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Caçando não humanos ou onde anda Harrison Ford?

LEONARDO TRÁPAGA ABIB2


ROBERTA MONTEIRO BRODT3
JOSÉ GERALDO SOARES DAMICO4
Considerações Iniciais

Outrora espaço de identificação e expulsão dos leprosos e dos loucos, a cidade


de hoje, redesenhada numa variedade de transformações urbanas, econômicas e
sociais, tem se constituído como um terreno fértil de disputas entre os modos de
gestão da vida e as determinações de como os indivíduos devem auto gerir-se.
Trata-se de uma série de práticas de governamento que buscam incluir todos
(normais/anormais, humanos/não-humanos) nos jogos de poder e que se disseminam
pelo tecido social indicando e constituindo certos modos de viver. No entanto, como
chama atenção Emerson Elias Merhy (2012, p. 13)
nesse campo, não há garantias de controle total, a produção de desviantes é
parte do processo. Em paradoxo, estimular os desejantes, ativá-los gera
campo de multiplicidades. E como no filme BladeRunner a sociedade que se
funda nesse processo, necessita dos seus caçadores de não-humanos
resultados de si mesma.
A partir da citação acima, cabe perguntar quem seriam os “novos não-
humanos” no cenário urbano contemporâneo? Como se constitui a ideia de que esses
não humanos devem ser caçados? E por último quem são seus caçadores? Trata-se
em certa medida de problematizar “como” a internação compulsória5 se coloca como
central na agenda pública (política e midiática) por parte de múltiplos setores sociais,
que clamam pelo recolhimento compulsório de sujeitos que vivem nas ruas e que
fazem uso/abuso de substancias psicoativas. Tais medidas ao serem defendidas por
determinados grupos de “especialistas”, os experts (como médicos, políticos,
colunistas) que justificam estarem defendendo a família, a sociedade e por
consequência o próprio indivíduo é que está assentada esta vontade de “capturar os
não-humanos”. Autores como Raquel Rolnik (2012) e Emerson Merhy (2012) apontam

                                                            
1
O presente texto é oriundo de um projeto de dissertação de mestrado, intitulado provisoriamente de
“Sinais que vem da rua: encontros entre trabalhadores e usuários de um Consultório na Rua”. 
2
Mestrando do PPGEC/FURG.
3
Mestranda do PPGEC/FURG.
4
Professor do PPGEC/FURG e do PPGCOL/UFRGS e orientador dos outros co-autores.
5
A internação compulsória não é uma prática inédita dos nossos tempos. Michel Foucault (2006),
demonstrava que na França no início do século XIX, a política consistia em fazer o internamento passar
por cima da interdição e prevalecer o poder cientifico-estatal sobre o poder familiar (já que quem pede
e decide o internamento por essa lei é um médico). No Brasil, de acordo com a lei 10.216/2001, existem
três tipos de internação: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II
- internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
essas práticas de aprisionamento como “políticas higienistas”, “varredura social”, que
em nome de interesses econômicos, financeiros e corporativos são acionadas em
momentos específicos para gerir a população.
Diante dos pressupostos de que vivemos em um contexto urbano marcado pela
biopolítica (FOUCAULT, 2011), pela consequente produção de novos anormais
(MERHY, 2012), e pelas formas de resistência às políticas de internação compulsória
de usuários de drogas (que afeta principalmente aqueles que vivem em situação de
rua), temos o intuito de problematizar certas naturalizações que vem sendo
amplamente disseminada de que a solução única para o abuso de drogas é a retirado
do sujeito das ruas que vêm emergindo em algumas cidades brasileiras.
A partir do acompanhamento duma equipe de um Consultório na Rua - CnR,
na cidade de Porto Alegre, pretendemos analisar que sinais estão vindos das ruas
nesse contexto, que experiências podem emergir a partir do encontro entre os
trabalhadores desse CnR com as pessoas em situação de rua e com as comunidades
em que esses passam maior parte do tempo. Dessa questão principal de análise,
emergem outras, como: i) de que formas os trabalhadores e usuários de um CnR
ocupam os diferentes espaços da cidade? ii) como os diferentes discursos sobre os
moradores de rua são colocados em funcionamento?
Cientes de que iríamos acompanhar processos de circulação pela cidade e de
encontros com diferentes pessoas; de que a possibilidade do imprevisível, da abertura
de novos caminhos, da constituição de novas redes e múltiplas relações - que não
podem ser analisadas somente em si, mas articuladas com questões históricas,
políticas, subjetivas e sociais - adotamos a etnografia multi-situada (MARCUS, 1995)
como opção metodológica.
Para Sciré (2009, p. 98) a realização da etnografia multi-situada não se
restringe apenas à prática de campo, pois ela engloba também “o fazer, a forma de
relatar o que se ouviu (...) o “seguir as linhas” refere-se ao trabalho do pesquisador,
no momento de analisar os dados”. Sobre os instrumentos analíticos da pesquisa,
utilizaremos diários de campo, reportagens e imagens que dizem respeito ao assunto.
Tais instrumentos estão sendo analisados na perspectiva da analise cultural ancorada
na teorização foucaultiana (FISCHER, 2001; MEYER et al, 2004; DAMICO, 2011).
Com isso queremos dizer que os elementos que irão compor o escopo da pesquisa
não estarão de acordo com os tradicionais princípios da pesquisa cientifica, como a
suposta neutralidade e rasa objetividade.
No atual momento da pesquisa um de nós está inserido numa equipe de CnR
da cidade de Porto Alegre-RS, participando das atividades desenvolvidas pelo serviço
na zona norte da cidade. Dentre as atividades acompanhadas: abordagem e o
acolhimento dos sujeitos em situação de rua, encaminhamentos para outros serviços
tanto da saúde quanto da assistência social, práticas corporais com os usuários,
reuniões de equipe, procedimentos especializados (curativos, entrega de
medicamentos, aplicação de injeções), distribuição de preservativos e outras. A
equipe se desloca de Kombi (às vezes até mesmo a pé) até praças, viadutos, terrenos
baldios, zonas de prostituição para atender as pessoas em situação de rua que
circulam por esses espaços.
Para este texto iremos apresentar algumas das problematizações, a partir das
vivências no Consultório na Rua e de diálogos com as elaborações de autores do
campo da saúde coletiva, como Émerson Elias Merhy, Antônio Lancetti, Sandra
Caponi e outros autores que têm aproximação crítica com as formulações de Michel
Foucault.
A invenção dos Consultórios nas Ruas
Em Salvador, no ano de 1997, foi realizada pelo Centro de Estudos e Terapia
do Abuso de Drogas - CETAD/Universidade Federal da Bahia uma pesquisa
etnográfica sobre o quadro de jovens em situação de rua, usuários de substâncias
psicoativas na capital baiana. O estudo apontou que estes jovens pouco chegavam
ao CETAD e quando o faziam, dificilmente davam continuidade ao tratamento. Para
tentar dar conta dessa situação, o CETAD criou o primeiro Consultório de Rua do
Brasil, com a finalidade de acompanhar estes jovens no território, buscando novas
formas de produzir cuidado e de ampliar o acesso deles à serviços de saúde
(OLIVEIRA, 2009). Entre os anos de 1999 e 2006, esta experiência do Consultório de
Rua foi desenvolvida no município de Salvador-BA, mostrando-se como uma
estratégia interessante para o atendimento junto aos usuários de drogas em situação
de rua (JORGE; WEBSTER, 2012). A partir de 2009 foram criados mais Consultório
de Rua no país, o que tornou esse serviço, esse estilo de abordagem em uma
referência para o trabalho com pessoas em situação de rua.
No ano de 2011 os Consultórios de Rua se transformam em Consultórios na
Rua - CnR, passando de um serviço da saúde mental para se tornar um serviço da
rede de atenção básica do SUS, com o objetivo de atender às demandas e
necessidades da população de rua, para além das questões relacionadas ao uso
abusivo de álcool e outras drogas (BRASIL, 2011).
Alguns fatores nos motivaram a chegar até um CnR e optar pela inserção nesse
serviço como lócus da pesquisa. Dentre esses fatores estão o envolvimento prévio
dos pesquisadores com o campo da saúde mental e da saúde coletiva, tanto na clínica
quanto na militância; a intenção de construir narrativas sobre os processos de trabalho
desse serviço; pelo fato de ser um lócus interessante para conhecer e dialogar com
as pessoas em situação de rua; e analisar como que os sujeitos e coletivos envolvidos
com o Consultório na Rua têm atuado frente a esses desafios impostos pela biopolítica
e pelo biopoder na contemporaneidade.
O CnR se pauta pela estratégia da redução de danos como forma de
construção dos atendimentos à população em situação de rua. Tal estratégia tem por
objetivo
evitar, se possível, que as pessoas se envolvam como uso de substância
psicoativas. Se isso não for possível, para aqueles que já se tornaram
dependentes, oferecer os melhores meios para que possam rever a relação
de dependência,orientando-ostanto para um uso menos prejudicial, quanto
para a abstinência, conforme o que se estabelece a cada momento para cada
usuário (CONTE et al, 2004, p. 62).
Para Rose Mayer, em entrevista à Conte et al (2004), a estratégia da redução
de danos pode ser vista como um paradigma a partir do qual se parte do real, do
existente para uma situação melhor e possível. Relaciona-se com a
interdisciplinaridade, “pois o “real” e o “possível” podem ser vistos de vários olhares.
Pressupõe autoria, protagonismo, pois é o sujeito que vai poder avaliar o “real” e o
“melhor”. É um processo educativo, de construção de autonomia” (CONTE et al, 2004,
p. 68).
A partir disso, as atividades acompanhadas até então são bem variadas. Ações
como acolhimento, escuta, distribuição de preservativos, prática de esportes,
aplicação de medicamentos, curativos, acompanhamento em outros serviços de
saúde e encaminhamento para confecção de documentos (identidade, certidão de
nascimento, etc). A equipe buscar construir as atividades baseadas nas demandas
trazidas pelas pessoas que vivem na rua e naquilo que o CnR pode ofertar à esses
sujeitos. Quanto aos locais das abordagens, são lugares localizados na zona norte da
cidade, onde há uma quantidade razoável de pessoas em situação de rua, como
praças públicas, terrenos baldios abandonados, construções inacabadas e zonas de
prostituição.
Embora o CnR seja um serviço que emerge das experiências e lutas dos
movimentos sociais da saúde, que se propõe a prestar cuidado e acolhimento à
população em situação de rua no próprio território em que a pessoa circula e que tem
como rivais aqueles sujeitos e grupos que são contrários aos pressupostos da reforma
psiquiátrica e por que não dizer também do SUS, ele ainda corre o perigo de ser um
lugar privilegiado para que governos controlem, a partir de equipes de saúde, e vigiem
essa população em situação de rua que passa a ser a mais nova categoria a se
incorporar numa biopolítica contemporânea.
Se por um lado há um risco de os serviços abertos, como o CnR, serem
capturados por uma lógica negativa da biopolítica, pautada pelo viés do controle, da
vigilância e do mapeamento de novos grupos de anormais, há por outro lado a
ampliação do acesso à saúde para a população em situação de rua, de modo a buscar
a garantia efetiva de alguns princípios e diretrizes do SUS, como a integralidade, a
universalidade e a equidade, além da possibilidade de se proporcionar novos e
potentes encontros entre trabalhadores e usuários. Tal lógica pode se encaixar
também numa perspectiva biopolítica, contudo na sua positividade. A respeito dessa
dualidade da biopolítica, Caponi (2009, p. 534) diz que
implica aceitar um processo complexo que tem duas faces. Por um lado, o
domínio do vital (natalidade, saúde, mortalidade e reprodução), que para os
gregos era eminentemente privado, ingressará na esfera do social e,
consequentemente, da política. Os direitos das mulheres, das crianças, dos
trabalhadores, o reconhecimento dos direitos básicos à alimentação e à
assistência, ainda que duramente conquistados, falam da positividade
dessabiopolítica. Mas existe outra face, obscura, desse mesmo processo: as
políticas higiênicas, psiquiátricas e eugênicas desenvolvidas no século XIX
com o objetivo de melhorar a população e a raça classificaram uma série de
condutas que, sob a categoria de anormalidade, podem começar a ser
medicamente controladas.

Na perspectiva dessa face obscura, negativa da biopolítica, Foucault (2008, p.


11) aponta para o fato de que os governos tentam impedir quaisquer tipos de
comportamentos que possam ser considerados desviantes, apelando para toda uma
série de técnicas de vigilância dos indivíduos, “de diagnóstico do que eles são, de
classificação de sua estrutura mental, da sua patologia própria, etc., todo um conjunto
disciplinar que viceja sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar”.
Biopolítica, “novos anormais” e os tensionamentos no contexto urbano
Muitos discursos têm sido produzidos sobre a internação compulsória para
usuários de drogas. São discursos que perpassam diferentes campos do saber, como
saúde, educação, assistência social, segurança, direitos humanos e justiça. Diversos
segmentos da sociedade têm se mobilizado em cima do tema. Parte dos
posicionamentos tem ido na direção de posicionar o morador de rua que faz uso de
substâncias psicoativas enquanto este “novo não-humano”, um “zumbi”, um sujeito a
ser medicalizado, contido química e fisicamente, a ser privado do espaço da rua
devendo este ser tratado mediante internação hospitalar para desintoxicação ou
comunidades terapêuticas ou ainda clínicas específicas para usuários de drogas. Para
os setores mais conservadores da sociedade, só dessa forma é que se poderá
“reabilitar”, “tornar apto”, “inclusivo”, esse sujeito para viver em sociedade. Esse é um
dos posicionamentos que se enquadram numa política da vida, uma biopolítica como
alertava Michel Foucault (2011), como forma de controlar e gerir as vidas das pessoas.
Nesse sentido, a biopolítica vai operar com controles precisos, regulações de
conjunto e mecanismos de segurança, para exigir mais vida, majorá-la e dessa forma
gerí-la (PORTOCARRERO, 2011). Esse modo de gerir a população, para Foucault, é
contemporâneo do aparecimento das categorias de anormalidades, como o
delinquente, o perverso e o par normal-anormal (ibidem). Ao identificar cientificamente
essas anormalidades, as possíveis estratégias biopolíticas passam a estar numa
posição privilegiada para supervisioná-las e administrá-las. O corpo passa a ser uma
realidade biopolítica, e entre as estratégias biopolíticas estariam a medicina, o
urbanismo, a demografia e outras (FOUCAULT, 2002).
Pode-se ver que ao longo dos séculos XIX e XX passam a existir novos modos
de classificação dos desvios e das anomalias e também um novo modelo de
intervenção sobre os indivíduos. Surge assim um novo espaço classificatório de
doenças e anomalias que permitirá a proliferação, na segunda metade do século XIX,
de um conjunto de doenças relacionadas a comportamentos considerados desviantes
(CAPONI, 2009).
É possível pensar que talvez entre todos os novos anormais produzidos (no
sentido foucaultiano) nos dias de hoje, os indivíduos em situação de rua, formam uma
das faces mais gritantes ao ingressarem no bojo das estratégias biopolíticas. Como
forma de gerir essa população na atualidade, governos aliados a alguns setores da
saúde e assistência traçam novos planos para supervisionar, administrar essa
categoria especifica de anormais. É aí que entram os discursos que desvalorizam e
tiram potencia da pessoa em situação de rua, tornando um problema da esfera social
em doença e motivo para “limpar as ruas”. A justificativa mais usada é de que esses
sujeitos só podem melhorar, curar-se se forem internados (nos diferentes lugares que
citamos no parágrafo acima), mesmo que contra vontade, pois no estado em que se
encontram, podem ser um perigo não mais a si mesmos, mas à toda população.
Merhy (2012) nos diz que no campo da saúde, forte aliado dos processos da
ordem biopolítica, novos biopoderes são requisitados sendo que a medicina nos dias
atuais cedeu lugar para sua transformação: de exclusivamente dos corpos de órgãos,
agora temos uma medicina do corpo sem órgãos, que opera não somente com as
questões biológicas, mas também que medicaliza condutas, comportamentos
considerados anormais. A partir dessa nova conformação do campo saúde, agora
portador de uma clínica do corpo sem órgãos, podemos perceber na micropolítica do
dia-a-dia uma série de situações que serão elencadas como objetos necessários de
suas intervenções. Os usuários de drogas, que ocupam ruas, praças e matos em
qualquer cidade, vêm se constituindo num prato cheio para normatização do não
controlado, do imprevisível (ibidem).
Essas intervenções de recolhimento da população de rua que faz uso de drogas
vêm ganhando espaço nas agendas públicas de diversas capitais brasileiras. Daí que
emerge de setores mais críticos à essas posturas governamentais, posições que
podem ser sintetizadas na ideia de que com essas políticas o que se pretende não é
ajudar esses sujeitos, mas, sim, promover uma grande “limpeza social” nessas
cidades (SILVA, 2010; ROLNIK, 2012).
Ao partirem do pressuposto que associa o usuário de droga como dependente
químico, esses governos indicam através dessas políticas que só a abstinência e a
interdição do contato com a droga podem produzir efeitos terapêuticos, como outros
sujeitos além do campo político tem advogado e tentado provar cientificamente
(MERHY, 2012). Tais ações não contam somente com o apoio de recursos
governamentais, que justificam tal investimento com o discurso de um possível caos
social caso não se adote políticas mais duras, mas também de indústrias
medicamentosas, de comunidades terapêuticas e de clínicas psiquiátricas privadas.
Ao contrário disso, as demais formas de tratar dessa temática em que não se prevê a
repressão, mas, sim, uma aposta na produção de novas formas de vida para essa
população, os investimentos estatais são parcos (ibidem).
Já na outra ponta da discussão, estão movimentos sociais; algumas entidades
representativas, como sindicatos, associações e conselhos; e trabalhadores da saúde,
justiça e assistência social, que defendem que as formas de tratar as pessoas que
vivem na rua e sofrem pelo uso abusivo de álcool e outras drogas devem ser integrais,
aliando as políticas da saúde e da assistência, de modo a colocar à disposição dessa
população diversos serviços públicos para que elas possam ser atendidas de forma
voluntária, consentida e não afastada do convívio social, das ruas. Para esses grupos
não se descarta a internação específica para desintoxicação num hospital geral, o que
se reivindica é que essa internação deve partir do desejo, da vontade da pessoa e que
ela tenha acesso a uma série de políticas e serviços quando ela sair do hospital e que
não seja vista como um “zumbi”, um “não-humano”, desprovido de razão, desejo e
direitos.
Antônio Lancetti (2012), comenta que até então no Brasil estávamos
caminhando para construção de redes de cuidados em saúde mental para pessoas
usuárias de drogas, quando então se lançou sobre o imaginário social essa intensa
campanha midiática marcada pelo alarme, desinformação, promessa de um caos e
que os serviços públicos de saúde e assistência não dariam conta dessa falsa
epidemia. Por conta desse imaginário construído fortemente pela mídia e por
governos, a população em geral desconhece a rede de apoio ao usuário de drogas,
os serviços, as políticas públicas e os profissionais que lidam com essa temática.
Atualmente no Sistema Único de Saúde – SUS existem dispositivos para além
da internação hospitalar, como os Centros de Atenção Psicossocial específicos para
atender à usuários de álcool e outras drogas – CAPS AD6. Há dois tipos de CAPS AD:
o tipo III que pode funcionar até vinte e quatro horas e o tipo II que atende das 8h às
18h. Ambos são serviços que contam com equipe multiprofissional, atendimento sob
a forma de oficinas, grupos, acolhimentos, atendimentos individuais, consultas, visitas
domiciliares e internação curta no caso dos CAPS AD III (que eventualmente podem
realizar procedimentos de desintoxicação).
Os coletivos que se posicionam contra esses projetos de internação
compulsória em massa, defendem a ampliação e a qualificação desses serviços da
rede SUS, como os CAPS AD e os Consultórios na Rua, além da construção/criação
de novos dispositivos de cuidado, de atenção e acolhimento às pessoas que vivem
em situação de rua, que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas.
Considerações Provisórias

                                                            
6
Além dos CAPS AD, o SUS também prevê que os usuários de álcool e outras drogas também sejam
acolhidos e atendidos nas Unidades Básicas de Saúde - UBS, pelas equipes de Saúde da Família –
ESF e nos Centros de Atenção Psicossocial para pessoas em sofrimento psíquico – CAPS.
Foucault (1999, p. 150) nos indica que “tudo o que é desordem, indisciplina,
agitação, indocilidade, caráter reativo, falta de afeto, etc., tudo, daqui em diante,
poderá ser psiquiatrizado”. Portanto, os novos anormais ingressam no bojo das
biopolíticas contemporâneas pela medicina do “não-patológico”, calcada em atender
esses desviantes das condutas consideradas normais e esperadas para o sucesso de
uma dada população. Não é à toa que dentre aqueles que defendem as internações
compulsórias como forma de tratar o usuário de droga, principalmente o que vive na
rua, estão grupos conservadores representantes da psiquiatria biologicista, da
indústria farmacêutica, donos de comunidades terapêuticas, setores dos governos e
outros que não apostam em formas mais ampliadas de acolher essa demanda tão
complexa.
Sendo assim, ficam aqui nessas primeiras considerações, algumas perguntas
a serem pensadas por nós: como não produzir corpos para essa biopolítica? De que
maneiras o CnR (e outros serviços do campo da saúde, da assistência social e etc)
pode ser uma alternativa de resistência às estratégias biopolíticas de controle,
vigilância e produção de anormais?
Referências
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