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A IHUfHÇAO DA TfATRALlDADf
BRECHT EM PROCESSO
F
O JOGO DOS POSSÍUElS
A INVENÇÃO OA TEATRALlOAOE
CRíTICA DDTEATRD
.' contexto político e económico actual, as pela arte crítica brechtiana, até alguns dos mais
uesrões colocadas por Jean-Pierre Sarrazac e recentes contributos críticos de autores e de en-
el quentemente revistadas nestes três ensaios, cenadores contemporâneos (de Samuel Beckett
parecem-nos de uma grande actualidade. A au- a Edward Bond), Jean-Pierre Sarrazac questiona
sência de soluções para as guerras e conflitos conceitos fundamentais como «teatralidade»,
recentes, o agravamento da precariedade, das «comentário», «representação emancipada» ou
injustiças sociais que abalaram, de forma inêspe- «teatro épico», traçando as directrizes de um
rada, a estabilidade das mais diversas sociedades teatro que, ao suscitar um espectador activo,
contemporâneas, abrem espaço ao regresso de permite renovar a relação entre a percepção e a
uma palavra política que, não sendo ideológica, experiência vivida.
reafirma a necessidade de testemunhar, de dar a No entanto, e como sublinha o autor de Cri-
conhecer nas suas múltiplas variações o mundo tique du théâtre, «para que o teatro reencontre o
que nos rodeia. Lúcidos quanto aos limites do seu lugar na sociedade, não basta decretar o seu
poder de intervenção do seu gesto artístico, mas "dever". Nem colocar, politicamente, a questão
investindo e acreditando em novas formas de per- certa. Nem mesmo querer relegitimar [00'] o es-
cepção e de utilização dos signos, os artistas con- pectador autêntico»8.[Importante será resituar
temporâneos afirmam-se, cada vez mais, como os uma nova ideia de teatro numa poética plural
novos autores desse teatro que, nas palavras de onde novas formas dramáticas e de represen-
Roland Barthes, tem por vocação assegurar um tação estimulem o envolvimento recíproco de
«comentário» do mundo. artistas e de espectadores num teatro cada vez
Antecipando o regresso de um teatro crítico, mais necessário9, num teatro que se reinventa
os ensaios incluídos neste volume propõem-nos no permanentejogo dos possíveis]
um percurso através de várias personalidades
Bernard Dort, Roland Barthes ... ), de peças e de
autores de teatro (August Strindberg, Luigi Pi-
randello, Arthur Adamov, Bertolt Brecht ... ), de
espectáculos e de encenadores (Jean Vilar, Gior-
gio Strehler, Antoine Vitez, Patrice Chéreauoo.) 8 jean-Pierre Sarrazac. Critique du théâtre, de l'utopie au désen-
chantement, BeIfart, Círcé, 2000, p. 25.
e ensaios (Brecht & Cie, de John Fuegi. 00)' de 9 Denis Guénaun, Le théâtre est-i/ nécessaire?, Belfort, Círcé, 1997.
e\i ras (Théâtre populaire), que nos permite p.148.
A INVEN[ÃO
, DA TEATRALlDADE
. Quase contra sua vontade, Hegel confirma a ex- o desequilíbrio dinâmico - é de tal modo im-
istência de uma parte criativa - e não ape-nas :' rtante em Dort que ele se esforça por resolver
interpretativa ou ilustrativa - do actor que, contradições do autor de O Teatro e o seu du-
através da mímica, do jogo mudo, vem completar ~ : «Quando Antonin Artaud citava woyzeck21
as lacunas de um texto em si mesmo inacabado. ~o conjunto das primeiras obras a serem inscri-
«Le texte et Ia scene ... » faz referência a essas :as no reportório do teatro da Crueldade, entrava
páginas da Estética onde, a propósito do drama "'ill contradição com a sua vontade de acabar
como género novo, se afirma que «o poeta aban- - fi as obras-primas do passado, mas pressen-
dona inclusivamente aos gestos o que os antigos '.a também a nova aliança entre o texto e a cena
exprimiam apenas com palavras». Para além da e poderia caracterizar perfeitamente o teatro
alusão a Hegel, Dort poderia ainda remeter-nos os nossos dias - para além da pseudo-oposição
para a função criativa - muitas vezes em con- entre texto e encenação, entre um teatro de texto
tradição com as palavras - da «pantomima» em e um teatro teatral». Por muito ligado que esteja
Diderot e Lessing. - epifania da representação - ao momento em
Masrse por um lado Dort denuncia o textocen- ue se manifesta a teatralidade - Dort continua
trismo para afirmar a autonomia da represen- -tento à problemática do texto teatral, em par-
tação, por outro recusa categoricamente ceder ticular do texto contemporâneo, e tem em conta
ao mito «moderno» de uma teatralidade incom- as resistências deste último à mimesis. Que o
patível com a existência do text01Ao paradoxo
20 Bernard Dort, «Le texte et Ia scêne: une nouvelle alliance», in Le _I Georg Büchner. Woyzeck, tradução de João Barrento. encenação
Speaateuren dialogue, op.cit. c.e Nuno Cardoso. Teatro
Nacional São João, Porto, 2005. [N.T.]
texto possa recusar entrar completamente no ~ moderna) para aquilo que[?ort nos diz ~obre
jogo da representação - porque, como escreveu «maiores textos de teatro»: «no acto da leitura,
Duras, «é quando um texto é representado que -=arecem-nos ser os mais problemáticos», «com-
estamos mais distanciados do seu autor» - não _ exos ao ponto de nos parecerem incompletos»,
parece a Dort uma aberração. Na verdade, Dort, . lumosos no limite da desordem» porque «as-
contrariamente a Barthes, não é o homem da :: mem deliberadamente a sua própria incomple-
aporia, mas o das passagens. Em «Le texte et Ia ..., e» e «reivindicam a cena»]
scene: une nouvelle alliance» ou ainda um pou- - Por outro lado, uma proposta que, apesar
co mais tarde em La Représentation émancipée, ~e tomar o partido da «emancipação» da repre-
Dort tenta traçar os contornos - seUlpre muito -"mação (a expressão vem, creio, de Evreinoft),
«razoáveis» - de uma nova utopia (pós-brechtia- ão deixa de ser vaga, incerta e aventureira ... É
na) da representação. Mas, sobretudo, ao propor - sim que Alain Badiou, nas suas «Dix theses
uma <<fiavaaliança», Dort põe-nos de sobreaviso ~ r le théâtre»22, me parece esvaziar a questão
contra os dois perigos que ameaçam as relações texto, reduzindo-o a uma essência eterna à
entre o texto e a cena: aI só a representação poderia trazer instan-
- Por um lado, esta atitude francamente reac- :aneidade, imediação, numa palavra: a vida.
cionária, mas que continua a ganhar terreno, e rt estaria certamente de acordo com Badiou
que consiste na restauração de um teatro literário, ando este afirma que[<a ideia-teatro está no
o «teatro de texto». Não afirmava Jacques Julliard :exto ou no poema», incompleta, e que a en-
(mas poderia ser também Alain Finkielkraut), há cenação não é «interpretação» mas «comple-
alguns anos, em algumas das suas crónicas para entaçãoj Mas imagino que ele acharia menos
o Nouvel ObsClvateur, que «enquanto o teatro nvincente a apresentação do teatro como uma
não voltasse a ser o lugar onde se faz ouvir a disposição de componentes materiais e ideais
palavra sagrada do poeta; enquanto os encena- extremamente díspares cuja única existência é
dores actuais, esses tiranetes mal educados, não representação». Muito simplesmente, Badiou
renunciassem a evidenciar a sua esperteza em quece-se, nas suas teses, de que o texto tem
detrimento do autor, o contrato dramático, essa brigatoriamente no seio da representação uma
aventura a três que une o autor, os intérpretes e funcão e um estatuto distintos dos das outras
os espectadores à volta de um texto, encontrar- ~ponentes ... ~m primeiro lugar, por df/cito: o
-se-ia difamada, desonrada, destruída»? ... Con-
tentemo-nos em remeter Julliard e os seus pre- 22 Alain Badiou. «Dix theses sur le théâtre». in Comédie-Française,
Les Cahiers, nO 15, P.O.L., printemps 1995; Anthitheses» no nO 17,
conceitos (que, diga-se de passagem, parecem ter alllo.mne 1995 da mesma publicação. Ver ainda «Dix répliques» (à
sido proferidos antes do aparecimento da encena- 3adiou) por Bruno Tackels neste mesmo número.
texto é o único elemento que deixa de existir por é testemunha. Ao encenador compete descobrir
si próprio - enquanto texto escrito - no acto da e manifestar este gestus, este schéma histórico
representação; ele transforma-se, metamorfoseia- ~articular que está na base de qualquer espec-
-se, podendo mesmo anular-se durante o tempo :áculo: tem, para tal, à sua disposição o con-
em que se manifesta ... Depois, por excesso: o - nto das técnicas teatrais: o jogo do actor, a di-
texto é invasivo de uma forma muito diferente de :ecção, o movimento, o cenário, as luzes (... ) os
todo e qualquer outro elemento presente em cena -gurinos»23. A vantagem do gestus - conside-
- através dos corpos, das vozes, do espaço, e mes- :ado hoje obsoleto tal como todo o teatro «da
mo no espírito dos espectadores que podem dele :abula» - relativamente à «ideia-teatro», é ser
ter tido conhecimento antes da representação] anscendente relativamente à totalidade das
utras componentes da representação e estar,
simultaneamente indexado no texto. O gestus
existe como globalidade, como ponto de vista
aeral sobre o texto, mas também como unidade
Da proposta de Adamov que subscreviam Dort e no sentido semiológico) a partir da qual o texto
Barthes - «o teatro tal como eu o concebo está . ode ser lido, recortado, comentado ...
inteiramente e absolutamente ligado à represen- Fazendo o luto do brechtianismo, Dort esfor-
tação» - deveremos resvalar até à proposição ~ou-se - a fim de preservar um certo «jogo» ou
de Badiou que defende que a teatralidade (ou m certo «uso» entre o teatro e o mundo real -
a «ideia-teatro») existe apenas «na representa- ar elaborar esta utopia-mediadora, mais técnica
ção»? ... O inconveniente da «ideia-teatro» de Ba- o que política, que eu evocava anteriormente.
diou é que, não tendo em conta a articulação É assim que ele acaba por escolher ultrapassar
- ou, como diria Dort, o «jogo» - entre as dife- a metáfora brechtiana da revolução coperniciana
rentes componentes cénicas, acaba por agravar o teatro para anunciar uma revolução propria-
a ambiguidade já revelada por Barthes. De certa mente einsteiniana ... Para tornar esta esperança
forma, a «ideia-teatro» vem ocupar o lugar dei- palpável, Dort evoca um modelo de representa-
xado vazio pelo gestus brechtiano, pedra angu- ção ideal: «A revolução coperniciana do início do
lar da concepção de um teatro crítico anterior- século transformou-se numa revolução einsteini-
mente elaborada por Dort e por Barthes: «Toda anafo desmoronamento da primazia entre o tex-
a obra dramática pode e deve reduzir-se ao que ro e ã cena deu lugar a uma relativização gene-
Brecht chama o gestus social, a expressão exte- ralizada dos factores da representação teatral
rior, material, dos conflitos de sociedade da qual 23 Roland Barthes, «Les Maladies du costume de théâtre», Théâtre
populaire,nO12, mars-avril 1955.
uns relativamente aos outros. Este facto faz-nos Para Dort, «jogo» é sempre sinónimo de luta e
renunciar à ideia de uma unidade orgânica, fixa- e combate. Mas, ao mesmo tempo, este volun-
da antecipadamente, e mesmo à ideia de uma es- rarismo de Dort-teórico encontra-se atenuado, cor-
sência do feito teatral (a misteriosa teatralidade), rigido pelo hedonismo que é a marca de Dort-espec-
e a concebê-Io sob uma espécie de polifonia si- rador. Ora, o «prazer do teatro» assume sempre,
gnificante, aberta ao espectador»2~ neste espectador de dimensão romanesca, uma
A «representação emancipada», no sentido or nostálgica, quase melancólica. Dever-se-á ao
dortiano, tem seguramente muito que ver com a facto de a sua actividade de crítico estar para
«polifonia» barthesiana; no entanto, ao recusar sempre ancorada nos combates assumidos por
uma teatralidade «ecuménica», afasta-se desta Barthes no tempo de Théâtre populaire? Ou será
mesma ideia. Dort preconiza, para as diferentes porque nenhum espectáculo, depois de Mãe cora-
componentes da representação, um tipo de rela- gem na encenação de Brecht ou de A Vida de
ção violentamente contraditória que Brecht pre- Galileu, na proposta de Strehler, pode responder
via inicialmente na sua teoria das «artes-irmãs» (Otalmente à espera suscitada por estes dois? Ou
(<<Schwesterkünste»), e da qual, segundo Dort, o ainda, tratar-se-á de um sentimento mais geral
autor alemão se teria mais ou menos esquecido: e mais misterioso, ligado directamente ao apare-
«No auge do privilégio e das suas obrigações de imento da teatralidade: o sentimento da perda
autor e de encenado r, e também de animador do teatro para o próprio teatro? Seja como for,
do Berliner Ensemble, [Brecht] sacrificou, muito para Bernard Dort a representação teatral apre-
provavelmente, a independência destas «artes- senta-se como o lugar da ausência por excelên-
-irmãs» a favor de uma concepção dramatúrgica cia, a experiência por defeito de um espaço e de
unitária das obras que mostrava. Mas a sua lição um tempo para sempre fora do nosso alcance.
vai mais longe do que a sua prática. Ela desenha Como se, actualmente, a paixão do espectador
a imagem de uma representação não unificada se pudesse exprimir unicamente num quadro de
cujos elementos distintos entrariam mais facil- desencantamento permanente. Desilusão que o
mente em colaboração, ou mesmo em rivalidade, artista (ele próprio espectador desenganado rela-
do que propriamente num processo em que, apa- tivamente ao seu próprio esforço de fazer teatro)
gando as diferenças existentes, contribuiriam partilharia com o público. Em eco contraditório
para a edificação de um sentido comum»25. ao «Não vou mais ao teatro» de Barthes, Dort
previne-nos mezzo voze que o teatro está cons-
24 Bernard Dort. La Représentation émancipée. Actes-Sud. coll. «Le tantemente a abandonar-nos, a desertar e a de-
[emps du théâtre». Arles. 1988. sertar-nos. De qualquer forma, é sob o signo do
25lbidem.
deslumbramento nostálgico que Dort terá visto
e vivido o Na Estrada Rea[26 de Grüber: «Uma
paragem no movimento infinito graças ao qual
Grüber abandona permanentemente o palco (... )
Na Estrada Real fala-nos da possibilidade de
uma última experiência de felicidade»27.
Prosseguir a tarefa (beckettiana) de acabar
(outra vez) com o teatro, sonhando sempre com
a possibilidade de começar tudo de novo, talvez
seja este o último paradoxo da teatralidade.
Porque o teatro só se realiza verdad~iramente
fora de si mesmo, quando consegue desprehder-
-se de si mesmo ... Fazer, sempre, no teatro, o
vazio do teatro.
2 François Jacob, Le jeu des possibles, Fayard, 1981. {Ojogo dos pos- 3 Henri Bergson, La Pensée et le mouvant, PUF, coll. «Quadrige»,
siveis, Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, (1981], tradução de 1966, p. 115.
1 orberto Simões de Almeida, José d'Encarnação e Margarida Sérvulo 4 Henri Bergson, ibidem.
Correia, Lisboa, Gradiva, s/d, pp. 8-9) (N.T.] 5 Gilles Deleuze, Le Bergsonnisme, PUF,coll. "Quadrige», 1966, p. 99.
Se ainda for permitido «sonhar com o que um possível idealista ou normativo, que ele não
está para vir», eu avançaria a hipótese de que está contido neste "armário dos possíveis" de
o teatro é o lugar da invenção dos possíveis; que se ri Bergson. Para nós, como para Bergson,
de que os possíveis representam o horizonte «é o real que faz o possível, e não o possível
utópico no qual se desenham as dramaturgias que se torna real» . Através do jogo teatral dos
dos nossos dias. Escrever e fazer teatro é, em possíveis, tentar-se-á surpreender não tanto um
larga medida, dar espaço aos possíveis. «Quer se mundo fixo, preso a uma aritmética rígida dos
trate de grupos quer de indivíduos, toda a vida possíveis, mas muito mais «a originalidade ins-
humana abre um diálogo contínuo entre aquilo tável das coisas» e o «jacto efectivo da novidade
que podia ser e aquilo que é. Uma mistura ~btil imprevisível»3.fMais do que ao possível, o jogo
de crença, de sabedoria e de imaginação constrói que nós vamos ~tentar evocar está ligado ao vir-
diante dos nossos olhos a imagem constante- tual no sentido que lhe dá Artaud quando fala
mente modificada do possível. É perante esta do teatro como «realidade virtual».4]
imagem que confrontamos os nossos desejos Na sua rejeição do «falso movimento» do
e os nossos receios. É sobre este possível que pensamento conceptual e na maneira como ele
modelamos o nosso comportamento e as nos- associa sempre um certo teatro - teatro «da
sas acções. De certo modo, muitas actividades repetição» vs-teatro da «representação» - ao apa-
humanas, as artes, as ciências, as técnicas, a recimento do «puro movimento», Gilles Deleuze
política, são apenas maneiras peculiares, cada convence-nos a transferir os nossos possíveis
uma com as suas regras próprias, de jogar o jogo para o domínio do virtual:l«O possível, nota De-
dos possíveis» (François ]acob)2. leuze, não tem realidades ainda que possa ter
Mas se o teatro - o das dramaturgias contem- uma actualidade); inversamente, o virtual não
porâneas - entra neste jogo dos possíveis «com é actual, mas possui enquanto tal uma reali-
as suas próprias regras», importará precisar que dade>j Desde logo, o acto teatral não consistirá
isto só pode acontecer se fizermos evoluir e va- tanto em seleccionar possíveis previamente ex-
riar continuamente as ditas regras. Sem preten- istentes, mas muito mais em multiplicar e em
der abrir o debate filosófico sobre esta catego- fazer fugir à sua frente, sob o efeito de uma con-
ria do possível, notemos que .Q. p~ossív~L~o.qual stante diferenciação, estes «possíveis virtuais»
nos referimos não é um pos~veiYl~-existente, que ele cria continuamente.
2 François Jacob, Le jeu des possibles, Fayard, 1981. (O jogo dos pos- 3 Henri Bergson, La Pensée et le mouvant, rUF, col!. «Quadrige»,
síveis, Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, [1981], tradução de 1966, p. 115.
Norberto Simões de Almeida, José d'Encarnação e Margarida sérvulo 4 Henri Bergson, ibidem.
Correia, Lisboa, Gradiva, s/d, pp. 8-9) [N.T.] 5 Gilles Deleuze, Le Bergsonnisme, rUF, coll. «Quadrige», 1966, p. 99.
acções permanecem tão dependentes dos tempos
quanto as primeiras, elas têm uma história, nada
Incontestavelmente, é a ideia brechtiana de um menos que uma história que mostra as suas
espectadõractIVõ-=-dtversamente modulada em conexões ao longo de várias épocas>/. A preo-
função dos diferentes tipos de peças: didácti- cupação de mostrar estes cruzamentos e estas al-
cas (Lehrstück ou Lehrnstück), parábolas ou ternativas é tão forte e tão constante em Brecht,
«grandes peças» - que es.!.ána base da impor- que esta se manifesta inclusiva mente nos seus
tante dimensão desta utopia de um teatro dos conselhos aos actores através da técnica do «Não-
possíveis. ErnLe
Prlliêipe de I'Espérance, Ernst antes-pelo-contrário»: «o actor descobre, revela e
Bloch, considerado um marxista utópico,.. colo- sugere, sempre em função do que faz, tudo o mais
ca em Brecht a ambição de pôr em prática um que não faz. Quer dizer, representa de forma que
teatro que «julga os seres, os encontros, os ac- se veja, tanto quanto possível claramente, uma
tos representados, não apenas de acordo com alternativa, de forma que a representação deixe
o que eles são mas também em função daquilo prever outras hipóteses e apenas apresente uma
que eles poderiam ser»6. Na perspectiva de uma de entre as várias possíveis»8.
transformação do mundo, o teatro não se con- Graças a este movimento utópico, o teatro
tenta em interpretar, ele integra, pelo menos na torna-se naquilo a que Bloch chama uma «ins-
fase experimental de laboratório, uma estratégia tituição de verificação pelo exemplo». E com-
de transformação. Os comportamentos sociais preendemos melhor, a nível filosófico e não
(os gestus, diz Brecht) são estudados em cena apenas técnico, a noVidade e a importância do
na sua variabilidade, ou seja, naquilo que eles princípio épico de descontinuidade_ da ~<:ção.
comportam de transição para o socialismo, na- Aquilo que se tenta favorecér na exegese da
quilo que eles contêm já, ainda que em estado de fábula que está no centro da representação é a
promessa, de «realidade nova». paragem em cada um destes momentos-cruza-
Esta anexação do teatro brechtiano, em par- mento, destes momentos de alternativa em que
ticular na fase das parábolas e das peças didácti- surgem os possívei~ e a sua consequente explo-
cas, à Utopia concreta vai, de facto, de encontro ração. A obra teatral, até então sintagmática,
ao pensamento de Brecht: «Para além das acções
dos homens que realmente foram concretizadas, 7 Brecht citado por Philippe Ivernel. in «Grande Pédagogie: En relisant
Brecht», Les Pouvoirs du théâtre, Essais pour Bemard Dort, op. cir.
há outras que poderiam tê-lo sido. Estas últimas ~. 222.
Bertold Brecht, « 1nstructions aux comédiens», in Écrits sur le
théâtre /, op. cito (Tradução portuguesa de Fiama Hasse Pais Brandão,
6 Ernst Bloch. Le Príncipe de I'Espérance. I. Éditions Gallimard. «Bib-
({Anova técnica da arte de representa!», Estudos sobre teatro, Lisboa,
liotheque de Philosophie». 1976.
Portugália editora, s/d, p. 132). [N.T.]
passa a ser paradigmática: já não é «uma cena A grande nostalgia dos homens de teatro dos
para a seguinte», mas «cada cena por si», como é anos sessenta e setenta relativamente às peças
mencionado no famoso «Esquema de Mahagon- didácticas (é o momento em que Heiner Müller
ny»9. E isto para poder, em cada situação, para as erige como «modelo» dos seus próprios textos,
cadagestus, fazer jogar os possíveis. _._- antes de se desencantar e de dizer o seu «Adeus
-Õopossível aristÕtélicõ pãra-os possíveis bre- à peça didáctica») explica-se, naturalmente, pelo
chtianos, a distância é em tudo semelhante à potencial extraordinário que elas integram em ma-
existente entre o modelo orgânico - o «Belo ani- téria de aparecimento inesperado dos possíveis.
mal» -, que preside à tragédia grega, e a arte da Durante estas duas décadas, a corrente utópica,
montagem brechtiana, que põe em causa Rão só sempre vinculada, ainda que de forma crítica, aos
a unidade de acção como também a própria dra- destinos do comunismo, tentou desenvolver, mui-
maticidade do teatro. A aproximação de Brecht a tas vezes ao lado ou para além de Brecht e do
Aristóteles no que diz respeito à defesa da pri- brechtismo, a «dramaturgia dos possíveis».
mazia da fábula é, na verdade, aparente. Para Em França, é sobretudo Armand Gatti quem
assegurar a passagem da felicidade à infelici- tentará - e continua a tentar, num jogo de trocas
dade do herói (ou o inverso), a fábula, segundo e de analogias entre a poesia e a ciência - le-
Aristóteles, tem como base a concatenação das var mais longe esta dramaturgia paradigmática,
acções. Inversamente, o uso brechtiano assenta revolucionando as categorias do tempo e do es-
numa completaftagmentação da fábula-E~1. partir paço e fazendo com que uma peça se desenvol-
de Brecht (e já antes: desde a transição do sécu- va simultaneamente em vários mundos. «Seria
lo XIX, desde Strindberg; talvez mesmo desde o bom, afirma, nos anos sessenta, o autor de La
WoyzecklO de Büchner. ..) o trabalho dramatúrgi- Vie imaginaire de l'éboueur Auguste G., mudar
co já não consiste no encadeamento dos aconteci- as noções de tempo e de espaço no teatro, deven-
mentos até ao seu desenlace1mas muito mais na do estas noções ser consideradas antiquadas do
sua separação, na sua segmentação segundo os . ponto de vista científico e humano (... )fioda a
seu possíveis contraditórios; trata-se de quebrar a senilidade do teatro vem da cena única e da sua
cadeia das acções; de desencadear, de multiplicar, impossibilidade de respirar num mundo que vive
de pluralizar os possíveis da fá.!mla. em várias dimensões e em diferentes idades ao
mesmo tempo» Bernard Dort, num ensaio que
9 Bertolt Brecht. «Notas sobre Mahagonny (1930»>. Monique Borie. surge justamente no pós-68, não deixa de sau-
Martine de Rougemont. Jacques Sherer. Estética teatral, textos de dar esta «forma de ultrapassar o teatro que Gatti
Platão a Brecht. tradução de Helena Barbas, Lisboa, fundação Calous-
te Gulbenkian. 1996. p. 470. [N.T.] tenta pôr em prática no próprio espaço teatral,
10 Ver nota· nO20 de «A Invenção da Teatralidade". [N.T.] com a colaboração dos espectadores. Trata-se de
passa a ser paradígmática: já não é «uma cena A grande nostalgia dos homens de teatro dos
para a seguinte», mas «cada cena por si», como é anos sessenta e setenta relativamente às peças
mencionado no famoso «Esquema de Mahagon- didácticas (é o momento em que Heiner MüIler
ny»9. E !sto para poder, em cada situação, para as erige como «modelo» dos seus próprios textos,
cadagestus, fazer jogar os possíveis.-- antes de se desencantar e de dizer o seu «Adeus
-Do possível arlstotéiico pâra o-spossíveis bre- à peça didáctica») explica-se, naturalmente, pelo
chtianos, a distância é em tudo semelhante à potencial extraordinário que elas integram em ma-
existente entre o modelo orgânico - o «Belo ani- téria de aparecimento inesperado dos possíveis.
mal» -, que preside à tragédia grega, e a arte da Durante estas duas décadas, a corrente utópica,
montagem brechtiana, que põe em causa 'lão só sempre vinculada, ainda que de forma crítica, aos
a unidade de acção como também a própria dra- destinos do comunismo, tentou desenvolver, mui-
maticidade do teatro. A aproximação de Brecht a tas vezes ao lado ou para além de Brecht e do
Aristóteles no que diz respeito à defesa da pri- brechtismo, a «dramaturgia dos possíveis».
mazia da fábula é, na verdade, aparente. Para Em França, é sobretudo Armand Gatti quem
assegurar a passagem da felicidade à infelici- tentará - e continua a tentar, num jogo de trocas
dade do herói (ou o inverso), a fábula, segundo e de analogias entre a poesia e a ciência - le-
Aristóteles, tem como base a concatenação das var mais longe esta dramaturgia paradigmática,
acções. Inversamente, o uso brechtiano assenta revolucionando as categorias do tempo e do es-
numa completaftagmentação da fábula.{?- partir paço e fazendo com que uma peça se desenvol-
de Brecht (e já antes: desde a transição do sécu- va simultaneamente em vários mundos. «Seria
lo XIX, desde Strindberg; talvez mesmo desde o bom, afirma, nos anos sessenta, o autor de La
Woyzeck 10 de Büchner. ..) o trabalho dramatúrgi- Vie imaginaire de l'éboueur Auguste G., mudar
co já não consiste no encadeamento dos aconteci- as noções de tempo e de espaço no teatro, deven-
mentos até ao seu desenlace)mas muito mais na do estas noções ser consideradas antiquadas do
sua separação, na sua segmentação segundo os . ponto de vista científico e humano (... )fioda a
seu possíveis contraditórios; trata-se de quebrar a senilidade do teatro vem da cena única e da sua
cadeia das acções; de desencadear, de multiplicar, impossibilidade de respirar num mundo que vive
de pluralizar os possíveis da fápula. em várias dimensões e em diferentes idades ao
mesmo tempo» Bernard Dort, num ensaio que
9 Bertolt Brecht, «Notas sobre Mahagonny (1930)>>,Monique Borie, surge justamente no pós-68, não deixa de sau-
Martine de Rougemont, Jacques Sherer, Estética teatral, textos de dar esta «forma de ultrapassar o teatro que Gatti
Platão a Brecht, tradução de Helena Barbas, Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian, 1996, p. 470. [N.T.] tenta pôr em prática no próprio espaço teatral,
10 Ver nota· nO20 de «A Invenção da Teatralidade». [N.T.] com a colaboração dos espectadores. Trata-se de
abrir o real a todos os possíveis, no espaço e no pia de uma dramaturgia dos possíveis? E não
tempo, de conjugar a experiência individual com poderíamos imaginar que uma tal dramaturgia,
o combate colectivo, e de fazer o público assumir em vez de ser determinada por uma ideologia e
estes possíveis e este combate» 11. por um horizonte teleológico fixados a priori, de-
Que podemos pensar, hoje, deste entusiasmo penda apenas da necessidade de abrir os olhos e
utópico quando o horizonte do pensamento que de se emancipar de toda e qualquer crença? Por
o favoreceu parece completamente obscurecido? outras palavras, poderemos imaginar, depois de
A dialéctica de Bloch da Utopia concreta, bem Brecht, uma nova ideia de um teatro crítico mas
como a do teatro didáctico brechtiano estavam que proviria, agora, de um cepticismo generaliza-
demasiado ligadas a uma espécie de messianis- do e praticaria a «suspensão do julgamento»?
mo ou de profecia do Novo para que não fizessem
nascer em nós um sentimento de cepticismo. Ac-
tualmente, é o Novo que parece estar ultrapassa-
do. Os grandes sistemas, as grandes narrativas, Num artigo publicado nos Cahiers de Ia Comédie-
essa História em marcha na qual se indexava -Française intitulado «NoFuture, utopie et allégo-
o teatro de Brecht, parecem ter-se dissolvido na rie», François Regnault empenha-se em refutar a
pós-história e na pós-modernidade. No entanto, seguinte afirmação de Heiner Müller: «O teatro,
a pós-modernidade parece estar cansada de si estabelecido na fractura entre o tempo do sujeito
própria e tocada pela obsolescência. A utopia do e o tempo da história, é uma das últimas mora-
passado volta à superfície de forma lancinante ... das da utopia»12. Regnault objecta que o teatro é
Ao constatar insistentemente a nossa dupla in- «alegoria» e de forma alguma utopia, na medida
capacidade para problematizar o fracasso e para em que a cena se define como um puro espaço
liquidar completamente a nostalgia da utopia intemporal.Reticente, enquanto freudiano, a
marxista-brechtiana, a tentação faz o percurso esta projecção num futuro de ilusão que opera
da revisitação desta utopia para dela salvar al- o pensamento utópico, Regnault situa o teatro
guma coisa. - e certamente terá razão no que diz respeito à
Quando Edward Bond declara «O meu papel dramaturgia clássica - fora do alcance de toda
de escritor (... ) é criar estruturas teatrais que a dialéctica temporal. É, desde logo, impossível
permitam às pessoas refazer a sua vida de forma que o espaço se apresente como o lugar de uma
múltipla», não estará ele a reabrir o teatro à uto-
12 François Regnault, Cahiers de Ia Comédie-Française, 1, p.a.L., au-
tomne 1991. A ideia de uma unidade de lugar «no sentido lato» é de-
11 Bernard Dor!, Théâtre réel, op.cit, p. 224. A citação de Gatti foi senvolvida num texto mais recente de Regnault : L'une des trois uni-
extraída do artigo de Dort. tés, Les Conférences du Divan, Éditions Isele, Paris-Tübingen, 1999.
qualquer «fractura» entre duas temporalidades. designado, num texto de Michel Foucault explici-
Deve, pelo contrário, manter-se unido, ainda que tamente a propósito do teatro, como um «espaço
seja «num sentido lato». diferente». E esta singularidade prende-se pre-
Não posso adivinhar qual teria sido a resposta cisamente com o teatro porque ele faz «suceder
de Heiner MüIler a François Regnault. Penso, no no rectângulo do palco toda uma série de lugares
entanto, que ele teria podido retorquir, tal como estranhos uns relativamente aos outroS»13. A or-
muitos autores da nossa época (nomeadamente dem temporal da «sucessão» evocad~~r'~ou-
Beckett e Duras), que o seu teatro era muito am- cault toca e fracciona a ordem espacial do pre-
plamente uma arte do tempo, e por isso mesmo sente e da presença teatrais. Desde logo, já não
susceptível de fragmentar, ou mesmo de drac- se trata de «alegoria», no sentido de Regnault,
turar» o espaço. fQuando Regnault convoca a nem verdadeiramente de utopia no sentido es-
«oposição feita pór Aristóteles entre a epopeia, trito da palavra. Foucault propõe: I~e~J:.Q1.Qpiél;;t
na qual o tempo é fundamental, e a tragédia, A heterotopia põe em prática «uma espécie de
que relacionamos com um determinado lugar», contestação simultaneamente mítica e real do
insistindo na ideia de que «há espaço a partir espaço onde vivemos», não tanto através da pro-
do momento em que deixa de haver recitante e posta de um contra-modelo único, como a utopia,
passa a haver personagens», parece-me evidente mas compondo espaços híbridos «completamente
que numerosos autores contemporâneos pode- distintos de todos os lugares que reflectem e de
riam fazer notar que a personagem do seu teatro que falam». Designando o teatro como um desses
se tornou recitante - e, antes de mais, especta- lugares heterotópicos por excelência - uma parte
dora - de si mesma: da sua própria existência, de utopia ifectívamente inscrita na sociedade -,
da existência da sua comunidad~ Não podere- Foucault sublinha o carácter moderno desta uto-
mos ver aqui o indício desta intensa «coraliza- pia, ou seja, o novo domínio, no teatro, do tempo-
ção» que afecta o teatro contemporâneo? ral sobre o espacial: «As heterotopias estão liga-
A polémica de Regnault - que visa certamente das, na maior parte dos casos, precisa o autor, a
e propositadamente um dos maiores inventores cortes no tempo, o que quer dizer que elas abrem
de teatro pós-épico - tem o mérito de revelar o para aquilo a que poderíamos chamar, por pura
«escândalo» de um espaço teatral fragmentado, simetria, heterocro~ã~~ a heterotopia começa a
descosido, estranho a toda e qualquer relação funcionar plenamente quando os homens se en-
dramática intemporal (quer dizer, ao presente contram numa espécie de ruptura absoluta com
puro, ao presente absoluto). Ora, este espaço. o seu tempo tradicional». É exactamente o que
lacerado., e~q~artej~do en1!~_d~ve!:s_a~t_~m.poral!- 13 Michel Foucauit, «Oes Espaces autres», in Dits et écrits, IV. Éditions
dades (MüIler cita a da História e a do sujeito), é Gallimard, «Bibliotheque des Sciences Humaines, 1994, p. 755·759.
acontece com o espectador das dramaturgias
contemporâneas mais inovadoras do século XX,
desde o Sonho de Stridberg até Um Fragmento de Desactivar a «máquina infernal» significa, tal
Monólogo 14 de Beckett. como o sugerimos anteriormente, permitir o
O espaço unitário da tragédia era o do esgota- acesso a uma dramaturgia não do «antes» mas
mento do possível, até à aporia, até à catástrofe ... do pós-catástrqfe. As ruínas e mesmo a deserti-
O espaço heterotópico do drama moderno e con- ficação, a vitrificação do universo - são necessi-
temporâneo, que começa com uma catástrofe já dades prévias para que Edward Bond nos possa
concluída, é, bem pelo contrário, o da (re)generação revelar, na Trilogia da Guerra15, em primeiro
dos possívei5:\ Passamos desta Máquina iTJfemal lugar o poder de destruição total contido na paz
- convocada üina última vez por Cocteau - que tri- capitalista-liberal, depois e sobretudo as frágeis
tura o humano e o conduz inelutavelmente à infe- perspectivas, tal como nos são apresentadas, de
licidade e ao túmulo (<<máquinasconstruídas por reconstrução de uma humanidade verdadeira.
deuses infernais para a destruição matemática de Actualizando, sob a forma do imaginário, a ca-
um mortal», diz o prólogo da peça), para um espaço tástrofe potencial, o teatro concentra a atenção
onde o homem volta a sair do seu túmulo, deixan- do público nas virtualidades de voltar a ter nas
do a morte definitivamente para trás, regressando, mãos os seus próprios destinos.
de etapa em etapa - tal como acontece literalmente Esta reviravolta é a grande conversão do
em La Grande-route, última peça de Strindberg - à teatro moderno e contemporâneo, tal como a
multiplicidade de lugares da sua vida. A máquina programou, desde 1898, Le Chemin de Damas,
continua a pôr em movimento o destino humano de Strindberg. A representação teatral já não
mas, a partir de agora, ela funciona ao contrário. consiste - de Strindberg até Beckett e Bond - no
Como uma agonia que seria ao mesmo tempo desenvolvimento da fábula de um drama na vida
um reviver (Beckett em todos os seus últimos - uma passagem da felicidade à infelicidade, ou
textos). Ou como uma cena doméstica de separa- o contrário - mas em percorrer o tempo do drama
ção que permitiria reencontrar o tempo do amor da vida. Uma vez mais: «em refazer a sua vida
(Duras, La Musica). Máquina utópica, se quiser- de múltiplas formas». E~e hoje existe uma crise
mos. Máquina oferecida aos espectadores para da fábula, esta crise, forçosamente positiva, não
«refazerem as suas vidas de múltiplas formas».
15 Edward Bond, Trilogia da Guerra Vermelhos, Negros e Ignoran-
tes, As pessoas das latas de conserva, Grande Paz), tradução de Luís
14 Samuel Beckett. Um Fragmento de Monólogo, tradução de Paulo Miguel Cintra, Luís Lima Barreto, José Manuel Mendes, com a colabo-
Eduardo Carvalho para o espectáculo «Todos os que falam (Um Frag- ração de Robert Jones, para o espectáculo do Teatro da Cornucópia,
mento de Monólogo. Baloiço. Não eu»>,encenação de Nuno Carinhas, com encenação de Luís Miguel Cintra, Lisboa, 1987. [N.T.]
Assédio, Teatro Carlos Alberto, Porto, 2006.
se deve, contrariamente ao que se pode ler por dramático está amplamente contido no seu
aí, a uma espécie de dispersão ou de decom- próprio comerúáriõ;-avoz dó questionamento
posição dos acontecimentos representados, mas e
sobrepõe-se 'cobre-a da ficção. Neste sentido,
a esta virtualização da fábula e do drama que, Seis personagens à procura de autor17 é tam-
vistos ao contrário, no sentido inverso da vida, bém, juntamente com Le Chemin de Damas, um
são recusados das mais variadas formasJNeste texto inaugural desta conversão a uma drama-
ponto, Bond e Brecht têm uma posição comum: turgia do possível: a «recusa» prévia do autor
o objecto da representação não é tanto a fábula implica que as personagens, reduzidas a uma
mas o seu comentário. anarquia que acabará por se tornar insuportá-
E é assim que as personagens - prefiJ;p cha- vel, se vejam obrigadas, contradizendo-se umas
mar-lhes<lim~~gins\? - de uma parte con- às outras, a ~~IJlicare a comentar retrospectiva-
siderável-dõ nosso teatro se transformam em mente o «seu» drama, em vez de muito simples-
recitante~. Não apenas pela razão evocada an- me~vrverem. A representação já não é imi-
teriormente de que «eles habitam o tempo» mais tação mas sim «análise» de uma vida, de toda a
do que o espaço, mas porque, encostados à sua vida ... Daqui a assimilar uma vez mais o teatro
própria morte, produzem solilóquios contínuos ao processo vai um passo. Ora, é precisamente
sobre os percursos erráticos, sobre os cruzamen- esse passo que nós recusamos dar.
tos, as alternativas antigas, enfim, sobre os pos- Produzir possíveis infinitamente: este poder
síveis das suas próprias vidas, percorrendo-os da máquina utópica é antinómico, pensamos
continuamente. Os dispositivos podem variar, nós, com o facto de lançar acusações e de de-
mas o de A Últimafita de Krapp16 resume-os cretar culpabilidades. Já não se trata de isolar e
bem: o velho Krapp passa em contínuo velhas de estigmatizar - ou de sacralizar, que é exacta-
gravações de si próprio: «Acabei de ouvir este mente o mesmo - um acto, um comportamento
pobre pequeno cretino por quem eu me tomava (des)humano, quer se trate de um erro indivi-
há trinta anos, difícil imaginar que eu possa ter dual ou de um crime colectivo. Trata-se de o de-
sido estúpido a este ponto». ~_~cont~im~nt_~ nunciar (<<fazersaber») fazendo-o variar perante
os espectadores. Trata-se de se dedicar a uma
16 La Derniere Bande, ou Krapp's Last Tape. na versão inglesa, de dramaturgia no condicional que, em vez de du-
Samuel Beckett, foi diversamente traduzido em português: A última
gravação (Luís de Lima, 1961; Rui Guedes da Silva, Lisboa, Arcádia,
° °
plicar facto, acontecimento, abre espectro °
1964; Luís Francisco Rebello para Mário Viegas). A última bobina de das suas possíveis transformações. E esta dra-
Krapp (ainda Luís Francisco Rebello para Mário Viegas, 1986). A últi-
ma banda de Krapp (Mário Viegas, 1993). Armando Nascimento Rosa 17 Luigi Pirandello, Seis personagens à procura de autor, tradução
opta por A últimajita de Krapp (Falar no Deserto: Estética e Psicolo- de Mário Feliciano e Fernando José Oliveira, Livrinhos de Teatro - Os
gia em Samuel Beckett, Lisboa, Edições Cosmos, 2000, p. 48). [N.T.] Clássicos, Lisboa, Artistas Unidos I Livros Cotovia, 2009. [N.T.]
maturgia não é o resultado de um acrescento, o do ponto de vista. O sujeito encontra-se simul-
de um voluntarismo, de um controlo ideológico taneamente dentro e fora, acordado e a sonhar. E,
da representação; ela inscreve-se naturalmente, como em Strindberg, nessas «peças oníricas» que
desde as origens, na própria língua da peça, no são formidáveis «jogos de possíveis», o ponto de
próprio génio da língua: «Os nossos conjuntivos, vista, se existir, torna-se interior. «Para [o sonha-
os nossos condicionais, os nossos optativos, diz dor], nota Strindberg no prefácio ao Sonho, não
George Steiner, os «se» das nossas gramáticas há segredos, não há inconsequências, não há es-
tornam possível uma contrafacção indispensá- crúpulos, não há leis. Ele não julga, não absolve,
vel, profundamente humana. Permitem-nos alte- ele relata apenas ... ».
rar, remodelar, imaginar, anular as imposições De Strindberg a Beckett e em muitos outros
do nosso universo biológico-empírico».18 casos, no teatro, o homem encontra-se con-
O devir do teatro contemporâneo, tal como eu frontado, do interior, com uma visão panorâmi-
tento aqui esboçá-lo, iria no sentido desta «con- ca da sua própria vida: «O Desconhecido [em Le
trafacção indispensável» defendida por Steiner. O Chemin de Damas] - Vi desenrolar-se como num
filósofo e crítico prossegue o seu propósito falan- panorama toda a minha vida passada, desde a
do de «sonhos acordados». Mais do que qualquer infância, através da juventude, até agora ... mal
outra arte, o teatro está em harmonia com esta acabava, este espectáculci começava outra vez e
ideia de sonho acordado. Ainda que deva esco- durante todo esse tempo eu ouvia o barulho do
lher entre uma concepção apolínea deste «sonho moinho ... » E é a terrível repetição da vida que
acordado», da qual se aproxima o pensamento no teatro se metamorfoseia em variação - em
de Ernst Bloch, e uma concepção mais dionisíaca abertura do jogo dos possíveis. Sem nunca se
como defendiam Nietzsche e, mais perto de nós, referir a Strindberg (mas reenvia-nos sempre
Deleuze. Nesta outra concepção, «para além do para Kafka, que gostava de se «aconchegar con-
bem e do mal», o julgamento fica definitivamente tra [o] peito» de Strindberg), Deleuze percebeu
fora do jogo - fora do jogo dos possíveis. O que, muito bem a particularidade deste «sonho de in-
então, se torna caduco relativamente a Brecht é a sónia» que corresponde a uma «dramaturgia dos
noção de ponto de vista, esse ponto de vista exte- possíveis» liberta de qualquer espírito de julga-
rior e mítico - proletário ou plebeu - que o fabulis- mento: «Já não é um sonho que se tem durante
ta deve ter interiorizado. O sonho dionisíaco que o sono, mas um sonho de insónia: "mando [para
se aproxima da embriaguez ou do sonambulismo o campo] o meu corpo vestido ... durante esse
kleistiano, é propício ao desdobramento incluindo tempo, eu estou deitado na minha cama sob
um cobertor castanho ... » o insonioso pode ficar
imóvel, enquanto que o sonho assumiu para si
o movimento real. Esse sono sem sonho onde,
no entanto, não se dorme, essa insónia que leva
o sonho para tão longe quanto a sua duração, é
esse o estado de embriaguez dionisíaca, a sua
maneira de escapar ao julgamento». 19
O teatro com que sonhamos aqui seria, as-
sim, uma máquina insoniosa. Situar-se-ia para
além do julgamento, no jogo dos possíveis. Não
puniria nem consolaria. Teria a crueldade de um
combate permanente contra si mesmo. Ao espec-
tador, ofereceria apenas reparação. Entenda-se:
um lugar e um tempo para retomar forças.