Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
São Paulo
Agosto/2019
Copyright 2019 Fernando Augusto De Vita Borges de Sales
Autor de várias obras na área jurídica, incluindo os livros CPC comentado artigo por
artigo (na 3ª edição), Manual de direito processual civil (na 2ª edição) e Código de
Processo Civil anotado e interpretado conforme a doutrina e a jurisprudência, pela
editora Rideel; Desconsideração da personalidade jurídica e Juizados especiais cíveis,
pela editora JHMizuno; Direito do trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do
TST comentadas, pela Editora LTr; Direito empresarial contemporâneo e Direito
ambiental empresarial, ambos pela Editora Rumo Legal.
Contatos:
email: professorfernandosales2@gmail.com
instagram: Fernando_augusto_sales.
RESUMO
O presente ensaio pretende fazer uma análise das mudanças havidas no direito civil entre
o Código Civil de 1916 e o Código de 2002, especialmente em face da Constituição Federal
de 1988 e da mudança no paradigma do Estado brasileiro, especialmente no que se refere
à transição do Estado liberal puro para o Estado social, ou do liberalismo social, com uma
breve análise histórica dos fatos mais importantes ocorridos nesse período e que foram
fundamentais, relevantes e determinantes para a mudança observada.
Introdução
8. Conclusão.
Bibliografia
O Código Civil de 2002 e a função social do direito privado.
INTRODUÇÃO.
Analisar essa passagem, do Código de 1916 para o de 2002, tendo como marco a
Constituição Federal de 1988 é a pretensão desse pequeno ensaio. Para tanto, buscamos
fazer uma breve análise histórica dos fatos mais importantes, relevantes e determinantes
dessa transição, procurando entender melhor, ao final, a transformação do direito
privado no Brasil.
1. A ERA DAS REVOLUÇÕES E A ASSUNÇÃO DO ESTADO LIBERAL SE CONTRAPONDO
AO ESTADO TOTALITÁRIO.
1Conforme explica Eric J. Hobsbawm, “com exceção da Grã-Bretanha, que fizera sua revolução no século
XVII, e alguns Estados menores, as monarquias absolutas reinavam em todos os Estados em funcionamento
no continente europeu...” (A era das revoluções, vol. I, p. 50).
2 Segundo João Antunes dos Santos Neto, “sem embargos da incipiente democracia dos povos da
Antiguidade, esta realidade, em determinado momento da Idade Média, chegou a experimentar mesmo uma
forte retração, com a centralização de poderes nas mãos dos regentes, soberanos dos Estados totalitários
que se formaram na era das sombras...” (O impacto dos direitos humanos fundamentais no direito
administrativo, p. 119).
33 “O feudalismo foi o sistema socioeconômico que precedeu o capitalismo na Europa Ocidental. Toda
organização medieval baseava-se em um sistema de serviços e obrigações mútuos, envolvendo toda a
hierarquia feudal. Não havia leis como conhecemos hoje sendo a relações sociais governadas pelos costumes
vigentes no feudo. A posse ou uso da terra pressupunha certos serviços ou pagamentos costumeiros, em
troca de proteção. O senhor era tão obrigado a proteger o servo quanto esse era a lhe pagar, em troca, com
uma porção de sua colheita ou com sua força de trabalho. A instituição econômica básica era o feudo, que
tinha duas classes distintas: senhores e servos” (Vanessa Boarati, Economia para o direito, p. 18).
4 “Em verdade, toda a Idade Média, com sua organização feudal levantada sobre as ruínas do Império
Romano, vira em certa maneira arrefecer a concepção de Estado. Pelo menos do Estado no sentido de
instituição materialmente concentradora de coerção, apta a estampar a unidade de um sistema de plenitude
normativa e eficácia absoluta” (Paulo Bonavides, Teoria do estado, p. 32).
5 Nesse sentido, é a informação de Maria Lúcia A. Aranha (Maquiavel: a lógica da força, p. 16).
vontade6. Os súditos, por sua vez, em troca dessa liberdade tolhida, colocavam nas mãos
do soberano o destino de sua vida e segurança, preservando sua existência e
conservação7.
Convém lembrar que, bem antes da Revolução Francesa eclodir, o pensador inglês
Adam Smith já havia observado, em 1776, que o mercado deveria ficar livre da ingerência
do Estado para poder se desenvolver de maneira eficaz9. O liberalismo de Adam Smith
assenta-se na premissa de que uma vez que o interesse individual coincide com o
interesse geral, deve-se, na prática, deixar plena liberdade de ação aos interesses
privados10, eis que a não regulamentação das atividades individuais no campo
6 Nas palavras de Maquiavel: “Para melhor esclarecer esta minha ideia, julgo ter a capacidade de se defender,
por si mesmos, os príncipes que tenham à disposição suficientes homens armados e dinheiro para formar
um exército e enfrentar quem os queira atacar” (O príncipe, p. 99).
7Paulo Bonavides afirma: “... havia um preço a pagar pelas garantias que seriam auferidas. Consistia ele na
alienação de todas as liberdades, trasladadas ao Estado, senhor absoluto da vida e comportamentos
humanos, pelo menos segundo a tese implícita nessa singular doutrina com que a razão buscou edificar o
Estado Moderno. O homem perdia a liberdade, mas ganhava, em troca, a certeza da conservação” (Teoria do
estado, p. 37).
8 “O absolutismo do chamado Estado de Polícia, formado pelas ideias de que the king can do no wrong ou le
roi ne peut mal faire, afirmava-se no princípio que consagrava a máxima quod regi placuit lex est. Em um
primeiro momento, leva-se a crer que, naquele modelo de organização, em que o próprio Estado se
confundia coma figura do soberano, não havia a mínima possibilidade de se falar em respeito aos direitos
individuais ou em mecanismos de controle de atividade estatal...” (João Antunes dos Santos Neto, O impacto
dos direitos humanos fundamentais no direito administrativo, p. 119).
9 “Ainda que o preço que lhe dá esse proveito não é sempre o mais baixo pelo qual o negociante pode algumas
vezes vender as suas mercadorias, contudo é o mais baixo que é provável poder vendê-las por algum tempo
considerável, ao menos assim o seria onde houvesse perfeita Liberdade e cada qual pudesse mudar o seu
negócio quantas vezes entendesse conveniente” (A riqueza das nações, p. 94).
10 Cf. Paul Hugon, História das doutrinas econômicas, p. 110.
socioeconômico produziria os melhores resultados na busca do progresso e do
desenvolvimento econômico.
11 Cf. Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito ambiental empresarial, pp. 54-55.
12“Sob o aspecto político, a aliança entre reis e burgueses levará à consolidação das monarquias nacionais,
fundadas na unidade do território, povo e governo. Do século XVI ao XVIII, a legitimação da soberania
monárquica justifica o absolutismo real” (Maria Lúcia A. Aranha, Maquiavel: a lógica da força, p. 17).
13Isso vai ser consolidado, após a Revolução Francesa, na coroação de Napoleão Bonaparte, onde ele toma
a coroa das mãos do Papa Pio VII, se auto coroando. Esse ato simbólico demonstra a não submissão do
imperador à igreja.
14Conforme pudemos expor em outra obra, “as origens da sociedade anônima remontam à Idade Média, na
época em que os países da Europa (especialmente Portugal, Espanha e Holanda) promoviam uma verdadeira
corrida às Índias em busca de especiarias. Como os custos dessas viagens eram muito altos, os governos
buscavam parceria no setor privado (normalmente com ricos banqueiros, em forma de sociedade em
comandita simples) para financiá-la e dividir o lucro. Eram altos investimentos para uma só pessoa suportar,
e o governo Holandês, tendo dificuldade para encontrar alguém disposto a isso em razão do risco e da
incerteza do retorno financeiro, teve uma ideia brilhante: arranjar centenas – ou milhares – de pequenos
investidores, que investiriam pouco dinheiro, limitando, assim, o risco de cada um. Cada um desses pequenos
investidores seria “parte de uma ação”. Nascia, daí, a sociedade anônima, por volta do ano de 1600”
(Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito empresarial contemporâneo, p. 114).
15 É informação de Fabio Ulhoa Coelho: “Durante o Renascimento Comercial, na Europa, artesãos e
comerciantes europeus reuniam-se em corporações de ofício, poderosas entidades burguesas (isto é,
sediadas em burgos) que gozavam de significativa autonomia em face do poder real e dos senhores feudais”
(Manual de direito comercial, p. 26).
direitos e garantias individuais, especialmente no que diz respeito aos direitos civis de
contratar e de ser proprietário. Embora ascendido economicamente, e mantendo uma
certa autonomia sobre o poder estatal, os burgueses não eram considerados nobres e,
por essa razão, eram excluídos das atividades da corte, e nem poderiam ser dono de
terras.
Com dinheiro, mas sem direitos reconhecidos; sem igualdade nem liberdade, a
insatisfação entre os burgueses era grande. Alguma coisa estava prestes a acontecer.
16 “O fim do século XVIII, como vimos, foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus
sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, às vezes chegando a ponto
de revolta, e de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto da secessão: não
só nos Estados Unidos (1776 - 1783) mas também na Irlanda (1782 - 1784), na Bélgica e em Liège (1787 –
1790), na Holanda (1783 – 1787), em Genebra e até mesmo – conforme já se discutiu – na Inglaterra (1779).
A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma ‘era
da revolução democrática’, em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático
e de maior alcance e repercussão” (Eric J. Hobsbawm, A era das revoluções, vol. I, pp. 98-99).
17Para Norberto Bobbio, “apesar da influência até mesmo imediata que a revolução das treze colônias teve
na Europa, bem como da rápida formação no Velho Continente do mito americano, o fato é que foi a
Revolução Francesa que constituiu, por cerca de dois séculos, o modelo ideal para todos os que combateram
pela própria emancipação e pela libertação do próprio povo” (A era dos direitos, p. 85).
18 É atribuída a Maria Antonieta, então rainha da França, a célebre frase: “se não tem pão, que comam
brioches”. Essa frase teria sido pronunciada após a rainha indagar a seu cocheiro porque o povo parecia tão
desgraçado, ao que ele lhe relatou que não havia pão para comer. Não há, no entanto, conformação da
veracidade dessa frase.
burgueses. Estava pronta para ser deflagrada a revolução, cujo ponto máximo se deu com
a queda da Bastilha, no dia 14 de julho19.
19Como narra Eric J. Hobsbawm, “o resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da Bastilha,
uma prisão estatal que simbolizava a autoridade real e onde os revolucionários esperavam encontrar armas.
Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a queda de símbolos. A queda da Bastilha, que fez do
14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudado em todo o mundo como
o princípio de libertação” (A era das revoluções, vol. I, pp. 109-110).
20 Cf. Paul Hugon, História das doutrinas econômicas, p. 88.
21Explica Norberto Bobbio: “É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto
de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm
deveres e não direitos. Nos Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos
privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não dó direitos privados, mas também
direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos” (A era dos direitos, p. 59).
22“Concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar),
que tem valor em sim mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo
e este não é feito pelo Estado” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p. 56).
23Nesse sentido, Ana Frazão de Azevedo Lopes, Empresa e propriedade: função social e abuso de poder
econômico, p. 30.
24 “A concepção fundamental do liberalismo é a de uma sociedade política instituída pelo consentimento dos
homens que viviam em estado de natureza e na qual cada um, sob a direção da vontade geral, vive em
liberdade e igualdade e com a garantia da propriedade de tudo que possui. O governo é simples
intermediário entre o povo e a vontade geral, à qual lhe cabe dar cumprimento, com um mínimo de
interferência e com o máximo empenho no sentido de assegurar a liberdade civil e política, bem como os
direitos naturais, porque estes preexistem ao Estado e não se sujeitam a restrições” (Amauri Mascaro
Nascimento, Curso de direito do trabalho, p. 24).
Esse Estado liberal seria marcado principalmente pela sua não intervenção na vida
privada25, garantindo a todos direitos individuais e tratamento igualitário. A primeira
providência foi formalizar a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que veio à
lume em 1789, na qual defendia-se o direito de todo cidadão à liberdade, à propriedade,
à igualdade – jurídica/formal, e não social-econômica/material – e de resistência à
opressão, típicos direitos de primeira geração26, logo seguida pela Constituição francesa,
em setembro de 1791, que, apoiada nos estudos de Montesquieu, estabelecia a
tripartição dos poderes, reconhecendo, como poderes independentes e harmônicos
entre si, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, implantando-se uma monarquia
constitucional como forma de governo, na qual o rei perdeu seus poderes absolutos em
favor daqueles três poderes constituídos27. André Ramos Tavares aponta, como
institutos decorrentes da Constituição francesa: a) universalização dos direitos
individuais – concebidos como limitações ao poder do soberano, antes atribuídos apenas
aos cidadãos, passam a ser estendidos a todos os homens; b) divisão dos poderes; c)
soberania nacional – que deixa de ser um poder pessoal do príncipe para tornar-se um
atributo da “Nação” e, após, do Estado; e d) o princípio da igualdade – revelando-se a
mudança mais importante de todas, permitindo o estabelecimento de novas instituições
políticas28. Isso tudo torna a Constituição francesa um dos mais importantes
instrumentos jurídicos dessa nova era liberal.
Esse direito civil que surge na França era, destarte, fruto do Estado liberal que havia
surgido das cinzas da revolução e se consolidado na Constituição francesa. O Estado
passaria a se abster de interferir nas relações privadas, de sorte que os cidadãos passam
a ser livres para negociar e contratar entre si – desde que licitamente –, sem a intromissão
estatal indesejada de outrora. A expressão máxima desse direito civil liberal pode ser
sintetizada no brocardo latino “pacta sunt servanda”30.
Essa ideia de que o contrato faz lei entre as partes decorre exatamente da igualdade
entre os contratantes e da liberdade que eles tinham para contratar. Ora, se as partes
estão em situação de igualdade e são livres para contratar, uma vez celebrado o contrato,
ele deve ser cumprido à risca, porque entre os contratantes, o contrato é lei. E, por conta
disso, o contrato e suas cláusula não poderiam ser submetidos à revisão do Poder
Judiciário, pois configuraria a intromissão do Estado na liberdade de contratar dos
particulares, o que seria contrário à própria definição do Estado mínimo31.
O direito civil – liberal – francês vai servir de influência para muitos países, Brasil
incluído32.
29O Código Civil francês atendeu, a bem da verdade, os interesses burgueses, que foram os financiadores da
revolução. Para a grande maioria do povo, que continuava na miséria, esses direitos poucos significavam.
30 Da lição de Arnaldo Süssekind: “afirmando a igualdade jurídico-política dos cidadãos (todos são iguais
perante a lei), a Revolução Francesa adotou o princípio do respeito absoluto à autonomia da vontade
(liberdade contratual), cuja consequência foi a não-intervenção do Estado nas relações contratuais (laissez-
faire)” (Direito constitucional do trabalho, p. 8).
31“O factível, assim, em termos de elaboração do conhecimento jurídico, cinge-se à definição de conceitos
meramente operacionais, que auxiliem a equação e solução dos conflitos de interesse, no contexto de uma
argumentação retoricamente eficaz. Nesse sentido, se, em sede de regime de direito público, se pode cogitar
dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, como os conceitos operacionais
basilares de pelo menos uma de suas divisões, para o regime de direito privado, ressaltam os da autonomia
privada e da igualdade. A disciplina da atividade econômica pertinente às relações entre particulares se pauta
assim no reconhecimento, pela ordem em vigor, da relativa possibilidade de eles próprios compatibilizarem
os seus interesses, num cenário jurídico de condições equilibradas” (Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito
comercial - vol. 1, pp. 8-9).
32Como narra Fábio Ulhoa Coelho, “o Código Civil de Napoleão, de 1804, influenciou fortemente toda a
codificação oitocentista dos direitos de tradição romanística, tanto em decorrência da conquista armada
como pelo seu reconhecido valor jurídico” (Curso de direito comercial - vol. 1, pp. 15).
Descoberto em 1500 pelo navegador lusitano Pedro Alvares Cabral, o Brasil logo se
tornou colônia de Portugal, colocando-se sob seu jugo. No período do Brasil colonial, as
leis aqui vigentes eram as de Portugal. Nesse período, o Brasil foi regido, essencialmente,
pelas Ordenações Afonsinas (de 1500 a 1521), Manuelinas (1521 a 1603) e Filipinas (1603
a 1822).
A nossa primeira Constituição trazia, como modelo, o Estado liberal francês, com a
separação dos poderes. Todavia, diferentemente do que havia naquele país europeu, os
poderes, aqui, foram separados em quatro: executivo, legislativo, judiciário e moderador.
Esse poder moderador, que estava acima dos demais poderes, era o poder do próprio
imperador.
Esse modelo liberal da nosso primeira Constituição seria o modelo do próprio Estado
surgido a partir da proclamação da Independência. O Estado brasileiro emergia, assim,
como um Estado liberal. E isso iria ser refletir em toda produção legislativa subsequente,
como não poderia ser diferente.
33 Cf. Jônatas Luiz Moreira de Paula, História do direito processual brasileiro, pp. 219-220.
34“Em 1823, dissolveu a assembleia constituinte, que ele mesmo convocara, porque ela não se curvou às
suas exigências. No ano seguinte, porém, outorgou ao Brasil uma das constituições mais liberais da época e
até hoje a mais duradoura na história do país” (Laurentino Gomes, 1822, p. 113).
3. A REPÚBLICA E O CÓDIGO CIVIL DE 1916.
Apesar disso, o Brasil ainda carecia de uma legislação que amparasse, de forma
efetiva, o direito privado, mais precisamente o direito civil. É certo que em 1850, ainda
na fase imperial, o Brasil viu promulgado o seu Código Comercial. Foi o primeiro código
elaborado em terra tupiniquins, e a razão disso é bem clara: com a vinda de Dom João VI
para o Brasil – fugindo das tropas de Napoleão – e a consequente transferência da Coroa
portuguesa para o Brasil, determinou-se a abertura dos portos, através do Decreto
Imperial (Carta Régia) de 28 de janeiro de 180836. Na prática, permitiu-se o livre comércio
marítimo no País, autorizando que qualquer um pudesse vir fazer negócios por aqui, sem
precisar de autorização prévia do governo português37. Mas havia, ainda, a necessidade
de contar com uma legislação civil própria e apropriada.
35“Em novembro de 1889, as relações entre o Exército e o governo imperial estavam deterioradas. Falava-
se muito a respeito da progressiva substituição dos batalhões da Corte pela Guarda Nacional e até que
escravos fiéis à princesa Isabel atacariam quartéis onde houvesse militares simpáticos à causa republicana.
No dia 14, novos boatos: circulava a notícia da detenção, por insubordinação, de Deodoro da Fonseca e
Benjamim Constant, então principais lideranças do Exército. Na manhã seguinte, os acontecimentos se
precipitaram. Deodoro, apesar de estar se recuperando de uma doença, toma a iniciativa, decretando a
prisão do visconde de Ouro Preto, chefe do Gabinete e presidente do Conselho de Estado; a agitação do
exército toma conta das ruas e é proclamado o fim da monarquia; dois dias mais tarde, a família real embarca
para a Europa, rumo ao exílio. ” (Mary Del Priore e Renato Venâncio, Uma breve história do Brasil, p. 211).
36 “No dia 28 de janeiro [...], D. João foi ao Senado da Câmara assinar o seu mais famoso ato em território
brasileiro: a carta régia de abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas [...]. A abertura dos
portos foi, sem dúvida alguma, benéfica ao Brasil e coincidia com as opiniões liberais de Silva Lisboa. Mas, na
prática, era uma medida inevitável. Com Portugal e o porto de Lisboa ocupados pelos franceses, o comércio
do reino estava virtualmente paralisado. Abrir os portos do Brasil era, portanto, uma decisão óbvia. Além
disso, a liberação do comércio internacional na colônia era uma dívida que D. João tinha com a Inglaterra. Foi
o preço que pagou pela proteção contra Napoleão, devidamente negociado em Londres em outubro de 1807
pelo embaixador português D. Domingos de Sousa Coutinho” (Laurentino Gomes, 1808, p. 107).
37 “Como resultado da abertura dos portos e da liberdade de comércio concedido por D. João em 1808, havia
surgido um crescente mercado brasileiro exportador e um próspero sistema de trocas internas entre
províncias, que já não dependia do monopólio nem da intermediação da metrópole portuguesa” (Laurentino
Gomes, 1822, p. 60).
que já havia elaborado a Consolidação das Leis Civis em 1858, foi convocado para esse
novo trabalho pelo então imperador D. Pedro II, através do Decreto Imperial de 11 de
janeiro daquele ano. O trabalho consumiu muito tempo, mas não chegou ao fim, dada as
constantes alterações no texto promovidas pelo seu autor (o seu esboço de Código Civil
chegou a contar com aproximadamente 5.000 artigos). Além disso, insatisfeito com a
demora dos trabalhos da comissão formada para a análise do seu projeto, Teixeira de
Freitas abandonou-o38.
38 Lembra Carlos Roberto Gonçalves: “A Constituição de 1824 referiu-se à organização de um Código Civil
‘baseado na justiça e na equidade’, sendo que em 1865 essa tarefa foi confiada a Teixeira de Freitas, que já
havia apresentado, em 1958, um trabalho de consolidação de leis civis. O projeto então elaborado,
denominado ‘Esboço de Código Civil’, continha cinco mil artigos e acabou não sendo acolhido, após sofrer
críticas da comissão revisora. Influenciou, no entanto, o Código Civil argentino, do qual constitui a base”
(Direito civil brasileiro, vol. 1, p. 35).
39 “Na Câmara dos Deputados o Projeto Beviláqua sofreu algumas alterações determinadas por uma comissão
especialmente nomeada para examiná-lo, merecendo, no Senado, longo parecer de Rui Barbosa. Aprovado
em janeiro de 1916, entrou em vigor em 10 de janeiro de 1917” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil
brasileiro, vol. 1, p. 36).
40 Código Civil de 1916, art. 1.806.
41“O contrato é signo da liberdade. Acreditava-se que o equilíbrio nas relações econômicas e trabalhistas
pudesse ser atingido diretamente pelos interessados segundo o princípio da autonomia da vontade. Assim,
esses códigos não revelam nenhuma preocupação com o problema social” (Amauri Mascaro Nascimento,
Curso de direito do trabalho, p. 26).
42Nesse mesmo sentido, relata Carlos Roberto Gonçalves: “Elogiado pela clareza e precisão dos conceitos,
bem como por sua brevidade e técnica jurídica, o referido Código refletia as concepções predominantes em
E assim seguiu o direito privado pátrio, nitidamente liberal, por quase toda a
primeira metade do século XX.
O Brasil, como Estado liberal puro, não chegaria à segunda metade do século XX
ileso, por conta de todas as transformações que o mundo estava passando. Revolução
industrial e duas guerras mundiais mudaram a sociedade global, e a forma como os
direitos e o Estado deveriam ser encarados. As reivindicações, agora, não eram mais por
direitos fundamentais e garantias individuais clássicas, mas sim por direitos políticos e
sociais, que impõe ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo pelo
cidadão, como direitos típicos de segunda geração43. O liberalismo, em xeque, estava
sendo colocado contra a parede44.
No Brasil, Getúlio Vargas vivia seu terceiro mandato como Presidente, agora como
ditador do chamado Estado Novo45. Suas influências, ninguém discorda, vinham do
ditador fascista italiano Benito Mussolini, a quem tinha como ídolo e a quem,
publicamente, declarava admiração. A Constituição de 1937 – influenciada pelo fascismo
polonês e por isso mesmo apelidada de polaca (com notado duplo sentido) – empurrava
ao país um Estado autoritário, centralizado e antiliberal, com o fechamento do
parlamento e a supressão do sufrágio para prefeitos e governadores, bem como da
liberdade partidária, da independência dos poderes e o do federalismo. Em meio a tudo
isso, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, Getúlio Vargas promulgou a nossa
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), através do Decreto-Lei n. 5.452, em 1º de maio
de 1943.
fins do século XIX e no início do século XX, em grade parte ultrapassadas, baseadas no individualismo então
reinante, especialmente ao tratar do direito de propriedade e da liberdade de contratar” (Direito civil
brasileiro, vol. 1, p. 39).
43Ainda segundo Bobbio: “...num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais –
concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como
autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos
membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados
os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos
valores –, como os do bem-estar e da legalidade e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar
de liberdade através ou por meio do Estado” (A era dos direitos, p. 32).
44“Se o liberalismo, como afirma Aron, não é, por si só, gerador de desigualdade, é certo entretanto que,
graças a ele, e à sua sombra, haviam sido cometidos os maiores abusos dos fortes contra os fracos, havia sido
anulada a liberdade, e o próprio Estado, em vez de simples assistente dos acontecimentos, passara, sob o
domínio do capitalismo, a ser um instrumento de opressão contra os menos favorecidos” (Segadas Vianna,
Instituições de direito do trabalho – vol. 1, p. 36).
45“...entre 1937 e 1945, Getúlio Vargas, com a capa institucional que lembra governos fascistas europeus,
torna-se um chefe militar em escala nacional” (Mary Del Priore e Renato Venâncio, Uma breve história do
Brasil, p. 253).
A CLT vai representar uma ruptura no direito privado pátrio. Ela regula uma relação
eminentemente de direito privado (contrato de trabalho), mas é marcada por ser uma
norma de ordem pública46. Isso significa dizer que suas regras não estão sujeitas a
disposição por iniciativa das partes contratantes. Sendo de ordem pública, as normas
celetistas são de observância obrigatória, não estando inseridas, pois, na autonomia da
vontade dos contratantes.
Essa ruptura, no entanto, não foi totalmente sentida na época, por duas principais
razões: 1ª) estava restrita, apenas, ao direito do trabalho e; 2ª) o Estado Novo logo
capitulou e, em 1946, uma nova Constituição, de caráter neoliberal, foi promulgada.
Assim, o direito civil continuava a seguir o caminho do liberalismo apoiado no intocado
Código Civil de 1916, em quase nada afetado por aquela onda social-publicista.
46“Não bastaria a lei outorgar direitos ao empregado. Era preciso mais. Não só a lei não poderia ser alterada
pela vontade das partes, mas também as manifestações de vontade do operário – da época do direito do
trabalho como direito do operário – não tinham nenhum valor jurídico quando prejudiciais a ele – in pejus.
Para que tal objetivo pudesse ser alcançado, a doutrina criou um conceito importante para o direito do
trabalho. O conceito de leis de ordem pública absoluta, que o direito do trabalho foi buscar no direito público,
migrando-o para o sistema legal trabalhista, passou a desempenhar um papel importante como meio de
fazer com que a lei trabalhista fosse eficaz” (Amauri Mascaro Nascimento, Curso de direito do trabalho, p.
292).
47“Passava o Estado a exercer sua verdadeira missão, como órgão de equilíbrio, como orientador da ação
individual, em benefício do interesse coletivo, que era, em suma, o próprio interesse estatal” (Segadas
Vianna, Instituições de direito do trabalho, p. 39).
Interlúdio: os anos do regime militar.
Em 1985 o Brasil vai sofrer uma nova reviravolta, com a corrida presidencial
contando com dois candidatos civis, e consequente a eleição – indireta, lembre-se – de
Tancredo Neves ocorrida em 15 de janeiro daquele ano, no que seria marcado como o
fim da ditadura militar no País. Mas o Presidente eleito não chegou a assumir o governo,
vindo a falecer em 21 de abril de 1985. Em seu lugar, assumiu o seu vice, José Sarney.
democráticas e graves ocorrências de violações dos direitos humanos, poderia ser considerada um avanço”
(Marco Antonio Villa, Ditadura à brasileira, pp. 138-139).
Podemos dizer, assim, que a Constituição de 1988 inaugura uma nova etapa no
Estado brasileiro: o Estado do liberalismo social.
51“Essa tendência, que se manifestou em Cartas que a antecederam, nas reformas europeias, constitui um
dos pontos referenciais dos Estados modernos, em que o predomínio do social é o elemento de fundo, nas
assim denominadas ‘democracias sociais’. A ‘opção pelos pobres’, que serviu de bandeiras para a ruptura
com o militarismo, inseriu-se nessa filosofia, em que se substitui o ‘Estado individualista’ pelo ‘social’,
destinado à obtenção de justiça social” (Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho, Direito civil
constitucional, p. 18).
52 XXII - é garantido o direito de propriedade.
53 XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.
54 Conforme pudemos afirmar em outra obra, “no que tange ao primeiro aspecto, ou seja, aos bens de uso,
temos que a nossa Constituição, seguindo o norte do Estado Democrático de Direito, ao mesmo tempo em
que garante ao indivíduo o direito à propriedade privada (art. 5º, XXII), assegura à sociedade a função social
da propriedade (art. 5º, XXIII). Tais proposições, à primeira vista, podem parecer contraditórias, mas derivam,
sem sombra de dúvida, do compromisso assumido pelo legislador constituinte entre as concepções liberais
e sociais do Estado” (Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito ambiental empresarial, p. 204).
55 “Todas as declarações recentes dos direitos dos homens compreendem, além dos direitos individuais
tradicionais, que consistem em liberdades, também os chamados direitos sociais, que consiste em poderes.
[...] Quanto mais se aumentos os poderes dos indivíduos, tanto mais se diminuem as liberdades dos mesmos
indivíduos” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p. 21).
56 Cf. Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito ambiental empresarial, pp. 204-205.
no art. 5º, caput57: ao estabelecer que todos são iguais perante a lei, a Constituição
reconhece, na verdade, as diferenças existente entre as pessoas. A correta interpretação
do princípio constitucional da igualdade é de que todos são diferentes é a lei que vai
reestabelecer a igualdade entre as pessoas. Aplica-se, aqui, o conceito de igualdade de
Aristóteles, segundo qual deve-se dar tratamento igual aos iguais e tratamento desigual
aos desiguais, na exata medida das suas desigualdades. É a chamada igualdade material.
E, em face dessa desigualdade constitucionalmente reconhecida, a legislação posterior à
Constituição de 1988 passa a ser produzida de maneira específica, para atender,
especificamente, às diferenças materiais entre as pessoas ou grupos de pessoas. Criando
leis específicas torna-se mais fácil atender ao grupo à qual ela é dirigida, e, por
consequência, mais fácil diminuir as diferenças existentes58. Daí vem que após o advento
da Carta Constitucional, surgiram o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Torcedor, Estatuto da Pessoa
com Deficiência, etc.
O Código Civil de 1916 já não mais se prestava a ordenar o direito civil em face da
Constituição Federal de 1988 e tinha que ser substituído.
57Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade...
58“Essa especificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida, seja à diferença entre
estado normal e estados excepcionais na existência humana. Com relação ao gênero, foram cada vez mais
reconhecidas as diferenças específicas entre a mulher o homem. Com relação às várias fases da vida, foram-
se progressivamente diferenciando os direitos da infância e da velhice, por um lado, e dos do homem adulto,
por outro. Com relação aos estados normais e excepcionais, fez-se valer a exigência de reconhecer direitos
especiais aos doentes, aos deficientes, aos doentes mentais, etc.” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p.
59).
Mas antes de concebermos um novo Código Civil que pudesse estar em sintonia com
a Constituição Federal, uma outra lei, igualmente importante, veio a lume: o Código de
Defesa do Consumidor (CDC).
Assim, o contrato de consumo, por si só, não faz lei entre as partes, eis que não
vincula as partes contratantes no caso de haver cláusula abusivas. Também não vincula
o consumidor o contrato do qual não lhe foi dado oportunidade de ter conhecimento
prévio do instrumento ou que seja redigido de modo a dificultar o seu entendimento (art.
46).
O CDC iria modificar, de maneira substancial, a forma como o direito privado seria
encarado dali para a frente, inclusive o próximo Código Civil.
Desde os anos 1960 debatia-se a necessidade de fazer um novo Código Civil para
substituir o do Clóvis Beviláqua que já mostrava sinais de cansaço causados pelo tempo.
Afinal, o mundo havia sofrido muitas e significativas mudanças no decorrer do século XX,
e o Brasil acompanhava essas mudanças.
O primeiro projeto foi confiado a Miguel Reale, em 1967, que o elaborou com a ajuda
de notáveis juristas da época, apresentando-o ao Congresso Nacional em 197261, onde
ficou parado. O projeto foi retomado em 2001, no governo do Presidente Fernando
Henrique Cardoso. Promulgado em 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor em 10 de
janeiro de 2003, após o período de um ano de vacatio legis (CC, art. 2.044).
61 “Essa comissão apresentou, em 1972, um anteprojeto, com a disposição de preservar, no que fosse
possível, e no aspecto geral, a estrutura e as disposições do Código de 1916, mas reformulando-o, no âmbito
especial, com base nos valores éticos e sociais revelados pela experiência legislativa e jurisprudencial.
Procurou utilizar a técnica deste último, que em muitos pontos foi superado pelos progressos da Ciência
Jurídica, bem como afastar-se das concepções individualistas que nortearam esse diploma para seguir
orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo, sem se descuidar do valor fundamental
da pessoa humana” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro – vol. 1, p. 40).
62 Analisando o direito privado em face da Constituição de 1988, Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar
Filho esclarecem: “Assim, a interpretação deve perfazer-se não pela letra do texto, mas pelo espírito da Carta,
ou seja, em consonância com sua índole e a natureza de seus comandos, que, pelo porte das mudanças
ditadas, impunha a reformulação de todo o direito posto no Código Civil de 1916 e em leis outras de cunho
privado, caracterizadas todas por constituírem normas individualistas, paternalistas, não-intervencionistas,
inspiradas ideias ora superadas. Em seu lugar, deverão advir, progressivamente, normas em que a ênfase dos
aspectos moral e social, do princípio igualitário e da intervenção supletiva do Estado esteja presente, em
consonância com a própria vida da sociedade nessa quadra da História da humanidade” (Direito civil
constitucional, p. 23).
63“O individualismo, traço marcante e preponderante do sistema liberal francês que influenciou o direito
brasileiro no início do século XX, perdeu força com a revolução industrial e com as doutrinas socializantes,
até ser mitigado no paradigma do Estado Democrático de Direito, que privilegia o interesse social sobre o
particular, passando a buscar um sentido social na propriedade” (Fernando Augusto De Vita Borges de Sales,
Direito ambiental empresarial, p. 205).
O Código Civil de 2002 veio para acompanhar as mudanças sociais verificadas no
mundo, em geral, e no Brasil, em particular. Essas mudanças afetaram a legislação de
vários países, e se mostraram uma tendência a ser seguida, na qual abandona-se a ideia
de direitos subjetivos absolutos, em favor da sua relativização64. Os direitos individuais,
conquanto reconhecidos e garantidos, não poderiam se sobrepor aos interesses sociais e
coletivos65.
Mas, talvez, o mais emblemático dispositivo do Código Civil de 2002, e que bem
demonstra essa mudança de padrão, seja o art. 18774, que reconhece o abuso do direito
como sendo um ato ilícito. Ora, se ao estabelecer que o indivíduo que, embora possua o
direito, venha dele abusar comete ato ilícito, sujeito à reparação do dano, resta claro que
os direitos subjetivos são todos eles, relativos. Deste modo, mesmo sendo detentora ou
titular de um direito, a pessoa somente poderá fazer uso dele desde que atenda a sua
função social75. A partir daí podemos afirmar a existência, reconhecida no Código Civil,
do princípio da função social do direito.
Destarte, vamos verificar que o Código Civil de 2002 assumiu princípios de ordem
pública, estabelecendo a função social de vários institutos importantes, que não apenas
tendem a coibir o uso abusivo, como também procuram inseri-los no contexto de
utilização para o bem comum, rompendo com a tradição liberal francesa que marcava o
Código anterior.
Referidos princípios não podem ser suplantados por nenhum tipo de convenção dos
particulares, conforme estabelece o parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil76,
dispositivo legal que se torna o elo, que fará ligação com o espírito da Constituição
Federal de 198877.
72 Art.
1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder
de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico
e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
73 “... mais do que mera função social, o dispositivo civil prevê a função socioambiental do domínio, não
podendo o exercício do direito de propriedade gerar danos ao meio ambiente natural, cultural ou artístico”
(Flávio Tartuce, A função social dos contratos, p. 48)
74 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
75 Um bom exemplo disso é o disposto no § 2º do art. 1.228 do Código Civil: “são defesos os atos que não
trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar
outrem”.
76Art. 2.035. (...). Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem
pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos
contratos.
77 Cf. Flávio Tartuce, A função social dos contratos, p. 49.
CONCLUSÃO.
Nesses poucos mais de cem anos, o direito civil brasileiro sofreu sensíveis alterações,
decorrentes das próprias modificações que ocorreram no mundo todo. De origem liberal,
calcado no espírito da Revolução Francesa, o Código Civil de 1916 apoiava-se no
individualismo, na igualdade formal e na liberdade irrestrita de contratar, bem como no
direito absoluto da propriedade. Ele refletia o próprio Estado brasileiro, totalmente
liberal desde a declaração de independência, o que foi reafirmado com a Constituição
Federal de 1824.
A Constituição de 1988, como não poderia deixar de ser, passou a regular o Direito
Civil e sobre ele exercer total influência. Por essa razão, fez necessário ter um novo
Código Civil, que estivesse em sintonia com esse novo Estado. O Código Civil de 2002
surgiu, dessa forma, inaugurando o novo Direito Civil pátrio e, fazendo conjunto com o
Código de Defesa do Consumidor, dando ao direito privado brasileiro os contornos
exigidos pelos novos tempos.
BIBLIOGRAFIA
ARANHA, Maria Lúcia A. Maquiavel: a força da lógica. São Paulo: Moderna, 2006.
BITTAR, Carlos Alberto; e BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito civil constitucional. São
Paulo: RT, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 2007.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito empresarial. São Paulo: Saraiva, 2012.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial – vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2009.
DEL PRIORE, Mary, e VENÂNCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Planeta
do Brasil, 2010.
GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte
corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. Rio de
Janeiro: Nova fronteira, 2007
GOMES, Laurentino. 1822: Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês
louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar
errado. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – vol. 1, parte geral. São Paulo:
Saraiva, 2012.
HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções – vol. 1. São Paulo: Paz e terra, 2009.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004.
SANDEL, Michel J. Justiça: o que é fazer a coisa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012.
SANTOS NETO, João Antunes dos. O impacto dos direitos humanos fundamentais no
direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Hunter books, 2014.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010.