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CULTURA E LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA EM QUATRO

PROJETOS PEDAGÓGICOS DE CURSOS DE LICENCIATURA EM LETRAS DO SUL


DO RIO GRANDE DO SUL: LACUNAS E POSSIBILIDADES

Dênis Moura de Quadros1

Nunca antes na História do Brasil temos a possibilidade de discutir e apresentar a


cultura africana e afrodiaspórica nas escolas brasileiras. Contudo, mesmo com a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na educação
básica em estabelecimentos públicos e privados, assegurados pela Lei 10.639/2003,
alterado pela Lei 11.645/2008, através da modificação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394/1996), temos sérias dificuldades em encontrar material
interdisciplinar ou arcabouço teórico nas áreas de Letras. Percebemos, então, uma
carência na formação dos docentes de Língua Portuguesa e Literatura que detêm, na
educação básica, de carga horária expressiva e que, portanto, têm a possibilidade de
aprofundarem as discussões acerca das questões étnico-raciais. No Rio Grande do Sul,
essa carência é ainda mais latente pelo fato de o estado ter recebido imigrantes alemães
e italianos tornando-o majoritariamente não negro, argumento utilizado para justificar essa
lacuna, contudo incapaz de negar a contribuição africana e negar a população
afrodescendente.
Logo, a presente pesquisa busca compreender o porquê dessa carência
analisando quatro PPCs (Projetos Pedagógicos de Cursos) de Letras da região sul do Rio
Grande do Sul. Os projetos são de Licenciaturas em Letras, cursos presenciais: da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG), curso criado em 1964; da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), curso em 1984; e de dois polos da Universidade Federal do
Pampa (UNIPAMPA), ambos criados em 2008 com o surgimento da Universidade,
pertencentes aos campi de Bagé-RS e de Jaguarão- RS. O objetivo é perceber como os
PPCs de Letras apresentam, ou não, arcabouço teórico significativo para a formação
desses profissionais, em especial, nas disciplinas de Literatura, no que tange a educação
étnico-racial. Defendemos que o conhecimento de obras de autoria africana e afro-
brasileira possibilitam estratégias de trabalho com o texto literário tanto no Ensino
Fundamental II como no Ensino Médio. Os aspectos a serem destacados dos PPCs é a
forma como os cursos pensam as Leis e Diretrizes da educação étnico-racial, sobretudo
nos objetivos gerais dos cursos; a carga-horária das disciplinas de Literatura por
semestre; a ementa das disciplinas voltadas especificamente para as Literaturas
Africanas e Afro-brasileiras ou sua inexistência; e as possibilidades apresentadas por
essas disciplinas obrigatórias, em um primeiro momento, e complementares, em um
segundo momento.
Além disso, as Orientações e ações para Educação das Relações Étnico-
Raciais afirmam que: “A abordagem das questões étnico-racias na Educação Básica
depende muito da formação inicial de profissionais da educação.” (BRASIL, 2006, p. 128)
justificando a relevância dessa pesquisa. Teoricamente nos debruçamos nos documentos
oficiais (BRASIL, 2003; BRASIL, 2006; BRASIL, 2008; BRASIL, 2009) depreendendo os
pontos que possibilitam os estudos de Literatura Africana e a Literatura Afro-brasileira na
educação básica e, sobretudo, sua obrigatoriedade em consonância com a legislação
educacional vigente.

O DIREITO À EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL: POR QUE OS CURSOS DE LETRAS?


1
Doutorando em Letras, área de concentração História da Literatura, pela Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). E-mail: denisdpbg10@gmail.com
A Lei 10.639/2003 é o resultado de anos de lutas dos povos negros para terem
legitimadas suas culturas e sua contribuição ancestral na sociedade brasileira. Essa Lei
modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional instituindo a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana na educação básica em escolas
públicas e particulares. Além da obrigatoriedade do ensino, a Lei instaura o dia 20 de
novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, o que parece ter confundido a
escolas que, em grande parte, concentram as discussões étnico-raciais para essa data e,
assim, afirmam erroneamente estarem em consonância com a Lei. Outra questão
apontada pelos docentes é a falta de material disponível ou mesmo cursos de formação
continuada que possibilitem torná-los aptos para essa discussão em sala de aula. Nesse
quesito percebemos uma concentração dos materiais institucionais para a disciplina de
História negando o caráter interdisciplinar das Leis que preveem o ensino de Cultura Afro-
brasileira e Africana e uma lacuna em relação às literaturas africanas e afrodiaspóricas.
Essa falta de material disponível confronta-se com a pesquisa acadêmica em que,
através da busca de trabalhos acadêmicos na BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de
Teses e Dissertações)2, utilizando as palavras-chave “ensino” e “afro-brasileiro”,
encontramos quinhentos trabalhos, entre teses e dissertações, de 1978 à julho de 2020.
Anterior a 2003, ano de promulgação Lei basilar, há cinco trabalhos dispersos, três
dissertações e duas teses, discutindo a falta da legitimação da cultura africana e afro-
brasileira nos currículos escolares. Após 2003, percebemos uma crescente no número de
trabalhos com seu ápice no ano de 2016, contando com oitenta e dois trabalhos
defendidos. Infelizmente, esse número vem caindo, contando com trinta e oito trabalhos
em 2019. Resumindo, há material disponível produzido pelas Universidades, pelo menos
aquelas engajadas, acerca da educação étnico-racial, alguns, inclusive, com sequências
didáticas e levantamento extensivo de bibliografia teórica e literária, mas esse
conhecimento não tem escoado para a educação básica e, talvez, nem façam partam da
formação inicial desses docentes que dirá permeiam as formações continuadas, talvez,
por falta de incentivo ou interesse.
A escolha pelo recorte dos cursos de Licenciatura em Letras justifica-se por duas
vias: A primeira é que a disciplina de Língua Portuguesa, nos Ensinos Fundamental II e
Médio, detêm de uma carga horária significativa em comparação a disciplina de História e
ainda, no ensino médio, há a adição da Literatura aumentando as possibilidades e
estratégias de implementação da educação étnico-racial. A segunda é que, através da
leitura, os alunos são evocados à reflexão, ampliando suas visões e leituras e, dessa
forma, compreendendo a estrutura social. Assim, questionamos que se esses docentes
não têm conhecimento básico sobre Literatura Africana, em especial, de língua
portuguesa, bem como uma Literatura Afro-brasileira, ou negrobrasileira, como poderão
adicionar esses textos em suas aulas e, mesmo adicionando, que instrumentos
possibilitam a leitura efetiva desses textos por parte dos docentes e discentes.
Ainda, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-brasileira e Africana destaca que uma das ações objetivadas para os IES
(Institutos de Educação Superior) é: “Construir, identificar, publicar e distribuir material
didático e bibliográfico sobre as questões relativas à educação das relações étnico-raciais
para todos os cursos de graduação.” (BRASIL, 2009, p. 54). Logo, analisamos um
documento autorreflexivo, repensado coletivamente a cada quatro anos, com tempo
suficiente para que as mudanças inerentes a Educação Étnico-Racial e, sobretudo, com
significativo aumento de discentes negros desde 2012 com o Decreto nº 7.824/2012 que
tem atingido, também, alguns programas de pós-graduação, mas ainda não atingindo o
corpo docente das Universidades.
2
Disponível em <http://bdtd.ibict.br/> Acesso em 23/07/2020.
PCC LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE (FURG)
Criado em 1964, o Curso de Letras passou por inúmeras mudanças como as
adições dos cursos com habilitação dupla nas línguas inglesa, espanhola e francesa.
Neste trabalho escolhemos o curso de licenciatura do campus Carreiros por ser o mais
antigo e, portanto, o que tivera seu PPC discutido mais vezes. Além disso, o campus
comporta o Programa de Pós-graduação em Letras, atualmente com duas áreas de
concentração- História da Literatura e Estudos da Linguagem, em níveis de mestrado e
doutorado, em História da Literatura, e em nível de mestrado em Estudos da Linguagem.
O curso é estruturado em oito semestres com estágio supervisionado na educação básica
e sem a obrigatoriedade do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Não há no PPC
nenhuma menção à Lei 10.639/2003 ou acerca da educação étnico-racial o que já nos
aponta uma lacuna em relação a essa formação docente. Ainda assim, em consonância
com o PPPI (Projeto Político Pedagógico Institucional) da Universidade destacado no
PPC, uma das três diretrizes afirma o objetivo de: “Formar cidadãos cultural, social e
tecnicamente capazes” (FURG, 2017, p. 8).
O objetivo geral do curso é descrito no documento de forma genérica, porém prevê
a formação de profissionais aptos para lidarem com a diversidade cultural:

O curso de Letras Português visa formar profissionais para a atuação ética e


crítica na sociedade contemporânea, em sua complexidade e diversidade cultural,
dotados de uma visão teórico-prática da língua e da literatura. (FURG, 2017, p. 5)

Assim, percebemos que há dentro desse objetivo o ensino de educação étnico-


racial, mesmo sem haver menção alguma acerca da Lei 10.639/2003. O Curso oferece
nos dois primeiros semestres a disciplina de “Seminário de cultura brasileira” com 45 h/a
cada uma, o que poderia demarcar uma potencialidade nas discussões étnico-raciais,
contudo, as ementas das disciplinas não contemplam essa discussão. Em “Seminário de
cultura brasileira I” a ementa delimita cronologicamente os estudos que vão do século XIX
a década de 1970. Já em “Seminário de cultura brasileira II” o recorte cronológico é mais
extenso contando com as décadas de 1980 e 1990 e o século XXI e inclui a cultura de
massa nessas discussões. Mesmo assim, as disciplinas permitem a possibilidade de
discutir as questões étnico-raciais, sem orientar para esse fim. O maior problema, em
relação às disciplinas, são as referências básicas elencadas em que não há nenhum
teórico que problematize a negritude ou às questões étnico-raciais com uma pequena
abertura para a obra Cultura brasileira e identidade nacional (2006), do professor
universitário Renato Ortiz (1927- ) que utiliza como base teórica os estudos do médico
Nina Rodrigues (1862-1906), do jornalista Sílvio Romero (1851-1914) e do sociólogo
Gilberto Freyre (1900-1987), base, no mínimo desatualizada, bem como determinantes e
racistas, no sentido mais amplo da palavra.
Em relação às disciplinas de Literatura, percebemos um bom espaço para a
formação consistente dos docentes nesta área totalizando 690 h/a. Por semestre, as
disciplinas ocupam, em média, 75 h/a, com maior concentração no quinto semestre em
que são totalizadas 150 h/a. A maioria das disciplinas é dividida em dois ou mais
semestres com exceção de “Práticas de ensino de Literatura” (30h/a) disponível no quinto
semestre, quando os alunos iniciam seus estágios supervisionados; e “Teoria da
Literatura” (30h/a), disponível no sétimo semestre, o que não faz muito sentido prático,
além de essa disciplina ter como pré-requisito “Introdução aos estudos literários II”
(45h/a), cursada pelos alunos no segundo semestre. Ainda, disponibiliza como disciplinas
obrigatórias: Dois semestres de “Introdução aos estudos literários” (60h/a); Dois
semestres de “Literatura Ocidental” (90h/a); Dois semestres de “Literatura infantil e
juvenil” (90h/a); dois semestres de “Literatura do Rio Grande do Sul” (90h/a); quatro
semestres de “Literatura portuguesa” (120h/a); e quatro semestres de “Literatura
brasileira” (180h/a).
Assim, o Curso não prevê nenhuma cadeira de “Literaturas africanas”, nem
“Literatura afro-brasileira” dentro do quadro de disciplinas obrigatórias. Contudo, há
espaço para que os docentes pensem acerca das relações étnico-raciais, sobretudo nas
disciplinas de: “Práticas de ensino de Literatura”; “Literatura brasileira”; “Literatura infantil
e juvenil”; e “Literatura do Rio Grande do Sul”. Mesmo assim, as ementas dessas
disciplinas destacam essa possibilidade. Como exemplo, a ementa da disciplina de
“Literatura brasileira IV” (45h/a) que prevê o estudo: “[Do] Romance de 30 e suas relações
com o ideário modernista da década de 20; novos conceitos de brasilidade; inovações
formais. Experimentalismo radical: a prosa urbana e a prosa regionalista; a poesia
experimental.” (FURG, 2017, p. 32), logo, a possibilidade de discutir a “brasilidade” é
pensada, mas sem arcabouço teórico pertinente voltado a uma lista de Histórias da
literatura brasileira canônicas: autores brancos com alguma formação acadêmica e
algumas mulheres também brancas e, em poucas páginas, alguns autores negros como,
por exemplo, Cruz e Sousa (1861-1898).
Há, no entanto, uma disciplina não obrigatória, entre doze disponíveis, que trata da
Literatura africana: “Literaturas africanas de língua portuguesa” (45h/a), a ementa da
disciplina prevê o estudo de: “Literatura colonial e anti-colonial. Poesia, conto e romance.
Periódicos literários. Confluências literárias. Sociedade e história. Oratura e letramento.
Formação da nação e literatura. Etnicidade. Raça. Religiosidades. Mitos. Identidades
culturais.” (FURG, 2017, p. 51). Apesar de englobar as questões étnicas em sua ementa a
bibliografia básica não traz nenhum estudo pertinente e atualizado, mas perpassa as
literaturas de Angola, de Moçambique e de Cabo Verde, faltando a Literatura de Guiné-
Bissau bem como a obra Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre a literatura afo-
luso-brasileira (2002), da pesquisadora negra Laura Padilha que é basilar para discutir
literaturas africanas de língua portuguesa.
Mesmo não engajado, o Curso traz possibilidades de seus docentes introduzirem,
de forma transdisciplinar, as questões étnico-raciais. Levantamos algumas: Em “Literatura
infantil e juvenil”, há a possibilidade da análise de livros de autoria negra como, por
exemplo, Omo-Obá: Histórias de princesas (2009), de Kiusam de Oliveira (1965- ),
disponível nas escolas através do PNBE (Plano Nacional Biblioteca na Escola), entre
outras obras. Já em “Literatura brasileira”, as possibilidades são mais amplas indo desde
os Cadernos Negros, organizados pelo grupo Quilombhoje, a partir da década de 1970
até a literatura brasileira contemporânea que conta com autores como Cuti (Luiz Silva
[1951- ]); Conceição Evaristo (1946- ); Cristiane Sobral (1974- ); Ana Maria Gonçalves
(1970- ); Carolina Maria de Jesus (1914-1977); entre tantos outros nomes. Por fim, em
“Literatura do Rio Grande do Sul” há nomes importantes como Maria Helena Vargas da
Silveira (1940-2009) e Oliveira Silveira (1941-2009), com substancial número de obras
publicadas e as autoras e autores que surgem a partir do sarau “Sopapo Poético”.

PPC LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS (UFPel)


Criado em 1984, o Curso de Letras da UFPel conta, também, com cursos de Letras
bacharelado, com habilitação em redação e revisão de textos; tradução em Inglês; e
tradução em espanhol. Das Licenciaturas, além da de língua portuguesa e literaturas em
língua portuguesa, conta com as bilíngues: em inglês; em francês; em espanhol; e em
alemão. A Universidade também comporta o Programa de Pós-graduação em Letras com
área de concentração em Linguagem, texto e imagem e três linhas de pesquisa:
Aquisição, variação e ensino; Texto, discurso e relações sociais; e Literatura, cultura e
tradição. O curso de Letras é estruturado em oito semestres tendo uma disciplina de
Literatura em cada um com exceção do último. Assim como o Curso da FURG, o Curso
da UFPel também não exige um TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Acerca da Lei
10.639/2003, o PPC cita a Lei discorrendo em um subcapítulo intitulado “Dos direitos
humanos, do direito à diversidade, da superação do racismo e da defesa da inclusão
social e racial no âmbito da formação oferecida pelo curso” . Nesse item, o PPC reflete
sobre o acesso e permanência de alunos afrodescendentes e indígenas na universidade.
Acerca do objetivo geral do curso ele é descrito em duas partes: A primeira voltada
para a docência e a formação inicial pautada em: “Proporcionar ao aluno uma formação
linguística, pedagógica e literária que o capacite para atuar desde o Ensino Fundamental
II e Ensino Médio até os cursos livres, ensino técnico e superior.” (UFPel, 2018, p. 15) e
outra mais generalista acerca da inserção docente na sociedade que visa: “Contribuir,
através do ensino, da pesquisa e da extensão, para o desenvolvimento dos estudos
linguísticos e literários, bem como da metodologia relacionada com o ensino de língua e
literatura.” (UFPel, 2018, p. 15). Podemos depreender, então, que o objetivo geral do
curso é formar docentes reflexivos capazes e aptos a formar cidadãos reflexivos e
criativos, logo, há a preocupação acerca das questões étnico-raciais, ou deveriam ter.
As disciplinas obrigatórias de Literatura somam 595 h/a e estão dispostas do
primeiro ao sétimo semestre, ou seja, sete disciplinas obrigatórias com 85 h/a cada uma.
No primeiro semestre, como é de praxe, é ofertada a disciplina de “Introdução aos
estudos literários”; no segundo e terceiro semestre são oferecidas as duas etapas da
disciplina de “Panorama cultural da Literatura brasileira” (170h/a), o recorte das disciplinas
é cronológico sendo a primeira do “descobrimento” ao final do século XIX e a segunda a
partir do século XX; A disciplina de “Crítica literária” é ofertada aos alunos do quarto
semestre, que no quinto cursam a disciplina de “Leituras dirigidas: autores e obras” que
permitem ao docente da disciplina inúmeras possibilidades.
As disciplinas ofertadas no sexto, “Tópicos da literatura brasileira”, e no sétimo
semestre, “Panorama cultural das literaturas portuguesa e Africana”, são importantes para
a presente discussão. Apesar de não haver a delimitação do estudo de literatura afro-
brasileira na disciplina de “Tópicos da literatura brasileira”, a ementa permite essa
inserção ao prever o: “Estudo e discussão de temas, obras, autores e tendências da
literatura brasileira.” (UFPel, 2018, p. 80). Além disso, não há uma bibliografia básica que
depende das escolhas do docente adotando um ou mais tópicos sugeridos que incluem o
estudo de Literatura negra. Mesmo assim, nada garante que esse estudo não seja
tangenciado pelo docente. Já “Panorama cultural das literaturas portuguesa e africana”,
há um conflito presente desde a ementa que prevê o: “Estudo das articulações históricas,
culturais e ideológicas da formação e consolidação dos cânones das literaturas
portuguesa e africanas de língua portuguesa, com ênfase na produção moderna (Século
XX em diante).” (UFPel, 2018, p. 83). O que nos preocupa acerca dessa disciplina é como
contemplar duas literaturas extensas em seus cânones sem correr o risco de
comparações que possam subalternizar, ainda mais, a literatura africana de língua
portuguesa.
O último semestre concentra as disciplinas não obrigatórias, ou complementares
em que os alunos optam pelas disciplinas ofertadas todas com carga-horária de 68h/a.
Dessas disciplinas não há nenhuma que abranja as literaturas africanas, nem mesmo que
discuta a literatura afro-brasileira, mas há três que possibilitam essa discussão: “Narrativa
brasileira contemporânea” que traz em sua ementa a análise crítica de produção narrativa
contemporânea brasileira, além de referenciar como básica a obra de Stuar Hall (1932-
2004), A identidade cultural na pós-modernidade (2006); “Estudos de literatura
brasileira- Poesia” que permite a leitura dos poetas já citados ou mesmo discutir a
negritude dos slamers, sobretudo: Roberta Estela D’alva (1978- ), Mel Duarte (1988- ) e
Luz Ribeiro (1988- ); “Estudos de literatura brasileira- ficção” que possibilita o estudo dos
contos negrobrasileiros, em especial, a antologia Olhos de azeviche (2017), da editora
Malê; e “Estudos de literatura brasileira- ficção” que possibilita pensar as dramaturgas e
dramaturgos a partir da antologia Dramaturgia negra (2019), com destaque para Grace
Passô (1980- ) e Cristiane Sobral (1974- ).
Apesar de não prever nenhuma disciplina obrigatória que traga a cultura e literatura
africana e/ou afro-brasileira, há possibilidades desse trabalho pelos docentes, contudo
isso não garante uma base, no mínimo sólida, na formação inicial desses docentes.
Contudo, podemos perceber uma preocupação do curso acerca das discussões étnico-
raciais, mas nenhum engajamento para que ela efetivamente ocorra. E, como sugerimos,
não é por falta de uma lista bibliográfica de obras dessas literaturas, elas existem e estão
no mercado, mas, talvez, por falta de uma reflexão efetiva, bem como a busca de mais
espaço para as disciplinas de literatura, já que não há TCC (Trabalho de Conclusão de
Curso) que acabam tomando um ano de pesquisa extensa por parte dos discentes.

PPC LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA- JAGUARÃO (UNIPAMPA-


JAGURÃO)
O Curso de Letras da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), do campus
Jaguarão surge em 2008 junto com a própria universidade através da Lei 11.640, 11 de
janeiro de 2008 e fora estruturado através de um acordo de cooperação com as
universidades federais que, no caso do curso de Letras, é implantada pela UFPel. Além
do curso de Licenciatura em Letras- Português e Literatura de língua portuguesa, o
campus oferece a habilitação dupla em espanhol, presenciais, e cursos na modalidade
EaD (Ensino a Distância) com habilitação em Português em Português/Espanhol. Apesar
de não comportar nenhum curso de pós-graduação stricto senso na área de Letras, há no
campus o Mestrado Profissional em Educação que, infelizmente, não traz nenhuma
disciplina acerca da educação étnico-racial.
O Curso é estruturado em oito semestres contando, além dos estágios
supervisionados obrigatórios, com TCC (180h/a) que possibilita aos alunos a experiência
com a pesquisa acadêmica e delimitação de um tema podendo servir como
aprofundamento das literaturas africanas e afro-brasileiras. O PPC menciona a Lei
10.639/2003 no capítulo das legislações, em especial, no item “d) Legislação Geral”, além
de constar com a inclusão dos estudos referentes à temática das relações étnico-raciais.
Ainda, ratificam-se no PPC que o curso está em consonância as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Étnico-Racial através da abordagem transversal, mas ao
mesmo tempo em que identificam duas disciplinas voltadas para essa temática:
“Literaturas africanas de língua portuguesa” (45h/a) e “História da língua portuguesa”
(45h/a), o que já identifica que a abordagem não é transversal, mas sim dirigida. O
objetivo geral do Curso é o mais extenso dos quatro, agregando vários objetivos
específicos:

O Curso de Letras- Português e Literatura de Língua Portuguesa- Licenciatura,


comprometido em concretizar a missão institucional da UNIPAMPA, tem por
objetivo geral proporcionar uma formação linguística, pedagógica e literária capaz
de habilitar adequadamente o aluno ao exercício da docência na educação básica
(área de Letras), bem como possibilitar o desenvolvimento de um senso crítico,
necessária ao futuro profissional, para que possa atuar efetivamente no contexto
sócio político e cultural em que estará inserido, contribuindo, através do ensino, da
pesquisa e da extensão, para o desenvolvimento dos estudos linguísticos e
literários; bem como com metodologias relacionadas ao ensino de línguas e
literaturas. (UNIPAMPA-Jaguarão, 2017, p. 46)

O objetivo geral se mostra em consonância com a formação docente, contudo não


se engaja nas reflexões acerca dos estudos étnico-raciais, nem mesmo na discussão das
diferenças sociais. Sobre as disciplinas obrigatórias de Literatura, percebemos uma boa
parcela, sendo que há a oferta de uma disciplina do primeiro ao terceiro semestre e duas
disciplinas do quarto ao sétimo semestre, totalizando a carga-horária de 630 h/a,
concentradas no sexto semestre em que totalizam 135 h/a. No primeiro semestre a
disciplina “Literatura e outras linguagens” (60h/a) introduz, aos discentes, questões acerca
de conceitos de literatura para, no segundo e terceiro semestres, cursarem a disciplina de
“Teoria Literária” (150h/a) dividida nos dois semestres, em que são apresentados os
vieses teóricos que possibilitam as leituras/análises literárias. Já no quarto semestre há a
oferta da disciplina de “Literatura infantojuvenil” (60h/a), além e “Literatura portuguesa I”
(45h/a), o que traz uma noção dessa literatura que pode ser estudo pelo viés étnico-racial,
contudo, o que nos parece estranho é que há o conceito de duas literaturas que, apesar
das intersecções, são diferentes: a literatura infantil, ou para crianças, e a literatura
juvenil, ou para jovens.
Ainda, as disciplinas de “Literatura portuguesa” totalizam, no Curso, 135 h/a em
três semestres de 45 h/a cada, e de “Literatura brasileira” totalizam 150 h/a divididas em
um semestre de 90 h/a (sexto semestre) e outro de 60 h/a (sétimo semestre), divididos
cronologicamente da formação ao modernismo e a contemporaneidade, o que permite um
aprofundamento da literatura afro-brasileira, mesmo assim, não constando nem na
ementa, nem na bibliografia básica da disciplina. No quinto semestre, o de maior
concentração de disciplinas obrigatórias em Literatura, há a oferta do componente
“Literatura regional pampiana” (30h/a), o que é interessante pelo espaço em que o curso
está inserido, contudo, a carga-horária, ao que parece, não consegue abarcar
suficientemente a literatura gaúcha e, talvez, não seja possível analisar os autores
gaúchos negros, mas há essa possibilidade.
Então, descrita como disciplina em consonância com a Lei 10.639/2003,
“Literaturas africanas de língua portuguesa” (45h/a) traz em sua ementa a seguinte
descrição:

Estudo de tópicos relevantes das práticas literárias contemporâneas em países


africanos de língua portuguesa. O corpus de análise deverá responder: sobre a
natureza, a função dessa literatura e seus compromissos com a história e a
sociedade. Reflexão sobre potencialidades didáticas do ensino de literatura na
escola. (UNIPAMPA-Jaguarão, 2017, p. 115)

O que recorta a literatura produzida nos países africanos colonizados por Portugal,
contudo, nos parece que há uma tentativa de reflexão das marcas do processo histórico
de colonização do que propriamente discussões literárias, pois a bibliografia básica traz
três, das cinco elencadas, sobre história, sendo uma a obra História Social da Literatura
Portuguesa (1990), de Benjamin Abdala Jr e Maria Aparecida Paschoalin, dois
pesquisadores brasileiros não negros. Referência essa que nos faz questionar as
discussões apresentadas na disciplina acerca de que imagem africana de Angola,
Moçambique e Cabo Verde, faltando as literaturas de Guiné-Bissau e de São Tomé e
Príncipe, é apresentada aos discentes nessa disciplina única de carga horária reduzida
em relação às disciplinas de Literatura portuguesa e de Literatura brasileira.
Se o quadro de disciplinas obrigatórias não prevê um estudo crítico satisfatório das
literaturas africanas, nas disciplinas complementares também não há essa preocupação.
Há uma única disciplina que aprofunda o conhecimento acerca da literatura africana,
“Tópicos de Literaturas africanas” (30h/a) que traz em sua ementa: “As formulações
teóricas pós-coloniais e os percursos das literaturas africanas de língua portuguesa em
diálogo com os contextos coloniais e pós-coloniais” (UNIPAMPA- Jaguarão, 2017, p. 154).
A disciplina traz como arcabouço teórico, nas bibliografias básica e complementar, os
principais estudos pós-coloniais, mas ainda há a falta de uma reflexão acadêmica afro-
centrada que possibilite aos discentes arcabouço teórico suficiente para a análise dessa
literatura como, por exemplo, as questões filosóficos apresentadas por Achille Mbembe
(1957- ) e as questões históricas refletidas por Joseph Ki-zerbo (1922-2006), ambos
africanos negros.
Ainda, há a possibilidade de uma reflexão das questões étnico-raciais a partir dos
TCCs (120h/a) em que os alunos são orientados pelos discentes, contudo não
encontramos nenhuma orientação dessa natureza no currículo, cadastrado na plataforma
Lattes, dos docentes e apenas um projeto de pesquisa, “Discurso literário das nações
africanas” coordenado pelo prof. Dr. Luis Fernando da Rosa Marozo desde 2009 e ainda
não encerrado. Assim, apesar das lacunas nas disciplinas obrigatórias que negam a
afirmação de uma abordagem transversal das questões étnico-raciais, há possibilidades
dessa abordagem nas disciplinas, em especial, de Literatura brasileira. Contudo,
percebemos a falta de um comprometimento com a obrigatoriedade das culturas e
literaturas africanas e afrodiaspóricas.

PPC LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA- BAGÉ (UNIPAMPA- BAGÉ)


O Curso de Letras da UNIPAMPA, campus Bagé, também surge com a própria
universidade em 2008 através da Lei 11.640, 11 de janeiro de 2008 e, também, fora
estruturado através de um acordo de cooperação com as universidades federais que, no
caso do curso de Letras, é implantada pela UFPel. Em 2011 o curso é alocado, junto aos
demais, na sede fixa do campus na cidade de Bagé-RS. Além do curso de Licenciatura
em Letras- Português e suas respectivas literaturas, o campus oferta o Curso de Letras
línguas adicionais- habilitação em espanhol, inglês e suas respectivas literaturas. Na área
de Letras, o campus comporta dois Programas de Pós-graduação stricto senso, um
profissional em Ensino de Línguas e outro acadêmico em ensino comportando a linha de
pesquisa “Ciências Humanas e Linguagens”. O curso também prevê a disciplina de TCC
nos dois últimos semestres, contudo, com uma carga-horária estendida de 225 h/a.
A Lei 10.639/2003 é citada no capítulo que traz a Legislação Federal sem haver
uma divisão, como ocorre no PPC de Letras da UNIPAMPA-Jaguarão (2017), destacando
que, sobre a educação étnico-racial, o Curso prevê: “(...) a abordagem das questões
étnico-raciais como tema transversal em diversos componentes curriculares.”
(UNIPAMPA-Bagé, 2019, p. 27) e cita algumas das disciplinas obrigatórias, em um
primeiro momento, destacando, então, as disciplinas não obrigatórias complementares
“Cultura africana” (60h/a) e “Estudos literários afro-brasileiros e indígenas” (60h/a).
Infelizmente não há nem nas ementas, nem nas bibliografias básicas, textos que
coadunem para a transversalidade das questões étnico-raciais, além de não constarem
no documento os ementários das disciplinas complementares. Contudo, há uma disciplina
obrigatória que reflete acerca da Literatura africana de língua portuguesa, “Literatura de
expressão portuguesa III” (60h/a) que discute especificamente essa literatura.
O objetivo geral do curso destaca a formação desses docentes de Língua
Portuguesa e Literatura ao afirmar em seus propostos de: “Proporcionar uma formação
linguística e literária capaz de habilitar adequadamente o aluno ao exercício do magistério
em componentes de Língua Portuguesa e Literatura na Educação Básica.” (UNIPAMPA-
Bagé, 2019, p. 30) que, pensando no exercício de um TCC garante ao profissional
autonomia para pesquisar as temáticas que, por inúmeras razões, tenham sido lacunares
em sua formação inicial. Outro ponto é a exigência de cursar seis disciplinas
complementares que, entre elas, estão àquelas voltadas para a obrigatoriedade da Lei
10.639/2003 e 11.645/2008.
Diferente dos demais cursos, o Curso de Letras da UNIPAMPA-Bagé é estruturado
em nove semestres contendo disciplinas de Literatura do primeiro ao oitavo semestre
totalizando 750 h/a de disciplinas obrigatórias dedicadas aos estudos literários. A maior
concentração de carga-horária ocorre no terceiro semestre, 135 h/a, em que são
ofertadas as disciplinas de “Literatura para crianças e jovens” (75h/a) e Teoria da
Literatura (60h/a). Nos primeiros semestres são oferecidas as disciplinas introdutórias de
“Leitura de formação” (60h/a); “Estudos Literários” I e II (120h/a); e “Leitura de clássicos”
(60h/a) que oferecem uma perspectiva geral do cânone literário ocidental, bem como a
reflexão teórica sobre os estudos literários. A disciplina de “Literatura brasileira” (135h/a) é
ofertada em dois semestres e divididas cronologicamente em formação da Literatura
Brasileira e Literatura brasileira dos séculos XX e XXI, possibilitando a abordagem da
Literatura afro-brasileira que se expande a partir da década de 1970 com o grupo
Quilombhoje. A Literatura portuguesa é tema das disciplinas de “Literaturas de expressão
portuguesa” I e II (120h/a), também dividas cronologicamente. Além disso, há no quarto
semestre, um semestre antes do inicio dos estágios supervisionados obrigatórios, a oferta
da disciplina de “Práticas de ensino de Literatura” (60h/a) que permitem, também, a
reflexão das questões étnico-raciais.
A ementa da disciplina “Literatura de expressão portuguesa III” (60h/a), que é
descrita no PPC como em consonância à Lei 10/639/2003, traz em ementa:

Estudos da produção literária africana de expressão portuguesa, em especial a de


países como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Representação
de gênero e raça na cultura africana. Elaboração de projetos de ensino e/ou
materiais didáticos com a produção literária africana, adequados a abordagens em
situações de ensino. (UNIPAMPA-Bagé, 2019, p. 138)

O que evidencia a preocupação da disciplina com sua prática pedagógica na educação


básica. Além disso, na bibliografia básica constam antologias importantes da Literatura
africana de língua portuguesa como, por exemplo, Contos do mar sem fim (2010) que
traz contos de autores angolanos, brasileiros e guineenses. Outra obra é o romance
Niketrche: uma história de poligamia (2004), da moçambicana Paulina Chiziane (1955- ),
basilar para uma compreensão/reflexão satisfatória dessa Literatura. Ainda há, na lista de
disciplinas complementares de “Cultura africana” (60h/a); “Estudos literários afro-
brasileiros e indígenas” (60h/a) direcionados para a educação étnico-racial, bem como a
possibilidade dessa discussão nas disciplinas de “Estudos de cultura brasileira” (60h/a) e
de “Literatura memorialista” (60h/a).
O quadro de professores de literatura é hegemonicamente não negro, contudo
esses docentes têm orientado trabalhos que trazem como objeto de pesquisa uma ou
mais obras da Literatura africana e da Literatura afro-brasileira, além de manterem em
seus projetos essa preocupação com destaque para o projeto de extensão “Literatura
afro-brasileira- Abordagem introdutória” que teve seu primeiro módulo em 2019
coordenado pela profa. Dra. Miriam Denise Kelm. Logo, a discussão das relações étnico-
raciais não é deixada de lado em detrimento à cultura do colonizador, contudo, ainda falta
tornar obrigatório o componente que trata da Literatura afro-brasileira que permite
diversos vieses e leituras já a partir da nomenclatura conceitual: Literatura afro-brasileira;
Literatura negra; Literatura afro-feminina; Literatura negro-feminina; e outros que vão
surgindo pela exigência heterogênea do objeto em questão.

POR UMA EDUCAÇÃO ENEGRECIDA

A poeta Mel Duarte (1988-), no poema “Sobre empoderar” reafirma o objetivo


desse pesquisador: “Eu quero invadir escolas com histórias negras!” (DUARTE, 2016, p.
24) e para isso é preciso questionar os documentos oficiais, sobretudo, os que trazem as
diretrizes para a formação inicial dos docentes da Educação Básica. Se eles não têm a
oportunidade de discutir, orientados pelos professores pesquisadores, acerca das
questões étnico-raciais nas academias e, nem mesmo, lhes são ofertadas ferramentas de
pesquisa como cumprir com a obrigatoriedade da legislação? Assim, buscamos nos PPCs
dos cursos de letras, em especial em seus objetivos gerais e nas ementas das disciplinas
obrigatórias, arcabouço teórico que possibilite a base para esses docentes. O recorte,
ainda, deu-se nas disciplinas de Literatura, sondando aquelas específicas para esse fim e,
ainda, outras lacunares, mas que apresentam potencialidade para a discussão.
Ainda podemos perceber que as relações étnico-raciais na educação básica é
lacunar, a Lei demora em ser efetivada e muito dessa demora orbitam na falta de uma
discussão efetiva na formação inicial desses docentes. Os cursos mais antigos que,
logicamente, passaram por mais reflexão, pelo menos desde 2003, foram os da FURG e
da UFPel ambos não comprometidos com os estudos étnico-raciais, além de constituírem,
através dos programas de pós-graduação, centros de pesquisa em Literatura. Já os
cursos mais novos advindos de dois campi da UNIPAMPA demonstram em seus
documentos uma preocupação maior, com engajamento do campus Bagé que já oferta as
disciplinas de “Cultura africana” e “Estudos literários afro-brasileiros e indígenas”, mesmo
que não obrigatórias e optativas que dependem da oferta pelos docentes.
O PPC de Letras da FURG, apesar da carga horária total das disciplinas de
Literatura somarem 690 h/a não há nenhuma disciplina obrigatória que traga em sua
ementa, ou mesmo bibliografia básica, teóricos ou obra literárias advindas da Literatura
africana, sobretudo a de língua portuguesa, ou da Literatura afro-brasileira, mantendo
apenas uma disciplina não obrigatória “Literaturas africanas de língua portuguesa” (45h/a)
e que, mesmo assim, apresenta uma bibliografia desatualizada e que analisa autores
africanos brancos como Mia Couto (1955- ); Pepetela (1941- ); José Eduardo Agualusa
(1960- ) e outros, demarcando que o racismo brasileiro é fenotípico. Contudo, traz muitas
disciplinas que poderiam abarcar as relações étnico-raciais, sobretudo as disciplinas de
“Seminário de cultura brasileira” (90h/a).
Já o PPC de Letras da UFPel, apesar de mencionar a Lei 10.639/2003, traz apenas
a disciplina de “Panorama cultural das literatura portuguesa e africana” (85h/a), em que as
Literaturas africanas são discutidos pelo viés colonial e ao lado, comparativamente, com a
Literatura portuguesa. Mas traz a possibilidade de discutir Literatura negra na disciplina
“Tópicos da literatura brasileira”, sem a obrigatoriedade ou o direcionamento podendo ser
substituído pelas discussões de Literatura infantil e juvenil que também não são pensadas
dentro das disciplinas obrigatórias. Apesar de contar com a menor carga horária das
disciplinas de Literatura dos quatro cursos, 595 h/a, o curso também traz a possibilidade
da transversalidade das discussões étnico-raciais.
O PPC de Letras da UNIPAMPA-Jaguarão já prevê as discussões étnico-raciais
engendradas pela Lei 10.639/2003 e, apesar de se dizer transversal não atinge esse
objetivo em suas disciplinas obrigatórias, pelo menos em sua bibliografia, mas também
não restringe o trabalho dos docentes por esse viés. Além disso, traz apenas a disciplina
de “Literaturas africanas de língua portuguesa” (45h/a) como obrigatória e, mesmo assim,
com uma bibliografia básica desatualizada e reducionista aos autores africanos de língua
portuguesa brancos, contando, inclusive, com uma obra que abarca a cultura portuguesa.
Mesmo contando com TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) apresenta carga horária
baixa, 630h/a, nas disciplinas literárias, bem como um quadro docente voltado
hegemonicamente para a tradução, do espanhol, com especialização em autores
hispano-americanos. As disciplinas que possibilitam a discussão étnico-racial também são
reduzidas restando “Literatura brasileira II” (60h/a) com o estudo de autores
contemporâneos.
Por fim, o PPC de Letras da UNIPAMPA-Bagé é o que apresenta maior
consistência com a formação docente apta às discussões étnico-raciais. Além de citar a
Lei 10.639/2003 demonstra o caráter transversal dessas discussões. Dos quatro PPC é o
que concentra maior carga horária das disciplinas de Literatura, 690 h/a, primando pela
aplicabilidade dos conceitos analíticos das obras literárias. Contudo, traz apenas uma
disciplina obrigatória, “Literaturas de expressão portuguesa III” (75h/a) com bibliografia
básica atualizada que, apesar dos autores africanos brancos, elenca a obra da autora
negra moçambicana Paulina Chiziane (1955- ). Ainda, as disciplinas não obrigatórias de
“Cultura africana” (60h/a) e “Estudos literários afro-brasileiros e indígenas” (60h/a)
evocam o engajamento do curso na formação desses docentes da educação básica, além
das orientações de TCC já defendidas que discutem essas relações.
Estamos, ainda, muito longes de termos um engajamento real com as questões
étnico-raciais, pelo menos nos cursos de Letras. Os docentes negros ainda não ocupam
os cargos nas Universidades que têm contribuído para a manutenção do status quo social
de base machista e racista. Contudo, a luta antirracista não precisa partir sempre do
oprimido, ela deve partir dos opressores compreendendo seus privilégios e a estrutura
que ainda não dá oportunidades aos negros. É preciso mudanças urgentes,
responsabilidade com a formação inicial docente e real consonância com a legislação
federal. Se nos PPC de Letras em universidades federais são omissos, tangenciando as
discussões étnico-raciais, não é possível mensurar as lacunas das universidades
privadas. Por fim, esse trabalho tem o objetivo de contribuir para as discussões/reflexões
da educação étnico-racial dentro dos cursos de Letras das mesorregiões sul e sudeste do
Rio Grande do Sul, estado majoritariamente branco com uma população negra (r)
existente.

REFERÊNCIAS
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<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2003/lei-10639-9-janeiro-2003-493157-veto-
13762-pl.html> Acesso em 23/07/2020.
BRASIL. Lei 11.645 de 10 de março de 2008. Ministério da Educação. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm> Acesso em
23/07/2020.
BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
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BRASIL. Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações
Étnico-Raciais. Brasília: SECAD/MEC, 2006.
DUARTE, Mel. Negra nua crua. São Paulo: Ijumaa, 2016.
OLIVEIRA, Kiusam. Omo-oba: Histórias de princesas. Ilustração Josias Marinho. Belo
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
PADILHA, Laura Cavalcanti. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas
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