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OS PERCURSOS DA MEMÓRIA: a exposição

relato de pesquisa
virtual cartes postales du Québec d’antan
como fonte de informação histórica*

Lidia Eugenia Cavalcante**

RESUMO Apresenta estudo sobre uma viagem virtual de leitura por meio
da exposição Cartes postales du Québec d’antan, que faz parte
da Bibliothèque et Archives nationales du Québec. Com base na
obra Le Pays et la mémoire: pratiques et représentations de
l’espace français chez Gilles Corrozet et Charles Estienne, de
Chantal Liaroutzos, faz-se uma pesquisa sobre a vulgarização e
popularização do saber histórico em meio digital. A abordagem
visa a aproximar o estudo sobre uma poética do espaço
realizada por Liaroutzos, desde textos populares da França,
do Século XVI, com uma leitura contemporânea, realizada em
meio eletrônico, envolvendo abordagens sobre memória,
*
Este estudo faz parte da pesquisa Memória
patrimônio, educação e fontes de informação histórica. Trata- e patrimônio digital, desenvolvida no pós-
se da tentativa de aproximar estudos históricos tradicionais doutorado em Ciência da Informação,
daqueles que se apresentam em meio virtual, sobretudo no realizado na Université de Montréal,
Canadá, no período 2006-2007. A
que se refere à questão didática do ensino da História, as pesquisa contou com o financiamento da
apropriações do que é dado a ler na Internet e fontes de Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – CAPES.
informação.
**
Professora do Departamento de Ciências
Palavras-chave LEITURA E MEMÓRIA da Informação/UFC. Pós-doutora em CI/
LEITURA E PATRIMÔNIO DIGITAL Université de Montreal. Doutora em
Educação/UFC. Mestre em História Social/
EXPOSIÇÃO VIRTUAL UFRJ.
FONTES DE INFORMAÇÃO E-mail: lidia@ufc.br

1 INTRODUÇÃO estudadas pela autora apresentam ideologias de


uma época, observadas por meio de saberes e visão
A exemplo da belíssima obra de Chantal de mundo próprios, de um projeto educativo, que
Liaroutzos (1998), Le Pays et la mémoire: pratiques et visava a atender aos habitantes das cidades, deten-
représentations de l’espace français chez Gilles Corrozet tores da capacidade de ler, do início dos tempos
et Charles Estienne, este texto tem como origem uma modernos.
exposição acerca da qual discorreremos em breve. Assim, inspirando-se nas leituras de
A autora da obra citada faz uma fantástica viagem, Liaroutzos sobre a representação e a poética do es-
com início em uma exposição, realizada pelo Centre paço francês, por meio de textos do Século XVI -
Georges Pompidou – França, em 1980, intitulada parte de uma exposição em França - é que este estu-
Cartes et Figures de la Terre. A exposição apresenta do foi elaborado. Nossa viagem começa por uma
obras sobre a linguagem verbal ou cartográfica dos visita virtual à exposição Cartes postales du Québec
“cosmographes” do Século XVI. d’antan, da Bibliothèque et Archives Nationales du
Com base na representação do espaço fran- Québec. Observando os devidos distanciamentos
cês presente nos textos de Gilles Corrozet e Charles temporais, buscamos na exposição virtual citada
Estienne - le premier guide routier français, le premier evidenciar aspectos comuns com relação ao “[...]
guide historique de Paris e le premier Manuel que é dado a ver, a ler e a fazer” (LIAROUTZOS,
d’agriculture - Liaroutzos desenvolve um estudo a 1998, p.10). Neste percurso virtual, histórico e ideo-
que chama de “uma poética do espaço.” As obras lógico, procuramos identificar a presença de uma

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Lidia Eugenia Cavalcante; Lidia Eugenia Cavalcante

vulgarização do saber e de saber utilitário, relacionan- Historicamente, os cartões postais sempre


do-os a uma tentativa de popularização da leitura exerceram um fascínio especial sobre os viajantes e
do documento em meio digital. aqueles que os recebem. Por um lado, há facetas
dos lugares, presentes nessas imagens e seus tex-
tos, que parecem nos transportar para cidades e
2 A EXPOSIÇÃO VIRTUAL CARTES POSTALES DU
tempos onde e quando jamais estivemos. Geralmen-
QUÉBEC D ’ ANTAN 1 : VIAGEM DE LEITURA te apresentam cenas poéticas ou mostram o melhor
HISTÓRICA dos lugares, com riquezas e detalhes da vida coti-
diana. São cenas com destaque para paisagens e
Michael de Certeau (1996, p.190) nos diz que arquiteturas ou retratam o mais belo das estações
“[...] o memorável é aquilo que se pode sonhar a do ano, sempre com particularidades de cada lo-
respeito do lugar.” Lugares construídos na memó- cal. Em muitos casos, lugares que já não existem.
ria, onde cenas vão sendo tecidas uma a uma, e Por outro lado, representam também o retrato da
cada fio, reconstituído em tramas diversas, permite saudade. Receber cartão postal costuma indicar a
o uso de metáforas e maneiras de ver o passado, lembrança de alguém distante.
por meio de lembranças vividas ou recolhidas da A riqueza dos cartões postais consiste em
memória do outro. Muitas vezes são caminhos assumir um papel de representação do espaço por
historicamente distantes, percorridos por nossos meio de uma imagem/texto, elaborada sob três pers-
antepassados. Costuma, entretanto, haver um elo pectivas diferentes: daquele que capta a imagem
entre os fios. Ao falar de comemorações, monumen- pela fotografia, desenho ou pintura, o olhar de quem
tos, fatos, conquistas e lutas, os entremeios vão for- o envia e o de quem o recebe. Fazendo uma aproxi-
mando uma rede onde os laços aparecem e as expe- mação com o pensamento de Liaroutzos (1998, p.
riências são comuns entre os atores. Com efeito, em 10), cada um realiza, segundo o modo que lhe é
muitos casos, uma memória/documento vai se cons- próprio, um tipo de adequação específica entre “o
tituindo, seja por meio de fotos, cartas, registros ver, o dizer e o fazer”. Ao interrogar esses docu-
sonoros ou cartões postais, como veremos. mentos, verificamos um processo “duplamente di-
Nesse sentido, a memória se constrói social- dático” de “apreensão do espaço”, relativo a um
mente por meio das experiências vividas, indivi- saber sobre o mundo e a um saber sobre as práticas
dual ou coletivamente. Cenas, imagens, fotografi- que induz.
as, relatos ou registros sonoros nos dão a oportuni- Em tempos passados, na conhecida e bem
dade de conhecer memórias vividas em tempos lon- retratada Belle Époque, bem mais do que hoje, os
gínquos. Neste caso, são as instituições culturais cartões postais representavam uma prática comum
de memória, a exemplo das bibliotecas, museus e e econômica para os viajantes, que costumavam se
arquivos, um passaporte para essa viagem, percor- deter em livrarias, bancas de revistas ou papelari-
rendo riquíssimas fontes de informação. as, à procura das mais belas imagens; cenas que
A Bibliothèque et Archives nationales du Québec retratassem os lugares visitados para serem envia-
- BAnQ, dentre as exposições virtuais presentes no das a pessoas ausentes ou mesmo para colecionar.
projeto de digitalização de coleções patrimoniais, Em tempos atuais, a prática do envio de mensa-
intitulado Branché sur notre histoire, nos permite co- gens eletrônicas e de fotos digitais representa mar-
nhecer antepassados distantes, dos povos canaden- ca de novos e mais rápidos suportes de informa-
ses, por meio da Internet. É algo que se pode reali- ção, provavelmente bem mais utilizados pelos via-
zar de qualquer lugar do mundo, sem precisar via- jantes.
jar até o Canadá. Dentre essas exposições, há uma Os cartões postais cumprem belo papel his-
que nos inspira particularmente. Trata-se da Ex- tórico na construção dos lugares, principalmente
posição Virtual Cartes postales du Québec d’antan, das cidades. Por meio deles, é possível conhecer
pela qual iniciamos esta aventura do ato de ler a costumes, hábitos, cultura e cotidiano de gerações
memória de outros povos, ao empreender uma via- e habitantes dos espaços urbanos. Podemos, tam-
gem virtual. bém, desenvolver uma prática de leitura histórica,
cultural, social e poética do passado, dos lugares
de sedução e encantamento.
Pode parecer contraditório relacionar cartões
1
Cartões postais do Quebec de antigamente (traduzido do francês). postais, uma prática que teve seu apogeu em déca-

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das longínquas, à Internet. De acordo com o que das obras mais recentes, são requeridas todas as
pretendemos discutir neste texto, entretanto, é evi- autorizações necessárias, como a exemplo das
dente que, mesmo em se tratando de questões do monografias, publicações em série, documentos
tempo presente, como as tecnologias de informa- sonoros e artísticos.
ção, estas suscitem abordagens históricas e socio- A constituição de coleções digitais, origina-
lógicas. Trata-se de estudo de grande riqueza para das de fundos patrimoniais, permite valorizar a cons-
pesquisas científicas, sem limitar-se apenas aos fa- trução histórica e a diversidade cultural que são as
tos mais próximos ou contemporâneos do olhar do marcas de uma nação, de modo amplo e democráti-
pesquisador. São formas distintas de ler e ver o co- co. Além disso, torna-se importante instrumento de
tidiano do outro e de tornar próximo o que parece propagação do patrimônio relativo a língua, cultu-
distante, de um modo sensível e poético, diante da ra, idéias, literatura e expressões de um povo.2
frieza perceptível do uso da máquina. É no cruza- A exposição virtual, por meio dos cartões pos-
mento do histórico com o tecnológico, no entanto, tais do acervo da BAnQ, nos propõe uma viagem em
assim como na “travessia do leitor”, da ponte que três circuitos, ou seja, em itinerários triplo: o circuito
une essas duas formas de apreensão de saberes, do viajante, o circuito do patrimônio e o circuito da eco-
que se insere o nosso estudo. nomia. Cada um desses itinerários apresenta cerca
Lançado em janeiro de 2005 para acesso ao de trinta cartões postais, impressos entre os anos de
público, o projeto da digitalização de coleções 1900 e 1950, selecionados dentre os de uma coleção
patrimoniais da BAnQ já digitalizou mais de 2,8 de 6.500 unidades, já digitalizados, e que podem ser
milhões de páginas de textos de livros antigos e obras acessados pelo catálogo multimídia da biblioteca.
raras e uma grande quantidade de coleções de jor- Os documentos escolhidos apresentam forte ligação
nais, cartões postais, mapas, fotografias, partituras, com os eventos históricos e os temas abordados.
vídeos e manuscritos. Os originais desses documen- Ao escolher um circuito, o viajante começa
tos, como a maioria das coleções patrimoniais, eram rica e emocionante aventura, com início no rio Saint-
dificilmente acessíveis ao grande público, pela fra- Laurent. A história das cidades e vilas urbanas,
gilidade do suporte, necessidade de preservação e muitas vezes, tem início por rios e mares. Estes tra-
desconhecimento do público em geral. zem a possibilidade de retirar populações do isola-
Por meio do uso das tecnologias, a BAnQ mento. Historicamente, a água é o lugar de chega-
difunde importantes coleções patrimoniais. O pro- da do navegador, do conquistador e, em alguns
jeto Branché sur notre histoire permite, atualmente, o casos, do herói. É o início do progresso e do cresci-
acesso a aproximadamente um milhão de documen- mento econômico. Por outro lado, também significa
tos manuscritos originais, fotografias, gravuras e a chegada de conflitos de interesse em razão das
cartões postais, além dos registros sonoros e em diferenças culturais ou políticas. O rio Saint-Laurent
vídeo. Esse projeto tem como objetivo viabilizar o representa o “coração” da história do Québec. As
acesso à história e à memória do Québec e do Cana- viagens de Jacques Cartier em 1934 e 1935 são um
dá em linha. Atualmente, cerca de 70.000 visitantes exemplo da importância do rio para a trajetória his-
por semana acessam as diferentes coleções dispo- tórica e econômica dessa parte do Canadá.3
níveis. (BOUCHER, 2006). A exposição virtual é apresentada por meio
O programa da digitalização de coleções da de um texto narrativo e histórico, que indica ao vi-
BAnQ possui critérios e orientações institucionais sitante por onde ele deve começar a caminhar, ori-
fundamentais para tornar disponível em linha o entado por um mapa com links dos lugares e da
grande número de documentos existentes em su- seguinte indicação: “Votre billet (virtuel) en main, vous
portes tradicionais. Dentre esses critérios destacam- voilà prêt à partir à l’aventure… Bon voyage!”4 Nos
se: o interesse dos usuários por determinados do-
cumentos, com base em dados estatísticos; a neces-
sidade de representar as diferentes regiões do
2
É importante salientar, contudo, que muitas discussões estão se realizando
mundialmente sobre a democratização do acesso ao conhecimento em meio digital
Québec, os documentos clássicos e títulos raros e e sobre os possíveis riscos de dominação lingüística. Podemos citar entre os
os periódicos, em especial as publicações de inte- organismos que refletem essa questão: UNESCO, IFLA e Biblioteca Nacional da
França.
resse cultural e aquelas concernentes às ciências 3
Para conhecer mais sobre as viagens de Jacques Cartier consultar <http://
humanas e sociais (FOURNIER, 2006). Vale salien- fr.wikipedia.org/wiki/Jacques_Cartier>
4
Com o bilhete virtual em mão, o viajante estará pronto para a aventura. Boa
tar que são prioritários também os de domínio pú- viagem. (traduzido do original em francês). <http://www.banq.qc.ca/
blico, em respeito à lei de direitos autorais. No caso histoire_quebec/expositions_virtuelles/cartesdantan/voyage/voyage.jsp>

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Lidia Eugenia Cavalcante; Lidia Eugenia Cavalcante

mapas, que tem como ponto central o rio Saint- res vai se formando pelas imagens de cenas vivi-
Laurent, o visitante virtual começa uma fascinante das e da dinâmica de cada época retratada por meio
viagem pelos cartões postais. dos cartões postais apresentados.
Historicamente, os viajantes descortinam ci- Segundo Zumthor (1997, p.15), “A memória
dades. A exemplo de grandes navegadores épicos, recupera o vivido”. Neste caso, é a ela que a socie-
como o veneziano Marco Pólo (1254- 1324), o por- dade, ou mesmo o indivíduo, recorre para manter o
tuguês Vasco da Gama (1469-1524) e o francês passado próximo ao presente pelo ato de relembrar.
Jacques Cartier (1491-1557), comerciantes, desco- Assim, permite que se mantenha a vida, seja pesso-
bridores e exploradores seguiam por mares ou rios al, de um grupo, comunidade, sindicato ou movi-
à procura de terras, descobertas e riquezas. Algu- mento popular. A palavra, no momento em que é
mas vezes recebidos como heróis, outras com des- pronunciada, e a cena, quando registrada, recupe-
confiança ou mesmo como invasores. O certo é que ram percursos, transpõem tempo e espaço e se inte-
se fizeram presentes na história dos lugares. gram às tradições, produzindo um elo entre duas
Desde uma visão mais tradicional do con- categorias distintas: experiência e expectativa. “A
ceito de patrimônio, e reconhecendo que esses con- primeira sugere o passado, a segunda, o futuro e
ceitos se encontram atualmente em mutação5, os mo- ambas parecem querer entrelaçar-se como dois pó-
numentos erguidos em memória dos heróis e des- los através dos quais se pensa e se projetam os seus
bravadores se apresentam como uma grande rique- futuros” (BRANDÃO, [199-?], p.28).
za histórica das cidades. São memórias geralmente O surgimento dos suportes virtuais com seus
centenárias que, segundo alguns de seus habitan- hipertextos, considerados como novos suportes do
tes, merecem ser recontadas. Para outros, princi- registro do conhecimento e de fontes de informa-
palmente os mais jovens, são imagens que passam ção, também apresentam novidades com relação às
despercebidas ou desconhecem a motivação histó- práticas de leitura, sejam elas físicas ou sociais.
rica do ato que originou aquela obra. Em muitos Mudam a forma de acesso, conteúdo, veracidade,
casos, tal desconhecimento torna esse patrimônio paginação, visualização, estímulo, interação e trans-
alvo de vandalismo ou do descaso das autoridades missão, mediação, pertinência, descobertas e con-
para com a necessária preservação e salvaguarda. cepção. Nasce daí uma ruptura com as formas tra-
Assim como os mares e rios se tornaram im- dicionais do livro impresso. O leitor segue percur-
portantes para as navegações, o desenvolvimento sos interativos de leitura, acessa metatexto, imagens
das cidades, às margens das águas, também foi pro- e sons por meio de links, que o convidam para mui-
piciado pela economia originada por meio da pes- tas viagens interativas. É também continuamente
ca, do comércio, das viagens, das exportações etc. convidado a se tornar “autor” a cada vez que ele
Os portos foram se multiplicando e ocasionando o relaciona elementos de informação (VIGNAUX,
crescimento de pequenas vilas urbanas. O comér- 2004).
cio ocupa lugar importante na economia citadina. Não se trata de uma ruptura entre impresso
Por exemplo, alguns dos cartões postais da exposi- e digital, já que o texto impresso também permite
ção apresentam cenas cotidianas da vida de pesca- leituras não lineares, intertextualidade e
dores em meados do Século XX, em Québec, como interatividade, que constroem o vasto conjunto de
principal meio de subsistência da época, por se cons- informações adquiridas pelo leitor. Entre impresso
tituir como um recurso natural. Além da função e digital ocorre, na realidade, intensa multiplica-
histórico-social, o patrimônio econômico também ção de possibilidades de leituras. Assim como o
assume símbolo de identidade local, principalmente século XVI, os séculos XX e XXI representam etapa
em pequenas comunidades que se formam por meio decisiva para a história do conhecimento humano
de uma cultura extrativista ou de subsistência, a (LIAROUTZOS, 1998).
exemplo dos povos que vivem da pesca ou da agri- É emocionante para um professor/pesquisa-
cultura de um item específico. A memória dos luga- dor, por exemplo, conectar-se ao portal de uma bi-
blioteca, durante uma aula, deparar-se com acer-
vos de grandes tesouros nacionais e internacionais
5
Vários estudiosos do patrimônio têm refletido sobre as atuais abordagens relativas do registro da produção do conhecimento huma-
ao fenômeno de patrimonialização que, nas últimas décadas, engloba natureza, no, e apresentar para os alunos um documento pro-
cultura, memória, documento e, mais recentemente, o patrimônio digital, como
um fenômeno de representação histórica (POULOT, 1997; MICOUD, 1998;
duzido em tempos longínquos, uma viagem por ter-
UNESCO, 2003). ras distantes; obras raras, originais da iconografia,

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da música ou fascinantes manuscritos, já a popularização do saber. Tratava-se de livros mui-


digitalizados e postos à disposição de um público tas vezes de autoria desconhecida, de abordagens
cada vez maior. São documentos fundamentais para fictícias, publicados em papel ordinário, de baixo
conhecer como se processou, ao longo dos séculos, custo, de sucesso popular garantido, cobertos com
a trajetória humana registrada em diferentes aspec- capa azul. Direcionavam-se principalmente a cita-
tos - histórico, artístico, cultural, ideológico, políti- dinos alfabetizados, livros muitas vezes lidos, reli-
co ou religioso. dos e copiados por seus ávidos leitores (KUPIEC,
Esse importante trabalho significa a possibi- 1998).
lidade de tornar acessível, mesmo que de modo vir- A digitalização de documentos e a criação
tual e representativo, parte do patrimônio históri- de um patrimônio digital, assim como o surgimento
co-cultural, para pesquisadores, historiadores, edu- da Bibliothèque Bleue, além do fascínio que exerce e
cadores, estudantes e demais interessados. É uma da justificação social, histórica, educacional e cul-
forma de coletivizar e tornar conhecidos, acervos tural que apresenta, necessitam, entretanto, de um
antes destinados exclusivamente à preservação, e importante trabalho de reflexão e de alcance
não ao acesso, em virtude da fragilidade e degrada- educativo. Algo que possa ir além de leitura linear,
ção física, ocasionadas por séculos de existência. ocasionada pela euforia do presente; reflexão que
Estamos diante de admirável instrumento de pes- se inicia com a constatação de tratar-se de uma re-
quisa, educativo ou mesmo de pura curiosidade, presentação do real, especialmente quando nos re-
fascinante, do ponto de vista histórico e social. O ferimos a documentos históricos (representativos
uso da tecnologia pode garantir acesso, sem risco de fenômenos sociais ou testemunhas de uma era)
de roubo, depredação ou danificação dos originais, produzidos no passado, em suportes físicos e atu-
a maioria desses documentos, guardada em cofres. almente digitalizados. Documentos que não pode-
Trata-se de uma possibilidade de troca entre a ne- rão efetivamente (pelo menos no presente) substi-
cessidade do especialista e a pretensão cultural do tuir a obra em si, em sua materialidade, mesmo que
povo por meio de uma ação pedagógica e de alcan- se configurem em reproduções de alta qualidade e
ce educativo (LIAROUTZOS, 1998). de perfeição, completamente idênticas aos originais,
O conceito de vulgarização do saber, utilizado de uma fidelidade impressionante. Para Desvallées
por Liaroutzos em seu estudo, apresenta forte rela- (2003, p.18), “Passou-se ao mesmo tempo do su-
ção com a nossa problemática de pesquisa. O docu- porte papel para o suporte eletrônico e da contem-
mento histórico em meio virtual não pertence mais plação individual ou coletiva, à contemplação uni-
apenas ao especialista, intelectual, pesquisador, versal e mundial.”
antropólogo ou historiador. Ele adentra o universo
do saber de modo mais democrático e amplo para 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
outros interessados, como estudantes e grande pú-
blico. As informações contidas nesses documentos Ao finalizar nossa prazerosa viagem de lei-
não cumprem apenas o papel de fonte de informa- tura virtual por meio dos cartões postais da histó-
ção para pesquisadores. Elas se configuram como ria do Québec, cumpre-nos agora a missão de apre-
veículo de curiosidade, saber utilitário, de desejo sentar algumas palavras conclusivas. Como
etc. É também uma forma de divulgação ou de vul- Chantal Liaroutzos, autora que nos inspirou para
garização do saber. esta pesquisa, dizemos que a descrição é uma “arte
A vulgarização ou popularização do saber evo- da memória”. Por meio dela podemos definir terri-
luiu entre os séculos XVI e XIX por meio de publica- tórios, compor identidades, revelar saberes ou mes-
ções que visavam essencialmente a um público ur- mo exercitar o delicioso prazer de recompor per-
bano, ainda minoritário, no começo daquele perío- cursos de nossas vidas e experiências cotidianas
do. Liaroutzos (1998) refere-se principalmente aos ou da existência do outro. Esse trajeto se torna pos-
habitantes das cidades do século XVI, os quais pou- sível com a elaboração de um espaço, imaginário,
cos sabiam ler. A leitura era privilégio da nobreza, representativo ou real.
estudiosos, filósofos, comerciantes etc. Entretanto, O discurso e a trajetória da memória, presen-
a literatura popular começava a formar um novo tes nos cartões postais por nós estudados, ocorrem
público leitor, alvo do interesse das tipografias, que sempre na presença dos lugares, onde as cenas se
se efetivara durante os séculos XVII e XVIII. A céle- descortinam. Pode, entretanto, significar também a
bre Bibliothèque Bleue contribuíra enormemente para existência de territórios jamais visitados fisicamen-

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te. Em nossa viagem, no entanto, podemos nos refe- antes restritos e que, em essência, já cumprem gran-
rir, neste caso, a uma visita virtual por meio das de papel pedagógico.
imagens e da imaginação. O espaço urbano tema Entre nossas reflexões finais, podemos inda-
muito apreciado pelos criadores dos cartões pos- gar: quais as conseqüências de um projeto de via-
tais, é rico em ideologias de pessoas que viveram de gem de leitura virtual por meio da história como
determinada época e constituíram seus territórios - fonte de informação, em termos pedagógicos ou
políticos, culturais, históricos e sociais. Por exem- mesmo socioculturais? Por tratar-se de um tema
plo, podemos falar da imagem do rio, da força do ainda recente, principalmente com relação ao aces-
monumento, no ícone do viajante. Trata-se de ce- so e à democratização dessas fontes, ainda não é
nas propostas ao leitor em todo o seu percurso de possível apresentar resultados significativos no
visitante da exposição: Cartes postales du Québec campo empírico. Cabe a nós, como pesquisadores,
d’antan da Bibliothèque et Archives nationales du assim como fizeram os viajantes, navegadores, des-
Québec. cobridores e desbravadores, iniciar essa viagem de
São saberes postos à disposição do público, leitura, virtual ou real, no campo teórico. Indo mais
provenientes de fontes consideradas pouco demo- longe, quem sabe, se busque inspiração no herói
cráticas, muitas vezes de acesso restrito a pesqui- mitológico grego Jasão e nos argonautas, a bordo
sadores ou como tesouros valiosos de museus e ar- da nau mitológica Argo, construída com a ajuda da
quivos, mantidos à distância do povo. Talvez ain- deusa Atenas, em busca do velino de ouro. Se, para
da não possamos medir o alcance pedagógico des- a mitologia, tão distante de nossa era, coisas que
sa fonte de informação, pois, a princípio, esse não pareciam impossíveis aconteciam, imaginemos o
nos parece ser o principal objetivo de se criar expo- que pode ocorrer em tempos de tecnologia tão avan-
sições virtuais. A criação de tais acervos digitais çada como a que assistimos no Século XXI.
parece se configurar, no presente, mais como forma Argonautas, cosmonautas ou internautas, nós, se-
de salvaguarda e preservação da memória nacio- res humanos, ao longo da história, sempre fomos e
nal. Esses projetos, todavia, possuem grande fun- seremos grandes viajantes à procura de aventuras
ção de vulgarização ou popularização de saberes e descobertas.

THE ROUTES OF THE MEMORY: the virtual exposition cartes postales du québec
d’antan as a source of historical information

ABSTRACT We present a virtual reading trip through the exposition Cartes postales du Québec d’antan, which
is part of the bibliothèque et Archives nationales du Québec. Based on the work Le Pays et
la mémoire: pratiques et représentations de l’espace français chez Gilles Corrozet et Charles Estienne,
de Chantal Liaroutzos, we conduct a research about the vulgarization and popularization of the
historical knowledge in digital means. Our approach aims to get the study about a poetics of the space
conducted by Liaroutzos, based on popular texts of the XVI century France, through a contemporary
reading, carried out in electronic means, involving memory, patrimony, education and sources of
historical information. It is an attempt to bring the history told in books, the ones from traditional
collections in libraries, closer to the one presented in virtual means, especially concerning the didactic
aspect of the teaching of History and the appropriations of what can be read on the Internet and the
information sources.

Keywords READING AND MEMORY


DIGITAL READING AND PATRIMONY
VIRTUAL EXPOSITION AND SOURCES OF INFORMATION

Artigo recebido em 15.05.2007 e aceito para publicação em 26.07.2007

104 Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.17, n.3, p.99-105, set./dez. 2007
Os percursos da memória: a exposição virtual cartes postales du québec d’antan como fonte de informação histórica

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