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l , il1111 1:, lt Silv,1 Ü JAGHIIMIIÇÃO


Dedico estes Ensaios para a minha filha, Carolina,
l, 111,1\ 1 ui, dc.: 11.\dua Aircon Felix Silva Souza
por ter aprendido com ela o que de Jato importa nesta
/\ L111 111 F.1hri dos 1\njos
vida: o amor. Obrigada, Cacá, você me abriu caminhos
/\ l ,111 li i lll,I \ 'l tllll:tZ CAPA
inesperados. Por meio de sua presença, arte, alegria
Aircon Felix Silva Souza
e valores únicos, eu me tornei uma pessoa melhor e
Guilherme de Lucas Aparecido Barbosa
incomensuravelmente mais feliz.
- Luciana Zaterka
l\1do, 11, d il'citos cm língua portuguesa, para o Brasil, reservados à Editora
ldc·i.1, & l ,c 1r.1~, 2022.
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Avenida São Gabriel, 495


( 'onj111110 '12 - 4° andar
1/)1/( //1/1 J.,rdim Paulista - São Paulo/SP
IDEIAS& Ccp: Ol '1 35-00 1 Dedico estes Ensaios para os meus pais, Alberto e Leoni.
LETRAS 'Jclcvcndas: 0800 777 6004
vcndas@ideiaselerras.com.br - Ronei Clécio Mocellin
w\vw.ideiaseletras.com.br

1>udos Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com o ISBD

'/, IHc.: Zaterka, Luciana


l: ns a io s de história e de filosofia da química/ Luciana Zaterka, Ronei Clécio
Mocellin. - São Paulo : Ideias & Letras, 2022.
328 p. : il.; 15,7cm x 23cm. - (Filosofia e história da ciência)

Inclui bibliografia e índice.


ISBN: 978-65-87295-31-2

l. Filosofia da química. 2. História da química. I. Mocellin, Ronei Clécio. II.


Título. III. Série.
2021-4614 CDD 540
CDU54

Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949


Índices para catálogo sistemático:
1. Química 540
2. Química 54
40 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA

questões de cunho epistemológico, metodológico, ético, político, econô-


mico e social, apresentando, assim, a química com toda a sua centralidade,
Capítulo 1
identidade epistêmica e capilarização social. Alquimia e química:
permanências e rupturas

A transmutação (transmutare) de metais comw1s em metais nobres, como a


prata e o ouro, constitui um dos principais objetivos dos autores dos primeiros
textos alquímicos escritos no Ocidente, como aqueles do Pseudo-Demócrito
(século II d. C.) ou de Zósimo de Panópolis (século III/N d. C.). É importante
notar que a datação e os autores desses e de outros textos alquímicos só come-
çaram a ser historicamente estabelecidos no século XIX, com os trabalhos de
químicos-historiadores, como Hermann Kopp (1817-1892) e Marcellin Ber-
thelot (1827-1907), e ainda são tema de controvérsias entre especialistas (cf.
MARTELLI, 2011). Portanto, até a recepção tardia desses textos alquímicos
no Renascimento europeu e o declínio da alquimia como um saber explicativo
acerca da matéria e de suas transformações, julgava-se precipitadamente que a
arte alquímica tinha origem em uma época muito remota, criada por sacerdotes
egípcios e praticada por outros sábios da Antiguidade (cf. YATES, 1995 [1964]).
Essa ancestralidade proposta revelava-se útil para a justificação de uma
prática que irá compor o corpus alquímico. Os verdadeiros autores davam
lugar a pseudônimos de sábios rn:íticos ou de pensadores antigos conheci-
dos, o que constituía uma verdadeira estratégia de transmissão dos textos,
aumenrnndo sua credibilidade junto ao seu possível leitor. Foi o caso, por
<:xernplo, de t <.:XlOS relacionados a temas alquímicos atribuídos a filósofos an-
tigos, l'o nw Pi dr,0 1':l'l (570 a. C.), Ocrn6crito (460 a. C.), Platão (427 a. C.)
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42 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 43
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ou Tomás de Aquino. O mesmo ocorreu a alquimistas célebres, como foi mundo chinês, que, embora apresentasse similitudes com aquela praticada
o caso do autor do mais importante livro de alquimia escrito no medievo no ocidente greco-árabe-latino, não mostrou evidências de uma influência
latino, o Summa perfectionís magísteríí, atribuído ao árabe Jâbir ibn Hayyân recíproca (cf. NEEDHAM, 1983).
(século VIII), cujo nome foi latinizado como Geber, sendo que, provavel- Portanto, em linhas gerais, a alquimia ocidental estruturou-se a partir de
mente, o texto foi escrito entre os anos de 1270 e 1300 por um monge três eixos principais: os conceitos extraídos de filosofias gregas sobre a ma-
franciscano. Os alquimistas certamente não foram os únicos a empregar esse téria, uma literatura de receitas que tratava de metalurgia, de tinturaria, de
procedimento literário, porém foram eles que o utilizaram de maneira mais ourivesaria ou de outras artes práticas, e, ainda, um corpus místico-filosófico
efetiva a fim de erigir o corpus de uma filosofia da natureza capaz de conferir atribuído a Hermes Trismegisto. Comentadores recentes da história da
articulações racionais entre uma investigação efetiva do mundo natural e alquimia têm apontado os elementos de racionalidade que fundamentam
um trabalho de iniciação místico-esotérica, que dava sentido às suas práticas as teorias alquímicas sobre a matéria e a natureza até mesmo do ponto de
no laboratório. Além da forma escrita, esse corpus filosófico da alquimia e o vista de alguns resultados experimentais. Não se trata, certamente, de uma
conjunto de suas receitas também eram transmitidos, sobretudo a partir do racionalidade do tipo lógico-matemática, tal como será entendido na Mo-
século XIV, por meio de imagens e de símbolos, cuja decodificação somente dernidade com Galileu Galilei (1564-1642) ou Isaac Newton (1643-1727),
era acessível aos iniciados na arte sagrada (cf. HALLEUX, 1979; OBRIST, mas de um tipo teórico e argumentativo que vinha acompanhado de uma
1982; NEWMAN, 1991). demonstração prática tanto no âmbito da operação no laboratório quanto
A alquimia ocidental originou-se, assim, no Egito helenizado do início na subjetividade do alquimista. Esse corpus alquímico, composto por inú-
da Era Cristã (Alexandria foi fundada em 361 a. C.). A alquimia greco- meros manuscritos e livros impressos, constituiu, assim, tanto uma filoso-
-alexandrina tinha como fontes principais uma literatura de receitas, filoso- fia namral, ou seja, um conjunto de teorias filosoficamente fundamentadas
fias gregas sobre a matéria (dos pré-socráticos, platônicos e neoplatônicos, para explicar a natureza da matéria, de suas propriedades e de suas transfor-
atomistas, estoicos e aristotélicos) e revelações místico-filosóficas atribuídas mações, quanto uma fonte de transmissão de saberes práticos sobre a fabri-
ao lendário HermesTrismegisto (cf. FESTUGIERE, 1949-1954). Esses tex- cação de substâncias e dos utensílios necessários para compor o laboratório
tos se difundiram primeiro pelo mundo bizantino, sendo traduzidos para o do alquimista. Enfim, outro indício dessa "racionalidade alquímicà' pode
árabe somente a partir do século VIII e para o latim a partir dos séculos XII ser encontrado no diálogo que os alquimistas estabelecem com outros filó-
e XIII. A busca por um elixir que prolongasse a vida humana era também sofos de seu tempo, de modo que; mesmo de forma periférica, participaram
um objetivo importante entre os alquimistas, sobretudo após a reivindicação das controvérsias filosóficas predominantes em cada período. Exemplo disso
de uma medicina química por Paracelso ( 1493-1541), que foi o responsável é a posição tomada diante da obra de Aristóteles, em especial com relação
por uma grande renovação da racionalidade alquímica no período n: n:isccn- :\ sua teo ria da matéria e seus quatro elementos fundamentais (água, terra,
tista (cf. D EBUS, 1965, 2002 [1972]; PAGEL, 1989; W l-:BS'l'l 11l, 2008). Í()!-!;O <.: ar) i: 1,)1 :i, rt·~pl·t:tiv:1s qualidades (frio, seco, quente e úmido), que
Além disso, mais do que :is t r:i nsmurns·õc.;s mcrah'11·r it ,1•,, 1
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ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 45

1•,1vgo, como ocorreu com o estoicismo (cf. JOLY, 2013; PRINCIPE, 2013; como destaca um aforismo de Plínio, o Velho, em sua História natural (cf.
1, /\ 1IN , 2016). HADOT, 2006, p. 46). Com isso, queremos, mais parecisamente, analisar
N:ío há uma única história da alquimia, pois, ao longo de quinze séculos, esse "paradigma feminino" a partir de dois conceitos que acreditamos ser
<·x i\1 ir:11n e coexistiram diferentes alquimias, diferentes teorias da matéria, de próprios da tradição alquímica: o de temporalidade e o de organicidade. Se
111mlo q ue a história narrada depende do ângulo de abordagem, além dope- na Modernidade o tempo passa a ser uma grandeza física e o universo uma
1lodo e dos autores escolhidos pelo historiador. Podemos, porém, dizer que grande máquina concebida por um Deus criador, na alquimia o tempo é
11~ .ilquimiscas foram os precursores dos químicos modernos? A relação entre associado à geração da vida, ao crescimento dos minerais nas entranhas da
,, q11í111ica moderna e a alquimia antiga é bem mais complexa do que uma terra, à corrupção dos corpos e à morte. Para os alquimistas, a Natureza
11·1.11,,10 de influência e de precursores. Não houve na história da química uma era orgânica e dinâmica, o útero gerador de todas as coisas que existem, e
11·vn li u,fo galilaica que poderia caracterizar, m esmo assim com dúvidas, uma para conhecer seus segredos era necessário obedecer aos seus processos de
, upt ura radical entre o moderno e o antigo. O que houve foi uma continui- transformação e desenvolvimento. No entanto, a associação da Natureza
d,1dt· 1éc11ico-experimencal e de alguns conceitos operatórios, acompanha- ao útero não exclui o âmbito masculino, e se achamos pertinente chamar
d,1 d v uma profunda ruptura cosmológica associada às investigações sobre de "feminino" alguns elementos dessa racionalidade alquímica é porque
m 111:iLcriais. As continuidades e rupturas mais específicas que atuaram na também gostaríamos de lembrar que muitos conceitos alquímicos foram
p,l\\,1gcm entre essas duas tradições de pesquisa podem ser observadas na elaborados a partir de analogias sexuais.
.1111pla literatura publicada depois do surgimento da imprensa e também nos O experimento alquímico não tinha por objetivo a corroboração ou a
programas dos cursos criados para o ensino de química nas academias e nas refutação da teoria em questão, mas o teste da habilidade experimental e da
1:,c uldades de m edicina [cf. AMBIX, 68 (2-3), 2021]. pureza espiritual do adepto da arte alquímica. Por isso, não era estranha a
Na sequência, começaremos propondo um dos aspectos que conside- presença de um oratório no laboratório alquímico, pois somente alcançaria
ranws ser perenes na racionalidade alquímica. Para tanto, denominaremos os elevados objetivos da filosofia alquímica aquele que conseguisse transmu-
c~sa co ntinuidade na tradição alquímica ocidental com a expressão "para- tar a si mesmo, que se purificasse assim como pretendia purificar os metais e
digma Fem inino" de raciocínio, que será rompido na Modernidade com a obter o elixir. Assim, após analisarmos esse "paradigma feminino" de racio-
t'llH:rgência de um paradigma que, por oposição, poderíamos chamar de nalidade, propomos visitar o alquimista em seu laboratório a fim de melhor
"m as ulino" . Contudo, com o emprego dessas expressões, não queremos compreender essa dupla dimensão experimental e espiritual de seu trabalho,
t·~scncializar aspectos femininos e masculinos, mas apenas diferenciar a re- isto é, a dimensão esotérica e a dimensão exotérica de seu labor, bem como
1:u;fo que pesquisadores antigos e modernos tinham com a Natureza. Nesse o que será absorvido nas atividades dos novos químicos. Concluiremos este
1il'llt ido, seguimos a identificação feita a partir do século I a. C: e tk s tacada cn pítu lo apon t.indo como se d eu o abandono d esse paradigma feminino e
po r Picrn.: l ladot :w descrever a Natureza com o u1rn1 d t· 11 ~.1. q111° podi ,1 ser dcscr<.:v<.:ndo ,dg111n a~ n.:l:lçôcs secre rns entre dois dos principais pensadores
l11 vrn ,1d.1 e r r.1 rn 111,idt· 1·:1d:t corno :1 111:'h.: de Lod:1~ .,,., 11111.,,,., t l 1111 , 11 1 lt,1 .d- d., 1·t·vo l11~,Hl ~ h•11tllit ., n1mkrn:i , Nt.:wton <.: Boyk, c a tradiçfto :.1 lquímica.
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46 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA
ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 47

Essa concepção, nomeada por Elia.de de "embriológico-obstétricà', em-


1.1 Alquimia, temporalidade e organicidade:
bora anacrônica, fornece-nos pistas importantes dessa visão de mundo na
um paradigma feminino
qual a natureza é compreendida em todo o seu dinamismo e transformação.
Há pelo menos sete mil anos convivemos com práticas, produtos e pro- O ciclo da vida que engloba o nascimento, o desenvolvimento e a morte
cedimentos ligados à matéria, como cerâmica, metalurgia, corantes e medi- representa bem essa perspectiva, que tem como base a integração e a aliança
camentos. As primeiras ideias sobre a possibilidade de transformar a matéria entre o humano e a natureza. M ineiros, metalúrgicos, agricultores, ferreiros
parecem estar ligadas ao início da prática metalúrgica: muitas civilizações an- e alquimistas baseiam-se nessa visão para desenvolver seus conhecimentos
tigas, como a egípcia e a chinesa, acreditavam que pedras e minerais cresciam e práticas, e para todos eles, o que subjaz às suas relações com a matéria é,
no ventre da Terra e fizeram importantes usos dos metais, o que auxiliou no sobretudo, uma associação mágica e simbólica. Essa concepção de matéria
desenvolvimento da produção de alguns materiais metálicos. Sumérios e ba- tem como fio condutor a crença de que ela é viva e sagrada e, portanto,
bilônios, por exemplo, desenvolveram técnicas para se obter os metais a partir moviºda por uma a1ma. D e 1ato,
e " a mulher" , "a grande mae
~ ", "a mae
- -r
1erra"
de minérios e produzir ligas metálicas como o bronze. Essas técnicas sempre eram conceitos-chave para homens e mulheres interessados no conhecimen-
foram acompanhadas de cerimônias ou rituais, pois para fundir o ferro, por to do mundo natural compreenderem e interagirem com os fenômenos do
exemplo, deveria-se esperar o momento adequado, aquele no qual Marte in- universo e seus respectivos reinos animal, vegetal e mineral.
Auenciaria tal fundição de maneira efetiva. Assim, para operar no âmbito da Acreditava-se que a mãe Terra comandava esses reinos como uma alma
materialidade, havia a necessidade de uma sabedoria profunda, qual seja, a universal, ou anima mundi. Ao alquimista, agricultor e minerador cabia o
de compreender e explicitar as relações cósmicas entre o homem e a matéria. papel sagrado de entrar em contato com essa natureza viva, com esse âmbito
Além disso, as sociedades agrícolas antigas operavam também com uma con- de sacralidade, e, aos poucos, desvendar os seus mistérios para, sobretudo,
cepção animista de natureza. Nesse sentido, a natureza seria a deusa em cujo auxiliar nos seus processos de crescimento e maturação. A mãe Terra guarda
ventre fértil germinariam as sementes. Como enfatiza Mircea Eliade no seu já em seu ventre os embriões metálicos que, como sementes, vão se desenvol-
clássico Ferreiros e alquimistas (1979), o universo metalúrgico na Antiguidade ver e se transformar. Eis a base da suposição de que um metal pode vir a se
possuía um universo mental próprio e, com isso, acreditava-se que as substân- transformar em outro, seguindo diversos graus de maturação que vão do
cias minerais participavam da sacralidade da Terra-Mãe. Daí a afirmação de cobre ao ouro, produto final dessa elaboração. A imagem da gestação é tão
que cresciam no ventre da Terra como se fossem embriões: forte que se acreditava que, se nada obstruísse o processo natural, a natureza
transformaria qualquer metal em ouro.
A metalurgia adquire um caráter obstétrico. O mineiro
O importante nessa discussão é que o feminino, o vivo, o útero e a
e o metalúrgico intervêm no desenvolvimento da em-
briologia subterrânea: aceleram o rirmo de cresci mento mulher silo d ementas constitutivos de uma visão ontológica e cosmológica
dos minerais, colaboram na obra cln N,11111t•1,1 I... J. Em dcs$a m :1 1t 1·l. il ld,1dr l' natureza. Não é menos importante, por exemplo, que
suma, através das récnic:is qu e 1111111,1, 11 111 111 11111 lh111111
par:1 1·\~,1 11 ,ull,, ,111 ,ilq11 í111ic:1 os íornos sejam verdadeiros úteros artificias,
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tc111os um paradigma ani111ista, org:'lnico c in:\gi( o, 1t< 1 q11 .il n kn1i 11ino e
todas as suas representações possuem um focus privilegiado e lt11Hhntc.
Das inúmeras imagens que poderíamos utilizar para escla recer essa cos-
movisão, a de Urban Hjarne (1641-1724), elaborada no século XVIII, cha-
ma-nos a atenção (figura 1). Nela, podemos observar essa imponente mãe
Terra, representada por meio de três partes de seu corpo: os reinos animal,
vegetal e mineral, os quais ela germinaria e comandaria como uma alma
universal. O corpo pode ser lido também como um "forno", no qual metais
e sementes irão nascer e se produzir. Todos os reinos, por meio dela, estão
interconectados com uma finalidade clara: propiciar a divina fecundação.
Ao lidar com uma concepção de matéria viva e ativa, agricultores, me-
talúrgicos e alquimistas extrapolavam o âmbito da técnica, pois a eles cabia
uma serie de rituais mágicos. "Os fornos, de certa manei_ra, constituem um
novo útero, um útero artificial, onde o mineral completa a sua gestação. Daí
o número infinito de precauções, tabus e rituais que acompanham a fusão"
(ELIADE, 1979, p. 48). Nesse sentido, a arte alquímica acabou por criar
no homem um sentimento de confiança e até mesmo de orgulho: homens
e mulheres sentiam-se capazes de colaborar na obra da natureza e de auxiliar
nos processos de crescimento que se efetuavam no seio da Terra. Alquimistas
Figura 1 - Frontispício do Actorum chymícomm Holmiensium Parasceve,
apressavam e aceleravam o ritmo das lentas maturações tectônicas; em outras
de Urban Hjarne (1712) .
palavras, eles alteravam a temporalidade natural. É por isso que, durante mui-
to tempo, os alquimistas foram chamados de "senhores do fogo", pois, com Na imagem, observa-se, na parte de baixo, uma criança segurando um fole perto da

a ajuda do calor, eles conseguiam alterar o estado da matéria, acelerando seu fornalha, ou o útero da grande Mãe. O objeto de amor materno possui os traços de D iana
de Éfeso, símbolo importante da Antiguidade. As três partes de seu corpo represen tam os
crescimento. Se o Sol ou o ventre da Terra operavam as mutações natural-
três reinos da natureza, que ela domina como uma anima mundi. Já a parte superior expres-
mente, o fogo as apressava consideravelmente. É por isso que, séculos depois,
sa a sua onipotência: seus vários seios são abundantes, clara fonte de nutrição, assim como
Bacon, reafirmando a concepção de que os metais são vivos, pôde afirmar em
os dois leões em seus braços e ombros testemunham a sua fo rça. Por fim, os aparatos alquí-
seu Sylva sylvarum (III, 1963, p. 153): "Contam alguns autores antigos que micos, o vaso e o recepto r, no primeiro plano à direita, estão un idos por meio de uma bica
existe na ilha de C hipre uma espécie de ferro que, cortado em pedacinhos e usada em processos de destilação. Esses processos são frequente mente comparados pelos
colocado numa terra frequentemente irrigada, nela de certa maneira vegeta, adeptos aos seios gotejantes das mulheres que amamentam (cf. FABRICIUS, 1989, p. 54).
de sorte que todos os seus pedaços tornam-se muito maiores".
O qu<.: toma os tl'X lns :dqufm icos t:ío difkd~ dt• •,1•1, 0 111 l 111 1•q111•1.1drn pdo
leitor contemporâneo é que as operações, os processos t' ·" 11 1t·1.111101 r;i.~L·s <.ks-
critas dizem respeito, ao mesmo tempo, ao que o alquimista r<.:ali1.ava cm seu
laboratório e às etapas sucessivas de uma ascese espiritual, o chamado trabalho
de oratório. Assim, em um primeiro momento, deve-se, sobretudo, olhar para
si mesmo com prudência e profundidade. Se for honesto e um verdadeiro
adepto, perceberá que a raiz de todas as questões é o desconhecimento qua-
se absoluto do que é o mais importante: o seu verdadeiro eu; o que leva ao
primeiro passo desse longo processo alquímico. O segundo consiste em olhar
para o exterior, em observar o mundo de forma ativa, independente e inter-
conectada. Esses dois aspectos, o introvertido e o extrovertido, são, de fato,
indissociáveis nessa longínqua tradição. Isso significa uma visão de natureza
e de cosmologia distinta da nossa, pois opera com uma concepção na qual o
espiritual e o material estão interconectados e na qual esse âmbito material é
ativo. Nesse sentido, essa visão de mundo opera com um conceito material
originário: a de um grande organismo vivo, orgânico e feminino.
Essa perspectiva pode ser ilustrada pela bela obra do renascentista Ro-
bert Fludd (1574-1637), importante alquimista neoplatônico que criou
Figura 2 _ Imagem retirada da obra Utriusque cosmi maioris scilicet
uma imagem do macrocosmo animado por uma alma feminina (figura 2)
(História dos dois mundos), de Robert Fludd (1619).
e retratou, assim, a alma do mundo como sendo uma mulher que seria so-
bretudo a mediadora viva desse cosmos. Ela está conectada por meio de sua A obra do médico paracelsista inglês, publicada em cinco volumes, descreve, como o

mão direita a Deus, representada, na imagem, pelo tetragrama hebraico, ou título sugere, 0 âmbito do microcosmo, isto é, da vida humana na terra, e do macrocosmo,
do universo, incluindo o reino espiritual divino. Na imagem, observa-se que a alma do
seja, as quatro consoantes, JHVH, transmitidas por uma corrente de ouro
mundo, quem de fato faz a mediação entre esses dois reinos, é uma mulher.
para o mundo terrestre abaixo, representado, aliás, por um macaco, isto é,
um ser totalmente governado por forças instintivas do reino animal.'
Aliás, foi ele que a identificou como Maria, a irmã de Moisés. Infelizmente, de seus man~scri-
tos sobreviveram apenas notas. Entre algumas de suas descobertas encontr:imos o al_~bique,
1 Lembremos que, na tradição alquímica, muitos dos primeiros tratados e manuscritos foram dois aparelhos de destilação, com duas ou três saídas para destilados: ~ dibzkos e o trzbik~s. Ela
escritos ou atribuídos a mulheres: Ísis, Maria, a judia, Cleópatra, Theosobia. Maria, a judia ainda desenvolveu wn aparelho de sublimação feito de metal, que nao se sabe s_e era feiro de
(273 a. C.), também chamada a Profetisa, por exemplo, foi uma das primeiras alquimistas cobre ou bronze, em que a parte central superior possuía três tubos com uma sa1da e~ forma
conhecidas. Praticamente tudo o que sabemos dessa importante mulher deve-se a Zózimo de de bico que podia gotejar o líquido destilado em frascos ou recipientes. Inventou, amda, o
Panópolis (III d. C.), cujas anotações sobre o assunto constituem as obras gregas mais amigas. kerotaki, que era usado como um aparelho para amolecer os metais e misturá-los com a~en~es
corantes. Maria percebeu que era possível controlar melhor a temperatur: das substa~:;1as
com O auxílio da água - e esse aparelho até hoje é conhecido pelo nome de banho-mana •
52 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA A LQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 53

Nesse sentido, essa mulher fundamenta tanto a alma do mundo como


constitui, de fato, a capacidade de germinação e, portanto, de transformação
e crescimento de metais e minerais. Podemos notar que os alquimistas pos-
suíam um pensamento dominado pelo simbolismo cosmológico, criando
assim uma "experiência do mundo" completamente diference daquela que
possui o homem moderno e contemporâneo. Para o pensamento simbólico,
o mundo não só está "vivo" como também "aberto": um objeto nunca é
simplesmente ele mesmo, mas é um receptáculo de algo diferente, de urna
realidade que transcende o plano do ser do objeto. Por exemplo: o campo
cultivado é algo além do que um simples pedaço de terra, é também o corpo
da Terra-mãe; assim, o trabalho agrícola é, ao mesmo tempo, um trabalho
mecânico (efetuado com ferramentas fabricadas por nós) e uma união se-
xual orientada para a fecundação com a Terra-mãe.
Só compreenderemos o processo de transmutação se tivermos como
pano de fundo a ideia dessa realidade que transcende o próprio objeto. Tanto
é assim que um tema que perpassa toda a arte alquímica é o do "sofrimento",
"morte" e "ressurreição" da matéria. A transmutação - ou seja, a opus mag-
num que conduz à pedra filosofal - é alcançada fazendo-se passar a matéria
por várias fases: mélansís (preto), leúkosis (branco), xánthosis (amarelo) e iô-
sis (vermelho). O interessante é que, ao contrário do que poderíamos pen-
Figura 3 - Rosarium philosophorum, de John Ferguson,
sar, embora haja um predomínio do âmbito feminino nessa cosmovisão, no
um dos mais importantes tratados alquímicos do século XVI.
universo alquímico não há, como dissemos acima, uma exclusão do âmbito
masculino, e nem poderia haver. Aíinal, as etapas mencionadas requerem A imagem representa o processo de fermentação por meio da união dos opostos. Essa
um processo de fusão importante. Inúmeras ilustrações alquímicas apontam obra, apresentada em vinte xilogravuras, descreve as operações necessárias ao processo de
1r.msmutaçáo, e nela, os amantes representam a solução perfeita dos opostos (Sol e Lua)
claramente que essa fusão, essa união, requer dois elementos, um masculino
e outro feminino (figura 3).
( r. ROLA, 1996, p. 72-3).

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54 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 55

possuindo elementos masculinos e femininos, pois são neles que o casamen- manifestamente um fundamento feminino, ativo, vivo, e era tal como Gaia,
to químico irá ocorrer (cf. DEBUS, 1996 [1978), 2002 [1972]). a Terra-mãe.
Essa visão de natureza, de maneira geral, prevalecerá até o início da Mo-
dernidade. Entre os séculos XV e XVI, por exemplo, essa perspectiva de 1.2 A racionalidade alquímico na Modernidade
interação com a materialidade foi adotada pelos chamados iatroquímicos,
Existem distinções importantes entre um alquimista do século XIII
homens de ciência e médicos que tinham como objetivo preparar fármacos
como Roger Bacon (1214-1294) e um químico da Modernidade como Ro-
usando substâncias inorgânicas. Paracelso (1493-1541), médico e alquimis-
bert Boyle, afinal, observa-se duas racionalidades distintas, não sendo pos-
ta suíço, foi, sem dúvida, o maior expoente dos chamados filósofos quími-
sível e nem desejável apontar o primeiro como precursor do segundo (cf.
cos do Renascimento. Levando em consideração a profunda relação entre 0
GOLDFARB, 1987). Entretanto, se tomarmos textos de um mesmo perío-
micro e o macrocosmo, ele acreditava ser capaz de penetrar nos segredos da
do - o que seria fundamental para essas complexas análises pela observância
natureza pelo estudo da química. Por meio dessa ciência, então, paracelsistas
da coexistência, em vários autores, de duas racionalidades diversas -, como
seriam capazes de transformar a prima materia, 2 aquela matéria sem forma,
os do século XVII, por exemplo, a distinção não é tão nítida e nem tão fácil
ainda não condicionada por nada, na pedra filosofal, e paralelamente a alma
de ser compreendida. Por "racionalidades diversas" entendemos duas ma-
também se desenvolveria a partir desse estado primitivo, caótico. Portan-
neiras de compreender o mundo e os seus fenômenos por meio de lógicas,
to, matéria e alma vão ganhando contornos específicos durante o processo
métodos e critérios distintos, cada uma com a sua validade e veracidade
alquímico, ambas se aproximando gradativamente das suas finalidades, da
próprias, com o intuito de nos aproximarmos cada vez mais do conheci-
perfeição, seja material ou espiritual. Para Paracelso, os metais eram funda-
mento do mundo. Por exemplo, na apresentação de seu Cours de chymie, Ni-
mentais, pois eram o elo entre o macrocosmo e o microcosmo, entre o Cos-
colas Lemery (1645-1715), frequentemente identificado como um quími-
mo e o homem. Eles se interconectavam da seguinte maneira: Sol, ouro, co-
co mecanicista e radical opositor dos alquimistas, afirma que "os químicos
ração; Lua, prata, cérebro; Saturno, chumbo, baço; Marte, ferro, fel; Vênus,
adicionaram a partícula árabe AI à palavra química ( Chymie), quando eles
cobre, rins; M ercúrio, mercúrio, pulmões; Júpiter, estanho e fígado. Noções
quiseram exprimir o mais sublime, como aquele que ensina a transmutação
ativas como espírito e semente também permanecem presentes nessa filoso-
dos metais, embora 'alquimia' não signifique outra coisa que química" (LE-
fia. Por fim, e não menos importante, Paracelso e seus seguidores fundaram
MERY, 1675, p. 2). No entanto, a origem da palavra "alquimià' é incerta.
a iatroquímica, ou química médica, que acreditava que a função da química
() termo latino alchimia deriva do árabe al-kímmiyâ, que, por sua vez, é
era curar as doenças e debilidades humanas. Contra a perspectiva antiga
haseado no grego khêmeia (ou khumeia, do verbo xtw/chew, que significa
que enfatizava o uso de m edicamentos de origem vegetal, Paracelso trouxe
" t 1crramar" , "fi·une1•rr" ) , o que sugere, segundo alguns intérpretes, que a pa-
uma inovação ao propor a utilização de fármacos de naturc'./,a in orgânica.
1.,vra dcnot t' origi11:ilnw 11tl· pd1icas metalúrgicas. A partir do século XV se
Portanto, desde a Antiguidade até o Renascimento a ar1 <: :ilq1 i/11d ra possui
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56 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍM ICA
A LQUIMIA E QUÍMICA: PERMAN~NCIAS E RUPTURAS 57

por longo tempo como sinônimos de "alquimià' (cf. HALLEUX, 1979, p. cercas continuidades que se manifestam em âmbitos mais específicos, como
3
45-47; MARTELLI, 2011, p. 130-132). em alguns temas de investigação e nos conceitos empregados em sua expli-
A denúncia das falsas transmutações tampouco era feita somente pe- cação racional. Houve, por exemplo, a polêmica no início do século XVIII
los críticos da alquimia, mas pelos próprios alquimistas, preocupados com entre os químicos modernos Louis Leme1y (1677-1743), membro da Acade-
a má fama de suas atividades, sobretudo a de fabricantes de ouro falso e mia de Ciências de Paris, e seu colega Etienne-François Geoffroy em torno
de venenos. Ecienne-François Geoffroy (1 672-173 1), um bom exemplo de da origem do ferro obtido das cinzas de plantas, o que constitui um caso
um químico acadêmico que mantinha uma estreita relação com a tradição concreto dessa continuidade nas pesquisas em torno das transmutações me-
alquímica, apresentou à Academia de Ciências de Paris, em 1722, uma dis- tálicas. Enquanto Geoffroy retomava os argumentos do alquimista Johann
sertação sobre as fraudes ligadas à pedra filosofal, na qual ele enumerava vá- Becher (1635-1682), sustentando que a calcinação de uma planta fazia com
rios procedimentos engenhosos, porém falaciosos, que podiam levar à falsa que seus princípios se combinassem de modo a produzir ferro artificialmen-
conclusão de que houve uma produção artificial de ouro ou de prata (cf. te, Lemery considerava que a presença de ferro tinha por origem a terra em
GEOFFROY, 1722; HALLEUX, 1979; JOLY, 2007). que a planta era cultivada e que entrava em sua composição por meio da
A falta de nitidez quanto ao momento da emergência de uma "novà' seiva. Em outras palavras, o tema central da polêmica era a transmutação
química sugere que não foi por meio de uma ruptura drástica que essas duas metálica e a produção artificial de um metal, ocorrendo no interior da Aca-
tradições de investigação se distinguiram. A diferenciação entre essas racio- demia de C iências de Paris, considerada a guardiã dos procedimentos claros
nalidades foi sendo explicitada gradualmente por meio de mudanças no e distintos da tradição cartesiana (cf. JOLY, 2007). No verbete ''Alquimia"
tipo de linguagem empregada (simbólica e escrita), das conclusões teóricas da Encyciopédie de Diderot e d'Alembert, o médico-químico Paul-Jacques
dos experimentos, da própria noção de "experiêncià ', do âmbito sigiloso Malouin (1701-1778) considera que não há nenhuma diferença de natureza
de suas práticas e de uma proposta epistêmica alicerçada em uma relação t'ntre a alquimia e a química, salvo pela superioridade da primeira em termos
íntima entre o micro e o macrocosm o, entre o trabalho interior do adepto de perfeição e de operações extraordinárias (cf. MALOUIN, 1751, p. 248).
e sua efetivação no mundo. As diferenças são bem menores, no entanto, em Mesmo Pierre-Joseph Macquer (1718-1784), conhecido como um dos prin-
relação às práticas, instrumentos e espaços utilizados na investigação das l ipais químicos franceses da segunda metade do século XVIII, reconhecia o
substâncias químicas, que, como veremos, efetivou-se desde sempre em um mérito dos alquimistas dos séculos anteriores e considerava possível obter a
espaço epistêmico fundamental: o laboratório. /wrlm filosofal, a qual, uma vez introduzida nos mixtos metálicos comuns, os
Embora seja clara uma ruptura explícita entre as aspirações metafísi- 11.rnsmutaria em metal nobre (cf. LEHMAN, 201 3).
cas da alquimia e a objetividade da química moderna, podemos identificar () mais interessante nessa controvérsia não é propriamente o ponto de
d ivn gtncia cn1rc os polcmisrns, mas o que era partilhado por ambos, nesse
3 Sob re a origem do termo alquimia, ver H olmyard ( 1990) e Primipc·: Nc w1 11,111 ( l').')8). , .,,o, a <.T l' tll; :t ,k q111· m 111t'lais eram corpos compostos. Convém lembrar
Sobre a nlquimia em geral, ver Newma n (2004), J>rindpt· ( O1 1), l11h ( 1111 1) 1· l,.il 111
(.WH,). /\ tt•vi,1., / 1/11/1/X, n li t.id., rwl., Sm.il-ty li11· tl 1t· l 1i, 1t H ) 11I /\1, l111111 11 11 I I l11111is11 y, q 111•, .11 (, p li 11,d do ,,, 1 1iln XV111. m 11w1.1 i, t·1,1111 r on~ider:,dos corno r orpos
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58 E NSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA _ _ _ __ __ _ _ _ _ _ ___:_A~LQUIM IA E QUl~CA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 59

mixtos, formados por dois ou mais p rincípios, a depender da teoria da ma- por meio de um processo chamado de mixis (cf SEALTSAS, 2009). 4 Segun-
téria considerada, de modo que era teoricamente possível acreditar que um do ele, "é preciso indagar o que é a combinação, a que entes é inerente e de
rearranjo desses princípios poderia acelerar a transmutação de metais comuns que maneira, enfim, h á realmente combinação ou se sua existência é uma
naquilo que era a sua evolução natural de se tornar um metal nobre. Assim, ilusão" (ARISTÓTELES, 2001, p. 83). Para Aristóteles, uma substância
a controvérsia nos revela que mesmo químicos acadêmicos, que recusavam a composta p or elementos constituintes distintos é homogênea quando todas
cosmologia que acompanhava a antiga alquimia, consideravam que a trans- as suas partes são idênticas (homeômeras), de modo que as propriedades
mutação metálica era um genuíno problema de investigação experimental e individuais deixam de existir e dão lugar a novas. O filósofo grego introduz
de conjecturas teóricas. Ela também aponta para a permanência de um con- a ideia de mixto (mixis) para explicar a constituição dessas substâncias ho-
ceito operatório essencial tanto na organização dos experimentos quanto na mogêneas a partir das quais todas as coisas no mundo sublunar são feitas.
explicação teórica das supostas transmutações. Trata-se do conceito de mescla Em um mixto, os ingredientes interagem uns com os outros para dar origem
ou de mixto (mixis), que, mesmo apresentando significações diversas na ex- a uma nova substância, qualitativamente diferente, mas preservando os in-
plicação da composição metálica a partir de princípios distintos, fez parte gredientes originais em potência para que possam ser novamente separados,
tanto do léxico alquímico quanto da nomenclatura química até a ruptura partindo, assim, da noção de que há "entes que são em ato e entes que são em
conceituai operada por Lavoisier, que sustentava que os metais eram corpos potência, de maneira que o produto das coisas combinadas é diverso delas em
simples, e não compostos. ato, mas cada ingrediente ser em potência o que era antes de combinar-se, e
As concepções sobre a natureza dos m ixtos eram variadas, mas é possível não ficar destruído" (ARISTÓTELES, 2001, p. 84). Portanto, era necessário
identificar a h egemonia de algumas teorias em um determinado período. distinguir os verdadeiros mixtos dos aparentes, que só parecem homogêneos
Na alquimia latina medieval, o con ceito era entendido em uma acepção devido aos nossos limitados sentidos de percepção, mas que "que não estariam
aristotélica, assim como a explicação sobre a origem dos metais, a partir de combinados aos olhos de Linceu" (ARISTÓT ELES, 2001, p. 88).
emanações dos elementos "mercúrio" e "enxofre", que ocorriam nas entra- Explicar a emergência das n ovas qualidades da mixis e o que aconte-
nhas da Terra (cf. DEBUS, 1996, p. 44) . A teoria da matéria de Aristóteles, cia com as p ropriedades de seus constituintes foram questões intensamente
denominada de hilemorfismo, considerava que todos os elementos materiais
tinham por constituintes metafísicos básicos a forma e a matéria, que não ,', O termo grego miksis ou mixis é empregado por Aristóteles n ão no sentido de uma
existiam separadamente a não ser por abstração, e fundamentava-se na acei- , imples ~ istura, _m~s de uma verdadeira combinação, como foi, aliás, o termo empregado
'~ ·• traduçao bras1le1ra da obra (ARISTÓTELES, 2001, p. 83). A tradução latina adotou a
tação da existência de quatro princípios elementares (terra, água, ar e fogo), f'.irma mixto (pi. mixti), termo empregado por alquimistas e químicos até o século XVIII.
eles próprios produtos da associação entre duas qualidades essenciais com o l·111 português mais a ntigo, o termo podia ser escrito co mo "mixto" ou "misto". Preferimos
O termo com "s" à ideia
1:1.11Her a escrita antig.1 com "x" para evitar a confusão de associar
substrato material inerte {terra - seco e frio; água - frio e i'.11nido; ar llmiclo de mistu ra, 11111:1 w,. <111<: ele denota uma verdadeira combinação química. Na linguagem
e quente; fogo - quente e seco). d., q11 fmk .1, o 11·111111 "1111>110" fi,i ~11b~lit11ído por "combinação" a partir da segunda metade
do .-c\ 1110 XVI11 , 11111 11 1l11dl, i1 11 vt·1ht·tt· "M ix1ion" do Dicio11drio dr, qulmicrt de Macqucr (cf.
No final do livro I dl' s<.:u /),1grmc,10 t dr, 1·m111/11do , il 11111 Ir•, ,111.di\,t Mt\( '(J lJ Flt, 1/ (,11, I' lllH) 11<111.11 11 11, w11li 111dlr o ntix 111 m m 11111:1 ~impk\ n1i\llll':l podt'
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60 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ÁLQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 61
- - - - - - -- -

debatidas pelos comentadores de Aristóteles. Sua teoria era uma alternativa profundamente os alquimistas renascentistas, como se pode constatar no
importante à teoria atômica de D emócrito e também foi empregada contra caso de Paracelso. Estavam associados a essa tradução os comentários bas-
teorias atômicas posteriores, como as de Epicuro e de Lucrécio. Demócrito tante positivos de um padre da Igreja, Ludo Lactâncio (séculos III/IV), ao
introduziu o termo "átomo" (indivisível, embora seja uma questão contro- "antigo" texto de H ermes Trismegisto, além de também justificarem sua
versa se foi empregado teoricamente ou fisicamente) para denotar entidades adoção não somente por pensadores cristãos não ortodoxos, como Pico
que eram imutáveis na forma, sólidas, e de tamanho e peso diferentes. Esses della Mirandela (1463-1494) ou Giordano Bruno (1548-1600), m as tam-
. átomos se uniam para formar compostos que davam origem a diferentes bém por homens de ciência, como Johannes Kepler (1571-1630) e, mais
tipos de coisas no mundo, porém eles mantinham sua identidade, pois fica- tarde, por Newton. No século XVI também começaram a ser editados em
vam apenas justapostos uns aos outros, assim como as letras de um alfabeto, latim os textos de Epiteto (50 d. D.), Sêneca (4 a. C.), Cícero (1 06 a. .)
que podem formar diferentes palavras e permanecer, elas mesmas, idênticas e Marco Aurélio (121 d . C.), que apresentavam a rigorosa moral estoica
(cf. SALEM, 2013). Embora Aristóteles e seus comentadores rejeitassem a associada a uma concepção puramente m aterial do mundo natural, da di-
existência de partículas materiais indivisíveis, sua doutrina do contínuo não vindade e de sua inseparabilidade, pois D eus e matéria eram idênticos para
excluía a ideia de que a combinação ocorria a partir de partículas mínimas os estoicos. Foi por m eio do modelo físico dos estoicos que os alquim ista/>
de matéria, denominadas de mínima naturalia. Mesmo críticos modernos modernos justificaram a relação entre o macro e o microcosmo por m eio da
de Aristóteles, como Bacon e Boyle, ressignificaram o conceito de mini- associação que faziam entre a astrologia e a teoria dos metais (mas também
ma naturalia em suas respectivas teorias da matéria, que rejeitavam tanto do h om em), empregando uma linguagem que associava o trabalho e a ase<::.<.·
o atomismo quanto os elementos portadores de qualidades de Aristóteles, do alquimista à disposição dos astros. Esse modelo também fundamcn1av.1
pois resultavam de investigações empíricas guiadas por um rigoroso controle uma magia natural, que unificava o cosmo por meio de uma matéri:i s111 il
experimental (cf. ZATERKA, 2004). que dinamizava todos os corpos, o pneuma, um sopro divino que cir ·1d.1v.1
Porém, o conceito de mixto empregado pelos alquimistas foi profunda- em todo o universo, que interpenetrava todos os materiais e que o i11 ic.:i:ido
m ente m odificado ao longo dos séculos XVI e XVII. A reformulação desse poderia manipular por meio da arte alquímica (cf. SAMBURSKY, 1990
conceito na Modernidade também fazia parte do "combate" ao aristote- [1962]; YATES, 1995 [1964]; MATTON, 1993; ABRANTES, 201/i).
lismo escolástico e teve como modelo a física estoica, recém redescoberta. Mas o que nos interessa salientar é que a concepção de mixto da 11,i
Sabemos da enorme influência que a filosofia estoica, com sua moral e sua ca estoica difere profundamente tanto daquela dos atomistas (j ustaposi~.10
física, teve no Renascimento europeu a partir da tradução de alguns textos mecânica dos átomos) quanto daquela de Aristóteles (qualidade cm 111<1 011
de seus proponentes (gregos e romanos) (cf. WHITE, 2003). Exemplo des- cm potência), diferença que julgamos ser a razão da permanência d (;S<;t u, 11
sa recuperação da filosofia estoica, mesclada com concei tos 11t opl:1Lún icos, ccito-chavc da alq11iniia do Renascimento até a quím ica do íinal do .~l'.-t 11 10
foi a o bra de Marsíl io Ficino (1433- 1499), qu(;, al6n1 dt· 11 ,1d1 11 i1 1n. 1os <.k XV III. Na rí, i,,t c·,1ni1 ,1 li:t dois princlpios, um arivo e outro pa...,ivo. l',11 ,1
Platão, foi o rci,pons:ív ·I pd a 1raduçfo latin:i do ( '01/111, h,1111,11,11111 ( l 1 1(d), lllll' 11111 crn pn 1 1~, 1 t 111•1 1·,,.í rio q11c: d e: st·ja o prnd111 0 d., 1111•,1d11 dc...,1·,
11t1 qn.tl II pt•11•.,1111t·111 11 t•,111h 11 j.t ,t· 111,11tllc ~, 1\ 1 1 1 li 1,1 11 dl111•1a ic111 d11i ,p1/111//11,1111111111111 1il1•.i1,110 111,111·1i,d ,1•111 q11.tlid.1dv. () p1/11,lplflrl/1t1o
62 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA
A LQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 63

é Deus, o pneuma que tudo permeia, o fogo artista do qual derivam, por No século XX, a interpretação de Carl G. Jung (1875-1961) revalorizou
resfriamento, os demais elementos primários (ar, água, terra) e todos os seres a racionalidade simbólica da alquimia. Porém, mesmo reconhecendo a con-
do mundo natural. Nesse sentido, a produção de todos os corpos que cons- tribuição instrumental dos laboratórios alquímicos, Jung estava de acordo
tituem a natureza se explicava segundo um modelo químico de uma mescla com a hipótese de uma radical distinção entre a alquimia e a química. Para
de pneuma com uma matéria passiva. Os metais eram uma mescla de dois ele, a alquimia nada tinha em comum com a química, pois ela não era outra
princípios originados de duas composições diferentes do pneuma com essa coisa além da expressão privilegiada dos arquétipos do inconsciente, e, além
matéria passiva, o princípio fogo (enxofre) e o princípio água (mercúrio), o disso, os discursos alquímicos expressavam uma concepção pan-vitalista do
que será acrescido, pelos alquimistas paracelsistas, ao princípio sal, ele pró- universo, ou, ainda, manifestavam as aspirações espirituais da humanidade
prio uma mescla dos dois anteriores. A mixis, segundo a física estoica, não é (cf. JUNG, 2012). Na esteira de textos de Jung, anteriores ao Psicologia e al-
uma justaposição, nem suas partes existem apenas em potência ou em ato, quimia (1944), Gastou Bachelard associou o universo das imagens alquími-
mas é uma verdadeira composição na qual os elementos perdem algumas de cas com a racionalidade noturna, imagens que se constituíam em obstáculos
suas qualidades, embora continuem existindo concretamente no composto epistemológicos para a racionalidade diurna. Ao comentar, por exemplo,
formado. Uma clara demonstração da importância do "modelo estoico" na uma receita de Becker acerca de uma substância que "um historiador da
elaboração de uma racionalidade da alquimia ao longo do século XV1I é a química positiva" identificaria como "fosfato de cálcio", Bachelard afirma
obra Manuscriptum ad Fridericum, escrita em 1653 pelo médico paracelcista que "para nós o desejo de Becker tem outro tom. Não são os bens terrestres
francês Pierre-Jean Fabre (1588-1658), a qual expõe as bases racionais da os que esses sonhadores procuram; é o bem da alma. Sem essa inversão
alquimia e de sua filosofia natural (cf. JOLY, 1992). do interesse, faz-se um juízo errôneo sobre o sentido e a profundidade da
No entanto, as investigações históricas e filosóficas da passagem da alqui- mentalidade alquímicà' (BACHELARD, 2005, p. 61). Mircea Eliade, por
mia à química moderna frequentemente deram lugar a narrativas com outros sua vCT., elaborou uma interpretação da alquimia como parte da história das
propósitos além daquele de investigar a racionalidade da alquimia. Por exem- religiões e da mística-esotérica, dando atenção particular às alquimias hindu e
plo, o distanciamento semântico e conceituai na expressão dessas racionali- chinesa. Ele reconhece não haver uma ruptura radical entre a alquimia e a quí-
dades foi artificialmente ampliado pela releitura e pela reinterpretação dos mica do ponto de vista instrumental, mas "no panorama visual de uma história
textos alquímicos feitas a partir do século XIX e início do século XX. Os do espírito, o processo se apresenta de distinto modo: a alquimia se erigia em
químicos-historiadores do século XIX, em geral preocupados em estabelecer o l'iência sagrada, enquanto a química se constituiu depois de ter despojado as
momento crucial em que a química se tornou uma ciência positiva, com uma ~ubstâncias de seu caráter sacro" (cf. ELIADE, 1979, p. 11).
identidade disciplinar bem estabelecida, costumam apontar as contribuições Sem deixar ele reconhecer as rupturas importantes da racionalidade da
da alquimia para o estabelecimento dessa identidade, notadamente sua tradi- "nova" q11ími a com as di.mensões esotéricas e simbólicas das diversas al-
ção prática e instrumental, mas deixam de lado as teori.as :1lq11 í111it.18 <:onsidc- q11 imias, a modr11 1,1 lii , 1oriografia da alquimia aponta, no entanto, para
radas corno fan1:asiosas. O s romancistas também rontilh1d1 .1111 11,11 on \11·11ção 11m.1 p:t\,,t!',l'l ll 1•,t.11 111,il d11 vn~.ilill Urin l'mprcgndo <.' dns inovações teóricas
d,: um:t in1n1~cm q11im(-1·k a dn nlq1ti1nia, rn nio ( :111 d11 1 1 11 / ,111110 , l\.11,or r
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64 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUfMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 65

acerca, por exemplo, dos metais e de como transmutá-los. De acordo com epistêmico para nos fornecer um guia sobre as práticas e operações envolvidas
esses historiadores da alquimia, ao contrário de uma oposição radical entre em ambos os conhecimentos que lidaram com a materialidade. O laborató-
a alquimia e a química, melhor seria considerar que até o início do século rio não é apenas um espaço físico e material, mas um conjunto de produtos,
XVIII os termos eram empregados indistintamente. A distinção só come- utensílios e instrumentos sem os quais toda a literatura alquímica perderia o
çou a se instaurar, sobretudo, nas dissertações acadêmicas, nos livros e di- sentido. É no laboratório que o alquimista objetiva realizar o que afirmavam
cionários destinados ao esclarecimento público do que era a química para os textos, mas seu insucesso indicaria uma imperfeição pessoal mais do que o
atrair nov~s estudantes e despertar o interesse das autoridades _dos Estados equívoco da teoria ou os limites do laboratório.
nacionais emergentes. O termo "química'' passou, então, a ser utilizado para Iremos notar que, se na química nascente encontramos uma perspectiva
identificar o trabalho dos químicos acadêmicos, dos médico-químicos e dos epistemológica que pretende dominar a natureza, na alquimia o que rege é,
químicos das manufaturas, enquanto o termo "alquimia'' passou a designar sobretudo, a integração com a natureza, mas que ambos os processos são ope-
uma química perecida, uma química de um passado arcaico, ainda distante rados e efetivados nos laboratórios. Embora o termo "laboratório" tenha pos-
do racionalismo alcançado pela "nova'' química. Um objetivo comum des- teriormente passado a ser empregado na prática experimental de outros domí-
se novo interesse historiográfico pela alquimia é o de retomá-la como um nios do sabei~ ele foi originariamente associado aos alquimistas e aos primeiros
território de pesquisa próprio aos historiadores da ciência e não deixá-la "à químicos modernos. Em um dos primeiros dicionários da língua francesa, de
mercê" de investigadores com interesses variados, como historiadores positi- Antoine Furetiere (1619-1688), publicado em 1690, o verbete "Laboratório"
vistas da química, psicólogos e historiadores do esoterismo, em geral alheios apresenta a sucinta definição: "Termo de química. É o lugar onde os químicos
à racionalidade alquímica por ela mesma. A alquimia, portanto, deve ser fazem suas operações, onde estão seus fornos, suas drogas, suas vasilhas" (cf.
considerada como parte integrante da história das ideias e das técnicas, e FURETIERE, 1690, t. 2). Para ilustrar alguns aspectos filosófico-científicos
seus textos devem ser estudados e interpretados de acordo com os métodos desse laboratório alquímico renascentista, sugerimos a análise da bela imagem
historiográficos e filológicos de leitura de textos antigos, não devendo ser desenhada pelo arquiteto Hans Vredeman de Vries (1595) (figura 4), a qual
usada para exemplificar teorias psicológicas ou epistemológicas. representa elementos constituintes manifestos dessa visão de mundo alquímica.
Por meio do uso da perspectiva, os observadores da imagem são con-
1.3 O laboratório alquímico vidados a entrar nesse espaço no qual os âmbitos espiritual-contemplativo
e experimental-operacional se entrecruzam, refletindo a visão paracelsista
A passagem da alquimia para a química não foi nem completamente li- de mundo. A imagem é considerada uma das primeiras representações de
near, nem tampouco abrupta. Se, por um lado, esses saberes operam com um laboratório, ou melhor, de um laboratório-oratório. O alquimista do
visões cosmológicas distintas, por outro, existe, em ambas, um componente quad ro, lembremos, é o médico, filósofo e discípulo de Paracelso Heinrich
prático importante que subsistiu a essas mudanças. Uma n1:11wi1·:1 in1 1..: rcssan- Khun ra th ( 1% 0-1(!() ',) , q11<.: <:Sl:l ria exatamente em seu laboratório alquími-
te de abordarmos mais de perto essa tem~ti n é prn· 1111•111 d,1 .11 1,íllw do que w, d111lo d .ido ,) p11'1p1 ,1 p1,111( l1a, op<.: ra nd o a prim •ira <.: Lapa d::i grande obr:1.
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66 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 67
- - - - - - - - - -- - -

Ao lado esquerdo da imagem encontramos um alquimista ajoelhado re-


zando em seu oratório, local em que prevalece o âmbito meditativo, intros-
pectivo e reflexivo do labor alquímico. Em cima da mesa notamos dois livros
abertos, a Bíblia do lado direito e, à esquerda, um livro repleto de símbolos,
inclusive o diagrama circular do próprio Khunrath em seu Amphiteatrum.
Acima do pregador observamos as letras romanas do adepto Khunra, bem
como a sua transliteração em hebraico, e, mais ao alto, o importante tetra-
grama YHWH, o nome de D eus, impronunciável para os hebreus. No cen-
tro da imagem, bem no topo, verifica-se a inscrição Sine af/latu divino, nemo
vinquam vir magnus, ou seja, "sem divina inspiração, não há homem que seja
grandioso", frase esta retirada do D e natura deorum, de Cícero (106 a. C.), o
que exemplifica a presença da filosofia estoica na concepção da alquimia renas-
centista que anteriormente apontamos. Na dobra esquerda do santuário, há a
inscrição latina Hoc hoc agentibus nobis, aderit ipse D eus, "quando prestamos
atenção estrita ao nosso trabalho, o próprio Deus nos ajudará''. Essas palavras
revelam claramente a forte ênfase espiritual da imagem, que envolve reflexões
teológicas de base, reflexões estas que refletem a obra do próprio Khunrath.
De fato, o alquimista acredita que, sem a iluminação, a verdade não
poderá ser alcançada. Para tanto, as orações e a espera paciente por D eus
Figura 4 -Amphitheatrum sapientiae aetemae, de Hans Vredeman de Vries (1595).
são elementos indispensáveis, pois é "Feliz aquele que segue o conselho do
A obra, cujo título completo é Amphitheatrum sapientiae aeternae, solius verae, chris- senhor", como encontramos escrito no oratório do alquimista. Com o ob-
tiano-kabbalisticum, divino-magicum, necnon physico-chemicum, tertriunum, catholicon, que jetivo de atingir a regeneração, o renascimento do homem perdido após a
em português significa "Anfiteatro da sabedoria eterna, único verdadeiro cristão-cabalístico, queda no pecado original, Khunrath critica a concepção da natureza huma-
divino-mágico e físico-químico, eternamente católico", contém duas partes. O livro foi
na como irreparavelmente pecaminosa. Existe um caminho para a restau-
publicado pela primeira vez em Hamburgo, em 1595, e continha 306 aforismos, e depois
ração, qual seja, a fé. Tanto é assim que, ainda desse lado da imagem, mas
em 1609, quando foi publicada uma edição ampliada em Hanau, com 365 aforismos. A
cm primeiro plano, encontramos uma pequena mesa com uma substância
primeira edição contém quatro ilustrações, todas permeadas por temas alquímicos, que i-e-
tratam respectivamen te o empírico, a cosmogonia, a pedra filosofal e o or:116rio/ l.1hor,1t6rio queimando, e na fumaça que dela exala lemos a oração "em sacrifício a
do alquimista. A imagem acima, intitulada "A primeira etapa da C 1.111dt· ( )lt1 ,t", t n11 hcd d:t l)cus". Por<:111, (, lrnponantc observar que a fé constitui o primeiro livro que
como o "laborató rio do alq uimista", possui no cc11tro o p,1111i <•l~1,.,, 1,111111111 11 Kl111111 .11h, tkvrmos (q11t·11d1•1 ,, d1·1lf',.11·, r pnrn <.:ssa rrndiçiío ex istem do is grandes livros
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68 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 69

divinos: as sagradas escrituras e o livro da natureza. 5 Esses dois âmbitos estão Nesse sentido, todo o lado direito da imagem é dedicado ao laborato-
claramente propostos em seu Amphitheatrum: "Como paracelsista em geral, ele rivm. Dentre as inscrições que podemos notar, duas são importantes para
acredita que a revelação de Deus está presente não apenas nas sagradas escritu- quem opera com reações e processos químicos: Nec temere, nec timide, "nem
ras, mas em todos os lugares" (ZEMLA, 2017, p. 52). A iluminação, assim, atin- precipitadamente, nem timidamente", e Sapienter retentatum, succedet ali-
ge aqueles que estão examinando e estudando a natureza, o outro livro sagrado. quando, "o que é sabiamente tentado terá sucesso em algum momento". Em
Ao ler e compreender o livro da natureza, o adepto poderá atingir con- suma, o alquimista, para alcançar a sua finalidade e ter sucesso na obten-
clusões teologicamente relevantes, como, por exemplo, "a compreensão de ção da sua ação, deve ser paciente, tolerante e insistente, e só assim poderá
que mesmo Cristo como salvador e filho do homem ou microcosmo pode atingir o seu objetivo, a grande obra.
ser conhecido por meio do Lapis philosophorum como filho do macrocos- À direita da imagem observamos um grande forno alquímico com seus
mo" (ZEMLA, 2017, p. 52). Nota-se aqui a relação fundante paracelsista acessórios, sustentado por duas colunas: Ratio e Experientia. Sabemos que
e estoica entre micro e macrocosmo, a harmonia analógica entre homem e o forno era o principal equipamento de qualquer laboratório químico. Se o
universo, e a pedra filosofal, identificada com o próprio cristo e compreen- alambique se tornou um ícone do processo alquímico, era menos essencial,
dida como filha do macrocosmo. O interessante é que esse conhecimento quando comparado ao forno, tanto para as reações químicas propriamen-
do todo não se dá. somente por meio de teorias, mas pelo trabalho com te ditas como para deixar o laboratório e seus adeptos aquecidos, além de
a natureza e pelo trabalho operatório com o âmbito da materialidade dos fornecer luz para o ambiente. É interessante notar que as imagens desses pri-
fenômenos do mundo natural, com a finalidade, sabemos, de transformar, meiros laboratórios raramente apresentam outros meios de iluminação, como
transmutar os processos naturais e observar os seus resultados. É por isso velas ou tochas, e usualmente apresentavam janelas, mesmo que pequenas, ou
que Khunrath acredita que a física é: uma porta aberta, pois era exatamente devido à presença dos fornos nos labo-

[... ] o conhecimento e o tratamento de ambos os mun- ratórios que havia uma necessidade de ventilação. Assim, antes que
dos - ou seja, do mundo inteiro, o maior e o menor
[...] poderosos e seletivos reagentes fossem introduzidos
(com relação ao corpo e ao espírito, qu.': reflete o macro-
no século XX, o calor era o principal agente das trans-
cosmo). É da tradição, natureza e arte; em geral, da e na
formações químicas. Além dos fortes ácidos minerais, o
Sagrada Escritura; da pedra filosofal; e em particular, da
único outro agente importante era o tempo, conforme
e nas partes de ambos (KHUNRATH, 1609, p. 145).
demonstra~o pela fabricação de cobre e carbonato de
chumbo durante um período de semanas e meses. Se os
5 Para um aprofundamento da teologia de H. Khunraht e a influência da tradição luterana 'filósofos' queriam descobrir do quê algo era feito, eles o
em seu pensamento, cf Zemla, 2017 . Com relação à existência de um terceiro livro, o "livro aqueciam. Se queriam que dois compostos reagissem, eles
da consciência'', ao homem é dada a dádiva que nos fornece os critérios, como bo m senso e os misturavam e os aqueciam. Se queriam separar uma
julgamento natural, para podermos lidar com os critérios e as normas da~n•11t•t,I\ 11,1, l'Í<:ncias mistura, eles a aqueciam para remover os componentes
(cf. FORSHAW, 2004 , p. lOOss). No limirc, a narure7,.1, as <.:scri1ur.1\ 1· ,1 l111111,11 11d.11lt· t0 n~ti-
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1ucm o todo relacio nado do universo. Alguns co mcn1,1drn t·\ 11li1111111 1 q1 11 1 11 11 1 11.i q11.1l t·n
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70 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUIMK A A LQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 71
- - -- -- - - - - - -
Mais à frente, localizamos uma cesta com carv;to, material necessário para substâncias sólidas ou líquidas, sendo justificada a presença da inscrição fes-
alimentar os fornos (cf. MORRIS, 201 5, p. 33-36). /\ Íísico-química (physico- tina lente, ou seja, "apressa-te devagar", "faça a sua obra de maneira rápida,
-chemicorum) é a arte de dissolver quimicamente as coisas físicas por meio do porém não apressada, com precisão, cuidado e muita atenção". Por fim, à
método da natureza para purificá-las e reuni-b s da melho r maneira, bem direita observamos um forno de areia. N otamos ainda um conjunto de onze
como o todo (no âmbito do macrocosmo, a pedra filosofo!; no âmbito do frascos dispostos no aparador, todos etiquetados, entre eles Hyle, a matéria
microscosmo, as partes do corpo humano; mas também a degradação da primordial, Ros celi, o orvalho do céu, Gold Potab, o ouro potável, e Azoth, o
replicação da figura antiga) e as coisas particulares do globo inferior (cf. resultado da união de mercúrio, vinagre, sal, sublimado de enxofre e sangue
KHUNRATH, 1609, p. 145s). de dragão, substâncias de extrema importância para os alquimistas.
Destilação, dissolução, separação, união, aquecimento e purificação, ca- Se um dos objetivos da alquimia, como vimos, é a restauração da huma-
ros processos aos químicos até hoje, são alguns dos procedimentos efetivados nidade ao seu estado anterior à queda, essa só poderá ser atingida por meio
por meio dos fornos. Essas reações não tinham o objetivo de compreender a também da restauração da matéria. Metafísica, religião e ciência estão im-
criação do mundo, o que ultrapassaria, sabemos, os limites da razão huma- brincadas nessa visão de mundo. Assim, a alquimia superior (espiritual) está
na, mas entender como ele foi constituído. ''A implicação é que, ao contem- necessariamente ligada à alquimia material (inferior). É por isso que, para
plar o ato da criação divina, o físico-químico (physico-chemicorum) será capaz compreender a voz do todo, devemos escutar "com os ouvidos dos sen tidos,
de replicar o processo em uma escala menor" (FORSHAW, 2003, p. 91). da razão, do intelecto e da mente: rezando no oratório, trabalhando micro e
Os instrumentos que aparecem nesse laboratório nos indicam o meio macro cosmicamente, fisicamente, físico-medicamente, físico-quimicamente,
pelo qual o alquimista poderá atingir a sua grande obra, e muitos deles etc. no laboratório" (KH U N RATH, 1609, II, p.1 8-19).
são aqueles que por muito tempo permanecerão no laboratório dos quími- O âmbito teológico é inseparável da prática, assim como o âmbito alquí-
cos. Inicialmente, notamos logo no primeiro plano da imagem, à direita da mico é inseparável da religião, pois o trabalho laboratorial deve ser acompa-
mesa, uma série de equipamentos. À esquerda desse detalhe, encontra-se um nhado pela oração. E é esse âmbito operacional, instrumental e extrovertido
alambique com um receptor, equipamento bastante comum já nos laborató- que será constitutivo do laboratório moderno. A importância desse aspecto
rios medievais. D e fato, a destilação de líquidos e sólidos por meio da con- prático pode ainda ser notada pelo número de aparelhos químicos localiza-
densação de vapores foi um dos procedimentos mais importantes da cultura dos embaixo da m esa principal, na figura 4 .
química/alquímica renascentista: o alambique foi utilizado por quase toda Por fim, e não menos importante, constatamos, bem no centro da ima-
a Era Cristã e só deixou de ser utilizado nos laboratórios no século XIX. A gem, a importância de todo um simbolismo relacionado à música para a exe-
retona também foi, até o século XX, um instrumento importante para os cução da grande obra, afinal a presença desses instrumentos musicais pode ser
laboratórios químicos, útil para a destilação de sólidos (pirólisc) . Os vapo- corrclacionad:i ao<; quatro elementos fundamentais: a harpa, que corresponde
res do alambique e da recorta eram geralmente rcsíri :1do1> po r· ( 011d1:nsaç:i.o .to roj!,o; o .il .11'1d t', q11e corresponde à água; a viela ou vila, que corresponde
cm seus tubos pelo ar. No meio do dctalh · prr~r111 1· ,r., r11,111 ,1, ,,h,r, v.1111os 1 ;\ ll'' ,.,: 1· n 11\1111, q111• 11111 l·, po1Hk ao ar. /\11.'.·m dc~-;c aspecto, é importal1lC
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72 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUfMIC/1 73
- - - - - - - - - -- - - -ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS

musicais também expressavam a harmonia d a natureza, d e modo que todos os são as sete principais operações da alquimia. No fundo, vemos a porta do
sentidos do alquimista estavam voltados à contcmplaç:10 e ao conhecimento. quarto do alquimista com a sua cama à esquerda. Interessante notarmos
Exemplo disso é a obra Ata/,anta fugiens (Fuga de Aralanta), publicada em que, por causa do conflito entre espiritualidade e experimento, além do rico
1618 por Michael M aier (1569-1622), composta po r cinquenta argumentos simbolismo expresso no texto e nas gravuras de Khunrath no seu Anphí-
filosóficos e cinquenta emblemas, todos expostos nas páginas à direita, e por theatrum, seu trabalho foi condenado pela Sorbonne em 1625, trabalho esse
cinquenta partituras, representadas nas páginas à esquerda. Cada imagem é que possui como mensagem a harmonia entre os livros, entre o espiritual e
acompanhada de um discurso explicativo e uma harmonia correspondente, de o material. A partir de agora, como sabemos, a ênfase será dada ao âmbito
modo que tanto a vista quanto o ouvido do alquimista eram requisitados no do laboratório, do concreto e do tangível, sendo esquecido e sublimado, no
seu trabalho de ascese no laboratório (cf. MAIER, 1617; JOLY, 2013, p. 120). decorrer dos tempos, o âmbito do oratório e do simbólico.
Além deles, observamos na cabeceira da mesa o assento do alquimista, onde Os fornos e utensílios representados na imagem também apareciam nos
possivelmente ele efetiva os seus estudos. Percebemos, na mesa, instrumentos livros de alquimia que começavam a ser publicados, o que se pode constatar
de escrita, um par de balanças e seus pesos, uma faca, uma pedra de amolar, em outras pinturas da época, como as imagens de laboratórios alquímicos
pequenos vasos de m edição, uma sineta, livros, o símbolo do pentagrama e feitas pelo pintor flamengo David Teniers, o Jovem (1610-1690), nas quais
uma inscrição latina que indica que a música sagrada dispersa a tristeza, ou a os instrumentos representados eram muito semelhantes aos impressos na
melancolia alquímica; bem como os maus espíritos: ''A música sacra dispersa obra Traíte de chymie, d e Christophe Glaser (1629-1672). Sem dúvida, a
os espíritos melancólicos e malignos!". Em outras palavras, a música, tão cul- impressão e a consequente divulgação de tratados contribuíram para a pas-
tivada pelos pensadores renascentistas, tinha o poder de dissipar a melancolia sagem d e uma estratégia alquímica de se operar no laboratório para uma que
saturnina. A noção da música como o espaço de mediação entre a atividade identificaríamos como mais próxima da nossa própria concepção da quími-
verbal do oratório e a atividade manual do laboratório encontra apoio em ca. M édicos e apoticários constituíam um público natural para esses tratados
vários intelectuais da época, como, por exemplo, Marsilio Ficino, "que justi- de química. O surgimento de uma comunidade de leitores e de praticantes
fica a sua própria concepção pessoal entre medicina, música e teologia com das "artes químicas" constituiu, para alguns historiadores da química, um dos
o argumento de que a música é importante para o espírito intermediário da "momentos fundadores" da ciência química, pois entre essas pessoas ocorriam
mesma maneira que a medicina é para o corpo e a teologia para a alma" (cf. trocas de conhecimentos acerca das transformações dos materiais e das técnicas
FORSHAW, 2010, p. 172). 6 instrumentais necessárias para atingir determinados objetivos experimentais.
Ainda no alto da imagem vemos uma lâmpada representada por uma A emergência da química como um conhecimento autônomo estaria
estrela com sete pontas, cada uma delas emitindo uma pequena chama, que direta mente ligada à publicação d e manuais especializados, de modo que
o li vro imp resso 1cria instaurado um novo regime de saber e uma ruptura
6 Lembremos ainda que, :ilém do Ti·iviwn, composto pcl:is ar1 c, w, h,il\, 11 1o1111,li1 1 ,1di,tl{,1i- u 1111 a rradi1;/1n lw1·11iétirn , de manei ra que a química passou a se tornar
cn_ e ": r~ricn, os cst11dan tt:s das 1111ivcrsidadcç mcd icv.1is cl <·v(•il,1111 I' 1• 11 111 1,, ()u,111, 11,111111, 11 111:1 ç i(\ 11( l,1 p1'tl 1lh .i . 1) 11 ,I\ ohr.,~ IL·r·iani marcado :1 <.: n trada da alqui m ia no
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74 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 75

(1555-1616), publicado em Frankfurt em 1597, e o Basifica chymica, de foi dominada, aos poucos, por uma outra perspectiva que também existia
Oswald Croll (1563-1609), publicado na mesma cidade no ano de sua mor- desde então, mas que não era dominante, qual seja, a imagem de uma na-
te (cf. HANNAWAY, 1975). Porém, embora essas obras procurassem cor- tureza selvagem, desordenada, dominadora, incontrolável, que propiciava
relacionar melhor o discurso teórico com a prática experimental, deixando trovoadas, violência e caos. Como afirma Carolyn Merchant (1983, p. 2)
de lado os aspectos mágicos e religiosos do paracelsismo, elas não rompiam no seu lhe death ofnature:
com a tradição dos textos alquímicos e demonstraram que a racionalidade
Mas uma outra imagem oposta da natureza como mulher
alquímica resistia à publicidade de seu corpus teórico-filosófico (cf. MO- também prevalecia: natureza selvagem e incontrolável
RAN, 2005; JOLY, 2013, p. 104). que poderia causar violência, tempestades, secas e caos
Enfim, Frederic Holmes demonstrou que, no espaço dos laboratórios, geral. Ambas foram identificadas com o sexo feminino e
foram projeções das percepções humanas sobre o mundo
articulava-se um éthos institucional que fazia da química não apenas uma
externo. A metáfora da Terra como mãe que amamenta
ciência experimental, mas um domínio de investigação cada vez mais dinâ- desapareceu gradualmente como imagem dominante, à
mico e produtivo. Holmes também apontou que a estabilidade instrumen- medida que a revolução científica mecanizou e raciona-
lizou a visão do mundo. A segunda imagem [... ] trouxe
tal desses espaços epistêmicos - pois o repertório de aparelhos e as operações
uma importante ideia moderna, o poder sobre a natureza.
efetuadas nos laboratórios em 1750 não eram muito diferentes daqueles Duas novas ideias, de mecanicismo e de dominação da
descritos por Libavius em seu Alchemia - não significava um imobilismo. natureza, tornaram-se conceitos centrais do mundo mo-
Na verdade, as melhorias técnicas e a invenção de instrumentos para medir derno. Uma m entalidade organicamente orientada, na
qual os princípios femininos desempenhavam um papel
novas informações acerca dos materiais analisados eram permanentemente
importante, foi minada e substituída por uma mentalida-
incorporadas ao acervo tradicional (cf. HOLMES, 1989). de mecanicamente orientada que ou eliminava, ou usa-
va princípios femininos de uma maneira exploradora. À
medida que a cultura ocidental se tornava cada vez mais
1 .4 A Modernidade e o abandono da Terra-mãe mecanizada nos anos 1600, a terra feminina e o espírito
terreno virgem foram subjugados pela máquina.
É impensável matarmos uma mãe. Não se cava as suas entranhas e se
mutila seu corpo facilmente, ainda mais se os motivos são fugazes e transi- De um lado, observa-se a cosmologia dominante da época que operava,
tórios, como adquirir ouro e prata. Enquanto a Terra - Gaia - fosse consi- como vimos, com uma imagem feminina, orgânica e integradora de natu-
derada sagrada, viva, ativa e sensível, seria uma violação ética realizar atos reza, concepção que foi gradativamente sendo abandonada, e, de outro, a
destrutivos contra ela. Na cosmologia alquímica, as minas eram considera- imagem que irá prevalecer a partir da Modernidade, de uma natureza me-
das verdadeiros úteros, e a metalurgia era um processo de aceleração huma- cânica, dicotô mica e controladora. Assim, a transformação que podemos
na do nascimento de um metal vivo no útero artificial ela Ío rn:ill1 ,1. /\ssim , o ohsc.:rva r a pnn ir do sfrulo XVII, com relação à visão de mundo alquímico
que aconteceu, do ponto de visrn epistêmi co, é q11,· t'"•' vl•,,111 111 h i,d d1: na- p:,ra :1 n o v,1 vl•" 1n d1• 1111111 do químico, c.:stá clar:unc11tc relacionada às altera-
1ur<."1,:i co rn o 11111lh<.· r q11c, vnt fto, a lirnc111av,1 , r.i-1111 i1111v11 1 11 11 li, i1v,1 ,1' k n ,1 "º''\ ,1.1~ ,11 1111111 ~ 1 11111q11111 ,11111·111 o s tk- 1tc'11i, l111m:1 111ls, t·tn l'(._'l:t~·fio :, ' li.·,•,•;\,
76 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA A LQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 77

aos fenômenos do mundo natural e, portanto, ao âmbito da materialidade.


É claro que as razões que levaram a isso são inúmeras, mas não é nosso
objetivo esgotá-las, embora possamos mencionar algumas delas: a nova cos-
mologia com a queda do geocentrismo e, portanto, a retirada da Terra como
locus privilegiado do mundo; a matematização da natureza; o experimenta-
lismo e o desenvolvimento de instrumentos tecnológicos; o ritmo alucinan-
te da sociedade industrial; a emergência do paradigma patriarcal que fez,
sabemos, com que a divindade, o Criador, se tornasse eminentemente mas-
culino; e, como desdobramento desse último item, a busca pelo além, pela
transcendência, pela eternidade e o desprezo, cada vez maior, pelo corpóreo
e, portanto, um desrespeito pela própria terra e sua respectiva materialidade.
Essa nova visão pode ser ilustrada pelo livro De humani corporis fabrica
Libri Septem (1543), do médico Andreas Vesalius (1514-1564), que marca,
do ponto de vista histórico, metodológico e epistêmico, o surgimento da
anatomia moderna. Para compreender as razões dessa relevância, dois pon-
tos são importantes: os aspectos inovadores e, portanto, transformadores de
suas investigações anatômicas e a maneira de apresentar e documentar esse
conhecimento. Com relação ao primeiro aspecto, encontramos uma d ara in-
versão de hierarquia frente aos estudos filosóficos antigos, ou seja, para Vesalius,
a evidência empírica poderia e deveria estar à frente da tradição. A observação
experimental do corpo produz fatos mais verdadeiros e eficazes do que qualquer
autoridade textual. Essa inversão de caráter metodológico e epistêmico apresen-
ta como fio condutor a supremacia da dissecação, do experimento, dos fatos
sobre o texto. A própria dissecação produz o argumento textual.
B A s I L E !,!\,

Para esclarecer esse novo posicionamento moderno, tomemos como


Figura 5 - Frontispício do De humani corporis fabrica Libri Septem,
exemplo a conhecida folha de rosto da obra (figura 5):
de Andreas Vesalius (1543).

No L.,mm 11111 11·,111n dt· ,111,11omia, com o próprio Vcsali us em pé à esquerda do centro
d., llll' \,t, dl~~,•, ,1111 111111111 1111 tll11•1, /\11 rn lor, oh~crv.11nos uma gr,1 ndc mulridfío de hc,111c:11s
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78 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA Q UÍMICA ALQUIM IA E QUÍMICA: PERMAN ÊNCIAS E RUPTURAS 79

Nela, encontramos o cadáver de uma mulher, com o seu útero sendo Conhecer, a partir de agora, significa quantificar. O rigor científico afere-
dissecado. Nesse contexto, devemos interpretar a imagem de Vesalius, na -se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são desqua-
folha de rosto do De humani corpori fabrica, dissecando precisamente um lificadas e, portanto, o que não é quantificável ou geometrizável é cientifi-
útero como um gesto que parece estar desvendando seus segredos e natu- camente irrelevante. Do ponto de vista da filosofia e da história da química,
ralizando o seu poder em um desencantamento do corpo (cf. ORTEGA, observamos o desaparecimento do universo da atividade, da germinação,
2008, p. 103). da qualidade, do feminino e, portanto, de Gaia, e notamos aos poucos o
Mulher e útero são elementos constituintes, desde a Antiguidade, como surgimento de uma nova filosofia experimental e com ela um novo sujeito
vimos, do saber alquímico, e essas noções são pertencentes a todo um para- epistêmico, este absolutamente e somente masculino. O interessante é que
digma mágico-vitalista de compreensão do mundo, que será inteiramente para os novos filósofos experimentais seiscentistas, como ministros e intérpre-
aniquilado a partir de agora. Vesalius não só disseca uma mulher, como dis- tes da natureza, devemos conhecer, explorar, intervir e, portanto, atormentar
seca o seu útero. Na terminologia de Sawday (1996), a introdução de uma a natureza, seja inanimada ou animada, pois assim tanto nos aproximaremos
"cultura da dissecação" provocará uma virada epistemológica importante, da obra de Deus como ampliaremos o nosso domínio sobre o mundo natural
na qual o experimento propiciará uma anatomização do indivíduo. A Mo- com a finalidade de propiciar uma verdadeira ciência voltada para o bem-estar
dernidade chegou e com ela veio uma concepção de ciência que eliminará o da maioria dos homens, ao menos idealmente. Estamos no âmbito de uma
reino do sagrado, do vivo, da Terra-mãe e, portanto, de uma materialidade proposta científico-filosófica operativa, não mais contemplativa, cujo valor
ativa. Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, os saberes alquímicos vão dos argumentos deve ser submetido ao debate público.
gradativamente ceder lugar à química moderna. Os segredos e ritos serão Emerge, assim, uma narrativa que terá uma longa duração e que acredita
substituídos pelo caráter público, protocolar e sistemático desse novo co- no potencial da ciência (filosofia natural) e da tecnologia (das artes mecâni-
nhecimento. Nesse sentido, humanos não são mais vistos como partícipes cas) nascentes para resgatar o homem de seu estado improdutível por meio
de um mundo orgânico, no qual apresentavam rituais e cuidados, afinal elo desenvolvimento da estratégia operativa e experimental, que garante à
estavam entrando em contato com um mundo vivo e sacralizado. Frente à química o ingresso no rol dos conhecimentos científicos. O fio condutor
dicotomia nascente entre natureza e hU:mano, a natureza se transformou em desse novo método é o controle dos corpos naturais. O interessante é que
uma simples extensão e movimento, passiva, eterna, constituída de simples esse espaço é o laboratório, lugar no qual se pode efetivar um experimento
elementos que podemos, a qualquer momento, desmontar e depois relacio- confinado, controlado, testemunhado e, por fim, replicado, ou seja, vali-
nar sob a forma de leis. Junto com René Descartes (1596-1650) e Francis lbclo por uma série ele observadores. Porém, o espaço do laboratório, esse
Bacon, tornamos-nos ministros e intérpretes da natureza. A partir daqui, lugar epistêmico de lidar com a materialidade, não é completamente origi-
observa-se uma ênfase no caráter "extrovertido" da naturez:1, ou seja, no nal: se o seu uso, :1 su:1 finalidade é outra, alguns de seus aspectos materiais,
espaço geográfico que não oferece possibilidade algum :1 eh· N rw r~piricu:11, i11.~1n1111c;n1 :lis v, po n .1111 0, operacionais são bastante semelhantes aos dos
minimiz:1ndo o seu nmbito inrrovertido, aquck· vnl1,11 l11 .i ~ , ,1q1wlr d.1~t·11- ,1kp1irn i., 1." 1111•d l1•v,il 1, ,. 11·11.i,tl·111is1as.
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80 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA
ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 81

1.5 Boyle, Newton e a alquimia ninguém, além deles, entendem. Senhor, porque o autor pa-
rece desejoso da opinião dos outros neste ponto, sinto-me livre
Em abril de 1676, Isaac Newton escreve ao então secretário da Royal para acrescentar a minha: mas peço que não compartilhe o con-
teúdo desta carta com ninguém (The Newton Project, 2021).
Society, Henry Oldenburg (1618-1677):

Ontem ao ler as duas últimas Philosophical Transactions tive Boyle escudou alquimia por mais de quarenta anos, particularmente a
a oportunidade de considerar o incomum experimento do partir das obras de Jean-Baptiste Van Helmont (1579-1644). Ele escreveu
Sr. Boyle sobre o aquecimento (incalescence) do ouro e do
vários textos dedicados ao assunto, entre eles o seu manuscrito póstumo
mercúrio. Eu acredito que os dedos de muitos coçarão para
Dialogue on the transmutation of metals (c. 1680) 8 e On the incalescence of
atingir o conhecimento da preparação de tal mercúrio, e
para esse fim alguns irão desejar avançar pela sua publicação, quicksilver with gold (1676), publicado, como vimos, na Philosophical Trans-
insistindo no bem que ele pode fazer ao mundo; mas, no actions em 1675. Este último texto chamou a atenção de Newton, pois nele
meu simples julgamento, o nobre autor, uma vez que julgou
o autor do Químico cético fala de um experimento para a preparação do
oportuno revelar-se agora, prudentemente deve ser reservado
no resto. Não que eu pense que tal mercúrio tenha qualquer mercúrio filosófico, primeira etapa constituinte da pedra filosofal, no qual o
virtude, seja para operações médicas ou químicas (...].7 Mas, mercúrio se amalgamava ao ouro com bastante facilidade e, nesse momento,
ainda assim, porque a maneira pela qual o mercúrio pode
desprendia uma importante quantidade de calor (incalescence). Boyle, nesse
ser tão impregnado, foi pensada para ser ocultada por ou-
tros que o conheceram e, portanto, poderia ser uma entrada
texto, é muito cuidadoso em relação à descrição do experimento, sentindo-
para algo mais nobre, não deve ser comunicada sem imenso -se, como ele mesmo afirma, "obrigado a silenciar", pois se manifestasse
dano ao mundo se houver alguma verdade nos escritores her- minuciosamente as etapas do processo, poderiam ocorrer "inconvenientes
méticos. Portanto não questiono a grande sabedoria do
políticos, se fosse comprovado que o mercúrio era do melhor tipo, e caísse
nobre autor que o influencie a um alto silêncio até que
ele resolva das consequências que a coisa possa ter ou por em mãos doentes" (BOYLE, 1676, p. 529). Aliás, em outro texto, intitulado
sua própria experiência, ou pelo julgamento de alguém Producibleness ofchymical principies (1680), Boyle descreve detalhadamente
que compreenda totalmente o que ele fala, isto é, de um
algumas propriedades desse mercúrio especial: quando ele é digerido com
verdadeiro filósofo hermético, cujo julgamento (se hou-
ver algum) seria mais para ser considerado neste ponto
ouro (digesting gold with his mercury), por exemplo, tem a capacidade de
do que de todo o mundo que estaria ao lado contrário, 111 udar de cor diariamente, de crescer e de apodrecer. Notemos que, em
havendo outras coisas além da transmutação dos metais que :imbos os textos, Boyle descreve mais os efeitos e as propriedades desse mer-
cúrio do que o experimento propriamente dito.
Não temos como objetivo aprofundar a temática alquímica nas obras
7 Nesse momento da carta, Newton explica que as partículas metálicas (metnlli11e particles)
presentes no mercúrio de Boyle não possuem uma qualidade peculiar e sutil, m :t~ por serem de Boyle e N ewton e, portanto, comprovar ou não a obtenção por Boyle de
mais grossas do que as partículas do mercúrio, elas podem se chocur l" ~l' 111ov<·r 1·111 dirc\·iío
às partículas do ouro e, assim , aquecê-lo. Se isso de fato oco1-rr1·, , ,,11d 1111i, N1 w11 111 , .1 .1.,::10
do merci'.1rio preparado po r Boyle é sc111c ll1 :1 111 c ao culOI' <,111 •.,11 111 p111 11111 111111 11H111, iv11,
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82 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ALQUIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 83
- - - - - - - -- - -- - - - - -- - -

tais substâncias. O que nos interessa enfatizar é o lugar que tais discussões os elementos experimentais são essenciais para a prática alquímica. Foi esse
ocupavam nos empreendimentos filosóficos de nomes importantes do sécu- aspecto, aliás, que interessou bastante a Boyle. "Para Boyle, o experimenta-
lo XVII. Mais do que isso: a dedicação desses homens da ciência à alquimia lismo era a chave para o conhecimento do mundo natural; o livro da natu-
não entraria em contradição com os seus estudos mais ligados à filosofia reza prevalecia sobre os livros dos homens, e a alquimia não era exceção. Ao
natural? Como compreender a convivência de saberes com pressupostos e contrário de Newton, cuja alquimia consistia predominantemente em es-
visões de mundo distintas em uma mesma filosofia? Concordamos com a tudos textuais, Boyle deu destaque às atividades de laboratório" (cf. PRIN-
posição de Lawrence Príncipe na sua afirmação de que, para catalogar os CIPE, 1998, p. 150). É por isso que na sua correspondência encontramos
interesses alquímicos de Boyle, devemos ser capazes de identificá-los de ma- inúmeras cartas enviadas e recebidas dedicadas exclusivamente à preparação
neira precisa. Se, por um lado, a distinção entre alquimia e química no início - cifrada - da pedra filosofal, do mercúrio nobre e do solvente universal,
da Modernidade não é completamente garantida, por outro é possível falar mostrando claramente o seu interesse em se aproximar de uma "comunida-
em alquimia para descrever um conjunto de atividades e crenças que pos- de alquímica". O instigante e talvez o mais difícil de entender é como Boyle,
suem razões e pressupostos teóricos diferenciados, distintos dos da química. o conhecido autor de uma teoria corpuscular da matéria, reconhecido meca-
Com relação ao âmbito prático, como já mencionamos anteriormente, é nicista, crítico enfático da teoria das formas substanciais e seguidor de Bacon
mais difícil fazer essa distinção, pois esse espaço é o que será mantido pelo na publicização do conhecimento e na concepção de dominação da natureza,
saber químico posterior. Por exemplo, o mesmo processo para a calcinação manteve por toda a vida um forte interesse pela alquimia.
do chumbo pode ser adequadamente visto como alquímico ou químico, Nesse momento, as portas se abrem para a compreensão das diferen-
dependendo da intenção, dos objetivos e da interpretação do agente. Para tes e coexistentes teorias da matéria do início da Modernidade. A proposta
tentar superar essas dificuldades, uma possibilidade seria considerar os tra- corpuscular da matéria boyleana abrangia também as considerações sobre a
dicionais-desideratos alquímicos, tais como a pedra filosofal, a extração de possibilidade da transmutação. De fato, mais do que se aproximar de um
mercúrio e enxofre, o alkahestetc. (cf. PRINCIPE, 1994, p. 92). É impor- mecanicismo stricto sensu, que operava em um registro físico-mecânico e,
tante salientar que, apesar de localizarmos inúmeros processos que possam então, postulava somente características geométricas para as qualidades pri-
ser vistos como alquímicos e químicos, uma distinção fundamental entre a márias da matéria - figura, tamanho e movimento - , como ocorre, por
alquimia e a química é a publicização ou não dos experimentos. Enquanto exemplo, nos empreendimentos filosóficos de Descartes ou Thomas Hobbes
a primeira opera no âmbito do sigilo, e~ portanto, em um espaço privado, a (1588-1679), Boyle insere-se em uma concepção mais qualitativa de ma-
química moderna será praticada na esfera pública, coletiva, e, portanto, será t<.: ria. É por isso, por exemplo, que ele incluiu a textura entre as qualida-
objeto de crítica pelos pares. des primárias da matéria, e, para tanto, afastou-se do atomismo clássico e
Se o conhecimento alquímico está sobretudo ligado a un1a temática de- 11tiliz.ou como hasc a teo ria dos mínima naturalia. 9 Em um texto de 1660,
finida e regida por códigos, sigilos e segredos, ele é 1.111 1h(· m 11111:i pdrica
labora torial. Em outras pal:w rns, além d· fi liar· :-w .i 111 11,1 11,111 1~.10 1vx111:i l, 11 St· o .1111111 IN11111 " 11 q11, 1 ,11 v1· llg,1d o ao u 11 1L1:iro dl' :iµr<:1-1,1dn~ i111111 ~w i, i111ri mcc,1111<:n1c sem
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84 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA ÁLQUIMIA E Q UÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 85

conhecido como Ensaio do nitro, Boyle demonstrou como o salitre podia ser filósofo se aproxima da teoria dos mínima naturalia e, por outro, consegue
decomposto pelo fogo em espírito de nitro e nitro fixo e, ainda, como essas fornecer inúmeras explicações para as reações químicas: "Boyle não recorre
partes podiam se recombinar para formar novamente a substância original. 10 aos últimos blocos da matéria, mas aos corpúsculos de ordens mais altas de
Por meio desse experimento, ele conseguiu mostrú a falsidade da teoria das composição" (cf CLERICUZIO, 2000, p. 117). De fato, são esses aglome-
formas substanciais, pois sabemos que essa teoria afirmava que a "forma" do rados corpusculares, com as suas respectivas texturas, os responsáveis pelas
nitro deveria ser completamente destruída e dar lugar a uma outra "formá' diferentes naturezas e propriedades da matéria. Com isso, chegamos a um
substancial durante o experimento. Se Boyle tinha razão e a reintegração ponto fundamental: o mercúrio líquido pode ser transformado em um pó
era possível, uma substância química podia ser separada em constituintes vermelho, em um corpo fundível e maleáVé;l ou em uma fumaça fugitiva e se
menores e voltar ao que era pela simples reunião desses. Nesse sentido, sua disfarçar de diversas outras maneiras, e, contudo, ainda assim permanecer o
hipótese corpuscular estaria comprovada. verdadeiro e recuperável mercúrio (cf BOYLE, 1963, III, p. 29).'2
Mas qual é a natureza desses corpúsculos? Boyle se afasta, como disse- Isso significa que Boyle acreditava ter conseguido explicar, por meio de
mos, do atomismo clássico, pois separa o âmbito da materialidade em três sua hipótese corpuscular, uma vasta gama de reações, mudanças e proprie-
níveis distintos. Em lhe origin offorms and qualities (1666) ele descreve o dades da matéria:
que entende por mínima natura/ia, ou seja, as partículas mais simples en-
Ora, um aspecto muito importante da filosofia corpus-
contradas na natureza e que "muito raramente são realmente dissolvidas ou cular de Boyle é o lugar de certos corpúsculos insen-
quebradas" (cf. BOYLE, 1963, III, p. 30); em seguida, o filósofo passa para síveis que ele denomina concreçóes primitivas. Esses
corpúsculos são extremamente pequenos, mas ao mes-
a descrição do segundo nível hierárquico, chamado por ele de "aglomerados
mo tempo têm um lugar importante nas explicações
de segunda ordem", formados pela extrema adesão das partículas mínimas. de Boyle sobre a forma e a geração. Elas incluem tais
Nesse momento, surge uma propriedade fundamental para a sua teoria da corpúsculos como princípios seminais que são respon-
matéria: a textura. 11 Por fini, temos os corpos do mundo manifesto. Para sáveis pela reprodução das substâncias animadas e calvez
mesmo dos minerais (ANSTEY, 2000, p. 21).
nós, é importante ressaltar o locus que Boyle fornece a esses aglomerados de
segunda ordem, os corpúsculos, pois, por um lado, é por meio deles que o Assim, Boyle abriu um importante caminho, dentro da sua proposta cor-
puscular, para explicações relacionadas às transmutações metálicas, 13 mesmo
2004. Em outras palavras, pode-se afirmar que a teoria escolástica do mínima natura/ia é um
tipo de "minimalismo material", para usar um termo de Emerton, 1984, p. 76-125.
10 Da perspectiva da química contemporânea, o salitre é conhecido como KNO3, o espíri- 12 O pó vermelho possivelmente é óxido de mercúrio (Hgü); este é produzido aquecendo-
to de nitro é o HNO3 e o nitro fixo K2CO3. A obra tem como título completo A physico- 'I.' o mercúrio com oxig<'.:nio a uma temperatura de aproximadamente 3500 °C. Se o óxido

-chymical essay containing an experiment with some considerations touchi11g t!H· diffirent paris li1r fo rcemente nq11ct ido, ele se decompõe novamente em mercúrio e oxigênio. Já o corpo
and redintegration ofsalt--petre (I 660). Para a tradução do texto, hi.;m rn n111 ,1·,11,1.111:ílisl.', cf. 111:ik;lvd dcvc ~1· 1d 1•1ii· .i 11111:1 lig.1 mcdli cn en fumaça a vapores de mercúrio.
o apêndice de Z~terka, 2004. 1J Soh1·(· o tl\ll d,1 111111.i I w p11,1 11l.1r da matfria de Boyle como fundamento explicativo
l 1 "Qunndo muitos co rpt'1~culos se· rca'1nl.'m como po1,1 w 11~d111l1 1p1tl'l11111111111> di, d11 w p.11 ,1.1~1111,ilq1tl11d 1, 11 N, w1 11 111 , 1•)•)(,. N<.:~s(· nrligo, N cw 111:i 11 .1pn:scn1.1 a dívida de Boyle
l .. ,j c111,10 ,1 p:1ni r dm wu, •H111 m ,1d di·111 t·, (ou mod11~) h 11111 q, 111111 ,, 111 ill•,p11', l\ ,lll 1111 1,11 11 ,1 1•111 H'l,11, 111 , 1,,11l1 d, 111 111 1, 11 ,11 10 ~ dr l ),1111l-l S1·1111t•11. .'lol11t· ,t 1t·l,1~,i11 ,·1111•ç• ·"
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86 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA Q UÍM ICA ALQUIM IA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 87

porque, para ele, como podemos ler em seu Químico cético, alguns corpús- não encontramos uma nítida separação entre o âmbito do mecanicismo e o
culos seriam dotados de poderes formativos, ou princípios seminais, respon- pensamento mágico-vitalista. Diferentemente de Boyle, que escreveu vários
sáveis pela geração dos humanos, animais e plantas. É por isso que Principe textos sobre alquimia, o interesse de Newton por essa temática pode ser
enfatiza, com razão, que Boyle de maneira alguma rejeitou a alquimia trans- visto pelas inúmeras transcrições, extratos e compêndios que ele possuiu em
mutacional. Pelo contrário: ele a perseguiu, experimentou e se apropriou de sua biblioteca. O Index chemicus é um bom exemplo desse tipo de trabalho
alguns de seus princípios teóricos. Nesse sentido, "Boyle não foi tão moderno desenvolvido pelo autor: a obra nada mais é do que um índice do que foi
como pensávamos, nem a alquimia tão antiga. O que testemunhamos é uma trabalhado por ele por duas décadas, entre 1680 e 1700. Em sua forma final,
aproximação entre o que até então era visto como duas metades irreconci- ele contém 879 títulos, 100 páginas e 20.000 palavras. Esse exercício de lon-
liáveis da história da químicà' (PRINCIPE, 1998, p. 220). Interessa ainda go prazo foi a tentativa de Newton de reunir em um só lugar as revelações
observar que o autor do Químico cético objetivava apoiar os seus experimentos parcimoniosas e amplamente dispersas das verdades alquímicas fornecidas
relativos à busca da pedra filosofal em seus pressupostos mecânico-corpuscu- por vários autores e juntá-las com a esperança de elucidar um componente
lares. Do seu ponto de vista, então, essa aproximação não era uma questão, importante do mistério alquímico (cf. PRINCIPE, 2000, p. 204). Entre
muito menos um problema. Se, por um lado, observamos descontinuidades os textos escritos por Newton, um em especial ganhou importância depois
importantes, especialmente no que tange à visão de mundo - de um lado, há de sua publicação por Betty Jo Teeter Dobbs em 1975, intitulado Cfavis.
uma concepção de natureza viva, embrionária, feminina e ativa e, de outro, Esse pequeno ensaio descreve um processo da produção de um amálgama
uma concepção mais masculina, matematiza.me e controladora da natureza de antimônio, mercúrio, prata e ouro, que conduziria à obra alquímica (cf.
-, por outro, observamos que um aspecto fundamental é mantido, o âmbito NEWMAN, 1992, p. 564-74).
laboratorial e experimental, bem como o lugar dos corpúsculos, dos agregados É interessante lembrar que a face alquimista de Newton começou a ser
e das texturas, registro fundamental para que a química se torne gradualmente desvendada a partir de 1936 com a compra dos manuscritos alquímicos do
um saber diferenciado frente à física. Príncipe ainda nos alerta que a alquimia autor por Lorde Keynes, o economista, que depois de lê-los, declarou:
de Boyle tinha ainda mais uma "função" na sua filosofia, qual seja, unir o Newton não foi o primeiro da época da razão. Ele foi o
âmbito teológico e material. Afinal, a alquimia superior seria um facilitador último dos mágicos, dos babilônios e sumérios, a últi-
para evitar o ateísmo, um perigo em uma época de sucesso das filosofias me- ma grande mente que penetra o mundo do visível e do
intelectual c;om os mesmos olhos dos que começaram a
canicistas e, assim, um auxiliador na aproximação dos homens com a divina
edificar a nossa herança cultural há pouco menos de dez
criação (cf PRINCIPE, 1998, p. 208-13), aspecto bastante presente nas obras mil anos (KEYNES, 1947 apudDOBBS, 1992, p.13).
teológicas do cristão virtuoso.
O estudo da filosofia natural de Newton nos aprcscnra llm cnm inho Essa declaração colocou em dúvida a imagem tradicional do matemático
muito similar ao de Boyle em termos da coexisrCnr i.1 dl' v.1 , i,t\ trnrias d:1 r físico omo n1ocklo d<.: cientista positivo e atraiu a atenção dos historiado-
mntéria presentes no início cb Modcrnid ad<:. (h fj1111•~ 1111•11·~••i'' d~· Ncw- n·s sohrr o 11•11 1.1 A till'd ida q11r csscs rnanuscriros fo ram sendo divulgados,
10 11 pvl:t :i lqtt ltlli:1 111m t1 .1111 q11 c· 1·111 11 lg1111 •, ,1 111 111 , , f1,q 11 ,11 111 l1'\ d,1 1'- p11Lt 11~·11i'h<•11 ',<' q111 1111111, 111 d,• N1•w1011 r on1 :1:1 lq11 l111i:11: r:1lwm 1n:i i1, pn>Í11ndn
88 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUIMICA
89
ALQUIMIA E Q UÍM ICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS
- -- - - - - -- - - - -- -
d o que se imaginava. Historiadores como Westfall e Dobbs su geriram que diferentemente, acreditava que eram essas partículas maiores que deveriam
o filósofo natural inglês almejava uma síntese filosófica mais ampla entre os ser quebradas durante o processo de transmutação. O m ercúrio o u a aqua
fenômenos m acroscópicos e microscópicos (D OBBS, 1992). A alquimia, ao regia aplicados ao ouro apenas decompunham a coerên cia entre as partículas
fornecer evidências das "virtudes" e dos "poderes" das partículas m ateriais, maio res, a coerência que os mantinha unidos em um corpo maciço, m as não
contribuía para essa síntese cosmológica ainda mais ampla do que aquela as destruíam. Esses dois solventes só passavam pelos poros entre as partículas
oferecida nos Principia. de última o rdem. Assim, para reduzir a escala para partículas m ais simples, seria
Como nos mostra Betty Dobbs, Newton leu e se apropriou de partes necessário um agente analítico realmente poderoso (cf. DOBBS, 1992, p. 219).
da Origem das formas e qualidades de Boyle para construir o seu corpuscula- Mais recentemente, Newm an propôs um a leitura alternativa àquelas de
rismo. Assim, ele admitiu a existência de uma única matéria universal (one Dobbs e Westfall, que focaram, sobretudo, no papel que a alquimia teria
catholic matter): tido n o desenvolvimento das ideias relig iosas n ão ortodoxas de Newton e em

Newton leu as Origens das formas de Boyle, em 1667 ou uma possível influência na formulação de sua teoria gravitacional. Segundo
1668. Além disso, ele já estava profundamente imerso, Newm an, essas interpretações, assim como a declaração de Keynes, p artem
alguns anos antes, nas concepções mecânicas das partí-
da su posição de que a alquimia era fundamentalmente irracional. No caso
culas de matéria em movimento. Ele claramente aderiu
à posição mecânica de Boyle sobre a matéria univer- de Dobbs, sua leitura estaria demasiada próxima da interpretação analítica
sal e seguiu uma das explicações mecânicas de Boyle de Jung dos processos psíquicos expressos em linguagem pseudo-química. Já
a respeito da transmutação, vinte anos depois, quando a persp ectiva de Westfall enfatizaria o interesse de Newton na arte aurífera,
escreveu os Principia. As várias edições da Óptica, da
pois esta poderia ser vista como uma espécie de rebelião contra o projeto ra-
sua época mais madura, estão cheias de conceitos cor-
pusculares. Todos esses fatos agora são bem conhecidos cionalista d a física cartesiana, que admitia, afinal, a existência de qualidades
e geralmente reconhecidos, mas parece bom reiterá-los imateriais (forças, poderes, simpatias, antipatias) e, por isso, teria contribuí-
e enfatizá-los neste momento, a fim de fornecer uma
do de forma importante para a sua teoria da gravitação e, mais amplamen te,
justificativa para a seguinte suposição: um conceito me-
cânico, particular, das mudanças nas 'formas' da 'ma- para a sua convicção de que forças imateriais em geral poderiam operar a
téria católicà foi fundamental para o pensamento de d istância. Porém , Newm an considera que h á razões imperiosas para duvid ar
Newton durante todo o período em que ele estudou dessas interpretações, pois a noção outrora popular de que a alquimia era
alquimia tão intensamente, embora nem os manuscri-
i1 1<.:rentemente não racional - já pres~nte no trabalho de Keynes e avançada
tos alquímicos, nem as notas laboratoriais reflitam isso
(DOBBS, 1992, p. 204). l1l·los sucessivos estudiosos de Newton - tem sido largamente debatida pelos
libroriadores das ciências n as últimas três décadas. Assim, p artindo da ideia
O interessante é que, para Newton, o rearranj o d essas p::tr!Íc 11las un ive r- d\' que a alqu imia c:onslirui uma filosofia racional da natureza, N ew m an
sais, católicas e básicas poderia levar à transmu rnçfo , v, 111111 i\\O, d e pro- p1opí>e 11111 1nétod, 1 d1°1H 1 11 1 i nado de " história experimental", q ue incorpora
blem a tizou a discussão d cixad::t po r íloylc , jn q11t· n ,1111,11 d, (}11/111itfl d tim .111 ,íli\t'' 1t•x111.tl•, 111•,11111\,1\, 1,111 tt· plir :,~·:to laho r.11mi:il d as cxpc ri C·nci:is :dq11í-
1ra1:w:i :i 1ra11sm 111 :1~·:io 110 rrgi:-11 0 d ,t\ 1,·x 111 1,1•, il,1, 1,1q 11l \1 1tl rn, N1'w1011 , 11111 ,1•, de· Nc·w11111 1 l 11 11111d11 1\ 11111,1 1111v,1 d c•,1 1l~,111 d.1 ,il1pd11 tl,1do ,,~11 il11
90 ENSAIOS DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA QUÍMICA A LQ UIMIA E QUÍMICA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS 91

XVII e de como Newton e vários de seus contemporâneos a consideravam Ao questionar o mecanicismo clássico que operava o movimento por
como um conhecimento fundamental na investigação dos "segredos da Na- meio da teoria do choque, o pensador introduz, sabemos, o conceito de
tureza'' (cf. NEWMAN, 2019; Ihe Chymistry ofIsaac Newton, 2005). força, algo que poderia unir o todo do universo e a distância. Não há nada
Enfim, os estudos de caráter mais químico de Newton foram publicados mais alquímico do que isso!1 4 Embora tivesse recebido muitas críticas por
em seu Óptica, que, ao contrário do Principia, não trata do movimento dos não fornecer a causa da gravitação universal, ele não via problemas nisso. De
planetas, mas de fenômenos biológicos, elétricos, geológicos, ópticos e quími- fato, observa-se, em sua filosofa natural, uma junção de várias fontes, entre
cos. Na sua famosa Questão 31 (na edição de 1717), ele se interroga exatamen- elas o corpuscularismo de Boyle, o espírito universal dos neoplatônicos e
te sobre qual princípio poderia reger as reações e transformações químicas: o mecanicismo de Descartes, bem como seu interesse pela alquimia. Ao se
afastar de uma compreensão mecânica estrita com relação à materialidade,
Quando o sal de tártaro [carbonato de potássio, ~C03]
corre per deliquium [liquefaz-se] , derramado na solução
Newton, como herdeiro de uma tradição hermética, conseguiu abrir as por-
de qualquer metal, precipita este último e o faz cair no tas para outras explicações químicas- em outras palavras, a admissão de for-
fundo do líquido na forma de lama; não prova isso que as ças de atração e repulsão. Com isso, a importante interpretação newtoniana
partículas ácidas são atraídas mais fortemente pelo sal de
da noção de afinidade química foi introduzida e, como veremos no próximo
tártaro do que pelo metal e pela atração mais forte vão do
metal para o sal de tártaro? Assim, quando uma solução capítulo, tornou-se um núcleo importante para os estudos da química do
de ferro em aqua fortis [ácido nítrico, HN03] dissolve o século XVIII.
lapis calaminaris [carbonato de zinco, ZnC0 3] e solta o
ferro, ou uma solução de cobre dissolve o ferro nela mer-
gulhado e solta o cobre, ou uma solução de prata dissolve
o cobre e solta a prata, ou uma solução de mercúrio em
aqua fortis derramada sobre o ferro, o cobre, o estanho
ou o chumbo dissolve o metal e solta o mercúrio, não
prova isso que as partículas ácidas da aqua fortis são atraí-
das mais fortemente pelo lapis calaminaris do que pelo
ferro, e mais fortemente pelo ferro do que pelo cobre,
e mais fortemente pelo cobre do que pela prata, e mais
fortemente pelo ferro, cobre, estanho e chumbo do que
pelo mercúrio? E não é pela mesma razão que o ferro
necessita de mais aqua fortis para dissolvê-lo do que o 11Í (; importante salientar que, além dessa influência de textos alquímicos, o conceito de
cobre, e o cobre mais do que os outros metais; e que, de: 1;,rça empregado por N ewton também tem como referência a obra de Kepler. O autor das
todos os metais, o ferro é o mais fuci lmcncc d issolvido e; 11 ê~ leis planedrias fo i quem, de fato, introduziu tal conceito na cosmologia e na astrono-
o mais propenso a enferrujar, e, dqml \ do Ít· rm. o cobr<.:? 11 ii:1, tendo como rt·fcrr nr ial 1anto a tradição astrológica, como os dados observacionais do

(NEWTON, 1996, p. 277). ,is trA 11o mo d l11.1111,11q11~, ' Iyd 111 lk d1c (I 546- 1601 ). Kepler utili·1..:1 o conceito de força e de
,1~ ,IO ,l dl~i.1111111 1111 1111111 1\-111 d,1, f.11no.,.1ç ' l:1hclas R11dolfinas, que serii.o posterio rmenlc
11tlli1iu l,1~ p111• N, w 11111 (f\ l Alt I l•Nli, 2000).

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