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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ


CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS

O ENFERMEIRO, A LINGUAGEM E O CUIDADO DO OUTRO: UM


ESTUDO REALIZADO COM ENFERMEIROS DO HOSPITAL
UNIVERSITÁRIO DO OESTE DO PARANÁ

Cascavel – Paraná
2005
11 11

SEBASTIÃO CALDEIRA

O ENFERMEIRO, A LINGUAGEM E O CUIDADO DO OUTRO: UM


ESTUDO REALIZADO COM ENFERMEIROS DO HOSPITAL
UNIVERSITÁRIO DO OESTE DO PARANÁ

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado em Letras, área de concentração
em Linguagem e Sociedade, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná
Linha de Pesquisa: Linguagem e Cultura
Orientador: Jacó Fernando Schneider
Co–orientadora: Carmem Célia Barradas
Correia Bastos

Cascavel - Paraná
2005
12 12

SEBASTIÃO CALDEIRA

O Enfermeiro, a Linguagem e o Cuidado do Outro: Um estudo realizado


com enfermeiros do Hospital Universitário do Oeste do Paraná

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras, área de


concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, para obtenção do título de mestre.
Linha de Pesquisa: Linguagem e Cultura.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________
Prof. Dr. Jacó Fernando Schneider
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Orientador

______________________________________________
Profa. Dra. Carmen Célia Barradas Correia Bastos
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE
Co-orientadora

______________________________________________
Profa. Dra. Marieta Fernandes Santos
Centro Universitário de Maringá – CESUMAR

_______________________________________________
Prof. Dr. Wander Amaral Camargo
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
13 13

Cascavel, 28 de novembro de 2005

Dedico em especial,

Aos meus pais José (in memorian) e Amália pelo


alicerce familiar adquirido para enfrentar as
coisas do mundo sempre de cabeça erguida e
inspirado pelo esforço e pela honestidade;

Aos irmãos, cunhadas e sobrinhos,


especialmente a Cida, que sempre percebeu e
sentiu de perto minhas angústias e me dizia:
14 14

“Tenha paciência Tião, você sempre chegou lá e


não é dessa vez que vai ser diferente”.

Às amigas Rosa e Maristela, que me apoiaram nos momentos em que pensava em


desistir e que enxugaram muitas vezes as minhas lágrimas frente às questões da
pesquisa, do trabalho de enfermeiro e docente e, principalmente, nas questões
emocionais que me acompanharam nessa trajetória.

Agradeço de coração,

A Deus e ao meu anjo da guarda, âncoras em que me apóio sempre que minha estrutura
balança.

Ao meu orientador, Enfermeiro com orgulho, Professor Doutor Jacó Fernando Schneider, que
soube, com a sua competência, sabedoria e paciência, nortear-me para alcançar o objetivo
proposto nesta pesquisa e principalmente soube me entender quando percebia minhas
limitações e dificuldades tanto na questão científica quanto nas questões pessoais, sendo estas
últimas as que me fazem admirá-lo sempre pelo ser humano iluminado que é, desde que o
conheci na minha graduação.

À Carmen Célia Barradas Correia Bastos, minha Co-orientadora, que lançou seu olhar
fenomenológico enquanto educadora e que, com carinho, deu seu apoio e rica contribuição na
pesquisa desenvolvida e que, depois que a conheci pessoalmente, passei a admirá-la também
pelo ser humano maravilhoso que é.
15 15

À banca examinara que, além do meu Orientador e Co-orientadora, foi composta pela
Professora Doutora Marieta Fernandes Santos, Professor e Doutor Wander Amaral Camargo
e pela suplente Professora e Doutora Tânia Maria Rechia.

Aos docentes e colegas do Colegiado do Curso de Enfermagem e aos responsáveis pelas


instâncias superiores do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde – CCBS e Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação - PRPPG da UNIOESTE, o meu muito obrigado por concederem a
minha liberação parcial para cursar esse mestrado.

Aos alunos da primeira série do Curso de Enfermagem de 2004, da UNIOESTE, que


acompanhei e a eles transmiti meus conhecimentos durante o meu estágio de docência, o meu
muito obrigado por terem aceitado ser elementos fundamentais nesse processo.

Aos responsáveis pelo serviço de Enfermagem do Hospital Universitário do Oeste do Paraná –


HUOP, especialmente aos enfermeiros sujeitos dessa pesquisa, que se dispuseram a contribuir
e despertaram grande interesse frente à temática pesquisada, o meu muito obrigado por serem
os responsáveis pela essência do fenômeno deste estudo – A Linguagem e O Cuidado do
Outro.

A todos os amigos e colegas, funcionários da UNIOESTE e do HUOP que, por serem tantos,
não citarei aqui os nomes, mas tenham certeza que estão bem aqui do lado esquerdo do peito,
vocês que indiretamente contribuíram para o alcance desse objetivo de ser mestre
16 16

“O uso que o homem fará de seu corpo é transcendente


em relação a esse corpo enquanto ser simplesmente
biológico.”
(Merleau-Ponty, 1994, p.
257)
RESUMO: O interesse por esta investigação se deu devido a minha inquietação
enquanto docente e enfermeiro e pelo número reduzido de pesquisas sobre a
temática linguagem e o cuidado do outro no contexto da enfermagem. Acredito
ser este estudo relevante para os profissionais de saúde nos diversos campos de
atuação, possibilitando uma melhor compreensão, especificamente sobre o
17 17

cuidado do outro. Esta pesquisa tem por objetivo investigar o enfermeiro sobre
como o mesmo compreende a linguagem e o cuidado do outro. Ao pesquisar as
questões da linguagem, da corporeidade e do cuidado do outro, além de fazer
uma abordagem histórica e conceitual em alguns autores, optei por um
embasamento teórico metodológico no universo da fenomenologia em Maurice
Merleau-Ponty, que trata aspectos da linguagem, do corpo e da corporeidade.
Para o referido autor, o método fenomenológico procura descrever e
compreender os fenômenos, os processos e as coisas a partir de sua essência. No
entanto, para que houvesse de fato a compreensão sobre a linguagem e o
cuidado do outro no contexto da enfermagem, se fez necessária uma pesquisa de
campo baseada numa atitude fenomenológica a fim de se chegar à essência
expressa nas descrições dos enfermeiros. Para tanto, foram realizadas
entrevistas com 10 enfermeiros que atuam no serviço de enfermagem do
Hospital Universitário do Oeste do Paraná – HUOP, em Cascavel, no estado do
Paraná, com uma questão norteadora: “Qual a sua compreensão sobre a
linguagem e o cuidado do outro no contexto da enfermagem?” As descrições
obtidas proporcionaram uma análise que trouxe à luz a essência do fenômeno
estudado, a linguagem e o cuidado do outro. Foi possível apreender, da
compreensão dos enfermeiros, que o paciente, enquanto ser-cuidado, não é
apenas um corpo no aspecto psicobiológico, mas corpo como resultante das
questões sociais e culturais, corpo como algo indivisível vinculado ao ser como
ser-no-mundo, ser-aí, ser-com-o-outro. Esta pesquisa contribuirá para a
formação tanto dos enfermeiros em seu campo de atuação no cuidado do outro,
como para os docentes e também profissionais da saúde e, principalmente, aos
graduandos de enfermagem, que muito têm a apreender no universo do cuidado
do outro. Houve a possibilidade de uma reflexão sobre a corporeidade, a
linguagem e o cuidado do outro, a questão da subjetividade e do envolvimento
com o ser cuidado no contexto da atuação do enfermeiro. Ressalta-se que esta
pesquisa não se dá por estanque, pois em uma pesquisa fenomenológica sempre
haverá novos olhares lançados sobre a essência em estudo, que é a linguagem e
o cuidado do outro enquanto corporeidade.

Palavras-chave: Linguagem-Corporeidade-Cuidado do outro-Enfermagem

ABSTRACT: The interest for this investigation emerged from my own worry
as a professor and as a nurse, and also from the reduced number of research
about the language and one’s care themes in the nursing context. I believe this
18 18

study is relevant for health professionals in several areas because it makes a


better understanding about one’s care. This research aims at investigating how a
nurse understands the language and the care. By researching language issues,
corporeity and care, besides making a historical and a conceptual approach
based on some authors, I decided for a theoretical and methodological base in
the universe of the phenomenology in Maurice Merleau – Ponty, who focuses
aspects about language, corporeity and body. For this author, the
phenomenology method tries to describe and understand the phenomenon, the
processes and the things from its essence. However, for an understanding about
language and one’s care in the nursing context, it was necessary a research
based on the phenomenology attitude in order to get to the essence mentioned in
the nurses` descriptions. It was made interviews with 10 nurses who work in the
nursing service of the university hospital in the west side of Paraná – Hospital
Universitário do Oeste do Paraná – HUOP, in Cascavel – Pr. The main question
was “what is your comprehension about language and pacient`s care in the
Nursing context?”. The descriptions provided an analysis which enlightened the
essence of the studied phenomenon, of the language and of someone’s care. It
was possible to learn, from the nurses`s understanding, that patients, while a
cared person, is not only a body in the psycho-biological aspect, but also a body
as a result of social and cultural issues, a body as something indivisible linked
to the self, self in the world and self with others. This research will contribute
for the nurses and professors` education, who have a lot to learn in the universe
of one’s care. I emphasize that this research does not finish here, because a
phenomenology research will always have new visions about the essence of the
study, which is the language and one’s care as a corporeity.

Keywords: language - corporeality - one’s care - nursing.


19 19

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................. 10
CAPÍTULO I
O Corpo, a Corporeidade, a Linguagem e o Cuidado do Outro......................................... 17
CAPÍTULO II
A Fenomenologia...................................................................................................................... 39

O Método Fenomenológico..................................................................................................... 46

O Percurso Metodológico........................................................................................................ 52
CAPÍTULO III
Análise Fenomenológica.......................................................................................................... 59
Compreendendo a linguagem dos enfermeiros numa aproximação à perspectiva de

Merleau-Ponty......................................................................................................................... 72

Considerações sobre as contribuições da pesquisa............................................................... 83

Referências Bibliográficas....................................................................................................... 86

ANEXO 1 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.................................................. 90

ANEXO 2 - Descrições dos sujeitos......................................................................................... 92

ANEXO 3 – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos....................... 113


20 20

APRESENTAÇÃO

A temática sobre a linguagem e o cuidado do outro me despertou interesse

durante a minha caminhada profissional enquanto enfermeiro atuando tanto na

assistência, quanto na docência, por ter observado a forma de cuidado realizada

pelos enfermeiros assistenciais, bem como a linguagem manifesta entre o ser

que cuida e os seres cuidados, sendo esses últimos, na maioria das vezes,

atendidos como seres divisíveis biologicamente, numa visão técnica e

fragmentada, não sendo cuidados enquanto ser-no-mundo.

Enquanto enfermeiro atuante no cuidado do outro, sempre me preocupo

com o atendimento realizado aos pacientes, percebendo que a maioria dos

profissionais tem limitações frente ao cuidado do outro como um todo,

limitações quanto a esse cuidado holístico de que tanto se fala na universidade,

mas que pouco se vê acontecer na prática da enfermagem, cuidado holístico que

hoje posso compreender como corporeidade.

Na docência acompanho alunos em estágios supervisionados tanto em

instituição hospitalar, quanto em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e percebo

ainda a limitação que tenho, bem como a dos enfermeiros frente ao cuidado do

outro, sendo isto o que me despertou para essa pesquisa.


21 21

Nesse contexto, minha inquietação se dá em relação ao enfermeiro que

cuida do outro, sendo o enfermeiro o sujeito da pesquisa proposta, em que

minha indagação parte do seguinte pressuposto: “O enfermeiro, no contexto do

cuidado do outro, ao se propor a compreender o cuidado e a linguagem, estará

de fato comprometido e envolvido com o ser cuidado?”.

Frente a essa indagação, acredito que este estudo é de grande relevância

para os profissionais de saúde nos diversos campos de atuação e possibilitará

uma melhor compreensão, especificamente sobre o cuidado de enfermagem,

meu espaço de atuação enquanto enfermeiro e docente de enfermagem.

Ao compreender a percepção do profissional enfermeiro enquanto ser que

cuida do outro, segundo a perspectiva teórica fenomenológica apresentada por

Merleau-Ponty (1994), busco compreender a linguagem e o cuidado do outro no

aspecto fenomenológico da percepção como um prolongamento da

intencionalidade corpórea. O autor refere-se ao corpo como o meio em que a

expressão se realiza na sua referência ao mundo-vivido, não se limitando apenas

à língua formalmente instituída.

Nesse sentido, o que permeia toda a questão do corpo, da linguagem, e do

cuidado do outro é a corporeidade, sendo essa uma relação biopsicossocial entre

ser que cuida e ser-cuidado e pode ser concebida segundo Polak (1997) citada
22 22

em Labronici (1999), como condição humana e modo de ser, que caracteriza o

homem na existência, o que está contido em toda a dimensão humana.

A compreensão sobre a questão do cuidado, especificamente o cuidado do

outro, independente de suas condições biopsicossociais, bem como a forma com

que o profissional enfermeiro enquanto ser que cuida desempenha seu papel,

propiciará uma possibilidade de lançar um novo olhar, um olhar

fenomenológico sobre a questão do cuidado, bem como do ser que cuida,

aspecto este de grande relevância à pesquisa proposta.

É importante compreender a linguagem do enfermeiro que cuida,

linguagem esta manifesta nas suas descrições, para, a partir de uma análise

fenomenológica, propor ações que vão ao encontro das necessidades dos

profissionais, o que poderá repercutir diretamente na qualidade do cuidado de

enfermagem prestado.

Além do interesse pela pesquisa, no intuito de compreender, a partir das

descrições dos enfermeiros, sobre como estes compreendem a linguagem e o

cuidado do outro, um outro fator relevante é a inexistência de trabalhos voltados

para esta temática sobre o corpo, a linguagem, a corporeidade e o cuidado do

outro no contexto da enfermagem.

Diante do exposto, o objetivo dessa pesquisa é compreender a linguagem

do enfermeiro e o cuidado do outro no contexto da enfermagem.


23 23

Para se chegar a uma compreensão sobre a linguagem e o cuidado do

outro, busco investigar enfermeiros que atuam no serviço de enfermagem no

Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP), sendo essa instituição

vinculada a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus

de Cascavel, Paraná, utilizado como campo para estágios, pesquisa e extensão,

o que facilitou o acesso tanto à instituição, quanto aos enfermeiros pesquisados,

o que será detalhado no percurso metodológico.

É importante ressaltar que este está sendo o meu primeiro contato com a

fenomenologia, o que, desde o início, me angustiou e ainda me angustia, frente

às leituras densas com o intuito de compreensão sobre a fenomenologia e o

método fenomenológico, para poder chegar à essência do fenômeno estudado.

A fenomenologia, além de ser um método teórico-filosófico, norteia o

pesquisador na metodologia utilizada na pesquisa, sendo que este método nos

leva à reflexão e à compreensão do fenômeno em estudo.

Diante do exposto e frente às minhas inquietações explícitas na

apresentação, busco, no desenvolvimento dessa pesquisa, traçar um percurso

metodológico em que, no primeiro capítulo, faço uma abordagem conceitual

sobe o corpo, a corporeidade, a linguagem e o cuidado do outro, no intuito de

compreendê-los sob a luz de um referencial teórico embasado em autores que

pesquisam sobre a temática.


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No segundo capítulo faço uma abordagem sobre a fenomenologia, para,

posteriormente, discutir sobre o método fenomenológico e o percurso

metodológico, em que descreverei sobre a região do inquérito e os sujeitos

pesquisados. A entrevista, utilizada como instrumento de coleta de dados para

obtenção das descrições dos enfermeiros, foi realizada a partir de uma questão

norteadora: “Qual a sua compreensão sobre a linguagem e o cuidado do

outro no contexto da enfermagem?.”

Acredito que, com o esclarecimento do fenômeno pesquisado, será

possível, embasado na fenomenologia e no método fenomenológico, trazer à luz

a essência contida na aparência do cuidado do outro na assistência de

enfermagem.

No terceiro capítulo, procuro compreender as descrições dos enfermeiros

por meio de uma análise fenomenológica, a partir das unidades de significado,

chegando-se à estrutura do fenômeno situado, sendo essa uma análise

compreensiva das descrições dos enfermeiros sobre o cuidar do outro, na

tentativa de apreender a compreensão do enfermeiro sobre a linguagem e o

cuidado do outro no contexto da enfermagem.

Cumpridas as etapas anteriores, no momento seguinte da análise faço uma

interlocução das idéias dos enfermeiros enquanto sujeitos da pesquisa com a


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concepção teórica de Maurice Merleau-Ponty sobre as questões da linguagem e

do cuidado do outro no contexto da enfermagem enquanto corporeidade.

E, por fim, nas considerações sobre as contribuições da pesquisa,

volto-me para o que emergiu nas descrições dos enfermeiros sobre a linguagem

e o cuidado do outro no contexto da enfermagem, vislumbrando com isso

possibilidades no cuidado de enfermagem, embasado na compreensão dos

enfermeiros, apreendida durante o desenvolvimento dessa investigação.

Vislumbro a contribuição desta pesquisa para os enfermeiros que atuam

no serviço de enfermagem, bem como para outros profissionais de saúde, para

os graduados de enfermagem, e principalmente, na docência que atua na

formação de enfermeiros realmente comprometidos em um cuidado de

enfermagem que trata o paciente como um ser holístico, como um todo, numa

perspectiva de corporeidade.

Quero destacar que, além de qualquer outro pensamento, o pensamento

filosófico de Maurice Merleau-Ponty me estimulou na tentativa de compreender

a linguagem e o cuidado do outro no tocante à corporeidade enquanto

possibilidade de investigação.
26 26

CAPÍTULO I

O CORPO, A CORPOREIDADE, A LINGUAGEM E O CUIDADO DO

OUTRO

Neste primeiro capítulo faço uma abordagem sobre o corpo, a

corporeidade, a linguagem e o cuidado do outro com a intencionalidade de

fundamentar, no primeiro momento, questões de aspectos conceituais, e para

tanto, é preciso compreender a concepção da temática embasado em autores


27 27

como Bakhtin (2000), Boff (1999), Maluf (2002), Gonçalves (2002), Labronici

(1999), Carmo (2000), Aranha e Martins (1996), Martins (1992), e Merleau-

Ponty (1994), sendo esse último o autor escolhido, no referencial teórico-

metodológico da fenomenologia, para dar embasamento a esta pesquisa.

Um dos autores estudados que aborda a questão do corpo e da

corporeidade é Mikhail Bakhtin (2000), que num momento de sua carreira,

permeou os caminhos da fenomenologia, em que aborda as concepções do

corpo e da corporeidade, como visto na obra intitulada: A Estética da Criação

Verbal.

Diante do exposto, procuro na introdução desse capítulo fazer uma

abordagem de alguns aspectos conceituais de corpo e corporeidade no

referencial fenomenológico do referido autor.

Bakhtin (2000, p. 43), refere sobre as diferenças existentes no eu e no

outro e fala de corpo interior e corpo exterior, sendo assim:

Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e
saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora
de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo
inacessíveis ao seu próprio olhar, a cabeça, o rosto, a expressão do
rosto, o mundo ao qual ele dá as costas [...] acessíveis a mim e
inacessíveis a ele [...] é possível reduzir ao mínimo essa diferença dos
horizontes, mas, para eliminá-la totalmente, seria preciso fundir-se em
um, tornar-se um único homem. [...] Esse excedente constante de
minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro é
condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo.
28 28

Este autor diz também que o homem se vê no mundo como sendo um

personagem principal e os personagens secundários, ou seja, os outros, são os

que apresentam uma nitidez apurada, porque se pode perceber no outro as

expressões faciais, as posturas, os gestos e a linguagem corporal e, nesse

contexto, o eu, a pessoa capaz de observar, não pode ser vista da mesma forma

por ela própria, porque o personagem principal não vive no mesmo plano dos

outros personagens.

Bakhtin (2000) vê o aspecto físico, a expressão do corpo como vividos

pelo eu interior e diz que os corpos interior e exterior são corpos à parte,

diferenciados pelo que representam, mas que se unem para formar o todo, e,

nesse sentido:

A exterioridade está ligada à percepção interna, e é captada das


sensações externas, ligadas principalmente ao campo da visão. Há
certas respostas que só são fornecidas pela percepção interna, que
assegura também a unidade das imagens fragmentárias que tenho da
minha expressividade externa e as traduz em linguagem interna
(BAKHTIN, 2000, p. 47).

Conforme o referido autor, a percepção do próprio eu encontra-se na

fronteira do mundo visto, observado. Assim, a exterioridade, o corpo externo,

não é expressa enquanto objeto totalmente externo, em meio aos outros objetos.

O pensamento próprio é que é capaz de situar o corpo no mundo exterior entre

os demais objetos.
29 29

O meu corpo, para Bakhtin (2000), é o corpo interior, enquanto o corpo

do outro para mim é o corpo exterior. Sendo assim, todos nós somos dotados de

um corpo interior, que faz parte da nossa autoconsciência, com sensações

orgânicas diversas e internas, de desejos e necessidades que se processam

somente nesse interior.

O corpo exterior, ou seja, o corpo do outro e seu valor, que atualizo de

modo intuitivo-visual, me é dado de maneira totalmente imediata. É aquele que

eu sei que existe, mas que serve de objeto para quem o observa e visualiza,

porque para o autor, somente o observador é capaz de visualizar esse corpo de

forma fragmentária, sem utilizar-se dos órgãos dos sentidos. Dessa forma, o

corpo é visto conforme o que ele representa, pois, por exemplo, a percepção que

a mãe tem do filho é diferente da percepção do pai ou de outros, porque as

relações são diferentes entre eles, e o corpo nesse contexto é visto

individualizado.

A percepção, a linguagem que se faz do outro, define esse corpo como

não somente biológico, mas também psicológico e social, ou seja, um corpo

todo, único, interno e externo.

Para Bakhtin (2000), apenas o outro é encarnado para mim em termos de

valores e de estética. A esse respeito, o corpo não é algo que baste a si mesmo,

pois tem necessidade do outro, de outro que o reconheça e lhe proporcione sua
30 30

forma. Apenas o corpo exterior – a carne pesada - é dado ao homem, o corpo

exterior do outro é apenas pré-dado e deve ser objeto de uma atividade criadora.

Quanto ao corpo interior, ele é percebido como um valor biológico, visto

que, para Bakhtin (2000), esse valor do corpo sadio é vazio, carente de

autonomia, e ele não gera nada de produtivo na criação, nada significante no

domínio da cultura, pode apenas refletir outro valor, de natureza diferente,

particularmente um valor estético, ao passo que ele próprio se situa aquém da

cultura.

Quando falamos em corpo não devemos pensar no sentido usual da

palavra, que contrapõe corpo à alma, matéria a espírito. Corpo seria uma parte

do ser humano e não sua totalidade. Nas ciências contemporâneas prefere-se

falar de corporeidade para expressar o ser humano como um todo vivo e

orgânico. Fala-se de homem-corpo, homem-alma para designar dimensões totais

do humano. Essa compreensão deixa para trás o dualismo corpo-alma e

inaugura uma visão mais globalizante. Entre matéria e espírito está a vida que é

a interação da matéria que se complexifica, se interioriza e se auto-organiza.

Nesse sentido, corpo, para Boff (1999), é sempre animado. “Cuidar do

corpo de alguém”, dizia um mestre do espírito, “é prestar atenção ao sopro que

o anima”. Conforme este autor, podemos dizer que o corpo é aquela porção do

universo que nós animamos, informamos, conscientizamos e personalizamos. É


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formado pelo pó cósmico, circulando no espaço interestelar há bilhões de anos,

antes da formação das galáxias, das estrelas e dos planetas, pó esse

provavelmente mais velho que o sistema solar e a própria terra. O ferro que

corre pelas veias do corpo, o fósforo e o cálcio que fortalecem os ossos e os

nervos, os 18% de carbono e os 65% de oxigênio mostram que somos

verdadeiramente cósmicos.

Corpo é um ecossistema vivo que se articula com outros sistemas mais

abrangentes, e, nesse sentido:

Pertencemos à espécie homo que pertence ao sistema terra, que


pertence ao sistema galáctico e ao sistema cósmico. Nele funciona um
sistema interno de regulação de frio e de calor, de sono e de vigília,
dos fenômenos da digestão, da respiração, das batidas cardíacas, entre
outros e afirma que o corpo vivo é subjetividade. Já se disse que “o
corpo é nossa memória mais arcaica”, pois em seu todo e em cada uma
de suas partes guarda informações do longo processo evolutivo. Junto
com a vida do corpo se realizam os vários níveis da consciência (a
originária, a oral, a anal, a social, a autônoma e a transcendental), onde
estas memórias se expressam e se enriquecem interagindo com o meio
(BOFF, 1999, p. 143).

Conforme Maluf (2002, p. 88-89),

Um sentido comum às várias abordagens antropológicas sobre o corpo


– por diferentes e às vezes antagônicas que possam ser – é o de pensar
o corpo como uma construção social e cultural, e não somente como
um dado natural. A antropologia busca desnaturalizar o que é visto
como dado pela natureza – seja isso uma regra de comportamento e de
classificação social (a proibição do incesto por exemplo), seja a
própria noção de corpo – e mostrar as dimensões sociais e simbólicas
32 32

desses fenômenos. Esse ponto de partida é importante na medida em


que muitas vezes o “corpo” é tomado, mesmo por estudiosos e
pesquisadores no campo das ciências humanas, como o reduto da
natureza em um ser humano genérico, obedecendo a instintos e
necessidades biológicas, e não como produto e produtor de regras e
valores culturais. A literatura antropológica tem mostrado como esse é
apenas um dos “paradigmas fundamentais” das representações sobre o
corpo, mas não é único.

Para Gonçalves (2002), o corpo é o veículo do ser-no-mundo. O corpo é o

lugar onde a transcendência exterior do sujeito articula com o mundo. O

transcender, o ir além, significa ultrapassar questões subjetivas onde, no

contexto estudado, enfermeiro e paciente, enquanto ser que cuida e ser-cuidado,

possam interagir numa relação de “intersubjetividade”.

Podemos compreender, embasado em Gonçalves, que:

O corpo, como corpo próprio ou vivido, possui uma intencionalidade


operante que engloba todos os sentidos na unidade da experiência
perceptiva, na qual os sentidos se intercomunicam, abrindo-se à
estrutura de coisa. A integração dos sentidos só pode ser explicada por
ser um único organismo que conhece e se abre ao mundo, com o qual
ele coexiste (GONÇALVES: 2002, p. 66).

Diante do exposto, intersubjetividade, para Martins (1992), é como se

duas pessoas estivessem vendo um mesmo fenômeno, em que participam de

valores presentes nesse mesmo mundo onde as duas perspectivas convergem,

pois as consciências de ambos estão assim em comunicação. Nesse contexto, as


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duas pessoas estão chegando a uma forma pré-pessoal de consciência, onde a

comunicação não apresenta problemas, uma vez que a definição de consciência

refere-se ao significado da verdade de ambos, ou seja, a verdade será construída

a partir da intersubjetividade dessas duas pessoas.

Corpo é o ponto de partida para todo e qualquer discurso referente ao

homem; corpo não é fonte complementar das nossas práticas, senão o núcleo

irradiante, principal e único; corpo é ser de desejos, de necessidades e de prazer,

que ultrapassa, transcende e incorpora ciclos, um após o outro.

Ao olhar as coisas e ao tocá-las, o corpo se percebe, ao mesmo tempo,

como vidente e sensível. O corpo realiza uma reflexão, segundo Carmo (2000),

o que, até então, era atributo da consciência. O corpo do outro é coisa

percebida, numa relação de co-percepção. A percepção do outro se dá pela

empatia de duas corporeidades que se comunicam não como um “eu penso”,

mas como um “eu sinto”.

Para Merleau-Ponty (1994), ao pensar no corpo enquanto corporeidade,

entendemos o mesmo como sendo também o resultado de uma construção social

e de cultura, da intersubjetividade e da experiência corporal, onde o corpo está

vinculado ao ser numa relação indivisível.

Para a fenomenologia, especificamente a de Merleau-Ponty, segundo

Martins (1992), é preciso considerar o outro humano no mundo, pois, se somos


34 34

uns para os outros ou uns-com-os-outros, precisamos, necessariamente, ter uma

aparência mútua, não apenas uma aparência externa, mas uma aparência ou

perspectiva um do outro, onde a minha visão dos outros, bem como a visão que

os outros tem de mim é que permite nossa posição no mundo.

Merleau-Ponty (1994) define corpo também como espaço expressivo,

conjunto de significações vividas, não objeto entre os demais, porque ele é

capaz de ver, de sofrer, de pensar, de expressar no olhar, pelo olhar, pela

palavra, bem como pela lacuna deixada por ela. O corpo é nosso meio geral de

ter o mundo, pois ele me abre ao mundo e nele me põe em situação e em

comunicação com o tempo e o espaço, com o mundo visto não mais como soma

de objetos determinados, mas como horizonte latente de nossa experiência,

presente sem cessar.

O corpo é o espelho do nosso ser, é a história de cada um de nós

construída durante toda a existência; é o veículo do ser no mundo no qual são

armazenadas todas as significações vividas e através do qual vejo, interajo,

percebo e sou percebido.

Assim, referindo-se ao corpo e à relação sujeito-objeto, Gonçalves (2002,

p. 69) citando Merleau-Ponty diz:

A unidade da experiência corporal só pode ser devidamente


compreendida quando for superada a cisão sujeito-objeto, admitindo-
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se que o corpo sinérgico não é um objeto, que reuniria um feixe de


“consciência” aderente aos olhos, às mãos [...] , nem a consciência
seria a unidade sintética de uma multidão de consciências de [...]”,
mas sim, esta se apóia e se sustém na unidade pré-reflexiva e pré-
objetiva do corpo.

O corpo é objeto de muitas pesquisas em diversos campos de atuação, nas

ciências sociais, humanas, exatas e, principalmente, da saúde. Mas, para nós que

atuamos na área da saúde, talvez seja mais fácil visualizar o corpo como objeto

biológico, químico e psicológico, não sendo comum visualizá-lo como um

objeto social com relações que nele interferem.

A corporeidade, como uma relação biopsicossocial, pode ser concebida

como:

Condição humana e modo de ser, que caracteriza o homem na


existência, é o contido em toda a dimensão humana. É ser flexível, é
estar disponível e aberto para o outro e para o mundo; é o resgate do
corpo, é o existir, é a história de cada um de nós, que se funde com o
outro, que também é corpo vivente, que traz na sua bagagem cultural
suas crenças, seus valores e sua visão de mundo, num processo de
recruzamento (POLAK (1997) apud LABRONICI, 1999, p.18).

O corpo é percebido como corporeidade, como fusão de horizontes

encadeados pelas experiências vivenciadas. É assim que o corpo se faz presente

no mundo mediante uma presença natural, ou seja, pelo “estar aí”, ou como uma

presença intencional no sentido de “ser aí”; na primeira condição está no mundo

numa situação passiva; pela segunda, o homem está no mundo na condição


36 36

fundamentalmente ativa, a de “ser-no-mundo”; é um estar aqui e agora espaço-

temporal, e a dupla presença, natural e intencional do homem no mundo só é

possível mediante o corpo.

A relação homem-mundo surge quando o sujeito assume o corpo dado, ou

o corpo natureza, como corporeidade pela qual se torna completamente humano.

Quando o sujeito assim se assume, se constitui a intensidade subjetiva do corpo,

que se exprime na corporeidade, que restrutura corporalmente o espaço-tempo

físico-biológico, com o espaço tempo psíquico; é na intencionalidade

intersubjetiva do corpo que se restrutura corporalmente o espaço-tempo social e

cultural do homem e o torna corporeidade.

Merleau-Ponty (1994) enfatiza que o corpo exprime a existência total da

pessoa que nele se realiza. O corpo, segundo o autor, não é objeto para um “eu

penso”: é o conjunto de significações vividas; ele vê o corpo vivente como

corporeidade.

Para o mesmo autor, o homem enquanto corporeidade traz em si uma

contradição, a de ser homem (corpo vivente, ser cultural), e ser animal (corpo

dado). Essa duplicidade expressa o verdadeiro sentido da presença do homem

enquanto corpo e seu relacionamento com o mundo, mundo que não é aquilo

que penso, mas aquilo que vivo, pois sou aberto ao mundo, comunico-me

indubitavelmente com ele, mas não o possuo; ele é inesgotável.


37 37

Para Boff (1999), a corporeidade é o conceito que exprime a totalidade do

ser humano enquanto é um ser vivo, parte da criação e da natureza. Não se deve

confundir com corporalidade, sendo este segundo termo de origem

antropológica dualista que interpreta o ser humano como a união de duas partes

distintas, o corpo e a alma.

Corporeidade pode ser concebida, no entanto, como mais que a

materialidade do corpo, que o somatório de suas partes, pois é o contido em

todas as dimensões humanas, não sendo algo objetivo, pronto e acabado, mas

processo contínuo de redefinições. Corporeidade é o resgate do corpo, é o

deixar fluir, falar, viver, escutar, permitir ao corpo ser o ator principal, é vê-lo

em sua dimensão realmente humana. Corporeidade, no entanto, é o existir, é a

minha, a sua, é a nossa história.

No estudo que Merleau-Ponty (1994) faz do corpo, este aborda as

questões da linguagem, especificamente a linguagem do corpo, considerando-a

como um prolongamento da intencionalidade corpórea, onde a linguagem, como

gesto corporal, está impregnada no corpo.

Na palavra, uma idéia nunca é dada em sua transparência, permanecendo

um sentido imanente que a transborda, que transcende o pensamento, do qual

ela não é um mero instrumento.


38 38

A linguagem também tem a função de fazer as essências existirem em

uma separação que, na verdade, é apenas aparente, já que é pela linguagem que

as essências repousam na vida antepredicativa da consciência; a posse da

linguagem é compreendida como a simples existência efetiva de imagens

verbais, quer dizer, de traços deixados em nós pelas palavras pronunciadas ou

ouvidas.

Sendo assim, a linguagem para Merleau-Ponty (1991), exprime tanto pelo

que está entre as palavras, ou seja, nas lacunas, como pelas próprias palavras, e

pelo que não é dito, pela linguagem do corpo, tanto quanto como pelo que é

dito.

É importante que, no processo de cuidar e ser cuidado ocorra um

verdadeiro enfoque da linguagem como uma possibilidade de compreensão do

paciente pelo enfermeiro, e conforme Beaini (1981), a linguagem permeia todas

as ações de cuidado.

Segundo Merleau-Ponty (1991), as palavras ouvidas, e depois repetidas

no processo de aprendizagem da língua materna, inscrevem-se no cérebro como

um conjunto de “imagens verbais” permanentemente disponíveis para novas

reutilizações.

As palavras proferidas ou ouvidas são pregnantes de uma significação

própria, autônoma; basta uma hesitação, uma alteração da voz ou a escolha de


39 39

uma sintaxe diferente para alterá-la, porque toda a expressão aparece como

vestígio, todas as idéias só são dadas em transparência.

A linguagem também pode ser entendida enquanto gesto linguístico, e,

nesse sentido, linguagem é refletir a questão da identidade da coisa e, conforme

Merleau-Ponty (1994), a identidade da coisa através da experiência perceptiva é

apenas um outro aspecto da identidade do corpo próprio.

Não podemos compreender os gestos do outro por um ato de

interpretação intelectual, pois a comunicação entre essas duas consciências não

está fundamentada no sentido comum de suas experiências. É por meu corpo

que compreendo o outro e também é por ele que percebo as coisas e sendo

assim, o sentido do gesto se funde com a estrutura do mundo.

O gesto linguístico, no contexto da linguagem, desenha ele mesmo o seu

sentido, primeiramente porque essa idéia surpreende, mas somos obrigados a

chegar a ela se queremos compreender a origem da linguagem, e, para Merleau-

Ponty (1994, p. 253):

Primeiramente parece impossível dar às palavras, assim como aos


gestos, uma significação imanente, porque o gesto se limita a indicar
uma certa relação entre o homem e o mundo sensível, porque esse
mundo é dado ao espectador pela percepção natural, e porque, assim, o
objeto intencional é oferecido à testemunha ao mesmo tempo em que
o próprio gesto.
40 40

O gesto verbal nesse sentido visa uma paisagem mental que, em primeiro

lugar, não está dada a todos e que ele tem por função justamente comunicar,

sabendo-se que as significações disponíveis e os atos de expressão anteriores

estabelecem, entre os sujeitos falantes, um mundo comum ao qual a fala atual e

nova se refere, assim como o gesto ao mundo sensível.

A linguagem, conforme Merleau-Ponty (1994), está influenciada pela

realidade enquanto gesto linguístico e os sentidos que ela institui, embora não

se esgotem na verificação das proposições, devem ter sempre uma certa relação

com os fatos. Mas a linguagem também cria o mundo. Não cria no sentido

idealista, entretanto produz novas formas compreensivas de ser que não estão

dadas na verificação formal dos objetos, e com isso estimula modos plurais de

criação humana e de transformação social.

Todo o pensamento é expresso pela linguagem, a qual não deixa qualquer

espaço livre para mais nada. Sempre que se quiser captar o pensamento, depara-

se apenas com material verbal. Como se verifica, não existe a possibilidade de

haver inscrita no ser uma espécie de texto original de que a linguagem seria

apenas a tradução ou uma versão cifrada. Não existe uma correspondência,

ponto por ponto, entre o sentido e as palavras.

Merleau Ponty (1994) diz que a linguagem é opaca. A linguagem apenas

se reconhece a si própria como limite. O sentido surge em função da interação


41 41

dos signos que ficariam reduzidos ou mesmo esvaziados de conteúdo se

separados uns dos outros.

O sentido da linguagem é o que permite ao paciente estar sendo cuidado e

este relacionamento que se estabelece entre o enfermeiro e o ser-cuidado

propicia a linguagem para possibilitar a manifestação do ser paciente, por isso

não devemos partir da linguagem do paciente, mas, sim chegar a ela.

Diante do exposto, a linguagem se dá num processo de recruzamento e de

corporeidade e nesse sentido, buscar investigar a linguagem do enfermeiro abre

um horizonte investigativo no contexto da fenomenologia, horizonte que

permite o avanço em pesquisas sobre a linguagem e o cuidado do outro no

contexto da assistência de enfermagem.

No tocante ao cuidado do outro, como refere Boff (1999), cuidar é muito

mais que um ato; é uma atitude que abrange mais que um momento de atenção,

de zelo e desvelo. Cuidar representa uma atitude de ocupação, preocupação,

responsabilização e envolvimento afetivo com o outro.

O mesmo autor refere que um modo-de-ser não é um novo ser, mas é uma

maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer, e afirma que o

cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano e o modo de ser

cuidado revela, de maneira concreta, como é o ser humano. Sendo assim:


42 42

Sem o cuidado, ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado,


desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se,
definha, perde o sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com
cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo e
por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser
entendido na linha da essência humana (que responde à pergunta: o
que é o ser humano?) (BOFF, 1999, p. 34).

Para Boff (1999), o outro modo de ser-no-mundo se realiza pelo cuidado,

pois pelo cuidado não vemos a natureza e tudo que nela existe como objetos,

porque a relação não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Experimentamos os

seres como sujeitos, como valores, como símbolos que remetem a uma realidade

fontal. A natureza não é muda, ela fala, evoca e emite mensagens de grandeza,

beleza, perplexidade e força.

O ser humano pode escutar e interpretar esses sinais. Coloca-se ao pé das

coisas, junto delas e a elas sente-se unido. Não existe, senão co-existe com

todos os outros. A relação não é de domínio sobre, mas de con-vivência. Não é

pura intervenção, mas inter-ação e comunhão.

Boff (1999) afirma que cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las

dentro, acolhê-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com,

auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com elas. A razão analítico-instrumental abre

caminho para a razão cordial, o espírito de finesse, o espírito de delicadeza, o

sentimento profundo, porquanto, a centralidade não é mais ocupada pelo logos

– razão, mas pelo pathos–sentimento. E refere ainda:


43 43

Este modo de ser-no-mundo, na forma de cuidado, permite ao ser


humano viver a experiência fundamental do valor, daquilo que tem
importância e definitivamente conta. Não do valor utilitarista, só para
o seu uso, mas do valor intrínseco às coisas. A partir desse valor
substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de
sacralidade, de reciprocidade e de complementaridade (BOFF, 1999,
p. 96).

Sobre o cuidar enquanto processo de construção de conhecimento, este é

uma ação que se dá nas situações de encontro; é resultante do processo de

construção do conhecimento, como momento espaciotemporal; é movimento

bilateral, é o sair de si, o retirar o outro do seu em si, é o projetar-se em direção

ao outro e ao mundo, com respeito, competência, sensibilidade e solidariedade.

Ao perceber o enfermeiro enquanto ser que cuida do outro:

Não poderíamos deixar de colocar que há os enfermeiros que têm


cuidado de menos dos pacientes. “São os descuidados e displicentes.
Normalmente não conseguem ser inteiros no que fazem. Seja porque
perderam seu centro assumindo coisas demais, seja porque não
colocaram todo o empenho no que fazem”. (BOFF, 1999, p. 161-2).

No contexto do enfermeiro enquanto ser que cuida ao trabalhar com o

corpo, segundo Carmo (2000), é preciso estar atento às sensações e à relação

figura-fundo. Sendo o mundo em que estamos imersos inesgotável para a nossa

consciência, sempre haverá um saber latente, secreto, além da nossa percepção,


44 44

pois os objetos não nos são dados por inteiro; nós os vemos por perfis, onde

uma parte se manifesta enquanto a outra se esconde.

Diante disso, nossas sensações, nossos sentidos se dão numa configuração

global, ou seja, numa intercomunicação onde ver é tocar, ouvir é ver, tocar é

ver, numa unidade dos sentidos.

Concordo com o autor citado e acredito que o enfermeiro, ao cuidar do

outro, deve aguçar seus sentidos para a relação figura-fundo, onde ao mesmo

tempo pode haver um desvelar, mas também um velar, sendo este velar aquilo

que o paciente muitas vezes não manifesta por meio da linguagem verbal, mas

pela linguagem do corpo.

No entanto, o ser que cuida e o ser cuidado devem interagir numa relação

de intersubjetividade onde o sensível deve permear essa atitude de cuidar e ser

cuidado, possibilitando dessa forma uma percepção do eu e do outro no mundo.

A concepção do corpo, conforme Polak (1997) citada por Labronici

(1999), vislumbra a possibilidade de nova abordagem para a enfermagem, que

tem o corpo como base de todo o processo de cuidar. Também faz a vinculação

da corporeidade com a prática da enfermagem, abrindo assim possibilidade da

percepção do corpo como referencial teórico, alternativo e criativo do cuidado

em enfermagem.
45 45

Cuidar do outro significa a busca de assimilação criativa de tudo o que

nos possa ocorrer na vida, incluindo compromissos e trabalhos, encontros

significativos e crises existenciais, sucessos e fracassos, saúde e sofrimento.

Somente assim nos transformamos mais e mais em pessoas amadurecidas,

autônomas, sábias e plenamente livres para que a assistência e o cuidado num

sentido de corporeidade possa acontecer de forma satisfatória.

A decisão de trabalhar com os conceitos de enfermagem e de cuidar

decorre de alguns pressupostos: para cuidar é preciso ser presença; para cuidar é

preciso conhecer o outro; as ações de cuidado são construídas na parceria

enfermeiro-paciente e enfermeiro-família.

A enfermagem, considerada no contexto do cuidado do outro, é o saber, o

fazer, o pensar, o sentir comprometidos com a promoção da vida; é processo

contínuo de percepção, de reconstituição, de construção, de reconstrução e de

rearmonização de corpos; é presença, suporte, ajuda, proteção, nutrição; é

empatia que se concretiza no encontro de vidas, de corporeidades.

Conforme Schneider (2001), o cuidado do indivíduo doente no horizonte

do ser enfermeiro encontra-se num mundo inteiramente próprio, vivido no

modo da auto-relação e da relação com o outro, com o paciente, uma pessoa

com características próprias, mas sempre em relação a alguém.


46 46

O referido autor enfatiza que o ser enfermeiro em seu cotidiano não está

simplesmente no mundo, mas está neste mundo com uma maneira de ser que

predomina, a maneira de ser-cuidador, sendo absorvido por esse mundo.

Frente à questão do cuidado, acredito que o cuidar, na concepção de

enfermagem, pode ser delimitado com alguns conceitos principais, como a

percepção, a linguagem e o corpo.

No contexto do cuidado do outro, o enfermeiro precisa estar atento à

questão da linguagem, pois Merleau-Ponty (1994) diz que esta é concebida

como um sistema de diferenciações, no qual se articula a relação do sujeito com

o mundo; é a tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações. Ela

é apenas um acompanhamento exterior do pensamento que é entendido como a

relação consigo, com o mundo e com outrem; estabelece-se, portanto,

concomitantemente nestas três dimensões.

Para nós, enfermeiros, que temos como objeto do nosso fazer o cuidado

do outro, devemos vislumbrar que a linguagem é o elo que possibilita a mútua

coexistência. O sentido constitui a palavra pronunciada por intermédio da

linguagem, abrindo novas possibilidades à nossa experiência.

Na questão da linguagem e do cuidado do outro, o enfermeiro não pode

esquecer que o seu estado emocional, bem como o do paciente, reflete

diretamente no tratamento e na reabilitação do paciente enquanto ser-cuidado. O


47 47

profissional enfermeiro enquanto ser que cuida, frente aos fatores

desencadeantes de desconforto, também precisa estar atento às manifestações da

linguagem, tanto expressa verbalmente, quanto a linguagem do corpo, para

elaborar e propor ações exeqüíveis na assistência prestada, sendo a concepção

de corpo e linguagem elementos importantes na compreensão dessas

manifestações.

No entanto, pode-se dizer que não é possível cuidar e ser cuidado se não

houver uma interação entre o enfermeiro e o paciente, num tocante ao corpo, à

linguagem, ao cuidado, ao sentido, ou seja, à corporeidade.

CAPÍTULO II

A FENOMENOLOGIA

Para uma compreensão sobre a fenomenologia no sentido filosófico,

busco nesse capítulo tecer algumas considerações com aspectos conceituais

numa abordagem histórica, embasado em alguns autores como Husserl (1990),

Giles (1975), Wagner (1979), França (1989), Bicudo (2000), Martins (1992),

Heidegger (1993) e Merleau-Ponty (1994).


48 48

Também faço uma abordagem sobre a fenomenologia enquanto método

da pesquisa, bem como escrevo o percurso metodológico utilizado: o campo da

pesquisa, a escolha dos sujeitos, a técnica da entrevista e a questão norteadora

elaborada e aplicada para obtenção dos depoimentos, bem como o método de

análise fundamentado em Giorgi (2003).

A fenomenologia para Husserl (1990) é, desde século XX, um nome que

se dá a um movimento cujo objetivo é a investigação direta e a descrição de

fenômenos que são experienciados pela consciência, sem teorias sobre a sua

explicação causal e tão livre quanto possível de pressupostos e de preconceitos.

Para Husserl (1990), um bom começo no estudo da fenomenologia é a

definição da palavra fenômeno. A palavra provém do grego phainomenon,

particípio presente de phainesthai, que significa parecer. A fenomenologia é,

de fato, uma investigação que busca a essência inerente da aparência.

O referido autor aponta que a fenomenologia é uma disciplina que

descreve o que se dá, o que nos chega em experiência sem pré-concepções

obscuras ou especulações hipotéticas; seu lema é: “em direção às coisas em si”,

mais do que às concepções pré-fabricadas que colocamos no lugar das coisas

em si. Como Husserl pôde perceber, essa tentativa oferecia a única saída do

impasse em que a filosofia havia chegado no final do século XIV quando os


49 49

realistas, que afirmavam a existência independente do objeto, e os idealistas,

que afirmavam o sujeito a priori travaram tal guerra.

Ao invés de fazer especulações intelectuais sobre a realidade, a filosofia

deve voltar-se, declarou Husserl, à pura descrição da coisa em si. Ao tomar tal

posição, Husserl se tornou a força mais influente sobre toda uma geração de

filósofos alemães que vieram à maturidade por volta da Primeira Guerra

Mundial.

Husserl (1988) busca as qualidades formais da realidade concreta que o

ser humano reconhece como sua experiência, a verdade do que lhe é dado. A

história do desenvolvimento deste autor como filósofo defende a tese de que,

por toda sua vida, ele estava, em vários níveis, buscando a atomicidade do

pensamento, o que expressaria e revelaria a especificidade do mundo:

Se o termo “lógica” fosse entendido em seu sentido filosófico como


uma disciplina de base para toda a reflexão, então a fenomenologia
como lógica trata o gênesis e o desenvolvimento dos fenômenos desde
suas raízes primordiais na consciência pré-reflexiva até
exemplificações mais refletidamente sofisticadas na ciência. Aprende-
se o que é fenomenologia passo a passo, através da leitura, discussão,
e reflexão. O que é necessário é mais simples: aprender o que se deve
através de atitudes naturais, tentar descrever as apresentações sem pré-
julgar os resultados tomando por garantia a história, a causalidade, a
intersubjetividade e o valor que ordinariamente associamos com nossa
experiência, também examinar com absoluto cuidado a estrutura do
mundo da vida diária para que possamos entender sua origem e sua
direção. Por um lado, a luta contra o psicologismo e historicismo,
enquanto que estes reduzem a vida do homem a mero resultado de
condições externas atuando sobre o mesmo e vêem a pessoa
filosofante como inteiramente determinada pelo mundo externo, sem
nenhum contato com o seu próprio pensamento e, portanto, destinada
ao ceticismo. Porém, por outro lado, é também uma luta contra o
50 50

logicismo, enquanto que este nos conduz a uma verdade sem contanto
com a experiência contingente (HUSSERL, 1988).

Como observado, Husserl (1988) busca reafirmar a racionalidade ao nível

da experiência, sem sacrificar a vasta variedade que esta inclui e aceitando

todos os processos de condicionamento que a psicologia, a sociologia e a

história revelam. E ao contrário do que se pensava em seu tempo, revela que as

ciências, entre as quais as que estudam os fatos psicológicos, usam as leis da

lógica e não mecanismos psíquicos. Essa é a temática do seu livro Lógica

Formal e Lógica Transcendenta”, onde critica o psicologismo e o empirismo

das ciências do seu tempo. Para ele, a teoria da ciência precisa esclarecer como

ocorre a apreensão dos objetos ideais empregados nas leis da ciência.

A abordagem fenomenológica passou, pelos elementos apresentados, a

ser um importante instrumento no estudo das ciências humanas. As razões não

são difíceis de entender. A fenomenologia considera que a existência singular

ilumina a realidade. Ao fazê-lo, altera a forma como a modernidade tratou a

experiência, isto é, objetivando-a até transformá-la pela técnica.

Para Giles (1975) é através do corpo que inicio o meu diálogo com os

outros. Diálogo que se amplia com os outros estratos que formam o homem,

consciência e razão. O homem pode possuir maior ou menor envolvimento

emocional com o que o cerca, ser mais sensorial ou intelectivo na resolução dos
51 51

problemas, possuir maior ou menor quantidade de pré-juízos e pré-conceitos,

comunicar-se através de termos unívocos ou equívocos, expressar-se através de

discursos completos ou incompletos, localizar-se de modo próprio na sua

história de vida, falar das mais variadas formas, dirigir-se ao outro de muitos

modos, mas será sempre realizado na relação com o outro.

Para o referido autor, a fenomenologia existencial é a melhor forma de

examinar o significado da alteridade, base das ciências humanas e, em especial,

das ciências que tratam da consciência humana. E, nesse contexto, a

fenomenologia de Merleau-Ponty (1994) apresenta-se como um método que

assegura a descrição da linguagem no campo da significação, visto que, para o

autor, a linguagem apresenta-se como uma “atividade do corpo”, onde a

concretização da palavra (sonora ou gráfica) é um prolongamento do corpo no

mundo.

A esse respeito Husserl (1990), apud Wagner (1979, p. 117), esclarece:

Na verdade, cada experiência é única, e até a recorrência da mesma


experiência não é a mesma, porque é recorrência. É uma identidade
recorrente e, como tal, é vivenciada num contexto diferente e com
coloridos diferentes. Se identifico esta cerejeira em particular do meu
jardim com a mesma árvore que vi ontem, embora sob outra luz e com
outro colorido, isso só é possível porque conheço o estilo típico desse
objeto único aparecer entre as coisas que o cercam. E o tipo “esta
cerejeira em particular” se refere aos tipos pré-vivenciados “cerejeiras
em geral”, “árvores”, “plantas”, “objetos do mundo exterior”. Cada
um desses tipos tem seu modo típico de ser vivenciado, e o próprio
conhecimento desse modo típico é um elemento de nosso estoque de
conhecimento à mão. O mesmo vale para as relações dos objetos uns
52 52

com os outros, para eventos e ocorrências em relações mútuas, e assim


por diante.

O que vai tornar algo relevante não é a sua simples tipificação, não são as

características comuns, mas, sim, as que levam à construção de um novo sub-

tipo. É o sistema de relevância que vai dar ênfase à situação pré-vivenciada que

interessa no momento presente.

Conforme Giles (1975) a fenomenologia preocupa-se em dar uma

descrição pura da realidade, considerando o fenômeno como aquilo que se

oferece ao olhar intelectual, à observação pura, e a fenomenologia apresenta-se

como um estudo puramente descritivo dos fatos vivenciais do pensamento e do

conhecimento oriundo dessa observação. A fenomenologia é uma ciência em

contato direto com o ser absoluto das coisas e, todavia, já que o absoluto só

pode ser o essencial da coisa tal como se apresenta na sua realidade, toda a

orientação da fenomenologia consistirá em dirigir o conhecimento para esse

essencial.

Desta forma, a fenomenologia preocupa-se com a questão da essência dos

fenômenos, ou seja, ela nunca se orienta para fatos e formas, mas, sim, para as

essências ideais. Para a compreensão da fenomenologia, portanto, é de vital

importância a delimitação de essência, que é entendida como o que há de

imutável nos fenômenos.


53 53

Segundo Wagner (1979), a fenomenologia é a ciência que vai além da

realidade cognitiva (conhecimentos objetivos como eles se apresentam), estuda

os processos de experiências humanas subjetivas (experiências vivenciadas pelo

próprio indivíduo). Preocupa-se não só com o que se consegue observar, mas

também com o que está por trás da aparência, uma vez que esta pode esconder o

que realmente se é.
54 54

O MÉTODO FENOMENOLÓGICO

Para o desenvolvimento da pesquisa, foi utilizada a abordagem

fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty (1994), que se propõe a alcançar

alguns objetivos, dentre eles, o de exercer um papel de crítica ao conhecimento,

esclarecendo idéias fundamentais, o de descrever as estruturas essenciais da

experiência e o de contribuir para que se chegue ao ideal de uma filosofia

descritiva completa, de domínio universal.

Tendo em vista que o referencial téorico fenomenológico para essa

pesquisa é o de Maurice Merleau-Ponty, é importante também nos remeter a

este autor que define a fenomenologia como sendo:

[...] o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela,


resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência
da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma
filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se
possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a
partir da facticidade. É uma filosofia transcendental que coloca em
suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é
também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre ali, antes da
reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste
em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim
um estatuto filosófico. É a ambição de uma filosofia que seja uma
ciência exata, mas é também um relato do espaço, do tempo, do
mundo vividos [...] (MERLEAU-PONTY 1994, p.1).
55 55

Segundo Aranha e Martins (1996), o termo facticidade pode ser

explicado como o “ser-aí”, ou seja, não é a consciência separada do mundo,

mas está numa situação dada, toma conhecimento do mundo que ele próprio

não criou e ao qual se acha submetido num primeiro instante.

O primeiro aspecto do enfoque para conhecer o mundo está em “ir à

coisa mesma” e, nesse sentido, Martins (1992, p.56) cita que:

O próprio mundo pode ser situado diante de meu olhar como se


fosse um foco a ser conhecido. Não é, pois, uma relação homem-
mundo, mas uma dialética em síntese: o homem que se situa ao
mundo, um mundo, que se oculta e se doa à sua percepção. Ao
situar o que desejo conhecer, ou o fenômeno a ser visto e,
consequentemente, a ser percebido, no pano de fundo do mundo,
passo a descrevê-lo.

Na fenomenologia, o pesquisador considera o seu mundo-vida, isto é,

uma experiência que é sua e que lhe permite interrogar o mundo e os

fenômenos que deseja interrogar sendo, no entanto, o que busco no contexto

da enfermagem, investigar, aprofundar e lançar um novo olhar sobre a

linguagem e o cuidado do outro.

A trajetória fenomenológica, para Bicudo (2000), inicia-se com uma ida

às coisas mesmas, e isto só é possível ao pesquisador através do seu mundo-

vida e nesse sentido, a redução fenomenológica toma, pois, no mundo-vida da

pessoa, seja do pesquisador ou do pesquisado, um foco, no qual a consciência


56 56

e a experiência se combinam num sentido de realidade, tanto no pré-reflexivo1

como no reflexivo, isto é, no domínio da consciência.

A abordagem fenomenológica, segundo Martins (1992) perpassa por

três momentos, sendo esses: a descrição, a redução e a compreensão

fenomenológica.

A descrição fenomenológica é o primeiro momento da trajetória da

pesquisa, é o que Martins (1992, p. 59) refere:

É constituída de três elementos, sendo: a) a percepção assume uma


primazia no processo reflexivo; b) a consciência que se direciona
para o mundo-vida, isto é, consciência do corps propre, ou seja, do
corpo vivido, consciência esta que é a descoberta da subjetividade e
da intersubjetividade; c) o sujeito, pessoa ou indivíduo que se vê
capaz de experienciar o corpo-vivido por meio da consciência que é
a conexão entre o indivíduo, os outros e o mundo (être-au-monjde)

A redução conforme Martins (1992), é o momento para determinar,

selecionar quais as partes da descrição que são consideradas essenciais e

aquelas que não o são. Este momento tem como propósito isolar o objeto da

consciência, as coisas, as pessoas, as emoções ou outros aspectos que

constituem a experiência que estamos tendo.

1
Pré reflexivo ou antepredicativo para Bicudo (2000, p. 39), é o que ainda não foi tematizado e pode ser
desdobrado em ações de análise e reflexão; o que ainda não foi expresso em linguagem proposicional que afirma
o compreendido e refletido.
57 57

A técnica usual e comum para realizar a redução fenomenológica,

segundo França (1989) é a chamada variação imaginativa, uma imaginação

disciplinada, sistemática, que se utiliza de indicadores contidos nos

depoimentos, e é limitada por exemplos inerentes ao mesmo.

Portanto, de acordo com Martins (1992, p.60):

Consiste em refletir sobre as partes da experiência que nos parecem


possuir significados cognitivos, afetivos e conativos e,
sistematicamente, imaginar cada parte como estando presente ou
ausente na experiência. Através da comparação no contexto e
eliminações, o pesquisador está capacitado a reduzir a descrição
daquelas partes que são essenciais para a existência da consciência
da experiência.

A compreensão fenomenológica só se torna possível quando o

pesquisador, usando o recurso da fenomenologia, assume o resultado da

redução como um conjunto de asserções significativas para ele, pesquisador,

mas que apontam para a experiência do sujeito, isto é, que aponta para a

consciência que este tem do fenômeno. A este conjunto de asserções, o autor

denomina de unidades de significado e afirma que:

Estas unidades devem ser tomadas exatamente como são propostas


pelo sujeito que está descrevendo o fenômeno. Em seguida, o
pesquisador transforma as expressões cotidianas do sujeito em
expressões próprias de discurso que sustentam o que está buscando
– um discurso psicológico educacional ou social. Esta
transformação fundamenta-se na reflexão e na variação imaginativa
(MARTINS, 1992, p. 60).
58 58

É importante observar que as unidades extraídas das descrições são

necessárias porque as descrições constituem-se geralmente de discursos

ingênuos, feitos por indivíduos vivendo uma realidade múltipla. Diante disso,

finalmente, o pesquisador organiza uma síntese das unidades temáticas ou

unidades transformadas, que representa as idéias em relação à questão

norteadora.

Martins (1992) considera que, quanto maior for o número de sujeitos,

maior poderá ser a variação e, consequentemente, melhor a possibilidade de

ver aquilo que é essencial, embora este não seja o principal critério a ser

observado, pois o que se busca são convergências, divergências e

idiossincrasias nas descrições e, nessa pesquisa, busco o que há de

convergências nas descrições.

Segundo o referido autor, o método fenomenológico caracteriza-se pela

busca incessante das essências dos fenômenos, sendo que, para alcançá-las, o

indivíduo deverá exercer um esforço intelectual sobre o fenômeno cujo sentido

se busca. Este método procura descrever e compreender os fenômenos, os

processos e as coisas a partir de sua essência.

A pesquisa qualitativa na perspectiva fenomenológica, para Bicudo

(2000), não visa à generalização dos fatos, diferenciando-se dessa forma da


59 59

pesquisa quantitativa realizada nos moldes científicos tradicionais, que tem

como objetivo, na maioria das vezes, dados estatísticos. No entanto, para que

haja de fato a compreensão sobre a linguagem e o cuidado do outro no contexto

da enfermagem, fez-se necessária uma pesquisa fenomenológica.

Para Bicudo (2000), a investigação fenomenológica trabalha sempre com

o qualitativo, isto é, com o que faz sentido para o sujeito, com o fenômeno

posto em suspensão, como percebido e manifesto pela linguagem; e trabalha

também com o que se apresenta como significativo ou relevante no contexto no

qual a percepção e a manifestação ocorrem.

O PERCURSO METODOLÓGICO

A Região da Pesquisa e os Sujeitos em Estudo

Tendo esta pesquisa o objetivo de compreender a linguagem e o

cuidado do outro no contexto da assistência de enfermagem, optei por uma

pesquisa qualitativa de referencial fenomenológico, tendo, como sujeitos,


60 60

enfermeiros que atuam na assistência de enfermagem nos setores de

internamento do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP) nos

períodos da manhã, tarde e noite.

Acredito que, a partir da escolha da região da pesquisa e dos sujeitos

em estudo em seu campo de atuação, há possibilidade de, a partir das

descrições por meio do instrumento de coleta de dados para a entrevista, a

obtenção de uma rica experiência dos fatos vivenciados e descritos com

diferentes abordagens sobre a linguagem e o cuidado do outro, o que

enriquece a pesquisa.

A entrevista

Ao considerar a linguagem do enfermeiro como intermediadora, o que

está sendo dito à luz da experiência vivida no contexto do cuidado do outro é

o que posso chamar como campo perceptual, pois é a própria descrição que

assume a forma de um texto à espera de compreensão.

Para que fosse possível a realização da entrevista com os enfermeiros

sujeitos deste estudo, no primeiro momento estabeleci um contato, momento


61 61

este em que esclareci sobre a pesquisa a ser realizada, bem como sobre o

termo de consentimento livre e esclarecido (Anexo 1).

A entrevista se deu no campo de atuação do enfermeiro no horário e

local de trabalho, visto que as descrições tornaram-se ricas ao serem

emergidas no aqui e agora do enfermeiro no cuidado do outro.

A obtenção das descrições dos enfermeiros no seu campo de atuação se

deu por meio da entrevista (Anexo 2), sendo esta realizada com uso de

gravador, onde elaborei uma questão norteadora, sendo essa: “Qual a sua

compreensão sobre a linguagem e o cuidado do outro no contexto da

enfermagem?.”

É importante salientar que esta questão norteadora passou por um teste,

ao qual chamamos de teste piloto, sendo este um estudo prévio com dois

enfermeiros com intuito de implementação da questão norteadora. Esses dois

enfermeiros que participaram deste estudo prévio não foram utilizados como

sujeitos dessa pesquisa.

As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra após a assinatura

dos sujeitos no termo de consentimento livre e esclarecido, totalizando 10

enfermeiros, número este estabelecido após observação de convergências nas

descrições.
62 62

É importante ressaltar que o anonimato dos enfermeiros, enquanto

sujeitos pesquisados, foi preservado, sendo estas descrições obtidas por meio

de entrevista numa seqüência de números, sendo: Nº 1. 2. 3 e assim

sucessivamente, respeitando os princípios da Resolução 196/96 da Comissão

Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) em Seres Humanos.

Outrossim, é importante ressaltar que esta pesquisa foi tramitada junto

ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Oeste do

Paraná – UNIOESTE e aprovada por este mesmo comitê conforme Parecer

128/2004 – CEP/CCBS, ata 013/04, de 1º de dezembro de 2004 (Anexo 3).

O Sentido do Todo

A compreensão a partir das descrições do todo fornecerá elementos e

indicadores do solo da percepção, daí a importância de trabalhar com a

totalidade das descrições no primeiro momento. É a partir desse todo que,

após lido e relido, como pesquisador, cheguei à compreensão do fenômeno

estudado.

Bicudo (2000, p. 81) refere que, ao ler as descrições com o olhar atento

dirigido pela interrogação, podemos destacar as unidades de significado,

sendo que:
63 63

As unidades de significado são analisadas individualmente. É


importante deixar claro que essa leitura, na pesquisa qualitativa
fenomenológica, é sempre orientada pela interrogação, a qual
indica, conforme a compreensão do pesquisador, as unidades de
significado.

Para a autora, não é possível trabalhar com categorias elencadas a partir

de um quadro teórico elaborado a priori ou a partir de instrumentos de

pesquisa externos a essa investigação específica. Por isso se faz necessário,

em pesquisa qualitativa trabalhar a partir de unidades de significado para

poder compreender o todo pesquisado, neste caso em especial, a linguagem e

o cuidado do outro.

A análise das descrições

Quanto à análise das descrições, optei em seguir os momentos

metodológicos utilizados por Amadeo Giorgi (2003), que apresenta quatro

passos como procedimento de uma análise fenomenológica:

a) Leitura de cada descrição transcrita na íntegra, com o intuito de

dar um sentido geral.


64 64

b) Quando o sentido do todo é compreendido, volto ao começo,

refaço a leitura com o objetivo específico de discriminar as

unidades de significado, com o foco no fenômeno, no caso

específico desta pesquisa, centrado na linguagem e no cuidado

do outro. O sentido geral compreendido depois da leitura do

texto não é interrogado nem explicitado em nenhum sentido.

Basicamente ele serve como base para o próximo passo, a

discriminação das unidades de significado.

c) Ao delinear as unidades de significado, estas são expostas,

expressando o entendimento contido nelas. As unidades de

significado revelam a verdade do fenômeno que está sendo

pesquisado e surgem como conseqüência da análise que são

discriminações percebidas dentro da descrição da matéria obtida

ao assumir uma postura psicológica para com a descrição

concreta.

d) Ao final, procuro sintetizar as unidades de significado

transformadas em uma declaração consciente a respeito da

experiência demonstrada nos depoimentos. Isso é usualmente

referido como estrutura do fenômeno situado.


65 65

Na estrutura do fenômeno situado, por meio da análise fenomenológica

busco as convergências nas unidades de significado com a construção das

unidades temáticas. Esse exercício me proporcionou uma aproximação do

enfermeiro na questão da linguagem e do cuidado do outro para que fosse

possível chegar à essência do fenômeno estudado.

A partir das unidades temáticas, por meio da análise compreensiva dos

discursos em Merleau-Ponty (1994), busco compreender como o enfermeiro,

enquanto sujeito do estudo, pensa e compreende a linguagem e o cuidado do

outro, sendo essa a estrutura e a essência do fenômeno estudado.

Assim, conforme França (1989), elaboro uma síntese das unidades

significativas, a fim de verificar as convergências possíveis, que possam ocorrer

entre os enfermeiros analisados, numa mesma categoria de unidades

significativas.
66 66

CAPÍTULO III

ANÁLISE FENOMENOLÓGICA

Com a intencionalidade de compreender o fenômeno estudado, busquei,

por meio das descrições dos enfermeiros, a partir das unidades de significado,

apreender a compreensão deste profissional sobre a linguagem e o cuidado do

outro no contexto da enfermagem, onde, por meio de um exercício reflexivo,

assumi uma atitude fenomenológica descritiva, no intuito de “voltar às próprias

coisas”.

As unidades de significado – categorias amplas – foram construídas, num

movimento imaginativo e de intuição, a partir dos depoimentos dos

enfermeiros: “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se

mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 1993, p. 65).

Assim, passo a apresentar as sete unidades temáticas que emergiram das

unidades de significado:

1. O enfermeiro compreende a linguagem verbal como essencial para a

comunicação com o paciente, a família e a equipe.


67 67

“[...] nós temos que conversar com ele, com palavras que ele entenda, objetivas

e claras, dando todas as informações necessárias [...]”1

“[...] às vezes você chega, você conversa com o paciente, mas não dirige o olhar

para ele e ele sente que você faz um ato mecânico.”2

“[...] é muito importante conversar com o paciente, você cumprimentá-lo,

chamá-lo pelo nome, isso faz com que ele se sinta importante.”2

“[...] a gente tem que usar uma linguagem que a população entenda; se a gente

usar uma linguagem que aprende na universidade fica difícil para lidar com os

pacientes daqui porque são humildes, um pouco diferente dos pacientes das

instituições privadas que tem os pacientes que entendem um pouquinho mais da

situação.”4

“[...] porque geralmente o médico passa e explica com uma linguagem um

pouquinho mais difícil e a gente tenta traduzir ao paciente o que vai ocorrer,

tenta facilitar ao máximo.”4

“[...] é poder ir sanando as dúvidas dele com relação ao procedimento, à

patologia dele, às condutas e ao tratamento.”6

“[...] ela expressou isso, que na verdade ela não queria ir embora, ela queria

continuar o tratamento, mas era tão estranho pra ela, ela estava tão insegura.”7
68 68

“[...] eu tenho que lidar com a mãe ou o acompanhante e com a criança que seria

o paciente. Então existem diversas formas de linguagem desde o momento em

que você entra no setor, desde um sorriso, um bom dia [...]”9

“Às vezes a mãe está ali sentada no sofanete com a criança no colo, então eu

procuro me abaixar ali pra ficar na altura dela e da criança para passar pra ela

que eu estou ali preocupada, que eu quero ajudar e como eu posso fazer isso.”9

Síntese das unidades de significado transformadas

O enfermeiro, no seu dia-a-dia, dentre as diversas formas de linguagem,

valoriza a linguagem verbal como instrumento essencial no cuidado do outro,

seja para esclarecer ao paciente sobre os procedimentos, as rotinas da

instituição, acalmá-lo nos momentos de tensão e angústia, realizar educação em

saúde, bem como orientar os familiares.

Também utiliza a linguagem para interagir com a equipe de trabalho, com

os profissionais de enfermagem, com os médicos, com os fisioterapeutas, com

os nutricionistas, com os psicólogos, com os bioquímicos, entre outros, tanto

para promover a continuidade da assistência, como para promover a educação

em serviço.

2. O enfermeiro compreende a subjetividade como fundamental no cuidado

do outro por meio da linguagem.


69 69

“[...] às vezes você vai atender alguém sem ter paciência e vai com aquela cara e

o paciente percebe.”5

“[...] ela está muito longe daquilo que a gente vê nos livros, a gente se volta

muito para o objetivo, para aquela coisa de fazer só aquilo que está vendo da

necessidade [...]”7

“[...] mas a questão do subjetivo, do que o paciente realmente está precisando, o

que quer dizer nas entrelinhas, isso eu acho que ainda não temos preparo.”7

“Eu acho que fica muito a desejar essa questão da interpretação, do que

realmente o paciente está precisando [...]”7

“[...] o que ele quer dizer quando diz que está com dor, ou quando diz que está

cansado, que quer ir embora, de modo geral isso acontece bastante.”7

“Essa questão da linguagem subjetiva do paciente que às vezes está ali com um

comportamento de agressividade, de rebeldia, de não estar aceitando o

tratamento, de não estar sendo participativo no tratamento [...]”7

Síntese das unidades de significado transformadas

O enfermeiro, ao cuidar do outro, tem a compreensão de que a linguagem

se exprime tanto pelas palavras, bem como pelo que está entre as palavras, ou

seja, pelo que não é dito. Para tanto, é preciso estar atento às manifestações do

paciente, o que posso chamar, conforme referido no decorrer desta pesquisa, de


70 70

uma relação figura-fundo, pois enquanto uma parte se manifesta, a outra se

esconde.

Esse exercício se torna necessário para que seja possível um des-velar do

que está escondido, o que está velado, para de fato haver o cuidado do outro

num sentido de intersubjetividade.

3. O enfermeiro compreende as dimensões da linguagem enquanto

corporeidade.

“[...] é à maneira de como a gente se expressa com o paciente, pode ser por

palavras, o diálogo, por gestos, o toque, a maneira de tocar o paciente [...]” 2

“[...] eu acredito que seja tudo o que a gente está expressando, né. Tudo o que a

gente tá falando, tudo o que a gente está transmitindo para o paciente, seja por

palavras, por gestos, o tato, o olhar, a maneira de como a gente trata, isso faz

parte da linguagem.” 3

“[...] perceber também não só a fala, mas a linguagem não verbal, perceber o

gesto do paciente, como ele está, a gente deve estar percebendo na hora de

prestar assistência [...]”4

“[...] eu lido com bebês e, independente deles não entender, a gente tem que

estar conversando, colocando para que eles não recebam como um trauma, a

assistência que a gente está prestando a eles.”4


71 71

“[...] e não só a linguagem falada, muitas vezes a linguagem corporal [...]”5

“[...] é linguagem corpórea, como o corpo fala. Né [...]”5

“[...] é preciso ficar atento não só ao que ele relata, mas ao que ele não relata, a

expressão dele ou o estado de ansiedade que ele se encontra, pra mim poder

basear a minha assistência no que ele está sentindo [...]”6

“[...] eu acho que a linguagem acontece de várias maneiras, não muitas vezes

com a comunicação verbal, mas com gestos, atitudes, expressões, tanto nossa

quanto do paciente [...]”8

“A linguagem, ela está implícita em nossas falas, na nossa escrita, no nosso

comportamento”[...]”9

“A linguagem, assim, às vezes ele olha pra ti de uma forma que ele está

querendo saber alguma coisa pelo olhar, pelo toque [...]”10

Síntese das unidades de significado transformadas

O enfermeiro percebe a linguagem enquanto corporeidade, quando deixa

emergir, em suas descrições, a questão dos sentidos em que percebe a

linguagem de outra forma que não a linguagem expressa verbalmente, mas

linguagem no toque, na expressão facial, nos gestos, no olhar, nas atitudes, nos

comportamentos, o que podemos chamar de linguagem corporal.


72 72

4. O enfermeiro compreende o envolvimento com o paciente como essencial

para o cuidado do outro na assistência de enfermagem.

“[...] e todo mundo de branco, então a pessoa não sabe quem está ali, se é um

funcionário de enfermagem, se é um acadêmico, de que área.”7

“Pouco se vê essa questão de conversar com o paciente, de explicar para ele o

que está acontecendo, o que vai fazer, e quem é você, se ele fizer isso ou deixar

de fazer isso.”7

“[...] aí eu consigo fazer com que a mãe se abra em todos os aspectos, porque

aqui não é só a doença física, ela traz outros problemas como os sociais,

problemas emocionais, e a gente acaba se envolvendo tanto que, no final do

tratamento, ela vê o enfermeiro como uma referência e com respeito [...]”9

Síntese das unidades de significado transformadas

Para o enfermeiro, cuidar do outro significa ter envolvimento, é ser e

estar por inteiro no cuidado, é ocupar-se, é preocupar-se com o outro, pelo outro

e para o outro, é estar disponível e aberto para o outro e para o mundo.

Para isso, deve-se levar em consideração a história de cada um, que se

funde com o outro, que também é corpo vivente, que traz na sua bagagem

cultural suas crenças, seus valores e sua visão ao compreender o mundo.


73 73

5. O enfermeiro compreende o cuidado do outro enquanto corporeidade.

“É a maneira como você fala com o paciente, como você toca o paciente, tudo

isso é o cuidado com que você tem com o outro.”2

“[...] como a gente cuida? é como um conjunto de pequenas atitudes, de

pequenas atividades que a gente desempenha afim de estar proporcionando

benefícios que vai ajudar nas suas necessidades.”3

“[...] se fala que nós somos seres humanos que trabalha com seres humanos e

para os seres humanos não só biológico.”7

“[...] ele tem ações isoladas, mas não uma continuidade da assistência no que

diz respeito à questão da humanização, de ver aquela outra pessoa que tem os

mesmos sentimentos que ele [...]”7

“A gente vê somente o eu, eu tenho dor, eu estou triste, eu estou cansado, eu

estou com medo, eu estou com raiva, sempre eu.”7

“E a gente quer que o próprio colega tenha os mesmos sentimentos e maneira de

expressar o mesmo que a gente e o paciente também.”7

“[...] eu entendo como ver o ser humano e cuidar dele como um todo, de uma

maneira holística; não só o ato do cuidado em si, mas o fato de você entender o

indivíduo como um todo, na sua vida como um todo, e ver ele de forma

espiritual, de forma corpórea, social, o seu ambiente familiar, enfim, é ver o

indivíduo não só naquele momento [...]”10


74 74

Síntese das unidades de significado transformadas

Diante do que emergiu dos enfermeiros, no contexto do cuidado do outro,

muito se ouve falar do cuidado holístico, ou seja, do cuidar do ser humano

como um todo, não cuidando do mesmo apenas como um ser psico-biológico ou

divisível.

O paciente, quando submetido ao cuidado do enfermeiro, traz na sua

bagagem tanto a sua patologia manifesta pela história da doença atual, como

também tráz a sua cultura, a sua crença, os seus valores, os seus medos,

ansiedades, angústias, questionamentos e sua visão de mundo. No entanto, ele é

um ser único e cada situação por ele vivenciada também é uma situação única,

pois os acontecimentos se dão em contextos diferentes em cada momento da

vida.

6. O enfermeiro compreende que o cuidar do outro é um dom.

“Lidar com amor e dedicação, porque sempre vai ter uma pessoa, uma auxiliar

ou uma enfermeira que vai dar uma palavra de conforto pra ele, que vai ajudar

ele melhorar a cada dia.”1


75 75

“[...] o cuidado exige tanta responsabilidade, tanta concentração que você acaba

se empolgando; eu acho que o cuidar do outro é você se entregar, mas pra fazer

isso, é questão de dom mesmo [...]”9

“[...] não é qualquer pessoa que tem o dom de cuidar, porque é zelar, é

preservar; o cuidado não só com a aparência, mas com o conforto, a higiene.”9

Síntese das unidades de significado transformadas

Para o enfermeiro, cuidar do outro é “dom” quando refere que não é

qualquer pessoa que pode proporcionar conforto, que é capaz de preservar a

vida enquanto cuida, e, nesse sentido, podemos observar, nas descrições, o que

anteriormente foi discutido, de que o homem não tem um corpo, mas é seu

corpo, corpo que percebe e é simultaneamente percebido, devendo dessa forma

deixar de ser compreendido apenas como objeto. É a partir do corpo próprio ou

vivido que o homem interage com o outro e com o mundo.

Conforme visto no contexto dessa pesquisa, posso dizer que cuidar é

muito mais que um ato, é uma atitude que abrange mais que um momento de

atenção, de zelo e desvelo. Cuidar é uma atitude de ocupação, preocupação,

responsabilização e envolvimento afetivo com o outro.

7. O enfermeiro compreende que o cuidado do outro envolve pudor e

privacidade.
76 76

“A gente comenta muitas coisas, mas no cuidado todos nós temos esse pudor e

tem que ser respeitado. A gente tem que dar privacidade pra ele, respeitando o

natural pudor [...]”2

“[...] no meu caso que lido com puérperas, tento dar privacidade, não estar

expondo a paciente frente várias pessoas no quarto; expondo parte do corpo [...]

”4

“[...] eu acho que na verdade esse respeito inicia a partir do momento em que a

gente começa a manipular esse paciente, a maneira com que a gente aborda, até

o simples banho. Aqui é muito comum o banho no leito, que eu acho uma

agressão, se o paciente não for bem orientado, bem abordado, ele se sente

agredido, porque é um procedimento totalmente invasivo [...]”8

Síntese das unidades de significado transformadas

Para o enfermeiro, o pudor e a privacidade do paciente emergem nos

depoimentos, tanto na questão das informações como da confiabilidade do

paciente nas questões que envolvem sigilo, quanto na questão da exposição do

corpo, ou de parte do corpo em determinados procedimentos realizados.


77 77

Compreendendo a linguagem dos enfermeiros numa aproximação à

perspectiva de Merleau-Ponty

Neste momento da análise, faço uma interlocução das idéias dos sujeitos

enfermeiros com a concepção teórica de Maurice Merleau-Ponty sobre as

questões da linguagem, do cuidado do outro e da corporeidade.

Nas descrições dos enfermeiros frente à questão norteadora – “Qual a

sua compreensão sobre a linguagem e o cuidado do outro no contexto da

enfermagem?”, é possível perceber que, no contexto da enfermagem, fluem

fenômenos como a linguagem, o cuidado e a corporeidade.


78 78

A linguagem verbal emerge nas descrições dos enfermeiros como sendo

algo essencial no cuidado com o paciente, com a família e com a equipe, num

sentido de interação.

Diante das descrições, lanço um olhar fenomenológico embasado em

Merleau-Ponty (1991, p. 47), que afirma:

A palavra não escolhe somente um signo para uma significação já


definida, como se vai procurar um martelo para pregar um prego ou
um alicate para arrancá-lo. Tateia em torno de uma intenção de
significar que não se guia por um texto, o qual justamente está em vias
de escrever.

O mesmo autor ainda refere, sobre as palavras e a intenção:

Há uma significação “linguageira” da linguagem que realiza a


mediação entre a minha intenção ainda muda e as palavras, de tal
modo que minhas palavras me surpreendem a mim mesmo e me
ensinam o meu pensamento. Os signos organizados possuem seu
sentido imanente, que não se prende ao “penso”, mas ao “posso”
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 94).

Para Merleau-Ponty, é por meio da fala que se exprime o pensamento:

[...] se dizemos que a cada momento o corpo exprime a existência, é


no sentido em que a fala exprime o pensamento. Para aquém dos
meios de expressão convencionais, que só manifestam meu
pensamento ao outro porque, em mim como nele, já estão dadas
significações para cada signo, e que nesse sentido não realizam uma
verdadeira comunicação, é preciso se reconhecer, veremos, uma
operação primordial de significação em que o expresso não existe
separado da expressão e em que os próprios signos induzem seu
sentido no exterior (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 229).
79 79

O enfermeiro compreende a linguagem enquanto subjetividade como algo

relevante no cuidado do outro, para poder de fato atender às solicitações e às

necessidades do paciente.

Para Merleau-Ponty (2000, p. 365-66):

[...] a linguagem, a arte, a história, gravitam em torno do invisível (a


idealidade); relações difíceis desse invisível e dos aparelhos técnicos
visíveis que ele se constrói. Isso nos faz avançar para o centro obscuro
da subjetividade e da intersubjetividade – intersubjetividade ideal
ligada pela incorporeidade, interior a incorporeidade - dos seres ideais
correlativos virtuais do simbolismo organizado em torno deles,
sustentados por ele, configurações dessa nova paisagem.

Ainda, para Merleau-Ponty (1994), a subjetividade não é a identidade

imóvel consigo, pois, para ser subjetividade, é-lhe essencial, assim como ao

tempo, abrir-se a um Outro e sair de si.

A linguagem enquanto corporeidade emerge nas descrições dos

enfermeiros, quando deixa vir à luz que o corpo fala pelos gestos, pela

expressão facial, pelo toque, pelo olhar, pelas atitudes e não somente pela

linguagem expressa verbalmente.

Para Merleau-Ponty (1994), a intencionalidade e os sentidos estão

presentes em nosso corpo, como interação, vontade, consciência que o corpo

tem de expressar-se, sem, no entanto, haver a articulação da palavra.


80 80

O mesmo autor refere também que o corpo fala por si mesmo, pois vemos

o que há de comum ao gesto e ao seu sentido, por exemplo, as expressões das

emoções e as próprias emoções como o sorriso, a alegria, a tristeza, o rosto

distendido, e diz que os gestos contem realmente o ritmo de ação, ou seja, o

modo de ser-no-mundo.

Frente a essas questões, para que o enfermeiro possa cuidar do outro, é

preciso vislumbrar as questões da linguagem, especificamente a linguagem do

corpo, considerando esta linguagem como um prolongamento da

intencionalidade corpórea, pois a linguagem, como gesto corporal, está

impregnada no corpo.

Merleau-Ponty, também refere que:

Meu enfoque corporal dos objetos que me rodeiam é implícito, e não


supõe tematização alguma, “representação” alguma de meu corpo,
nem do meio. A significação anima a palavra como o mundo anima
meu corpo: por uma surda presença que desperta minhas intenções
sem me mostrar abertamente diante delas. (MERLEAU-PONTY,
1991, p. 95).

Expressar, para o sujeito falante, segundo Merleau-Ponty (1991), é tomar

consciência; ele não expressa somente para os outros, expressa para saber ele

mesmo o que visa, sendo esse expressar não somente pela articulação verbal.
81 81

A fala significa não apenas pelas palavras, mas ainda pelo sotaque, pelo

tom, pelos gestos e pela fisionomia, e assim, como esse suplemento de sentido

revela não mais os pensamentos daquele que fala, mas a fonte de seus

pensamentos e sua maneira de ser fundamental (MERLEAU-PONTY, 1994).

Para Merleau-Ponty (1994), o gesto está diante de mim como uma

questão, ele me indica certos pontos sensíveis do mundo e convida-me a

concentrá-lo ali. O sentido do gesto não está contido no gesto enquanto

fenômeno físico ou fisiológico. O sentido da palavra não está contido na palavra

enquanto som. Mas é a definição de o corpo humano apropriar-se, em uma série

indefinida de atos descontínuos, de núcleos significativos que ultrapassam e

transfiguram seus poderes naturais.

Esse ato de transcendência encontra-se primeiramente na aquisição de um

comportamento, depois na comunicação muda do gesto: é pela mesma potência

que o corpo se abre a uma conduta nova e faz com que testemunhos exteriores a

compreendam.

Para Merleau-Ponty, é preciso também:

Reconhecer então essa potência aberta e indefinida de significar, ou


seja, ao mesmo tempo de apreender e de comunicar um sentido, como
um fato último pelo qual o homem se transcende em direção ao outro,
ou em direção ao seu próprio pensamento, através de seu corpo e de
sua fala. (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 262).
82 82

Cuidar, para o enfermeiro, conforme surgiu nas descrições, é estar

envolvido com o ser cuidado, é ocupar-se, é estar por inteiro no que faz.

Para Merleau-Ponty (2000, p. 352):

Corpos-coisas, penetração à distância dos sensíveis pelo meu corpo.


As coisas como aquilo que falta ao meu corpo para fechar o seu
circuito. Mas isso também é uma abertura do meu corpo aos outros
corpos: assim como toco a minha mão, percebo os outros como
percipientes. A articulação de seus corpos no mundo é vivida por mim
naquela de meu corpo no mundo onde os vejo. Ora isso é recíproco: o
meu corpo é feito também da corporeidade deles. O meu esquema
corporal é um meio normal de conhecer os outros corpos e de estes
conhecerem o meu corpo. Universal-lateral de co-percepção do
mundo.

No cuidado do outro, há o envolvimento tanto do enfermeiro, quanto do

paciente e/ou seus familiares, quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio

corpo:

[...] não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo,
quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e
confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na
medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu
corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório do meu
ser total. Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao
movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do
objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em
idéia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade
(MERLEAU-PONTY, 1994, p. 269).

O referido autor ainda diz que:


83 83

Nós reaprendemos a sentir nosso corpo, reencontramos, sob o saber


objetivo e distante do corpo, este outro saber que temos dele porque
ele está sempre conosco e porque nós somos corpo. Da mesma
maneira, será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele
nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto
percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, retomando assim o
contato com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que
iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é
um eu natural é como que o sujeito da percepção (MERLEAU-
PONTY, 1994, p. 278).

O cuidado para o enfermeiro emergiu nas descrições como algo que deve

se dar de forma holística, ou seja, cuidar do outro como um todo no aspecto

biopsicossocial e não cuidar do outro como partes, divisível.

Para Merleau-Ponty (1994), o homem enquanto corporeidade traz em si

uma contradição, a de ser homem (corpo vivente, ser cultural), e ser animal

(corpo dado). Essa duplicidade expressa o verdadeiro sentido da presença do

homem enquanto corpo e seu relacionamento com o mundo, mundo que não é

aquilo que penso, mas aquilo que vivo, pois sou aberto ao mundo, comunico-me

indubitavelmente com ele.

O cuidado do outro implica também cuidar do outro como um todo, e,

nesse sentido, Merleau-Ponty (1994) enfatiza que o corpo exprime a existência

total da pessoa que nele se realiza. O corpo, segundo o autor, não é objeto para
84 84

um “eu penso”: é o conjunto de significações vividas; porque o corpo vivente é

corporeidade.

Quando se reflete sobre a corporeidade, os sentidos, o sensível, o mesmo

autor fala sobre o corpo como sendo o resultado de uma construção social e

cultural, da intersubjetividade e da experiência corporal, porque o corpo está

vinculado ao ser numa relação indivisível.

Para Merleau-Ponty (1994, p.268-69), o corpo é ambíguo, sendo ao

mesmo tempo corpo e alma, e, nesse sentido, é unidade sem haver uma

dissociação entre as partes, ou seja, corpo enquanto corporeidade, e, para tanto:

A experiência do corpo próprio [...] revela-nos um modo de existência


ambíguo. Se tento pensá-lo como um conjunto de processos em
terceira pessoa – visão, motricidade, sexualidade – percebo que essas
funções não podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por
relações de causalidade, todas elas estão confusamente retomadas e
implicadas em um drama único.

Corpo enquanto corporeidade no cuidado é sempre outra coisa que aquilo

que ele é, sempre sexualidade, ao mesmo tempo que liberdade, sempre

enraizado na natureza, no mesmo momento em que se transforma pela cultura,

nunca estando fechado em si mesmo, no entanto, nunca ultrapassado.


85 85

O enfermeiro também deixa emergir, nas descrições, o cuidado enquanto

dom, respeito ao pudor e à privacidade, visto que são questões essenciais no

contexto do cuidar e ser cuidado.

Para Merleau-Ponty (1994), o corpo é o espelho do nosso ser, é a nossa

história construída durante toda a nossa existência; é o veículo do ser no mundo

no qual são armazenadas todas as significações vividas e através do qual vejo,

interajo, percebo e sou percebido.

Nesse contexto, Merleau-Ponty refere:

Se o corpo é simples localização da consciência, ao perceber os corpos


exteriores, apercebo-me de que este corpo é habitado por uma alma.
Essa percepção de outrem, que faz com que eu apreenda o corpo como
habitado, não consiste em transferir para o corpo de outrem o que eu
sei, de outra maneira, de minha alma. A mão de outrem que eu aperto
deve ser entendida a partir do modelo da mão tocante e tocada. Acabo
sentindo alguém no fim dessa mão: perceber outrem é perceber não só
que lhe aperto a mão, mas que ele me aperta a mão. Eu não projeto no
corpo de outrem um Eu penso, mas apercebo o corpo como
percipiente antes de apercebê-lo como pensante. Este olhar tateia os
objetos, eis o que vejo em primeiro lugar: vejo um corpo que se
articula ao mesmo objeto que eu. Só secundariamente me apercebo,
primeiro de sua alma, depois de seu espírito: “aquele homem vê e
entende” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 125).

Corpo para Merleau-Ponty (1994) é corporeidade, e nesse sentido o

enfermeiro, quando cuida do outro, ao conseguir ver o outro como um todo no

mundo, ou seja, o outro enquanto corporeidade, esse olhar lançado já está


86 86

impregnado de respeito para com o outro, e, nesse sentido, o pudor e a

privacidade também estão sendo preservados e respeitados.

O enfermeiro, ao considerar os aspectos biopsicossociais do paciente

cuidado, considera-o enquanto corporeidade.

Contudo, nas descrições dos enfermeiros, expressos ao questionamento

feito – “Qual a sua compreensão sobre a linguagem e o cuidado do outro no

contexto da enfermagem?” – o que se observa é que o fenômeno emergiu

como um detalhado relato do seu cotidiano existencial, revelando várias

situações do ser-no-mundo do enfermeiro, sendo que, por meio de sua fala,

ficou explícita a importância da linguagem e do cuidado do outro para o

enfermeiro.

Ao me deparar com estas descrições, tive a possibilidade de um

aprofundamento, embasado na fenomenologia, nas questões da linguagem

verbal, da linguagem do corpo, da subjetividade, da linguagem e do corpo

enquanto corporeidade, do cuidado do outro enquanto envolvimento, dom,

pudor e privacidade.

No dia-a-dia do enfermeiro em seu campo de atuação, este profissional

consegue perceber que o cuidado do outro envolve mais que a simples técnica,

pois foi possível, por meio de suas descrições, perceber que estes não

compreendem o corpo dicotomizado, apenas no sentido psico-biológico, mas,


87 87

sim, vislumbram-no como um todo biopsicossocial e não somente a soma de

suas partes, o que, no decorrer de toda a pesquisa, foi tratado como –

corporeidade.

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA

Esta pesquisa proporcionou, por meio das descrições dos enfermeiros, um

des-velar de como estes profissionais compreendem a linguagem e o cuidado do


88 88

outro, sendo possível perceber que a linguagem está no cuidado, bem como o

cuidado na linguagem, conforme se revelou nas falas dos enfermeiros.

Para cuidar, é preciso que haja a compreensão do paciente com suas

inquietudes, preocupações, dúvidas, medos, de estar diante do desconhecido e

do novo, sendo necessário que o enfermeiro seja capaz de cuidar interagindo

com o paciente.

Nesse sentido, é preciso vislumbrar o corpo, o ser, o cuidado do ser, a

linguagem, os sentidos, a corporeidade, para que haja qualidade no cuidado de

enfermagem.

Foi possível apreender, da compreensão dos enfermeiros, que o paciente,

enquanto ser-cuidado, não é apenas um corpo no aspecto psicobiológico, mas

corpo como resultante das questões sociais e culturais, corpo como algo

indivisível vinculado ao ser como ser-no-mundo, ser-aí, ser-com-o-outro, corpo

enquanto corporeidade.

Outro aspecto relevante para o binômio cuidar-cuidado explícito nesta

pesquisa, é a questão da linguagem, seja a linguagem verbal, seja a linguagem

expressa pelo corpo, o que chamamos de linguagem corporal, em que segundo

Carmo (2000), é preciso estar atento às sensações e à relação figura-fundo, em

que o corpo, assim como os objetos é visto por perfis, pois, quando uma parte se

manifesta, a outra se esconde.


89 89

No entanto, o ser enfermeiro enquanto ser-cuidador deve estar atento a

todas as manifestações da linguagem, para poder de fato cuidar do ser-cuidado

nos seus aspectos biopsicossociais, dando sentido ao processo de cuidar num

movimento de interação entre ser-cuidador e ser-cuidado. Somente com essa

interação é que se pode vislumbrar um cuidado na sua integralidade, onde tanto

o enfermeiro quanto o paciente possam estar inseridos nesse contexto enquanto

ser-no-mundo.

O cuidado do outro deve acontecer em sua totalidade, sem fragmentação,

onde o corpo é tratado e estudado por partes, divisível. O que procurei mostrar

nesta pesquisa, embasado na fenomenologia de Merleau-Ponty, é o corpo

indivisível e não somente a soma de suas partes.

É importante ressaltar que não é possível vislumbrar uma pesquisa

fundamentada na fenomenologia de forma estanque, pois sempre haverá novos

olhares lançados sobre o fenômeno estudado, tanto pelo pesquisador, como

pelos leitores, pelos sujeitos pesquisados, bem como por outros pesquisadores.

Sempre haverá possibilidade para novos questionamentos acerca do fenômeno,

neste presente caso a linguagem e o cuidado do outro no contexto da

enfermagem.

Acredito que a fenomenologia, como possibilidade de pesquisa, pode

traçar novos horizontes para pesquisadores que queiram beber nesta fonte,
90 90

principalmente as pesquisas na área da saúde, área essa que possibilita ao

profissional descortinar aspectos existenciais da subjetividade do ser humano,

como a linguagem, a corporeidade, o cuidado, entre outros.

É importante ressaltar que esta pesquisa contribuiu de forma significativa

para minha formação enquanto enfermeiro e enquanto docente no tocante ao

cuidado do outro enquanto corporeidade. Acredito ser de grande importância

para a formação tanto dos enfermeiros em seu campo de atuação no cuidado de

enfermagem, bem como para outros docentes e também profissionais de outras

áreas da saúde e, principalmente, na formação acadêmica dos graduandos de

enfermagem, que muito têm a apreender no universo do cuidado do outro, ao

compreenderem o cuidado enquanto corporeidade.

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94 94

ANEXO 1
95 95

ANEXO 2

Entrevista Nº 1

“Referente à linguagem, primeiro você tem que conhecer o paciente e a

patologia dele, é, nós temos que conversar com ele com palavras que ele
96 96

entenda, objetivas e claras, dando todas as informações necessárias, porque

quando o doutor passa ele fala outra linguagem ou da patologia que tem, mas

não explica como que é e como vai proceder, em termos de antibiótico, que a

recuperação demora, o tempo de internamento é lento, talvez eles falam que vai

internar, mas não fala se é por 15 ou 20 dias. Então cabe a nós dar informação e

tranquilidade”. Sobre corporeidade, eu acho que temos que cuidar como um

todo do paciente, estamos aqui para prestar cuidado, mas a gente tem que ter

muito amor nos cuidados prestados aos pacientes, tem que se dedicar ao

máximo, porque o paciente é como um filho pra gente, tem que gostar do que

faz, porque se ele estiver bem cuidado e bem tratado, a gente vai ter retorno e

sobre o cuidado do outro, cuidar do paciente como um todo, dar muito carinho e

dedicação ao paciente, é, a gente tem que dar privacidade pra ele, porque tem

vez que o paciente interna todo estressado, e a gente não sabe o que está

acontecendo com ele. Apesar dele internar com uma patologia, a gente tem que

entender, dar uma de psicóloga, né, conversar com ele, deixar ele tranquilo, né.

Nós temos que entender ele, ele entender a gente pra nós termos um retorno. Eu

acho que a gente tem que se dedicar ao máximo ao paciente, prestar bons

cuidados, porque assim, às vezes eles não quer internar nesse hospital porque a

enfermeira é ruim. Lidar com amor e dedicação porque sempre vai ter uma
97 97

pessoa, uma auxiliar ou uma enfermeira que vai dar uma palavra de conforto pra

ele, né, que vai ajudar ele melhorar a cada dia”.

Entrevista Nº 2

“A linguagem, é a maneira de como a gente se expressa com o paciente, pode

ser por palavras, por gestos, o toque, a maneira de tocar o paciente. Eu percebo

assim como linguagem, porque às vezes você chega, você conversa com o
98 98

paciente, mas não dirige o olhar para ele, ele sente que você faz um ato

mecânico. Então, eu penso que é muito importante conversar com o paciente,

você cumprimentá-lo, chamá-lo pelo nome, isso faz com que ele se sinta

importante. Porque dentro das instituições de saúde, dentro dos cuidados, o

paciente é mais um aqui dentro, e se a gente não souber tratá-lo com essa

distinção, ele vai se sentir mais um, e daí vai desencadear todo aquele processo

de depressão, baixa auto-estima que vai influenciar na recuperação. Quanto à

corporeidade, em primeiro lugar eu penso que é preciso respeitar o outro,

respeitar a privacidade, o pudor, o natural pudor que cada um de nós temos. A

gente comenta muitas coisas, mas no cuidado todos nós temos esse pudor, e tem

que ser respeitado. Então tratar com cuidado, tratar com carinho, não usar de

grosseria, às vezes movimentos bruscos, assim tratar bem o outro, respeitar o

outro, dentro das suas condições. Mesmo que ele é, tenha passado dos limites,

mesmo que você perdeu a paciência, mas você não pode perder o respeito pela

pessoa. Quanto ao cuidado do outro, Ah, eu acho essa parte mais bonita!!!

Como diz Wanda Horta (enfermeira que trabalha com o processo de

enfermagem): “Enfermagem é gente que cuida de gente, né ”. Então é tudo isso,

o cuidado é a essência da profissão enfermagem. É a maneira como você fala

com o paciente, é a maneira como você toca o paciente, tudo isso é o cuidado, o

cuidado com que você tem com o outro. Então é isso que enriquece a profissão,
99 99

eu penso, porque a maneira como você cuida, a maneira como você cultiva esse

cuidado, a maneira como você desenvolve, como você aprende, como você se

preocupa, endendeu... Eu penso assim que é a essência do cuidado. Cuidado é o

encontro com o outro, é esclarecimento, é receber bem o outro. Eu acho que a

gente poderia resumir, baseado no código de ética: Enfermagem é prestar

assistência livre de imperícia, imprudência e negligência, sem discriminacão,

qualquer tipo de discriminação. Então assim, é respeitar a pessoa desde a

concepção até a morte. É a essência da profissão enfermagem e dentro dela

quando você consegue fazer tudo isso, você se realiza como profissional. Só

que tem muitas coisas que a gente enfrenta no dia-a-dia, né, até conseguir

chegar à excelência e à essência do cuidado. Eu ainda não cheguei a esse

ponto”.

Entrevista Nº 3

“Linguagem eu acredito que seja tudo o que a gente está expressando, né, tudo

o que a gente tá falando, tudo o que a gente está transmitindo para o paciente,
100 100

seja por palavras, por gestos, o tato, olhar, a maneira de como a gente trata, isso

faz parte da linguagem. Corporeidade, cuidado com o corpo, eu nunca pensei

sobre a corporeidade, nunca pensei sobre, porque quando a gente pensa sobre

cuidado a gente pensa na pessoa como um todo, como a gente lida. E o cuidado

do outro, como a gente cuida, é como um conjunto de pequenas atitudes, de

pequenas atividades que a gente desempenha afim de estar proporcionando

benefícios pra aquela pessoa, benefícios que a gente vai dando no seu

tratamento, que vai ajudar nas suas necessidades. Eu nunca parei pra pensar

sobre. Na linguagem, sim, porque a gente fala mais sobre a linguagem, o que a

gente diz, o que a gente às vezes diz e transmite ao paciente, mas corporeidade

eu nunca parei pra pensar, mas agora eu vou pensar sobre corporeidade”.

Entrevista Nº 4

“No dia-a-dia o que a gente percebe assim, é que a gente tem que usar uma

linguagem um pouquinho mais, o termo, a linguagem do dia-a-dia da

população, porque se a gente usar a linguagem científica que a gente aprende na


101 101

universidade, fica um pouco difícil pra gente lidar com os nossos pacientes

daqui, porque os nossos pacientes são humildes, um pouco diferente das

instituições privadas que têm os pacientes que entendem um pouquinho mais da

situação. Então a gente procura assim reportar a eles conforme eles entendam o

que a gente está falando, né, e perceber também não só a fala, mas a linguagem

não verbal, perceber o gesto do paciente, como ele está, a gente deve estar

percebendo na hora de prestar assistência, tá conversando, e no caso de

pacientes de UTI, bebês, eu lido com bebês, independente deles não entender, a

gente tem que estar conversando, colocando pra eles, para que eles não receba

como um trauma a assistência que a gente está prestando a eles. A gente tenta

facilitar ao máximo para o paciente entender o que está acontecendo, porque

geralmente o médico passa e explica com uma linguagem um pouquinho mais

difícil, a gente tenta traduzir ao paciente o que vai ocorrer, facilitar ao máximo.

Corporeidade, é quanto ao cuidado com o corpo, assim? A gente tem que estar

respeitando o paciente, no meu caso que a gente lida com puérperas, a gente

tenta estar dando uma privacidade à paciente, a gente não pode estar expondo a

paciente, né, é obrigando a fazer que não quer expor parte do corpo, e a gente

acaba falando com o nosso corpo também, através de gestos, de atitudes, né,

perante o paciente, a questão de estar várias pessoas no quarto e a gente estar

expondo o paciente. E quanto ao cuidado do outro, pra que a gente possa listar
102 102

os cuidados necessários, a gente tenta avaliar o paciente no início do plantão, a

gente observa as necessidades, porque cada paciente tem suas necessidades,

cada um tem uma situação, então a gente avalia, e tenta fazer o máximo, para

realizar a situação que o paciente está passando, a patologia, para tentar estar

ajudando esse paciente, nos cuidados, a gente cuidar o que ele pode fazer por

ele, o que a gente pode estar fazendo. A gente precisa aprofundar um pouquinho

mais, né. A gente tem muito pouco na faculdade e a gente chega e na hora de

atuar, a gente tem muitas realidades, então a gente vê muito pouco na faculdade

e a realidade é diferente, pois na faculdade a gente cuida de um, dois ou três

pacientes, é diferente ser acadêmico e profissional. E aqui a gente é responsável

por trinta, sessenta pacientes”.

Entrevista Nº 5

“O primeiro contato que você acaba tendo com o paciente é a linguagem, o

diálogo, é a comunicação mesmo, a não ser o paciente que não esteja

consciente, em coma, acamado, mas é o essencial para se começar uma relação,


103 103

uma troca de informação para poder cuidar mesmo, né, e não só a linguagem

falada, muitas vezes a linguagem corporal, porque tem muita gente que não está

podendo falar naquele momento, né, está impossibilitado e tem uma barreira

que não permite ele falar, então já compreende que ele está sendo bem aceito,

que pode ficar tranquilo que tem alguém por ele, cuidando. A corporeidade é

linguagem corpórea, como o corpo fala, né. O paciente demonstra, às vezes está

morrendo de dor e não abre a boca para falar nada, mas você olhando. A

característica do corpo, o posicionamento que ele manteve, os traços do rosto,

você já percebe aquilo que ele quer dizer. Um bebê muitas vezes, não fala, né é

a linguagem corpórea. E assim é com o paciente, às vezes você vai atender

alguém sem paciência e vai com aquela cara, e o paciente percebe. O cuidado

do outro, é uma coisa complexa, né. O outro, às vezes a gente se esqueça, mas o

outro acaba estando nas suas mãos mesmo. Às vezes não permite

acompanhante, a pessoa fica dependente, o cuidado para essa pessoa acaba

sendo essencial, pra gente às vezes a gente não percebe aquilo que a gente está

fazendo, a gente percebe talvez depois de dias que chega uma cartinha ali

agradecendo, muitas vezes criticando”.


104 104

Entrevista Nº 6

“Linguagem, seria a comunicação do paciente comigo e eu com o paciente, é

preciso ficar atento não só o que ele relata, mas o que ele não relata, a expressão

dele ou o estado de ansiedade que ele se encontra, pra mim poder basear a

minha assistência no que ele está sentindo, e poder ir sanando as dúvidas dele

com relação ao procedimento, à patologia dele, às condutas e ao tratamento. Já

corporeidade, eu não sei muito bem o que é, mas assim eu procuro quando a

gente tem que expor o paciente a um procedimento, alguma coisa, a gente tem
105 105

que se estar colocando no lugar dele, e estar procurando estar observando como

ele está se sentindo, na expressão dele, ou no caso de ele estar inconsciente, é.

Tentar não expor ele, expor o mínimo possível. Cuidado do outro é uma coisa

bem ampla. Além de ser usado a linguagem e a corporeidade, agora, depois de

formada, eu não tenho muita dúvida, mas logo que a gente começou a gente

teve muitas dúvidas, e, mesmo assim, é preciso estar tentando passar para o

paciente segurança, informações precisas, porque às vezes, o que é muito

pouco passado não pela equipe de enfermagem, mas por outras profissões, é

muito pouco passado para o paciente o que vai ser feito para ele. Então, além da

gente estar falando sobre o que a gente está fazendo, a gente tem que correr

atrás de outros profissionais, porque os pacientes estão muito perdidos, muito

ansioso, e isso às vezes acaba atrapalhando bastante.”

Entrevista Nº 7

“Eu acredito que na nossa realidade ela está muito longe, ela está ainda muito

longe daquilo que a gente vê nos livros que seria o cuidar, né... a gente se volta

muito para o objetivo, pra aquela coisa de fazer aquilo que está vendo da

necessidade, mas a questão do subjetivo, do que o paciente realmente está

precisando, o que ele quer dizer nas entrelinhas, isso eu acho que ainda não

temos preparo. Não a capacidade, capacidade a gente tem muito, mas até pela

questão da rotina, do dia-a-dia, de estar se envolvendo e estar correndo de um


106 106

lado para o outro, pela questão de estar em vários setores, de estar apagando

fogo mesmo, né... Eu acho que fica muito a desejar essa questão da

interpretação, do que realmente o paciente está precisando, do que ele quer

dizer quando ele diz que está com dor, ou quando ele diz que quer ir embora,

que ele está cansado, que quer ir embora, que não quer mais ficar que ele, de

modo geral isso acontece bastante. Até conversando há pouco tempo no

corredor com uma paciente, ela expressou isso, que na verdade ela não queria ir

embora, ela queria continuar o tratamento, mas era tudo tão estranho pra ela, ela

estava tão insegura, né. E quanto à questão do saber o tratamento que vai

acontecer, e o que está acontecendo, com essa pouca humanização que a gente

chega, não só a enfermagem, a parte médica também, que vai invadindo o outro,

vai chegando e vai fazendo e muitas vezes nem questiona o teu nome, não

pergunta nada, simplesmente vai fazendo, e todo mundo de branco, então a

pessoa nem sabe quem que está ali, muitas vezes, né... Se é um funcionário da

enfermagem, se é um acadêmico, de que área. Então isso eu sempre vi muito,

que a gente não ouve o paciente, você desrespeita bastante ele, eu já fui

paciente e sei, porque a gente se enxerga enquanto paciente você tem a tua

prioridade que nem sempre é o curativo, é a medicação, às vezes é uma

explicação. E enquanto profissional nós pecamos muito com isso, né... Pouco se

vê essa questão de conversar com o paciente, de explicar para ele o que está
107 107

acontecendo, o que se vai fazer e quem é você, o que pode estar fazendo, se ele

fizer isso ou deixar de fazer isso. As regras, por exemplo, não pode trazer

comida de casa, por que não pode, só porque eu quero que não pode, né... Não

pode sentar na cama, ou faça isso e faça aquilo, vai e daqui a pouco vai para o

banho, vamos levantar e vamos para o banho. Então essas coisas, eu acho que a

gente não dá a devida importância, e eu que realmente conto pro paciente,

porque ele precisa desse contexto, de se situar, de reconhecer onde ele está, de

ter a segurança de quem está ali em volta, por exemplo na maternidade há

reclamações - ah o pediatra não viu o meu filho - O pediatra nem se indigna a

conversar com a mãe, atende o bebê lá na sala do recém-nato, não que ele não

passou, passou mas a mãe não viu. Aí essa questão dos médicos substitutos, que

vêm prescrever para os outros, chega e passa, não conversa, não se identifica, e

aí a paciente diz que o seu médico não veio, ele veio, veio outra pessoa. E nós

da enfermagem apesar de estar ali próximo da paciente, às vezes eu acho que a

gente peca por isso, também, né por achar que está ali e ele sabe quem você é,

você deixa essa... Até a questão das terminologias, que às vezes é tão óbvia e

clara pra gente, mas você fala uma palavra às vezes até considerada comum, por

exemplo o paciente está grave... Mas ele vai sair bem... Então aí você vê que a

pessoa não entendeu o que quer dizer estar grave, né. Então isso são exemplos

assim, que eu vejo que a gente fica meio que robotizado... Às vezes você
108 108

responde, mas você não está respondendo, às vezes você nem entendeu o que a

pessoa está querendo, né...

Essa questão da linguagem subjetiva do paciente que às vezes está ali com um

comportamento de agressividade, de rebeldia, de não estar aceitando o

tratamento, de não estar sendo participativo no tratamento - eu vejo que tem

muito a ver com a questão da maneira com que a gente trata ele, né, não

interpretando realmente, não dando essa base para ele do que está acontecendo,

não compreendendo ele... O cuidado em si, na minha visão, ele é ainda muito

restrito, né... Aquelas noções básicas de higiene, curativos, técnicas, e, na

maioria das vezes, aquela atenção, aquele toque, como você está hoje, melhorou

a tua dor, é, enfim, atenção mesmo, ao meu ver é isso que a gente ainda faz. E

não é porque não se tem vontade, a maioria das pessoas tem vontade, eu vejo o

contrário, apesar da fala ser inversa de que o funcionário é preguiçoso, eu acho

que ele se torna na rotina e no dia-a-dia, mecânico, até porque ele não vê, ele é

único, ele tem ações isoladas, mas não uma continuidade da assistência no que

diz respeito à questão da humanização mesmo, né, de ver aquela outra pessoa

que tem os mesmos sentimentos que ele, né. Quando se fala que nós somos

seres humanos que trabalham com seres humanos e para os seres humanos não

só biológico. A gente vê somente o eu, eu tenho dor, eu estou triste, eu estou

cansado, eu estou com medo, eu estou com raiva, sempre eu. E a gente quer que
109 109

o próprio colega tenha os mesmos sentimentos e maneira de expressar o

mesmo que a gente e o paciente também... E isso as pessoas não se dão conta...

Então num momento mais, até por empatia com o paciente é essa pessoa muda

um pouco a sua rotina, mas a base do nosso trabalho ainda é o mecânico”.

Entrevista Nº 8

“A linguagem, a comunicação na verdade, é o que há de mais fundamental pra

gente que atua como enfermeiro, né... Acho que o enfermeiro às vezes tem

muito mais sensibilidade do que os outros profissionais, e acho que pode ter

muito mais sensibilidade para compreender melhor o paciente. No setor crítico,

eu acho que a linguagem acontece de várias maneiras, não muitas vezes com
110 110

comunicação verbal, mas com gestos, atitudes, expressões, tanto nossa quanto

do paciente. Muitas vezes é difícil pra gente estabelecer uma linguagem, uma

comunicação, adequada, justamente como meio de defesa diante das situações...

Eu procuro trabalhar comigo mesmo, né... Às vezes a gente percebe pela

expressão do paciente, a necessidade de relacionamento com o profissional e

muitas vezes a gente se abstém pra não se envolver de uma maneira mais

profunda com este paciente. No setor crítico eu vejo assim, quando o paciente

entra na UTI, paciente consciente que está contactuando e tudo mais, ele entra

fragilizado e muitas vezes tem o apoio das pessoas que está acompanhando ele

aqui dentro... Ele entra sozinho, sem roupa, sem documento, sem nada, né e às

vezes a única coisa que ele precisa muito naquele momento é o apoio de alguém

e nesse caso o apoio de alguém como nós, tanto enfermeiros quanto os técnicos,

mas principalmente por nós enfermeiros. Eu vejo que entra muito fragilizado,

ele exige muito, ele conta muito, ele quer ouvir muito a opinião e a gente às

vezes por receio, a gente acaba é, se distanciando pra não se envolver com o

paciente. Uma coisa que estou aprendendo ainda, porque antes eu fazia essa

associação com o ser humano dizendo, que esse paciente podia ser meu avô,

essa criança podia ser minha prima... E uma amiga minha dizia, que eu

precisava discernir essa pessoa que está ali naquele leito, ela tem uma vida, tem

uma história, tem os familiares dela. Ela merece o teu respeito e o teu trabalho,
111 111

mas ela não é o seu avô ou a sua prima, eu acho que a gente confunde isso e

acaba se distanciando muito do paciente. E a gente tem que aprender na verdade

as maneira com que o paciente se comunica com a gente, não só verbalmente,

mas com os gestos, expressões, porque às vezes não fala, nós temos que abordá-

lo, e tentar convencê-lo e até descobrir por que dessa fragilidade tão grande. O

respeito pelo paciente inicia quando a gente realiza os nossos cuidados, eu acho

que na verdade esse respeito inicia a partir do momento em que a gente começa

a manipular esse paciente, a maneira com que a gente aborda, até o simples

banho, e aqui é muito comum o banho no leito, que eu acho uma agressão, se o

paciente não for bem orientado, bem abordado, o paciente se sente agredido,

porque é um procedimento totalmente invasivo, o banho no leito... Quando a

gente invade a privacidade dele com todos pré-conceitos que ele tinha até ele

entrar aqui. Eu acho que o cuidado em si ele deve ser feito, mas é preciso

mediar até onde ele pode ser feito”.

Entrevista Nº 9

“Bom, eu compreendo que a linguagem, ela é tudo dentro do contexto da

enfermagem. A linguagem, ela está implícita nas nossas falas, na nossa escrita,

no nosso comportamento, e como você sabe eu trabalho num alojamento

conjunto pediátrico, onde eu tenho que lidar com a mãe ou o acompanhante e

com a criança que seria o paciente, então existem diversas formas de linguagem
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como eu já te falei, né e a gente tá lidando com isso a todo o momento, desde o

momento em que você entrou no setor, desde um sorriso, um bom dia, até a

questão do cuidado mesmo, né, da assistência e como você falou da questão da

corporeidade, eu acho também, uma coisa importante, a forma com que você se

coloca, a tua postura, acho que isso muito é muito importante, ainda mais no

alojamento que às vezes você chega assim de uma forma mais assim, como que

eu posso dizer, se impondo, a altura, você pode inibir a mãe e ela não vai

colocar pra você o que realmente está acontecendo. Ela vai ver você como uma

figura assim, ah, não me toque - tudo isso né. Às vezes a mãe está ali sentada no

sofanete com a criança no colo, então eu procuro me abaixar ali pra ficar na

altura dela e da criança para passar pra ela que eu estou alí preocupada, que eu

quero ajudar, e como eu posso fazer isso... Aí eu consigo fazer com que a mãe

se abra né, em todos os aspectos, porque aqui não é só a doença física, ela traz

outros problemas como os sociais, problemas emocionais e a gente acaba se

envolvendo tanto, que, no final do tratamento, ela vê o enfermeiro ou um outro

auxiliar com quem ela se identifique que consiga passar isso pra ela, ela vê

como uma referência, e isso é bom porque você consegue transmitir essa

confiança pra mãe e ela te dá liberdade pra você fazer todos os cuidados com a

criança e com isso você consegue respeito e tudo mais. Mas assim, falando

também um pouco da linguagem escrita, a comunicação escrita na enfermagem


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ela é assim, a gente já percebeu que a escrita é tudo... Então, nem que você

tenha que sair daqui mais tarde, mas nunca deixa de escrever, de registrar,

porque no outro dia aquilo que você trouxe, te livrou de alguma coisa, né. Então

a comunicação escrita na enfermagem, tudo o que você fez com paciente, tudo o

que o médico falou, não adianta só falar, a gente tem que registrar e na

enfermagem isso é tudo... Eu já me livrei de muita coisa por conta da

comunicação escrita. E o cuidado, nossa, é, você ceder ao outro, nossa, eu vejo

assim que às vezes a gente está com tantos problemas em casa, e eu chego aqui

e quando vou fazer os cuidados, eu esqueço de tudo e me dedico aquilo ali,

sabe, e acabo desviando o pensamento e me concentrando naquilo né... Porque

o cuidado exige tanta responsabilidade, tanta concentração que você acaba se

empolgando, eu acho que o cuidar do outro é você se entregar né, mas pra fazer

isso, pra cuidar do outro, eu acho que é questão de dom mesmo, não é qualquer

um que faz isso, não é qualquer pessoa que tem o dom de cuidar né – porque é

zelar, é preservar, o cuidado não só com a terapêutica, mas com o conforto, a

higiene... Nossa, eu trabalho com pacientes com câncer também e eu vejo que à

noite a gente só acaba fazendo assistência, né. Então você vê aquele curativo

todo molhado no paciente, o paciente todo molhado e desconfortável, aí você

vai lá e dá aquela “geralzona”, troca o curativo, faz uma mudança de decúbito.

Nossa... como que aquilo é bom, por mais que ele esteja sofrendo, você vê a
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satisfação nos olhos dele e isso pra gente também é gratificante, eu me sinto

muito bem. Eu acho que cuidar seria a essência da profissão, então, mas é tão

difícil falar porque não estamos acostumados a falar e a escrever, né...”.

Entrevista Nº 10

“O cuidado na enfermagem, eu entendo como ver o ser humano e cuidar dele

como um todo de uma maneira holística, não só o ato do cuidado em si. Não só

o fato de você estar prestando um cuidado físico, mas o fato de você entender o

indivíduo como um todo, na sua vida como um todo, e ver ele como, de forma

espiritual, de forma corpórea, social, o seu ambiente familiar, enfim, é ver o

indivíduo não só naquele momento, mas entender ele de forma total e holística
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mesmo. A linguagem, assim, às vezes ele olha pra ti de uma forma que ele está

querendo saber alguma coisa pelo olhar, pelo toque, é eu acho que isso, a

comunicação... A linguagem acontece de várias formas, não só quando executa

um cuidado físico. Por exemplo fazer uma assepsia no local onde você vai fazer

uma punção, de forma de ele entender porque você faz esse cuidado, mas assim,

um curativo por exemplo, ele está todo envolto numa situação que você, às

vezes, ele está trazendo um problema de casa num problemas de casa e às vezes

a ferida aí não está melhorando porque ele tem um problema maior por trás

disso, problema emocional, problema de ordem social, problema de ordem

mental, então você tem que ver o cuidado de forma a trabalhar todos esses

setores da vida do indivíduo, né”.


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ANEXO 3

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