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AS “CULTURAS LBGTS” E O ESTADO BRASILEIRO: UMA

INCLUSÃO MARGINAL?

Tony Gigliotti Bezerra (1)1

1 Mestre em Cultura e Sociedade – Universidade Federal da Bahia (UFBA), analista técnico-


administrativo do Ministério da Cultura; tonygb2@hotmail.com

Resumo Simples: Este artigo aborda a cultura na sua relação com o gênero e a sexualidade, tendo
como objeto o que se convencionou chamar de “culturas LGBTs”, mais especificamente as ações de
valorização e promoção dessas culturas realizadas no âmbito do Ministério da Cultura (MinC). A
pesquisa foi realizada por meio de análise documental e revisão bibliográfica. A partir de 2003, o
MinC passou a apoiar manifestações culturais historicamente excluídas e invisibilizadas, entre elas as
culturas populares, indígenas, ciganas e LGBTs. O MinC lançou editais de promoção das “culturas
LGBTs” entre os anos de 2005 e 2009, com investimentos de 4,2 milhões de reais. Foi uma importante
experiência de política afirmativa para a efetivação dos direitos da população LGBT, em diálogo com
os movimentos sociais.

Palavras-chave: Culturas LGBTs, políticas públicas LGBTs, paradas LGBTs, financiamento da


cultura, políticas culturais.
Introdução

Este artigo aborda a temática da cultura na sua relação com o gênero e a sexualidade,
tendo como foco o que se convencionou chamar de “culturas LGBTs”. Analisa-se, mais
especificamente, as ações de valorização e promoção dessas culturas realizadas no âmbito do
Ministério da Cultura do Brasil entre 2004 e 2014. O artigo apresenta alguns resultados
preliminares de uma pesquisa que está em andamento.
O movimento LGBT latino-americano ganhou força a partir da década de 1970,
associado à luta contra as ditaduras que governavam a região. Richard Miskolci e
Maximiliano Campana (2017) explicam que o movimento esteve ligado a uma perspectiva
predominantemente de esquerda, assim como o feminismo, muito embora essas fossem
relegadas ao status de “contradições secundárias”. Apesar disso, a pauta foi ganhando
destaque até começar a se inserir com mais intensidade na agenda governamental brasileira, a
partir da década de 2000.
A partir de 2003, com a criação da Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural
(SID), o Ministério da Cultura (MinC) passou a apoiar manifestações culturais historicamente
excluídas e invisibilizadas. Nesse diapasão, foram criados editais específicos para concessão
de prêmios a determinadas manifestações culturais, entre elas as culturas populares, culturas
indígenas, culturas ciganas, juventude, pessoas idosas e LGBTs (CORREIA, 2013).
O artigo aborda a relação entre as “culturas LGBTs” e o Estado no Brasil entre 2004 e
2014, com foco nos editais de promoção das “culturas LGBTs” promovidos pelo MinC por
meio da SID, lançados entre os anos de 2005 e 2009. O artigo se justifica pelo crescente
interesse de estudar a interação do movimento LGBT com o circuito institucional da cultura,
tendo em vista que esse processo gerou novos arranjos sociais e desdobramentos
institucionais ainda pouco estudados no meio acadêmico. Nesse sentido, o trabalho busca
compreender os avanços e retrocessos do movimento LGBT brasileiro, em face de suas
relações com a institucionalidade no campo cultural.
Este artigo está estruturado em três partes: introdução, desenvolvimento (metodologia,
referencial teórico, resultados e discussão) e conclusões, seguido das referências
bibliográficas.

Metodologia, Referencial Teórico, Resultados e Discussão


A pesquisa foi realizada por meio de análise documental e revisão bibliográfica. Na
análise documental, foram estudados os editais LGBTs promovidos pela Secretaria de
Identidade e Diversidade Cultural (SID) do Ministério da Cultura (MinC). No referencial
teórico, são abordadas as perspectivas de estudiosos como Michel Foucault (1988, 2004),
Judith Butler (1990), Berenice Bento (2006), Leandro Colling (2015), Richard Miskolci
(2017), entre outros. Essa sessão apresentará, adiante, o referencial teórico seguido dos
resultados e discussão.
Foucault aborda a temática da “cultura gay” em seu caráter subversor da ordem social.
Segundo ele, a homossexualidade não deve ser reinserida na normalidade geral das relações
sociais. Ao contrário, deve-se deixar que ela escape à normalidade, propondo novas formas de
relações que influenciem, inclusive, os não homossexuais (FOUCAULT, 2004).
Judith Butler foi uma das primeiras pesquisadoras a situar o debate de gênero
diretamente no âmbito da cultura. Criadora da Teoria da Performance, Butler percebe a
identidade de gênero enquanto um aspecto da cultura, ou seja, o “ser homem” ou o “ser
mulher” são realizações performativas que se cristalizam enquanto padrões de comportamento
reforçados pelas normas sociais. As transgressões dessas normas geram sanções. Ela discorda
da visão de que o sexo biológico seja um fator determinante para a identidade de gênero ou
para a orientação sexual, sendo que o automatismo da presunção de heterossexualidade se dá
no âmbito da cultura e também pode ser modificado nessa esfera (BUTLER, 1990).
A cristalização das identidades sexuais, ou seja, as construções de identidades
culturais a partir das orientações sexuais dos indivíduos pode gerar a exclusão de pessoas que
não se encaixem nesses padrões. Berenice Bento (2006) nos alerta para os perigos da
institucionalização do movimento LGBT, ou seja, do estabelecimento de identidades sexuais
rígidas, que não dão conta de suas variabilidades e contingências. Para a autora, as políticas
queer incomodam certos setores do movimento LGBT ao apresentar as identidades sexuais e
de gênero em seu caráter performativo e fluido (BENTO, 2006).
O professor Leandro Colling (2015) faz uma distinção entre o ativismo queer ou de
dissidência sexual, que adviria da filosofia das diferenças, e as políticas oriundas do
paradigma da igualdade e da afirmação das identidades, comuns ao movimento LGBT nos
países estudados. Enquanto o segundo apostaria em marcos legais como o do casamento
igualitário, o ativismo queer priorizaria estratégias políticas no campo da cultura, buscando
combater os preconceitos por meio da expressão artística (COLLING, 2015). Nesse diapasão,
as “políticas culturais LGBTs” podem ter o condão de pensar a questão de gênero e
sexualidade exatamente a partir da teoria queer.
Ana Maria Amorim Correia, ao abordar a promoção das “culturas LGBTs”, explica
que, historicamente, a questão LGBT foi ora ignorada pelo Estado Brasileiro, ora tratada pela
política de saúde, no contexto do combate à epidemia da Aids. A inserção do tema, durante a
década de 2000, enquanto aspecto da cultura, representa um importante giro político, no qual
a diversidade sexual e de gênero passa a ser encarada como um aspecto da cultura. Correia
destaca que, entre 2005 e 2010, a SID contemplou 506 propostas em editais voltados para as
“culturas LGBTs”. Com investimentos da ordem de 4,2 milhões de reais ao longo do período,
o segmento LGBT absorveu 19% dos recursos investidos pela secretaria. Foram apoiadas
ações em 24 unidades da federação, o que demonstra a abrangência nacional da referida
política (CORREIA, 2013).
A pesquisa identificou que, entre 2006 e 2009, foram lançados editais específicos para
o segmento LBGT. Foram publicados seis editais públicos cujos focos foram as “culturas
LGBTs” e as paradas de orgulho LGBT, conforme descrito abaixo. Esse processo representou
um marco na história do movimento LGBT, representando uma inovação na forma como o
Estado lida com esses segmentos, passando a reconhecer a existência dessas culturas e a
promovê-las.
Em 2004, foi criado o Grupo de Trabalho de Promoção da Cidadania GLBT, no
âmbito do MinC. O objetivo era o de elaborar um plano para fomento, incentivo e apoio às
produções artísticas e culturais que promovessem a cultura e a não-discriminação por
orientação sexual. Ao final do trabalho, foi lançado um relatório que reuniu informações sobre
o histórico do movimento LGBT, desde a década de 1970, e a fundamentação para a política
cultural que se pretendia implantar (BRASIL, 2005).
De acordo com o Relatório Final do Comitê Técnico de Cultura LGBT, lançado em
2014, houve seis editais públicos cujos focos foram as “culturas LGBTs”, quais sejam: Parada
do Orgulho GLBT1 2005, Concurso Cultura GLBT 2006, Concurso Cultura GLBT 2007,
Concurso Público de Apoio a Paradas de Orgulho GLTB 2008, Prêmio Cultural GLBT 2008 e
Prêmio Cultural GLBT 2009 (BRASIL, 2014). Após 2009 não houve mais editais dessa
natureza no MinC.
Com as referidas ações, o Ministério da Cultura buscou se inserir no Programa “Brasil
sem Homofobia”, lançado em 2004 e conduzido pelo governo federal, sob a coordenação da
Secretaria Especial de Direitos Humanos. Tratava-se de um Programa de Combate à

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À época, utilizava-se o termo GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transexuais), com a letra “G” na frente.
Posteriormente, passou-se a utilizar o termo LGBT, com a letra “L” na frente, de modo a realçar o papel das
mulheres lésbicas no movimento LGBT. Além disso, a letra “T” passou a abranger não somente as pessoas
transexuais, mas também as travestis e transgêneros.
Violência e à Discriminação contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual, que
envolvia diversos órgãos públicos (BRASIL, 2005).
A questão LGBT foi lembrada também quando da elaboração do Plano Nacional de
Cultura (PNC). O capítulo 2, que trata da diversidade, tem como objetivo “reconhecer e
valorizar a diversidade, proteger e promover as artes e expressões culturais”. Ao dissertar
sobre as estratégias e ações, o plano aborda, dentre outras, a discriminação por orientação
sexual, que deveria se ser objeto de programas de reconhecimento e difusão do patrimônio e
das expressões culturais (BRASIL, 2010).
Em novembro de 2012, foi instituído o Comitê Técnico de Cultura para Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) e demais grupos da diversidade sexual,
sob a coordenação da Secretaria de Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), que
substituiu a SID. (BRASIL, 2012).
Com esse conjunto de ações, o poder público buscava combater a discriminação contra
as LGBTs, que é um fenômeno amplamente observado na sociedade brasileira. O parlamento
brasileiro, historicamente, tem dado pouca atenção para o combate a esse tipo de
discriminação. Ademais, perante a sociedade homofóbica, as “culturas LGBTs” devem ser, no
máximo, toleradas, mas jamais promovidas pelo Estado. Dessa forma, é surpreendente que o
movimento LGBT tenha conseguido romper a homofobia e a transfobia institucionais e
ingressar na institucionalidade do governo federal a ponto de assegurar a destinação de
recursos públicos para ações de promoção das “culturas LGBTs”, por meio do lançamento
dos referidos editais.
A partir da década de 2000, o tema passa a ser tratado também do ponto de vista da
“positivação cultural” desse segmento da sociedade. Ao abordar a população LGBT do ponto
de vista de sua expressividade cultural, esses segmentos institucionais rompem a visão
predominante na sociedade, segundo a qual as LGBTs são tratadas a partir de suas limitações
ou incapacidades. Nesse aspecto, as LGBTs passam a ser vistas, nessa situação específica,
enquanto força criativa, nos marcos apresentados por Foucault (2004). Ao mesmo tempo, essa
quebra de paradigma gera reação de segmentos conservadores da sociedade, que pressionam o
governo a interromper as ações de promoção das “culturas LGBTs”, cerceando o lançamento
de novos editais destinados a essa expressão cultural.
De acordo com MISKOLCI & CAMPANA (2017), houve uma ampliação da bancada
neopentecostal no Congresso Nacional a partir das eleições de 2010. Com isso, iniciativas de
combate à homofobia nas escolas foram desmontadas e houve uma sensível redução de
espaço para o diálogo entre o governo federal e os representantes dos movimentos LGBT. É
possível que esse processo tenha dificultado, também, o lançamento de novos editais de
promoção das “culturas LGBTs” por parte do Ministério da Cultura.

Conclusões

O artigo buscou compreender a interação entre o movimento LGBT e os atores


governamentais do MinC entre 2004 e 2014 e seus desdobramentos políticos e institucionais.
O foco recaiu sobre os editais de promoção das “culturas LGBTs”, buscando-se analisar as
convergências e embates que marcaram o período. Os referidos editais foram resultado de
uma conjunção muito específica de fatores. Primeiramente, por se tratar de um governo mais
à esquerda do espectro político, que geralmente é mais aberto às questões de gênero e
sexualidade. Em segundo lugar, pelo ingresso de militantes de direitos humanos no MinC,
com destaque para o ator Sérgio Mamberti, que ocupou o cargo de secretário de identidade e
diversidade cultural, sendo que essa secretaria foi responsável pelo lançamento dos referidos
editais.
Ao mesmo tempo, é possível que os editais não sejam resultado apenas de uma
situação pontual ou de uma conjunção de fatores que dificilmente irá se repetir, mas de um
processo mais amplo de ascenso do movimento LGBT no Ocidente. Neste caso, a interrupção
do lançamento dos editais não significaria necessariamente o encerramento do processo, mas
o refluxo temporário de um movimento com uma envergadura maior na sociedade, podendo
retomar as suas relações com a institucionalidade de outras formas. Essas diferentes chaves de
entendimento devem ser investigadas em futuras pesquisas.

Referências Bibliográficas

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