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Rosalina Burgos
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Campus Sorocaba
rburgos.ufscar@gmail.com
Direito à cidade: utopia possível a partir do uso e apropriação dos espaços públicos
urbanos (Resumo)
The right to the city: a possible utopia through the use and appropriation of urban
public spaces (Abstract)
Through the understanding of one's right to the city as a group of materialistic and
intangible rights of which a society can benefit equally from (despite the foundation of
inequality that underlie the capitalist dictates' spacial (re)production), a study arrises of
the proposed of the current happenings in the political-public sphere, such as the
privileged locus of the contradictions of an urban space that is not for everyone. Based
on a theoretical and conceptual foundation dedicated to the analysis and understanding
of the denominated 'critical urbanization', field investigations were made in the city of
Sorocaba, São Paulo, identifying different uses and appropriations of public spaces both
in everyday usage and in the context of public protests. Together, they define a social-
cultural context in movement and transformation which signals towards the possibilities
of the realization of a utopia that resides in the idea of a city for all.
Para abordar a temática do direito à cidade, esta deve ser compreendida como obra que
resulta de um processo social histórico. Ou seja, a cidade é obra da ação de agentes
sociais diversos, interesses múltiplos, lugar do trabalho e da festa, de tensões e conflitos
que se revelam nos espaços públicos, sendo um campo sempre aberto para o possível,
em contraposição ao pensamento sobre a cidade como produto, lócus de reprodução
privilegiada do capital.
Desde a cidade antiga, o sentido da relação entre espaço público e espaço político se
perpetua; um implica o outro, transformando-se permanentemente. No espaço público
tudo está em movimento. Realiza-se pleno de contradições, conflitos e possibilidades
que revelam conteúdos socioespaciais da própria sociedade urbana que os concebem e
os usam ou negligenciam.
Neste contexto, pleiteia-se o direito à cidade enquanto utopia realizável a partir das
formas efetivas e potenciais de uso e apropriação dos espaços públicos, nos interstícios
das contradições internas do próprio capitalismo, de onde emergem, com força
reivindicativa e transformadora da realidade, diversas manifestações sociais de caráter
público-político, econômico e cultural que partem dos segmentos sociais desfavorecidos
pela lógica de produção capitalista da cidade10.
1
Lefebvre, 2001, 2004
2
Moraes, 1999
3
Harvey, 2005
4
Damiani, 2004
5
Martins, 2008, 2014
6
Marx, 1983
7
Habermas, 1984; Arendt, 1981
8
Carlos, 1994, 2001
9
Serpa, 2007
10
Harvey, 2014
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O utópico – entendido enquanto aquilo que ainda não tem lugar11 – instaura-se como
potência realizável no momento em que a apropriação propriamente dita do espaço
público acontece: eis o espaço de representação, superando as separações-mediações da
representação do espaço12 que se projeta com o urbanismo. Seja em relação às
manifestações públicas inscritas no pleito do conjunto de direitos sociais que apontam
para o fortalecimento do direito à cidade, como já apontado anteriormente, seja em
relação às formas criativas e do banal no cotidiano. Utopia que se realiza ao encontrar
lugar nas fraturas do reprodutível, subvertendo a repetição alienante da sociedade
burocrática de consumo dirigido13.
“o urbano (abreviação de “sociedade urbana”) define-se (...) não como realidade acabada,
situada, em relação à realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao contrário, como
horizonte, como virtualidade iluminadora. O urbano é o possível, definido por uma direção, no
fim do percurso que vai em direção à ele”26.
11
Lefebvre, 1986
12
Lefebvre, 1974
13
Lefebvre, 1980
14
Com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
15
Burgos, 2013, 2014
16
Carlos, 1994, 2001, 2011
17
Damiani, 1999, 2004
18
Seabra, 1996, 2004
19
Serpa, ´2007, 2014
20
Martins, 2000
21
Lefebvre, 2001
22
Lefebvre, 2004
23
Lefebvre, 1976, 1986
24
Lefebvre, 1966, 2004
25
Lefebvre, 1994, 15
26
Lefebvre, 1994, 28
3
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Estudos com base empírica foram realizados acerca do uso e apropriação de espaços
públicos na cidade de Sorocaba, cidade média do interior paulista (Brasil) com cerca de
640.000 habitantes (IBGE, 2015), com intenso processo de valorização e segregação
socioespacial.
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apropriação do espaço urbano, pois a vida nas cidades há de ser mais do que o
enclausuramento em suas estruturas mercadológicas visíveis e invisíveis, tal como a
indústria do medo: há que se considerar os caminhos que apontam para a abertura de
uma maior participação popular efetiva para uma gestão pública mais democrática das
cidades, sinalizadora de outro devir, latente-potente, realizando-se no uso e apropriação
dos espaços públicos urbanos.
Os espaços públicos integram a história territorial de formação das cidades desde a sua
gênese, apresentando transformações nas formas de concepção, uso e apropriação em
consonância com os conteúdos da sociabilidade existente em cada período histórico
considerado, deixando entrever aspectos importantes para a compreensão da formação
social, seus conflitos, resistências e resíduos.
Para além da análise acerca dos espaços públicos a partir do processo pelo qual foram
criados, ou ainda, acerca das políticas definidas para que sejam mantidos pela
municipalidade ou outra instância da gestão pública; para além das considerações acerca
de sua delimitação físico-territorial (e prerrogativas inscritas nos planos urbanísticos
para que sejam implantados, comumente restritos às áreas comuns exigidas pela
legislação de ordenamento territorial no processo de abertura de loteamentos), propõe-
se um caminho teórico e investigativo que situe o debate acerca das possibilidades do
direito à cidade a partir das múltiplas possibilidades de uso e apropriação efetivas destes
espaços. Aqui a esfera pública corresponde aos conteúdos socioespaciais que dão
sentido aos espaços públicos, e sem a qual a experiência da vida urbana não se realiza
de forma plena.
“O termo „público‟ denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não perfeitamente
idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por
todos e tem a maior divulgação possível. (...) Em segundo lugar, o termo „público‟ significa o
próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro
dele. (...) A esfera pública, enquanto mundo comum reúne-nos na companhia uns dos outros e,
contudo evita que colidamos uns contra os outros, por assim dizer”34.
29
Santos, 1978, 1982.
30
Santos, 1996.
31
Arendt, 1981.
32
Habermas, 1984.
33
Mouffe, 2015
34
Arendt, 1981, p. 59-62.
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A situação de conflito, tão cara aos desvelamentos do que se passa na esfera público-
política se insere no âmago mesmo da formação social. No decurso da periodização
histórica que encerra a formação das cidades, são redefinidos os usos e os significados
dos espaços públicos, segundo as mudanças que ocorrem no modo como a sociedade os
concebem, percebem e deles usufrui. Tais transformações correspondem, direta ou
indiretamente, aos valores e ideários próprios dos grupos ou classes de poder em cada
período, firmando-se através de seus projetos e ações políticas. Sobre este aspecto,
expressivo é o período de transição do século XIX ao XX ao observar que os grupos
sociais hegemônicos projetaram nas principais cidades um ideário de espaço público
como símbolo de modernidade à imagem e semelhança do que encontravam no
urbanismo europeu.
Se, por um lado, a ênfase dada ao espaço do lazer na tríade apresentada por Henri
Lefebvre abre a possibilidade da abordagem acerca das práticas socioespaciais
realizadas, ou realizáveis, no denominado tempo do não-trabalho, não significa que a
análise se restrinja à experiência do conjunto de atividades definidas como lazer. Ao
contrário. O conceito de lazer reduz a potência do que se passa nestes espaços que se
firmam pelo uso e apropriação que não se limitam às práticas domesticadas pelos
ditames do uso do tempo perpassados por ideologias hegemônicas. Ou seja, não se
reduz à doutrinação imposta pelos padrões de consumo, a exemplo de todo o aparato de
vestimentas e acessórios da indústria do culto ao corpo perfeito, quase nunca atingido, e
por isto mesmo profundamente explorado como norteador de hábitos que, embora
possam resultar numa vida saudável, realizam-se de forma a deixar pouco espaço para o
espontâneo e o inusitado. Ainda que praças e parques, passeios públicos diversos,
calçadas e ruas (quando tomadas pelos transeuntes) possam ser capturados por tais
práticas domesticadas, é neles que reside a grande potência daquilo que ainda não foi
concebido e que pode aflorar nos interstícios do urbano, seja subvertendo seu ritmo,
sentido ou devir.
35
Marx, 1983.
36
Lefebvre, 2004.
37
Lefebvre, 2004.
38
Lefebvre, 2004.
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Vale destacar que a cidade detém hoje cerca de uma dezena de shoppings, denotando
sua característica de polo regional de comércio e serviços. A sede da atual região
metropolitana situa a cidade de Sorocaba numa posição de destaque no contexto do
interior paulista, majoritariamente de caráter político-cultural conservador.
Se, por um lado, o caráter conservador marca parcela significativa da normatização dos
espaços públicos, vigiados por câmeras de segurança de caráter público e privado, por
outro lado, percebe-se uma complexa teia de agentes, ou atores, sociais que atuam de
forma colaborativa para ocupar e ampliar espaços democráticos e de essência plural nela
existentes. A seguir são apresentados alguns casos analisados na cidade de Sorocaba e
que denotam formas diversas de uso e apropriação de espaços públicos, seja no âmbito
da vida cotidiana, seja em momentos específicos de mobilização e participação social,
promovidos coletivamente.
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O referido fórum manteve suas atividades com a articulação de uma rede de entidades
da sociedade civil, sindicatos e movimentos sociais diversos que, até o presente
momento, representa um espaço de comunicação, debate e ações de significativo
impacto na visibilidade das entidades envolvidas. De um primeiro momento de
articulação resultou o evento anteriormente citado, cujas atividades e contribuições
teóricas e relatos resultaram na publicação de um livro, disponibilizado gratuitamente
para acesso através da internet40. Utopia realizável no espaço público instaurado com a
chegada de uma universidade pública, que logo de início estabeleceu diálogo com a
comunidade externa, sobretudo através de ações fomentadas por sua Pró-Reitoria de
Extensão Universitária – Proex.
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Vale ressaltar que as camadas sociais populares estão visceralmente presentes nos
espaços públicos, destacando-se as inúmeras estratégias de sobrevivência (espontâneas
ou institucionalizadas) que, ao menos em tese, proporcionam visibilidade às periferias,
suas gentes e sua problemática. Ainda sobre este assunto, a sociabilidade no nível da
vida cotidiana se apresenta menos impactada pelos circuitos de valorização espacial nos
espaços públicos urbanos não capturados pela globalização enquanto fábula41, podendo
reter importantes aspectos da esfera pública e política. Se, por um lado, o urbano
enquanto conceito se traduz pela simultaneidade, pelo encontro das diferenças, pela
possibilidade da novidade, sempre mais latente e presente nas sociedades urbanas com
níveis mais profundos de complexidade – com forte expressão em seus espaços públicos
– por outro, localiza-se no ritmo da vida cotidiana, não inserida na escala das
metrópoles, elementos para pensar a esfera pública e política, a partir dos elementos da
tríade lazer, família e trabalho42, seus agentes históricos, seus conflitos presentes e seu
devir.
41
Milton Santos, 2000.
42
Lefebvre, 1980.
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Outro espaço que se destacou nesta esfera pública não governamental foi o espaço
denominado Quintal Livre. Concebido no contexto das manifestações públicas
ocorridas em junho de 2013 em torno do aumento da passagem de ônibus, e demais
reivindicações articuladas naquele momento. A casa localizada no centro antigo de
Sorocaba se caracterizou como espaço para encontros, exposições culturais, debates
diversos, sempre às quintas-feiras. Por ocasião de um ano de existência, a imprensa
local notificou:
“Com a intenção de resgatar o caráter político das ações culturais, o espaço cultural Quintal
Livre realiza sua edição especial de aniversário, em comemoração a um ano de atividades. Mais
do que algumas mudanças estéticas no local, esse novo ciclo marca também a intenção de
resgate do que os organizadores chamam de „espírito de junho do ano passado‟, quando abriram
as portas ao público, em meio às manifestações que ocorriam em diversos pontos do país” 45.
“os espaços alternativos e coletivos têm que reforçar essa vertente mais politizada para além do
entretenimento. Ele ainda propõe uma relação ampla entre os coletivos culturais e os
movimentos sociais como já acontece no próprio Quintal, que tem parcerias com o grupo Garfos,
de alimentação orgânica, e o Veddas de vegetarianismo, exemplifica. „Uma questão complicada
é que muitas pessoas enxergam os espaços alternativos culturais como meramente voltados para
o entretenimento. Não que não sejam locais de diversão e entretenimento, também são, mas as
pessoas esquecem de quão politizadas podem ser as ações culturais, e da própria
responsabilidade dos indivíduos em politizar suas ações. Henri Lefebvre, filósofo francês, frisou
que o espaço urbano deve ser um local onde a festa sirva como uma ação revolucionária. Quando
se referia a isso, Lefebvre falava do espaço público e de como a cidade, as ruas, a praça pública
não são mais ocupadas pelo povo. Os coletivos, como espaços abertos ao público, têm esse
43
Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba – Macs.
44
Negrão, 2015.
45
Fernandes, 2014.
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Assim como estes exemplos situam ações promovidas em espaços abertos à população
no contexto de ações culturais na cidade de Sorocaba, existe ainda outro conjunto de
exemplos de práticas socioculturais que se apropriam dos espaços públicos
propriamente ditos. Para uma cidade onde se multiplica o número de shopping centers e
empreendimentos privados destinados ao usufruto do tempo livre em meio aos apelos
do consumo, as iniciativas a seguir citadas colaboram para instaurar a possibilidade de
outra lógica de uso do tempo e produção do espaço. Aquilo que não encontra lugar nos
interstícios da lógica capitalista que incide sobre o nível do cotidiano, moldando-o
segundo determinados padrões de comportamento, encontra formas inusitadas de
realização das possibilidades sempre latentes da apropriação dos espaços para a vida.
Utopia realizável.
Destaca-se deste contexto alguns casos que vem sendo analisados no escopo das
pesquisas que estão na base deste artigo. A primeira delas diz respeito às grandes
manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus, sobretudo em junho de 2013 que
conferiu à cidade formas ampliadas de uso e ocupação dos espaços públicos como há
muito tempo não se via na cidade. Foram consideradas pela imprensa e poder público
local como a mais expressiva forma de manifestação pública que a cidade presenciou na
sua história recente. Para além das manifestações públicas de caráter político-
reivindicatório, os eventos incluíam atividades de debate, apresentações artísticas que
promoveram o encontro e a apropriação dos espaços públicos da cidade.
De forma mais específica, é possível citar alguns projetos artísticos que convidam o
cidadão comum, citadino, a interagir de forma diferente com os espaços públicos
urbanos. Um caso emblemático corresponde ao conjunto de intervenções artísticas do
projeto “Como o tempo, como o amor” realizado por artistas do Coletivo Cê de Teatro,
realizadas em praças e Terminais de ônibus urbanos, com performances que
convidavam a questionar o automatismo dos citadinos em seus percursos cotidianos na
cidade:
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Fernandes, 2014.
47
Shikama, 2015a.
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“Desde o início, o público do festival, que ocorre duas vezes por ano - sempre no período de
férias escolares - tem crescido de forma exponencial. No evento criado no Facebook, a edição
deste domingo havia recebido a confirmação de 1.400 pessoas. „Essa é a primeira vez que o
festival será plugado. Todas as outras, então menores, era no formato acústico‟, detalha Oliveira,
ressaltando que a parceria estabelecida com a Prefeitura de Sorocaba, por meio da Secretaria de
Cultura (Secult), consiste apenas na cessão de uso da praça e o fornecimento de um ponto de
luz”48.
Estes são apenas alguns exemplos num contexto que vem se diversificando no nível da
vida cotidiana, a partir de formas populares de uso e apropriação dos espaços públicos
da cidade, confrontando a lógica do lazer confinado nos diversos shoppings nela
existentes. Importante ressaltar que todos os eventos citados são organizados de forma
colaborativa e gratuita, com significativa participação popular, independente de apoio
da Prefeitura ou outra instância do poder público, ou entidades da sociedade civil
organizada.
Considerações Finais
A esfera público-política pode ser observada a partir das sucessivas formas de uso e
apropriação dos espaços públicos. Contraditoriamente, estes espaços podem apresentar
diferentes níveis de profundidade em relação aos conteúdos da sociabilidade própria da
experiência de participação democrática e cidadã.
Neste contexto, é da maior importância atentar para que as agendas políticas sejam cada
vez mais articuladas de forma ampla, multi-escalar, integrada e compartilhada com os
diversos setores sociais, na elaboração e execução de seus planos e planejamentos
específicos: habitação, transporte, cultura, saúde, educação, dentre outros. Caracteriza-
48 Shikama, 2015b.
49
Santos, 1996.
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