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DA PARTICIPAÇÃO AO DIREITO À CIDADE: RESISTÊNCIA E

AUTOGESTÃO NA CONSTRUÇÃO DE HABITAÇÃO SOCIAL NO


BRASIL E NA ARGENTINA
FROM PARTICIPATION TO THE RIGHT TO THE CITY: RESISTANCE AND SELF-
MANAGEMENT IN THE CONSTRUCTION OF SOCIAL HOUSING IN BRAZIL AND
ARGENTINA

DE LA PARTICIPACIÓN AL DERECHO A LA CIUDAD: RESISTENCIA Y AUTOGESTIÓN EN LA


CONSTRUCCIÓN DE VIVIENDAS COLECTIVAS EN BRASIL Y ARGENTINA

PROJETO, POLÍTICAS E PRÁTICAS

SIQUEIRA, Marina Toneli


Professora Doutora; Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFSC
marina.siqueira@ufsc.br

COSTA CURTA, Camila


Graduanda; Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFSC
camila.alba@live.com

ALBUQUERQUE, Lara Norões


Graduanda; Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFSC
laranoroes@gmail.com
RESUMO

O conflito anticapitalista saiu das fábricas para o espaço urbano. Na luta por habitação, o operário,
transformado em precariado, demanda seu Direito à Cidade e a retomada de seu valor de uso. Neste
contexto, o presente artigo investiga a participação como ferramenta de emancipação política e social,
abordando, para tal, duas experiências latino americanas: uma brasileira - o Conjunto Habitacional da
Ponta do Leal localizado em Florianópolis e construído a partir do Programa Minha Casa Minha Vida Faixa
1; e outra argentina - o Conjunto de Viviendas Monteagudo produzido a partir uma cooperativa
habitacional em Buenos Aires no âmbito do Programa de Autogestión para la Vivienda. Ao analisar o
processo que resultou na conquista das moradias, identificou-se a efetivação da participação dos
habitantes nos dois casos, porém sob diferentes perspectivas e graus. No caso brasileiro, destaca-se a
Resistência à ameaça de remoção em uma área já ocupada e, no argentino, a Autogestão e a conquista
de seu espaço em solo urbanizado. Como conclusão, reafirma-se a importância do processo participativo
e a necessidade de se pensar os modelos e programas de políticas públicas habitacionais a partir de uma
perspectiva da efetivação do direito à cidade.
PALAVRAS-CHAVE: habitação social. participação. Programa Minha Casa Minha Vida. cooperativas
habitacionais. direito à cidade.

ABSTRACT

The anti-capitalist conflict moved out from the factories into the urban space. In the housing struggle,
the factory worker, turned into precarious worker, demands his Right to the City and the resumption of
its use value. In this context, this article investigates participation as a tool of political and social
emancipations, approaching, for this purpose, two Latin American experiences, one from Brazil: Ponta
do Leal Social Housing, located in Florianópolis and built under the Minha Casa Minha Vida Program; and
another one from Argentina, Monteagudo Social Housing, produced from a housing cooperative in the
city of Buenos Aires under the Autogestión para la Vivienda Program. When analyzing the process that
resulted in the housing conquest, it was identified the effective participation of the inhabitants in both
cases, although at different perspectives and degrees. In the Brazilian case, the Resistance to the threat
of removal in an already occupied area stands out and, in the Argentine case, Self-Management and the
conquest of its space on urbanized soil. In conclusion, the importance of participative processes and the
necessity to discuss the models and programs of public housing policies are reaffirmed from the
perspective of conquering the Right to the City.
KEYWORDS: social housing. participation. Programa Minha Casa Minha Vida. housing cooperatives. right
to the city.

RESUMEN

El conflicto anticapitalista salió de las fábricas para el espacio urbano. En la lucha por la vivienda, el
trabajador fabril, transformado en trabajador urbano precarizado, demanda su Derecho a la Ciudad y la
reanudación de su valor de uso. En este sentido, el presente artículo investiga la participación como
herramienta de emancipación política y social, abordando, para esto, dos experiencias latinoamericanas:
una brasileña - el Conjunto de Viviendas Ponta do Leal, ubicado en Florianópolis y construido a través del
Programa Minha Casa Minha Vida Faixa 1; y otra argentina - el Conjunto de Viviendas Monteagudo,
hecho por medio de una cooperativa de vivienda en la ciudad de Buenos Aires en el ámbito del Programa
de Autogestión para la Vivienda. Al analizar el proceso que resultó en la conquista de las viviendas, se
identificó el empleo de la participación de los residentes en los dos casos, todavía, bajo distintas
perspectivas y grados. En el caso brasileño, se destaca la Resistencia a las amenazas de remoción en una
área ya ocupada; y en el caso argentino, la Autogestión y la conquista de su espacio en tierra urbanizada.
Como conclusión, se reafirma la importancia del proceso participativo y la necesidad de pensar los
modelos y los programas relacionados a políticas públicas de vivienda por medio de una perspectiva del
empleo del derecho a la ciudad.
PALABRAS-CLAVE: vivienda social. participación. Programa Minha Casa Minha Vida. cooperativas de
vivienda. derecho a la ciudad.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


INTRODUÇÃO

O presente artigo se insere nos debates acerca da importância da participação social na vida
urbana como um todo e na produção da habitação social em específico. De fato, a cidade deve
ser entendida como um espaço de encontros, trocas e possibilidades. Na cidade como produto
coletivo, como Obra, os moradores participam das tomadas de decisões referentes à sua
construção, manifestam-se pela apropriação do espaço público e pela adequação do habitat às
suas necessidades. Mobilizando-se pelo acesso à moradia, demandam a conquista pelo direito
à cidade (LEFEBVRE, 2016). Em 1968, Henri Lefebvre publica sua obra “O Direito à Cidade”, na
qual descreve a industrialização das cidades e a crise urbana que enfrentamos em
consequência desta. Para o autor, o valor de uso da cidade foi substituído pelo valor de troca
quando esta deixa de ser apenas o espaço de produção para tornar-se o próprio produto do
capitalismo. Como consequência da concepção da terra como mercadoria, o espaço urbano foi
intensamente segregado e o acesso à terra urbanizada limitado aos que podem pagar por ela.
Segundo Lefebvre, uma revolução urbana é eminente.

Quase meio século depois, David Harvey publica “Cidades Rebeldes: do Direito à Cidade a
Revolução Urbana”, onde resgata o termo criado por Lefebvre e expõe movimentos urbanos e
suas conquistas em diferentes partes do mundo. Para Harvey (2014, p.28), o direito à cidade é
“(...) muito mais que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade
incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade de acordo com nossos mais profundos
desejos (...)” na busca do exercício do poder coletivo sobre o processo de urbanização. A luta
dos movimentos sociais urbanos pelo direito à cidade, de acordo com o autor, é protagonizada
nas ruas por pessoas que em sua maioria nunca escutaram o nome de Lefebvre, mas que
representam dentro do contexto marxista a nova cara da luta anticapitalista. Justamente,
Harvey (2014) acredita que essa luta saiu das fábricas e encontra-se hoje no espaço urbano,
transformando o sujeito “proletariado” em “precariado”. Os atuais atores dessa luta são as
trabalhadoras e trabalhadores urbanos, aos quais cabem as villas misérias e as favelas latino
americanas como alternativa acessível à moradia. Nesse sentido, é possível verificar que a luta
pela habitação, pelo espaço público e até mesmo pela tarifa acessível do transporte coletivo
tem eclodido em diferentes cidades no mundo, trazendo como ponto em comum a exposição
das desigualdades socioespaciais e a luta por cidades mais justas, equitativas e democráticas.

É neste marco teórico proposto por Lefebvre e Harvey que se desenvolve este artigo, resultante
de um projeto de pesquisa desenvolvido parte no Brasil e parte na Argentina. Propõe-se, por
meio deste, um estudo da produção de habitação de interesse social de forma participativa sob
a perspectiva da luta pelo direito à cidade. Abordando a participação como ferramenta de
emancipação política e social frente a diferentes contextos de carência habitacional e levando
em consideração os distintos quadros políticos, sociais e econômicos destes países, buscou-se
compreender o processo que antecedeu a concepção da produção das habitações e a trajetória
da participação popular que resultou na conquista das moradias. O estudo definiu o campo
investigativo da habitação social coletiva a partir de duas experiências latino americanas
selecionando um caso no Brasil, considerado inicialmente como representante de um processo
com participação não efetivada, e um caso com participação efetivada na Argentina. O
primeiro, o caso brasileiro, é o Conjunto Habitacional da Ponta do Leal localizado em
Florianópolis, que inicialmente seria financiado via Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)
- Entidades e projetado em conjunto com seus futuros usuários. Entretanto, foi finalmente
construído no modelo Empresas do PMCMV - Faixa 1. Em busca de um conjunto habitacional
de interesse social com efetiva participação da população na sua concepção e seguindo a já

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conhecida experiência nos países da Bacia do Rio da Prata com cooperativas habitacionais e
modelos de autogestão da produção de habitação de interesse social, foi selecionado o
Conjunto de Viviendas Monteagudo, na cidade de Buenos Aires. A experiência argentina é
produto da autogestão da Cooperativa Constructora Emetele, e foi construído no âmbito do
Programa de Autogestión para la Vivienda (PAV).

Utilizando de revisão bibliográfica, análise de documentos e entrevistas, esta pesquisa utilizou


a escada da participação social de Arnstein (2002) objetivando identificar os diferentes graus
de inclusão das comunidades nos processos de conquista da habitação. Inicialmente, enquanto
o Conjunto de Viviendas Monteagudo se apresentava como um caso referência, o projeto da
Ponta do Leal se mostrava falho no que condiz a efetivação da participação cidadã. A análise
dos movimentos em direção à conquista da moradia, no entanto, permitiu identificar e
aprofundar as problemáticas do caso brasileiro e compreender a participação dos moradores
dos dois conjuntos como efetivadas, mas em distintos formatos e graus. Portanto,
contradizendo a hipótese inicial, a participação no caso brasileiro, embora não tenha se dado
durante todo o processo, foi fundamental para a manutenção da comunidade em seu local
original, evitando a sua remoção para uma outra localização e atingindo um grau de parceria
na escada de poder cidadão. Já no caso argentino, a autogestão é presente em todas as etapas
do processo de conquista da habitação em solo urbanizado, conferindo um nível mais alto e
efetivo de controle cidadão do processo. Como conclusão, esta pesquisa destaca a importância
do processo participativo e a necessidade de repensar os modelos e programas de política
pública habitacional a partir de uma perspectiva da efetivação do direito à cidade.

DA CIDADE COMO OBRA À CIDADE COMO MERCADORIA

Para Lefebvre “(..) o uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos
monumentos, é a Festa” (LEFEBVRE, 2016, p. 12) e cresce, nas últimas décadas, os indivíduos
que dela almejam fazer parte. Sejam atraídas pelas oportunidades econômicas, políticas ou
socioculturais, não há como negar a atração que as cidades exercem sobre as pessoas,
permitindo que este seja o local do encontro, da diversidade, das trocas, dos “conhecimentos
e reconhecimentos” dos diferentes modos de viver.

A cidade foi definida por Lefebvre (2016) como a Obra do ser humano: a realização de sua
produção sustenta relações não expressas em valores mercantis. Ela pré-existe à
industrialização, mas é a partir do processo que revolucionou os meios de produção, que a
cidade, sua forma, significados e dinâmicas se transformaram. O valor de uso da cidade foi
substituído pelo valor de troca quando esta deixou de ser o locus da produção para se tornar o
próprio produto do capitalismo. Surgiram, frente a estas transformações na mercantilização do
espaço, novas problemáticas urbanas, em um processo de implosão e explosão do tecido
urbano. As elites deixaram a cidade em busca de um idealizado contato com a natureza,
esvaziando os centros e deslocando-se para os subúrbios, enquanto as periferias foram
destinadas aos trabalhadores empobrecidos (LEFEBVRE, 2016).

Esta problemática urbana, decorrente do crescimento acelerado e desigual pós-


industrialização, transformou de maneira brusca as suas dinâmicas e resultou na necessidade
de se organizar e pensar os espaços urbanos e suburbanos, fazendo nascer as primeiras
reflexões urbanísticas do movimento moderno. De fato, essa origem do campo do
conhecimento e da forma de atuação especializada, profissionalizada e dita “a-política”, é
usualmente associada aos dilemas trazidos pela industrialização e pelo modo de produção
capitalista (CHOAY, 1979). A estas práticas da cidade desenvolvidas por técnicos, estão

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incorporadas, de forma menos visíveis, estratégias de classes dominantes e de instituições que
a produzem de acordo com seus interesses e de forma contrária à prática social da cidade, vista
como uma espontaneidade e uma ameaça às suas estratégias (LEFEBVRE, 2016). Como
consequência da concepção da terra como mercadoria e produto ideológico do urbanismo
tecnocrata, o espaço urbano foi intensamente segregado e o acesso às centralidades foi
limitado aos que podem pagar por elas. É importante, no entanto, relembrar como a habitação
social entrou nesta agenda.

Nas décadas que seguem a segunda Guerra Mundial, a moradia emerge como um direito social
universal e passa a ser provida pelos Governos para a população. Do inglês, welfare state, o
Estado de bem-estar social surge com a finalidade de amenizar tensões, conflitos e
desigualdades econômicas, políticas e sociais resultantes da guerra (ROLNIK, 2015). Nesse
mesmo período, o movimento modernista ascendia, e novos planos urbanísticos e conjuntos
habitacionais racionalistas foram empregados pelo Estado como forma de fornecer soluções
rápidas e de menor custo para a reconstrução das cidades e para o fornecimento de habitações
à população desalojada. Assim, governos tomam para si a responsabilidade de assegurar à
população as condições mínimas necessárias de habitabilidade, provendo o acesso à moradia.

As crises políticas, econômicas e sociais dos anos 1960 e 1970, no entanto, trouxeram críticas
irreversíveis ao modelo centralizador e autoritário que associou o Grande Estado ao Grande
Capital (Harvey, 1989). Aliado a outras medidas reformistas, emerge um novo Estado: o Estado
Neoliberal. Esse trouxe como consequência a política de austeridade fiscal, a privatização do
estoque público de moradia - dos países que o tinham - e a diminuição considerável das verbas
públicas destinadas às políticas de habitação (ROLNIK, 2015). Aos poucos, o papel do Estado
“ultrapassou o de mero ‘facilitador’: por um lado eles desconstruíram políticas habitacionais e
urbanas (...) por outro, também promoveram ativamente as novas alternativas” (ROLNIK, 2015,
p. 42). Assim, as políticas públicas habitacionais atuais deixam de ter como princípio a provisão
de habitação para se transformarem em políticas econômicas. São programas que não
procuram solucionar a problemática do déficit habitacional em si, mas estimular a exploração
do setor por parte do mercado imobiliário, alavancando a economia a partir da construção civil.
Portanto, o déficit habitacional, ou a demanda efetiva de um grupo, vem sendo utilizado como
geração de riqueza e lucro para outro.

De fato, ao longo da história dos dois maiores países da América do Sul, a disputa entre classes
sobre o território urbano foi marcada pela conformação de aglomerados ilegais e sucessivas
expulsões dos que constroem a cidade, mas que não tem seu espaço nela, resultando em um
território urbano manchado por villas de emergência e favelas não reconhecidas pelos mapas
oficiais. No caso brasileiro, para se falar sobre reformas neoliberais é preciso lembrar que o
Estado de bem-estar social não chegou a ser implementado de fato no país. A habitação como
mercadoria tirou do Estado a responsabilidade de fornecer moradia à população que não tinha
acesso à ela, promovendo a transferência ideológica dessa responsabilidade para o mercado
que, em busca do capital, transformou o paradigma da “casa própria” como modelo
praticamente único de política habitacional. Assim, a habitação deixou de ser um “(...) bem
comum que a sociedade concorda em dividir ou prover para aqueles com menos recursos, para
se transformarem em mecanismo de extração de renda, ganho financeiro e acumulação de
riqueza” (ROLNIK, 2015, p.14).

A ideologia da casa própria, portanto, substanciou as políticas habitacionais no Brasil. É


importante relembrar que, após a extinção do Banco Nacional de Habitação em 1986, o
governo federal ficou sem um política clara de investimento na área. Recentemente, a gestão

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do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), que chegou ao Governo federal através do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ex-presidenta Dilma Rousseff, tornou-se popularmente
reconhecido por suas políticas sociais, se destacando pela promoção de cerca de 3,2 milhões
de unidades habitacionais por meio do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) entre 2009
e 20161, o que o tornou o maior programa habitacional da história do país. Através do
programa, famílias de renda entre 1 a 3 salários mínimos teriam sua unidade habitacional
subsidiada pelo Governo, e famílias de 3 a 10 salários mínimos receberiam a facilidade de
crédito para a aquisição da casa própria. Apesar do destaque pelo grande número de
habitações produzidas, o programa vem sendo criticado por promover o avanço da
financeirização da terra e da moradia no país, considerando apenas o acesso à casa em
detrimento do usufruto da cidade. São recorrentes as críticas2 relativas à qualidade das
unidades habitacionais entregues e a inserção dos conjuntos em terrenos localizados nas
franjas das cidades, muitas vezes sem infraestrutura básica ou distantes de serviços, comércios
e outros equipamentos como hospitais, creches e escolas.

A distribuição dos recursos por faixa de renda - sendo, em maioria, beneficiadas famílias que
não constituem o déficit habitacional do país - ampliam o debate sobre a efetividade do
PMCMV em atuar em conformidade com as metas de redução do déficit habitacional propostos
pelo PlanHab, Plano Nacional de Habitação, lançado em 2005. Por um lado, o PlanHab propôs
subsídios de localização estimulando projetos em áreas centrais e consolidadas. Por outro, o
PMCMV estabeleceu um teto único por região para o valor da unidade, acabando por
determinar a implantação de projetos em zonas periféricas, seminfraestrutura, equipamentos
e vida urbana.

Finalmente, a modalidade Empresas do PMCMV, gerida por construtoras privadas, foi


responsável pela aplicação de cerca de 97% dos investimentos no programa, enquanto apenas
3% eram dirigidos a modalidade Entidades. É importante relembrar que a modalidade
Entidades foi o resultado da intervenção da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das
Cidades na formulação do programa, transformando o que seria uma ação de caráter
econômico e anticíclico em um programa de conteúdo social (BONDUKI, 2014). Na modalidade,
grupos sociais, associações, cooperativas habitacionais e demais entidades privadas sem fim
lucrativo realizam a gestão de todo o processo de desenvolvimento das moradias, desde a
concepção do projeto até a gestão dos recursos e a execução da obra, utilizando, quando
necessário, do auxílio técnico de um profissional. No entanto, até 2016, segundo dados do
Portal Federativo do Governo Federal, 238 mil unidades haviam sido construídas pela
modalidade Entidades do total de 3,2 milhões de unidades produzidas pelo Programa. Sendo
assim, a maior parte da provisão de habitação pelo PMCMV é viabilizada por construtoras
privadas, que colocam o lucro à frente da qualidade da habitação produzida, inserindo essas
políticas dentro de uma lógica mercadológica que acaba beneficiando grandes
empreendedores em detrimento da população que deveria ser atendida. No entanto, é
indiscutível o papel do programa na incorporação do subsídio público como um elemento
indispensável de uma política habitacional substantiva e na retomada de uma produção
massiva de moradias no país.

1
Portal Federativo. 5.330 municípios no Minha Casa Minha Vida, maio de 2016. Disponível em:
<http://www.portalfederativo.gov.br/noticias/destaques/5-330-municipios-no-minha-casa-minha-vida> Acesso em
abr. 2020.
2
A exemplo dessas críticas é o livro “Minha Casa… E a Cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em
seis estados brasileiros” de 2015, do Observatório das Metrópoles (AMOR et al, 2015).

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No segundo caso explorado pela pesquisa, enquanto a população urbana no Brasil ultrapassou
a metade do total populacional apenas em 19643, a Argentina neste mesmo ano já contava com
75%4 da sua população vivendo em áreas urbanas. No país vizinho, a situação de pobreza nos
assentamentos rurais emigrou junto com a sua população para os centro urbanos nos fins do
século XIX. Este fenômeno de migração interna, somada à imigração da população européia,
produziu uma demanda de alojamento que foi satisfeita pelo capital renticio com voracidade
especulativa. Esta rápida expansão sem nenhum planejamento e apoio do Estado teve como
consequência a degradação do território e o aumento das demandas de bens e serviços.

Como agravante da situação na qual se encontravam os pobres urbanos, a Argentina, junto a


outros países da América Latina, abandonou o modelo democrático e o Estado deixou de
assegurar a busca pelo bem estar geral de seus cidadãos. Os constantes golpes políticos foram
resultantes de alianças entre militares e capitalistas, que exigiam rentabilidade dos seus
investimentos em troca de apoio, fazendo com que o Estado assumisse um papel de facilitador
dos processos de acumulação de capital. Estes golpes se passaram ao longo dos anos 1930 a
1983, período no qual o sistema político argentino se alterou entre governos de esquerda e
direita, sendo Perón, fundador do Partido Justicialista, reconhecido por estabelecer políticas de
bem estar social que buscavam atenuar a pobreza do país.

Em um estado de democracia instável, a garantia de um teto é incerta, e na luta por um pedaço


de solo urbano a maioria marginalizada percorre um caminho árduo até a conquista de seus
direitos - que estão em constante ameaça. Recentemente, a degradação política e econômica
da Argentina decorrente das medidas de austeridade fiscal aplicadas nos anos 1990 culminou
na crise econômica de 2001. O Estado, a partir de 2003 - quando se dá início aos governos
Kirchner - começa progressivamente a reverter as políticas neoliberais implementadas nas
décadas anteriores, motivando estratégias de cooperação comunitária para uma autogestão.
O contexto social da época caracterizou-se pela multiplicação destes espaços de participação e
luta, fazendo com que a população da cidade de Buenos Aires se reconhecesse por sua
intervenção nos processos políticos locais, exigindo seus direitos através de manifestações
significativas no contexto local (CRAVINO, 2012). É neste contexto que surge o movimento
“piqueteiro” que associa o trabalho, a participação e a habitação em suas demandas, unindo
as problemáticas da produção ao consumo social. Corporificados nas cooperativas
habitacionais, o processo de participação na promoção da habitação social na Argentina parecia
diametralmente diferente do caso brasileiro e por isso o interesse em sua análise.

A PARTICIPAÇÃO CIDADÃ NA HABITAÇÃO SOCIAL

Muito se fala sobre a importância da participação no desenvolvimento da habitação social. No


entanto, existem poucos dados empíricos que demonstrem os seus impactos efetivos.
Destacam-se pesquisas que demonstram a sua importância para a localização em áreas mais
centrais e/ou urbanizadas, e a construção de unidades maiores, com maior qualidade de
insumos e materiais no geral (NOIA, 2017). Nesse sentido, a participação das comunidades é
fundamental para gerar habitações melhores. De fato, os cidadão deveriam ter o direito e o

3
Banco Mundial. Urban population (% of total population) – Brazil, 2018. Disponível em:
<https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS?end=2018&locations=BR&start=1960> Acesso em abr.
2020.
4
Banco Mundial. Urban population (% of total population) – Argentina, 2018. Disponível em:
<https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS?end=2018&locations=AR&start=1960> Acesso em abr.
2020.

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dever de participar da concepção, implementação e gestão de decisões que impactam tão
profundamente suas vidas quanto aquelas da política habitacional. Ainda, é necessário
considerar que as complexidades da vida social dificilmente são compreendidas por aqueles
que não vivenciam aquele local cotidianamente. Portanto, a participação, ccomo forma de
ompartilhar conhecimentos acerca da realidade local, pode ser fundamental para a elaboração
de um projeto que responda às demandas reais dos moradores. Finalmente, por um aspecto
substantivo de conquista do direito à cidade, a participação social auxilia na constituição da
cidadania ativa, compreendida aqui como a formação de sujeitos políticos e ativos acerca de
seu papel na sociedade, capazes de compreender e lutar por seus direitos e deveres.

Nesse sentido, “(...) a participação constitui o meio pelo qual os sem-nada podem promover
reformas sociais significativas que lhes permitam compartilhar dos benefícios da sociedade
envolvente” (ARNSTEIN, 2002, p. 1). Entendida como estratégia de redistribuição do poder
dentre todos os cidadãos, a participação é o meio principal para se alcançar o pleno direito à
cidade. Justamente, para Lefebvre, o retorno à cidade como Obra não deve ser conquistado
pelo olhar ao passado, mas deve ocorrer pela revolução da sociedade urbana. Essa, deverá ser
feita a partir da prática social da classe oprimida, desfazendo estratégias e ideologias
dominantes e atuando como integradora do espaço urbano, pondo fim à segregação imposta
sobre ela. Assim, a participação gera o empoderamento político de indivíduos e comunidades,
fortalecendo sentimentos de pertencimento e solidariedade.

Por outro lado, “(...) a participação sem redistribuição de poder permite àqueles que têm poder
de decisão argumentar que todos os lados foram ouvidos, mas beneficiar apenas a alguns”
(ARNSTEIN, 2002, p. 2). Exatamente por esse risco – i.e., legitimar decisões já tomadas sem
alterar a distribuição de poder –, que é necessário avaliar a intensidade e a qualidade da
participação cidadã. Para tanto, esta pesquisa utilizou a escada da participação desenvolvida
por Arnstein (2002) e composta por oito degraus, sendo o 1º o menor nível de participação e o
8º o maior. São eles: 1. Manipulação; 2. Terapia; 3. Informação; 4. Consulta; 5. Pacificação; 6.
Parceria; 7. Delegação de Poder; 8. Controle Cidadão. Os dois primeiros degraus constituem
formas de não-participação, dos níveis três a cinco temos uma concessão mínima de poder e,
a partir deles, o aumento do empoderamento cidadão.

Para analisar o grau de participação nos dois casos selecionados no Brasil e na Argentina, esta
pesquisa baseou-se na revisão bibliográfica, análise de documentos e entrevistas com sujeitos
participantes dos processos de conquista das moradias. A partir das leituras de Lefebvre e de
Arnstein, assume-se que a ação popular é imprescindível para a produção de uma cidade
democrática, sendo necessária uma mudança do espaço urbano que seja gerida “de baixo para
cima”, e não de forma contrária, impondo decisões à população de baixa renda sem consultá-
la. As duas próximas seções abordam o processo de concepção dos dois conjuntos habitacionais
escolhidos como estudos de caso desta pesquisa. Tratam-se de um caso marcado pela
resistência às ameaças de remoção e outro de autogestão e autoconstrução originados por
meio de diferentes formas de participação da população residente, como será visto.

UM CASO DE RESISTÊNCIA: A PONTA DO LEAL EM FLORIANÓPOLIS

Ameaçados de remoção desde o princípio dos anos 2000, os moradores da Ponta do Leal
organizaram-se e, unidos, travaram anos de enfrentamentos pela permanência no espaço que
habitavam. O caso de resistência frente às decisões de remoção e realocação para conjuntos
habitacionais distantes do espaço originalmente residido demonstra a importância da

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organização e da movimentação popular pelo direito de permanência e usufruto dos benefícios
urbanos conquistados, tornando-se referência na luta pelo Direito à Cidade em Florianópolis.

A cidade de Florianópolis, localizada ao leste do estado de Santa Catarina, conta com uma
população estimada de 500.973 habitantes (IBGE, 2019)5. Com uma conformação espacial
peculiar, a capital catarinense tem 2,77% do seu território em área continental e 97,23% em
uma ilha de grande diversidade de ecossistemas. Essa configuração geográfica conforma áreas
ambientalmente frágeis, fazendo de Florianópolis uma cidade com grande valor natural e
paisagístico. A partir da segunda metade do século XX, a intensificação dos fluxos turísticos e a
grande quantidade de espaços ainda não habitados na ilha, atrelados ao seu potencial
ambiental e visual, colocaram a cidade na mira do mercado imobiliário.

O aumento da demanda por solo urbanizado incidiu sobre o valor da terra e teve como
resultado a epsacialização da segregação na mancha urbana da cidade: enquanto a Beira Mar
Norte, via estruturante do município, se expandia reproduzindo o valor por metro quadrado
mais caro da ilha, a população de baixa renda ocupava morros e áreas continentais precárias
em busca de terrenos menos valorizados (SUGAI, 2015). É em um recorte de aproximadamente
8.400m² no bairro Estreito, às margens da Baía Norte na Florianópolis continental que está
localizada, há mais de 40 anos a comunidade da Ponta do Leal. Assentada em construções em
palafitas sobre o mar, sua população é constituída por migrantes do município de Lages e São
Francisco do Sul (Figuras 1).

O processo de remoção que envolve a comunidade da Ponta do Leal iniciou em 2001 com uma
Ação Civil Pública com o objetivo de despoluir a região do balneário do Bairro Estreito de
Florianópolis. Segundo a ação, os réus, a Prefeitura Municipal de Florianópolis, a Companhia
Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN) e a Fundação do Meio Ambiente (FATMA)
deveriam solucionar os problemas de ligações clandestinas de esgoto que eram despejadas na
orla e de assentamentos irregulares sob área de preservação permanente. A condição de
ilegalidade do assentamento formalizada pelos laudos técnicos e a impossibilidade de execução
de um programa de saneamento nas casas construídas sobre palafitas tiveram como
consequência a proposta de remoção completa da população do local (RAMPAZZO, 2008).

O processo de resistência da comunidade da Ponta do Leal em suas terras se caracteriza pela


luta constante contra interesses especulativos do território. Segundo entrevista com o líder
comunitário Gão, a comunidade foi informada do processo de remoção apenas em 2005, em
reunião realizada pelo programa Prefeitura nos Bairros. De forma ágil, os moradores da
comunidade decidiram que a Associação de Moradores, criada em 1997 e dissolvida em 2000,
deveria voltar à atividade. Em 2006, o projeto proposto pela Secretaria Municipal de Habitação
e Saneamento Ambiental, de acordo com o plano de remoção da comunidade, consistia na sua
relocação para dois projetos habitacionais distintos, com distâncias entre 2 a 3 km da Ponta.
Entretanto, o projeto foi rejeitado pela comunidade, que resistiu alegando a falta de
compatibilidade com suas necessidades e expectativas (RAMPAZZO, 2008). As famílias
residentes na Ponta do Leal preferiam que a comunidade não fosse dividida e que continuasse
perto do mar, já que, na época, cerca de metade dos moradores sobreviviam da pesca
(MARTINS apud RAMPAZZO, 2006). Segundo Gão, a Associação de Moradores da Ponta do Leal
obteve sucesso na permanência após séries de reuniões com a Prefeitura e líderes comunitários
que residiam nos conjuntos habitacionais de destino, conquistando também um assento no

5
IBGE. Florianópolis: Panorama. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/florianopolis/panorama>
Acesso em abr. 2020.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


Conselho Municipal de Habitação de Florianópolis. Porém, apenas em 2008, durante uma
Audiência Pública na qual estavam presentes representantes das instituições envolvidas e os
moradores, foi deliberada a busca por uma nova alternativa de projeto habitacional.

Desde 2005, os moradores iniciaram contato com diversas fontes para solucionar a
problemática habitacional que viviam. Próximo à 2009, líderes, atores da comunidade e atores
externos tiveram a ideia de utilizar o terreno adjacente ao assentamento da comunidade, que
na época achava-se que pertencia à CASAN. Após investigações sobre o terreno, a SPU
(Superintendência do Patrimônio da União) descobriu que as terras eram, em parte,
propriedade da Prefeitura Municipal de Florianópolis e parte da União, e que a própria CASAN
utilizava as terras de maneira irregular. Assim, as ações resultaram em um acordo de cessão do
terreno público adjacente ao assentamento inicial para o projeto da comunidade.

Segundo o arquiteto-urbanista e vereador Lino Peres em entrevista, após a confirmação de que


o terreno vizinho à comunidade seria utilizado para abrigar o novo projeto habitacional,
diversas tentativas de processo participativo no projeto foram realizadas pelo Ateliê Modelo
de Arquitetura (AMA) do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa
Catarina. Foi nesse momento, com o projeto em andamento, que a cooperativa HBC propôs a
realização por parte deles de um projeto de baixo custo e que seria autogestionado, de base
cooperativa e construída em mutirão pelo PMCMV - Entidades. Porém, apesar da enorme
conquista em um caminho que se finalizaria numa obra autogestionada, a pressão, a demora e
o receio de perder a possibilidade de obtenção de verbas ocasionou o interrompimento do
processo projetual participativo. Assim, em 2013, os moradores e o líder comunitário ficaram
ao lado do Prefeito César Souza e apoiaram que a Prefeitura assumisse o projeto, passando a
enquadrá-lo no PMCMV - Empresas.

Com a entrada da Prefeitura, o projeto é readequado sem a participação da comunidade no


processo projetual. Ainda com auxílio do AMA, os moradores reivindicaram a despadronização
do novo projeto e lograram com a possibilidade de adequação de acordo com alguns itens
discutidos durante o processo participativo de projetação, como o acréscimo na metragem das
unidades habitacionais. Com 88 apartamentos distribuídos em quatro blocos em alvenaria
convencional, o projeto final elaborado pela Prefeitura, com poucas alterações advindas dos
projetos anteriores, teve sua construção iniciada em setembro de 2014 (Figura 2). Finalmente,
as obras do Conjunto Habitacional da Ponta do Leal foram concluídas em dezembro de 2018 e,
em de fevereiro de 2019, os moradores receberam as chaves dos apartamentos, dando início
ao processo de mudança das casas sobre palafitas para o novo condomínio.

A população da Ponta do Leal, que demonstrou articulação para reivindicar suas necessidades,
mobilizou-se pela participação no desenvolvimento do projeto urbano e habitacional que os
envolve e, diante das tentativas de realocação para outros locais, lutou pela sua permanência
no espaço onde suas dinâmicas sociais já estavam consolidadas. Apesar do resultado final do
projeto arquitetônico desconsiderar muitas das demandas da população, a população se
tornou agente da sua conquista, participando ativamente do processo de permanência no
espaço já habitado. A dificuldade quanto ao controle sobre a gestão do projeto, porém, aponta
para a deficiência das políticas públicas habitacionais brasileiras em dar suporte financeiro,
burocrático e técnico para grupos sociais organizados na luta pelo déficit habitacional.
Resultado disso é o fato da comunidade ter migrado da modalidade Entidades do PMCMV para
a modalidade Empresa por receio da demora para a concretização do conjunto frente às
ameaças de remoção e perdendo, assim, parte de suas demandas espaciais no projeto e
independência na gestão de sua concepção e construção.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


Figuras 1 e 2: Casas sobre palafitas e prédios do conjunto habitacional em construção na Ponta do Leal em 2016.
Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS/Petra Mafalda, 2016.

UM CASO DE AUTOGESTÃO: MONTEAGUDO EM BUENOS AIRES

Como processo projetual participativo alternativo ao caso de resistência que possibilitou a


permanência dos moradores da Ponta do Leal, encontramos na cidade de Buenos Aires, na
Argentina, a construção autogestionada do Conjunto de Viviendas Monteagudo. O segundo
estudo de caso da pesquisa apresenta a construção de habitações de interesse social por uma
cooperativa habitacional, a Cooperativa Construtora Emetele, reconhecida pelo
empoderamento político de seus cooperados, integrantes do Movimiento Territorial de
Liberación (MTL). O MTL é uma organização social e política de trabalhadores empregados e
desempregados que nasceu em 2001, e esteve presente dentro do Movimento Piqueteiro, que
surgiu na Argentina em meados da década de 1990, em respaldo à situação de desemprego
que assolava o país.

O Movimento Piqueteiro surgiu com o objetivo de demandar do Estado sua intervenção para
reverter a problemática do desemprego que a Argentina enfrentava naquele momento e atuam
até hoje usando o piquete como ferramenta de protesto, cortando vias de trânsito para impedir
a circulação de pessoas, veículos e mercadorias. “Os piqueteiros” são reconhecidos como um
dos atores coletivos de maior relevância no campo político argentino (MANZANO, 2007 apud
CRAVINO, 2012) e a eles são atribuidos a conquista da criação de políticas habitacionais que
incentivaram o surgimento de cooperativas de trabalho e empresas autogestionadas dedicadas
à construção de habitações populares, fomentando significativamente a economia popular.

É nesse sentido que a Lei 341 é aprovada em 2000 pela Prefeitura de Buenos Aires,
determinando a criação de políticas e programas sociais que concedam crédito e subsídio para
a construção de habitações à população de baixa renda - organizadas individual ou
coletivamente. Surge assim programas como o Programa de Emergência Habitacional,
conhecido popularmente como “Techo y Trabajo”, e o Programa para la Autogestión de la
Vivienda (PAV) com a finalidade de incidir no déficit habitacional e atender à problemática do
desemprego. As organizações coletivas poderiam obedecer formatos variados, mas essa
pesquisa foca nas cooperativas habitacionais, que funcionam como fonte de moradia, trabalho
e democracia. Kaplan de Drimer (apud CRAVINO, 2012, p. 258) sustenta que existem distintas
modalidades de construção por parte das cooperativas habitacionais. Dentre elas, destacam-
se três: (1) as cooperativas de consumo, que oferecem unidades habitacionais destinadas a
seus associados; (2) cooperativas de produção ou de trabalho, constituída por profissionais,
técnicos e trabalhadores especializados na construção civil que agrupam capitais e esforços
para construir edifícios habitacionais com o objetivo de obter uma fonte de trabalho estável e

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


conveniente para seus associados; (3) as cooperativas de crédito, que fornecem créditos a seus
associados para que estes procurem por sua própria conta a solução de seu problema
habitacional.

No âmbito do Programa para la Autogestión de la Vivienda, que surgiu como consequência da


promulgação da Lei 341/00, o MTL criou a Cooperativa Emetele, com o fim de ser destinatária
de crédito e entidade produtora de unidades habitacionais. A Cooperativa Emetele pode ser
associada aos primeiros dois modelos de cooperativas formulado por Kaplan: as cooperativas
de consumo são sujeitas a créditos e responsáveis por todo o processo de concepção de sua
própria habitação através da autogestão, enquanto as de trabalho são contratadas pelo Estado
para a construção de habitações para os próprios cooperados, ou de outras obras públicas. As
duas são fomentadas por diferentes programas ou leis, mas as cooperativas de consumo
podem empregar seus próprios cooperados, gerando fontes de trabalho e possibilitando o
acesso a habitações dignas ao mesmo tempo que proporcionam autonomia a população. Após
a finalização do Conjunto de Viviendas Monteagudo, a Emetele segue administrando o
Conjunto, e como Construtora, funciona como uma cooperativa de trabalho que emprega seus
associados na construção de obras públicas.

Os moradores do Conjunto de Viviendas Monteagudo participaram de todo o processo desde a


conquista do financiamento, a escolha e compra do terreno (Figuras 3 e 4), a contratação dos
profissionais envolvidos, a elaboração do projeto arquitetônico, até a construção da obra,
caracterizando um processo que se desenvolveu “de baixo para cima” no qual o Estado prestou
um papel de facilitador e não de provedor. A autogestão remete assim a “estratégia de
renovação urbana” citada por Lefebvre (2016, p. 112), que acreditava que o novo homem e sua
nova sociedade seriam construídos por meio da construção coletiva e que, por sua vez, só
poderia ser protagonizada pela classe trabalhadora e colocada em prática na cidade.

Figuras 3 e 4: Localização do Bairro Parque Patrícios, na cidade de Buenos Aires, e sua implantação em escala aproximada.
Fonte: elaboradas pelos autores, 2020.

O projeto é organizado em onze edifícios de quatro andares cada (Figura 5), constituídos por
326 unidades habitacionais e com um total de 18.000 m². Para sua construção, a cooperativa
Emetele empregou 250 piqueteiros (Figura 6) que se tornaram trabalhadores e deixaram de
receber subsídios do Plan de Jefes y Jefas de Hogar Desocupados (Plano de Chefes e Chefas de
Família Desempregados), para receber salários entre 600 e 900 pesos mensais (em valores da
época) como empregados formais. Eles construíram unidades habitacionais para cerca de 2.000
pessoas e seguiram trabalhando em outras obras depois da finalização do Conjunto
Monteagudo. Os piqueteiros que ocuparam as unidades têm 30 anos para devolver o dinheiro

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


emprestado, em parcelas mensais de 166 pesos, para o Instituto de Vivienda de la Ciudad (LA
NACION, 2005).

Figuras 5 e 6: Inauguração do Conjunto a esquerda e cooperados construíndo o Conjunto de Viviendas Monteagudo à


esquerda. Fonte: CPAU, 2007.

REFLEXÕES FINAIS

Em meados do século XX, Lefebvre explicou o processo de explosão, implosão e segregação das
cidades como decorrente da produção capitalista do espaço e do sistema produtivo industrial.
Resgatando o conceito da cidade como Obra cunhada por Lefebvre, Harvey aponta
movimentos que insurgem do “precariado” no século XXI como sujeitos da revolução urbana
ao exigirem seu direito à cidade, sugerindo uma possibilidade de mudança do cenário exposto
por Lefebvre.

A América Latina dos anos 2000 encontrava-se inserida em um contexto que representou um
movimento reverso à década de 1990, marcada por políticas neoliberais de austeridade. Na
cidade de Buenos Aires, o Programa de Autogestión por la Vivienda surge no ano 2000,
resultante de lutas e reivindicações da classe trabalhadora frente ao crescimento da taxa de
desemprego. No Brasil, iniciou-se o século com conquistas por parte dos movimentos de
reforma urbana, que remetem aos direitos adquiridos no período de redemocratização.
Associados à eleição de governos mais progressistas, tais conquistas davam indícios da
consolidação de um cenário político mais favorável ao desenvolvimento de programas e
políticas habitacionais. Mas, paralelo a estes avanços, a habitação mais uma vez foi utilizada
como moeda de troca entre governos e a indústria da construção civil. Assim, o PMCMV fazia
parte de uma política anti-cíclica e o PMCMV-Entidades surgiu apenas em 2009 enquanto era
direcionado uma porcentagem de investimento mínima para o mesmo dentro do contexto total
do programa. Apesar da conquista que o PMCMV-Entidades representou, o Brasil, em destaque
para região sul, carece de experiências em produção de habitação coletiva a partir de modelos
autogestionados.

Na cidade de Buenos Aires, o PAV atrelou o acesso à moradia com a ampliação da oferta de
emprego de forma direta por meio do modelo de Cooperativas Habitacionais: os próprios
trabalhadores, desempregados e sem acesso à habitação digna, gestionam e constróem suas
habitações. No Brasil, o mesmo ocorreu de forma indireta. O PMCMV-Empresas possibilitou o
repasse de verba pública para mãos privadas por meio da construção massiva de habitações,
resultando no crescimento das grandes construtoras e das taxas de emprego em um momento
de crise econômica mundial. O afastamento entre o provedor da habitação e seu usuário, no
entanto, foi um dos resultados.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


No âmbito dos estudos de caso analisados por meio dos degraus da escada de participação de
Arnstein (2002), identificou-se que no caso da Ponta do Leal, a princípio, não houve
participação. A Prefeitura de Florianópolis tomou a decisão unilateral de realocar a comunidade
para outro território da cidade e, apesar da notificação do Ministério Público ter sido recebida
pela Prefeitura em 2001, foi apenas em 2005 que a mesma informou os moradores, deixando
de incluí-los em qualquer debate prévio à decisão de remoção. Com a resistência à aceitação
do projeto da Prefeitura, garantida por meio de manifestações, reuniões comunitárias,
enfrentamentos públicos e publicações midiáticas, o grau de participação é elevado e passa a
ser o 5: “Pacificação - concessão mínima de poder”. Nesta etapa do processo, o líder
comunitário obteve um lugar no Conselho Municipal de Habitação de Florianópolis, passando
a deter mais influência sobre as decisões, apesar do acesso ao poder ainda permanecer
limitado. Ao final do processo, percebe-se que a comunidade poderia ter atingido,
parcialmente, o nível 8: “Controle Cidadão - poder cidadão”. Tal conquista teria ocorrido caso
tivessem se enquadrado e efetivado suas habitações por meio do PMCMV - Entidades,
autogerindo o projeto de suas residências e obtendo acesso direto à fonte de financiamento.
Porém, após as dificuldades já mencionadas, a comunidade finalizou seu processo no nível 6:
“Parceria - poder cidadão”, no qual houve uma redistribuição de poder após negociações entre
comunidade e instituições públicas. Assim, apesar do avanço, viu-se que com o decorrer dos
anos, as regras e decisões foram majoritariamente tomadas pelo poder público,
comprometendo o nível de participação da comunidade.

Diferentemente do caso da Ponta do Leal, o processo participativo dos associados ao MTL por
meio da Cooperativa Emetele, foi apoiado pelo arcabouço legislativo da cidade de Buenos Aires.
Os programas habitacionais resultantes da promulgação da Lei 341/2000 forneceram o poder
político e gestionário para as cooperativas incidirem de forma direta sobre o déficit habitacional
em escala municipal. Assim, pelo formato direto de delegação de poder de decisão, sem a
necessidade de intermediários, entende-se que o processo participativo que resultou no
Conjunto de Viviendas Monteagudo insere-se no nível 8: “Controle Cidadão - poder cidadão”,
segundo a escala de participação de Arnstein (2002).

A resistência dos moradores da Ponta do Leal significou a conquista frente às ameaças de


remoção e um êxito na luta pelo Direito à Cidade, resultando na escalada sobre um maior grau
de participação durante os anos de projeto. Como paralelo, o caso do Conjunto Monteagudo
exemplifica um processo bem sucedido de cooperação entre políticas públicas habitacionais e
movimentos sociais pelo direito à moradia. Tanto no Brasil quanto na Argentina, o acesso à
habitação é garantido por lei. No Brasil, a moradia é assegurada como direito social no art.6º
da Constituição Federal de 1988. Já na Argentina, o acesso à moradia digna é garantido pelo
art. 16º da Constituição da Nação Argentina, de 1853. Sendo assim, o êxito resultante da
intensa luta destas duas comunidades não foi da conquista de um direito, mas como a garantia
de que direitos já adquiridos fossem efetivados. Portanto, ainda é necessário repensar os
modelos e programas de política pública habitacional a partir de uma perspectiva da efetivação
do direito à cidade de forma propositiva e não apenas como capacidade de reação das próprias
comunidades de baixa renda.

REFERÊNCIAS

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Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


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CRAVINO, Maria Cristina. Construyendo barrios: Transformaciones socioterritoriales a partir de los


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HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do Direito À Cidade À Revolução Urbana. São Paulo: Martins Fontes,
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LOS PIQUETEROS duros construyen su barrio en Parque Patricios. La Nación [online], Buenos Aires, 30
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Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo

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