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Agricultura Familiar
Agricultura Familiar
Identidade, Cultura, Gênero e Etnia

Ministério
da Educação
1 Caderno Pedagógico Educandas e Educandos
ProJovem Campo - Saberes da Terra

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Coleção Cadernos Pedagógicos
ProJovem Campo-Saberes da Terra

Agricultura
Familiar
Identidade, Cultura,
Gênero e Etnia

Caderno Pedagógico Educandas e Educandos

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Ministério da Educação/SECAD
Esplanada dos Ministérios
Bloco L - Edifício Sede
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Ministério CEP 70.047-900
da Educação BRASÍLIA - DF

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Coleção Cadernos Pedagógicos
ProJovem Campo-Saberes da Terra

Agricultura
Familiar
Identidade, Cultura,
Gênero e Etnia

Caderno Pedagógico Educadoras e Educadores

Ministério
BRASÍLIA | DF | 2010 da Educação

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©2010. SECAD/MEC

Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Diretoria de Educação para a Diversidade
Coordenação Geral de Educação do Campo

Coordenação
Armênio Bello Schmidt
Sara de Oliveira Silva Lima
Wanessa Zavarese Sechim

Equipe Técnica Pedagógica – SECAD/MEC

Eduardo D’Albergaria de Freitas


Eduardo Góis de Oliveira
Gilson da Silva Costa
João Staub Neto
José Roberto Rodrigues de Oliveira
Lisânia de Giacometti
Michiele Morais de Medeiros Delamôra
Oscar Ferreira de Barros

Equipe Técnica Pedagógica - UFPE/NUPEP

João Francisco de Souza (In Memorian)


Zélia Granja Porto
Karla Tereza Amélia Fornari de Souza
Rigoberto Fúlvio Melo Arantes
Maria Fernanda Alencar
Almeri Freitas de Souza

Equipe Técnica Pedagógica - UFPA

Jaqueline Cunha da Serra Freire


Evandro Medeiros
Romier da Paixão Souza
Evanildo Estumano

Editoração de comunicação
Dirceu Tavares de Carvalho Lima Filho

Projeto gráfico
Adrianna Rabelo Coutinho

Ilustração
Henrique Koblitz Essinger

Revisão
Antônio Neto das Neves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Centro de Informação e Biblioteca em Educação (CIBEC)

Agricultura familiar: identidade, cultura, gênero e etnia: caderno pedagógico educandas e educandos / Coordenação: Armênio Bello
Schmidt, Sara de Oliveira Silva Lima, Wanessa Zavarese Sechim. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2010.

144 p. il. - (Coleção Cadernos Pedagógicos do ProJovem Campo-Saberes da Terra).


ISBN 978-85-7994-057-6
1. Educação popular. 2. Agricultura familiar. 3. Educação de Jovens e Adultos. 4. Educação no Campo. I. Brasil. Ministério da Educação.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. II. Schmidt, Armênio Bello. III. Lima, Sara de Oliveira Silva. IV. Sechim,
Wanessa Zavarese.

CDU 374.71

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Sumário
1. Carta às/ aos educandas/os 11

2. Eixo Articulador – Agricultura Familiar e Sustentabilidade 19

3. Eixo temático 1 – Agricultura Familiar: identidade, cultura, gênero e etnia 27

4. BALAIO DE SABERES 33
Texto 01. “A via rural” (Ulisses Freitas) 34
Texto 02. “Trabalho e transformação do mundo” (Paulo Freire) 36
Texto 03. “Invernada dos Negros” 38
Texto 04. “Reculturarte: a cultura é a morada da educação”
(Carlos Rodrigues Brandão) 40
Texto 05. “As tramas da identidade” (Tião Rocha) 42
Texto 06. “A mercantilização da cultura” (Rosana Miyashiro Fahl) 46
Texto 07. “Etnia” (Chico Science e Lúcio Maia) 48
Texto 08. A cultura dos povos indígenas / “O outro mundo de Xicão Xucuru”
(Fred Zeroquatro e Zenilda Maria de Araújo) 50
Texto 09. “A serra negra, um local sagrado” (Grupo Kambiwá- PE). 52

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Texto 10. “Quem, onde, quantos indígenas?” 54


Texto 11. “Estatuto da igualdade racial: oportunidade democrática”
(Paulo Paim) 58
Texto 12. “Indicadores de desigualdade de gênero e raça no mercado
de trabalho brasileiro” 60
Texto 13. “A economia de base ecológica e as pequenas propriedades
familiares: o caso da Família Rutkoski”
(Adilson R. Bellé; Juliana Mazurana; Laura Foschina) 62
Texto 14. “Soberania alimentar, agroecologia e mercados locais” 66
Texto 15. “A agricultura familiar e a potencialização do desenvolvimento”
(CONTAG - Projeto Alternativo e Desenvolvimento Rural) 72
Texto 16. “Lei trará diretrizes para a agricultura familiar”
(Secretaria de Educação do Maranhão) 74
Texto 17. “O cio da terra” (Chico Buarque) 76
Texto 18. “A saga de Severinin” (Vital Farias) 78
Texto 19. “Serenata campesina” (Gilvan Santos) 80
Texto 20. “Essa cidade é grande: desabafo de um lavrador que deixou a terra”
(Gilvan Santos) 82
Texto 21. “Mulher guerreira”
(Maria José Barbosa – educanda do Saberes da Terra: Aliança Pernambuco) 84
Texto 22. “Juventude e agricultura ecológica no Rio Grande do Sul” 86

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Texto 23. “Juventude e fortalecimento da agricultura familiar


no semi-árido da Bahia” 92
Texto 24. “Cultura de Massa e Cultura Popular” (Alfredo Bosi) 96
Texto 25. “Retalhos, barros, miçangas. A arte de ver o belo onde ninguém vê” 98
Texto 26. “Gênero e agricultura familiar cotidiano de vida e trabalho
na produção de leite” 100
Texto 27. “Margarida Alves” 102
Texto 28. “A construção da economia feminista na Rede Xique-Xique
de Comercialização Solidária” 104
Texto 29. “Agricultoras descobrem nova forma de gerar renda e garantir
uma alimentação segura” 110
Texto 30. “Organização de mulheres e convivência com o semi-árido:
a experiência das cisterneiras no Rio Grande do Norte” 120
Texto 31. “Resgate cultural e manejo da agrobiodiversidade em roças indígenas”
(experiências Kaiabi e Yudja no Parque Indígena do Xingu, MT) 124
Texto 32. “Os agentes agroflorestais indígenas do Acre” 130
Texto 33. “A carne” Seu Jorge - Marcelo Yuca E Wilson Capellette 132
Texto 34. “Todo camburão tem um pouco de Navio Negreiro” (Marcelo Yuka) 134
Texto 35. “Canto das três raças” (Paulo César Pinheiro e Mauro Dantas) 136
Texto 36. Agricultura familiar: história, diversidade e autonomia
(Romier da P. Sousa, Fernando Michelotti e Gilson da Silva Costa)

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A reinvenção da Escola e da Agricultura Familiar

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Carta
aos Educandas e às Educandos

para as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros

Caríssima Jovem e Caríssimo Jovem

Q ue bom! Vocês resolveram mais uma vez se tornar


estudantes. Sabemos que a empreitada não é
fácil. Alguém afirmou que domar as letras é mais difícil
que domar vaca brava no pasto. Vocês são, contudo,
destemidos. Enfrentam quaisquer desafios. Não é desse
que vão fugir. Por isso, estão de parabéns!

De maneira especial, por irem estudar em um


Programa do Governo Federal que faz parte de sua
política para a juventude brasileira, inclusive a juventude

1
rural. Vocês como parte dessa juventude têm muito que
ensinar, mas também que aprender.

Esperamos que esta coletânea de leituras ajude


no equacionamento dos problemas que a Agricultura
Familiar vive no Brasil e contribua para que a
capitalização da família rural garanta um futuro brilhante
a todas e todos vocês.

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O programa do qual vocês estão participando denomina-


se ProJovem Campo – Saberes da Terra. Enquanto um
programa para as jovens e os jovens rurais, pretende
garantir as condições de qualificação social e profissional
com elevação da escolaridade. Deseja que vocês concluam
o Ensino Fundamental e com uma formação profissional
inicial nas cinco ocupações (Sistemas de Cultivo, Sistemas
de Criação, Extrativismo, Aqüicultura e Agroindústria)
do Arco ocupacional Produção Rural Familiar, além de
ampliarem a capacidade de intervenção social em suas
comunidades e no território, bem como no âmbito estadual
e nacional, num momento histórico de muitas mobilizações
da juventude rural.

Os Cadernos Pedagógicos das Educandas e dos


Educandos procuram ser um apoio na construção dessas
capacidades de vocês juntamente com os educadores,
as educadoras e as coordenações pedagógicas. Mas,
serão vocês, e somente vocês, que garantirão essas
construções. Ninguém pode substituí-los/as nessa tarefa.

Este Caderno que vocês têm em mãos corresponde


ao Eixo Temático 1: Agricultura Familiar: Identidade,
Cultura, Gênero e Etnia como parte do Eixo
Articulador Agricultura Familiar e Sustentabilidade
e do Arco Ocupacional Produção Rural Familiar e as
Ocupações a ele relacionadas, indicadas acima, que
são prioritárias no Programa do ProJovem Campo –
Saberes da Terra.

Que quer dizer Eixo Articulador? É simples. Significa


que todos os estudos que vamos realizar durante os dois
anos querem nos ajudar a compreender os problemas da
Agricultura Familiar e da Sustentabilidade. Compreender e
buscar formas de intervir nos seus problemas de tal maneira
que possamos contribuir para a sua transformação. E que
desejamos construir um conceito de Agricultura Familiar
Sustentável, bem como dinamizar formas de torná-la rentável
capitalizando as famílias e apontando horizontes de uma vida
decente para a juventude.

E o que poderia ser a expressão Agricultura


Familiar Sustentável? Quais as suas características? O
tamanho da propriedade? Os cultivos? Os criatórios? A
industrialização dos produtos? A comercialização? Sua
capitalização? As condições de vida? O estudo? O lazer?
A sucessão? A vida da juventude? A identidade (Cuidado.
Não se trata da tal carteira de identidade!)?

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Arquivo Saberes da Terra/Mato Grosso do Sul

É a essas perguntas que queremos responder com o estudo


da problemática da Agricultura Familiar e da Sustentabilidade.
Como se trata de questões bastante complexas, conformando
uma problemática que vai exigir muitos estudos e
experimentações durante todo o curso, este Eixo Articulador
Agricultura Familiar e Sustentabilidade do ProJovem Campo
– Saberes da Terra, com o objetivo de construir um novo
conceito de AGRICULTURA FAMILIAR SUSTENTÁVEL, foi
decomposto em cinco dimensões aqui denominadas Eixos
Temáticos. Os Eixos Temáticos são os seguintes:

1. Agricultura Familiar: cultura, identidade, gênero e etnia.


2. Sistemas de produção e processos de trabalho no campo.
3. Cidadania, organização social e políticas públicas.
4. Economia Solidária.
5. Desenvolvimento Sustentável e Solidário com enfoque
territorial.

Os estudos aqui propostos serão desenvolvidos de maneira


muito interessante. Será uma grande pesquisa didática
(docente e discente) desenvolvida ao longo de dois anos
letivos. Essa pesquisa pretende construir uma nova noção
de AGRICULTURA FAMILIAR SUSTENTÁVEL. Mas, ao tempo
em que se constrói a nova noção de Agricultura Familiar
Sustentável, quer garantir a todos/as os/as participantes do
ProJovem Campo – Saberes da Terra o certificado de Ensino
Fundamental, uma iniciação profissional em cinco ocupações
(Sistemas de Cultivo, Sistemas de Criação, Extrativismo,
Aquicultura e Agroindústria) e aumentar a capacidade
de intervir na comunidade e no entorno para resolver os
problemas da Agricultura Familiar.

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Arquivo Saberes da Terra/Mato Grosso do Sul

Pôxa, em dois
anos acaba-se
o Fundamental!
Já pensou? Vale ou não vale a pena enfrentar essa Aprendem-se
empreitada? novas técnicas
agrícolas. E no
Para garantir o rumo dos nossos estudos, é futuro dá pra
importante ter consciência da problemática que
pensar em ir para
precisamos responder. Aqui a problemática é dada pelo
a Universidade.
tal Eixo Articulador do Currículo de nosso Programa.
Relembrando é: Agricultura Familiar e Sustentabilidade.
Que problemática esconde essa expressão? Esse
tema? Da Agricultura Familiar se diz muitas coisas.
Praticamente cada agricultor/a, cada estudioso/a e cada
programa de Governo a entendem de uma forma e a
tratam diferentemente. Vocês também devem ter suas
compreensões.

Uma primeira tarefa de nosso Curso é que cada um de


vocês escreva em um caderno o que compreendem dessa
expressão: O que pensam? Sentem? Quando ouvem,
escrevem ou lêem a expressão Agricultura Familiar, o que
vem à cabeça? Escrevam. Façam o mesmo com a expressão
Sustentabilidade.

E mais, o que seria ou poderia vir a ser a expressão


Agricultura Familiar Sustentável? Suas características?
Os cultivos? Os criatórios? A industrialização dos
produtos? A comercialização? A capitalização? Ou seja,
toda a Cadeia Produtiva e suas implicações em nossas
vidas. As condições de vida? O estudo? O lazer? A
sucessão? A vida da juventude? Escrevam...

Viram quantas coisas escreveram? Quantos projetos


escreveram? Como sonham realizá-los?

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Guardem tudo isso. Será muito importante esse


primeiro conjunto de idéias ao longo de todo o curso.
Coloquem essas mesmas questões para seus pais. Para
as autoridades municipais. Para os líderes religiosos.
Para os vizinhos.

Com esses Saberes vocês começam o Curso. Viram


que vocês, suas famílias e suas comunidades já possuem
muitos Saberes? Por isso, anotem todos eles em um
Não basta caderno.
aprender como
Nós só aprendemos, quando confrontamos o que já
plantar. Vai ter
sabemos com novas informações que recebemos nas
que perder a escolas, nos livros, na televisão, na Internet, nas igrejas, nas
vergonha de revistas e jornais, nas rodas de amigos... É confrontando o
cantar as músicas que já sabemos com essas informações que construímos
do Balaio de novos saberes. O Curso do ProJovem Campo – Saberes da
Saberes. O Balaio Terra quer ajudar vocês a fazerem esse confronto de forma
não é teste pra organizada, sistemática e coletiva, entre vocês, colegas,
desafinado. É pra com os/as educadores/as, os livros, nas linguagens (verbais,
pensar através artísticas e matemáticas).
da arte o que vai A partir dos saberes de vocês, dos seus familiares,
fazer na vida. dos seus vizinhos, das autoridades municipais e líderes
religiosos, todos anotados em seus cadernos, vamos
mergulhar no que dizem as Ciências Humanas, Sociais,
Agrícolas e da Natureza, bem como suas tecnologias.
Vamos descobrir se nossas escritas estão de acordo com
as normas oficiais da escrita na língua portuguesa, nas
relações matemáticas. Vamos ver também como nos
falam as expressões artísticas. E numa língua estrangeira,
como seriam escritas essas idéias?

Esses processos é o que se denomina Diálogo de


Saberes que serão vividos nos Círculos de Diálogo
por meio das Jornadas Pedagógicas e outras técnicas
didáticas no Tempo Escola. Nelas se darão os diálogos
entre os saberes populares e os saberes científicos
relativos à diversidade da Agricultura Familiar, às
culturas, às identidades, aos gêneros, às gerações
e às etnias do Brasil, a partir das situações vividas
pelas famílias, nas comunidades, nos municípios, nos
territórios e Estados. A gente objetiva refletir sobre
a realidade existente, seus problemas, conflitos,
ambigüidades, contradições e também sobre suas
potencialidades e possibilidades. Queremos reinventar
o campo brasileiro, fortalecer suas ações e os vínculos
de pertencimento de trabalhadores e trabalhadoras do
campo.

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As leituras propostas neste Caderno Pedagógico do


Eixo Temático 1, as bibliotecas públicas existentes no
município e outros artefatos culturais destinam-se a
contribuir nesse processo.

QUE DESEJAMOS AO LONGO DESSES DOIS ANOS?

Queremos, durante o Curso:

1) construir uma concepção de Agricultura Familiar


Sustentável;
2) certificar no Ensino Fundamental os Jovens da
Agricultura Familiar;
3) proporcionar um certificado de Qualificação
Profissional nas cinco ocupações do Arco Ocupacional
Produção Rural Familiar;
4) ampliar a capacidade de intervenção social de
jovens da Agricultura Familiar na família, na vizinhança,
no entorno, no território, no Estado, na Região e no
Brasil.

Pôxa será que a gente vai dar conta de


entender de cultura, gênero, etnia, sistema
de produção, políticas públicas, economia
solidária e desenvolvimento sustentável?

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O estudo do Eixo Temático será desenvolvido a partir


do Tempo Escola de Acolhida e cada Caderno Pedagógico
contemplará:

* A identificação do Problema de Estudo e o Objeto de


saberes;
* Ementa;
* Aprendizagens desejadas;
* Questões de pesquisa de campo;
* Tempo Formativo: Tempo Escola e Tempo Comunidade;
* Balaio de Saberes.

Desejamos que este Caderno Pedagógico contribua


com o seu processo de organização do trabalho
pedagógico e para o Diálogo de saberes com os/as
Educadores/as, Educandos/as, Coordenação Pedagógicas
e com os e as colegas.

Então, retomemos a problemática do Eixo Articulador


e do Eixo Temático 1 como uma dimensão do Eixo
Articulador. As questões analisadas, estudadas e
formuladas no Eixo 1 são matéria-prima para construir
parte da resposta à problemática do Eixo Articulador.

Arf, arf, arf...


Sustenta Edu
que a gente
chega lá...

Vou meter
esse
girassol em
quem fala e
não pedala.

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As diferenças de gênero, idade, etnia que

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Eixo Articulador
Agricultura Familiar e
Sustentabilidade
2

singularidades criam em nossa comunidade?


A problemática a ser pesquisada no Eixo Temático 1, para
ir acumulando saberes que permitam a construção final
do Eixo Articulador, será a identidade cultural da Agricultura
Familiar, das agricultoras, dos agricultores familiares e dos
jovens membros dessas famílias. Identidade, neste eixo, é
vista especialmente nas dimensões de gênero, de geração e
de etnia, bem como a partir das relações entre o campo e a
cidade como componentes importantes de quaisquer culturas.
Diferente não é para a cultura do campo e da Agricultura
Familiar. São dimensões que participam da configuração
cultural da Agricultura Familiar e de seus membros.

Superar a desvalorização do campo em relação à cidade,


desmistificar a própria imagem da Agricultura Familiar, bem
como da jovem e do jovem rurais como desinteressados
pelo meio rural contribuirá para a visibilidade da categoria
juventude rural “como formadora de identidades sociais e,
portanto, de demandas sociais” (CASTRO, 2005, p. 1).

Muitos pensam que a jovem e o jovem rurais estão isolados


do mundo. Engano. Eles participam do mundo globalizado e
afirmam sua identidade de jovem, masculino e feminino, de
negro, branco ou mestiço, de trabalhador, de pequeno

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produtor familiar. Jovens que lutam por terra, por justiça,


por direitos. Afirmam-se como trabalhador/a e cidadão/ã.
Formam movimentos, organizações, grupos de jovens a
partir dos sindicatos, do MST, das Igrejas. Assim, jovem da roça,
juventude rural, jovem rural são categorias que expressam
uma atuação política.

Por outro lado, também há uma imagem dos/as jovens


como desinteressados/as pelo meio rural, como aqueles/
as que não querem morar no campo. Querem fugir do
campo, migrar para as cidades grandes. Inclusive, estudos
descobrem que, em algumas localidades, são as jovens
que mais fogem/saem do campo. Afirma-se que, em cada
cem migrantes jovens, cerca de 52 são mulheres. Por isso,
assevera-se que o campo está se masculinizando. Veja
que, a partir de uma relação matemática, cerca de 52% são
migrantes femininas, afirma-se uma situação social.

Como se encontram essas questões em sua comunidade,


no seu município, e no seu estado?

Possivelmente, o ProJovem Campo – Saberes da Terra


contribuirá para tornar evidente tanto o movimento do jovem
rural quanto as suas condições de existência na Agricultura
Familiar. Poderá contribuir com a sua afirmação como sujeito
social, do saber, da política e como agente econômico.
Portanto, capaz de desenvolver idéias, lutar por terra, por
justiça e democracia como negros, brancos, mulatos, mestiços,
mulheres, homens, jovens.

Como o jovem rural se revelou no seu levantamento no


Tempo Comunidade?

Em alguns estudos sobre jovem nas comunidades rurais


revelam que “um dos pontos centrais são as relações
hierárquicas que envolvem a definição de velho e jovem. Só se
tornam adultos e, portanto, respeitados nestas comunidades
aqueles que assumem a pequena propriedade da família”.

Isso acontece na sua comunidade?

Os debates sobre juventude, no Brasil são recentes, arrancam


nas décadas de 1980 e 1990, chamando a atenção sobre a
diversidade do meio juvenil. Não há como ver a juventude
enquanto algo homogêneo. Igual. Há muitas diferenças. Então, um
aspecto importante é descobrir essa diversidade. Mesmo entre
os jovens e as jovens da Agricultura Familiar deve haver muitas
singularidades. É importante identificá-las em nosso estudo.

As diferenças de gênero, idade, etnia criam que

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singularidades (identidade) em nossa comunidade? Que


configuração cultural fica evidente?

Quase sempre as questões da juventude estão relacionadas


com os problemas da escolarização, sobretudo no meio rural,
mas também com as questões do lazer. Pensa-se a juventude
como aqueles indivíduos que “estão em processo de formação
e que ainda não têm responsabilidades, principalmente por não
estarem inseridos no mercado de trabalho”. Por isso, afirma
Castro no seu estudo sobre jovens de um Assentamento no Rio
de Janeiro:

O peso da transitoriedade aparece como uma


‘marca’ recorrente nas definições e percepções sobre
juventude nos mais diferentes cenários e contextos.
Podemos afirmar que juventude é uma categoria social
que, via de regra, relega aqueles assim identificados
a um espaço subordinado nas relações sociais.
Paradoxalmente jovem é associado a futuro e à
transformação social” (2005, p. 6).

Outro aspecto importante da juventude é a posição na


família, no município, no território, no Estado. Identifica-
se muito autoritarismo dos adultos sobre os jovens,
principalmente sobre as jovens. Inclusive talvez seja essa
uma causa da migração das jovens. A autora acima citada
demonstra “que ser jovem rural carrega o peso de uma
posição hierárquica de submissão, em um contexto marcado
por difíceis condições econômicas e sociais para a produção
familiar” (p. 7). E arremata: “os problemas enfrentados
pelos jovens são antes de tudo problemas enfrentados
pela pequena produção familiar, e suas muitas formas de
reprodução, como as difíceis condições de vida e produção.
Neste contexto, algumas dificuldades atingem de forma mais
direta os jovens rurais” (p. 8).

Veja que relação interessante se estabelece entre


a situação juvenil e os problemas enfrentados pela
agricultura familiar. Que lhes parece essa relação?

O problema do futuro também se coloca de forma quase


dramática, na atual situação da agricultura familiar, pois muitos
jovens não vêem horizonte. Que fazer da vida? Vai poder
constituir família? Essas são questões que os/as inquietam?

No Assentamento estudado por Castro, no Rio de


Janeiro, “a tendência para esses jovens é uma inserção
em condições precárias no mundo do trabalho, tanto para
filhos de assentados, ex-assentados, morando ou não no

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assentamento, ou mesmo ‘jovens urbanos’, sejam homens


ou mulheres” (p. 9).

Não seria também essa falta de horizonte que leva à


fuga do campo, ao desinteresse pelo meio rural, além dos
estigmas de “matuto”, “caipira”, “tabaréu”, “roceiro” e do
autoritarismo dos adultos?

Mas, como já indicado, por outro lado, apareceram,


também nos últimos anos, muitas “manifestações de
organizações de juventude rural, cada vez mais presentes
no cenário nacional. Juventude rural é hoje uma categoria
acionada para organizar aqueles que assim se identificam
nos movimentos sociais no campo. ... a presença cada vez
mais massiva de organizações de juventude aponta para um
fenômeno em movimento” (p. 10)”.

Como andam em sua comunidade e no território,


os processos organizativos dos jovens e das jovens da
Agricultura Familiar?

Para a autora, “as demandas apresentadas por essas formas de


organização revelam muito sobre como esses jovens se percebem.
Se por um lado reforçam questões consideradas específicas, como
acesso à educação e à terra, por outro constroem essas demandas
no contexto de transformação social da própria realidade do
campo” (p. 10-11).

As identidades da juventude, dos jovens e das jovens


estão sendo construídas

pela circulação desses jovens em diferentes espaços


percebidos como ‘urbanos’ e ‘rurais’, assim como,
por relações de autoridade e hierarquia, tanto na
família, quanto nas esferas coletivas de organização do
assentamento e das comunidades rurais. A tese confirmou,
por um lado, a tensão entre ‘ficar e sair’ do meio rural. Por

No campo dos meus sonhos tem


metrô, carro de boi, helicóptero,
pescaria, computador, faculdade,
motocicleta e fogueira de São João...

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outro, demonstrou que essa ‘saída’ é diferenciada e varia de


acordo com processos de socialização no meio rural, gerando
os mais diversos arranjos dos filhos com o lote da família
(CASTRO, 2005, p. 11).

Vocês encontram casos parecidos com esses em sua


comunidade, no território? Outro aspecto importante, na
construção das identidades da juventude rural, é a pressão
das mudanças e crises da realidade do campo. A realidade
cotidiana que atinge a pequena propriedade familiar recai
fortemente sobre os/as ‘jovens rurais’. Também ‘ser jovem’
no campo implica enfrentar ‘antigos’ problemas, como o
peso da autoridade paterna. Essas relações são reveladoras
das construções e disputas de significados da categoria
juventude rural e da posição que os assim identificados
ocupam na hierarquia das relações sociais (p. 11).

A juventude, portanto, é uma condição paradoxal. Paradoxal?


Sim. Pois, de um lado, é vista muito negativamente, e, de outro,
exageram-se as suas possibilidades, a sua positividade. Às vezes,
os mesmos adultos, os próprios pais e mães têm essa dupla
percepção dos jovens. De um lado, desconfiança dos adultos; por
outro, confiança quase cega. Vêem na juventude a salvação do
mundo.

O que será a jovem, o jovem, a juventude rural? Como


lidar com esse paradoxo? Com essa contradição?

No Assentamento, estudado por Castro,

Se os rapazes são controlados quanto aos locais que


freqüentam fora do assentamento, principalmente à noite,
as moças não têm autorização para circularem sozinhas,
têm que estar sempre em companhia de algum parente
do sexo masculino. Embora a violência seja um elemento
concreto na região (Baixada Fluminense) e reconhecido por
todos, o controle dos pais vai muito além da preocupação
com a exposição à violência urbana. Envolve a escolha de
namorados e mesmo a proibição do namoro. Isto não é
apenas característica de um período, uma idade específica.
O controle é exercido enquanto o ‘jovem’ estiver vivendo
com os pais, principalmente no caso das filhas, o que
reforça a ‘saída’ de casa e do assentamento como forma de
alcançar autonomia (CASTRO, 2005. p. 12).

Na sua localidade se encontram situações parecidas?

Em entrevistas com jovens, Castro identifica que as


relações de autoritarismo não se restringem

ao âmbito doméstico, se estendendo para contextos

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24

A gente só toma café


Beto lembra pra
depois de dar milho pros
tua mãe também me
bichos. Só pode fazer o
levar pra festa, viu?
que pai e mãe querem!
Por que senão eu Ah, ah, ah. Vou
Mas, a gente pode
não vou poder ir. perguntar se eu e
dirigir o trator,
ter um dinheirinho Edu já temos idade
pra festa... para irmos sozinhos.
Ah, ah, ah...

coletivos do assentamento. Os jovens entrevistados afirmam


que são tratados com descaso por parte dos adultos em
determinados espaços, principalmente nos espaços de
decisão política do assentamento, como assembléias e
reuniões da associação. Essa ‘queixa’ não é localizada, pois
a encontramos nos relatos dos jovens do acampamento
pesquisado, e mesmo em relatos em outros contextos, como
nos eventos nacionais e regionais já citados, e, ainda, na
fala de lideranças reconhecidas de movimentos sociais
rurais (p. 12).

E mais

os que são identificados como jovens carregam uma


imagem marcada pelo descompromisso e desinteresse,
associada à falta de legitimação como produtor
rural. Recai sobre eles uma construção ainda mais
complexa das percepções dominantes sobre ‘ser
rural’ em um mundo urbano. São estigmatizados
em espaços urbanos através de identificações como
a de roceiro, e em cada são tratados como ‘muito
urbanos’ para terem interesse pela terra. Esse fator
reforça a deslegitimação social da atuação dos
que são identificados como jovem em espaços de
representação e organização nos assentamentos e
acampamentos. As jovens sofrem ainda mais com a
forte presença da autoridade paterna, e se a atuação
dos jovens em espaços de direção e/ou decisão
é conflituosa para os homens, para as jovens é
inexistente (CASTRO, 2005, p. 12).

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25

Compare essas informações científicas com as suas


informações. O que você pensa sobre isso? E seus pais?

O que pensam sobre os jovens, os religiosos, as


autoridades do lugar em que você vive?

E a questão da organização de grupos formais de jovens na


comunidade, na sede do município, no território como anda?
Grupos de jovens das igrejas? Dos partidos? Grupos culturais?

A autora afirma que

a intensa atuação dos mesmos indivíduos em outros


contextos, onde a categoria é materializada em
grupos formais, como em grupos de jovens de igrejas,
permite a leitura que reforça a auto-identificação
e apreensão da identidade jovem como categoria
social configurando ações e representações sociais.
Os espaços religiosos ou organizados por agentes
religiosos observados no processo etnográfico se
apresentam como espaços que permitem mais
autonomia para aqueles que se organizam sob
a identidade de juventude, do que nos espaços
organizativos dos assentamentos e acampamentos (p.
13-14).

A partir da identificação dessa problemática complexa e


diversa do Eixo Temático 1 foi possível determinar a Ementa,
que significa uma caracterização do que vai ser estudado
no Eixo temático. Também são sugeridas questões de
pesquisa no Tempo Comunidade. Questões de pesquisas são
aspectos a serem observados e diagnosticados na família,
na comunidade, na sede do município, no território. Ainda
se indicam algumas aprendizagens que se deseja que sejam
construídas por todos. Então, as aprendizagens são saberes
os quais se deve apreender. São aspectos que se dever
aprofundar e formular na compreensão do Eixo Temático
e do Eixo Articulador. Além disso, são indicadas atividades
a serem realizadas nos Círculos de Diálogo por meio das
Jornadas Pedagógicas ou outras técnicas didáticas.

O que se deseja, pois, é ampliação dos saberes sobre as


implicações das questões étnicas, de gênero, de gerações
na identidade e na cultura da Agricultura Familiar e de seus
membros adultos e jovens.

A seguir relembramos a Ementa, Questões de pesquisa de


campo, Aprendizagens esperadas para o Eixo Temático 1,
repetimos, como dimensão do Eixo Articulador.

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Aplicar questionários, ver manifestações culturais, ler

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27

EIXO TEMÁTICO 1

Agricultura Familiar:
Cultura, Identidade, Etnia e Gênero

textos e identificar as ocupações para tirar conclusões

3
A partir da problemática identificada
como objeto de estudo deste Eixo
Temático, formulou-se a ementa que
se transcreve abaixo. Uma ementa
indica as questões que vamos estudar
para melhor compreender o objeto de
estudo. O objeto de estudo (os saberes
sobre a problemática do Eixo Temático).
Esses saberes (construídos a partir
do que já sabemos em confronto com
as informações das Ciências Sociais
Humanas, Agrícolas e da Natureza)
são os conteúdos educativos. Mas,
além dos conteúdos educativos deste
Eixo, vamos estudar os conteúdos
instrumentais (as linguagens verbais, as
linguagens matemáticas e as linguagens
artísticas). Devemos, também, avançar
nos conteúdos operativos: a capacidade
de fazer projetos, programas e planos.
Esses diferentes conteúdos (educativos,
instrumentais e operativos) são o que se
denomina CONTEÚDOS PEDAGÓGICOS.

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28

Etnia

Gênero Agricultura Cultura


Familiar

Identidade

I. EMENTA

Estudo das relações sociais no processo


histórico de produção econômica e cultural
da Agricultura Familiar. Seus problemas e
potencialidades culturais nas dimensões
de gênero, etnia, geração e de identidade.
Estudo das ocupações e transformações do
ambiente, das diferentes concepções de
Agricultura Familiar e das relações campo-
cidade.

Neste eixo temático, desejamos estudar/


pesquisar/intervir a/na Agricultura Familiar,
considerando a Cultura que vem sendo
produzida pela afirmação dessa forma de
ocupar a terra e fazê-la produzir na história
do Brasil. Vamos ver como em cada região e
município foi se firmando e se configurando
o que hoje se denomina Agricultura
Familiar. Explicitaremos as dimensões
simbólicas da cultura, as questões étnicas,
de gênero, de geração e de identidade na
relação campo-cidade.

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29

Sabemos que qualquer CULTURA se


constrói pela relação entre três fatores
que determinam a nossa constituição
como humanos: as condições materiais,
as condições associativas e as condições
simbólicas. As condições materiais ou
bens econômicos garantem a nossa
alimentação, vestuário, habitação,
transporte, entre outras exigências para
nos manter vivos. Só que, para garantir
as condições materiais, temos que nos
associar, organizar para produzi-las.
Somente associados uns aos/as outros/
as e intervindo na natureza, criamos
os bens materiais necessários a nossa
existência. Para nos associar e produzir
precisamos, porém, de valores, de
justificativas, de memória, de desejos,
sonhos. Esses valores, costumes,
crenças, lazer, reconhecimento, respeito,
Ontem o tema foi história identidades, leis, religiões, questões de
familiar. Todo mundo contou gênero, de etnia e de geração, é o que
como seus pais e avós se denomina de condições simbólicas.
mudavam a lavoura que não As relações entre essas três condições
estava dando certo, para conformam a cultura e criam as condições
ter o sustento e assim não de nossa humanização ou desumanização,
pediam empréstimo dependendo dos valores que cultivemos.
no banco. Positivos ou negativos (antivalores). Todas
as nossas ações são éticas, aéticas ou
antiéticas.

Será importante garantir os estudos e


reflexões a partir de suas histórias de vida,
das histórias de suas famílias e de suas
comunidades; buscando compreender
as relações sociais e produtivas no
processo de ocupação e transformação do
ambiente; valorizando as Manifestações
Culturais de suas comunidades e de suas
famílias [valores, representações, saberes,
práticas, costumes, expressões etc] e seus
Projetos de vida.

Por isso, escrevam tudo em um caderno


para levar para o Tempo Escola.

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30

Arquivo Saberes da Terra/MatoGrosso do Sul

II. QUESTÕES DE PESQUISA

Retomemos o que foi construído como questões


de pesquisa no Tempo Escola de Acolhida.
Certamente elas foram enriquecidas e escolhidas
de acordo com as exigências da realidade local.

Neste tempo escola, além de trabalharmos


com as informações colhidas no 1º Tempo
Comunidade, vamos elaborar as questões de
pesquisa do Eixo Temático 2.

Trabalharemos as informações para construir


as aprendizagens ou parte das aprendizagens
que desejamos elaborar com o estudo do Eixo
Temático 1.

As Jornadas Pedagógicas ou outras técnicas


didáticas propostas pelas educadoras,
educadores se destinam a avançarmos
nesta construção, além de aprimorar nossos
conhecimentos da Língua Oficial Portuguesa
e das Matemáticas, e também as expressões
artísticas (conteúdos instrumentais). Os
conteúdos educativos serão garantidos
pela compreensão do Eixo Temático 1.
Compreensão construída a partir das Ciências
Humanas Sociais, da Natureza e Agrícolas.

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31

III. APRENDIZAGENS ESPERADAS

l A construção da identidade dos indivíduos


no processo histórico, político e cultural e suas
implicações na atual organização social e do trabalho.

l Os papéis dos sujeitos coletivos nas relações


e organizações sociais de classe, trabalho,
gênero, geração, etnia, etc., na perspectiva de
intervenções humanizadoras.

l As relações de trabalho na Agricultura


Familiar, considerando suas especificidades de
produção, geração de renda e possibilidades
de sua reorganização para construção da
sustentabilidade solidária.

O Balaio de Saberes, que é o conjunto de textos


que compõe este Caderno Pedagógico, bem
como outros documentos, livros, músicas, poemas,
encontrados em seu município, na biblioteca pública
e em outros espaços, todos podem subsidiar o
processo formativo dos/as jovens agricultores/as no
cotidiano do ProJovem Campo – Saberes da Terra.

Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão...

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33

4
Balaio
de Saberes

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34

Texto 01
A via rural
O desenvolvimento sustentável passa pela agricultura familiar, menos prejudicial
ao ambiente e com grande potencial de trabalho para a juventude
Ulisses Freitas
Arquivo Revista Agriculturas - experiências em Agroecologia

Na cidade ou no campo, um
desenvolvimento que assegure o futuro
das novas gerações exige repensar
todos os nossos modos de viver – desde
hábitos cotidianos que degradam o
ambiente e desperdiçam recursos até
a forma econômica de gerar trabalho e
renda. Especialistas concordam que uma
das melhores possibilidades do Brasil
nesse caminho está no campo, com a
agricultura familiar. Com 80% dos 4,8
milhões de estabelecimentos rurais nas
mãos de pequenos produtores, o setor
emprega 70% da mão-de-obra rural e
Mas, para especialistas, a agricultura familiar
responde por 10% do PIB nacional e
brasileira ainda não tem sido contemplada
40% do PIB da agropecuária. Além de
como deveria e continua sofrendo
responder pela maior parte dos alimentos
desastrosos impactos, como a dificuldade
na mesa dos brasileiros, ela permite
para a geração de renda e a inserção nos
o uso de métodos menos prejudiciais
mercados, e a percepção do meio rural como
ao ambiente e emprega mais pessoas,
um espaço marcado pela falta de acesso a
criando alternativas especialmente
bens de serviço e infra-estrutura. Os jovens,
para os jovens em busca de construir
que acabam empurrados para as grandes
um futuro. Trata-se, em resumo, de
metrópoles em busca de oportunidades de
um dos setores que mais podem
trabalho e estudo, são os que mais refletem a
contribuir para o desenvolvimento
falta de investimentos e políticas para o setor.
sustentável. Segundo Ivanise Knapp,
assessora técnica da Secretaria de
Segundo dados do IBGE, dos quase 35
Desenvolvimento Sustentável do Meio
milhões de jovens com 14 a 24 anos de
Ambiente, “a agricultura familiar se faz
idade no Brasil, 18% residem no meio rural.
em pequenas áreas, não é monocultora
De 1991 a 2000, houve uma redução de
e busca caminho próprio para sua
26% da população jovem no campo. Os
viabilização por meio do associativismo
processos migratórios têm acarretado não só
e do cooperativismo. A sustentabilidade
a redução da população rural como também
ambiental, social e cultural desse modelo
um processo de masculinização. Além do
em relação ao agronegócio monocultor
predomínio juvenil, o movimento migratório
típico do latifúndio é enorme”.
recente tem ampla participação feminina.
As mulheres representam 52% do total da
migração jovem.

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35

Ambiente juvenil Os cursos desenvolvidos por meio do


Há, por outro lado, um vigoroso Consórcio e os estudos orientados
fortalecimento e uma expansão dos pelos grupos do Programa Jovem Saber
movimentos sociais envolvendo os jovens surgiram da necessidade de se informar
do campo. “O surgimento de organizações os jovens sobre como desenvolver
de juventude dos movimentos rurais novas tecnologias que melhorem sua
do Brasil é um fenômeno que tem produção sem ameaçar o meio ambiente.
impressionado. Em todos os movimentos “Como resultados, podemos perceber a
sociais rurais, a juventude está organizada mudança para hábitos produtivos mais
ou é, no mínimo, tema considerado comprometidos com o desenvolvimento
relevante”, afirma Elisa Guaraná, sustentável, uma participação mais ativa
doutora em Antropologia, professora da juventude na produção familiar e
da Universidade Federal Rural do Rio de uma maior organização desses jovens
Janeiro (UFRRJ) e autora da pesquisa “Entre na defesa do meio ambiente e dos
Ficar e Sair: Uma Etnografia da Construção seus direitos como trabalhadores e
Social da Categoria Jovem Rural”. trabalhadoras”, diz Elenice.

E a nova juventude rural tem, entre suas Essa discussão também vem mobilizando
bandeiras de luta, não só o acesso a terra, a juventude para refletir sobre outras
saúde, cultura, educação e renda, mas também questões: “Neste ano, pretendemos
a promoção do desenvolvimento sustentável intensificar ainda mais o debate sobre
e a preservação do ambiente. Segundo Elisa o meio ambiente junto aos jovens,
Guaraná, a questão ambiental está claramente introduzindo a discussão da agroecologia,
presente no ideal de campo que a juventude associando o saber popular e o saber
dos movimentos sociais constrói no seu dia-a- científico, para garantir uma produção
dia, colocando-a entre os pontos prioritários de ambientalmente mais equilibrada
suas pautas de reivindicação junto aos gestores e sustentável. Com isso, queremos
de políticas públicas. “Uma imagem recorrente fortalecer uma agricultura livre dos
nas entrevistas com jovens dos movimentos venenos químicos, preservando a saúde
sociais é a do meio rural como espaço do trabalhador rural e levando à mesa do
tranqüilo e bom de se viver – justamente pela consumidor alimentos mais saudáveis”.
relação com a natureza –, mas que sofre com
problemas ambientais, de produção e de infra- Arquivo Saberes da Terra/Maranhão
estrutura”.

Também para Maria Elenice Anastácio,


coordenadora nacional da juventude
rural da Contag, a juventude trabalhadora
do campo tem participado desse
debate ativamente: “Hoje, temos duas
importantes iniciativas de formação
que consideram a dimensão do meio
ambiente: o Programa Jovem Saber e o
Consórcio Social da Juventude Rural – Rita
Quadros, que envolvem aproximadamente
18 mil jovens”. Nos dois casos, o meio
ambiente aparece associado às atividades
de produção da agricultura familiar.

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36

Texto 02
Trabalho e Transformação do Mundo
Paulo Freire (1982)

Arquivo MST
Pedro e Antônio derrubaram uma árvore.
Tiveram uma prática. A atividade prática
dos seres humanos tem finalidades. Eles
sabiam o que queriam fazer ao derrubar
a árvore.

Trabalharam. Com instrumentos, não só


derrubaram a árvore, mas a desbastaram,
depois de derrubá-la. Dividiram o grande
tronco em pedaços ou toros, que secaram
ao sol. Em seguida, Pedro e Antônio serra-
ram os troncos e fizeram tábuas com eles.
Com as tábuas, fizeram um barco. Antes
de fazer o barco, antes mesmo de derruba-
rem a árvore, eles já sabiam para que iam
fazer o barco. Pedro e Antônio trabalha-
ram. Transformaram com o seu trabalho
a árvore e fizeram com ela um barco. É
trabalhando que os homens e as mulheres
transformam o mundo e, transformando o
mundo, se transformam também.

trabalho e
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37

Produção de Síntese, Elaboração de Desenhos e Produção de


Texto da Turma no Mato Grosso do Sul, professor Florisnaldo
10/08/2007.

transformação do mundo
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38

Texto 03
INVERNADA DOS NEGROS

Arquivo Saberes da Terra/Santa Catarina


Invernada dos Negros é uma área de terra
localizada na região serrana do Estado de
Santa Catarina, a 22 km do município de
Campos Novos, cuja origem remonta ao
século XIX.

Pesquisas do Núcleo de Estudos sobre


Identidade e Relações Interétnicas (NUER)
da Universidade Federal de Santa Catari-
na (UFSC) revelam que libertos e escravos
herdaram, através de testamento, uma
área de aproximadamente 8 mil hectares,
que correspondia à antiga fazenda São
João.

A comunidade de Invernada dos Negros,


com o apoio de Instituições Governamen-
tais e Movimentos Sociais, vem lutando
Arquivo Saberes da Terra/Santa Catarina para que o procedimento de identifi-
cação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação do território dos
remanescentes de quilombo prossiga até
a conclusão do processo, com a demarca-
ção e titulação do território.

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39

Arquivo Saberes da Terra/Santa Catarina

A
seqüência
de fotos ao
lado revela
uma das produções
culturais na
comunidade
quilombola de
Invernada dos
Negros, onde
também funcionou
turma do Programa
Saberes da Terra.

D
ito de uma
forma
sintética e
simples, cultura é
tudo o que resulta do
trabalho humano, da
ação humana. No
entanto, nem todos
os bens culturais são
materiais, como, por
exemplo, a religião.

I
nvernada dos
Negros Fotos do
Programa Saberes
da Terra, Turma em
Invernada dos Negros,
Município de Campos
Novos, Estado de
Santa Catarina.

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40

Texto 04
RECULTURARTE
Carlos Rodrigues Brandão

A cultura é a morada da educação


A cultura é para nós o que a água
é para o peixe...

É na cultura que se geram a linguagem


e o pensamento. Nós somos paridos
na e pela cultura, pois vivemos dentro
dela e ela é o ambiente humano. Tudo
que é humano é cultural. Pensamos e
fazemos educação como cultura, isto
é, como trabalho de transformação
cultural. Com Paulo Freire, aprendemos
que fazer educação é trabalhar
culturalmente a cultura das pessoas.
Na nossa abordagem no trabalho de
formação de educadores/as, a cultura
é fonte, é matéria-prima e é também
resultado. O resultado do trabalho
educativo é uma cultura transformada,
posto que a educação transforma.
Nessa perspectiva, trabalhamos a idéia
de reculturar-se como proposta de um
mergulho revitalizador das próprias
raízes culturais, tanto no passado como
na contemporaneidade, indicando um
movimento de tornar mais consciente o
que a gente vive e faz como cultura.

João Werner “Forró” 50x70 cm óleo sobre tela/2004

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41

Afagar a teeeeerra
Conhecer os desejos da teeeeeerraaa
Cio da terra, a propícia estaçãããããooooo Decepar a canaaaaa
E fecundar o chãããããooooo Recolher a garapa da canaaaaaa
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de meeeeeeeel
Agricultura Familiar
do,
é quando todo mun
Pedir empréstimo agrícola
Culturas mais rentáveis
Fazer consórcio de culturas
Adubo orgânico de lixo
Encont de jovens

Ué!? Isso é
que é o Tempo
Acolhida, pra
Edu?

A abordagem da educação como ação Assim, as “múltiplas linguagens” – utilizadas


cultural implica a noção de que o nas expressões plásticas (pintura, desenho,
conhecimento do mundo advém de um colagem, escultura...), sonoras, corporais,
processo em que o sentir e o simbolizar cênicas – que temos experimentado no
se articulam e se completam. A arte é trabalho de formação favorecem um
uma ponte que nos leva a conhecer e a despertar das pessoas, que passam a
expressar os sentimentos e idéias. Como vincular mais suas ações às manifestações
vivemos uma vida não somente racional, artísticas, culturais e educacionais,
mas fundamentalmente emocional, a arte presentes nos seus contextos de atuação.
se destaca como importante canal para
compreensão e organização de nossas O que propomos é que se amplie o
ações, porque ela permite a familiaridade universo de referências, de vivências, de
com os próprios sentimentos, que são atuação, de discussão e que se consiga
básicos para agirmos no mundo. enxergar um pouco além do horizonte.

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42

Texto 05
AS TRAMAS DA IDENTIDADE
Todos têm cultura e trata-se de um bem universal porque
é a rede de relações que define o desenho de uma comunidade
Tião Rocha1

1
Tião Rocha é Todo e qualquer ser humano tem cultura. um novo conceito, que fosse ao mesmo
antropólogo,
educador e
Esta é uma das poucas “verdades” da tempo operacional, palpável, mensurável,
folclorista. Foi Antropologia. Apesar disso, muita gente observável, ético e correto.
professor da ainda pensa que alguns seres humanos
PUC-MG, da
Universidade
não têm cultura. Uma minoria crê, Para isso, buscamos outra contribuição
Federal de firmemente, que sua cultura é superior da Antropologia: em toda e qualquer
Ouro Preto à dos outros. Outros, por se julgarem comunidade humana, existem e
e membro
do Conselho
superiores, resolveram eliminar e subjugar interagem diversos componentes
Universitário os diferentes, tratando-os como inferiores. substantivos (que nós denominamos
da Universida- E uma grande maioria acostumou-se “indicadores sociais”) que podem ser
de Federal de
Minas Gerais. É
a pensar que não tem cultura alguma, identificados, medidos e observados
presidente do ficando à mercê das elites ditas “cultas”. e que, quando interagem entre si,
CPCD - Centro
constroem desenhos, padrões, símbolos
Popular de Outro equívoco que rodeia a cultura é
Cultura e De- e valores do grupo humano que aí vive e
quanto ao uso que se faz do conceito.
senvolvimento, que podemos conceituar de Cultura.
que fundou em As definições variam do extremamente
1984, em Minas amplo (“cultura é tudo aquilo que o
Gerais.
homem acrescenta à natureza” ou Encontramos os indicadores sociais em
“cultura é toda maneira de pensar, agir qualquer comunidade - rica ou pobre,
e sentir dos homens”) ao extremamente urbana ou rural. No entanto, eles só se
específico (“cultura é erudição”). Com tornam um indicador cultural quando, em
o uso indiscriminado ou interesseiro, contato com outros indicadores, produzem
a palavra cultura tornou-se expressão um novo desenho, uma teia de relações
esvaziada. Foi o que nos levou a construir dinâmicas, novas tramas e padrões de
convivência, gerando novos valores
http://www.carnavaldasculturas.com/images/SAMBA%20DE%20RODA%20SUERDIECK.jpg
ou sendo influenciados pelos valores
universais presentes na comunidade.

A cultura, este desenho, trama ou padrão


dinâmico e interrelacional, é algo humano
e social, público e visível, mas às vezes
microscópico. Podemos, dentro de uma
macrotrama, perceber microdesenhos
simbólicos e repletos de significantes,
como nas festas populares e de rua ou
nos “rituais da ordem” que simbolizam e
mantêm o sistema político. E é nesse mar
de tramas, micro e macroscópicas, que
navegamos durante nossa vida. A seguir,
comentamos esses indicadores.

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43

Arquivo IPHAN

As formas organizativas incluem a família, Nossa experiência nos autoriza afirmar


a vizinhança, os amigos, o grupo de que onde não há oferta de formas
oração, os companheiros de futebol, organizativas em quantidade (e por isso
o pessoal do pagode, as comadres da há poucas oportunidades de participação
esquina, os meninos da pelada, a galera e de protagonismo) o tempo de resposta
do funk etc. Esse indicador é fundamental aos problemas é muito lento. O tempo de
para o moderno conceito de “capital rotinas aumenta e o tempo de desejos e
social”. Estudos demonstram que quanto desafios decresce. A lentidão é observada
mais espaços ou oportunidades de na falta de vontade e ambição das
convivência social forem oferecidos aos pessoas, principalmente dos jovens, na
habitantes de uma comunidade, mais baixa estima social da coletividade, no
formas e possibilidades de participação comodismo e atraso em relação a outras
estarão sendo geradas, ampliando os comunidades.
espaços e os momentos de protagonismo
social e o acúmulo de capital social.

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44

Arquivo MST
coletividade. A permanência do costume no
tempo cria a “tradição”, marca registrada do
fazer e do saber fazer de uma comunidade
ou de um povo.

Esse processo de acumulações sucessivas,


sistemáticas e sempre atualizadas (porque
contemporâneas) constitui a base da
produção do conhecimento, seja de cunho
científico (porque usa métodos para a
compreensão de variados objetos), seja
de caráter tecnológico (porque produz
materiais, soluções e técnicas facilitadoras),
seja de essência artística (porque atende
a valores estéticos, sentimentais e não-
tangíveis da humanidade, por meio de
música, teatro, poesia, pintura etc.).

Os sistemas de decisão, são um indicador


Isso explica por que as jovens do “sertão que se refere ao político, à autoridade, à
das gerais”, aos 17 ou 18 anos, começam a liderança, aos poderes de decisão - macro e
ficar “desesperadas” porque ainda não se microinstitucionais e não institucionalizados.
casaram, “porque já passaram da época”. Aparecem ostensivamente (como nos
É que, na percepção delas, o tempo de caso das lideranças políticas, jurídicas,
juventude e de sonho já se realizou. Elas militares etc.) ou subliminarmente, como
vivem em cidades que não têm cinema, no ambiente familiar, em que pai e mãe têm
grupo de teatro, biblioteca, festas populares, poderes de decisão.
locadora de vídeos, grupos de jovens, coral
ou banca de jornais. Não acontece nada nos As relações de produção, também um
fins de semana e muito menos no meio da indicador, dizem respeito ao econômico, ao
semana. O mundo externo entra filtrado mundo do trabalho, às forças produtivas
pela tela da TV ou pelas ondas do rádio. Por - quem produz o que e para quem - de
isso, a maioria tem na própria TV (ou rádio) um grupo social. É observável nas formas
o seu instrumento de formação de “capital convencionais de relações de produção e de
social”, ou seja, há um crescente processo trabalho, assalariadas ou formais, e em todas
de terceirização do desejo e alienação da as esferas da rede produtiva e reprodutiva
vontade, gerando a não-participação e o de bens e serviços, remunerados ou não.
não-protagonismo.
O meio ambiente, ou o contexto, o entorno,
As formas do fazer, um outro indicador, o ecológico é outro indicador. O homem é
são as respostas produzidas pelos homens produtor e produto, processo e resultado
às múltiplas necessidades humanas. do meio onde vive, parte integrante do
Uma resposta bem-sucedida significa ecossistema. Considerar o meio ambiente
incorporação de um resultado. Assim, surge como um indicador social é compreendê-
o “uso” que, de caráter pessoal, passa a lo além de sua face meramente física e
ser um “hábito” ao tornar-se de domínio natural, como um elemento substantivo
de um grupo maior. A prática de um hábito na constituição das expressões simbólicas,
cria o “costume”, uma das marcas de uma relações e processos humanos que serão o

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45

Arquivo Comissão Pastoral da Terra


pano de fundo sobre o qual se construirá o
desenho cultural de uma comunidade.

A memória, indicador social refere-se ao


passado, à origem. Todos nós recebemos,
desde o nascimento, uma carga de
informações sobre o nosso passado
recente ou remoto, guardado pela história
ou pelo inconsciente coletivo ou pela
tradição familiar. A memória de um grupo
social se expressa em seus rituais sacros e
profanos, repletos de elementos simbólicos
perpetuadores dos vínculos e das matrizes
geradoras desta comunidade.

Um último indicador de nossa lista é a


visão de mundo, o religioso, o filosófico, o
depois, o futuro, o sonho. É movido pela
idéia do porvir que o homem investe seu
tempo e energia para aprender, dominar,
transformar e se apropriar do mundo à sua
volta. Existe uma ligação entre a memória e
a visão de mundo: quanto mais pudermos
voltar no passado e na memória, mais longe
poderemos chegar em direção ao futuro,
ao estabelecermos links e passagens de -, que constitui o cerne das propostas e
força, equilíbrio e coerência entre o ontem políticas de desenvolvimento, deveria
e o amanhã. Mas é preciso cuidado para ter então como premissa e ênfase a
não ficarmos presos ao passado. Quem heterogeneidade e a diversidade culturais,
não consegue ligá-lo de forma coerente ao que de fato constituem a marca de nossa
seu presente não consegue construir uma nacionalidade, o caráter de nosso país e sua
perspectiva de futuro de seu próprio mundo. verdade histórica.

Com esses indicadores, construímos o Percebê-las em seus microcosmos - escola,


“nosso” modelo de Cultura: essa rede e família e comunidade - torna-se uma
trama de relações que forma um padrão das tarefas dos educadores. Canalizá-
ou um desenho definidor da identidade da las para construções pedagógicas que
comunidade ou grupo social. E podemos favoreçam novos processos de apropriação
pensar em processo cultural como a de conhecimentos, geradores de
interação e as dinâmicas que afetam o “oportunidades-e-de-opções”, pode ser o
padrão ou desenho. Assim, entendemos principal trabalho da escola.
que um “projeto de desenvolvimento” (de
qualquer natureza) é uma ação-intervenção Esta é, cremos nós, a finalidade da cultura:
planejada no desenho cultural (e suas ser instrumento eficaz do conhecimento,
relações) de uma comunidade. possibilitando leituras mais densas, mais
ricas, mais sábias, mais abrangentes e mais
O planejamento de um desenho cultural humanas da nossa “travessia”, nessa busca
brasileiro - seja local, regional ou nacional permanente e vocação natural para ser feliz.

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46

Texto 06
A Mercantilização da Cultura2
Rosana Miyashiro Fahl

“O objeto da arte,
tal como qualquer outro produto,
cria um público capaz de
compreender a arte e de apreciar a beleza.
Portanto, a produção não cria somente um
objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto.”
Karl MARX

Atualmente, notamos, em nosso Temos dificuldade de identificar 2


COMUNICAÇÃO,
CULTURA E
cotidiano, o papel exercido pelos meios claramente os limites que separam ou SOCIEDADE
de comunicação de massa (Rádio, TV, interpenetram programas culturais, de - Módulo
11. FICHA 7.
imprensa escrita), que são utilizados, entretenimento, informativo/jornalístico PROGRAMA
de maneira bastante marcante, na e a publicidade e o marketing. INTEGRAÇAO -
ENSINO MÉDIO
construção e reprodução de idéias e 1/2.
valores. Isso pode ser verificado nas Nesse cenário, a guerra parece uma
3
O fenômeno da
formas e conteúdos das mensagens telenovela - pela forma melodramática industrialização
veiculadas. como é abordada -; a telenovela da cultura no
século XX,
subordina o enredo da trama ficcional especialmente
Através de um discurso que às estratégias para disseminar novos após a 2ª
aparentemente incorpora as diversidades padrões de consumo, exibindo as Guerra Mundial,
é bastante
culturais, promove-se a padronização marcas de seus patrocinadores; o discutido por
crescente de visões de mundo que noticiário apresenta informações autores da
chamada Escola
neutralizam conflitos e naturalizam as compartimentadas e com um claro de Frankfurt,
leis do mercado. Leis que são estendidas viés mercadológico na medida em que que trataram
sobre o tema
a toda e qualquer atividade humana, enfatizam elementos que garantam o da alienação da
incluindo a área de educação e as aumento da audiência. arte decorrente
da alienação
atividades culturais de modo geral. promovida pela
Mesmo as produções culturais de raízes divisão social do
trabalho no modo
A conseqüência mais evidente desse locais ou regionais (o frevo, o cordel, as de produção
processo de homogeneização hibridizada festas juninas, etc.) são tomadas muito capitalista,
considerado
- processo que uniformiza os discursos a mais como produtos para fomentar o no marco da
partir de uma mescla de estilos e visões, turismo do que expressão da cultura de produção fordista
e a emergência
conformando um “ecletismo” que torna um povo, sendo incorporadas na roda do consumo em
característico um modo de pensar e agir, viva da lucratividade, da mercantilização massa naquele
período.
são as implicações nas opiniões sobre da cultura3.
a política, a economia e os fenômenos 4
COMUNICAÇAO,
sociais em curso, explicados de maneira Assim4, marketing e publicidade ganham CULTURA E
SOCIEDADE -
relativizada, restringindo-se as análises lugar central, como grandes promotores Módulo 11. FICHA
aos aspectos particulares, dissociados dos das produções artísticas, incluindo 7. PROGRAMA
INTEGRAÇAO -
processos macroeconômicos e sociais. as culturas locais produzidas por ENSINO MÉDIO
determinado segmento da sociedade 2/2.

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47

Arquivo MST
área musical, cinematográfica, das artes
em geral. Um exemplo é a promoção de
megaexposições de pintores clássicos,
com acesso gratuito, que permite que
um público, antes não contemplado,
tenha “passagem” por este tipo de
evento. No entanto, isso não significa
acesso à cultura ou a configuração de
um processo de democratização dos
bens culturais que tenha como objetivo
possibilitar a apropriação de novos
conhecimentos, mas trata-se de um meio
eficaz de disseminar marcas e ampliar
o mercado consumidor das empresas
patrocinadoras.
que são apropriadas e ressignificadas,
dependendo de seu potencial de Os programas de entretenimento
penetração no mercado. Dessa maneira, funcionam como um forte apelo
a arte, mais do que’ nunca, e de forma propagandístico, na medida em que
crescente, transforma-se em produto lançam estereótipos de estilos de vida
altamente desejado por milhares de e modos de ser, através das marcas
pessoas na medida em que se torna um que expõem naturalmente em suas
bem para marcar diferenças sociais e ficcionais. Em nome da diversidade,
transmitir mensagens, conotando status e constroem-se mercados segmentados,
a sensação de inclusão, de inserção social. ou mesmo surgem novas apropriações
e combinações de signos que apelam a
Dessa forma, a vinculação crescente, sob um público “heterogêneo”. Mais do que
novas formas, entre cultura e grandes ter, é necessário criar novos desejos. A
negócios, faz parte da tendência atual. velocidade que este processo alcança nos
Uma série de incentivos por parte dos dias atuais é tomada como sinônimo de
governos, sob a forma de redução progresso justificado pelos avanços
ou isenção fiscal para as empresas, tecnológicos e pelo discurso da
favorece os grandes investimentos na democratização da informação, fundido
paradoxalmente com a barbárie da
miséria e da violência, presentes na
realidade da população, apresentada
diariamente.

Texto elaborado por Rosana Miyashiro Fahl,


Assessora da Secretaria Nacional de
Formação da CUT – Núcleo de Educação
do Trabalhador.

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Texto 07

Etnia
Chico Science/ Lúcio Maia

Somos todos juntos uma miscigenação


E não podemos fugir da nossa etnia
Índios, brancos, negros e mestiços
Nada de errado em seus princípios
O seu e o meu são iguais
Corre nas veias sem parar
Costumes, é folclore é tradição
Capoeira que rasga o chão
Samba que sai da favela acabada
É hip hop na minha embolada

É o povo na arte
É arte no povo
E não o povo na arte
De quem faz arte com o povo

Por de trás de algo que se esconde


Há sempre uma grande mina
de conhecimentos e sentimentos

Não há mistérios em descobrir


O que você tem e o que gosta
Não há mistérios em descobrir
O que você é e o que você faz

Maracatu psicodélico
Capoeira da Pesada
Bumba meu rádio
Berimbau elétrico
Frevo, Samba e Cores
Cores unidas e alegria
Nada de errado em nossa etnia.

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Texto 08

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A CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS


O Outro mundo de Xicão Xucuru
Fred Zeroquatro/ Zenilda Maria de Araújo

Numa faixa de terra de 28 mil hectares


Localizada no Agreste pernambucano
Habitam cerca de 8 mil seres da espécie humana
Eles não querem vingança, eles só querem justiça
Querem punição para os covardes
Assassinos de seu bravo Cacique Xicão
Distribuídos por 23 aldeias
Permanecem resistindo, após quase 500 anos
De massacres e perseguições
Reivindicando nada menos que o reconhecimento e a demarcação
Da terra sagrada que herdaram de seus ancestrais
“Ele não vai ser enterrado, ele não vai ser sepultado
Ele vai ser plantado, para que dele nasçam novos guerreiros”
As autoridades policiais tinham pleno conhecimento
Dos atentados e das ameaças
Ainda assim nada fizeram para evitar mais este crime
Muito conveniente para os latifundiários da região
Comenta-se que alguns deles
Têm parentesco com certos figurões da república branca
Entre eles um apelidado pelos federais de “Cacique Marcão”
“Ele não vai ser enterrado, ele não vai ser sepultado
Ele vai ser plantado, para que dele nasçam novos guerreiros”
Minha mãe natureza
Ele vai ser plantado assim como vivia
Debaixo das vossas sombras
Para que de vós nasçam novos guerreiros
Minha mãe natureza
“Que a nossa luta não pára”.

PAJELANÇA
(do tupi pajé, curador, sacerdote,
xamã) é um termo genérico aplicado
às diversas manifestações do
xamanismo dos povos indígenas
brasileiros. Refere-se aos rituais
nos quais um especialista entra em
contato com entidades não-humanas
(espíritos de mortos, de animais etc.)
com o fim de resolver problemas que
acometem pessoas ou coletividades.

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Texto 09
A SERRA NEGRA, UM LOCAL SAGRADO

Os nossos antepassados, nosso avós, nos


contam que viviam em um lugar chamado
Serra Negra, hoje Reserva Ecológica do
Governo Federal, e não podiam dançar
o toré, porque, se dançassem, seriam
espancados por um coronel. Só podiam
dançar às escondidas, se não apanhavam.
Depois, foram expulsos ou mortos de lá
por fazendeiros e cangaceiros.

Os que ficaram vivos formaram a aldeia


em que hoje moramos, mas gostaríamos
muito de voltar para lá.

A Serra Negra, para o meu povo kambiwá,


é um local sagrado. Nós temos por ela
uma verdadeira adoração, pois lá existem
muitas coisas que nos encantam. Durante
o Ouricuri, os homens e mulheres sobem
a serra para dançar o toré. Lá existe um
local que só os homens, a partir dos
quinze anos, conhecem e sabem seus
segredos. Lá existe um pau-ferro onde,
dentro do seu tronco que é uma oca,
cabem nove pessoas dançando o toré.

Existe, também, um olho de água que


nunca seca. Segundo os mais velhos, ele
só secará um dia se alguém matar um
sapo ou uma rã no local. Quando subimos
a serra e olhamos para baixo, temos a
impressão de que, naquele momento, as
árvores viram água porque a gente olha
pra baixo e ver tudo azul.

Esse é um pouco do encanto que a Serra


Negra tem para nós, índios Kambiwá.
Grupo Kambiwá-PE

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Texto 10
Quem, onde, quantos?
Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Em pleno
século XXI
a grande
maioria dos brasileiros ignora a imensa
diversidade de povos indígenas que
vivem no país. Estima-se que, na época
da chegada dos europeus, fossem
mais de 1.000 povos, somando entre
2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente
encontramos no território brasileiro
227 povos, falantes de mais de 180
línguas diferentes. A maior parte dessa
população distribui-se por milhares de
aldeias, situadas no interior de 593 Terras
Indígenas, de norte a sul do território
nacional. Para o ISA a população indígena
no Brasil atual está estimada em 600 mil Araweté (PA), 1982
indivíduos, sendo que deste total cerca
de 480.000 mil vivem em suas Terras
Indígenas (e, em menor número, em Quem são
áreas urbanas próximas a elas), enquanto A expressão genérica “povos indígenas” refere-
outros 120.000 mil encontram-se se a grupos humanos espalhados por todo o
residindo em diversas capitais do país. mundo, e que são bastante diferentes entre si.
Apenas no Brasil, há mais de 200 desses povos.
Importante ressaltar que os dados do
IBGE (Censo Populacional de 2000) É apenas o uso corrente da linguagem que faz
indicaram que a parte da população com que, em nosso e em outros países, fale-se
brasileira que se autodeclarou em povos indígenas, ao passo que, na Austrália,
genericamente como “indígena” alcançou por exemplo, a forma genérica para designá-los
a marca de 734 mil pessoas, marca, seja aborígines. Indígena ou aborígine, como
portanto, superior à estimada pelo ISA. ensina o dicionário, quer dizer “originário
Essa discrepância numérica pode ser de determinado país, região ou localidade;
melhor compreendida acessando o link nativo”. Aliás, nativos e autóctones são outras
“diferentes estimativas”. expressões usadas, ao redor do mundo, para
denominar esses povos.

O que todos os povos indígenas têm em


comum? Antes de tudo, o fato de cada
qual se identificar como coletividade
específica, distinta de outras com as quais
convive e, principalmente, do conjunto da
sociedade do país onde está.

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Foto: Roberto Linksker Foto: Beto Ricardo

Aldeia Manatai, dos Inganinkó, ao norte Mulher Tuyuka fazendo beiju, Alto Tiquié
da Raposa/Serra do Sol, 1997 (AM), 2001

Onde estão Como vivem


Os povos indígenas contemporâneos Quando comparadas à nossa
estão espalhados por todo o território sociedade, os povos indígenas revelam
brasileiro. Vários desses povos também características comuns. Quando vistos de
habitam países vizinhos. No Brasil, perto, mostram semelhanças e diferenças
a grande maioria das comunidades entre si (galeria da diversidade). Variam
indígenas vive em terras coletivas, suas culturas, línguas, habitats, modos
declaradas pelo governo federal para seu de organização social, política e maneiras
usufruto exclusivo. As chamadas Terras de se relacionar com o meio ambiente.
Indígenas (TIs) somam, hoje, 606. A história, os graus e as formas dos
contatos que os povos indígenas têm
Na Amazônia Legal - que é composta pelos estabelecido com outros segmentos
estados do Amazonas, Acre, Amapá, Pará, da sociedade brasileira também são
Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso bastante diversos.
e parte oeste do Maranhão -, vivem 60%
da população indígena. É possível estimar Neste imenso país em formação que é o
em cerca de 10 a 15% os índios que vivem Brasil, existem, também, índios que evitam
em cidades, mas ainda não existe um censo o contato permanente e sistemático com a
confiável a esse respeito. Saiba quais povos nossa sociedade e são, por isso, chamados
vivem em cada estado brasileiro. de índios isolados. Outros casos ensinam
que povos indígenas diferentes podem
O reconhecimento das Terras Indígenas por estar ligados por diversas formas de inter-
parte do Estado (processo de demarcação) relações.
é um capítulo ainda não encerrado da
história brasileira (demarcações: 5 últimos Os Panará, como a grande maioria dos
governos). Muitas delas estão demarcadas povos da família lingüística jê, vivem em
e contam com registros em cartórios, outras aldeias circulares na divisa dos estados
estão em fase de reconhecimento; há, de Mato Grosso e Pará. As residências
também, áreas indígenas sem nenhuma encontram-se situadas na periferia do
regularização (situação jurídica das TIs círculo. No centro, espaço para atividades
hoje). Além disso, diversas TIs estão políticas e rituais, localiza-se a Casa dos
envolvidas em conflitos e polêmicas. Homens.

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Foto: André Villas-Bôas Foto: René Fuerst

1999
As aldeias dos Krahó (TO), povo da família 1961
lingüística jê, seguem o ideal timbira de Entre os Marubo, grupo da família
disposição das casas ao longo de uma lingüística pano que habita o Vale
larga via circular, cada qual ligada por um do Javari (AM), a única construção
caminho radial ao pátio central. habitada é a casa longada, coberta de
Foto: Vincent Carelli palha e de jarina da cumeeira ao chão,
que se localiza no centro da aldeia. As
construções que ficam ao redor, erguidas
por pilotis, servem mais como depósitos
e são de propriedade individual.

Foto: Delvair Montager

1983
Gavião Parkatejê (família jê) suas aldeias,
a Kaikotore. Composta de 33 casas de
alvenaria dispostas em círculo, possui
cerca de 200 metros de diâmetro. Há
um largo caminho ao redor, em frente
às casas e vários caminhos radiais 1978
que conduzem ao pátio central, onde Os Enawenê-Nawê (MT), grupo da família
se desenvolvem todas as atividades lingüística aruaque, vivem em aldeias
cerimoniais. formadas por grandes casas retangulares
Fotos: Arquivo ISA e uma casa circular, localizada mais ou
menos no centro, onde ficam guardadas
as suas flautas. No pátio central, são
realizados diversos rituais e jogos.

Foto: Ana Lange

1984
Em grande parte das atuais aldeias xavante
(povo jê do leste do Mato Grosso), as casas
já não seguem o padrão visível na foto:
umas combinam base de alvenaria e teto
de palha, outras são inteiramente de palha, 1979
mas com paredes e teto separados. O gosto Os Yanomami orientais e ocidentais
por moradias de base circular, dispostas costumam viver numa casa agregando
conjuntamente em “ferradura” (um semi- várias famílias, a maloca Toototobi (AM).
círculo de casas aberto para o curso d’água Lá, reúnem-se todos os membros da aldeia,
mais próximo), continua, porém, vigorando sendo considerada como entidade política e
entre os Xavante. econômica autônoma.

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Foto: René Fuerst Foto: Vincent Carelli

1982
1961 Os Palikur (AP) também são da família
Aqui, uma habitação coletiva yanomami aruaque. Suas aldeias são construídas
vista de seu interior. voltadas para o rio. A maior delas,
Kumenê, tem suas casas dispostas em
Foto: René Fuerst duas ruas paralelas.

Foto: Jorge Hernandez Dias

1961
A maloca-museu São João, no rio
Tiquié (AM), é um exemplo de como os
chamados “índios da floresta”, falantes
de línguas das famílias aruaque e tukano,
da região da bacia do alto rio Negro,
costumavam viver. Não é uma simples
moradia comunitária, mas,também, um
1983
espaço fundamental para a realização de
Atualmente, os Fulniô (PE), falantes de
cerimônias, a trajetória primordial dos
uma língua do tronco acro-jê, alternam-se
antepassados míticos.
entre duas aldeias. Uma delas localiza-se
junto à cidade de Águas Belas. A outra é o
Foto: Beto Ricardo
lugar sagrado do ritual do Ouricuri, onde
os índios se estabelecem nos meses de
setembro e outubro.

1993
As casas dos Assurini do Tocantins, grupo
de língua tupi-guarani localizado no estado
do Pará, são construídas com madeira de
paxiúba (paredes e assoalhos) e palha de ubim
(cobertura e, às vezes, paredes). A arquitetura
das casas segue o padrão regional. Algumas
são construídas sobre palafitas.

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58

Texto 11
Estatuto da Igualdade Racial: oportunidade democrática

Os negros no Brasil ainda recebem No campo profissional, a situação


salários inferiores aos dos brancos e têm também é reveladora, sendo as
bem menos oportunidades do que eles. mulheres negras duplamente atingidas
De acordo com pesquisa do IBGE, em pela discriminação. Segundo dados da
média, um trabalhador branco recebia Organização Internacional do Trabalho
em setembro de 2007 cerca de 1.292 (OIT), o rendimento da mulher negra hoje
reais. Isto significa, 95,7% a mais que os é de 302, reais enquanto profissionais
660 reais ganhos por pretos e pardos. brancas ganham 403 reais. O branco
recebe 605 reais e o negro, 383 reais.
O IBGE aponta ainda o abismo na
escolaridade entre os dois grupos, Lutamos pela aprovação do Estatuto
evidenciado pelo fato de que só 8,2% da Igualdade Racial (EIR). Acreditamos
dos pretos e pardos com mais de 18 anos que ele é uma forma de integração para
freqüentaram a Universidade. Entre os que um dia negros e brancos possam
brancos, este percentual é de 25,5%. estar convivendo em condições de
Comparando 2002 com 2006, a Pesquisa igualdade no ensino fundamental, nas
Mensal de Emprego mostra que ambos universidades, nos locais de trabalho,
os grupos melhoraram, mas a diferença nas ruas, nos campos, nos parques,
permaneceu praticamente inalterada. enfim, caminhando juntos em plena
igualdade.

A aprovação dessa proposta irá


representar a verdadeira carta de alforria
do povo negro. Devemos isso a todos
aqueles que, no transcorrer da história,
plantaram, com suas atitudes, a semente
da liberdade.

SECOM/MEC CPT SECOM/MEC CPT MST

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59

O sistema de cotas nas universidades Gostaria de lembrar mais uma vez que
está consagrado no PL 73/99 da deputada o EIR está para os negros no Brasil da
Nice Lobão (PFL-MA). A proposta deve mesma forma que nos Estados Unidos
assegurar o preenchimento, por afro- da América (EUA), depois da famosa
brasileiros, de quotas mínimas das vagas “Marcha sobre Washington”, foram
nos cursos de graduação em todas as aprovados os direitos civis para os negros,
instituições públicas federais de educação pela Suprema Corte e em seguida pelo
superior do território nacional e nos Congresso. Martin Luther King morreu
contratos do Fundo de Financiamento ao nesta caminhada, mas a Lei permanece
Estudante do Ensino Superior (FIES). até hoje.

O sistema de cotas já é adotado em Nós, brasileiros, negros, brancos, índios,


47 universidades brasileiras. Outros crianças, idosos, homens e mulheres
exemplos positivos são os bancos e o habitantes deste país queremos um
serviço público que já começaram a Brasil para todos. O Estatuto é um dos
adotar o sistema de cotas. Nas últimas instrumentos para atingirmos este
décadas, tivemos pequenos avanços, mas objetivo.
precisamos avançar muito, muito mais
mesmo. O homem que ainda não descobriu uma
causa pela qual ele possa morrer é
A luta no Brasil nos faz lembrar a porque ainda não entendeu o sentido da
batalha travada entre abolicionistas, vida. Acredito que estou no caminho,
que queriam a liberdade dos negros, pois descobri a causa da inclusão, da
e os escravocratas, que lutavam para igualdade, da liberdade, da justiça e
perpetuar o regime de escravidão. O da defesa do meio ambiente. Esta é a
Brasil, lamentavelmente, foi um dos razão da minha vida e por ela eu poderia
últimos países do mundo a abolir a morrer.
escravatura.
Paulo Paim, senador pelo PT- RS
Fonte: Jornal O Sul

MCF Saberes da Terra/PA MMA SECOM/MEC SECOM/MEC SECOM/MEC

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60

Texto 12
INDICADORES DE DESIGUALDADES DE GÊNERO
E RAÇA NO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO (2001)

Perfil educacional
O perfil educacional das mulheres é
mais elevado que o dos homens e essa
diferença se acentua na década;
l 64% dos negros e 44% dos brancos têm Desemprego
até 7 anos de escolaridade; l a taxa de desemprego das mulheres
l 19% dos negros e 39% dos brancos têm (11,7%) é 58,1 % superior à dos homens
11 anos e mais de escolaridade; (7,4%);
l apenas 2% dos negros conseguem l a taxa de desemprego dos negros de
entrar na universidade; ambos sexos (10,6%) é 30,9% superior à
l a defasagem entre os perfis dos brancos de ambos sexos (8,1’%);
educacionais de negros e brancos l a taxa de desemprego das mulheres
aumentou negras (13,8%) é 112,3% superior à dos
entre 1992 e 2001. homens brancos (6,5%);
l os diferenciais entre as taxas de

Taxa de participação desemprego de homens e mulheres,


l a taxa de participação das mulheres no negros e brancos aumentaram entre 1992
Brasil é de 50,3%, em 2002, superior à e 2001 .
média latino-americana;
l a taxa de participação das mulheres
tem aumentado significativamente, Desemprego juvenil
mas ainda é inferior à dos homens; os l entre os jovens, a taxa de desemprego
diferenciais entre as taxas de participação dos negros e das mulheres é
de homens e mulheres se reduzem na significativamente superior à taxa de
década; desemprego dos brancos e dos homens;
l a taxa de participação das mulheres l a taxa de desemprego dos jovens negros
mais pobres e com menos escolaridade do sexo masculino é de 15,4%
é significativamente inferior a essa (a dos jovens brancos é 13,6%); a taxa de
média, o que expressa as suas maiores desemprego das jovens negras
dificuldades de inserção no mercado de chegava a 25% (e a das jovens brancas, a
trabalho. 20%).

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61

Diferenciais de rendimento
l as mulheres recebem em média, por
hora trabalhada, 79% do que recebem
os homens. Por mês, essa proporção se
reduz para 66%;
l a diferença entre as remunerações
médias dos homens e mulheres aumenta,
ao invés de diminuir, à medida que
aumenta o nível de escolaridade;
l entre os que têm 15 anos ou mais de
estudo, as mulheres recebem apenas 61% Informalidade e Precarização
dos rendimentos masculinos por hora l a proporção de mulheres que se
trabalhada; concentra nas ocupações precárias
l as diferenças de rendimentos entre e informais (61%) é 13% superior à
homens e mulheres se reduzem 8.% entre proporção de homens nessa mesma
1992 e 2001; situação (54%);
l os trabalhadores negros de ambos l a proporção de negros (65,3%) em
os sexos recebem, em média, por hora ocupações precárias é 29% superior à
trabalhada, 50% dos que recebem os proporção de brancos na mesma situação
trabalhadores brancos de ambos os (50,4%);
sexos; l no caso das mulheres negras, essa
l as mulheres negras recebem apenas proporção é de 71%. Destas, 41% se
39% do que recebem os homens brancos concentra nas ocupações;
por hora trabalhada; l mais precárias e desprotegidas
l comparando negros e brancos com o do mercado de trabalho: 18%
mesmo nível de escolaridade, os negros são trabalhadores familiares sem
recebem sempre 30% a menos que os remuneração e 23% são trabalhadoras
brancos por hora trabalhada; domesticas. No caso das mulheres
l na faixa superior de escolaridade brancas, essas porcentagens são,
(15 anos e mais), as mulheres negras respectivamente, 13,5% e 14%, o que
recebem menos da metade (46%) do que perfaz um total de 27,5%.
recebem os homens brancos por hora
trabalhada; Fonte: IBGE. PNAD 2201
l as diferenças salariais entre negros e Elaboração: OIT
brancos não se alteram entre os 1992 e Obs: Dados referem-se às pessoas de 16
2001. anos e mais.

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62

Texto 13
A economia de base ecológica em pequenas
propriedades familiares: o caso da família Rutkoski5
Adilson R. Bellé, Juliana Mazurana e Lauro Foschiera*

Texto cedido A família Rutkoski reside no município de Produção e comercialização


5

pela Revista
Agriculturas - v.
Sananduva, Rio Grande do Sul, e conta Os Rutkoski sempre tiveram uma postura
2 - no 3 - outu- sua história a partir da década de 70, com reservada quanto ao uso de agrotóxicos,
bro de 2005. o casamento do Sr. Ivo (54 anos) e Dona principalmente pela preocupação
Lourdes (47 anos). com a saúde. Adotavam apenas em
parte o pacote proposto pelo modelo
Tiveram dois filhos: Evandro (26 anos) e convencional de produção, fazendo uso
Fátima (18 anos), que trabalham e vivem de pequenas quantidades de adubos
junto aos pais. Receberam como herança químicos em seus cultivos. Aos poucos,
uma área de 3,5 hectares localizada na no entanto, o sistema convencional foi
comunidade de São Paulo da Cruz, a sendo incorporado à economia da família.
30 km da sede do município, região de
topografia acidentada e colonizada, em Além da falta de alternativa, a introdução
sua maioria, por poloneses e italianos. desse modelo foi estimulada pela cultura
Mais tarde, a família conseguiu comprar produtiva dominante na região e também
outros 20 hectares com a produção e pela “pressão” exercida pelos vizinhos.
venda de suínos, feijão e soja, mas sem Cresceram assim a dependência de
deixar de produzir para o autoconsumo. insumos e os custos com a produção. No
Foto: Erik Risaker, 2004/Revista Agriculturas que se refere aos aspectos econômicos,
a renda obtida era baixa. O sistema
produtivo pouco diversificado gerava
instabilidade e insegurança, tanto
econômica quanto alimentar. Depois da
participação do filho em um curso sobre
produção ecológica em 1996, a família
decidiu tornar a propriedade totalmente
ecológica. A transição dos padrões do
manejo técnico-produtivo foi rápida, pois
perceberam que havia boas oportunidades
para fazer um trabalho diferente, com
maior liberdade para comercializar e
possibilidades de incremento da renda. A
família foi pioneira na adoção do sistema
ecológico no município, demonstrando a
viabilidade da proposta.

Embora a mudança para o sistema de


produção familiar ecológico tenha sido
Família Rutkoski em sua propriedade rápida, os Rutkoski avaliam atualmente
no interior de Sananduva, RS que o processo pensado em termos

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63

coletivos deve ser mais lento do ponto Custos e renda


de vista técnico e econômico, sendo A agricultura ecológica realizada pela
principalmente um processo educativo, família está baseada, sobretudo, no
no qual se prioriza a melhoria da saúde. cuidado com o solo e na conservação
Anteriormente, a base da produção e uso de sementes próprias, evitando
destinada ao comércio era bastante a utilização de insumos externos à
especializada e se resumia a três ou propriedade e, com isso, reduzindo
quatro produtos: milho, suínos, soja consideravelmente os custos variáveis
e feijão. Atualmente, são cultivados e da produção. Dispondo, assim, de um
comercializados 30 diferentes produtos, razoável nível de autonomia técnica e
como, por exemplo, açúcar mascavo, econômica, os Rutkoski praticamente não
mandioquinhasalsa, melão, moranga, lançam mão de empréstimos, ainda que
arroz, mel, aipim e batata-doce. considerem que o Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura
A venda, realizada até então com Familiar, o Pronaf, oferece atualmente
intermediação da cooperativa ou nas casas alternativas interessantes. Com uma
comerciais atacadistas, passou a ser feita de estratégia produtiva diversificada e auto-
forma direta nas feiras. Essa nova dinâmica suficiente, passaram a desfrutar de um
proporcionou a diversificação dos mercados, padrão relativamente elevado de renda
maior controle sobre os preços recebidos, monetária e não-monetária.
além do contato direto com os consumidores
e a constituição de uma clientela própria, o
Na safra 2003/04, por exemplo, foram
que antes não ocorria. O acesso direto aos
produzidos, para o consumo anual da
mercados agora representa 80% da venda
família, cerca de 2.500 kg de alimentos,
da produção da família, que ainda conta
representando um valor estimado de
com o mercado da cooperativa onde há um
R$ 4.000,00. Não fosse essa produção,
espaço destinado ao comércio de produtos
os gastos com a manutenção da família
ecológicos.
teriam sido evidentemente superiores, se
A feira foi fundada em 1997, com o apoio do realizados nos mercados locais. As vendas
Centro de Tecnologias Alternativas Populares atingiram um valor bruto de R$ 27.790,00
(Cetap) e do Sindicato dos Trabalhadores e, quando somadas ao autoconsumo,
Rurais (STR) do município, e serve de totalizam R$ 31.790,00/ano. Os diversos
espaço para um grupo de agricultores custos intermediários existentes na
comercializarem produtos ecológicos. Além propriedade (combustível, manutenção
da assessoria à comercialização, o Cetap de veículos, insumos orgânicos etc.)
apóia os processos sócioorganizativos e somaram R$ 14.240,00. Com isso, a renda
de produção das famílias de agricultores familiar mensal chega a R$ 1.458,00, em
dispostas a fazer a transição para a média, o que possibilitou à família uma
agroecologia. poupança mensal de R$ 1.000,00 para
futuros investimentos e necessidades
Embora a mudança para o sistema de emergenciais. Esse padrão de renda, com
produção familiar ecológico tenha sido algumas variações, tem se mantido nos
rápida, os Rutkoski avaliam atualmente últimos anos.
que o processo pensado em termos
coletivos deve ser mais lento do ponto A situação econômica dos Rutkoski é
de vista técnico e econômico, sendo positiva, não só na avaliação da própria
principalmente um processo educativo, família, mas quando comparada à
no qual se prioriza a melhoria da saúde. situação da maioria dos agricultores

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64

familiares de Sananduva e da região tinham a devida importância econômica,


que, ao contrário, estão em processo passaram a ser resgatadas e valorizadas,
de descapitalização e cada vez mais a exemplo do feijão de cor e feijão de
dependentes de recursos externos, vagem, amendoim, mandioquinha-salsa,
inclusive do crédito. morangas, ervilha, aipim, milho, arroz,
pipoca, melancia, hortaliças etc.
Agricultura ecológica para
• O planejamento da produção e a
além dos aspectos da renda organização do trabalho passaram a ser
A melhoria da renda veio acompanhada incorporados como uma necessidade
de outras mudanças e realizações, nas pelo núcleo familiar, tornando mais fácil
dimensões econômica, ambiental e a realização das atividades de forma
das vivências, dentre as quais a família conjunta;
destaca:
• A feira possibilita o contato direto com
• A preservação e o uso da biodiversidade as pessoas urbanas, permite a troca de
são, segundo o filho Evandro, grandes informações entre quem produz e quem
vantagens de ser agricultor ecológico. consome os alimentos, fortalecendo as
Cerca de 40 variedades de sementes relações entre as partes: o mundo rural e o
crioulas e cultivos, que antes não urbano;
Foto: CETAP, 1998/ Revista Agriculturas

Feira Ecológica de Sananduva

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65

• A filha Fátima destaca as perspectivas O abastecimento local e


como jovem: Nós vivemos bem na
agricultura ecológica, temos uma boa
a ampliação da proposta
alimentação e temos boas condições de agroecológica
vida. Eu estou estudando e pretendo cursar A produção da família Rutkoski se destina
uma universidade. E enquanto planejam ao mercado local, o que lhe permitiu
seu futuro, os dois jovens exercitam desenvolver uma maior capacidade de
a capacidade de gestão e uma certa acompanhamento e gestão das relações
independência econômica: Eu tenho minha técnicas e econômicas entre a oferta e a
própria remuneração, posso gastar no que demanda dos consumidores. Ainda que
eu quiser, mas minhas amigas não têm a o centro urbano de Sananduva conte
mesma liberdade. apenas com dez mil habitantes, a cidade
importa cerca de 80% dos produtos
• A tranqüilidade na vida da família hortigranjeiros consumidos, conforme
aumentou muito, especialmente em estudo realizado pelo Cetap, em 2005.
relação à saúde, devido à qualidade e à
diversidade da alimentação, ao uso da Face a esse déficit, a família destaca
fitoterapia e à possibilidade de acesso ao algumas propostas que considera
lazer, além da estabilidade econômica e necessárias para ampliar a produção e
menor incidência de riscos na atividade; o consumo de produtos ecológicos no
município, dentre as quais: a divulgação
• Na dimensão ambiental, a família tem continuada das vantagens da agricultura
convicção de que quanto menos interferir ecológica; a formação e assessoria técnica
na natureza, melhor será para a produção às famílias agricultoras; a construção
e para a saúde das pessoas. Chama de propostas juntamente com os
particularmente atenção para a qualidade consumidores; o apoio por meio de
do solo onde existe muita vida, como políticas públicas diversas, que devem
minhocas e outros insetos benéficos para dar prioridade para a venda de alimentos
a natureza e fertilidade; ecológicos nos mercados institucionais.

• A opção do filho Evandro de ser agente Além disso, os Rutkoski vêm


de saúde possibilita aprender e ensinar demonstrando aos agricultores familiares
coisas novas, como o sistema das trocas da região que é possível e vantajoso, sob
comunitárias de mudas e sementes diversos aspectos, praticar a agricultura
crioulas, por meio da participação ativa ecológica e assim ter qualidade de
na vida das comunidades próximas. vida. A ampliação dessa forma de fazer
agricultura depende de um conjunto
de ações, mas, em grande parte, está
relacionada às atitudes de cada família.

*Adilson R. Bellé: técnico agrícola e graduando em


Desenvolvimento Rural pela UERGS, técnico do Cetap.
adilsonbelle@yahoo.com.br
Juliana Mazurana: engenheira agrônoma, técnica
do Cetap.
juliana.mazurana@bol.com.br
Lauro Foschiera: tecnólogo em Administração
Rural, técnico do Cetap.
cetap@berthier.com.br

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66

Texto 14
Arquivo Saberes da Terra/Maranhão

Soberania Alimentar, agroecologia e mercados locais6


Laércio Meirelles*
6
Texto cedido
Soberania Alimentar e a conservação e controle da base genética pela Revista
do sistema alimentar8; às relações Agriculturas
produção de alimentos. comerciais que se estabelecem em torno
– v.1 – n°0 –
setembro de
O acesso a um alimento saudável e de 2004.
do alimento, em todos os níveis.
boa qualidade é um direito universal dos 7
A noção
povos e deve se sobrepor a qualquer fator de Soberania
Este inalienável direito de todo ser humano Alimentar,
econômico, político ou cultural que impeça
tem sido negligenciado de forma sistemática desenvolvida pela
sua efetivação. Todas as pessoas devem Via Campesina,
por nossa sociedade. Observamos ainda foi levada ao
ter direito a um abastecimento alimentar debate público
que a insegurança alimentar encontra-
seguro, culturalmente apropriado e em por ocasião da
se associada ao acelerado processo de Cúpula Mundial da
quantidade e qualidade suficientes para Alimentação em
degradação das bases econômicas, sociais, 1996. Desde então
garantir seu desenvolvimento integral.
biológicas e culturais da agricultura familiar tem se convertido
O conceito de Soberania Alimentar remete, em conceito
ocorrido nas últimas décadas. chave no debate
além disso, a um conjunto mais amplo de internacional,
relações: ao direito dos povos de definir inclusive no
A internacionalização, nos últimos âmbito da ONU.
sua política agrária e alimentar, garantindo
cinqüenta anos, do pacote tecnológico 8
PESSANHA, Laví-
o abastecimento de suas populações, a
da Revolução Verde tem levado a uma nia. A agricultura
preservação do meio ambiente e a proteção familiar e os qua-
crescente erosão da biodiversidade tro conteúdos
de sua produção frente à concorrência da segurança
agrícola e alimentar. Esse modelo
desleal de outros países7. alimentar. Rio de
tecnológico, baseado no cultivo Janeiro: AGORA/
RIAD/ REDCAPA,
de variedades genéticas de alta 1995.
Nesta perspectiva, a noção de Soberania produtividade, na utilização de insumos 9
GLIESSMAN,
Alimentar incorpora várias dimensões – químico-sintéticos, na mecanização e Stephen.
econômicas, sociais, políticas, culturais e no recurso a fontes não-renováveis de Agroecologia
– Processos
ambientais – relacionadas ao direito de energia, tem sido o responsável pela Ecológicos em
acesso ao alimento; à produção e oferta Agricultura
deterioração progressiva da própria base Sustentável. Porto
de produtos alimentares; à qualidade natural que assegura a estrutura e o Alegre: Editora da
UFRGS, 2000.
sanitária e nutricional dos alimentos; à funcionamento dos sistemas agrícolas.

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67

No que diz respeito à Soberania Alimentar, limpos e a articulação de novas redes de


o impacto desse modelo é paradoxal. distribuição e consumo de alimentos, são
Aumentou a produção de alimentos ao condições indispensáveis para garantir
mesmo tempo em que ampliou o número de o acesso a alimentos de qualidade para
famintos. Concentração da terra, êxodo rural, todos. E, como já vimos, acesso é um
incremento dos monocultivos e erosão dos problema central quando o tema é
solos são algumas das causas apontadas Soberania Alimentar.
para esta anomalia. Em seu editorial do
dia 18 de setembro de 2000, a Folha de Rede Ecovida de Agroecologia:
S.Paulo, citando um relatório da Food and
Agriculture Organization (FAO) afirmava:
por novos padrões de
produção, comercialização e
O mundo já produz alimentos em consumo de alimentos
quantidade suficiente para suprir as
necessidades nutricionais de todos os A Rede Ecovida de Agroecologia surge no
seus seis bilhões de habitantes. Ainda fim da década de 90, a partir da integração
assim, cerca de 800 milhões sofrem de de dezenas de organizações que têm na
desnutrição... infelizmente, o mundo ainda promoção da agroecologia seu objetivo
parece longe de dar uma resposta para central. Segundo um documento interno:
o problema da fome, que não diz tanto A Rede Ecovida de Agroecologia é um
respeito à produção de alimentos, mas sim espaço de articulação entre agricultores
à distribuição de renda. familiares e suas organizações, 10
Rede Ecovida
organizações de assessoria e pessoas de Agroecologia,
Normas de
Agroecologia e envolvidas e simpáticas com a produção, Organização e
o processamento, a comercialização e o Funcionamento.
Soberania Alimentar consumo de alimentos ecológicos10. Lages,
dezembro, 2001.
A agroecologia, cujo conceito vem sendo
construído com a contribuição de diversas
áreas do conhecimento, se propõe a
ser uma resposta socioambiental a
esta degradação ocasionada pela mal
denominada Revolução Verde.

Concebido inicialmente como uma


disciplina científica que estuda os
agroecossistemas, o conceito de
agroecologia hoje incorpora também o
estudo do desenho de agroecossistemas
sustentáveis, levando em consideração
todos os fatores que podem influenciar esse
desenho9. Esta evolução conceitual leva,
naturalmente, a uma forte aproximação entre
o trabalho com agroecologia e a busca da
defesa da soberania alimentar dos povos.

Iniciativas “agroecológicas”, como o resgate


e a manutenção de sementes varietais
pelas famílias agricultoras, a conservação de
recursos naturais, a produção de alimentos

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68

A Rede atualmente é formada por 180 Contrariando essa tendência, os membros


grupos de agricultores dos estados do da Rede Ecovida de Agroecologia têm
Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande buscado privilegiar os mercados locais
do Sul, envolvendo um total de 2.300 para o escoamento de sua produção.
famílias. Participam ainda 10 cooperativas Mercado local aqui não pode ser entendido
de consumidores de produtos ecológicos e unicamente como uma localização
25 ONGs. A unidade operacional da Rede geográfica, mas também como um
são os Núcleos Regionais, que hoje somam processo de comercialização que busca
21. Por ser uma articulação aberta, estes fundamentalmente:
números estão em constante crescimento.
• democratizar, popularizar e massificar o
Para a Rede Ecovida de Agroecologia consumo de produtos ecológicos;
o processo de transição agroecológica
deve ter como ponto de partida • encurtar a distância entre produtores
a superação da capacidade da e consumidores, estimulando relações
propriedade familiar em produzir seus solidárias entre eles;
próprios alimentos. A partir dessa
premissa é que se devem construir • valorizar os serviços socioambientais
as estratégias de vinculação dos gerados;
agricultores com o mercado, sempre
buscando meios que, por um lado, • fazer com que os benefícios da
estimulem e consolidem o processo de comercialização sejam compartilhados
transição e, por outro disponibilizem entre todos os envolvidos;
à população urbana produtos de
qualidade a preços acessíveis. • promover a cooperação, a transparência
e a complementaridade entre os agentes
Porém, a tendência majoritária é a de do processo de comercialização;
busca de grandes redes de supermercados
e canais de exportação como principais • possibilitar uma crescente inclusão de
estratégias de comercialização para os agricultores e consumidores no mercado.
produtos ecológicos, levando a um quadro
de elitização do consumo desses produtos.

Arquivo do MST

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69

Arquivo Saberes da Terra/Santa Catarina


No Núcleo Monge João Maria, no Centro
Sul do Paraná, o desenvolvimento do
mercado local para produtos ecológicos
tem se baseado em feiras livres, mercado
institucional e comercialização em
festas e eventos locais. Estes espaços
de comercialização têm estimulado
a diversificação da produção entre as
famílias agricultoras, o que tem gerado
um resultado positivo na promoção da
Soberania Alimentar, tendo em vista a
melhoria e o enriquecimento nos hábitos
alimentares destas famílias. Da mesma
forma, têm popularizado o acesso ao
alimento ecológico, já que as feiras, em
um total de quatro, são realizadas em
bairros populares a preços acessíveis, e as
compras institucionais estão voltadas ao
atendimento de quatro creches, uma pré-
escola e cinco escolas em bairros carentes,
além de entidades assistenciais presentes
No entendimento da Rede Ecovida, um em três bairros. Este é um exemplo
mercado pautado por esses princípios importante que rompe com a lógica de
permite o escoamento de uma produção elitização dos mercados de produtos
diversificada, baseada em recursos ecológicos.
genéticos autóctones, uma melhor
remuneração para o agricultor, preços No Núcleo Maurício Burmester do Amaral,
mais acessíveis ao consumidor e baixos na região metropolitana de Curitiba-PR,
custos operacionais. Mercados como a agroecologia tem contribuído para o
estes propiciam ainda que uma maior desenvolvimento de canais alternativos
parcela da renda gerada seja retida pelo de mercado, sob o controle das famílias
agricultor, com um conseqüente aumento agricultoras e consumidoras, diminuindo
em sua capacidade de consumo. a dependência dos intermediários e das
grandes redes de supermercados. Doze
É visando o estabelecimento de relações novas feiras agroecológicas, cinco pontos
de mercado dessa natureza que a Rede de venda, duas escolas que recebem
Ecovida tem estimulado a construção merendas escolares agroecológicas,
de uma Rede Solidária de Produção e algumas iniciativas de entrega de “cestas
Circulação de Produtos Ecológicos. As agroecológicas” e comércio solidário
células de comercialização desta Rede em bairros pobres são exemplos de
são fundamentalmente feiras livres, experiências de descentralização da
cooperativas de consumidores, mercados comercialização.
institucionais, pontos de abastecimento
popular, pequenas lojas e comerciantes.

Várias experiências ocorrem hoje em


todos os núcleos da Rede Ecovida e
apontam para a criação do que podemos
chamar de “um outro mercado”.

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70

Arquivo Saberes da Terra/Rondônia


Em um trabalho realizado em mais de 16
oficinas com grupos de agricultores, como
parte de uma capacitação sobre gestão,
foram levantados dados significativos
sobre a grande diversidade de alimentos
ecológicos produzidos e consumidos pelas
famílias agricultoras. No entendimento dos
integrantes desse núcleo, isso demonstra
o resgate da riqueza alimentar dessas
famílias e a presença de uma renda direta
ou indireta às vezes superior àquela
obtida pela comercialização dos produtos
destinados ao mercado.

No Núcleo Litoral Solidário, que abrange


o Litoral Norte do Rio Grande do Sul e o
Sul de Santa Catarina, tem-se estimulado
a organização de Cooperativas de No Núcleo Serra, a partir de um convênio
Consumidores de Produtos Ecológicos, estabelecido entre o Centro Ecológico e
hoje presentes em seis diferentes a Prefeitura Municipal de Caxias do Sul,
municípios. Basicamente funcionam a desde 1998 se comercializam bananas
partir da organização dos consumidores e produzidas no litoral entre os estados do
se materializam em uma loja de produtos Rio Grande do Sul e Santa Catarina sob os
ecológicos. Uma delas, a Coopet, localizada princípios da agroecologia. O diferencial
no município de Três Cachoeiras, tem é o objetivo dessa comercialização:
uma forma de gestão bastante original. conectar agricultores e consumidores
Cobra de seus associados uma pequena com baixo poder aquisitivo.
mensalidade, hoje de 20 reais, suficientes Semanalmente são comercializadas
para cobrir seus custos operacionais. Isto em dois pontos estratégicos, de grande
lhe permite vender a seus associados os fluxo de pessoas, 10 toneladas de
produtos ao preço de custo. Para facilitar o banana a um preço 30 a 40% abaixo do
acesso dos agricultores aos produtos que mercado convencional. Ainda assim,
comercializa, a Coopet tomou a iniciativa esse valor, descontando os custos de
de cobrar de grupos de agricultores apenas comercialização, significa um incremento
uma mensalidade, estendendo o preço de 100% na renda dos agricultores (veja
de associado a todos os membros desses os números no boxe abaixo).
grupos. Essa é mais uma alternativa que
viabiliza o consumo de produtos ecológicos. Arquivo Embrapa

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71

Ponto de colheita – Caxias do Sul Pavimentando caminhos,


50 famílias agricultoras envolvidas;
10 toneladas comercializadas por semana
reacendendo esperanças
Aqui repetimos o que já dissemos no
Preço recebido pelo agricultor = R$ 0,66/
início: o acesso a alimentos saudáveis e
Kg (o custo de comercialização é de R$
de boa qualidade é um direito universal
0,18/Kg)
dos povos, e deve se sobrepor a qualquer
Preço pago pelo consumidor = R$0,66/Kg
fator econômico, político ou cultural
Mercado convencional
que impeça sua efetivação. Infelizmente
Preço pago ao agricultor = R$ 0,25/kg
na sociedade contemporânea este
Preço pago pelo consumidor = R$ 1,00/kg
acesso está obstruído para uma parcela
significativa da população.
Essa iniciativa é mais uma demonstração
que práticas agroecológicas, associadas
Trabalhar para reverter este quadro é um
a mercados locais, trazem impactos
dever de cada um de nós e da sociedade
positivos à Soberania Alimentar da
como um todo. Os integrantes da Rede
população.
Ecovida entendem estar dando sua parcela de
contribuição para a promoção da Soberania
Alimentar, a partir da realidade em que cada
Arquivo Saberes da Terra/Rondônia
membro está inserido. Julgamos que a opção
pela agroecologia e pelo desenvolvimento de
mercados locais para produtos ecológicos é
indispensável para pavimentar o caminho que
permitirá o acesso de todos a alimentos de
qualidade.

Somos conscientes de que trabalhos


como os aqui descritos não se
avolumam a ponto de se fazerem
notar pelas estatísticas de produção e
comercialização de alimentos. Ainda
assim acreditamos que são exemplos
que devem ser observados. Reacendem
a esperança, bem que a escassez tem
deixado ainda mais valioso, de que é
possível construir um mundo onde todos
e todas tenham garantido o direito à
alimentação saudável.

*Coordenador do Centro Ecológico, ONG


que desde 1985 trabalha com o estímulo
à produção e ao consumo de produtos
ecológicos. O Centro Ecológico é membro
da Rede Ecovida de Agroecologia.
laerciomeirelles@terra.com.br

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72

Texto 15
A AGRICULTURA FAMILIAR E
A PONTENCIALIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
CONTAG – Projeto Alternativo e Desenvolvimento Rural

A opção pela Agricultura Familiar se preponderante de produção agrícola.


justifica pela sua capacidade de geração Se devidamente apoiada por políticas
de emprego (da família e de outros) e públicas e ancorada em iniciativas
renda a baixo custo de investimento. A locais, pode se transformar no grande
sua capacidade de retenção da população potencializador de um desenvolvimento
fora dos grandes centros urbanos é fator descentralizado e voltado para uma
fundamental na construção de alternativas perspectiva de sustentabilidade.
de desenvolvimento. Sua capacidade
de produzir alimentos a menor custo e, O desenvolvimento e o fortalecimento
potencialmente, com menores danos da agricultura familiar se dará através da
ambientais, impulsiona o crescimento de implementação de diversas iniciativas,
todo o entorno socioeconômico local. A que deverão estar interligadas para que
falta de incentivos à Agricultura Familiar possam produzir os efeitos desejados. O
tem gerado a marginalidade dos jovens Programa Nacional de Apoio à Agricultura
trabalhadores e trabalhadoras, envolvendo- Familiar (PRONAF) e os Fundos
as em drogas, prostituição, gravidez Constitucionais são algumas iniciativas,
precoce, etc.. não podendo, entretanto, a ação estatal
se esgotar apenas na disponibilização
A agricultura é, portanto, o principal de recursos para crédito de custeio. É
agente propulsor do desenvolvimento fundamental agilizar os procedimentos
comercial e, das linhas de crédito de custeio e
investimento, assim como a reformulação
conseqüentemente, dos serviços de toda a infra-estrutura produtiva e
nas pequenas e médias cidades social, para atender as necessidades da
do interior do Brasil. Basta criar agricultura familiar.
incentivos à agricultura para que se
obtenham respostas rápidas nos outros As políticas de apoio à Agricultura
setores econômicos, pelo seu efeito Familiar devem, inclusive, contemplar
multiplicador. É também condição aquelas atividades não-agrícolas como,
fundamental para que haja uma por exemplo, a industrialização, a
sobrevida para a economia da grande produção artesanal e o turismo rural,
maioria dos municípios brasileiros. É atividades com grande potencial de
o desenvolvimento com distribuição geração de renda e ocupação.
de renda no setor rural que viabiliza
e sustenta uma qualidade de vida do Outro elemento que deve estar
setor urbano. integrado às políticas fundamentais de
fortalecimento da Agricultura Familiar diz
Segundo pesquisa recentemente feita respeito à priorização de investimentos
pela CONTAG/CUT, em várias áreas do públicos para garantir serviços de
país, a agricultura familiar ainda é a forma pesquisa, experimentação, difusão,

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73

assistência técnica e extensão rural, os membros da família têm um papel


comprometida com a sustentabilidade e e uma função no processo produtivo,
adaptados aos meios de produção familiar. têm direito a tomar parte nas decisões
e nos resultados. Para isso, é preciso
Existe um conjunto de iniciativas para o valorizar o trabalho das mulheres e dos
fortalecimento da Agricultura Familiar jovens na agricultura em regime de
que dependem muito da ação sindical economia familiar, construindo relações
como, por exemplo, organização, sociais de gênero, geração e etnia
comercialização e gestão da produção; igualitárias e solidárias no cotidiano dos
diversificação agroecológica e planos de trabalhadores e trabalhadoras. É preciso
desenvolvimento local. Este conjunto entender que a agricultura familiar só
de proposições deve estar articulado a se viabiliza a partir de uma economia
uma política de produção de alimentos solidária. Nesse sentido, a gestão coletiva
e soberania alimentar da população da produção se apresenta como uma
brasileira, como parte integrante da alternativa concreta, através da prática da
estratégia de desenvolvimento. cooperação:

Por outro lado, a gestão da unidade - A agricultura familiar só se viabiliza


produtiva precisa ser considerada como o a partir de uma economia solidária,
exercício prático da democracia. Se todos combinada ao uso de novas tecnologias
Arquivo Saberes da Terra/Paraná
e diversificação dos meios tradicionais
de produção. As formas coletivas
de produção e comercialização se
apresentam como uma alternativa
concreta, através da prática da
cooperação, associativismo e parceria.

- O desenvolvimento rural sustentável


passa necessariamente pela garantia de
documentação do uso da terra, o que
também contribui para a construção da
cidadania da população rural.

Diante da importância estratégica da


agricultura familiar, o MSTR precisa
desenvolver um sistema de comunicação
e marketing, divulgando a importância
e representatividade deste setor para a
sociedade brasileira, resgatando o seu
reconhecimento e valorização.

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74

Texto 16
LEI TRARÁ DIRETRIZES PARA A AGRICULTURA FAMILIAR11 11
Texto
extraído do
Caderno de
Formação
Integral
do Ensino
Fundamental
e qualificação

Notícias
profissional de
agricultores
familiares.
Projeto Saberes
da Terra.
24 de julho de 2006 Secretaria do
Maranhão.
Foi sancionada hoje pelo presidente da República, Luiz Educação. São
Luís, 2007.
Inácio Lula da Silva, a Lei que institui a Política Nacional
da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares. A
Lei, que agora será publicada no Diário Oficial da União,
reconhece a agricultura como setor produtivo, trazendo
diretrizes para a mesma.

Com a nova Lei, que havia sido aprovada pelo Congresso


Nacional no último dia 4 de julho, o trabalhador da
agricultura familiar passa a existir como categoria,
superando o conceito de “pequeno agricultor”, o
que contribuirá para a criação de uma Legislação
Previdenciária, Tributária e Ambiental, que leve em
conta as características do setor.

O texto sancionado adota quatro critérios para definir o


que é agricultura familiar:

l aquela que é praticada por mão-de-obra da própria


família;

l que extrai sua renda de uma mesma propriedade;

l que tem gerenciamento da própria família; e

lque é praticada em área de no máximo quatro


módulos (oito hectares, ou seja 80.000 metros
quadrados, em média, dependendo do Estado).

A nova lei prevê a articulação das políticas do governo


para esse segmento da agricultura.

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75

Arquivo Saberes da Terra/Santa Catarina

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76

Texto 17
João Werner “Ceifadores” 50x70 cm acrílica sobre tela/2004

O CIO DA TERRA O CIO DA TERRA O CIO

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77

O CIO DA TERRA
Chico Buarque – 1977

Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão

Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel

Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão

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78
veri ni
Texto 18 Seve
Se ver
SAGA DE SEVERININ12 Texto extraído do Caderno
12

de formação Integral do Ensino


Seve rinin Seve
Vital Farias Fundamental e qualificação
profissional de agricultores Severinin Severinin
familiares. Projeto Saberes da Terra.
Secretaria da Educação. São Luís, rinin Severinin Sev
2007.
Severinin Severinin
verinin Severinin S
Peço a atenção dos senhores
Pra história que eu vou contar
Severinin Severinin S
Falo de Severinin lavrador tão popular
Que morava numa palhoça
Severinin Severinin Seve
E cultivava uma roça perto de Taperoá Severinin Severinin Severi
E Severinin todo dia lavrava a terra macia Severinin Se verini
E terra lavrada é poesia
Fotos:
Arquivo Saberes da Terra/MA
Se veri n
Mexe com a mão na terra
Arquivo Saberes da Terra/MA
Sobe essa serra, corta esse chão
Arquivo Saberes da Terra/MA rin
Ministério do Desenvolvimento Social Planta que a planta aponte
e Combate à Fome
SECOM/MEC
Por esses montes, lã d`algodão
SECOM/MEC
Severinin vivia até feliz
Enchendo os olhos com bem d`raiz
E mesmo a plantação tava bonita em flor
E a seu lado a sua companheira
Tinha o seu amor

Mas como diz o ditado


E haverá de se esperar
Depois de tudo plantado
Fazendeiro pede pra Severinin desocupar

Já tinha até fruta madura


Jirimum enramando no terreiro
E tinha até um passarinho
Que além de ser seu vizinho
Ficou muito companheiro

Chega tanta incerteza


A alma presa quer se soltar
Luta, luta sozinho
Qual o caminho de libertar?

Severinin ficou sozinho e só


Ingratidão não pôde suportar
Correu para o sul – Aí a construção civil
De uma vez por todas – desabar

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Se 79
eri nin
Severi nin Severinin
Se verinin Severinin Severinin
n Severinin Severinin Severi nin
erinin Severinin Severinin Severinin Severinin Seve
n Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin
verinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Se
rinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Seve rinin Severinin
inin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin
Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Seve rinin
Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin
verinin Severi nin Severinin Severinin Severi nin Severinin Severinin
veri nin Se verinin Seve rinin Severinin Seve ri nin Severinin Seve
rinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severinin Severi
nin Severinin Severinin Severinin Severinin Severi
nin Severinin Severinin Severinin Severinin Severi
nin Severinin Severinin Severinin Severinin
Severinin Severinin Severinin Severinin
Severinin Severinin Seve rinin Severinin
Severinin Severinin Severinin Severinin
Severinin Severinin Severinin Seve
rinin Severinin Severinin
Severinin Severi
nin Severi
nin Seve
rinin Se
verinin
Severinin
Severi
nin
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80

Texto 19
Fotos: Arquivo Saberes da Terra

SERENETA CAMPESINA
Gilvan Santos

Aqui foi onde nasci


foi onde me encontrei
conheci minha doce amada
lugar onde me criei
aqui nessa terra da gente
lugar que se planta e se colhe
de onde nós tira o sustento
cantinho que nos acolhe
de onde nós tira o sustento
cantinho que nos acolhe

Nossa plantação
dá pra gente viver
não temos patrão
temos nosso saber
pra cuidar dessa terra
nosso bem-querer

Vieram expulsar a gente


como quem quer tanger a
boiada
aqueles ditosos senhores
apontaram pra nós a estrada
fizemos a resistência
daqui ninguém vai sair não
o povo ficou na terra
pedaço do seu coração.

no campo da produção
e faz enfeite pra festa
e a massa que faz o pão

Quem olha sempre pra vida


e a vida faz defender
cuidando da existência
valores novos valer
é sonho que nunca morre
é novo amanhecer

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Texto 20
ESSA CIDADE É GRANDE
Desabafo de um lavrador
que deixou a terra
Gilvan Santos

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Essa cidade é grande


eu vim parar aqui
é tanto desemprego
ninguém tem sossego
ninguém tem porvir
vou procurar uma terra
um pé-de-serra
pra poder viver
e vou jogar semente
com uma nova gente
e vamos ver crescer

Perdi a identidade
meu mundo é informal
meu escritório é o tempo
em meio ao desalento
nessa capital
vou procurar uma terra
um pé-de-serra
pra poder viver
e vou jogar semente
com uma nova gente
e vamos ver crescer

Ainda vem saudade


daquele meu lugar
daquela turma boa
o rio e a lagoa
que deixei pra lá
e vou voltar pra terra
pro meu pé-de-serra
pra poder viver
e vou jogar semente
com uma nova gente
e vamos ver cresce

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Texto 21
MULHER GUERREIRA

Projeto Saberes da Terra


Oi! Meu nome é Maria José Barbosa. Tenho 59 anos.
Meus pais são Manoel Luiz Barbosa e Maria Pragino
Barbosa. Tenho cinco irmãos e nasci em Macujê,
município de Aliança. E agora vou falar um pouco da
história da minha vida. Posso começar a dizer que aos 4
anos de idade meu pai vivia em casas de desconhecidos
e meus irmãos trabalhavam para poder comprar coisas
de que eu precisava. No início, fui me acostumando com
o pouco que tinha. Aos 18 anos, arrumei um namorado
e em pouco tempo casei. Não tive muita sorte no
casamento, não foi o matrimônio que sonhei, mas tive
três maravilhosos filhos que hoje me deram dois netos.

O tempo passou e meu marido faleceu, sou viúva há dez


anos. Superei tudo que passei com a minha grande fé em
Deus. Hoje, sou feliz.

Maria José Barbosa O meu estudo não foi concluído, cheguei até a 3ª série.
(educanda do Saberes da Terra-Aliança/PE) Por causa de pequenos detalhes, não tive a grande
oportunidade de estudar.

Deus me ajudou a enfrentar todos meus obstáculos na


vida. A grande vida complicada passou. Hoje, sou feliz
ao lado de toda a minha família e meus amigos, que me
apóiam nos estudos, pois estou estudando no Projeto
Saberes da Terra, aprendendo a escrever, a me expressar
e trabalhar melhor com a terra.

E cada dia que passa aprendo mais e mais, sendo


eternamente grata aos professores e organizadores
do projeto que são dedicados e compreensivos com a
educação do campo.

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Arquivo SECOM/MEC Arquivo SECOM/MEC

Arquivo SECOM/MEC

Arquivo SECOM/MEC

Arquivo SECOM/MEC

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Texto 22
JUVENTUDE E AGRICULTURA ECOLÓGICA NO RIO GRANDE DO SUL
Juventude e agricultura ecológica no Rio Grande do Sul

Pe. João Bosco Schio, Pe. Celso Cicconetto,


Luiz Carlos Scapinelli e Ricardo Barreto*

Adenominada modernização da agricultura Apesar do êxito dessas experiências,


se intensificou na região da serra do Rio os agricultores continuavam sentindo
Grande do Sul, sobretudo a partir dos anos a necessidade de avançar em outros
1970. Embora tenha sido limitada no que assuntos, entre eles o preço pago
se refere à mecanização das operações pelos seus produtos, os processos
de manejo agrícola, gerou um crescente de degradação dos solos, o aumento
emprego de agroquímicos da agricultura, de pragas e doenças nas lavouras e,
com a ampla adoção de adubos químicos, sobretudo, as intoxicações das famílias
inseticidas, herbicidas e fungicidas. com os venenos. Percebeu-se que os
jovens eram os que mais tomavam
Esse processo aprofundou as distinções consciência e se sentiam cada vez mais
econômicas e sociais existentes entre insatisfeitos com a degradação ambiental
as unidades produtivas. As famílias e com a saúde das famílias.
que tiveram acesso ao mercado e às
políticas públicas conseguiram se manter O início de uma parceria
temporariamente como agricultores
familiares. para a promoção
da agricultura ecológica
As demais foram excluídas, inclusive da No ano de 1985, foi criado o Projeto Vacaria
própria terra. Esse processo de exclusão social no município de Ipê (RS), atualmente
tornou se ainda mais visível nos anos 1980, denominado Centro Ecológico, com o
com o agravamento da crise econômica. Foi objetivo de demonstrar a viabilidade técnica
nesse contexto, e com a preocupação de e econômica da agricultura ecológica,
gerar uma proposta que pudesse viabilizar a mediante a adoção de tecnologias
agricultura familiar, que começou o trabalho alternativas orientadas pela filosofia da
da Pastoral da Terra na região. preservação ambiental e justiça social. Após
três anos de experimentação e prática,
Durante a segunda metade dos anos 1970 em uma propriedade de 70 hectares, os
e primeira parte dos anos 1980, a Pastoral técnicos vinculados ao projeto buscaram
orientou suas ações no sentido de uma maior inserção na comunidade. Nesse
conscientizar agricultores e agricultoras momento, por volta do ano de 1987, ocorreu
a respeito das causas de sua situação a aproximação entre a Pastoral e o Centro
de pobreza e exploração. Incentivou a Ecológico e se iniciou um trabalho de difusão
realização de experiências práticas que da proposta da agricultura ecológica junto
abrangiam desde mudanças de hábitos aos agricultores familiares da região. O
de higiene e de alimentação até a interesse em trabalhar esse novo modelo
diversificação de culturas e estratégias de veio majoritariamente dos jovens que
comercialização. participavam da Pastoral.

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87

No entanto, essa primeira fase de As primeiras reflexões


engajamento por parte dos jovens A agricultura ecológica surgiu como
passou por alguns obstáculos, uma forma de concretizar os anseios
entre eles o de convencer os pais a político-ideológicos que a Pastoral
desenvolverem experiências em suas vinha trabalhando há tempo. Até esse
propriedades. Houve casos em que momento, havia apenas técnicas que
jovens fugiram de casa, condicionando atendiam de forma parcial a necessidade
o retorno à permissão de cultivarem dos sistemas de produção da região,
uma área de forma agroecológica. formados basicamente pelo cultivo de
É preciso lembrar que ainda não olerícolas e frutas.
se conheciam referências práticas
consolidadas em agricultura ecológica, A disposição inicial dessas pessoas por
mas os jovens estavam dispostos a mudanças gerou novas tecnologias
serem também eles experimentadores de produção e a construção de canais
desse novo caminho para a agricultura. alternativos de comercialização, o
que exigiu dos jovens um tanto de
perseverança, já que no começo o que
se produzia e comercializava em uma
feira, em Porto Alegre, não pagava nem
o custo da viagem. O interessante desse
processo em relação à comercialização é
a construção de uma nova relação com os
Arquivo Ministério do Meio Ambiente

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consumidores. A declaração de um jovem, Esse fato gerou uma transformação na


no início do trabalho com agricultura auto-estima deles, criando uma nova
ecológica, é bastante esclarecedora: forma de se ver como jovem no meio
rural. Assim, a agricultura ecológica
Antes vendíamos para os atravessadores. constituiu-se, desde aquela época, na
Mesmo que o produto tivesse qualidade principal estratégia de trabalho com a
eles só falavam dos defeitos do produto juventude rural na região.
para pagar menos. Na feira ecológica
a relação é outra. O consumidor Numa primeira fase, surgiu a Associação
agradece porque estamos cuidando do dos Agricultores Ecologistas de Ipê e
meio ambiente e levando um alimento Antônio Prado (AECIA), que serviu de
saudável para a família dele. referência para a formação de outras
associações. Em Ipê, foram criadas
No ano de 1985, surgiu o Projeto Vacaria posteriormente mais sete associações,
no município de Ipê (RS), atualmente cujas principais lideranças articuladoras
denominado Centro Ecológico, com o da organização e constituição eram
objetivo de demonstrar a viabilidade técnica membros da Pastoral da Juventude.
e econômica da agricultura ecológica,
mediante a adoção de tecnologias Esse processo de expansão da
alternativas orientadas pela filosofia da agroecologia ocorreu, também por meio
preservação ambiental e justiça social. da Pastoral, na região do litoral norte
do Rio Grande do Sul, nos municípios
O processo de criação de canais diretos de Torres, Três Cachoeiras, Mampituba,
de comercialização possibilitou o resgate Morrinhos do Sul e Dom Pedro de
do que significa ser agricultor por parte Alcântara – região de agricultura familiar
desses jovens. Em vez de destruir o meio onde os principais cultivos são o arroz,
ambiente, agora estavam fazendo um a banana e as olerícolas. Lá também
trabalho de preservação e promoção da observou-se que a maioria das pessoas
saúde das pessoas. que aderiam à agricultura ecológica era
Arquivo Saberes da Terra/Paraná composta por jovens filhos de agricultores.

A quantidade de agricultores, sobretudo


jovens, que ainda hoje abandona o meio
rural continua a ser extremamente alta.
O esvaziamento e envelhecimento das
comunidades rurais, a falta de mão-de-obra
nas unidades produtivas e a desvalorização
tanto econômica quanto social do trabalho
com a agricultura apresentam-se como
limitações, não apenas para os agricultores
convencionais, mas também para aqueles
empenhados na transição rumo a uma
agricultura ecológica. Um estudo feito nos
municípios de Ipê e Antônio Prado, nos
anos de 1999 e 2000, demonstrou que a
idade média dos agricultores ecologistas
era significativamente menor do que a dos
agricultores convencionais. (Schimitt, 2001)

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Arquivo Saberes da Terra/Paraná

Constatamos que os jovens buscam Vale ressaltar outro aspecto do trabalho


alternativas para a permanência no meio com agricultura ecológica e que se
rural desde que seja valorizado tanto o configura um retorno importante para os
retorno econômico quanto o seu papel jovens: a inserção destes em uma nova
pelo trabalho que desenvolvem em “rede de comunicação”, envolvendo
suas comunidades. É nesse sentido que novas relações que se estabelecem nos
a agricultura ecológica tem dado a sua cursos, nas viagens de intercâmbio, no
contribuição, porque concilia rendimento recebimento de visitas, no contato com
econômico com preservação ambiental e diversos públicos na ocasião das feiras.
produção de alimentos saudáveis. Além de ampliar horizontes por meio do
diálogo com potenciais parceiros, essa
A agricultura ecológica também tem nova dinâmica cumpre também um papel
se mostrado capaz de proporcionar a desmistificador do urbano, já que muitos
diminuição dos custos de produção. desses espaços de intercâmbio envolvem
A mudança da base tecnológica da relações com a cidade ou com pessoas de
agricultura no espaço das unidades origem urbana.
produtivas, juntamente com sua
inserção em canais alternativos de Vale ressaltar outro aspecto do trabalho
comercialização, particularmente por com agricultura ecológica e que se
meio da venda direta nas feiras, tem configura um retorno importante para os
propiciado, de forma geral, a melhoria jovens: a inserção destes em uma nova
da renda das famílias e uma melhor “rede de comunicação”, envolvendo
distribuição de ingressos monetários ao novas relações que se estabelecem nos
longo do ano, ampliando a capacidade cursos, nas viagens de intercâmbio, no
de investimento na atividade agrícola. recebimento de visitas, no contato com
diversos públicos na ocasião das feiras.

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O que estamos pensando hoje É para dar conta dessas perspectivas mais
Atualmente, após 17 anos dessa fase amplas que desenvolvemos atividades mais
inicial de expansão da proposta da coordenadas, em apoio às de formação
agricultura ecológica, tanto a Pastoral realizadas pela Pastoral da Juventude, a
quanto o Centro Ecológico fazem uma fim de criar um trabalho com a segunda
avaliação da necessidade de reforçar o geração de agricultores ecologistas. A idéia
trabalho com a juventude rural. Sabemos é fazer uma reflexão com esses jovens
que a agricultura ecológica é uma opção sobre os limites presentes em relação à
consistente para a permanência dos agricultura como um todo e à ecológica
jovens no meio rural, proporcionando-lhes em particular, visando a construção
qualidade de vida. Mas entendemos que de alternativas que possam viabilizar a
as demandas dos jovens são mais amplas. manutenção dos jovens, com qualidade de
Faz-se necessário também trabalhar a vida, no meio rural.
identidade, promover a auto-estima e
viabilizar as condições básicas atualmente A principal estratégia que temos adotado
requeridas pela juventude rural no que diz para proporcionar a esses jovens melhores
respeito à educação, saúde e lazer. condições para pensar em sua condição
atual no meio rural consiste em uma
série de atividades de formação,
compreendendo cursos, oficinas e
retiros. Essas atividades possibilitam a
reunião desses jovens, que se encontram
Arquivo Saberes da Terra/Paraná bastante dispersos no meio rural, criando
momentos ricos para a troca de experiências
e a elaboração de propostas coletivas para a
juventude, além do fortalecimento individual
de cada jovem participante.

Entre as atividades desenvolvidas, está o
encontro realizado em setembro de 2004
no Ipê, no qual estiveram presentes cerca
de 150 pessoas, entre jovens e agricultores
ecologistas. Esse evento significou a unificação
de todas as atividades desenvolvidas durante
o ano na serra gaúcha.

Com o propósito de debater a condição


da juventude e as alternativas existentes,
o encontro contou com painéis
abordando temas mais abrangentes como
políticas públicas para a juventude, o
contexto da agricultura familiar e desafios
atuais para a juventude. Contou também
com oficinas para capacitar os jovens para
o trabalho em suas comunidades, tendo
como principal encaminhamento ações
de reforço às suas organizações locais.

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Concluindo: pensamos que é necessário *Pe. João Bosco Schio: Pastoral da Terra
fortalecer a organização dos jovens Pe. Celso Cicconetto: Pastoral da Terra
no meio rural para que, com a sua Luiz Carlos Scapinelli: Pastoral da
participação, sejam elaboradas as Juventude e membro da Associação de
políticas necessárias para viabilizar a sua Agricultores Ecologista Pereira Lima, Ipê-
permanência no local de origem com RS.
qualidade de vida, ou seja, com melhores
condições de educação, saúde, acesso à Ricardo Barreto: membro da equipe
terra, renda e lazer. técnica do Centro Ecológico.
c.ecologico@terra.com.br
Sabemos que a agricultura ecológica
é uma opção consistente para a Referências:
permanência dos jovens no meio rural, SCHMITT, C.J. Tecendo as redes de
proporcionando-lhes qualidade de vida. uma nova agricultura: um estudo
Mas entendemos que as demandas dos socioambiental da Região Serrana do
jovens são mais amplas. Rio Grande do Sul. (tese de doutorado).
Porto Alegre: Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2001.

Arquivo Saberes da Terra/Pará

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Texto 23
JUVENTUDE E FORTALECIMENTO
DA AGRICULTURA FAMILIAR NO SEMI-ÁRIDO DA BAHIA
Juventude e fortalecimento da agricultura familiar no semi-árido da Bahia13 13
Texto cedido
Emanuel Mendonça Sobrinho* pela Revista
Agriculturas -
v. 2 - no 1 - abril
de 2005.
O Projeto Juventude e Participação Social
(PJPS) teve início em março de 2004, nas
microrregiões do Sisal e Vale do Jacuípe,
semi-árido baiano, com o objetivo de
incentivar e apoiar um processo de
organização e participação social da
juventude e visando a elaboração e
defesa de políticas públicas setoriais.

Embora algumas entidades locais


(sindicatos de trabalhadores rurais
(STRs), associações comunitárias, igrejas)
desenvolvessem atividades para os jovens
– palestras, seminários, encontros etc –,
não havia uma concepção de trabalho
voltada para a formação da identidade
política juvenil. Foi por essa razão que o
Movimento de Organização Comunitária
(MOC), em parceria com outras entidades
regionais e de apoio (Unicef, Disop-Brasil,
Agência de Desenvolvimento Solidário/ Experiência de agricultura familiar com
ADS-CUT, Pólos Sindicais do Sisal e jovens rurais do município de Quixabeira
Jacuípe, Centro de Apoio aos Interesses
14
Antônio
Comunitários e Cooperjovens), resolveu Área de abrangência Cardoso,
apostar numa dimensão inovadora. Araci, Candeal,
e desafios apresentados Capim Grosso,
A área de abrangência do PJPS envolve Cansanção,
22 municípios14 com predominância de Conceição do
Coité, Ichu, Irará,
economia agrícola, pouca oportunidade Monte Santo,
de geração de emprego local e os Nordestina,
principais índices de pobreza indicando Nova Fátima,
Pé de Serra,
um alto nível de desigualdade social Queimadas,
e concentração de renda e da terra. Quijingue,
Os principais desafios relacionados à Quixabeira,
Retirolândia,
juventude rural da região dizem respeito: Riachão do
Jacuípe, Santa
• à falta de experiência de organização Luz, São
Domingos,
social para se auto-representar Serrinha, Tucano
politicamente; e Valente.

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93

• à falta de conhecimento da realidade Organização e concepção


e de inserção nos processos sociais
em curso nas duas microrregiões – a
do projeto
Cerca de 550 jovens organizados
partir das entidades representativas
participam do projeto através de 22
da sociedade civil (STRs, associações
coletivos municipais de jovens que
comunitárias, cooperativas, movimento
estabelecem parcerias com as entidades
de mulheres, grupos etc.) – e nos
da sociedade civil local, sobretudo
espaços institucionalizados (conselhos
com os STRs. Há, ainda, um coletivo
gestores municipais e Conselho Regional
regional, composto de representações
de Desenvolvimento, Codes), espaços
juvenis municipais, que funciona como
estes de discussão e definição das
espaço para planejamento, avaliação
políticas setoriais;
e monitoramento das ações, estimula
• à falta de acesso a processos a troca de saberes e intercâmbio de
educativos – formais e não-formais experiências e encaminha processos
– que promovessem a construção políticos articulados.
de percepções críticas a respeito da
realidade do semi-árido e seus limites, A proposta político-pedagógica que
e potencialidades econômica, social, vem sendo implementada está voltada
política, cultural e ambiental; e para o empoderamento político dos
jovens para a convivência com o semi-
• ao desconhecimento – sobretudo por árido, visando sobretudo a geração de
parte dos próprios jovens – de alternativas trabalho e renda a partir do fortalecimento
e experiências geradoras de trabalho da agricultura familiar. Para tanto, foram
e renda, com e para a juventude, no realizadas diversas ações estratégicas, entre
contexto da agricultura familiar semi-árida. as quais o estabelecimento de conselhos

Foi esse cenário regional, entre outros


aspectos, que determinou a opção
institucional do MOC de desenvolver um
trabalho com jovens com idade média
entre 16 a 29 anos, residentes na zona
rural. Cerca de 30% deles já têm o ensino
médio completo, enquanto a maioria ainda
o está cursando. Esses jovens são filhos de
agricultores familiares, de baixa renda, que
possuem pequenas unidades produtivas
(em média 12 tarefas, ou seja, 5 hectares)
e, em sua maioria, sem acesso à assistência
técnica e crédito rural, bem como sem
oportunidades de qualificação técnica.

A proposta político-pedagógica que vem


sendo implementada está voltada para o
empoderamento político dos jovens para
a convivência com o semi-árido, visando
sobretudo a geração de trabalho e renda Cláudia Brito, coordenadora do Coletivo
a partir do fortalecimento da agricultura Municipal de Jovens de Monte Santo,
familiar. município da região sisaleira da Bahia.

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94

gestores e programas de apoio à juventude;


encontros mensais municipais, subregionais e
interestaduais para troca de experiências;
planejamento e avaliação das ações
juvenis; oficinas de capacitação temática
na área da auto-gestão e convivência com o
semi-árido; além de visitas a experiências de
trabalho com jovens.

Os desdobramentos
No transcurso da experiência, é possível
identificar uma maior percepção e
A experiência
atuação da juventude quanto aos limites
e às potencialidades da agricultura
do PJPS vem
familiar. Concretamente, estão em
curso algumas iniciativas incipientes
desafiando
de hortas comunitárias com princípios
agroecológicos, desenvolvidas pelos
a juventude
coletivos de jovens, por meio de parcerias
com entidades locais (STRs, igrejas e
rural, o MOC
associações comunitárias), assim como
a elaboração de projetos para captação
e entidades
de recursos para o desenvolvimento
de atividades como os criatórios de
parceiras a
cabras e de abelhas. Em outra dimensão,
os jovens vêm ocupando espaços
refletirem
político-institucionais – conselhos
municipais de desenvolvimento rural
sobre os
sustentável(CMDRs) e o Conselho
Regional de Desenvolvimento – de
caminhos e
discussão e negociação de políticas
voltadas para a criação e valorização de
alternativas
oportunidades geradoras de trabalho
e renda na agricultura familiar, em
para geração
particular para a juventude rural. de trabalho
A realização, durante o período eleitoral,
de debates públicos com candidatos
e renda para
a prefeito e a vereador para definir
compromissos nos planos de governo
jovens na
com o segmento juvenil do campo
e a participação social de jovens
agricultura
nas iniciativas locais e regionais dos
movimentos sociais são conquistas
familiar, no
relevantes da organização e atuação dos
coletivos de jovens.
contexto do
semi-árido.

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95

Processo de secagem da fibra do sisal em São Domingos, região sisaleira da Bahia e


Coletivo Regional de Jovens e a Coordenação MOC da experiência do PJPS.
A negociação e a implementação A experiência do PJPS vem desafiando
de projetos juvenis voltados para o a juventude rural, o MOC e entidades
fortalecimento da participação dos parceiras a refletirem sobre os caminhos
jovens na agricultura familiar semi- e alternativas para geração de trabalho
árida são outros aspectos a serem e renda para jovens na agricultura
ressaltados. Junto aos Ministérios do familiar, no contexto do semi-árido.
Desenvolvimento Agrário e do Trabalho Assim, é imprescindível ter como
e Emprego, tem-se um plano de trabalho princípio estratégico a qualificação de
das regiões Sisal e Vale do Jacuípe para jovens voltada para a formação e o
qualificação e inserção profissional fortalecimento de espaços de organização
de 330 jovens, por meio do Consórcio social, em uma dimensão de autonomia
Nacional da Juventude Rural. Em parceria e identidade política juvenil, na atuação e
com a Fundação Banco do Brasil e o no acesso às políticas públicas setoriais.
Ministério do Trabalho e Emprego – MTE,
os coletivos de jovens serão qualificados
para estruturar e gerenciar um fundo
rotativo de caprinos, em que serão
identificados e capacitados 220 jovens
rurais para atuarem na área de caprino-
ovinocultura.

Outra atuação estratégica dos coletivos


municipais de jovens aponta para
o trabalho junto às secretarias e
departamentos de jovens dos STRs e
Pólos Sindicais do Sisal e Jacuípe, com
vistas ao fortalecimento da participação
juvenil também no movimento sindical,
bem como na identificação e mobilização
para o acesso ao crédito rural nas
linhas do Pronaf Jovem, visando à *Emanuel Mendonça Sobrinho:
implementação de projetos produtivos técnico do Programa de Juventude do MOC.
comunitários. emanoel@moc.org.br

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96

Texto 24
15
COMUNICAÇÃO,
CULTURA E
SOCIEDADE -
Módulo 5.
FICHA 3.
CULTURA DE MASSA E CULTURA POPULAR15 PROGRAMA
INTEGRAÇAO -
Alfredo Bosi ENSINO MÉDIO
1/6.

O poder econômico expansivo dos meios de No entanto, a dialética é uma verdade


comunicação parece ter abolido, em vários mais séria do que supõe a nossa vã
momentos e lugares, as manifestações da filosofia. A exploração, o uso abusivo que
cultura popular, reduzindo-as à função de a cultura de massa faz das manifestações
folclore para turismo. Tal é a penetração populares, não foi ainda capaz de
de certos programas de rádio e TV junto interromper para todo o sempre o
às classes pobres, tal é a aparência de dinamismo lento, mas seguro e poderoso
modernização que cobre a vida do povo em da vida arcaico-popular, que se reproduz
todo o território brasileiro, que, à primeira quase organicamente em microescalas,
vista, parece não ter sobrado mais nenhum no interior da rede familiar e comunitária,
espaço próprio para os modos de ser, apoiada pela socialização do parentesco,
pensar e falar, em suma, viver, tradicional- do vicinato e dos grupos religiosos.
populares. O que seria uma fatalidade do
neocapitalismo introjetado em todos os O povo assimila, a seu modo, algumas
países de extração colonial. imagens da televisão, alguns cantos
e palavras do rádio, traduzindo
A cultura de massa entra na casa do caboclo os significantes no seu sistema de
e do trabalhador da periferia, ocupando- significados. Há um filtro, com rejeições
lhe as horas de lazer em que poderia maciças da matéria impertinente,
desenvolver alguma forma criativa de e adaptações sensíveis da matéria
auto-expressão: eis o seu primeiro tento. Em assimilável. De resto a propaganda
outro plano, a cultura de massa aproveita-se não consegue vender a quem não tem
dos aspectos diferenciados da vida popular dinheiro. Ela acaba fazendo o que menos
e os explora sob a categoria de reportagem quer: dando imagens, espalhando
popularesca e de turismo. O vampirismo palavras, desenvolvendo ritmos, que
é assim duplo e crescente: destrói-se por são incorporados ou reincorporados
dentro o tempo próprio da cultura popular pela generosa gratuidade do imaginário
e exibe-se, para consumo do telespectador, popular.
o que restou desse tempo, no artesanato,
nas festas, nos ritos. Poderíamos, aqui,
configurar com mais clareza uma relação
de aparelhos econômicos industriais e
comerciais que exploram, e a cultura
popular, que é explorada. Não se pode, de
resto, fugir à luta fundamental: é o capital
à procura de matéria-prima e de mão-de-
obra para manipular, elaborar e vender. A
macumba na televisão, a escola de samba
no Carnaval estipendiado para o turista são Arquivo Cetap/Grupo de Tradições Folclóricas Raízes Nordestinas
exemplos de conhecimento geral. (Fortaleza – CE) Foto do site do Festival de Folclore Olímpia/SP 2007.

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97

Arquivo Cia. de Dança e Cultura Popular Macambirais (Passa e Fica – RN)


Foto retirada do site oficial do Festival de Folclore Olímpia/SP. Atração 2007
Esse esquema de reação peculiar ao meio
receptor vai vinculando, até certo ponto,
os conteúdos e as formas dos próprios
meios de comunicação de massa, que
procuram ir ao encontro dos gostos do
povo, tornando-se então popularescos
ou pseudotradicionalistas (já que não lhe
é dado ser autenticamente tradicionais),
como o fazem alguns programas de
rádio e não poucas foto novelas meio
senti¬mentais, meio modernizantes.
O típico popular, com todas as suas
tendências para a caricatura, é um modo
pelo qual a indústria cultural projeta o
povo como o outro. O outro é o povo ao
mesmo tempo explorado e intocado.

São, portanto, muito delicadas as


relações entre cultura de massa e cultura
popular. Do ponto de vista do dinamismo
capitalista, a flecha parece sempre ir no
sentido de uma desagregação da segunda
pela primeira.

O torcedor do Corinthians poderá ter Esse fenômeno existe, quer no plano


adquirido, à custa de suadas prestações, moral, quer no plano estético, mas, como
um televisor último-tipo com controle a destribalização do índio, é fruto mais
remoto ou mudança digital, mas nem por de uma investida técnico-econômica
isso deixará de acender a sua vela a Nossa violenta do sistema capitalista do que de
Senhora Aparecida ou, mesmo, a uma uma eventual exposição do primitivo ou
das muitas entidades da macumba, para do rústico a certas formas de cultura de
conseguir a vitória do seu time. massa.

Ou que importa que nos arrasta-pés


suburbanos se dance o último iê-iê-iê
lançado pelo comércio musical yankee se o
comportamento dos jovens no baileco ou
no namoro correspondente a uma relação (BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São
quase ritual entre os sexos que reproduz Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 329-
uma secular educação moral sertaneja? 330)

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98

Texto 25
RETALHOS, BARROS, MIÇANGAS.
A ARTE DE VER O BELO ONDE NINGUÉM VÊ
Em Sergipe, artistas põem em suas obras imagens poéticas e imprimem traços autorais.
Seus ateliês ajudam a entender como se forma e se manifesta a gigantesca cultura de
nosso povo.

Na recriação da cultura popular, da qual É bela e deliciosamente complexa


o sertão é fonte inspiradora e biblioteca, nossa arte popular. Complexa, mas não
encontramos José Roberto Freitas, o complicada. Conversando com um artista,
Beto Pezão. O apelido nasceu de sua podemos voltar às suas origens e sentir
marca – esculturas modeladas no barro como nascem as obras de arte, desde
que representam figuras sertanejas os primeiros passos até a maturidade.
com enormes pés. Estão enraizadas Assim foi com Ismael Pereira e José Alves
na paisagem fantástica e alegórica. Siqueira, o Zeus. Ismael, autodidata
Com olhar humanista, ele não apóia o como todos, com o dinheiro da merenda
julgamento de suas obras por críticos comprava material de pintura. “Esse
de arte que vêem nelas o simbolismo menino vai longe”, diziam quando viam
do caboclo e sua obstinação de fincar suas interferências em retratos, ou nas
os pés no Nordeste árido. Na sua águias pintadas nas carrocerias dos
franqueza e numa tacada de mestre, vem caminhões.
a explicação: “Fiz os pés extravagantes
porque assim as esculturas paravam de
pé melhor; com pezinhos elas sempre
caíam”.

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99

“Uma vez, adolescente, fiz uma grande arte, Zeus começou aos 15 anos lixando
pintei toda a lateral de uma fábrica. Enquanto ex-votos para seu irmão; para Zeus, a
de longe admirava meu trabalho e no auge da escultura, principalmente na madeira de
satisfação me comparava ao grande muralista imburana, é só alegria. Ele reafirma sua
mexicano Siqueiros, vi o proprietário se cultura artística nas santas, cujos mantos
aproximar e exclamar: ‘Ah-ah, muito bonito, têm movimentos solenes e detalhes que
hein?!’ Ele queria de volta a parede toda evocam elaborados pontos de renda, ou
branca e a mãe teve que ressarcir a cal.” ainda nas figuras que expressam melhor a
região, como o cangaceiro, o Conselheiro
Hoje, Ismael é admirado pelas figuras de e o Padre Cícero.
cerâmica que retratam guerreiros, bois, cavalos,
galinhas, corujas, recobertas de um acabamento
individualizado, com retalhos de chita, espelhos,
miçangas e muito brilho. Resultado: efeitos de cores
fortes que fazem as figuras adquirir luz própria
e contraponto para o monocronismo do sertão.

SE

Não são poucas as oportunidades de


contato com uma arte autenticamente
nossa, mas Sergipe expõe sua diversidade
com artistas que exercem o eterno fascínio
de ver a beleza onde outros nada vêem e
que grafaram o nome do Estado no mapa
artístico brasileiro.

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100

Texto 26
GÊNERO E AGRICULTURA FAMILIAR:
COTIDIANO DE VIDA E TRABALHO NA PRODUÇÃO DE LEITE16 16
Texto extraído
do artigo
GÊNERO E
AGRICULTURA
FAMILIAR:
COTIDIANO
DE VIDA E
TRABALHO NA
PRODUÇÃO
DE LEITE-
Pesquisa DESER;
1. GÊNERO: QUE BICHO É ESSE? E, se são papéis sociais construídos - CEMTR/PR
historicamente e não determinados pela - Coordenação
da pesquisa:
Essa pergunta tem vindo muitas vezes natureza, podem ser modificados. DESER: Renata
à cabeça de muitos companheiros e Menasche e João
Gênero: é questão das mulheres? Carlos Sampaio
companheiras. Por que agora se fala Torrens CEMTR/
em relações de gênero e não mais em PR: Maria Salete
“questões das mulheres”? Gênero não é uma questão exclusiva Escher e Silvia
das mulheres, porque as relações de Regina Barguil:
Elaboração: João
Gênero é um conceito. É um conceito gênero perpassam o conjunto das Carlos Sampaio
que serve para explicar as relações relações sociais. Os mundos do trabalho, Torrens e Renata
da política, da cultura se dão também Menasche
entre homens e mulheres. Gênero é um Discussão: Maria
conceito relacional: vê um em relação conforme a inserção de homens e Salete Escher,
ao outro. Isso significa que os papéis mulheres, a partir de seus papéis Circe Rodrigues
masculinos e femininos. Isso significa que Padilha,
sociais masculino e feminino não existem Margarete
isolados, um é construído na relação com as relações de gênero perpassam todas as Preilipper e Inês
o outro. O conceito “gênero” considera, realidades e todas as questões. Vercauteren
(componentes
ainda, que na sociedade atual as relações da CEMTR)
entre homens e mulheres não são de Não se pode, por exemplo, entender o Fotos: Renata
igualdade: são relações de hierarquia e que é a agricultura familiar sem perceber Menasche, Inês
as relações de gênero em seu interior. Vercauteren e
de poder dos homens sobre as mulheres acervo Fetaep
(FARIA, 1995) E isso é muito concreto: há uma divisão Edição:
sexual do trabalho, disso todo mundo Michelle Thomé
sabe. Como, então, querer entender a Apoio: CERIS/
É a natureza que determina as CEBEMO.
desigualdades? produção sem enxergar, em primeiro
lugar, que é realizada por gente, e que
Por muitos anos se acreditou que eram as essa gente é composta por homens e
diferenças biológicas que explicavam as mulheres, de diferentes idades, e, ainda,
desigualdades entre homens e mulheres. que essas pessoas, de diferentes sexos
O conceito de gênero expressa, porém e idades, têm diferentes formas de
um outro entendimento: as diferenças perceber a vida, anseios diferentes?
são socialmente construídas. Isso significa
que homens e mulheres são “moldados”
pela sociedade, o ser homem e o ser
mulher correspondem a papéis sociais
estabelecidos: masculino e feminino.

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101

Arquivo MST Arquivo SECOM/MEC

Da mesma forma, não será possível Trabalhar na perspectiva de gênero significa


construir o Projeto Alternativo de olhar com novos olhos. Olhos que, ao
Desenvolvimento, ou superar os enfocar as coisas, passam a enxergar as
problemas da dinâmica sindical, ou pessoas, homens e mulheres, que fazem a
construir a organização de base sem história de uma sociedade. E, nessa nova
levar em conta que há agricultores e visão, passam a procurar como superar as
agricultoras, homens e mulheres, e que desigualdades, dentre elas a desigualdade
existem conflitos nessa relação. entre mulheres e homens.

Trabalhar na perspectiva da equidade de


gênero não se restringe, dessa forma,
à organização das mulheres, embora
as mulheres organizadas tenham aí um
papel fundamental.

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102

Texto 27
MARGARIDA ALVES

O nome Margarida Alves significa luta Pelo fato de ser católica, Margarida
em defesa dos direitos trabalhistas. teve uma grande influência do padre
Ela é considerada uma das principais Geraldo para ingressar no Sindicato Rural
representantes da liderança feminina de Alagoa Grande. Caracterizada pela
no Brasil, que viveu e morreu lutando constância e disposição para o trabalho,
pelos direitos das trabalhadoras e chegou a ser tesoureira e, em 1973, foi
trabalhadores da terra. eleita presidente do sindicato, função que
exerceu sucessivamente até 1982.
Margarida Alves nasceu em 5 de agosto
de 1943, em Alagoa Grande, na Paraíba. A sindicalista lutava pela defesa dos
Foi a filha mais nova de nove irmãos. O direitos dos trabalhadores do campo,
contato permanente com o latifúndio, pelo décimo terceiro salário, o registro
que começou desde muito cedo, devido em carteira profissional, a jornada diária
à necessidade de manutenção da família, de oito horas e as férias obrigatórias.
estimulou seu desejo de lutar pelos Foi uma das fundadoras do Centro de
trabalhadores rurais. Educação e Cultura do Trabalhador Rural,
cuja finalidade é, até hoje, contribuir no
processo de construção de um modelo
de desenvolvimento rural e urbano
sustentável, a partir do fortalecimento da
agricultura familiar.

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103

Durante seus 12 anos dentro do A sua luta era em prol das trabalhadoras
sindicato, foram movidas mais de 600 e trabalhadores, motivo pelo qual sofreu
ações trabalhistas contra os usineiros várias ameaças e atentados contra sua
e senhores de engenho da região da integridade física. Fruto de sua liderança,
Paraíba. Em seus anos de luta, nunca foram movidas aproximadamente
se registrou na justiça uma só perda 73 reclamações trabalhistas contra
de questões trabalhistas em favor do engenhos e contra a Usina Tanques,
trabalhador rural. o que, no período ditatorial, produziu
uma forte repercussão e atraiu o ódio
de latifundiários locais. Margarida não
se deixou abater pelas ameaças, pelo
contrário, tornava-as públicas e fazia
questão de respondê-las. Em 12 de agosto
de 1983, ela foi covardemente assassinada
com um tiro no rosto, bem na frente de
seu filho, com apenas 10 anos de idade.

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104

Texto 28
A CONSTRUÇÃO DA ECONOMIA FEMINISTA
NA REDE XIQUE-XIQUE DE COMERCIALIZAÇÃO SOLIDÁRIA
A construção da economia feminista na Rede Xique-Xique de Comercialização Solidária17
Isolda Dantas* 17
Revista Agri-
culturas. V.2 –
n° 3 – outubro
de 2005.
A história da Rede Xique-Xique de Pensando nisso, foi criada a Associação
Comercialização Solidária18 confunde- de Parceiros e Parceiras da Terra (APT).
18
A Rede Xique-
Xique de Co-
se com a história da organização Nesse espaço, reuniam-se produtoras e mercialização
das mulheres na região oeste do Rio consumidores(as), e todo o processo de Solidária tem
Grande do Norte. Sua fundação teve venda e entrega de produtos era feito de sede na cidade
de Mossoró
a participação de vários grupos com forma direta. Após três anos, outros grupos (RN), situada
experiência de produção coletiva e que de áreas de assentamentos rurais e urbanos, na região oeste
buscavam um espaço de comercialização na sua maioria mulheres, que produziam mel do estado do
Rio Grande do
que atendesse às necessidades de seus de abelha, castanha, artesanatos de palha Norte. É fruto
projetos produtivos. e sementes, derivados da caprinocultura de um amplo
e hortigrangeiros em vários municípios da processo de
construção
Em 1999, o Grupo de Mulheres região, também passaram a demandar meios coletiva dos
Decididas a Vencer, do Assentamento para a comercialização de sua produção. grupos produ-
Mulungunzinho, de Mossoró (RN), após tivos, com a
contribuição de
avaliar várias idéias para gerar renda por Com isso, grupos produtivos, entidades um conjunto de
meio de um projeto produtivo, dentre de assessoria e movimentos tinham uma organizações da
eles, fábricas de doces e criação de preocupação que era norteada pela certeza sociedade civil
que, atuando
galinhas, optou pelo cultivo de hortaliças de que precisavam estender a comercialização em diferentes
orgânicas. A agricultura fazia parte a todos os envolvidos, conservando os áreas, lutam
das raízes e do dia-a-dia de cada uma mesmos compromissos afirmados para pela autonomia
e melhoria
delas, familiarizadas com a terra e seus a produção e organização, que estiveram da qualidade
humores. Praticá-la agora com base nos presentes no processo de construção da Rede de vida dos
princípios da agroecologia era converter e que integram, hoje, a carta de princípios trabalhadores
e trabalhadoras
o aprendizado que tinham acumulado em do Espaço Xique-Xique: a produção, a do campo e da
uma obra concreta. Convencidas da idéia comercialização e o consumo devem se cidade. A Rede
de cultivar hortaliças agroecológicas, distanciar de todas as formas de exploração comercializa e
produz dentro
era necessário averiguar formas de do trabalho, incluindo o trabalho infantil, dos princípios
comercialização coerentes com as da ausência de salário digno, desigualdade da agroecologia
produção, que fossem justas, solidárias, salarial entre homens e mulheres, presença e da economia
solidária. Con-
o que significa também escapar à da figura do atravessador entre a produção e tatos: espaco-
exploração exercida pelos atravessadores. comercialização, dentre outras. xiquexique@
Buscamos, então, dar um passo além, servpro.com.br.

somando esforços na constituição da tríade


organização, produção e comercialização e
ampliando assim a idéia da APT, iniciada pelo
Grupo de Mulheres Decididas a Vencer. Em
2003, criou-se o Espaço de Comercialização
Solidária Xique-Xique, em Mossoró (RN).

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Foto: Arquivo Cf8 e Rede Xique-xique

A construção da Rede Afirmando


O Espaço de Comercialização Solidária a consciência feminista
tornouse rede quando reuniu 50 grupos No caso particular dos projetos
participantes, de oito municípios. Atualmente, desenvolvidos dentro de uma consciência
a Rede tem dois núcleos funcionando, em feminista, sabíamos que a busca desse
Mossoró e Baraúna. Além de potencializar novo horizonte transcendia a afirmação de
e participar de feiras, promover seminários preceitos éticos e solidários ao longo do
de formação, articular-se com outras redes, processo de formação, pois necessitávamos,
segue avançando no processo de certificação antes de tudo, que as mulheres estivessem
participativa e na construção de novos presentes de forma real e efetiva em todos
núcleos e feiras agroecológicas semanais. os espaços, sendo sujeitos da ação nessa
A idéia é que o objetivo final não expresse construção.
apenas uma troca mercadológica de
produtos, mas se situe na continuidade do Essa compreensão fundamenta a atuação
processo de conscientização feito de forma da Rede, que em sua carta de princípios
participativa entre produtoras e produtores, traz expressa a preocupação em garantir
consumidoras e consumidores, guiados pela a valorização do trabalho das mulheres e
premissa da autogestão. jovens, reforçando sua participação, através
de uma política de ação afirmativa em
Promover a articulação dessas três etapas todas as etapas do processo (buscando
significa acreditar na construção de um instrumentos que viabilizem a socialização
instrumento concreto que garanta que os do trabalho doméstico), respeitando suas
princípios e valores presentes na organização diferenças sem gerar desigualdades de
permaneçam também nos momentos gênero e geração.
da produção e comercialização. Quem se
organiza também quer produzir, quem
produz quer se organizar e comercializar.
E produzir com organização exige uma
comercialização justa e solidária.

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Foto: Arquivo Cf8 e Rede Xique-xique

Como conseqüência desse enfoque agroecológica, uma pauta diversificada


de formação, a Rede Xique-Xique tem de produtos transformados e in natura:
atualmente em suas instâncias uma doces, mel de abelha, rapadura de leite
presença feminina significativa. No de cabra, produtos de higiene pessoal à
Conselho Diretor, composto por sete base de mel, artesanato de palha, sisal
membros, seis são mulheres. A associação, e sementes, hortaliças e mariscos. Na
gestora jurídica da Rede, diretoria e busca por construir alternativas comuns
coordenação também contam com 90% de para facilitar a comercialização dentro
mulheres. Além da ocupação dos cargos de da Rede, alguns grupos de mulheres
direção, elas participam na Rede através optaram por confeccionar uma rotulagem
dos grupos de mulheres organizados nos única para produtos semelhantes. Isso
assentamentos e/ou nas comunidades, garante uma identidade aos produtos
somando 35 grupos produtivos, num total das mulheres integrantes da Rede. Além
de cinqüenta grupos. disso, são realizadas compras de matéria-
prima entre os grupos: compra-se mel
A produção das mulheres é a principal das apicultoras para produtos à base
responsável pela grande diversidade de mel; vende-se cenoura para o outro
de produtos comercializados no núcleo grupo produzir bolos. Nessa perspectiva,
de Mossoró e nas feiras livres. Hoje, garante-se a circulação dos produtos das
são produzidos por elas, de forma mulheres fora e dentro da Rede.

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Como já falamos anteriormente, a Rede Mulungunzinho. Quem visita nosso projeto


é também um espaço de organização e vê uma coisa engraçada. Lá tem berço, tem
articulação. Os grupos de mulheres, além rede e muito menino. Assim como as tarefas
de pertencerem à Rede, participam do da produção, o cuidado com as crianças é
movimento feminista, por meio da Marcha também dividido entre nós, observa Liana,
Mundial das Mulheres e da Coordenação presidente da Associação do Assentamento
Oeste de Mulheres, retroalimentando e produtora da Rede Xique-Xique.
o conjunto do movimento e a Rede
com questões referentes à luta contra Além dos ganhos relativos à
transgênicos, luta contra o acordo da Área autodeterminação das mulheres no mundo
de Livre Comércio das Américas (Alca), pelo público e privado, podemos constatar o
acesso a crédito, acesso a água, dentre outras. despertar para o conhecimento, construindo
novas tecnologias, tanto no processo de
Limites e desafios produção como na gestão de seus projetos.
para as mulheres
A ocupação desses espaços, a produção Mesmo destacando os avanços, é
e a comercialização feitas pelas mulheres importante refletir sobre algumas questões:
representam avanços. Basta olharmos os Como provocar e efetivar nesse processo
diversos depoimentos das envolvidas na de economia solidária questões referentes
rede: Aos poucos, conscientizávamos nossos à socialização do trabalho em todos os
maridos das vantagens que a associação das espaços? A participação em experiências
mulheres traria para toda a família. Como solidárias não assegura a justa divisão
associadas, somaríamos os nossos benefícios de tarefas domésticas no cotidiano das
e direitos aos deles, mas só conseguiríamos mulheres, pois o custo da reprodução da
através da organização, conta Neneide Viana, força de trabalho no capitalismo tem sido
presidente da Associação Xique-Xique. Ela pago apenas pelas mulheres e m suas
procura ainda evidenciar que os resultados famílias. (Nobre, 2003, p.210).
alcançados estão inter-relacionados, seja
na divisão das tarefas domésticas, seja no Nesse sentido, a economia feminista, que
seu reconhecimento na esfera pública: inaugura uma nova discussão na economia,
Recebemos pesquisadores, assistentes sociais coloca a reprodução humana na centralidade
e equipes de avaliação do governo. Todos do debate econômico, envolvendo a divisão
no assentamento encaminham até a gente, sexual do trabalho e a necessidade de
dizendo: – Vão até às mulheres, elas é que são construir valores sociais para “a produção do
responsáveis pela organização aqui. viver”. Essa forma de abordagem feminista
trouxe para a Rede Xique-Xique a necessidade
Além dos ganhos relativos à de aprofundar tais questões e praticálas no
autodeterminação das mulheres no mundo interior de cada grupo integrante da Rede: “O
público e privado, podemos constatar aporte da economia feminista é tornar visível
o despertar para o conhecimento, a contribuição das mulheres à economia. São
construindo novas tecnologias, tanto no pesquisas que consideram o trabalho de forma
processo de produção como na gestão de mais ampla, incluindo o mercado informal, o
seus projetos: Em nossa plantação, os sapos trabalho doméstico, a divisão sexual do
passeiam livremente, desde que descobrimos trabalho na família, e integram a reprodução
que eles eram nossa melhor arma para como fundamental a nossa existência,
expulsar os gafanhotos, explica Ana Lúcia, incorporando saúde, educação e outros
produtora de hortaliças agroecológicas aspectos relacionados com temas legítimos da
do Projeto de Assentamento de economia” (FARIA e NOBRE, 2003, p.13).

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108

Além dos ganhos relativos à


autodeterminação das mulheres no mundo
público e privado, podemos constatar o
despertar para o conhecimento, construindo
novas tecnologias, tanto no processo de
produção como na gestão de seus projetos.

É necessário seguir provocando essa reflexão Reconhecer a existência desses limites e


no interior dos grupos de mulheres em tratá-los com a devida relevância é parte
cada comunidade e assentamento. São em de nossa luta pelo fortalecimento da
reuniões quinzenais dos grupos de mulheres organização e da economia das mulheres,
que as questões do cotidiano são formuladas no intuito de superá-los, resistindo à
e, a partir de cada grupo, são repassadas cômoda rendição ao discurso mascarado
para a Rede. Sabemos que as alternativas de que existe transversalidade e
às questões estruturais, como a da divisão participação das mulheres quando se fala
sexual do trabalho, só serão criadas com em economia solidária.
uma real mudança na sociedade, provocada
pelas próprias mulheres. Apesar da constante busca pela
autodeterminação, o número expressivo
Estamos falando de transformação e, de grupos produtivos de mulheres
sem dúvida, ela deve ser cotidiana. atualmente existente na Rede Xique-
Outro desafio está relacionado ao fato Xique enfrenta os mais corriqueiros
de lidarmos também com experiências limites, como, por exemplo, a não
mistas, nas quais a determinação da permissão pelo marido para participar
presença das mulheres precisa ser de atividades externas à região. Uma
constantemente reafirmada. De fato, outra manifestação dessas restrições
o que observamos quando se trata de é a desvalorização do trabalho das
trabalho coletivo misto é que as mulheres mulheres na família. Mesmo quando a
perdem seu poder de participação à renda oriunda do trabalho da mulher
medida que os resultados positivos representa quase 100% do orçamento
aparecem. familiar, o marido ainda o trata como
“ajuda”. Há ainda as barreiras da distância
física e política, quando as mulheres
produzem, mas não conseguem chegar
ao núcleo da Rede para comercializar.

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109

Foto: Arquivo Cf8 e Rede Xique-xique

Reconhecer a existência desses limites e A criação da Rede Xique-Xique tem *Isolda


tratálos com a devida relevância é parte mostrado que é possível garantir, mesmo Dantas:
de nossa luta pelo fortalecimento da diante dos limites apresentados, que militante
organização e da economia das mulheres, as mulheres sejam protagonistas de da Marcha
no intuito de superá-los, resistindo à um processo que envolve e entrelaça Mundial
cômoda rendição ao discurso mascarado de diversos temas, como agroecologia, das
que existe transversalidade e participação feminismo e economia solidária. A Mulheres e
das mulheres quando se fala em economia Rede Xique-Xique é a prova de que da Rede de
solidária. podemos construir espaços de produção Economia e
e de comercialização da agricultura Feminismo;
É importante ter claro que, mesmo as familiar fundada na articulação desses assessora
experiências de economia solidária, ao pressupostos. da Rede
serem desenvolvidas em uma economia Xique-Xique
hegemônica capitalista, são passíveis de Referências: de Comer-
inúmeras contradições. Cientes disso, FARIA, Nalu & NOBRE, Miriam (Orgs). A cialização
podemos dispor de novas possibilidades produção do viver. SOF, 2003. Solidária.
de constituir formas alternativas Economia Feminista. SOF, 2002. isolda@cf8.
de produção e comercialização, org.br
questionando o modelo concentrador e NOBRE, M. Mulheres na economia
excludente, desnaturalizando-o de sua solidária. In: CATTANI, A. David (Org.). A
propaganda de “ideal e eficiente”. outra economia. Ed. Veraz, 2003.

CARRASCO, C. Introducción: hacia una


economía feminista. In: CARRASCO (Ed.).
Mujeres y economía.

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110

Texto 29
AGRICULTORAS DESCOBREM NOVA FORMA DE GERAR RENDA
E GARANTIR UMA ALIMENTAÇÃO SEGURA
Agricultoras descobrem nova forma de gerar renda e garantir uma alimentação segura19

José Aldo dos Santos e Rebeca Barreto*

No semi-árido pernambucano, a Para situar o contexto dessas 19


Texto cedido
pela Revista
agricultura familiar agroecológica e experiências, apresentaremos um Agriculturas.
a em transição para a agroecologia pouco da vida de mulheres que fazem V.2 – n° 3 – ou-
têm buscado apropriar-se das várias do semi-árido um lugar promissor. A tubro de 2005.
potencialidades dos sistemas agrícolas agricultora Lourdes Negromontes vive há
e pecuários sustentáveis, seja através cerca de 50 anos na comunidade Santa
do beneficiamento de uma produção Cruz, no município de Bom Jardim. Ela
diversificada, seja por meio da trabalha com a terra desde os dez anos
comercialização a partir de canais de idade. É, na região, uma das poucas
diferenciados, com destaque para as mulheres que assumem a chefia do
“feiras agroecológicas”. sistema de produção, do beneficiamento
e da comercialização dos produtos
Entre as famílias agricultoras, chama agroflorestais.
atenção o fato de as mulheres, em
municípios como Bom Jardim e Dona Lourdes pratica a agricultura
Santa Cruz da Baixa Verde, estarem agroflorestal há oito anos e afirma que
desenvolvendo experiências que já isso mudou a sua vida para melhor.
apresentam resultados concretos nas Mas nem sempre foi assim: Meu pai foi
dimensões ambiental (solo, vegetação, quem me ensinou a plantar em roçado
fauna silvestre etc.), sociocultural, assim queimado. Aprendi que onde existisse pé
como na dimensão econômica, sobre a de fruta não dava para plantar, por isso a
qual trataremos aqui de enfocar alguns gente cortava e queimava o solo. Durante
aspectos. muitos anos, sua plantação se resumia ao
cultivo de feijão, milho e mandioca, e não
era possível comercializar seus produtos.
O resultado das plantações atendia
unicamente as necessidades de consumo
da família. A gente só plantava para
comer, não tinha esse negócio de vender,
porque a gente não lucrava nada, lembra.
Para ajudar na renda familiar, Dona
Lourdes também costurava, confeitava
bolos e criava animais para vender.

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111

Arquivo Centro Sabiá

Hoje, Dona Lourdes obtém, com o suor


de seu trabalho, o retorno que tanto
merece, complementando sua renda
com seus doces e bolos. Ela participa
das feiras e lá recebe pelo que produz e
pelo que tira da sua terra. A agricultora,
que adora aprender e participar, tem na
agricultura sua principal fonte de renda e
quer melhorar cada vez mais naquilo que
ama fazer. Numa pesquisa realizada pelo
Centro Sabiá, foi verificado que, em 1999,
Dona Lourdes tinha uma renda mensal
líquida de R$ 190,00. Após cinco anos,
essa renda subiu para R$ 829,00. A gente
A decisão de “inovar” partiu dela mesma, mudou (...) Eu tenho mais amor pelas
que não hesitou em procurar informações coisas. Quando vejo um pé de planta que
e participar de reuniões para saber ta meio fraquinho, dá vontade de chegar
melhor a respeito da agrofloresta. Fui lá e ajeitar para velo crescer bonito! A
a primeira vez e gostei. Daí por diante, agricultora Ivonete Lídia Vieira reside numa
comecei a ir sempre às reuniões do área pequena, localizada no Sítio Baixa das
Sindicato e vi que a agrofloresta dá certo. Flores, município de Santa Cruz da Baixa
Verde. Até 1997, cultivava apenas café para
Com o apoio dos filhos e assessoria do o consumo familiar. A única fonte de renda
Centro Sabiá, Dona Lourdes iniciou com de Ivonete era trabalhar no alugado em
os sistemas agroflorestais numa área de propriedades vizinhas, aplicando venenos
200 m². Logo notou a melhora da sua nas plantações de cana-de-açúcar. Essa
área, diversificou o número de plantas e atividade comprometeu por diversas vezes
introduziu a criação de animais. Com esse a saúde dela.
novo jeito de plantar, ela pôde orientar
parte do produto do seu trabalho para Em meados desse mesmo ano, com o
a venda na feira agroecológica. O que apoio da Associação de Desenvolvimento
a gente tem agora dá para comer e pra Rural Sustentável (Adessu) Baixa Verde,
vender, só gastamos com açúcar, farinha Ivonete começou a incorporar as práticas
e goma e, quando a feirinha é boa, agroecológicas a sua propriedade. No
chegamos a lucrar mais de R$ 100,00, início, tinha certa resistência à agricultura
conta ela. agroflorestal.
Arquivo Centro Sabiá

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112

Arquivo Centro Sabiá

Observando os resultados positivos Com um espírito inovador, ela está


dessa intervenção, que transforma sempre criando receitas diferentes:
terras improdutivas em cultiváveis, Antes eu usava a palma apenas para
ela e sua família passaram então alimentar os animais. Hoje, sei que
a intensificar o trabalho com ela serve para alimentação humana
agrofloresta. Hoje, passados oito porque é rica em vitamina A, e também
anos, existem em seu terreno mais auxilia no tratamento de algumas
de 50 espécies, entre nativas e doenças. Da palma eu aproveito tudo:
frutíferas. Para melhor aproveitar vendo o fruto, faço sucos, geléias e
sua produção, que é diversificada também cocadas. Com a folha eu faço
e constante, porém em pequena desde saladas até farofas.
quantidade, Ivonete resolveu
beneficiar tudo o que tirava da terra. Devido ao sucesso de suas receitas,
Dessa forma, consegue agregar mais sempre participa em programas de
valor aos produtos e obtém um lucro rádio, nos quais dá dicas de como
satisfatório, diversificando não apenas ter uma alimentação saudável
o número de produtos transformados, aproveitando os recursos existentes na
mas também a forma de oferecê-los região. Freqüentemente ela também é
aos consumidores: Com a produção convidada por outras instituições para
de um único pé de cajá, eu apurei assessorar cursos de beneficiamento
aproximadamente dois salários de frutas. A comercialização dos
mínimos, fazendo polpas, doces, produtos por ela beneficiados é
geléias, licores e sucos. E se tivesse um realizada na Feira Agroecológica de
freezer teria ganhado muito mais. Serra Talhada, localizada no Sertão
Central de Pernambuco. Nesse
espaço, são vendidos produtos da
agricultura familiar, cultivados sem
agrotóxicos nem adubos químicos.
Tudo é produzido de forma saudável e
sustentável.

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Considerada uma referência no campo Tudo é produzido de forma saudável


da produção e beneficiamento de e sustentável. Considerada uma
produtos agroecológicos, a área de referência no campo da produção
Ivonete é visitada constantemente e beneficiamento de produtos
por agricultores, pesquisadores, agroecológicos, a área de Ivonete
técnicos de vários municípios do é visitada constantemente por
Nordeste, de outras regiões do país e agricultores, pesquisadores, técnicos
de outros países. Ela ressalta que esse de vários municípios do Nordeste,
novo jeito de trabalhar a agricultura de outras regiões do país e de outros
proporcionou uma melhoria na renda e países.
na qualidade de vida de sua família.
Outro aspecto a ser observado
Hoje, temos hábitos alimentares na estratégia econômica das duas
saudáveis, vendemos e consumimos agricultoras refere-se ao autoconsumo.
produtos limpos e de boa qualidade, Tanto num caso como no outro,
mas tudo isso só foi conquistado evidencia-se a diminuição de gastos
quando aprendemos a conviver com a com a compra de alimentos e uma
nossa terra. maior qualidade e diversidade da
dieta da família. Essas experiências
Diferentemente de Dona Lourdes inovadoras de produção agroecológica
Negromontes, Ivonete começou só há vêm possibilitando às famílias
pouco tempo a fazer comercialização agricultoras a melhoria da qualidade
direta. Numa pesquisa realizada em de vida e uma gestão mais autônoma e
2003 pelo Centro Sabiá, ela apresentou mais próspera de suas economias. Isso
renda média mensal de R$ 160,00. significa a reconstrução do prazer de
Pode-se perceber aí uma grande ser gente mais alegre e satisfeita, com
diferença entre as rendas auferidas auto-estima elevada e plantando mais
por ela e Dona Lourdes, que, além vida para um mundo melhor.
do maior tempo de experiência,
comercializa no mercado da capital
do estado, onde é maior a demanda
dos consumidores pelos produtos
agroecológicos.

Arquivo Centro Sabiá


* José Aldo dos Santos:
coordenador-geral do Centro Sabiá
aldo@centrosabia.org.br
Rebeca Barreto:
estagiária de jornalismo do Centro Sabiá
comunicacao@centrosabia.org.br

Referências:
Centro Sabiá e PD/A-MMA. Sistematização
da Experiência com Comercialização
Agroecológica – Feiras Agroecológicas, 2004.

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114

Texto 30
A ORGANIZAÇÃO DE MULHERES E CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO:
A EXPERIÊNCIA DAS CISTERNEIRAS NO RIO GRANDE DO NORTE
Organização de mulheres e convivência com o semi-árido:
a experiência das cisterneiras no Rio Grande do Norte20
Conceição Dantas

Organizações e movimentos Além do emprego de uma concepção 20


Texto cedido
pela Revista
técnica inovadora que permite o
sociais vinculados à Articulação atendimento das reais demandas das
Agriculturas.
V.4 – n° 2 – ju-
Semi-árido Brasileiro famílias no meio rural, as experiências lho de 2007.
(ASA-Brasil) vêm construindo na prática impulsionadas pela sociedade civil
uma proposta de convivência com o diferenciam-se por serem promovidas por
semi-árido que tem como um de seus processos de mobilização comunitária
fundamentos centrais as variadas formas articulados por organizações locais.
de aproveitamento das águas das chuvas. Apenas no âmbito do Programa de
As experiências dessas organizações Formação e Mobilização Social para
apontam para um caminho contrário ao a Convivência com o Semi-Árido: 1
que foi trilhado historicamente pelos Milhão de Cisternas Rurais (P1MC),
programas oficiais. Ao passo que estes ação implementada desde 2003 pela
últimos orientam-se essencialmente na ASA-Brasil, cerca de 200 mil cisternas
construção de grandes obras de infra- de uso doméstico e comunitário foram
estrutura, deixando à margem de seus construídas até junho de 2007, sendo 25
benefícios centenas de milhares de mil delas no Rio Grande do Norte.
famílias que habitam o meio rural da
região, as iniciativas da sociedade civil
voltam se para a descentralização da Arquivo Cf8
oferta hídrica, investindo em pequenas
obras e equipamentos destinados a
captar, transportar e armazenar a água
das chuvas.

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115

Nesse quadro mais amplo de avanços resgate de grupos de base, da ampliação 21


Movimento
feminista inter-
na convivência com o semi-árido, a das manifestações massivas e da coalizão nacional que
experiência das cisterneiras do Rio Grande dos muitos movimentos de mulheres em foca sua atuação
do Norte destaca-se por ressaltar uma torno de bandeiras comuns. na luta contra
a pobreza e a
dimensão central em qualquer estratégia violência. Hoje
que vise à construção da sustentabilidade Em outubro de 2003, no Encontro de está presente
socioambiental: o reconhecimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais, realizado em 164 países.
No Brasil existe
mulheres agricultoras como agentes na cidade de Mossoró, o acesso à água de uma coordena-
protagonistas dos processos de boa qualidade para o consumo humano foi ção nacional e
desenvolvimento local. Nesse sentido, apontado como tema central na pauta das 17 coordenações
estaduais.
o movimento feminista do oeste do Rio trabalhadoras. Conforme as reflexões então
Grande do Norte tem demonstrado que realizadas, a garantia desse direito básico 22
Ação política
a luta das mulheres representa também exigia ações de caráter emergencial, já que que integra a
MMM e é prota-
a luta de todas as pessoas que querem essa privação representava um dos principais gonizada pelas
viver em um mundo sustentável em obstáculos para a convivência com o semi- mulheres rurais
harmonia com as condições geográficas árido. A partir desse encontro, foi construída da Confederação
Nacional dos
e climáticas de seus respectivos locais. uma aliança entre movimentos e lideranças Trabalhadores
Situada no contexto desse movimento, populares orientada para reivindicar da Agricultura
a experiência das cisterneiras deixa políticas que viabilizassem o acesso à água (Contag).
claro que essa bandeira integra duas de qualidade para os assentamentos que
dimensões interdependentes: de um lado, vivenciavam as maiores dificuldades nesse
a implementação de políticas promotoras campo.
de soluções técnicas adaptadas às
características naturais do ecossistema; A Coordenação de Mulheres Trabalhadoras
de outro, a luta contra a naturalização de da Região Oeste23 apresentou as
injustiças socialmente construídas, tais reivindicações do encontro ao Instituto
como o latifúndio, a exploração do trabalho, Nacional de Colonização e Reforma
a invisibilidade social das mulheres e a Agrária (Incra). Após essa audiência, o
divisão sexual do trabalho. projeto de construção de cisternas nos
assentamentos, viabilizado no âmbito do
Tudo começa com a P1MC, transformou-se em ação concreta,
com o apoio institucional e financeiro da
autoorganização das mulheres Unidade de Ações Afirmativas do Incra, da
trabalhadoras rurais Associação de Apoio às Comunidades do
À época do lançamento da Marcha Mundial Campo (AACC), do Centro Feminista 8 de
das Mulheres (MMM)21 e da Marcha das Março (CF8) e da Cooperativa de Assessoria
Margaridas22 no ano de 2000, houve intensa e Serviços Múltiplos ao Desencolvimento
participação das trabalhadoras rurais do Rural (Coopervida).
Rio Grande do Norte, o que foi significativo
para a consolidação do movimento de Na microrregião de Apodi, um total de
feminista na região oeste do estado. Segundo 28 localidades nos municípios de Campo 23
A coordenação
o diagnóstico de relações de gênero realizado Grande, Baraúna, Caraúbas, Felipe é uma instância
de organização
pelo Centro Feminista no Apodi, em 2003, Guerra, Governador Dix-Sept Rosado, das trabalhado-
63% das mulheres entrevistadas afirmaram Mossoró e Upanema foram contempladas ras rurais do oes-
participar de algum grupo no assentamento com ações resultantes dessa conquista te do Rio Grande
do Norte, fun-
ou comunidade. Com isso, a Coordenação alcançada pelo protagonismo das dada em 1999 e
Oeste de Trabalhadoras Rurais também teve mulheres trabalhadoras. que engloba 15
suas ações fortalecidas, por meio do municípios da
região.

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Assegurando a conquista Pioneirismo das mulheres


Passado o entusiasmo da primeira Três mulheres capacitadas em Afogados do
conquista, sucederam-se as preocupações Ingazeiro (PE) serviram de exemplo para as
com a organização e a operacionalização do assentadas potiguares inovarem, formando
processo. As mulheres tinham a convicção a primeira turma de pedreiras do Brasil. Elas
de que aquela seria, de fato, uma ação assumiram a responsabilidade de capacitar
política protagonizada por elas. Sabiam que outras mulheres e de atuar diretamente
teriam que aproveitar essa oportunidade como cisterneiras. As mulheres que
para expandir o espaço político conquistado demonstravam maior potencial de atuação
e mostrar na prática que podem fazer como multiplicadoras foram priorizadas
qualquer atividade que desejam. Além de durante a seleção para participar do
serem capazes de fazer o gerenciamento da projeto. Além disso, a candidata tinha que
água para o consumo doméstico, deveriam residir no assentamento, ser posseira,
também assumir outras funções que sócia da associação, participar do grupo
fugissem aos padrões estabelecidos pela de mulheres e não ser beneficiária
sociedade em que viviam. Com essa noção de cisternas provenientes de outros
em mente, fortaleceram a idéia de que projetos. As mulheres que possuíam o
todo o processo teria que ser comandado maior número de filhos e filhas, que
por elas. Para tanto, seria necessário eram responsáveis pela renda familiar ou
elaborar estratégias que assegurassem as tivessem em suas famílias idosos e idosas
conquistas por meio do enfrentamento da e/ou pessoas portadoras de necessidades
lógica da hierarquia de poder entre homens especiais também foram priorizadas.
e mulheres.
O projeto tinha o claro objetivo de
conjugar a apropriação de novas
tecnologias adaptadas ao semi-árido e a
possibilidade de geração de renda para
as mulheres, com isso questionando a
ordem hierárquica estabelecida entre
homens e mulheres nos assentamentos.

A mão na massa
e a certeza na luta
Arquivo Cf8 Em fevereiro de 2004, 17 mulheres
participaram do curso de três semanas
e se tornaram construtoras de cisternas.
Mais do que isso conseguiram estabelecer
um novo modelo de construção do P1MC.
Todas estavam convencidas de que eram
aptas à construção, seja em dupla ou
em pequenos grupos. As agricultoras
voltaram para as suas comunidades
sabendo erguer e modular as placas da
cisterna. Com isso, tiveram reforçada
a certeza de que poderiam assumir
qualquer trabalho que desejassem e de
que não existe ofício (pre)destinado para
homens ou mulheres.

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A capacitação foi literalmente realizada técnica. As entidades parceiras chegaram


com a mão na massa, sendo a conclusão a enunciar a proposta de que as cisternas
do curso comemorada com a entrega não fossem construídas apenas pelas
da primeira cisterna. Os(as) donos(as) mulheres, sugerindo a possibilidade de
da casa assistida também contribuem, admissão de homens na turma.
sendo responsáveis por cavar o buraco
onde a cisterna é construída e preparar Diante desse ambiente desfavorável, as
a terra para o trabalho das pedreiras. mulheres enfrentaram muitas dificuldades
Elas assumem o trabalho a partir do para manter sua organização e superar o
nivelamento do terreno e da construção desafio. O descrédito crescente e inflexível
do contrapiso que sustenta as placas. a respeito de sua força de trabalho
evidenciava o preconceito forjado pela
Trabalho de homem, estrutura da divisão sexual do trabalho. As
pedreiras tiveram que engolir piadas do
trabalho de mulher: tipo: “Coisa de mulher não pode prestar”;
o mito da força física “Isso é coisa de quem quer inventar de
A evolução do projeto demonstrou que fazer o que não é pra fazer”; “Se com
a produção das placas não era o maior homens é difícil, imagine com mulheres”.
desafio que elas teriam que superar. A
idéia de que mulheres e homens nascem Contudo, as mulheres envolvidas no
com capacidades distintas para realizar projeto estavam conscientes de que a
determinadas atividades é uma construção garantia da execução por elas próprias
histórica que oculta o trabalho das mulheres constituía uma oportunidade para
e institui a noção de superioridade do a conquista de um novo espaço na
trabalho masculino. Em outras palavras, a comunidade, abrindo o caminho para
consideração de que o esforço físico é algo a geração de renda com o aprendizado
inato ao homem – um imaginário sexista de um novo ofício. Algumas já previam
com base material na divisão sexual do que, depois de cisterneiras, estariam
trabalho – legitima a percepção de que as capacitadas também para construir casas,
mulheres são naturalmente desfavorecidas como Lindinalva Martins, de 18 anos, do
para os trabalhos que demandam força. município de Mossoró.

Vale lembrar, no entanto, que a Vinda de uma família de pedreiros e


classificação de uma atividade pesada ou agricultores, ela enfrentou a desconfiança
leve é definida a partir de quem a executa dentro de sua casa. Seu pai e seus irmãos
(Nobre, 1999). achavam que ela não poderia fazer um
trabalho tido como da alçada de homens.
Assim, tão logo as mulheres tomaram a Um de seus irmãos, designado para a
decisão de estar à frente do processo, elas função de servente de pedreiro, queixou-se
se depararam com o ônus da polêmica do inoportuno fardo: “É ruim porque tem
e da contestação. Um projeto feito por que fazer tudo o que a mulher manda.”
mulheres costuma dividir opiniões dentro
da própria comunidade, que não hesita Resistentes, as mulheres, que já eram
em questionar: “Será que elas conseguem membros de associações e tinham
mesmo?”. As dúvidas quanto à capacidade experimentado na prática o difícil diálogo
das mulheres de, sozinhas, levarem com a comunidade, não recuaram diante
adiante a proposta se espalharam por das ameaças do sexismo, mas valeram-se
todos os setores envolvidos – inclusive delas para também fazer da construção
entre mulheres e parte da assistência das cisternas uma conquista política das

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118

Arquivo Cf8

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119

mulheres no mundo público. Como nos Uma dupla conquista


revela o depoimento de Maria Iracema Silva, A capacitação de pedreiras – realizada
também da primeira turma de pedreiras: também por uma mulher, Maria José,
“Um homem disse pra mim: “Eu deixo rolar da primeira turma de construtoras de
meu pescoço se vocês fizerem essa cisterna”. cisternas de Afogados do Ingazeiro – foi
Eu respondi: pois apronte o pescoço porque uma vitória simbólica e política para a
ele vai rolar e a gente vai fazer”. mulher do campo. Mas esse significativo
avanço e suas conseqüências para o público
Passada a primeira etapa da luta, assistido – seja pela própria execução física
houve um segundo movimento, que do projeto ou pelos dilemas sociais por ele
se configurou como desqualificação da suscitados – mostram mais uma vez que
própria conquista. Contraditoriamente, o machismo é ainda a grande ponte a ser
depois do estranhamento inicial e vencido cruzada no caminho rumo a uma sociedade
o forte descrédito na força de trabalho das sustentável, com igualdade entre homens e
mulheres, a partir do instante em que as mulheres.
cisternas foram erguidas e já se mostravam
em funcionamento, a função de pedreiras Cumpre ainda ressaltar que o projeto
de cisternas passou a ser desvalorizada desenvolveu uma sistemática que permite
pela comunidade, que começou a qualificá- o monitoramento contínuo da execução
la como serviço leve. Nesse momento, o do cronograma de obras. Seus resultados
discurso sexista mudou: “Se elas puderam, são acompanhados por reuniões
qualquer um consegue”. freqüentes de um grupo formado por
representantes das mulheres cisterneiras
As mulheres, no entanto, apreenderam onde da região. Em dezembro de 2006, já
residia a base de tal desqualificação. Como passavam de 250 as cisternas construídas
podemos identificar nas palavras da pedreira por mulheres no estado.
Francisca das Chagas: “Se nós somos capazes
de cozinhar, lavar, passar e ainda deitar Finalmente, para as mulheres organizadas
de noite com eles, por que não podemos nessa experiência, tornou-se evidente
construir cisternas?”. É a simplicidade desse que a construção da Agroecologia só
questionamento que nos leva a retomar o se dará se for capaz de, no processo,
conceito de divisão sexual do trabalho. Afinal, mobilizar a participação política delas
se não se cogita fragilidade quando se atribui em todas as etapas do desenvolvimento
à mulher o cuidado com a família e a difícil local. Diante dessa nova percepção,
e custosa travessia da busca pela água – no podemos concluir que essas mulheres
transporte braçal de diversas latas d’água –, cisterneiras realizaram mais do que
por que é tão conveniente que elas sejam levantar placas de concreto. Elas se
frágeis no momento em que sua tarefa passa tornaram multiplicadoras cientes de
a ser uma função pública, remunerada e de seus direitos na sociedade e na família,
valor reconhecido em toda a comunidade? garantindo sua visibilidade como agentes
(Cadernos 8 de março N° 7, 2006). protagonistas no campo, construindo e
fortalecendo alternativas para os grupos
O impacto dessas questões no dia-a- e coletivos de mulheres organizados na
dia das mulheres, desmentidas com a região oeste do Rio Grande do Norte.
conquista das pedreiras do Rio Grande
do Norte, já é suficiente para justificar Conceição Dantas
e compensar todo o empenho investido coordenadora do Centro Feminista e
nessa experiência. militante da Marcha Mundial das Mulheres.
conceicao@cf8.org.br.

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Texto 31
RESGATE CULTURAL E MANEJO DA AGROBIODIVERSIDADE
EM ROÇA INDÍGENAS: EXPERIÊNCIAS KAIABI
E YUDJA NO PARQUE INDÍGENA DO XINGU, MT
Resgate cultural e manejo da agrobiodiversidade em roças indígenas:
experiências Kaiabi e Yudja no Parque Indígena do Xingu, MT24 24
Texto cedido
da Revista
Agriculturas
Tuiarajup Kaiabi, Arupajup Kaiabi, Wisi’o - v. 1 – n° 1 -
Kaiabi, Taikapi Yudja, Mahurima Yudja, novembro de
2004.
Txitxiyaha Yudja, Geraldo M. Silva, Katia Ono*

Os Kaiabi e os Yudja, habitantes do ocupação de seus territórios por não-


Parque do Xingu, vêm enfrentando índios (Grünberg, 2004). Os Kaiabi somam
historicamente mudanças culturais, hoje cerca de mil pessoas que ocupam 12
em seus hábitos alimentares e em seus aldeias no Parque. Os Yudja são cerca de
sistemas agrícolas. Com a intensificação 250 indivíduos que habitam três aldeias,
do contato com a sociedade brasileira, todas no Parque. A Associação Terra
eles desencadearam um movimento Indígena Xingu (Atix) é uma organização
próprio de resistência e resgate cultural pluriétnica em que os Kaiabi têm atuação
que inclui a agricultura. destacada. Já a Associação Yarikayu foi
criada para representar os interesses
A expansão de atividades econômicas do povo Yudja, e trabalha em estreita
no entorno do Parque tem provocado cooperação com a Atix. A ocupação de
reflexos negativos na dinâmica terras ancestrais, a crescente densidade
sociocultural e ambiental interna. demográfica, a sedentarização de
Recentemente, lavouras de soja vêm aldeias devido à infra-estrutura instalada
dominando a paisagem, tomando espaço para prestação de serviços aos índios e
da atividade madeireira e da pecuária o confinamento territorial acentuam
extensiva. Isso se traduz nas elevadas a pressão de uso dos recursos naturais
taxas de desmatamento que o estado do estratégicos. Por exemplo, as capoeiras
Mato Grosso vem exibindo. As cabeceiras em Terras Pretas – sítios arqueológicos
dos rios formadores do Xingu, localizadas de distribuição esparsa na paisagem,
fora dos limites do Parque, sofrem derivados de antiga ocupação indígena,
crescente contaminação ambiental, com onde ocorrem solos com alto teor de
destaque para a poluição de rios, o que matéria orgânica e elevada fertilidade, e
afeta diretamente os índios. portanto aptos aos cultivos mais exigentes
– vêm recebendo roças com ciclos de pousio
Os Kaiabi e os Yudja vivem no norte do cada vez mais curtos. Em decorrência disso,
Parque, onde mantêm a prática de há frustrações de safra mais freqüentes.
agricultura com policultivos diversificados. Hábitos alimentares também vêm se
Ambos tiveram que enfrentar a modificando, com perda da importância
transferência para o Xingu devido à relativa da dieta tradicional. Assim,

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121

25
No fim espécies agrícolas são menos valorizadas, O esforço de manejo de
dos anos 40,
a invasão
levando à diminuição da diversidade agrobiodiversidade Kaiabi está centrado
das terras genética nas roças. na cultura do amendoim, enquanto
Kaiabi por os Yudja têm focado sua atenção na
seringueiros
e empresas
A reação dos Kaiabi e dos Yudja às mandioca. Entre 1999 e 2004 foram
colonizadoras mudanças históricas em suas roças é realizados censos da disponibilidade de
havia colocado digna de nota. No início da década de variedades de todas as culturas agrícolas
em grave risco
a sobrevivência
50, Jepepyri (Prepori) Kaiabi25, originário nas aldeias Kwaryja Kaiabi
da população do rio Teles Pires, pediu que pequenas e Tuba Tuba Yudja. Os resultados
que, após amostras de cada variedade agrícola explicitaram origens distintas para
décadas de
luta contra os
fossem enviadas ao Xingu. O material as variedades presentes: aquelas
brancos, não foi trazido a pé e em canoas, em um consideradas tradicionais; as externas
tinha mais percurso de cerca de 500 km que levou (recebidas de outros índios ou trazidas
condições
de vencer o
mais de dois meses para ser feito. Mais da cidade); e as recentes (selecionadas
poderio do tarde, em 1966, pelo mesmo motivo de no local, a partir de outras variedades, e
adversário. Por invasão de suas terras, foi realizada a por coleta de maniva em roças velhas).
isso, Jepepyri,
um líder
transferência da maior parte dos Kaiabi Mostraram-se também diferenciações
carismático, que ainda viviam no rio Tatuy, local entre famílias nucleares, o que permitiu
aceitou o apoio da origem mítica do povo. Na viagem, identificar homens e mulheres que
dos irmãos
Villas Boas
feita de avião, também foram trazidas realizam um trabalho de curadoria de
para realizar a sementes e mudas por iniciativa do coleções genéticas.
transferência Capitão Temeoni Kaiabi, o líder da região.
de seu povo
para o Xingu.
A escolha das espécies e variedades a
Desde 1992 os filhos de Jepepyri, serem plantadas nas roças familiares
26
A Atix e o Arupajup e Tuairajup, assumiram a tarefa apresenta muitas motivações. No
ISA mantêm
uma parceria
de zelar pelo patrimônio genético de Parque do Xingu, essa decisão parece
há nove anos. seu povo e procuraram apoio externo estar vinculada a um complexo de
Esse acúmulo para melhor desempenhá-la. Em 1997, razões envolvendo preferências
se traduz
em termos
a proposta foi apresentada ao Instituto pessoais; identidade étnica; a idade e
de relações Socioambiental (ISA), e a partir de 1998 conhecimento especializado do casal; a
institucionais, as ações de resgate e multiplicação de consideração por tabus alimentares; os
bem como
suporte técnico,
variedades agrícolas passaram a ser usos e características organolépticas de
jurídico e trabalhadas em parceria entre a Atix e cada variedade; aspectos agronômicos;
administrativo, o ISA26. Em 1999 as primeiras parcelas e oportunidade para obtenção e/ou
incluindo ações
de capacitação
foram plantadas na aldeia Kwaryja, um conservação de um material particular.
direcionadas ano antes do falecimento de Jepepyri. Desse modo, o plantio e/ou abandono
à diretoria da Assim, a curadoria da coleção genética de variedades pode se dar em função
associação e
ao pessoal das
Kaiabi passou para seus filhos, noras e da combinação de respostas para esses
aldeias. genros, estabelecendo as bases para o fatores. Por exemplo, no caso Kaiabi, pais
presente trabalho (Kaiabi e Silva, 2001; novos deixam de comer amendoim até
Silva, 2002). Nos debates que seguiram, que o filho complete um ano de idade,
os Yudja manifestaram interesse em assim como algumas variedades são
resgatar as suas variedades, e Mahurima evitadas porque são relacionadas com a
Yudja e os casais Txitxiyaha e Taikapi e incidência de doenças, como a artrose.
Ikae e Isabaru, entre outras pessoas, Para os Yudja, algumas variedades de
começaram a exercer o mesmo papel de mandioca têm importância cultural
curadores. destacada, sendo celebradas através de
canções específicas em algumas festas.

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122

Foto: Geraldo M. Silva/Revista Agriculturas


27
A família Por outro lado, a curiosidade também pode
extensa é
formada pelos fazer com que materiais externos sejam
pais, filhos(as) experimentados nas roças das aldeias. Em
e cônjuges, e caso de aceitação – e dispersão para outras
netos (podendo
incluir outros famílias – a nova variedade pode vir a ser
parentes incorporada à coleção geral manejada pela
próximos) que população. Os Kaiabi do Kwaryja iniciaram
vivem sob a
liderança de um trabalho sistemático de recuperação e
uma pessoa multiplicação de variedades de amendoim
mais velha, em 1999. Parcelas são cultivadas em
um homem no
caso dos Kaiabi, uma roça comunitária, já que a aldeia é
enquanto a pequena, formada por uma única família
família nuclear extensa27 que ainda mantém o sistema de
é a unidade
social básica, produção baseado na geração centralizada
composta de alimentos em uma roça maior, para as novas gerações, em gestão e
somente pelo complementada por outras menores, manejo dos recursos naturais, associando
casal e filhos.
geridas pelas famílias nucleares. reflexão e prática política a aspectos

socioculturais e atividades técnicas.
Na safra 2003/04, havia 31 parcelas
com diferentes variedades sendo Essa capacitação é feita por meio de
multiplicadas. Os Yudja passaram a estudar diversas modalidades de treinamentos,
sistematicamente suas variedades de sempre lastreadas em atividades concretas
mandioca em 2002, através de oficinas de do cotidiano, de caráter participativo e
trabalho na aldeia Tuba Tuba envolvendo com conteúdo prático e teórico. Delineado
jovens, adultos e idosos de ambos os sexos. para atender demandas como essas, foi
A partir da identificação de descritores criado em 2000 o Programa de formação
locais para a cultura, foram visitadas roças e de agentes indígenas para o manejo de
estudadas 40 diferentes variedades. Foram recursos naturais, que inclui o manejo da
encontrados poucos pés plantados de duas agrobiodiversidade.
variedades de importância cultural, e em
apenas uma roça. Como decorrência desse Para viabilizar o seu desenvolvimento,
28
O Programa
Xingu, trabalho, algumas famílias passaram a fóruns para definir prioridades,
executado pelo multiplicar em roças particulares variedades acompanhar, discutir e avaliar os
ISA em parceria mais raras, as quais aos poucos vão sendo trabalhos em aldeias e no PI Diauarum
com a Atix e
a Associação reintroduzidas no sistema de circulação de são promovidos pela Atix, pela Associação
Yarikayu, materiais genéticos. Yarikayu e pela assessoria. Talvez o principal
inclui quatro mérito desse processo de capacitação
componentes Contudo, as condições objetivas para a
destinados ao
seja o de trazer ao debate aberto a
fortalecimento revitalização dos sistemas de manejo da questão do manejo da agrobiodiversidade,
institucional agrobiodiversidade e a reprodução física promovendo a valorização ativa, o resgate
das associações dos materiais propagativos encontram
locais: vigilância
e o registro desse patrimônio. Com isso,
de fronteiras obstáculos. Alterações no processo antigos hábitos alimentares estão sendo
e do entorno de transmissão de conhecimentos, de retomados, laços de reciprocidade estão
do Parque; circulação de recursos genéticos e de
formação de
sendo fortalecidos e o sistema de circulação
professores percepções diferenciadas de limites de materiais vai sendo remoldado. A
indígenas; ecológicos para o uso continuado de ampliação deliberada de coleções de
geração de recursos naturais são alguns deles. Em um
renda e manejo
materiais genéticos administradas no plano
de recursos plano mais geral, os Kaiabi e os Yudja estão familiar fornece as bases materiais para
naturais. buscando capacitação28, principalmente esta mobilização.

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123

Além disso, intensificam-se os debates *Tuiarajup Kaiabi, Arupajup Kaiabi e Wisi’o


sobre o uso das terras pretas e seu Kaiabi: membros da Atix. Av Mato Grosso,
esgotamento, apontando para a 688, Canarana, MT. CEP 78.640-000.
necessidade de se alcançar outras manchas
interiores. Nesse contexto insere-se a Taikapi Yudja, Mahurima Yudja e Txitxiyaha
experimentação com técnicas de manejo Yudja: membros da Associação Yarikayu,
agroflorestal para a recuperação das áreas Aldeia Tuba Tuba Yudja, Parque do Xingu.
hoje comprometidas.
Geraldo M. Silva: pesquisador do ISA
A gestão de recursos naturais e as associado ao Programa Xingu. Tropical
adaptações na organização sociocultural Conservation and Development Program,
dos índios, em meio aos embates com a University of Florida, USA.
ocupação do entorno, estão intimamente gerams@ufl.edu.
ligadas à política de relações destes
com a sociedade envolvente. Passa Katia Ono: técnica do Isa inserida no
também pelo reconhecimento de seus Programa Xingu.
direitos a forma de políticas públicas em katia@socioambiental.org.
diferentes níveis. Traz consigo também
oportunidades para a abertura do diálogo
sobre o reconhecimento dos direitos Referências:
intelectuais coletivos dos índios, incluindo GRÜNBERG, G. Os Kaiabi do Brasil Central.
remuneração e/ou compensações pelos História e Etnografia. São Paulo: Instituto
serviços ambientais e culturais que Socioambiental, 2004.
prestam ao conjunto da sociedade. É
evidente o esforço de lideranças para KAIABI, T.; SILVA, G.M. Experiência de
garantir a participação dos índios do manejo de recursos genéticos amazônicos
Xingu na formulação e gestão de políticas. por índios do Xingu.
Internamente, é crescente o debate sobre
práticas e mecanismos para conservação International workshop on local
in situ de recursos naturais em geral e da management of agrobiodiversity. Projeto
agrobiodiversidade em particular. Por essa Cultivando Diversidad / GRAIN, 2001.
via, os Kaiabi e os Yudja estão manejando www.grain.org/cd.
sua agrobiodiversidade e fortalecendo sua
identidade étnica. LIMA, T. S. A parte do cauim. Etnografia
Geraldo M. Silva/Revista Agriculturas Juruna. 1995. Tese (Doutorado) – Museu
Nacional, Rio de Janeiro.

SILVA, G.M. Uso e conservação da


agrobiodiversidade pelos índios Kaiabi do
Xingu. In: BENSUSAN, N. (Org.) Não seria
melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade:
como, por que, para quem. Brasília:
Universidade de Brasília/ Instituto
Socioambiental, 2002.

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124

Texto 32
Os agentes agroflorestais indígenas do Acre
Fabrício Bianchini e Paola Cortez Bianchini

Quadro. Famílias lingüísticas e etnias indígenas no Acre


Família Pano Aruak Arawá
Os povos indígenas no Acre Linguística
A partir do século XIX, o território hoje Apolima-Arara
compreendido como o estado do Acre Jaminawa
foi invadido por frentes de ocupação Jaminawa-Arara
brasileiras e peruanas, que chegaram Katukina
Kaxinawá Ashaninka
para a extração do látex da seringueira
Etnias Naua Manchineri Kulina
(Hevea brasiliensis) e do caucho (Castilloa
ellastica), ambos comercializados Nukuni
como matéria prima para a produção Poyanawa
de pneumáticos, elemento básico da Shanenawa
indústria automobilística. Shawãdawa
Yawanawá
Estima-se que, no período anterior Fonte: Comissão Pró-Índio do Acre.

à chegada dos seringalistas, existiam


cerca de 50 povos indígenas na região. Quadro. Famílias lingüísticas
O contato entre esses povos e os e etnias indígenas no Acre
exploradores resultou nas correrias, Atualmente, o Acre abriga uma das maiores
termo que representa a fuga dos índios sociobiodiversidades do planeta: possui 14
rio acima visando escapar do massacre diferentes povos indígenas, falantes de três
físico e cultural promovido pelos famílias lingüísticas: Pano, Aruak e Arawá (ver
seringalistas, e no cativeiro, ou seja, a Quadro). Eles habitam 34 terras indígenas,
captura e escravização dos indígenas para ocupando uma área de aproximadamente
o trabalho nos seringais. 2,4 milhões de hectares, o que corresponde a
14% do território do estado.
Com a crise nos preços da borracha, no
final da década de 1970, muitos seringais A população indígena no Acre é estimada em
foram desconstituídos. Foi também nesse 13,3 mil pessoas e o povo mais numeroso
período que lideranças indígenas iniciaram é o Kaxinawá (cerca de seis mil pessoas).
as lutas pelos seus direitos1. As décadas Ainda podem ser encontrados índios
seguintes (1980 e 1990) foram marcadas isolados, com pouco ou nenhum contato
pela consolidação da identificação e com a sociedade não-indígena, nas áreas de
demarcação dos territórios tradicionais fronteira com o Peru. Entretanto, a conquista
e configuram o Tempo dos Direitos, do território demarcado trouxe novos
posteriormente chamado de o Tempo do desafios para as populações indígenas. Além
Governo dos Índios no Acre, quando as da vigilância e fiscalização de suas terras, a
comunidades indígenas se organizaram gestão territorial e ambiental e as relações
para estabelecer seus próprios projetos de sociais e econômicas com as comunidades
vida, assumindo o processo de autogestão do entorno passaram a figurar entre as
de seus territórios. preocupações desses povos.

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125

O surgimento dos agentes articulando-a ao tema da segurança


alimentar. Surgiu assim a proposta de
agroflorestais indígenas como formação dos agentes agroflorestais
novos atores no processo indígenas (AAFIs), novos atores sociais
organizativo responsáveis por realizar um trabalho
educativo e participativo junto às
comunidades indígenas e seu entorno
A Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/Acre) para garantir que a gestão dos territórios
é uma organização não-governamental proporcione mais qualidade de vida
criada em 1979 com o objetivo de para as populações que neles vivem.
prestar assessoria às populações Os AAFIs atuam na implementação e
indígenas em suas lutas pela conquista experimentação de tecnologias inovadoras
e o exercício de seus direitos coletivos. voltadas para a promoção de maiores níveis
Assessora também iniciativas inovadoras de segurança alimentar e nutricional.
voltadas à formulação, execução e
acompanhamento de políticas públicas Essas inovações abrangem práticas
nas esferas federal, estadual e municipal. em sistemas agroflorestais (SAFs), de
criação racional de animais domésticos
Visando superar os novos desafios e silvestres, monitoramento ambiental
relacionados à qualidade de vida das e manejo agroextrativista. Atualmente
populações indígenas, a CPI/Acre deu o Setor de Agricultura e Meio Ambiente
início, em 1983, a atividades educacionais da CPI/Acre trabalha com a formação
junto a professores indígenas. Essas ações profissionalizante de 126 jovens e adultos
são voltadas para a formação básica e indígenas, de dez povos, em 21 territórios
profissionalizante de jovens e adultos no estado do Acre e sudeste do Amazonas.
por meio de um processo de formação
continuada nas áreas de educação, saúde,
agricultura e meio ambiente. A proposta pedagógica
e técnica
Dessa forma, agentes de saúde indígenas
também passaram a ser formados em Os povos indígenas detêm um amplo
programas permanentes nos quais e complexo conhecimento sobre como
desenvolvem-se práticas de promoção utilizar recursos naturais para atender
da saúde integradas às ações nos campos as demandas de suas comunidades. As
do manejo agrícola e florestal e de estratégias tradicionais de reprodução
saneamento básico das aldeias. Arquivo Comissão Pró-Índio do Acre

Temas como segurança alimentar e


plantas medicinais fazem parte do
conteúdo dessa formação, permitindo o
relacionamento entre os debates sobre
alimentação, saúde e meio ambiente.

Em 1996, como resultado da formação


dos professores indígenas e dos agentes
indígenas de saúde, percebeu-se a
necessidade de um novo processo
educacional que contemplasse a questão
da gestão territorial e ambiental,

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126

e domesticação de plantas demonstram da Floresta (CFPF), um sítio de 31 hectares


quão valiosos são esses conhecimentos, onde, durante os cursos de formação, são
que podem ser facilmente identificados implantados modelos demonstrativos de
ao observarmos a imensa diversidade sistemas agroflorestais, horta ecológica
de espécies e variedades existentes e criatórios de quelônios, peixes, animais
em seus roçados e SAFs tradicionais. domésticos de pequeno porte e abelhas
As intervenções realizadas pelos povos nativas. Os eventos envolvem turmas de
indígenas nos ecossistemas, como a 20 a 40 indígenas de diversas etnias e
prática de abertura ou enriquecimento regiões do estado do Acre e possuem carga
de roçados e clareiras, são orientadas horária aproximada de 300 horas/ aula,
no sentido de incrementar a diversidade distribuídas em 30 a 45 dias. Os conteúdos
das espécies, por meio da seleção e abordados nos cursos são organizados
reprodução das plantas de interesse. em duas áreas distintas: nos domínios do
saber da formação profissionalizante que
Exemplo disso são os sistemas incluem os temas do manejo agroflorestal
agroflorestais inovadores que vêm sendo e de recursos naturais, e os domínios do
implantados nas terras indígenas. Ao saber da formação básica que englobam,
introduzirem espécies exóticas e nativas, entre outras disciplinas, as línguas indígenas
como palmeiras, plantas medicinais, e portuguesa, química e biologia, todas
frutíferas e plantas de ciclo anual para abordadas tendo o tema do meio ambiente
atração de caça, os indígenas procuram como eixo gerador.
estabelecer uma analogia ecológica entre
os SAFs e os ecossistemas naturais. As oficinas itinerantes possibilitam
A proposta pedagógica utilizada na a formação dos AAFIs e demais
formação dos AAFIs articula quatro comunitários das aldeias. As assessorias
diferentes modalidades: os cursos são os momentos de formação em que os
intensivos presenciais, que ocorrem assessores da CPI/ Acre realizam visitas
em Rio Branco; as oficinas itinerantes e às terras indígenas com o objetivo de
as assessorias, que ocorrem nas terras acompanhar os trabalhos dos AAFIs em
indígenas; e os intercâmbios, que são visitas seus contextos socioculturais, ambientais
para troca de experiência entre os grupos. e políticos específicos. Já os intercâmbios
Todas as ações são conduzidas segundo proporcionam a aprendizagem por meio
processos de comunicação bilíngüe e da troca de experiência e da observação
intercultural, metodologia esta que se e contato com outras realidades
tornou referência nas políticas indigenistas (geográficas, ambientais, culturais,
contemporâneas no Brasil. Por meio do políticas e econômicas).
conceito de autoria, aplicado nas práticas
de ensino e aprendizagem, os agentes Atualmente a Comissão Pró-índio
agroflorestais são incentivados a identificar, do Acre busca o reconhecimento
analisar e sistematizar conhecimentos sobre da formação dos AAFIs como curso
os ambientes naturais e sociais em que técnico profissionalizante. Em 2002, foi
vivem, bem como formular proposições fundada a Associação do Movimento
para as questões relacionadas ao dos Agentes Agroflorestais Indígenas
desenvolvimento local. Ao mesmo tempo, do Acre (Amaaic), responsável por
repassam tais conhecimentos organizados a realizar parcerias e articulações com
outros (Nietta, 2007). as instituições governamentais e da
sociedade civil, em defesa da categoria
Os cursos intensivos ocorrem uma vez ao social dos agentes agroflorestais e
ano, no Centro de Formação dos Povos populações indígenas de maneira geral.

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127

Os conceitos localmente. Esse diálogo efetivo com as


lideranças mais antigas garante que o
e as práticas em ação exercício da interculturalidade vivenciado
nos processos de formação fortaleça a
Em conjunto com suas comunidades,
coesão social dos grupos indígenas.
compete aos AAFIs a produção de
alimentos para todos os seres da floresta,
Os SAFs podem ser observados em várias
a manutenção e reprodução das práticas
unidades da paisagem das terras indígenas:
agrícolas milenares de seus povos
nas capoeiras enriquecidas, nos roçados
e a reflexão crítica sobre as práticas
antigos, nas trilhas, nos varadouros e
interculturais. Nesse sentido, o trabalho
nas matas tradicionais de reprodução e
de promoção dos sistemas agroflorestais
domesticação de plantas demonstram
e as atividades de manejo da fauna
quão valiosos são esses conhecimentos,
tornam-se espaços privilegiados para o
que podem ser facilmente identificados
enfrentamento conjunto desses desafios:
ao observarmos a imensa diversidade de
produção de alimentos, recuperação e
espécies e variedades existentes em seus
preservação ambiental e integração de
roçados e SAFs tradicionais. As intervenções
saberes tradicionais com novos saberes.
realizadas pelos povos indígenas nos
ecossistemas, como a prática de abertura
Como já foi mencionado, o AAFI planeja
ou enriquecimento de roçados e clareiras,
suas ações juntamente com a comunidade
são orientadas no sentido de incrementar a
da qual faz parte. A participação e
diversidade das espécies, por meio da seleção
cooperação dos demais atores, como
e reprodução das plantas de interesse.
o professor indígena, o agente de
saúde e as lideranças, são essenciais Exemplo disso são os sistemas
para que a comunidade indígena crie agroflorestais inovadores que vêm sendo
melhores condições para superar os implantados nas terras indígenas. Ao
desafios relacionados à manutenção e à introduzirem espécies exóticas e nativas,
reprodução de sua cultura. As lideranças como palmeiras, plantas medicinais,
tradicionais percebem os AAFIs como frutíferas e plantas de ciclo anual para
mensageiros, que trazem novidades atração de caça, os indígenas procuram
para dentro das terras indígenas. Suas estabelecer uma analogia ecológica entre
mensagens são discutidas, experimentadas os SAFs e os ecossistemas naturais.
e em geral são incorporadas e adaptadas
Arquivo Comissão Pró-Índio do Acre A proposta pedagógica utilizada na formação
dos AAFIs articula quatro diferentes modali-
dades: os cursos intensivos presenciais, que
ocorrem em Rio Branco; as oficinas itineran-
tes e as assessorias, que ocorrem nas terras
indígenas; e os intercâmbios, que são visitas
para troca de experiência entre os grupos. To-
das as ações são conduzidas segundo proces-
sos de comunicação bilíngüe e intercultural,
metodologia esta que se tornou referência
nas políticas indigenistas contemporâneas
no Brasil2. Por meio do conceito de autoria,
aplicado nas práticas de ensino e aprendi-
zagem, os agentes agroflorestais são incen-
tivados a identificar, analisar e sistematizar

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conhecimentos sobre os ambientes naturais fundada a Associação do Movimento


e sociais em que vivem, bem como formular dos Agentes Agroflorestais Indígenas
proposições para as questões relacionadas do Acre (Amaaic), responsável por
ao desenvolvimento local. Ao mesmo tempo, realizar parcerias e articulações com
repassam tais conhecimentos organizados a as instituições governamentais e da
outros (Nietta, 2007). sociedade civil, em defesa da categoria
social dos agentes agroflorestais e
Os cursos intensivos ocorrem uma vez ao populações indígenas de maneira geral.
ano, no Centro de Formação dos Povos da
Floresta (CFPF), um sítio de 31 hectares Os conceitos
onde, durante os cursos de formação, são
implantados modelos demonstrativos de e as práticas em ação
sistemas agroflorestais, horta ecológica
e criatórios de quelônios, peixes, animais Em conjunto com suas comunidades,
domésticos de pequeno porte e abelhas compete aos AAFIs a produção de
nativas. Os eventos envolvem turmas de 20 alimentos para todos os seres da floresta,
a 40 indígenas de diversas etnias e regiões a manutenção e reprodução das práticas
do estado do Acre e possuem carga horária agrícolas milenares de seus povos
aproximada de 300 horas/aula, distribuídas e a reflexão crítica sobre as práticas
em 30 a 45 dias. Os conteúdos abordados interculturais. Nesse sentido, o trabalho
nos cursos são organizados em duas áreas de promoção dos sistemas agroflorestais
distintas: nos domínios do saber da formação e as atividades de manejo da fauna
profissionalizante que incluem os temas do tornam-se espaços privilegiados para o
manejo agroflorestal e de recursos naturais, e enfrentamento conjunto desses desafios:
os domínios do saber da formação básica que produção de alimentos, recuperação e
englobam, entre outras disciplinas, as línguas preservação ambiental e integração de
indígenas e portuguesa, química e biologia, saberes tradicionais com novos saberes.
todas abordadas tendo o tema do meio
ambiente como eixo gerador. Como já foi mencionado, o AAFI
planeja suas ações juntamente com
As oficinas itinerantes possibilitam a comunidade da qual faz parte. A
a formação dos AAFIs e demais participação e cooperação dos demais
comunitários das aldeias. As assessorias atores, como o professor indígena, o
são os momentos de formação em que agente de saúde e as lideranças, são
os assessores da CPI/Acre realizam visitas essenciais para que a comunidade
às terras indígenas com o objetivo de indígena crie melhores condições para
acompanhar os trabalhos dos AAFIs em superar os desafios relacionados à
seus contextos socioculturais, ambientais manutenção e à reprodução de sua
e políticos específicos. Já os intercâmbios cultura. As lideranças tradicionais
proporcionam a aprendizagem por meio percebem os AAFIs como mensageiros,
da troca de experiência e da observação que trazem novidades para dentro das
e contato com outras realidades terras indígenas. Suas mensagens são
(geográficas, ambientais, culturais, discutidas, experimentadas e em geral
políticas e econômicas). são incorporadas e adaptadas localmente.
Esse diálogo efetivo com as lideranças
Atualmente a Comissão Pró-índio mais antigas garante que o exercício
do Acre busca o reconhecimento da interculturalidade vivenciado nos
da formação dos AAFIs como curso processos de formação fortaleça a coesão
técnico profissionalizante. Em 2002, foi social dos grupos indígenas.

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Arquivo Comissão Pró-Índio do Acre Arquivo Comissão Pró-Índio do Acre

Os SAFs podem ser observados em desenvolver modelos sustentáveis de


várias unidades da paisagem das terras manejo e criação desses animais.
indígenas: nas capoeiras enriquecidas,
nos roçados antigos, nas trilhas, nos O reconhecimento e a valorização dos
varadouros e nas matas ciliares. Essa AAFIs nas comunidades ocorrem à
diversidade de ambientes onde os SAFs medida que os resultados positivos de
são implantados associa-se também a seus trabalhos vão sendo percebidos.
diferentes composições florísticas dos O incremento da segurança e da
mesmos, aspecto esse que favorece tanto diversidade alimentar nas aldeias, a
os processos ecológicos quanto a segurança regionalização da merenda escolar, a
alimentar das comunidades indígenas. recuperação de áreas degradadas, o
fortalecimento das economias familiares
Com o enriquecimento de áreas de mata e de por intermédio da comercialização da
capoeira, as queimadas para implantação de produção excedente e o enriquecimento
novos roçados ou para abertura de áreas de dos conhecimentos são alguns dos efeitos
pastagem deixam de ser praticadas. Esse fato diretos desses trabalhos.
tem possibilitado que as atividades de coleta
de frutas e de madeira para a construção Nesse sentido, o trabalho de formação de
de casas, bem como a caça, possam ser AAFIs tem permitido que agentes locais
realizadas a distâncias menores das aldeias. tenham acesso a novos conhecimentos
e atuem no fortalecimento das
O trabalho de implantação e manejo organizações locais e na coesão
dos SAFs é basicamente realizado pela comunitária a partir da construção de
família, envolvendo homens, mulheres ambientes propícios ao diálogo e à
e crianças. Em geral ele se inicia com o experimentação de inovações em suas
cultivo das culturas anuais consorciadas comunidades e entornos.
com diferentes espécies frutíferas
(exóticas e nativas) e florestais de uso Fabrício Bianchini - Engenheiro
múltiplo, que são introduzidas por agrônomo, assessor do Setor de
meio do plantio direto das sementes Agricultura e Meio Ambiente da CPI/Acre
ou por mudas produzidas em viveiros. fabricio@cpiacre.org.br
Associa-se também aos SAFs a criação Paola Cortez Bianchini - Mestre em
de animais silvestres e domésticos, como Agroecossistemas, coordenadora da área técnica
peixes, aves, suínos, abelhas indígenas agroflorestal da Escola da Floresta (IDM/AC)
e quelônios. Dessa forma, procura-se cortez_12@yahoo.com

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130

Texto 33
A carne mais barata do mercado
A CARNE

respeito
Elza Soares
Composição: Seu Jorge,
Marcelo Yuca e Wilson Capellette

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio


E para debaixo de plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história


Segurando esse país no braço

respeito
O cabra aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento
Mas muito bem intencionado
E esse país
Vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado

Mas mesmo assim


Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito

respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar

A carne mais barata do mercado é a carne negra

A carne mais barata


respeito
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131

respeito
é a carne negra

respeito
respeito
respeito

respeito
do mercado é a carne negra

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132

Texto 34
Reprodução Rugendas - “Navio Negreiro”

navio negreiro

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133

camburão
TODO CAMBURÃO TEM UM
POUCO DE NAVIO NEGREIRO
Marcelo Yuka

Tudo começou quando a gente conversava


Naquela esquina alí
De frente àquela praça
Vieram os homens
E nos pararam
Documento por favor
Então a gente apresentou
Mas eles não paravam
Qual é negão? qual é negão?
O que que tá pegando?
Qual é negão? qual é negão?

É mole de ver
Que em qualquer dura
O tempo passa mais lento pro negão
Quem segurava com força a chibata
Agora usa farda
Engatilha a macaca
Escolhe sempre o primeiro
Negro pra passar na revista
Pra passar na revista

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro


Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

É mole de ver
Que para o negro
Mesmo a Aids possui hierarquia
Na África a doença corre solta
E a imprensa mundial
Dispensa poucas linhas
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Ou das colunas sociais

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Texto 35
SECOM/MEC CPT SECOM/MEC
Canto CPT MST

CANTO DAS TRÊS RAÇAS


Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro

E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do quilombo dos palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz, de paz em guerra
Todo povo dessa terra
quando pode cantar, canta de dor

Ôôôôôô ôôôôôô ôô

E ecoa noite e dia


É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria

Soa apenas como um soluçar de dor


ôôôôôô

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das Três Raças


MCF Saberes da Terra/PA MMA SECOM/MEC SECOM/MEC SECOM/MEC

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Texto 36
Agricultura Familiar: História, Diversidade e Autonomia
SOUSA, Romier da P.29 ; MICHELOTTI, Fernando30 ; COSTA, Gilson da Silva31
29
Engenheiro
Agrônomo,
Mestre em
Agriculturas
Familiares e
Desenvolvimento
Sustentável/
UFPA, Professor
da Escola Agro-
técnica Federal
de Castanhal
1. Introdução Por outro lado, os trabalhadores do - Pará.

D
campo nunca aceitaram passivamente
esde o início do período da essa subordinação, construindo diversas 30
Engenheiro
colonização até o momento formas de luta e de resistência a esse Agrônomo,
Mestre em
atual, cinco séculos se passaram modelo. São exemplos dessa luta a
Planejamento do
e muito se desenvolveu a agricultura fuga dos escravos para formarem os desenvolvimento
no Brasil, colocando o país na posição quilombos, a formação de comunidade /NAEA-UFPA,
privilegiada e estratégica de ser em áreas livres (beira de rios, fundos Professor do
hoje um dos grandes produtores de de pasto, terras de santo, seringais Colegiado de
Ciências Agrárias
alimentos do mundo. Durante toda essa abandonados, etc), as migrações para
da UFPA –
história, a monocultura para exportação novas fronteiras e as ocupações de Campus de
sempre foi privilegiada, como o caso terra. Marabá.
primeiro do extrativismo do pau-brasil
e, posteriormente, com as produções Todo esse movimento garantiu a
31
Engenheiro
Agrônomo e
extensivas de cana-de-açucar, de café, existência de uma agricultura familiar
Cientista Social,
de gado e atualmente, de soja e de com diferentes origens e uma doutorando em
eucalipto, os maiores símbolos do diversidade de formas de identidade Desenvolvimento
agronegócio brasileiro contemporâneo. e de organização, mas com um traço Socioambiental
comum: a negação do modelo agro- pelo Programa de
Desenvolvimento
Esse modelo de desenvolvimento da exportador baseado no latifúndio.
Sustentável do
agricultura, baseado nas plantações É destas agriculturas familiares que Trópico Úmido
de grandes áreas com uma única vamos falar daqui em diante. –PDTU/NAEA/
espécie (associação latifúndio- UFPA.
monocultura) sempre esteve associado
a concentração da posse da terra e o
impedimento do livre acesso à terra
por parte dos trabalhadores. Por
isso, nas relações de trabalho que
marcam esse modelo de agricultura
predominam diferentes formas de
subordinação dos trabalhadores, como
o escravismo, o colonato, o aviamento e
o assalariamento.

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Arquivo Revista
Agriculturas -
experiências em
Agroecologia

2. A formação histórica da Agricultura se instalaram, trazendo com eles


Familiar no Brasil diversos conhecimentos, tecnologias e
práticas agrícolas.
A agricultura no Brasil já existia antes do
período da colonização. Era práticada No período escravista, foram trazidos
pelos índios de diversas etnias, nações um grande número de africanos para
e tribos que desenvolviam o cultivo e a trabalharem nos latifúndios agro-
criação com base nos conhecimentos exportadores. Junto com sua força
ancestrais acumulados. Alíás, muitos de trabalho, também troxeram uma
produtos da atual agricultura nacional são rica e variada cultura, além de muitas
fruto do trabalho e seleção milenar dos espécies agrícolas e animais para o
índios, como diversas espécies de raízes, Brasil.
frutos, etc. A fusão dos conhecimentos e das
espécies vegetais e animais reunidas
Com a conquista das Américas pelos pelas três culturas (indígena, européia
europeus, aqui se instalaram os e africana) permitiu o desenvolvimento
portugueses e com eles uma série de de uma diversidade de conhecimentos
atividades, tecnologias e cultivos. O e práticas agrícolas, socias e culturais.
início da formação dos latifúndios agro- Essa origem associada as diferentes
exportadores foram resultados diretos formas de luta e de resistência dos
desse processo. Mas, em diferentes trabalhadores do campo, foi a base da
momentos de nossa história, outros diversidade de agriculturas familiares
migrantes europeus e asiáticos também existente em nosso país hoje.

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3. O debate sobre o conceito de agricultura familiar, baseados na síntese


Agricultura Familiar da Profa. Nazaré Wanderley (WANDERLEY,
1996), dois elementos muito importantes
Muitas terminologias foram empregadas para sua compreensão: (i) este deve
historicamente para se referir ao mesmo ser compreendido como um conceito
sujeito: camponês, trabalhador rural, genérico que engloba uma diversidade
pequeno produtor, lavrador, agricultor de categorias específicas, que têm em
de subsistência, agricultor familiar. A comum a forte associação entre família-
substituição de termos obedece, em produção-trabalho; (ii) que esse amplo
parte, o próprio desenvolvimento do conjunto de agricultores familiares
contexto social e às transformações expressam um caráter histórico dinâmico,
sofridas por esta categoria, mas é ou seja, que necessitam constantemente
resultado também de novas percepções se adaptarem às exigências da sociedade
sobre o mesmo sujeito social, isto é, o na qual estão inseridos, porém mantendo
homem e a mulher do campo (OLAIDE, como característica comum a sua tradição
2007). e/ou racionalidade.

Foi a partir dos anos 1990 que o termo Por isso, o termo Agricultura Familiar
Agricultura Familiar começou a ser aqui utilizado comporta uma grande
utilizado mais amplamente. Como diversidade de formas sociais, como:
expressa a Profa. Nazareth Wanderley, “a agroextrativistas, indígenas, quilombolas,
agricultura familiar não é uma categoria pescadores artesanais, sertanejos,
social recente. No entanto, sua utilização, ribeirinhos, faxinalenses, agricultores
com o significado e abrangência que lhe urbanos, geraizeiros, varzanteiros,
tem sido atribuído nos últimos anos, no quebradeiras de côco, caatingueiros,
Brasil, assume nova forma” (WANDERLEY, criadores em fundos de pasto,
1996). Por isso, pode-se dizer que sua seringueiros, caiçaras e tantas outras
utilização representa tanto um novo identidades socioculturais existentes no
contexto social, como também uma nova Brasil. Todas elas caracterizam-se pela
percepção sobre esse sujeito. articulação familia-produção-trabalho.

A importância do termo familiar é Nesse sentido, refletindo sobre a


que este reforça a idéia de que esses diversidade do campo, qual o termo
grupos sociais são aqueles em que a mais adequado: Agricultura Familiar
família, ao mesmo tempo em que é ou Campesinato? Este ainda parece ser
proprietária dos meios de produção (terra um debate que terá muitos anos pela
e instrumentos de trabalho), assume o frente. Tanto nas Universiades quanto no
trabalho no estabelecimento produtivo. Movimento Social e Sindical é freqüente
O caráter familiar não é um mero detalhe enfrentarmos polêmicas sobre estes
superficial e descritivo. O fato de uma termos. No entanto, entendemos que a
estrutura produtiva associar família- identidade dos sujeitos sociais do campo
produção-trabalho tem consequências são construídas por eles mesmos que
fundamentais para a forma como ela são os que melhor podem determinar
se organiza econômica e socialmente os termos que os caracterizam. Nossa
(WANDERLEY, 1996). idéia é trazer elementos de reflexão para
discussão a respeito do tema e propor
Assim, estão embutidos no conceito de que vocês, educadores, educandos,
movimentos sociais e seus parceiros
discutam qual a melhor formulação

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Arquivo CPT

para designar os grupos sociais nos seus Essa “autonomia relativa” não pode ser
territórios, regiões ou municípios. confundida com o isolamento ou a mera
Para muitos autores, a principal diferença produção de subsistência, mas com a
entre os termos Agricultura Familiar e busca de uma relação com o mercado e
Campesinato está não nas suas relações com a sociedade que, embora sempre
internas (familia-produção-trabalho), contraditória, minimize sua subordinação.
mas sim nas relações externas que esse Por isso, uma questão central nesse debate
tipo de unidade de produção estabelece sobre a agricultura familiar/campesinato
com a sociedade local e a sociedade refere-se à sua capacidade de construir
mais geral. Um aspecto chave desse um projeto de desenvolvimento que lhe
debate, com especial ênfase nas relações garanta mais ou menos autonomia.
com o mercado, é a da busca por uma
“autonomia relativa” dos sujeitos do
campo. 4. A importância da Agricultura
Familiar no contexto atual

Arquivo Revista Agriculturas - experiências em Agroecologia A agricultura familiar possui um


papel histórico no desenvolvimento
agrícola. Em todos os países capitalistas
avançados a agricultura familiar foi a
base da modernização da agricultura e o
principal ator do desenvolvimento rural.
Apesar de histórias bastante diferentes
(Europa, Leste Asiático, Estados Unidos),
os resultados do desenvolvimento são
bastante similares. Daí toda a proteção,
através dos subsídios que os países
desenvolvidos dão aos seus agricultores
familiares.

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Arquivo MST Arquivo Revista Agriculturas - experiências em Agroecologia

No Brasil, representando cerca de 85,2% No caso da geração de empregos,


do total de estabelecimentos rurais os estabelecimentos familiares são
existentes, a agricultura familiar possui uma os principais geradores de postos
importância fundamental no processo de de trabalho no meio rural, sendo
desenvolvimento em suas várias dimensões. responsáveis por quase 77% do pessoal
ocupado na agricultura no Brasil.
Além da produção de autoconsumo que Enquanto estabelecimentos patronais
garante segurança alimentar para as próprias precisam de, em média, 67 hectares
famílias de agricultores, possui a capacidade para gerar um posto de trabalho,
de fornecer volumes significativos de os familiares precisam de apenas 8
alimentos aos mercados. Pesquisa realizada hectares (INCRA/FAO, 2000).
pelo INCRA/FAO (2000) demonstra
que os estabelecimentos familiares são Também na preservação ambiental,
responsáveis por boa parte dos alimentos a importância da agricultura familiar
que compõem a cesta básica do brasileiro: é bastante significativa. Os recursos
67% do Valor Bruto da Produção (VBP) de naturais em geral são percebidos
feijão, 84% da mandioca, 50% do milho, 52% pelas famílias como parte de seu
da pecuária de leite, 58% de suínos e 40% patrimônio social, tendo controle sobre
de aves e ovos. Além de ter participação seu processo produtivo e convivendo
fundamental em praticamente todos os de forma menos agressiva com os
produtos alimentares no país. ecossistemas naturais.
Numa comparação com a agricultura

“H
patronal a diferença fica mais
á um risco em justificar a importância clara. O fato de mais de 85% dos
da Agricultura Familiar apenas estabelecimentos familiares ocuparem
pela sua capacidade de competir com a apenas 30,5% da área, enquanto pouco
agricultura patronal. Essa lógica pode levar mais de 11% dos estabelecimentos
a uma armadilha de pensar o seu projeto de patronais ocupam quase 68% das terras
ilustra a pressão diferenciada desses
desenvolvimento nos mesmo termos que o
dois segmentos sobre os solos, matas e
agronegócio, usando as mesmas tecnologias recursos hídricos.
e racionalidade econômica. (...) Que impõe a
padronização e destruição da diversidade de
formas de organização social e cultural.”

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Arquivo Revista Agriculturas - experiências em Agroecologia Arquivo MEC

Do ponto de vista econômico, os O aumento dos problemas enfrentados


custos ambientais da agricultura nas grandes cidades tem levado à busca
patronal quase nunca são computados de modos de vida mais saudáveis, a
nas planilhas de custos de produção valorização de alimentos produzidos
destes estabelecimentos, trazendo à sem o uso de agrotóxicos, de produtos
tona uma falsa lucratividade destes. artesanais, além do crescente desejo de
Se os custos com recuperação dos um maior contato com a natureza. Essa
recursos hídricos, poluídos pela tendência tem resultado na valorização
intensa utilização de agroquímicos da tradição da agricultura familiar e no
(inseticidas, herbicidas, etc..) e os surgimento de novas oportunidades de
gastos com manejo e recuperação dos trabalho no meio rural. Sousa & Costa
solos, degradados após a mecanização (2002) demonstram que na maioria das
pesada e intensiva fossem incluídos, vezes a busca por melhor qualidade
este tipo de agricultura se inviabilizaria de vida nas cidades não passa de uma
(PRIMAVESSI, 1997). ilusão e muitas famílias que passam
por esta experiência, hoje buscam uma
Por isso, pode-se afirmar que os danos volta a sua realidade anterior.
ambientais causados pela agricultura
familiar são infinitamente menores do Por tudo isso, a agricultura familiar
que os grandes estabelecimentos de é reconhecida como importante
soja, cana-de-açúcar, dendê, eucalipto, categoria social, responsável por parte
pecuária. No entanto, não se pode significativa das dinâmicas rurais e de
desconsiderar que, em muitas regiões, grande relevância na articulação rural-
a agricultura familiar também vem urbana, especialmente em municípios
adotando uma matriz tecnológica de pequeno porte. Isso significa dizer
degradante ao meio ambiente, o que que a componente cultural do modo de
deve ser melhor refletido por estes vida rural, em especial da agricultura
sujeitos e suas organizações. familiar, tem ganhado relevância
na busca de um novo modelo de
Além dos aspectos ligados à desenvolvimento.
produção, a cultura, a tradição e a
identidade são outras contribuições
importantes da agricultura familiar ao
desenvolvimento.

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5. Autonomia relativa risco em justificar a sua importância


e manutenção da diversidade apenas pela sua capacidade de competir
tecnológica e produtivamente com a
Reafirmar a importância de construir agricultura patronal. Essa lógica pode
um projeto de desenvolvimento da levar a uma armadilha de que o agricultor
agricultura familiar que reforce sua familiar deve pensar o seu projeto de
autonomia em relação ao mercado e à desenvolvimento nos mesmo termos
organização da produção capitalista é que o agronegócio, usando das mesmas
fundamental, pois rompe com a lógica tecnologias e da mesma racionalidade
da homogeneização predominante. econômica. Ou seja, a agricultura familiar
Vários autores já demonstraram que a para poder competir deveria passar a
eficiência da produção capitalista em seu produzir apenas pensando na lógica do
processo histórico deu-se pelo caminho mercado, rendendo-se ao monocultivo,
da padronização e da destruição da ao uso de pacotes tecnológicos
diversidade. Foi assim na grande indústria insustentáveis e negando sua cultura e
e, essa tem sido a preocupação central da seus saberes próprios.
produção capitalista do campo.
Por isso, a defesa de um projeto de
A partir dessa lógica, a agricultura desenvolvimento com ampliação da
capitalista tem buscado eliminar a sua autonomia da agricultura familiar
dependência de fatores naturais (clima, deve ir além da mera competição
solos, variedade de plantas e animais, econômica, levando em consideração
etc), pois estes são geradores de uma todos os outros aspectos sócio-culturais
diversidade de situações ecológicas e ecológicos que estão envolvidos nas
e sociais. Essa eliminação tem sido diversas formas sociais de produção
tentada com o uso crescente de insumos embutidas nessa categoria. Nessa
industriais na agricultura (máquinas, direção, Bartra (2007) afirma que para
fertilizantes químicos, irrigação, contestar a tendência à exclusão no
hidroponia, transgênicos, etc) para campo promovida pelo agronegócio
reduzir o papel da natureza na produção. já não basta reafirmar a importância
Com isso, reduz-se também a importância quantitativa da produção familiar.
dos saberes acumulados pelos Negar a voracidade homogenizadora
agricultores familiares, que ao longo dos mercados e engajar-se numa
de gerações foram sendo aprimorados luta política pelo reconhecimento
para que estes pudessem adaptar sua da capacidade que a racionalidade
forma de produzir e de viver a cada societária e produtiva camponesa tem
realidade específica. Foi esse processo para o chamado ‘desenvolvimento
que permitiu não apenas uma agricultura sustentável também é necessário.
ecologicamente mais diversificada e
adaptada, mas também uma grande Assim, tanto a diversidade de formas
diversidade de formas de organização sociais e culturais, como a diversidade
social e cultural. ecológica e tecnológica da sua produção
são características da agricultura familiar.
Por isso, embora seja fundamental Mas, ao mesmo tempo, a manutenção e
evidenciar que no Brasil a produção ampliação dessas diversidades são o seu
familiar é a maior responsável pela maior desafio, já que toda a tendência
produção de alimentos e pelos postos da sociedade atual é da homogeneização
de trabalho no campo brasileiro, há um e padronização.

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Arquivo MEC

6. Bibliografia SOUSA, Romier da Paixão & COSTA,


Rosana Gisele Cruz Pinto da. O Impacto
INCRA/FAO. Novo retrato da do Processo Migratório Rural na
agricultura familiar no Brasil: o Brasil Formação dos Quintais Urbanos: O
redescoberto. Brasília: Convênio Estudo de Caso da ocupação do Riacho
INCRA/FAO, 2000. Doce/Belém-Pa. In: Congresso da
Associação Latinoamericana de Sociolia
OLAIDE, Alicia Ruiz. Agricultura Familiar Rural, 2002, Porto Alegre, 2002.
e Desenvolvimento Sustentável.
Disponível em www.ceplac.gov.br/ WANDERLEY, Maria de N B. Raízes
radar/artigos. Acessado em 26 de históricas do campesinato brasileiro.
dezembro de 2007. Anais do II Encontro de Pesquisa sobre
a Questão Agrária nos Tabuleiros
PRIMAVESSI, Ana. Agroecologia, Costeiros de Sergipe: Agricultura
Ecosfera, Tecnosfera e Agricultura. São Familiar em debate. Aracaju: Embrapa,
Paulo: Nobel, 1997. 1997.

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