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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Juliana F. Marcolino-Galli

A relação memória-linguagem nas demências: abrindo a caixa de Pandora

DOUTORADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA


LINGUAGEM

SÃO PAULO

2013

1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Juliana F. Marcolino-Galli

A relação memória-linguagem nas demências: abrindo a caixa de Pandora

DOUTORADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA


LINGUAGEM

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Linguística Aplicada e Estudos
da Linguagem sob a orientação da Professora Doutora Maria
Francisca Lier-DeVitto.

SÃO PAULO

2013

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BANCA EXAMINADORA

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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e
científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos

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Data:

4
Aos meus pais, amor incondicional

Ao Ricardo, meu primeiro amor

5
Agradecimentos

A Dra. Maria Francisca Lier-DeVitto pela orientação e pelo cuidado com


minha formação como investigadora. Sua escuta atenta transformou minhas
inquietações em questões de pesquisa. Sua aposta proporcionou
enfrentamento dos desafios e uma enorme admiração. Obrigada por tudo!

A Dra. Suzana Carielo da Fonseca que me acompanha bem de perto desde


a graduação e com quem posso contar sempre para novas questões teóricas
e também para confissões. Agradeço todos os direcionamentos e demandas
para que este trabalho fosse possível. Você conhece o meu percurso.

A Dra. Lourdes Andrade pela minha formação clínica e questionamentos


sobre a relação memória-linguagem em outros momentos, mais informais.
Ainda lembro como eu gostava dos seus grupos de “análise de dados” na
DERDIC.

A Dra. Maria Teresa Lemos pela leitura pontual e certeira na qualificação


do trabalho. Suas contribuições são sempre valiosas.

A Dra. Lúcia Arantes pela formação desde a época do mestrado e


encaminhamento das questões clínicas na qualificação deste trabalho. Suas
discussões intrigantes nas aulas do doutorado foram impulsionaram muitas
leituras e desdobramentos na tese. Obrigada pelo carinho!

A Dra. Rosana Novaes-Pinto pela disponibilidade e interesse em


compartilhar seu ponto de vistas na banca de defesa.

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A Dra. Rosana Landi pela contribuição na qualificação deste trabalho e
pelas reflexões sobre as demências, ponto em comum. Saudades do tempo
em que eu estava no aprimoramento e você sempre por perto!

Ao Dr. João Trois pelos apontamentos na qualificação deste trabalho e,


mesmo à distância, sempre acessível para mais discussões.

Aos pesquisadores do grupo “Aquisição, Patologias e Clínica de


Linguagem” pela presença na reflexão encaminhada aqui, fruto de um
trabalho sólido e conjunto.

As amigas Sonia Fachini e Melissa Catrini, aproximações pela Clínica de


Linguagem que se estenderam.... obrigada pela cumplicidade e amizade.
Soninha, você é boa surpresa que encontrei no doutorado! Mariana
Emendabili, obrigada pela parceria na demência. E Tatiana Dudas pelo
apoio.

Aos familiares e amigos que sempre torceram pelas minhas conquistas. Aos
meus pais pelas oportunidades e ensinamentos, pelo carinho em todas as
minhas chegadas e partidas. Fernanda, minha irmã que admiro muito! Ao
Ricardo, meu grande amor, pela compreensão nos momentos difíceis, ajuda
com a rotina e apoio em todas as minhas decisões Aos meus sogros pela
disponibilidade e auxílio com idas e vindas ao aeroporto.

As amigas que fiz no Departamento de Fonoaudiologia da UNICENTRO.


Patrícia Aspilicueta pelo acolhimento quando cheguei a Irati, pelos
conselhos, risadas e amizade! Luciana Carnevale pelas questões teóricas
que já nos aproximava antes do trabalho na universidade e, agora, pela

7
escuta e parceria. Muito bom ter você por perto! Ana Paula Leite sempre
encantadora e disposta a ajudar. Francine Marson e Adriana Romão pelos
bons momentos. Cris Magni, grande companheira na chefia, obrigada pelas
palavras carinhosas e pela serenidade. Gilsane por compartilhar angustias
que vivemos na fase do doutorado.

Ao Departamento de Fonoaudiologia, especialmente as antigas chefes


Juliana De Conto e Michelly Andrade pelos esforços para ajustar meus
horários e compreensão das minhas ausências. Saudades das nossas
conversas!

As alunas e ex-alunas do projeto de extensão na UNICENTRO, pelo


compromisso e pelas questões que sempre nos unem. Um agradecimento
especial à Michelly D. Cordeiro, ex-aluna e agora uma querida amiga, pela
disponibilidade e todo auxílio na revisão da tese.

Ao Setor de Ciências da Saúde pelo apoio administrativo e pedagógico,


especialmente ao secretário Edilson.

Ao CNPq pelo auxílio financeiro

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RESUMO

As questões que impulsionaram este trabalho nasceram no acolhimento de


sujeitos com diagnóstico médico de demência em fase inicial. Invariavelmente,
esses pacientes queixaram-se de dificuldades de memória. Entretanto, eles
eram pouco afetados por sua fala repetitiva e não sustentavam uma demanda
para atendimento. Outras questões sobre a inclusão da família e a direção do
acompanhamento desses casos foram suscitadas. Do ponto de vista teórico,
este trabalho discute a relação memória-linguagem nas demências. Do ponto
de vista clínico, problematiza-se o acolhimento das queixas de dificuldades de
memória em uma Clínica dita de Linguagem. O ponto de partida é apresentar o
estado da arte na clínica médica e fonoaudiológica nas demências. O discurso
atual orienta-se pela Neuropsicologia Cognitiva, o que remete ao entendimento
da memória como estocagem e a linguagem como expressão desses
conteúdos. O passo teórico seguinte afasta-se desses estudos
neuropsicológicos e caminha em direção à Psicanálise, mais especificamente
ao percurso de Freud na fundação do Inconsciente e os desdobramentos que
Lacan aponta com a teoria significante. Trajetória teórica que tangencia a
relação percepção-objeto. A relação memória-linguagem foi investigada a partir
do pressuposto de que o sujeito é efeito (é-feito) de linguagem e que, também,
memória é efeito (é-feita) de linguagem. Pressupostos que estão em
consonância com as reflexões encaminhadas pelos pesquisadores do grupo de
pesquisa “Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, coordenado por Lier-
De Vitto e Arantes no LAEL/DERDIC”. Ao final, as questões clínicas foram
mobilizadas pelos operadores de leitura construídos ao longo dos capítulos.

Palavras-chave: Memória, Linguagem, Demência, Clínica de Linguagem

9
ABSTRACT

The issues that drove this work arise in the attendance of individuals with a
medical diagnosis of early-stage dementia. Invariably, these patients
complained of memory difficulties. However, they were little affected by their
repetitive speech and did not hold a demand for care. Other issues on the
inclusion of the family and the direction of the monitoring of those cases arose.
From the theoretical point of view, this paper discusses the language-memory
relationship in dementia. From a clinical perspective, the hearing of complaints
of memory difficulties in a so-called Language Clinic is questioned. The starting
point is presenting state of the art in medical and phonoaudiological clinics in
dementia. The present discourse is guided by the Cognitive Neuropsychology,
which refers to the understanding of memory as storing and language as
expression of such content. The next theoretical step moves away from these
neuropsychological studies and goes toward psychoanalysis, more specifically
to the route of Freud in the foundation of the Unconscious and the
developments that Lacan points out with the significant theory. Theoretical
trajectory that touches the relation perception-object. The relation language-
memory was investigated under the assumption that the subject is effect of
language and that also memory is effect of language. Assumptions that are
consistent with reflections submitted by the researchers of the research group
"Acquisition, Pathology and Language Clinic", coordinated by Lier-DeVitto and
Arantes at LAEL / DERDIC. Finally, the clinical questions were mobilized by the
reading operators constructed throughout the chapters.

Keywords: Memory, Language, Dementia, Language Clinic

10
ÍNDICE

Introdução 14

Capítulo 1. Discurso e Clínica das demências: memória e 20

linguagem.

1.1. Neuro – Psico – Linguística. 21

1.2. Cérebro, Envelhecimento e Memória. 23

1.3. A semiologia da demência: diagnóstico e 34

tratamento na clínica médica.

1.4. A clínica Fonoaudiológica nas demências: 42

influência da Neuropsicologia Cognitiva.

1.5. Sociedade, Memória e envelhecimento. 46

1.6. A Neurolinguística Discursiva: memória, 48

linguagem e demência.

Capítulo 2. Freud: o aparelho de linguagem, o aparelho de 55

memória.

2.1. As afasias: o aparelho de linguagem. 56

2.2. O Projeto para uma Psicologia Científica: esboço 60

de um aparelho de memória.

2.3. O aparelho de memória: a representação de um 62

funcionamento.

2.4. O Inconsciente freudiano: condensação e 69

deslocamento.

2.5. Lembrar e Esquecer. 78

11
Capítulo 3. A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as 83

demências.

3.1. O Atendimento de Lili. 84

3.2. Real, Simbólico e Imaginário. 93

3.3. Do simbólico a lalíngua. 100

Capítulo 4. A clínica de linguagem e sujeitos com demência 103

4.1. A fala de pacientes com demências na Clínica de 111

Linguagem.

4.2. A queixa de dificuldades de memória na Clínica de 117

Linguagem: o acolhimento da senhora Marlene

4.3. A fala e a escrita da senhora Marlene: 127

considerações sobre a avaliação da linguagem.

4.4. A direção de tratamento no caso da senhora 136

Marlene

Considerações Finais 140

Referências 143

12
A relação memória-linguagem nas demências: abrindo a caixa de Pandora

Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, recebe dele uma caixa (na
verdade, jarra) que continha os males (inveja, medo, ódio, ciúme). Zeus disse a
ela para jamais abri-la. Pandora, movida por sua curiosidade, decidiu abri-la,
liberando todo o seu conteúdo exceto um item – a esperança: a partir da
abertura da sua caixa o ser humano não pode melhorar a sua condição sem
enfrentar adversidades. Pode-se dizer que a abertua da caixa de Pandora
inaugura o dualismo, no caso, entre bem e mal. Nos dias de hoje, abrir a caixa
de Pandor significa criar um problema difícil de ser resolvido.

13
Introdução

Minha experiência e formação foram dirigidas para o atendimento de


afásicos, o que me levou, mais recentemente, ao atendimento clínico de
pacientes1 com diagnóstico médico de demência. A relação suposta, no
enunciado acima, entre atendimento de afásicos e demenciados, deve-se ao
fato desses adultos já terem, um dia, se reconhecido, no passado, como
falantes “plenos” de uma língua. Há, ainda, o fato de que quadros de afasia e
de demência envolvem lesão cerebral associada à perturbação na linguagem -
esta relação entre eles levou a literatura médica e fonoaudiológica a concluir
que, nas demências, há afasias.
A Demência é um diagnóstico médico caracterizado pelo:

desenvolvimento de múltiplos déficits cognitivos, que incluem


comprometimento da memória e pelo menos uma das
seguintes perturbações cognitivas: afasia, apraxia, agnosia
ou uma perturbação do funcionamento executivo (DSM-IV,
2013, online, ênfase minha).

Afirma-se que a “perturbação na memória” é o principal sintoma e a


afasia (alteração da linguagem), um sinal associado. Isso quer dizer que as
alterações cerebrais, presentes na demência, alteram a memória e promovem
prejuízos na linguagem (MARCOLINO, EMENDABILI, 2011). Sob esta ótica, o
agravamento das alterações na linguagem é ditado pela progressiva perda da
memória. A atuação do fonoaudiológico nas demências é recente, sendo sua
presença mais marcada em propostas de prevenção, elaboradas no âmbito da
Neuro(psico)linguística. Há, ainda, sugestões de tratamento bastante
semelhantes ao que habitualmente se propõe para afásicos.
A prevenção é basicamente assentada em “oferta de estratégias
cognitivas” (como o treino/exercícios de memória), associada ao “incentivo para

1
Os pacientes são atendidos por mim e por alunos do curso de graduação em Fonoaudiologia
da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Paraná. Trata-se do projeto de extensão “atuação
fonoaudiológica em pacientes com distúrbios neurológicos”, sob minha coordenação desde
2006.

14
uma vida social ativa” (BRUM et. al., 2009). Os fonoaudiólogos Bayles e
Kaszniak (1987) relataram, pela primeira vez, déficits cognitivos e linguísticos
em estágios da demência. Neste relato, destaca-se a atuação do fonoaudiólogo
no atendimento da família e/ou dos cuidadores – a ele caberia a elaboração de
“estratégias facilitadoras da comunicação”, orientações que foram, antes,
realizadas por enfermeiros. Afirma-se que a progressão da doença é
acontecimento que descartaria, de antemão, a terapia fonoaudiológica. Foi
apenas no início da década de 1990, que ela começa a acontecer - o
fonoaudiólogo passa a ter uma prática direta com o próprio paciente
(BOURGEOIS e HICKEY, 2009). Atualmente, os dois modos de atuação –
direta e indireta – são recomendados como atendimento desses pacientes.
Segundo a American Speech-Language-Hearing Association, o terapeuta deve
ter claras suas metas e objetivos para que possa decidir quando irá investir em
um atendimento direto2 (ASHA, 2005).
No que concerne à fala dos pacientes, a terminologia da afasiologia
migra sem reflexão. É bastante frequente ler-se, por exemplo, que:

No primeiro estágio da Demência do tipo Alzheimer, os


sintomas assumem a natureza de uma afasia anômica. Ou
seja, pacientes têm fala fluente, articulada e sintaticamente
preservada. [...] No estágio intermediário, a linguagem torna-
se parafásica [...]. As frases são interrompidas (e
abandonadas) e muitas são, em si, confusas. [...] as alterações
de linguagem nesse estágio são similares àquelas da afasia
transcortical sensorial ou da afasia de Wernicke.[...] No estágio
final, há diminuição significativa da fala, presença constante de
automatismos, queda acentuada da compreensão, perda da
capacidade de leitura e escrita e tendência ao mutismo. Esse
quadro lembraria uma afasia global (EMENDABILI, 2010, p. 66-
67).

Como destaca Emendabili, o que se entende por “linguagem” encontra


raízes no senso comum, ou seja, nos trabalhos médicos/fonoaudiológicos não

2
No próximo capítulo, apresentarei os critérios que orientam o fonoaudiólogo a optar pela
atuação direta ou indireta.

15
se apreende qualquer base científica referente às considerações ou afirmações
sobre a linguagem – não há, nesses estudos, qualquer compromisso com uma
reflexão consistente ou sólida sobre a linguagem ou sobre a relação sujeito-
linguagem. Frente a tal naturalização, não se deveria estranhar que as
ocorrências de fala de pacientes com demência, sejam identificáveis à “fala
afásica”. Parece-me necessário indagar, ainda, se a bipartição demência –
afasia importa ao clínico de linguagem. Adianto que afasia e demência
remetem a quadros distintos para a Clínica de Linguagem, seja por sua
manifestação sintomática, seja pelo efeito que produz no sujeito-falante
(FONSECA, 2011).
A meu ver, apesar de afasias e demências remeterem a um problema
cuja etiologia é cerebral, a diferença entre essa determinação não aproxima o
que dela emerge como efeito em quadro e em outro. Do ponto de vista
orgânico, a afasia decorre de uma lesão cerebral estável e a demência implica
lesão degenerativa e gradual do cérebro – trata-se de uma doença neurológica
progressiva, o que, de antemão, deveria interrogar propostas clínicas. Do ponto
de vista linguístico, a clínica e a reflexão de autores filiados à Clínica de
Linguagem3, introduziram nessa discussão a questão do sujeito, mais
precisamente, como mostraram Lier-DeVitto, Fonseca e Landi (2007), ao
indicar diferenças na relação do sujeito com a própria fala e com a do outro.
Podemos dizer, com Fonseca (1995, 2002), que o afásico guarda na escuta a
sua fala de antes da lesão cerebral e, por isso, reconhece que seu dizer afásico
é expressão de uma fala em sofrimento. Essa cisão na escuta do afásico
propulsiona a demanda: que o clínico possa mudar sua condição de falante
(FONSECA, 2012).
Ao iniciar um processo diagnóstico de pacientes com demência,
questões teórico-clínicas e éticas impõem-se: pergunta-se se a práxis com
pacientes afásicos, já tão quotidiana numa Clínica de Linguagem, poderia
direcionar um caminho para atendimento de pacientes demenciados. É preciso
partir da queixa: o paciente com demência, invariavelmente, queixa-se de
dificuldades com a memória e este não é o caso com pacientes afásicos. É

3
Proposta que se origina no grupo de pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem,
coordenado por Lier-De Vitto e Arantes na PUC-SP/DERDIC/LAEL. As reflexões estão em
consonância com o estruturalismo europeu (Saussure e Jakobson) e com a Psicanálise
(hipótese do Inconsciente).

16
preciso perguntar “o que essa queixa significa para um fonoaudiólogo, clínico
de linguagem”? Como ele escuta essa queixa? Afinal, o que é memória para
uma clínica que se diz de linguagem?
Pois bem, atendi o Sr. Pedro, cuja queixa era de “dificuldades de
memória” e “dificuldades para compreender a leitura” que fizemos em duas
sessões. Ele veio sozinho, encaminhado pela audiologista da instituição. Iniciei
a entrevista perguntando como ele estava e obtive a seguinte resposta: “como
você acha que alguém com 84 anos está”? Assim, ele se apresentou: ora
incomodado com a velhice, ora negando qualquer dificuldade. Associou suas
dificuldades de memória com a morte da sua irmã. Em seguida, perguntou se
eu era psicóloga, apesar de eu ter lhe explicado o meu trabalho. Como não se
configurou uma demanda clara, agendei uma nova entrevista. Ele pediu para
eu anotar o meu nome, horário e data da sessão seguinte. Durante a semana,
ele ligou várias vezes na secretaria da clínica para perguntar sobre o
agendamento. Foi informado que faria uma entrevista - a anotação que fiz
parecia não ter valido para ele.
Na semana seguinte, ele compareceu no dia e horário combinados. Agiu
como se nunca tivesse me conhecido. Perguntou o meu nome e estranhou
quando eu disse que já havíamos conversado. Em seguida, para minha
surpresa, ele espalhou uma pasta com muitos papéis sobre a minha mesa. O
Sr. Pedro trouxe o seu currículo datilografado e contou detalhes de suas
experiências profissionais. Talvez a palavra “entrevista” tenha promovido um
deslocamento: de entrevista clínica para entrevista para trabalho. Ele não
soube me dizer porquê havia trazido seu currículo e documentos. Passou a
queixar-se dos esquecimentos, das dificuldades de leitura e de escrita.
Combinamos que iniciaríamos uma avaliação dessas dificuldades. Depois
disso, ele passou a vir até à clínica em dias e horários não esperados por mim.
No dia agendado, ele não veio. Consegui falar ao telefone com sua irmã, que
comunicou o encerramento do atendimento, dizendo que ele não tinha
“nenhuma dificuldade de memória”. Nota-se que apesar das queixas, o
tratamento não pode ser sustentado pelo próprio paciente (e nem seria pela
família, parece-me.
Esse modo de se apresentar ao clínico para enunciar uma queixa e um
pedido de ajuda, comum na clínica com afásicos, ganha outros contornos no

17
atendimento de pacientes com demência. Como sustentar uma clínica com um
sujeito alienado no próprio sintoma? Parece que o manejo com a família é
mesmo necessário. Entretanto, a demanda da família é suficiente para produzir
efeitos no atendimento desses sujeitos? A distinção clínica entre afasia e
demência está associada ao efeito que o sintoma produz/afeta um sujeito –
sobre sua posição na relação com a própria fala e com a fala do outro. Fonseca
(2010) pergunta se a demência é um desafio ou um limite para a clínica de
linguagem já que uma “dissolução linguística e subjetiva” está em jogo na
demência (FONSECA, 2012).
O paciente com demência, num ponto razoavelmente avançado da
doença, fica preso, alienado num dizer petrificado, repetitivo e, com frequência
ligado a um passado distante. Essa característica tem efeitos plurais e
imprevisíveis, que tomam direções de tratamento também bastante
diferenciadas, que têm relação com facetas singulares do sujeito em sua fala.
Fato é que, nas demências, as falas “perfeitamente articuladas, mas frustrantes
porque desajustadas em relação à expectativa do outro” (LANDI, 2007, p.14)
são sintomáticas – ainda que fluentes e bem estruturadas, elas causam
estranhamento. A função comunicativa se dissolve e a fala se “resolve em
torno de uma mesma massa sonora” (Landi, 2007, p. 10). Dito de outro modo,
a relação do sujeito com a própria fala e a do outro fica abalada.
Do ponto de vista teórico, a demência exige que se enfrente a relação
memória-linguagem. Nesta tese, ela será discutida a partir do pressuposto de
que o sujeito é efeito (é-feito) de linguagem e também a memória é efeito (é-
feita) de linguagem. Isso significa que linguagem não é função cognitiva e
memória não é arquivo. Do ponto de vista clínico, abordarei como são as
queixas de dificuldades de memória na Clínica de Linguagem.
Não deixo, por isso, de percorrer, neste trabalho, ainda que de modo
não exaustivo, a literatura médica e fonoaudiológica sobre o assunto para
circunscrever o modo como memória e linguagem são tratadas e, ainda, para
tentar esclarecer como e quanto a queixa de dificuldade de memória participa
(ou não) do diagnóstico da demência.
No capítulo 1, apresento, portanto, o “estado da arte” e os impasses
teórico-clínicos dos estudos filiados ao discurso da Neuropsicologia,
principalmente no que se refere à delimitação do normal e do patológico

18
quando se avalia a cognição. No capítulo 2, abordo a trajetória de Freud desde
a elaboração do “aparelho de linguagem” (na monografia A Afasia, 1895),
depois, o “aparelho de memória” (na Interpretação dos Sonhos, 1900) e,
finalmente, a apresentação do “aparelho psíquico” (no Inconsciente, 1915). Os
termos “memória” e “linguagem” fundam a Psicanálise. Neste percurso, o foco
esteve voltado para a relação memória-linguagem, quando se considera a
hipótese do inconsciente. Passo, ainda, por concepções de percepção e
representação. A discussão deste capítulo foi fonte para desdobramentos
clínicos, trabalhados nos dois últimos capítulos. No capítulo 3, a primeira tópica
freudiana e os três registros lacanianos – Real, Simbólico e Imaginário –,
invocadas no relato de caso de atendimento de uma senhora com demência,
realizado por um psicanalista (MESSY, 1993), foram introduzidos e
trabalhados. No capítulo 4, apresento e discuto aspectos relevantes da Clínica
de Linguagem e apresento vinhetas clínicas. Nas considerações tecidas,
transparece o esforço teórico realizado nos capítulos anteriores. Passemos,
então, ao trabalho.

19
Capítulo 1
Discurso e Clínica das demências: memória e
linguagem

O discurso atual sobre a clínica – seja ela média, psicológica ou


fonoaudiológica - voltada aos pacientes com diagnóstico de demência, é
marcado pela orientação oferecida pela Neuropsicologia Cognitiva ou por áreas
correlatas, como a Neurolinguística. Sob este viés, sustenta-se um mesmo
entendimento sobre memória, ainda que concepções de concepções de
linguagem possam variar4. De um modo geral, os diagnósticos apoiam-se na
relação entre dificuldades de memória, declínio cognitivo e envelhecimento.
Incluir nessa sequência o envelhecimento não é adequado, por certo -
demência é um quadro patológico e o mesmo não se pode dizer dos
esquecimentos que podem ocorrer no envelhecimento. Além disso, existem
diferentes tipos de demências que podem acontecer em adultos jovens.
Entretanto, a tentativa de distinção entre declínio cognitivo do avanço da idade
e instalação de um quadro patológico são a tônica dos trabalhos que
problematizam critérios para diagnóstico precoce da demência (ALBERT, 1999;
PARENTE et. al., 1999; VERHAEGHEN, 2012). Isso porque a demência do tipo
Alzheimer (DTA), quadro mais frequente de demência, afeta idosos, sendo o
prejuízo da memória reconhecido como um dos primeiros sinais dessa
patologia.
Este capítulo tem o propósito de contemplar o “estado da arte” sobre
diagnóstico e tratamento da demência. Sua função expande-se, contudo, na
medida em que favorece uma discussão sobre a polêmica distinção entre
normal e patológico nas dificuldades de memória, na Neuropsicologia Cognitiva
– expande-se, ainda, porque trato de esclarecer impasses diagnósticos da
clínica médica frente às demências e a indicação para um tratamento
4
A Neuropsicologia sustenta-se numa abordagem de cunho gramatical (fonético-fonológica ou
morfossintática), quando alguma é, de fato, implicada. Não é infrequente que menções a
linguagem fiquem restritas ao uso de termos como “vocabulário” e “sentença”. A
Neurolinguística procura fazer jus ao título que ostenta e acaba por envolver os níveis da
gramática em suas descrições ou, então, assume um perfil discursivo – caso das pesquisas
realizadas no IEL-UNICAMP.

20
fonoaudiológico ou psicológico voltado ao estancamento das perdas cognitivas.
Percorro, na sequência, os pressupostos da clínica fonoaudiológica filiada às
reflexões encaminhadas na Neurolinguística Discursiva. Nela, memória ganha
alguns outros contornos e a comunicação é enfoque no atendimento. A palavra
“discursiva” pressupõe certa distância de aportes exclusivamente gramaticais e
envolve, consequentemente, uma direção de tratamento que incluiu a história
do sujeito e suas significações. Esta vertente não abandona, sob o peso do
termo “Neuro”, que comparece no título da abordagem, postulações cognitivas
(TESSER, 2007).

1.1. Neuro - Psico - Linguística

A Neuropsicologia nasce com o estudo de Broca na afasiologia quando


correlaciona a terceira circunvolução do lobo frontal à zona cerebral da
articulação da linguagem. Essa correlação, iniciada com o advento da
anátomo-patologia, marcou um período de discussão sobre a clínica. A
novidade na discussão está no termo “psicologia”, que compõem o nome da
disciplina e, atribui maior peso explicativo às questões psicológicas,
possibilitando, por isso, a aproximação de pesquisadores de outras áreas de
conhecimento (GUADAGNOLI, 2007). Disso decorre, a explicação sobre as
relações entre cérebro e funções mentais superiores está fundamentada no
cognitivismo.
Duas linhas de pensamento são os “carros-chefe” do cognitivismo e
determinam seus programas científicos: (a) as noções de representação mental
– o objeto do conhecimento só tem existência se for representado na mente e
(b) a computação simbólica – os processos cognitivos são regidos por regras
(FRANÇOSO e ALBANO, 2004).
A história do cognitivismo inicia-se nas mãos de lógicos e psicólogos
empiristas, na década de 20, com a tese de que “a inteligência é passiva”
(idem, ibidem, p. 305). A crítica ao programa behaviorista se fortaleceu com a
adesão de Chomsky na Linguística, promovendo uma segunda geração de
pesquisas. A inteligência passou a ser entendida como manipulação de

21
símbolos, ou seja, computação, e ativa. No início de década de 1980, “o
programa começou a mostrar sinais de degeneração, isto é, começou a exaurir
a sua capacidade de produzir novidades” (FRANÇOSO e ALBANO, 2004, p.
306). Diante deste quadro, dois movimentos – braços teóricos - são notados. O
primeiro movimento foi caracterizado pelo “enxerto” do programa empirista em
teorias cognitivistas. É o que se vê, por exemplo, na Neuropsicologia
Experimental, disciplina que valoriza procedimentos quantitativos e
padronizados, como é de se esperar, já que assume a perspectiva
comportamental cuja meta é garantir objetividade observacional. Já o segundo
movimento culmina com a proposta de Jerry Fodor, em A modularidade da
mente5 (FODOR, 1979/1983).
A partir da década de 1980, os estudos da Neuropsicologia Cognitiva
Humana destacam o conceito de modularidade cognitiva e passam a
correlacionar funções preservadas (normais) e alteradas (sintomáticas) a uma
hipótese de processamento cognitivo (HÉCAEN e ALBERT, 1978). Sustenta-se
que o funcionamento mental organiza-se em módulos – sistemas de input.
A Neurolinguística foi área criada por Jakobson quando realizou estudos
sobre a afasia, na década de 1940. Face aos perturbadores sintomas na fala,
outros modelos sobre a relação cérebro-mente-linguagem surgiram – entre
eles, a modularidade e o conexionismo (que sustenta que módulos interligam-
se). A aproximação à Linguística se realiza, nesse campo, sob duas
perspectivas: a tradicional, que dá destaque à descrição dos componentes
linguísticos (fonético, fonológico, morfológico, semântico, sintático e
pragmático) e, outra, de cunho enunciativo-discursiva. No segundo caso,
estratégias cognitivas de produção do discurso ganham relevância (COUDRY,
1988, 1997, entre outros). Nesse arranjo multidisciplinar (Neurologia, Psicologia
e Linguística), a participação da memória no processo de envelhecimento e na
demência é sublinhado, embora não se questione o fato dela ser caracterizada,
ao modo da Medicina, como uma espécie de arquivo de lembranças.

5
Fodor (1979/1983) aponta a dificuldade em se conhecer a inteligência humana. Ele afirma
que “os sistemas centrais são incognoscíveis, isto é, que não se pode fazer uma ciência da
manipulação de símbolos no nível superior” (FRANÇOSO e ALBANO, 2004: 306). Recomenda-
se a atenção para os sistemas ou módulos de input. O conexionismo, a partir disso, propõe um
funcionamento da mente em módulos interligados. Estes módulos processam a informação
(sistemas de input). Destacam-se, por exemplo, o módulo léxico-ortográfico e léxico-auditivo no
processamento da linguagem.

22
1.2. Cérebro, Envelhecimento, Memória

Alguns estudos neuropsicológicos (GLINSKY, 2007; VERHAEGHEN,


2012) entendem que a relação entre memória e linguagem é complexa e, por
isso, levantam debates para área que nos interessam para, ao menos,
vislumbrar a problemática que a demência instaura. Adianto que estas
discussões sustentam noções de memória e de linguagem que imprimem uma
direção teórica e clínica que não permite tocar questões que, a meu ver, são de
grande interesse para o campo. De fato, se “o ponto de vista cria o objeto”
(SAUSSURE, 1916/1997, p 15), deve-se supor que ele determina quais
questões são relevantes e marginaliza outras que são assumidas como
irrelevantes (MILNER, 1989; LIER-DeVITTO e ANDRADE, 2011).
A memória tem sido compreendida como uma função cognitiva
complexa (VYGOTSKY, 1987; LURIA,1977, 1986). Por “complexa” entenda-se
que, segundo esse ponto de vista, ela, a memória, não é hegemônica e
uniforme. Diz-se que sistemas de memórias distintos (tais como linguagem e a
atenção) estão envolvidos em diferentes tarefas cotidianas. Quando há
indicação de problema de memória, contemplam-se tais hipóteses do
funcionamento cognitivo, que é sempre visto, porém, sob a ótica do
processamento e do armazenamento da informação.
Tarefas específicas e padronização de respostas da população idosa
são elaboradas. Pesquisadores debruçam-se, para isso, em hipóteses sobre as
articulações entre memórias (semântica, episódica, implícita, explicita) e
variações nas demências (Alzheimer, frontotemporais, vasculares, etc.) e a
observação de eventuais declínios cognitivos no processo de envelhecimento.
Afirma-se, por exemplo, que a memória semântica é mais preservada do que a
memória episódica no envelhecimento normal (PARENTE et. al., 1999). Afirma-
se, ainda, que um determinado sistema de memória, quando alterado, poderá
auxiliar na condução de um diagnóstico diferencial6. Ou seja, advoga-se que:

6
O diagnóstico diferencial contempla quadros depressivos no idoso e tipos de demência.

23
[de grande valia é] a noção de que existem diferentes sistemas
de memória, e que algumas seriam mais afetadas pelo
desenvolvimento normal enquanto que outras poderiam ser
indícios de processos degenerativos e de alterações afetiva.
(PARENTE et. al., 1999, p. 61).

Neste raciocínio, nota-se que grande parte da discussão está centrada no


procedimento diagnóstico, assumido como exigente. Na opinião de Bourgeois e
Hickey (2009), o diagnóstico da demência é complexo e demanda clínicos
experientes e atentos para recolher informações relatadas pela família e pelo
paciente. Muitos pesquisadores médicos e neuropsicólogos (uma composição
bastante frequente) empenham-se em traçar estratégias clínicas que permitam
apreender e estabelecer um diagnóstico que possa distinguir, em cada caso, se
há, na queixa de problema de memória, um quadro efetivo de demência.
Ao avaliar 220 idosos no ambulatório de Unidade de Idosos do
Departamento de Saúde Mental da Santa Casa de São Paulo, o neurologista
Almeida (1998) afirmou, num estudo quantitativo, que 59,1% dos pacientes
apresentaram queixas de memória. Entretanto, 90% desses idosos queixosos
não evoluiu para um quadro demencial. Dados semelhantes intrigaram outros
médicos brasileiros, como Bertolucci que levanta uma indagação: “se o
processo do envelhecimento, por si, não leva a um declínio tão significativo da
memória, por que tantos idosos apresentam essa queixa?” (BERTOLUCCI,
2005, p. 297-8). Sem avançar muito nessa questão, ele diz que, na velhice, “o
indivíduo começa a valorizar os lapsos de memória que ocorrem em qualquer
idade” (idem, ibidem, p. 298). Explicação que resvala, ainda que
superficialmente, que a categoria social “velhice” pode afetar o imaginário de
um sujeito e produzir queixas de dificuldades de memória. A resposta do autor
como que dissolve, entretanto, a necessidade de distinção entre normal e
patológico e se volta às costas para a referida “complexidade” da memória
apontada nas pesquisas internacionais da área. Entretanto, a questão clínica
levantada sobre a relação entre queixa e declínio de memória é, a meu ver,
pertinente. Tendo em vista que 90% dos idosos queixosos não evolui para a
demência, assiste-se, em estudos médicos, a gestação de uma consequência
nefasta: a tendência a descartar a queixa do idoso, pelo “baixo valor preditivo
[que ela tem] para demência (ALMEIDA, 1998).

24
Outros trabalhos (CLARE, 2003; WAGNER et. al., 1997) ressaltam a
presença de anosognosia na demência, atribuída ao comprometimento
cerebral do lobo frontal. Mencionar “anosognosia” é dizer que o paciente com
demência não tem consciência dos seus déficits. Segundo Souza et. al. (2011),
a “falta de consciência” sobre a doença é controversa na literatura e, alguns
estudos, admitem haver uma flutuação. Souza realizou, com outros autores,
uma pesquisa longitudinal para apreender o estado de consciência na doença
de Alzheimer, envolvendo 25 pacientes brasileiros com doença de Alzheimer
leve, no início da pesquisa. Avaliações foram realizadas com base em testes e
questionários aplicados aos pacientes e cuidadores. A consciência da doença
foi avaliada num questionário com 35 perguntas divididas em cinco áreas: (1)
consciência do déficit, (2) relação social, (3) relação familiar, (4) atividades de
vida diária e (5) relação afetiva.
Os pesquisadores esclarecem que a discrepância entre os relatos do
paciente e do cuidador foi considerada. Eles observaram que, na primeira
avaliação diagnóstica, 7 pacientes (38%) tinham plena consciência da doença;
10 pacientes (55%), consciência parcial da doença e 1 paciente (5%), ausência
de consciência da doença. Na segunda testagem, 1 paciente (5%) tinha
consciência da doença; 13 pacientes (72%) tinham consciência parcial da
doença e, em 4 deles (22%), não havia qualquer consciência da doença. Eles
concluíram, frente a esses resultados, que há perda de consciência sobre a
doença: há declínio cognitivo e funcional à medida que a demência progride.
Note-se que, embora se tenha dito que, na pesquisa, a queixa do
paciente é levada em conta, na verdade, o que ele diz é transformado em
“dado” já que o que queixa se torna resposta à pergunta do teste – é resposta
induzida para avaliar “o grau de conhecimento” que ele tem sobre a própria
doença – o que importa é apreender um momento de passagem do momento
da queixa de esquecimento para aquele da instalação da patologia – pesquisas
desse tipo não incluem o doente na doença.
Também, interessa-me assinalar que a referida queixa do paciente é
sempre desvalorizada porque confrontada com a do cuidador7 - a verdade

7
Fonseca discute esse ponto quando indica que na Clínica de Linguagem com afásicos,
recomenda-se que ele entre só nas entrevistas e nas sessões clínicas (FONSECA, 2002,

25
sempre está em outro lugar. Landi (2007) e Emendabili (2010), pesquisadoras
filiadas às reflexões da Clínica de Linguagem, abordam este ponto - do
acompanhante como “informante confiável”. Elas discutem efeitos dessa
redução de valor da queixa do sujeito e retiram implicações clínicas quanto ao
compromisso com o tratamento e na relação com o próprio sintoma. A
dicotomia consciência vs. não-consciência sobre o sintoma serve a propósitos
bem específicos de testagens, mas ela não só anula a “heterogeneidade das
respostas que uma pessoa possa dar” (LANDI, 2007, p. 88) como tem deixado
rastro indesejável na clinica:

uma vez desqualificada ou destituída da posição de sujeito-


falante, o que a pessoa diz importa pouco – ela perde estatuto
psicológico, social e jurídico e sua fala é escutada como vazia.
Enfim, o prejuízo da redução da demência a uma questão de
maior/menor consciência de si é o apagamento de linguagem
e, portanto, da relação do sujeito com seu dizer (EMENDABILI,
2010, p. 16).

Certamente esta discussão é irrelevante à Medicina porque, como disse,


o doente está excluído da doença e também o médico é mero “porta-voz” do
discurso do campo – ele é agente, mas aparece como sujeito. O médico está
submetido à “ordem médica” (CLAVREUL, 1978/1983). Sabemos que a
terapêutica é medicamentosa ou cirúrgica - incide sobre a doença (por isso, há
encaminhamentos para outras clínicas). Nesse ambiente, portanto, a queixa é
relato do paciente, mas relato conduzido e retalhado para coleta de sinais da
doença – esta é a direção nas anamneses e em pesquisas sobre o diagnóstico
Uma queixa deveria ser tomada como tal: como manifestação de um sujeito
sobre seu sintoma. Ora, “sintoma” remete a “relato do paciente” 8, mas em
consultórios médicos, esse relato é retalhado na busca de sinais da doença.
(ARANTES, 2001, 2006; FONSECA, 1995, 1998; FUDISSAKU, 2009)
Não se trata aqui de desqualificar a Medicina – pessoas endereçam
suas queixas para médicos e conferem a eles autoridade -, mas de situar
diretrizes que conduzem um diagnóstico nesta clínica e circunscrever a função

2006). Marcolino (2004) movimenta esta discussão na apresentação de um estudo de caso.


Ver, também, Emendabili (2010).
8
Entende-se porque Lacan fala em “função sinto-mal” – de que sintoma seria uma redução,
condensação (QUINET, 1991).

26
do falante, do clínico e do pesquisador neste campo. A “condição afetiva” do
paciente não é relevante, mas, quem sabe, participe da decisão sobre o
encaminhamento a outras clínicas. Na Clínica de Linguagem, assume-se que a
queixa diz respeito a como e quanto o sujeito é afetado em sua condição de
falante: pelo efeito em si e no outro de uma fala própria que o marginaliza
(LIER-DeVITTO, 2001, 2004, 2006). A demência – uma doença neurológica –
afeta a fala e posição de falante, que sofre seus efeitos.
Para o médico, a demência é olhada como vinda de “corpo mudo”, em
metáfora de Fonseca (2002)9. A discussão diagnóstica restringe-se a definir a
relação entre envelhecimento x declínio cognitivo leve x demência
(EMENDABILI, 2010). Desse modo, compreende-se a valorização da
neuroimagem e dos estudos genéticos no diagnóstico precoce da demência. O
problema, apresentado por autores como Glinsky (2007), é que a demência,
inicialmente, pode não ter correspondência orgânica. Essa dificuldade objetiva
no estabelecimento de uma correlação segura, conclusiva (por imagem), entre
sintomas e alterações orgânicas acabou dando força para o diagnóstico clínico
na Medicina que liga a avaliação cognitiva ao estudo do cérebro. Importante
dizer que esta tendência diagnóstica justifica a interdisciplinaridade que se
imprimiu, desde então, e que é representado pela demanda dirigido a
psicólogos, demanda, essa, que deu origem à Neuropsicologia (e outras
composições: Neurolinguística; Neuropsicolinguística), no campo dos estudos
sobre as demências.
Testes neuropsicológicos buscam proporcionar um elenco de
marcadores clínicos para o diagnóstico da demência. Geralmente, são testes
computadorizados, que visam controlar, com precisão, o espaço de tempo
entre a apresentação dos estímulos e a emissão das respostas. As respostas
são quantificadas, tratadas estatisticamente e comparadas à de grupos de
controle (sujeitos com ausência de doenças neurológicas, psiquiátricas e com
idade superior a 55 anos) (CHARCHAT et. al., 2001). Apesar de incluir funções
cognitivas do indivíduo para se preencher os critérios diagnósticos da doença,
o sujeito fica excluído, do mesmo modo e pelas mesmas razões apresentadas

9
A partir de Foucault (1980/1994), Fonseca (2002) pode assinalar que o advento da
anatomopatologia, no século XIX, determinou que a doença tem “sede” e, portanto, se
apresenta no “corpo mudo” – sem o doente.

27
acima – ele é número numa porcentagem10. Nada muda muito, de fato: a
constatação de mudanças no tecido cerebral e na performance cognitiva é
associada ao avanço da idade nos trabalhos de médicos, neuropsicólogos e
fonoaudiólogos, em sua grande maioria. Talvez algo tenha mudado:
aprofundaram-se certezas médicas, já que foram referendadas pelas “ciências
humanas”, que passam, nessa composição com a Medicina, a “fazer
complemento” a ela11 - as “humanas” aderem a Medicina, seus objetivos e
causa; respondem inteiramente à sua demanda.
Isso, mesmo frente a conclusões de pesquisadores americanos que
afirmam não haver relação direta entre o envelhecimento cerebral e o declínio
cognitivo. Ou seja, envelhecimento cerebral e déficit cognitivo são esperados,
mas são acontecimentos concomitantes (WANG e SNYDER, 1998; GLINSKY,
2007). Em experimentos com testes e estatísticas, eles mostraram que sujeitos
a partir de 50 anos são, em geral, mais lentos para diversas tarefas cognitivas
quando comparados aos adultos jovens. Glinsky (2007) afirma que a relação
envelhecimento cerebral x declínio cognitivo é, de fato, complexa e com grande
variabilidade individual. A autora postula que o funcionamento dinâmico das
redes neuronais modificam-se ao longo da vida, justificando, desse modo, a
heterogeneidade das manifestações individuais e a impossibilidade de construir
padrões confiáveis que delimitem, com nitidez, o esquecimento normal e o
patológico.
Estas últimas pesquisas enfatizam a ocorrência da atrofia cerebral,
principalmente na área do hipocampo e o declínio da memória, da atenção e do
processamento da linguagem no envelhecimento. Para elas, a dificuldade
perceptual é fator decisivo na queda do desempenho cognitivo. O argumento é
que a percepção propicia a atenção seletiva, a capacidade de eleger estímulos
específicos no mundo externo. Desse modo, a percepção é o ponto de partida
para o armazenamento das informações. A atenção permite ao indivíduo

10
Canguilhem (1966/2007) argumenta que o homem mediano é um ideal, ou seja, um produto
estatístico que não existe. Assim, norma e média não são equivalentes. Além disso, nessa
ótica, como esclareceu o autor, saúde e doença são transformadas em estados homogêneos e
contínuos; não há diferença qualitativa.
11
Utilizo aqui a expressão de Maria Teresa Lemos (2002) para se referir à natureza da relação
que os estudos em Aquisição da Linguagem fazem com a Linguística. Assumo, por certo, o
mesmo raciocínio para falar sobre a relação das Psicologias e da Fonoaudiologia com a
Medicina. Ver, também, Lier-DeVitto (1995, 2012) sobre a relação da Fonoaudiologia com a
Medicina e com a Educação.

28
selecionar estímulos ambientais e controlar o fluxo das informações linguísticas
e não-linguísticas. A informação recebida pela via perceptual é armazenada e
organizada no/pelo cérebro. Depois disso, o sistema de memória organiza-se
em categorias para, assim, recuperar a informação armazenada com mais
rapidez e facilidade (PARENTE et. al., 2009). Convém, neste momento, frente
à clara explicitação do “processamento percepto-cognitivo”, no âmbito dos
estudos médicos e neuropsicológicos, dizer que esta tese opõe-se a tal
entendimento e que dedicará os capítulos posteriores ao esforço de contrapor-
se a tal abordagem sobre memória (e linguagem).
Nos estudos neuropsicológicos, são construídos modelos hipotéticos de
funcionamento da memória: trabalha-se com a hipótese da existência de
memórias distintas. Divide-se a memória em dois sistemas - memória de
trabalho de curto-prazo ou de longo prazo.
A memória de curto-prazo seria responsável pela manipulação de
informações para execução de uma determinada tarefa (como, por exemplo,
anotar um número de telefone). Ela é constituída por um subprocesso, o
executivo central (que recupera a informação, armazena, manipula e faz
ajustes cognitivos para mudanças nas operações); pelo circuito fonológico
(que tem um estoque fonológico que decodifica a linguagem para articulação)
e, ainda, um sistema visuoespacial (que armazena informações não-
linguísticas).
A memória de longo prazo é ativada quando a situação exige a
recuperação da informação, explícita ou implícita. O acesso à informação na
memória explícita é consciente e associada à linguagem, quando a recordação
é verbalizada. Na memória implícita, a informação é automatizada, não
consciente. A memória de longo prazo é, também, semântica ou episódica.
Na memória semântica estão os conceitos e conhecimentos gerais; na
episódica, fica a história de vida, ou seja, a memória autobiográfica
(BRYAN, MAXIM, 2006; RIDDLE, 2007; PARENTE et. al., 2009;
VERHAEGHEN, 2012) 12.

12
A memória semântica tem organização hierárquica, ou seja, conceitos ramificam-se em
níveis superiores e inferiores. Segundo PARENTE et. al. (2009), a degradação da memória
semântica é encontrada na demência do tipo Alzheimer (DTA) e, não é observada no
envelhecimento dito normal.

29
A memória de trabalho tem sido indicada como o foco primordial no estudo
do declínio cognitivo em idosos devido ao prejuízo no desempenho de
atividades cotidianas. Afirma-se que isso ocorre porque elas estão relacionadas
ao subprocesso executivo. Verhaeghen (2012), após extenso levantamento
bibliográfico (123 estudos que compararam a memória de trabalho entre
adultos jovens e idosos), conclui que, apesar de apresentarem resultados
indicativos de declínio da memória de trabalho no idoso, processos afetados
são outros: alguns têm relação com o sistema visuo-espacial e outros com o
sistema fonológico. Com isso, o autor quer mostrar que a explicação para o
déficit da memória de trabalho permanece polêmica. Não há consenso sobre
se é a capacidade armazenamento da memória de trabalho que decai com o
envelhecimento ou se é o declínio da atenção que altera seu desempenho.
Bryan e Maxim (2006), por exemplo, insistem na hipótese de que a dificuldade
de direcionar a atenção, associada à perda auditiva, dificulta o processamento
da informação e, consequentemente, torna a memória de trabalho mais lenta.
O problema seria, portanto, perceptivo. Ou seja, na comparação entre as
performances de idosos e adultos jovens, os estudos somente indicam o
declínio nos sujeitos velhos, mas não conseguem sustentar uma explicação.
A anomia - “perda da palavra” - pode ser encontrada tanto no início da DTA
quanto no processo de envelhecimento normal. Segundo a literatura
fonoaudiológica e médica, o idoso tem dificuldades de nomeação e substitui os
nomes esquecidos pela designação genérica “coisa”, ou “aquilo”, por exemplo.
Também Parente et. al. (1999, p. 60) afirmam que as habilidades verbais ficam
preservadas no envelhecimento, exceto por “certa dificuldade em encontrar
palavras”, o que sugere, dizem os autores, haver interação entre memória e
linguagem, mas não há prejuízo fonológico ou sintático. Já, para Verhaeghen
(2012) há redução da construção sintática na fala de idosos, quando
comparada à fala dos jovens. A hipótese do autor é, por isso, a de que o
declínio da memória de trabalho afeta a construção sintática e o
processamento de sentenças mais complexas. No entanto, ele admite que
outros estudos apresentam resultados diferentes dos dele e que o problema
poderia estar no tipo de sentença testada. Bryan e Maxim (2006) afirmam que
o déficit de linguagem no início de DTA deve-se a problemas de acesso à
informação, resultando, disso, diminuição de vocabulário. Os pacientes com

30
DTA leve, em sua pesquisa, foram capazes de reconhecer objetos e incapazes
de classificá-los em categorias - problema na memória semântica, concluem
eles.
Glinsky (2007), por sua vez, constatou dificuldades maiores com a memória
semântica (tarefas de nomeação) e com a memória de trabalho. Quanto à
memória autobiográfica, idosos apresentaram melhores resultados do que os
jovens – assim, o declínio da memória ocorre em situações específicas, diz ele,
em situações de lembrar nomes ou números de telefones. Parente et. al.
(1999) investigaram a memória verbal de curto prazo (repetição de números e
palavras) e a memória textual (recontagem de histórias) com um grupo de 16
pacientes com demência, sendo que 7 tinham doença de Alzheimer e 9,
demência vascular. O objetivo desta pesquisa foi: “(1) verificar se a perda
cognitiva representa um envelhecimento mais rápido ou possui características
diferentes do envelhecimento normal e (2) qual das duas esferas de memória
verbal tem maior possibilidade de caracterizar um processo demencial” (idem,
ibidem, p. 69). Os autores anotaram dificuldades acentuadas nos pacientes
com DTA para recontar histórias – havia prejuízo maior na memória
autobiográfica (episódica) do que na memória de curto prazo, dizem eles.
Esse acontecimento não é observado no envelhecimento normal, como havia
apontado Glinsky (2007). Segundo os autores, os idosos sem processos
degenerativos podem lançar mão de “estratégias cognitivas” para resgatar a
memória de longo prazo, apesar das falhas na memória de curto prazo.
De um modo geral, pesquisadores e clínicos reconhecem que a linguagem
do idoso, no início da DTA, está preservada. A anomia, a redução sintática, ou
a dificuldade de recontar histórias, não são vistas como problema (patologia)
de linguagem – embora haja sinais na linguagem de alterações na interação
entre linguagem e memória. Devo assinalar presença de dissenso expressivo
na explicação sobre o funcionamento cognitivo que afeta a linguagem, como
vimos. A alteração é ora referida à memória de trabalho, ora à memória
semântica ou, então, à atenção, à perda de audição e até aos problemas na
memória episódica. Consensual é a forte certeza de que o funcionamento da
memória afeta a linguagem. Como disse Cruz (2004):

31
Ao falarmos de atividades como combinação, seleção,
reconhecimento e recuperação (de sentidos, de enunciados, de
palavras), estamos falando de linguagem. [...] O debate sobre
as relações entre linguagem e memória não escapa a uma
reflexão sobre a cognição (CRUZ, 2004, p. 601-604) (ênfase
minha).

Esquematicamente poderíamos traduzir tal hipótese na sequência


cérebro  memória  linguagem13. Distinguem-se diferentes memórias
(semântica, fonológica, episódica, de procedimentos) para cada atividade
linguística. Como esclarece Scheuer (2004):

Cada memória encarrega-se de diferentes aspectos da


linguagem, que ocorrem ao mesmo tempo, mas podem ser
observadas separadamente [...] Seguramente, pode-se dizer
que a memória alimenta a linguagem, esta retroalimenta a
memória (SCHEUER, 2004: 917-918).

Como se pode ver, componentes linguísticos são instrumentos


relevantes para a Neuropsicologia, mas não se olha para o linguístico em
sentido estrito: fala-se em “dificuldade de narrar”, de “recontar histórias”, mas o
problema será sempre atribuído ao fracasso na memória. Não se questiona a
posição do narrador, nem se aborda a articulação sintática dos enunciados, por
exemplo - a reflexão sobre a linguagem fica excluída. A avaliação de cada
sistema de memória é realizada com base em testes-padrão. Por exemplo,
para a memória de trabalho, aplicam-se listas de palavras, seguidas de
atividade que distraía o examinado para, depois, iniciar a evocação. A memória
episódica é avaliada por meio de evocação de fatos históricos ou de “faces”
famosas. A memória semântica é testada através de evocação por meio de
listas de categorias ou classificação de figuras.
Coudry (1988/1996) foi contundente na crítica desse modo de avaliação
de pessoas afásicas. Segundo ela, testes criam situações de fala

13
Fonseca discute, desde 1995, a causalidade sugerida na sequência acima e, na trilha de
Jackson e Freud, dilui essa causalidade que retém a linguagem numa situação de “excremento
do cerebral”.

32
descontextualizada, não consideram a interlocução, diz ela: eles focalizam
tarefas gramaticais “que preconizam atividades metalinguísticas”. Cruz (2004),
na mesma linha de Coudry (a Neurolinguística discursiva) analisa os
procedimentos mais utilizados na avaliação da fala do paciente demenciado. A
autora sublinha que não se consideram, em provas de nomeação e repetição,
“erros” em palavras – desconsidera-se, portanto, processos de significação
quando o paciente “erra” a palavra-alvo; Dito de outro modo, anulam-se os
caminhos enunciativos em movimento nessas falas. Em 2004, eu disse que a
fala do paciente é, mesmo, reduzida à polos de emissão-recepção e perguntei
“se esse tipo de saber (estatístico) seria, de fato, suficiente para fundar uma
clínica” (MARCOLINO, 2004, p. 10).
Como disse acima, provas e testes diagnósticos apoiam-se, dependem
de noções linguísticas e da fala ou escrita de pacientes. Como, senão através
da fala ou da escrita, que funções “essenciais” (memória, atenção, habilidades
cognitivas) poderiam ser avaliadas? A linguagem, contudo, não interroga
porque só interessa como “evidência” de problemas cerebrais/cognitivos. Por
esse motivo, nos testes neuropsicológicos recomendados para o diagnóstico
da demência, nota-se a redução de linguagem à “função cognitiva”
(instrumental e representativa), sua posição como “ordem dependente” da
psicológica e/ou da social (HENRY, 1992; FONSECA, 1995; ARAÚJO, 2002).
Landi (2007), diferentemente, pode anotar que o paciente nomeia figuras nos
testes diagnósticos e afirma que, nestas tarefas:

a língua é nomenclatura, e esta é uma concepção


extremamente reducionista da linguagem. [...] As concepções
de linguagem enquanto representação [linguagem representa o
mundo externo] baseiam-se em unidades isoladas e
desconsideram as operações da linguagem (LANDI, 2007, p.
39).

Entendem-se, por isso, que memória seja espaço de estocagem de


conteúdos de experiências e linguagem a forma de expressão privilegiada
desses conteúdos e, portanto, função cognitiva. Nessa esfera de estudos,
como pontuou Landi (2007), a relação entre cognição e linguagem é

33
transparente, porque a linguagem não oferece ali qualquer opacidade. Ela é
vista “como uma entidade em que um visível permite inferir um invisível”. Ou
seja, a produção linguística desviante (visível) é sempre expressão nítida de
alteração cognitiva (invisível).
Em síntese, pode-se observar que os problemas de pesquisa e clínicos
concentram-se no referido sistema de memória para esclarecer a distinção
entre esquecimento normal e esquecimento patológico. Os resultados, porém,
são inconclusivos e, mesmo assim, não se questiona a metodologia
quantitativa e nem tampouco a modalidade de avaliação de linguagem
implementada para inferir os déficits de memória. Quando se fala do
doente/paciente, a discussão caminha no eixo da oposição consciência x não-
consciência sobre a doença. É no eixo do indivíduo do sujeito psicológico que a
reflexão é encaminhada.

1.3. A semiologia da demência: diagnóstico e tratamento na clínica


médica

Diante do quadro exposto acima, a categoria “envelhecimento normal”


prevê déficits cognitivo e biológico. Flashman et. al (2003) abordaram algumas
pesquisas com idosos saudáveis entre 65 e 95 anos (sem doenças
cardiovasculares, diabetes, etc), que observaram declínio psicomotor e
atividade elétrica cerebral mais lenta. Os autores contrapõem a estas, outras
pesquisas que indicam haver capacidade de reorganização neuronal e
preservação da cognição no processo de envelhecimento. Nesta categoria de
indivíduos, dizem eles, não há dificuldades com a memória. Segundo
Bourgeois e Hickey (2009), pode-se vislumbrar 3 caminhos no envelhecimento
cognitivo, quais sejam: (a) declínio “normal” ou saudável” associado ao
envelhecimento; (b) prejuízo da memória significativo associado à idade, sem
outros aspectos que caracterizam a demência; (c) demência. As autoras,
entretanto, apontam para controvérsias sobre o “declínio cognitivo leve”, que
pode ser considerado, segundo dizem, um fator de risco à demência. Flashman

34
et. al. (2003), acrescentam que, além do quadro “normal”, o envelhecimento
cognitivo pode ser alocado nas seguintes categorias diagnósticas:

(a) Declínio cognitivo associado à idade inclui os idosos com déficit


cognitivo em diferentes domínios quando comparados ao grupo
controle de adultos jovens.
(b) Declínio Cognitivo leve diz respeito ao grupo de idosos com queixa
de dificuldades significativas de memória que, se confirmadas por
um informante/acompanhante, são indicativas de que um quadro de
demência de Alzheimer deve ser investigado. Testes costumam
comprovar o declínio patológico da memória (se resultados são
comparados com os de grupo controle de mesma idade e nível
educacional). Os esquecimentos, mesmo que frequentes, não
limitam as atividades cotidianas (o idoso não preenche todos os
critérios do diagnóstico de demência).
(c) Demência é um quadro patológico, não esperado no
envelhecimento, apesar de sua prevalência ser maior na população
acima de 65 anos14. Os sintomas são crônicos e progressivos,
podem estar relacionados aos danos cerebrais e caracterizam tipos
de demência e etiologias.

O Declínio Cognitivo Leve (DCL) tende a oscilar entre normal e


patológico, sendo frequentemente assumido como um estágio pré-demencial
(MORRIS et. al., 2001). Charchat-Fichman et. al. (2005) comentam que, em
1999, neurocientistas reunidos em Chicago para caracterizar o DCL, chegaram
a três critérios para a classificação dos idosos:
(1) DCL amnésico - risco maior de desenvolver Doença do tipo
Alzheimer (DTA);
(2) DCL com comprometimento leve de múltiplos domínios cognitivos -
risco de desenvolver outras síndromes demenciais (sendo a DTA uma
trajetória possível);

14
Em estudo populacional brasileiro, a prevalência de demência variou de 1,6%, entre os
indivíduos com idade de 65 a 69 anos, a 38,9%, entre aqueles com idade superior a 84 anos
(CARAMELLI e BARBOSA, 2002).

35
3) DCL com comprometimento de uma única função cognitiva diferente
de memória - risco maior de desenvolver demência frontotemporal e/ou
afasia progressiva primária.

Os autores afirmam, porém, que todos os grupos poderiam


permanecer estáveis e não evoluir para síndrome demencial. Na prática
clínica, a heterogeneidade dos casos não sustentou tal classificação, dizem
eles. Apesar dos esforços realizados, não há critérios clínicos confiáveis para
predizer que declínios cognitivos leves correspondam ao início de um quadro
demencial. Segundo Charchat-Fichman et. al.,

As principais limitações foram: instabilidade diagnóstica ao


longo do tempo, indefinição de testes neuropsicológicos para
avaliar funções cognitivas e atividades da vida diária, e ênfase
no comprometimento baseado em um grupo controle
emparelhado por idade e escolaridade e não em declínio
cognitivo (idem, 2005, p. 81).

Outro ponto importante a ser comentado diz respeito ao fato de que,


apesar da inclusão da queixa nos critérios diagnósticos, pesquisadores
afirmam que “a queixa subjetiva reflete o estado afetivo dos indivíduos e não
necessariamente declínio cognitivo” (CHARCHAT-FICHMAM et. al., 2005, p.
81). Assim, nessa dança diagnóstica, “estado afetivo dos velhos”, “presença de
queixa de dificuldades de memória” e “falhas em testes neuropsicológicos”
promoveram outra necessidade diagnóstica: diferenciar depressão e estados
iniciais da demência. A presença de sintomas depressivos e ansiedade tem
sido, frequentemente, associada à queixa de memória (BARKER, JONES,
JENNISON, 1995). A depressão severa em idosos aproxima-se de sinais
encontrados nas demências e, por isso, usualmente fala-se em
“pseudodemência” nestes casos (BRYAN, MAXIM, 2006).
Damasceno (1999), neurologista brasileiro, descreve o caso de uma
mulher com 61 anos, casada, professora de línguas. Ela queixava-se de
esquecimentos, como do “o tópico da conversação”. Na rua, dirigindo o carro,
“não sabia para onde exatamente estava indo ou devia ir”. A paciente negava

36
ter depressão, mas relatou uma “vivência desagradável” ocorrida um mês antes
do início dos sintomas. Ela estava na fila do banco, quando assaltantes
invadiram o local. Esta senhora conversou com os assaltantes, pedindo calma,
uma atitude que a surpreendeu depois do ocorrido. O teste de Luria apontou
leve déficit para memória verbal (lista de palavras) e SPECT15 mostrou
“discreta hipoperfusão bitemporal e frontal direita, compatível com doença de
Alzheimer” (idem, ibidem, p. 79). Após um ano, os sintomas de memória
regrediram. A regressão ou a estabilidade sintomática excluiu a demência,
conclui o autor, e faz aparecer a fragilidade do diagnóstico entre demência e
depressão. Nota-se que, nesse caso, os exames de imagens e os testes
indicavam o início do quadro de DTA. Entretanto, após um ano de tratamento
medicamentoso (antidepressivo), o diagnóstico de DTA não pode ser
confirmado com a ausência de queixas da paciente, o que determinou o quadro
de pseudodemência.
Pode-se dizer que a demência, apesar da participação inegável da
etiologia cerebral, erige obstáculos para o diagnóstico médico. Landi (2007)
chama atenção para o fato de que a confirmação só pode ser viabilizada numa
biópsia cerebral. Desse modo, o rótulo de “patologia” deve ser lido como
“provável demência” ou “pseudodemência”, em muitos casos. A medicação
para a alegada depressão e/ou demência do tipo Alzheimer é admitida como
necessária para a confirmação do diagnóstico. Também, a demência de
Alzheimer tem semelhança sintomatológica com o dito Declínio Cognitivo Leve
e com depressão. Essas situações e outras parecem mesmo indicar que a
Medicina não encontra um quadro puramente orgânico, quando o sintoma é
“mental” e/ou linguístico.
Segundo a quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-IV), mundialmente utilizado, a demência obedece a três
critérios diagnósticos:
(1) prejuízo da memória e mudança em outro domínio cognitivo,
como a linguagem, julgamento, pensamento abstrato e função
executiva;

15
As técnicas de "imagem molecular" denominadas de tomografia por emissão de pósitrons
(PET) e da tomografia por emissão de fóton único (SPECT) estudam a química cerebral,
neurotransmissão (neurônios pré e pós-sinápticos), assim como outras funções cerebrais
(COSTA, OLIVEIRA E BRESSAN, 2001).

37
(2) declínio cognitivo suficiente para modificar tarefas cotidianas e vida
social;
(3) declínio em relação a um nível anteriormente superior de
funcionamento (EMERY, OXMAN, 2003; BOURGEOIS, HICKEY, 2009).

O diagnóstico médico, enfatizam os autores, inicia-se com a anamnese


visando mudanças no estado geral de saúde e cognitivo (confirmadas por um
informante que acompanha o idoso). A atenção volta-se, desde aí, para a
progressão e para a severidade dos sintomas. O exame físico prioriza o
sistema cardiovascular e sinais de possíveis doenças que possam, também,
alteram a cognição (como diabetes, hipotireoidismo, doenças renais)16.
Recomendam-se, em seguida, exames laboratoriais, exames neurológicos de
imagens e testes neuropsicológicos.
A Academia Brasileira de Neurologia, segundo Nitrini et. al. (2005),
indica, para o diagnóstico da doença de Alzheimer (DA) os seguintes testes e
exames: (1) avaliação da memória (como recordação de objetos apresentados
em figuras); (2) avaliação da atenção (repetição de sequências crescentes de
dígitos após o examinador); avaliação da linguagem 17; funções executivas
(teste de fluência verbal); conceituação e abstração e habilidades construtivas
(desenhos de figuras geométricas) e exames de neuroimagem e de exames
laboratoriais para diagnóstico diferencial (CHARCHAT et al, 2001).
Em alguns casos, a classificação da demência depende,
exclusivamente, dos sintomas linguísticos. Apresento, no quadro 1.1, uma
síntese adaptada da literatura nacional e internacional dos sintomas descritos
pela literatura médica como base para o diagnóstico diferencial das
demências18. Interessam-nos as descrições linguísticas.

16
Hipertensão arterial crônica, por exemplo, pode contribuir para a demência vascular.
17
Geralmente, utiliza-se o “Teste de Boston para o Diagnóstico da Afasia”. Esse teste foi
elaborado por Harold Goodglass e Edith Kaplan (em 1972 e revisado em 1982) e é um
instrumento que compreende vinte e sete subtestes, que visam ao estabelecimento de perfis
clínicos da afasia, a partir de um tratamento estatístico.
18
As demências podem ser corticais ou subcorticais. As demências subcorticais são
caracterizadas por lesões na substância branca e núcleos da base, ocasionando alteração da
memória recente e atraso no processamento cognitivo. Geralmente, estão associadas ao
Parkinsonismo, Huntington, doenças vasculares e esclerose múltipla (VICENTE et. al., 2005).

38
Quadro 1.1. Classificação das demências corticais (GROVES et. al., 2000;
ALEGRI et. al., 2001; CARAMELLI e BARBOSA, 2002; VICENTE et. al., 2005;
GALLUCCI NETO, TAMELINI e FORLENZA, 2005; BRYAN, MAXIM, 2006,
BOUGEOIS, HICKEY, 2009).

39
Alzheimer (DTA) Frontolateral (DFT) Vascular Corpos de Lewy
Cognição e outras Fase inicial: declínio Alterações precoces de Relação causal entre o Flutuação dos déficits
características da memória para personalidade e de evento cerebrovascular cognitivos em questão de
fatos recentes; comportamento. e quadro demencial. minutos ou horas,
Memória semântica alucinações visuais bem
pior do que a A memória e as habilidades Depressão e detalhadas, vívidas e
memória episódica; visuoespaciais encontram- comprometimento recorrentes.
ansiedade e se relativamente funcional .
consciência dos preservadas. Sintomas parkinsonianos,
déficits. Sintomas geralmente do tipo
Pode ser de subtipo: extrapiramidais, rígidoacinéticos de
Intermediária: perda 1. Afasia Progressiva paralisias de membros, distribuição simétrica.
da memória recente Primária (APP) : face.
e mantém sintoma Nas fases iniciais, a
informações da exclusivamente memória está preservada
infância e linguístico e e os comprometimentos
adolescência; progressivo. são visuoespaciais.
distúrbios de
planejamento e 2. Semântica: pré-senil
visuoespaciais. (antes dos 65 anos);
Degeneração de
Avançada: lobos temporais;
Alteração grave de memória
todo o sistema de preservada.
memória,
preservando a
memória emocional
associada à
autobiografia.
Linguagem Fase inicial: Fase inicial: preservada. Déficits de linguagem Déficit na fluência verbal e
preservada, exceto variáveis. com o avanço da doença
pela dificuldade de Fase avançada: Redução tornar-se similar aos

40
encontrar palavras, da fluência verbal, redução prejuízos da DTA.
como uma afasia na participação de
anômica. conversas, alteração na
compreensão de metáforas,
Fase intermediária: alterações semânticas.
Afasia transcortical
sensorial ou Presença de perseveração
Wernicke (alteração e ecolalias na fase
de compreensão); avançada.
apraxias.
No subtipo APP:
Fase avançada: Inicialmente, a afasia é
Afasia global, anômica e, com a evolução
tendência ao do quadro, torna-se não-
mutismo. fluente.

No subtipo demência
semântica: Anomia grave,
Alteração de compreensão
para palavras; Afasia global
na progressão da doença.

41
Nota-se que a vagueza da descrição dos sintomas linguísticos que
remetem, basicamente, aos quadros afásicos. Primeiramente, seria necessário
indagar se as alterações na linguagem de pacientes com demência são, de
fato, afasias. Ao se aproximar de descrições das falas dos pacientes com
demência, encontradas na literatura, Emendabili (2010, p. 65) as caracteriza
como “pouco linguísticas”:

Na verdade, propostas que se enunciam


“neuropsicolingüísticas” são, na verdade, “neuropsicológicas”.
Os modelos de processamento explicitados são mentais e a
linguagem é função cognitiva. Autores que sustentam posições
consistentes com um pensamento linguístico sequer são
invocados e explorados [...] Enfim, tudo o que se diz sobre
linguagem resvala o senso comum (revestido de uma
terminologia científica, diria Chomsky, 1954) (idem, ibidem p.
65).

De fato, não é outra coisa que se pode ver - a clínica médica encaminha
discussões diagnósticas e tratamento medicamentoso – drogas que modificam
o funcionamento dos neurotransmissores e podem favorecer conter a
progressão acentuada ou promover alguma melhora dos esquecimentos. Como
lembrou Fonseca (2002), o tratamento médico dedica-se ao cérebro ou à “sede
da demência” e faz demandas que são acolhidas por outros campos, em
especial pela Psicologia e pela Fonoaudiologia, mas sua direção não muda,
como procurei mostrar.

1.4. A clínica Fonoaudiológica nas demências: influência da


Neuropsicologia Cognitiva

As publicações sobre a eficácia da reabilitação fonoaudiológica com


pacientes demenciados é recente. Os primeiros trabalhos americanos vieram
em meados de 1980 (BOUGEOIS, HICKEY, 2009). Segundo o relatório técnico

42
da American Speech-Language-Hearing Association, a literatura não indicava
ou não visualizava possibilidades terapêuticas, antes de 1975, para quadros
progressivos, como a demência (ASHA, 2005). Na década de 70, testes
começaram a ser aplicados em pacientes com DTA. O National Institute on
Aging e o National Institutes of Mental Health iniciaram, no mesmo período,
estudos longitudinais para caracterizar as desordens cognitivas em diversos
tipos de demências. Note-se, já aqui, a referida “complementaridade” a que me
referi acima. Espelhados nos estudos da memória humana, fonoaudiólogos
buscavam demonstrar que os pacientes com DTA tinham prejuízo maior na
memória explícita (conceitos, palavras) e na memória de trabalho,
especialmente procedimentos motores. Reitero: nada de novo aparecia no
horizonte. Com base nos resultados previstos, os estudos concentraram-se em
propostas terapêuticas para compensar déficits em sistemas de memória
específicos. Por exemplo, tarefas de nomeação eram enfatizadas na
estimulação de pacientes em estágio inicial de DTA, quando a anomia é o
principal sintoma.
Somente em 1991, a American Speech-Language-Hearing Association
(ASHA) publicou um guia delimitando o papel do fonoaudiólogo junto a esses
pacientes. A versão mais recente desta publicação (ASHA, 2005) defini que o
fonoaudiólogo pode :
1. Identificar pessoas com risco de demência, a partir da incidência e
prevalência da demência;
2. Avaliar, selecionando abordagens diagnósticas para desordens
comunicativas;
3. Intervir de modo direto com os pacientes e de modo indireto com
cuidadores;
4. Aconselhar cuidadores sobre a natureza da demência e seu curso;
5. Colaborar com cuidadores e profissionais para estabelecer planos de
estratégias comunicativas;
6. Coordenar a equipe de profissionais e gerenciar um caso de demência;
7. Ensinar ou supervisionar outros fonoaudiólogos;
8. Defender serviços de atenção aos pacientes, como um perito;
9. Pesquisar problemas de comunicação e cognitivos nas demências

43
O fonoaudiólogo é, ainda, chamado a responder nas esferas da
prevenção19. Parte-se do pressuposto de que “ofertas estratégias cognitivas”
como o treino da memória, associada à vida social ativa sejam fontes
privilegiadas na prevenção de demências (BRUM et. al., 2009).
Quanto ao tratamento, afirma a ASHA, fonoaudiólogos americanos
discutem se a meta é a redução dos sintomas de memória, através estimulação
da linguagem, ou deve-se espera a estabilização dos déficits cognitivos. É
certo que a literatura sobre a eficácia dos programas de estimulação é
escassa. Pergunta-se: “há melhora do quadro cognitivo quando se espera o
avanço da doença”? O foco permanece, assim, dirigido para a elaboração dos
programas de estimulação e de uma melhor caracterização da população com
demência. Isso porque, acredita-se, a estimulação deve considerar o sistema
de memória mais preservado de acordo com o grau de severidade e tipo
clínico20.
Duas diretrizes são primordiais nesses programas de estimulação direta.
O programa de estimulação deve:
1. incidir nos sistemas de memória mais preservados, visando a
independência desses sistemas em relação aos outros deficitários. No caso da
DTA, valorizam-se os sistemas de memória implícita (memória de
procedimento, capacidade de condicionamento), que permanecem preservados
mesmo com o avanço da doença21.
2. A técnica comportamental de pareamento estímulo-resposta para
impedir erros – isso favorece, como se diz, engramas neurológicos mais fortes
para a resposta-alvo (CLARE et. al. 2000; ASHA, 2005).
Entende-se, então, que o trabalho do fonoaudiólogo seja o de estimular
a memória, já que ele é dirigido pela máxima: “estimular o cérebro com
atividades que exijam atenção, concentração e pensamento lógico, o que

19
Médicos indicam como fatores preventivos da DTA: bom nível educacional, tarefas que
demandam concentração e ativam o cérebro; atividades físicas, dietas ricas em vitamina E;
consumo moderado de vinho e café (BRYAN, MAXIM, 2006).
20
Além disso, deve-se calcular o prognóstico e definir se o paciente terá benefício com uma
intervenção direta. Considera-se para a intervenção direta aspectos como a respostas aos
sinais, habilidade para ler, conversar e seguir ordens simples. Em outra situação, o terapeuta
pode decidir por intervenções indiretas, ou seja, elabora planos direcionados aos cuidadores
para facilitar a comunicação e a rotina em casa (ASHA, 2005).
21
Com efeito, pacientes com DTA têm dificuldades para recordar eventos, mas conseguem
aprender novos comportamentos.

44
contribui para o aumento da densidade sináptica cerebral” (SOUZA e CHAVES,
2005, p. 15) – mesmo frente ao que propõe Vinson. Ela enfatiza a necessidade
de tratamento por uma equipe multidisciplinar em que, ao fonoaudiólogo,
caberia “maximizar a comunicação do paciente, ensinar estratégias para a
comunicação entre família e paciente, garantindo a rotina e monitorar as
mudanças comunicativas com o progresso da doença” (VINSON, 2001, p. 43).
Entendo que esta direção clínica, orientada por uma hipótese que dá
relevo à relação memória X linguagem X demência na Neuropsicologia - e que
é incorporada pela Fonoaudiologia – torna inespecífica a prática
fonoaudiológica porque ela recua a linguagem e o sujeito na doença, seja da
reflexão teórica, seja como da prática clínica. Assumida como domínio
dependente e externo (matéria observável) ela, a linguagem, perde
importância, assim como a ciência da linguagem22. Não é sem motivo, portanto,
que a comunicação ganha a cena nas propostas terapêuticas. Ali, a linguagem
é naturalizada ou, quando muito, reduzida a um código formal e estável.
Estratégias como “falar frases curtas”, “repetir palavras” são assumidos como
estímulos suficientes nesta clínica que tem escuta apenas para a doença e sua
progressão.
Pode-se dizer que “a queixa de dificuldade de memória” não chega a
ser, por isso, recolhida (pelo médico ou pelo fonoaudiólogo) – o paciente é
indivíduo como portador (ou não) de sinais da doença: mais decisivos são os
resultados dos testes neuropsicológicos. A relação sujeito-sintoma não
pressiona esta abordagem das demências: não há espaço, como procurei
mostrar, para o sujeito, nem para sua relação com a linguagem. A clínica perde
a chance de considerar os efeitos que a demência produz no falante e no
clínico e, com isso, de distinguir essa clínica de outras: o fonoaudiólogo, como
disse, fica aderido à noção de memória como fonte do sintoma na linguagem e
distante daquilo que deveria fundar sua prática.

22
Cabe mencionar a esse respeito que ela pode ser elevada a um estatuto mais digno de
“funcionamento autônomo” (como quiseram Saussure, Jakobson e Chomsky) e nesse caso, ela
não seria função do orgânico e/ou da cognição.

45
1.5. Sociedade, Memória e envelhecimento

Dedico este item a uma abordagem teórica que prestigia a linguagem, que
dá ênfase à sua face discursiva, social e que tem refletido sobre a relação entre
memória e linguagem e seus desdobramentos na demência. Esta abordagem
distingue-se da Neuropsicologia - embora mantenha a figura do sujeito
epistêmico, i.e., a cognição tem ali lugar e função – porque envolve o “discurso
social”. A memória aparece como uma função cognitiva, mas é construída no e
pelo discurso social - portanto, memória é construção social. Vejamos como o
outro faz, aqui, toda a diferença.
Parto, inicialmente do emblemático livro “Memória e Sociedade” de Ecléa
Bosi (1979/1994), da Psicologia Social, por ele partir especificamente das
“lembranças de velhos”, de narrativas orais. Interessa-nos pouco, nesta tese,
como a autora explora esse “trabalho de memória”. Destaco a relação teórica
entre memória e linguagem, quando um discurso social é invocado. Bosi
recolhe seus pressupostos nas reflexões do filósofo Bergson. Segundo a
autora, ele propõe um esquema de memória nada mecanicista, ou seja, desvia-
se do esquema percepção-ação, que remete ao arco-reflexo, na Neurologia.
Ele introduz outro, representado na relação imagem-cérebro-representação,
que sugere que os estímulos sensoriais não desencadeiam, necessariamente,
uma ação. As imagens, que os órgãos sensoriais enviam ao cérebro,
assumem, na consciência, a qualidade de signos (representações) e liberam o
pensamento. Assim, o sistema nervoso não é um simples condutor mecânico
de estímulos, diz a autora.
Bergson, diz Bosi, enfrenta o paradoxo do tempo e distingue a percepção
atual da lembrança. Assim, perceber e lembrar são fenômenos distintos, mas
as lembranças submersas participam da percepção no presente. Disso
decorre, sustenta o autor, que não há percepção sem
lembranças/representação. Bosi, a partir desta colocação do filósofo, afirma
que o passado é conservado na memória e atua no presente:

de um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de


que se vale muitas vezes, automaticamente, na sua ação sobre

46
as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos
mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças
independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas,
singulares, que constituem autênticas ressurreições do
passado (idem, ibidem, p. 48).

A aquisição da memória-hábito vem das exigências sociais, diz ela,


como dirigir um automóvel ou comer segundo as regras sociais. A memória-
lembrança vem de eventos específicos, singulares da história: é memória
“submersa” na consciência, denominada pelo filósofo como “inconsciente”23 –
como representação inconsciente. O sonho e a poesia são constituídos pela
memória-lembrança, diz Bergson. Bosi assinala que incluir esta memória
inconsciente nas considerações diferencia Bergson das vertentes psicológicas
racionalistas em que (como vimos) não se admite que algo pode estar “nas
sombras da consciência”. A consciência pode, de acordo com Bosi, “colher e
escolher” o que está no “infraconsciente” (BOSI, 1979/1994, p, 52).
A partir desse ponto de vista – que implica Freud, mas não o explicita -,
a autora propõe uma hipótese psicossocial, que trabalha a memória do idoso
como “presa” ou “perdida” em “redes de evocações espontâneas e distantes”
(idem, ibidem, p. 49). Bosi argumenta que a marginalização social do idoso
exige pouco da memória-hábito e resta para ele, portanto, a memória-
lembrança - a “memória-sonho”. Supõe-se que:

o velho típico já não aprenderia mais nada, pois sua vida


psicológica já estaria presa a hábitos adquiridos, inveterados;
e, em compensação, nos longos momentos de inação, poderia
perder-se nas imagens-lembrança”(idem, ibidem, p. 49).

A memória do idoso pouco ativo vira “pura evocação” - o que não


convence totalmente a autora. Aqui, ela se afasta de Bergson porque, segundo
diz, o filósofo não deu um “tratamento da memória como fenômeno social” -

23
Para Bergson, inconsciente é um adjetivo para a memória que está fora da consciência e,
portanto, em nada se assemelha ao substantivo “o Inconsciente” proposto por Freud, como
veremos no capítulo seguinte. A Psicologia tradicional exclui a atividade inconsciente dos fatos
psíquicos O termo “inconsciente” comparece em diversas acepções filosóficas. Assim, Freud
não inventou o termo, mas lhe deu outro sentido (KAUFMANN, 1993/1996, p. 264).

47
não tematizou a relação entre os sujeitos e as coisas lembradas. Para
preencher esse “vazio”, ela recorre ao sociólogo Halbwachs. A partir deste
acréscimo teórico, de acordo com ela, a memória do indivíduo fica subordinada
às representações sociais, dependente da relação do indivíduo com instituições
(família, escola, Igreja), dependente do que os pais e amigos contam para nós.
A vantagem desta proposta para Bosi é que: “Halbwachs amarra a memória da
pessoa à memória do grupo; e esta última à [...] memória coletiva de cada
sociedade” (idem, ibidem, p. 55).
O adulto jovem, diz Bosi, ocupa-se mais da vida prática e, portanto da
sua memória atual. Quando ele se volta às lembranças passadas, “vive um
momento de contemplação”, um devaneio em forma de sonho; já o idoso,
apartado da vida social ativa, fica restrito à lembrança e de “ser a memória da
família, do grupo, da instituição, da sociedade” (idem, ibidem, p. 63). Bosi
afirma que as narrativas orais de idosos (com ou sem patologias
degenerativas) realizam um trabalho de “refacção” da memória, que lhes
confere o lugar de lembrar.
Nota-se que esse passo na direção de Halbwachs introduz o discurso
sociológico nas considerações de Bosi e faz circular a ideia de que a memória
é constituída por representações de discursos sociais. Na interação como
outro, afirma ela, o idoso “colhe e escolhe a memória-lembrança” - ele lembra e
atualiza sua própria história. Para ela, memória e linguagem são funções
cognitivas dependentes e decorrentes do discurso social.

1.6. A Neurolinguística Discursiva: memória, linguagem e demência

A Neurolinguística Discursiva (ND) é uma área híbrida, constituída por


articulações teóricas advindas da Neuropsicologia (que prioriza o estudo das
funções cognitivas - como a memória) e da Linguística em sua vertente
discursiva, a partir de autores como Bakhtin, Maingueneu e Benveniste. Esta
perspectiva no Brasil foi empreendida por Maria Irma Hadler Coudry, no IEL-
UNICAMP, a partir do estudo com afásicos. A novidade foi introduzida pela
pesquisadora, inicialmente, com a crítica aos procedimentos avaliativos da

48
Neuropsicologia Experimental e, em seguida, com a proposição de um método
avaliativo dialógico. Nesta proposição, a avaliação passa a ser centrada nas
atividades epilinguísticas do sujeito (ação do falante sobre a fala). Deve-se
notar “os fatores que se conjugam na atribuição do sentido, as imagens que se
formam entre interlocutores, a dialogia que atua nos processos de significação”
(COUDRY, 1997, p. 10). Como assinala Tesser (2007), esse caminho,
aproximado ao pensamento bakhtiniano, “garante a sustentação de linguagem
como ‘interação verbal’ ou como ‘discurso social – essa concepção dá ênfase
ao significado/sentido e, na interação, à troca/trânsito de conteúdos entre
interlocutores” (idem, ibidem, p. 47).
Cruz, pesquisadora da ND, se dedica às demências, diz que
precisamente devido à confluência entre áreas: “a Neurolinguística é um lugar
privilegiado para pensar as relações linguagem-memória” (2004: 48) devido à
confluência dessas áreas.
A relação entre memória e linguagem assentada na significação.
Postula-se a existência de sistemas semióticos distintos: um linguístico e outro
não-linguístico (memória espacial, visual). Assume-se, diferentemente dos
aportes neuropsicológico e médico, acima apresentados, que a percepção é
sempre interpretada pela linguagem– ou seja, a recuperação de imagens
vividas é dependente da situação discursiva/social e sua significação (na linha
do que disse Bosi). Disso decorre que, como dizem Cruz (2004) e Beilke e
Novaes-Pinto (2007), a perda de memória está intrinsecamente relacionada à
perda de significação e das dificuldades nas interações sociais.
A metodologia da avaliação da linguagem dos pacientes afásicos e, mais
recentemente, dos doentes de Alzheimer, tem sido problematizada pela
Neurolinguística Discursiva. Autores têm criticado severamente a utilização de
testes metalinguísticos24 para avaliação da linguagem (COUDRY 1988,
NOGUCHI, 1997; NOVAES-PINTO, 1999, entre outros). Argumenta-se que,
neste tipo de avaliação estatística, a relação com o interlocutor e atividades
epilinguísticas (pausas, prolongamento, etc.) que organizam o discurso são
perdidas e que elas importam porque são estratégias utilizadas pelos pacientes
– são “caminhos enunciativos vicinais”. Segundo as autoras mencionadas, uma

24
Na primeira parte deste capítulo, introduzi as principais críticas enumeradas por autores que
compartilham as reflexões na Neurolinguística Discursiva.

49
situação dialógica presente na avaliação de linguagem poderá favorecer a
apreensão “dos processos subjacentes à produção dos enunciados” (NOVAES-
PINTO e BEILKE, 2008).
Novaes-Pinto (1999) criticou, com pertinência inequívoca, resultados de
provas de nomeação do Teste de Boston, em que os sujeitos avaliados
“erravam” devido aos testes utilizarem palavras de baixa frequência na língua
(por exemplo, aspargo, tripé) e, também, acrescenta ela, devido à qualidade
duvidosa dos desenhos. Novaes-pinto e Beilke (2008) analisaram, ainda, as
respostas de um sujeito (NB), com 82 anos de idade, com provável demência
de Alzheimer, num teste de categorização por demanda. A partir de pares de
palavras, como cachorro e gato, o paciente deveria responder com o
hiperônimo “animal”. Como o examinador não havia seguido fielmente as
recomendações do teste (ele deveria exemplificar a tarefa), os pares de
palavras apresentados deram margem às respostas mais complexas, amplas e
não esperadas. No par democracia x monarquia, aguardava-se “sistemas de
governo”. Entretanto, ele (NB) disse que “são regidas por déspotas” e que “são
meios de controlar as pessoas” (idem, ibidem, p. 113). A resposta do senhor
considerada “errada” mostra, na verdade, um sujeito politizado, como ressaltam
os autores.
A avaliação de linguagem nos moldes propostos por Novaes-Pinto, que
prestigia a interação, permite, sustenta a autora, a apreensão de oscilações
pragmático-discursivas, mesmo que discretas. Elas são frequentes no início da
DTA e que seriam dificilmente notadas nos testes. Beilke, Novaes-Pinto (2007)
afirmam que o processo dialógico favorece a lembrança. A resposta
“inadequada” de uma paciente com DTA é tomada como forte indicador dessa
afirmação. Segundo elas, a paciente (AC) diz ao investigador que, quando seu
marido morreu, após um acidente de carro, “ele estava sozinho”. A filha mostra
uma cicatriz no braço da mãe e pergunta “o que aconteceu?”. AC retoma a
história e “lembra-se” de que ela estava com o marido no momento do
acidente. Segundo os autores, o diálogo com a filha “de certa forma,
estabelece a relação entre um signo (não-verbal: a própria cicatriz e verbal: ao
enunciar cicatriz) e aquilo a que ele remete (NOVAES-PINTO, BEILKE, 2008,
p. 116). Quando analisam o diálogo entre investigador e (HL), uma senhora em
estágio mais avançado da doença, os autores concluíram:

50
No caso de HL, alterações podem ter já comprometido as
funções executivas mais complexas, que envolvam o
planejamento da ação e da própria linguagem, como, por
exemplo, o controle daquilo que pode ou não ser dito. O
enunciado em excesso, na situação inadequada, no momento
inadequado, seria um sinal de presença da doença (idem,
ibidem, p. 118).

De fato, a Neurolinguística Discursiva introduz uma novidade: a


avaliação qualitativa da fala de afásicos e, mais recentemente, de pessoas
demenciadas. Deve-se dizer que, no caso das demências, a avaliação que não
visa definir graus de déficits de memória – ela é discursiva e pragmática, como
se pode retirar da citação acima em que se fala em “situação inadequada”25 - e
“situação inadequada” pode nos conduzir para a questão das “falas vazias” e
da “referência externa” (LANDI, 2007), que a demência levanta.
Na citação acima, podemos entrever o que foi mencionado a respeito do
sujeito na Neurolinguística Discursiva: sem dúvida, ênfase é dada a processos
cognitivos e, portanto, em causa está o sujeito epistêmico (que planeja,
organiza o próprio discurso e o torna adaptado ao contexto) – na doença,
essas capacidades ficariam prejudicadas. Nesse enquadre, como assinala
Tesser26, a concepção de diálogo equivalente à de interação social: à
troca/trânsito de conteúdos entre interlocutores” (TESSER, 2007, p. 48) e,
nesse sentido, esta vertente discursiva, que, sem dúvida, valoriza a linguagem,
“não abala a sequência lesão cognição linguagem” (idem, ibidem, p.
52).
Cruz (2004) corrobora com as reflexões de Ecléa Bosi, apresentadas
acima, e reflete a partir daí sobre o acompanhamento terapêutico de pacientes
com afasias e demências, realizado no Centro de Convivências de Afásicos
(CCA) no IEL-UNICAMP. Cruz partilha a ideia de tomar a narrativa (espaço
atuação/observação de pacientes demenciados) como “ato de linguagem e ato

25
Novaes-Pinto e Beilke (2008) sublinham a ausência de prejuízos fonológicos, sintáticos e
semânticos na fala dos demenciados. Essas alterações são notadas com o avanço significativo
da doença.
26
Tesser (2007), a partir de seu posicionamento teórico na Clínica de Linguagem, discute a
noção de diálogo em sua dissertação de mestrado.

51
de memória” (CRUZ, 2004, p. 105). A narrativa: “parece ser uma interessante
forma de observação da relação entre linguagem e memória, pois coloca em
jogo também uma relação entre processos cognitivos e sociais” (idem, ibidem,
p. 106). Em síntese:

Podemos dizer que as narrativas e memórias não são apenas


descrições de eventos, mas são em si eventos, ações, atos de
significação e interpretação. A linguagem é nesse contexto um
lugar e uma prática de memória (CRUZ, 2004, p. 107).

Adianto que significação é palavra-chave determinante da concepção


sobre a relação memória e linguagem neste enquadre teórico. A ideia de
representação é central a aportes cognitivos – nesse sentido, poderíamos dizer
que o signo é a unidade mínima do discurso, como sustentou, por exemplo
Vygotsky27.
Este capítulo, que se procurou circunscrever as principais questões que
contornam o discurso atual e a clínica da demência, destacou uma tendência
hegemônica em que a memória e linguagem são duas instâncias
hierarquicamente relacionadas e ambas dependentes do acontecimento
cerebral:
LESÃO

COGNIÇÃO/MEMÓRIA

LINGUAGEM

Na Neuropsicologia Cognitiva, a dificuldade de estabelecer uma conexão


estável e previsível entre sede orgânica e declínio cognitivo revela os grandes
impasses diagnósticos, que abarcam desde a inclusão/exclusão da queixa do
idoso até a distinção entre o normal e o patológico. As avaliações são

27
Sobre isso, sugiro a leitura do primeiro capítulo de Lier-DeVitto (1998) e de De Lemos
(2002).

52
testagens padronizadas cujos resultados controlados recebem tratamento
estatístico – inferem-se daí as alterações de memória. Como vimos, os estudos
neuropsicológicos estão centrados em duas direções: (1) investigações que
comparam o desempenho cognitivo entre adultos jovens e idosos, cujos
resultados investigações afirmam que há declínio cognitivo no idoso, mas não
sustentam a explicação sobre qual processo ou módulo está prejudicado. E (2)
pesquisas que comparam atividades cognitivas entre idosos e sujeitos com
início de DTA na tentativa de estabelecer critérios que possam distinguir o
normal e o patológico. Espera-se encontrar um tipo de memória que se
deteriore de modo diferente na demência do que no envelhecimento dito
normal. A anomia comparece como exemplo maior de sinal inicial na DTA e
também está presente no envelhecimento. Como reconhecem os autores,
esses resultados são insuficientes porque inconclusivos e não sustentam,
portanto, a explicação sobre o funcionamento cognitivo subjacente. Também,
deixar-se guiar pelas afasias para compreender as demências não parece ser
um caminho seguro, uma vez que os acontecimentos na linguagem são
bastante diferentes, além do que, raramente se pode invocar perda de memória
para descrever as afasias. Lacan, por exemplo diz que “nas afasias, o sujeito
fica ao lado do que quer dizer” (LACAN, 1981, p. 250) – parece ser,
precisamente, este lugar de “estar ao lado do que quer dizer” que vai sendo
esvaziado nas demências.
A Neurolinguística Discursiva faz diferença nesse cenário, como procurei
mostrar, porque ela não só abandona e critica as avaliações médica e
neuropsicológicas de pessoas com afasias e demências, como também e
principalmente porque envolve fortemente uma teorização sobre a linguagem,
embora memória e linguagem fiquem subordinadas a processos cognitivos.
Reconhece-se, aí, a presença de autores soviéticos como fontes da discussão
(Vygotsky, Luria, Bahktin). Deles vem a noção de diálogo (interação social)
como espaço da significação, da negociação/troca de sentidos.
Esta direção, que envolve a concepção de linguagem como discurso,
marca, sem dúvida, toda a diferença entre abordagens clínicas médicas como
disse. Ela será diferente, também, da posição delineada pela Clínica de
Linguagem - filiação assumida nesta tese, que sublinha a importância da
“escuta para densidade significante” (LIER-DeVITTO, 1997, 2000 e outros). A

53
posição teórica e clínica que decorre da relevância dada ao significante em
falas sintomáticas nos levará a Saussure e à Psicanálise para trabalhar a
ideia de que linguagem não é função cognitiva e, portanto, nem a
memória. Em Freud, memória tem a ver com o aparelho psíquico, com o
Inconsciente, como procuro apresentar no capítulo 3. Sem ir a Bergson, eu
diria que este trabalho tem algo em comum com suas reflexões sobre memória
e sobre o tempo (do significante) - afinal pode-se escutar que algo de Freud e
de Saussure ressoa em suas considerações. Depois desse passo teórico que
problematiza a relação memória-linguagem, volto-me às questões clínicas
deste trabalho. No capítulo 3, uma aproximação à clínica sob o olhar da
Psicanálise será discutida e, no capítulo 4, apresento a Clínica de Linguagem
no acompanhamento de sujeitos demenciados.

54
Capítulo 2
Freud:
o aparelho de linguagem, o aparelho de memória

Freud, comprometido com a transmissão da Psicanálise, concedeu


importância às “artes da língua” não científicas – interesse diverso, portanto,
daquele que mobilizou os estudos da Gramática, da Filologia, da Retórica ou
de sua abordagem “em toda a cultura humanista de um modo geral” (MILNER,
2003, p. 143). Misteriosamente, também, Freud foi “indiferente” à ciência
linguística inaugura por Saussure, como destaca Milner (2003), que toma tal
indiferença “paradoxal”.
Ao mesmo tempo em que se possa considerar que a guerra tenha
afastado Freud da revolução no pensamento linguístico que ocorria na França
e em Praga, fato é que ele não se familiariza com o auge da Gramática
Comparada, que ocorria tão perto de seus olhos e em língua alemã.
Surpreende e é mesmo enigmático que um homem como ele, de interesses tão
amplos, tenha ignorado Saussure e os novos gramáticos que, como ele, têm
âncoras fortes nos mistérios da linguagem. Freud aproximou-se de “trabalhos
marginalizados” como os de K. Abel e da “ultrapassada filologia”. Desse modo,
a conexão teórica entre inconsciente e linguagem, na obra do fundador da
Psicanálise, é construída “na mais pura ignorância com relação à linguística”
(MILNER, 2010, online) - bem ao contrário do que acontecerá com Lacan, que
se aproxima de forma decidida da ciência da linguagem. Esta introdução
pareceu-me necessária, embora este trabalho não se detenha nesta diferença
de fundo entre o fundador da Psicanálise e seu maior leitor. Meu objetivo foi
marcar a diferença porque ela se fará sentir nas discussões que serão aqui
realizadas.
Neste capítulo, abordarei textos iniciais da obra freudiana, uma vez que
apresentam como psíquico um funcionamento concebido, primeiramente, tendo
a natureza de um aparelho de linguagem e, mais tarde, de um aparelho de
memória. Tendo em vista as questões desta tese, interessa-me de modo

55
particular a relação, presente desde a fundação da Psicanálise, entre memória
e linguagem.
O que retiro desta leitura é um argumento que dissolve a hierarquia
entre memória e linguagem, que é tão caro aos aportes cognitivistas, mas tão
problemático para um clínico de linguagem que tem que se haver com a
linguagem. È o que os pesquisadores (FONSECA, 1995, 2002; LANDI, 2000,
2007; MARCOLINO, 2004; CATRINI, 2005, 2011, TUMIATE, 2007;
GUADAGNOLI, 2007; TESSER, 2007, 2012, EMENDALI, 2010) filiados à
Clínica de linguagem tem assumido ao considerar “la langue” em “operação” na
fala afásica e do sujeito com demência. Disso decorre, que linguagem não é
função cognitiva e memória não é arquivo. As queixas de dificuldades de
memória e a dissolução subjetiva presentes nos casos com demência tem
indagado os pesquisadores (FONSECA,2011, 2012, LIER-DeVITTO,
FONSECA e LANDI, 2007, MARCOLINO e EMENDABILI, 2011) sobre o
acolhimento desses pacientes e a sustentação de uma terapêutica.
O argumento que procurarei sustentar neste trabalho ganha força com a
leitura de Freud, já que a linguagem e memória são postas lado a lado, sem
hierarquia. A memória é-feita de linguagem, o que tem consequências teóricas
e clínicas para a Clínica de Linguagem. A novidade freudiana, destacada neste
capítulo, não esconde sua afetação pela releitura que Lacan (1959-60/1995.),
no Seminário 7, A ética da Psicanálise. Apesar de o aparelho psíquico ter sido
concebido, inicialmente, como aparelho de linguagem e, depois como aparelho
de memória, não se pode dizer, como assinala Garcia Roza (1991), que sejam
aparelhos totalmente distintos ou contraditórios.

2.1. As afasias: o aparelho de linguagem

Na monografia “A Afasia” (1891/1979), Freud propõe o aparelho de


linguagem. A argumentação para leva à postulação deste aparelho nasce da
crítica ao localizacionismo, uma corrente da Neurologia, iniciada por Broca
(1861) e Wernicke (1874), a qual postula a existência de uma relação de
causalidade direta entre o local da lesão cerebral e o tipo de sintoma na

56
linguagem28. Freud faz uma guinada radical a esse respeito, aproxima-se de
Hughlings Jackson (1866,1878, 1881) – avesso ao localizacnismo - e também
do filósofo John Stuart Mill (1843) – que recusa a simplicidade da ideia de
causalidade direta. Freud redimensiona a noção de paralelismo psico-físico,
introduzida por Jackson, “serve à diluição teórica da causalidade cérebro
linguagem” (Fonseca, 2002, p. 53). O que caminha em paralelo não se toca:
uma linha não pode, logicamente, ser causa do que ocorre na outra – os
fenômenos são concomitantes, simultâneos, mas independentes – este é o
argumento de Jackson, sublinha a autora.
Freud fará uma torção importante nesse paralelismo, como veremos. Ela foi
propiciada, na interpretação de Fonseca, pelo olhar de Freud que transitava
entre a afasia e a histeria no final do século XIX. Se na afasia há lesão no
corpo e sintoma na fala; na histeria não há lesão, mas há sintoma no corpo.
Como sustentar, frente à histeria, que sintomas psíquicos sejam causados por
lesões orgânicas? O paralelismo psico-físico vinha a calhar, portanto, mas
modificado para que ele pudesse distinguir afasia e histeria. Freud dirá, em
1891, que os domínios psíquico e físico são paralelos, mas são concomitantes
dependentes. Há relação, mas ela não é propriamente de “causa” – uma lesão
no corpo não causa nada em domínios que lhes sejam heterogêneos, mas ela
pode afetá-los de formas e intensidades diferentes (e vice versa, como
mostram as histerias).
Em “A afasia” (1891/1979), a relação entre cérebro e linguagem é de
“concomitância dependente”, ou seja, cérebro e linguagem são domínios
heterogêneos e solidários, que se afetam mutuamente e, “dependentes”, já que
não há afasia sem lesão cerebral. O “concomitante” aproxima-se da
“simultaneidade” e não remete à causalidade direta e subordinação entre esses
domínios. O “choque traumático”, que Freud ressalta na histeria deve ser
referido à “relação simbólica” e, portanto “tem determinação subjetiva (e não
orgânica)”. É surpreendente a solução oferecida por Freud: o sintoma, seja na

28
Fonseca (2002, p. 28): [...] assinala que o discurso fundador dos dois autores mencionados,
(a) baseou-se na constatação empírica da associação entre dois acontecimentos: a lesão
cerebral e as perturbações na fala. Além disso, tal associação ocorre numa sucessão temporal
particular e regular: o acontecimento cerebral (evento antecedente) foi, por consequência,
assumido pelos médicos pesquisadores como a causa do sintoma na linguagem (evento
subsequente); (b) referendou experimentalmente (através da anátomo-patologia) o que já era
objeto de especulação: uma causa (neurológica) para as perturbações (perdas) na linguagem.

57
afasia, seja na histeria, decorrem do jogo simbólico (de associações). Desse
modo, é necessário concluir, com Fonseca, que:

Freud ficou mesmo “na oposição” (...) ele se insurge contra a


causalidade organismo-sintoma e destaca o corpo da
histérica do corpo orgânico. No segundo caso, o das afasias,
Freud insurge contra a causalidade mecânica lesão-sintoma e
destaca o “aparelho funcional da linguagem” daquilo que,
até então, era um “aparelho cortical da linguagem”. Dito de
outro modo, linguagem e corpo simbolizado são destacados
para serem teorizados (FONSECA, 2008, p. 346) (ênfases
minhas).

Temos, assim, que o corpo do homem é simbolizado e que a linguagem


é indissociável de dois sistemas mnésicos: o sistema de representação-palavra
e o sistema de representação-objeto. Dito de outro modo: o aparelho de
linguagem é desenhado como rede de associações que articula impressões
grafadas em sistemas de memória. Essa aproximação é notável já em 1891.
Ao escutar a fala afásica, Freud sustenta que a representação-palavra é
composta por “impressões” visuais, auditivas e cinestésicas. Trata-se da
associação da imagem acústica, da imagem visual e da motora de uma letra,
da imagem motora da fala, por exemplo – aí está o corpo frente à linguagem -
há uma rede que no corpo associa “impressões” da palavra. O significado viria
com o sistema de representação-objeto, este também composto por
“impressões” visuais, auditivas e táteis, que são reordenadas a cada nova
associação. Apesar de a representação-objeto não pertencer à linguagem (fala
e escrita), só há significado, sustenta Freud, na associação entre os dois
sistemas29.
Os distúrbios afásicos, patologias de linguagem, são explicados por
rupturas em cadeias nas cadeias associativas, ou seja, explicados por uma

29
A representação-palavra é um sistema fechado (ligado à linguagem) e distinto da
representação-objeto (que é aberto a novas impressões). A ligação entre os dois
sistemas é realizada via imagem acústica do sistema fechado (via representação-
palavra) e associações visuais do sistema aberto (representação-objeto).
58
anomalia no funcionamento do aparelho de linguagem, que é, como disse,
também um aparelho de memória – as redes associam impressões mnésicas
captadas pelos sentidos. Temos, então, que: (1) afasia verbal indica um
problema nas associações do sistema de representação-palavra; (2) afasia
assimbólica, uma perturbação entre a associação da representação-palavra e
representação-objeto; (3) agnósica, um problema no sistema de representação-
objeto (FONSECA, 2008, p. 345).
Devemos nos ater, nesse ponto, ao termo “representação” que, segundo
Le Gaufey (1997) não é definido ou especificado nos textos iniciais de Freud.
Apesar de “representação” pertencer ao vocabulário filosófico e psicológico – o
que equivale a dizer que o termo é carregado de conteúdo cognitivo 30 - Freud
faz um uso original deste termo, na medida em que ele ao acrescentar a
palavra “inconsciente” - ele fala em representações inconscientes – ele
produz um “paradoxo na junção desses dois termos” (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1982/2001, p. 449). De fato, este acréscimo subverte toda a
tradição filosófica contida na palavra “representação”. Os autores assinalam
ainda que ao falar em sistemas mnésicos, Freud dispersa a lembrança “em
séries associativas”. Ele suspende, desse modo, a relação percepção-
representação já que privilegia “associações” e não representações ligadas a
esta ou àquela qualidade sensorial31. Perde-se a relação um-a-um (objeto
sensível-representação), que garantia substância à memória, compreendida,
nesse enquadre como um espaço de estocagem. Ora, com redes associativas,
a importância recai sobre as associações – caminha-se na direção de uma
concepção “negativizada” de memória, de memória dessubstancializada. Essa
operação é realizada pelo aparelho de linguagem.
Fonseca (2008, p. 344) aproxima a originalidade freudiana da discussão
do filósofo Jonh Stuart Mill. Ela volta-se para a palavra “impressões” que
remetem “à aparência de uma coisa, ou seja, não se trata da coisa-em-si”.

30
Representação é, como assinala Ferrater Mora “vocabulário geral que pode referir-
se a diversos tipos de apreensão deu objeto (intencional)” (MORA, 2001, p. 629) –
traço comum que une esses sentidos (filosófico e psicológico) é sua remissão a
operações percepto-cognitivas. Representação liga-se à “reprodução de uma
percepção anterior” a “ato de pensamento” (idem, ibidem, p. 630).
31
Andrade (2003) discute, em profundidade, a relação percepção-representação-
comunicação, que ela destaca como relação necessária a um pensamento psicológico
(cognitivista).
59
“Impressão” é “traço mnésico” – resto de uma operação psíquica (e não
psicológica em sentido estrito), o que nos leva a reconhecer que traço não tem
essência. Notamos que a representação (impressões/traços visuais, táteis e
cinestésicas) possui, necessariamente, algum vínculo com a percepção, mas
tendo em vista a ideia de impressão, de traço, é imperativo dizer que ela é
faltosa, já que o resultado são “traços”. Importa repetir que Freud constrói um
aparelho de linguagem/memória que não possui relação direta com o mundo
externo e que, por isso, ressignifica o termo “representação” como procurei
indicar acima. Interessa dizer que essa operação teórica é viabilizada quando
Freud submete a memória ao aparelho de linguagem, quando aponta na
direção de que memória não é fruto de apreensão perceptiva, mas
dependente do jogo de associações realizado pela mecânica do aparelho de
linguagem.
Destaco a distinção entre os dois sistemas: representação-palavra e
representação-objeto. O significado decorre da relação entre os dois sistemas.
Parece que esse ponto nos leva ao o papel da linguagem como estrutura e
função32, conforme ela comparece em A interpretação dos sonhos (FREUD,
1900/2001).

2.2. O Projeto para uma Psicologia Científica: esboço de um


aparelho de memória

Essa tentativa de formulação hipotética se apresenta com um


caráter único no que nos resta escrito de Freud – e não se
deve esquecer que ele cansou dela e não quis publicá-la. [...]
Aqui, ele está conversando consigo mesmo, ou com Fliess, o
que, no caso, é a mesma coisa. Ele faz para si mesmo uma
representação provável, coerente, uma hipótese de trabalho
para responder a algo cuja dimensão se encontra, aqui,
mascarada, eludida. (LACAN, 1959-60/1995, p. 40) (ênfases
minha).

32
Retornarei esse ponto com a leitura de Lacan no próximo subitem.

60
O “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895) desdobra exatamente
os pontos mais obscuros da monografia: aborda a relação do aparelho
psíquico, um aparelho de memória, com a percepção e a consciência.
Desdobramento que dá, nesta obra, uma “concepção quantitativa” à
representação33 (LE GAUFEY, 1997) e fortalece a ideia de memória como
trilhamento, rompendo, assim, com toda a tradição filosófica, já que memória
adquire um caráter dinâmico (que justifica o termo “aparelho”).
Garcia-Roza (2004, p. 80) descreve O Projeto de 1895 como uma obra
“fundamentalmente hipotética”, como puro movimento de reflexão teórica (sem
experimentos ou observações). Não há ali, como pontuou o autor, qualquer
correspondência entre a anatomia e a “teoria neuronal” de Freud:

O Projeto não é (...) uma tentativa de explicação do


funcionamento do aparelho psíquico em bases anatômicas,
mas, ao contrário, implica uma recusa da anatomia e
neurologia da época, e a consequente elaboração de uma
“metapsicologia” (GARCIA-ROZA, 2004, p. 81).

Lacan (1959-60/1995), no seminário 7 - A ética da psicanálise, valoriza o


Projeto (Entwurf) ao reconhecer que as relações entre princípio do prazer e
princípio de realidade; entre processo primário e o processo secundário foram
construções teóricas emergentes nesta obra de Freud - é a novidade do
Projeto. Para Lacan, este trabalho de Freud “não é a pobre contribuiçãozinha a
uma fisiologia fantasista que ele comporta” (idem, ibidem, p. 50). É muito mais
do que isso – estão ali as inquietações de Freud que pulsam e impulsionam
elaborações que alicerçam a Psicanálise embrionária, como aquelas que
revolucionam a concepção de memória.
Como funciona, então, o “aparelho de memória”?
Temos, no Projeto, que o princípio da inércia é o ponto de partida de
seu funcionamento – ele estabelece que os neurônios devem livrar-se do
estímulo, quando afetados por uma quantidade de energia exógena (Q) 34. Para
isso, eles descarregam uma resposta com vistas cessação do estímulo. Esta

33
É a origem da “hipótese econômica”, de regulação quantitativa, para explicar os processos
psíquicos.
34
Q representa a quantidade de energia exógena e Qn é a quantidade de energia endógena.

61
seria a função primária do sistema: produzir um escoamento de excitação.
Há, portanto, fuga do estímulo, sendo esta a característica essencial da função
secundária. Freud não só supõe “esforço proporcional” entre a excitação e a
fuga do estímulo, como também indica a necessidade de se considerar o
registro mnêmico, que permite o reconhecimento da excitação. Importante
quanto a isso é que só pode haver fuga de estímulos externos. O sistema
“nervoso” não pode fugir de estímulos internos (como fome, sexualidade,
respiração) uma vez que eles representam exigências da vida – o sistema deve
garantir nível de energia para responder às exigências vitais. Vemos, assim,
que o sistema nervoso está sujeito à dupla pressão (deve administrar
estimulação endógena e exógena) – para isso, o sistema sai da inércia e
desencadeia ação específica para suportar e manter Qn em baixo nível. Aqui,
a eficiência da função secundária está diretamente ligada à possibilidade de
que certo nível de energia seja mantido, que decorre das resistências que se
opõem às descargas. As resistências funcionam como uma barreira de
contato, que, diz Freud, tem a vantagem de explicar a memória (cerne do
aparelho psíquico neste momento).

2.3. – O aparelho de memória: a representação de um funcionamento

Tendo em vista que após a excitação, o neurônio deva permanecer


inalterado para receber novas sensações, mas também que seu estado
anterior será necessariamente alterado, Freud cria (sem respeitar a Neurologia)
dois sistemas de neurônios: (a) o sistema de neurônios ϕ, permeáveis, que é
afetado pela excitação e deve a ela responder e (b) o sistema de neurônios Ψ,
impermeáveis, imutável e aberto para novas excitações. O que os distingue é a
permeabilidade da barreira de contato: no primeiro caso, a barreira de
contato não oferece resistência a Q (fonte exógena), permanecendo, assim, em
estado inalterado para receber novas sensações e, no segundo caso, a
barreira de contato é resistente o que promove alterações endógenas:
“representar a memória e, provavelmente, processos psíquicos em geral”
(FREUD, 1985/1977, p. 400). Esta distinção não tem base na Neurologia e nem

62
poderia ser justificada por ela – o aparelho de memória, esta subversão
verdadeira do pensamento neurológico, prepara o modelo de parelho psíquico
da Psicanálise, como admitem Lacan e Garcia-Roza, acima mencionados 35.
Freud propõe que os neurônios permeáveis ligam-se à percepção -
recebem Q mais intensa e, por isso, deixam Q fluir sem resistência e sem
qualquer tipo de registro. Os neurônios impermeáveis, por sua vez (que
recebem Qn – uma energia mais fraca – e, indiretamente Q) têm condições de
opor resistência ao estímulo endógeno nas barreias de contato (GARCIA-
ROZA, 1991, p. 210). Considere-se que o sistema Ψ, contudo, está sempre sob
tensão, já que a estimulação endógena é sempre constante e não cessa
(temos aí a gestação do que virá a ser o conceito de pulsão, que é central na
Psicanálise). Bem, o sistema ϕ que está ligado ao mundo externo pela
percepção, responde com uma ação motora, como prevê o modelo de arco-
reflexo na Neurologia. No entanto, em Freud, a relação perceptiva com o
mundo é complexa - não é “tudo” e nem “qualquer coisa” que entra no sistema
(ANDRADE, 2003) 36. Os órgãos sensoriais funcionam como filtros ao excesso
de estímulos contínuos do mundo externo. Assim, ele deixa passar algumas
impressões – “o que entra” depende das condições internas ao próprio sistema.
No início da vida, diz Freud, o bebê não tem condições motoras para
aliviar a estimulação endógena (como fome ou frio) - vive em estado de
desamparo. O choro como descarga motora não alivia a tensão do sistema Ψ
– o bebê precisa do outro para satisfazê-lo:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa


ação específica [reduzir a Q interna]. Ela se efetua por ajuda
alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada
para um estado infantil por descarga através da via de alteração
interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima

35
Uma parte do aparelho recebe novas sensações e outro produz a memória que nada tem de
estoque de imagens ou de informações. A memória é a alteração permanente do tecido
nervoso. A diferença entre os “neurônios” não está na sua natureza, mas na função que
desempenha – ela depende de como os neurônios respondem à estimulação (mais ligados ao
sistema ϕ ou ao sistema Ψ).
36
Andrade (2003) atenta ao fato sobre a existência do filtro no aparelho perceptual. A autora
retira que “há um movimento do ser vivo em relação ao meio que não é o mesmo para todos e,
portanto, a impossibilidade de se conceber o sistema perceptual como pré-formado/universal”
(idem, ibidem, p. 93).

63
função secundária da comunicação37, e o desamparo inicial dos
seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais
(FREUD, 1895/1977, p. 422).

Freud valoriza a fragilidade do sistema percepto-motor do bebê na


montagem do aparelho psíquico - fala em “desamparo” de que decorrem “todos
motivos morais” – cabe perguntar: “que Neurologia é esta?”. É nesse espaço –
o do desamparo – que Freud introduz a ideia de que a experiência de
satisfação leva: (1) à eliminação da tensão que causou o desprazer; (2) ao
investimento em um grupo de neurônios que promove a percepção do objeto;
(3) à facilitação da relação entre imagens mnêmicas. Frente a um novo
estímulo endógeno – à “urgência ou estado de desejo” (idem, ibidem, p. 424) -,
o sistema investe em representações da experiência de satisfação38, dando
margem à alucinação – estamos falando de representações da satisfação (e
não do objeto, propriamente dito). Disso decorre o problema da realidade e da
consciência. O sistema Ψ não consegue distinguir percepção e
representação – temos que falar, então, em realidade psíquica. É preciso
assinalar, aqui, a distância radical que esta postulação tem da Neurologia. É
bem isso que pontua Lacan (1959-60/1995, p. 40): “Freud oferece um aparelho
que é fadado ao engano porque afasta o sujeito da realidade”. Não é um
aparelho feito para “satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la” (idem,
ibidem, p. 40). Este fato justifica, acrescenta ele, a exigência de outro sistema
que possa “fazer correções” de forma que a realidade se apresente: o “Entwurf
[projeto] é a teoria de um aparelho neurônico em relação ao qual o organismo
permanece exterior, assim como o mundo exterior” (idem, ibidem: 62) (ênfases
minhas). Entende-se que nesse ambiente, “neurônios” não sejam “neurônios”
em sentido estrito, mas objetos teóricos modificados pela teorização freudiana.
Acompanhamos, assim, a dissolução do discurso organicista no Projeto de

37
Garcia-Roza (1991) sublinha que o outro não é mero cuidador. O choro, descarga motora
diante da Q interna, é demanda ao outro e, portanto, registro simbólico: é “importantíssima
função secundária da comunicação”, como disse Freud.
38
Le Gaufey (1997), ao discutir o termo representação (Vorstellung) no Projeto, enfatiza que o
investimento relacionado à percepção do objeto é denominado de “imagem de lembrança” que
pode ser amigável ou hostil. Essa “imagem de lembrança” refere-se ao objeto que existiu, o
que se distingue da representação. O autor nota que Freud só vai mencionar a representação
quando ocorre um novo estado de desejo e não há objeto real. O investimento é nas
representações, sem relação com a percepção e, portanto, tem autonomia para articular-se
com qualquer referente.

64
Freud. Passo claro nesta direção é a observação de que os sistemas ϕ e Ψ são
inconscientes – são inconscientes e quantitativos. Freud caminha e diz que a
“tomada de consciência” envolve uma questão de qualidade - na consciência
estabelecem-se relações de semelhanças e diferenças, relações, estas, que
não estão no mundo externo; ali: “só existem massas em movimento e nada
mais” (FREUD, 1895/1977, p. 410).
O sistema Ψ – aparelho de memória - deve diferenciar entre percepção
e representação. Freud explica que sensações conscientes são qualidades e
constituem um terceiro sistema: sistema ω ou sistema de percepção-
consciência. É este sistema que fornece signos de realidade (de qualidade)
para o sistema Ψ. A transformação de quantidade em qualidade decorre, em
Freud, da noção de período, retirada da Física Mecânica. “Período” seria o
ritmo do movimento que se propaga: é ciclo temporal não-quantitativo, mas
qualitativo. Esse ciclo ritmado se manifesta em sensações de prazer e
desprazer (quando há o aumento da energia no sistema Ψ, o sistema ω
sinaliza sensação de desprazer, por exemplo). Temos aqui, com a introdução
do sistema ω, considerações sobre a relação entre consciente (sistema ω) e
inconsciente (sistema Ψ), sendo este último, segundo Freud, regido pelo
princípio de prazer e o ω governado pelo princípio da realidade.
Resumidamente: energia exógena (Q) entra no sistema ϕ e, aciona a
operação da função primária, que produz descarga motora. Parte de Q é
também transferida para o sistema Ψ – este, como vimos, recolhe estímulos
endógenos contínuos (Qn) e um quantum de Q – necessita, então, reduzir essa
descarga dirigida a ele. A questão é que, cada Qn não tem, por si, força
(intensidade) suficiente para ultrapassar a resistência da barreira de contato. A
solução freudiana é que essa ultrapassagem é facilitada pelo mecanismo de
trilhamento39 - próprio da memoria -:

(...) em relação à passagem da excitação, a memória é


evidentemente uma das forças determinantes e

39
A palavra alemã Bahnung, traduzida por facilitation na versão inglesa, aparece no seminário
7 (LACAN, 1959-60/1995, p. 53) como trilhamento Sobre isso, ele diz: “[...] Bahnung é
traduzido em inglês por facilitation. É óbvio que essa palavra tem um alcance estritamente
oposto, Bahnung evoca a constituição de uma via de continuidade, uma cadeia, e penso até
que isso pode ser aproximado a cadeia significante [..] A tradução inglesa deixa a coisa
escorregar completamente”.

65
orientadoras de sua direção, e, se a facilitação fosse idêntica
em todos os sentidos, não seria possível explicar por que
motivo uma via teria preferência sobre outra (FREUD,
1895/1977, p. 401) (ênfase minha)

Pois bem, a soma das energias endógenas (Qn) é responsável pela


definição de uma trilha preferencial para a passagem da excitação de um
neurônio ao outro. Este movimento pode levar (ou não) à consciência. Após tal
ultrapassagem, as barreiras ficam resistentes novamente. Vemos aqui
esboçado um conceito que, mais tarde, será teorizado como “recalque”. Esse
trilhamento é regido pela lei de associação por simultaneidade (investimento
simultâneo de neurônios) – só com essa soma de esforços haverá
ultrapassagem da barreira através de um caminho em detrimento de outros. O
grupo de neurônios investidos - que organizam o trilhamento; interferem no
percurso e inibem a descarga de energia endógena (ligada a alguma
experiência de desprazer) - é denominado Ego. Na figura abaixo, Freud
desenha o trilhamento:

(FREUD, 1895/1977, p.429).

Qn (acima e á esquerda) excita o a, mas transfere apenas parte da


descarga ao neurônio b (abaixo). O grupo de neurônio ego altera o percurso de
descarga inicial – esse investimento simultâneo (ab) facilita a passagem pela
barreira de contato, mas, também, inibe o escoamento livre de descarga
(processo primário), funcionando como uma defesa. O caminho ab é facilitado,
evitando outras possibilidades. Freud qualifica o neurônio a com a coisa (Das

66
Ding) – que, assinala Lacan, não ser aproximada de representação-de-coisa40.
Com Freud, leia-se, na figura acima que o neurônio a é constante (um
elemento estranho, não representável pelo aparelho Ψ, diz KAUFMANN,
1993/1996, p. 85), e que o neurônio b (a representação) é variável.
O sistema ω, como vimos, indica signos de realidade ao Ψ. Ego pode,
por isso, receber sinais de prazer ou de desprazer. Tal suposição impõe,
segundo Freud, a necessidade de introduzir um mecanismo de atenção
psíquica, para manter o sistema Ψ voltado às percepções. Entende-se porque:
“não somente não é tudo que dá entrada no aparelho psíquico, como também
não é qualquer coisa” (ANDRADE, 2003, p. 93). De fato, Lacan (1959-
60/1995) afirma que o sistema ϕ não é um “amortecedor”, mas que tem “o
papel de um crivo” e retira disso a consequência de que:

(...) temos aqui, da mesma forma, a noção de profunda


subjetivação do mundo exterior - alguma coisa tria, criva de
tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo
menos no estado natural, espontâneo, de uma forma
profundamente escolhida. O homem lida com peças
escolhidas da realidade (idem, ibidem, p. 63) (ênfase minha).

A memória aparece no Projeto (como na Afasia) como repetição de


determinados caminhos facilitados por trilhamentos anteriores, que
estabelecem redes associativas. Memória, então, conclui Freud, é mecanismo
inconsciente que depende da intensidade da tensão e da frequência da
experiência. Ora, falar em memória enquanto “caminhos”, “redes
associativas”, em “mecanismo inconsciente” é afastar qualquer suposição de
memória como estocagem de sensações, eventos:

A memória é determinada por marcas mnêmicas que são


ordenadas pelo quantun de energia que ultrapassa a barreira.
É pela diferença entre os “caminhos” que a memória não é um

40
Lacan (1959-60/1995, p. 40) articula Das Ding com o princípio de realidade do sistema ω.
Das Ding está isolada da experiência do sujeito, está fora do significado, mas é a referência
para o mundo dos desejos – é o “Outro absoluto do sujeito”. No sistema Ψ, regulado pelo
princípio do prazer, Das Ding orienta o sujeito na busca do objeto, movimentando as
representações.

67
processo mecânico pontual, não é a reprodução sempre
idêntica de um traço imutável, mas um processo que implica
um diferencial de valor entre caminhos possíveis (GARCIA-
ROZA, 1991, p. 35).

Na Carta 52 que Freud escreve para Fliess, temos afirmação fortes e


mais precisas sobre a memória, que textualmente ali, pode ser “reordenada,
retranscrita”:

Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que


nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo
de estratificação: o material presente em forma de traços da
memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um
rearranjo segundo novas circunstâncias — a uma
retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a
respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se
faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários
tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de
indicações. Postulei a existência de um tipo parecido de
rearranjo (Afasia). (FREUD, 1896/1977, p. 317).

Assistimos um percurso que é iniciado com o aparelho de linguagem,


na Monografia (Afasia) e que culmina num aparelho de memoria (linguístico
em sua natureza de trilhamento) que vai sendo precisado e definido ao longo
da década de 1890. Certo, parece-me ser o fato de que não há propriamente
desvios da rota disparada em 1981, embora ela ganhe em detalhamento e em
volume de conceituação. Na carta 52, por exemplo, Freud enuncia que o
material psíquico é representado por traços de memória, dando um passo a
mais em relação aos dois trabalhos anteriores em que ele operava sobre
“representações”, “imagens mnêmicas” ou “imagem de lembrança”. Para
Lacan, esse desdobramento foi da maior relevância, uma vez que a noção de
“retranscrição” de traços mnêmicos, permite que ele diga que a percepção é
inscrita: “não simplesmente em termos de impressão, mas no sentido de algo
que constitui signo e que é da ordem da escrita. [....] A estrutura da
experiência acumulada reside aí e permanece aí escrita” (LACAN, 1959-
60/1995, p.67) (ênfase minha).

68
2.4. O Inconsciente freudiano: condensação e deslocamento

Em A interpretação dos sonhos (1900), obra inaugural da Psicanálise,


nada se lê sobre “neurônios”. De fato, este termo não participa mais do
discurso que é articulado por Freud na explicitação do aparelho psíquico. A
noção de regressão que é central nesta obra está ausente do modelo
organicista do arco reflexo, que Freud utilizará para explicar sua mobilidade,
que envolve a questão da memória, como podemos visualizar no esquema
abaixo:

(FREUD, 1900/2001, p. 521)

Vemos que o sistema perceptual dá entrada à excitação que vem do


externo. Aliás, isso desde o Projeto. Nele, Freud diz, como vimos, que : “os
órgãos sensoriais são um filtro” uma vez que o sistema não suportaria o
excesso de estimulação do mundo externo. Também, há resistência imposta
pelo vivo.
Desde o projeto, já existia a ideia de uma tópica psíquica sobre a forma
de um funcionamento articulado. Na Interpretação dos sonhos, temos
efetivamente a primeira tópica freudiana: o inconsciente (um sistema isolado e
fechado), o pré-consciente que, também, se separa do sistema consciente. Na
separação, opera a primeira censura entre os sistemas inconsciente (Ics) e pré-
consciente (Pcs); e, ainda, uma segunda censura, menos rigorosa que a
primeira, opera entre os sistemas pré-consciente (Pcs) e consciente (Cs).
Neste último caso, o material latente está “sempre suscetível de se tornar
consciente” (KAUFMANN, 1993/1996, p. 265).

69
O que se vê, nesta obra, é um ponto de vista dinâmico, tópico e
econômico que marcam a coesão e persistência do trabalho que anima o
funcionamento psíquico. No que concerne às demências, interessa que essa
coesão e persistência do trabalho psíquico favorece, como diz Kaufmann “a
apreensão dos múltiplos destinos das representações psíquicas: giros
progressivos, desvios regressivos, impasses e repetições, transformações”
(idem, ibidem, p. 265).
Pelo sistema perceptual passam, como vimos, impressões, que incidem
nos sistemas Mnem – são traços mnêmicos: “à função como eles se
relacionam damos o nome de memória” (idem, ibidem, p. 518). Quer dizer,
memória, aqui, esvazia-se de substância já que o “conteúdo” compõe-se de
traços. Ou seja, ela é relacionada a movimento, a operação de articulação
entre traços, como lemos na citação de Freud. A palavra-chave é mesmo
“associação”:

A associação consistiria, assim, no fato de que, em decorrência


de uma diminuição das resistências e do estabelecimento das
vias de facilitação, a excitação é mais prontamente transmitida
de um primeiro elemento Mnem. para um segundo do que para
um terceiro (FREUD, 1900/2001, p. 519).

Assim, temos que o sistema perceptual (Pcpt) é “desprovido da


capacidade de reter modificações e, portanto, sem memória” (idem, ibidem, p.
520) - a excitação que atinge o Pcpt é filtrada41 e o que passa, chega aos
sistemas Mnem. “Lembranças” podem atingir à consciência (ou não), diz Freud.
Elas, contudo, produzem efeitos mesmo em estados inconscientes; afinal,
argumenta Freud, “as impressões que causaram mais efeitos em nós são as de
nossa primeira infância e precisamente as que nunca se tornam conscientes”
(idem, ibidem, p. 519).
Complexidade é acrescentada sistema de memória já que um plural é
acrescentado a “sistema” – Freud fala em sistemas Mnen e atribui a eles

41
Andrade lembra que Freud fala em “colisão” entre excitação externa e sistema perceptual do
aparelho psíquico – colisão indica resistência à estimulação que atinge o aparelho – resistência
que é imposta pela e “vivência de um sujeito”. Assim, conclui a autora, filtro significa que “não é
tudo que entra e nem é qualquer coisa” (ANDRADE, 2003, p. 93).

70
funções: registro, associação e retranscrição do mesmo material perceptivo
transmitido. Na extremidade motora, está o sistema pré-consciente (Pcs), cuja
função é despertar a ação voluntária na consciência. O material do sistema
Inconsciente (Ics) só chega à consciência através do pré-consciente. Nesse
caso, ao ser submetido ao pré-consciente, o material inconsciente é submetido
à censura psíquica (idem, ibidem, p. 521). Freud retira, assim, toda a potência
excessiva conferida até então à consciência, que é apenas a ponta de um
iceberg, como veremos. Freud desfaz, com isso, também a antítese entre vida
consciente e vida onírica. Convém assinalar que pensamento inconsciente é
“tão ativo durante o dia quanto à noite” (idem, ibidem, p. 585) – sendo os
sonhos a expressão maior dessa afirmação. A diferença entre dia e noite
(vigília e sonho), diz Freud, é que desejos são barrados pela censura durante
o dia e parecem vencê-la nos sonhos – sabemos que “sonhos são realização
de desejo” (FREUD, 1900/2001) e que são produzidos pelo sistema Ics.
Sonhos são como alucinações porque neles imperam um processo de
regressão enunciado como operação própria do aparelho psíquico:

A única maneira pela qual podemos descrever o que acontece


nos sonhos alucinatórios é dizendo que a excitação se move
em direção retrocedente. Em vez de se propagar para a
extremidade motora do aparelho, ela se movimenta no sentido
da extremidade sensorial e, por fim, atinge o sistema
perceptivo. Se descrevermos como “progressiva” a direção
tomada pelos processos psíquicos que brotam do inconsciente
durante a vida de vigília, poderemos dizer que os sonhos têm
um caráter “regressivo” (FREUD, 1900/2001, p. 522) (ênfases
minhas).

O movimento de regressão decompõe os pensamentos oníricos -


“transforma e figura pensamentos em função de transferências de intensidade
do desejo inconsciente” (KAUFMANN, 1993/1996, p. 414); por efeito seja da
resistência ao acesso à consciência, seja pela atração exercida pelas
lembranças sensoriais, que “puxam” a excitação no sentido inverso daquele
“progressivo”. Sonhos são enigmáticos precisamente por essa razão – não são
respostas adaptativas e nem tampouco reduzidos ao fenômeno mecânico da
71
atividade sensorial. Freud diz que “o sonho alucina”, ou seja, que as
representações são alucinações - imagens visuais e auditivas, o que dá ao
sonhador o caráter de uma experiência verdadeira (KAUFMANN, 1993/1996, p.
116). Nesse ponto, cabe assinalar que o sujeito alucina no período avançado
da demência, o que deixa ver um estado em que o sistema percepção-
consciência no estado do sonho.
Em O Inconsciente (1915/2006, p. 28), Freud mantém o aparelho
psíquico representado pelos aspectos dinâmico, econômico e tópico,
funcionando “com dois ou três sistemas”: Inconsciente (Ics) e Consciente/Pré
Consciente (Cs/Pcs)42. Entretanto, os mecanismos de Recalque e Pulsão são
destacados como operações internas ao aparelho psíquico, produzindo
modificações teóricas. Mesmo assim, neste texto, a primeira tópica persiste.
Freud afirma que representantes pulsionais43 (e não representações)
formam o núcleo do Ics. Ele esclarece que seu objetivo é sempre buscar a
satisfação do desejo: “No Ics, tudo o que podemos encontrar são conteúdos
preenchidos com cargas de investimento que podem ser mais ou menos
intensas” (FREUD, 1915/2006, p. 37). Cargas de investimentos são
movimentadas por condensação e deslocamento – elas se deslocam e se
apropriam de uma representação (ou de outra). Por condensação, “uma única
representação pode traduzir diversas cadeias de pensamentos que lhe estão
associadas” (KAUFFMAN, 1993/1996, p. 91) e, por deslocamento,
representações passam daquelas mais investidas para outras menos
investidas: “desliza por caminhos associativos” (LAPLANCHE e PONTALIS,
1982/2001, p. 116). Esses processos são atemporais e próprios do sistema Ics
e característicos, portanto, do processo psíquico primário em que impera
unicamente a realidade psíquica.
No sistema Pcs/Cs domina o processo secundário, que submete
materiais psíquicos à censura (a censura separa os sistemas Ics e Pcs)44 e à

42
Freud não decide sobre se Pcs e C devam ser compreendidos com 1 ou 2 sistemas.
43
A essência da pulsão é pressão (Drang), força constante que não cessa e, a meta é a
satisfação. O objeto da pulsão é aquilo que se articula a ela para atingir o alvo e, desse modo,
é o elemento mais variável. Cabe ressaltar que o objeto não é algo externo no mundo. O
objeto, na psicanálise, é sempre uma representação.
44
A censura impede, desse modo, que materiais e processos inconscientes cheguem ao Pcs
sem sofrer transformações.

72
ordenação cronológica, uma vez que é regido, também, pelo “princípio de
realidade”:

Ao sistema Pcs cabe viabilizar o trânsito entre os conteúdos


das ideias, de modo que elas possam comunicar-se e
influenciar-se mutuamente; também é sua tarefa inserir uma
ordem temporal nos conteúdos ideacionais, introduzir uma
censura ou várias censuras e submeter tais conteúdos ao
teste de realidade e ao princípio de realidade (FREUD,
1915/2006, p. 39) (ênfases minhas).

Interessa assinalar que o sistema Pcs/Cs (ao estilo do sistema Pct) não
tem nenhum tipo de registro, de memória, ele é: “apenas um órgão sensorial
para a percepção de qualidades psíquicas” (FREUD, 1915/2001, p. 587). Em A
interpretação dos sonhos, Freud afirma que no estado de vigília, a consciência
recebe excitação do sistema sensorial, além das excitações internas de prazer-
desprazer. Freud não deixa, contudo, o sistema Pcs/Cs dependente das
relações de prazer e desprazer ao afirmar que ele se liga ao “sistema
mnêmico dos signos linguísticos” (lembranças verbais) (idem, ibidem, p.
551). Os pensamentos adquirem qualidades especiais porque associam-se a
“lembranças verbais” e “atraem a atenção da consciência” (idem, ibidem, p.
589). Em O inconsciente, Freud qualifica o sistema Pcs como conhecimento
consciente – “um certo saber sobre o sujeito e seu mundo pessoal” que,
embora não-conscientes, têm ligação com o sistema consciente. (LAPLANCHE
e PONTALIS, 1982/2001, p. 351).
Lembranças verbais “atraem a atenção da consciência”, diz Freud, mas
esse não é bem o que ocorre nas demências. Lembranças perdem o estatuto
de “lembranças”, em estados avançados da doença. Antes disso, a insistente
repetição de “algumas lembranças” parecem ter a função de sustentá-lo em
sua história – naquela que ele construiu para si – elas assumem ares de
âncoras subjetivas que vão gradativamente perdendo eficácia - ainda que uma
fala, que não é qualquer, persista)45.
Ao final de “O Inconsciente”, Freud desenvolve considerações sobre
representação-palavra e representação-objeto, que tiveram suas raízes na
monografia A Afasia. Em O Inconsciente (FREUD, 1915), a representação-
45
Esta questão será retomada nos capítulos 3 e 4.

73
objeto subdivide-se em representação-de-palavra e representação-de-coisa
para diferenciar consciente do inconsciente:

Uma representação [vorstellung] consciente abrange a


representação-de-coisa [sachvorstellung] acrescida da
representação-de-palavra [wortvorstellung] correspondente, ao
passo que a representação inconsciente é somente a
representação-de-coisa [sachvorstellung]. O sistema Ics
contém investimentos e carga referente à coisa [sache] que faz
parte do objeto (FREUD, 1915/2006, p. 49).

Assim, no Ics só há investimentos na representação-de-coisa, ou seja,


em “traços de lembranças que estão mais distantes” (idem, ibidem, p. 49). Já
no Pcs, as representações-de-coisa estão vinculadas às representações-de-
palavra (que também afetam o sistema Pct), que pode ou não chegar à
consciência. As representações-de-coisa não chegam por si à consciência
porque, diz Freud, elas não são dotadas de qualidades: “só se tornam
palpáveis por meio das palavras” (idem, ibidem, p. 50)46. Interessa-nos que,
segundo Freud, só tenhamos alguma apreensão do que pensamos quando
falamos. Talvez se possa encontrar, por aí, uma saída explicativa para a
tendência ao silêncio dos pacientes com a progressão da doença.
Em 1923, no artigo “o Eu e o Id”, Freud resclarece que a verdadeira
distinção entre a representação Ics e a representação Pcs é a conexão com as
representações-de-palavra. Assim, o material desconhecido do Ics só pode
tornar Pcs quando conectado às representações-de-palavra. Ele ressalta, ainda
que as representações-de-palavra são “restos-de-lembranças que antes já
foram percepções e podem, tal como outros restos-de-lembranças, voltar a se
tornarem conscientes” (FREUD, 1923/2006, p. 33). Como consequência, ele

46
Como disse antes, neste trabalho, não se tratam de tipos diferentes de representações. Não
se pode entender, tampouco, que as representações-de-palavra estão em outro registro (Pcs).
Segundo Laplanche e Pontalis (1982/2001, p. 450), o termo representação-de-coisa está bem
próximo ao “traço mnésico”. È um investimento que associa os traços inscritos, ou seja, “não é
em si mesmo nada além do que a inscrição do acontecimento”. As representações de palavras
dizem respeito à verbalização e consciência. È a passagem do processo primário ao
secundário. Contudo, não são variações de traços mnésicos, como se fossem tipos diferentes
de representações. Isso porque, Freud observou que, na esquizofrenia, a representação-de-
palavra pode ser tratada como representação-de-coisa, ou ainda, as frases pronunciadas no
estado de vigília sofrem condensação e deslocamento na construção dos sonhos, como
representação-de-coisa.

74
afirma: “somente pode se tornar consciente aquilo que já foi uma percepção Cs
[excetos os sentimentos]” (idem, ibidem, p. 33).
Este ponto é de grande peso teórico. Lacan reconhece que Freud
inaugura, desde o início da teorização, “com certa dificuldade”, a linguagem
como estrutura e função - “[...] um impasse que o próprio Freud ressalta e que
se explica pelo estado da linguística em sua época” (LACAN, 1959-60/1995, p.
60). Andrade sublinha bem este ponto, ao dizer que:

A dessubstancialização do material perceptual – traços “sem


qualidade sensorial particular” - aliada ao lançamento desses
traços a um permanente movimento associativo, leva Freud a
descobrir “o funcionamento dos símbolos como tal”, como
assinalou Lacan no Seminário II (ANDRADE, 2003, p. 101).

Recolhemos, de fato, em Freud, que no inconsciente, esse movimento


associativo opera por deslocamento e condensação, como a própria
estrutura da linguagem (pela via da metáfora e metonímia). O sistema PCs, por
sua vez, tem estreita relação com a representação verbal e, portanto, com a
linguagem como função (articular cadeia). O sujeito, quando muito, pode ter
alguma apreensão do pensamento nos sinais articulados da fala:

Ele [Freud] compreendeu admiravelmente e formulou a


distinção a ser feita entre a operação da linguagem como
função, ou seja, no momento em que ela se articula e
desempenha, com efeito, um papel essencial no pré-
consciente, e a estrutura da linguagem, segundo a qual
elementos colocados em jogo no inconsciente se ordenam
(LACAN, 1959-60/1995, p. 60).

Neste ponto, vemos com maior clareza, que o funcionamento psíquico é


memória governada por uma estrutura de linguagem. Linguagem não é
memória – Freud não autoriza esta leitura – mas é certo que esses domínios
são “concomitantes dependentes” para utilizar uma expressão do próprio Freud
em A afasia (quando ele ressignifica o paralelismo psicofísico de Jackson).

75
Vimos que representação-de-coisa e representação-de-palavra
caracterizam o material Pcs e que esse material é aquele que ali chega
“autorizado” pela censura – esse mecanismo responde pelo jogo entre lembrar
e esquecer, que é tão importante para um entendimento das demências. Freud
nos diz que, na vigília, quando lembramos sonhos, estamos frente ao “poder da
censura psíquica” - por isso, rapidamente os esquecemos ou aquilo que deles
resta como lembrança são “substituições falsas”. Esse mecanismo de lembrar-
esquecer sonhos na memória consciente está implicado, acrescenta ele, em
esquecimentos de outros atos psíquicos (idem, ibidem, p. 503). Como no
trabalho dos sonhos, eles são regidos pelas operações de deslocamento e
condensação.
Convém dizer que a primeira tópica freudiana (Ics e Pcs/Cs) foi
ressignificada, a partir de 1920. Assim, novas distinções tópicas (Id ou Isso,
ego ou Eu e superego ou supereu) foram introduzidas e o Ics, o Pcs e o Cs
“são assim integrados nessas três instâncias” (KAUFMANN, 1993/1996, p.
266). Na primeira tópica, o Ics tem sua origem no recalcamento, o que define a
cisão entre Ics e Pcs/Cs. O material “latente”, capaz de se tornar consciente,
pertence ao sistema Pcs e, o material incapaz de se tornar consciente compõe
o Ics (FREUD, 1923/2006). Já na segunda tópica, essa separação é diluída e
as “instâncias” são interpenetráveis (LAPANCHE e PONTALIS, 1982/2001, p.
221).
Freud reconhece, em 1923, no artigo “o Eu e o Id”, que algo passa à
consciência e é capaz de produzir um mal-estar, mas o sujeito “não saberia
nomeá-la e nem apontá-la” (idem, ibidem, p. 31). Esse reconhecimento leva
Freud a afirmar que uma parte do Eu47 só pode ser Ics. Disso decorre, ainda,
que “nem todo Ics é recalcado” (idem, ibidem, p. 32). Com certas distinções, o
Isso, da segunda tópica, é equivalente ao Ics da primeira tópica. O Isso é
“reservatório de energia psíquica” (idem, ibidem, p. 219). Entretanto, aplica-se
a ele também o recalcado, uma parte profunda do Eu (inconsciente e não mais
latente como no Pcs) e o supereu, herdeiro do Complexo de Édipo. “Assim se
perfila uma dimensão de inconsciente nova. Esse inconsciente, nem apenas

47
Neste texto, Freud afirma que o Eu é a força coesa de todos os processos psíquicos. O Eu,
diz ele, controla a motricidade e percepção e, por isso, tem a consciência atada a ele.
“Também desse Eu que procedem os recalques” (FREUD, 1923/2006, p. 31).

76
recalcado, nem apenas latente, perde de certo modo seu valor de instância”
(KAUFMANN, 1993/1996, p. 266).
A consciência, na primeira tópica – o sistema ω no Projeto e, depois o
Pcs/Cs, em 1915. – é um sistema autônomo. O Eu, na segunda tópica, engloba
as funções do Pcs, em sua maior parte. Entretanto, “o Eu, e é este o ponto que
Freud mais insiste, é e grande parte inconsciente [...] que se comporta
exatamente como o recalcado” (LAPANCHE e PONTALIS, 1982/2001, p. 133).
Ao Eu atribui-se variadas funções, como controle da motilidade e da
percepção, prova de realidade, ordenação temporal dos processos mentais,
defesa contra as pulsões. Ou seja, é um mediador que “está submetido a uma
tríplice servidão, e é por isso mesmo ameaçado por três espécies de perigo: o
que provém do mundo exterior, o da libido do Id, e o da severidade do
superego” (idem, ibidem: 134). O superego48 é uma parte do Eu e assume o
valor de juiz para o sujeito, ou seja, o ideal do eu para o sujeito (KAUFMANN,
1993/1996), renunciando, assim, aos destinos das pulsões.
Uma nova dimensão de inconsciente que não modifica a relação
memória-linguagem que vimos até agora. A virada está no advento do “não-
sabido” à consciência e a fragilidade de se estabelecer dois sistemas (Ics e Cs)
(KAUFMANN, 1993/1996). O passo seguinte, dado por Lacan, foi introduzir o
sujeito sem aniquiliar esse “não-sabido”. Por isso, ele fala em “sujeito do
inconsciente” ao invés de “eu do inconsciente”. Assim, para o “eu que fala, o
sujeito do inconsciente é um ele e não um eu”. (idem, ibidem, p. 502).
Até este ponto, acompanhamos como Freud vai arquitetando a relação
memória-linguagem como “concomitantes dependentes” e suspende o
dualismo que embase as propostas cognitivistas. Tendo em vista a
interrogação que esta tese levanta sobre falas em pessoas com demências um
passo a mais em Freud faz-se necessário no que diz respeito aos mecanismo
lembrar-esquecer.

48
O superego ou supereu nasce com a introdução do narcisismo e está determinado pelo
declínio do Complexo de Édipo (KAUFMAN, 1993/1996).

77
2.5. Lembrar e Esquecer

Esquecimentos das palavras, lapsos entre outras ocorrências


inesperadas na fala (ou na escrita) foram privilegiadas por serem, segundo
Freud, manifestações do inconsciente. Interessa-nos a explicação freudiana
para os esquecimentos de palavras, de cadeias, de cenas, que são tão
marcantes nas demências (e que não deixam se acontecer com falantes ditos
normais). Em Psicopatologia da vida cotidiana (1901), esquecer nomes,
pessoas, objetos recebem a mesma explicação. Nos três primeiros capítulos,
Freud aborda os esquecimentos de nomes próprios, de palavras estrangeiras e
de grupos de palavras – problemas que são designados, na Afasiologia e nos
estudos sobre a demência, como anomia. A anomia é, sem dúvida, um sinal
frequente no período inicial da demência.
Há motivo para o esquecimento, ou seja, há determinação psíquica para
sua ocorrência. Freud assegura, por exemplo, que o nome próprio esquecido
tem sempre relação com uma questão “íntima”. Uma “força psíquica”, diz ele,
produz “falta na fala” (e/ou na escrita), de forma não muito diversa das que
ocorrem em situações de “cansaço, intoxicação e distúrbios da circulação”
em que “a força psíquica rouba meu acesso a nomes próprios pertencentes à
minha memória” (FREUD, 1901/1977, p. 42). Frente a tais considerações,
pode-se dizer que as manifestações de lapsos ou chistes não sejam muito
distintas de manifestações linguísticas entendidas como patológicas – casos de
afasias e demências, que são favorecidas por “distúrbios de circulação”. De
fato, com Freud, é um só mecanismo que explica o normal e o patológico, que
dilui, portanto, essa divisão.
É conhecida e exemplar a explicação que Freud oferece para um
esquecimento de nome próprio: Signorelli, nome de um pintor italiano é
esquecido por ele. Operações fônicas deslocam o nome esquecido para
Botticelli e Boltraffio – havia motivo psíquico para ele ser reprimido. Freud diz:
“eu não desejava esquecer, na verdade, o nome do artista de Orvieto, mas sim
outra coisa – essa outra coisa, contudo, conseguiu situar-se numa
conexão associativa com o nome” (FREUD, 1901/1977, p. 22) (ênfase
minha). Nesse caso, o nome esquecido faz conexão com o tema reprimido

78
(morte e sexualidade) e os segmentos dos nomes Bósnia, Trafoi e
Herzegovina (que estão em Botticelli; Boltrafio e Signorelii, que escamoteia
Herr numa tradução por Signor)49. Vejamos o diagrama abaixo:

Os nomes foram, diz Freud, “manipulados como imagens de um texto”


(idem, ibidem, p. 24).
Esse tipo de análise também é viável, acrescenta ele, mesmo quando
não se tem falsos nomes (substitutos) na consciência – sua presença ou
ausência, associadas ao esquecimento, não é relevante para a explicação
deste fenômeno. Contudo,

existem condições necessárias para se esquecer um nome [...]:


(1) certa predisposição para esquecer o nome, (2) um processo
de supressão realizado pouco antes, (3) a possibilidade de se
estabelecer uma associação externa entre o nome em questão
e o elemento previamente suprimido” (FREUD, idem, ibidem, p.
24).

Em (1) temos o motivo (desejo e força psíquica); em (2) a repressão de


algo que passou para a consciência um pouco antes do esquecimento e em (3)
a associação do material psíquico (interno) ao outro sistema consciência-
percepção, que produz um elemento novo (pensamento, palavras, o tema do

49
Lacan, em várias passagens de seus seminários, reinterpreta o lapso de Freud. No
seminário 5, Lacan sugere que o significante recalcado não é Signor, mas é Sign, o nome
próprio de Freud.

79
diálogo). O esquecimento de grupo de palavras, ou sequências não foge a tal
mecanismo. Freud conclui:

Empreendi desde então várias outras análises de casos de


esquecimento ou reprodução errônea de uma sequencia de
palavras, e o coincidente resultado dessas investigações
inclinou-me a supor que o mecanismo de esquecimento (...)
tem validade quase universal. [...] O comum a todos esses
casos, independentemente do material, é o fato de o
esquecido ou distorcido estabelecer uma ligação, por
alguma via associativa, com um conteúdo de pensamento
inconsciente (FREUD, 1901/1977, p. 41).

Pois bem, para Freud essa via associativa é impulsionada “graças à


semelhança no som ou à equivalência sonora” (idem, ibidem, p. 54). Freud
observa, em de A interpretação dos sonhos, que as contaminações e
substituições sonoras nos lapsos de fala são determinadas pelo trabalho de
condensação (como na construção dos sonhos). Com base em inúmeras
interpretações de lapsos de fala50, ele afirma que aquelas distorções podem
ocorrer por influência de sons antecipatórios, perseverantes; por afetação de
palavras que se queria falar, por frases contraditórias que estavam na
consciência, ou, ainda, por contaminação de palavras ditas pelo interlocutor.
A “falha da memória” manifesta-se na fala, na escrita e também no corpo
(em atividades motoras como “equívocos na ação”). Apesar disso e da
heterogeneidade aparente dos esquecimentos, Freud insiste em dizer que há
uma “unidade interna [a esse] campo de fenômenos” (idem, ibidem, p. 201) –
pontuação que é do maior interesse para este trabalho que procura fazer um
giro no entendimento do que acontece nas demências e busca um caminho
que não se não reduza o sujeito a mero efeito da doença cerebral, como se ele
não tivesse uma história, como se esse acontecimento cerebral não
produzisse, nele, sofrimento.
Acompanha-se o movimento de Freud na elaboração do aparelho
psíquico, como um aparelho de linguagem e um aparelho de memória. Desde
50
Os exemplos utilizados por Freud são retirados da literatura, especialmente do trabalho de
Meringer e Mayer, e também da fala de colegas, pacientes e da própria fala.

80
os textos pré psicanalíticos, não há desvio de caminho: rompe-se com o
dualismo memória e linguagem sustentado pela psicologia. Explode-se a
relação entre domínios heterogêneos e independentes. Entretanto, isso não
significa que memória e linguagem sejam equivalentes na obra freudiana.
Então, qual é a natureza dessa relação?
Em A afasia (1891/1979), o aparelho de linguagem é uma rede que
associa “impressões mnêmicas” – um funcionamento de linguagem operando
nos sistemas de memória. O referente, o encontro com a realidade, ocorre na
associação entre o sistema de representação-de-palavra e representação-de-
coisa.
Interessante é que aquilo que nos chega à consciência-percepção está
articulado à cadeia linguística. As representações-de-palavras são restos-de-
lembranças acústicas, visuais e cinestésicas e, portanto são restos das cenas
linguísticas. Nesse ponto, essas lembranças são constituídas pela linguagem
e, portanto, memória é determinada pelo simbólico. Ainda assim, reconhecer o
jogo simbólico não nos permite sustentar que memória é linguagem.
Freud submete a memória ao funcionamento do aparelho – a memória é
trilhamento - e põe em jogo a dupla função da linguagem, como assinalou
Lacan (1959-60/1995). Assim, admite-se que o inconsciente tem propriedade
de estrutura, como a linguagem e, também se dá ao encontro do sujeito com a
realidade, como função comunicativa.
A partir da segunda tópica, a cisão entre dois sistemas Ics e Cs está
diluída e, portanto, o aparelho psíquico não é Um – é tomado pelo
recalcamento, por uma parte do Eu – o não-sabido- e do Supereu. O “Id é o
caos”, sem organização, como sublinhou Freud (1923/2006, p. 36). Como disse
Garcia-Roza (1991, p. 227): “é apenas por economia expositiva que falamos
em ‘um aparelho de linguagem’, ‘um aparelho psíquico’, etc. Um aparelho
psíquico nunca é um”.
No que concerne às demências, dois pontos merecem ser destacados
para os próximos capítulos:
(1) O que chega à consciência foi autorizado pela censura. Desse modo,
lembrar e esquecer são determinados pela censura. Os distúrbios de
circulação, com ocorre com as afasias e as demências vasculares,
favorecem a anomia, mas não eliminam a explicação de um

81
determinante psíquico para a falta de um nome na fala. O que essa
determinação psíquica significa para uma Clínica de Linguagem?
(2) A memória consciente está intimamente relacionada à representação
verbal. Assim, o que o sujeito lembra precisa articular-se à cadeia
linguística. Essa passagem à consciência orienta o sujeito no mundo,
um encontro com a realidade. È exatamente esse ponto que dissolve
com a demência.

82
Capítulo 3

A senhora Lili:
um olhar psicanalítico sobre as demências

Elegi o relato de uma experiência clínica, descrita na literatura, que abre


caminho para a discussão que circunscreve a tese deste trabalho, que visa a
uma clínica movimentada por um viés de sujeito e linguagem, i.e., uma clínica
distante das apostas médicas e neuropsicológicas sobre as demências e seu
51
tratamento. Parto de A pessoa idosa não existe, de Messy (1993) , em que o
autor (psicanalista) faz um relato de trinta sessões do atendimento de uma
senhora - “Lili”, no Centro Dia52, na França. Este tratamento foi realizado,
também, por Jacqueline Périssé-Fichot, uma arte-terapeuta.
Messy diz do objetivo do relato: “quisemos refazer a história desse caso
como o vivenciamos, com a inocência dos iniciantes e a ignorância dos
exploradores” (idem, ibidem, p. 51). Mesmo que este trabalho represente, de
fato, a primeira tentativa de discussão de clínica com pessoas com “problemas
de memória”53, não se pode deixar de valorizar o discurso que, por efeito da
clínica, pode inscrever a demência em um espaço de atendimento que envolve
mecanismos subjetivos. Sobre esta sua “vivência”, Messy afirma que:

Em quinze anos de experiência não encontrei ainda a doença


travestida com o rótulo de ‘doença de Alzheimer’ com ou sem o
adereço ‘tipo’, cuja história não se escorra num fato existencial
que tenha revelado ou causado um estado depressivo. Entre
os acontecimentos patológicos encontramos, as perdas

51
Emendabili (2010) discute o trabalho de Messy (1993), apresentando os principais pontos
teóricos. Concentro-me no relato de caso para discutir a direção de tratamento implementado.
Entretanto, para melhor leitura, retomo algumas reflexões teóricas do autor.
52
Messy (1993) descreve, em anexo, o funcionamento de um centro de atendimento diurno
para idosos, especialmente para aqueles que perderam algum tipo de autonomia. Segundo o
autor, é um lugar de criatividade caracterizado pelas oficinas artísticas; um lugar de encontro
para familiares e profissionais adquirem experiências em lidar com os idosos demenciados; um
lugar de escuta oferecido pelas equipes especializadas.
53
Trabalhos contemporâneos sobre velhice e demência (do final década de 90 em diante), no
campo da Psicanálise, são todos tributários deste primeiro gesto de Messy. No Brasil, por
exemplo, temos Mucida (2004 e 2009) e Goldfarb (2004), por exemplo.

83
clássicas: desemprego, aposentadoria, falecimento de uma
pessoa próxima, deslocamento do lugar em que se vive,
hospitalização e todo trauma afetivo que abra uma ferida
narcísica (MESSY, 1993, p. 84).

Sem negar o declínio biológico no envelhecimento ou a incidência da


lesão cerebral na demência, uma hipótese psicogênica é levantada: o trabalho
de elaboração das perdas no envelhecimento pode sucumbir ao quadro
patológico – este é o ponto. Inovador, no texto de Messy, é a inclusão da
importância de escuta para as elaborações do sujeito apesar do
envelhecimento e da “perda de memória”. De fato, como afirma Ememdabili, os
autores afastam-se das “vertentes médicas, psicológicas e psicossociais sobre
o envelhecimento e as demências e abrem espaço para uma posição
propriamente clínica” (EMENDABILI, 2010, p. 44). Uma posição que interessa
para as reflexões sobre a Clínica da Linguagem. Além disso, Messy mobiliza
alguns conceitos freudianos, abordados no capítulo anterior. Isso nos permite
assistir como eles são movimentados para dizer a clínica.

3.1. O atendimento de Lili

Segundo o autor, Lili, aos 68 anos, foi encaminhada pelo hospital


Salpêtrière, para o Centro de Atendimento de pessoas com diagnóstico de
doença de Alzheimer, logo após o falecimento de seu marido. Os encontros
clínicos - “trabalho relacional” - ocorriam entre a idosa, Messy e Jacqueline e
eram iniciados pela rotina: a paciente pegava seu tapete para deitar e iniciar
uma série de relaxamento (o objetivo declarado era melhorar os sintomas
corporais, como a rigidez presente nos quadros degenerativos). Em seguida,
Lili pintava em folha de papel com “verbalização livre” (idem, ibidem, p. 51). No
relato, nota-se que a rotina inicial de deitar no tapete para relaxamento passa
por oscilações – a paciente esquece do tapete e hesita quando recebe a
instrução para buscá-lo; em outra sessão, fica sentada no tapete como os
terapeutas; na 11ª. sessão, o autor nota que “claramente Lili demonstra quenão

84
deseja se deitar” (idem, ibidem, p. 61). Diferente disso, era a insistência nos
desenhos e comentários que os acompanhavam – aconteciam
sistematicamente no estilo de uma narrativa. A segunda parte desses
encontros era, sem dúvida, mais significativa para Lili, que queria falar, através
dos seus desenhos, já que estava silenciada ou com uma fala pouco
encadeada.
Antes desses encontros no Centro Dia, Lili havia sido atendida pela arte-
terapeuta – ela era uma referência e um lugar de identificação, diz Messy. Por
exemplo, na 7ª. sessão, ela olha para suas unhas curtas e diz que prefere as
compridas de Jacqueline. Na 30ª. sessão, depois de ter perdido peso (para
grande preocupação da filha e do médico), a paciente diz que decidiu
emagrecer para ficar parecida com Jacqueline: “ser delgada como ela”. A
entrada, nesses encontros, de um terceiro (o psicanalista, um homem) foi
relacionada, por Messy, às três cores (ou três formas) que sempre apareciam
nos desenhos de Lili. Na primeira sessão, após pintar seu desenho, ela diz:
“vejo vocês dois, eu estou por fora” (idem, ibidem, p. 54). Sobre isso, diz
Messy, que toma (diz ele) a insistência do “três” como significante: “estar por
fora, é também não estar sabendo das coisas ou é fantasma da união entre
J.P-F e J. M., da qual ela está excluída” (idem, ibidem, p. 54).
No prólogo, Périssé-Fichot faz a observação de que os desenhos da
paciente eram marcados por linhas retas (referidas a “masculino”) e curvas
(referidas a “feminino”). Frente aos desenhos seguidos das evocações
“enigmáticas” da paciente, ela pergunta:

O que é que Lili podia perceber do outro, masculino?


- um pai morto na guerra, e que não conheceu;
- um irmão mais moço, filho de um homem que nunca viu;
- um marido de que jamais pode se “aproximar”
E de outro lado:
- uma mãe que a envolve e a chama de Lili
- uma filha única que é em tudo a criticada, sem que ela saiba
por quê.
(PÉRISSEÉ-FICHOT, 1993, p. 53).

85
Essa foi a interpretação que os clínicos escutara. A idosa falava pouco,
estava “sem palavras”, diz Messy, mas ela “compreendia o sentido das
palavras” (idem, ibidem, p. 85-86): respondia com o corpo e também oralmente,
com certa pertinência. Certo dia, todos os profissionais do Centro estavam
aflitos com a ausência de uma paciente. Quando a “ausente” chega, Lili foi a
primeira a indicar (para a surpresa de todos) que a senhora havia chegado,
conta Messy. Lili fazia comentários sobre os desenhos, apresentava falas
soltas, ou dizia palavras. Os terapeutas recolhiam estes enunciados da
paciente e faziam relações deles com sua história passada e atual. Messy, por
exemplo, articula a morte do marido à interrupção das lembranças – “hipótese
psicogênica”, que o autor sustenta para a demência. Ele descreve a 4 a. sessão:

Após a sessão de pintura fica muito tempo de pé, sem responder


ao nosso convite para se sentar, dizendo porém: “vocês estão
sabendo, se há algo que não está bem, devem me dizer”.
Relembra sua vida no campo, o marido doente, e mais nada:
“Parou”. Conta também que encontrou algo no fundo do armário:
“Está bom”. O quê? [...] Depois disso, todas as lembranças
sobre a doença do marido se interromperão justamente no dia
de sua morte. Fica desse corte, dessa ausência, sua entrada
numa patologia diagnosticada como “doença de Alzheimer”.
(idem, ibidem, p. 56).

Messy chama a atenção para insistente repetição do “mesmo tema” nas


sessões. A idosa parece “presa” à doença e à morte do marido, bem como aos
deslocamentos textuais para mortes dos homens na família. Sobre a doença do
marido, ela dizia “não posso tocá-lo” (uma enfermeira cuidava dele) – Lili faz
menção a uma cena em que a enfermeira fechou a porta do quarto para cuidar
de seu marido; Lili diz que sempre “ficava fora”54. Um enunciado solto aparece
em outra sessão: a paciente, ligada ao significante “três”, faz um traço
ondulante entre outros dois traços e diz: “está atravessado”. Messy, como
disse, liga a insistência do “três” à configuração clínica instalada – “um casal”

54
Note-se a relação deste enunciado com a questão, mencionada acima, sobre a insistência
do três” nos desenhos e no enunciado de uma das sessões, “vejo vocês dois, eu estou por
fora”.

86
de terapeutas e a paciente (identificada com J.P-F). Essa configuração
fantasmática nos leva, ainda na minha interpretação, às cenas de cuidados do
marido doente – havia um outro (a enfermeira) que a empurrava para a
posição de “terceiro excluído”. De fato, algo atravessa, separa; “fica
atravessado”.
Messy relata que, na 9a sessão, Lili desenha 5 linhas verticais – duas
linhas rosas à direita, duas linhas verdes à esquerda e uma linha verde ao meio
do papel. Ela diz “é uma serpente” e traz lembranças da “serpente sem
cabeça”, fantasia que a amedrontava quando criança. Tratava-se de uma
serpente e de uma louca que corriam atrás dela e de dois amigos. Messy retira
daí a relação da paciente com a própria doença; “a loucura que a persegue”
(idem, ibidem, p. 60).
O autor fala de um trabalho clínico que “põe em ordem”, que dá certa
unidade (imaginária) ao sujeito. Messy assinala que os terapeutas escutam
uma história no que Lili diz. Eles instigam Lili a falar ou a desenhar e, assim,
esclarece o autor, procura-se dar um “banho de palavras” (MESSY, 1993, p.
87). Contudo, o autor nada diz sobre as suas interpretações. Não se chega a
saber nada sobre as intervenções dos terapeutas e, desse modo, como Lili foi
afetada pelas decisões e interpretações dos terapeutas, que ao que parece,
tendem a ser da ordem da “interpretação simbólica”, que Freud opõe à do
“deciframento” (Freud, 1900/2001)55. Esse ponto parece-me importante porque,
como veremos, ela é mais da ordem do imaginário – quem sabe, um efeito da
“perda de memória” sobre o clínico.
Depois de serem evocadas lembranças dos homens mortos na família
(pai, tio, marido), Lili não parou de desenhar na sessão. Messy sobre a
profissão do marido e ela não sabe – nem a do pai que, quando mencionado,
traz o enunciado “está morto”. O pai morreu quando a paciente era menina.
Messy interpreta a resposta “está morto” para a pergunta sobre sua profissão
como resposta a uma vivência traumática (o pai morto quando ela era

55
Tal interpretação (de sonhos) “leva em consideração o conteúdo onírico e trata de substituí-
lo por outro conteúdo compreensível, e em alguns aspectos, análogo” (FREUD, 1900/2001, p.
118). O método da “interpretação por deciframento”, este assumido por Freud, “trata o sonho
como uma escrita cifrada em que cada signo traduz-se, a partir de uma chave-fixa, em outro
significado conhecido” (idem, ibidem, p. 119). Por tratar-se de uma cifragem, de um enigma -
não há significado dado, prévio, e, portanto, possibilidade de substituição por outro significado
que lhe seria análogo - a direção da interpretação é outra, portanto, no deciframento.

87
pequena). Ele conclui que “não há incoerência nessas evocações, apenas uma
ausência de palavras, parecendo uma linguagem perdida” (idem, ibidem, p.
59). Messy aposta que “faltam palavras” para a paciente responder. Ou seja,
no esquecimento da palavra referente a profissão, ela responde com a
vivência.
De fato, “não há incoerência” interna na jogada retroativa da memória
que “pai” evoca – um tanto abalada está a referência externa, como discutiu
Landi (2007). É esse abalo que, como efeito, deixa o efeito de “a linguagem
perdida”. A “linguagem perdida” dizem, efetivamente, do efeito que a fala da Lili
produziu no psicanalista. Acontece que, sob esse efeito, ele dirá que há
“ausência de palavras” – não me parece ser isso que está em questão: por que
supor que uma resposta diferente da esperada para uma pergunta
corresponderia a “um falta”? Parece-me mais plausível dizer que as palavras
que afloraram foram retiradas de uma rede associativa, de um trilhamento
singular imposto por “pai” (e não pela profissão).
No retorno das férias, Lili depara-se com a saída próxima de Jacqueline
do Centro de Atendimento. A partir daí, ela não desenha mais três cores.
Apesar de “trabalho de despedida” realizado, em palavras de Messy, a idosa
fica mais agressiva com outros profissionais, emagrece e fica hospitalizada por
10 dias. Depois de seis meses do afastamento da arte-terapeuta, a filha da
paciente, “esgotada pelos cuidados com a mãe”56 e vendo seu casamento
ameaçado, “precipita-se”, diz Messy. Ela deixa Lili numa casa de repouso.
Após institucionalização, o quadro da paciente piorou significativamente 57.
Messy fala da “inconstância” da Lili em casa e de sua deteriorização na casa
de repouso: [...] “como não se perder, se além de tudo, não se deseja estar aí?”
(idem, ibidem, p. 88).
Após o desfecho desse caso, o autor comenta:

Trabalhamos sem levar em conta a idade de Lili, nem seu


diagnóstico, mais ainda, nós o refutávamos [...]. Foi possível

56
A filha conta que a mãe havia piorado muito e que, por exemplo, estava evacuando em
folhas de papel que guardava em armários.
57
É bem conhecida e discutida a “queda do sujeito” em instituições de longa permanência.
Para uma discussão aprofundada sobre os efeitos subjetivos da institucionalização, ver
DUDAS (2009); GOFFMANN (2004); FOUCAULT (1926/1984).

88
contar com o apoio da transferência estabelecida com
Jacqueline Pérrissé-Fichot, em especial [...]. A partida de J.P-F
fez Lili imergir de novo no luto, já que o anterior não havia sido
elaborado [...]. A inexperiência, o isolamento e as resistências
familiares contribuíram para seu fracasso. (idem, ibidem, p.
78) (ênfase minha).

É bem verdade que o atendimento de pessoas com demência envolve,


necessariamente, a família – uma condição para a manutenção do tratamento.
Nisso, a clínica (seja ela psicanalítica ou de linguagem) aproxima-se da clínica
com crianças. No caso de demências, como o sujeito vai, aos poucos, “fugindo
do outro”, a família parece jogar um importante papel para que um
tratamento/acompanhamento seja viabilizado58.
Messy escreve que a maioria dos pacientes com problemas de memória,
após o início do tratamento e do estabelecimento de uma relação transferencial
com o terapeuta, não deixa de “compreender as palavras” que lhes são
endereçadas e de responder, muitas vezes, com o corpo. Apesar da
degeneração cerebral, assinala ele, há momentos de “coerência verbal” e de
uma “presença atenta” (ainda que “flutuante”). Lili, diz ele, não se perdia para
chegar, sozinha, ao Centro de Atendimento, mas era inconstante quanto a
voltar ao prédio em que morava. Ele continua: algo sustentava Lili no
atendimento e na relação com os terapeutas. Esse “algo” ultrapassava a
própria demência. Talvez se possa dizer que Lili recuperasse ali, com eles,
uma posição que favorecia um encontro entre referência externa e interna que,
mesmo que fugaz, “driblava” a demência. Messy faz valer uma interpretação
nada trivial a partir do que recolhe da presença e da fala da paciente. Sobre a
fala de Lili, que não se sustenta numa posição de narrador: o psicanalista pode
retirar uma história dos enunciados “soltos” e enigmáticos da paciente por
“haver vida psíquica com seus conflitos comuns, no plano do sujeito.” (idem,
ibidem, p. 63).

58
O termo “acompanhamento” é veiculado na Neurolinguística Discursiva que propõe um modo
de atendimentos a afásicos. Refiro-me ao “acompanhamento” conforme ressignificado por
Fonseca (2012) - como veremos no capítulo seguinte. Também ali, considerações sobre a
transferência na Clínica de Linguagem serão tecidas, ainda que esse ponto não seja o foco
deste trabalho.

89
Messy levanta a hipótese do “espelho quebrado” para caracterizar a
velhice. Ele compreende a demência como tensão do ego e desinvestimento
do objeto59. Vejamos: a entrada na velhice gera uma tensão existencial. O eu,
diz ele, não se reconhece sua imagem no espelho (um ego feiura, que antecipa
a morte). Dito de outro modo, frente ao espelho (o Outro), o corpo fica
fragmentado, o “espelho está quebrado” (idem, ibidem, p. 9). A percepção
antecipada dessa fragmentação pode produzir, como efeito, angústia. É o Real
que incide e o Simbólico60, diz Messy, acaba organizando o que é
aterrorizador. Em alguns casos, porém, pode acontecer uma precipitação: “do
indivíduo na patologia, e até na morte, pela volta da agressão contra si mesmo”
(MESSY, 1993, p. 26). Para um grande número de sujeitos, acrescenta o autor,
o tempo do “espelho quebrado” fica circunscrito a um período depressivo,
motivado pela perda da imagem ideal. O que se tem, é que, embora
socialmente marginalizado, o idoso tem desejo e pode elaborar suas perdas 61.
Mas, qualquer declínio motor; social - ou uma lesão cerebral - pode representar
uma perda insuportável e empurrar o sujeito para a patologia, de maneira
desproporcional à degeneração cerebral.
Na demência, propõe o autor, o Simbólico não pode se ligar Imaginário e
é, por isso, que as palavras são perdidas, mas não toda a linguagem. Perde-
se, diz Messy, a “representação pré-consciente” (nos termos da primeira tópica
de freudiana). Com esta afirmação, Messy procura aproximar memória e
linguagem: o paciente demenciado “perde a memória das palavras”. Para o
autor, ele se lembra dos fatos, mas “faltam-lhes as palavras” e o paciente fica
à mercê da representação-de-coisa, afasta-se da realidade – “à maneira do
esquizofrênico ou do sonho” (idem, ibidem, p. 85). Cabe apontar que a reflexão
sobre a fala dos pacientes com demência encaminhada na Clínica de
Linguagem percorre outra direção. Na demência, não faltam palavras. Isso
porque, o sujeito não está fora das referências internas da língua. O que se

59
Emendabili (2010) assinala que perda não é déficit - ela não pode ser quantificada: “trata-se
de perda da possibilidade do sujeito para lidar com o objeto investido. “Perda” remete, segundo
Messy, ao desaparecimento desse objeto” (idem, ibidem, p. 47).
60
A hipótese psicogênica do autor para abordar o envelhecimento e a demência está centrada
na primeira e segunda tópica freudiana. Entretanto, os termos lacanianos Real, Simbólico e
Imaginário fazem certa pressão.
61
Desse comentário de Messy, parece decorrer o título do livro de Mucida (2004): O sujeito
não envelhece.

90
dissolve é o encontro entre referência interna e referência externa (LANDI,
2007; EMENDABILI, 2010).
Messy conclui que, no limite, esses sujeitos fecham-se no mutismo e
rompem, definitivamente, a relação com o outro e com as pressões externas:
Demência é “doente sem pré-consciente” (idem, ibidem, p. 87).
Para o psicanalista, a demência decorre da:
(1) Ruptura do sistema representação-palavra. Tem-se, diz ele, um
sujeito sem Pcs. Entretanto, representação de palavra é, em seu
texto, reduzida à “memória da palavra”.
(2) O retrocesso da memória é relacionado à “falta de palavras”: o sujeito
“lembra-se dos fatos, mas faltam-lhe as palavras”, diz Messy. Nesse
caso, memória é espaço de armazenamento de palavras. Por isso é
que na demência haveria problema de “acesso lexical”.
Desde a monografia A Afasia (FREUD, 1891/1979), representação-
palavra diz respeito a “impressões” ou a “traços” visuais, auditivos e
cinestésicos e, portanto, não a vocabulário, palavra62. De fato, o que chega ao
pré-consciente está intrinsecamente relacionado à representação verbal.
Entretanto, essa passagem, como vimos, ocorre no encontro entre a
representação-palavra e a representação-de-coisa – um efeito de operação do
aparelho da linguagem. Messy não considera, de forma determinada, a rede
associativa a que esquecimento ou anomia deveriam ser remetidos, ou seja, à
lógica do funcionamento do aparelho.
Assumir, como faz o autor, que o sujeito recorre à representação-de-
coisa por haver deteriorização do sistema representação-palavra não procede,
a meu ver, do texto freudiano. Como, pergunto, seria admitir que o sujeito
possa, sem palavras, “lembra-se dos fatos”? Retira-se de Freud que a
representação-de-coisa não retém qualidades e, caso não seja articulada à
cadeia linguística pela fala, não se pode ter qualquer apreensão do
pensamento. Desse modo, “lembrança de fatos” só pode corresponder a efeito
do encontro entre os dois sistemas e não da dissolução dessa relação – o
significado decorre desse encontro.

62
O que seria “lembrança de fatos” quando a representação-de-coisa é um resto da
experiência? Não há essência do objeto em Freud.

91
Parece-me que, ao longo do desenvolvimento da doença, o encontro
entre representação-palavra e representação-de-coisa, nos termos freudianos,
é abalado e pacientes tendem ao mutismo – o que tornam insondáveis as
lembranças. Antes do esgotamento das “lembranças” e do silenciamento, i.e.,
antes do desencontro entre linguagem e mundo, a experiência clínica tem
mostrado que os pacientes repetem, insistem, em “algumas lembranças”. No
caso Lili, Messy recorta a repetição do significante “três” (nos desenhos e nos
relatos das mortes dos homens da família) – ele se destaca das lembranças,
que ficam nele condensadas, sugere ele. As lembranças estão lá, aderidas a
este significante, mas encobertas e funcionando com âncoras subjetivas, que
impulsionam o sujeito - enquanto houver fala e falante.
Messy interpreta as lembranças de Lili e as reduz a esse “três”. Mas, é
fato, que pacientes repetem “lembranças” da própria vida, incessantemente. A
clínica não deixa dúvidas a esse respeito. Uma paciente, conta, em todas as
sessões, ter sido a preferida dos sogros com quem viveu por 15 anos; que ela
conseguia tudo do sogro e que todos (sogra e cunhados) quando queriam
alguma coisa dele, recorriam a ela. Outra senhora repetia, a cada encontro: “O
Sr.P. sempre disse que nossa família é formidável”. Importa assinalar que, nos
períodos iniciais da demência, os pacientes são afetados pelas “perdas de
memória” - sofrem seus efeitos e são assombrados pelo risco de “dissolução
subjetiva” (LANDI, 2007). Frente a isso, eles se parecem ancorar-se num
investimento narcísico63 que, nessas repetições aparece “inflado” – isso, um
tempo antes do sujeito se perder e mergulhar na demência. Num período dito
intermediário, o doente já não é afetado pelas suas dificuldades de memória e
pelo estranhamento do outro frente às falas diluídas de sentido e, então,
caminha para uma alienação, sem sofrimento.
No que diz respeito às possibilidades de tratamento de um sujeito na
demência, Messy (1993) é otimista: “vários exemplos nos mostraram que uma
estabilização, e até mesmo progressos” (idem, ibidem, p. 92), desde que o
ambiente em que vivem as pessoas demenciadas seja “afetuoso e atento”

63
Para Freud, diz Chemama (1995, p.139), “pelo menos até a década de 1920, o narcisismo
representa uma espécie de estado subjetivo relativamente frágil, de equilíbrio ameaçado (há
oscilação entre investimentos objetais e investimentos egóicos)”. Pode haver alterações,
portanto, no funcionamento narcísico – pode haver tanto uma inflação desmedida do
narcisismo, quanto uma forte depressão.

92
(Messy refere-se à família e à equipe de profissionais). Quanto à clínica
psicanalítica, que se realiza pelo “olhar do outro”, há um caminho possível, qual
seja: “colocar o imaginário em relação com o simbólico que, por vezes,
permitirá que a palavra encontre seu lugar” (Messy, 1993, p. 88). Nesses
enlaçamentos felizes, o paciente tem “momentos de lucidez” (idem, ibidem).
Por isso, ele sugere, que “é preciso continuar a emitir nossas mensagens,
captar os apelos dos sujeitos” (idem, ibidem, p. 86), quer dizer, “é preciso, em
todo caso manter o doente no banho de palavras, alimentado por nosso
narcisismo” (idem, ibidem, p. 87).
O que significa encaminhar uma clínica psicanalítica que visa “colocar o
imaginário e simbólico em relação”? Como se pode ver, o autor recorre, ainda
que tangencialmente, aos registros lacanianos do Real, Simbólico e Imaginário,
à topologia do nó borromeano64. Mas, por que o autor se desloca da primeira
tópica freudiana para os três registros lacanianos? Interessa dizer que os
registros R/S/I são invocados, por Messy, quando ele se fala da clínica.

3.2. Real, Simbólico e Imaginário

Um longo caminho de retorno a Freud foi percorrido por Lacan que,


frente às confusões terminológicas e às leituras enviesadas da obra de Freud,
realiza um trabalho de “restituição do inconsciente freudiano” (ALLOUCH,
1994/2007). É sabido que, desde 1953, ele decide por uma tripla nomeação:
simbólico, imaginário, real como registros da experiência subjetiva (HARARI,
R., 2001). Tratam-se de três dimensões representadas cada uma por um anel;
cada anel cruza o outro em dois pontos, produzindo um enodamento que, em
caso de rompimento, soltam-se os três anéis.
Caminharemos com Milner (1983/2006) em Os nomes indistintos. Ali, ele
enuncia três suposições que circunscrevem os três registros:

64
A expressão nó borromeano surge, pela primeira vez, no discurso lacaniano em 9 de
fevereiro de 1972 para exprimir um modelo topológico estrutural da constituição do sujeito.
Antes disso, Lacan debruçava-se, com seu amigo Georges T. Guibault, em jogos topológicos –
uma atividade lúdica de atar barbantes. Borromeano remete à história da família Borromeu. As
armas dessa dinastia italiana continham o brasão representado por três anéis em forma de
trevo e enlaçamos o poder em três ramos: o rompimento de um anel, soltava os outros dois
(ROUDINESCO e PLON, 1944/1998).

93
(1) Há = real ou R
(2) Há lalíngua = simbólico ou S
(3) Há semelhante = imaginário ou I

E acrescenta:

Nada poderia ser imaginado, isto é, ser representado, a não


ser por I; nada pode existir a não ser por R; nada pode se
escrever a não ser por S” [...] assim, o imaginário só se imagina
pelo imaginário, o real só existe pelo real, o simbólico só se
escreve pelo simbólico ( MILNER, 1983/2006, p. 8).

Milner apresenta, assim, uma característica inerente aos registros: eles


são indestrutíveis e têm consistência própria já que cada um, como se lê,
“permanece identificado consigo mesmo”, ou seja, irredutível aos demais. É
sabido que Lacan recorre à topologia dos nós para figurar o espaço em três
dimensões, que corresponde à escrita de uma estrutura que enlaça os termos
real, simbólico e imaginário. Nela, os anéis são ligados e mantidos juntos
apenas pela materialidade de seu enlace. Assim, ensina Milner, o real do nó
remete ao fato de que quando se corta um dos elos, não importa qual, todos
imediatamente se soltam e o nó se desfaz – este é, diz ele, o real do nó. Vimos
que R contém a suposição de existência: “há” – dela nenhuma dedução é
possível. R, contudo, só pode ser definido em relação a S e a I – o que justifica
falar-se em nó.
Quanto a S, ele é o registro da pura diferença, da relação de um
significante a um outro. Dito de outro modo, um significante não tem
propriedades/substância, quer dizer, ele só vale para outro significante e,
“como tal, é sempre outro” (idem, ibidem, p. 18). É precisamente isso o que a
Saussure instaura com o conceito de língua: relações de oposições e
distintividade, lembra Milner: “o significante saussureano é o modo de ser do
próprio S” (idem, ibidem, p. 19).
I, por sua vez, institui aquilo que é da ordem da (co)relação, de que
decorrem “séries de proposições que se entrelaçam”. Vejamos como: do fato

94
de haver semelhante, retira-se que há dessemelhante. Mais do que isso, se
dois termos são “semelhantes ou dessemelhantes” é porque termos têm
propriedades comuns. Desse modo, classes são estabelecidas até o limite em
que surge o dessemelhante. I é, portanto, o domínio das representações, da
consistência, que constrói a realidade como um todo representável. S e I,
distinguem-se, portanto – em S, a relação é tal que Um, só vale para Um outro
(o que inviabiliza a construção de classes); em I, relações produzem
representações.
Como disse acima, os círculos são indestrutíveis e se enlaçam num nó
borromeano. Desse enlaçamento decorre que “nada existe que não deva ali se
escrever”, inclusive o R, como o “impossível de se escrever e de se
representar” - afinal, R faz anel (este seria o I do nó). Mas, alerta Milner, o real
do nó borromeano aparece no instante de corte em que os círculos se
dispersam. Bem, “essa dispersão é R, ele mesmo”. Nesse ponto de corte, diz
ele, localiza-se a hiância – abertura em que “um sujeito passível de espelhar se
descobre abandonado por toda analogia. A desenodamento é a dispersão
pura: “Frente a S, que distingue, e ao I que liga: R é, assim, o indistinto e o
disperso” (idem, ibidem, p. 9). É conveniente reter, ainda, que “nada de S nem
de I permite acessar R e que o ser falante é incessantemente convocado a
imaginar R” (idem, ibidem, p.13), Assim:

Para todo ser cindido pela representação, a irrupção de um


tal instante só pode suscitar um efeito - o de horror. Nome
que se dá a isso que, em um ser narrado pelo I e pelo S,
responde ao que não tem nome ou forma. Reencontro
terrorífico com um ponto em que semelhanças e
dessemelhanças evanescem, em que o Um é destituído de
seus poderes (MILNER, 1983/2006, p.12) (ênfase minha).

Nesse instante de ruptura do nó borromeano há suspensão do tempo e


do espaço e, assim, diluição do tecido das significações; embaralhamento entre
sonho e vigília: “Nesse instante que o sentido se quebra, os episódios da morte
(dispersão real) e da psicose (desrazão) não cessam de se conjugar” (idem,

95
ibidem, p. 15). Aqui se poderia incluir as demências, como mergulho num
processo de diluição das significações.
Nesse ponto, tendo em vista a Clínica de Linguagem, que se tem se
orientado pela esfera da articulação entre S e I, cabe dizer das questões
clínicas a demência tem colocado para ela, tanto do ponto de vista do
tratamento, quanto do prognóstico. Saussure está no fundo das teorizações e
da clínica, que tem podido sustentar para o movimento da língua na fala e
recolher um falante “em sofrimento” (Fonseca, 1995, 2002), que, frente ao seu
dizer, nada pode fazer para mudá-lo, que se vê ao deabrigo de quaisquer
“estratégias cognitivas” (LIER-DeVITTO, 2002; 2003 e outros). Não se pode
dizer, portanto,que na Clínica de Lingaugem o falante seja “tomado como anjo,
aquele que enuncia sem um corpo, sem consciente e/ou inconsciente, sem
desejo” (MILNER, 1978/2012). Sem dúvida, em muitos casos, fica-se bem de
frente a lalíngua, desembaraçada de I - algo da natureza do corte aí se
apresenta. Nesse caso, dar um passo na direção do que isso significa parece
importante.
Lalíngua65, diz Milner (idem, ibidem) é, para um falante, sua língua
materna: “num só golpe, há língua (seres falantes) e há inconsciente” (idem,
ibidem, p. 26). Em tese, “a língua sustenta o real de lalíngua” e fica, assim
ligada ao não-todo: à falta da palavra e ao impossível de dizer. Esse ponto
reveste de sentido a afirmação de que só há patologia de linguagem na
língua materna (LIER-DeVITTO, 2006). Enfim, lalíngua articula sujeito do
desejo e língua e, sendo assim, ela só pode declinar-se nas três suposições
que remetem ao “encontro contingente entre R, S e I” (MILNER, 1983/2006, p.
33). Quer dizer, se admitirmos que “há nó” e que o R insiste e que as cadeias
de S, que se desenrolam de um significante a um outro, abrem espaços em
branco – ali o Outro pode emergir. Nesses espaços em branco, lalíngua
opera66: “[espaço] contingente onde um significante, ‘um-entre-outros’, pode

65
É um conceito forjado por Lacan a partir de um equívoco. Lalangue é um lapso que Lacan
enuncia a partir dos nomes de dois autores: Laplanche, antigo discípulo e autor do Vocabulário
de Psicanálise, e Lalande, autor do Vocabulário de Filosofia (LAPLANCHE e PONTALIS
1982/). Lalíngua, tradução para o português, aproxima a palavra dos balbucios do bebê
(lalação) na relação com a língua materna. Lalíngua pontua o segundo tempo da obra
lacaniana e desdobra o axioma “o inconsciente estruturado como uma linguagem” (TROIS,
2007).
66
Disso decorre, a afirmação lacaniana: o inconsciente é saber-fazer com lalíngua (TROIS,
2007).

96
tocar o sujeito. Ponto onde um significante, ao afetar outro significante, faz dele
sujeito, efeito pontual e evanescente desta afetação” (TROIS, 2007: 129).
Assim, do lado de S, está a língua, como puro discernimento (que funda
propriedades), mas também aquilo que a ultrapassa: está lalíngua, que “toca” R
pelo lado da falta ou do excesso – haverá sempre Um a menos, impossível de
dizer, ou Um a mais, caso das homofonias que insistem incessantemente a
ponto de se desfazer” (idem, ibidem, p. 33). Do lado de I, está a relação entre
falantes, denominada de comunicação, o que coloca em jogo a significação e
referência. Em I está o acontecimento possível, representável no tempo e no
espaço. A realidade, então, se ordena pelas articulações de I, fazendo a
unidade e estabelecendo, por um encontro contingente, a comunicação.
Implicar lalíngua exige, como vimos, implicar a suposição sobre R que
se reduza um “há” (postulado da pura existência). R é o estranho: um corte ou
escansão. Quando ele emerge, a cadeia insiste (não progride). R “não cessa
de não se escrever” (idem, ibidem, p. 9). R é o impossível “fora-de-espaço” e
“fora-de-tempo”: serve-se da cadeia, mas não pode ser apreendido pelo
significante. R não faz relações, nem tem propriedades.
Falar em lalíngua é reconhecer que, para um ser-falante, as três
suposições não cessam de se inscrever e que os anéis ou círculos do nó que
as enlaça são indestrutíveis, ou seja: “algo não cessa jamais de existir; algo
não cessa jamais de se escrever – se, pelo menos, como supomos, isso fala:
enfim, algo não cessa de se representar” (idem, ibidem, p. 9). O enodamento
dessas três dimensões só acontece, como vimos, no instante de um corte, de
uma escansão nos anéis, que forçam o imaginário representar. Por isso, “o ser
falante é incessantemente solicitado a imaginar R” (idem, ibidem: 12).
Assim, quando algo de R incide e desenoda os outros dois anéis, a
suspensão das representações deflagram o horror. Nesse ponto, a hipótese do
“espelho quebrado” de Messy é iluminada pelo que pudemos retirar de Milner
sobre R/S/I – há aí “escansão pura”, como ele diz. No “espelho quebrado”, a
imagem fica destroçada e o sujeito antecipa a morte e se aterroriza, mesmo
porque há uma impossibilidade de nomeação da própria morte:

Para todo ser capturado pela representação, a irrupção de um


tal instante só pode suscitar um afeto: o horror, nome que

97
damos, na falta de melhor, ao que, em um ser marcado por S
ou I, responde pelo o que não tem nome, nem forma. (
MILNER, 1983/2006, p. 12).

Sob o impacto desse “instante de horror”, I e S ainda sustentam o anel -


ele “ainda aguenta”, diz MiIner, que explica: “nada aconteceu senão que, nesse
nada que separa um antes de um depois, ao sujeito acontece um real” (idem,
ibidem: 14). Pode-se suspender, por um instante, as demandas de
representação de I - “o laço se dissolve, mas não todo representável”. Nesse
sentido, esse “resto de representação” seria aquilo que aparece como disperso
e fragmentado no “espelho quebrado”?
O horror, que decorre da imagem é, na demência, avassalador: um
arrebatamento. No início da doença, o sujeito se arranja no movimento entre as
operações simbólica e imaginária: ele se ancora em frases e cenas vividas, que
são retornam numa repetição insistente, como disse. Elas se cristalizam com a
progressão da doença e tornam-se representantes do real – falas cristalizadas
que aparecem “fora de tempo e de lugar”; em expressão de Lier-DeVitto
(2005). Parece que com o avanço da demência, há mesmo uma espécie de
perda de vigor de I: enunciados vêm como blocos esclerosados e derrotam a
eficácia de S. No período avançado da doença, exatamente suspende aquilo
que está no domínio de I: não há mais consistência, não há mais encontro do
sujeito com a realidade. Na demência, o sujeito se desvia de tudo que faz
semelhança – como os “cavaleiros errantes do simbólico”, na expressão de
Milner (idem, ibidem, p. 51).
Milner deduz o que poderia acontecer com o sujeito para quem há
suspensão da representação imaginária. Nessa circunstância, diz ele, o sujeito
desvia-se de tudo que faz imagem e semelhança e, assim, o que resta:

[é] ausência de temor ou de esperança, serenidade (...) possa


o imaginário esvanecer-se, possa toda demanda se apagar.
Então, com efeito, a morte não é mais temida, visto que já está
presente. Só que ela não é a morte real e dispersante, mas a
morte fixada no significante. Mas [...] até para o Sábio

98
Supremo, a vida continua e o imaginário não se reduz.
(idem, ibidem, p. 51-2) (ênfases minhas).

O esvanecimento do imaginário só seria possível com a morte no


significante, mas a vida continua, como diz Milner e, continua na demência.
Mesmo com a gradativa dissolução subjetiva e linguística, um sujeito insiste.
Em alguns casos, em período avançado da doença, restam apenas murmúrios,
choros, gritos sem dor, sem afetação. O que resiste à demência? Um estado
de I e S que se dissolve, mas não esvanece.
Esse estado de I permite explicar, penso, os “momentos de lucidez” a
que se referem familiares, cujos parentes demenciados já estão voltados ao
mutismo. Sobre esse “enigma”, Goldfarb (2004) fala sobre Dona Pierina, com
95 anos e diagnóstico de demência do tipo Alzheimer. Esta senhora havia
nascido e residido na Argentina até seus 90 anos. Tendo recebido o
diagnóstico da doença, ela vem morar com o filho no Brasil. A patologia segue
o seu curso: ela deixa de reconhecer seus filhos, não reconhece lugares. Por
questões familiares, ela retornou a Argentina. No momento de se dirigir ao
aeroporto, a senhora mostra “uma lucidez momentânea”: lembra-se de todos e
da sua casa. Isso significa que a força dos anéis ainda se mostra – eles se
tocam quando um nome é enunciado. Repentinamente, é como se a relação
com a realidade67 irrompesse para, em seguida, desfazer-se. Nesse estágio
final, contudo, não há comunicação, nem diálogo, nem outro. Então, o que
resiste à demência?
Talvez seja isso que Messy notou ao dizer que o paciente com demência
“perde a palavra, mas não toda a linguagem” (Messy, 1993, p. 85). O autor
aposta na relação entre I e S para que “a palavra encontre seu lugar”. Nesses
“encontros”, diz ele, o paciente tem os momentos de “lucidez”. Embora o autor
não diga muito mais do que isso, ele parece supor a viabilidade de uma clínica
que, no enlaçamento de S e I, alcance efeito de significação. Nesse encontro
articula-se “referência interna” e “referência externa”, como diria Benveniste
(1902-1976/2005).

67
No próximo capítulo, tratarei da relação referencia interna e referencia externa, o efeito de
significação.

99
Encerrei o primeiro item deste capítulo interrogando a saída pretendida
por Messy, ao mencionar os três registros lacanianos, logo depois de ter
implicado fortemente a primeira tópica freudiana no tratamento da relação
memória e linguagem. É fato, como assinalei nesta tese, ser viável dizer com
Freud que memória e linguagem são domínios “concomitantes dependentes”,
embora Messy deixe escapar a rede associativa implicada, por Freud, no
funcionamento do aparelho psíquico. Isso que ele deixa cair foi, contudo, aquilo
que Lacan recolhe em Freud, a partir de Saussure: a primazia da cadeia
significante. Na verdade, não se entende por que Messy fica entre Freud e
Lacan, não se chega a sabe a razão do passo que deu de Freud para Lacan.
Tudo se passa como se as teorias fossem complementares. As questões que
podem ser levantadas aqui é se, de fato, elas são complementares e, ainda, se
(quais) consequências podem ser retiradas de dificuldades de memória, nas
demências, quando se opera com a teoria do significante.

3.3. Do simbólico a lalíngua

Na demência, temos, inicialmente, o arrebatamento do sujeito que se


ancora na repetição de cenas vividas. As falas se cristalizam e parecem “fora
de tempo e de lugar”. Um apagamento de S e I se configura, mas algo ainda
resta. Resta como choro, grito, murmúrios e lamentações sem nenhuma cadeia
articulada. Entretanto, mesmo quando estão silenciados, esses doentes vivem
“momentos de lucidez”, ou ainda, um nome pode ser enunciado. A linguagem é
feita de lalíngua, como afirma Lacan (1972-3/2008), a qual é tomada pelo
encontro de R, S e I. Então, é a lalíngua que resiste à demência?
Sabemos que Lacan, no seu retorno a Freud, reconhece algo em Freud
identificável à cadeia significante. Lacan se aproxima da Linguística
estruturalista, representada por Saussure e Jakobson, com grande interesse
pelas propriedades da linguagem68 introduzidas pela ciência da linguagem

68
Mantive o termo “linguagem”, utilizado por Milner, ao invés de utilizar o termo saussureano
“língua”. Milner (1978/2012, p. 45), em O Amor da Língua, esclarece que “a operação da língua
e da linguagem são semelhantes”. Segundo o autor, a única diferença é que a linguagem é o

100
(MILNER, 2003). Dessa aproximação resulta “o corte lacaniano” radical; ele diz
“a linguagem é a condição do inconsciente” (LACAN, 1901-1981/2003, p. 490).
Lacan dá corpo à sua “doutrina do significante” ao incluir, na estrutura, o
equívoco e o falante. Daí a afirmação de que “o significante representa o
sujeito para outro significante”– definição estrita de significante como existência
opositiva, relativa e negativa é sustentada pelo “representar para”. É certo que:

O termo significante vem evidentemente de Saussure, mas não


sem uma modificação profunda: são abandonados o horizonte
do signo e, ao mesmo tempo, a oposição ativo/passivo que
modelava o casal significante/significado” (MILNER, 2010,
online).

Esse passo circunscreve o primeiro tempo da teoria lacaniana, voltada


para o Simbólico e da primazia do significante. No seminário 20, Mais Ainda,
frente à homonímia, Lacan contempla o equívoco e parte na direção do Real ao
introduzir a noção de lalíngua. A cadeia significante deixa, então, de ser
bidimensional e operada pela metáfora e pela metonímia (como na Linguística).
Com Lacan, o conceito de estrutura é reduzido ao mínimo, à cadeia mínima:
“não há cadeia mais que significante e todo significante está na cadeia”
(MILNER, 2003, p. 162). Lacan afasta-se da Linguística, mas sem negar o
legado saussureano e, para marcar a inclusão do que a Linguística expulsou,
ele cria o neologismo linguisteria (De Lemos, 2011).
Lalíngua evoca o balbucio da criança, “lalação” ou “língua materna de
antes do significante e de antes de sua junção com o sentido; [como] água da
linguagem” (SOLER, 2010, p. 19), é por isso que lalíngua não comunica e nem
leva ao diálogo. Como “água da linguagem”, lalíngua não tem ordenação, nem
estrutura. Em outras palavras, “é o nível a-estrutural do aparelho verbal, ao
passo que a linguagem (simbólico) e o discurso (imaginário) são ordenações”
(SOLER, 2010, p. 17). Desse modo, ela está ligada ao R, pois não faz rede,
como o simbólico, e não faz laço, como o imaginário.

universal que estão todas as propriedades das diversas línguas, “reunidas coletivamente em
um todo; a língua, ao contrário, supõe o universal distribuído sobre cada uma [...] como se ela
fosse sozinha no mundo”.

101
Lacan diz, num segundo tempo da teoria, que “o inconsciente é um
saber, um saber-fazer sobre lalíngua” (idem, ibidem, p. 149), um saber que
escapa ao falante:

Lalíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como
efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de
lalíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que
o ser que fala é suscetível de enunciar (idem, ibidem, p. 149).

Note-se que Lacan não fala em memória ou traços mnêmicos. Lalíngua


afeta e toca R, S e I. Não se pode sustentar, portanto, uma relação entre
memória e linguagem a partir da teoria significante. Podemos considerar que
àquilo que os pacientes e familiares designam como “dificuldades de memória”
nos remeta à I - ligado à esfera das significações e da realidade, matéria de
que é feita uma história, de que são constituídas as lembranças.
Aos poucos, a demência dissolve lembranças e laço social; dispersa a
unidade, o efeito de significação e a referência. Entretanto, enquanto ainda
resta algo de imaginário e de simbólico, sustentado por lalíngua, é possível
“representar” (MILNER, 1983/2006: 53) – caminho possível para uma direção
clínica. A Clínica de linguagem tem-se apoiado na articulação entre que se
apresenta na fala/escrita do paciente, instruída que é pela escuta da densidade
significante. Nas demências, a realidade evanesce mesmo quando a fala
persiste articulada. O que distinguiria esta clínica da clínica psicanalítica? O
que escuta um clínico de linguagem frente à fala do paciente com demência?
Como a clínica é viabilizada? Passemos ao capítulo seguinte.

102
CAPÍTULO 4
A Clínica de linguagem e sujeitos com demência

A Clínica de linguagem configura-se como uma abordagem teoricamente


sustentada de falas sintomáticas. O termo “clínica” estenografa queixa e a
demanda de pacientes aprisionados em seu sintoma na fala/escrita. Disso
decorre o compromisso do clínico com a mudança, qual seja: seu desejo é que
essa fala/escrita possa “passar a outra coisa” (LIER-DeVITTO, ARANTES,
1998). Esta clínica, que se diz de linguagem, parte do compromisso com o
linguístico, ou melhor, com a fala sintomática de pacientes e com uma
teorização sobre a linguagem. É preciso dizer que esta teorização não pode ser
qualquer – há restrições à aproximação ao campo da Linguística (LIER-
DeVITTO, 1994; LIER-DeVITTO e FONSECA, 2001). Primeiro, porque falas na
clínica não são “exemplos” nem “dados” – são matérias vivas: presença de um
ser falante demandante, em sofrimento. Segundo, há outro. Essas duas
condições colocam limites ao clínico: a teorização sobre a linguagem deve
poder incluir a possibilidade de abordagem de erros e de reflexão sobre o outro
(ainda que “erros”, no caso, sejam sintomas e o “outro”, um clínico).
Como indiquei na Introdução deste trabalho, a Clínica de Linguagem
encontrou o estruturalismo europeu na Linguística e a hipótese do inconsciente
na Psicanálise uma saída. Essa trilha foi proposta por De Lemos (1992) que,
na leitura de Lacan, encontra uma aproximação a Saussure e Jakobson
bastante fecunda. Essa direção teórica para a Clínica de Linguagem veio como
efeito da filiação de Lier-DeVitto ao Interacionismo em Aquisição de
Linguagem69, mas levando em conta que, exatamente por conta do
“ensinamento de De LEMOS, compromisso com a especificidade do material
deveria ser sustentado”, ou seja, “o investigador [deve poder] ser

69
LIER-DeVITTO participou da construção do Interacionismo em Aquisição de Linguagem e
iniciou a discussão sobre falas sintomáticas no âmbito do Projeto Integrado CNPq “Aquisição
da Linguagem e Patologias da Linguagem” entre o período de 1997 e 2002. Atualmente, essa
discussão desenvolve-se, sob sua coordenação, no Grupo de Pesquisa (CNPq-LAEL). O
Interacionismo é posto como “outro” neste diálogo teórico e, portanto, os operadores de leitura
“erro”, “mudança” e “interpretação” são ressignificados na Clínica de linguagem (LIER-
DeVITTO, 2002).

103
afetado/interrogado [pela] singularidade [desse material]” (LIER-DeVITTO,
2006, p. 184). Assim, o Interacionismo é mantido “em posição de alteridade”
nas reflexões encaminhadas pelo grupo de pesquisa Aquisição, patologias e
clínica de linguagem (LAEL/PUC-SP). Ou seja:

[...] longe da possibilidade de mera aplicação: noções cruciais,


daquele espaço disciplinar, foram operadores de leitura para
pensar diferenças (LIER-DeVITTO, 2005). Desse ponto de
partida, disparador de uma reflexão, questões outras,
pressionadas por desdobramentos teóricos, empíricos e
clínicos, puderam ser levantadas e têm sido discutidas – a mais
essencial diz respeito à diferença entre erros esperados e
aceitáveis em falas de crianças, e sintomas indesejáveis em
falas de crianças ou de adultos (LIER-DEVITTO, no prelo:
70
s/p) .

Destaca-se, portanto, que uma aproximação seja a Linguística, seja a


Psicanálise não deve resultar numa multi(inter)disciplinaridade, que se assenta
a ilusão da complementaridade, de uma composição por acréscimo de
conceitos e noções de campos heterogêneos entre si; como se conceitos e
noções eles fossem autônomos em relação aos espaço em que foram criados.
O que costuma resultar dessas articulações ingênuas é, como disse
Lajonquière (2003), um “frankenstein epistemológico”, uma colcha de retalhos
mau alinhavada.
O “compromisso com o linguístico”, mencionado acima, está
representado pela introdução de la langue na reflexão e constituição de uma
escuta para falas sintomáticas. A língua é, diz Saussure, “um sistema que
conhece somente sua ordem própria” (idem, 1916/1969: 30); i.e., um
funcionamento autônomo não submetido a outros domínios (fisiológico,
cognitivo, social). A Linguística delimita-se e cria restrições severas à
interdisciplinaridade. La langue vem, ainda, como solução para a tendência de
fragmentação da linguagem em “objetos plurais” (fonético, fonológico,
morfológico, sintático). De fato, como Lier-DeVitto (no prelo) destacou no Curso

70
Relatório de produtividade em pesquisa CNPq (2011).

104
de Linguística Geral: “é a língua que faz a unidade da linguagem” (SAUSSURE,
1916/1969, p. 18). Essa afirmação representa, sem dúvida, “uma saída da
descrição” (DE LEMOS et al., 2004) e aponta para um caminho teórico para a
abordagem de falas heterogêneas, marginalizadas, que são resistentes à
descrição gramatical (DE LEMOS, 1992, 2002; LIER-DEVITTO, no prelo).
Nesse enquadre, não se pode deixar de fora as relações internas e
permanentes da língua que estão no “ato do falante” – chegamos, aqui, a la
parole. Por isso é que se pode dizer que “Saussure dá a chave” para um
desdobramento relevante, ou seja, a possibilidade de articular a língua na fala
e a inclusão do falante na fala (LIER-DE VITTO e FONSECA, 2001). Esse
desdobramento só é viável teoricamente porque o funcionamento linguístico
comporta a noção de estrutura, como Saussure pode mostrar com a teoria do
valor.
Coelho (1967), na introdução do livro “Estruturalismo, antologia de textos
teóricos”, entende a estrutura como:

a) um conjunto de elementos com leis próprias e


independentes das que regem cada um desses
elementos;
b) a existência de tais leis de conjunto implica que a
alteração de um de seus elementos provoca a alteração de
todos os outros;
c) dado que o valor de cada elemento não depende do que
ele é por si mesmo, o valor de corre da posição que ele
ocupa em relação a todos os outros do conjunto.
(COELHO, 1967, p. XXI-XXII).

Não é outra coisa que Saussure propõe com a teoria do valor – “a língua
é um sistema de valores”. Sendo este o caso, é preciso reconhecer que ao
tomar partido do estruturalismo é afirmar-se antiempirista, anti-
desenvolvimentista e, acima de tudo, afastar-se do psicologismo e do
sociologismo. De fato, o antiempirismo pode ser esclarecido com o enunciado
de que a estrutura não representa a realidade, ela não é da ordem da
observação. Reconhece-se a característica acrônica no questionamento e

105
recusa do problema da origem: a natureza da estrutura é ser atemporal. O
antipsicologismo exclui a apreensão direta do objeto pelo sujeito: não admite o
poder atribuído à percepção e à aprendizagem. Quanto ao adjetivo
“antissocial”, pode-se dizer que as transformações não são explicadas pela via
de elementos históricos e culturais – elementos externos ao sistema. Desse
modo, ocorrências singulares e idiossincráticas só podem ser explicadas pelas
leis internas ao sistema.
A língua tem anterioridade lógica em relação ao falante, embora ela só
exista por porque há fala e falante: “lugar em que emerge a diferença”. Da
língua, na verdade, só apreendemos o seu efeito na fala “como efeito de uma
ausência” (idem, ibidem, p. XXVI):

“É esta a situação da estrutura – a estrutura como algo que


apenas está presente nos seus efeitos e que inclui entre os
seus efeitos a sua própria ausência, a estrutura como algo que
põe o sujeito em cena e lhe atribui um papel, sem nunca se
tornar visível na plena evidência dessa cena” (idem, ibidem:
XXVI).

Um sujeito-falante não escolhe estar dentro ou fora da estrutura – ele é


falante porque há língua e há fala: ambas em operação solidária antes dele.
Sendo assim, ele é capturado nessa operação. Entende-se porque se pode
afirmar que o falante é efeito de linguagem, ou seja, efeito do jogo simbólico
(SILVEIRA, 2006). Dito de outro modo com De Lemos (2006, p. 27), “a criança
é capturada por le langage, atravessada e significada como é pela parole do
outro – instanciação de la langue enquanto funcionamento sistêmico, isto é,
que desfaz e refaz estruturas e sentidos”. Incluir la parole é envolver o outro-
falante com “instância de funcionamento linguístico” (DE LEMOS, 1992). Nesse
ambiente de determinação, pode-se pensar uma alteridade que produz
heterogeneidade e não coincidência entre falantes (LIER-DEVITTO e
FONSECA, 2012).
Tanto o Interacionismo, quanto a Clínica de Linguagem voltam-se para
aquele Saussure que foi reconhecido pela leitura lacaniana: aquele que a
Linguística não pode ler. Lacan viu ali a importância do significante e a

106
possibilidade de inconsciente e estrutura. Ele afirmou: “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem”, que dizer: “o inconsciente é a presença do
significante” LEMOS (2002: 52). O estruturalismo europeu caminhou, depois de
Saussure, na tentativa de articulação da língua na fala (Jakobson, 1960;
Benveniste,1902-1976/2005), mas não pode desenvolver uma teorização sobre
o sujeito-falante. Essa questão excede o programa da Linguística. É
exatamente nesse ponto de excesso, ponto que implica o sujeito, que Lacan
avança e legitima a “doutrina significante”, como assinalei no capítulo anterior.
Ele valoriza, com Freud, o fato e que aquilo que escapa ao falante – o equívoco
– pode invadir a fala e perturbar a cadeia. Nesse momento: “a representação
gramatical cede lugar a uma articulação significante” (LIER-DeVITTO e
FONSECA, 2012, p. 70).
Se, como disse Coelho (1967, p. 28), a estrutura pode implicar um
sujeito, que “nunca se tornar visível na plena evidência dessa cena”. Isso quer
dizer que “a fala é a condição necessária para um sujeito desaparecer”
(LEMOS, 2006, p. 62). O sujeito desaparece na cadência da fala, ainda que
ocorram “invasões” inesperadas – aí ele faz sua emergência imprevisível. Lier-
DeVitto e Fonseca (2012) entendem, com Milner (1978), que essa “invasão” do
sujeito na cadeia falada é processo de subjetivação e assinalam que:

a entrada do sujeito na cadeia falada não comporta


transparência, nem acomodação – ao contrário: ela é sempre
perturbadora e instável uma vez que remete à necessidade
enigmática de um sujeito. Desse processo de subjetivação,
pensado como intrusão imprevisível do sujeito na cadeia
falada, pode-se retirar que:
(1) fala e sujeito não coincidem e que
(2) falante e sujeito não são, tampouco, instâncias
coincidentes (idem, ibidem, p. 70).

Essa não coincidência entre falante e sujeito pode interessar a um


clínico de linguagem (o falante) e interessa ao analista (o sujeito). Vimos que o
processo de subjetivação abala a representação gramatical que sustenta a
ilusão de homogeneidade de uma língua e abre articulações significantes

107
singulares. É fato que a fala, como afirma Lemos (2002), pode ser reduzida ao
plano dos signos, que dizer, a um plano que obtura o significante e o sujeito.
Isso porque, apesar das “invasões”, ela veicula significações. Quer dizer:

a palavra não pode fundar o significante, o que também


não implica que o significante não esteja aí com um objeto
entre os outros. No entanto, ele é real à medida que tem
uma materialidade própria, que se impõe e que produz
seus efeitos (idem, ibidem, p. 51).

Interessam ao analista os efeitos do significante como cifra –


“estruturado como uma linguagem” (que se dá a ver no chiste, no lapso, no
sintoma, no sonho, por exemplo). A autora lembra que Freud testemunhou a
cura do sintoma na histeria quando se desfazia a cifra. Com efeito: “o sujeito
não é jamais senão pontual e evanescente, pois ele é sujeito por um
significante, e para um outro significante” (LACAN, 1972-73/2008, p. 153) –
temos, aí, o que ele chamou de linguisteria para “daí avançar para o conceito
de lalíngua, ou seja, a amarração fundamental entre desejo e língua, sujeito e
significante” (idem, ibidem, p. 55). Frente a tais afirmações, é possível dizer
que sintoma, na Psicanálise, difere de sintoma na Clínica de Linguagem
(ARANTES, 2001). Cabe, portanto, a indagação: o que significa assumir a
hipótese do inconsciente na Clínica de Linguagem?
As falas sintomáticas são enigmáticas e expõem o falante em um
fracasso em ato (LIER-DEVITTO, 2003). Fracasso que se manifesta na fala –
como falante de uma língua, ele falha e esta falha afeta a escuta do outro e,
muitas vezes, a própria, ela porque nela há perturbação do sentido, seja
porque o sentido fica “fora de tempo” e/ou “fora de lugar” (LIER-DeVITTO,
2005). Falas sintomáticas suspendem a ilusão de a fala é uma sucessão de
signos e isso explica pertinência de Saussure para um clínico de linguagem. O
signo saussureano é efeito de operações da cadeia e não elemento com
significado prévio. Mais ainda, ele “não une uma coisa e uma palavra, ou seja,
ele não é designação”; e “a linguagem não é representação e o sujeito não
pode decidir sobre o seu significado” (LANDI, 2007, p. 78). As unidades da

108
língua ganham valor (provisório) depois da “jogada da língua”. O efeito
patológico tem a ver com isso, ainda que deslize e fique à deriva.
A densidade significante das falas sintomáticas passou a ser enfrentada
no Projeto desde 1997. Procura-se apreender na particularidade de uma fala a
mobilidade significante que a determina. Assume-se que uma fala sintomática
tem uma “lógica singular”, como disse LIER-DeVITTO (2003, 2006).
Reconhece-se, no uso dessa expressão, que há sujeito na fala. No caso da fala
afásica, por exemplo, LIER-DeVITTO e Fonseca (2012) afirmam tratar-se de
uma “sintagmática em ato” (Milner, 2003): “de arranjos e desarranjos que
acontecem, digamos, ‘à luz do dia’, ali mesmo, numa presença manifesta e
sem disfarces” (LIER-DeVITTO e FONSECA, 2012, p. 75).
O afásico, disse Lacan (1955-56/1981), mesmo numa fala destroçada,
“fica ao lado do que diz”, ou seja, fica cindido entre “uma escuta presa no
imaginário da língua constituída e o corpo que falha, que é movimentado pelo
jogo simbólico” (LIER-DEVITTO, 2003, p. 238). Pode-se dizer que algo do real
incide e as operações do imaginário e simbólico insistem e que o “nó aguenta”
em muitos casos de afasias, lembrando, aqui, que “o ser falante é
incessantemente solicitado a imaginar R” (MILNER, 1983/2006, p. 12).
Eu diria que há mais sujeito e menos fala/falante na afasia, querendo
dizer com isso que o falante afásico fica sob efeito da sua fala e da fala do
outro; que sua fala tem endereço e que, mesmo esfacelada, faz laço. Na
afasia, não se perde a referência externa, não evanesce a relação sujeito-
realidade. Como apontou Fonseca:

Ele [o afásico] é motivado pelo efeito devastador do escutar a


desarticulação significante manifesta na própria fala e não
poder fazer nada para mudar a sua condição de falante.
Acontecimento que pode, então, ser tomado, do ponto de vista
teórico, como índice de que na afasia há um falante cindido
(ele é um na fala e outro na escuta). Do ponto de vista clínico,
esse mesmo acontecimento é como motor para que o afásico
demande um terapeuta para escutá-lo e, de alguma forma, dar
movimento ao seu dizer para que ele não fique sempre à
margem do que diz (FONSECA, 2012, oral).

109
Resta dizer que a escuta imaginária da língua constituída sustenta o
afásico na Clínica de Linguagem. Na escuta, I faz a unidade do diálogo entre
clínico e paciente. O clínico recolhe significantes da cadeia desalinhavada na
fala do afásico e interpreta, ou seja, persegue um lugar na estrutura que faça
emergir o sentido que ficou perdido na fala do paciente. O diálogo clínico
realiza-se, desse modo, a partir da instituição de uma realidade, i. e., ele se
ordena através de S e de I.
No caso das demências, como já apontei no capítulo anterior, esse
enlaçamento fica fragilizado, resta algo do representável (MILNER, 1983/2006).
No estágio final da doença, dilui-se o efeito comunicativo e a operação deixa de
ordenar a realidade. Rompe-se a referência externa, mas a fala insiste, como
veremos abaixo, bastante articulada do ponto de vista sintático – há como que
uma cristalização da representação gramatical em detrimento da mobilidade da
cadeia significante. Sendo esse o caso, não há surpresas (lapsos, tropeços,
por exemplo) porque temos menos sujeito, mas, digamos, há mais
fala/falante do que nas afasias. Há fala bem estruturada, mas elas são
“vazias”. Pouco a pouco, perde mais um tanto: fica menos sujeito e menos
falante – o caminho é o silêncio.
Vê-se que o sintoma que instiga a Clínica de Linguagem é aquele que
está ligado a ocorrências manifestas na fala. Sua interpretação, contudo,
depende daquilo que se compreende por linguagem e por sujeito. Nesse ponto,
a presença do estruturalismo europeu (a partir da leitura de De Lemos, 1992) é
essencial, assim como o entendimento de que não há, como diz LIER-
DeVITTO, estratégia cognitiva que retire o falante de seu sintoma, ainda que
ele tenha escuta para os furos em sua fala. Interessa ao clínico de linguagem a
fala e seus efeitos na escuta do outro e do falante. É preciso, porém, caminhar
– quando se reconhece que enunciados ficam esclerosados, repetitivos; que
algo sempre excede ou falta na fala sintomática – é preciso admitir que algo de
lalíngua incide, ou seja, que o efeito de perplexidade que falas sintomáticas
promovem não esconde o fato de ali persiste que a articulação entre sujeito do
desejo. Envolver uma reflexão sobre lalíngua é “trazer mais para dentro” a
hipótese do inconsciente: é reconhecer que, para um ser-falante, três
suposições (R, S e I) não cessam de se inscrever: mesmo na demência em

110
que o nó parece estar suspenso, há encontro contingente dos anéis e o sujeito
tem “momentos de lucidez”.

4.1. A fala de pacientes com demências na Clínica de Linguagem

Landi (2007) inaugura a reflexão sobre a demência na Clínica de


Linguagem. A autora desnaturalizou termos amplamente utilizados na literatura
médica e fonoaudiológica para descrever a fala na demência. Ela suspende
termos como “fala vazia”, “falta de referência” e “anomia”. A hipótese dos
autores visitados, como certificou Landi, é a de que prejuízo de memória causa
problemas de evocação e que na tentativa de suprir a falha de evocação, o
sujeito faz uso de estratégias, como circunlóquios e substituição de termos.
Isso tornaria a “fala vazia” e “sem referências” e, portanto, pouco comunicativa.
Memória é, então, espaço de estocagem de lembranças e a linguagem veículo
dessa representação. Landi sublinha que se trabalha, nessa literatura, com a
ideia de “unidades isoladas” – único modo de manter a relação referencial
palavra-mundo em perspectiva. Sendo assim: “a palavra fica, então, como uma
entidade cheia de conteúdo e independente das operações simbólicas” Landi
(LANDI, 2007: 40). Nesse caso, a língua é nomenclatura (referenciação e
representação), diz a autora, que afasta essa hipótese.
Ela destaca que o signo saussureano “é uma associação (realizada pela
língua) e (consagrada pelo uso)” (LANDI, 2007, p. 77). A barra que divide
significado e significante nada tem a ver com a relação palavra-mundo.
Sabemos que desde Saussure, a língua não é nomenclatura porque o signo
não representa o mundo: “a relação entre significado e significante não é de
representação”; é de associação arbitrária entre significante e significado. É a
associação que barra a possibilidade de se manter a suposição de que o
sujeito decide pelo significado. Trata-se de uma associação “consagrada pelo
uso”, com o diz Saussure que, por aí, coloca, assim, o sujeito psicológico para
fora da teorização sobre a linguagem. A única liberdade do sujeito tem, diz ele,
é dizer “sim” e “não” para uma possibilidade da língua (LIER-DeVITTO;
FONSECA, 2001).

111
Desse modo, a referência externa (da linguagem em relação ao mundo)
“não é isolada ou destacada, mas articulada às leis de composição
estritamente linguísticas” (LANDI, 2007, p. 68); ou seja, há leis de referência
interna da linguagem, que são estruturantes da relação do sujeito com o
mundo. Dito de outro modo, “referência é efeito do jogo da língua” (idem,
ibidem, p. 82). Estamos falando de relações e significações que “já estão lá”
numa língua, antes do sujeito. Elas comandam a interpretação do outro e a
captura à ordem da linguagem; ordem, essa, que é determinante da “leitura do
mundo”, como mostrou Saussure (1916).
Entender a referência externa como efeito de interpretações mobilizadas
por referências internas não significa ignorar o fato de que a linguagem aponta
para a realidade – uma relação que parece se desfazer nas demências. Para
explorar a questão da referência nas demências, Landi deixa clara a
necessidade de inclusão do falante. Ela afirma:

se a linguagem tem o poder de apontar para algo essa


possibilidade efetivamente é realizada no momento em que
“alguém diz alguma coisa” - não se pode, portanto, refletir
sobre a referência destacada do enunciado e do sujeito que o
profere (LANDI, 2007, p. 82)

Cabe, portanto a indagação: desde onde fala o paciente demenciado?


Ele fica preso às vivências? Preso à fala do outro? Nas demências, afirma
Landi, as falas são “perfeitamente articuladas, mas frustrantes porque
desajustadas em relação à expectativa do outro” (LANDI, 2007:14). A fala é
fluente, afirma a autora, mas, ainda assim, causa estranhamento no ouvinte. O
sujeito, na demência, “vai fugindo do outro, a linguagem vai perdendo função
comunicativa e se revolve em torno de uma mesma massa sonora” (LANDI,
2007, p. 10). Vejamos:
(1)
A paciente de [médico] Alzheimer estava comendo “porco com
couve-flor”. A resposta que dá ao seu médico é uma sequência
que “frustra uma antecipação esperada” (NOVAES, 1996), mas
as palavras ligam-se tangencialmente à pergunta do médico (“o

112
que você está comendo?”). Ela diz: espinafre, batatas e
rabanetes. Se os enunciados não correspondem a uma
verdade pragmática, não se pode negar que eles são efeito da
fala do outro/própria: Há operações de referência interna em
funcionamento:

Alzheimer conversa com a Sra. D. durante o almoço. A


paciente comia um prato de carne de porco com couve-flor

A. O que você está comendo?


D. Espinafre.
(E prosseguiu enquanto mascava a carne)
D. Primeiro eu como as batatas e depois os rabanetes (LANDI,
2007: 104).
(2)
Terapeuta (T) e paciente (P) olham um álbum de fotografias
T. O senhor tá no meio do mato? Tá com chapéu, bota e
espingarda!
P. Eu não sou guarda, eu era bom de caçá no mato... de
bota...
T. Sua bota tá molhada ou seca nessa foto? (a bota estava
encharcada)
P. Tá seca, mas já foi molhada também.
T. O senhor tem uma foto com a bota molhada?
P. Quando tá molhada tá... tá... Quando não tá seca, tá verde
(olha para a planta da sala)
T. Verde? Essa planta tá molhada, não tá seca, né Mario?
P. Não tá seca, não tá feia, não tá meia, meia... tá verde.
T. É sim, ela tá verde! E sua bota tá seca...
P. A bota tá seca
(LANDI, 2010, P. 110)

Em (1), a paciente responde à fala do outro – referência interna -


com pertinência textual e com uma fala que não fere a representação
gramatical. Em (2), o falante mantém em movimento no diálogo, sob efeito

113
dos significantes da fala do outro e da própria fala. Entretanto, a fala não
faz signo e o laço se dilui. Landi observa:

Se, na demência, o sujeito vai fugindo do outro, a linguagem


vai perdendo função comunicativa e se revolve em torno de
uma mesma massa sonora, caminha apoiada na repetição da
fala do outro, de expressões formulaicas que irrompem na fala
do paciente, as quais não podemos determinar nem a fonte (de
onde ela vem) e nem para quem ela é, de fato, endereçadas.
Mas, só no final, a fala perde laço com falas (própria e do
outro) (idem, ibidem: 110).

O sujeito com demência fala suas vivências e, por aí, pode-se deduzir
que há falante na fala. O que chama a atenção é a cisão entre fala e escuta, ao
contrário da posição do paciente afásico como já assinalei. A partir disso, Landi
pode atestar que enquanto houver fala na demência, há movimento regido pela
reflexidade da linguagem. Isso quer dizer que mesmo “desorientado”, o
demenciado fala as suas vivências. Há língua, há falante, há memória na
demência. Entretanto, o modo de relação do sujeito com a própria fala e a do
outro está abalado. Como efeito, perde-se a função comunicativa e a referência
externa.
Emendabili (2010), pesquisadora filiada à reflexão da Clínica de
Linguagem, concorda com Landi ao sublinhar que aquilo que o sujeito diz,
mesmo que desorientado da referência externa, “é carregado de vivências
subjetivas” (idem, ibidem, p 1). Com LIER-DeVITTO, Fonseca e Landi (2007), a
autora sustenta que “falas de pacientes com demência revelam uma
“dissolução subjetiva” – o passado vai sendo esquecido, o laço social se
esgarça e tem-se um abalo na unidade imaginária do eu”. (EMENDABILI,
2010, p. 86). Assim, ela visualiza a possibilidade de uma clínica com o objetivo
de “sustentar o falante na fala”. Nesse caso, o clínico deve suportar “ficar tanto
fora de um sentido desejado ou antecipado” (idem, ibidem, p. 84).
Fonseca, recentemente, tem discutido a distinção entre afasias e
demências, ou melhor, a posição do falante afásico e do sujeito com demência.
Sua vasta experiência com afásicos, a fez atestar que são quadros de

114
linguagem distintos. Ou seja, não há afasia na demência. Em uma
comunicação oral, ela assegura:

Embora Landi e Emendabili tenham nos feito ver que é lícito


falar de sujeito mesmo na demência, não se pode
desconsiderar que entre os estudiosos da demência há
consenso relativamente ao fato de que nela está implicada uma
gradativa dissolução subjetiva que caminha em paralelo com
- uma também gradual e incontornável - deterioração da
linguagem (LANDI, 2007). Note-se que, na afasia, esse
paralelismo não faz sentido porque não há dissolução: nem
subjetiva, nem linguística (FONSECA, 2012, oral).

Dissolução subjetiva que marca o desencontro entre sujeito e falante na


demência, como a autora abordou ao relatar fragmentos do acompanhamento
da senhora A. com diagnóstico de demência. Sobre os episódios dialógicos,
Fonseca notou que a senhora “não era indiferente” à fala do terapeuta. Ela
tomava a fala do outro como uma demanda enunciativa e em seu dizer
persistia o jogo combinatório da língua, apesar do efeito de “fala vazia” devido
às estereotipias verbais. No entanto, a autora destaca os indícios da incidência
do sujeito na cadeia falada de A. Em suas palavras:

Não posso deixar de notar, mais uma vez, a presença de


hesitação em meio ao compasso e, ao mesmo tempo,
descompasso entre o que diz a Sra. A. e a cena enunciativa na
qual o diálogo se apresenta. Acontecimentos simultâneos que
nos confrontam com a não-coincidência entre sujeito e
falante. (idem, ibidem) (grifo meu).

O descompasso entre o dizer e a cena enunciativa, certamente, impõe


outras direções clínicas quanto à sustentação do tratamento/acompanhamento.
A fala “fora de tempo e fora de lugar” diz sobre um sujeito alienado na própria
fala. Essa constatação, ressalta Fonseca, não pede de vista a ausência de
queixa e demanda para mudança. “Ausências que, sem dúvida alguma, criam
embaraços para a configuração de um setting clínico” (idem, ibidem, oral).

115
De um modo geral, os trabalhos de Landi (2007), Emendabili (2010) e
Fonseca (2012) identificam a especificidade da demência no que diz respeito à
posição do falante frente à própria fala e à fala do outro. Especificidade
caracterizada por: (1) distinção entre afasia e demência, principalmente na
relação fala e escuta. A escuta presa ao imaginário do falante, como
semelhante, não se sustenta na demência; (2) a demência envolve a
dissolução subjetiva, marcada pela dominância da dissolução imaginária; (3) a
fala presa às vivências – presa ao simbólico – desencontra a cena enunciativa
(referência externa).
Sobre o “aprisionamento” em cenas vividas, pude observar quando
71
supervisionei a avaliação da senhora Hilda em uma instituição de longa
permanência. Apesar das suas queixas de memória e as dificuldades para
executar as tarefas cotidianas, ela não tinha o diagnóstico de demência
confirmado.
Inicialmente, chamou a atenção que o “falar de si” tomava conta dos
encontros. Qualquer texto iniciado pela terapeuta, deflagrado pela leitura do
jornal, de uma crônica, deslizava, facilmente, para cenas vividas (em negrito,
logo abaixo). Ela tinha dificuldade em se manter no texto do outro. No trecho
abaixo, a terapeuta leu uma reportagem de jornal sobre fortes chuvas na região
sul do país. Após a leitura em voz pela terapeuta, seguiu-se o seguinte diálogo:

H: Mas meu Deus, essa noite?


T: Segunda –feira, dia 26 de abril [não era a data próxima ao atendimento]
[terapeuta continua lendo]
H: Meu Deus do céu! Que barbaridade!
T: Então o que a senhora entendeu do que eu li? A senhora entendeu né?
H: Meu Deus do céu, castigo isso. Meu Deus do céu, que judiação.
T: Então, o que a senhora entendeu do que eu li?
H: Deus u livre um prejuízo desse, judiação.
T: Prejuízo do que mesmo, dona H? O que aconteceu?

71
Esse caso foi atendido por uma aluna do curso de Fonoaudiologia e supervisionado por mim.
Partes das sessões foram transcritas e estão no trabalho de conclusão de curso “Sobre a fala
de uma idosa institucionalizada: considerações sobre a linguagem e o sujeito na Clínica de
Linguagem” (WAGNER, 2010).

116
H: Prejuízo de tudo jeito. Das casa, da saúde, das pessoa, enchente desse
jeito prejudica a saúde pro pessoar, a água demais prejudica a saúde do
pessoar.
T: Aonde aconteceu tudo isso?
H: Foi na Vila São João [bairro que a senhora H. morava, mas que não
aparecia na reportagem] decerto esses dias que tava dando no rádio, mas
quase nóis não ligamo o rádio, e// a dona “B”, ela sempre gostava mais de
liga o rádio do que eu, eu engraçado, ligo só cedo, ali pelas nove hora,
escuto o programa do padre e não me lembro mais de liga. Meio dia tem
tanta notícia
T: É, tem bastante notícia
H: bastante notícia. Ela ligava, daí o filho dela levô o rádio pra arruma um
filzinho que tinha arrebentado e não trouxe.

A maioria dos diálogos entre terapeuta e paciente era marcado por


longos turnos de Hilda. A terapeuta pouco perguntava e, muitas vezes, parecia
estar “fora” do “excesso” de fala da senhora: mais falante e menos sujeito.
Esse “falar de si” era o que sustentava Hilda na própria fala, mesmo que o
outro – terapeuta- fique fora da sequencialidade. Deve-se indagar para quem
essas falas estão endereçadas. Concordo com Landi (2007, p. 5) ao afirmar
que a particularidade da fala dos demenciados diz respeito “menos à
articulação interna entre os significantes e mais a uma relação do sujeito com a
fala (própria e do outro)”. Preso à cena – alienado na própria fala – vai
“fugindo” do outro.

4.2. A queixa de dificuldades de memória na Clínica de Linguagem: o


atendimento da senhora Marlene

A instância inaugural da Clínica de Linguagem é a entrevista72. Fonseca


(2002) verticaliza os procedimentos diagnósticos nas afasias e propõe que o

72
Para uma discussão aprofundada sobre o diagnóstico da Clínica de Linguagem ver Arantes
(2001).

117
paciente (não um informante) seja convocado desde o primeiro encontro. É
uma recomendação, não uma norma, que tem como meta escutar a queixa e
um pedido do próprio paciente. Em minha dissertação de mestrado, assinalei
que o informante/acompanhante só poderia falar sobre o paciente e não pode
falar pelo paciente. “Ora, como poderia alguém, nessa circunstância, falar a
fala da outra pessoa? Como poderia reproduzir uma fala que não ouviu?”
(MARCOLINO, 2004, p. 22). O que ocorre, na maioria dos casos, é que:

o acompanhante “toma a cena”: reproduz falas médicas e, ao


falar sobre a pessoa do afásico, queixa-se dele ou das
dificuldades introduzidas, na vida familiar, por sua nova
condição, ou seja, ele fala das próprias apreensões,
incômodos e temores. Assim, a figura do afásico é erigida a
partir do “si mesmo” do acompanhante (idem, ibidem, p. 22).

Desse modo, o paciente é o protagonista da cena e pode indagar sobre


seu sintoma. Diante de um mal estar na fala, o paciente pode mostrar seu
sofrimento e é ele que demanda mudança de posição como falante. Essa
recomendação é sustentada pelo conceito de transferência da Psicanálise,
envolvendo, portanto, um manejo clínico para que uma demanda seja acolhida
(ARANTES, 2001; TESSER, 2012). A entrevista tem função clara: a
configuração do espaço clínico e engajar clínico e paciente no sintoma.
Destaca-se que um manejo clínico é operado nas entrevistas iniciais.
Primeiramente, pela questão da singularidade de cada caso (CATRINI, 2005).
Singularidade que diz respeito ao efeito que a afasia impõe ao sujeito. Não é
incomum, por exemplo, o luto pela sua condição alterada de falante tomar
conta das primeiras entrevistas. No luto, dificilmente, o paciente demanda
mudança ao clínico. Desse modo, o clínico é chamado a escutar’ o paciente e
“essa escuta deve ser voltada para o que excede a afecção orgânica”
(FONSECA, 2002, p. 89). Um segundo ponto é a própria dinâmica familiar que
se instaura após a afasia. Alguns familiares insistem em participar das sessões
para fazerem algo semelhante em casa, como se fossem exercícios. As
relações familiares que já estavam complicadas antes do incidente patológico,
neste momento, estão demasiadamente desgastadas. Nesse sentido, destaca

118
Catrini (2005, p. 07) que “efeitos da afasia no sujeito e no jogo de suas
relações familiares” devem interessar ao clínico de linguagem. Manejos sobre a
inclusão da família no tratamento e a inclusão do paciente na família ocorrem,
na maioria dos casos, no início do tratamento. Isso porque direções são
implementadas para garantir que o paciente compareça à clínica. Pode-se
dizer, então, que a instância diagnóstica é ponto de tensão na relação família-
paciente-clínico (MARCOLINO, 2012).
Na demência o paciente também é convocado para falar sobre o que o
aflige. Entretanto, há especificidade sobre a configuração da queixa, da
demanda e do delineamento do espaço clínico. Isso porque a transferência, na
demência, de certa forma, parece ser problemática. Não se trata de reduzir
essa questão à consciência e não-consciência dos déficits, como é a discussão
na Neuropsicologia, em que a saída é a inclusão do informante (fonte da
verdade sobre o paciente) para confirmar os sinais da possível demência.
A experiência clínica tem mostrado que o sujeito, com provável
demência, “flutua” ou aliena-se entre a queixa e a demanda: nega a doença em
seu início e depende da família/cuidador para sustentar o tratamento. Esse
outro modo de ser afetado pela doença e se apresentar ao clínico exige novos
enfrentamentos para a Clínica de Linguagem, principalmente na direção
terapêutica. Como sustentar uma clínica com um sujeito alienado do sintoma
(depois, alienado no sintoma)? Ou a alienação é o sintoma? O que escutar
nesses casos? Além disso, quando o sujeito pode queixa-se, nos estágios
iniciais da doença, é a dificuldade de memória que lhe incomoda. O que
significa “queixa de memória” para um Clínico de Linguagem?
Vejamos as primeiras entrevistas da senhora Marlene73, uma professora
de português e francês aposentada há 12 anos, com diagnóstico de doença de
Alzheimer, em estágio inicial. Ela chegou à clínica fonoaudiológica,
acompanhada de uma cuidadora formal74, encaminhada pelo médico, devido a
uma alegada dificuldade e deglutição para líquidos (disfagia) (conforme

73
O material clínico apresentado foi discutido, inicialmente, no trabalho de conclusão de curso
de Santos (2001) sob minha orientação. Antes disso, supervisionei este caso e conheci a
paciente Marlene.
74
O cuidador, geralmente, auxilia o idoso dependente em diversas tarefas cotidianas. Quando
um familiar assume esse papel é denominado de cuidador informal. O cuidador formal é um
profissional remunerado com alguma experiência no cuidado aos idosos (OLIVEIRA,
MARCOLINO, ANDRADE, 2011).

119
relatório médico de encaminhamento). Ela fazia uso da medicação indicada
para demência de Alzheimer (nome comercial Reminyl)75. Apesar de o motivo
do encaminhamento ser a dificuldade de deglutição, a queixa principal da
paciente fixou-se em “problemas com a memória”. Ela não se lembrou das
alterações de deglutição. Provavelmente, o médico estava preocupado com o
início da disfagia, quadro que, frequentemente, piora com o avanço da doença.
Entretanto, a queixa da própria paciente marcou nossos encontros. Quanto à
demanda, fiquei em dúvida.
No início da entrevista, ela repetiu, em vários momentos, que vinha
tendo “problemas de esquecimento” há cerca de dois anos. Quando
questionada sobre essa queixa, ela “desviava” ou, então, repetia que não tinha
demência de Alzheimer. Seguem alguns segmentos das primeiras entrevistas:
(1)
Primeiro atendimento
M = Marlene
T= terapeuta
M: o que eu mais sinto, o mais que incomoda é a falta de memória, me
esqueço, eu tava tomando remédio, importado, não adiantô nada, sabe, faz
dois anos que eu tô assim, nem quero contá que eles querem que eu tome
(riso) é aquele mundarel de remédio né, mas eu tomei direitinho pra ele
funcioná mais aumentô mais a minha capacidade de, de, de entendê, de
guardar as coisas, mais o meu cérebro, fracassô mais
T: fracassô?
M: fracassô, eu esqueço mais, não sei os telefone, sei o meu né de tanto
tempo usá, mas dos outros, eu sabia de todos os telefones e não sei mais, é
não sei nada, nem o número da minha casa.
T: e isso te assusta dona I.
M: me assusta
T: o que quê você pensa disso? Você tem medo, o que você
pensa?
M: não eu não tenho medo, mas me dá uma vontade de sará logo disso.

75
Medicamento usado para tratar a demência do tipo Alzheimer de intensidade leve a moderada
com ou sem doença vascular cerebral relevante. Principio ativo: hidrobrometo de galantamina;
Classe terapêutica: Anticolinesterásicos.

120
A paciente queixa-se da “falta de memória”, mas “nem quer contar” e oscila
entre “aumentar” e “fracassar” a memória, entre ter ou não Alzheimer: ela quer
“sará logo disso”. Neste momento, ela também diz sobre o seu fracasso –
cerebral e de posição na família – “eles querem que eu tome”. Um pedido de
ajuda se presentifica: “dá uma vontade de sará”... mas ficamos na dúvida se
esse apelo era dirigido ao clínico e, se ainda, era suficiente para sustentar um
tratamento, conforme o que se seguiu nos outros encontros com a paciente.
Neste momento, a especificidade da demência e a especificidade do caso
pressionaram. Mesmo diante de um caso em que a queixa é verbalizada, algo
parecia ficar encoberto – a própria demência.

(2)
Em outra sessão, a terapeuta pergunta sobre seus esquecimentos.

M: o padre faz um sermão mais lindo, eu presto bem atenção, depois não sei,
ele pergunta alguma coisa, porque as vezes eles fazem alguma pergunta / e eu
presto atenção porque eu sei que ele vai fazê, perguntá, não me lembro, não
guardo / esqueci, é a memória né, minha memória fraquíssima, eu tenho medo
que me dê aquele tal do Alzheimer, do esquecimento
T: a senhora tem medo disso?
M: eu tenho muito medo disso, tenho muito medo disso, porque tem uma, não
era minha amiga, amiga da minha sobrinha, irmã (SI), ela tem, também
esquecida, uma mulher tão inteligente, uma mulher boa
T: mas por que quê a senhora tem medo?
M: eu tenho medo de ficar assim também

Quanto ela nomeia a doença de Alzheimer, “cessa a representação


gramatical”, e a fala toma a direção de uma “articulação significante”. Seguem-
se segmentos ininteligíveis (SI) e um “movimento sintagmático em ato” (LIER-
DEVITTO e FONSECA, 2012). Destacado em azul, não se sabe quem tem a
doença: a paciente, a irmã, a amiga, a mulher.

121
(3)
Após ler uma pequena história, a senhora comentou, no encontro seguinte:

M: você veja, meu Jesus Cristo eu era professora e meu Deus eu dava aquelas
aulas assim com facilidade e tudo e agora não guardo na memória sabe, não
guardo na memória o que eu leio, eu sabia orações décor e agora nossa
Senhora. Orações de manhã, fazia muito as orações assim décor, de noite na
missa, a missa ainda graças a Deus sei tudo porque eu vô quase todo dia,
então a gente sabe respondê, mas assim eu vô lê uma coisa e não guardo na
memória o que eu leio.

A dificuldade de memória é caracterizada pelo esquecimento de


números de telefones, do que leu e do sermão do padre. Essas queixas de
esquecimentos poderiam ser assumidas como de linguagem, como
dificuldades para compreensão de leitura e da fala do outro. Para Marlene,
esquecer o número de telefones, o sermão da Igreja e o texto lido não são
situações subjetivas distintas. Para um clínico, esquecer números e o que leu
ou escutou são queixas de naturezas distintas?
Tendo como pano de fundo o que pude retirar do estudo de Freud e de
Lacan, parece-me não ser autorizada a desarticulação entre queixas de
memória e queixas de linguagem. A partir do que discutimos no capítulo 2, com
Freud, esquecimentos de nomes estão associados às representações-de-
palavra. Um clínico de linguagem fica, assim, autorizado a escutar e atender
casos em que há “queixa de memória”. Isso porque memória e linguagem são
“concomitantes dependentes”. Na obra “Psicopatologia da vida cotidiana
(1901)”, os esquecimentos de nomes, pessoas e objetos mostram um
funcionamento psíquico não arbitrário. Uma rede associa-se ao nome
esquecido, ou seja, uma “força psíquica produz falta na fala e/ou escrita” (idem,
ibidem, p. 42). Interessante é que Freud destaca que essas manifestações não
se apresentam “de maneira diferente das falhas que ocorrem em situações
favorecidas pelo cansaço, intoxicação e distúrbios da circulação;” (idem,
ibidem, p. 42).
Assim, esquecer e lembrar são determinados pela censura psíquica.
Destaca-se que os distúrbios da circulação, como o que ocorre nas afasias e

122
na demência vascular, favorecem as manifestações de esquecimentos, mas
não eliminam a explicação do funcionamento psíquico: há um motivo para o
esquecimento. Foi essa “força psíquica” que Messy (1993) pode retirar e
admitiu: “em quinze anos de experiência não encontrei ainda a doença
travestida com o rótulo de ‘doença de Alzheimer’ [...] cuja história não se
escorra num fato existencial” (idem, ibidem, p. 84). Isso significa que a
demência não aparta o sujeito de suas vivências.
Nota-se que as queixas de esquecimentos da senhora Marlene, em
muitos momentos, associavam-se ao discurso social da velhice, como nos
fragmentos abaixo:

(4)
M: eu sô amiga (riso), todo mundo me conhece, porque eu já tô velha do lugar,
acho que sô eu a segunda ou a tercera velha lá né, o resto, tem mais velha
do que eu, minha comadre é (SI) mas essa nunca, não foi como eu que perdi
muito a memória assim, professora sabe como é, tem que pensá muito
T: uhum, a senhora acha que pensô muito, por isso que perdeu agora?
M: eu achei que e: e/ e: eu era muito dedicada na escola, perdi bastante
depois que me aposentei, depois, meus pais doentes né, e eu sempre
cuidava deles.

(5)
M: mas a gente, engraçado como pensa na morte, eu digo Jesus do céu, eu
sei que um dia eu vou estar com o senhor, eu vou estar com o senhor, mas me
dexa ficá mais um poco, eu quero vê minha família toda (riso). Engraçado a
vida, sofrida pra mim? Não! Graças a Deus sempre fui feliz, agora que eu to
com problema por causa da velhice né, da idade

(6)
M: às vezes quando morre muitos parentes da gente (riso) (SI) falo em
morte né? Eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro
(riso) porque eu sô uma das mais velha né? Vô até com a funerária quando
não tem alguém que vá junto com o chofer eu vô junto...

123
Nos fragmentos acima (4), (5) e (6), a queixa de dificuldades de memória
está associada à velhice e à morte. Neste momento, a hipótese do espelho
quebrado de Messy (1993) faz eco. A senhora Marlene estaria antecipando a
própria morte e alienando-se na sua falta de memória? A articulação entre
esquecimento, velhice e morte implica, em primeiro lugar, os efeitos no
imaginário que o discurso social sobre a velhice pode produzir, principalmente
do discurso médico – nos quais a senescência vem relacionada a uma etapa
vital marcada por perdas. De fato, no discurso social é lugar comum que
velhice é perda de memória. Interessante é que a Marlene quer “sarar” e tem
medo que “dê o tal de Alzheimer”. Talvez os caminhos trilhados pela Marlene
sejam outros, talvez opostos ao que Messy esperava. Alzheimer é a doença
que não vem precedida do artigo o, é “tal”, quase não nomeável para esta
senhora. É um “disso”, vazio de significação para a paciente e que abre
“espaços em branco” na articulação da cadeia [em 2] Ela hesita, oscila, ri
constrangida, esconde a demência. Pode-se dizer que algo incide e produz,
como efeito, esquecimentos cotidianos. Nos dizeres da paciente vemos um
sujeito incessantemente posto a representar – operação simbólica e imaginária.
No fragmento abaixo (7), ela faz um pedido a Deus... ao clínico:

(7)
M: não concordo, quero sará, mas agora o pai eterno vai me curá, e você
(riso) ele vai nos ajudar, to com muita fé no pai eterno, ele vai me cura,
porque ontem eu assisti um pedaço da televisão, não podia nem vê porque não
escutava nada, tem que por o ouvido pra escuta e ainda de perto né, e eles
vendo lá a novela que eles gostam, eu não podia nem vê, nem olhá. E ontem
eu tava sentada mais um pouquinho mais longe sem o, sem o aparelho, sabe,
muitas que falavam, muitas coisas eu escutava eles falá, eu fiquei alegre, qué
dizê que eu já estou melhorando, né? Aos poços, né? Eu tenho medo que
me dê aquele negocio, né? Alzheimer né? Aquele que deu na Maria, na
minha amiga intima e quase irmã, mas ela não mora aqui.

O episódio no qual ela consegue compreender a novela é interpretado


como uma melhora “daquele negócio”. Uma melhora que parece uma resposta
as suas orações e que articula, novamente, a cadeia falada: “na minha amiga

124
íntima e quase irmã”... e o sujeito desaparece, ou seja, a fala faz sua função de
signo, diferente o que vimos no fragmento (2): “não era minha amiga, amiga da
minha sobrinha, irmã (SI), ela tem, também esquecida, uma mulher tão
inteligente, uma mulher boa”. A partir de um pedido a Deus, talvez ao clínico,
iniciamos a avaliação de linguagem oral e escrita da Marlene.
Nunca conseguimos um contato com a família, apesar de termos
convocarmos uma filha mais próxima da paciente diversas vezes. Todos
estavam muito ocupados, justificava a cuidadora. Para garantir a vinda de
Marlene à clínica, combinamos os horários com a cuidadora. Ela reconhecia as
dificuldades da paciente, incomodava-se e garantia a presença da senhora.
Entretanto, muitas vezes, o discurso sobre a velhice como déficit se
apresentava. Assim como a paciente, a cuidadora também encobria a
demência. Efeito do discurso familiar? É o que se nota no fragmento (8):
(8)
C = Cuidadora
C: vai fazê as coisa, ela que quê a gente já diga tudo, não a gente diz que ela
tem que pensá pra lembra, trabalha memória (riso)
M: é, telefone
C: é, telefone ela sabia muito, depois agora quando eu faço ela às vezes
pensa, não dô, ela vai e lembra, mas ela que quê eu diga tudo ligerinho pra
ela
M: (riso)
T: o que a senhora acha que é isso?
M: foi, eu fico pensando, pensando até que eu, às vezes me lembro, mas às
vezes não lembro
C: às vezes não lembra mesmo
M: é, às vezes lembro sim, de tanto pensa né? E às vezes não me lembro
[...]
C: tem os remédios que ela toma diário sabe, toma pra Alzheimer né? Ás vezes
até eu esqueço, ela não tem nada de repente ela volta, “não tem um remédio
pra toma agora?” ela lembra, eu disse só que ela tem que procura né? Pensá
lembrá das coisas, ela ficô muito, muito dependente
M: muito dependente, eu acho que é isso né
C: ela tá muito dependente por causa dos outros, por isso que ela esquece

125
“Por causa dos outros” na fala da cuidadora é também a queixa que
aparece diversas vezes na fala de Marlene. O que “eles querem” aponta pra
uma posição que ela perdeu dentro da própria casa. No fragmento (1), ela
afirma “eles querem que eu tome (riso) é aquele mundarel de remédio”; em (6);
“eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro”; em (7)
“vendo lá a novela que eles gostam”.
Neste período de entrevistas, cerca de cinco encontros, chamou nossa
atenção a alegria constante da senhora. Muito simpática, conversava com
todos na recepção da clínica. Em um dos encontros, ela dançou e cantou
cantigas de rodas com crianças na recepção. Convidava todos para um café na
sua própria casa. Um episódio foi mais marcante: quando outro paciente
sentiu-se mal e o serviço de emergência da cidade foi acionado. Olhei para a
recepção e todos estavam tensos e preocupados com aquele senhor – se ele
sobreviveria aos cuidados da enfermagem na recepção. Marlene sorria e não
“percebeu” o ocorrido. Na demência, que não há uma apreensão direta da
realidade via percepção. O que “entra” depende das condições internas, como
Freud elaborou no Projeto de 1895 – vigora, nesses casos, a “realidade é
psíquica”. Marlene já estava presa na sua própria história, como veremos na
avaliação da linguagem, já se distanciava do outro, da realidade.
De fato, a paciente não parecia sofrer ou não havia descontentamento.
Estávamos diante de outra situação, incomum, quando se tem a experiência
com afásicos. Isso não quer dizer que um drama subjetivo não se apresentava.
Ela tinha medo do “tal Alzheimer” e estava assustada com a velhice e com a
final da própria vida. Entretanto, ela resiste a tudo isso e sorri. De fato, ela
caminha para alienação. Nesse estado, Marlene não tem condição de transferir
ao outro a suposição de um saber sobre o que se passa com ela. Marlene
espera um milagre que só Deus. Ou talvez, vê-se sem saída... já velha, perto
da morte.

126
4.3. A fala e a escrita da senhora Marlene: considerações sobre a
avaliação da linguagem.

Na avaliação da linguagem, o clínico assume o compromisso ético de


construir um dizer sobre a fala/escrita e a lógica que configura o sintomático
(ARANTES, 2001). Para tanto, ele parte da constituição de uma escuta
especializada que possa ser afetada pela manifestação sintomática e que
possa afetar o tratamento. (ANDRADE, 2003; POLLONIO, 2011). O que só
será viável quando se é afetado por uma posição teórica (LIER-DEVITTO,
2004, CARVALHO, 2005). Assim, a avaliação da linguagem deve orientar a
interpretação para a fala do paciente.
Vale dizer que a interpretação não é compreensão do sentido ou
contextualização no diálogo. A interpretação76 da fala é dispositivo clínico que
promove a mudança de posição do sujeito na linguagem, ou melhor, que
produz efeito estruturante na fala/escrita do paciente (SPINA-DE-CAVALHO,
2003). Desse modo, não há regra ou norma para interpretar, mas o que se
recolhe, como efeito, na instância diagnóstica direciona a interpretação clínica.
Considera-se a singularidade de cada caso e que a interpretação preserve a
posição do falante quando o paciente procura sustentá-la.
A relação entre fala do terapeuta e fala do paciente configura-se no diálogo
clínico. Nesse sentido, diálogo77 não é comunicação ou troca de informações e
está relacionado com a noção de imprevisibilidade, indeterminação. Não há
uma relação dual – terapeuta e paciente, já que a noção de língua torna essa
relação triádica (terapeuta-língua-paciente) (MOTA, 1995). É um encontro entre
“redes significantes” que, devido à “assimetria entre falantes” (clínico e
paciente), promove um conflito marcado pela presença do sintoma. Disso
decorre que, o clínico escuta a densidade significante da fala/escrita e,
ainda, escuta um sujeito que sofre, um drama subjetivo (TESSER, 2007;
FONSECA, MARCOLINO e LIER-DEVITTO, 2009).
A escuta especializada é constituída a cada novo caso na avaliação da
linguagem. Para tanto, há o cruzamento da “escuta/interpretação em cena” e

76 Spina-De-Carvalho (2003) discute a interpretação na Clínica de Linguagem.


77
Tesser (2007) discute a noção de diálogo na Clínica de Linguagem.

127
“fora de cena”. Na escuta/interpretação em cena, o clínico está sob o efeito das
produções do paciente. A escuta/interpretação fora de cena ocorre após a
sessão, na leitura dos dados transcritos. Nessa leitura perdura a escuta “em
cena” do clínico (LIER-DEVITTO, ARANTES, 1998). Nisso, ela se distingue da
análise de um investigador sobre um corpus, sempre neutro, disposto ao seu
olhar, igualmente neutro, um olhar sem sujeito implicado naquilo que “observa”
(ANDRADE, 2001). Digamos que a escuta na cena penetra a leitura e esta
deixa, por sua vez, seus efeitos na escuta. Nessa dialética, essas instâncias
“escutar em cena - ler depois” afetam-se mutuamente e instituem uma escuta
para fala e para um fala singular. Nesse particular, o enlaçamento significante
entre fala/escuta/leitura assenta, paciente e clínico, numa mesma estrutura
clínica mobilizada pela densidade da fala sintomática.
No diagnóstico, o clínico fica sob efeito da fala sintomática. Efeito que afeta
a escuta e dá o início para a produção de um dizer sobre o caso. Para tanto,
algumas questões são elaboradas e respondidas pelo clínico: (a) quais as
características da fala do paciente? (b) qual é o efeito da fala do paciente no
clínico? (c) qual é o efeito da fala sintomática no próprio paciente? e (d) qual é
o efeito da fala do clínico na fala do paciente? (MARCOLINO, 2004;
FONSECA, 2010).
Sob este corpo teórico, algumas considerações devem ser tecidas
quando envolve o atendimento de sujeitos com demências.
(1) No que se refere a escuta para o drama subjetivo, temos um sujeito que
não sofre porque se direciona à alienação. No período inicial da doença,
um drama subjetivo pode ser escutado, não pelo sofrimento, mas pelo
arrebatamento subjetivo. O que se vê é resistência à própria demência e
ao final da vida.
(2) A escuta para trama significante sustenta a interpretação na clínica de
linguagem. A fala de pacientes com demências perde significação, mas
está articulada na cadeia falada. Desse modo, o que orienta a
interpretação clínica nesses casos? O que define o sintomático na
fala/escrita?

Na avaliação da linguagem oral da Marlene, o primeiro efeito na escuta


clínica foi que a paciente falava “sem parar”. A terapeuta tinha dificuldade para

128
interrompê-la e, principalmente, encerrar as sessões. Mais do que isso, a
terapeuta ficava “fora do sentido” porque Marlene deslizava de um texto a
outro, apesar da fala bem articulada e fluente. Deslizamentos que não eram
dispersões textuais porque ela conseguia, em muitos momentos, retomá-los.
Ela se sustentava em suas vivências. Seus relatos são caracterizados por
poucas anomias, como na palavra “computador” no fragmento abaixo (9),
deslizamentos textuais, sem dispersão. Ela quase não hesita, mas ri. As
queixas de dificuldades de memória não se apresentavam nessas histórias,
como veremos:

(9)
Terapeuta e paciente conversando sobre orientações do médico.

M: ontem ainda, meu Deus do céu, ontem eu fui na casa da minha costureira,
que ela tá muito doente, era só atravessá a rua e a filha dela tava lidando com
o, como é que é, computador, e tinha os fios tudo assim, e eu não vejo, no
fim derrubo computador, tudo
T: se enrolou nos fios?
P: credo Deus, (SI) tô caindo, nem no meu jardim que eu gostava de lidar não
posso mais, às vezes eu vejo um mato lá e quero tirá sabe? Outro dia caio lá,
caio, e eles ficam loco de brabo comigo, pra eu não ir lá, mas tão tirando
minhas flores, eu digo “ah:” que não quero que tire, plantem mais, mas
arrancam, pra eu não ir (riso)
T: o que a senhora acha disso, de cair?
P: de cai é a fraqueza dicerto, já me deu isso né, a velhera também né? (riso),
mas quero vê, ontem morreu uma senhora lá, mas eu sei que eles não me
contam mais, que eu sempre fui no enterro, mas sempre vô igual (riso) (SI) ô
se não tem que me leva de carro, né? ...que eu não ando, não vô. Antes eu ía
toda vida a pé, tem uma rampa sabe assim pra subi, eu ía a pé. Agora não
aguento ir a pé, me da dor nas perna e ando muito mal, meio tropeçando, se
eu vô tira um matinho, eu caio (riso), ontem cai lá no meu, meu Deus no
jardim (SI) não sei o que passa, também você veja, ela deitada na cama, ainda
bem que é baixinha a cama, assim lidando com o computador, bem baxinha a
cama, como essa cadeira, e tinha aquela fioarada, mas eu não notei, porque eu

129
não, sabe como é, a gente, e fui e enrosquei o pé, lá me fui, caí derrubei até
o... (riso), mas eu disse assim “meu Deus se estrago, eu pago pra você, não
fique nervosa”, mas não estrago nada, graças a Deus, não estrago, era
baxinho assim, mas eu (SI) fiquei com tanta vergonha, eu e o pai dela bebe
muito né? (SI) eu disse “não se incomode, se não dá pra consertar eu compro
um novo pra você”. Daí, ele não fez, não fez nada, mas eu só pra ele não falar
mais. E e a mulher dele, muito boa, tá muito doente também. Ela não costura
mais, e veio essa filha que não tava, ela tava empregada lá no norte, veio pra
atendê ela. Mas ela disse assim “eu vô leva lá” “cê dexe, leve consertá”. Não
fez nada né? Não fez nada, só uma coisinha assim, com certeza, porque eu
não vi, não vi nem um nada no chão e não vi nada (riso) [...].

Neste longo turno da paciente, alguns pontos chamaram a atenção na


interpretação “fora da cena”. (A) os deslizamentos, marcados em azul, sem
dispersão textual porque há um retorno ao texto inicial. Três histórias estão
articuladas quando ela inicia a narrativa da queda na da costureira:
(1) “Tô caindo” desliza para a queda no jardim, texto recorrente, como
veremos a seguir.
(2) “Velhera” articula a morte de uma senhora
(3) “Fiquei com tanta vergonha” traz “o pai dela bebe muito” e, depois a
doença da costureira.
Interessante é a passagem para a retroação, a qual produz o efeito em
cena. Ela retorna à queda na casa da costureira, mas também por um
deslizamento metonímico. Não parece a retomada da palavra, quando diz
“também você veja, ela deitada na cama”, mas um amálgama nos três textos.
Ela diz :
meio tropeçando, se eu vô tira um matinho, eu caio (riso), ontem cai lá no
meu/
meu Deus no jardim (SI) não sei o que passa, também você veja,
ela deitada na cama, ainda bem que é baixinha a cama, assim lidando com
o computador.

A referência temporal “ontem” – marcando o tempo presente do


enunciado - é duvidosa: “ontem eu caí no meu jardim” ou “ontem eu fui na casa

130
da costureira”? Nota-se que na cadeia “ontem caí lá no meu” segue uma pausa
- indício de escuta para a própria fala e de posicionamento no presente, que
articula, em seguida, os dois textos (queda no jardim e casa da costureira).
Para nossa surpresa, nas sessões seguintes, “ontem”, “esses dias”, “na
semana passada” fixou-se no dia da queda no jardim (um sujeito preso nesta
cena). Esse texto era contado em quase em todas as sessões, como se fosse
inédito e sempre ligado à velhice e à morte de outras pessoas. Os recortes
(10), (11) e (12), ocorridos em diferentes sessões, são exemplares da repetição
da narrativa sobre a queda no jardim que se repetia em quase todo encontro
entre terapeuta e paciente. Como se pode notar, não são blocos estáticos de
uma fala cristalizada. Há mobilidade no encadeamento do mesmo texto.

(10)
M: às vezes quando morre muitos parentes da gente (riso) (SI) falo em
morte né? Eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro
(riso) porque eu sô uma das mais velha né? Vô até com a funerária quando
não tem alguém que vá junto com o chofer eu vô junto com o / o chofer eu vô
junto, ele já me chama que hoje não tem ninguém, avisam pra eu ir junto né?
Porque eu não posso ir a pé, eu tenho muita dificuldade em andá sabe, caio
onde que é né? Agora como netinho, eles só me dão pra eu ficá um pouco
sentada com ele né? (SI) eu já cai no jardim (riso) eu fui plantá e cai dentro
dos cantero sabe? E eles tinham saído aquela hora lá de casa sabe, disseram
“já voltamo” a senhora sabe (SI) eu disse “não” mas vi aquele pezinho de flor lá
mal plantando, vô plantá, cai sentada, depois não posso levantá, ainda bem
que cai sentada.

(11)
M: mas e nossa, quantas vezes eu já cai
T: e não se machuca?
M: e, não, graças, de tanto eu pedi pra Deus que me ajude né? Uma vez eu me
machuquei um poquinho né? E dessa vez agora, na semana passada, eu
inventei de ir ver uns pezinhos de flores (SI) pegá e plantá eles bem
direitinho, ele tava meio assim, que de primeiro eu cuidava muito de jardim

131
dessas coisas, e agora eu não posso, eu não posso me abaixar porque depois
eu não posso levantá, a escada eu não posso subi escada.

(12)
M: uhum, agora quero vê se dá pra implantá mais esses dentes aqui às vezes
(SI) se não eu implantava todos aqui sabe, apesar de sair caríssimo né?
Porque eu tenho medo de implantá, já era pra ter implantado, de burra não fiz,
tava bem boa daí (SI) não come, a fraqueza né? E era forte, andava bem
agora não ando muito bem, tenho que andá, qualquer dia desse tenho que
andá de bengala, caio não posso me levantá, esses dias cai no jardim, eles
tinham saído um poquinho mas já voltavam, e eles não querem que eu
faça, porque eu gosto muito de lida assim com flores sabe.

Durante a avaliação da linguagem, não escutamos momentos em que a


paciente poderia se deparar com “problemas de memória”, apesar da sua
queixa. O nosso estranhamento era o “excesso” de fala que parecia não incluir
a posição do outro. Ela “esquecia” que contava a mesma história toda semana?
Ao lado disso, ela recuperava textos anteriores sem problemas. O fragmento
(13), a seguir, deixa ver um momento em que a terapeuta se perdeu nas
histórias da paciente e retoma questionando a paciente:

(13)
M: conversei de mais
T: como foi que nosso assunto começou?
M: começô, você, mando eu lê aquele livro, lembra? Me perguntô uma porção
de coisas, que eu não me lembro mais (riso) e daí você mando eu, aquele lá,
da galinha né? Cachorro e o, não, papa, ô, papagaio.
T: ah sim! Nós lemos um texto do cachorro e do passarinho né? [esse texto foi
lido um mês antes desta sessão]
P: é
T: mas isso foi faz tempo né?
P: foi o primeiro!
T: é foi o primeiro, mas hoje eu digo. Hoje como que a gente começô com
nosso assunto?

132
P: eu comecei contando das minhas operações

Na avaliação da linguagem oral, não escutávamos um fala com muitos


problemas que justificasse um atendimento. A queixa de dificuldades de
memória não se confirmava nos enunciados. A fala era fluente e bem articulada
nos relatos pessoais. Neste momento, estávamos com textos que se repetiam
em todo atendimento (velhice, queda, morte) e um excesso de fala que impedia
a entrada do outro. Além disso, a alegria sempre constante e a alienação na
recepção causavam estranhamento. Continuamos a avaliação para
acompanhar as queixas sobre dificuldades de compreensão da fala do outro
(do sermão, da novela).
Na avaliação da escrita, outra posição frente à própria fala e ao texto
escrito se apresentou. Frente ao material escrito, uma “prova” de memória
parece se configurar para a paciente e ela paralisa. Segue o fragmento (14)

(14)
Primeiramente, Marlene lê uma pequena estória em voz alta e depois
silenciosamente:
M: Era uma vez um pássaro que andava sempre a achar, a chatear um cão,
um dia o cão fez uma armadilha na árvore onde o pássaro tinha um ninho, o
pássaro ia para o ninho e caiu na armadilha, o cão então pegou nele com as
patas e fê-lo prometer que não voltava chateá-lo, o pássaro aceitou claro, claro,
o cão agora vive feliz.
T: muito bem, então agora a senhora me conte o que foi lido
M: aham, meu Deus do céu (SI) (riso)
T: pode lê novamente, fique a vontade
P: (riso) (lê silenciosamente duas vezes)
P: ah então // a história do cão, do pássaro né?
T: uhum
P: que andava a, sempre a chatear um cão né? O cão um dia fez uma
armadilha pra ele, e ele caiu na armadilha né? / eu não me lembro mais, você
viu a memória?
T: e....

133
M: (Lê o final da história e comenta) você veja, meu Jesus Cristo eu era
professora e meu Deus eu dava aquelas aulas assim com facilidade e tudo e
agora não guardo na memória sabe? Não guardo na memória o que eu leio, eu
sabia orações décor e agora nossa Senhora, orações de manhã, fazia muito as
orações assim décor, de noite na missa, a missa ainda graças a Deus sei tudo
porque eu vô quase todo dia, então a gente sabe responde, mas assim eu vô
lê uma coisa e não guardo na memória o que eu leio.

Quando a terapeuta narrava uma história ou pedia para a paciente ler


algo e depois comentar, Marlene paralisava, se queixava, não arriscava mais.
De fato, ela não conseguia narrar nada que não fossem suas próprias
vivências. Efeitos sobre um sujeito que carrega o diagnóstico de Alzheimer? A
relação com a fala do outro criava embaraços. Ela não sustentava a escuta
para fala/texto do outro. Nem sempre ela compreendia a fala do terapeuta e
paralisava frente aos textos do outro. Um esvaziamento imaginário despontava
e um simbólico que aprisionava o sujeito.
Na escrita, ela era afetada por aquilo que produzia. Ao ler o texto
(abaixo) que escreveu, ela disse: “viu como eu erro” e “não sei o que eu fiz
aqui”. Ao final, “pareço uma criança escrevendo”.
Quanto à escrita, assim com a fala, fica presa nas próprias vivências,
nos relatos pessoais. O texto abaixo era para ela recontar a narrativa que
escutou da terapeuta:

(15)

134
(transcrição):
A costureira
Certo dia uma menina levou uma fazenda para fazer um vestidinho. A
costureira ficou muito contente porque a fregueza era muito sua amiga- como a
menina era pequena a costureira levantou-a em cima de uma mezinha para
tirar a medida de seu vestidinho.
A criança (menina) ficou muito fez de ganhar um vestido novo. A
costureira tirou a medida do vestidinho e com muita alegria e falei ótima! Na
costura ficou muito contente, tão contente, assim como a menina, pois a
costura ficou certinha e muito bem feita – tanto costureira com a menina
ficaram feliz porque tudo bem certo.
Muito Obrigada Dona Olga a costureira ficou bem como eu queria
depois mamãe acerta com a senhora, já vou com ele para minha mãe também
fica feliz. Um beijo minha querida costureira. Tchau.

Nota-se que ela inicia na posição de narrador, como lhe foi solicitado,
mas depois assumiu o lugar da personagem (criança). Encerra seu texto com
agradecimento a sua própria costureira (Olga), como em uma carta.
Deslizamentos de posição que mantém a textualidade, não dilui o sentido, mas
perde a referência – um narrador e outro texto contado pela terapeuta, apesar
das semelhanças.
135
Chamou atenção que, sem a solicitação do terapeuta, a paciente passou
a escrever diariamente em casa. Em sua opinião, ela dizia que a escrita
melhora o “esquecimento”. Tomamos isso como um efeito produzido pela
escrita e uma direção clínica iniciada pela paciente.

4.3. A direção de tratamento no caso da senhora Marlene

Uma clínica de linguagem se faz nos efeitos da interpretação do


terapeuta da fala e escrita do paciente. Na terapêutica, como afirma Tesser
(2012, p. 88), “o clínico faz suplência aos descaminhos da fala”. Isso quer dizer
que o clínico oferece apoio – contenção e contorno – para que o paciente se
sustente como falante. A partir da interpretação do clínico, a fala do paciente
produz efeito de significação e faz, portanto, faz signo: há encontro entre
referência interna e externa.
A senhora Marlene não precisava da interpretação do clínico para falar.
De fato, para falar de si, ela não precisava do outro. A instância diagnóstica
direcionou a escuta para a repetição e aprisionamento dos textos. A primeira
direção foi que o clínico também pudesse “entrar” no excesso da fala. Frente
aos longos relatos, especialmente nos deslizamentos, o clínico pontuava
cruzamentos de textos, dispersões, retroações. Assim, Marlene poderia falar
para outro e não somente para si própria. É o que se segue abaixo:

(16)
Paciente trouxe a oração de São Miguel escrita para a terapeuta. Após a
leitura, ela faz um longo relato sobre São Miguel e desliza para uma outra
história do evangelho.

T: uhum, mas então tá, ó nos estávamos falando da oração de São Miguel né,
a senhora tava me contando da oração, daí a senhora me contô desse
evangelho, ta porque a senhora lembrô dele? O que esse evangelho tem
relacionado com a oração que fez a senhora lembrá?

136
P: porque ela defende né? Defende de todo o perigo né? Pois é, a oração que
é isso defendei-nos no combate né? Ele tem (SI) e ele defende / tem São
Miguel, São Rafael e São Gabriel, são três santos né?
T: são
P: e: São Miguel ele, ele, ó ali, da manada do porco que eu contei agora (riso)
olha aqui ó ciladas do demônio né? É São Miguel, São Gabriel, cê veja eu sei
tudo, São Gabriel (falou sussurando a oração de São Miguel), é, é esse ai é
São Miguel, agora não me lembro do São Rafael, são três protetores, os santos
anjos né? O meu é esse aqui, o meu protetor (riso).

Os questionamentos da terapeuta produziam hesitações na fala da


paciente. Ela parava e respondia ao outro para sustentar uma fala mais
endereçada. Decidimos, também, que a escrita seria um bom caminho, já que
a paciente era afetada pelo material e paralisava. Esse era um momento de
fazer a suplência imaginária da sua posição de falante/escritor. Entre fala e
escrita há relação de “mútua afetação” porque são regidas pelo funcionamento
linguístico. No entanto, a distinção entre a posição sujeito-fala e a posição
sujeito-escrita deixa ver que uma modalidade pode ser apoio para outra, como
testemunha a clínica (MARCOLINO e CATRINI, 2006).
Implicada com os atendimentos, a paciente quis escrever todos os dias
em casa e trazia seus textos para a terapeuta. Marlene escrevia sempre o
mesmo tema: o que ela fez no dia. Apesar das sugestões da terapeuta, ela não
arriscava outro texto. Talvez entendesse a escrita como um “exercício”, sem
endereçamento. Ela comentou: “o médico disse que era bom escrever para a
memória, mas eu tinha preguiça”. Neste tipo de texto, um relato diário, a
senhora sustentava sua posição como escritora. No início de cada sessão, a
terapeuta lia em voz alta seus relatos:

(17)
T: dia oito. Nesse dia levantei mais cedo, já estava melhor, minha vizinha veio
me visitar, conversamos bastante e almoçamos, à tarde como sempre, fui tirar
uma soneca, à noite fui à missa e depois assisti o jornal na televisão como de
costume, nada de bom, só tragédias, poucas noticias boas, nada como antes,

137
noticias boas, filmes e novelas descentes e boas e agora..... e aqui dona
Marlene.?
M: agora (SI), agora (SI) (riso)
T: uhum, “fiquei um pouco com, com” aqui, como que é aqui? “com visita”?
M: “eu fiquei um pouco com, com, com nossas visitas” pode pôr “com visitas”
“visitas” é visitas, ta ali, “com visitas de sempre”
T: ah tá, “fiquei um pouco com visitas de sempre”?
M: é
E: ta, “e logo fui dormir, boa noite”
M: (riso)

Na leitura desses textos, Marlene compreendia, na maioria das vezes, a


fala do outro e não paralisava. Ela continuava um texto próprio, mas falado e
indagado pelo outro. A realidade se organizava pelas interpretações da
terapeuta. Após seis meses, ela decidiu encerrar os atendimentos porque
estava se sentindo melhor. Ela diz:

(18)
M: essa melhora, acho que foi, não sei, de eu vir aqui né? Talvez fosse né?
Porque daí eu comecei a escrevê, e eu tinha muita preguiça de escrevê, sabe?
Mas o médico já tinha dito que eu tinha que escrevê sempre, e eu tinha
preguiça, por isso que entrei na pintura pra, por causa da preguiça que eu tinha
de escrevê, me esquecia muito, sabe de escrevê, e aqui eu comecei me
lembrá, com você
T: A senhora acha que a memória da senhora melhorô?
M: tá melhorando, porque eu lembrava dos sonhos, e comecei a sonhá e
lembrá, qué dizê que eu melhorei, eu nunca sonhava antes, nada e sonhei só
com o passado, com o presente eu não sonhei nada, queria sonhá também
com o presente pra vê, dicerto que tô me lembrando né? porque não
sonhava nada né? E agora to com essa sonhação.

As queixas de dificuldades de memória da senhora foram tomadas como


“desnodamentos” do Imaginário. Precisamente, entendemos que Marlene
estava se distanciando do outro e da realidade imediata e aprisionando-se em

138
suas próprias vivências. A direção do atendimento foi pautada pela tentativa de
suplência imaginária que pudesse mantê-la mais próxima do outro e da
realidade textual em curso. As queixas não desapareceram, mas algo se abriu
como “esperança” para a paciente. O que esse curto atendimento nos ensinou
é que uma clínica dita de linguagem permite que a lembrança aflore. Marlene
agora se lembra de sonhos! Uma lembrança que só pode se apresentar ao
sujeito quando autorizada pela censura e articulada à palavra, ao simbólico,
como ensinou Freud.

139
Considerações Finais
_______________________________________________

Freud, na ocasião do setuagésimo aniversário de Romain Rolland,


escreve-lhe uma carta com a esperança de oferecer alguma contribuição
científica que expressasse admiração e gratidão ao amigo. Entretanto, Freud
se justifica: “sou dez anos mais velho que o senhor, e minha capacidade de
produção está no fim. Tudo o que posso lhe oferecer é o dom de uma criatura
empobrecida que viu dias melhores” (FREUD, 1936/1977, p, 293). Curioso é
que Freud elege a interpretação de um “distúrbio de memória”, um “incidente”
que vivenciou, os 48 anos de idade, quando visitou a Acrópole. Uma lembrança
que perturbou Freud e, como ele diz: “depois que envelheci, agora que tenho
de ter paciência e não posso mais viajar” (idem, ibidem, p. 303). Não é por
acaso que Freud vai tratar de um “distúrbio de memória”, quando imagina estar
no final da vida.
A lembrança foi a seguinte: depois de uma viagem longa, com ânimo
deprimido no percurso, Freud e seu irmão chegam à Acrópole. Ao ver a cidade
com os “próprios olhos”, ele não consegue acreditar na realidade, ou seja, uma
dúvida pairou sobre suas próprias “impressões”. A realidade se apresentou
confusa e distorcida. Esse fenômeno, Freud denominou de desrealização e
explicou sob dois aspectos: (1) o Eu mantém a realidade insuportável e aflitiva
afastada com o objetivo de defesa e (2) a desrealização depende de
recordações do passado.
Ele se lembrou de seus desejos, nos tempos de colégio, de conhecer o
mundo. Não imaginou chegaria tão longe, a Antenas, dada as condições
financeiras da família. Assim, sua memória pareceu recusar o que não poderia
ser real: a Acrópole. O sentimento de culpa durante o caminho também foi
relacionado à distorção da realidade. Freud reconheceu que esse sentimento
de culpa era um “respeito filial”. Acrópole, afirma ele, era a prova de algo
errado: a superioridade dos filhos, já que seu pai tinha pouca instrução e essa
viagem não lhe faria sentido.

140
O que Freud trata como “distúrbio de memória” quando se vê velho está
intimamente relacionado à percepção e à realidade. Nota-se que a crença, do
passado, de que seria impossível ver a Acrópole, “com próprios olhos”, distorce
a realidade no presente. A “desrealização” depende de recordações do
passado – da realidade psíquica. Ele articula uma rede (histórias de infância na
escola, em casa, desejo de viajar, a função paterna) que determina a
percepção. Chama a atenção, ainda, que o Eu – essa face imaginária, em
termos lacanianos – afasta o sujeito da realidade. Não estaria um tanto disso
em jogo na demência?
No percurso de realização desta tese, a discussão sobre a relação
memória-linguagem envolve posicionamentos sobre dualismos filosóficos:
homem-mundo, percepção-objeto, palavra-coisa. Envolve questões que têm
respostas difíceis. Não pretendi “resolver” questões e sim abrir novos
horizontes para discussões sobre esse tema tão exigente. Um percurso foi
traçado. Do ponto de vista teórico, este trabalho procurou sustentar a ideia de
que a relação memória-linguagem é “concomitante dependente” (uma
expressão de Freud que ressignifica a relação psico-física de Jackson). Lacan
esteve presente com seu R/S/I. Procurei abordar a questão da “memória” na
Clínica de Linguagem com sujeitos demenciados. Pontos de vistas que se
interpenetram, já que os efeitos clínicos que a demência produziu na minha
escuta direcionaram o encaminhamento teórico.
Espero ter podido fragilizar o argumento presente nos estudos
neuropsicológicos de que “o debate sobre as relações entre linguagem e
memória não escapa a uma reflexão sobre a cognição” (CRUZ, 2004, p. 601-
604). A concepção de memória como arquivo e a relação hierárquica entre
memória e linguagem colocam impasses diagnósticos, principalmente na
delimitação entre o normal e o patológico. Observaram-se, ainda, resultados
inconclusivos no que diz respeito ao funcionamento cognitivo subjacente. A
sustentação do vínculo percepção-objeto, palavra-coisa, não abre espaço para
questões clínicas sobre os efeitos plurais da demência no falante. O
fonoaudiólogo filiado ao discurso da Neurospicologia está fadado à estimulação
cerebral, porque não tem escuta para o “doente”.
Freud submete a memória ao aparelho de linguagem. Como
consequência, a memória é dessubstancializada porque é efeito do jogo

141
associativo. A constituição da realidade psíquica e a suspensão do vínculo
percepção-objeto ou palavra-coisa demandam um esforço teórico para se
compreender o encontro do sujeito com a realidade, ponto nevrálgico que se
instaura na demência. Isso porque, como já disse a demência dissolve
lembranças e laço social; dispersa a unidade, o efeito de significação e a
referência. Entretanto, algo resta de fala e de falante: recortes que a linguagem
fez no mundo que, uma vez enunciados, em seguida, desfazer-se. A
possibilidade de a linguagem recortar o mundo só se realiza quando “alguém
diz alguma coisa”, como apontou Landi (2007). Ou seja, o referente não está
destacado do falante.
No momento que o sujeito profere, “um mínimo de língua corresponde
ao mínimo de realidade” (MILNER, 1983/2006, p. 35). Este enigma demanda
mais um passo teórico (e clínico): passos que serão dados em trabalho futuro.

142
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