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A IHUfHÇAO DA TfATRALlDADf

BRECHT EM PROCESSO
F
O JOGO DOS POSSÍUElS
A INVENÇÃO OA TEATRALlOAOE
CRíTICA DDTEATRD

[C]ette critique particuliere pourrait aussi bien


être appelée, au sens deleuzien, une «clinique».
Jean-Pierre Sarrazac

Nem «história», nem «sociologia», nem «esté-


tica». Trata-se de uma crítica. No prefácio ao vo-
lume intitulado Critique du théâtre, de l'utopie
au désenchantement1, de onde foram extraídos
os ensaios agora publicados, o autor, Jean-Pierre
sarrazac2, faz questão de elucidar o leitor relati-
vamente ao carácter singular de uma obra que,
não pretendendo ser uma crítica de teatro, se
assume como uma crítica do teatro - «do ob-
jecto teatro». Nas palavras do autor, esta crítica
pressupõe uma posição particular, específica, do
crítico que, na sequência de Roland Barthes, de
Bernard Dort ou mesmo de Louis Althusser - no-
meadamente a partir desse momento inaugural
dos palcos parisienses que foi a apresentação
do Berliner Ensemble, em 1954 - propõe uma
análise do objecto a partir do interior do próprio

1 Jean-Pierre Sarrazac, Critique du théâtre, de l'utopie au


désenchantement, Belfort, Circê, 2000.
2 Ensaísta, autor dramático, encenador, professor no Instituto de
Estudos Teatrais da Universidade de Paris II1 - Sorbonne Nouvelle,
Jean Pierre Sarrazac tem desenvolvido, ao longo dos últimos trinta
anos, uma vasta reflexão sobre as dramaturgias modernas e con-
temporãneas que está na origem de uma importante e diversificada
obra ensaística, reconhecida recentemente com Prêmio Thalia 2008,
atribuído pela Associação Internacional de Críticos de Teatro. Em por-
tuguês, está publicado o ensaio O Futuro do drama (trad. de Alexan-
dra Moreira da Silva, Porto, Campo das Letras/Dramat, 2000).
je o. ou seja, que se dedica a interrogar, a con- contrário, estaremos na presença de uma ideia
mar e a reconstituir o carácter auto-reflexivo obsoleta, sem expressão no teatro que podemos
e auro-crítico da arte teatral, percorrendo e ques- ver, actualmente, nos palcos europeus?
ri nando, como sugeria Deleuze, «os caminhos e Na verdade, estas questões são recorrentes
rajectórias interiores que a compõem»3. na obra ensaística e dramática de Jean-Pierre
esta perspectiva, e depois de duas obras sarrazac.[veja-se, por exemplo, o destaque que,
fundamentais4 dedicadas à análise das drama- desde o incontornável O Futuro do dramas até
rurgias do «íntimo», onde Jean-Pierre Sarrazac ao mais recente La parabole ou l'erlfance du
põe em evidência o intenso combate entre o «eu» théâtre6, é dado à relação entre «realismo» e
e o «mundo» que a relação entre o íntimo e o «teatralidade»~\ Ou ainda a forma como somos
político pressupõe (de August Strindberg a Mar- constantemente alertados para o facto de, numa
guerite Duras, passando por Thomas Bernard ou época mais receptiva a estéticasJormalistas e
Bernard-Marie Koltes), o autor regressa a Brecht a poéticas visuais que investem na tão pós-mo-
e à sua indiscutível influência no teatro europeu derna contaminação das linguagens artísticas,
dos anos sessenta, com o claro objectivo de pro- e em que a banalização das imagens e do dis-
por uma rearticulação das dimensões estética e curso político pelos mais variados media invade
política do teatro. Sem cair naquilo que poderia o nosso quotidiano, o recurso a temas sociais e
ser interpretado como uma «tentação nostálgica políticos exigir, mais do que nunca, um trata-
geracional», o autor questiona as mais variadas mento indirecto e desviado7. Por outro lado, se
formas de resistência e de transformação de «um o reinvestimento no texto dramático, a que se
reatro crítico». Confrontando o «desencanto ac- assistiu um' pouco por toda a Europa na~éc~d~
rual» do panorama teatral com o carácter utópico de oitenta, revelou eyide.!1tes preocupações ~e
do conceito de «teatro público» que emergiu no ordem estética e dramatúrgica que muito con-
ós-guerra, Jean-Pierre Sarrazac não só circuns- tribuíram _pa~~ontínua -;(r~inven~2.._~o d~a-
reve a ideia de um «teatro crítico», como também ~ - questão a que Jean-Pierre Sarrazac tem
,r cura responder a algumas questões premen- dedicado uma parte importante da sua reflexão
-es no actual contexto teatral: de onde vem, para - a preferência por temáticas tendencialmente
e vai a ideia de um «teatro crítico»? A prática «egocên tricas» (o casal, a família ... ) terá, de al-
e um teatro crítico poderá, hoje, conservar o guma forma, contribuído para acentuar o clima
"alo r transitivo de transformação? Ou, pelo
5 Ver nota número 2.
:Jeleuze. Critique et clinique, Paris, Minuit, 1993. 6 Jean-Pierre Sarrazac, La parabole ou i'er!fance du théâtre, Belfort,
= sarrazac, Théâtres intimes, Arles, Actes Sud, 1989; Théâtres Circé, 2002.
::'.Mues du monde, Rouen, Éditions Médianes, 1995. 7 Ver nomeadamente o capítulo «Le détou[» in op.cit.
.::= _us elçao que rapidamente se instalou no reflectir sobre a função e os poderes do teatro .
::::.e; eaual relativamente a Brecht e à ideia de sobre a sua dimensão cívica - sobre a sua «ne-
reauo crítico». cessidade». Da ironia pirandelliana, passando
00

.' contexto político e económico actual, as pela arte crítica brechtiana, até alguns dos mais
uesrões colocadas por Jean-Pierre Sarrazac e recentes contributos críticos de autores e de en-
el quentemente revistadas nestes três ensaios, cenadores contemporâneos (de Samuel Beckett
parecem-nos de uma grande actualidade. A au- a Edward Bond), Jean-Pierre Sarrazac questiona
sência de soluções para as guerras e conflitos conceitos fundamentais como «teatralidade»,
recentes, o agravamento da precariedade, das «comentário», «representação emancipada» ou
injustiças sociais que abalaram, de forma inêspe- «teatro épico», traçando as directrizes de um
rada, a estabilidade das mais diversas sociedades teatro que, ao suscitar um espectador activo,
contemporâneas, abrem espaço ao regresso de permite renovar a relação entre a percepção e a
uma palavra política que, não sendo ideológica, experiência vivida.
reafirma a necessidade de testemunhar, de dar a No entanto, e como sublinha o autor de Cri-
conhecer nas suas múltiplas variações o mundo tique du théâtre, «para que o teatro reencontre o
que nos rodeia. Lúcidos quanto aos limites do seu lugar na sociedade, não basta decretar o seu
poder de intervenção do seu gesto artístico, mas "dever". Nem colocar, politicamente, a questão
investindo e acreditando em novas formas de per- certa. Nem mesmo querer relegitimar [00'] o es-
cepção e de utilização dos signos, os artistas con- pectador autêntico»8.[Importante será resituar
temporâneos afirmam-se, cada vez mais, como os uma nova ideia de teatro numa poética plural
novos autores desse teatro que, nas palavras de onde novas formas dramáticas e de represen-
Roland Barthes, tem por vocação assegurar um tação estimulem o envolvimento recíproco de
«comentário» do mundo. artistas e de espectadores num teatro cada vez
Antecipando o regresso de um teatro crítico, mais necessário9, num teatro que se reinventa
os ensaios incluídos neste volume propõem-nos no permanentejogo dos possíveis]
um percurso através de várias personalidades
Bernard Dort, Roland Barthes ... ), de peças e de
autores de teatro (August Strindberg, Luigi Pi-
randello, Arthur Adamov, Bertolt Brecht ... ), de
espectáculos e de encenadores (Jean Vilar, Gior-
gio Strehler, Antoine Vitez, Patrice Chéreauoo.) 8 jean-Pierre Sarrazac. Critique du théâtre, de l'utopie au désen-
chantement, BeIfart, Círcé, 2000, p. 25.
e ensaios (Brecht & Cie, de John Fuegi. 00)' de 9 Denis Guénaun, Le théâtre est-i/ nécessaire?, Belfort, Círcé, 1997.
e\i ras (Théâtre populaire), que nos permite p.148.
A INVEN[ÃO
, DA TEATRALlDADE

«A arte só pode reconciliar-se com a sua própria


existência se voltar para o exterior o seu carácter
de aparência, o seu vazio interior»
Adorno, Teoria estética

No início de Sobre a arte do teatral, o Contra-


-Regra, que acaba de mostrar o local ao Ama-
dor de Teatro com o objectivo de lhe propor um
breve olhar sobre o «mecanismo» (<<construção
geral, palco, maquinaria dos cenários, aparelhos
de luz e tudo o resto»), convida o seu hóspede a
sentar-se «um momento na sala» e a interrogar-
-se sobre «o que é a Arte do Teatro» ... A lição
merece ser ouvida: não deveríamos nunca abor-
dar a mínima questão de estética teatral sem
antes nos termos instalado, ainda que mental-
mente, em frente ao palco. Antes de reflectirmos
sobre o teatro, é importante constatarmos no-
vamente que este palco estreito - e no entanto
destinado a servir de base a todo um universo
- em repouso, parece um deserto. Noutros tem-
pos, a cortina vermelha permitia dissimular este
vazio aos olhos dos espectadores; entreabria-se

1 Edward Gordon Craig, L'Art du théâtre, Éditions O. Lieuter, 1942.


Nouvelle édition Circé, coll. «Penser le théâtre», apresentaçâo de Geor-
ges Banu e Monique Borie, seguido de uma entrevista com Peter Brook,
1999 (Edward Gordon Craig, "Sobre a Arte do teatro - textos de 1905
e 1907 in Monique Borie, Martine de Rougemont, Jacques Scherer, Es-
cética ceatral, cexcos de PlaCâoa Brecht, tradução de Helena Barbas,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 386-395) [NT.]
apenas para deixar passar as miragens pre-
paradas nos bastidores. Puramente funcional,
a cortina de ferro interpõe-se hoje, no início da Partindo do princípio de que a arte teatral do sé-
representação, entre o público e os artistas, sim- culo XX continua a ter como base a imitação, o
plesmente para melhor sublinhar a abertura, o que deverá ser alvo de debate, esta imitação, no
vazio da cena moderna. Por detrás das cortinas pensamento de Craig e de tantos outros - entre
de veludo, os nossos antecessores podiam adivi- os quais um número importante de «realistas» -
nhar a abundância e a plenitude de um teatro ali- já não implica a submissão do espectador a uma
cerçado na ilusão. Actualmente, mal vemos subir ilusão, mas muito mais a observação crítica de
a cortina de ferro, sabemos que aquele .cenário, um simulacro ... Estaria tentado a dizer que a
aquela cenografia nunca conseguirão preencher o ribalta e a cortina vermelha foram, de facto, abo-
vazio do palco nem satisfazer-nos completamente, lidas a partir do momento em que o espectador
a nós público, com os benefícios da sua aparência. passou a ser convidado pelos actores ou por um
O palco, mesmo (e sobretudo) o mais preenchido, outro mentor do jogo - contra-regra, encenador,
continua vazio; e é justamente esse vazio - o vazio autor, etc. - aEnteressar-se não tanto pelo acon-
de toda e qualquer representação - que ele parece tecimento do espectáculo mas sobretudo pela
estar destinado a exibir perante os espectadores. forma como aparece o próprio teatro no coração
Aliás, desconfio que Gordon Craig e o seu da representação - pelo aparecimento daquilo a
Contra-Regra terão confrontado o seu Amador que chamamos teatralidade.]Mudança de re-
de Teatro com esta irremediável vacuidade do gime no teatro, que se liberta do espectacular
palco apenas para lhe incutirem a ideia de que associando o espectador à produção do simula-
~a Arte do Teatro2 já nada tem que ver com a cro cénico e ao seu desenvolvimento. Mudança
plenitude e o jorro da vida, mas muito mais com implícita e difícil de circunscrever no caso de
os movimentos furtivos, erráticos e desencarna- muitos criadores. Mudança perfeitamente iden-
dos da mort~- «Esta palavra morte, nota Craig, tificável e explícita em Brecht, que deseja que
surge naturalmente na escrita, por aproximação «o teatro confesse que é teatro», e já antes em
com a palavra vida constantemente reclamada Pirandello: não anuncia o Contra-Regra de Esta
pelos realistas». noite improvisa-se3, todas as noites ao público
que vamos «tentar ver funcionar este jogo no
2 Craig acredita ter sido o primeiro a definir esta arte no que diz
respeito à sua autonomia, ou seja, a apresentá-Ia como uma arte in- 3 Luigi Pirandeilo, Esta noite improvisa-se, tradução de Luís Miguel
dependente da literatura e livre da indivisão que, no caso de Wagner, Cintra e Osório Mareus, Livrinhos de Teatro, Lisboa, Artistas Uni-
a marinha ainda subordinada à música, à poesia, à pantomima, e dos I Cotovia, 2009 (encenação de Jorge Silva Meio, Artistas Unidos I
:::es o à arquitectura e à pintura. Teatro D. Maria lI, 2009) [N.T.]
seu estado puro, esta simulação, este simulacro, Barthes, «as fontes do teatro estão expostas no
a que normalmente se chama teatro»? seu próprio vazio» e onde «aquilo que é eliminado
Tatransição do século XX, o teatro toma cons- do palco é a histeria, ou seja, o próprio teatro, e
ciência, à semelhança das outras artes de repre- o que é colocado no seu lugar é precisamente a
sentação, do seu vazio interior e projecta este produção do espectáculo: o trabalho substitui a
vazio para o exterior. Uma tal reviravolta não interioridade»4. Se a teatralidade é o teatro quan-
teria tido lugar sem a junção, de Zola a Craig pas- do este se transforma numa forma autónoma,
sando por Antoine, Lugné-Poe e Stanislavski, de então este processo de formalização não poderia
um certo número de requisitos prévios essenciais: concretizar-se, como se pode ler em MítologíaSO
->0 aparecimento do encenador moderno,.que-tende a propósito da luta livre tomada como paradig-
a tornar-se no autor do espectáculo; a emancipa- ma de um teatro da exterioridade), sem «o esgo-
ção da cena relativamente ao texto; a focaliza- tamento do conteúdo pela form!,2,>'
ção progressiva dos artistas na essência da sua A ideia de um teatro crítico, que vai germinar
arte, naquilo que é especificamente teatral; a nos anos cinquenta sob a protecção do TNP de Vi-
autonomização completa - para além mesmo do lar, do Berliner Ensemble de Brecht, e do Piccolo
compromisso e da indivisão proposta pela síntese Teatro de Strehler, não se limita, como muitas
wagneriana das artes ou Gesamtkunstwerk - do vezes se pretendeu, à crítica do social pelo teatro.
teatro e do teatral relativamente às outras artes e No espírito de Roland Barthes e de Bernard Dort,
técnicas que contribuem para a representação ... (- os dois principais instigadores desta ideia, a di-
Sempre que tentamos definir a revolução que se mensão crítica e política da actividade teatral só
produz neste momento da história do teatro da- tem sentido quando fundamentada numa crítica
mos particular atenção, merecidamente, à consa- activa do próprio teatro e na libertação do poten-
gração do encenadote ao fim da tutela absoluta cial de teatralidade. Percebemos, então, que os ani-
do dramático sobre o teatral; mas seria lamentá- madores da revista Théâtre populaíre6 tenham
vel esquecermos um outro facto r cuja importân- escolhido como alvo todo um teatro psicológico e
cia só poderemos avaliar se estivermos face ao burguês cuja «interioridade», o «natural» e a con-
buraco negro do palco: a revelação da teatrali- tinuidade proclamada entre a realidade e o teatro
dade graças ao esvaziamento do teatro.
4 Roland Barthes, L'Empire des signes, Albert Skira, coli. «Les Sen-
De Roland Barthes, citamos de bom grado a fa- tiers de Ia créatioo», 1970.
mosa definição segundo a qual ~Jea~~~idé!.~~_~o 5 Roland Barthes, Mitologias, tradução e prefácio de José Augusto
Seabra, Lisboa, Edições 70,. colecção Signos, nO2, 1984. [N.T.
teatro menos o texto>~.Contudo, será importante
6 Revista publicada de 1953 a 1964, dirigida por Robert Voisin, e que
não esquecermos a sua luminosa apresentação contou com Roland Barthes, Bernard Dort, Guy Damur, Jean Duvignaud,
d Bunraku, essa forma teatral onde, segundo Henri Laborde e Jean Paris nos primeiros conselhos redactoriais. [N.T.]
;::,ram como valores. No lado oposto, os artis- leu8 não é indissociável do reconhecimento do
ca e escritores citados por Dort e Barthes - Bre- der e da clareza da respectiva escrita cénica ou,
ht. evidentemente, mas também Pirandello ou se quisermos, da sua teatralidade. O teatro rea-
Genet - não deixam de insistir na ruptura, na . ta já não é considerado' como a esponja do real,
disjunção entre o real e a cena. Para dar a deixa mas sim como uma espécie de lugar in vitro: um
ao mundo, para dar corpo à sua crítica da socie- espaço em vácuo onde se fazem experiências sobre
dade, o teatro deve, antes de mais, proclamar a real tendo como única condição a teatralidade.
sua insularidade: o palco já não está ligado à Nos anos sessenta, enquanto que Barthes se
realidade pela peneira ou pelo sifão dos basti- afasta do teatro (e introduz noutro sítio - abor-
dores; já não é o lugar de um transbprdamento dando a questão do Texto - a sua teoria da tea-
anárquico do real mas um espaço virgem, um rralidade), Dort prossegue sozinho, alargando a
espaço vazio, uma página em branco na qual sua reflexão sobre o teatro e a teatralidade. E in-
vão ser inscritos os hieróglifos em movimento teressa-se nomeadamente pelo processo de retea-
da representação teatral. cralização do teatro que culmina com Meyerhold
O discurso dos defensores deste teatro crítico na URSS, nos anos vinte e trinta. Ter em conta a
- que constitui ao mesmo tempo uma crítica do perspectiva de Meyerhold implica forçosamente
teatro - não é estranho às posições de Gordon admitir, com Josette Ferral9, que «distinguir o
Craig; há, contudo, uma diferença essencial: teatral do real aparece como condição sine qua
para Barthes como para Dort, um teatro da
teatralidade não é incompatível com um teatro
8 Bertolt Brecht. «Galileu (Galileo. Galilei»>. a partir de A Vida de
realista - pelo menos com um certo tipo de rea- Galileu. tradução I versão de João Lourenço e Veta San Payo Lemos.
lismo ... Quando os dois críticos «brechtianos» encenação de João Lourenço. Teatro Aberto. Lisboa. 2006 (publicação
weviSta no Volume V do Teatro de B. Brecht. Livros.Cotovia). [N.T.]
elogiam o realismo épico, fazem-no demar- Josette Ferral. «La Théâtralité». Poétique n075. Editions du Seuil.
cando-o totalmente do realismo socialista e, septembre. 1988. O conceito de teatralidade. nos seus múltip-
los usos no teatro e fora do teatro. tem-se tornado cada vez mais
mais globalmente, de todo e qualquer sistema vago. tendendo mesmo a entrar numa certa banalização. Para
artístico que consista num reflexo ou numa re- uma melhor definição. eu proporia que lhe opuséssemos aquilo a
que eu chamaria teatralismo. «Teatralismo» designaria o conttário
produção directa do real. O elogio em Théâtre
da teatralidade tal como aqui tem vindo a ser tratada ... O apare-
populaire aos efeitos crítico e político de espec- cimento da teattalidade provém da pura emergência do acto tea-
táculos como Mãe Coragem 7 ou A vida de Gali- tral no vazio da representação. O reino do teatralismo reenvia para
essa doença endémica em que o teatro sofre da sua própria ênfase
e. de alguma forma. de um excesso de si mesmo. Assim. quando
7 Berrolt Btecht. Mãe Coragem e os seusfilhos. tradução tvetsão de Stanislavski declara que «o que o faz desesperar com o teatro é o
João Loutenço e Veta San Payo Lemos. encenação de João Lourenço. teatro». não visa a teatralidade como a concebia Meyerhold mas
Lisboa. Teatro Aberto. 1986 (publicação prevista no Volume V do sim este «teatralismo». que não passa de um estado histriónico e
Tearro de B. Brecht. Livros Cotovia). [N.T.] narcísico. de uma manifestação redundante do teatro no teatro.
non da teatralidade em cena», e que «a cena deve rralidade, OUse'a, fundada na descontinuidade e
falar a sua própria linguagem e impor as suas rendo em conta o vazio. Lugné-Poe, Craig, Copeau
próprias leis». Mas Q...contributomais decisivo de já não são obrigatoriamente os pais do teatro
Dort, no domínio das relações entre realismo e contemporâneo; uma outra genealogia começa
teatralidade, foi o de iniciar uma verdadeira rea- a desenhar-se. Se Barthes sonhou, na expressão
valiação de Stanislavski, de Antoine e do muito de Dort, com um teatro onde «a matéria se tor-
mal denominado «naturalismo» ... naria signo»12, não é apenas no teatro oriental
Ao apresentar Antoine como «chefe»10 do hipercodificado como o Bunraku que este sonho
teatro moderno, Dort distancia-se do idealismo tem a sua origem, é também no realismo experi-
de Gordon Craig. Ele não vê, nas encenações mental de Brecht e dos seus predecessores An-
ditas «naturalistas» de Antoine, menos tea- toine e Stanlislavski.
tralidade, nem uma teatralidade menos subtil,
do que a que existe nos espectáculos «simbolis-
tas» e estilizados de um Lugné Poell. O autor
de Théâtre réel pensa, sem dúvida, que a ver- Do vazio da cena - e, no fundo, pouco importa
dadeira modernidade se encontra mais no gesto que ele seja ostentatório (palco vazio) ou dis-
quase experimental que consiste em colocar um creto (dispositivo realista ou mesmo naturalis-
fragmento de vida, um ambiente, sob o vidro ta) - surge o corpo do actor bem como toda e
de aumento da quarta parede, do que nas fan- qualquer partícula de teatro - figurino, elemento
tasmagóricas cerimónias, que se inspiram de do cenário, luz, música, etc\j. partir do momen-
forma longínqua em Baudelaire e em Wagner, to em que o palco abandona a ideia de contigui-
do Teatro de Arte ou do Théâtre de l'Oeuvre ... dade e de comunicabilidade com o real, o teatro
Talvez ele consiga mesmo discernir, sob aquilo deixa de ser colonizado pela vid~ A aposta es-
que aparenta ser a continuidade e a unidade da tética desloca-se: já não se trata de encenar o
representação naturalista, este pontilhismo, ou real mas sim de colocar frente a frente, de con-
antes, esse divisionismo que praticam Antoine frontar os elementos autónomos - ou signos, ou
e Stanislavski. Partindo desta base, o natural- hieróglifos - que constituem a realidade especí-
ismo teatral pode ser reavaliado como uma arte fica do teatri). Elementos discretos, separados,
decididamente moderna e como uma arte da tea- insolúveis, que remetem apenas para o enigma
do seu aparecimento e da sua organização. Da
10 Bernard Dort, «Antoine le patron», Théâtre public, Éditions du
Seuil. coll. «Pierres vives», 1967. 12 Bernard Dort, «Le corps du théâtre», Art Press, n0184, octobre,
11 Joserre Ferral, «O naturalismo é reconhecido como uma forma de 1993.
leaualidade».
primazia do real, lei incontornável do teatro corporalmente c~m o Q!QJ rio C0I!.teú49..:Assim,
do século XIX, voltamo-no~_~ra o «Ser-aí» do por exemplo, se o drama de um homem consiste
teatro. Para essa~aliªªçfçlque vai ser, em nu-ma qualquer mutilação da sua pessoa, a mel-
Brecht mas também no «Nouveau Théâtre», a hor forma de mostrar dramaticamente a verdade
grande questão dos anos cinquenta e sessenta. dessa mutilação será representá-Ia corporal-
ão anunciava Artaud, em 1926, sob a influên- mente em cena». Daí a personagem do Mutilado
cia determinante do último Strindberg: «Não de La Grande et Ia petite manoeuvre, protótipo do
procuramos mostrar como é que isto aconteceu homem alienado, obedecendo a vozes inaudíveis
até aqui, como sempre se fez em teatro, a ilusão que existem apenas na sua cabeça, e que vai per-
do que não é, bem pelo contrário, pwcuramos dendo sucessivamente todos os seus membros.
fazer aparecer aos olhares um certo número de Daí também, e mais geralmente. os espaços ani-
quadros, de imagens indestrutíveis. incontes- mistas, os espaços-ogres ou «despovoadores» em
táveis que falarão directamente ao espírito. Os que surpreendemos. nas peças dos anos cinquen-
objectos, os acessórios, e até os cenários presen- ta. o trabalho de manducação. Devoração dos
tes em cena deverão ser entendidos num sentido corpos das personagens. Corpos coisificados, rei-
imediato, sem transposição; devem ser tomados ficados. enquistados na matéria inerte, atormen-
não por aquilo que representam mas por aquilo tados, para utilizar um termo beckettiano, pelos
que são na realídade»13? seus últimos «sobressaltos» 14.
Adamov será o elo de ligação entre Artaud e Na verdade. é mais a ideia geral de literalidade
os críticos «brechtianos», numa época ~m que do que o exemplo do Mutilado que subscrevem
ainda o classificavam, ao lado de Ionesco e de Barthes e Dort. Os transbordamentos corporais vo-
Beckett, como um puro vanguardista strindber- luntariamente teratológicos de Ionesco, Beckett,
go-kafkiano ... Quanto à definição deste Ser-aí Adamov deixam grandes dúvidas, pelo menos
do teatro - que posteriormente assumirá uma num primeiro tempo, aos dois animadores de
dimensão mais filosófica, mais heideggeriana Théâtre Populaire. Em contra partida, o princípio
- está inteiramente contida nestas linhas de um de literalidade, que tem como único objectivo
texto de Adamov, de 1950, onde o autor expli- afiffi1ã[a~nça e a materialidade do teatro,
ca que o seu objectivo foi sempre «tentar fazer consegue seduzi-Iãs.A literalidade torna-=8ena
com que a manifestação do conteúdo (das suas via privilegiada para o aparecimento da tea-
peças) coinclêfiSSeI1teralmente~ cõncrctamente,
-~- _----
....
14 o texto original remete, nesta passagem, para um excerto de um
outro ensaio incluído na obra Critique du théâtre que, por razões
- .\ntonin Artaud, Oeuvres Completes, t. li, Gallimard, 1961. (Sou de clarificação, optámos por traduzir e incluir neste texto (<<J:Espace
e . jP5. que sublinho). originel du théãtre public: "Grand et petit"», p. 46) [N.T.]
ualidade. o que fascina Barthes no verdadeiro herança hegeliana que pressupõe que, em palco,
protagonista de Le Ping-Pong, ou seja, o bilhar ão sempre os conceitos que são representados,
electrónico, é aquilo a que o autor de Mitologias figurados, animadQ§.
chama umEobjecto literal», um objecto que não Barthes e Dort querem ver realizada no teatro
tem como função dramatúrgica e cénica simboli- a mesma mudança de perspectiva que se efectua
zar mas apenas estar presente e, através dessa graças ao «Nouveau romam>. Ainda assim, para
presença insistente, produzir acção e situações os animadores da revista Théâtre populaire, o
(ainda que se trate de acção e de situações «de campeão desta revolução não é um escritor próxi-
linguagem»~ É que a geração que defende esta mo do «Nouveau roman», como por exemplo
dramaturgiit do Ser-aí apoia também. o «Nou- Beckett, ou ainda um dos defensores mais radi-
veau romam>. Dort será um dos primeiros a de- cais da literalidade - Adamov ou o primeiro Iones-
senvolver, nos seus artigos dos Cahiers du Sud co -; o campeão é Brecht, através dos espectácu-
ou das Lettres nouvelles, uma temática - «Temps los do Berliner Ensemble apresentados em Paris
des Choses» e «Romans blancs» - que anuncia o a partir de 1954. Relativamente à vanguarda dos
«Nouveau romam>; e todos conhecemos a rela- anos cinquenta, cujas obras são vistas pelos ani-
ção forte e tempestuosa que Barthes manteve madores de Théâtre populaire como atemporais
durante anos com Robbe-Grillet. e anistóricas, a dramaturgia brechtiana tem a
Teatro ou romance, trata-se de exorcizar de- enorme vantagem de integrar a dimensão da
finitivamente o demónio da analogia. De acabar História, do social, do político tomando o par-
de uma vez por todas com uma arte fundada no tido da literalidade ... Com a distância, podemos
primado dainterioridade, da psicologia, da pro- perguntar-nos se a forma como Dort e Barthes,
fundidade. «A superfície das coisas, declara o nessa altura, rejeitam Beckett, com todas as de-
autor de Gommes, deixou de ser para nós a más- ferências de circunstância, e o colocam nas tre-
cara dos seus corações». O que se tornou insu- vas de um teatro metafísico e de vanguarda bur-
portável para os escritores e homens de teatro foi guesa (Adamov assumindo esta mesma visão
a perpetuação da dicotomia neo-platónica ideia I relativamente às suas primeiras peças) não tem
aparências, alma Icorpo - onde o segundo termo algo de excessivo e de injusto ... A observação
é sempre considerado como uma má tradução retrospectiva que podemos dirigir aos críticos de
do primeiro. No início dos anos cinquenta, pa- Théâtre populaire é terem confundido as obras
rece ter chegado o tempo de um teatro inteira- dos dramaturgos dos anos cinquenta com a lei-
mente voltado para o presente da representação tura idealista que muitas vezes delas foi feita
e do acontecimento cénico. Muito embora com a (Anouilh focalizando em Beckett muito mais a
condição de liquidar definitivamente a parte da ausência de Godot enquanto símbolo do que a
hiper-presença «literal» de Vladimir e Estragon). o exemplo brechtiano é para Barthes o mo-
Não deixa de ser verdade que a questão funda- mento, para além mesmo do teatro, de rever a
mental está colocada: poderá o teatro continuar questão do sentido: da «isenção» ou da «decep-
a praticar, como acontecia comSartre, esta trans- ção» do sentido, ligado a Kafka e ao aparecimen-
ferência incessante do sensível para o inteligível to do «Nouveau roman», Barthes passa, sob a
e esta permanente anulação da forma cénica em influência directa do teatro épico, para a «sus-
benefício das ideias, teses e outras «mensagens»? pensão» do sentido. Ou seja, para uma nova cons-
Não terá, finalmente, chegado a hora de um teatro ciencialização do destinatário da obra artística,
que coloca em epígrafe esse momento de pura teat- do seu papel de leitor ou de espectador activo,
ralidade em que o sensível se torna significante? empenhado, uma vez terminadas a leitura ou a
No fundo, o princípio da literalidade mais representação, em tentar desvendar o enigma do
não é do que um gigantesco efeito de distancia- sentido ... Na verdade, Barthes deve certamente
ção (brechtiana) ou de inquietante estranheza à literalidade brechtiana - essa teatralidade po-
(freudiana) em prol da qual a presença cénica dos lifónica, fundada na «espessura de signos», um
objectos e dos seres, usada e banalizada ao longo «folhado de sentidos» - a sua concepção mais
de tantos séculos de representações, retoma ines- afinada da razão semiológica. A pura presença
peradamente o seu poder arcaico e enigmático. teatral é o que me permite ver um objecto, um
E esta exigência de literalidade, que formulam corpo, um mundo na sua hiper-visibilidade frag-
claramente os textos de Adamov, de Barthes, de mentária, na sua própria opacidade, é o que me
Dort, vem selar o pacto de um teatro novamente permite vê-lo e descodificá-Io sem esperança de
alicerçado na teatralidade ... A série de artigos de alguma vez chegar ao fim dessa descodificação.
Barthes dedicados a Mãe coragem e à arte do Ber- [peste modo, o conteúdo do espectáculo deixa
liner Ensemble bem como a Lecture de Brecht de de esgotar a sua forma; pelo contrário, a forma
Dort estabelecem que neste teatro da literalidade constitui o elemento resistente que absorve a
e da teatralidade o sentido deixa completamente' minha atenção e canaliza a minha reflexã(j A
~er O
glq!!..aÚ é sem ..~ !~~(j""[~J!..qgmentáriÊ.- literalidade realiza o estado máximo de concent-
sentido encontra-se sempre compreendido na ração do objecto teatral e faz com que eu me con-
materialidade da cena, ela própria espaçada, centre nesse objecto. Em virtude desta intensifi-
«como caracteres de imprensa na página de um cação e desta densificação extremas da matéria
livro»15, no vazio inaugural do teatro. teatral- que afectam tanto os actores e a lingua-
gem como o cenário e os objectos -, o espectador
S \\'alter Benjamin, Essais sur Bertold Brecht, Petire collection Mas- encontra-se, sem possibilidade de evasão, con-
pero. nO 39, 1969,
frontado ao Ser-aí mútuo dos homens e do mun-
do. Portanto, a literalidade é também esta (falsa) «Nouveau roman» e «Nouveau théâtre» afasta-
opacidade, esta cegueira que me é mostrada no ram-se consideravelmente de nós (restam as obras
fulgor das luzes do teatro: «Nós vemos Mãe cor- na sua singularidade, em particular a de Beckett),
agem cega, escreve Barthes, vemos que ela não' Brecht, por seu lado, tornou-se suspeito aos olhos
vê»; fórmula à qual faz eco este Fragmento de de muitos; a tentação de reavaliar por baixo o
1964 sobre o diálogo platónico: «Ver o não-ver, rincípio de literalidade dos anos cinquenta e de
ouvir o não ouvir (... ) Ouvimos o que Ménon não ropor, em alternativa, uma versão mais pode-
ouve, mas só o ouvimos relativamente à surdez rosa ou mesmo a sua total desqualificação é, por
de Ménon»16. isso, grande ... Actualmente, certos homens de
No entanto, esta reivindicação de li.teralidade teatro entendem dar mais espaço e mais omni-
que Dort e Barthes avançaram, nos anos cinquen- presença ao Ser-aí do teatro. Tentam dilatar o
ta e sessenta, pode parecer, hoje, insuficiente. instante teatral, colocar mais distância entre
Para alguns dos seus detractores, Brecht propõe jogo e a sua significação, libertar definitiva-
apenas, sob a responsabilidade da literalidade e mente a teatralidade de toda e qualquer função
da teatralidade, um teatro predicante e militante e comentário relativamente à acção (a teatrali-
velado. E ainda que consigamos provar que a úni- ade brechtiana ficava subordinada ao «comen-
ca pedagogia que o teatro épico pretende exercer tário do gestus»17). Mas conseguimos imaginar,
é de ordem heurística e socrática, ver-nos-emos no seio das interrogações actuais, a forma como
confrontados com a seguinte objecção: o conceito se põe em causa o abuso da literalidade e esta es-
de representação não é suficientemente posto em écie de medo do sentido que ela gera. «Aprofun-
causa por Brecht naquilo que ele implica de fuga idade já não é o que era. Se o século XIXassistiu
face a este presente absoluto, a este «mais-que- a um longo trabalho de destruição das aparên-
-presente» de uma pura apresentação do teatro. cias a favor do sentido, ele foi seguido, no sé-
Se, nos anos oitenta e noventa, surge uma nova ulo XX, de um trabalho igualmente gigantesco
exigência de literalidade e de teatralidade, ela de destruição do sentido ... em benefício de quê?
está directamente relacionada com um aconte-
cimento cénico que, nesse caso, seria pura apre- 17 Sobre o comentário degestus, ver os Écrits sur le théâtre, r. 2, de
Brecht, Éditions de l'Arche, em particular o PetitOrganon. Sobre a ne-
sentação, pura presentificação do teatro, de tal cessária subordinação ao comentário de Gestus: Roland Banhes, «Les
forma que apagaria toda e qualquer ideia de re- ~Ialadies du costume de théãtre», Théâtre populaire, nO 12, mars-
-avril 1955, retomado em Oeuvres Complétes, 1, op. cir. (Alguns ex-
produção, de repetição do real. cenos dos textos incluídos nos Escritos sobre teatro, nomeadamente
do «Pequeno Organon para o Teatro», estão traduzidos e publicados
16 Roland Banhes, «Mere courage aveugle», Théâtre populaire. nO 8, no volume Estética Teatral, Textos de platâo a Brecht, organização
juiller-aourI954, retomado em (Euvres complétes, tome 1, Seuil, de Monique Borie, Martine de Rougemont e Jacques Scherer, op. cir.,
1993: «Fragment», op. cir. pp. 465-491) [N.T.]
Já não usufruímos nem das aparências nem do epois de vários séculos de enfeudação à lite-
sentido»18. A constatação irónica de Baudrillard ratura (a «Sua Alteza a palavra», diz delicada-
não deverá deixar indiferentes aqueles que hoje ente Baty, Artaud denunciando, por seu lado,
fazem ou reflectem sobre teatro. ma atitude de «gramáticos e de invertidos, ou
-eja, de ocidentais»), na sua dimensão propria-
ente cénica. Mas vontade, sobretudo, de voltar
a facultar ao teatro uma apropriação do mundo,
Definir a teatralidade, como se faz frequentemente, real, libertando-o da sua identidade literária
como um afastamento do teatro relativamente ao abstracta e atemporal. Neste sentido, a teatrali-
texto não é falso mas pode conduzir a ltm uso uní- ade reinstitui a arte do teatro enquanto acto.
voca e abusivo desta noção. De qualquer forma, Os animadores da revista Théâtre populaire
Barthes previne-nos contra uma tal redução:Íáo ão foram certamente os únicos nem sequer os
mesmo tempo que define a teatralidade com~(o rimeiros a exprimir estas preocupações. Henri
teatro menos o texto», introduz este paradoxo que ouhier, por exemplo, sempre defendeu a ideia
faz da teatra~dade «um elemento de criação, não e que o teatro deveria ser pensado a partir do
de realizaçã0.1(<<EmÉsquilo, em Shakespeare, em . iar da representação. «A representação, afir-
Brecht, precisa o autor, o texto escrito é antecipa- a, está inscrita na essência da obra teatral;
damente dominado pela exterioridade dos corpos, e ta não existe senão no momento e no lugar
dos objectos, das situações»). Poderemos, então, nde acontece a metamorfose. A representação
dizer que a posição barthesiana é ambígua? .. ão é, portanto, um suplemento que, em última
Sim, se considerarmos que não esclarece verda- análise, poderíamos dispensar; ela é um fim nos
deiramente as relações que o texto mantém com ois sentidos da palavra: a obra é feita para ser
as outras componentes da representação teatral. ~epresentada; essa é suafinalidade; ao mesmo
Não, na medida em que ela preserva, no seio des- tempo, a representação marca um acabamento,
sas componentes, a possibilidade de uma dialéc- momento em quefinalmente a obra se assume
tica ou de uma tensão. lenamente» 19...
Para Barthes, para Dort, a teatralidade é o que : 9 Henri Gouhier. «La Théâtralité ••in En0'c1opaedia Universalis. Em
L'Exhibition des mots (CircéIPoche 21. p. 32), Denis Guénoun propõe
permite pensar o teatro não sem o texto mas de
• ma definiçâo dinâmica e satisfatória de teatralidade - satisfatória
forma recorrente a partir da sua realização ou porque dinâmica, justamente: «o texto é um documento escrito, um
do seu devir cénico. Vontade de voltar ao hic et ocumento escrito literário, livresco. O autor é um escritor. Com o
exto tudo começa, nele tudo tem origem, tudo se funda. Mas o texto
nunc da representação e de reinstalar o teatro, nâo produz por si só a teatralidade do teatro. A teatralidade não está
no texto. Ela é a chegada do texto ao olhar. Ela é esse processo pelo
quai as palavras saem de si mesmas para produzirem o visível».
Ainda assim, a poslçao de Gouhier (bem :"anhesiano da teatralidade, acrescenta um se-
como a do seu contemporâneo Touchard) conti- pndo: «o teatro sem texto, afirma Dort nomea-
nua muito próxima, no que diz respeito à ideia .: mente a propósito de Artaud, é o sonho de es-
de representação, do «textocentrismo» denun- ::ilOr [que] não pôde ser pensado nem enunciado
ciado por Dort. Para o muito galileano autor de :.enão no texto, através da escrita. Daí resulta o
Lecture de Brecht, nem o texto nem nenhuma ~ êncio teatral ao qual acabaram por ser conde-
outra componente cénica poderão estar no cen- dos os seus profetas». Na verdade, trata-se de
tro da representação teatral. Num ensaio tão ::istinguir a ruptura necessária com um teatro
claro quanto erudito, «Le texte et Ia scene: une ;: ramente literário, um teatro sem corpo, de
nouvelle alliance»20, Dort mostra somo nasceu a posição mais extrema e mesmo de um im-
e se desenvolveu a concepção moderna de obra :asse que consiste na rejeição do texto de teatro.
dramática incompleta, aberta, à espera da cena ... _-1 preocupação de encontrar o equilíbrio certo -

. Quase contra sua vontade, Hegel confirma a ex- o desequilíbrio dinâmico - é de tal modo im-
istência de uma parte criativa - e não ape-nas :' rtante em Dort que ele se esforça por resolver
interpretativa ou ilustrativa - do actor que, contradições do autor de O Teatro e o seu du-
através da mímica, do jogo mudo, vem completar ~ : «Quando Antonin Artaud citava woyzeck21
as lacunas de um texto em si mesmo inacabado. ~o conjunto das primeiras obras a serem inscri-
«Le texte et Ia scene ... » faz referência a essas :as no reportório do teatro da Crueldade, entrava
páginas da Estética onde, a propósito do drama "'ill contradição com a sua vontade de acabar
como género novo, se afirma que «o poeta aban- - fi as obras-primas do passado, mas pressen-
dona inclusivamente aos gestos o que os antigos '.a também a nova aliança entre o texto e a cena
exprimiam apenas com palavras». Para além da e poderia caracterizar perfeitamente o teatro
alusão a Hegel, Dort poderia ainda remeter-nos os nossos dias - para além da pseudo-oposição
para a função criativa - muitas vezes em con- entre texto e encenação, entre um teatro de texto
tradição com as palavras - da «pantomima» em e um teatro teatral». Por muito ligado que esteja
Diderot e Lessing. - epifania da representação - ao momento em
Masrse por um lado Dort denuncia o textocen- ue se manifesta a teatralidade - Dort continua
trismo para afirmar a autonomia da represen- -tento à problemática do texto teatral, em par-
tação, por outro recusa categoricamente ceder ticular do texto contemporâneo, e tem em conta
ao mito «moderno» de uma teatralidade incom- as resistências deste último à mimesis. Que o
patível com a existência do text01Ao paradoxo
20 Bernard Dort, «Le texte et Ia scêne: une nouvelle alliance», in Le _I Georg Büchner. Woyzeck, tradução de João Barrento. encenação
Speaateuren dialogue, op.cit. c.e Nuno Cardoso. Teatro
Nacional São João, Porto, 2005. [N.T.]
texto possa recusar entrar completamente no ~ moderna) para aquilo que[?ort nos diz ~obre
jogo da representação - porque, como escreveu «maiores textos de teatro»: «no acto da leitura,
Duras, «é quando um texto é representado que -=arecem-nos ser os mais problemáticos», «com-
estamos mais distanciados do seu autor» - não _ exos ao ponto de nos parecerem incompletos»,
parece a Dort uma aberração. Na verdade, Dort, . lumosos no limite da desordem» porque «as-
contrariamente a Barthes, não é o homem da :: mem deliberadamente a sua própria incomple-
aporia, mas o das passagens. Em «Le texte et Ia ..., e» e «reivindicam a cena»]
scene: une nouvelle alliance» ou ainda um pou- - Por outro lado, uma proposta que, apesar
co mais tarde em La Représentation émancipée, ~e tomar o partido da «emancipação» da repre-
Dort tenta traçar os contornos - seUlpre muito -"mação (a expressão vem, creio, de Evreinoft),
«razoáveis» - de uma nova utopia (pós-brechtia- ão deixa de ser vaga, incerta e aventureira ... É
na) da representação. Mas, sobretudo, ao propor - sim que Alain Badiou, nas suas «Dix theses
uma <<fiavaaliança», Dort põe-nos de sobreaviso ~ r le théâtre»22, me parece esvaziar a questão
contra os dois perigos que ameaçam as relações texto, reduzindo-o a uma essência eterna à
entre o texto e a cena: aI só a representação poderia trazer instan-
- Por um lado, esta atitude francamente reac- :aneidade, imediação, numa palavra: a vida.
cionária, mas que continua a ganhar terreno, e rt estaria certamente de acordo com Badiou
que consiste na restauração de um teatro literário, ando este afirma que[<a ideia-teatro está no
o «teatro de texto». Não afirmava Jacques Julliard :exto ou no poema», incompleta, e que a en-
(mas poderia ser também Alain Finkielkraut), há cenação não é «interpretação» mas «comple-
alguns anos, em algumas das suas crónicas para entaçãoj Mas imagino que ele acharia menos
o Nouvel ObsClvateur, que «enquanto o teatro nvincente a apresentação do teatro como uma
não voltasse a ser o lugar onde se faz ouvir a disposição de componentes materiais e ideais
palavra sagrada do poeta; enquanto os encena- extremamente díspares cuja única existência é
dores actuais, esses tiranetes mal educados, não representação». Muito simplesmente, Badiou
renunciassem a evidenciar a sua esperteza em quece-se, nas suas teses, de que o texto tem
detrimento do autor, o contrato dramático, essa brigatoriamente no seio da representação uma
aventura a três que une o autor, os intérpretes e funcão e um estatuto distintos dos das outras
os espectadores à volta de um texto, encontrar- ~ponentes ... ~m primeiro lugar, por df/cito: o
-se-ia difamada, desonrada, destruída»? ... Con-
tentemo-nos em remeter Julliard e os seus pre- 22 Alain Badiou. «Dix theses sur le théâtre». in Comédie-Française,
Les Cahiers, nO 15, P.O.L., printemps 1995; Anthitheses» no nO 17,
conceitos (que, diga-se de passagem, parecem ter alllo.mne 1995 da mesma publicação. Ver ainda «Dix répliques» (à
sido proferidos antes do aparecimento da encena- 3adiou) por Bruno Tackels neste mesmo número.
texto é o único elemento que deixa de existir por é testemunha. Ao encenador compete descobrir
si próprio - enquanto texto escrito - no acto da e manifestar este gestus, este schéma histórico
representação; ele transforma-se, metamorfoseia- ~articular que está na base de qualquer espec-
-se, podendo mesmo anular-se durante o tempo :áculo: tem, para tal, à sua disposição o con-
em que se manifesta ... Depois, por excesso: o - nto das técnicas teatrais: o jogo do actor, a di-
texto é invasivo de uma forma muito diferente de :ecção, o movimento, o cenário, as luzes (... ) os
todo e qualquer outro elemento presente em cena -gurinos»23. A vantagem do gestus - conside-
- através dos corpos, das vozes, do espaço, e mes- :ado hoje obsoleto tal como todo o teatro «da
mo no espírito dos espectadores que podem dele :abula» - relativamente à «ideia-teatro», é ser
ter tido conhecimento antes da representação] anscendente relativamente à totalidade das
utras componentes da representação e estar,
simultaneamente indexado no texto. O gestus
existe como globalidade, como ponto de vista
aeral sobre o texto, mas também como unidade
Da proposta de Adamov que subscreviam Dort e no sentido semiológico) a partir da qual o texto
Barthes - «o teatro tal como eu o concebo está . ode ser lido, recortado, comentado ...
inteiramente e absolutamente ligado à represen- Fazendo o luto do brechtianismo, Dort esfor-
tação» - deveremos resvalar até à proposição ~ou-se - a fim de preservar um certo «jogo» ou
de Badiou que defende que a teatralidade (ou m certo «uso» entre o teatro e o mundo real -
a «ideia-teatro») existe apenas «na representa- ar elaborar esta utopia-mediadora, mais técnica
ção»? ... O inconveniente da «ideia-teatro» de Ba- o que política, que eu evocava anteriormente.
diou é que, não tendo em conta a articulação É assim que ele acaba por escolher ultrapassar
- ou, como diria Dort, o «jogo» - entre as dife- a metáfora brechtiana da revolução coperniciana
rentes componentes cénicas, acaba por agravar o teatro para anunciar uma revolução propria-
a ambiguidade já revelada por Barthes. De certa mente einsteiniana ... Para tornar esta esperança
forma, a «ideia-teatro» vem ocupar o lugar dei- palpável, Dort evoca um modelo de representa-
xado vazio pelo gestus brechtiano, pedra angu- ção ideal: «A revolução coperniciana do início do
lar da concepção de um teatro crítico anterior- século transformou-se numa revolução einsteini-
mente elaborada por Dort e por Barthes: «Toda anafo desmoronamento da primazia entre o tex-
a obra dramática pode e deve reduzir-se ao que ro e ã cena deu lugar a uma relativização gene-
Brecht chama o gestus social, a expressão exte- ralizada dos factores da representação teatral
rior, material, dos conflitos de sociedade da qual 23 Roland Barthes, «Les Maladies du costume de théâtre», Théâtre
populaire,nO12, mars-avril 1955.
uns relativamente aos outros. Este facto faz-nos Para Dort, «jogo» é sempre sinónimo de luta e
renunciar à ideia de uma unidade orgânica, fixa- e combate. Mas, ao mesmo tempo, este volun-
da antecipadamente, e mesmo à ideia de uma es- rarismo de Dort-teórico encontra-se atenuado, cor-
sência do feito teatral (a misteriosa teatralidade), rigido pelo hedonismo que é a marca de Dort-espec-
e a concebê-Io sob uma espécie de polifonia si- rador. Ora, o «prazer do teatro» assume sempre,
gnificante, aberta ao espectador»2~ neste espectador de dimensão romanesca, uma
A «representação emancipada», no sentido or nostálgica, quase melancólica. Dever-se-á ao
dortiano, tem seguramente muito que ver com a facto de a sua actividade de crítico estar para
«polifonia» barthesiana; no entanto, ao recusar sempre ancorada nos combates assumidos por
uma teatralidade «ecuménica», afasta-se desta Barthes no tempo de Théâtre populaire? Ou será
mesma ideia. Dort preconiza, para as diferentes porque nenhum espectáculo, depois de Mãe cora-
componentes da representação, um tipo de rela- gem na encenação de Brecht ou de A Vida de
ção violentamente contraditória que Brecht pre- Galileu, na proposta de Strehler, pode responder
via inicialmente na sua teoria das «artes-irmãs» (Otalmente à espera suscitada por estes dois? Ou
(<<Schwesterkünste»), e da qual, segundo Dort, o ainda, tratar-se-á de um sentimento mais geral
autor alemão se teria mais ou menos esquecido: e mais misterioso, ligado directamente ao apare-
«No auge do privilégio e das suas obrigações de imento da teatralidade: o sentimento da perda
autor e de encenado r, e também de animador do teatro para o próprio teatro? Seja como for,
do Berliner Ensemble, [Brecht] sacrificou, muito para Bernard Dort a representação teatral apre-
provavelmente, a independência destas «artes- senta-se como o lugar da ausência por excelên-
-irmãs» a favor de uma concepção dramatúrgica cia, a experiência por defeito de um espaço e de
unitária das obras que mostrava. Mas a sua lição um tempo para sempre fora do nosso alcance.
vai mais longe do que a sua prática. Ela desenha Como se, actualmente, a paixão do espectador
a imagem de uma representação não unificada se pudesse exprimir unicamente num quadro de
cujos elementos distintos entrariam mais facil- desencantamento permanente. Desilusão que o
mente em colaboração, ou mesmo em rivalidade, artista (ele próprio espectador desenganado rela-
do que propriamente num processo em que, apa- tivamente ao seu próprio esforço de fazer teatro)
gando as diferenças existentes, contribuiriam partilharia com o público. Em eco contraditório
para a edificação de um sentido comum»25. ao «Não vou mais ao teatro» de Barthes, Dort
previne-nos mezzo voze que o teatro está cons-
24 Bernard Dort. La Représentation émancipée. Actes-Sud. coll. «Le tantemente a abandonar-nos, a desertar e a de-
[emps du théâtre». Arles. 1988. sertar-nos. De qualquer forma, é sob o signo do
25lbidem.
deslumbramento nostálgico que Dort terá visto
e vivido o Na Estrada Rea[26 de Grüber: «Uma
paragem no movimento infinito graças ao qual
Grüber abandona permanentemente o palco (... )
Na Estrada Real fala-nos da possibilidade de
uma última experiência de felicidade»27.
Prosseguir a tarefa (beckettiana) de acabar
(outra vez) com o teatro, sonhando sempre com
a possibilidade de começar tudo de novo, talvez
seja este o último paradoxo da teatralidade.
Porque o teatro só se realiza verdad~iramente
fora de si mesmo, quando consegue desprehder-
-se de si mesmo ... Fazer, sempre, no teatro, o
vazio do teatro.

26 Anton Tchékhov. Na Estrada Real, tradução de António Pescada,


encenação de António Augusto Barros, Escola da Noite, Coimbra,
2007. [N.T.]
27 Bernard Dort, La Représentation émancipée, Actes-Sud, call. «Le
remps du théãtre», Arles, 1988.
Por entre as numerosas obras que se escrevem reg-
ularmente sobre ou em torno de Brecht, duas re-
centes - uma, Brecht apres Ia chuteI, que soou um
pouco como um «Depoisde Brecht», à qual viria em
breve a responder uma outra, Avec Brech[2 - têm
títulos reveladores da necessidade de fazermos o
ponto da situação, de medirmos a distância que
nos separa do inventor do teatro épico, Evocando
«a deriva dos continentes», Antoine Vitez apos-
tava num afastamento definitivo, Pelo menos
relativamente à teoria, Por outro lado, defendia
a possibilidade de encenar certas peças de Brecht
- fê-Io com Mãe Coragem3 e, já no fim da vida,
com A Vida de Galileu4 - como se encena um
clássico, nem mais nem menos, Ou seja, fora do
todo o «uso brechtiano»,
Para a maioria dos encenadores colegas de
Vitez, de Vincent a Braunschweig e Schiaretti,
passando por Engel, o Brecht que permanece
1 Brecht apres Ia chute, co'!fessions, mémoires, ana{yses, publicado sob
a direcção de Wolfgang Storch com a colaboração de )oseph Mackert e
Olivier Ortolani, Paris, L:Arche, 1993.
2 P.Stein, A Steiger, ). Malina, S. Braunschweig, M. Deutsch, M. Lang-
hoff e G. Banu, D. Guénoun, Avec Brecht, Arles, Actes-Sud Papiers,
col!. «Apprendre» 11,1999.
:; Ver nota nO6 de «A Invenção da Teatralidade».
4 Ver nota nO7 de «A Invenção da Teatralidade».
mais próximo é aquele que está mais longe no
tempo: o autor cómico de A bodas, e sobretudo,
quase até à saturação, o escritor anarquista, a sua pseudo-biografia em forma de requi-
cripto-expressionista, rimbaldiano - e, em cer- sitório, Fuegi instrui o processo póstumo de um
tos aspectos, podemos mesmo dizer claudeliano Brecht que ele acusa de todos os defeitos morais
- de Baal6 e de Na Selva das cidades7. Uma vez - cinismo, vigarice, ganância, cobardia, infideli-
mais, com esta escolha de um Brecht anterior à dade aos homens e às ideias, etc. - e passa a
dialéctica marxista, está a recusar-se a ligação da pente fino, sob a égide do politically correct, to-
escrita à teoria. E, curiosamente, esta prioridade das as acções deste grande homem. Mas o fan-
da fábula, do comentário do gestus,.do ponto tasma justiceiro do nosso novo São Jorge não
de vista de classe, e da noção de teatro crítico. fica por aqui. Na cabeça de Fuegi, Brecht não é
Noção sobre a qual se tinha focalizado o primeiro apenas culpado de ter seduzido e explorado as
brechtianismo francês, ilustrado por Barthes, por suas colaboradoras Elizabeth Hauptmann, Mar-
Dort, pela revista Théâtre populaire. E mesmo o garete Steffin, Ruth Berlau ... Na verdade, ele
segundo que se caracterizou, com Philippe Ivernel, representa o elo que faltava, e que toda a gente
por um regresso às peças didácticas ou então, se , procurava há décadas, entre Hitler e Staline ...
pensarmos no percurso de Jourdheuil, podemos «Para compreendermos o século, afirma absurda-
ainda citar a atenção dada a um outro «jovem mente Fuegi, é essencial reconhecermos o poder
Brecht», para além do anarquista, o dofragmen- completamente irracional que estas personagens
to. Um jovem Brecht que teria tido a presciência - Hitler, Estaline, Brecht - exerciam quando as
de um autor como Heiner Müller. .. víamos em pessoa. Brecht faz parte deste século
de poderes carismáticos que, no caso de Hitler
e de Estaline, atiraram dezenas de milhares de
pessoas para os braços dos carniceiros».
5 Bertolt Brecht, «A boda», tradução de Jorge Silva MeIo e Vera San
Payo de Lemos, Teatro 1, Lisboa, Cotovia, 2003, pp. 185-214 (em Galvanizado pela sua cruzada, Fuegi multi-
1982, Mancho Rodrigues encenou este texto na tradução de Isabel plica, graças a algumas «montagens» e «adapta-
Alves e com o título A boda dos pequenos burgueses, no Teatro Carlos
Alberto, num espectáculo do Teatro Experimental do Porto). [N.T.]
ções» tão pouco católicas quanto brechtianas, as
6 Bertolt Brecht, «Baal», tradução de Jorge Silva Meio, José Maria Vie- «provas», «testemunhos» e outras «confissões»
ira Mendes e Vera San Payo de Lemos, canções traduzidas por João
Barrento, lbidem, pp. 37-109 (encenação de Jorge Silva Meio, Artistas
contra o seu «herói». Pensando> com razão, que
Unidos, Teatro Viriato, Viseu, 2003). [N.T.] a acusação de machismo - bastante merecida, é
7 Bertolt Brecht, «Na selva das cidades», tradução de Jorge Silva MeIo, certo - não seria suficiente para agitar a cons-
José Maria Vieira Mendes e Vera San Payo de Lemos,lbidem, pp. 285-
354 (encenação de Jorge Silva Meio, Artistas Unidos, Teatro da Co- ciência moral dos nossos contemporâneos, em
muna, Lisboa, 1999). [N.T.] particular dos nossos contemporâneos mascu-
linos, Fuegi associa vanas vezes a Brecht um para a seguinte»), o que se opõe ao uso épico do
anti-semitismo que, depois de termos lido o livro teatro que o próprio Brecht definiu no célebre es-
e reflectido sobre o assunto, continuamos sem quema de Mahagonny (<<cadacena por si»)!
perceber onde é que ele foi buscar tal ideia. Esta A Fuegi e à Companhia aconselhamos a re-
mesma estreiteza de espírito que leva o autor de leitura das páginas que Dort - que não é cita-
Brecht & Cie8 a passar pelo crivo da sua censura do uma única vez nas quase mil páginas deste
imbecil e desonesta a vida de Brecht, incita-o a «compêndio» - dedicou a A Vida de Galileu9.
tentar demolir o pensamento teatral do «seu» au- Serão, certamente, confrontados com a riqueza
tor. E é aqui que, atrás de Fuegi, vemos levantar e a complexidade dramatúrgica de uma peça que
o nariz todos aqueles que designaremos agora não é, em momento algum, um drama histórico,
pudicamente - de maneira «fuegiesca» - como a e nem sequer aquilo a que Fuegi, no seu vocab-
«Companhia» ... A Companhia daqueles que, des- ulário de antiquário-negociante-de-velharias,
de sempre, se dedicam a denegrir a modernidade chama comicamente «uma das maiores peças de
em arte e tudo aquilo que poderia ser comparado estilo isabelino escritas no século xx». Mas que
a um trabalho de desconstrução. Daqueles - no A Vida de Galileu faça parte, tal como acontece
teatro, poderíamos designar esses restauradores com Um homem é um homem 10 ou com A boa
de um classicismo atemporal de neo-aristotélicos alma de Sé-Chuão11, no que diz respeito à sua
- que consideram interessante banalizar Brecht e estrutura dramatúrgica, das peças cuja forma
tornar vazia a ideia de teatro épico. Ao fazer um associamos à parabelstück, que Brecht reinven-
elogio em sentido contrário - no fundo lukácsia- tou e à qual deu grande importância, não parece
no - de A Vida de Galileu, Fuegi vai de encontro preocupar Fuegi e Companhia. O mesmo desin-
aos propósitos da Companhia. Ao citar esta peça, teresse se verifica relativamente ao pensamento
o autor pretende celebrar aquela que seria, de to- de Brecht sobre o teatro. A obsessão de Fuegi
das obras de Brecht, «a mais magnificamente es- segundo a qual Brecht não passa de um inver-
culpida» já que possui uma «simetria que é "um
traço essencial do teatro clássico" (... ) onde cada 9 Bernard Dorr, "Lecture de Galilée, étude comparée de trois érats
cena conduz inexoravelmente à s.eguinte». A per- d'un rexte dramarique •• in Les Voies de Ia création théâtrale, m, Pa-
ris, Éditions du CNRS, 1972.
versidade de Fuegi e Companhia atinge aqui o seu 10 Berrolt Brecht, «Um homem é um homem ••, tradução de António
ponto alto: felicitar Brecht por se ter, finalmente, Conde, Teatro 2, Lisboa, Cotovia, 2004, pp. 143-223 (encenação de
Luís Miguel Cintra, Teatro da Cornucópia, Lisboa, 2005). [N.T.]
rendido a um uso dramático do teatro (<<umacena 11 Em 1984, João Lourenço encenou A boa pessoa de Setzuan, na
tradução/Versão de João Lourenço, José Fanha e Vera San Payo de
8 John Fuegi. Breeht & Cie, Paris, Fayard, 1995 (John Fuegi, Breeht Lemos, com produção do Novo Grupo. A publicação de uma nova
and Co.: Sex, Polities and Making Q/Modern Drama, NY,Grove/Atlan- tradução com o título A boa alma de Sé-Chuâo está prevista no Volu-
rico 1994). [N.T.] me V do Teatro de Brecht (Livros Cotovia). [N.T.]
rebrado e de um oportunista, está plenamente -'e l'Aquarium» nos anos sessenta e setenta - de
em conformidade, numa espécie de ódio comum ma escrita ej~~~qiação te~trais dotada~
ao pensamento, com os interesses daqueles e uma dimensão colectiva.
---_.--- O nosso mestre de
- homens do puro espectáculo, do Show-biz, da oral indigna-se, ainda, com o «luxo» em que
diversão - que banalizam, que desvitalizam o ceria vivido o Berliner Ensemble, em virtude
brechtismo para poderem adaptar Brecht aos longa duração do período de ensaios - «um
seus cozinhados pouco apetitosos. Sob a más- ano!. ..» - sem ter em conta a profunda mutação
cara do anti-intelectualismo - que é sempre o estética que este tipo de duração - que permite a
apanágio de intelectuais desencaminhados ou "xperimentação, o desvio, o debate contraditório
exaustos - aparece o rosto consensuat- de uma - introduz no trabalho teatral. E no estado ina-
«instituição» artística para a qual a ideia de um cabado de um texto como Fatzer12 - Heiner
pensamento do teatro, e mesmo de um teatro do _iüller e muitos outros consideram-no, na sua
pensamento é uma aberração. imensão de fragmento, um dos pontos altos
Aquilo que para Brecht e para os seus cola- a produção brechtiana - Fuegi limita-se a ver
boradores foi uma utopia, a ideia de um traba- sinal patente da incapacidade de Brecht para
lho colectivo, é apresentado pelo autor de Brecht onduir, sozinho, uma obra de envergadura!. ..
& Cie como um negócio vulgar. Brecht conside- O único ponto em que nos dispomos a con-
rava que o verdadeiro pensamento consistia em c.ordar com o infeliz biógrafo é na referência à
pensar na cabeça dos outros e em que os outros necessidade em que nos encontramos hoje, se
pensassem na nossa cabeça. Nesta actividade uisermos recuperar uma utilização livre e cria-
colectiva (<<oatelier Brecht» escreve Fuegi) que ctva do teatro de Brecht, de nos distanciarmos
corresponde bem à ideia de teatro, Fuegi insiste ele. Talvez o autor de Brecht & Cie possa ele
em ver um lupanar do qual Brecht seria o geren- próprio contribuir, um dia, para esta tarefa.
te suspeito. Cada um vive com os seus sonhos Quando tiver ultrapassado o estado de contra-
- ou com os seus fantasmas. Apanhado por esta -transferência e estiver curado da sua indigestão
compulsão maníaca de apresentar Brecht como brechtiana. Quando tiver renunciado a vender
um Pierpont Mauler, um Puntila disfarçado de ao desbarato o seu saber de brechtólogo em va-
Matti que recebe dividendos de obras escritas gas operações «biográficas» para as quais não
«entre 80 a 90%»por Hauptmann, Steffin ou Ber-
lau, Fuegi evita remeter o seu leitor para a ideia :2 Bertolt Brecht, A queda do egoísta Johann Fatzer, traduçáo de
.\délia Silva MeIo, encenaçáo de Jorge Silva MeIo, co-produçáo Ar-
reivindicada por Brecht - mas que encontramos ústas Unidos I festival dos Cem Dias I Teatro Nacional D. Maria 11,
igualmente na Rússia soviética, nos anos vinte Teatro Variedades, Lisboa, 1998 (publicaçáo prevista no Volume VIII
o Teatro de B. Brecht, Livros Cotovia). [N.T.]
e trinta, no «Théâtre du Soleil» ou no «Théâtre
está vocacionado ... Até lá, poderia meditar sobre a tual, confiava recentemente Matthias Lang-
esta reflexão de George Tabori, extraída de Brecht off a Georges Banu e Denis Guénoun. Por entre
apres Ia chute: «Para além de Shakespeare, Brecht as obras clássicas, penso que Santa Joana dos
é, efectivamente, o único autor que podemos en- atadouros14 é um texto muito importante que
cenar nos Campos Elísios ou noutro sítio qualquer, everia ser encenado. As minhas escolhas não
mesmo no mato. Suponho que seria possível en- bedecem a categorias literárias que distinguem
cená-Io sem problema nenhum no terceiro mundo eças de juventude e obras clássicas» ... «Ainda
e no que dele resta, na China, e que qualquer re- assim, penso, acrescentava Langhoff, que numa
presentação chegaria ao público. Não nos fala ele, peça comoJ0ra selva das cidades, Brecht ainda é
sempre, de pobreza e de opressão? Falta apenas extremamente livre na sua linguagem, que ain-
encontrar uma nova grelha de leitura». 13 da não sujeita a sua linguagem ao imperativo de
produzir ideologia] É sem dúvida aqui que im-
portará desbloquear a dificuldade que sentimos,
hoje, relativamente aos seus grandes textos: não
são os t~mas, mas a for~a_~o~o Br~c~E~~~_~~t_e
A partilha, entre os críticos e os detractores, parece ~ua linguagem à autoc~ític~ ele esforça-se por
fazer-se entre os que acusam Brecht de censurar a se manter popular, por se exprimir numa lin-
realidade (em nome da ideologia) e aqueles que o guagem que toda a gente possa perceber. O seu
acusam de se ter censurado a si próprio (sempre maior problema, e digo-o enquanto brechtiano, é
em nome da ideologia). A atitude dos primeiros a tesoura que ele tem na sua própria cabeça, esta
não mudou muito desde a descoberta de Brecht autocrítica que ele activa permanentemente». 15
em França; ela própria é bastante ideológica. No Da abordagem amorosa de Langhoff, que no
entanto, conquistou novos adeptos, alguns dos entanto sublinha a distância de que precisa hoje
quais - da «Companhia» - como é o caso de Scar- um encenador para reconsiderar a possibilidade
petta, afirmaram ser de esquerda. de encenar Brecht à luz da actualidade, até à
Quanto à posição dos segundos, não é incom- abordagem viciosa de Fuegi há, evidentemente,
patível com a sua admiração por Brecht e mesmo todo um mundo. E esta posição merece, pelo me-
com um certo «brechtismo». Encontramo-Ia no- nos num aspecto, ser explorada. Em nome de que
meadamente junto de alguns encenadores sus- 14 Benolt Brecht, «A Santa Joana dos matadouros», tradução de
ceptíveis de encenarem uma ou outra das suas .\1anuel Resende, Teatro 3, Lisboa, Livros Cotovia, 2005, pp. 201-320
peças: «Na selva das cidades é uma peça muito espectáculo da companhia A Barraca, com tradução e encenação de
Hélder Costa, Lisboa, 1984) [N.T.]
15 P. Stein, A. Steiger, J. Malina, S. Braunschweig, M. Deursch, M.
Langhoff et G. Banu, D. Guénoun, Avec Brecht, op.cit.
critério consideram um e outro que uma peça de entre as «tarefas da crítica brechtiana» - para
Brecht é susceptível de falar ao público dos nos- retomar uma expressão de Barthes em Théâtre
sos dias? Para Fuegi, que quer queimar Brecht populaire, relativamente à qual nos pergunta-
acusando-o de totalitarismo e de imoralidade, mos se ainda tem razão de ser - poderíamos in-
as únicas obras que podem escapar ao auto-de- cluir, como é evidente, o desmontar das posições
-fé são - como a anteriormente citada A Vida de reaccionárias de «Fuegi e Companhia», e ao
Galileu - as que, segundo o autor, seguem uma mesmo tempo a actualização daquilo que na
espécie de modelo eterno, humanista, idealista teorização e nos objectivos brechtianos deixou
do drama. Em resumo, todas aquelas que supos- de ser evidente: essa maneira de considerar a
tamente infirmam o trabalho teórico e ~lítico de grande forma épica do teatro como a «supera-
Brecht. A declaração de Langhoff está, evidente- ção» inelutável da forma dramática, de subor-
mente, do lado oposto. Ela convida-nos, aqui e dinar sistematicamente as relações - neces-
agora, a reexaminarmos Brecht à luz do princípio sariamente dramáticas - entre os indivíduos às
essencial elaborado pelo autor de Quanto custa o relações que estes mesmos indivíduos mantêm
Jerro?16: produzir um teatro de dimensão cívica e com o social, de negar a importância da subjec-
política: «Com Brecht, prossigo os mesmos inte- tividade, o papel do inconsciente e das relações
resses que me conduzem até à tragédia grega ou ditas «privadas» entre os seres ...
até Shakespeare. ~recht faz parte destes grandes «Aprofundar a via aberta por Brecht», como
exemplos de um teatro político que não é um diz Langhoff, passa também pela constata-
teatro ideológico. O mesmo acontece com Heiner ção de que a «grande forma épica do teatro» e
Müller, que aprofundou a via aberta por Brecht) o «teatro didáctico» teoricamente forjados por
Afirmar que sou brechtiano é o mesmo que dizer Brecht mostram hoje os seus limites.rnstaurar
que me sinto estimulado com a pesquisa de um um processo à sociedade e fazer dessêprocesso,
teatro que continua a ser um teatro político, que perante os espectadores mais ou menos coloca-
fala dos verdadeiros problemas da sociedade, que dos na posição de «juízes», o objecto da repre-
não recua perante o risco, que não tem medo de sentação já não corresponde à iniciativa ade-
se enganar, de quebrar as regras, nomeadamente quada para dar conta, hoje em dia, no teatro, do
as regras dramatúrgicas, mantendo o desejo de mundo em que vivemos]
continuar inscrito na marcha do mundo». Brecht tinha afastado vigorosamente os fan-
Sem ser anacrónico, o discurso de Langhoff faz tasmas para melhor nos mostrar as relações
parte de uma «crítica brechtiana» de Brecht. Por sociais, políticas e económicas. Mas os fantas-
16
Bertolt Brecht, Quanto custa oJerro ? (publicação prevista no Vo- mas voltaram e protestam. Querem fazer parte da
lume V do Teatro de B. Brecht, Livros Cotovia) [N.T.] paisagem, tal como as coisas tangíveis e bem vi-
síveis. Adamov, que vinha de Artaud e do Sonho17 essencialmente pela ocupação do fosso de or-
de Strindberg, fez ouvir a sua voz - a sua própria questra. Chamando «podium» ao palco do teatro
crítica brechtiana» - ao proclamar, desde o final épico, Benjamin entendia sublinhar a relação de
dos anos sessenta, o necessário regresso a uma tipo democrático que em Piscator ou em Brecht
certa psicologia (despida de todo o psicologismo se instaurava entre a sala e a cena: um esforço
das «personalidades») e a necessária atenção às igualitário susceptível de modificar não só a ex-
forças invisíveis, simbólicas, na sua junção com periência do espectador mas também a própria
os poderes materiais bem visíveis. Quanto a Lang- dimensão arquitectónica do teatro.
hoff, prolonga hoje a sua relação com Shakespeare Na realidade, a prática não acompanhou o
e com a tragédia grega fazendo dialogat:.escritas zelo teórico de Benjamin - a barreira entre os ac-
consideradas inconciliáveis: Kafka e Strindberg tores e o público deveria cair como se da abolição
com Brecht, Beckett com Heiner Müller. de um privilégio se tratasse... A modificação
Partir deste espaço contrastado, o puzzle - épi- épica da arquitectura teatral foi, como é sabido,
co-dramático-lírico - langhoffiano, e prosseguir acompanhada por uma recuperação - ainda que
até ao espaço originário brechtiano, tentar ver parcial - da cena italiana, a qual parece querer
como, a partir dos anos sessenta, o espaço do 'retomar, hoje, todos os seus direitos ... mas é
teatro épico começou a desfazer-se para se re- possível que Brecht tenha tido necessidade, para
compor de outra forma, eis uma das (últimas?) edificar o seu teatro, de mais do que o «podium»
tarefas da crítica brechtiana. que lhe prometia Benjamin. Talvez pensasse que
as operações intelectuais e psíquicas que ele en-
tendia pedir ao público precisavam, ainda, do
suporte de uma dí~unção entre a sala e a cena?
«Eles não olham: elesfixam»
Mesmo correndo o risco de fazer um uso para-
doxal desta disjunção: o espectador encontran-
Bertolt Brecht
do-se sempre face à representação como alguém
Walter Benjamin pensava que a novidade do que dorme face ao seu sonho - como alguém que
teatro épico se deixava definir mais facilmente dorme acordado, um sonhador que recuperaria
a partir do palco do que a partir do texto. Se- parcialmente a sua motricidade?
gundo o autor, esta novidade caracterizava-se A recusa benjaminiana do fosso de orquestra
vinha oportunamente eliminar este mito da pro-
17 August Strindberg, Um Sonho, tradução de Cristina Reis, Luís
fimdídade que, durante séculos, tinha mantido à
Miguel Cintra e Melanie Mederlind, para o espectáculo do Teatro da volta da cena a aura sagrada da ilusão. Benjamin
Comucópia, com encenação de Luís Miguel Cintra, Lisboa, 1998.[N.T.]
teria podido dizer com Valéry: «Eu detesto a fal-
sa profundidade, mas também não gosto muito um dispositivo cénico finalmente desprovido de
da verdadeira» ... Na verdade, esta evocação do duplo fundo, dissuadiu o espectador de espiar
fosso como «abismo insondável» indicava maio eventuais espaços exteriores e desiludiu todo e
verdadeiro lugar de onde era exercido o feitiço qualquer olhar voyeurista.
sobre o espectador. Aventuremo-nos a propor Em vez de se expandir pelos bastidores e de
um outro critério do épico cénico que não seja o aí dissimular os seus contornos, doravante, a
simples desaparecimento do fosso: a supressão representação inscreve-se num espaço-máquina
dos bastidores. Tentemos isolar um elemento oferecido ao olhar do espectador. Ao contrário
da arquitectura cénica sobre o qual a actividade do drama burguês, a representação já não surge
transformadora do teatro épico se mac.ifestou como uma porção esplendorosa de realidade - es-
plenamente. Em suma, retomemos a questão da plendor que se devia a um suplemento de lustres
«profundidade», mas tentando, agora, situar o - encaixada na imensidão cinzenta do mundo. Já
seu verdadeiro antro. não pretende anexar territórios exteriores através
Do desdobrar do ciclorama brechtiano, podere- das portas pintadas do cenário. Ela confessa a
mos dizer que ele teve como função principal ob- verdadeira natureza do seu bloqueio: não sendo
turar os bastidores. Privar a cena da sua profun- ,já uma parcela da realidade, faz parte de um dis-
didade. No teatro dramático, os bastidores eram positivo produtivo específico que, esse sim, en-
para o artista, autor ou encenador, uma preo- tende ter uma influência sobre o mundo.
cupação primordial. Redigindo os seus planos, [o que sugeriam os bastidores do teatro bur-
Diderot e Beaumarchais previam as cenas que guês, lugar de trânsito imaginário, de falsa dia-
supostamente se passavam nos bastidores (De Ia léctica entre o interior e o exterior, era uma cena
Poésie drama tique: «Quando o movimento pára apoiada no real, a continuidade da acção cénica
em cena, continua atrás»). Antoine e Stanislavski, e da vida ou melhor, a contiguidade do teatro e
com uma grande quantidade de janelas, de vi- da realidad~ Fornecendo ao cubo cénico o álibi
draças, de portas envidraçadas, multiplicavam as da profundidade, a abertura para os bastidores
aberturas que davam para os bastidores à volta mantinha o «efeito de real». Puro simulacro, na
do lugar da acção. Graças à instalação oblíqua verdade não representava senão o cúmulo do
dos cenários, convidavam o olhar do espectador fechamento.
a desviar-se da pura frontalidade e a entrar de A partir de um reexame crítico das posições
viés no cubo cénico. Para o explorar mais intima- de André Bazin, Pascal Bonitzer denunciou a
mente e para se precipitar nas suas profundezas. relação falaciosa, na maior parte dos filmes, do
Adepto de um teatro emJresco, Brecht empenhou- in e do Q/f, bem como o recurso à prqfundidade
-se em reorientar a visão do público. Inaugurando de campo, tendo como único objectivo operar a
confusão da ficção cinematográfica e da reali- invisível (... ) Consequentemente, produz-se um
dade.18 A arte idealista, no teatro ou no cinema , adiamento das relações entre o espaço teatral e
depende apenas desta profundidade imaginária, o espaço do mundo no espaço teatral, ele próprio
da negação da sua própria materialidade, no fraccionado em espaço teatral visível (espaço da
teatro, a do cubo cénico. No «Théâtre du Peuple», cena) e espaço teatral invisível (espaço dos basti-
fundado outrora por Maurice Pottecher, o fundo dores)>>.19O que, no entanto, a análise de Green
da cena abre-se, na altura das representações ilude, do ponto de vista de um teatro épico, é o
estivais, permitindo o acesso directo à paisa- carácter ilusório desta relação.
gem dos Vosgos. Graças a esta reconciliação do
teatro de sala e de ar livre, produz-se um efeito
- a que eu chamarei «Efeito Bussang» - que me
parece comum a todo o teatro de ilusão. Traba-
lho de falsificador, que teria nos bastidores o seu
atelier secreto, visando enganar o espectador, fa- Escondido nos bastidores, munido de um olhar
zendo crer que a cena se amparou do mundo, que com mil olhos, o mundo interior da cena suscitava
o teatro mais não é do que o real domesticado. 'o respeito - quase hipnótico - da consciência do
Astúcia que, em definitivo, dispensa o público espectador. O olhar dos bastidores não será uma
de confrontar os comportamentos humanos pe- forma branda do olhar de canto, branco, revirado
rante ele exibidos com as realidades da sua ex- da crise de histeria provocada? ...fQuando Brecht,
periência e da sua memória. renunciando a esta ligação englriadora entre a
André Green tentou explicar a importância, cena e o seu campo exterior, suprimiu os basti-
na psicologia do espectador, da separação cena/ dores, apareceu uma outra cena, até então rejei-
bastidores: «a contradição experimentada pelo tada, a cena do «trabalho teatral», do processo da
espectador é tal que, se inicialmente o prqjecto representação oferecido aos olhos do espectador
de ver um espectáculo operava um corte entre com o objectivo de estimular a sua atitude crítica]
o teatro e o mundo, oJacto de ver um espec- Desta «outra cena», Bonitzer definiu, no
táculo substitui a confrontação entre o espaço domínio do cinema, a extensão e os efeitos. Em
do teatro e o espaço do mundo (que se tornou particular o do desmembramento de uma repre-
invisível e cuja perda de referências o exclui da sentação que a arte burguesa se obstinava em
consciência do espectador) pela confrontação considerar homogénea: «De um plano ao outro,
entre o espaço teatral visível e o espaço teatral
19 André Green, Un rei! en trop. Le complexe d'lEdlpe dans Ia tra-
gédle, Éditions Minuit, call. «Critique», 1969.
de um campo ao outro, foi possível, na expressão tado de saturação, e colmatar permanentemente
de Bazin, "poupar realidade". A angústia latente os seus eventuais vazios.
de um qualquer vazio foi suturada. Mas alguma A representação épica brechtiana não teve
coisa (da realidade) ficou, radicalmente, fora de a preocupação de se fechar numa (pseudo) to-
campo. Fora de cena. Este "poupar realidade", talidade. Ela apresenta-se como uma série in-
essa realidade contínua e homogénea que cons- completa de fragmentos. Não se abriu ao mundo
titui o meio ambiente da ficção, só é possível gra- gritando aos quatro ventos, mas sim através da
ças a uma rejeição fundamental, a rejeição de uma rede infinita das suas fracturas e interstícios.
"outra cena", a da realidade material, heterogé- Desde logo, a atitude do espectador tornou-se
nea e descontínua da produção da ficção f...) Ao dupla: a prova positiva da ausência, da ruptura,
voltar ao espaço cinematográfico, donde tinha da privação entrou em concorrência com o dese-
sido suprimida, excluída, faz saltar da realidade jo - que, como é evidente, ainda se mantém - de
a pretendida "túnica sem costura", e reintroduz ser saciado pela ficção. O prazer de compreender
um certo conflito interno da representação; um completou e corrigiu o prazer da imitação. O es-
mal-estar na representação, uma divisão, um pectador encontrou-se, como sempre, face a uma
movimento vacilante.» representação de grande nível; e, no entanto, tal
Foi certamente para introduzir o mesmo como o contra-regra, pôde dominar a máquina
«movimento vacilante», o mesmo «mal-estar em movimento (esta «pequena cortina» brechtia-
na representação» que Brecht substituiu o re- na por cima da qual víamos, atarefados, os ser-
curso aos bastidores, que predominava no final ventes da representação).
do século XIX, início do século XX, pelo uso Esta é a vantagem paradoxal que Brecht tirou da
sistemático da descoberta. Visibilidade das fon- cena à italiana: o espectáculo, graças ao seu rigor
tes de luz emblemática da «cena da produção». frontal e à confissão sem reticências da sua ma-
Ciclorama que se apresenta como uma metáfora terialidade, apresentava-se para além do arco da
da página branca na qual, segundo Benjamin, boca de cena - limite habitual onde o descontínuo
o actor épico inscreve os seus gestos «espa- se transformava em contínuo, o heterogéneo em
çando-os tal como um tipógrafo espaça as suas homogéneo - como uma montagem. E foi exacta-
palavras». Ausência de todo e qualquer tipo de mente desta forma que o público, sem entrar na
cimentação, de toda e qualquer «falsa» unidade mitologia do espectador «participativo», foi incen-
de tipo orgânico ... A nova arquitectura denun- tivado a tornar-se activo. Porque Brecht transfor-
ciou por omissão o último efeito dos bastidores: mava-o no responsável pela montagem do espec-
o seu papel de sifão entre o real e o teatro, tendo táculo. Responsável pela montagem entre a ficção
como objectivo manter a representação em es- e a sua própria vivência individual e colectiva.
miraram e reflectiram sobre os primeiros espec-
táculos de Robert Wilson, espectáculos nos quais
o que é que se passou, no decorrer dos anos seten- esta dimensão cósmica é essencial. É verdade,
ta, para que este pacto da representação épica também, como dizia em tom de brincadeira Blin a
que, para além dos estilos pessoais, regia até essa propósito de Chéreau que <<LeRegard du sourd20
altura as encenações de Strehler, de Planchon, de não caiu na orelha de um cego». Mas, para além
Chéreau e de muitos dos encenadores europeus de alguns imitadores ou epígonos, onde, como é
mais inventivos, tivesse sido quebrado? evidente, não incluímos os encenadores acima
Sem dúvida alguma, para esta ruptura muito mencionados, a mutação estética corresponde a
terá contribuído uma pletora de espectác-ulos de processos fundamentais ao nível do mundo e da
epígonos em que o dispositivo brechtiano foi sociedade. A processos que, nesta circunstância,
servilmente imitado, ou seja, desvitalizado,des- interessam o Imaginário.
naturado através dos piores processos: visibili- Tudo se passa como se a encenação, e antes
dade puramente ornamental das fontes de luz, mesmo o espaço da representação, se fixassem
mudanças à vista por razões decorativas, teatro c0!fi0 objectivo dar-nos a ver simultaneamente o
que mostra com ostentação que «é teatro», espaço mais pequeno, o mais imperceptível - por exem-
de maquinarias em trompe-l'aeil ... mas a razão plo, o desejo de um ser, ou os seus medos mais
principal está num outro ponto. Em meados dos íntimos - e o maior - a presença indiferente do
anos setenta, momento em que se verifica a re- universo. O teatro abre o seu compasso relativa-
cuperação de um teatro materialista, a tendência mente a Brecht. Em direcção ao intra-psíquico, ao
já não é considerar a cena como um laboratório e libidinal; e também em direcção ao cosmos e às
um lugar neutro de exposição. Doravante, já não forças invisíveis que influenciam os destinos hu-
se conserva a teoria de um teatro experimental de manos. Uma espécie de grande abertura, a colocar
Brecht - teoria que tornava legítima e necessária em ressonância o infinitamente grande e o infini-
a apresentação ostensiva das ferramentas cénicas tamente pequeno. Um sentimento pascaliano ...
- mas sim a sua forma de colocar lado a lado o Esta geração de encenadores - em que Grüber
microcosmo e o macrocosmo, de estender o exte- desempenhará o papel de c1arificador, de pio-
rior ao interior, de tratar as cenas privadas como neiro, de profeta - vai (re)inventar uma outra
se fossem «cenas de rua». Actualmente, encena- maneira de tornar a cena i1imitável, tal como
dores como Grüber, Chéreau, Vincent, ]ourdheuil, acontece com o «Efeito Bussang», todo emJaux-
Bayen, Vitez, Planchon dão uma visão global, em
extensão, poder-se-ia dizer cósmica do espaço 20 Espectáculo que deu a conhecer Robert Wilson ao público francês
das peças que encenam. É verdade que todos ad- e europeu, apresentado no Festival de Nancy, em 1971. [N.T.]
-semblant, que evocámos anteriormente. Ela enviavam directamente para ~erg;~men.!~9_
conjura o sortilégio dos bastidores sem recor- esférico .de_Sour~au que nã.9 previa «qualqu~!.
rer, à maneira brechtiana, ao muro branco do cenário (... ) se por cenário entendermos esses
ciclorama. Ainda que se mantenha no interior pedaços de madeira em cuja superfície plana es-
do cubo cénico - o que está longe de ser sempre tão pintados motivos ilusórios destinados a se-
o caso, sobretudo se considerarmos o Vitez do rem vistos desde um determinado ponto, situado
início - faz apelo a um espaço quase pascaliano. face à sala. ~p_eI!aso que é necessário par~ f!xar
A esse espaço que Etienne Souriau, no seu texto de forma passageira aquilo que,..E.l:l.f!! dete.!'ffiiQa-
notável bem anterior aos anos setenta, qualifi- do morrlento, no mundo que sugerimos, deve ser
cou de «esférico».21 Para Souriau, o espaço es- lDtensificado e marcado localme_nt~ E porque
férico puro remete para o· Teatro da Crueldade não, simplesmente, sobre uma pista redonda,
deAftaudêill que o espectador «está no-meio uma escada dupla e duas caixas, se a caixa se
enquanto que o-espectácúio -o envoive}~~não há puder transformar facilmente em cadeira ou em
palco:·não há sala, -nãõhá limites»;- os actores cepo de madeira, cofre ou rochedo; se a escada
«estão no centro, e a circunferência não está em puder tornar-se, de acordo com o momento e a
lado nenhum - trata-se de fazê-Ia fugir infini- necessidade dramática, numa torre, na escarpa
tamente, englobando os próprios espectadores, de uma montanha, num fantasma ... »
apanhando-os na sua esfera ilimitada.» No caso Em Andromaque, espectáculo de 1972, Vitez
dos encenadores dos anos setenta que nós evocá- realizou o protótipo da cenografia esférica com
mos, este princípio esférico encontra-se mais ou «uma escada dupla e duas caixas». Tornou men-
menos adaptado e relativizado. Pouco, no caso surável com o olhar as distâncias interiores da
do Vitez inicial, o de La Grande Enquête de F.F. dramaturgia de Racine: a famosa antecâmara, de
Kulpa22, de Andromaque de Racine, da segun- lugar retirado, de huís elos estreito, transforma-se
da Electra23 de Sófocles, do primeiro Fausto24. num verdadeiro mundo. Macrocosmo e micro-
Poderíamos imaginar que estes espectáculos re- cosmo sobrepostos. Donde, neste espectáculo de
câmara, a impressão paradoxal de estarmos ao ar
21 Etienne Souriau, «Le Cube et Ia Sphere ••. conferência proferida livre: o céu helénico sob os sofitos ... Da mesma
forma, mais tarde, com Catherine25, com Iphígé-
em 1948, in Architecture et dramaturgie, Flammarion, «Bibliotheque
d'Esthétique ••, 1950.
22 La Grande Enquête de François-Fé/ix Ku/pa, de Xavier Pommeret, níe hôtez26, o encenador reencontrou esta tensão
encenação de Antoine Vitez, Théâtre des Amandiers de Nanterre,
1971. [N.T.] 25 Espectáculo de Antoine Vitez a partir do romance Les C/oches de
23 Sófocles, «Electra ••, tradução de Maria do Céu Fialho, Sij'ocles, Bã/e, de Louis Aragon, apresentado no «XXIX Festival d'Avignon••,
tragédias, Coimbra, Minerva. 2003, pp. 91-166. [N.T.] em 1975. [N.T.]
24 johann W Goethe, Fausto, tradução, introdução e glossário de 26 Michel Vinaver, lphigénie hôtel, (1959). O espectáculo de Antoine
João Barrento, Lisboa, Relógio d'Água, 1999. [N.T.] Vitez foi apresentado no Centre Georges Pompidou, em 1977. [N.T.]
ideal entre um espaço teatral refulgente, infini- alguns quadros de Caspar Friedrich - provém de_
tamente extensível, e o «mobiliário» concreto da uma projecção da psique combinada das perso-
representação: dispersos em toda a área de repre- nagens, do -autor, do encenador, do decorado r-
sentação, formavam pequenas ilhas, a mesa fun- Pirltõr~Aexiensão do macrocosmo ao teatro - do
cionou como salão burguês em Catherine, e em universo do dramaturgo revisitado por um de-
Iphigénie hôtel havia apenas a recepção, a cama, terminado encenador -, a tentativa de apropria-
algumas mesas com cadeiras à volta. ção panorâmica de um «mundo» evitam per-
No caso dos outros encenadores citados, que feitamente o perigo naturalista denunciado por
inicialmente foram mais brechtianos ou strehle- Brecht. O aqui (da representação) não pretende
ria nos do que Vitez, o princípio esférico éL:ombi- subsumir o algures (da realidade). A alteridade
nado com o princípio cúbico, aceitando as sepa- fica preservada do teatro até ao real. A imagem
rações internas do cubo. Ainda assim, o efeito cénica, ainda que totalizadora, não fica satura-
esférico concretiza-se: o espaço distribui-se in- da. Na verdade, não tem mais espessura do que
finitamente em ondas, engolindo de passagem e uma crosta das mais finas e das mais frágeis.
em implacáveis redemoinhos as criaturas que o Não tem mais consistência do que um poço de
tentam habitar. ar. É como se fosse soprada.
Esta réplica de uma das personagens da peça
A morte de Danton27 - «A terra é uma crosta
fina. Quando há buracos como estes, parece-me
De máquina de jogo (em que, de alguma forma, sempre que poderia passar através deles» - po-
volta hoje à' transformar-se, graças a um certo re- dia servir de epígrafe ao espectáculo de Bruno
gresso ao «estrado» original) a cena passa a sur- Bayen realizado a partir desta mesma peça nos
gir como uma paisagem mental ..:.müitõ espo- anos setenta, onde a cenografia vinha reiterar
.""",-
jada, no primeiro Vitez, muitas-vezes sumptuosa o efeito dramatúrgico do refluxo da Histór~. O
no caso dos outros encenadores, tanto mais que cenário de Milkan, onde as matérias são bem vi-
eles trabalham com pintores como Arroyo, Aillaud, síveis - extensão pedregosa onde surgiam perdi-
Peduzzi, Milkan ... Mas o investimento decorati- dos alguns esqueletos de árvores e uma elevação
vo, quando se manifesta, nunca tem como ob- de terra e de rochas - é a pista onde são talha-
jectivo provocar no espectador a ilusão de ser dos os bustos dos revolucionários sacrificados,
confrontado com um universo concreto, ou, de
algum modo, «real». Tudo ~~vemos - e cuja 27 George Büchner, A morte de Danton (1835), Em 2007. o Tearro da
Garagem apresentou o espectáculo «A morte de Danton na Garagem»,
desolação pode ser por vezes fascinante, como com texto, encenação e concepção plástica de Carlos J. Pessoa, a partir
de Büchner, no Teatro Taborda, em Lisboa. [N.T.]
o leito do qual se retirou o rio da liberdade, a num quadro mágico, destruía qualquer ideia de
grandiosa paisagem mental de desolação onde bastidores; os sinais do exterior pervertiam sub-
os fantasmas do encenado r tentam abraçar os de tilmente os do interior, a casa de ]ohn Bell trans-
um autor há muito tempo desaparecido. E os ob- forma-se, assim, no espaço metafórico de um pa-
jectos de «interior» da representação, presenças lácio-cemitério gótico ou de um túmulo.
metonímicas, estão evidentemente dispersas, à Ao assistirmos a estes espectáculos onde, sob
semelhança dos de Peer Gynt28 no final da peça uma espécie de paisagem mental, se estendia uma
de Ibsen, nesta paisagem de catástrofe: um co- visão do mundo (os primeiros - e mais rigorosos -
fre, uma mesa comprida, uma pequena mesa de foram certamente Qff Limits de Adamov, encenado
centro, alguns sofás órfãos ... Quanto ao.\>acto- no PiccoloTeatro de Milão por Grüber e Wqyzeck na
res deste espectáculo, de acordo com o papel que encenação de Vincent e ]ourdheuil), tínhamos a im-
interpretam, de «políticos» ou de «pessoas do pressão de que os Eastidores vinham despejar para
povo», correm e acomodam-se no cenário como a cena toda aquela exuberância que no tempo da
se fossem enormes voláteis, ou surgem das suas ilusão teatral- an!es_da invenção da teatralidad<;:
anfractuosidades à maneira dos trogloditas. - deixavam entrever. Aliás, este esvaziamento dos
Por vezes, durante os anos setenta, a dimen- bastidores deixará traços bem visíveis no ciclorama
são metafórica desta paisagem mental, frequent- - tratado já não à maneira de Brecht, como uma
emente mergulhada numa penumbra tão densa página branca, mas sob a forma de um céu ou de
quanto luminosa podia ser a cena brechtiana, ar instável e fascinante - durante muito tempo ...
perdia-se um pouco - creio lembrar--me que era Estariam os encenadores e os espectadores
esse o caso desta Morte de Danton - na sumptuo- dos anos setenta a precisar assim tanto de sub-
sidade decorativa do conjunto. Mas esta mesma jectividade? Terá Brecht negligenciado o Imagi-
paisagem mental podia atingir igualmente o mais nário ao ponto de só ser possível o seu regresso
profundo rigor e uma espécie de perfeição na pro- através de uma tal explosão? Em 1977, uma
jecção do imaginário de uma sociedade. Foi o jornalista recordava o cenário da legendária Dis-
caso do espaço manipulado inventado por René puta30 de Marivaux, assinada por Chéreau como
Allio para Chatterton29 encenado por ]ourdheuil: um «jardim dos prodígios»31. Tratar-se-á, aqui,
uma cerca de espelhos através da qual as perso- da mesma abundância, do mesmo aumento de
nagens ora apareciam ora desapareciam como
30 Marivaux. A Disputa, traduçáo I versão de Luís Varela, encenação
de Rui Sena, Quarta Parede I Teatro das Beiras, Auditório do Teatro
28 Henrik Ibsen. Peer Gynt (1898), encenaçáo de João Lourenço, das Beiras, 2008. [N.T.]
versão de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos, Teatro Aberto, 31 Colette Godard, Le Monde, 24. I!. 1977. É antes a propósito dos
Fevereiro, 2002.
bastidores. paraíso perdido do espectador burguês, que poderíamos
29 A1fred de Vigny, Chatterton (1835). [N.T.] falar de um «jardim dos prodígios».
volume, do mesmo «efeito Bussang» cujo esplen- que se adivinhavam anteriormente nos basti-
dor nos chegava a partir dos bastidores? Acredi- dores É o caso do cenário de Fanti para Les Pay-
tar nisso seria o mesmo que confundir esta sans de Balzac, espectáculo montado por Sobe!:
nova tendência da cenografia dos anos setenta árvores despidas e reviradas, presas pelas raízes
(tendência que se esgota-~p~~as-~g~ra, ~om--; aos cimbres do teatro, tapete verde com a erva
regresso, influenciado por Brook, por Régy, mas das montras das lojas, trigo metamorfoseado em
também pelo primeiro Vitez e mais longinqua- peluches dourados, tules multiplicados; em re-
mente, por Meyerhold, ou a um «espaço nu» ou sumo, camponês real revirado como uma luva.
à «máquina de jogo>?)com alguns dos sinais de Brecht tinha, de alguma forma, murado os
riqueza exterior - digamos: uma certa ostenta- bastidores. Uma geração: em grande parte for-
ção Cinecittà - que ela pôde, por vezes, exibir. mada a partir das suas ideias, surgiu depois
Efectivamente, nesta estética da «paisagem dele, mas quis que este muro também caísse e
mental», nestes cenários matéristas onde o que aquilo que tinha secado por trás dele - esta
cenário real e o decorativo, a pele e a arquitec- pseudo-natureza, este fantasma de um universo
tura coincidiam, onde reinava uma pletora que que nos pertenceria - fosse igualmente mostra-
não era senão o inverso de uma aridez, os ele- do. Precisamente no seu estado de dissecação.
mentos - terra, areia, água, etc - só eram, em Contudo, se a relacionarmos com uma proble-
princípio, convocados para serem imediatamente mática do passado e da memória, a questão dos
abolidos na sua própria materialidade, conver- bastidores no teatro é infindável. Quanto mais a
tidos em puros valores emblemáticos. A árvore esvaziamos, mais ela se enche. E não continuará a
perde as folhas. A folha seca instantaneamente representação brechtiana na sua forma ideal - ou
nos fogos do teatro. A água gelava e nós recebía- idealizada - da Mãe coragem do Berliner Ensemble,
mos apenas o estado incerto. A areia revelava-se iluminando Barthes, Dort, Althusser em 1954 - a
pacotilha. Toda a ilusão que tinha sido consub- assombrar os bastidores do nosso teatro? Talvez
stancial aotêãtro contemplava-se, agora, num tenha sido isso que Grüber nos quis sugerir no seu
espelhc: com pô.dei di descarnai Espectác-ulos Empédocles32 de outrora. Disposta na parte lateral
parecidos com aquela árvore da Indía, o baniano junto à cena propriamente holderlineana, figurava
- árvore fetiche de Claudel e de Barthes, que tem uma sala de espera, tanto no tratamento do cenário
no ar as suas raízes. Cenários frequentemente como através do jogo dos actores que aí se encon-
talhados em polistireno, produto de síntese, so- travam, de resumo do teatro épico brechtiano ...
prado por excelência: simultaneamente matéria
e pó. Paisagens da Anti-Natureza que não eram 32 Friedrich H61derlin, A Morte de Empédocles, tradução de Maria
Teresa Dias Furtado para o espectáculo do Teatro da Cornucópia, na
senão uma imagem invertida, um espectro, das encenação de Luís Miguel Cintra, Lisboa, 2001. [N.T.]
Que o «possível» seja uma dimensão essencial da
arte do teatro, é algo que parece estar estabelecido
desde as origens: «[... ] não é ofício de poeta,lemos
na Poética, narrar o que aconteceu; é, sim, o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o
que é possível segundo a verosimilhança e a neces-
sidade»lfMuito comentadas em todos os estudos
dramatúrgicos desde Aristóteles, a verosimilhança
e a necessidade têm como única função fIxar a eco-
nomia da categoria do «possível» que, por sua vez,
talvez merecesse ser mais explorada]
Que esta intervenção seja, então, considerada
como um contributo para a reflexão sobre o «pos-
sível». Com uma pequena variação: tratando-se
das dramaturg~a~contempo!ª-neas,_ univers~
lural e relativista por excelência, ver-nos-emos
forçados a introduzir uma inflexão - ou, como
teria dito Brecht, uma «mudança de tom» - e a
passar do possível aos fossíveis..
1 Aristóteles, Poétique. 9, 51 a36, traduction J. Hardy, Les Belles
Lettres, 1962. (Poética, IX, 50., a36, tradução de Eudoro de Sousa,
lNCM, 1992, p. 115) Itálico de Jean-Pierre Sarrazac. [N.T.]Não abor-
daremos aqui as discussões e as posições sobre esta questão do «pos-
sível>,na época clássica. Notemos, apenas, que o «possível>. é muitas
vezes colocado ao mesmo nível do «verdadeiro», nomeadamente por
D'Aubignac, que ainda assim prefere o «verosímih" o que do pomo de
vista não da doutrina clássica mas da leitura rigorosa de Aristóteles
constitui um erro filosófico e dramatúrgico. (JPS)
Se ainda for permitido «sonhar com o que um possível idealista ou normativo, que ele não
está para vir», eu avançaria a hipótese de que está contido neste "armário dos possíveis" de
o teatro é o lugar da invenção dos possíveis; que se ri Bergson. Para nós, como para Bergson,
de que os possíveis representam o horizonte «é o real que faz o possível, e não o possível
utópico no qual se desenham as dramaturgias que se torna real» . Através do jogo teatral dos
dos nossos dias. Escrever e fazer teatro é, em possíveis, tentar-se-á surpreender não tanto um
larga medida, dar espaço aos possíveis. «Quer se mundo fixo, preso a uma aritmética rígida dos
trate de grupos quer de indivíduos, toda a vida possíveis, mas muito mais «a originalidade ins-
humana abre um diálogo contínuo entre aquilo tável das coisas» e o «jacto efectivo da novidade
que podia ser e aquilo que é. Uma mistura ~btil imprevisível»3.fMais do que ao possível, o jogo
de crença, de sabedoria e de imaginação constrói que nós vamos ~tentar evocar está ligado ao vir-
diante dos nossos olhos a imagem constante- tual no sentido que lhe dá Artaud quando fala
mente modificada do possível. É perante esta do teatro como «realidade virtual».4]
imagem que confrontamos os nossos desejos Na sua rejeição do «falso movimento» do
e os nossos receios. É sobre este possível que pensamento conceptual e na maneira como ele
modelamos o nosso comportamento e as nos- associa sempre um certo teatro - teatro «da
sas acções. De certo modo, muitas actividades repetição» vs-teatro da «representação» - ao apa-
humanas, as artes, as ciências, as técnicas, a recimento do «puro movimento», Gilles Deleuze
política, são apenas maneiras peculiares, cada convence-nos a transferir os nossos possíveis
uma com as suas regras próprias, de jogar o jogo para o domínio do virtua1:f«o possível, nota De-
dos possíveis» (François ]acob)2. leuze, não tem realidadeslainda que possa ter
Mas se o teatro - o das dramaturgias contem- uma actualidade); inversamente, o virtual não
porâneas - entra neste jogo dos possíveis «com é actual, mas possui enquanto tal uma reali-
as suas próprias regras», importará precisar que dade)~ Desde logo, o acto teatral não consistirá
isto só pode acontecer se fizermos evoluir e va- tanto em seleccionar possíveis previamente ex-
riar continuamente as ditas regras. Sem preten- istentes, mas muito mais em multiplicar e em
der abrir o debate filosófico sobre esta catego- fazer fugir à sua frente, sob o efeito de uma con-
ria do possível, notemos que .Q.. e.ossív~Lao quaJ stante diferenciação, estes «possíveis virtuais»
nos referimos não é um po~~vel..P"!"é-existente, que ele cria continuamente.

2 François Jacob, Le jeu des possibles, Fayard, 1981. {Ojogo dos pos- 3 Henri Bergson, La Pensée et le mouvant, PUF, coll. «Quadrige»,
siveis, Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, (1981], tradução de 1966, p. 115.
1 orberto Simões de Almeida, José d'Encarnação e Margarida Sérvulo 4 Henri Bergson, ibidem.
Correia, Lisboa, Gradiva, s/d, pp. 8-9) (N.T.] 5 Gilles Deleuze, Le Bergsonnisme, PUF,coll. "Quadrige», 1966, p. 99.
Se ainda for permitido «sonhar com o que um possível idealista ou normativo, que ele não
está para vir», eu avançaria a hipótese de que está contido neste "armário dos possíveis" de
o teatro é o lugar da invenção dos possíveis; que se ri Bergson. Para nós, como para Bergson,
de que os possíveis representam o horizonte «é o real que faz o possível, e não o possível
utópico no qual se desenham as dramaturgias que se torna real» . Através do jogo teatral dos
dos nossos dias. Escrever e fazer teatro é, em possíveis, tentar-se-á surpreender não tanto um
larga medida, dar espaço aos possíveis. «Quer se mundo fixo, preso a uma aritmética rígida dos
trate de grupos quer de indivíduos, toda a vida possíveis, mas muito mais «a originalidade ins-
humana abre um diálogo contínuo entre aquilo tável das coisas» e o «jacto efectivo da novidade
que podia ser e aquilo que é. Uma mistura ~btil imprevisível»3.fMais do que ao possível, o jogo
de crença, de sabedoria e de imaginação constrói que nós vamos ~tentar evocar está ligado ao vir-
diante dos nossos olhos a imagem constante- tual no sentido que lhe dá Artaud quando fala
mente modificada do possível. É perante esta do teatro como «realidade virtual».4]
imagem que confrontamos os nossos desejos Na sua rejeição do «falso movimento» do
e os nossos receios. É sobre este possível que pensamento conceptual e na maneira como ele
modelamos o nosso comportamento e as nos- associa sempre um certo teatro - teatro «da
sas acções. De certo modo, muitas actividades repetição» vs-teatro da «representação» - ao apa-
humanas, as artes, as ciências, as técnicas, a recimento do «puro movimento», Gilles Deleuze
política, são apenas maneiras peculiares, cada convence-nos a transferir os nossos possíveis
uma com as suas regras próprias, de jogar o jogo para o domínio do virtual:l«O possível, nota De-
dos possíveis» (François ]acob)2. leuze, não tem realidades ainda que possa ter
Mas se o teatro - o das dramaturgias contem- uma actualidade); inversamente, o virtual não
porâneas - entra neste jogo dos possíveis «com é actual, mas possui enquanto tal uma reali-
as suas próprias regras», importará precisar que dade>j Desde logo, o acto teatral não consistirá
isto só pode acontecer se fizermos evoluir e va- tanto em seleccionar possíveis previamente ex-
riar continuamente as ditas regras. Sem preten- istentes, mas muito mais em multiplicar e em
der abrir o debate filosófico sobre esta catego- fazer fugir à sua frente, sob o efeito de uma con-
ria do possível, notemos que .Q. p~ossív~L~o.qual stante diferenciação, estes «possíveis virtuais»
nos referimos não é um pos~veiYl~-existente, que ele cria continuamente.

2 François Jacob, Le jeu des possibles, Fayard, 1981. (O jogo dos pos- 3 Henri Bergson, La Pensée et le mouvant, rUF, col!. «Quadrige»,
síveis, Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, [1981], tradução de 1966, p. 115.
Norberto Simões de Almeida, José d'Encarnação e Margarida sérvulo 4 Henri Bergson, ibidem.
Correia, Lisboa, Gradiva, s/d, pp. 8-9) [N.T.] 5 Gilles Deleuze, Le Bergsonnisme, rUF, coll. «Quadrige», 1966, p. 99.
acções permanecem tão dependentes dos tempos
quanto as primeiras, elas têm uma história, nada
Incontestavelmente, é a ideia brechtiana de um menos que uma história que mostra as suas
espectadõractIVõ-=-dtversamente modulada em conexões ao longo de várias épocas>/. A preo-
função dos diferentes tipos de peças: didácti- cupação de mostrar estes cruzamentos e estas al-
cas (Lehrstück ou Lehrnstück), parábolas ou ternativas é tão forte e tão constante em Brecht,
«grandes peças» - que es.!.ána base da impor- que esta se manifesta inclusiva mente nos seus
tante dimensão desta utopia de um teatro dos conselhos aos actores através da técnica do «Não-
possíveis. ErnLe
Prlliêipe de I'Espérance, Ernst antes-pelo-contrário»: «o actor descobre, revela e
Bloch, considerado um marxista utópico,.. colo- sugere, sempre em função do que faz, tudo o mais
ca em Brecht a ambição de pôr em prática um que não faz. Quer dizer, representa de forma que
teatro que «julga os seres, os encontros, os ac- se veja, tanto quanto possível claramente, uma
tos representados, não apenas de acordo com alternativa, de forma que a representação deixe
o que eles são mas também em função daquilo prever outras hipóteses e apenas apresente uma
que eles poderiam ser»6. Na perspectiva de uma de entre as várias possíveis»8.
transformação do mundo, o teatro não se con- Graças a este movimento utópico, o teatro
tenta em interpretar, ele integra, pelo menos na torna-se naquilo a que Bloch chama uma «ins-
fase experimental de laboratório, uma estratégia tituição de verificação pelo exemplo». E com-
de transformação. Os comportamentos sociais preendemos melhor, a nível filosófico e não
(os gestus, diz Brecht) são estudados em cena apenas técnico, a noVidade e a importância do
na sua variabilidade, ou seja, naquilo que eles princípio épico de descontinuidade_ da ~<:ção.
comportam de transição para o socialismo, na- Aquilo que se tenta favorecér na exegese da
quilo que eles contêm já, ainda que em estado de fábula que está no centro da representação é a
promessa, de «realidade nova». paragem em cada um destes momentos-cruza-
Esta anexação do teatro brechtiano, em par- mento, destes momentos de alternativa em que
ticular na fase das parábolas e das peças didácti- surgem os possívei~ e a sua consequente explo-
cas, à Utopia concreta vai, de facto, de encontro ração. A obra teatral, até então sintagmática,
ao pensamento de Brecht: «Para além das acções
dos homens que realmente foram concretizadas, 7 Brecht citado por Philippe Ivernel. in «Grande Pédagogie: En relisant
Brecht», Les Pouvoirs du théâtre, Essais pour Bemard Dort, op. cir.
há outras que poderiam tê-lo sido. Estas últimas ~. 222.
Bertold Brecht, « 1nstructions aux comédiens», in Écrits sur le
théâtre /, op. cito (Tradução portuguesa de Fiama Hasse Pais Brandão,
6 Ernst Bloch. Le Príncipe de I'Espérance. I. Éditions Gallimard. «Bib-
({Anova técnica da arte de representa!», Estudos sobre teatro, Lisboa,
liotheque de Philosophie». 1976.
Portugália editora, s/d, p. 132). [N.T.]
passa a ser paradigmática: já não é «uma cena A grande nostalgia dos homens de teatro dos
para a seguinte», mas «cada cena por si», como é anos sessenta e setenta relativamente às peças
mencionado no famoso «Esquema de Mahagon- didácticas (é o momento em que Heiner Müller
ny»9. E isto para poder, em cada situação, para as erige como «modelo» dos seus próprios textos,
cadagestus, fazer jogar os possíveis. _._- antes de se desencantar e de dizer o seu «Adeus
-Õopossível aristÕtélicõ pãra-os possíveis bre- à peça didáctica») explica-se, naturalmente, pelo
chtianos, a distância é em tudo semelhante à potencial extraordinário que elas integram em ma-
existente entre o modelo orgânico - o «Belo ani- téria de aparecimento inesperado dos possíveis.
mal» -, que preside à tragédia grega, e a arte da Durante estas duas décadas, a corrente utópica,
montagem brechtiana, que põe em causa Rão só sempre vinculada, ainda que de forma crítica, aos
a unidade de acção como também a própria dra- destinos do comunismo, tentou desenvolver, mui-
maticidade do teatro. A aproximação de Brecht a tas vezes ao lado ou para além de Brecht e do
Aristóteles no que diz respeito à defesa da pri- brechtismo, a «dramaturgia dos possíveis».
mazia da fábula é, na verdade, aparente. Para Em França, é sobretudo Armand Gatti quem
assegurar a passagem da felicidade à infelici- tentará - e continua a tentar, num jogo de trocas
dade do herói (ou o inverso), a fábula, segundo e de analogias entre a poesia e a ciência - le-
Aristóteles, tem como base a concatenação das var mais longe esta dramaturgia paradigmática,
acções. Inversamente, o uso brechtiano assenta revolucionando as categorias do tempo e do es-
numa completaftagmentação da fábula-E~1. partir paço e fazendo com que uma peça se desenvol-
de Brecht (e já antes: desde a transição do sécu- va simultaneamente em vários mundos. «Seria
lo XIX, desde Strindberg; talvez mesmo desde o bom, afirma, nos anos sessenta, o autor de La
WoyzecklO de Büchner. ..) o trabalho dramatúrgi- Vie imaginaire de l'éboueur Auguste G., mudar
co já não consiste no encadeamento dos aconteci- as noções de tempo e de espaço no teatro, deven-
mentos até ao seu desenlace1mas muito mais na do estas noções ser consideradas antiquadas do
sua separação, na sua segmentação segundo os . ponto de vista científico e humano (... )fioda a
seu possíveis contraditórios; trata-se de quebrar a senilidade do teatro vem da cena única e da sua
cadeia das acções; de desencadear, de multiplicar, impossibilidade de respirar num mundo que vive
de pluralizar os possíveis da fá.!mla. em várias dimensões e em diferentes idades ao
mesmo tempo» Bernard Dort, num ensaio que
9 Bertolt Brecht. «Notas sobre Mahagonny (1930»>. Monique Borie. surge justamente no pós-68, não deixa de sau-
Martine de Rougemont. Jacques Sherer. Estética teatral, textos de dar esta «forma de ultrapassar o teatro que Gatti
Platão a Brecht. tradução de Helena Barbas, Lisboa, fundação Calous-
te Gulbenkian. 1996. p. 470. [N.T.] tenta pôr em prática no próprio espaço teatral,
10 Ver nota· nO20 de «A Invenção da Teatralidade". [N.T.] com a colaboração dos espectadores. Trata-se de
passa a ser paradígmática: já não é «uma cena A grande nostalgia dos homens de teatro dos
para a seguinte», mas «cada cena por si», como é anos sessenta e setenta relativamente às peças
mencionado no famoso «Esquema de Mahagon- didácticas (é o momento em que Heiner MüIler
ny»9. E !sto para poder, em cada situação, para as erige como «modelo» dos seus próprios textos,
cadagestus, fazer jogar os possíveis.-- antes de se desencantar e de dizer o seu «Adeus
-Do possível arlstotéiico pâra o-spossíveis bre- à peça didáctica») explica-se, naturalmente, pelo
chtianos, a distância é em tudo semelhante à potencial extraordinário que elas integram em ma-
existente entre o modelo orgânico - o «Belo ani- téria de aparecimento inesperado dos possíveis.
mal» -, que preside à tragédia grega, e a arte da Durante estas duas décadas, a corrente utópica,
montagem brechtiana, que põe em causa 'lão só sempre vinculada, ainda que de forma crítica, aos
a unidade de acção como também a própria dra- destinos do comunismo, tentou desenvolver, mui-
maticidade do teatro. A aproximação de Brecht a tas vezes ao lado ou para além de Brecht e do
Aristóteles no que diz respeito à defesa da pri- brechtismo, a «dramaturgia dos possíveis».
mazia da fábula é, na verdade, aparente. Para Em França, é sobretudo Armand Gatti quem
assegurar a passagem da felicidade à infelici- tentará - e continua a tentar, num jogo de trocas
dade do herói (ou o inverso), a fábula, segundo e de analogias entre a poesia e a ciência - le-
Aristóteles, tem como base a concatenação das var mais longe esta dramaturgia paradigmática,
acções. Inversamente, o uso brechtiano assenta revolucionando as categorias do tempo e do es-
numa completaftagmentação da fábula.{?- partir paço e fazendo com que uma peça se desenvol-
de Brecht (e já antes: desde a transição do sécu- va simultaneamente em vários mundos. «Seria
lo XIX, desde Strindberg; talvez mesmo desde o bom, afirma, nos anos sessenta, o autor de La
Woyzeck 10 de Büchner. ..) o trabalho dramatúrgi- Vie imaginaire de l'éboueur Auguste G., mudar
co já não consiste no encadeamento dos aconteci- as noções de tempo e de espaço no teatro, deven-
mentos até ao seu desenlace)mas muito mais na do estas noções ser consideradas antiquadas do
sua separação, na sua segmentação segundo os . ponto de vista científico e humano (... )fioda a
seu possíveis contraditórios; trata-se de quebrar a senilidade do teatro vem da cena única e da sua
cadeia das acções; de desencadear, de multiplicar, impossibilidade de respirar num mundo que vive
de pluralizar os possíveis da fápula. em várias dimensões e em diferentes idades ao
mesmo tempo» Bernard Dort, num ensaio que
9 Bertolt Brecht, «Notas sobre Mahagonny (1930)>>,Monique Borie, surge justamente no pós-68, não deixa de sau-
Martine de Rougemont, Jacques Sherer, Estética teatral, textos de dar esta «forma de ultrapassar o teatro que Gatti
Platão a Brecht, tradução de Helena Barbas, Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian, 1996, p. 470. [N.T.] tenta pôr em prática no próprio espaço teatral,
10 Ver nota· nO20 de «A Invenção da Teatralidade». [N.T.] com a colaboração dos espectadores. Trata-se de
abrir o real a todos os possíveis, no espaço e no pia de uma dramaturgia dos possíveis? E não
tempo, de conjugar a experiência individual com poderíamos imaginar que uma tal dramaturgia,
o combate colectivo, e de fazer o público assumir em vez de ser determinada por uma ideologia e
estes possíveis e este combate» 11. por um horizonte teleológico fixados a priori, de-
Que podemos pensar, hoje, deste entusiasmo penda apenas da necessidade de abrir os olhos e
utópico quando o horizonte do pensamento que de se emancipar de toda e qualquer crença? Por
o favoreceu parece completamente obscurecido? outras palavras, poderemos imaginar, depois de
A dialéctica de Bloch da Utopia concreta, bem Brecht, uma nova ideia de um teatro crítico mas
como a do teatro didáctico brechtiano estavam que proviria, agora, de um cepticismo generaliza-
demasiado ligadas a uma espécie de messianis- do e praticaria a «suspensão do julgamento»?
mo ou de profecia do Novo para que não fizessem
nascer em nós um sentimento de cepticismo. Ac-
tualmente, é o Novo que parece estar ultrapassa-
do. Os grandes sistemas, as grandes narrativas, Num artigo publicado nos Cahiers de Ia Comédie-
essa História em marcha na qual se indexava -Française intitulado «NoFuture, utopie et allégo-
o teatro de Brecht, parecem ter-se dissolvido na rie», François Regnault empenha-se em refutar a
pós-história e na pós-modernidade. No entanto, seguinte afirmação de Heiner Müller: «O teatro,
a pós-modernidade parece estar cansada de si estabelecido na fractura entre o tempo do sujeito
própria e tocada pela obsolescência. A utopia do e o tempo da história, é uma das últimas mora-
passado volta à superfície de forma lancinante ... das da utopia»12. Regnault objecta que o teatro é
Ao constatar insistentemente a nossa dupla in- «alegoria» e de forma alguma utopia, na medida
capacidade para problematizar o fracasso e para em que a cena se define como um puro espaço
liquidar completamente a nostalgia da utopia intemporal.Reticente, enquanto freudiano, a
marxista-brechtiana, a tentação faz o percurso esta projecção num futuro de ilusão que opera
da revisitação desta utopia para dela salvar al- o pensamento utópico, Regnault situa o teatro
guma coisa. - e certamente terá razão no que diz respeito à
Quando Edward Bond declara «O meu papel dramaturgia clássica - fora do alcance de toda
de escritor (... ) é criar estruturas teatrais que a dialéctica temporal. É, desde logo, impossível
permitam às pessoas refazer a sua vida de forma que o espaço se apresente como o lugar de uma
múltipla», não estará ele a reabrir o teatro à uto-
12 François Regnault, Cahiers de Ia Comédie-Française, 1, p.a.L., au-
tomne 1991. A ideia de uma unidade de lugar «no sentido lato» é de-
11 Bernard Dor!, Théâtre réel, op.cit, p. 224. A citação de Gatti foi senvolvida num texto mais recente de Regnault : L'une des trois uni-
extraída do artigo de Dort. tés, Les Conférences du Divan, Éditions Isele, Paris-Tübingen, 1999.
qualquer «fractura» entre duas temporalidades. designado, num texto de Michel Foucault explici-
Deve, pelo contrário, manter-se unido, ainda que tamente a propósito do teatro, como um «espaço
seja «num sentido lato». diferente». E esta singularidade prende-se pre-
Não posso adivinhar qual teria sido a resposta cisamente com o teatro porque ele faz «suceder
de Heiner MüIler a François Regnault. Penso, no no rectângulo do palco toda uma série de lugares
entanto, que ele teria podido retorquir, tal como estranhos uns relativamente aos outroS»13. A or-
muitos autores da nossa época (nomeadamente dem temporal da «sucessão» evocad~~r'~ou-
Beckett e Duras), que o seu teatro era muito am- cault toca e fracciona a ordem espacial do pre-
plamente uma arte do tempo, e por isso mesmo sente e da presença teatrais. Desde logo, já não
susceptível de fragmentar, ou mesmo de drac- se trata de «alegoria», no sentido de Regnault,
turar» o espaço. fQuando Regnault convoca a nem verdadeiramente de utopia no sentido es-
«oposição feita pór Aristóteles entre a epopeia, trito da palavra. Foucault propõe: I~e~J:.Q1.Qpiél;;t
na qual o tempo é fundamental, e a tragédia, A heterotopia põe em prática «uma espécie de
que relacionamos com um determinado lugar», contestação simultaneamente mítica e real do
insistindo na ideia de que «há espaço a partir espaço onde vivemos», não tanto através da pro-
do momento em que deixa de haver recitante e posta de um contra-modelo único, como a utopia,
passa a haver personagens», parece-me evidente mas compondo espaços híbridos «completamente
que numerosos autores contemporâneos pode- distintos de todos os lugares que reflectem e de
riam fazer notar que a personagem do seu teatro que falam». Designando o teatro como um desses
se tornou recitante - e, antes de mais, especta- lugares heterotópicos por excelência - uma parte
dora - de si mesma: da sua própria existência, de utopia ifectívamente inscrita na sociedade -,
da existência da sua comunidad~ Não podere- Foucault sublinha o carácter moderno desta uto-
mos ver aqui o indício desta intensa «coraliza- pia, ou seja, o novo domínio, no teatro, do tempo-
ção» que afecta o teatro contemporâneo? ral sobre o espacial: «As heterotopias estão liga-
A polémica de Regnault - que visa certamente das, na maior parte dos casos, precisa o autor, a
e propositadamente um dos maiores inventores cortes no tempo, o que quer dizer que elas abrem
de teatro pós-épico - tem o mérito de revelar o para aquilo a que poderíamos chamar, por pura
«escândalo» de um espaço teatral fragmentado, simetria, heterocro~ã~~ a heterotopia começa a
descosido, estranho a toda e qualquer relação funcionar plenamente quando os homens se en-
dramática intemporal (quer dizer, ao presente contram numa espécie de ruptura absoluta com
puro, ao presente absoluto). Ora, este espaço. o seu tempo tradicional». É exactamente o que
lacerado., e~q~artej~do en1!~_d~ve!:s_a~t_~m.poral!- 13 Michel Foucauit, «Oes Espaces autres», in Dits et écrits, IV. Éditions
dades (MüIler cita a da História e a do sujeito), é Gallimard, «Bibliotheque des Sciences Humaines, 1994, p. 755·759.
acontece com o espectador das dramaturgias
contemporâneas mais inovadoras do século XX,
desde o Sonho de Stridberg até Um Fragmento de Desactivar a «máquina infernal» significa, tal
Monólogo 14 de Beckett. como o sugerimos anteriormente, permitir o
O espaço unitário da tragédia era o do esgota- acesso a uma dramaturgia não do «antes» mas
mento do possível, até à aporia, até à catástrofe ... do pós-catástrqfe. As ruínas e mesmo a deserti-
O espaço heterotópico do drama moderno e con- ficação, a vitrificação do universo - são necessi-
temporâneo, que começa com uma catástrofe já dades prévias para que Edward Bond nos possa
concluída, é, bem pelo contrário, o da (re)generação revelar, na Trilogia da Guerra15, em primeiro
dos possívei5:\ Passamos desta Máquina iTJfemal lugar o poder de destruição total contido na paz
- convocada üina última vez por Cocteau - que tri- capitalista-liberal, depois e sobretudo as frágeis
tura o humano e o conduz inelutavelmente à infe- perspectivas, tal como nos são apresentadas, de
licidade e ao túmulo (<<máquinasconstruídas por reconstrução de uma humanidade verdadeira.
deuses infernais para a destruição matemática de Actualizando, sob a forma do imaginário, a ca-
um mortal», diz o prólogo da peça), para um espaço tástrofe potencial, o teatro concentra a atenção
onde o homem volta a sair do seu túmulo, deixan- do público nas virtualidades de voltar a ter nas
do a morte definitivamente para trás, regressando, mãos os seus próprios destinos.
de etapa em etapa - tal como acontece literalmente Esta reviravolta é a grande conversão do
em La Grande-route, última peça de Strindberg - à teatro moderno e contemporâneo, tal como a
multiplicidade de lugares da sua vida. A máquina programou, desde 1898, Le Chemin de Damas,
continua a pôr em movimento o destino humano de Strindberg. A representação teatral já não
mas, a partir de agora, ela funciona ao contrário. consiste - de Strindberg até Beckett e Bond - no
Como uma agonia que seria ao mesmo tempo desenvolvimento da fábula de um drama na vida
um reviver (Beckett em todos os seus últimos - uma passagem da felicidade à infelicidade, ou
textos). Ou como uma cena doméstica de separa- o contrário - mas em percorrer o tempo do drama
ção que permitiria reencontrar o tempo do amor da vida. Uma vez mais: «em refazer a sua vida
(Duras, La Musica). Máquina utópica, se quiser- de múltiplas formas». E~e hoje existe uma crise
mos. Máquina oferecida aos espectadores para da fábula, esta crise, forçosamente positiva, não
«refazerem as suas vidas de múltiplas formas».
15 Edward Bond, Trilogia da Guerra Vermelhos, Negros e Ignoran-
tes, As pessoas das latas de conserva, Grande Paz), tradução de Luís
14 Samuel Beckett. Um Fragmento de Monólogo, tradução de Paulo Miguel Cintra, Luís Lima Barreto, José Manuel Mendes, com a colabo-
Eduardo Carvalho para o espectáculo «Todos os que falam (Um Frag- ração de Robert Jones, para o espectáculo do Teatro da Cornucópia,
mento de Monólogo. Baloiço. Não eu»>,encenação de Nuno Carinhas, com encenação de Luís Miguel Cintra, Lisboa, 1987. [N.T.]
Assédio, Teatro Carlos Alberto, Porto, 2006.
se deve, contrariamente ao que se pode ler por dramático está amplamente contido no seu
aí, a uma espécie de dispersão ou de decom- próprio comerúáriõ;-avoz dó questionamento
posição dos acontecimentos representados, mas e
sobrepõe-se 'cobre-a da ficção. Neste sentido,
a esta virtualização da fábula e do drama que, Seis personagens à procura de autor17 é tam-
vistos ao contrário, no sentido inverso da vida, bém, juntamente com Le Chemin de Damas, um
são recusados das mais variadas formasJNeste texto inaugural desta conversão a uma drama-
ponto, Bond e Brecht têm uma posição comum: turgia do possível: a «recusa» prévia do autor
o objecto da representação não é tanto a fábula implica que as personagens, reduzidas a uma
mas o seu comentário. anarquia que acabará por se tornar insuportá-
E é assim que as personagens - prefiJ;p cha- vel, se vejam obrigadas, contradizendo-se umas
mar-lhes<lim~~gins\? - de uma parte con- às outras, a ~~IJlicare a comentar retrospectiva-
siderável-dõ nosso teatro se transformam em mente o «seu» drama, em vez de muito simples-
recitante~. Não apenas pela razão evocada an- me~vrverem. A representação já não é imi-
teriormente de que «eles habitam o tempo» mais tação mas sim «análise» de uma vida, de toda a
do que o espaço, mas porque, encostados à sua vida ... Daqui a assimilar uma vez mais o teatro
própria morte, produzem solilóquios contínuos ao processo vai um passo. Ora, é precisamente
sobre os percursos erráticos, sobre os cruzamen- esse passo que nós recusamos dar.
tos, as alternativas antigas, enfim, sobre os pos- Produzir possíveis infinitamente: este poder
síveis das suas próprias vidas, percorrendo-os da máquina utópica é antinómico, pensamos
continuamente. Os dispositivos podem variar, nós, com o facto de lançar acusações e de de-
mas o de A Últimafita de Krapp16 resume-os cretar culpabilidades. Já não se trata de isolar e
bem: o velho Krapp passa em contínuo velhas de estigmatizar - ou de sacralizar, que é exacta-
gravações de si próprio: «Acabei de ouvir este mente o mesmo - um acto, um comportamento
pobre pequeno cretino por quem eu me tomava (des)humano, quer se trate de um erro indivi-
há trinta anos, difícil imaginar que eu possa ter dual ou de um crime colectivo. Trata-se de o de-
sido estúpido a este ponto». ~_~cont~im~nt_~ nunciar (<<fazersaber») fazendo-o variar perante
os espectadores. Trata-se de se dedicar a uma
16 La Derniere Bande, ou Krapp's Last Tape. na versão inglesa, de dramaturgia no condicional que, em vez de du-
Samuel Beckett, foi diversamente traduzido em português: A última
gravação (Luís de Lima, 1961; Rui Guedes da Silva, Lisboa, Arcádia,
° °
plicar facto, acontecimento, abre espectro °
1964; Luís Francisco Rebello para Mário Viegas). A última bobina de das suas possíveis transformações. E esta dra-
Krapp (ainda Luís Francisco Rebello para Mário Viegas, 1986). A últi-
ma banda de Krapp (Mário Viegas, 1993). Armando Nascimento Rosa 17 Luigi Pirandello, Seis personagens à procura de autor, tradução
opta por A últimajita de Krapp (Falar no Deserto: Estética e Psicolo- de Mário Feliciano e Fernando José Oliveira, Livrinhos de Teatro - Os
gia em Samuel Beckett, Lisboa, Edições Cosmos, 2000, p. 48). [N.T.] Clássicos, Lisboa, Artistas Unidos I Livros Cotovia, 2009. [N.T.]
maturgia não é o resultado de um acrescento, o do ponto de vista. O sujeito encontra-se simul-
de um voluntarismo, de um controlo ideológico taneamente dentro e fora, acordado e a sonhar. E,
da representação; ela inscreve-se naturalmente, como em Strindberg, nessas «peças oníricas» que
desde as origens, na própria língua da peça, no são formidáveis «jogos de possíveis», o ponto de
próprio génio da língua: «Os nossos conjuntivos, vista, se existir, torna-se interior. «Para [o sonha-
os nossos condicionais, os nossos optativos, diz dor], nota Strindberg no prefácio ao Sonho, não
George Steiner, os «se» das nossas gramáticas há segredos, não há inconsequências, não há es-
tornam possível uma contrafacção indispensá- crúpulos, não há leis. Ele não julga, não absolve,
vel, profundamente humana. Permitem-nos alte- ele relata apenas ... ».
rar, remodelar, imaginar, anular as imposições De Strindberg a Beckett e em muitos outros
do nosso universo biológico-empírico».18 casos, no teatro, o homem encontra-se con-
O devir do teatro contemporâneo, tal como eu frontado, do interior, com uma visão panorâmi-
tento aqui esboçá-lo, iria no sentido desta «con- ca da sua própria vida: «O Desconhecido [em Le
trafacção indispensável» defendida por Steiner. O Chemin de Damas] - Vi desenrolar-se como num
filósofo e crítico prossegue o seu propósito falan- panorama toda a minha vida passada, desde a
do de «sonhos acordados». Mais do que qualquer infância, através da juventude, até agora ... mal
outra arte, o teatro está em harmonia com esta acabava, este espectáculci começava outra vez e
ideia de sonho acordado. Ainda que deva esco- durante todo esse tempo eu ouvia o barulho do
lher entre uma concepção apolínea deste «sonho moinho ... » E é a terrível repetição da vida que
acordado», da qual se aproxima o pensamento no teatro se metamorfoseia em variação - em
de Ernst Bloch, e uma concepção mais dionisíaca abertura do jogo dos possíveis. Sem nunca se
como defendiam Nietzsche e, mais perto de nós, referir a Strindberg (mas reenvia-nos sempre
Deleuze. Nesta outra concepção, «para além do para Kafka, que gostava de se «aconchegar con-
bem e do mal», o julgamento fica definitivamente tra [o] peito» de Strindberg), Deleuze percebeu
fora do jogo - fora do jogo dos possíveis. O que, muito bem a particularidade deste «sonho de in-
então, se torna caduco relativamente a Brecht é a sónia» que corresponde a uma «dramaturgia dos
noção de ponto de vista, esse ponto de vista exte- possíveis» liberta de qualquer espírito de julga-
rior e mítico - proletário ou plebeu - que o fabulis- mento: «Já não é um sonho que se tem durante
ta deve ter interiorizado. O sonho dionisíaco que o sono, mas um sonho de insónia: "mando [para
se aproxima da embriaguez ou do sonambulismo o campo] o meu corpo vestido ... durante esse
kleistiano, é propício ao desdobramento incluindo tempo, eu estou deitado na minha cama sob
um cobertor castanho ... » o insonioso pode ficar
imóvel, enquanto que o sonho assumiu para si
o movimento real. Esse sono sem sonho onde,
no entanto, não se dorme, essa insónia que leva
o sonho para tão longe quanto a sua duração, é
esse o estado de embriaguez dionisíaca, a sua
maneira de escapar ao julgamento». 19
O teatro com que sonhamos aqui seria, as-
sim, uma máquina insoniosa. Situar-se-ia para
além do julgamento, no jogo dos possíveis. Não
puniria nem consolaria. Teria a crueldade de um
combate permanente contra si mesmo. Ao espec-
tador, ofereceria apenas reparação. Entenda-se:
um lugar e um tempo para retomar forças.

19 Gilles Deleuze. «Pour en finir avec le jugement". in Critique et


ciinique, Éditions de Minuit, coll. «Paradoxe, 1993, p.163.

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