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Recebido em 31/07/2021
Aceito em 27/09/2021
DOI: 10.26512/emtempos.v1i39.36907
ARTIGO
Apontamentos sobre uma História da travestilidade:
costume, perversão, arte e identidade
Notes on a history of travestility:
social practice, perversion, art and identity
RESUMO: Escrito com base em pesquisa realizada para produção de TCC, este artigo
levanta alguns apontamentos para a escrita de uma história da travestilidade, identidade de
gênero própria da América Latina, especificamente do território brasileiro. Através de análise
historiográfica de documentação e memória, pretendo retomar quatro principais momentos
dessa história: 1) uma proto-existência lida enquanto costume; 2) a patologização,
criminalização e marginalização; 3) a experimentação enquanto forma artística e, por fim; 4)
a conformação e afirmação enquanto identidade. Estes momentos não se seguem um ao outro,
mas coexistem, apontando a dialética do movimento de criação do ser travesti.
PALAVRAS-CHAVE: Travestilidade. Sexualidade. História.
ABSTRACT: Written based on an undergraduate thesis, this paper brings up notes for a
history of travestility, gender identity sole from Latin America, specifically from brazilian
territory. Through historiographic analysis of documentation and testimonials, I intend to
delimit four major moments of this history: 1) a proto-existence read as a social practice; 2)
its pathologization, criminalization and marginalization; experimentation as artistic form
and, at last; 4) conformation and affirmation as identity. These moments do not follow each
other, but coexist, showing the dialectics of the movement of creation of being travesti.
KEYWORDS: Travestility. Sexuality. History.
Introdução
Em pesquisa realizada acerca da tradição do transformismo no Brasil, deparei-
me com uma questão que parece ser muito cara a quem estuda a sexualidade humana
no país: a questão dos pronomes. Sabe-se que o costume da utilização de nomes e
pronomes femininos dentro de grupos de homossexuais masculinos é prática antiga
(TREVISAN, 2002), entretanto é incerto, ao analisar fontes e pesquisas sobre o tema, se
as parcas referências à identidades trans se devem ao silêncio dos sujeitos observados
ou à falta de conhecimento (e, muitas vezes, tato) do pesquisador.
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Costume
Tanto em Green (2000) quanto em Trevisan (2002) pode-se observar desde a
primeira metade do século XX indícios de negociação no que tange à prática do “vestir-
se de mulher”2. Disputando entre o permissivo histórico colonial e as pressões
medicalistas que passam a patologizar e criminalizar a sexualidade não-normativa, o
período do carnaval torna-se um evento recorrente e emblemático no seguimento desse
processo.
Com o crescimento do policiamento aos costumes (não apenas através do aparato
repressivo de Estado, mas também a partir dos aparelhos privados de hegemonia), as
festividades carnavalescas representaram durante algumas décadas um espaço de
1 Essa informação é corroborada por Jaqueline de Jesus (2012), mulher transexual e doutora em psicologia
social. Cf.: JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos.
Brasília: 2012 (Publicação online).
2 Não ficou claro, em nenhuma de minhas pesquisas, qual o termo utilizado neste período. Conforme
Green (2000) afirma, “travesti” não será utilizado até 1953, pela revista Manchete, portanto considero por
bem não usar o termo “travestismo” de Trevisan (2002), fortemente associado à patologização da
transexualidade.
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É neste cenário que surge, em 1930, o bloco Caçadores de Veados, organizado por
Antônio Setta, conhecido como “Rainha”. Como crítica à perseguição aos homossexuais,
o bloco desfilava pelas ruas cariocas com seus membros usando roupas luxuosas, como
plumas e vestidos de lantejoulas. Jornais e revistas então começaram a distinguir o
tradicional fantasiar-se cômico praticado por normativos do transformismo, que não
fazia chacota da feminilidade, mas buscava mimetizá-la.
A cobertura jornalística da folia dos não-normativos contribuiu largamente para
a construção da identidade travesti, uma vez que buscaria definir o que e quem eram
aqueles que praticavam o transformismo, o que faziam, que lugares frequentavam e no
que acreditavam. Mas não apenas a mídia hegemônica4 exerceu esse poder. Jornais
independentes organizados por grupos de homossexuais, como O Snob e posteriormente
O Lampião da Esquina, também contribuíram para essa construção, nem sempre da
forma mais positiva, buscando dar um ponto de vista dos “entendidos”. Foi O Snob, em
sua edição de dezembro de 1968, o responsável por propor integrar-se e desfilar em
Hora RJ).
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escolas de samba5 como alternativa aos bailes de carnaval, então impossibilitados pela
recém-decretada proibição do “travestismo”6.
A mudança pela qual o Brasil passava nesse momento, que ia desde o campo
econômico ao dos costumes, é fundamental para entender, talvez não o processo de
surgimento da travestilidade, mas a forma pela qual ela encontrou seu espaço. É assim
com a forte influência da cultura estadunidense desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, principalmente através do cinema e da música e dos movimentos de
contracultura, que provocaram uma flexibilização dos códigos de vestuário.
Perversão
Ainda que a travestilidade não seja, como acredita o senso comum, um
desdobramento da homossexualidade masculina, no Brasil, ela será pensada e exercida
a partir do “vestir-se de mulher”, especificamente daquele praticado por não-
normativos.7 Isso porque, segundo Eagleton (1997), o surgimento de uma nova
identidade não parte de um vazio teórico abstrato, mas de uma leitura e adaptação de
experiências do passado, em que o sujeito, em primeiro momento, identifica-se (ou é
identificado) com alguma identidade demarcada dentro do contexto em que está inserido
e, a partir do momento em que adquire novos conhecimentos, novas experiências, novas
visões de mundo, disputa e remodela sua identidade. Dessa forma, faz-se necessário
analisar a forma como a sociedade brasileira e também o Estado lidaram com os
homossexuais8.
Desde o final do século XIX, o crescente interesse pelo estudo da sexualidade
demonstrava seu potencial normatizador e mantenedor das estruturas de dominação,
quando discursividade médica saiu em defesa da família nuclear, sustentáculo do
capitalismo dependente terceiro-mundista que começava a se desenvolver na América
Latina. Não é de estranhar, portanto, que em 1872 o médico farmacologista Francisco
Ferraz de Macedo refira-se a prostitutos masculinos como “bagaxa”9 em estudo
5 Desde meados da década de 1960, os desfiles das escolas de samba vinham chamando a atenção da classe
média, que passou a participar dos desfiles, e da elite carioca, que observava os desfiles do alto de seus
balcões e sacadas. Green (2000) vê o interesse em unir-se às escolas de samba não apenas como forma de
manutenção do costume, mas vendo nos projetos e na execução de fantasias e carros alegóricos um retorno
ao glamour dos shows de vedetes.
6 Fiz algumas tentativas de acessar o site da Casa Civil para verificar a procedência da legislação, uma
vez que Green não deixa claro a qual proibição se refere. Infelizmente este se encontrava indisponível
todas as vezes. Suspeito que Green (2000) se refira ao AI-5, dado que em outros momentos do texto
também tenha se referido a este como uma “proibição ao travestismo” [sic], ainda que não o seja
exatamente.
7 Nas pesquisas utilizadas como referência para este trabalho, muitos são os nomes utilizados ao longo do
tempo para referir-se a essas pessoas, seja em registros médicos, jurídicos ou orais. Entre eles, os mais
comuns serão: bicha, boneca, entendido, homossexual, invertido, pederasta, transviado; muitos deles
considerados, nos dias de hoje, extremamente ofensivos, dependendo de quem os utiliza.
8 Trevisan (2002) aponta que, até meados de 1990, tanto os jornais quanto as próprias travestis referiam-
se a elas mesmas no masculino. O que haveria, portanto, seria uma identificação por parte delas com os
homossexuais, se não dentro do sistema sexo-gênero-desejo (talvez por falta de uma ideia socialmente
difundida o bastante para se justificar), no mínimo política.
9 Segundo Green (2000), uma gíria para “mulher que se prostitui”.
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10 Os que têm sua origem na classe média, seja das grandes cidades ou do interior do país, geralmente
trabalham como cabeleireiros, maquiadores, figurinistas, etc, enquanto os de origem pobre não veem
outra alternativa a não ser a prostituição, conforme demonstram as muitas biografias de travestis
publicadas na última década.
11 Ainda que houvesse a constante ameaça de batidas policiais e, no caso dos shows de travestis, censura.
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Também não são poucos os casos de internações em hospitais psiquiátricos que, nesse
momento, ainda utilizavam como “tratamento” drogas, eletrochoque e terapias
pseudocientíficas das mais diversas.
Diz-se que não houve perseguição sistemática contra “homossexuais” porque todo
o aparato legal que justificava essa perseguição não era voltado especificamente para
eles, mas para o controle e cerceamento das liberdades políticas12. Travestis, entretanto,
eram especialmente afetadas pela “Lei da Vadiagem”, como ficou conhecido o Artigo 59
da Lei das Contravenções Penais de 194113. Bem anterior à ditadura, mas exemplar do
pensamento14 que a justificava, o decreto-lei estabelece como “vadia” qualquer pessoa
que não possa comprovar a origem dos recursos financeiros que a sustentem (mas não
estabelece uma forma de verificação, deixando cada delegacia responsável por
determinar um critério), e foi uma das principais ferramentas de limpeza social
utilizadas pelo Estado brasileiro, principalmente nas capitais, onde as gentes
empobrecidas do interior do país se acumulavam em busca de melhores condições de
vida. Este foi e continua sendo o caso de muitas travestis, segundo as pesquisas
realizadas por Pelúcio (2010) e Vartabedian (2019).
A partir de 1968 e ao longo da década seguinte, houve um aprimoramento do
policiamento ostensivo (resultado das preocupações da ditadura militar com a
resistência armada e os assaltos a bancos praticados por esta), não apenas no espaço
público, mas também sobre os tradicionais espaços de sociabilidade homossexual. São
Paulo foi exemplar nesse sentido, quando, entre 1976 e 1982, sob o comando do delegado
José Wilson Richetti, as polícias civil e militar organizaram-se, com respaldo da
Secretaria de Segurança Pública, para elaborar planos de ação e estudos criminológicos
focados no combate às travestis. As brechas abertas na legislação para a repressão não
se limitavam apenas à Lei da Vadiagem: a definição de crime de “Importunação
Ofensiva ao Pudor”, presente também na Lei das Contravenções Penais de 194115,
também foi utilizada para a perseguição de travestis. Utilizando-se do caráter moralista
12 Segundo levantamento feito por Rodrigues (2015), o enquadramento de homossexuais era feito
principalmente com base nas seguintes legislações: Lei de Imprensa (Lei nº 5.250 de 9 de fevereiro de
1967); Código Brasileiro de Telecomunicações (Decreto-Lei nº 236 de 28 do mesmo mês e ano); Lei de
Segurança Nacional (Decreto-Lei nº 314 de 13 de março de 1967); o Decreto-Lei nº 477, de 26 de fevereiro
de 1969 (que tornou possível a expulsão de alunos e professores de estabelecimentos de ensino público,
entre outros motivos, pela prática de atos contra a moral e os bons costumes); e censura prévia (Decreto-
Lei nº 1.077, editado em 26 de janeiro e sancionado pelo Congresso em 20 de maio de 1970).
13 Utilizo aqui o tempo presente porque o Artigo 59, instituído através da Lei das Contravenções Penais
de 1941, permanece vigente até os dias de hoje, sem jamais ter sido alterado ou revogado. Em 2012, o
Plenário da Câmara votou favorável ao Projeto de Lei 4668/2004, do então ministro da Justiça José
Eduardo Cardozo (apresentado quando este era deputado estadual) que pedia a retirada do artigo. Este
teria sido arquivado quando enviado para votação no Senado federal. Essa seria a segunda tentativa
frustrada de descriminalizar a vadiagem. A primeira fora através do Projeto de Lei 4429/1981, arquivado
em votação do Plenário.
14 Cowan (2015) aponta como os mesmos integralistas que estimularam a percepção negativa dos
“apologistas de Sodoma” durante o pré e o pós-guerra, infiltraram-se em várias instâncias formadoras das
forças militares (como a Escola Superior de Guerra) e nas várias instituições de repressão do regime
ditatorial militar (como o Sistema Nacional de Informações/SNI, o Destacamento de Operações Internas-
Centro de Operações e Defesa Interna/DOI-CODI, e a Delegacia de Ordem Política e Social/DOPS).
15 O Código Penal, ainda que criado por decreto-lei em 1940, só entraria em vigor a partir de 1942. Cf:
BRASIL. 1941.
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Arte
Os shows de transformistas, ao longo do século XX, ganharam bastante espaço na
cena cultural nacional. Enquanto trabalhadores, poderiam ser contratados de forma
semelhante a quaisquer atores em companhias de teatro convencionais. Enquanto
atores ou atrizes, estavam sujeitos à legislação trabalhista, muitas vezes mantendo
vínculos CLT com seus empregadores, portando uma carteira de trabalho assinada e,
em alguns casos, se sindicalizando. Os shows de transformistas buscavam resgatar o
glamour, primeiro dos shows de vedetes, especialmente as francesas, e depois da
Hollywood dos anos 1920. Os shows mais bem produzidos contavam com verdadeiras
equipes: cenógrafo, figurinista, roteirista, diretor, coreógrafo, etc (diferentemente dos
shows de drag queens, que são um pouco faz-tudo). Mas ao final das contas, mesmo
aqueles com menor orçamento, ainda se valiam da “mística da sedução do homem
vestido de mulher” (GREEN, 2000, p.379) para lotar seus espetáculos. Os shows de
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travesti, é claro, tinham suas estrelas e seus fracassos. No início da década de 1960, a
grande maioria ganhava muito mal, o que gerava dificuldades até para pagar seus
vestidos e perucas. Muitas das travestis mais famosas foram jovens de classe média ou
empregadas dos teatros e da televisão, beneficiando-se muitas vezes dos guarda-roupas
de mães, irmãs ou amigas ricas e famosas. Não à toa, muitas travestis de menos sucesso
se viram forçadas a se prostituir.
Pode-se dizer que o transformismo no Brasil tem duas datas de nascimento. A
primeira data do teatro catequético performado por jesuítas, que, ainda que recusasse
quase sempre a presença de personagens femininas, não tinha outra opção a não ser
vestir um dos membros da companhia com véus ao representar a Virgem Maria. Desde
esse momento, havia um imenso recato em torno da figura feminina, que se estenderia
até os dias de colônia e vice-reino. Nesse momento, os teatros públicos não gozavam de
boa reputação, fosse na metrópole fosse na colônia. Um ambiente predominantemente
masculino, em que as poucas mulheres que frequentavam eram prostitutas, era motivo
para que outras mulheres não se aventurassem nos palcos. Na colônia, esse cenário se
agravava, uma vez que as companhias eram formadas quase que exclusivamente por
homens negros e mestiços. Algumas mulheres até chegaram a integrar grupos formados
pelo próprio vice-rei no Rio de Janeiro, Marquês de Lavradio, – enquanto um decreto de
Dona Maria I, que proibia a presença de mulheres nos palcos, bastidores e camarins de
teatros e casas de ópera, era vigente, vale pontuar –, mas nesses casos se enfatizava na
divulgação de seu trabalho que eram todas “gente de bem”.16
Ainda que seja muito diferente do que crê o senso comum, o transformismo no
teatro era perfeitamente comum aos padrões de moralidade dessa época, principalmente
no Brasil – que, segundo Trevisan, era um “país distante de tudo, onde as leis só eram
levadas a sério quando conviesse” (TREVISAN, 2002, p.236). Assim demonstraria o
registro da revista teatral A mulher-homem!, o maior sucesso no Rio de Janeiro em 1886.
Interpretada por um famoso ator, a peça contaria a história de um homem que se vestira
de mulher para trabalhar como empregada doméstica. Entende-se que o recato em torno
da figura feminina a fetichizara, e mesmo os jesuítas entendiam isso, uma vez que em
seu livro de regras estaria proibida a presença de personagens femininas em suas peças,
com exceção da Santa Virgem, para “evitar que a mocidade de então se distraísse e
mergulhasse nas paixões” (TREVISAN, 2002, p.231).
O “renascimento” do transformismo ocorre em meados do século XX, tendo como
expoente Ivaná. Desde o final do século XIX,17 atores especializados na imitação
feminina teriam começado a surgir, encontrando espaço principalmente nas “revistas-
musicais”. Ivaná era o nome de palco adotado por Ivan Damião, ator português trazido
da França para trabalhar na revista18 É Fogo Na Jaca, de Walter Pinto. Destaque em
16 A noção de “gente de bem” será argumento frequente em questões de cunho moralista na sociedade
brasileira. Conforme apresentado no tópico anterior, será largamente utilizado para conquistar o apoio
popular na perseguição aos homossexuais durante o regime ditatorial militar brasileiro.
17 Apesar disso, Trevisan (2002, p. 236.) aponta que o primeiro grupo de atores especializado na imitação
feminina de que se têm notícias no Brasil foi formado em Cuiabá no ano de 1790.
18 O teatro de revista tinha por finalidade “re-visitar” as situações do cotidiano sob um ângulo cômico. As
peças abordavam temas relativos à política, aos costumes e às mudanças urbanas e sociais, levando aos
palcos as mais variadas questões que estavam na ordem do dia.
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vários outros trabalhos ao longo da década, inclusive participando de filmes, foi capa da
revista19 Manchete em 1953, edição que contou também com uma reportagem e
entrevista dela, onde é visível o estranhamento que a não-normatividade sexual causava
aos meios de comunicação nesses tempos em que o pensamento eugênico era tão popular.
Ivaná teria sido a primeira travesti a atuar no Brasil de forma não caricata e ser
reconhecida como vedete.
A chegada e popularização das televisões trouxe consigo uma certa decadência
para o teatro usual, dos dramas aos programas musicais. Os shows de travestis se
beneficiaram com isso. As mudanças no cenário geopolítico também influenciaram.
Houve uma gradual mudança estética e de valores, substituindo a França, ex-detentora
suprema do luxo e do glamour, então amargando uma crise pós-Segunda Guerra, pelos
Estados Unidos da América. Os espetáculos, que antes imitavam os shows das vedetes
francesas, começaram a copiar os cenários dos filmes hollywoodianos, e mesmo os nomes
de palco começaram a imitar os das estrelas de cinema, deixando os das princesas e
vedetes de lado.
O sucesso pioneiro de Ivaná teria sido fundamental para que muitas travestis
pudessem conseguir se registrar como atores-transformistas no Ministério do Trabalho
e no Sindicato dos Artistas. Apesar do baixo nível dos espetáculos e do mercado muito
limitado, algumas travestis teriam se tornado razoavelmente populares, chegando
mesmo a se apresentar no exterior. Revistas de sucesso, como Les Girls, Mimosas até
certo ponto, Gay Fantasy, Rio Gay e Travesti S.A., montados entre as décadas de 1960 e
1980, tinham texto original, trilha sonora requintada, danças coreografadas e guarda-
roupas luxuosos. Algumas chegaram a envolver profissionais reconhecidos, como Bibi
Ferreira para direção, Joãozinho Trinta para cenografia e Denner para figurinos. A
iniciativa de chamá-los partia quase sempre dos empresários e, mais raramente, da
vontade que eles próprios tinham de trabalhar com determinadas travestis.
Essa popularidade, no contexto da ditadura militar, serviu como abertura para
um processo migratório internacional de travestis. Assim como celebridades (inclusive
as travestis mais famosas) e opositores políticos, muitas travestis procuraram refúgio
no exterior. Foi a Europa o principal destino dessas pessoas, que partiam de seu país
em busca de uma população menos preconceituosa, de mais oportunidades de trabalho
(fosse regular, nos teatros e cabarés, ou marginalizado, na prostituição) e, muitas vezes,
das cirurgias estéticas e de redesignação sexual.
Identidade
Desde o momento em que o “vestir-se de mulher” ganha contornos artísticos,
diferenciando-se da zombaria, é possível perceber uma aproximação entre o respeito
(próprio daqueles que viam uma arte no que faziam) e a identificação. Ainda que o termo
19De Lion (2018) indica que a edição da revista Manchete que teve Ivaná em sua capa e matéria principal
seria a do dia 26 de setembro de 1953. A informação foi verificada. A edição está disponível em formato
digitalizado no Acervo Digital da Biblioteca Nacional e a referência completa encontra-se na bibliografia
deste artigo.
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travestilidade não existisse nessa primeira metade do século XX, acredito que não seria
incorreto utilizá-lo.20
Tomemos por exemplo o caso de Marina, apresentado por Green (2000), e
observado em detalhado estudo acerca da relação “homossexualismo”-aparência
promovido por Leonídio Ribeiro, diretor do Instituto de Identificação da Polícia Civil do
Distrito Federal, em 1930. Nascida na região norte do Brasil, disse expressar
preferências e atitudes associadas com meninas desde pequena, e na escola sentia
atração por garotos. Teve sua primeira relação sexual com um inspetor escolar, tendo
sido penetrada por este. Poucos anos depois, mudou-se para o Rio de Janeiro e arranjou
um emprego no teatro de revista como dançarina21. Logo conheceu um homem de status
social elevado, com o qual iniciou um relacionamento. Morando juntos, Marina assumiu
o papel tradicionalmente feminino de cuidar da casa e montou para si um guarda-roupa
“feminino”. Ribeiro entendera Marina como “uma mulher presa no corpo de um homem”
(GREEN, 2000, p.136), porque este era o senso comum sobre a não-normatividade
sexual de “um homem”. Uma vez que mesmo no campo da medicina resistia um rígido
sistema sexual, explicações essencialistas, baseadas na crença em uma suposta essência
feminina ou masculina, eram comuns na tentativa de dar sentido ao modo de ser dos
que fugiam da cisheteronormatividade22.
Da mesma forma que Marina, Madame Satã, nome utilizado por João Francisco
dos Santos desde que ganhara um concurso de fantasias promovido pelo bloco do
carnaval Caçadores de Viados, representa uma figura em constante disputa entre não-
normativos cis e transexuais. Sabe-se que Madame Satã utilizava seu nome não apenas
em apresentações, mas também socialmente, que misturava elementos de vestuário
“masculino” e “feminino” no dia-a-dia, e que levava um estilo de vida que
definitivamente não seguia os padrões tomados como normalidade à época. Muitas vezes
descrita como malandro, não fora chamada de travesti uma vez que a palavra ainda não
era de uso corrente em sua época, mas qualquer pesquisa de campo demonstraria que
muitas travestis hoje, especialmente jovens, pobres e negras, tomam-na como
referência.
20 É possível questionar em que medida o conceito também não poderia ser aplicado às bonecas, que se
mantinham no limiar entre masculinidade e feminilidade, argumentando que só o faziam pelas limitações
sociais do período em que viveram. Meu objetivo, entretanto, não é questionar a legitimidade da
identidade de ninguém, seja indivíduo ou grupo. Só quem pode fazê-lo são os mesmos. Aqui proponho uma
interpretação da travestilidade também enquanto processo histórico, não apenas em busca da
continuidade de uma identidade trans que, como outras identidades sexuais não-normativas, sofre com
os silêncios deixados por seguidos períodos de perseguição e apagamento, mas também da dialética
própria da formação de qualquer grupo.
21 Green (2000, p.136) utiliza pronomes masculinos para referir-se a Marina e informa que assim o faz de
acordo com a forma como as pessoas entrevistadas por Ribeiro referiam-se a si mesmas. Entretanto, não
fica claro se Marina trabalhava como dançarina vestida de mulher ou não, e se teria sido este o motivo da
adoção do nome. Conforme observação de Trevisan (2002), muitos transformistas, quando especializados
nesta arte, adotavam uma identidade feminina também fora dos palcos. Utilizo pronomes femininos por
este motivo, porém uma verificação direta aos estudos de Ribeiro se faz necessária para maiores
afirmações.
22 O prefixo cis, do latim "deste lado de", foi utilizado por Volkmar Sigusch em 1998 e hoje é utilizado para
referir-se a pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi designado desde o nascimento.
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23 Até o século XVIII, não havia uma categoria gênero dissociada do sexo biológico. Cf: SCOTT, 1986.
24 O sistema binário homem-mulher trabalha com ideais, um homem ideal e uma mulher ideal. Os ideais,
como as ideias, se transformam de acordo com o lugar e a época. Judith Butler (2003) analisa que, por
estarem em constante transformação, estes não podem ser alcançados, apenas performados. A disciplina
“fabrica” os indivíduos constante e sutilmente, através de leis e decretos, mas também através de práticas
rotineiras e comuns, gestos e palavras, que são “naturalizados”, tomados como corretos sob a legitimação
da norma científica, do Estado, e dos aparelhos privados de hegemonia.
25 Concepções como esta sobrevivem até hoje, muitas vezes não sendo feita sobre qualquer um que
expresse o desejo pelo sexo oposto, mas sim sobre aquele que expresse a feminilidade. Sobrevive no senso
comum a ideia de que o problema da não-normatividade sexual existe na visibilidade, na identificação
pública (e, portanto, política), desta.
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O processo migratório é outro aspecto desse caráter, uma vez que é justamente o
sucesso e o retorno das “pioneiras” que vai provocá-lo, numa busca pelo que estas teriam
conseguido. Pelúcio (2010) chega mesmo a argumentar que o desconhecimento da
história das travestis influenciará negativamente em pesquisas a respeito de tráfico
sexual e humano. A inclusão arbitrária destas nas estatísticas demonstraria ignorância
a respeito do processo de marginalização pelo qual elas passaram, negando também a
sua capacidade de agência e racionalidade, e inevitavelmente levando à leitura incorreta
da ação (e consequentemente, do combate) das redes de tráfico humano.
Historicamente, o ser travesti estaria na interseção entre identidade de gênero,
prática sexual, prática artística, arte, trabalho, interesse, tradição e identidade política.
Rogéria, por exemplo, diante dessas várias identidades, escolheria como “artista” a sua
melhor definição. Não à toa, travestis, pessoas de identidade feminina, vêm recusando
o termo “travestismo” (associado aos aspectos caricatos e medicalistas do “vestir-se de
26 Não encontrei qualquer fonte para essa informação além de notícias recentes sobre Rogéria e sua
própria autobiografia. Os registros da premiação, disponíveis no site do CBTIJ, mantido pela FUNARTE,
não fazem qualquer menção à Rogéria e na entrevista feita pelo Lampião da Esquina com Rogéria em
janeiro de 1981 também não há qualquer comentário sobre. Aguinaldo Silva, quem faz a entrevista, chega
a comentar que Rogéria “nunca fez uma coisa digna do seu talento”, o que me leva a questionar a
veracidade dessa informação.
27 A terapia hormonal ou hormonização consiste na aplicação ou ingestão de hormônios (testosterona,
progesterona e estrógeno) e seus reguladores para modificação corporal e equilíbrio hormonal de acordo
com os padrões médicos para corpos masculinos e femininos saudáveis.
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Conclusão
O período da ditadura militar é significativo para pensar a historicidade da
identidade travesti, considerando que é muitas vezes em resposta às perseguições do
regime que elas começam a organizar-se enquanto grupo que compartilha de uma
mesma experiência e dos mesmos interesses. Ainda que, em termos de política
institucional, não fossem muito engajadas (considerando a marginalidade a que eram
relegadas, mesmo dentro de espaços entendidos), não são poucos os relatos de travestis
se manifestando contra as injustiças que sofriam. Os casos de Belo Horizonte
(MORANDO, 2015) e São Paulo (BRASIL, 2014) são emblemáticos, com travestis,
respectivamente, tomando a iniciativa em grupos de suporte e puxando protestos em via
pública com a participação de outros movimentos sociais (o movimento estudantil, o
movimento negro, o movimento LGBT+ e o movimento feminista). E ainda assim,
podemos ver que, como em qualquer outro grupo, há diferentes níveis de interesse ou
disposição para a participação de uma vida política ativa, uma vez que travestis de mais
fama, preocupadas em manter seus empregos, raramente se manifestavam.
O desgaste do Grupo SOMOS, um dos primeiros grupos organizados de
homossexuais do país, seria uma antecipação do que se veria como outro fruto da
ditadura: a fragmentação daqueles que compartilham a não-normatividade sexual em
grupos focados em suas especificidades. A falta de abertura para a discussão dessas
especificidades e o discurso medicalizante sobre a travestilidade e a transexualidade
que persistia entre os homossexuais (como é observável no nº 35 do Lampião da
Esquina), mobilizou cada vez mais travestis e transexuais para criarem seus próprios
espaços. Essa organização se estruturaria a partir da fundação da Associação de
Travestis e Liberados (ASTRAL), no Rio de Janeiro em 1992, e da realização dos
Encontros Nacionais de Travestis e Liberados que atuam na Prevenção da Aids
(ENTLAIDS), também no Rio de Janeiro ao longo da década de 1990, e se consolidaria
com a fundação da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2002.
A principal questão da constituição da identidade travesti é sua construção
inegavelmente recente e que segue em progresso. Na medida em que se distanciam da
homossexualidade masculina28, travestis e transexuais precisam reconstruir sua
história, de forma a legitimar sua forma de ser. Da mesma forma que, em nível mundial,
vê-se a organização de uma história da transexualidade em torno de figuras como Lili
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Jorge Leite aponta, por exemplo, que o que se compreende como a identidade
“travesti” no Brasil estaria mais próximo do que é chamado em países
estrangeiros como “transexual secundário”, enquanto o que é definido em
manuais médicos como “travesti” ["travestismo fetichista no CID 10 classificação
estatística de doenças e problemas relacionados à saúde (Organização Munidial
da Saúde, 2007) e "fetichismo transvéstico" no Manual Diagnóstico de
Transtornos Mentais - DSM (5ª edição, American Psychiatric Association, 2013)]
seriam mais ligados a experiência identificadas no Brasil como crossdressers.
(BORTOLOZZI, 2015, p.126)
29 Primeira pessoa a passar por uma cirurgia bem-sucedida de redesignação sexual, na Alemanha, nas
décadas de 1920-1930. Retratada (com graves incoerências históricas) no livro (2000) e filme homônimo
(2016) A Garota Dinamarquesa.
30 Figura mítica que supostamente teria “nascido mulher e vivido como homem”, ingressado na vida
monástica e chegado a se tornar Papa da Igreja Católica Apostólica Romana. A lenda conta que teria
vivido no século IX. Especialistas ligados à Igreja afirmam se tratar de uma mentira inventada por
inimigos do papado no século XIII para se vingar de problemas causados por este. Sua história foi
transformada em romance no livro (1996) e filme homônimo (2009) Papisa Joana.
31 A travestilidade não consta no CID-11, nova versão da Classificação Internacional de Doenças, que
entrará em vigor em 2022. A transexualidade também foi retirada, mas um novo artigo, “Incongruência
de Gênero”, foi inserido, descrito não com o uma doença, mas como uma característica que deve ser
especialmente considerada devido a experiências ou comportamentos que podem surgir em resposta a ela.
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medida ela poderia existir pr’além disso. Essas incongruências ficam ainda mais
evidentes com as construções mais recentes da travestilidades, em que travestis mais
jovens continuam afirmando para si uma expressão de gênero feminina, mas numa
existência de gênero não-binária, que rompe cada vez mais com o binarismo medicalista.
Butler (2003) tinha esperanças que a simples divergência pudesse fazer todo o sistema
ruir, mas com o tempo viu como o capitalismo absorve tudo e todos, se for do interesse
dos que lucram com ele. Talvez ela tenha observado demais às travestis estadunidenses
e não dado tanto ouvidos às suas palavras; do contrário saberia que Marsha P. Johnson
disse: “we believe in picking up the gun, starting a revolution if necessary...”.
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