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Fernando Augusto De Vita Borges de Sales

O Código Civil de 2002 e a função social


do direito privado.

O fenecimento do Estado liberal e a assunção definitiva do Estado


social como preconizado na Constituição Federal de 1988.

São Paulo
Agosto/2019
Copyright 2019 Fernando Augusto De Vita Borges de Sales

Todos os direitos dessa obra pertencem ao autor.

Citações devem sempre indicar a fonte.


SOBRE O AUTOR.

Fernando Augusto De Vita Borges de Sales


Advogado inscrito na OAB/SP.

Mestre em direitos difusos e coletivos (2008).

Pós-graduado em Direito Civil (1998), Direito do Trabalho (2003), e Direito do


Consumidor (2005)

Professor universitário e em vários cursos de pós-graduação e preparatórios para


concursos e exame de ordem.

Palestrante do Departamento de Cultura e Eventos da OAB/SP

Autor de várias obras na área jurídica, incluindo os livros CPC comentado artigo por
artigo (na 3ª edição), Manual de direito processual civil (na 2ª edição) e Código de
Processo Civil anotado e interpretado conforme a doutrina e a jurisprudência, pela
editora Rideel; Desconsideração da personalidade jurídica e Juizados especiais cíveis,
pela editora JHMizuno; Direito do trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do
TST comentadas, pela Editora LTr; Direito empresarial contemporâneo e Direito
ambiental empresarial, ambos pela Editora Rumo Legal.

Contatos:

email: professorfernandosales2@gmail.com

facebook: Fernando Augusto Sales

instagram: Fernando_augusto_sales.
RESUMO

O presente ensaio pretende fazer uma análise das mudanças havidas no direito civil entre
o Código Civil de 1916 e o Código de 2002, especialmente em face da Constituição Federal
de 1988 e da mudança no paradigma do Estado brasileiro, especialmente no que se refere
à transição do Estado liberal puro para o Estado social, ou do liberalismo social, com uma
breve análise histórica dos fatos mais importantes ocorridos nesse período e que foram
fundamentais, relevantes e determinantes para a mudança observada.

Palavras-chave: Constituição Federal, Código Civil, direito civil, direito privado.


SUMÁRIO

Introdução

1. A era das revoluções e a assunção do Estado liberal se contrapondo ao Estado totalitário.

1.1. Monarquias absolutistas e estados totalitários.

1.2. A revolução burguesa.

1.3. A França pós revolução e o surgimento do Estado liberal.

1.4. O Código Civil napoleônico.

2. A Independência do Brasil e os ecos da Revolução Francesa.

3. A República e o Código Civil de 1916.

4. A CLT e a guinada dos direitos sociais.

Interlúdio I: os anos do regime militar.

5. A Constituição Federal de 1988 e o Estado social.

6. O Código Civil de 2002 e a função social do direito privado.

Interlúdio II: o Código de Defesa do Consumidor.

7. Retomando o Código Civil de 2002.

8. Conclusão.

Bibliografia
O Código Civil de 2002 e a função social do direito privado.

O fenecimento do Estado liberal e a assunção definitiva do Estado social como


preconizado na Constituição Federal de 1988.

Fernando Augusto De Vita Borges de Sales

INTRODUÇÃO.

A Constituição da República Federativa do Brasil está completando 30 anos. Embora


ainda seja muito nova, se comparada a Constituições de outros países, a nossa Carta é
merecedora de crédito e elogios, pois extremamente moderna, avançada e consentânea
com a realidade do mundo atual.

A Constituição de 1988 inaugura um novo tempo no Brasil, ao passo em que refunda


seu ordenamento jurídico a partir de suas normas e princípios. E isso vai influenciar o
direito privado, principalmente o direito civil, que tem que se despir de conceitos
mofados e, agora, inadequados, frente o espírito socializante na nova Carta Política. Em
razão disso todo um arcabouço jurídico precisa ser atualizado, e o mesmo vai ocorrer
com o Código Civil, eis que, datado de 1916, já não mais refletia, apesar dos bons serviços
prestados ao Brasil, a realidade e os anseios do povo. Assim é que, em 2002, seguindo a
esteira do direito constitucional, um novo Código Civil passou a integrar o ordenamento
jurídico, com o firme e claro propósito de fazer com o direito civil entrasse em sintonia
com a Constituição Federal.

Analisar essa passagem, do Código de 1916 para o de 2002, tendo como marco a
Constituição Federal de 1988 é a pretensão desse pequeno ensaio. Para tanto, buscamos
fazer uma breve análise histórica dos fatos mais importantes, relevantes e determinantes
dessa transição, procurando entender melhor, ao final, a transformação do direito
privado no Brasil.
1. A ERA DAS REVOLUÇÕES E A ASSUNÇÃO DO ESTADO LIBERAL SE CONTRAPONDO
AO ESTADO TOTALITÁRIO.

1.1. Monarquias absolutistas e estados totalitários.

O século XVIII é marcado como a era das revoluções.

O mundo de então vinha sendo regido por monarquias absolutistas1 - especialmente


na Europa e suas colônias espalhadas pelos quatro cantos do globo terrestre – no que se
convencionou chamar de “idade das trevas”2. Esses Estados totalitários, que eram fruto
da concentração de poder nas mãos de uma única pessoa, tinham como característica
principal a confusão entre o Estado e a pessoa do seu regente. Representa bem essa
situação a passagem pela qual o Rei Luís XIV, da França, teria proferido a frase “l’Etat c’est
moi” (“o Estado sou eu”), revelando que o monarca representava toda a extensão do
poder estatal.

As monarquias europeias surgiram, numa primeira fase, da derrocada do Império


Romano, constituindo-se, basicamente, de feudos3, cujo economia se baseava na
exploração da terra, com estabelecimento de tributos, pedágios e com moeda própria.
Eram nações, mas a sua concepção de Estado era apenas uma pálida ideia do sentido que
conhecemos hoje4. Nessa primeira fase, na grande maioria desses Estados, o poder do
monarca, nominal e simbólico, era fragmentado, estando restrito apenas às terras de sua
propriedade5, onde contavam com exército próprio, através do qual exercia sua
autonomia e poder, decidindo sobre guerra e paz e administrando a justiça à sua

1Conforme explica Eric J. Hobsbawm, “com exceção da Grã-Bretanha, que fizera sua revolução no século
XVII, e alguns Estados menores, as monarquias absolutas reinavam em todos os Estados em funcionamento
no continente europeu...” (A era das revoluções, vol. I, p. 50).
2 Segundo João Antunes dos Santos Neto, “sem embargos da incipiente democracia dos povos da
Antiguidade, esta realidade, em determinado momento da Idade Média, chegou a experimentar mesmo uma
forte retração, com a centralização de poderes nas mãos dos regentes, soberanos dos Estados totalitários
que se formaram na era das sombras...” (O impacto dos direitos humanos fundamentais no direito
administrativo, p. 119).
33 “O feudalismo foi o sistema socioeconômico que precedeu o capitalismo na Europa Ocidental. Toda
organização medieval baseava-se em um sistema de serviços e obrigações mútuos, envolvendo toda a
hierarquia feudal. Não havia leis como conhecemos hoje sendo a relações sociais governadas pelos costumes
vigentes no feudo. A posse ou uso da terra pressupunha certos serviços ou pagamentos costumeiros, em
troca de proteção. O senhor era tão obrigado a proteger o servo quanto esse era a lhe pagar, em troca, com
uma porção de sua colheita ou com sua força de trabalho. A instituição econômica básica era o feudo, que
tinha duas classes distintas: senhores e servos” (Vanessa Boarati, Economia para o direito, p. 18).
4 “Em verdade, toda a Idade Média, com sua organização feudal levantada sobre as ruínas do Império
Romano, vira em certa maneira arrefecer a concepção de Estado. Pelo menos do Estado no sentido de
instituição materialmente concentradora de coerção, apta a estampar a unidade de um sistema de plenitude
normativa e eficácia absoluta” (Paulo Bonavides, Teoria do estado, p. 32).
5 Nesse sentido, é a informação de Maria Lúcia A. Aranha (Maquiavel: a lógica da força, p. 16).
vontade6. Os súditos, por sua vez, em troca dessa liberdade tolhida, colocavam nas mãos
do soberano o destino de sua vida e segurança, preservando sua existência e
conservação7.

No Estado absolutista não havia garantias individuais nem direitos fundamentais


reconhecidos ao cidadão comum. Tendo em conta que todo o poder estava concentrado
na mão do soberano, sua palavra era ordem absoluta, inquestionável e incontrariável, de
sorte que o rei nunca estava errado. Não havia liberdade para o povo, que estava sob os
auspícios da vontade estatal, sempre ingerente, intrometida e controladora8.

Essa situação começa a mudar com a transformação da economia, que migrava


paulatinamente da atividade agropastoril localizada para a atividade mercantil sem
limites territoriais. Com o florescimento desse comércio havia uma necessidade
premente de uniformizar pesos e medidas, moeda e impostos, além do que se exigia uma
legislação própria e única, que fosse válida em todo território, longe dos arbítrios e
vaidades dos nobres, de sorte a garantir, assim, uma maior liberdade ao mercado.

Convém lembrar que, bem antes da Revolução Francesa eclodir, o pensador inglês
Adam Smith já havia observado, em 1776, que o mercado deveria ficar livre da ingerência
do Estado para poder se desenvolver de maneira eficaz9. O liberalismo de Adam Smith
assenta-se na premissa de que uma vez que o interesse individual coincide com o
interesse geral, deve-se, na prática, deixar plena liberdade de ação aos interesses
privados10, eis que a não regulamentação das atividades individuais no campo

6 Nas palavras de Maquiavel: “Para melhor esclarecer esta minha ideia, julgo ter a capacidade de se defender,

por si mesmos, os príncipes que tenham à disposição suficientes homens armados e dinheiro para formar
um exército e enfrentar quem os queira atacar” (O príncipe, p. 99).
7Paulo Bonavides afirma: “... havia um preço a pagar pelas garantias que seriam auferidas. Consistia ele na
alienação de todas as liberdades, trasladadas ao Estado, senhor absoluto da vida e comportamentos
humanos, pelo menos segundo a tese implícita nessa singular doutrina com que a razão buscou edificar o
Estado Moderno. O homem perdia a liberdade, mas ganhava, em troca, a certeza da conservação” (Teoria do
estado, p. 37).
8 “O absolutismo do chamado Estado de Polícia, formado pelas ideias de que the king can do no wrong ou le
roi ne peut mal faire, afirmava-se no princípio que consagrava a máxima quod regi placuit lex est. Em um
primeiro momento, leva-se a crer que, naquele modelo de organização, em que o próprio Estado se
confundia coma figura do soberano, não havia a mínima possibilidade de se falar em respeito aos direitos
individuais ou em mecanismos de controle de atividade estatal...” (João Antunes dos Santos Neto, O impacto
dos direitos humanos fundamentais no direito administrativo, p. 119).
9 “Ainda que o preço que lhe dá esse proveito não é sempre o mais baixo pelo qual o negociante pode algumas

vezes vender as suas mercadorias, contudo é o mais baixo que é provável poder vendê-las por algum tempo
considerável, ao menos assim o seria onde houvesse perfeita Liberdade e cada qual pudesse mudar o seu
negócio quantas vezes entendesse conveniente” (A riqueza das nações, p. 94).
10 Cf. Paul Hugon, História das doutrinas econômicas, p. 110.
socioeconômico produziria os melhores resultados na busca do progresso e do
desenvolvimento econômico.

Smith apoiava o seu “liberalismo natural” na livre-concorrência (baseada na “lei da


oferta e da procura”), sem intervenção estatal na regulação do mercado, o que se revelou
um erro que a Escola Neoliberal tentou corrigir posteriormente11. As ideias liberais – de
liberdade de ação, principalmente – já começavam a ser sentidas.

Em razão disso o Estado foi se reformulando, passando a contar com o


fortalecimento do poder central dos reis, a partir da ascensão da burguesia. Surge, nessa
segunda fase, um Estado forte, que é também empreendedor12. Esse Estado moderno
vem para fortalecer o poder central, superando a estrutura feudal, em que o poder era
fragmentado, além do que ele começa a desvincular-se da tutela da igreja, tornando-se
laico13.

A aproximação do Estado com essa burguesia ascendente e proeminente ocorre por


interesses recíprocos: esta paga impostos e concede empréstimos financeiros com os
quais o Estado vai bancar o funcionamento da administração e a manutenção do exército,
mantendo a autoridade. De sua parte, o Estado fomenta a criação de empresas, favorece
o monopólio e passa a incentivar a colonização de terras do além-mar14.

Com isso tudo, é a burguesia que obtém as maiores vantagens, e se fortalece


econômica, social e juridicamente15. Mas ainda lhe resta um problema: a ausência de

11 Cf. Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito ambiental empresarial, pp. 54-55.
12“Sob o aspecto político, a aliança entre reis e burgueses levará à consolidação das monarquias nacionais,
fundadas na unidade do território, povo e governo. Do século XVI ao XVIII, a legitimação da soberania
monárquica justifica o absolutismo real” (Maria Lúcia A. Aranha, Maquiavel: a lógica da força, p. 17).
13Isso vai ser consolidado, após a Revolução Francesa, na coroação de Napoleão Bonaparte, onde ele toma
a coroa das mãos do Papa Pio VII, se auto coroando. Esse ato simbólico demonstra a não submissão do
imperador à igreja.
14Conforme pudemos expor em outra obra, “as origens da sociedade anônima remontam à Idade Média, na
época em que os países da Europa (especialmente Portugal, Espanha e Holanda) promoviam uma verdadeira
corrida às Índias em busca de especiarias. Como os custos dessas viagens eram muito altos, os governos
buscavam parceria no setor privado (normalmente com ricos banqueiros, em forma de sociedade em
comandita simples) para financiá-la e dividir o lucro. Eram altos investimentos para uma só pessoa suportar,
e o governo Holandês, tendo dificuldade para encontrar alguém disposto a isso em razão do risco e da
incerteza do retorno financeiro, teve uma ideia brilhante: arranjar centenas – ou milhares – de pequenos
investidores, que investiriam pouco dinheiro, limitando, assim, o risco de cada um. Cada um desses pequenos
investidores seria “parte de uma ação”. Nascia, daí, a sociedade anônima, por volta do ano de 1600”
(Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito empresarial contemporâneo, p. 114).
15 É informação de Fabio Ulhoa Coelho: “Durante o Renascimento Comercial, na Europa, artesãos e
comerciantes europeus reuniam-se em corporações de ofício, poderosas entidades burguesas (isto é,
sediadas em burgos) que gozavam de significativa autonomia em face do poder real e dos senhores feudais”
(Manual de direito comercial, p. 26).
direitos e garantias individuais, especialmente no que diz respeito aos direitos civis de
contratar e de ser proprietário. Embora ascendido economicamente, e mantendo uma
certa autonomia sobre o poder estatal, os burgueses não eram considerados nobres e,
por essa razão, eram excluídos das atividades da corte, e nem poderiam ser dono de
terras.

Com dinheiro, mas sem direitos reconhecidos; sem igualdade nem liberdade, a
insatisfação entre os burgueses era grande. Alguma coisa estava prestes a acontecer.

1.2. A revolução burguesa.

Sob o lema da liberdade, igualdade e fraternidade, a Revolução Francesa eclodiu em


1789.

As revoluções, é verdade, ocorreram por toda a Europa, em maior ou menor


intensidade. Elas se deram, basicamente, como uma resposta social contra o poder
absoluto dos reis, nas monarquias totalitárias. Todavia, em razão da sua grandeza,
importância e influência, a Revolução Francesa tornou-se o símbolo dessa era de
revoluções16. A Revolução Francesa é, destarte, um símbolo e um marco em todos os
países17.

No período anterior a 1789, a França era uma monarquia absolutista comandada


pelo Rei Luís XVI. O País atravessava uma grave crise fiscal e econômica, com o povo
passando fome e irritado com a falta de competência de seus governantes18, o aumento
da desigualdade social e a má gestão dos recursos públicos, o fracasso da agricultura e a
dívida nacional incontrolável. O sentimento revoltoso do povo encontrou eco nos ideais
iluministas, aumentando a radicalização contra o governo. O financiamento veio dos

16 “O fim do século XVIII, como vimos, foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus
sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, às vezes chegando a ponto
de revolta, e de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto da secessão: não
só nos Estados Unidos (1776 - 1783) mas também na Irlanda (1782 - 1784), na Bélgica e em Liège (1787 –
1790), na Holanda (1783 – 1787), em Genebra e até mesmo – conforme já se discutiu – na Inglaterra (1779).
A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma ‘era
da revolução democrática’, em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático
e de maior alcance e repercussão” (Eric J. Hobsbawm, A era das revoluções, vol. I, pp. 98-99).
17Para Norberto Bobbio, “apesar da influência até mesmo imediata que a revolução das treze colônias teve
na Europa, bem como da rápida formação no Velho Continente do mito americano, o fato é que foi a
Revolução Francesa que constituiu, por cerca de dois séculos, o modelo ideal para todos os que combateram
pela própria emancipação e pela libertação do próprio povo” (A era dos direitos, p. 85).
18 É atribuída a Maria Antonieta, então rainha da França, a célebre frase: “se não tem pão, que comam
brioches”. Essa frase teria sido pronunciada após a rainha indagar a seu cocheiro porque o povo parecia tão
desgraçado, ao que ele lhe relatou que não havia pão para comer. Não há, no entanto, conformação da
veracidade dessa frase.
burgueses. Estava pronta para ser deflagrada a revolução, cujo ponto máximo se deu com
a queda da Bastilha, no dia 14 de julho19.

1.3. A França pós revolução e o surgimento do Estado liberal.

O principal objetivo da Revolução Francesa era, exatamente, acabar com o


absolutismo do regime monárquico que reinava a França e, via de regra e consequência,
com a intromissão do Estado nos negócios dos particulares. O Estado totalitário de então
não permitia que as pessoas pudessem, livremente, cuidar de suas próprias vidas, eis que,
revelando a expressão brutal de seu poder arbitrário, reservava para si todos os direitos
enquanto impunha aos indivíduos apenas deveres20. Havia o clamor do povo por um
Estado de direito, em oposição ao vigente Estado absoluto21.

Inspirado nas ideias iluministas e libertárias de pensadores como Voltaire, Diderot,


Montesquieu, Locke, Kant, entre outros, o Estado que emerge após a Revolução
Francesa deveria ser bem o oposto do que se tinha antes. Surge o Estado liberal, apoiado
nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, com o reconhecimento do
individualismo22 e a consequente aceitação do indivíduo como fim precípuo da
organização política, da sociedade e do direito23 24.

19Como narra Eric J. Hobsbawm, “o resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da Bastilha,
uma prisão estatal que simbolizava a autoridade real e onde os revolucionários esperavam encontrar armas.
Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a queda de símbolos. A queda da Bastilha, que fez do
14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudado em todo o mundo como
o princípio de libertação” (A era das revoluções, vol. I, pp. 109-110).
20 Cf. Paul Hugon, História das doutrinas econômicas, p. 88.
21Explica Norberto Bobbio: “É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto
de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm
deveres e não direitos. Nos Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos
privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não dó direitos privados, mas também
direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos” (A era dos direitos, p. 59).
22“Concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar),
que tem valor em sim mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo
e este não é feito pelo Estado” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p. 56).
23Nesse sentido, Ana Frazão de Azevedo Lopes, Empresa e propriedade: função social e abuso de poder
econômico, p. 30.
24 “A concepção fundamental do liberalismo é a de uma sociedade política instituída pelo consentimento dos
homens que viviam em estado de natureza e na qual cada um, sob a direção da vontade geral, vive em
liberdade e igualdade e com a garantia da propriedade de tudo que possui. O governo é simples
intermediário entre o povo e a vontade geral, à qual lhe cabe dar cumprimento, com um mínimo de
interferência e com o máximo empenho no sentido de assegurar a liberdade civil e política, bem como os
direitos naturais, porque estes preexistem ao Estado e não se sujeitam a restrições” (Amauri Mascaro
Nascimento, Curso de direito do trabalho, p. 24).
Esse Estado liberal seria marcado principalmente pela sua não intervenção na vida
privada25, garantindo a todos direitos individuais e tratamento igualitário. A primeira
providência foi formalizar a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que veio à
lume em 1789, na qual defendia-se o direito de todo cidadão à liberdade, à propriedade,
à igualdade – jurídica/formal, e não social-econômica/material – e de resistência à
opressão, típicos direitos de primeira geração26, logo seguida pela Constituição francesa,
em setembro de 1791, que, apoiada nos estudos de Montesquieu, estabelecia a
tripartição dos poderes, reconhecendo, como poderes independentes e harmônicos
entre si, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, implantando-se uma monarquia
constitucional como forma de governo, na qual o rei perdeu seus poderes absolutos em
favor daqueles três poderes constituídos27. André Ramos Tavares aponta, como
institutos decorrentes da Constituição francesa: a) universalização dos direitos
individuais – concebidos como limitações ao poder do soberano, antes atribuídos apenas
aos cidadãos, passam a ser estendidos a todos os homens; b) divisão dos poderes; c)
soberania nacional – que deixa de ser um poder pessoal do príncipe para tornar-se um
atributo da “Nação” e, após, do Estado; e d) o princípio da igualdade – revelando-se a
mudança mais importante de todas, permitindo o estabelecimento de novas instituições
políticas28. Isso tudo torna a Constituição francesa um dos mais importantes
instrumentos jurídicos dessa nova era liberal.

Mas não bastava para aplacar os anseios dos patrocinadores da revolução.

1.4. O Código Civil napoleônico.

Com a assunção de Napoleão Bonaparte ao poder, como Imperador da França,


cuidou-se de fazer uma lei que amparasse os direitos privados prometidos na revolução.
Assim, foi promulgado o Código Civil francês em 1804. A partir de então, todo cidadão
francês seria considerado efetivamente igual, sem distinção de classe, com liberdade

25 “O liberalismo econômico propugna pelo definhamento do poder do Estado, opondo-se veementemente


à interferência de regras estatais artificiais no processo econômico. O recuo do Estado permite a ascendência
do mercado, o qual, consoante o credo liberal, pela sua inerente racionalidade e natural tendência ao
equilíbrio, deve estabelecer a regulação social” (Mário Eduardo Martinelli, A deterioração dos direitos de
igualdade material no neoliberalismo, p. 49).
26 Conforme ensina Norberto Bobbio, “o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num
primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar
o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em
relação ao Estado...” (A era dos direitos, p. 32)
27“Foi na França que houve o estopim europeu para a ‘corrida constitucionalista’, inaugurando-se uma nova
etapa na ordem social do velho mundo. A revolução francesa derruba a monarquia e a nobreza, castas
dominantes até então, para impor uma Constituição escrita, com a preocupação de assegurar amplamente
seus ideais de liberté, egalité e fraternité” (André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 34).
28 Curso de direito constitucional, pp. 35-36.
para agir (entenda-se para contratar) como melhor lhe aprouvesse e com quem quisesse,
tendo garantido seu direito de propriedade privada (propriedade imobiliária) de forma
absoluta29.

Esse direito civil que surge na França era, destarte, fruto do Estado liberal que havia
surgido das cinzas da revolução e se consolidado na Constituição francesa. O Estado
passaria a se abster de interferir nas relações privadas, de sorte que os cidadãos passam
a ser livres para negociar e contratar entre si – desde que licitamente –, sem a intromissão
estatal indesejada de outrora. A expressão máxima desse direito civil liberal pode ser
sintetizada no brocardo latino “pacta sunt servanda”30.

Essa ideia de que o contrato faz lei entre as partes decorre exatamente da igualdade
entre os contratantes e da liberdade que eles tinham para contratar. Ora, se as partes
estão em situação de igualdade e são livres para contratar, uma vez celebrado o contrato,
ele deve ser cumprido à risca, porque entre os contratantes, o contrato é lei. E, por conta
disso, o contrato e suas cláusula não poderiam ser submetidos à revisão do Poder
Judiciário, pois configuraria a intromissão do Estado na liberdade de contratar dos
particulares, o que seria contrário à própria definição do Estado mínimo31.

O direito civil – liberal – francês vai servir de influência para muitos países, Brasil
incluído32.

2. A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL E OS ECOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA.

O Brasil também fez a sua revolução.

29O Código Civil francês atendeu, a bem da verdade, os interesses burgueses, que foram os financiadores da
revolução. Para a grande maioria do povo, que continuava na miséria, esses direitos poucos significavam.
30 Da lição de Arnaldo Süssekind: “afirmando a igualdade jurídico-política dos cidadãos (todos são iguais
perante a lei), a Revolução Francesa adotou o princípio do respeito absoluto à autonomia da vontade
(liberdade contratual), cuja consequência foi a não-intervenção do Estado nas relações contratuais (laissez-
faire)” (Direito constitucional do trabalho, p. 8).
31“O factível, assim, em termos de elaboração do conhecimento jurídico, cinge-se à definição de conceitos
meramente operacionais, que auxiliem a equação e solução dos conflitos de interesse, no contexto de uma
argumentação retoricamente eficaz. Nesse sentido, se, em sede de regime de direito público, se pode cogitar
dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, como os conceitos operacionais
basilares de pelo menos uma de suas divisões, para o regime de direito privado, ressaltam os da autonomia
privada e da igualdade. A disciplina da atividade econômica pertinente às relações entre particulares se pauta
assim no reconhecimento, pela ordem em vigor, da relativa possibilidade de eles próprios compatibilizarem
os seus interesses, num cenário jurídico de condições equilibradas” (Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito
comercial - vol. 1, pp. 8-9).
32Como narra Fábio Ulhoa Coelho, “o Código Civil de Napoleão, de 1804, influenciou fortemente toda a
codificação oitocentista dos direitos de tradição romanística, tanto em decorrência da conquista armada
como pelo seu reconhecido valor jurídico” (Curso de direito comercial - vol. 1, pp. 15).
Descoberto em 1500 pelo navegador lusitano Pedro Alvares Cabral, o Brasil logo se
tornou colônia de Portugal, colocando-se sob seu jugo. No período do Brasil colonial, as
leis aqui vigentes eram as de Portugal. Nesse período, o Brasil foi regido, essencialmente,
pelas Ordenações Afonsinas (de 1500 a 1521), Manuelinas (1521 a 1603) e Filipinas (1603
a 1822).

O Brasil declarou sua independência de Portugal em 07 de setembro de 1822, tendo


o então Príncipe Regente Dom Pedro I se tornado Imperador do Brasil. Com isso, e com
o País se libertando definitivamente do comando de Portugal, uma nova ordem jurídica
deveria se instalar, com uma produção legislativa original. O Decreto Imperial
promulgado em 20 de outubro de 1823 determinava que as leis portuguesas então
vigentes teriam eficácia no Brasil naquilo que não contrariasse os interesses e a soberania
nacionais, bem como o regime instaurado, enquanto novas leis não fosse promulgadas33.

Dom Pedro I, então Imperador, era um entusiasta da revolução liberal ocorrida na


França, e logo que assumiu o poder, convocou uma assembleia constituinte, para fazer a
primeira Constituição brasileira. Os moldes, por óbvio, seriam calcados na Constituição
francesa.

A assembleia constituinte se reuniu em 03 de maio de 1823. Ocorre que os trabalhos


não avançaram a contento, e o Imperador acabou por dissolver a constituinte em 12 de
novembro de 1823, redigindo ele mesmo – com a ajuda de dez notáveis – o texto
constitucional, que acabou outorgando em 25 de março de 182434.

A nossa primeira Constituição trazia, como modelo, o Estado liberal francês, com a
separação dos poderes. Todavia, diferentemente do que havia naquele país europeu, os
poderes, aqui, foram separados em quatro: executivo, legislativo, judiciário e moderador.
Esse poder moderador, que estava acima dos demais poderes, era o poder do próprio
imperador.

Esse modelo liberal da nosso primeira Constituição seria o modelo do próprio Estado
surgido a partir da proclamação da Independência. O Estado brasileiro emergia, assim,
como um Estado liberal. E isso iria ser refletir em toda produção legislativa subsequente,
como não poderia ser diferente.

33 Cf. Jônatas Luiz Moreira de Paula, História do direito processual brasileiro, pp. 219-220.
34“Em 1823, dissolveu a assembleia constituinte, que ele mesmo convocara, porque ela não se curvou às
suas exigências. No ano seguinte, porém, outorgou ao Brasil uma das constituições mais liberais da época e
até hoje a mais duradoura na história do país” (Laurentino Gomes, 1822, p. 113).
3. A REPÚBLICA E O CÓDIGO CIVIL DE 1916.

O fim do Império no Brasil se deu através de um golpe institucional que proclamou


a República em 15 de novembro de 188935. O então imperador Dom Pedro II foi destituído
do poder e mandado para o exílio em Portugal com sua corte. A República se impõe como
nova forma de poder e o Marechal Deodoro da Fonseca assume o governo provisório do
Brasil, mas mantém-se firme no espírito liberal. A Constituição de D. Pedro I de 1824
vigorou até 1891, quando um novo Congresso constituinte foi convocado, e uma nova
Constituição foi promulgada. Fortemente influenciada pela Constituição norte-
americana, a primeira Constituição da República mantinha a aura liberal.

Apesar disso, o Brasil ainda carecia de uma legislação que amparasse, de forma
efetiva, o direito privado, mais precisamente o direito civil. É certo que em 1850, ainda
na fase imperial, o Brasil viu promulgado o seu Código Comercial. Foi o primeiro código
elaborado em terra tupiniquins, e a razão disso é bem clara: com a vinda de Dom João VI
para o Brasil – fugindo das tropas de Napoleão – e a consequente transferência da Coroa
portuguesa para o Brasil, determinou-se a abertura dos portos, através do Decreto
Imperial (Carta Régia) de 28 de janeiro de 180836. Na prática, permitiu-se o livre comércio
marítimo no País, autorizando que qualquer um pudesse vir fazer negócios por aqui, sem
precisar de autorização prévia do governo português37. Mas havia, ainda, a necessidade
de contar com uma legislação civil própria e apropriada.

Ainda no período imperial, no ano de 1859, o jurista baiano Augusto Teixeira de


Freitas foi destacado para elaborar o projeto do que deveria ser o nosso Código Civil. Ele,

35“Em novembro de 1889, as relações entre o Exército e o governo imperial estavam deterioradas. Falava-
se muito a respeito da progressiva substituição dos batalhões da Corte pela Guarda Nacional e até que
escravos fiéis à princesa Isabel atacariam quartéis onde houvesse militares simpáticos à causa republicana.
No dia 14, novos boatos: circulava a notícia da detenção, por insubordinação, de Deodoro da Fonseca e
Benjamim Constant, então principais lideranças do Exército. Na manhã seguinte, os acontecimentos se
precipitaram. Deodoro, apesar de estar se recuperando de uma doença, toma a iniciativa, decretando a
prisão do visconde de Ouro Preto, chefe do Gabinete e presidente do Conselho de Estado; a agitação do
exército toma conta das ruas e é proclamado o fim da monarquia; dois dias mais tarde, a família real embarca
para a Europa, rumo ao exílio. ” (Mary Del Priore e Renato Venâncio, Uma breve história do Brasil, p. 211).
36 “No dia 28 de janeiro [...], D. João foi ao Senado da Câmara assinar o seu mais famoso ato em território
brasileiro: a carta régia de abertura dos portos ao comércio de todas as nações amigas [...]. A abertura dos
portos foi, sem dúvida alguma, benéfica ao Brasil e coincidia com as opiniões liberais de Silva Lisboa. Mas, na
prática, era uma medida inevitável. Com Portugal e o porto de Lisboa ocupados pelos franceses, o comércio
do reino estava virtualmente paralisado. Abrir os portos do Brasil era, portanto, uma decisão óbvia. Além
disso, a liberação do comércio internacional na colônia era uma dívida que D. João tinha com a Inglaterra. Foi
o preço que pagou pela proteção contra Napoleão, devidamente negociado em Londres em outubro de 1807
pelo embaixador português D. Domingos de Sousa Coutinho” (Laurentino Gomes, 1808, p. 107).
37 “Como resultado da abertura dos portos e da liberdade de comércio concedido por D. João em 1808, havia
surgido um crescente mercado brasileiro exportador e um próspero sistema de trocas internas entre
províncias, que já não dependia do monopólio nem da intermediação da metrópole portuguesa” (Laurentino
Gomes, 1822, p. 60).
que já havia elaborado a Consolidação das Leis Civis em 1858, foi convocado para esse
novo trabalho pelo então imperador D. Pedro II, através do Decreto Imperial de 11 de
janeiro daquele ano. O trabalho consumiu muito tempo, mas não chegou ao fim, dada as
constantes alterações no texto promovidas pelo seu autor (o seu esboço de Código Civil
chegou a contar com aproximadamente 5.000 artigos). Além disso, insatisfeito com a
demora dos trabalhos da comissão formada para a análise do seu projeto, Teixeira de
Freitas abandonou-o38.

Os trabalhos para a elaboração de um Código Civil foram retomados apenas em


1899, quando, no governo do presidente Campos Sales, o então Ministro da Justiça
Epitácio Pessoa convocou o jurista Clóvis Beviláqua para redigir um novo projeto.
Beviláqua levou apenas seis meses para realizar o mister, mas o Congresso Nacional levou
15 anos para a análise e discussão do projeto e sua ulterior promulgação39.

Assim, promulgado em 1º de janeiro de 1916, através da Lei n. 3.071, o Código Civil


brasileiro entrou em vigor em 1º de janeiro de 1917, após um período de um ano de
vacatio legis40.

Espelho de um dado momento histórico, reflexo de uma era, o Código Civil de


Beviláqua, além do trabalho de Teixeira de Freitas, tinha influência do Código Civil
francês, adotando o modelo liberal (e nem poderia ser diferente, porque a própria
constituição então vigente, de 1891, era totalmente liberal). Destarte, de cunho
notadamente individualista, aquele Código propugnava pela igualdade jurídica das
pessoas e pela liberdade de ação e contratação41, ao mesmo tempo que reconhecia o
direito absoluto de propriedade privada, bem como a autonomia da vontade e a força
vinculante dos contratos, decorrentes do pacta sunt servanda42.

38 Lembra Carlos Roberto Gonçalves: “A Constituição de 1824 referiu-se à organização de um Código Civil
‘baseado na justiça e na equidade’, sendo que em 1865 essa tarefa foi confiada a Teixeira de Freitas, que já
havia apresentado, em 1958, um trabalho de consolidação de leis civis. O projeto então elaborado,
denominado ‘Esboço de Código Civil’, continha cinco mil artigos e acabou não sendo acolhido, após sofrer
críticas da comissão revisora. Influenciou, no entanto, o Código Civil argentino, do qual constitui a base”
(Direito civil brasileiro, vol. 1, p. 35).
39 “Na Câmara dos Deputados o Projeto Beviláqua sofreu algumas alterações determinadas por uma comissão

especialmente nomeada para examiná-lo, merecendo, no Senado, longo parecer de Rui Barbosa. Aprovado
em janeiro de 1916, entrou em vigor em 10 de janeiro de 1917” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil
brasileiro, vol. 1, p. 36).
40 Código Civil de 1916, art. 1.806.
41“O contrato é signo da liberdade. Acreditava-se que o equilíbrio nas relações econômicas e trabalhistas
pudesse ser atingido diretamente pelos interessados segundo o princípio da autonomia da vontade. Assim,
esses códigos não revelam nenhuma preocupação com o problema social” (Amauri Mascaro Nascimento,
Curso de direito do trabalho, p. 26).
42Nesse mesmo sentido, relata Carlos Roberto Gonçalves: “Elogiado pela clareza e precisão dos conceitos,
bem como por sua brevidade e técnica jurídica, o referido Código refletia as concepções predominantes em
E assim seguiu o direito privado pátrio, nitidamente liberal, por quase toda a
primeira metade do século XX.

4. A CLT E A GUINADA DOS DIREITOS SOCIAIS.

O Brasil, como Estado liberal puro, não chegaria à segunda metade do século XX
ileso, por conta de todas as transformações que o mundo estava passando. Revolução
industrial e duas guerras mundiais mudaram a sociedade global, e a forma como os
direitos e o Estado deveriam ser encarados. As reivindicações, agora, não eram mais por
direitos fundamentais e garantias individuais clássicas, mas sim por direitos políticos e
sociais, que impõe ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo pelo
cidadão, como direitos típicos de segunda geração43. O liberalismo, em xeque, estava
sendo colocado contra a parede44.

No Brasil, Getúlio Vargas vivia seu terceiro mandato como Presidente, agora como
ditador do chamado Estado Novo45. Suas influências, ninguém discorda, vinham do
ditador fascista italiano Benito Mussolini, a quem tinha como ídolo e a quem,
publicamente, declarava admiração. A Constituição de 1937 – influenciada pelo fascismo
polonês e por isso mesmo apelidada de polaca (com notado duplo sentido) – empurrava
ao país um Estado autoritário, centralizado e antiliberal, com o fechamento do
parlamento e a supressão do sufrágio para prefeitos e governadores, bem como da
liberdade partidária, da independência dos poderes e o do federalismo. Em meio a tudo
isso, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, Getúlio Vargas promulgou a nossa
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), através do Decreto-Lei n. 5.452, em 1º de maio
de 1943.

fins do século XIX e no início do século XX, em grade parte ultrapassadas, baseadas no individualismo então
reinante, especialmente ao tratar do direito de propriedade e da liberdade de contratar” (Direito civil
brasileiro, vol. 1, p. 39).
43Ainda segundo Bobbio: “...num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais –
concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como
autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos
membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados
os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos
valores –, como os do bem-estar e da legalidade e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar
de liberdade através ou por meio do Estado” (A era dos direitos, p. 32).
44“Se o liberalismo, como afirma Aron, não é, por si só, gerador de desigualdade, é certo entretanto que,
graças a ele, e à sua sombra, haviam sido cometidos os maiores abusos dos fortes contra os fracos, havia sido
anulada a liberdade, e o próprio Estado, em vez de simples assistente dos acontecimentos, passara, sob o
domínio do capitalismo, a ser um instrumento de opressão contra os menos favorecidos” (Segadas Vianna,
Instituições de direito do trabalho – vol. 1, p. 36).
45“...entre 1937 e 1945, Getúlio Vargas, com a capa institucional que lembra governos fascistas europeus,
torna-se um chefe militar em escala nacional” (Mary Del Priore e Renato Venâncio, Uma breve história do
Brasil, p. 253).
A CLT vai representar uma ruptura no direito privado pátrio. Ela regula uma relação
eminentemente de direito privado (contrato de trabalho), mas é marcada por ser uma
norma de ordem pública46. Isso significa dizer que suas regras não estão sujeitas a
disposição por iniciativa das partes contratantes. Sendo de ordem pública, as normas
celetistas são de observância obrigatória, não estando inseridas, pois, na autonomia da
vontade dos contratantes.

O principal motivo que levou ao estabelecimento de normas de proteção ao trabalho


foi a percepção, bastante óbvia, de que, no contrato de trabalho, não há igualdade entre
contratantes – decorrente da situação flagrantemente desigual entre o poder econômico
do capital contra a premente necessidade do trabalhador. E, por conta dessa mesma
necessidade, não há, para o trabalhador, liberdade de contratação, que acabaria por
aceitar qualquer condição que lhe fosse imposta para ser contratado. Não há liberdade
onde há fome: o empregado não trabalha por prazer ou porque quer. Ele trabalha porque
precisa; porque tem contas para pagar; porque tem família para alimentar.

Ausentes, sim, a igualdade e a liberdade naquela relação jurídica de trabalho


subordinado, não se poderia falar em pacta sunt servanda, impondo-se a atuação do
Estado, interventivamente, como forma de proteger o hipossuficiente. E essa proteção
teria que vir na forma de lei.

Na prática, o que se tem na CLT é o Estado interferindo diretamente numa relação


de direito privado, rompendo, pois, com o paradigma do Estado liberal47.

Essa ruptura, no entanto, não foi totalmente sentida na época, por duas principais
razões: 1ª) estava restrita, apenas, ao direito do trabalho e; 2ª) o Estado Novo logo
capitulou e, em 1946, uma nova Constituição, de caráter neoliberal, foi promulgada.
Assim, o direito civil continuava a seguir o caminho do liberalismo apoiado no intocado
Código Civil de 1916, em quase nada afetado por aquela onda social-publicista.

46“Não bastaria a lei outorgar direitos ao empregado. Era preciso mais. Não só a lei não poderia ser alterada
pela vontade das partes, mas também as manifestações de vontade do operário – da época do direito do
trabalho como direito do operário – não tinham nenhum valor jurídico quando prejudiciais a ele – in pejus.
Para que tal objetivo pudesse ser alcançado, a doutrina criou um conceito importante para o direito do
trabalho. O conceito de leis de ordem pública absoluta, que o direito do trabalho foi buscar no direito público,
migrando-o para o sistema legal trabalhista, passou a desempenhar um papel importante como meio de
fazer com que a lei trabalhista fosse eficaz” (Amauri Mascaro Nascimento, Curso de direito do trabalho, p.
292).
47“Passava o Estado a exercer sua verdadeira missão, como órgão de equilíbrio, como orientador da ação
individual, em benefício do interesse coletivo, que era, em suma, o próprio interesse estatal” (Segadas
Vianna, Instituições de direito do trabalho, p. 39).
Interlúdio: os anos do regime militar.

O Brasil continuou sofrendo modificações na sua vida política ao longo do século XX


e a mais sentida delas talvez tenha sido o golpe militar de 1964.

Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros, então Presidente da República, renunciou


ao cargo. Seu vice, João Goulart, assumiu a presidência e, logo em seguida, a emenda
constitucional n. 4 instituiu, no Brasil, o sistema parlamentarista, que não deu certo e não
se manteve por muito tempo, voltando o País a ter um regime presidencialista em janeiro
de 1963.

O momento conturbado pelo qual o País passava48 levou os militares a destituírem


o Presidente, no dia 31 de março de 1964. Assumiu a presidência o general Camilo
Castello Branco, o primeiro de cinco presidentes militares, que passou a reger o Brasil por
meio de decretos denominados de Atos Institucionais (AI). O regime ditatorial militar
governou o Brasil por 21 anos, até 1985, período no qual vimos o fechamento do
parlamento e o fim das eleições majoritárias para Presidente da República e cassação
arbitrária de direitos políticos.

Em 1967, o então Presidente Castello Branco, amparado no AI-4, outorgou ao País


uma nova Constituição. Não era uma Carta democrática: pelo contrário, ela atendia aos
desígnios do regime militar, então endurecido49. Foi o momento menos liberal do País
desde sua independência, em 1822. Em 1969, com o País sendo governado por uma Junta
Militar composta pelos comandantes das três armas em razão da doença que acometeu
o Presidente Costa e Silva, por meio da Emenda Constitucional n. 1 outorgou-se uma nova
Constituição (muitos entendem que não se trata de uma nova Constituição, mas sim de
uma nova redação à Constituição de 1967), abrandando o caráter autoritário da
Constituição anterior50.

48 “A experiência parlamentarista, implementada às pressas, se revela um fracasso. A crise econômica


conjuga-se à quase paralisia do sistema político. Auxiliado por tais circunstâncias e pela campanha que faz,
João Goulart consegue não só antecipar o plesbicito, como também dele sair vitorioso. Em janeiro de 1963,
o Brasil volta a ser presidencialista. Dessa data até março de 1964, assistimos a uma progressiva radicalização
entre os setores nacionalistas e antinacionalistas” (Mary Del Priore e Renato Venâncio, Uma breve história
do Brasil, p. 272).
49 Como lembra Marco Antonio Villa: “Com uma Carta Magna confeccionada ao gosto do poder militar
discricionário e que ‘constitucionalizava’ a violência estatal, coube ao Congresso cumprir obedientemente as
imposições de Castello Branco, pois dizia que ‘continuidade da obra revolucionária deverá ficar assegurada
por uma nova Constituição, que, a par da unidade e harmonia, represente a institucionalização dos ideais e
princípios que a inspiram’” (Ditadura à brasileira, p. 98).
50 “Desde o início do ano, a presidente estava desejando dar outro corpo à Constituição de 1967, preparando
o país para um processo de transição à democracia [...]. A emenda estava longe, muito longe, do liberalismo.
Contudo, para aquele momento, sob a vigência do AI-5, Congresso fechado, supressão das liberdades
Apesar da restrição das liberdades individuais – especialmente as liberdades
políticas – o direito civil pouco sofreu no período ditatorial, mantendo-se hígido e
inalterado o Código Civil de 1916. A principal razão disso é que a ditadura militar
brasileira, diferente de outras ditaduras no mundo, não era comunista: era uma ditadura
de direita.

Destarte, o individualismo, a liberdade de contratar, a igualdade formal dos


contratantes e o respeito absoluto à propriedade privada continuaram a ser a tônica do
direito privado, mesmo durante os duros anos do regime militar.

5. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O ESTADO SOCIAL.

Em 1985 o Brasil vai sofrer uma nova reviravolta, com a corrida presidencial
contando com dois candidatos civis, e consequente a eleição – indireta, lembre-se – de
Tancredo Neves ocorrida em 15 de janeiro daquele ano, no que seria marcado como o
fim da ditadura militar no País. Mas o Presidente eleito não chegou a assumir o governo,
vindo a falecer em 21 de abril de 1985. Em seu lugar, assumiu o seu vice, José Sarney.

Mas o Brasil voltava a flertar com a democracia.

Cumprindo uma obrigação assumida antes da eleição, o Presidente da República


convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, para elaborar uma nova Constituição
que colocasse o País novamente nos eixos democráticos. Essa Assembleia reuniu-se em
1º de fevereiro de 1987, resultante da Emenda Constitucional n. 26/1985. Depois de mais
de um ano e sete meses, a Constituinte encerrou seus trabalhos no dia 22 de setembro
de 1987. A Constituição Federal foi promulgada em 05 de outubro de 1985.

Uma situação que quase comprometeu os trabalhos da Constituinte foi a clara


divisão entre dois polos antagônicos: os extremistas da direita e os extremistas da
esquerda. Essa polarização impedia que as discussões chegassem a um consenso, e, por
consequência, nada era aprovado. A Constituição somente começou a tomar forma
quando setores menos extremos dos dois lados se reuniram, num grupo que ficou
conhecido como “Centrão”. Mais moderado, esse grupo acabou por intermediar as
conversas entre os dois lados antagônicos e o resultado final foi uma Constituição com
influências tanto de posições de direita quanto de esquerda, mas que ficou pelo meio –
onde, dizem, está a virtude.

democráticas e graves ocorrências de violações dos direitos humanos, poderia ser considerada um avanço”
(Marco Antonio Villa, Ditadura à brasileira, pp. 138-139).
Podemos dizer, assim, que a Constituição de 1988 inaugura uma nova etapa no
Estado brasileiro: o Estado do liberalismo social.

Esse novo Estado, ao mesmo tempo que garante e reconhece os direitos do


indivíduo, coloca-o à submissão dos interesses sociais51. Um bom exemplo é o direito de
propriedade. Enquanto o inciso XXII do art. 5º o garante52, o inciso XXIII impõe a sua
função social53. Isso significa que o Estado brasileiro vai respeitar o direito de
propriedade, mas esse direito só se mostrará legítimo quando atender a sua função
social54.

Destarte, no Estado Democrático de Direito propugnado pela Constituição de 1988,


o direito de propriedade do indivíduo não mais será um direito absoluto, como se
proclamava em outrora55. A nossa Constituição Federal vincula o direito de propriedade
à sua função social, de forma que tal direito só será absoluto – e legítimo – se assim
exercido. A função social no Estado Democrático de Direito é decorrente dos princípios
de igualdade e justiça, mencionados no Preâmbulo da Constituição, e da dignidade da
pessoa humana, presente no art. 1º, III, devendo ser interpretada de maneira sistemática
com os objetivos previstos no art. 3º, de erradicação da pobreza, da marginalização e a
redução das desigualdades sociais e regionais56.

Incorpora-se, também, o reconhecimento de que a igualdade que deve haver entre


as pessoas não é a igualdade da Revolução Francesa (igualdade formal). Daí o disposto

51“Essa tendência, que se manifestou em Cartas que a antecederam, nas reformas europeias, constitui um
dos pontos referenciais dos Estados modernos, em que o predomínio do social é o elemento de fundo, nas
assim denominadas ‘democracias sociais’. A ‘opção pelos pobres’, que serviu de bandeiras para a ruptura
com o militarismo, inseriu-se nessa filosofia, em que se substitui o ‘Estado individualista’ pelo ‘social’,
destinado à obtenção de justiça social” (Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho, Direito civil
constitucional, p. 18).
52 XXII - é garantido o direito de propriedade.
53 XXIII - a propriedade atenderá a sua função social.
54 Conforme pudemos afirmar em outra obra, “no que tange ao primeiro aspecto, ou seja, aos bens de uso,
temos que a nossa Constituição, seguindo o norte do Estado Democrático de Direito, ao mesmo tempo em
que garante ao indivíduo o direito à propriedade privada (art. 5º, XXII), assegura à sociedade a função social
da propriedade (art. 5º, XXIII). Tais proposições, à primeira vista, podem parecer contraditórias, mas derivam,
sem sombra de dúvida, do compromisso assumido pelo legislador constituinte entre as concepções liberais
e sociais do Estado” (Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito ambiental empresarial, p. 204).
55 “Todas as declarações recentes dos direitos dos homens compreendem, além dos direitos individuais
tradicionais, que consistem em liberdades, também os chamados direitos sociais, que consiste em poderes.
[...] Quanto mais se aumentos os poderes dos indivíduos, tanto mais se diminuem as liberdades dos mesmos
indivíduos” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p. 21).
56 Cf. Fernando Augusto De Vita Borges de Sales, Direito ambiental empresarial, pp. 204-205.
no art. 5º, caput57: ao estabelecer que todos são iguais perante a lei, a Constituição
reconhece, na verdade, as diferenças existente entre as pessoas. A correta interpretação
do princípio constitucional da igualdade é de que todos são diferentes é a lei que vai
reestabelecer a igualdade entre as pessoas. Aplica-se, aqui, o conceito de igualdade de
Aristóteles, segundo qual deve-se dar tratamento igual aos iguais e tratamento desigual
aos desiguais, na exata medida das suas desigualdades. É a chamada igualdade material.
E, em face dessa desigualdade constitucionalmente reconhecida, a legislação posterior à
Constituição de 1988 passa a ser produzida de maneira específica, para atender,
especificamente, às diferenças materiais entre as pessoas ou grupos de pessoas. Criando
leis específicas torna-se mais fácil atender ao grupo à qual ela é dirigida, e, por
consequência, mais fácil diminuir as diferenças existentes58. Daí vem que após o advento
da Carta Constitucional, surgiram o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Torcedor, Estatuto da Pessoa
com Deficiência, etc.

O reconhecimento constitucional de que não há igualdade entre as pessoas nem


liberdade de contratar – o que, de resto, já havia sido reconhecido anos atrás pelo Direito
do Trabalho – bem como de que a propriedade não é um direito absoluto, vai influenciar
diretamente o direito privado brasileiro, em especial o direito civil.

O Código Civil de 1916 já não mais se prestava a ordenar o direito civil em face da
Constituição Federal de 1988 e tinha que ser substituído.

6. O CÓDIGO CIVIL DE 2002 E A FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO PRIVADO.

A Constituição Federal de 1988, atenta aos acontecimentos mundiais do século XX,


contemplou as três gerações do direito: os direitos individuais, os direitos sociais e os
direitos difusos e coletivos. Apoiada na busca da justiça social, ela inaugura um novo
Estado brasileiro, que podemos chamar de Estado do liberalismo social. Com isso, todo o
ordenamento jurídico, por consequência, sofrerá uma mudança de paradigma, incluindo
o direito privado em geral e, em particular, o direito civil.

57Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade...
58“Essa especificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida, seja à diferença entre
estado normal e estados excepcionais na existência humana. Com relação ao gênero, foram cada vez mais
reconhecidas as diferenças específicas entre a mulher o homem. Com relação às várias fases da vida, foram-
se progressivamente diferenciando os direitos da infância e da velhice, por um lado, e dos do homem adulto,
por outro. Com relação aos estados normais e excepcionais, fez-se valer a exigência de reconhecer direitos
especiais aos doentes, aos deficientes, aos doentes mentais, etc.” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p.
59).
Mas antes de concebermos um novo Código Civil que pudesse estar em sintonia com
a Constituição Federal, uma outra lei, igualmente importante, veio a lume: o Código de
Defesa do Consumidor (CDC).

Interlúdio II: o Código de Defesa do Consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor foi introduzido no ordenamento jurídico pela Lei


8.078/1990, por conta do disposto no art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal59.

Destinado a regular uma relação tipicamente de direito privado, como são as


relações de consumo, o CDC baseia-se inicialmente no princípio constitucional da
igualdade, reconhecendo que não há igualdade entre consumidor e fornecedor60, o que
decorre do reconhecimento expresso de que todo consumidor é vulnerável (CDC, art. 4º,
inciso I). Além disso, não há a liberdade de contratar, substituída que foi pela necessidade
de contratar, fulminando a autonomia da vontade.

A proteção do consumidor em face do fornecedor estabelecida no CDC decorre de


dois principais fundamentos: a falta de igualdade material entre os contratantes e a
ausência da autonomia da vontade na contratação. Em razão disso, não seria possível
deixar que as relações de consumo pudessem se dar livremente, guiada pela força
vinculante dos contratos do Código Civil de 1916. Por isso mesmo que o CDC, logo de
início, deixa expresso que suas disposições constituem normas de ordem pública (art. 1º),
que não podem, portanto, ser suprimida nem suplantadas pela vontade das partes, sendo
em que em caso de abusividade das cláusulas contratuais, o juiz poderia declara-las nula,
mesmo de ofício (CDC, art. 6º, V c.c. art. 51).

Assim, o contrato de consumo, por si só, não faz lei entre as partes, eis que não
vincula as partes contratantes no caso de haver cláusula abusivas. Também não vincula
o consumidor o contrato do qual não lhe foi dado oportunidade de ter conhecimento
prévio do instrumento ou que seja redigido de modo a dificultar o seu entendimento (art.
46).

O CDC iria modificar, de maneira substancial, a forma como o direito privado seria
encarado dali para a frente, inclusive o próximo Código Civil.

59 XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;


60 Segundo Luiz Antonio Rizzatto Nunes, “para interpretar adequadamente o CDC, é preciso ter em mente
que as relações jurídicas estabelecidas são atreladas ao sistema de produção massificado, o que faz com que
se deva privilegiar o coletivo e o difuso, bem como que se leve em consideração que as relações jurídicas são
fixadas de antemão e unilateralmente por uma das partes – o fornecedor –, vinculado de uma só vez milhares
de consumidores. Há um claro rompimento com o direito privado tradicional” (Curso de direito do
consumidor, p. 69).
7. RETOMANDO O CÓDIGO CIVIL DE 2002.

Desde os anos 1960 debatia-se a necessidade de fazer um novo Código Civil para
substituir o do Clóvis Beviláqua que já mostrava sinais de cansaço causados pelo tempo.
Afinal, o mundo havia sofrido muitas e significativas mudanças no decorrer do século XX,
e o Brasil acompanhava essas mudanças.

O primeiro projeto foi confiado a Miguel Reale, em 1967, que o elaborou com a ajuda
de notáveis juristas da época, apresentando-o ao Congresso Nacional em 197261, onde
ficou parado. O projeto foi retomado em 2001, no governo do Presidente Fernando
Henrique Cardoso. Promulgado em 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor em 10 de
janeiro de 2003, após o período de um ano de vacatio legis (CC, art. 2.044).

Com a promulgação da Constituição de 1988 a necessidade de um novo Código Civil


acentuou-se, em razão das significativas alterações na estrutura e princípios do direito
privado, para os quais o Código de 1916 era ou insuficiente ou incompatível62. Por conta
disso, o Código Civil de 2002 é uma obra que reflete o seu tempo e, como não poderia
ser diferente, deita sintonia com a Constituição Federal – e, consequentemente, com o
Estado do liberalismo social inaugurado a partir dela. Assim é que ele minimiza as
concepções individualistas, ao passo que adota, como princípio, a função social63.

61 “Essa comissão apresentou, em 1972, um anteprojeto, com a disposição de preservar, no que fosse
possível, e no aspecto geral, a estrutura e as disposições do Código de 1916, mas reformulando-o, no âmbito
especial, com base nos valores éticos e sociais revelados pela experiência legislativa e jurisprudencial.
Procurou utilizar a técnica deste último, que em muitos pontos foi superado pelos progressos da Ciência
Jurídica, bem como afastar-se das concepções individualistas que nortearam esse diploma para seguir
orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo, sem se descuidar do valor fundamental
da pessoa humana” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro – vol. 1, p. 40).
62 Analisando o direito privado em face da Constituição de 1988, Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar
Filho esclarecem: “Assim, a interpretação deve perfazer-se não pela letra do texto, mas pelo espírito da Carta,
ou seja, em consonância com sua índole e a natureza de seus comandos, que, pelo porte das mudanças
ditadas, impunha a reformulação de todo o direito posto no Código Civil de 1916 e em leis outras de cunho
privado, caracterizadas todas por constituírem normas individualistas, paternalistas, não-intervencionistas,
inspiradas ideias ora superadas. Em seu lugar, deverão advir, progressivamente, normas em que a ênfase dos
aspectos moral e social, do princípio igualitário e da intervenção supletiva do Estado esteja presente, em
consonância com a própria vida da sociedade nessa quadra da História da humanidade” (Direito civil
constitucional, p. 23).
63“O individualismo, traço marcante e preponderante do sistema liberal francês que influenciou o direito
brasileiro no início do século XX, perdeu força com a revolução industrial e com as doutrinas socializantes,
até ser mitigado no paradigma do Estado Democrático de Direito, que privilegia o interesse social sobre o
particular, passando a buscar um sentido social na propriedade” (Fernando Augusto De Vita Borges de Sales,
Direito ambiental empresarial, p. 205).
O Código Civil de 2002 veio para acompanhar as mudanças sociais verificadas no
mundo, em geral, e no Brasil, em particular. Essas mudanças afetaram a legislação de
vários países, e se mostraram uma tendência a ser seguida, na qual abandona-se a ideia
de direitos subjetivos absolutos, em favor da sua relativização64. Os direitos individuais,
conquanto reconhecidos e garantidos, não poderiam se sobrepor aos interesses sociais e
coletivos65.

A título de ilustração, podemos flertar com a função social do contrato, conforme


estabelecido no art. 421 do Código Civil66. Ao estabelecer que o contrato deve atender a
uma função social, o Código rompe definitivamente com a ideia ultrapassada de que o
contrato é inflexível; de que faz lei entre as partes, na medida em que se deve olhar o
contrato sob o aspecto social. Os interesses pessoais, individuais e privados dos
contratantes não podem se sobrepor aos interesses da sociedade67. E, por conta disso,
decorrem todos os outros princípios elencados nos arts. 42268, 42369 e 42470 que, atuando
como cláusulas gerais impostas pela lei a todos os contratos, relativizam a força
vinculante contratual que era a tônica da legislação anterior revogada71.

64 “...dois direitos fundamentais,


mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um fundamento absoluto [...]
historicamente, a ilusão do fundamento absoluto de alguns direitos estabelecidos foi um obstáculo à
introdução de novos direitos, total ou incompatíveis com aqueles” (Norberto Bobbio, A era dos direitos, p.
21).
65Como afirma Norberto Bobbio: “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar,
com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder,
dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. Direitos que foram
declarados absolutos no final do século XVIII, como propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a
radicais limitações nas declarações contemporâneas; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer
mencionavam, como direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes
declarações” (A era dos direitos, p. 18).
66 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
67De acordo com Humberto Theodoro Jr., “a função social do contrato consiste em abordar a liberdade
contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes
que o estipulam (contratantes) ” (O contrato e sua função social, p. 31).
68 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução,

os princípios de probidade e boa-fé.


69Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a
interpretação mais favorável ao aderente.
70 Art.424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente
a direito resultante da natureza do negócio.
71 “O que todas essas desventuras nos dizem sobre a moralidade dos contratos? Que sua força moral se
origina de dois ideais diferentes: autonomia e reciprocidade. Mas a maioria dos contratos fica aquém desses
ideais. Se eu estiver diante de alguém com maior poder de barganha, é possível que minha aquiescência não
seja totalmente voluntária, mas esteja subordinada a algum tipo de pressão ou, na pior das hipóteses, de
coação...” (Michael J. Sandel, Justiça, p. 187).
Em relação à propriedade privada, o Código Civil foi além do estabelecido na
Constituição, eis que o art. 1.228, § 1º72, faz referência, também, à função econômica e
ambiental da propriedade, além da função social73.

Mas, talvez, o mais emblemático dispositivo do Código Civil de 2002, e que bem
demonstra essa mudança de padrão, seja o art. 18774, que reconhece o abuso do direito
como sendo um ato ilícito. Ora, se ao estabelecer que o indivíduo que, embora possua o
direito, venha dele abusar comete ato ilícito, sujeito à reparação do dano, resta claro que
os direitos subjetivos são todos eles, relativos. Deste modo, mesmo sendo detentora ou
titular de um direito, a pessoa somente poderá fazer uso dele desde que atenda a sua
função social75. A partir daí podemos afirmar a existência, reconhecida no Código Civil,
do princípio da função social do direito.

Destarte, vamos verificar que o Código Civil de 2002 assumiu princípios de ordem
pública, estabelecendo a função social de vários institutos importantes, que não apenas
tendem a coibir o uso abusivo, como também procuram inseri-los no contexto de
utilização para o bem comum, rompendo com a tradição liberal francesa que marcava o
Código anterior.

Referidos princípios não podem ser suplantados por nenhum tipo de convenção dos
particulares, conforme estabelece o parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil76,
dispositivo legal que se torna o elo, que fará ligação com o espírito da Constituição
Federal de 198877.

72 Art.
1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder
de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico
e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
73 “... mais do que mera função social, o dispositivo civil prevê a função socioambiental do domínio, não
podendo o exercício do direito de propriedade gerar danos ao meio ambiente natural, cultural ou artístico”
(Flávio Tartuce, A função social dos contratos, p. 48)
74 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
75 Um bom exemplo disso é o disposto no § 2º do art. 1.228 do Código Civil: “são defesos os atos que não
trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar
outrem”.
76Art. 2.035. (...). Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem
pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos
contratos.
77 Cf. Flávio Tartuce, A função social dos contratos, p. 49.
CONCLUSÃO.

Nesses poucos mais de cem anos, o direito civil brasileiro sofreu sensíveis alterações,
decorrentes das próprias modificações que ocorreram no mundo todo. De origem liberal,
calcado no espírito da Revolução Francesa, o Código Civil de 1916 apoiava-se no
individualismo, na igualdade formal e na liberdade irrestrita de contratar, bem como no
direito absoluto da propriedade. Ele refletia o próprio Estado brasileiro, totalmente
liberal desde a declaração de independência, o que foi reafirmado com a Constituição
Federal de 1824.

Mas as transformações do mundo decorrentes da Revolução Industrial e das duas


Guerras Mundiais acabaram por influenciar decisivamente o modo como os direitos
deveriam ser encarados, inclusive no Brasil, e a busca e reivindicações por direitos sociais
intensificou-se, até que eles ganharam reconhecimento. É verdade que, a princípio, de
maneira acanhada, restrita apenas ao Direito do Trabalho, com o decorrer do tempo
alçaram importante colocação. E a razão principal disso deu-se com a Constituição
Federal de 1988, que mudou a feição do Estado brasileiro, no que passamos a chamar de
Estado do liberalismo social.

A Constituição de 1988, como não poderia deixar de ser, passou a regular o Direito
Civil e sobre ele exercer total influência. Por essa razão, fez necessário ter um novo
Código Civil, que estivesse em sintonia com esse novo Estado. O Código Civil de 2002
surgiu, dessa forma, inaugurando o novo Direito Civil pátrio e, fazendo conjunto com o
Código de Defesa do Consumidor, dando ao direito privado brasileiro os contornos
exigidos pelos novos tempos.
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