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O conflito anticapitalista saiu das fábricas para o espaço urbano. Na luta por habitação, o operário,
transformado em precariado, demanda seu Direito à Cidade e a retomada de seu valor de uso. Neste
contexto, o presente artigo investiga a participação como ferramenta de emancipação política e social,
abordando, para tal, duas experiências latino americanas: uma brasileira - o Conjunto Habitacional da
Ponta do Leal localizado em Florianópolis e construído a partir do Programa Minha Casa Minha Vida Faixa
1; e outra argentina - o Conjunto de Viviendas Monteagudo produzido a partir uma cooperativa
habitacional em Buenos Aires no âmbito do Programa de Autogestión para la Vivienda. Ao analisar o
processo que resultou na conquista das moradias, identificou-se a efetivação da participação dos
habitantes nos dois casos, porém sob diferentes perspectivas e graus. No caso brasileiro, destaca-se a
Resistência à ameaça de remoção em uma área já ocupada e, no argentino, a Autogestão e a conquista
de seu espaço em solo urbanizado. Como conclusão, reafirma-se a importância do processo participativo
e a necessidade de se pensar os modelos e programas de políticas públicas habitacionais a partir de uma
perspectiva da efetivação do direito à cidade.
PALAVRAS-CHAVE: habitação social. participação. Programa Minha Casa Minha Vida. cooperativas
habitacionais. direito à cidade.
ABSTRACT
The anti-capitalist conflict moved out from the factories into the urban space. In the housing struggle,
the factory worker, turned into precarious worker, demands his Right to the City and the resumption of
its use value. In this context, this article investigates participation as a tool of political and social
emancipations, approaching, for this purpose, two Latin American experiences, one from Brazil: Ponta
do Leal Social Housing, located in Florianópolis and built under the Minha Casa Minha Vida Program; and
another one from Argentina, Monteagudo Social Housing, produced from a housing cooperative in the
city of Buenos Aires under the Autogestión para la Vivienda Program. When analyzing the process that
resulted in the housing conquest, it was identified the effective participation of the inhabitants in both
cases, although at different perspectives and degrees. In the Brazilian case, the Resistance to the threat
of removal in an already occupied area stands out and, in the Argentine case, Self-Management and the
conquest of its space on urbanized soil. In conclusion, the importance of participative processes and the
necessity to discuss the models and programs of public housing policies are reaffirmed from the
perspective of conquering the Right to the City.
KEYWORDS: social housing. participation. Programa Minha Casa Minha Vida. housing cooperatives. right
to the city.
RESUMEN
El conflicto anticapitalista salió de las fábricas para el espacio urbano. En la lucha por la vivienda, el
trabajador fabril, transformado en trabajador urbano precarizado, demanda su Derecho a la Ciudad y la
reanudación de su valor de uso. En este sentido, el presente artículo investiga la participación como
herramienta de emancipación política y social, abordando, para esto, dos experiencias latinoamericanas:
una brasileña - el Conjunto de Viviendas Ponta do Leal, ubicado en Florianópolis y construido a través del
Programa Minha Casa Minha Vida Faixa 1; y otra argentina - el Conjunto de Viviendas Monteagudo,
hecho por medio de una cooperativa de vivienda en la ciudad de Buenos Aires en el ámbito del Programa
de Autogestión para la Vivienda. Al analizar el proceso que resultó en la conquista de las viviendas, se
identificó el empleo de la participación de los residentes en los dos casos, todavía, bajo distintas
perspectivas y grados. En el caso brasileño, se destaca la Resistencia a las amenazas de remoción en una
área ya ocupada; y en el caso argentino, la Autogestión y la conquista de su espacio en tierra urbanizada.
Como conclusión, se reafirma la importancia del proceso participativo y la necesidad de pensar los
modelos y los programas relacionados a políticas públicas de vivienda por medio de una perspectiva del
empleo del derecho a la ciudad.
PALABRAS-CLAVE: vivienda social. participación. Programa Minha Casa Minha Vida. cooperativas de
vivienda. derecho a la ciudad.
O presente artigo se insere nos debates acerca da importância da participação social na vida
urbana como um todo e na produção da habitação social em específico. De fato, a cidade deve
ser entendida como um espaço de encontros, trocas e possibilidades. Na cidade como produto
coletivo, como Obra, os moradores participam das tomadas de decisões referentes à sua
construção, manifestam-se pela apropriação do espaço público e pela adequação do habitat às
suas necessidades. Mobilizando-se pelo acesso à moradia, demandam a conquista pelo direito
à cidade (LEFEBVRE, 2016). Em 1968, Henri Lefebvre publica sua obra “O Direito à Cidade”, na
qual descreve a industrialização das cidades e a crise urbana que enfrentamos em
consequência desta. Para o autor, o valor de uso da cidade foi substituído pelo valor de troca
quando esta deixa de ser apenas o espaço de produção para tornar-se o próprio produto do
capitalismo. Como consequência da concepção da terra como mercadoria, o espaço urbano foi
intensamente segregado e o acesso à terra urbanizada limitado aos que podem pagar por ela.
Segundo Lefebvre, uma revolução urbana é eminente.
Quase meio século depois, David Harvey publica “Cidades Rebeldes: do Direito à Cidade a
Revolução Urbana”, onde resgata o termo criado por Lefebvre e expõe movimentos urbanos e
suas conquistas em diferentes partes do mundo. Para Harvey (2014, p.28), o direito à cidade é
“(...) muito mais que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade
incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade de acordo com nossos mais profundos
desejos (...)” na busca do exercício do poder coletivo sobre o processo de urbanização. A luta
dos movimentos sociais urbanos pelo direito à cidade, de acordo com o autor, é protagonizada
nas ruas por pessoas que em sua maioria nunca escutaram o nome de Lefebvre, mas que
representam dentro do contexto marxista a nova cara da luta anticapitalista. Justamente,
Harvey (2014) acredita que essa luta saiu das fábricas e encontra-se hoje no espaço urbano,
transformando o sujeito “proletariado” em “precariado”. Os atuais atores dessa luta são as
trabalhadoras e trabalhadores urbanos, aos quais cabem as villas misérias e as favelas latino
americanas como alternativa acessível à moradia. Nesse sentido, é possível verificar que a luta
pela habitação, pelo espaço público e até mesmo pela tarifa acessível do transporte coletivo
tem eclodido em diferentes cidades no mundo, trazendo como ponto em comum a exposição
das desigualdades socioespaciais e a luta por cidades mais justas, equitativas e democráticas.
É neste marco teórico proposto por Lefebvre e Harvey que se desenvolve este artigo, resultante
de um projeto de pesquisa desenvolvido parte no Brasil e parte na Argentina. Propõe-se, por
meio deste, um estudo da produção de habitação de interesse social de forma participativa sob
a perspectiva da luta pelo direito à cidade. Abordando a participação como ferramenta de
emancipação política e social frente a diferentes contextos de carência habitacional e levando
em consideração os distintos quadros políticos, sociais e econômicos destes países, buscou-se
compreender o processo que antecedeu a concepção da produção das habitações e a trajetória
da participação popular que resultou na conquista das moradias. O estudo definiu o campo
investigativo da habitação social coletiva a partir de duas experiências latino americanas
selecionando um caso no Brasil, considerado inicialmente como representante de um processo
com participação não efetivada, e um caso com participação efetivada na Argentina. O
primeiro, o caso brasileiro, é o Conjunto Habitacional da Ponta do Leal localizado em
Florianópolis, que inicialmente seria financiado via Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)
- Entidades e projetado em conjunto com seus futuros usuários. Entretanto, foi finalmente
construído no modelo Empresas do PMCMV - Faixa 1. Em busca de um conjunto habitacional
de interesse social com efetiva participação da população na sua concepção e seguindo a já
Para Lefebvre “(..) o uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos
monumentos, é a Festa” (LEFEBVRE, 2016, p. 12) e cresce, nas últimas décadas, os indivíduos
que dela almejam fazer parte. Sejam atraídas pelas oportunidades econômicas, políticas ou
socioculturais, não há como negar a atração que as cidades exercem sobre as pessoas,
permitindo que este seja o local do encontro, da diversidade, das trocas, dos “conhecimentos
e reconhecimentos” dos diferentes modos de viver.
A cidade foi definida por Lefebvre (2016) como a Obra do ser humano: a realização de sua
produção sustenta relações não expressas em valores mercantis. Ela pré-existe à
industrialização, mas é a partir do processo que revolucionou os meios de produção, que a
cidade, sua forma, significados e dinâmicas se transformaram. O valor de uso da cidade foi
substituído pelo valor de troca quando esta deixou de ser o locus da produção para se tornar o
próprio produto do capitalismo. Surgiram, frente a estas transformações na mercantilização do
espaço, novas problemáticas urbanas, em um processo de implosão e explosão do tecido
urbano. As elites deixaram a cidade em busca de um idealizado contato com a natureza,
esvaziando os centros e deslocando-se para os subúrbios, enquanto as periferias foram
destinadas aos trabalhadores empobrecidos (LEFEBVRE, 2016).
Nas décadas que seguem a segunda Guerra Mundial, a moradia emerge como um direito social
universal e passa a ser provida pelos Governos para a população. Do inglês, welfare state, o
Estado de bem-estar social surge com a finalidade de amenizar tensões, conflitos e
desigualdades econômicas, políticas e sociais resultantes da guerra (ROLNIK, 2015). Nesse
mesmo período, o movimento modernista ascendia, e novos planos urbanísticos e conjuntos
habitacionais racionalistas foram empregados pelo Estado como forma de fornecer soluções
rápidas e de menor custo para a reconstrução das cidades e para o fornecimento de habitações
à população desalojada. Assim, governos tomam para si a responsabilidade de assegurar à
população as condições mínimas necessárias de habitabilidade, provendo o acesso à moradia.
As crises políticas, econômicas e sociais dos anos 1960 e 1970, no entanto, trouxeram críticas
irreversíveis ao modelo centralizador e autoritário que associou o Grande Estado ao Grande
Capital (Harvey, 1989). Aliado a outras medidas reformistas, emerge um novo Estado: o Estado
Neoliberal. Esse trouxe como consequência a política de austeridade fiscal, a privatização do
estoque público de moradia - dos países que o tinham - e a diminuição considerável das verbas
públicas destinadas às políticas de habitação (ROLNIK, 2015). Aos poucos, o papel do Estado
“ultrapassou o de mero ‘facilitador’: por um lado eles desconstruíram políticas habitacionais e
urbanas (...) por outro, também promoveram ativamente as novas alternativas” (ROLNIK, 2015,
p. 42). Assim, as políticas públicas habitacionais atuais deixam de ter como princípio a provisão
de habitação para se transformarem em políticas econômicas. São programas que não
procuram solucionar a problemática do déficit habitacional em si, mas estimular a exploração
do setor por parte do mercado imobiliário, alavancando a economia a partir da construção civil.
Portanto, o déficit habitacional, ou a demanda efetiva de um grupo, vem sendo utilizado como
geração de riqueza e lucro para outro.
De fato, ao longo da história dos dois maiores países da América do Sul, a disputa entre classes
sobre o território urbano foi marcada pela conformação de aglomerados ilegais e sucessivas
expulsões dos que constroem a cidade, mas que não tem seu espaço nela, resultando em um
território urbano manchado por villas de emergência e favelas não reconhecidas pelos mapas
oficiais. No caso brasileiro, para se falar sobre reformas neoliberais é preciso lembrar que o
Estado de bem-estar social não chegou a ser implementado de fato no país. A habitação como
mercadoria tirou do Estado a responsabilidade de fornecer moradia à população que não tinha
acesso à ela, promovendo a transferência ideológica dessa responsabilidade para o mercado
que, em busca do capital, transformou o paradigma da “casa própria” como modelo
praticamente único de política habitacional. Assim, a habitação deixou de ser um “(...) bem
comum que a sociedade concorda em dividir ou prover para aqueles com menos recursos, para
se transformarem em mecanismo de extração de renda, ganho financeiro e acumulação de
riqueza” (ROLNIK, 2015, p.14).
A distribuição dos recursos por faixa de renda - sendo, em maioria, beneficiadas famílias que
não constituem o déficit habitacional do país - ampliam o debate sobre a efetividade do
PMCMV em atuar em conformidade com as metas de redução do déficit habitacional propostos
pelo PlanHab, Plano Nacional de Habitação, lançado em 2005. Por um lado, o PlanHab propôs
subsídios de localização estimulando projetos em áreas centrais e consolidadas. Por outro, o
PMCMV estabeleceu um teto único por região para o valor da unidade, acabando por
determinar a implantação de projetos em zonas periféricas, seminfraestrutura, equipamentos
e vida urbana.
1
Portal Federativo. 5.330 municípios no Minha Casa Minha Vida, maio de 2016. Disponível em:
<http://www.portalfederativo.gov.br/noticias/destaques/5-330-municipios-no-minha-casa-minha-vida> Acesso em
abr. 2020.
2
A exemplo dessas críticas é o livro “Minha Casa… E a Cidade? Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em
seis estados brasileiros” de 2015, do Observatório das Metrópoles (AMOR et al, 2015).
3
Banco Mundial. Urban population (% of total population) – Brazil, 2018. Disponível em:
<https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS?end=2018&locations=BR&start=1960> Acesso em abr.
2020.
4
Banco Mundial. Urban population (% of total population) – Argentina, 2018. Disponível em:
<https://data.worldbank.org/indicator/SP.URB.TOTL.IN.ZS?end=2018&locations=AR&start=1960> Acesso em abr.
2020.
Nesse sentido, “(...) a participação constitui o meio pelo qual os sem-nada podem promover
reformas sociais significativas que lhes permitam compartilhar dos benefícios da sociedade
envolvente” (ARNSTEIN, 2002, p. 1). Entendida como estratégia de redistribuição do poder
dentre todos os cidadãos, a participação é o meio principal para se alcançar o pleno direito à
cidade. Justamente, para Lefebvre, o retorno à cidade como Obra não deve ser conquistado
pelo olhar ao passado, mas deve ocorrer pela revolução da sociedade urbana. Essa, deverá ser
feita a partir da prática social da classe oprimida, desfazendo estratégias e ideologias
dominantes e atuando como integradora do espaço urbano, pondo fim à segregação imposta
sobre ela. Assim, a participação gera o empoderamento político de indivíduos e comunidades,
fortalecendo sentimentos de pertencimento e solidariedade.
Por outro lado, “(...) a participação sem redistribuição de poder permite àqueles que têm poder
de decisão argumentar que todos os lados foram ouvidos, mas beneficiar apenas a alguns”
(ARNSTEIN, 2002, p. 2). Exatamente por esse risco – i.e., legitimar decisões já tomadas sem
alterar a distribuição de poder –, que é necessário avaliar a intensidade e a qualidade da
participação cidadã. Para tanto, esta pesquisa utilizou a escada da participação desenvolvida
por Arnstein (2002) e composta por oito degraus, sendo o 1º o menor nível de participação e o
8º o maior. São eles: 1. Manipulação; 2. Terapia; 3. Informação; 4. Consulta; 5. Pacificação; 6.
Parceria; 7. Delegação de Poder; 8. Controle Cidadão. Os dois primeiros degraus constituem
formas de não-participação, dos níveis três a cinco temos uma concessão mínima de poder e,
a partir deles, o aumento do empoderamento cidadão.
Para analisar o grau de participação nos dois casos selecionados no Brasil e na Argentina, esta
pesquisa baseou-se na revisão bibliográfica, análise de documentos e entrevistas com sujeitos
participantes dos processos de conquista das moradias. A partir das leituras de Lefebvre e de
Arnstein, assume-se que a ação popular é imprescindível para a produção de uma cidade
democrática, sendo necessária uma mudança do espaço urbano que seja gerida “de baixo para
cima”, e não de forma contrária, impondo decisões à população de baixa renda sem consultá-
la. As duas próximas seções abordam o processo de concepção dos dois conjuntos habitacionais
escolhidos como estudos de caso desta pesquisa. Tratam-se de um caso marcado pela
resistência às ameaças de remoção e outro de autogestão e autoconstrução originados por
meio de diferentes formas de participação da população residente, como será visto.
Ameaçados de remoção desde o princípio dos anos 2000, os moradores da Ponta do Leal
organizaram-se e, unidos, travaram anos de enfrentamentos pela permanência no espaço que
habitavam. O caso de resistência frente às decisões de remoção e realocação para conjuntos
habitacionais distantes do espaço originalmente residido demonstra a importância da
A cidade de Florianópolis, localizada ao leste do estado de Santa Catarina, conta com uma
população estimada de 500.973 habitantes (IBGE, 2019)5. Com uma conformação espacial
peculiar, a capital catarinense tem 2,77% do seu território em área continental e 97,23% em
uma ilha de grande diversidade de ecossistemas. Essa configuração geográfica conforma áreas
ambientalmente frágeis, fazendo de Florianópolis uma cidade com grande valor natural e
paisagístico. A partir da segunda metade do século XX, a intensificação dos fluxos turísticos e a
grande quantidade de espaços ainda não habitados na ilha, atrelados ao seu potencial
ambiental e visual, colocaram a cidade na mira do mercado imobiliário.
O aumento da demanda por solo urbanizado incidiu sobre o valor da terra e teve como
resultado a epsacialização da segregação na mancha urbana da cidade: enquanto a Beira Mar
Norte, via estruturante do município, se expandia reproduzindo o valor por metro quadrado
mais caro da ilha, a população de baixa renda ocupava morros e áreas continentais precárias
em busca de terrenos menos valorizados (SUGAI, 2015). É em um recorte de aproximadamente
8.400m² no bairro Estreito, às margens da Baía Norte na Florianópolis continental que está
localizada, há mais de 40 anos a comunidade da Ponta do Leal. Assentada em construções em
palafitas sobre o mar, sua população é constituída por migrantes do município de Lages e São
Francisco do Sul (Figuras 1).
O processo de remoção que envolve a comunidade da Ponta do Leal iniciou em 2001 com uma
Ação Civil Pública com o objetivo de despoluir a região do balneário do Bairro Estreito de
Florianópolis. Segundo a ação, os réus, a Prefeitura Municipal de Florianópolis, a Companhia
Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN) e a Fundação do Meio Ambiente (FATMA)
deveriam solucionar os problemas de ligações clandestinas de esgoto que eram despejadas na
orla e de assentamentos irregulares sob área de preservação permanente. A condição de
ilegalidade do assentamento formalizada pelos laudos técnicos e a impossibilidade de execução
de um programa de saneamento nas casas construídas sobre palafitas tiveram como
consequência a proposta de remoção completa da população do local (RAMPAZZO, 2008).
5
IBGE. Florianópolis: Panorama. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/florianopolis/panorama>
Acesso em abr. 2020.
Desde 2005, os moradores iniciaram contato com diversas fontes para solucionar a
problemática habitacional que viviam. Próximo à 2009, líderes, atores da comunidade e atores
externos tiveram a ideia de utilizar o terreno adjacente ao assentamento da comunidade, que
na época achava-se que pertencia à CASAN. Após investigações sobre o terreno, a SPU
(Superintendência do Patrimônio da União) descobriu que as terras eram, em parte,
propriedade da Prefeitura Municipal de Florianópolis e parte da União, e que a própria CASAN
utilizava as terras de maneira irregular. Assim, as ações resultaram em um acordo de cessão do
terreno público adjacente ao assentamento inicial para o projeto da comunidade.
A população da Ponta do Leal, que demonstrou articulação para reivindicar suas necessidades,
mobilizou-se pela participação no desenvolvimento do projeto urbano e habitacional que os
envolve e, diante das tentativas de realocação para outros locais, lutou pela sua permanência
no espaço onde suas dinâmicas sociais já estavam consolidadas. Apesar do resultado final do
projeto arquitetônico desconsiderar muitas das demandas da população, a população se
tornou agente da sua conquista, participando ativamente do processo de permanência no
espaço já habitado. A dificuldade quanto ao controle sobre a gestão do projeto, porém, aponta
para a deficiência das políticas públicas habitacionais brasileiras em dar suporte financeiro,
burocrático e técnico para grupos sociais organizados na luta pelo déficit habitacional.
Resultado disso é o fato da comunidade ter migrado da modalidade Entidades do PMCMV para
a modalidade Empresa por receio da demora para a concretização do conjunto frente às
ameaças de remoção e perdendo, assim, parte de suas demandas espaciais no projeto e
independência na gestão de sua concepção e construção.
O Movimento Piqueteiro surgiu com o objetivo de demandar do Estado sua intervenção para
reverter a problemática do desemprego que a Argentina enfrentava naquele momento e atuam
até hoje usando o piquete como ferramenta de protesto, cortando vias de trânsito para impedir
a circulação de pessoas, veículos e mercadorias. “Os piqueteiros” são reconhecidos como um
dos atores coletivos de maior relevância no campo político argentino (MANZANO, 2007 apud
CRAVINO, 2012) e a eles são atribuidos a conquista da criação de políticas habitacionais que
incentivaram o surgimento de cooperativas de trabalho e empresas autogestionadas dedicadas
à construção de habitações populares, fomentando significativamente a economia popular.
É nesse sentido que a Lei 341 é aprovada em 2000 pela Prefeitura de Buenos Aires,
determinando a criação de políticas e programas sociais que concedam crédito e subsídio para
a construção de habitações à população de baixa renda - organizadas individual ou
coletivamente. Surge assim programas como o Programa de Emergência Habitacional,
conhecido popularmente como “Techo y Trabajo”, e o Programa para la Autogestión de la
Vivienda (PAV) com a finalidade de incidir no déficit habitacional e atender à problemática do
desemprego. As organizações coletivas poderiam obedecer formatos variados, mas essa
pesquisa foca nas cooperativas habitacionais, que funcionam como fonte de moradia, trabalho
e democracia. Kaplan de Drimer (apud CRAVINO, 2012, p. 258) sustenta que existem distintas
modalidades de construção por parte das cooperativas habitacionais. Dentre elas, destacam-
se três: (1) as cooperativas de consumo, que oferecem unidades habitacionais destinadas a
seus associados; (2) cooperativas de produção ou de trabalho, constituída por profissionais,
técnicos e trabalhadores especializados na construção civil que agrupam capitais e esforços
para construir edifícios habitacionais com o objetivo de obter uma fonte de trabalho estável e
Figuras 3 e 4: Localização do Bairro Parque Patrícios, na cidade de Buenos Aires, e sua implantação em escala aproximada.
Fonte: elaboradas pelos autores, 2020.
O projeto é organizado em onze edifícios de quatro andares cada (Figura 5), constituídos por
326 unidades habitacionais e com um total de 18.000 m². Para sua construção, a cooperativa
Emetele empregou 250 piqueteiros (Figura 6) que se tornaram trabalhadores e deixaram de
receber subsídios do Plan de Jefes y Jefas de Hogar Desocupados (Plano de Chefes e Chefas de
Família Desempregados), para receber salários entre 600 e 900 pesos mensais (em valores da
época) como empregados formais. Eles construíram unidades habitacionais para cerca de 2.000
pessoas e seguiram trabalhando em outras obras depois da finalização do Conjunto
Monteagudo. Os piqueteiros que ocuparam as unidades têm 30 anos para devolver o dinheiro
REFLEXÕES FINAIS
Em meados do século XX, Lefebvre explicou o processo de explosão, implosão e segregação das
cidades como decorrente da produção capitalista do espaço e do sistema produtivo industrial.
Resgatando o conceito da cidade como Obra cunhada por Lefebvre, Harvey aponta
movimentos que insurgem do “precariado” no século XXI como sujeitos da revolução urbana
ao exigirem seu direito à cidade, sugerindo uma possibilidade de mudança do cenário exposto
por Lefebvre.
A América Latina dos anos 2000 encontrava-se inserida em um contexto que representou um
movimento reverso à década de 1990, marcada por políticas neoliberais de austeridade. Na
cidade de Buenos Aires, o Programa de Autogestión por la Vivienda surge no ano 2000,
resultante de lutas e reivindicações da classe trabalhadora frente ao crescimento da taxa de
desemprego. No Brasil, iniciou-se o século com conquistas por parte dos movimentos de
reforma urbana, que remetem aos direitos adquiridos no período de redemocratização.
Associados à eleição de governos mais progressistas, tais conquistas davam indícios da
consolidação de um cenário político mais favorável ao desenvolvimento de programas e
políticas habitacionais. Mas, paralelo a estes avanços, a habitação mais uma vez foi utilizada
como moeda de troca entre governos e a indústria da construção civil. Assim, o PMCMV fazia
parte de uma política anti-cíclica e o PMCMV-Entidades surgiu apenas em 2009 enquanto era
direcionado uma porcentagem de investimento mínima para o mesmo dentro do contexto total
do programa. Apesar da conquista que o PMCMV-Entidades representou, o Brasil, em destaque
para região sul, carece de experiências em produção de habitação coletiva a partir de modelos
autogestionados.
Na cidade de Buenos Aires, o PAV atrelou o acesso à moradia com a ampliação da oferta de
emprego de forma direta por meio do modelo de Cooperativas Habitacionais: os próprios
trabalhadores, desempregados e sem acesso à habitação digna, gestionam e constróem suas
habitações. No Brasil, o mesmo ocorreu de forma indireta. O PMCMV-Empresas possibilitou o
repasse de verba pública para mãos privadas por meio da construção massiva de habitações,
resultando no crescimento das grandes construtoras e das taxas de emprego em um momento
de crise econômica mundial. O afastamento entre o provedor da habitação e seu usuário, no
entanto, foi um dos resultados.
Diferentemente do caso da Ponta do Leal, o processo participativo dos associados ao MTL por
meio da Cooperativa Emetele, foi apoiado pelo arcabouço legislativo da cidade de Buenos Aires.
Os programas habitacionais resultantes da promulgação da Lei 341/2000 forneceram o poder
político e gestionário para as cooperativas incidirem de forma direta sobre o déficit habitacional
em escala municipal. Assim, pelo formato direto de delegação de poder de decisão, sem a
necessidade de intermediários, entende-se que o processo participativo que resultou no
Conjunto de Viviendas Monteagudo insere-se no nível 8: “Controle Cidadão - poder cidadão”,
segundo a escala de participação de Arnstein (2002).
REFERÊNCIAS
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SUGAI, Maria Inês. Segregação silenciosa: investimento públicos e distribuição sócio-espacial na área
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