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PUC-SP
Juliana F. Marcolino-Galli
SÃO PAULO
2013
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Juliana F. Marcolino-Galli
SÃO PAULO
2013
2
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e
científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos
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Data:
4
Aos meus pais, amor incondicional
5
Agradecimentos
6
A Dra. Rosana Landi pela contribuição na qualificação deste trabalho e
pelas reflexões sobre as demências, ponto em comum. Saudades do tempo
em que eu estava no aprimoramento e você sempre por perto!
Aos familiares e amigos que sempre torceram pelas minhas conquistas. Aos
meus pais pelas oportunidades e ensinamentos, pelo carinho em todas as
minhas chegadas e partidas. Fernanda, minha irmã que admiro muito! Ao
Ricardo, meu grande amor, pela compreensão nos momentos difíceis, ajuda
com a rotina e apoio em todas as minhas decisões Aos meus sogros pela
disponibilidade e auxílio com idas e vindas ao aeroporto.
7
escuta e parceria. Muito bom ter você por perto! Ana Paula Leite sempre
encantadora e disposta a ajudar. Francine Marson e Adriana Romão pelos
bons momentos. Cris Magni, grande companheira na chefia, obrigada pelas
palavras carinhosas e pela serenidade. Gilsane por compartilhar angustias
que vivemos na fase do doutorado.
8
RESUMO
9
ABSTRACT
The issues that drove this work arise in the attendance of individuals with a
medical diagnosis of early-stage dementia. Invariably, these patients
complained of memory difficulties. However, they were little affected by their
repetitive speech and did not hold a demand for care. Other issues on the
inclusion of the family and the direction of the monitoring of those cases arose.
From the theoretical point of view, this paper discusses the language-memory
relationship in dementia. From a clinical perspective, the hearing of complaints
of memory difficulties in a so-called Language Clinic is questioned. The starting
point is presenting state of the art in medical and phonoaudiological clinics in
dementia. The present discourse is guided by the Cognitive Neuropsychology,
which refers to the understanding of memory as storing and language as
expression of such content. The next theoretical step moves away from these
neuropsychological studies and goes toward psychoanalysis, more specifically
to the route of Freud in the foundation of the Unconscious and the
developments that Lacan points out with the significant theory. Theoretical
trajectory that touches the relation perception-object. The relation language-
memory was investigated under the assumption that the subject is effect of
language and that also memory is effect of language. Assumptions that are
consistent with reflections submitted by the researchers of the research group
"Acquisition, Pathology and Language Clinic", coordinated by Lier-DeVitto and
Arantes at LAEL / DERDIC. Finally, the clinical questions were mobilized by the
reading operators constructed throughout the chapters.
10
ÍNDICE
Introdução 14
linguagem.
linguagem e demência.
memória.
de um aparelho de memória.
funcionamento.
deslocamento.
11
Capítulo 3. A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as 83
demências.
Linguagem.
Marlene
Referências 143
12
A relação memória-linguagem nas demências: abrindo a caixa de Pandora
Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, recebe dele uma caixa (na
verdade, jarra) que continha os males (inveja, medo, ódio, ciúme). Zeus disse a
ela para jamais abri-la. Pandora, movida por sua curiosidade, decidiu abri-la,
liberando todo o seu conteúdo exceto um item – a esperança: a partir da
abertura da sua caixa o ser humano não pode melhorar a sua condição sem
enfrentar adversidades. Pode-se dizer que a abertua da caixa de Pandora
inaugura o dualismo, no caso, entre bem e mal. Nos dias de hoje, abrir a caixa
de Pandor significa criar um problema difícil de ser resolvido.
13
Introdução
1
Os pacientes são atendidos por mim e por alunos do curso de graduação em Fonoaudiologia
da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Paraná. Trata-se do projeto de extensão “atuação
fonoaudiológica em pacientes com distúrbios neurológicos”, sob minha coordenação desde
2006.
14
uma vida social ativa” (BRUM et. al., 2009). Os fonoaudiólogos Bayles e
Kaszniak (1987) relataram, pela primeira vez, déficits cognitivos e linguísticos
em estágios da demência. Neste relato, destaca-se a atuação do fonoaudiólogo
no atendimento da família e/ou dos cuidadores – a ele caberia a elaboração de
“estratégias facilitadoras da comunicação”, orientações que foram, antes,
realizadas por enfermeiros. Afirma-se que a progressão da doença é
acontecimento que descartaria, de antemão, a terapia fonoaudiológica. Foi
apenas no início da década de 1990, que ela começa a acontecer - o
fonoaudiólogo passa a ter uma prática direta com o próprio paciente
(BOURGEOIS e HICKEY, 2009). Atualmente, os dois modos de atuação –
direta e indireta – são recomendados como atendimento desses pacientes.
Segundo a American Speech-Language-Hearing Association, o terapeuta deve
ter claras suas metas e objetivos para que possa decidir quando irá investir em
um atendimento direto2 (ASHA, 2005).
No que concerne à fala dos pacientes, a terminologia da afasiologia
migra sem reflexão. É bastante frequente ler-se, por exemplo, que:
2
No próximo capítulo, apresentarei os critérios que orientam o fonoaudiólogo a optar pela
atuação direta ou indireta.
15
se apreende qualquer base científica referente às considerações ou afirmações
sobre a linguagem – não há, nesses estudos, qualquer compromisso com uma
reflexão consistente ou sólida sobre a linguagem ou sobre a relação sujeito-
linguagem. Frente a tal naturalização, não se deveria estranhar que as
ocorrências de fala de pacientes com demência, sejam identificáveis à “fala
afásica”. Parece-me necessário indagar, ainda, se a bipartição demência –
afasia importa ao clínico de linguagem. Adianto que afasia e demência
remetem a quadros distintos para a Clínica de Linguagem, seja por sua
manifestação sintomática, seja pelo efeito que produz no sujeito-falante
(FONSECA, 2011).
A meu ver, apesar de afasias e demências remeterem a um problema
cuja etiologia é cerebral, a diferença entre essa determinação não aproxima o
que dela emerge como efeito em quadro e em outro. Do ponto de vista
orgânico, a afasia decorre de uma lesão cerebral estável e a demência implica
lesão degenerativa e gradual do cérebro – trata-se de uma doença neurológica
progressiva, o que, de antemão, deveria interrogar propostas clínicas. Do ponto
de vista linguístico, a clínica e a reflexão de autores filiados à Clínica de
Linguagem3, introduziram nessa discussão a questão do sujeito, mais
precisamente, como mostraram Lier-DeVitto, Fonseca e Landi (2007), ao
indicar diferenças na relação do sujeito com a própria fala e com a do outro.
Podemos dizer, com Fonseca (1995, 2002), que o afásico guarda na escuta a
sua fala de antes da lesão cerebral e, por isso, reconhece que seu dizer afásico
é expressão de uma fala em sofrimento. Essa cisão na escuta do afásico
propulsiona a demanda: que o clínico possa mudar sua condição de falante
(FONSECA, 2012).
Ao iniciar um processo diagnóstico de pacientes com demência,
questões teórico-clínicas e éticas impõem-se: pergunta-se se a práxis com
pacientes afásicos, já tão quotidiana numa Clínica de Linguagem, poderia
direcionar um caminho para atendimento de pacientes demenciados. É preciso
partir da queixa: o paciente com demência, invariavelmente, queixa-se de
dificuldades com a memória e este não é o caso com pacientes afásicos. É
3
Proposta que se origina no grupo de pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem,
coordenado por Lier-De Vitto e Arantes na PUC-SP/DERDIC/LAEL. As reflexões estão em
consonância com o estruturalismo europeu (Saussure e Jakobson) e com a Psicanálise
(hipótese do Inconsciente).
16
preciso perguntar “o que essa queixa significa para um fonoaudiólogo, clínico
de linguagem”? Como ele escuta essa queixa? Afinal, o que é memória para
uma clínica que se diz de linguagem?
Pois bem, atendi o Sr. Pedro, cuja queixa era de “dificuldades de
memória” e “dificuldades para compreender a leitura” que fizemos em duas
sessões. Ele veio sozinho, encaminhado pela audiologista da instituição. Iniciei
a entrevista perguntando como ele estava e obtive a seguinte resposta: “como
você acha que alguém com 84 anos está”? Assim, ele se apresentou: ora
incomodado com a velhice, ora negando qualquer dificuldade. Associou suas
dificuldades de memória com a morte da sua irmã. Em seguida, perguntou se
eu era psicóloga, apesar de eu ter lhe explicado o meu trabalho. Como não se
configurou uma demanda clara, agendei uma nova entrevista. Ele pediu para
eu anotar o meu nome, horário e data da sessão seguinte. Durante a semana,
ele ligou várias vezes na secretaria da clínica para perguntar sobre o
agendamento. Foi informado que faria uma entrevista - a anotação que fiz
parecia não ter valido para ele.
Na semana seguinte, ele compareceu no dia e horário combinados. Agiu
como se nunca tivesse me conhecido. Perguntou o meu nome e estranhou
quando eu disse que já havíamos conversado. Em seguida, para minha
surpresa, ele espalhou uma pasta com muitos papéis sobre a minha mesa. O
Sr. Pedro trouxe o seu currículo datilografado e contou detalhes de suas
experiências profissionais. Talvez a palavra “entrevista” tenha promovido um
deslocamento: de entrevista clínica para entrevista para trabalho. Ele não
soube me dizer porquê havia trazido seu currículo e documentos. Passou a
queixar-se dos esquecimentos, das dificuldades de leitura e de escrita.
Combinamos que iniciaríamos uma avaliação dessas dificuldades. Depois
disso, ele passou a vir até à clínica em dias e horários não esperados por mim.
No dia agendado, ele não veio. Consegui falar ao telefone com sua irmã, que
comunicou o encerramento do atendimento, dizendo que ele não tinha
“nenhuma dificuldade de memória”. Nota-se que apesar das queixas, o
tratamento não pode ser sustentado pelo próprio paciente (e nem seria pela
família, parece-me.
Esse modo de se apresentar ao clínico para enunciar uma queixa e um
pedido de ajuda, comum na clínica com afásicos, ganha outros contornos no
17
atendimento de pacientes com demência. Como sustentar uma clínica com um
sujeito alienado no próprio sintoma? Parece que o manejo com a família é
mesmo necessário. Entretanto, a demanda da família é suficiente para produzir
efeitos no atendimento desses sujeitos? A distinção clínica entre afasia e
demência está associada ao efeito que o sintoma produz/afeta um sujeito –
sobre sua posição na relação com a própria fala e com a fala do outro. Fonseca
(2010) pergunta se a demência é um desafio ou um limite para a clínica de
linguagem já que uma “dissolução linguística e subjetiva” está em jogo na
demência (FONSECA, 2012).
O paciente com demência, num ponto razoavelmente avançado da
doença, fica preso, alienado num dizer petrificado, repetitivo e, com frequência
ligado a um passado distante. Essa característica tem efeitos plurais e
imprevisíveis, que tomam direções de tratamento também bastante
diferenciadas, que têm relação com facetas singulares do sujeito em sua fala.
Fato é que, nas demências, as falas “perfeitamente articuladas, mas frustrantes
porque desajustadas em relação à expectativa do outro” (LANDI, 2007, p.14)
são sintomáticas – ainda que fluentes e bem estruturadas, elas causam
estranhamento. A função comunicativa se dissolve e a fala se “resolve em
torno de uma mesma massa sonora” (Landi, 2007, p. 10). Dito de outro modo,
a relação do sujeito com a própria fala e a do outro fica abalada.
Do ponto de vista teórico, a demência exige que se enfrente a relação
memória-linguagem. Nesta tese, ela será discutida a partir do pressuposto de
que o sujeito é efeito (é-feito) de linguagem e também a memória é efeito (é-
feita) de linguagem. Isso significa que linguagem não é função cognitiva e
memória não é arquivo. Do ponto de vista clínico, abordarei como são as
queixas de dificuldades de memória na Clínica de Linguagem.
Não deixo, por isso, de percorrer, neste trabalho, ainda que de modo
não exaustivo, a literatura médica e fonoaudiológica sobre o assunto para
circunscrever o modo como memória e linguagem são tratadas e, ainda, para
tentar esclarecer como e quanto a queixa de dificuldade de memória participa
(ou não) do diagnóstico da demência.
No capítulo 1, apresento, portanto, o “estado da arte” e os impasses
teórico-clínicos dos estudos filiados ao discurso da Neuropsicologia,
principalmente no que se refere à delimitação do normal e do patológico
18
quando se avalia a cognição. No capítulo 2, abordo a trajetória de Freud desde
a elaboração do “aparelho de linguagem” (na monografia A Afasia, 1895),
depois, o “aparelho de memória” (na Interpretação dos Sonhos, 1900) e,
finalmente, a apresentação do “aparelho psíquico” (no Inconsciente, 1915). Os
termos “memória” e “linguagem” fundam a Psicanálise. Neste percurso, o foco
esteve voltado para a relação memória-linguagem, quando se considera a
hipótese do inconsciente. Passo, ainda, por concepções de percepção e
representação. A discussão deste capítulo foi fonte para desdobramentos
clínicos, trabalhados nos dois últimos capítulos. No capítulo 3, a primeira tópica
freudiana e os três registros lacanianos – Real, Simbólico e Imaginário –,
invocadas no relato de caso de atendimento de uma senhora com demência,
realizado por um psicanalista (MESSY, 1993), foram introduzidos e
trabalhados. No capítulo 4, apresento e discuto aspectos relevantes da Clínica
de Linguagem e apresento vinhetas clínicas. Nas considerações tecidas,
transparece o esforço teórico realizado nos capítulos anteriores. Passemos,
então, ao trabalho.
19
Capítulo 1
Discurso e Clínica das demências: memória e
linguagem
20
fonoaudiológico ou psicológico voltado ao estancamento das perdas cognitivas.
Percorro, na sequência, os pressupostos da clínica fonoaudiológica filiada às
reflexões encaminhadas na Neurolinguística Discursiva. Nela, memória ganha
alguns outros contornos e a comunicação é enfoque no atendimento. A palavra
“discursiva” pressupõe certa distância de aportes exclusivamente gramaticais e
envolve, consequentemente, uma direção de tratamento que incluiu a história
do sujeito e suas significações. Esta vertente não abandona, sob o peso do
termo “Neuro”, que comparece no título da abordagem, postulações cognitivas
(TESSER, 2007).
21
símbolos, ou seja, computação, e ativa. No início de década de 1980, “o
programa começou a mostrar sinais de degeneração, isto é, começou a exaurir
a sua capacidade de produzir novidades” (FRANÇOSO e ALBANO, 2004, p.
306). Diante deste quadro, dois movimentos – braços teóricos - são notados. O
primeiro movimento foi caracterizado pelo “enxerto” do programa empirista em
teorias cognitivistas. É o que se vê, por exemplo, na Neuropsicologia
Experimental, disciplina que valoriza procedimentos quantitativos e
padronizados, como é de se esperar, já que assume a perspectiva
comportamental cuja meta é garantir objetividade observacional. Já o segundo
movimento culmina com a proposta de Jerry Fodor, em A modularidade da
mente5 (FODOR, 1979/1983).
A partir da década de 1980, os estudos da Neuropsicologia Cognitiva
Humana destacam o conceito de modularidade cognitiva e passam a
correlacionar funções preservadas (normais) e alteradas (sintomáticas) a uma
hipótese de processamento cognitivo (HÉCAEN e ALBERT, 1978). Sustenta-se
que o funcionamento mental organiza-se em módulos – sistemas de input.
A Neurolinguística foi área criada por Jakobson quando realizou estudos
sobre a afasia, na década de 1940. Face aos perturbadores sintomas na fala,
outros modelos sobre a relação cérebro-mente-linguagem surgiram – entre
eles, a modularidade e o conexionismo (que sustenta que módulos interligam-
se). A aproximação à Linguística se realiza, nesse campo, sob duas
perspectivas: a tradicional, que dá destaque à descrição dos componentes
linguísticos (fonético, fonológico, morfológico, semântico, sintático e
pragmático) e, outra, de cunho enunciativo-discursiva. No segundo caso,
estratégias cognitivas de produção do discurso ganham relevância (COUDRY,
1988, 1997, entre outros). Nesse arranjo multidisciplinar (Neurologia, Psicologia
e Linguística), a participação da memória no processo de envelhecimento e na
demência é sublinhado, embora não se questione o fato dela ser caracterizada,
ao modo da Medicina, como uma espécie de arquivo de lembranças.
5
Fodor (1979/1983) aponta a dificuldade em se conhecer a inteligência humana. Ele afirma
que “os sistemas centrais são incognoscíveis, isto é, que não se pode fazer uma ciência da
manipulação de símbolos no nível superior” (FRANÇOSO e ALBANO, 2004: 306). Recomenda-
se a atenção para os sistemas ou módulos de input. O conexionismo, a partir disso, propõe um
funcionamento da mente em módulos interligados. Estes módulos processam a informação
(sistemas de input). Destacam-se, por exemplo, o módulo léxico-ortográfico e léxico-auditivo no
processamento da linguagem.
22
1.2. Cérebro, Envelhecimento, Memória
6
O diagnóstico diferencial contempla quadros depressivos no idoso e tipos de demência.
23
[de grande valia é] a noção de que existem diferentes sistemas
de memória, e que algumas seriam mais afetadas pelo
desenvolvimento normal enquanto que outras poderiam ser
indícios de processos degenerativos e de alterações afetiva.
(PARENTE et. al., 1999, p. 61).
24
Outros trabalhos (CLARE, 2003; WAGNER et. al., 1997) ressaltam a
presença de anosognosia na demência, atribuída ao comprometimento
cerebral do lobo frontal. Mencionar “anosognosia” é dizer que o paciente com
demência não tem consciência dos seus déficits. Segundo Souza et. al. (2011),
a “falta de consciência” sobre a doença é controversa na literatura e, alguns
estudos, admitem haver uma flutuação. Souza realizou, com outros autores,
uma pesquisa longitudinal para apreender o estado de consciência na doença
de Alzheimer, envolvendo 25 pacientes brasileiros com doença de Alzheimer
leve, no início da pesquisa. Avaliações foram realizadas com base em testes e
questionários aplicados aos pacientes e cuidadores. A consciência da doença
foi avaliada num questionário com 35 perguntas divididas em cinco áreas: (1)
consciência do déficit, (2) relação social, (3) relação familiar, (4) atividades de
vida diária e (5) relação afetiva.
Os pesquisadores esclarecem que a discrepância entre os relatos do
paciente e do cuidador foi considerada. Eles observaram que, na primeira
avaliação diagnóstica, 7 pacientes (38%) tinham plena consciência da doença;
10 pacientes (55%), consciência parcial da doença e 1 paciente (5%), ausência
de consciência da doença. Na segunda testagem, 1 paciente (5%) tinha
consciência da doença; 13 pacientes (72%) tinham consciência parcial da
doença e, em 4 deles (22%), não havia qualquer consciência da doença. Eles
concluíram, frente a esses resultados, que há perda de consciência sobre a
doença: há declínio cognitivo e funcional à medida que a demência progride.
Note-se que, embora se tenha dito que, na pesquisa, a queixa do
paciente é levada em conta, na verdade, o que ele diz é transformado em
“dado” já que o que queixa se torna resposta à pergunta do teste – é resposta
induzida para avaliar “o grau de conhecimento” que ele tem sobre a própria
doença – o que importa é apreender um momento de passagem do momento
da queixa de esquecimento para aquele da instalação da patologia – pesquisas
desse tipo não incluem o doente na doença.
Também, interessa-me assinalar que a referida queixa do paciente é
sempre desvalorizada porque confrontada com a do cuidador7 - a verdade
7
Fonseca discute esse ponto quando indica que na Clínica de Linguagem com afásicos,
recomenda-se que ele entre só nas entrevistas e nas sessões clínicas (FONSECA, 2002,
25
sempre está em outro lugar. Landi (2007) e Emendabili (2010), pesquisadoras
filiadas às reflexões da Clínica de Linguagem, abordam este ponto - do
acompanhante como “informante confiável”. Elas discutem efeitos dessa
redução de valor da queixa do sujeito e retiram implicações clínicas quanto ao
compromisso com o tratamento e na relação com o próprio sintoma. A
dicotomia consciência vs. não-consciência sobre o sintoma serve a propósitos
bem específicos de testagens, mas ela não só anula a “heterogeneidade das
respostas que uma pessoa possa dar” (LANDI, 2007, p. 88) como tem deixado
rastro indesejável na clinica:
26
do falante, do clínico e do pesquisador neste campo. A “condição afetiva” do
paciente não é relevante, mas, quem sabe, participe da decisão sobre o
encaminhamento a outras clínicas. Na Clínica de Linguagem, assume-se que a
queixa diz respeito a como e quanto o sujeito é afetado em sua condição de
falante: pelo efeito em si e no outro de uma fala própria que o marginaliza
(LIER-DeVITTO, 2001, 2004, 2006). A demência – uma doença neurológica –
afeta a fala e posição de falante, que sofre seus efeitos.
Para o médico, a demência é olhada como vinda de “corpo mudo”, em
metáfora de Fonseca (2002)9. A discussão diagnóstica restringe-se a definir a
relação entre envelhecimento x declínio cognitivo leve x demência
(EMENDABILI, 2010). Desse modo, compreende-se a valorização da
neuroimagem e dos estudos genéticos no diagnóstico precoce da demência. O
problema, apresentado por autores como Glinsky (2007), é que a demência,
inicialmente, pode não ter correspondência orgânica. Essa dificuldade objetiva
no estabelecimento de uma correlação segura, conclusiva (por imagem), entre
sintomas e alterações orgânicas acabou dando força para o diagnóstico clínico
na Medicina que liga a avaliação cognitiva ao estudo do cérebro. Importante
dizer que esta tendência diagnóstica justifica a interdisciplinaridade que se
imprimiu, desde então, e que é representado pela demanda dirigido a
psicólogos, demanda, essa, que deu origem à Neuropsicologia (e outras
composições: Neurolinguística; Neuropsicolinguística), no campo dos estudos
sobre as demências.
Testes neuropsicológicos buscam proporcionar um elenco de
marcadores clínicos para o diagnóstico da demência. Geralmente, são testes
computadorizados, que visam controlar, com precisão, o espaço de tempo
entre a apresentação dos estímulos e a emissão das respostas. As respostas
são quantificadas, tratadas estatisticamente e comparadas à de grupos de
controle (sujeitos com ausência de doenças neurológicas, psiquiátricas e com
idade superior a 55 anos) (CHARCHAT et. al., 2001). Apesar de incluir funções
cognitivas do indivíduo para se preencher os critérios diagnósticos da doença,
o sujeito fica excluído, do mesmo modo e pelas mesmas razões apresentadas
9
A partir de Foucault (1980/1994), Fonseca (2002) pode assinalar que o advento da
anatomopatologia, no século XIX, determinou que a doença tem “sede” e, portanto, se
apresenta no “corpo mudo” – sem o doente.
27
acima – ele é número numa porcentagem10. Nada muda muito, de fato: a
constatação de mudanças no tecido cerebral e na performance cognitiva é
associada ao avanço da idade nos trabalhos de médicos, neuropsicólogos e
fonoaudiólogos, em sua grande maioria. Talvez algo tenha mudado:
aprofundaram-se certezas médicas, já que foram referendadas pelas “ciências
humanas”, que passam, nessa composição com a Medicina, a “fazer
complemento” a ela11 - as “humanas” aderem a Medicina, seus objetivos e
causa; respondem inteiramente à sua demanda.
Isso, mesmo frente a conclusões de pesquisadores americanos que
afirmam não haver relação direta entre o envelhecimento cerebral e o declínio
cognitivo. Ou seja, envelhecimento cerebral e déficit cognitivo são esperados,
mas são acontecimentos concomitantes (WANG e SNYDER, 1998; GLINSKY,
2007). Em experimentos com testes e estatísticas, eles mostraram que sujeitos
a partir de 50 anos são, em geral, mais lentos para diversas tarefas cognitivas
quando comparados aos adultos jovens. Glinsky (2007) afirma que a relação
envelhecimento cerebral x declínio cognitivo é, de fato, complexa e com grande
variabilidade individual. A autora postula que o funcionamento dinâmico das
redes neuronais modificam-se ao longo da vida, justificando, desse modo, a
heterogeneidade das manifestações individuais e a impossibilidade de construir
padrões confiáveis que delimitem, com nitidez, o esquecimento normal e o
patológico.
Estas últimas pesquisas enfatizam a ocorrência da atrofia cerebral,
principalmente na área do hipocampo e o declínio da memória, da atenção e do
processamento da linguagem no envelhecimento. Para elas, a dificuldade
perceptual é fator decisivo na queda do desempenho cognitivo. O argumento é
que a percepção propicia a atenção seletiva, a capacidade de eleger estímulos
específicos no mundo externo. Desse modo, a percepção é o ponto de partida
para o armazenamento das informações. A atenção permite ao indivíduo
10
Canguilhem (1966/2007) argumenta que o homem mediano é um ideal, ou seja, um produto
estatístico que não existe. Assim, norma e média não são equivalentes. Além disso, nessa
ótica, como esclareceu o autor, saúde e doença são transformadas em estados homogêneos e
contínuos; não há diferença qualitativa.
11
Utilizo aqui a expressão de Maria Teresa Lemos (2002) para se referir à natureza da relação
que os estudos em Aquisição da Linguagem fazem com a Linguística. Assumo, por certo, o
mesmo raciocínio para falar sobre a relação das Psicologias e da Fonoaudiologia com a
Medicina. Ver, também, Lier-DeVitto (1995, 2012) sobre a relação da Fonoaudiologia com a
Medicina e com a Educação.
28
selecionar estímulos ambientais e controlar o fluxo das informações linguísticas
e não-linguísticas. A informação recebida pela via perceptual é armazenada e
organizada no/pelo cérebro. Depois disso, o sistema de memória organiza-se
em categorias para, assim, recuperar a informação armazenada com mais
rapidez e facilidade (PARENTE et. al., 2009). Convém, neste momento, frente
à clara explicitação do “processamento percepto-cognitivo”, no âmbito dos
estudos médicos e neuropsicológicos, dizer que esta tese opõe-se a tal
entendimento e que dedicará os capítulos posteriores ao esforço de contrapor-
se a tal abordagem sobre memória (e linguagem).
Nos estudos neuropsicológicos, são construídos modelos hipotéticos de
funcionamento da memória: trabalha-se com a hipótese da existência de
memórias distintas. Divide-se a memória em dois sistemas - memória de
trabalho de curto-prazo ou de longo prazo.
A memória de curto-prazo seria responsável pela manipulação de
informações para execução de uma determinada tarefa (como, por exemplo,
anotar um número de telefone). Ela é constituída por um subprocesso, o
executivo central (que recupera a informação, armazena, manipula e faz
ajustes cognitivos para mudanças nas operações); pelo circuito fonológico
(que tem um estoque fonológico que decodifica a linguagem para articulação)
e, ainda, um sistema visuoespacial (que armazena informações não-
linguísticas).
A memória de longo prazo é ativada quando a situação exige a
recuperação da informação, explícita ou implícita. O acesso à informação na
memória explícita é consciente e associada à linguagem, quando a recordação
é verbalizada. Na memória implícita, a informação é automatizada, não
consciente. A memória de longo prazo é, também, semântica ou episódica.
Na memória semântica estão os conceitos e conhecimentos gerais; na
episódica, fica a história de vida, ou seja, a memória autobiográfica
(BRYAN, MAXIM, 2006; RIDDLE, 2007; PARENTE et. al., 2009;
VERHAEGHEN, 2012) 12.
12
A memória semântica tem organização hierárquica, ou seja, conceitos ramificam-se em
níveis superiores e inferiores. Segundo PARENTE et. al. (2009), a degradação da memória
semântica é encontrada na demência do tipo Alzheimer (DTA) e, não é observada no
envelhecimento dito normal.
29
A memória de trabalho tem sido indicada como o foco primordial no estudo
do declínio cognitivo em idosos devido ao prejuízo no desempenho de
atividades cotidianas. Afirma-se que isso ocorre porque elas estão relacionadas
ao subprocesso executivo. Verhaeghen (2012), após extenso levantamento
bibliográfico (123 estudos que compararam a memória de trabalho entre
adultos jovens e idosos), conclui que, apesar de apresentarem resultados
indicativos de declínio da memória de trabalho no idoso, processos afetados
são outros: alguns têm relação com o sistema visuo-espacial e outros com o
sistema fonológico. Com isso, o autor quer mostrar que a explicação para o
déficit da memória de trabalho permanece polêmica. Não há consenso sobre
se é a capacidade armazenamento da memória de trabalho que decai com o
envelhecimento ou se é o declínio da atenção que altera seu desempenho.
Bryan e Maxim (2006), por exemplo, insistem na hipótese de que a dificuldade
de direcionar a atenção, associada à perda auditiva, dificulta o processamento
da informação e, consequentemente, torna a memória de trabalho mais lenta.
O problema seria, portanto, perceptivo. Ou seja, na comparação entre as
performances de idosos e adultos jovens, os estudos somente indicam o
declínio nos sujeitos velhos, mas não conseguem sustentar uma explicação.
A anomia - “perda da palavra” - pode ser encontrada tanto no início da DTA
quanto no processo de envelhecimento normal. Segundo a literatura
fonoaudiológica e médica, o idoso tem dificuldades de nomeação e substitui os
nomes esquecidos pela designação genérica “coisa”, ou “aquilo”, por exemplo.
Também Parente et. al. (1999, p. 60) afirmam que as habilidades verbais ficam
preservadas no envelhecimento, exceto por “certa dificuldade em encontrar
palavras”, o que sugere, dizem os autores, haver interação entre memória e
linguagem, mas não há prejuízo fonológico ou sintático. Já, para Verhaeghen
(2012) há redução da construção sintática na fala de idosos, quando
comparada à fala dos jovens. A hipótese do autor é, por isso, a de que o
declínio da memória de trabalho afeta a construção sintática e o
processamento de sentenças mais complexas. No entanto, ele admite que
outros estudos apresentam resultados diferentes dos dele e que o problema
poderia estar no tipo de sentença testada. Bryan e Maxim (2006) afirmam que
o déficit de linguagem no início de DTA deve-se a problemas de acesso à
informação, resultando, disso, diminuição de vocabulário. Os pacientes com
30
DTA leve, em sua pesquisa, foram capazes de reconhecer objetos e incapazes
de classificá-los em categorias - problema na memória semântica, concluem
eles.
Glinsky (2007), por sua vez, constatou dificuldades maiores com a memória
semântica (tarefas de nomeação) e com a memória de trabalho. Quanto à
memória autobiográfica, idosos apresentaram melhores resultados do que os
jovens – assim, o declínio da memória ocorre em situações específicas, diz ele,
em situações de lembrar nomes ou números de telefones. Parente et. al.
(1999) investigaram a memória verbal de curto prazo (repetição de números e
palavras) e a memória textual (recontagem de histórias) com um grupo de 16
pacientes com demência, sendo que 7 tinham doença de Alzheimer e 9,
demência vascular. O objetivo desta pesquisa foi: “(1) verificar se a perda
cognitiva representa um envelhecimento mais rápido ou possui características
diferentes do envelhecimento normal e (2) qual das duas esferas de memória
verbal tem maior possibilidade de caracterizar um processo demencial” (idem,
ibidem, p. 69). Os autores anotaram dificuldades acentuadas nos pacientes
com DTA para recontar histórias – havia prejuízo maior na memória
autobiográfica (episódica) do que na memória de curto prazo, dizem eles.
Esse acontecimento não é observado no envelhecimento normal, como havia
apontado Glinsky (2007). Segundo os autores, os idosos sem processos
degenerativos podem lançar mão de “estratégias cognitivas” para resgatar a
memória de longo prazo, apesar das falhas na memória de curto prazo.
De um modo geral, pesquisadores e clínicos reconhecem que a linguagem
do idoso, no início da DTA, está preservada. A anomia, a redução sintática, ou
a dificuldade de recontar histórias, não são vistas como problema (patologia)
de linguagem – embora haja sinais na linguagem de alterações na interação
entre linguagem e memória. Devo assinalar presença de dissenso expressivo
na explicação sobre o funcionamento cognitivo que afeta a linguagem, como
vimos. A alteração é ora referida à memória de trabalho, ora à memória
semântica ou, então, à atenção, à perda de audição e até aos problemas na
memória episódica. Consensual é a forte certeza de que o funcionamento da
memória afeta a linguagem. Como disse Cruz (2004):
31
Ao falarmos de atividades como combinação, seleção,
reconhecimento e recuperação (de sentidos, de enunciados, de
palavras), estamos falando de linguagem. [...] O debate sobre
as relações entre linguagem e memória não escapa a uma
reflexão sobre a cognição (CRUZ, 2004, p. 601-604) (ênfase
minha).
13
Fonseca discute, desde 1995, a causalidade sugerida na sequência acima e, na trilha de
Jackson e Freud, dilui essa causalidade que retém a linguagem numa situação de “excremento
do cerebral”.
32
descontextualizada, não consideram a interlocução, diz ela: eles focalizam
tarefas gramaticais “que preconizam atividades metalinguísticas”. Cruz (2004),
na mesma linha de Coudry (a Neurolinguística discursiva) analisa os
procedimentos mais utilizados na avaliação da fala do paciente demenciado. A
autora sublinha que não se consideram, em provas de nomeação e repetição,
“erros” em palavras – desconsidera-se, portanto, processos de significação
quando o paciente “erra” a palavra-alvo; Dito de outro modo, anulam-se os
caminhos enunciativos em movimento nessas falas. Em 2004, eu disse que a
fala do paciente é, mesmo, reduzida à polos de emissão-recepção e perguntei
“se esse tipo de saber (estatístico) seria, de fato, suficiente para fundar uma
clínica” (MARCOLINO, 2004, p. 10).
Como disse acima, provas e testes diagnósticos apoiam-se, dependem
de noções linguísticas e da fala ou escrita de pacientes. Como, senão através
da fala ou da escrita, que funções “essenciais” (memória, atenção, habilidades
cognitivas) poderiam ser avaliadas? A linguagem, contudo, não interroga
porque só interessa como “evidência” de problemas cerebrais/cognitivos. Por
esse motivo, nos testes neuropsicológicos recomendados para o diagnóstico
da demência, nota-se a redução de linguagem à “função cognitiva”
(instrumental e representativa), sua posição como “ordem dependente” da
psicológica e/ou da social (HENRY, 1992; FONSECA, 1995; ARAÚJO, 2002).
Landi (2007), diferentemente, pode anotar que o paciente nomeia figuras nos
testes diagnósticos e afirma que, nestas tarefas:
33
transparente, porque a linguagem não oferece ali qualquer opacidade. Ela é
vista “como uma entidade em que um visível permite inferir um invisível”. Ou
seja, a produção linguística desviante (visível) é sempre expressão nítida de
alteração cognitiva (invisível).
Em síntese, pode-se observar que os problemas de pesquisa e clínicos
concentram-se no referido sistema de memória para esclarecer a distinção
entre esquecimento normal e esquecimento patológico. Os resultados, porém,
são inconclusivos e, mesmo assim, não se questiona a metodologia
quantitativa e nem tampouco a modalidade de avaliação de linguagem
implementada para inferir os déficits de memória. Quando se fala do
doente/paciente, a discussão caminha no eixo da oposição consciência x não-
consciência sobre a doença. É no eixo do indivíduo do sujeito psicológico que a
reflexão é encaminhada.
34
et. al. (2003), acrescentam que, além do quadro “normal”, o envelhecimento
cognitivo pode ser alocado nas seguintes categorias diagnósticas:
14
Em estudo populacional brasileiro, a prevalência de demência variou de 1,6%, entre os
indivíduos com idade de 65 a 69 anos, a 38,9%, entre aqueles com idade superior a 84 anos
(CARAMELLI e BARBOSA, 2002).
35
3) DCL com comprometimento de uma única função cognitiva diferente
de memória - risco maior de desenvolver demência frontotemporal e/ou
afasia progressiva primária.
36
ter depressão, mas relatou uma “vivência desagradável” ocorrida um mês antes
do início dos sintomas. Ela estava na fila do banco, quando assaltantes
invadiram o local. Esta senhora conversou com os assaltantes, pedindo calma,
uma atitude que a surpreendeu depois do ocorrido. O teste de Luria apontou
leve déficit para memória verbal (lista de palavras) e SPECT15 mostrou
“discreta hipoperfusão bitemporal e frontal direita, compatível com doença de
Alzheimer” (idem, ibidem, p. 79). Após um ano, os sintomas de memória
regrediram. A regressão ou a estabilidade sintomática excluiu a demência,
conclui o autor, e faz aparecer a fragilidade do diagnóstico entre demência e
depressão. Nota-se que, nesse caso, os exames de imagens e os testes
indicavam o início do quadro de DTA. Entretanto, após um ano de tratamento
medicamentoso (antidepressivo), o diagnóstico de DTA não pode ser
confirmado com a ausência de queixas da paciente, o que determinou o quadro
de pseudodemência.
Pode-se dizer que a demência, apesar da participação inegável da
etiologia cerebral, erige obstáculos para o diagnóstico médico. Landi (2007)
chama atenção para o fato de que a confirmação só pode ser viabilizada numa
biópsia cerebral. Desse modo, o rótulo de “patologia” deve ser lido como
“provável demência” ou “pseudodemência”, em muitos casos. A medicação
para a alegada depressão e/ou demência do tipo Alzheimer é admitida como
necessária para a confirmação do diagnóstico. Também, a demência de
Alzheimer tem semelhança sintomatológica com o dito Declínio Cognitivo Leve
e com depressão. Essas situações e outras parecem mesmo indicar que a
Medicina não encontra um quadro puramente orgânico, quando o sintoma é
“mental” e/ou linguístico.
Segundo a quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-IV), mundialmente utilizado, a demência obedece a três
critérios diagnósticos:
(1) prejuízo da memória e mudança em outro domínio cognitivo,
como a linguagem, julgamento, pensamento abstrato e função
executiva;
15
As técnicas de "imagem molecular" denominadas de tomografia por emissão de pósitrons
(PET) e da tomografia por emissão de fóton único (SPECT) estudam a química cerebral,
neurotransmissão (neurônios pré e pós-sinápticos), assim como outras funções cerebrais
(COSTA, OLIVEIRA E BRESSAN, 2001).
37
(2) declínio cognitivo suficiente para modificar tarefas cotidianas e vida
social;
(3) declínio em relação a um nível anteriormente superior de
funcionamento (EMERY, OXMAN, 2003; BOURGEOIS, HICKEY, 2009).
16
Hipertensão arterial crônica, por exemplo, pode contribuir para a demência vascular.
17
Geralmente, utiliza-se o “Teste de Boston para o Diagnóstico da Afasia”. Esse teste foi
elaborado por Harold Goodglass e Edith Kaplan (em 1972 e revisado em 1982) e é um
instrumento que compreende vinte e sete subtestes, que visam ao estabelecimento de perfis
clínicos da afasia, a partir de um tratamento estatístico.
18
As demências podem ser corticais ou subcorticais. As demências subcorticais são
caracterizadas por lesões na substância branca e núcleos da base, ocasionando alteração da
memória recente e atraso no processamento cognitivo. Geralmente, estão associadas ao
Parkinsonismo, Huntington, doenças vasculares e esclerose múltipla (VICENTE et. al., 2005).
38
Quadro 1.1. Classificação das demências corticais (GROVES et. al., 2000;
ALEGRI et. al., 2001; CARAMELLI e BARBOSA, 2002; VICENTE et. al., 2005;
GALLUCCI NETO, TAMELINI e FORLENZA, 2005; BRYAN, MAXIM, 2006,
BOUGEOIS, HICKEY, 2009).
39
Alzheimer (DTA) Frontolateral (DFT) Vascular Corpos de Lewy
Cognição e outras Fase inicial: declínio Alterações precoces de Relação causal entre o Flutuação dos déficits
características da memória para personalidade e de evento cerebrovascular cognitivos em questão de
fatos recentes; comportamento. e quadro demencial. minutos ou horas,
Memória semântica alucinações visuais bem
pior do que a A memória e as habilidades Depressão e detalhadas, vívidas e
memória episódica; visuoespaciais encontram- comprometimento recorrentes.
ansiedade e se relativamente funcional .
consciência dos preservadas. Sintomas parkinsonianos,
déficits. Sintomas geralmente do tipo
Pode ser de subtipo: extrapiramidais, rígidoacinéticos de
Intermediária: perda 1. Afasia Progressiva paralisias de membros, distribuição simétrica.
da memória recente Primária (APP) : face.
e mantém sintoma Nas fases iniciais, a
informações da exclusivamente memória está preservada
infância e linguístico e e os comprometimentos
adolescência; progressivo. são visuoespaciais.
distúrbios de
planejamento e 2. Semântica: pré-senil
visuoespaciais. (antes dos 65 anos);
Degeneração de
Avançada: lobos temporais;
Alteração grave de memória
todo o sistema de preservada.
memória,
preservando a
memória emocional
associada à
autobiografia.
Linguagem Fase inicial: Fase inicial: preservada. Déficits de linguagem Déficit na fluência verbal e
preservada, exceto variáveis. com o avanço da doença
pela dificuldade de Fase avançada: Redução tornar-se similar aos
40
encontrar palavras, da fluência verbal, redução prejuízos da DTA.
como uma afasia na participação de
anômica. conversas, alteração na
compreensão de metáforas,
Fase intermediária: alterações semânticas.
Afasia transcortical
sensorial ou Presença de perseveração
Wernicke (alteração e ecolalias na fase
de compreensão); avançada.
apraxias.
No subtipo APP:
Fase avançada: Inicialmente, a afasia é
Afasia global, anômica e, com a evolução
tendência ao do quadro, torna-se não-
mutismo. fluente.
No subtipo demência
semântica: Anomia grave,
Alteração de compreensão
para palavras; Afasia global
na progressão da doença.
41
Nota-se que a vagueza da descrição dos sintomas linguísticos que
remetem, basicamente, aos quadros afásicos. Primeiramente, seria necessário
indagar se as alterações na linguagem de pacientes com demência são, de
fato, afasias. Ao se aproximar de descrições das falas dos pacientes com
demência, encontradas na literatura, Emendabili (2010, p. 65) as caracteriza
como “pouco linguísticas”:
De fato, não é outra coisa que se pode ver - a clínica médica encaminha
discussões diagnósticas e tratamento medicamentoso – drogas que modificam
o funcionamento dos neurotransmissores e podem favorecer conter a
progressão acentuada ou promover alguma melhora dos esquecimentos. Como
lembrou Fonseca (2002), o tratamento médico dedica-se ao cérebro ou à “sede
da demência” e faz demandas que são acolhidas por outros campos, em
especial pela Psicologia e pela Fonoaudiologia, mas sua direção não muda,
como procurei mostrar.
42
da American Speech-Language-Hearing Association, a literatura não indicava
ou não visualizava possibilidades terapêuticas, antes de 1975, para quadros
progressivos, como a demência (ASHA, 2005). Na década de 70, testes
começaram a ser aplicados em pacientes com DTA. O National Institute on
Aging e o National Institutes of Mental Health iniciaram, no mesmo período,
estudos longitudinais para caracterizar as desordens cognitivas em diversos
tipos de demências. Note-se, já aqui, a referida “complementaridade” a que me
referi acima. Espelhados nos estudos da memória humana, fonoaudiólogos
buscavam demonstrar que os pacientes com DTA tinham prejuízo maior na
memória explícita (conceitos, palavras) e na memória de trabalho,
especialmente procedimentos motores. Reitero: nada de novo aparecia no
horizonte. Com base nos resultados previstos, os estudos concentraram-se em
propostas terapêuticas para compensar déficits em sistemas de memória
específicos. Por exemplo, tarefas de nomeação eram enfatizadas na
estimulação de pacientes em estágio inicial de DTA, quando a anomia é o
principal sintoma.
Somente em 1991, a American Speech-Language-Hearing Association
(ASHA) publicou um guia delimitando o papel do fonoaudiólogo junto a esses
pacientes. A versão mais recente desta publicação (ASHA, 2005) defini que o
fonoaudiólogo pode :
1. Identificar pessoas com risco de demência, a partir da incidência e
prevalência da demência;
2. Avaliar, selecionando abordagens diagnósticas para desordens
comunicativas;
3. Intervir de modo direto com os pacientes e de modo indireto com
cuidadores;
4. Aconselhar cuidadores sobre a natureza da demência e seu curso;
5. Colaborar com cuidadores e profissionais para estabelecer planos de
estratégias comunicativas;
6. Coordenar a equipe de profissionais e gerenciar um caso de demência;
7. Ensinar ou supervisionar outros fonoaudiólogos;
8. Defender serviços de atenção aos pacientes, como um perito;
9. Pesquisar problemas de comunicação e cognitivos nas demências
43
O fonoaudiólogo é, ainda, chamado a responder nas esferas da
prevenção19. Parte-se do pressuposto de que “ofertas estratégias cognitivas”
como o treino da memória, associada à vida social ativa sejam fontes
privilegiadas na prevenção de demências (BRUM et. al., 2009).
Quanto ao tratamento, afirma a ASHA, fonoaudiólogos americanos
discutem se a meta é a redução dos sintomas de memória, através estimulação
da linguagem, ou deve-se espera a estabilização dos déficits cognitivos. É
certo que a literatura sobre a eficácia dos programas de estimulação é
escassa. Pergunta-se: “há melhora do quadro cognitivo quando se espera o
avanço da doença”? O foco permanece, assim, dirigido para a elaboração dos
programas de estimulação e de uma melhor caracterização da população com
demência. Isso porque, acredita-se, a estimulação deve considerar o sistema
de memória mais preservado de acordo com o grau de severidade e tipo
clínico20.
Duas diretrizes são primordiais nesses programas de estimulação direta.
O programa de estimulação deve:
1. incidir nos sistemas de memória mais preservados, visando a
independência desses sistemas em relação aos outros deficitários. No caso da
DTA, valorizam-se os sistemas de memória implícita (memória de
procedimento, capacidade de condicionamento), que permanecem preservados
mesmo com o avanço da doença21.
2. A técnica comportamental de pareamento estímulo-resposta para
impedir erros – isso favorece, como se diz, engramas neurológicos mais fortes
para a resposta-alvo (CLARE et. al. 2000; ASHA, 2005).
Entende-se, então, que o trabalho do fonoaudiólogo seja o de estimular
a memória, já que ele é dirigido pela máxima: “estimular o cérebro com
atividades que exijam atenção, concentração e pensamento lógico, o que
19
Médicos indicam como fatores preventivos da DTA: bom nível educacional, tarefas que
demandam concentração e ativam o cérebro; atividades físicas, dietas ricas em vitamina E;
consumo moderado de vinho e café (BRYAN, MAXIM, 2006).
20
Além disso, deve-se calcular o prognóstico e definir se o paciente terá benefício com uma
intervenção direta. Considera-se para a intervenção direta aspectos como a respostas aos
sinais, habilidade para ler, conversar e seguir ordens simples. Em outra situação, o terapeuta
pode decidir por intervenções indiretas, ou seja, elabora planos direcionados aos cuidadores
para facilitar a comunicação e a rotina em casa (ASHA, 2005).
21
Com efeito, pacientes com DTA têm dificuldades para recordar eventos, mas conseguem
aprender novos comportamentos.
44
contribui para o aumento da densidade sináptica cerebral” (SOUZA e CHAVES,
2005, p. 15) – mesmo frente ao que propõe Vinson. Ela enfatiza a necessidade
de tratamento por uma equipe multidisciplinar em que, ao fonoaudiólogo,
caberia “maximizar a comunicação do paciente, ensinar estratégias para a
comunicação entre família e paciente, garantindo a rotina e monitorar as
mudanças comunicativas com o progresso da doença” (VINSON, 2001, p. 43).
Entendo que esta direção clínica, orientada por uma hipótese que dá
relevo à relação memória X linguagem X demência na Neuropsicologia - e que
é incorporada pela Fonoaudiologia – torna inespecífica a prática
fonoaudiológica porque ela recua a linguagem e o sujeito na doença, seja da
reflexão teórica, seja como da prática clínica. Assumida como domínio
dependente e externo (matéria observável) ela, a linguagem, perde
importância, assim como a ciência da linguagem22. Não é sem motivo, portanto,
que a comunicação ganha a cena nas propostas terapêuticas. Ali, a linguagem
é naturalizada ou, quando muito, reduzida a um código formal e estável.
Estratégias como “falar frases curtas”, “repetir palavras” são assumidos como
estímulos suficientes nesta clínica que tem escuta apenas para a doença e sua
progressão.
Pode-se dizer que “a queixa de dificuldade de memória” não chega a
ser, por isso, recolhida (pelo médico ou pelo fonoaudiólogo) – o paciente é
indivíduo como portador (ou não) de sinais da doença: mais decisivos são os
resultados dos testes neuropsicológicos. A relação sujeito-sintoma não
pressiona esta abordagem das demências: não há espaço, como procurei
mostrar, para o sujeito, nem para sua relação com a linguagem. A clínica perde
a chance de considerar os efeitos que a demência produz no falante e no
clínico e, com isso, de distinguir essa clínica de outras: o fonoaudiólogo, como
disse, fica aderido à noção de memória como fonte do sintoma na linguagem e
distante daquilo que deveria fundar sua prática.
22
Cabe mencionar a esse respeito que ela pode ser elevada a um estatuto mais digno de
“funcionamento autônomo” (como quiseram Saussure, Jakobson e Chomsky) e nesse caso, ela
não seria função do orgânico e/ou da cognição.
45
1.5. Sociedade, Memória e envelhecimento
Dedico este item a uma abordagem teórica que prestigia a linguagem, que
dá ênfase à sua face discursiva, social e que tem refletido sobre a relação entre
memória e linguagem e seus desdobramentos na demência. Esta abordagem
distingue-se da Neuropsicologia - embora mantenha a figura do sujeito
epistêmico, i.e., a cognição tem ali lugar e função – porque envolve o “discurso
social”. A memória aparece como uma função cognitiva, mas é construída no e
pelo discurso social - portanto, memória é construção social. Vejamos como o
outro faz, aqui, toda a diferença.
Parto, inicialmente do emblemático livro “Memória e Sociedade” de Ecléa
Bosi (1979/1994), da Psicologia Social, por ele partir especificamente das
“lembranças de velhos”, de narrativas orais. Interessa-nos pouco, nesta tese,
como a autora explora esse “trabalho de memória”. Destaco a relação teórica
entre memória e linguagem, quando um discurso social é invocado. Bosi
recolhe seus pressupostos nas reflexões do filósofo Bergson. Segundo a
autora, ele propõe um esquema de memória nada mecanicista, ou seja, desvia-
se do esquema percepção-ação, que remete ao arco-reflexo, na Neurologia.
Ele introduz outro, representado na relação imagem-cérebro-representação,
que sugere que os estímulos sensoriais não desencadeiam, necessariamente,
uma ação. As imagens, que os órgãos sensoriais enviam ao cérebro,
assumem, na consciência, a qualidade de signos (representações) e liberam o
pensamento. Assim, o sistema nervoso não é um simples condutor mecânico
de estímulos, diz a autora.
Bergson, diz Bosi, enfrenta o paradoxo do tempo e distingue a percepção
atual da lembrança. Assim, perceber e lembrar são fenômenos distintos, mas
as lembranças submersas participam da percepção no presente. Disso
decorre, sustenta o autor, que não há percepção sem
lembranças/representação. Bosi, a partir desta colocação do filósofo, afirma
que o passado é conservado na memória e atua no presente:
46
as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos
mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças
independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas,
singulares, que constituem autênticas ressurreições do
passado (idem, ibidem, p. 48).
23
Para Bergson, inconsciente é um adjetivo para a memória que está fora da consciência e,
portanto, em nada se assemelha ao substantivo “o Inconsciente” proposto por Freud, como
veremos no capítulo seguinte. A Psicologia tradicional exclui a atividade inconsciente dos fatos
psíquicos O termo “inconsciente” comparece em diversas acepções filosóficas. Assim, Freud
não inventou o termo, mas lhe deu outro sentido (KAUFMANN, 1993/1996, p. 264).
47
não tematizou a relação entre os sujeitos e as coisas lembradas. Para
preencher esse “vazio”, ela recorre ao sociólogo Halbwachs. A partir deste
acréscimo teórico, de acordo com ela, a memória do indivíduo fica subordinada
às representações sociais, dependente da relação do indivíduo com instituições
(família, escola, Igreja), dependente do que os pais e amigos contam para nós.
A vantagem desta proposta para Bosi é que: “Halbwachs amarra a memória da
pessoa à memória do grupo; e esta última à [...] memória coletiva de cada
sociedade” (idem, ibidem, p. 55).
O adulto jovem, diz Bosi, ocupa-se mais da vida prática e, portanto da
sua memória atual. Quando ele se volta às lembranças passadas, “vive um
momento de contemplação”, um devaneio em forma de sonho; já o idoso,
apartado da vida social ativa, fica restrito à lembrança e de “ser a memória da
família, do grupo, da instituição, da sociedade” (idem, ibidem, p. 63). Bosi
afirma que as narrativas orais de idosos (com ou sem patologias
degenerativas) realizam um trabalho de “refacção” da memória, que lhes
confere o lugar de lembrar.
Nota-se que esse passo na direção de Halbwachs introduz o discurso
sociológico nas considerações de Bosi e faz circular a ideia de que a memória
é constituída por representações de discursos sociais. Na interação como
outro, afirma ela, o idoso “colhe e escolhe a memória-lembrança” - ele lembra e
atualiza sua própria história. Para ela, memória e linguagem são funções
cognitivas dependentes e decorrentes do discurso social.
48
Neuropsicologia Experimental e, em seguida, com a proposição de um método
avaliativo dialógico. Nesta proposição, a avaliação passa a ser centrada nas
atividades epilinguísticas do sujeito (ação do falante sobre a fala). Deve-se
notar “os fatores que se conjugam na atribuição do sentido, as imagens que se
formam entre interlocutores, a dialogia que atua nos processos de significação”
(COUDRY, 1997, p. 10). Como assinala Tesser (2007), esse caminho,
aproximado ao pensamento bakhtiniano, “garante a sustentação de linguagem
como ‘interação verbal’ ou como ‘discurso social – essa concepção dá ênfase
ao significado/sentido e, na interação, à troca/trânsito de conteúdos entre
interlocutores” (idem, ibidem, p. 47).
Cruz, pesquisadora da ND, se dedica às demências, diz que
precisamente devido à confluência entre áreas: “a Neurolinguística é um lugar
privilegiado para pensar as relações linguagem-memória” (2004: 48) devido à
confluência dessas áreas.
A relação entre memória e linguagem assentada na significação.
Postula-se a existência de sistemas semióticos distintos: um linguístico e outro
não-linguístico (memória espacial, visual). Assume-se, diferentemente dos
aportes neuropsicológico e médico, acima apresentados, que a percepção é
sempre interpretada pela linguagem– ou seja, a recuperação de imagens
vividas é dependente da situação discursiva/social e sua significação (na linha
do que disse Bosi). Disso decorre que, como dizem Cruz (2004) e Beilke e
Novaes-Pinto (2007), a perda de memória está intrinsecamente relacionada à
perda de significação e das dificuldades nas interações sociais.
A metodologia da avaliação da linguagem dos pacientes afásicos e, mais
recentemente, dos doentes de Alzheimer, tem sido problematizada pela
Neurolinguística Discursiva. Autores têm criticado severamente a utilização de
testes metalinguísticos24 para avaliação da linguagem (COUDRY 1988,
NOGUCHI, 1997; NOVAES-PINTO, 1999, entre outros). Argumenta-se que,
neste tipo de avaliação estatística, a relação com o interlocutor e atividades
epilinguísticas (pausas, prolongamento, etc.) que organizam o discurso são
perdidas e que elas importam porque são estratégias utilizadas pelos pacientes
– são “caminhos enunciativos vicinais”. Segundo as autoras mencionadas, uma
24
Na primeira parte deste capítulo, introduzi as principais críticas enumeradas por autores que
compartilham as reflexões na Neurolinguística Discursiva.
49
situação dialógica presente na avaliação de linguagem poderá favorecer a
apreensão “dos processos subjacentes à produção dos enunciados” (NOVAES-
PINTO e BEILKE, 2008).
Novaes-Pinto (1999) criticou, com pertinência inequívoca, resultados de
provas de nomeação do Teste de Boston, em que os sujeitos avaliados
“erravam” devido aos testes utilizarem palavras de baixa frequência na língua
(por exemplo, aspargo, tripé) e, também, acrescenta ela, devido à qualidade
duvidosa dos desenhos. Novaes-pinto e Beilke (2008) analisaram, ainda, as
respostas de um sujeito (NB), com 82 anos de idade, com provável demência
de Alzheimer, num teste de categorização por demanda. A partir de pares de
palavras, como cachorro e gato, o paciente deveria responder com o
hiperônimo “animal”. Como o examinador não havia seguido fielmente as
recomendações do teste (ele deveria exemplificar a tarefa), os pares de
palavras apresentados deram margem às respostas mais complexas, amplas e
não esperadas. No par democracia x monarquia, aguardava-se “sistemas de
governo”. Entretanto, ele (NB) disse que “são regidas por déspotas” e que “são
meios de controlar as pessoas” (idem, ibidem, p. 113). A resposta do senhor
considerada “errada” mostra, na verdade, um sujeito politizado, como ressaltam
os autores.
A avaliação de linguagem nos moldes propostos por Novaes-Pinto, que
prestigia a interação, permite, sustenta a autora, a apreensão de oscilações
pragmático-discursivas, mesmo que discretas. Elas são frequentes no início da
DTA e que seriam dificilmente notadas nos testes. Beilke, Novaes-Pinto (2007)
afirmam que o processo dialógico favorece a lembrança. A resposta
“inadequada” de uma paciente com DTA é tomada como forte indicador dessa
afirmação. Segundo elas, a paciente (AC) diz ao investigador que, quando seu
marido morreu, após um acidente de carro, “ele estava sozinho”. A filha mostra
uma cicatriz no braço da mãe e pergunta “o que aconteceu?”. AC retoma a
história e “lembra-se” de que ela estava com o marido no momento do
acidente. Segundo os autores, o diálogo com a filha “de certa forma,
estabelece a relação entre um signo (não-verbal: a própria cicatriz e verbal: ao
enunciar cicatriz) e aquilo a que ele remete (NOVAES-PINTO, BEILKE, 2008,
p. 116). Quando analisam o diálogo entre investigador e (HL), uma senhora em
estágio mais avançado da doença, os autores concluíram:
50
No caso de HL, alterações podem ter já comprometido as
funções executivas mais complexas, que envolvam o
planejamento da ação e da própria linguagem, como, por
exemplo, o controle daquilo que pode ou não ser dito. O
enunciado em excesso, na situação inadequada, no momento
inadequado, seria um sinal de presença da doença (idem,
ibidem, p. 118).
25
Novaes-Pinto e Beilke (2008) sublinham a ausência de prejuízos fonológicos, sintáticos e
semânticos na fala dos demenciados. Essas alterações são notadas com o avanço significativo
da doença.
26
Tesser (2007), a partir de seu posicionamento teórico na Clínica de Linguagem, discute a
noção de diálogo em sua dissertação de mestrado.
51
de memória” (CRUZ, 2004, p. 105). A narrativa: “parece ser uma interessante
forma de observação da relação entre linguagem e memória, pois coloca em
jogo também uma relação entre processos cognitivos e sociais” (idem, ibidem,
p. 106). Em síntese:
COGNIÇÃO/MEMÓRIA
LINGUAGEM
27
Sobre isso, sugiro a leitura do primeiro capítulo de Lier-DeVitto (1998) e de De Lemos
(2002).
52
testagens padronizadas cujos resultados controlados recebem tratamento
estatístico – inferem-se daí as alterações de memória. Como vimos, os estudos
neuropsicológicos estão centrados em duas direções: (1) investigações que
comparam o desempenho cognitivo entre adultos jovens e idosos, cujos
resultados investigações afirmam que há declínio cognitivo no idoso, mas não
sustentam a explicação sobre qual processo ou módulo está prejudicado. E (2)
pesquisas que comparam atividades cognitivas entre idosos e sujeitos com
início de DTA na tentativa de estabelecer critérios que possam distinguir o
normal e o patológico. Espera-se encontrar um tipo de memória que se
deteriore de modo diferente na demência do que no envelhecimento dito
normal. A anomia comparece como exemplo maior de sinal inicial na DTA e
também está presente no envelhecimento. Como reconhecem os autores,
esses resultados são insuficientes porque inconclusivos e não sustentam,
portanto, a explicação sobre o funcionamento cognitivo subjacente. Também,
deixar-se guiar pelas afasias para compreender as demências não parece ser
um caminho seguro, uma vez que os acontecimentos na linguagem são
bastante diferentes, além do que, raramente se pode invocar perda de memória
para descrever as afasias. Lacan, por exemplo diz que “nas afasias, o sujeito
fica ao lado do que quer dizer” (LACAN, 1981, p. 250) – parece ser,
precisamente, este lugar de “estar ao lado do que quer dizer” que vai sendo
esvaziado nas demências.
A Neurolinguística Discursiva faz diferença nesse cenário, como procurei
mostrar, porque ela não só abandona e critica as avaliações médica e
neuropsicológicas de pessoas com afasias e demências, como também e
principalmente porque envolve fortemente uma teorização sobre a linguagem,
embora memória e linguagem fiquem subordinadas a processos cognitivos.
Reconhece-se, aí, a presença de autores soviéticos como fontes da discussão
(Vygotsky, Luria, Bahktin). Deles vem a noção de diálogo (interação social)
como espaço da significação, da negociação/troca de sentidos.
Esta direção, que envolve a concepção de linguagem como discurso,
marca, sem dúvida, toda a diferença entre abordagens clínicas médicas como
disse. Ela será diferente, também, da posição delineada pela Clínica de
Linguagem - filiação assumida nesta tese, que sublinha a importância da
“escuta para densidade significante” (LIER-DeVITTO, 1997, 2000 e outros). A
53
posição teórica e clínica que decorre da relevância dada ao significante em
falas sintomáticas nos levará a Saussure e à Psicanálise para trabalhar a
ideia de que linguagem não é função cognitiva e, portanto, nem a
memória. Em Freud, memória tem a ver com o aparelho psíquico, com o
Inconsciente, como procuro apresentar no capítulo 3. Sem ir a Bergson, eu
diria que este trabalho tem algo em comum com suas reflexões sobre memória
e sobre o tempo (do significante) - afinal pode-se escutar que algo de Freud e
de Saussure ressoa em suas considerações. Depois desse passo teórico que
problematiza a relação memória-linguagem, volto-me às questões clínicas
deste trabalho. No capítulo 3, uma aproximação à clínica sob o olhar da
Psicanálise será discutida e, no capítulo 4, apresento a Clínica de Linguagem
no acompanhamento de sujeitos demenciados.
54
Capítulo 2
Freud:
o aparelho de linguagem, o aparelho de memória
55
particular a relação, presente desde a fundação da Psicanálise, entre memória
e linguagem.
O que retiro desta leitura é um argumento que dissolve a hierarquia
entre memória e linguagem, que é tão caro aos aportes cognitivistas, mas tão
problemático para um clínico de linguagem que tem que se haver com a
linguagem. È o que os pesquisadores (FONSECA, 1995, 2002; LANDI, 2000,
2007; MARCOLINO, 2004; CATRINI, 2005, 2011, TUMIATE, 2007;
GUADAGNOLI, 2007; TESSER, 2007, 2012, EMENDALI, 2010) filiados à
Clínica de linguagem tem assumido ao considerar “la langue” em “operação” na
fala afásica e do sujeito com demência. Disso decorre, que linguagem não é
função cognitiva e memória não é arquivo. As queixas de dificuldades de
memória e a dissolução subjetiva presentes nos casos com demência tem
indagado os pesquisadores (FONSECA,2011, 2012, LIER-DeVITTO,
FONSECA e LANDI, 2007, MARCOLINO e EMENDABILI, 2011) sobre o
acolhimento desses pacientes e a sustentação de uma terapêutica.
O argumento que procurarei sustentar neste trabalho ganha força com a
leitura de Freud, já que a linguagem e memória são postas lado a lado, sem
hierarquia. A memória é-feita de linguagem, o que tem consequências teóricas
e clínicas para a Clínica de Linguagem. A novidade freudiana, destacada neste
capítulo, não esconde sua afetação pela releitura que Lacan (1959-60/1995.),
no Seminário 7, A ética da Psicanálise. Apesar de o aparelho psíquico ter sido
concebido, inicialmente, como aparelho de linguagem e, depois como aparelho
de memória, não se pode dizer, como assinala Garcia Roza (1991), que sejam
aparelhos totalmente distintos ou contraditórios.
56
linguagem28. Freud faz uma guinada radical a esse respeito, aproxima-se de
Hughlings Jackson (1866,1878, 1881) – avesso ao localizacnismo - e também
do filósofo John Stuart Mill (1843) – que recusa a simplicidade da ideia de
causalidade direta. Freud redimensiona a noção de paralelismo psico-físico,
introduzida por Jackson, “serve à diluição teórica da causalidade cérebro
linguagem” (Fonseca, 2002, p. 53). O que caminha em paralelo não se toca:
uma linha não pode, logicamente, ser causa do que ocorre na outra – os
fenômenos são concomitantes, simultâneos, mas independentes – este é o
argumento de Jackson, sublinha a autora.
Freud fará uma torção importante nesse paralelismo, como veremos. Ela foi
propiciada, na interpretação de Fonseca, pelo olhar de Freud que transitava
entre a afasia e a histeria no final do século XIX. Se na afasia há lesão no
corpo e sintoma na fala; na histeria não há lesão, mas há sintoma no corpo.
Como sustentar, frente à histeria, que sintomas psíquicos sejam causados por
lesões orgânicas? O paralelismo psico-físico vinha a calhar, portanto, mas
modificado para que ele pudesse distinguir afasia e histeria. Freud dirá, em
1891, que os domínios psíquico e físico são paralelos, mas são concomitantes
dependentes. Há relação, mas ela não é propriamente de “causa” – uma lesão
no corpo não causa nada em domínios que lhes sejam heterogêneos, mas ela
pode afetá-los de formas e intensidades diferentes (e vice versa, como
mostram as histerias).
Em “A afasia” (1891/1979), a relação entre cérebro e linguagem é de
“concomitância dependente”, ou seja, cérebro e linguagem são domínios
heterogêneos e solidários, que se afetam mutuamente e, “dependentes”, já que
não há afasia sem lesão cerebral. O “concomitante” aproxima-se da
“simultaneidade” e não remete à causalidade direta e subordinação entre esses
domínios. O “choque traumático”, que Freud ressalta na histeria deve ser
referido à “relação simbólica” e, portanto “tem determinação subjetiva (e não
orgânica)”. É surpreendente a solução oferecida por Freud: o sintoma, seja na
28
Fonseca (2002, p. 28): [...] assinala que o discurso fundador dos dois autores mencionados,
(a) baseou-se na constatação empírica da associação entre dois acontecimentos: a lesão
cerebral e as perturbações na fala. Além disso, tal associação ocorre numa sucessão temporal
particular e regular: o acontecimento cerebral (evento antecedente) foi, por consequência,
assumido pelos médicos pesquisadores como a causa do sintoma na linguagem (evento
subsequente); (b) referendou experimentalmente (através da anátomo-patologia) o que já era
objeto de especulação: uma causa (neurológica) para as perturbações (perdas) na linguagem.
57
afasia, seja na histeria, decorrem do jogo simbólico (de associações). Desse
modo, é necessário concluir, com Fonseca, que:
29
A representação-palavra é um sistema fechado (ligado à linguagem) e distinto da
representação-objeto (que é aberto a novas impressões). A ligação entre os dois
sistemas é realizada via imagem acústica do sistema fechado (via representação-
palavra) e associações visuais do sistema aberto (representação-objeto).
58
anomalia no funcionamento do aparelho de linguagem, que é, como disse,
também um aparelho de memória – as redes associam impressões mnésicas
captadas pelos sentidos. Temos, então, que: (1) afasia verbal indica um
problema nas associações do sistema de representação-palavra; (2) afasia
assimbólica, uma perturbação entre a associação da representação-palavra e
representação-objeto; (3) agnósica, um problema no sistema de representação-
objeto (FONSECA, 2008, p. 345).
Devemos nos ater, nesse ponto, ao termo “representação” que, segundo
Le Gaufey (1997) não é definido ou especificado nos textos iniciais de Freud.
Apesar de “representação” pertencer ao vocabulário filosófico e psicológico – o
que equivale a dizer que o termo é carregado de conteúdo cognitivo 30 - Freud
faz um uso original deste termo, na medida em que ele ao acrescentar a
palavra “inconsciente” - ele fala em representações inconscientes – ele
produz um “paradoxo na junção desses dois termos” (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1982/2001, p. 449). De fato, este acréscimo subverte toda a
tradição filosófica contida na palavra “representação”. Os autores assinalam
ainda que ao falar em sistemas mnésicos, Freud dispersa a lembrança “em
séries associativas”. Ele suspende, desse modo, a relação percepção-
representação já que privilegia “associações” e não representações ligadas a
esta ou àquela qualidade sensorial31. Perde-se a relação um-a-um (objeto
sensível-representação), que garantia substância à memória, compreendida,
nesse enquadre como um espaço de estocagem. Ora, com redes associativas,
a importância recai sobre as associações – caminha-se na direção de uma
concepção “negativizada” de memória, de memória dessubstancializada. Essa
operação é realizada pelo aparelho de linguagem.
Fonseca (2008, p. 344) aproxima a originalidade freudiana da discussão
do filósofo Jonh Stuart Mill. Ela volta-se para a palavra “impressões” que
remetem “à aparência de uma coisa, ou seja, não se trata da coisa-em-si”.
30
Representação é, como assinala Ferrater Mora “vocabulário geral que pode referir-
se a diversos tipos de apreensão deu objeto (intencional)” (MORA, 2001, p. 629) –
traço comum que une esses sentidos (filosófico e psicológico) é sua remissão a
operações percepto-cognitivas. Representação liga-se à “reprodução de uma
percepção anterior” a “ato de pensamento” (idem, ibidem, p. 630).
31
Andrade (2003) discute, em profundidade, a relação percepção-representação-
comunicação, que ela destaca como relação necessária a um pensamento psicológico
(cognitivista).
59
“Impressão” é “traço mnésico” – resto de uma operação psíquica (e não
psicológica em sentido estrito), o que nos leva a reconhecer que traço não tem
essência. Notamos que a representação (impressões/traços visuais, táteis e
cinestésicas) possui, necessariamente, algum vínculo com a percepção, mas
tendo em vista a ideia de impressão, de traço, é imperativo dizer que ela é
faltosa, já que o resultado são “traços”. Importa repetir que Freud constrói um
aparelho de linguagem/memória que não possui relação direta com o mundo
externo e que, por isso, ressignifica o termo “representação” como procurei
indicar acima. Interessa dizer que essa operação teórica é viabilizada quando
Freud submete a memória ao aparelho de linguagem, quando aponta na
direção de que memória não é fruto de apreensão perceptiva, mas
dependente do jogo de associações realizado pela mecânica do aparelho de
linguagem.
Destaco a distinção entre os dois sistemas: representação-palavra e
representação-objeto. O significado decorre da relação entre os dois sistemas.
Parece que esse ponto nos leva ao o papel da linguagem como estrutura e
função32, conforme ela comparece em A interpretação dos sonhos (FREUD,
1900/2001).
32
Retornarei esse ponto com a leitura de Lacan no próximo subitem.
60
O “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895) desdobra exatamente
os pontos mais obscuros da monografia: aborda a relação do aparelho
psíquico, um aparelho de memória, com a percepção e a consciência.
Desdobramento que dá, nesta obra, uma “concepção quantitativa” à
representação33 (LE GAUFEY, 1997) e fortalece a ideia de memória como
trilhamento, rompendo, assim, com toda a tradição filosófica, já que memória
adquire um caráter dinâmico (que justifica o termo “aparelho”).
Garcia-Roza (2004, p. 80) descreve O Projeto de 1895 como uma obra
“fundamentalmente hipotética”, como puro movimento de reflexão teórica (sem
experimentos ou observações). Não há ali, como pontuou o autor, qualquer
correspondência entre a anatomia e a “teoria neuronal” de Freud:
33
É a origem da “hipótese econômica”, de regulação quantitativa, para explicar os processos
psíquicos.
34
Q representa a quantidade de energia exógena e Qn é a quantidade de energia endógena.
61
seria a função primária do sistema: produzir um escoamento de excitação.
Há, portanto, fuga do estímulo, sendo esta a característica essencial da função
secundária. Freud não só supõe “esforço proporcional” entre a excitação e a
fuga do estímulo, como também indica a necessidade de se considerar o
registro mnêmico, que permite o reconhecimento da excitação. Importante
quanto a isso é que só pode haver fuga de estímulos externos. O sistema
“nervoso” não pode fugir de estímulos internos (como fome, sexualidade,
respiração) uma vez que eles representam exigências da vida – o sistema deve
garantir nível de energia para responder às exigências vitais. Vemos, assim,
que o sistema nervoso está sujeito à dupla pressão (deve administrar
estimulação endógena e exógena) – para isso, o sistema sai da inércia e
desencadeia ação específica para suportar e manter Qn em baixo nível. Aqui,
a eficiência da função secundária está diretamente ligada à possibilidade de
que certo nível de energia seja mantido, que decorre das resistências que se
opõem às descargas. As resistências funcionam como uma barreira de
contato, que, diz Freud, tem a vantagem de explicar a memória (cerne do
aparelho psíquico neste momento).
62
poderia ser justificada por ela – o aparelho de memória, esta subversão
verdadeira do pensamento neurológico, prepara o modelo de parelho psíquico
da Psicanálise, como admitem Lacan e Garcia-Roza, acima mencionados 35.
Freud propõe que os neurônios permeáveis ligam-se à percepção -
recebem Q mais intensa e, por isso, deixam Q fluir sem resistência e sem
qualquer tipo de registro. Os neurônios impermeáveis, por sua vez (que
recebem Qn – uma energia mais fraca – e, indiretamente Q) têm condições de
opor resistência ao estímulo endógeno nas barreias de contato (GARCIA-
ROZA, 1991, p. 210). Considere-se que o sistema Ψ, contudo, está sempre sob
tensão, já que a estimulação endógena é sempre constante e não cessa
(temos aí a gestação do que virá a ser o conceito de pulsão, que é central na
Psicanálise). Bem, o sistema ϕ que está ligado ao mundo externo pela
percepção, responde com uma ação motora, como prevê o modelo de arco-
reflexo na Neurologia. No entanto, em Freud, a relação perceptiva com o
mundo é complexa - não é “tudo” e nem “qualquer coisa” que entra no sistema
(ANDRADE, 2003) 36. Os órgãos sensoriais funcionam como filtros ao excesso
de estímulos contínuos do mundo externo. Assim, ele deixa passar algumas
impressões – “o que entra” depende das condições internas ao próprio sistema.
No início da vida, diz Freud, o bebê não tem condições motoras para
aliviar a estimulação endógena (como fome ou frio) - vive em estado de
desamparo. O choro como descarga motora não alivia a tensão do sistema Ψ
– o bebê precisa do outro para satisfazê-lo:
35
Uma parte do aparelho recebe novas sensações e outro produz a memória que nada tem de
estoque de imagens ou de informações. A memória é a alteração permanente do tecido
nervoso. A diferença entre os “neurônios” não está na sua natureza, mas na função que
desempenha – ela depende de como os neurônios respondem à estimulação (mais ligados ao
sistema ϕ ou ao sistema Ψ).
36
Andrade (2003) atenta ao fato sobre a existência do filtro no aparelho perceptual. A autora
retira que “há um movimento do ser vivo em relação ao meio que não é o mesmo para todos e,
portanto, a impossibilidade de se conceber o sistema perceptual como pré-formado/universal”
(idem, ibidem, p. 93).
63
função secundária da comunicação37, e o desamparo inicial dos
seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais
(FREUD, 1895/1977, p. 422).
37
Garcia-Roza (1991) sublinha que o outro não é mero cuidador. O choro, descarga motora
diante da Q interna, é demanda ao outro e, portanto, registro simbólico: é “importantíssima
função secundária da comunicação”, como disse Freud.
38
Le Gaufey (1997), ao discutir o termo representação (Vorstellung) no Projeto, enfatiza que o
investimento relacionado à percepção do objeto é denominado de “imagem de lembrança” que
pode ser amigável ou hostil. Essa “imagem de lembrança” refere-se ao objeto que existiu, o
que se distingue da representação. O autor nota que Freud só vai mencionar a representação
quando ocorre um novo estado de desejo e não há objeto real. O investimento é nas
representações, sem relação com a percepção e, portanto, tem autonomia para articular-se
com qualquer referente.
64
Freud. Passo claro nesta direção é a observação de que os sistemas ϕ e Ψ são
inconscientes – são inconscientes e quantitativos. Freud caminha e diz que a
“tomada de consciência” envolve uma questão de qualidade - na consciência
estabelecem-se relações de semelhanças e diferenças, relações, estas, que
não estão no mundo externo; ali: “só existem massas em movimento e nada
mais” (FREUD, 1895/1977, p. 410).
O sistema Ψ – aparelho de memória - deve diferenciar entre percepção
e representação. Freud explica que sensações conscientes são qualidades e
constituem um terceiro sistema: sistema ω ou sistema de percepção-
consciência. É este sistema que fornece signos de realidade (de qualidade)
para o sistema Ψ. A transformação de quantidade em qualidade decorre, em
Freud, da noção de período, retirada da Física Mecânica. “Período” seria o
ritmo do movimento que se propaga: é ciclo temporal não-quantitativo, mas
qualitativo. Esse ciclo ritmado se manifesta em sensações de prazer e
desprazer (quando há o aumento da energia no sistema Ψ, o sistema ω
sinaliza sensação de desprazer, por exemplo). Temos aqui, com a introdução
do sistema ω, considerações sobre a relação entre consciente (sistema ω) e
inconsciente (sistema Ψ), sendo este último, segundo Freud, regido pelo
princípio de prazer e o ω governado pelo princípio da realidade.
Resumidamente: energia exógena (Q) entra no sistema ϕ e, aciona a
operação da função primária, que produz descarga motora. Parte de Q é
também transferida para o sistema Ψ – este, como vimos, recolhe estímulos
endógenos contínuos (Qn) e um quantum de Q – necessita, então, reduzir essa
descarga dirigida a ele. A questão é que, cada Qn não tem, por si, força
(intensidade) suficiente para ultrapassar a resistência da barreira de contato. A
solução freudiana é que essa ultrapassagem é facilitada pelo mecanismo de
trilhamento39 - próprio da memoria -:
39
A palavra alemã Bahnung, traduzida por facilitation na versão inglesa, aparece no seminário
7 (LACAN, 1959-60/1995, p. 53) como trilhamento Sobre isso, ele diz: “[...] Bahnung é
traduzido em inglês por facilitation. É óbvio que essa palavra tem um alcance estritamente
oposto, Bahnung evoca a constituição de uma via de continuidade, uma cadeia, e penso até
que isso pode ser aproximado a cadeia significante [..] A tradução inglesa deixa a coisa
escorregar completamente”.
65
orientadoras de sua direção, e, se a facilitação fosse idêntica
em todos os sentidos, não seria possível explicar por que
motivo uma via teria preferência sobre outra (FREUD,
1895/1977, p. 401) (ênfase minha)
66
Ding) – que, assinala Lacan, não ser aproximada de representação-de-coisa40.
Com Freud, leia-se, na figura acima que o neurônio a é constante (um
elemento estranho, não representável pelo aparelho Ψ, diz KAUFMANN,
1993/1996, p. 85), e que o neurônio b (a representação) é variável.
O sistema ω, como vimos, indica signos de realidade ao Ψ. Ego pode,
por isso, receber sinais de prazer ou de desprazer. Tal suposição impõe,
segundo Freud, a necessidade de introduzir um mecanismo de atenção
psíquica, para manter o sistema Ψ voltado às percepções. Entende-se porque:
“não somente não é tudo que dá entrada no aparelho psíquico, como também
não é qualquer coisa” (ANDRADE, 2003, p. 93). De fato, Lacan (1959-
60/1995) afirma que o sistema ϕ não é um “amortecedor”, mas que tem “o
papel de um crivo” e retira disso a consequência de que:
40
Lacan (1959-60/1995, p. 40) articula Das Ding com o princípio de realidade do sistema ω.
Das Ding está isolada da experiência do sujeito, está fora do significado, mas é a referência
para o mundo dos desejos – é o “Outro absoluto do sujeito”. No sistema Ψ, regulado pelo
princípio do prazer, Das Ding orienta o sujeito na busca do objeto, movimentando as
representações.
67
processo mecânico pontual, não é a reprodução sempre
idêntica de um traço imutável, mas um processo que implica
um diferencial de valor entre caminhos possíveis (GARCIA-
ROZA, 1991, p. 35).
68
2.4. O Inconsciente freudiano: condensação e deslocamento
69
O que se vê, nesta obra, é um ponto de vista dinâmico, tópico e
econômico que marcam a coesão e persistência do trabalho que anima o
funcionamento psíquico. No que concerne às demências, interessa que essa
coesão e persistência do trabalho psíquico favorece, como diz Kaufmann “a
apreensão dos múltiplos destinos das representações psíquicas: giros
progressivos, desvios regressivos, impasses e repetições, transformações”
(idem, ibidem, p. 265).
Pelo sistema perceptual passam, como vimos, impressões, que incidem
nos sistemas Mnem – são traços mnêmicos: “à função como eles se
relacionam damos o nome de memória” (idem, ibidem, p. 518). Quer dizer,
memória, aqui, esvazia-se de substância já que o “conteúdo” compõe-se de
traços. Ou seja, ela é relacionada a movimento, a operação de articulação
entre traços, como lemos na citação de Freud. A palavra-chave é mesmo
“associação”:
41
Andrade lembra que Freud fala em “colisão” entre excitação externa e sistema perceptual do
aparelho psíquico – colisão indica resistência à estimulação que atinge o aparelho – resistência
que é imposta pela e “vivência de um sujeito”. Assim, conclui a autora, filtro significa que “não é
tudo que entra e nem é qualquer coisa” (ANDRADE, 2003, p. 93).
70
funções: registro, associação e retranscrição do mesmo material perceptivo
transmitido. Na extremidade motora, está o sistema pré-consciente (Pcs), cuja
função é despertar a ação voluntária na consciência. O material do sistema
Inconsciente (Ics) só chega à consciência através do pré-consciente. Nesse
caso, ao ser submetido ao pré-consciente, o material inconsciente é submetido
à censura psíquica (idem, ibidem, p. 521). Freud retira, assim, toda a potência
excessiva conferida até então à consciência, que é apenas a ponta de um
iceberg, como veremos. Freud desfaz, com isso, também a antítese entre vida
consciente e vida onírica. Convém assinalar que pensamento inconsciente é
“tão ativo durante o dia quanto à noite” (idem, ibidem, p. 585) – sendo os
sonhos a expressão maior dessa afirmação. A diferença entre dia e noite
(vigília e sonho), diz Freud, é que desejos são barrados pela censura durante
o dia e parecem vencê-la nos sonhos – sabemos que “sonhos são realização
de desejo” (FREUD, 1900/2001) e que são produzidos pelo sistema Ics.
Sonhos são como alucinações porque neles imperam um processo de
regressão enunciado como operação própria do aparelho psíquico:
42
Freud não decide sobre se Pcs e C devam ser compreendidos com 1 ou 2 sistemas.
43
A essência da pulsão é pressão (Drang), força constante que não cessa e, a meta é a
satisfação. O objeto da pulsão é aquilo que se articula a ela para atingir o alvo e, desse modo,
é o elemento mais variável. Cabe ressaltar que o objeto não é algo externo no mundo. O
objeto, na psicanálise, é sempre uma representação.
44
A censura impede, desse modo, que materiais e processos inconscientes cheguem ao Pcs
sem sofrer transformações.
72
ordenação cronológica, uma vez que é regido, também, pelo “princípio de
realidade”:
Interessa assinalar que o sistema Pcs/Cs (ao estilo do sistema Pct) não
tem nenhum tipo de registro, de memória, ele é: “apenas um órgão sensorial
para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1915/2001, p. 587). Em A
interpretação dos sonhos, Freud afirma que no estado de vigília, a consciência
recebe excitação do sistema sensorial, além das excitações internas de prazer-
desprazer. Freud não deixa, contudo, o sistema Pcs/Cs dependente das
relações de prazer e desprazer ao afirmar que ele se liga ao “sistema
mnêmico dos signos linguísticos” (lembranças verbais) (idem, ibidem, p.
551). Os pensamentos adquirem qualidades especiais porque associam-se a
“lembranças verbais” e “atraem a atenção da consciência” (idem, ibidem, p.
589). Em O inconsciente, Freud qualifica o sistema Pcs como conhecimento
consciente – “um certo saber sobre o sujeito e seu mundo pessoal” que,
embora não-conscientes, têm ligação com o sistema consciente. (LAPLANCHE
e PONTALIS, 1982/2001, p. 351).
Lembranças verbais “atraem a atenção da consciência”, diz Freud, mas
esse não é bem o que ocorre nas demências. Lembranças perdem o estatuto
de “lembranças”, em estados avançados da doença. Antes disso, a insistente
repetição de “algumas lembranças” parecem ter a função de sustentá-lo em
sua história – naquela que ele construiu para si – elas assumem ares de
âncoras subjetivas que vão gradativamente perdendo eficácia - ainda que uma
fala, que não é qualquer, persista)45.
Ao final de “O Inconsciente”, Freud desenvolve considerações sobre
representação-palavra e representação-objeto, que tiveram suas raízes na
monografia A Afasia. Em O Inconsciente (FREUD, 1915), a representação-
45
Esta questão será retomada nos capítulos 3 e 4.
73
objeto subdivide-se em representação-de-palavra e representação-de-coisa
para diferenciar consciente do inconsciente:
46
Como disse antes, neste trabalho, não se tratam de tipos diferentes de representações. Não
se pode entender, tampouco, que as representações-de-palavra estão em outro registro (Pcs).
Segundo Laplanche e Pontalis (1982/2001, p. 450), o termo representação-de-coisa está bem
próximo ao “traço mnésico”. È um investimento que associa os traços inscritos, ou seja, “não é
em si mesmo nada além do que a inscrição do acontecimento”. As representações de palavras
dizem respeito à verbalização e consciência. È a passagem do processo primário ao
secundário. Contudo, não são variações de traços mnésicos, como se fossem tipos diferentes
de representações. Isso porque, Freud observou que, na esquizofrenia, a representação-de-
palavra pode ser tratada como representação-de-coisa, ou ainda, as frases pronunciadas no
estado de vigília sofrem condensação e deslocamento na construção dos sonhos, como
representação-de-coisa.
74
afirma: “somente pode se tornar consciente aquilo que já foi uma percepção Cs
[excetos os sentimentos]” (idem, ibidem, p. 33).
Este ponto é de grande peso teórico. Lacan reconhece que Freud
inaugura, desde o início da teorização, “com certa dificuldade”, a linguagem
como estrutura e função - “[...] um impasse que o próprio Freud ressalta e que
se explica pelo estado da linguística em sua época” (LACAN, 1959-60/1995, p.
60). Andrade sublinha bem este ponto, ao dizer que:
75
Vimos que representação-de-coisa e representação-de-palavra
caracterizam o material Pcs e que esse material é aquele que ali chega
“autorizado” pela censura – esse mecanismo responde pelo jogo entre lembrar
e esquecer, que é tão importante para um entendimento das demências. Freud
nos diz que, na vigília, quando lembramos sonhos, estamos frente ao “poder da
censura psíquica” - por isso, rapidamente os esquecemos ou aquilo que deles
resta como lembrança são “substituições falsas”. Esse mecanismo de lembrar-
esquecer sonhos na memória consciente está implicado, acrescenta ele, em
esquecimentos de outros atos psíquicos (idem, ibidem, p. 503). Como no
trabalho dos sonhos, eles são regidos pelas operações de deslocamento e
condensação.
Convém dizer que a primeira tópica freudiana (Ics e Pcs/Cs) foi
ressignificada, a partir de 1920. Assim, novas distinções tópicas (Id ou Isso,
ego ou Eu e superego ou supereu) foram introduzidas e o Ics, o Pcs e o Cs
“são assim integrados nessas três instâncias” (KAUFMANN, 1993/1996, p.
266). Na primeira tópica, o Ics tem sua origem no recalcamento, o que define a
cisão entre Ics e Pcs/Cs. O material “latente”, capaz de se tornar consciente,
pertence ao sistema Pcs e, o material incapaz de se tornar consciente compõe
o Ics (FREUD, 1923/2006). Já na segunda tópica, essa separação é diluída e
as “instâncias” são interpenetráveis (LAPANCHE e PONTALIS, 1982/2001, p.
221).
Freud reconhece, em 1923, no artigo “o Eu e o Id”, que algo passa à
consciência e é capaz de produzir um mal-estar, mas o sujeito “não saberia
nomeá-la e nem apontá-la” (idem, ibidem, p. 31). Esse reconhecimento leva
Freud a afirmar que uma parte do Eu47 só pode ser Ics. Disso decorre, ainda,
que “nem todo Ics é recalcado” (idem, ibidem, p. 32). Com certas distinções, o
Isso, da segunda tópica, é equivalente ao Ics da primeira tópica. O Isso é
“reservatório de energia psíquica” (idem, ibidem, p. 219). Entretanto, aplica-se
a ele também o recalcado, uma parte profunda do Eu (inconsciente e não mais
latente como no Pcs) e o supereu, herdeiro do Complexo de Édipo. “Assim se
perfila uma dimensão de inconsciente nova. Esse inconsciente, nem apenas
47
Neste texto, Freud afirma que o Eu é a força coesa de todos os processos psíquicos. O Eu,
diz ele, controla a motricidade e percepção e, por isso, tem a consciência atada a ele.
“Também desse Eu que procedem os recalques” (FREUD, 1923/2006, p. 31).
76
recalcado, nem apenas latente, perde de certo modo seu valor de instância”
(KAUFMANN, 1993/1996, p. 266).
A consciência, na primeira tópica – o sistema ω no Projeto e, depois o
Pcs/Cs, em 1915. – é um sistema autônomo. O Eu, na segunda tópica, engloba
as funções do Pcs, em sua maior parte. Entretanto, “o Eu, e é este o ponto que
Freud mais insiste, é e grande parte inconsciente [...] que se comporta
exatamente como o recalcado” (LAPANCHE e PONTALIS, 1982/2001, p. 133).
Ao Eu atribui-se variadas funções, como controle da motilidade e da
percepção, prova de realidade, ordenação temporal dos processos mentais,
defesa contra as pulsões. Ou seja, é um mediador que “está submetido a uma
tríplice servidão, e é por isso mesmo ameaçado por três espécies de perigo: o
que provém do mundo exterior, o da libido do Id, e o da severidade do
superego” (idem, ibidem: 134). O superego48 é uma parte do Eu e assume o
valor de juiz para o sujeito, ou seja, o ideal do eu para o sujeito (KAUFMANN,
1993/1996), renunciando, assim, aos destinos das pulsões.
Uma nova dimensão de inconsciente que não modifica a relação
memória-linguagem que vimos até agora. A virada está no advento do “não-
sabido” à consciência e a fragilidade de se estabelecer dois sistemas (Ics e Cs)
(KAUFMANN, 1993/1996). O passo seguinte, dado por Lacan, foi introduzir o
sujeito sem aniquiliar esse “não-sabido”. Por isso, ele fala em “sujeito do
inconsciente” ao invés de “eu do inconsciente”. Assim, para o “eu que fala, o
sujeito do inconsciente é um ele e não um eu”. (idem, ibidem, p. 502).
Até este ponto, acompanhamos como Freud vai arquitetando a relação
memória-linguagem como “concomitantes dependentes” e suspende o
dualismo que embase as propostas cognitivistas. Tendo em vista a
interrogação que esta tese levanta sobre falas em pessoas com demências um
passo a mais em Freud faz-se necessário no que diz respeito aos mecanismo
lembrar-esquecer.
48
O superego ou supereu nasce com a introdução do narcisismo e está determinado pelo
declínio do Complexo de Édipo (KAUFMAN, 1993/1996).
77
2.5. Lembrar e Esquecer
78
(morte e sexualidade) e os segmentos dos nomes Bósnia, Trafoi e
Herzegovina (que estão em Botticelli; Boltrafio e Signorelii, que escamoteia
Herr numa tradução por Signor)49. Vejamos o diagrama abaixo:
49
Lacan, em várias passagens de seus seminários, reinterpreta o lapso de Freud. No
seminário 5, Lacan sugere que o significante recalcado não é Signor, mas é Sign, o nome
próprio de Freud.
79
diálogo). O esquecimento de grupo de palavras, ou sequências não foge a tal
mecanismo. Freud conclui:
80
os textos pré psicanalíticos, não há desvio de caminho: rompe-se com o
dualismo memória e linguagem sustentado pela psicologia. Explode-se a
relação entre domínios heterogêneos e independentes. Entretanto, isso não
significa que memória e linguagem sejam equivalentes na obra freudiana.
Então, qual é a natureza dessa relação?
Em A afasia (1891/1979), o aparelho de linguagem é uma rede que
associa “impressões mnêmicas” – um funcionamento de linguagem operando
nos sistemas de memória. O referente, o encontro com a realidade, ocorre na
associação entre o sistema de representação-de-palavra e representação-de-
coisa.
Interessante é que aquilo que nos chega à consciência-percepção está
articulado à cadeia linguística. As representações-de-palavras são restos-de-
lembranças acústicas, visuais e cinestésicas e, portanto são restos das cenas
linguísticas. Nesse ponto, essas lembranças são constituídas pela linguagem
e, portanto, memória é determinada pelo simbólico. Ainda assim, reconhecer o
jogo simbólico não nos permite sustentar que memória é linguagem.
Freud submete a memória ao funcionamento do aparelho – a memória é
trilhamento - e põe em jogo a dupla função da linguagem, como assinalou
Lacan (1959-60/1995). Assim, admite-se que o inconsciente tem propriedade
de estrutura, como a linguagem e, também se dá ao encontro do sujeito com a
realidade, como função comunicativa.
A partir da segunda tópica, a cisão entre dois sistemas Ics e Cs está
diluída e, portanto, o aparelho psíquico não é Um – é tomado pelo
recalcamento, por uma parte do Eu – o não-sabido- e do Supereu. O “Id é o
caos”, sem organização, como sublinhou Freud (1923/2006, p. 36). Como disse
Garcia-Roza (1991, p. 227): “é apenas por economia expositiva que falamos
em ‘um aparelho de linguagem’, ‘um aparelho psíquico’, etc. Um aparelho
psíquico nunca é um”.
No que concerne às demências, dois pontos merecem ser destacados
para os próximos capítulos:
(1) O que chega à consciência foi autorizado pela censura. Desse modo,
lembrar e esquecer são determinados pela censura. Os distúrbios de
circulação, com ocorre com as afasias e as demências vasculares,
favorecem a anomia, mas não eliminam a explicação de um
81
determinante psíquico para a falta de um nome na fala. O que essa
determinação psíquica significa para uma Clínica de Linguagem?
(2) A memória consciente está intimamente relacionada à representação
verbal. Assim, o que o sujeito lembra precisa articular-se à cadeia
linguística. Essa passagem à consciência orienta o sujeito no mundo,
um encontro com a realidade. È exatamente esse ponto que dissolve
com a demência.
82
Capítulo 3
A senhora Lili:
um olhar psicanalítico sobre as demências
51
Emendabili (2010) discute o trabalho de Messy (1993), apresentando os principais pontos
teóricos. Concentro-me no relato de caso para discutir a direção de tratamento implementado.
Entretanto, para melhor leitura, retomo algumas reflexões teóricas do autor.
52
Messy (1993) descreve, em anexo, o funcionamento de um centro de atendimento diurno
para idosos, especialmente para aqueles que perderam algum tipo de autonomia. Segundo o
autor, é um lugar de criatividade caracterizado pelas oficinas artísticas; um lugar de encontro
para familiares e profissionais adquirem experiências em lidar com os idosos demenciados; um
lugar de escuta oferecido pelas equipes especializadas.
53
Trabalhos contemporâneos sobre velhice e demência (do final década de 90 em diante), no
campo da Psicanálise, são todos tributários deste primeiro gesto de Messy. No Brasil, por
exemplo, temos Mucida (2004 e 2009) e Goldfarb (2004), por exemplo.
83
clássicas: desemprego, aposentadoria, falecimento de uma
pessoa próxima, deslocamento do lugar em que se vive,
hospitalização e todo trauma afetivo que abra uma ferida
narcísica (MESSY, 1993, p. 84).
84
deseja se deitar” (idem, ibidem, p. 61). Diferente disso, era a insistência nos
desenhos e comentários que os acompanhavam – aconteciam
sistematicamente no estilo de uma narrativa. A segunda parte desses
encontros era, sem dúvida, mais significativa para Lili, que queria falar, através
dos seus desenhos, já que estava silenciada ou com uma fala pouco
encadeada.
Antes desses encontros no Centro Dia, Lili havia sido atendida pela arte-
terapeuta – ela era uma referência e um lugar de identificação, diz Messy. Por
exemplo, na 7ª. sessão, ela olha para suas unhas curtas e diz que prefere as
compridas de Jacqueline. Na 30ª. sessão, depois de ter perdido peso (para
grande preocupação da filha e do médico), a paciente diz que decidiu
emagrecer para ficar parecida com Jacqueline: “ser delgada como ela”. A
entrada, nesses encontros, de um terceiro (o psicanalista, um homem) foi
relacionada, por Messy, às três cores (ou três formas) que sempre apareciam
nos desenhos de Lili. Na primeira sessão, após pintar seu desenho, ela diz:
“vejo vocês dois, eu estou por fora” (idem, ibidem, p. 54). Sobre isso, diz
Messy, que toma (diz ele) a insistência do “três” como significante: “estar por
fora, é também não estar sabendo das coisas ou é fantasma da união entre
J.P-F e J. M., da qual ela está excluída” (idem, ibidem, p. 54).
No prólogo, Périssé-Fichot faz a observação de que os desenhos da
paciente eram marcados por linhas retas (referidas a “masculino”) e curvas
(referidas a “feminino”). Frente aos desenhos seguidos das evocações
“enigmáticas” da paciente, ela pergunta:
85
Essa foi a interpretação que os clínicos escutara. A idosa falava pouco,
estava “sem palavras”, diz Messy, mas ela “compreendia o sentido das
palavras” (idem, ibidem, p. 85-86): respondia com o corpo e também oralmente,
com certa pertinência. Certo dia, todos os profissionais do Centro estavam
aflitos com a ausência de uma paciente. Quando a “ausente” chega, Lili foi a
primeira a indicar (para a surpresa de todos) que a senhora havia chegado,
conta Messy. Lili fazia comentários sobre os desenhos, apresentava falas
soltas, ou dizia palavras. Os terapeutas recolhiam estes enunciados da
paciente e faziam relações deles com sua história passada e atual. Messy, por
exemplo, articula a morte do marido à interrupção das lembranças – “hipótese
psicogênica”, que o autor sustenta para a demência. Ele descreve a 4 a. sessão:
54
Note-se a relação deste enunciado com a questão, mencionada acima, sobre a insistência
do três” nos desenhos e no enunciado de uma das sessões, “vejo vocês dois, eu estou por
fora”.
86
de terapeutas e a paciente (identificada com J.P-F). Essa configuração
fantasmática nos leva, ainda na minha interpretação, às cenas de cuidados do
marido doente – havia um outro (a enfermeira) que a empurrava para a
posição de “terceiro excluído”. De fato, algo atravessa, separa; “fica
atravessado”.
Messy relata que, na 9a sessão, Lili desenha 5 linhas verticais – duas
linhas rosas à direita, duas linhas verdes à esquerda e uma linha verde ao meio
do papel. Ela diz “é uma serpente” e traz lembranças da “serpente sem
cabeça”, fantasia que a amedrontava quando criança. Tratava-se de uma
serpente e de uma louca que corriam atrás dela e de dois amigos. Messy retira
daí a relação da paciente com a própria doença; “a loucura que a persegue”
(idem, ibidem, p. 60).
O autor fala de um trabalho clínico que “põe em ordem”, que dá certa
unidade (imaginária) ao sujeito. Messy assinala que os terapeutas escutam
uma história no que Lili diz. Eles instigam Lili a falar ou a desenhar e, assim,
esclarece o autor, procura-se dar um “banho de palavras” (MESSY, 1993, p.
87). Contudo, o autor nada diz sobre as suas interpretações. Não se chega a
saber nada sobre as intervenções dos terapeutas e, desse modo, como Lili foi
afetada pelas decisões e interpretações dos terapeutas, que ao que parece,
tendem a ser da ordem da “interpretação simbólica”, que Freud opõe à do
“deciframento” (Freud, 1900/2001)55. Esse ponto parece-me importante porque,
como veremos, ela é mais da ordem do imaginário – quem sabe, um efeito da
“perda de memória” sobre o clínico.
Depois de serem evocadas lembranças dos homens mortos na família
(pai, tio, marido), Lili não parou de desenhar na sessão. Messy sobre a
profissão do marido e ela não sabe – nem a do pai que, quando mencionado,
traz o enunciado “está morto”. O pai morreu quando a paciente era menina.
Messy interpreta a resposta “está morto” para a pergunta sobre sua profissão
como resposta a uma vivência traumática (o pai morto quando ela era
55
Tal interpretação (de sonhos) “leva em consideração o conteúdo onírico e trata de substituí-
lo por outro conteúdo compreensível, e em alguns aspectos, análogo” (FREUD, 1900/2001, p.
118). O método da “interpretação por deciframento”, este assumido por Freud, “trata o sonho
como uma escrita cifrada em que cada signo traduz-se, a partir de uma chave-fixa, em outro
significado conhecido” (idem, ibidem, p. 119). Por tratar-se de uma cifragem, de um enigma -
não há significado dado, prévio, e, portanto, possibilidade de substituição por outro significado
que lhe seria análogo - a direção da interpretação é outra, portanto, no deciframento.
87
pequena). Ele conclui que “não há incoerência nessas evocações, apenas uma
ausência de palavras, parecendo uma linguagem perdida” (idem, ibidem, p.
59). Messy aposta que “faltam palavras” para a paciente responder. Ou seja,
no esquecimento da palavra referente a profissão, ela responde com a
vivência.
De fato, “não há incoerência” interna na jogada retroativa da memória
que “pai” evoca – um tanto abalada está a referência externa, como discutiu
Landi (2007). É esse abalo que, como efeito, deixa o efeito de “a linguagem
perdida”. A “linguagem perdida” dizem, efetivamente, do efeito que a fala da Lili
produziu no psicanalista. Acontece que, sob esse efeito, ele dirá que há
“ausência de palavras” – não me parece ser isso que está em questão: por que
supor que uma resposta diferente da esperada para uma pergunta
corresponderia a “um falta”? Parece-me mais plausível dizer que as palavras
que afloraram foram retiradas de uma rede associativa, de um trilhamento
singular imposto por “pai” (e não pela profissão).
No retorno das férias, Lili depara-se com a saída próxima de Jacqueline
do Centro de Atendimento. A partir daí, ela não desenha mais três cores.
Apesar de “trabalho de despedida” realizado, em palavras de Messy, a idosa
fica mais agressiva com outros profissionais, emagrece e fica hospitalizada por
10 dias. Depois de seis meses do afastamento da arte-terapeuta, a filha da
paciente, “esgotada pelos cuidados com a mãe”56 e vendo seu casamento
ameaçado, “precipita-se”, diz Messy. Ela deixa Lili numa casa de repouso.
Após institucionalização, o quadro da paciente piorou significativamente 57.
Messy fala da “inconstância” da Lili em casa e de sua deteriorização na casa
de repouso: [...] “como não se perder, se além de tudo, não se deseja estar aí?”
(idem, ibidem, p. 88).
Após o desfecho desse caso, o autor comenta:
56
A filha conta que a mãe havia piorado muito e que, por exemplo, estava evacuando em
folhas de papel que guardava em armários.
57
É bem conhecida e discutida a “queda do sujeito” em instituições de longa permanência.
Para uma discussão aprofundada sobre os efeitos subjetivos da institucionalização, ver
DUDAS (2009); GOFFMANN (2004); FOUCAULT (1926/1984).
88
contar com o apoio da transferência estabelecida com
Jacqueline Pérrissé-Fichot, em especial [...]. A partida de J.P-F
fez Lili imergir de novo no luto, já que o anterior não havia sido
elaborado [...]. A inexperiência, o isolamento e as resistências
familiares contribuíram para seu fracasso. (idem, ibidem, p.
78) (ênfase minha).
58
O termo “acompanhamento” é veiculado na Neurolinguística Discursiva que propõe um modo
de atendimentos a afásicos. Refiro-me ao “acompanhamento” conforme ressignificado por
Fonseca (2012) - como veremos no capítulo seguinte. Também ali, considerações sobre a
transferência na Clínica de Linguagem serão tecidas, ainda que esse ponto não seja o foco
deste trabalho.
89
Messy levanta a hipótese do “espelho quebrado” para caracterizar a
velhice. Ele compreende a demência como tensão do ego e desinvestimento
do objeto59. Vejamos: a entrada na velhice gera uma tensão existencial. O eu,
diz ele, não se reconhece sua imagem no espelho (um ego feiura, que antecipa
a morte). Dito de outro modo, frente ao espelho (o Outro), o corpo fica
fragmentado, o “espelho está quebrado” (idem, ibidem, p. 9). A percepção
antecipada dessa fragmentação pode produzir, como efeito, angústia. É o Real
que incide e o Simbólico60, diz Messy, acaba organizando o que é
aterrorizador. Em alguns casos, porém, pode acontecer uma precipitação: “do
indivíduo na patologia, e até na morte, pela volta da agressão contra si mesmo”
(MESSY, 1993, p. 26). Para um grande número de sujeitos, acrescenta o autor,
o tempo do “espelho quebrado” fica circunscrito a um período depressivo,
motivado pela perda da imagem ideal. O que se tem, é que, embora
socialmente marginalizado, o idoso tem desejo e pode elaborar suas perdas 61.
Mas, qualquer declínio motor; social - ou uma lesão cerebral - pode representar
uma perda insuportável e empurrar o sujeito para a patologia, de maneira
desproporcional à degeneração cerebral.
Na demência, propõe o autor, o Simbólico não pode se ligar Imaginário e
é, por isso, que as palavras são perdidas, mas não toda a linguagem. Perde-
se, diz Messy, a “representação pré-consciente” (nos termos da primeira tópica
de freudiana). Com esta afirmação, Messy procura aproximar memória e
linguagem: o paciente demenciado “perde a memória das palavras”. Para o
autor, ele se lembra dos fatos, mas “faltam-lhes as palavras” e o paciente fica
à mercê da representação-de-coisa, afasta-se da realidade – “à maneira do
esquizofrênico ou do sonho” (idem, ibidem, p. 85). Cabe apontar que a reflexão
sobre a fala dos pacientes com demência encaminhada na Clínica de
Linguagem percorre outra direção. Na demência, não faltam palavras. Isso
porque, o sujeito não está fora das referências internas da língua. O que se
59
Emendabili (2010) assinala que perda não é déficit - ela não pode ser quantificada: “trata-se
de perda da possibilidade do sujeito para lidar com o objeto investido. “Perda” remete, segundo
Messy, ao desaparecimento desse objeto” (idem, ibidem, p. 47).
60
A hipótese psicogênica do autor para abordar o envelhecimento e a demência está centrada
na primeira e segunda tópica freudiana. Entretanto, os termos lacanianos Real, Simbólico e
Imaginário fazem certa pressão.
61
Desse comentário de Messy, parece decorrer o título do livro de Mucida (2004): O sujeito
não envelhece.
90
dissolve é o encontro entre referência interna e referência externa (LANDI,
2007; EMENDABILI, 2010).
Messy conclui que, no limite, esses sujeitos fecham-se no mutismo e
rompem, definitivamente, a relação com o outro e com as pressões externas:
Demência é “doente sem pré-consciente” (idem, ibidem, p. 87).
Para o psicanalista, a demência decorre da:
(1) Ruptura do sistema representação-palavra. Tem-se, diz ele, um
sujeito sem Pcs. Entretanto, representação de palavra é, em seu
texto, reduzida à “memória da palavra”.
(2) O retrocesso da memória é relacionado à “falta de palavras”: o sujeito
“lembra-se dos fatos, mas faltam-lhe as palavras”, diz Messy. Nesse
caso, memória é espaço de armazenamento de palavras. Por isso é
que na demência haveria problema de “acesso lexical”.
Desde a monografia A Afasia (FREUD, 1891/1979), representação-
palavra diz respeito a “impressões” ou a “traços” visuais, auditivos e
cinestésicos e, portanto, não a vocabulário, palavra62. De fato, o que chega ao
pré-consciente está intrinsecamente relacionado à representação verbal.
Entretanto, essa passagem, como vimos, ocorre no encontro entre a
representação-palavra e a representação-de-coisa – um efeito de operação do
aparelho da linguagem. Messy não considera, de forma determinada, a rede
associativa a que esquecimento ou anomia deveriam ser remetidos, ou seja, à
lógica do funcionamento do aparelho.
Assumir, como faz o autor, que o sujeito recorre à representação-de-
coisa por haver deteriorização do sistema representação-palavra não procede,
a meu ver, do texto freudiano. Como, pergunto, seria admitir que o sujeito
possa, sem palavras, “lembra-se dos fatos”? Retira-se de Freud que a
representação-de-coisa não retém qualidades e, caso não seja articulada à
cadeia linguística pela fala, não se pode ter qualquer apreensão do
pensamento. Desse modo, “lembrança de fatos” só pode corresponder a efeito
do encontro entre os dois sistemas e não da dissolução dessa relação – o
significado decorre desse encontro.
62
O que seria “lembrança de fatos” quando a representação-de-coisa é um resto da
experiência? Não há essência do objeto em Freud.
91
Parece-me que, ao longo do desenvolvimento da doença, o encontro
entre representação-palavra e representação-de-coisa, nos termos freudianos,
é abalado e pacientes tendem ao mutismo – o que tornam insondáveis as
lembranças. Antes do esgotamento das “lembranças” e do silenciamento, i.e.,
antes do desencontro entre linguagem e mundo, a experiência clínica tem
mostrado que os pacientes repetem, insistem, em “algumas lembranças”. No
caso Lili, Messy recorta a repetição do significante “três” (nos desenhos e nos
relatos das mortes dos homens da família) – ele se destaca das lembranças,
que ficam nele condensadas, sugere ele. As lembranças estão lá, aderidas a
este significante, mas encobertas e funcionando com âncoras subjetivas, que
impulsionam o sujeito - enquanto houver fala e falante.
Messy interpreta as lembranças de Lili e as reduz a esse “três”. Mas, é
fato, que pacientes repetem “lembranças” da própria vida, incessantemente. A
clínica não deixa dúvidas a esse respeito. Uma paciente, conta, em todas as
sessões, ter sido a preferida dos sogros com quem viveu por 15 anos; que ela
conseguia tudo do sogro e que todos (sogra e cunhados) quando queriam
alguma coisa dele, recorriam a ela. Outra senhora repetia, a cada encontro: “O
Sr.P. sempre disse que nossa família é formidável”. Importa assinalar que, nos
períodos iniciais da demência, os pacientes são afetados pelas “perdas de
memória” - sofrem seus efeitos e são assombrados pelo risco de “dissolução
subjetiva” (LANDI, 2007). Frente a isso, eles se parecem ancorar-se num
investimento narcísico63 que, nessas repetições aparece “inflado” – isso, um
tempo antes do sujeito se perder e mergulhar na demência. Num período dito
intermediário, o doente já não é afetado pelas suas dificuldades de memória e
pelo estranhamento do outro frente às falas diluídas de sentido e, então,
caminha para uma alienação, sem sofrimento.
No que diz respeito às possibilidades de tratamento de um sujeito na
demência, Messy (1993) é otimista: “vários exemplos nos mostraram que uma
estabilização, e até mesmo progressos” (idem, ibidem, p. 92), desde que o
ambiente em que vivem as pessoas demenciadas seja “afetuoso e atento”
63
Para Freud, diz Chemama (1995, p.139), “pelo menos até a década de 1920, o narcisismo
representa uma espécie de estado subjetivo relativamente frágil, de equilíbrio ameaçado (há
oscilação entre investimentos objetais e investimentos egóicos)”. Pode haver alterações,
portanto, no funcionamento narcísico – pode haver tanto uma inflação desmedida do
narcisismo, quanto uma forte depressão.
92
(Messy refere-se à família e à equipe de profissionais). Quanto à clínica
psicanalítica, que se realiza pelo “olhar do outro”, há um caminho possível, qual
seja: “colocar o imaginário em relação com o simbólico que, por vezes,
permitirá que a palavra encontre seu lugar” (Messy, 1993, p. 88). Nesses
enlaçamentos felizes, o paciente tem “momentos de lucidez” (idem, ibidem).
Por isso, ele sugere, que “é preciso continuar a emitir nossas mensagens,
captar os apelos dos sujeitos” (idem, ibidem, p. 86), quer dizer, “é preciso, em
todo caso manter o doente no banho de palavras, alimentado por nosso
narcisismo” (idem, ibidem, p. 87).
O que significa encaminhar uma clínica psicanalítica que visa “colocar o
imaginário e simbólico em relação”? Como se pode ver, o autor recorre, ainda
que tangencialmente, aos registros lacanianos do Real, Simbólico e Imaginário,
à topologia do nó borromeano64. Mas, por que o autor se desloca da primeira
tópica freudiana para os três registros lacanianos? Interessa dizer que os
registros R/S/I são invocados, por Messy, quando ele se fala da clínica.
64
A expressão nó borromeano surge, pela primeira vez, no discurso lacaniano em 9 de
fevereiro de 1972 para exprimir um modelo topológico estrutural da constituição do sujeito.
Antes disso, Lacan debruçava-se, com seu amigo Georges T. Guibault, em jogos topológicos –
uma atividade lúdica de atar barbantes. Borromeano remete à história da família Borromeu. As
armas dessa dinastia italiana continham o brasão representado por três anéis em forma de
trevo e enlaçamos o poder em três ramos: o rompimento de um anel, soltava os outros dois
(ROUDINESCO e PLON, 1944/1998).
93
(1) Há = real ou R
(2) Há lalíngua = simbólico ou S
(3) Há semelhante = imaginário ou I
E acrescenta:
94
de haver semelhante, retira-se que há dessemelhante. Mais do que isso, se
dois termos são “semelhantes ou dessemelhantes” é porque termos têm
propriedades comuns. Desse modo, classes são estabelecidas até o limite em
que surge o dessemelhante. I é, portanto, o domínio das representações, da
consistência, que constrói a realidade como um todo representável. S e I,
distinguem-se, portanto – em S, a relação é tal que Um, só vale para Um outro
(o que inviabiliza a construção de classes); em I, relações produzem
representações.
Como disse acima, os círculos são indestrutíveis e se enlaçam num nó
borromeano. Desse enlaçamento decorre que “nada existe que não deva ali se
escrever”, inclusive o R, como o “impossível de se escrever e de se
representar” - afinal, R faz anel (este seria o I do nó). Mas, alerta Milner, o real
do nó borromeano aparece no instante de corte em que os círculos se
dispersam. Bem, “essa dispersão é R, ele mesmo”. Nesse ponto de corte, diz
ele, localiza-se a hiância – abertura em que “um sujeito passível de espelhar se
descobre abandonado por toda analogia. A desenodamento é a dispersão
pura: “Frente a S, que distingue, e ao I que liga: R é, assim, o indistinto e o
disperso” (idem, ibidem, p. 9). É conveniente reter, ainda, que “nada de S nem
de I permite acessar R e que o ser falante é incessantemente convocado a
imaginar R” (idem, ibidem, p.13), Assim:
95
ibidem, p. 15). Aqui se poderia incluir as demências, como mergulho num
processo de diluição das significações.
Nesse ponto, tendo em vista a Clínica de Linguagem, que se tem se
orientado pela esfera da articulação entre S e I, cabe dizer das questões
clínicas a demência tem colocado para ela, tanto do ponto de vista do
tratamento, quanto do prognóstico. Saussure está no fundo das teorizações e
da clínica, que tem podido sustentar para o movimento da língua na fala e
recolher um falante “em sofrimento” (Fonseca, 1995, 2002), que, frente ao seu
dizer, nada pode fazer para mudá-lo, que se vê ao deabrigo de quaisquer
“estratégias cognitivas” (LIER-DeVITTO, 2002; 2003 e outros). Não se pode
dizer, portanto,que na Clínica de Lingaugem o falante seja “tomado como anjo,
aquele que enuncia sem um corpo, sem consciente e/ou inconsciente, sem
desejo” (MILNER, 1978/2012). Sem dúvida, em muitos casos, fica-se bem de
frente a lalíngua, desembaraçada de I - algo da natureza do corte aí se
apresenta. Nesse caso, dar um passo na direção do que isso significa parece
importante.
Lalíngua65, diz Milner (idem, ibidem) é, para um falante, sua língua
materna: “num só golpe, há língua (seres falantes) e há inconsciente” (idem,
ibidem, p. 26). Em tese, “a língua sustenta o real de lalíngua” e fica, assim
ligada ao não-todo: à falta da palavra e ao impossível de dizer. Esse ponto
reveste de sentido a afirmação de que só há patologia de linguagem na
língua materna (LIER-DeVITTO, 2006). Enfim, lalíngua articula sujeito do
desejo e língua e, sendo assim, ela só pode declinar-se nas três suposições
que remetem ao “encontro contingente entre R, S e I” (MILNER, 1983/2006, p.
33). Quer dizer, se admitirmos que “há nó” e que o R insiste e que as cadeias
de S, que se desenrolam de um significante a um outro, abrem espaços em
branco – ali o Outro pode emergir. Nesses espaços em branco, lalíngua
opera66: “[espaço] contingente onde um significante, ‘um-entre-outros’, pode
65
É um conceito forjado por Lacan a partir de um equívoco. Lalangue é um lapso que Lacan
enuncia a partir dos nomes de dois autores: Laplanche, antigo discípulo e autor do Vocabulário
de Psicanálise, e Lalande, autor do Vocabulário de Filosofia (LAPLANCHE e PONTALIS
1982/). Lalíngua, tradução para o português, aproxima a palavra dos balbucios do bebê
(lalação) na relação com a língua materna. Lalíngua pontua o segundo tempo da obra
lacaniana e desdobra o axioma “o inconsciente estruturado como uma linguagem” (TROIS,
2007).
66
Disso decorre, a afirmação lacaniana: o inconsciente é saber-fazer com lalíngua (TROIS,
2007).
96
tocar o sujeito. Ponto onde um significante, ao afetar outro significante, faz dele
sujeito, efeito pontual e evanescente desta afetação” (TROIS, 2007: 129).
Assim, do lado de S, está a língua, como puro discernimento (que funda
propriedades), mas também aquilo que a ultrapassa: está lalíngua, que “toca” R
pelo lado da falta ou do excesso – haverá sempre Um a menos, impossível de
dizer, ou Um a mais, caso das homofonias que insistem incessantemente a
ponto de se desfazer” (idem, ibidem, p. 33). Do lado de I, está a relação entre
falantes, denominada de comunicação, o que coloca em jogo a significação e
referência. Em I está o acontecimento possível, representável no tempo e no
espaço. A realidade, então, se ordena pelas articulações de I, fazendo a
unidade e estabelecendo, por um encontro contingente, a comunicação.
Implicar lalíngua exige, como vimos, implicar a suposição sobre R que
se reduza um “há” (postulado da pura existência). R é o estranho: um corte ou
escansão. Quando ele emerge, a cadeia insiste (não progride). R “não cessa
de não se escrever” (idem, ibidem, p. 9). R é o impossível “fora-de-espaço” e
“fora-de-tempo”: serve-se da cadeia, mas não pode ser apreendido pelo
significante. R não faz relações, nem tem propriedades.
Falar em lalíngua é reconhecer que, para um ser-falante, as três
suposições não cessam de se inscrever e que os anéis ou círculos do nó que
as enlaça são indestrutíveis, ou seja: “algo não cessa jamais de existir; algo
não cessa jamais de se escrever – se, pelo menos, como supomos, isso fala:
enfim, algo não cessa de se representar” (idem, ibidem, p. 9). O enodamento
dessas três dimensões só acontece, como vimos, no instante de um corte, de
uma escansão nos anéis, que forçam o imaginário representar. Por isso, “o ser
falante é incessantemente solicitado a imaginar R” (idem, ibidem: 12).
Assim, quando algo de R incide e desenoda os outros dois anéis, a
suspensão das representações deflagram o horror. Nesse ponto, a hipótese do
“espelho quebrado” de Messy é iluminada pelo que pudemos retirar de Milner
sobre R/S/I – há aí “escansão pura”, como ele diz. No “espelho quebrado”, a
imagem fica destroçada e o sujeito antecipa a morte e se aterroriza, mesmo
porque há uma impossibilidade de nomeação da própria morte:
97
damos, na falta de melhor, ao que, em um ser marcado por S
ou I, responde pelo o que não tem nome, nem forma. (
MILNER, 1983/2006, p. 12).
98
Supremo, a vida continua e o imaginário não se reduz.
(idem, ibidem, p. 51-2) (ênfases minhas).
67
No próximo capítulo, tratarei da relação referencia interna e referencia externa, o efeito de
significação.
99
Encerrei o primeiro item deste capítulo interrogando a saída pretendida
por Messy, ao mencionar os três registros lacanianos, logo depois de ter
implicado fortemente a primeira tópica freudiana no tratamento da relação
memória e linguagem. É fato, como assinalei nesta tese, ser viável dizer com
Freud que memória e linguagem são domínios “concomitantes dependentes”,
embora Messy deixe escapar a rede associativa implicada, por Freud, no
funcionamento do aparelho psíquico. Isso que ele deixa cair foi, contudo, aquilo
que Lacan recolhe em Freud, a partir de Saussure: a primazia da cadeia
significante. Na verdade, não se entende por que Messy fica entre Freud e
Lacan, não se chega a sabe a razão do passo que deu de Freud para Lacan.
Tudo se passa como se as teorias fossem complementares. As questões que
podem ser levantadas aqui é se, de fato, elas são complementares e, ainda, se
(quais) consequências podem ser retiradas de dificuldades de memória, nas
demências, quando se opera com a teoria do significante.
68
Mantive o termo “linguagem”, utilizado por Milner, ao invés de utilizar o termo saussureano
“língua”. Milner (1978/2012, p. 45), em O Amor da Língua, esclarece que “a operação da língua
e da linguagem são semelhantes”. Segundo o autor, a única diferença é que a linguagem é o
100
(MILNER, 2003). Dessa aproximação resulta “o corte lacaniano” radical; ele diz
“a linguagem é a condição do inconsciente” (LACAN, 1901-1981/2003, p. 490).
Lacan dá corpo à sua “doutrina do significante” ao incluir, na estrutura, o
equívoco e o falante. Daí a afirmação de que “o significante representa o
sujeito para outro significante”– definição estrita de significante como existência
opositiva, relativa e negativa é sustentada pelo “representar para”. É certo que:
universal que estão todas as propriedades das diversas línguas, “reunidas coletivamente em
um todo; a língua, ao contrário, supõe o universal distribuído sobre cada uma [...] como se ela
fosse sozinha no mundo”.
101
Lacan diz, num segundo tempo da teoria, que “o inconsciente é um
saber, um saber-fazer sobre lalíngua” (idem, ibidem, p. 149), um saber que
escapa ao falante:
Lalíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como
efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de
lalíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que
o ser que fala é suscetível de enunciar (idem, ibidem, p. 149).
102
CAPÍTULO 4
A Clínica de linguagem e sujeitos com demência
69
LIER-DeVITTO participou da construção do Interacionismo em Aquisição de Linguagem e
iniciou a discussão sobre falas sintomáticas no âmbito do Projeto Integrado CNPq “Aquisição
da Linguagem e Patologias da Linguagem” entre o período de 1997 e 2002. Atualmente, essa
discussão desenvolve-se, sob sua coordenação, no Grupo de Pesquisa (CNPq-LAEL). O
Interacionismo é posto como “outro” neste diálogo teórico e, portanto, os operadores de leitura
“erro”, “mudança” e “interpretação” são ressignificados na Clínica de linguagem (LIER-
DeVITTO, 2002).
103
afetado/interrogado [pela] singularidade [desse material]” (LIER-DeVITTO,
2006, p. 184). Assim, o Interacionismo é mantido “em posição de alteridade”
nas reflexões encaminhadas pelo grupo de pesquisa Aquisição, patologias e
clínica de linguagem (LAEL/PUC-SP). Ou seja:
70
Relatório de produtividade em pesquisa CNPq (2011).
104
de Linguística Geral: “é a língua que faz a unidade da linguagem” (SAUSSURE,
1916/1969, p. 18). Essa afirmação representa, sem dúvida, “uma saída da
descrição” (DE LEMOS et al., 2004) e aponta para um caminho teórico para a
abordagem de falas heterogêneas, marginalizadas, que são resistentes à
descrição gramatical (DE LEMOS, 1992, 2002; LIER-DEVITTO, no prelo).
Nesse enquadre, não se pode deixar de fora as relações internas e
permanentes da língua que estão no “ato do falante” – chegamos, aqui, a la
parole. Por isso é que se pode dizer que “Saussure dá a chave” para um
desdobramento relevante, ou seja, a possibilidade de articular a língua na fala
e a inclusão do falante na fala (LIER-DE VITTO e FONSECA, 2001). Esse
desdobramento só é viável teoricamente porque o funcionamento linguístico
comporta a noção de estrutura, como Saussure pode mostrar com a teoria do
valor.
Coelho (1967), na introdução do livro “Estruturalismo, antologia de textos
teóricos”, entende a estrutura como:
Não é outra coisa que Saussure propõe com a teoria do valor – “a língua
é um sistema de valores”. Sendo este o caso, é preciso reconhecer que ao
tomar partido do estruturalismo é afirmar-se antiempirista, anti-
desenvolvimentista e, acima de tudo, afastar-se do psicologismo e do
sociologismo. De fato, o antiempirismo pode ser esclarecido com o enunciado
de que a estrutura não representa a realidade, ela não é da ordem da
observação. Reconhece-se a característica acrônica no questionamento e
105
recusa do problema da origem: a natureza da estrutura é ser atemporal. O
antipsicologismo exclui a apreensão direta do objeto pelo sujeito: não admite o
poder atribuído à percepção e à aprendizagem. Quanto ao adjetivo
“antissocial”, pode-se dizer que as transformações não são explicadas pela via
de elementos históricos e culturais – elementos externos ao sistema. Desse
modo, ocorrências singulares e idiossincráticas só podem ser explicadas pelas
leis internas ao sistema.
A língua tem anterioridade lógica em relação ao falante, embora ela só
exista por porque há fala e falante: “lugar em que emerge a diferença”. Da
língua, na verdade, só apreendemos o seu efeito na fala “como efeito de uma
ausência” (idem, ibidem, p. XXVI):
106
possibilidade de inconsciente e estrutura. Ele afirmou: “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem”, que dizer: “o inconsciente é a presença do
significante” LEMOS (2002: 52). O estruturalismo europeu caminhou, depois de
Saussure, na tentativa de articulação da língua na fala (Jakobson, 1960;
Benveniste,1902-1976/2005), mas não pode desenvolver uma teorização sobre
o sujeito-falante. Essa questão excede o programa da Linguística. É
exatamente nesse ponto de excesso, ponto que implica o sujeito, que Lacan
avança e legitima a “doutrina significante”, como assinalei no capítulo anterior.
Ele valoriza, com Freud, o fato e que aquilo que escapa ao falante – o equívoco
– pode invadir a fala e perturbar a cadeia. Nesse momento: “a representação
gramatical cede lugar a uma articulação significante” (LIER-DeVITTO e
FONSECA, 2012, p. 70).
Se, como disse Coelho (1967, p. 28), a estrutura pode implicar um
sujeito, que “nunca se tornar visível na plena evidência dessa cena”. Isso quer
dizer que “a fala é a condição necessária para um sujeito desaparecer”
(LEMOS, 2006, p. 62). O sujeito desaparece na cadência da fala, ainda que
ocorram “invasões” inesperadas – aí ele faz sua emergência imprevisível. Lier-
DeVitto e Fonseca (2012) entendem, com Milner (1978), que essa “invasão” do
sujeito na cadeia falada é processo de subjetivação e assinalam que:
107
singulares. É fato que a fala, como afirma Lemos (2002), pode ser reduzida ao
plano dos signos, que dizer, a um plano que obtura o significante e o sujeito.
Isso porque, apesar das “invasões”, ela veicula significações. Quer dizer:
108
língua ganham valor (provisório) depois da “jogada da língua”. O efeito
patológico tem a ver com isso, ainda que deslize e fique à deriva.
A densidade significante das falas sintomáticas passou a ser enfrentada
no Projeto desde 1997. Procura-se apreender na particularidade de uma fala a
mobilidade significante que a determina. Assume-se que uma fala sintomática
tem uma “lógica singular”, como disse LIER-DeVITTO (2003, 2006).
Reconhece-se, no uso dessa expressão, que há sujeito na fala. No caso da fala
afásica, por exemplo, LIER-DeVITTO e Fonseca (2012) afirmam tratar-se de
uma “sintagmática em ato” (Milner, 2003): “de arranjos e desarranjos que
acontecem, digamos, ‘à luz do dia’, ali mesmo, numa presença manifesta e
sem disfarces” (LIER-DeVITTO e FONSECA, 2012, p. 75).
O afásico, disse Lacan (1955-56/1981), mesmo numa fala destroçada,
“fica ao lado do que diz”, ou seja, fica cindido entre “uma escuta presa no
imaginário da língua constituída e o corpo que falha, que é movimentado pelo
jogo simbólico” (LIER-DEVITTO, 2003, p. 238). Pode-se dizer que algo do real
incide e as operações do imaginário e simbólico insistem e que o “nó aguenta”
em muitos casos de afasias, lembrando, aqui, que “o ser falante é
incessantemente solicitado a imaginar R” (MILNER, 1983/2006, p. 12).
Eu diria que há mais sujeito e menos fala/falante na afasia, querendo
dizer com isso que o falante afásico fica sob efeito da sua fala e da fala do
outro; que sua fala tem endereço e que, mesmo esfacelada, faz laço. Na
afasia, não se perde a referência externa, não evanesce a relação sujeito-
realidade. Como apontou Fonseca:
109
Resta dizer que a escuta imaginária da língua constituída sustenta o
afásico na Clínica de Linguagem. Na escuta, I faz a unidade do diálogo entre
clínico e paciente. O clínico recolhe significantes da cadeia desalinhavada na
fala do afásico e interpreta, ou seja, persegue um lugar na estrutura que faça
emergir o sentido que ficou perdido na fala do paciente. O diálogo clínico
realiza-se, desse modo, a partir da instituição de uma realidade, i. e., ele se
ordena através de S e de I.
No caso das demências, como já apontei no capítulo anterior, esse
enlaçamento fica fragilizado, resta algo do representável (MILNER, 1983/2006).
No estágio final da doença, dilui-se o efeito comunicativo e a operação deixa de
ordenar a realidade. Rompe-se a referência externa, mas a fala insiste, como
veremos abaixo, bastante articulada do ponto de vista sintático – há como que
uma cristalização da representação gramatical em detrimento da mobilidade da
cadeia significante. Sendo esse o caso, não há surpresas (lapsos, tropeços,
por exemplo) porque temos menos sujeito, mas, digamos, há mais
fala/falante do que nas afasias. Há fala bem estruturada, mas elas são
“vazias”. Pouco a pouco, perde mais um tanto: fica menos sujeito e menos
falante – o caminho é o silêncio.
Vê-se que o sintoma que instiga a Clínica de Linguagem é aquele que
está ligado a ocorrências manifestas na fala. Sua interpretação, contudo,
depende daquilo que se compreende por linguagem e por sujeito. Nesse ponto,
a presença do estruturalismo europeu (a partir da leitura de De Lemos, 1992) é
essencial, assim como o entendimento de que não há, como diz LIER-
DeVITTO, estratégia cognitiva que retire o falante de seu sintoma, ainda que
ele tenha escuta para os furos em sua fala. Interessa ao clínico de linguagem a
fala e seus efeitos na escuta do outro e do falante. É preciso, porém, caminhar
– quando se reconhece que enunciados ficam esclerosados, repetitivos; que
algo sempre excede ou falta na fala sintomática – é preciso admitir que algo de
lalíngua incide, ou seja, que o efeito de perplexidade que falas sintomáticas
promovem não esconde o fato de ali persiste que a articulação entre sujeito do
desejo. Envolver uma reflexão sobre lalíngua é “trazer mais para dentro” a
hipótese do inconsciente: é reconhecer que, para um ser-falante, três
suposições (R, S e I) não cessam de se inscrever: mesmo na demência em
110
que o nó parece estar suspenso, há encontro contingente dos anéis e o sujeito
tem “momentos de lucidez”.
111
Desse modo, a referência externa (da linguagem em relação ao mundo)
“não é isolada ou destacada, mas articulada às leis de composição
estritamente linguísticas” (LANDI, 2007, p. 68); ou seja, há leis de referência
interna da linguagem, que são estruturantes da relação do sujeito com o
mundo. Dito de outro modo, “referência é efeito do jogo da língua” (idem,
ibidem, p. 82). Estamos falando de relações e significações que “já estão lá”
numa língua, antes do sujeito. Elas comandam a interpretação do outro e a
captura à ordem da linguagem; ordem, essa, que é determinante da “leitura do
mundo”, como mostrou Saussure (1916).
Entender a referência externa como efeito de interpretações mobilizadas
por referências internas não significa ignorar o fato de que a linguagem aponta
para a realidade – uma relação que parece se desfazer nas demências. Para
explorar a questão da referência nas demências, Landi deixa clara a
necessidade de inclusão do falante. Ela afirma:
112
que você está comendo?”). Ela diz: espinafre, batatas e
rabanetes. Se os enunciados não correspondem a uma
verdade pragmática, não se pode negar que eles são efeito da
fala do outro/própria: Há operações de referência interna em
funcionamento:
113
dos significantes da fala do outro e da própria fala. Entretanto, a fala não
faz signo e o laço se dilui. Landi observa:
O sujeito com demência fala suas vivências e, por aí, pode-se deduzir
que há falante na fala. O que chama a atenção é a cisão entre fala e escuta, ao
contrário da posição do paciente afásico como já assinalei. A partir disso, Landi
pode atestar que enquanto houver fala na demência, há movimento regido pela
reflexidade da linguagem. Isso quer dizer que mesmo “desorientado”, o
demenciado fala as suas vivências. Há língua, há falante, há memória na
demência. Entretanto, o modo de relação do sujeito com a própria fala e a do
outro está abalado. Como efeito, perde-se a função comunicativa e a referência
externa.
Emendabili (2010), pesquisadora filiada à reflexão da Clínica de
Linguagem, concorda com Landi ao sublinhar que aquilo que o sujeito diz,
mesmo que desorientado da referência externa, “é carregado de vivências
subjetivas” (idem, ibidem, p 1). Com LIER-DeVITTO, Fonseca e Landi (2007), a
autora sustenta que “falas de pacientes com demência revelam uma
“dissolução subjetiva” – o passado vai sendo esquecido, o laço social se
esgarça e tem-se um abalo na unidade imaginária do eu”. (EMENDABILI,
2010, p. 86). Assim, ela visualiza a possibilidade de uma clínica com o objetivo
de “sustentar o falante na fala”. Nesse caso, o clínico deve suportar “ficar tanto
fora de um sentido desejado ou antecipado” (idem, ibidem, p. 84).
Fonseca, recentemente, tem discutido a distinção entre afasias e
demências, ou melhor, a posição do falante afásico e do sujeito com demência.
Sua vasta experiência com afásicos, a fez atestar que são quadros de
114
linguagem distintos. Ou seja, não há afasia na demência. Em uma
comunicação oral, ela assegura:
115
De um modo geral, os trabalhos de Landi (2007), Emendabili (2010) e
Fonseca (2012) identificam a especificidade da demência no que diz respeito à
posição do falante frente à própria fala e à fala do outro. Especificidade
caracterizada por: (1) distinção entre afasia e demência, principalmente na
relação fala e escuta. A escuta presa ao imaginário do falante, como
semelhante, não se sustenta na demência; (2) a demência envolve a
dissolução subjetiva, marcada pela dominância da dissolução imaginária; (3) a
fala presa às vivências – presa ao simbólico – desencontra a cena enunciativa
(referência externa).
Sobre o “aprisionamento” em cenas vividas, pude observar quando
71
supervisionei a avaliação da senhora Hilda em uma instituição de longa
permanência. Apesar das suas queixas de memória e as dificuldades para
executar as tarefas cotidianas, ela não tinha o diagnóstico de demência
confirmado.
Inicialmente, chamou a atenção que o “falar de si” tomava conta dos
encontros. Qualquer texto iniciado pela terapeuta, deflagrado pela leitura do
jornal, de uma crônica, deslizava, facilmente, para cenas vividas (em negrito,
logo abaixo). Ela tinha dificuldade em se manter no texto do outro. No trecho
abaixo, a terapeuta leu uma reportagem de jornal sobre fortes chuvas na região
sul do país. Após a leitura em voz pela terapeuta, seguiu-se o seguinte diálogo:
71
Esse caso foi atendido por uma aluna do curso de Fonoaudiologia e supervisionado por mim.
Partes das sessões foram transcritas e estão no trabalho de conclusão de curso “Sobre a fala
de uma idosa institucionalizada: considerações sobre a linguagem e o sujeito na Clínica de
Linguagem” (WAGNER, 2010).
116
H: Prejuízo de tudo jeito. Das casa, da saúde, das pessoa, enchente desse
jeito prejudica a saúde pro pessoar, a água demais prejudica a saúde do
pessoar.
T: Aonde aconteceu tudo isso?
H: Foi na Vila São João [bairro que a senhora H. morava, mas que não
aparecia na reportagem] decerto esses dias que tava dando no rádio, mas
quase nóis não ligamo o rádio, e// a dona “B”, ela sempre gostava mais de
liga o rádio do que eu, eu engraçado, ligo só cedo, ali pelas nove hora,
escuto o programa do padre e não me lembro mais de liga. Meio dia tem
tanta notícia
T: É, tem bastante notícia
H: bastante notícia. Ela ligava, daí o filho dela levô o rádio pra arruma um
filzinho que tinha arrebentado e não trouxe.
72
Para uma discussão aprofundada sobre o diagnóstico da Clínica de Linguagem ver Arantes
(2001).
117
paciente (não um informante) seja convocado desde o primeiro encontro. É
uma recomendação, não uma norma, que tem como meta escutar a queixa e
um pedido do próprio paciente. Em minha dissertação de mestrado, assinalei
que o informante/acompanhante só poderia falar sobre o paciente e não pode
falar pelo paciente. “Ora, como poderia alguém, nessa circunstância, falar a
fala da outra pessoa? Como poderia reproduzir uma fala que não ouviu?”
(MARCOLINO, 2004, p. 22). O que ocorre, na maioria dos casos, é que:
118
Catrini (2005, p. 07) que “efeitos da afasia no sujeito e no jogo de suas
relações familiares” devem interessar ao clínico de linguagem. Manejos sobre a
inclusão da família no tratamento e a inclusão do paciente na família ocorrem,
na maioria dos casos, no início do tratamento. Isso porque direções são
implementadas para garantir que o paciente compareça à clínica. Pode-se
dizer, então, que a instância diagnóstica é ponto de tensão na relação família-
paciente-clínico (MARCOLINO, 2012).
Na demência o paciente também é convocado para falar sobre o que o
aflige. Entretanto, há especificidade sobre a configuração da queixa, da
demanda e do delineamento do espaço clínico. Isso porque a transferência, na
demência, de certa forma, parece ser problemática. Não se trata de reduzir
essa questão à consciência e não-consciência dos déficits, como é a discussão
na Neuropsicologia, em que a saída é a inclusão do informante (fonte da
verdade sobre o paciente) para confirmar os sinais da possível demência.
A experiência clínica tem mostrado que o sujeito, com provável
demência, “flutua” ou aliena-se entre a queixa e a demanda: nega a doença em
seu início e depende da família/cuidador para sustentar o tratamento. Esse
outro modo de ser afetado pela doença e se apresentar ao clínico exige novos
enfrentamentos para a Clínica de Linguagem, principalmente na direção
terapêutica. Como sustentar uma clínica com um sujeito alienado do sintoma
(depois, alienado no sintoma)? Ou a alienação é o sintoma? O que escutar
nesses casos? Além disso, quando o sujeito pode queixa-se, nos estágios
iniciais da doença, é a dificuldade de memória que lhe incomoda. O que
significa “queixa de memória” para um Clínico de Linguagem?
Vejamos as primeiras entrevistas da senhora Marlene73, uma professora
de português e francês aposentada há 12 anos, com diagnóstico de doença de
Alzheimer, em estágio inicial. Ela chegou à clínica fonoaudiológica,
acompanhada de uma cuidadora formal74, encaminhada pelo médico, devido a
uma alegada dificuldade e deglutição para líquidos (disfagia) (conforme
73
O material clínico apresentado foi discutido, inicialmente, no trabalho de conclusão de curso
de Santos (2001) sob minha orientação. Antes disso, supervisionei este caso e conheci a
paciente Marlene.
74
O cuidador, geralmente, auxilia o idoso dependente em diversas tarefas cotidianas. Quando
um familiar assume esse papel é denominado de cuidador informal. O cuidador formal é um
profissional remunerado com alguma experiência no cuidado aos idosos (OLIVEIRA,
MARCOLINO, ANDRADE, 2011).
119
relatório médico de encaminhamento). Ela fazia uso da medicação indicada
para demência de Alzheimer (nome comercial Reminyl)75. Apesar de o motivo
do encaminhamento ser a dificuldade de deglutição, a queixa principal da
paciente fixou-se em “problemas com a memória”. Ela não se lembrou das
alterações de deglutição. Provavelmente, o médico estava preocupado com o
início da disfagia, quadro que, frequentemente, piora com o avanço da doença.
Entretanto, a queixa da própria paciente marcou nossos encontros. Quanto à
demanda, fiquei em dúvida.
No início da entrevista, ela repetiu, em vários momentos, que vinha
tendo “problemas de esquecimento” há cerca de dois anos. Quando
questionada sobre essa queixa, ela “desviava” ou, então, repetia que não tinha
demência de Alzheimer. Seguem alguns segmentos das primeiras entrevistas:
(1)
Primeiro atendimento
M = Marlene
T= terapeuta
M: o que eu mais sinto, o mais que incomoda é a falta de memória, me
esqueço, eu tava tomando remédio, importado, não adiantô nada, sabe, faz
dois anos que eu tô assim, nem quero contá que eles querem que eu tome
(riso) é aquele mundarel de remédio né, mas eu tomei direitinho pra ele
funcioná mais aumentô mais a minha capacidade de, de, de entendê, de
guardar as coisas, mais o meu cérebro, fracassô mais
T: fracassô?
M: fracassô, eu esqueço mais, não sei os telefone, sei o meu né de tanto
tempo usá, mas dos outros, eu sabia de todos os telefones e não sei mais, é
não sei nada, nem o número da minha casa.
T: e isso te assusta dona I.
M: me assusta
T: o que quê você pensa disso? Você tem medo, o que você
pensa?
M: não eu não tenho medo, mas me dá uma vontade de sará logo disso.
75
Medicamento usado para tratar a demência do tipo Alzheimer de intensidade leve a moderada
com ou sem doença vascular cerebral relevante. Principio ativo: hidrobrometo de galantamina;
Classe terapêutica: Anticolinesterásicos.
120
A paciente queixa-se da “falta de memória”, mas “nem quer contar” e oscila
entre “aumentar” e “fracassar” a memória, entre ter ou não Alzheimer: ela quer
“sará logo disso”. Neste momento, ela também diz sobre o seu fracasso –
cerebral e de posição na família – “eles querem que eu tome”. Um pedido de
ajuda se presentifica: “dá uma vontade de sará”... mas ficamos na dúvida se
esse apelo era dirigido ao clínico e, se ainda, era suficiente para sustentar um
tratamento, conforme o que se seguiu nos outros encontros com a paciente.
Neste momento, a especificidade da demência e a especificidade do caso
pressionaram. Mesmo diante de um caso em que a queixa é verbalizada, algo
parecia ficar encoberto – a própria demência.
(2)
Em outra sessão, a terapeuta pergunta sobre seus esquecimentos.
M: o padre faz um sermão mais lindo, eu presto bem atenção, depois não sei,
ele pergunta alguma coisa, porque as vezes eles fazem alguma pergunta / e eu
presto atenção porque eu sei que ele vai fazê, perguntá, não me lembro, não
guardo / esqueci, é a memória né, minha memória fraquíssima, eu tenho medo
que me dê aquele tal do Alzheimer, do esquecimento
T: a senhora tem medo disso?
M: eu tenho muito medo disso, tenho muito medo disso, porque tem uma, não
era minha amiga, amiga da minha sobrinha, irmã (SI), ela tem, também
esquecida, uma mulher tão inteligente, uma mulher boa
T: mas por que quê a senhora tem medo?
M: eu tenho medo de ficar assim também
121
(3)
Após ler uma pequena história, a senhora comentou, no encontro seguinte:
M: você veja, meu Jesus Cristo eu era professora e meu Deus eu dava aquelas
aulas assim com facilidade e tudo e agora não guardo na memória sabe, não
guardo na memória o que eu leio, eu sabia orações décor e agora nossa
Senhora. Orações de manhã, fazia muito as orações assim décor, de noite na
missa, a missa ainda graças a Deus sei tudo porque eu vô quase todo dia,
então a gente sabe respondê, mas assim eu vô lê uma coisa e não guardo na
memória o que eu leio.
122
na demência vascular, favorecem as manifestações de esquecimentos, mas
não eliminam a explicação do funcionamento psíquico: há um motivo para o
esquecimento. Foi essa “força psíquica” que Messy (1993) pode retirar e
admitiu: “em quinze anos de experiência não encontrei ainda a doença
travestida com o rótulo de ‘doença de Alzheimer’ [...] cuja história não se
escorra num fato existencial” (idem, ibidem, p. 84). Isso significa que a
demência não aparta o sujeito de suas vivências.
Nota-se que as queixas de esquecimentos da senhora Marlene, em
muitos momentos, associavam-se ao discurso social da velhice, como nos
fragmentos abaixo:
(4)
M: eu sô amiga (riso), todo mundo me conhece, porque eu já tô velha do lugar,
acho que sô eu a segunda ou a tercera velha lá né, o resto, tem mais velha
do que eu, minha comadre é (SI) mas essa nunca, não foi como eu que perdi
muito a memória assim, professora sabe como é, tem que pensá muito
T: uhum, a senhora acha que pensô muito, por isso que perdeu agora?
M: eu achei que e: e/ e: eu era muito dedicada na escola, perdi bastante
depois que me aposentei, depois, meus pais doentes né, e eu sempre
cuidava deles.
(5)
M: mas a gente, engraçado como pensa na morte, eu digo Jesus do céu, eu
sei que um dia eu vou estar com o senhor, eu vou estar com o senhor, mas me
dexa ficá mais um poco, eu quero vê minha família toda (riso). Engraçado a
vida, sofrida pra mim? Não! Graças a Deus sempre fui feliz, agora que eu to
com problema por causa da velhice né, da idade
(6)
M: às vezes quando morre muitos parentes da gente (riso) (SI) falo em
morte né? Eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro
(riso) porque eu sô uma das mais velha né? Vô até com a funerária quando
não tem alguém que vá junto com o chofer eu vô junto...
123
Nos fragmentos acima (4), (5) e (6), a queixa de dificuldades de memória
está associada à velhice e à morte. Neste momento, a hipótese do espelho
quebrado de Messy (1993) faz eco. A senhora Marlene estaria antecipando a
própria morte e alienando-se na sua falta de memória? A articulação entre
esquecimento, velhice e morte implica, em primeiro lugar, os efeitos no
imaginário que o discurso social sobre a velhice pode produzir, principalmente
do discurso médico – nos quais a senescência vem relacionada a uma etapa
vital marcada por perdas. De fato, no discurso social é lugar comum que
velhice é perda de memória. Interessante é que a Marlene quer “sarar” e tem
medo que “dê o tal de Alzheimer”. Talvez os caminhos trilhados pela Marlene
sejam outros, talvez opostos ao que Messy esperava. Alzheimer é a doença
que não vem precedida do artigo o, é “tal”, quase não nomeável para esta
senhora. É um “disso”, vazio de significação para a paciente e que abre
“espaços em branco” na articulação da cadeia [em 2] Ela hesita, oscila, ri
constrangida, esconde a demência. Pode-se dizer que algo incide e produz,
como efeito, esquecimentos cotidianos. Nos dizeres da paciente vemos um
sujeito incessantemente posto a representar – operação simbólica e imaginária.
No fragmento abaixo (7), ela faz um pedido a Deus... ao clínico:
(7)
M: não concordo, quero sará, mas agora o pai eterno vai me curá, e você
(riso) ele vai nos ajudar, to com muita fé no pai eterno, ele vai me cura,
porque ontem eu assisti um pedaço da televisão, não podia nem vê porque não
escutava nada, tem que por o ouvido pra escuta e ainda de perto né, e eles
vendo lá a novela que eles gostam, eu não podia nem vê, nem olhá. E ontem
eu tava sentada mais um pouquinho mais longe sem o, sem o aparelho, sabe,
muitas que falavam, muitas coisas eu escutava eles falá, eu fiquei alegre, qué
dizê que eu já estou melhorando, né? Aos poços, né? Eu tenho medo que
me dê aquele negocio, né? Alzheimer né? Aquele que deu na Maria, na
minha amiga intima e quase irmã, mas ela não mora aqui.
124
íntima e quase irmã”... e o sujeito desaparece, ou seja, a fala faz sua função de
signo, diferente o que vimos no fragmento (2): “não era minha amiga, amiga da
minha sobrinha, irmã (SI), ela tem, também esquecida, uma mulher tão
inteligente, uma mulher boa”. A partir de um pedido a Deus, talvez ao clínico,
iniciamos a avaliação de linguagem oral e escrita da Marlene.
Nunca conseguimos um contato com a família, apesar de termos
convocarmos uma filha mais próxima da paciente diversas vezes. Todos
estavam muito ocupados, justificava a cuidadora. Para garantir a vinda de
Marlene à clínica, combinamos os horários com a cuidadora. Ela reconhecia as
dificuldades da paciente, incomodava-se e garantia a presença da senhora.
Entretanto, muitas vezes, o discurso sobre a velhice como déficit se
apresentava. Assim como a paciente, a cuidadora também encobria a
demência. Efeito do discurso familiar? É o que se nota no fragmento (8):
(8)
C = Cuidadora
C: vai fazê as coisa, ela que quê a gente já diga tudo, não a gente diz que ela
tem que pensá pra lembra, trabalha memória (riso)
M: é, telefone
C: é, telefone ela sabia muito, depois agora quando eu faço ela às vezes
pensa, não dô, ela vai e lembra, mas ela que quê eu diga tudo ligerinho pra
ela
M: (riso)
T: o que a senhora acha que é isso?
M: foi, eu fico pensando, pensando até que eu, às vezes me lembro, mas às
vezes não lembro
C: às vezes não lembra mesmo
M: é, às vezes lembro sim, de tanto pensa né? E às vezes não me lembro
[...]
C: tem os remédios que ela toma diário sabe, toma pra Alzheimer né? Ás vezes
até eu esqueço, ela não tem nada de repente ela volta, “não tem um remédio
pra toma agora?” ela lembra, eu disse só que ela tem que procura né? Pensá
lembrá das coisas, ela ficô muito, muito dependente
M: muito dependente, eu acho que é isso né
C: ela tá muito dependente por causa dos outros, por isso que ela esquece
125
“Por causa dos outros” na fala da cuidadora é também a queixa que
aparece diversas vezes na fala de Marlene. O que “eles querem” aponta pra
uma posição que ela perdeu dentro da própria casa. No fragmento (1), ela
afirma “eles querem que eu tome (riso) é aquele mundarel de remédio”; em (6);
“eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro”; em (7)
“vendo lá a novela que eles gostam”.
Neste período de entrevistas, cerca de cinco encontros, chamou nossa
atenção a alegria constante da senhora. Muito simpática, conversava com
todos na recepção da clínica. Em um dos encontros, ela dançou e cantou
cantigas de rodas com crianças na recepção. Convidava todos para um café na
sua própria casa. Um episódio foi mais marcante: quando outro paciente
sentiu-se mal e o serviço de emergência da cidade foi acionado. Olhei para a
recepção e todos estavam tensos e preocupados com aquele senhor – se ele
sobreviveria aos cuidados da enfermagem na recepção. Marlene sorria e não
“percebeu” o ocorrido. Na demência, que não há uma apreensão direta da
realidade via percepção. O que “entra” depende das condições internas, como
Freud elaborou no Projeto de 1895 – vigora, nesses casos, a “realidade é
psíquica”. Marlene já estava presa na sua própria história, como veremos na
avaliação da linguagem, já se distanciava do outro, da realidade.
De fato, a paciente não parecia sofrer ou não havia descontentamento.
Estávamos diante de outra situação, incomum, quando se tem a experiência
com afásicos. Isso não quer dizer que um drama subjetivo não se apresentava.
Ela tinha medo do “tal Alzheimer” e estava assustada com a velhice e com a
final da própria vida. Entretanto, ela resiste a tudo isso e sorri. De fato, ela
caminha para alienação. Nesse estado, Marlene não tem condição de transferir
ao outro a suposição de um saber sobre o que se passa com ela. Marlene
espera um milagre que só Deus. Ou talvez, vê-se sem saída... já velha, perto
da morte.
126
4.3. A fala e a escrita da senhora Marlene: considerações sobre a
avaliação da linguagem.
127
“fora de cena”. Na escuta/interpretação em cena, o clínico está sob o efeito das
produções do paciente. A escuta/interpretação fora de cena ocorre após a
sessão, na leitura dos dados transcritos. Nessa leitura perdura a escuta “em
cena” do clínico (LIER-DEVITTO, ARANTES, 1998). Nisso, ela se distingue da
análise de um investigador sobre um corpus, sempre neutro, disposto ao seu
olhar, igualmente neutro, um olhar sem sujeito implicado naquilo que “observa”
(ANDRADE, 2001). Digamos que a escuta na cena penetra a leitura e esta
deixa, por sua vez, seus efeitos na escuta. Nessa dialética, essas instâncias
“escutar em cena - ler depois” afetam-se mutuamente e instituem uma escuta
para fala e para um fala singular. Nesse particular, o enlaçamento significante
entre fala/escuta/leitura assenta, paciente e clínico, numa mesma estrutura
clínica mobilizada pela densidade da fala sintomática.
No diagnóstico, o clínico fica sob efeito da fala sintomática. Efeito que afeta
a escuta e dá o início para a produção de um dizer sobre o caso. Para tanto,
algumas questões são elaboradas e respondidas pelo clínico: (a) quais as
características da fala do paciente? (b) qual é o efeito da fala do paciente no
clínico? (c) qual é o efeito da fala sintomática no próprio paciente? e (d) qual é
o efeito da fala do clínico na fala do paciente? (MARCOLINO, 2004;
FONSECA, 2010).
Sob este corpo teórico, algumas considerações devem ser tecidas
quando envolve o atendimento de sujeitos com demências.
(1) No que se refere a escuta para o drama subjetivo, temos um sujeito que
não sofre porque se direciona à alienação. No período inicial da doença,
um drama subjetivo pode ser escutado, não pelo sofrimento, mas pelo
arrebatamento subjetivo. O que se vê é resistência à própria demência e
ao final da vida.
(2) A escuta para trama significante sustenta a interpretação na clínica de
linguagem. A fala de pacientes com demências perde significação, mas
está articulada na cadeia falada. Desse modo, o que orienta a
interpretação clínica nesses casos? O que define o sintomático na
fala/escrita?
128
interrompê-la e, principalmente, encerrar as sessões. Mais do que isso, a
terapeuta ficava “fora do sentido” porque Marlene deslizava de um texto a
outro, apesar da fala bem articulada e fluente. Deslizamentos que não eram
dispersões textuais porque ela conseguia, em muitos momentos, retomá-los.
Ela se sustentava em suas vivências. Seus relatos são caracterizados por
poucas anomias, como na palavra “computador” no fragmento abaixo (9),
deslizamentos textuais, sem dispersão. Ela quase não hesita, mas ri. As
queixas de dificuldades de memória não se apresentavam nessas histórias,
como veremos:
(9)
Terapeuta e paciente conversando sobre orientações do médico.
M: ontem ainda, meu Deus do céu, ontem eu fui na casa da minha costureira,
que ela tá muito doente, era só atravessá a rua e a filha dela tava lidando com
o, como é que é, computador, e tinha os fios tudo assim, e eu não vejo, no
fim derrubo computador, tudo
T: se enrolou nos fios?
P: credo Deus, (SI) tô caindo, nem no meu jardim que eu gostava de lidar não
posso mais, às vezes eu vejo um mato lá e quero tirá sabe? Outro dia caio lá,
caio, e eles ficam loco de brabo comigo, pra eu não ir lá, mas tão tirando
minhas flores, eu digo “ah:” que não quero que tire, plantem mais, mas
arrancam, pra eu não ir (riso)
T: o que a senhora acha disso, de cair?
P: de cai é a fraqueza dicerto, já me deu isso né, a velhera também né? (riso),
mas quero vê, ontem morreu uma senhora lá, mas eu sei que eles não me
contam mais, que eu sempre fui no enterro, mas sempre vô igual (riso) (SI) ô
se não tem que me leva de carro, né? ...que eu não ando, não vô. Antes eu ía
toda vida a pé, tem uma rampa sabe assim pra subi, eu ía a pé. Agora não
aguento ir a pé, me da dor nas perna e ando muito mal, meio tropeçando, se
eu vô tira um matinho, eu caio (riso), ontem cai lá no meu, meu Deus no
jardim (SI) não sei o que passa, também você veja, ela deitada na cama, ainda
bem que é baixinha a cama, assim lidando com o computador, bem baxinha a
cama, como essa cadeira, e tinha aquela fioarada, mas eu não notei, porque eu
129
não, sabe como é, a gente, e fui e enrosquei o pé, lá me fui, caí derrubei até
o... (riso), mas eu disse assim “meu Deus se estrago, eu pago pra você, não
fique nervosa”, mas não estrago nada, graças a Deus, não estrago, era
baxinho assim, mas eu (SI) fiquei com tanta vergonha, eu e o pai dela bebe
muito né? (SI) eu disse “não se incomode, se não dá pra consertar eu compro
um novo pra você”. Daí, ele não fez, não fez nada, mas eu só pra ele não falar
mais. E e a mulher dele, muito boa, tá muito doente também. Ela não costura
mais, e veio essa filha que não tava, ela tava empregada lá no norte, veio pra
atendê ela. Mas ela disse assim “eu vô leva lá” “cê dexe, leve consertá”. Não
fez nada né? Não fez nada, só uma coisinha assim, com certeza, porque eu
não vi, não vi nem um nada no chão e não vi nada (riso) [...].
130
da costureira”? Nota-se que na cadeia “ontem caí lá no meu” segue uma pausa
- indício de escuta para a própria fala e de posicionamento no presente, que
articula, em seguida, os dois textos (queda no jardim e casa da costureira).
Para nossa surpresa, nas sessões seguintes, “ontem”, “esses dias”, “na
semana passada” fixou-se no dia da queda no jardim (um sujeito preso nesta
cena). Esse texto era contado em quase em todas as sessões, como se fosse
inédito e sempre ligado à velhice e à morte de outras pessoas. Os recortes
(10), (11) e (12), ocorridos em diferentes sessões, são exemplares da repetição
da narrativa sobre a queda no jardim que se repetia em quase todo encontro
entre terapeuta e paciente. Como se pode notar, não são blocos estáticos de
uma fala cristalizada. Há mobilidade no encadeamento do mesmo texto.
(10)
M: às vezes quando morre muitos parentes da gente (riso) (SI) falo em
morte né? Eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro
(riso) porque eu sô uma das mais velha né? Vô até com a funerária quando
não tem alguém que vá junto com o chofer eu vô junto com o / o chofer eu vô
junto, ele já me chama que hoje não tem ninguém, avisam pra eu ir junto né?
Porque eu não posso ir a pé, eu tenho muita dificuldade em andá sabe, caio
onde que é né? Agora como netinho, eles só me dão pra eu ficá um pouco
sentada com ele né? (SI) eu já cai no jardim (riso) eu fui plantá e cai dentro
dos cantero sabe? E eles tinham saído aquela hora lá de casa sabe, disseram
“já voltamo” a senhora sabe (SI) eu disse “não” mas vi aquele pezinho de flor lá
mal plantando, vô plantá, cai sentada, depois não posso levantá, ainda bem
que cai sentada.
(11)
M: mas e nossa, quantas vezes eu já cai
T: e não se machuca?
M: e, não, graças, de tanto eu pedi pra Deus que me ajude né? Uma vez eu me
machuquei um poquinho né? E dessa vez agora, na semana passada, eu
inventei de ir ver uns pezinhos de flores (SI) pegá e plantá eles bem
direitinho, ele tava meio assim, que de primeiro eu cuidava muito de jardim
131
dessas coisas, e agora eu não posso, eu não posso me abaixar porque depois
eu não posso levantá, a escada eu não posso subi escada.
(12)
M: uhum, agora quero vê se dá pra implantá mais esses dentes aqui às vezes
(SI) se não eu implantava todos aqui sabe, apesar de sair caríssimo né?
Porque eu tenho medo de implantá, já era pra ter implantado, de burra não fiz,
tava bem boa daí (SI) não come, a fraqueza né? E era forte, andava bem
agora não ando muito bem, tenho que andá, qualquer dia desse tenho que
andá de bengala, caio não posso me levantá, esses dias cai no jardim, eles
tinham saído um poquinho mas já voltavam, e eles não querem que eu
faça, porque eu gosto muito de lida assim com flores sabe.
(13)
M: conversei de mais
T: como foi que nosso assunto começou?
M: começô, você, mando eu lê aquele livro, lembra? Me perguntô uma porção
de coisas, que eu não me lembro mais (riso) e daí você mando eu, aquele lá,
da galinha né? Cachorro e o, não, papa, ô, papagaio.
T: ah sim! Nós lemos um texto do cachorro e do passarinho né? [esse texto foi
lido um mês antes desta sessão]
P: é
T: mas isso foi faz tempo né?
P: foi o primeiro!
T: é foi o primeiro, mas hoje eu digo. Hoje como que a gente começô com
nosso assunto?
132
P: eu comecei contando das minhas operações
(14)
Primeiramente, Marlene lê uma pequena estória em voz alta e depois
silenciosamente:
M: Era uma vez um pássaro que andava sempre a achar, a chatear um cão,
um dia o cão fez uma armadilha na árvore onde o pássaro tinha um ninho, o
pássaro ia para o ninho e caiu na armadilha, o cão então pegou nele com as
patas e fê-lo prometer que não voltava chateá-lo, o pássaro aceitou claro, claro,
o cão agora vive feliz.
T: muito bem, então agora a senhora me conte o que foi lido
M: aham, meu Deus do céu (SI) (riso)
T: pode lê novamente, fique a vontade
P: (riso) (lê silenciosamente duas vezes)
P: ah então // a história do cão, do pássaro né?
T: uhum
P: que andava a, sempre a chatear um cão né? O cão um dia fez uma
armadilha pra ele, e ele caiu na armadilha né? / eu não me lembro mais, você
viu a memória?
T: e....
133
M: (Lê o final da história e comenta) você veja, meu Jesus Cristo eu era
professora e meu Deus eu dava aquelas aulas assim com facilidade e tudo e
agora não guardo na memória sabe? Não guardo na memória o que eu leio, eu
sabia orações décor e agora nossa Senhora, orações de manhã, fazia muito as
orações assim décor, de noite na missa, a missa ainda graças a Deus sei tudo
porque eu vô quase todo dia, então a gente sabe responde, mas assim eu vô
lê uma coisa e não guardo na memória o que eu leio.
(15)
134
(transcrição):
A costureira
Certo dia uma menina levou uma fazenda para fazer um vestidinho. A
costureira ficou muito contente porque a fregueza era muito sua amiga- como a
menina era pequena a costureira levantou-a em cima de uma mezinha para
tirar a medida de seu vestidinho.
A criança (menina) ficou muito fez de ganhar um vestido novo. A
costureira tirou a medida do vestidinho e com muita alegria e falei ótima! Na
costura ficou muito contente, tão contente, assim como a menina, pois a
costura ficou certinha e muito bem feita – tanto costureira com a menina
ficaram feliz porque tudo bem certo.
Muito Obrigada Dona Olga a costureira ficou bem como eu queria
depois mamãe acerta com a senhora, já vou com ele para minha mãe também
fica feliz. Um beijo minha querida costureira. Tchau.
Nota-se que ela inicia na posição de narrador, como lhe foi solicitado,
mas depois assumiu o lugar da personagem (criança). Encerra seu texto com
agradecimento a sua própria costureira (Olga), como em uma carta.
Deslizamentos de posição que mantém a textualidade, não dilui o sentido, mas
perde a referência – um narrador e outro texto contado pela terapeuta, apesar
das semelhanças.
135
Chamou atenção que, sem a solicitação do terapeuta, a paciente passou
a escrever diariamente em casa. Em sua opinião, ela dizia que a escrita
melhora o “esquecimento”. Tomamos isso como um efeito produzido pela
escrita e uma direção clínica iniciada pela paciente.
(16)
Paciente trouxe a oração de São Miguel escrita para a terapeuta. Após a
leitura, ela faz um longo relato sobre São Miguel e desliza para uma outra
história do evangelho.
T: uhum, mas então tá, ó nos estávamos falando da oração de São Miguel né,
a senhora tava me contando da oração, daí a senhora me contô desse
evangelho, ta porque a senhora lembrô dele? O que esse evangelho tem
relacionado com a oração que fez a senhora lembrá?
136
P: porque ela defende né? Defende de todo o perigo né? Pois é, a oração que
é isso defendei-nos no combate né? Ele tem (SI) e ele defende / tem São
Miguel, São Rafael e São Gabriel, são três santos né?
T: são
P: e: São Miguel ele, ele, ó ali, da manada do porco que eu contei agora (riso)
olha aqui ó ciladas do demônio né? É São Miguel, São Gabriel, cê veja eu sei
tudo, São Gabriel (falou sussurando a oração de São Miguel), é, é esse ai é
São Miguel, agora não me lembro do São Rafael, são três protetores, os santos
anjos né? O meu é esse aqui, o meu protetor (riso).
(17)
T: dia oito. Nesse dia levantei mais cedo, já estava melhor, minha vizinha veio
me visitar, conversamos bastante e almoçamos, à tarde como sempre, fui tirar
uma soneca, à noite fui à missa e depois assisti o jornal na televisão como de
costume, nada de bom, só tragédias, poucas noticias boas, nada como antes,
137
noticias boas, filmes e novelas descentes e boas e agora..... e aqui dona
Marlene.?
M: agora (SI), agora (SI) (riso)
T: uhum, “fiquei um pouco com, com” aqui, como que é aqui? “com visita”?
M: “eu fiquei um pouco com, com, com nossas visitas” pode pôr “com visitas”
“visitas” é visitas, ta ali, “com visitas de sempre”
T: ah tá, “fiquei um pouco com visitas de sempre”?
M: é
E: ta, “e logo fui dormir, boa noite”
M: (riso)
(18)
M: essa melhora, acho que foi, não sei, de eu vir aqui né? Talvez fosse né?
Porque daí eu comecei a escrevê, e eu tinha muita preguiça de escrevê, sabe?
Mas o médico já tinha dito que eu tinha que escrevê sempre, e eu tinha
preguiça, por isso que entrei na pintura pra, por causa da preguiça que eu tinha
de escrevê, me esquecia muito, sabe de escrevê, e aqui eu comecei me
lembrá, com você
T: A senhora acha que a memória da senhora melhorô?
M: tá melhorando, porque eu lembrava dos sonhos, e comecei a sonhá e
lembrá, qué dizê que eu melhorei, eu nunca sonhava antes, nada e sonhei só
com o passado, com o presente eu não sonhei nada, queria sonhá também
com o presente pra vê, dicerto que tô me lembrando né? porque não
sonhava nada né? E agora to com essa sonhação.
138
suas próprias vivências. A direção do atendimento foi pautada pela tentativa de
suplência imaginária que pudesse mantê-la mais próxima do outro e da
realidade textual em curso. As queixas não desapareceram, mas algo se abriu
como “esperança” para a paciente. O que esse curto atendimento nos ensinou
é que uma clínica dita de linguagem permite que a lembrança aflore. Marlene
agora se lembra de sonhos! Uma lembrança que só pode se apresentar ao
sujeito quando autorizada pela censura e articulada à palavra, ao simbólico,
como ensinou Freud.
139
Considerações Finais
_______________________________________________
140
O que Freud trata como “distúrbio de memória” quando se vê velho está
intimamente relacionado à percepção e à realidade. Nota-se que a crença, do
passado, de que seria impossível ver a Acrópole, “com próprios olhos”, distorce
a realidade no presente. A “desrealização” depende de recordações do
passado – da realidade psíquica. Ele articula uma rede (histórias de infância na
escola, em casa, desejo de viajar, a função paterna) que determina a
percepção. Chama a atenção, ainda, que o Eu – essa face imaginária, em
termos lacanianos – afasta o sujeito da realidade. Não estaria um tanto disso
em jogo na demência?
No percurso de realização desta tese, a discussão sobre a relação
memória-linguagem envolve posicionamentos sobre dualismos filosóficos:
homem-mundo, percepção-objeto, palavra-coisa. Envolve questões que têm
respostas difíceis. Não pretendi “resolver” questões e sim abrir novos
horizontes para discussões sobre esse tema tão exigente. Um percurso foi
traçado. Do ponto de vista teórico, este trabalho procurou sustentar a ideia de
que a relação memória-linguagem é “concomitante dependente” (uma
expressão de Freud que ressignifica a relação psico-física de Jackson). Lacan
esteve presente com seu R/S/I. Procurei abordar a questão da “memória” na
Clínica de Linguagem com sujeitos demenciados. Pontos de vistas que se
interpenetram, já que os efeitos clínicos que a demência produziu na minha
escuta direcionaram o encaminhamento teórico.
Espero ter podido fragilizar o argumento presente nos estudos
neuropsicológicos de que “o debate sobre as relações entre linguagem e
memória não escapa a uma reflexão sobre a cognição” (CRUZ, 2004, p. 601-
604). A concepção de memória como arquivo e a relação hierárquica entre
memória e linguagem colocam impasses diagnósticos, principalmente na
delimitação entre o normal e o patológico. Observaram-se, ainda, resultados
inconclusivos no que diz respeito ao funcionamento cognitivo subjacente. A
sustentação do vínculo percepção-objeto, palavra-coisa, não abre espaço para
questões clínicas sobre os efeitos plurais da demência no falante. O
fonoaudiólogo filiado ao discurso da Neurospicologia está fadado à estimulação
cerebral, porque não tem escuta para o “doente”.
Freud submete a memória ao aparelho de linguagem. Como
consequência, a memória é dessubstancializada porque é efeito do jogo
141
associativo. A constituição da realidade psíquica e a suspensão do vínculo
percepção-objeto ou palavra-coisa demandam um esforço teórico para se
compreender o encontro do sujeito com a realidade, ponto nevrálgico que se
instaura na demência. Isso porque, como já disse a demência dissolve
lembranças e laço social; dispersa a unidade, o efeito de significação e a
referência. Entretanto, algo resta de fala e de falante: recortes que a linguagem
fez no mundo que, uma vez enunciados, em seguida, desfazer-se. A
possibilidade de a linguagem recortar o mundo só se realiza quando “alguém
diz alguma coisa”, como apontou Landi (2007). Ou seja, o referente não está
destacado do falante.
No momento que o sujeito profere, “um mínimo de língua corresponde
ao mínimo de realidade” (MILNER, 1983/2006, p. 35). Este enigma demanda
mais um passo teórico (e clínico): passos que serão dados em trabalho futuro.
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