas’.
Nessa lógica classificatória, cada conduta, gesto, tique passará a ser indicativo de uma síndrome,
resultando impossível diferenciar um adolescente melancólico, pela influência da leitura de romances,
das aberrações sexuais monstruosas cometidas por um psicótico (apud Magnan, 1893). A teoria da
degeneração permite e legitima a existência de fronteiras difusas entre o normal e o patológico,
possibilita a ingerência do saber médico nos pequenos medos e angústias cotidianas, nos estados de
tristeza, nas situações de dúvida, enfim, nos pequenos desequilíbrios cotidianos.

Tanto na teoria da degeneração quanto na classificação de Kraepelin ou na psiquiatria atual, existem


fronteiras difusas entre o normal e o patológico, possibilitando a ingerência da psiquiatria em todos os
assuntos humanos.

A psiquiatria, a partir da teoria da degeneração, tenderá a observar as patologias mentais em uma


perspectiva temporal e evolutiva, tornando-se preventiva, o que significa que os pequenos gestos e
desvios de conduta passam a ser vistos como signos anunciadores de alienação mental.

OLHAR RESOLUTIVO

Quando se diz do ‘tratamento moral’ de Pinel e Esquirol (Ackerknecht, 1982) se era percebido como
insuficiente para trazer um olhar resolutivo para os problemas dessa população adoecida na alienação
que por vez se multiplicava assustadoramente. E isso fazia aparecer grandes queixas sobre os
parâmetros e um consenso sobre o melhor método de classificação das patologias mentais da
orgânicas, onde se tinham afirmações das lesões no corpo. Trazendo ao proposta de Pinel dos modos
diferentes de se manifestar a doença mental, advindo do clima, lugar, começa a dar lugar a quatro
classes fundamentais de alienação: “a mania, a melancolia, o idiotismo e a demência. Seguindo essa
mesma concepção de doença mental, Esquirol ampliou o quadro nosológico de alienações,
diferenciando mania, tristeza, monomania, idiotismo e demência. Embora estas fossem as
classificações mais utilizadas, na realidade correspondiam a diferentes modos de aparição de uma
mesma patologia, a alienação mental. Em consequência, todas essas manifestações podiam ser

4
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

tratadas do mesmo modo. Perante uma mesma enfermidade, impunha-se uma mesma terapêutica: o
tratamento moral (Lantéri-Laura, 1999).”

Cabanis traz seu estudo dedicado ao desenvolvimento dos órgãos, dos sentimentos e das paixões
humanas, afirmando: “desse relatório resulta claramente que a fisiologia (medicina), o estudo das
ideias (do pensamento) e da moral (comportamentos) são três ramos indissoluvelmente unidos de
uma mesma ciência que pode chamar-se, a justo título, a ciência do homem” (Cabanis, 1802: 47).

Com essa simples afirmação enormes consequências começaram a se instaurar, não só para o
pensamento médico, mas também para o modo como, por séculos, foram pensadas as condutas
humanas em termos de normalidade ou desvio patológico. Onde se considera as influencias exercidas
sobre o comportamento originários e adquiridos, apontando-se relação do organismo com as
modificação externas. Fazendo com que a temática da degeneração abandonasse o seu espaço da
história natural e agora ingressando em um discurso de domínio dos saberes medico e da psiquiatria.
Em oposição aos defensores do que mais tarde se chamará poligenismo, Cabanis (1802: 424) dirá:
“Eu não compartilho essa opinião de Buffon, seu entendimento das variedades que os homens
apresentam nos diferentes climas como sendo acidentais, como obra dessas próprias condições
climáticas, me parece muito mais apropriado”.

HUMANOS SÃO MODELADOS

A afirmação de Cabanis “o físico e o moral se confundem em seu início, ou, para melhor dizê-lo, a
moral não é mais que o físico considerado sob certo ponto de vista particular” (Cabanis, 1802: 78),
trazendo a complexidade do ser humano e as modelagens que sofrem tanto por meio internos como
externos, começam a delinear uma união sobre a sensibilidade, fazendo necessário a compreensão
das operações que ocorrem no interior dos corpos e as operação que a anatomia e patologia
finalmente conseguem explicar.

Encontrar na natureza o perfeito estado de equilíbrio não é uma tarefa simples; ao contrário, é um
objetivo a ser conquistado por meio de um regime apropriado e da aplicação das ideias dos higienistas.
Essa justa proporção não está fixada de uma vez por todas, “ela flutua entre certos limites, que é
proibido ultrapassar, e o termo médio que, segundo nosso modo de ver, se considera o mais
conveniente, entretanto, raramente será atingido” (Cabanis, 1802: 276).

Segundo Cabanis as alterações que variam entre o frenesi, o delírio passageiro ou a loucura
duradoura, seria como a ralação da doença e amoralidade em determos as mudanças do
comportamento produzindo assim algumas patologias particulares, porém não é simples restituir a
normalidade e o equilíbrio de um órgão quando esse já se degeneram. Fazendo determinante o órgão

5
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

principal, que rege o sistema nervoso, o cérebro, que determinam não só os pensamentos, mas toda
a vontade, os comportamentos e temperamentos, trazendo as patologias morais com base nas
impressões externas, relacionados os órgãos sensoriais vinculados na sensibilidade.

Sendo as semelhanças entre várias pessoas o resultado dos fatores externos perseverarem,
perpetuando os hábitos adquiridos do mesmo modo que se transmite as enfermidades hereditárias.
Essa será a tarefa da medicina e também a da higiene: descobrir e fixar as leis que atuaram sobre um
órgão (prioritariamente o cérebro), ou sobre um conjunto de órgãos, possibilitando que ocorresse certo
tipo de desordem intelectual. Então poderá determinar qual é o melhor modo de proceder para reverter
ou curar essa desordem. “É tempo de seguir um sistema mais digno para esta época de ‘regeneração’;
é tempo de fazer conosco o que temos feito com nossos companheiros de existência, ousar revisar e
corrigir a obra da natureza” (Cabanis, 1802: 298).

SONHOS APARENTEMENTE CONTRADITÓRIOS

Com Cabanis nasce esse modo de pensar que irá abrigar os sonhos aparentemente contraditórios,
imaginando poder encontrar no mau funcionamento de nosso organismo, particularmente de nosso
cérebro, a explicação precisa para cada um de nossos atos. Em outro movimento, sonha com a
regeneração moral de indivíduos, povos e raças pela mediação de princípios higiênicos aplicados ao
meio externo. Essas duas tradições, que de um ou outro modo permanecem, compartilham com
Cabanis a crença ingênua em um saber médico capaz de se transformar na abordagem privilegiada
e exclusiva para a resolução de nossos conflitos morais.

“Um espécime de degeneração da espécie humana, um exemplo de desvio malsão do tipo normal da
humanidade” (Morel, 1857: 47). Agora é possível apreciar os efeitos devastadores dessa
‘concentração de degenerados’, alienados que oram colocados nos asilos com um certificado de
maníaco, de epilético, de demente com paralisia, de idiota ou de imbecil, o produto das causas dessa
degeneração evidente, reflexo muitas vezes das condições degradadas que o excesso de álcool, a
miséria, as privações, as profissionais insalubres e as condições morais degradadas deixaram nos
corpos dos indivíduos e em suas descendências. Segundo Morel (1857: 78), só é possível
compreender a existência dessa “massa enorme de seres incuráveis confinados nos asilos” se
entendermos que eles são o último elo, o mais degradado, da cadeia de degenerações que marcou
uma família.

Para cada um dos habitantes dos asilos, é possível rastrear as causas predisponentes e as causas
determinantes, podendo ser observadas as lesões cerebrais (por necropsias) e as relacionar com

6
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

dificuldades intelectuais ou morais, identificando marcas ou estigmas físicos semelhantes para cada
classe. Mas, ainda assim, dificilmente será possível falar de cura ou recuperação. Os asilos albergam
sujeitos condenados, marcados por um sistema ou uma opressão de poder sobre esses que outrora
nem pertenciam a esse lugar, ou foram tirados o direito de melhora pelos tratamentos negados ou
subjugados a todos.

PROFILAXIA

E agora todas essas figuras se fazem um grande conjunto destinado a tratamento terapêutico aplicada
nos asilos, chamada de ‘profilaxia’. Mesmo sido mostrado a limitação desse ambiente como espaço
de cura, se faz uma utilidade terapêutica para o entorno social do doente, permitindo a realização de
uma ‘profilaxia defensiva’, onde os asilos possibilitam também a realização de uma ‘profilaxia
preventiva’, podendo modificas as condições intelectuais, físicas e morais dos indivíduos que foram
de alguma maneira separados do resto dos homens. Antes de reenviá-los a seu meio social, a
instituição deve armá-los, por assim dizer, contra eles mesmos, com a finalidade de atenuar as
reincidências. (Morel, 1857: 691)

A morte de Morel, em 1873, marca o início de uma profunda confrontação no âmbito da psiquiatria. Os
debates se multiplicam em torno do problema da classificação das doenças mentais, particularmente
acerca de uma das categorias propostas por Morel, as chamadas ‘loucuras de degeneração’.

DEGENERAÇÕES HEREDITÁRIAS

Magnan analisa as consequências mentais do abuso de álcool, os delírios provocados pelo consumo
excessivo, e apresenta estudos estatísticos dos alienados internos nos asilos, indicando a quantidade
de alcoólatras que se encontram nessas instituições. A partir de 1882, Magnan se dedicará ao estudo
das perversões sexuais, quadro sindrômico variado que faz parte do grupo das degenerações
hereditárias. Surge assim uma série de síndromes bizarras, como o onanismo, a pederastia, a
sodomia, o fetichismo, a necrofilia, a gerontofilia, dentre outras.

Nas últimas décadas do século XIX, a psiquiatria estará fortemente influenciada por essa nova
representação das patologias que se refere às degenerações hereditárias. Surge uma imensa
diversidade de estudos preocupados em esclarecer e descobrir novas síndromes e estigmas físicos e
psíquicos. Ian esclarecer e descobrir novas síndromes e estigmas físicos e psíquicos. Ian Hacking
(2000) dirá que nesse momento se inicia um verdadeiro ‘programa de pesquisa’ frutífero, capaz de
concentrar os esforços de médicos, higienistas, juristas e psiquiatras que compartilhavam uma mesma

7
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

preocupação: a de ampliar a abrangência e os limites da medicina mental. Foucault entende que “a


degeneração é a peça teórica maior que permite a medicalização do anormal. O degenerado é o
anormal miticamente – ou, se preferirem, cientificamente – medicalizado” (Foucault, 1999: 298).

Enquanto Pinel pretendia normalizar o comportamento dos alienados pela disciplinarização do espaço
asilar, os degeneracionistas inauguram uma biopolítica das populações referente à gestão de
comportamentos e à antecipação de patologias mentais graves. A psiquiatria do século XX sentirá de
se afastar das ideias eugênicas, deterministas e conservadoras associadas ao conceito de
degeneração. A psiquiatria já não aceitará interferir sobre os comportamentos de povos e raças, como
pretenderam os teóricos da degeneração.

PRODUÇÃO DE PSICOFÁRMACOS X PRODUÇÃO DE ESCUTA ATIVA

Canguilhem mostra como essa paixão localizacionista atravessou saberes e discursos, incluindo
alguns trabalhos iniciais de Freud, como, por exemplo, o artigo “Cérebro”, publicado em 1888. É
verdade que será o próprio Freud quem iniciará uma demolidora crítica a essa concepção
localizacionista poucos anos mais tarde. Em 1915, o psicanalista escreve: “todas as tentativas de
encontrar na localização cerebral o lugar dos processos psíquicos, todos os esforços por entender as
representações como inscritas nas células nervosas, fracassaram radicalmente” (Freud apud
Canguilhem, 1993: 15).

Kant sugere que a saúde é um objeto alheio ao campo do saber objetivo, e é com base nesse
enunciado que Canguilhem pode sustentar sua tese de que “não há ciência da saúde”. A saúde, dirá
ele, “não é um conceito científico, é um conceito vulgar (doxa). Isto não quer dizer trivial, mas
simplesmente comum, ao alcance de todos” (Canguilhem, 1999b: 14).

Meu médico é aquele que aceita, de um modo geral, que eu o instrua sobre isso que somente eu
estou capacitado para dizer, isto é, aquilo que meu corpo me enuncia através de sintomas que para
mim não são claros. Meu médico é aquele que aceita que veja nele um exegeta e não um reparador.
A definição de saúde, que inclui a referência da vida orgânica à experiência do prazer e da dor,
introduz sub-repticiamente o conceito de corpo subjetivo na definição de um estado que o discurso
médico acredita que é possível descrever em terceira pessoa. (Miller, 2009: 4)

Miller diz nessa passagem que Canguilhem aproxima as figuras do médico e do psicanalista,
destacando a existência de um elemento de transferência quando o indivíduo é escutado, quando o
médico se transforma em um leitor de sintomas, independentemente de serem eles orgânicos ou
psíquicos.

8
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

Contudo, Canguilhem manifestava certas esperanças nos psicotrópicos para controlar os sofrimentos,
criticava as denúncias da antipsiquiatria contra a chamada ‘camisa de força química’, considerava
necessário reconhecer que os fármacos podem, em certos casos, aliviar ou atenuar problemas
metabólicos por sua ação sobre os neurotransmissores. No entanto, também assinalava que já era
possível prever excessos na vulgarização dos potenciais benefícios dos psicotrópicos.

Porque “falar é significar, dar a entender” (Canguilhem, 1993: 27). Pensar é viver em uma rede de
sentidos, é viver em ‘relação a’ outros, e isso não é idêntico a estabelecer relações entre dados, como
o fazem as máquinas. A palavra remete ao pensamento, e este a um sujeito que está em um meio
que é o seu. Um meio que lhe apresenta desafios a enfrentar, que o conecta com sua história e sua
memória passada, que lhe oferece expectativas e possibilidades. Um sujeito com vontade e
capacidade reflexiva para julgar. O pensamento não é uma função puramente cerebral, não é nem um
produto biológico, nem é uma interação mecânica; é, fundamentalmente, capacidade de invenção,
criação de novos modos de fundamentalmente, capacidade de invenção, criação de novos modos de
interatuar com o mundo.

Cerca de trinta anos atrás, Canguilhem ironizava o extremismo a que chegavam os vulgarizadores
que prometiam soluções mágicas para potencializar nossas funções mentais ou morais. Agora não há
mais lugar para ironias, esse extremismo já não é exclusivo apenas dos vulgarizadores, mas o é
também dos pesquisadores, da indústria farmacêutica e, igualmente, do próprio campo da saúde. A
débil linha que separa sofrimentos normais de patologias, competências saúde. A débil linha que
separa sofrimentos normais de patologias, competências cognitivas de déficit de atenção, é o que
permitiu a ampliação da prescrição e do uso de psicotrópicos em níveis antes inimagináveis (Pignarre,
2001; Guimarães, 2009).

CONCLUSÃO

Para os teóricos da degeneração, as características da alienação mental definidas por Pinel, como as
ideias delirantes, as alucinações, os comportamentos violentos ou as paixões descontroladas,
limitavam-se a descrever uma ínfima parte daquilo que deveria ser considerado objeto da psiquiatria.
Para Morel ou Magnan, os alienados que habitam o asilo psiquiátrico não são mais que o último nível
que pode alcançar a sucessão progressiva de degenerações. Ao contrário de Pinel, eles consideravam
esses sujeitos como incuráveis, dado o avançado estado atingido pela degeneração. Por essa razão,
os degeneracionistas concentraram seus esforços em definir e classificar pequenos desvios de
comportamento ou anomalias, considerados anunciadores de quadros patológicos graves e

9
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

irreversíveis (hoje falaríamos de ‘comportamentos de risco’). Ali poderia ser aguardado esse momento
de lucidez que existe em toda loucura para, pouco a pouco, iniciar um ‘tratamento moral’ capaz de
conter as paixões, dominar a vontade e recuperar o entendimento.

Os textos de Kraepelin dão origem a diversas linhas de pesquisa que se mantêm mais ou menos
inalteradas até nossos dias. A metodologia de pesquisa dos transtornos mentais por ele inaugurada
inclui um novo modo de classificar as patologias psiquiátricas; um interesse em aprofundar os estudos
de anatomopatologia cerebral; a multiplicação de dados estatísticos comparativos entre diferentes
populações e regiões, que é denominada ‘psiquiatria comparativa’ (Pereira, 2009); e, por fim, estudos
dedicados à hereditariedade das mais variadas perturbações de caráter.

Assim, ao contrário das esperanças depositadas por Morel nas estratégias dos higienistas, para
Kraepelin os programas de assistência social deixam de ser aliados para se converterem em um
obstáculo para a psiquiatria preventiva. Desse modo, o fantasma da herança mórbida e da
degeneração deixa suas marcas nessa ‘ciência da saúde mental pública’ capaz de legitimar
intervenções no tecido social, antecipando desvios e patologias. Essa antecipação dos desvios é
possível porque, como Foucault soube mostrar, a degeneração é a peça teórica maior que possibilita
a medicalização de comportamentos e anomalias sociais.

Como afirma Canguilhem (1993) no início de seu texto, parece que o modo como pensamos deixou
de ser uma questão puramente teórica ou filosófica. Pouco a pouco, diversos ‘poderes’ têm se
proposto a tarefa de entender e administrar essas faculdades humanas, que são o pensamento, a
capacidade de decisão ou o modo como realizamos nossas eleições. Entre esses saberes e poderes
estão as neurociências, além da psicologia do comportamento, da informática e da produção de
psicofármacos.

E hoje o que vemos é uma busca incessante de saberes querendo a cura e pouco se dando a devida
observação necessária, os campos se unindo e não querendo perder seu lugar de poder, de maneira
perversa escolhendo ainda quem é merecedor de sua liberdade no processo de saúde, mesmo esse,
não tendo direito de escolha, sendo subposto a ‘sugestões’ ainda cercada de julgamentos e decisões
alheias as suas.

REFERÊNCIAS
Caponi, S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2012. ISBN 978-85-7541-334-0. Available from SciELO Books .

10
TRABALHO INTERDISCIPLINAR 2023_1

11

Você também pode gostar