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Encontre a vida.
No fundo de uma floresta, Aileana Kameron arranha seu caminho para
fora da terra. De volta dos mortos, sem memória de quem ela é ou o que
aconteceu com ela, a Falcoeira agora possui poderes sobrenaturais ainda
maiores e um instinto cruel de matar - e o conhecimento que pode mudar tudo.
Encontre Kiaran.
Dois monarcas fada, Aithinne e Kadamach, estão à beira da guerra e, de
acordo com uma maldição antiga, um deve morrer pelas mãos do outro ou
todos os mundos perecerão. Certa vez, Kadamach era conhecido como Kiaran
e era mentor, protetor e amante de Aileana. Agora, sob o domínio da maldição,
sua natureza boa parece perdida para sempre.
Encontre o livro.
A única esperança de Aileana está no lendário Livro da Lembrança, um
livro de feitiços tão poderosos que pode quebrar a maldição das fadas e até
voltar no tempo. Mas o livro está perdido há séculos, e muitos o procuram,
incluindo sua criadora, a Morrigan - uma fada de terrível malevolência e
crueldade.
Sacrifique tudo.
Para obter o livro e derrotar Morrigan, Aileana deve formar uma aliança
impensável, que desafia todos as promessas que fez a si mesma - mesmo
quando os poderes que a trouxeram à vida a estão matando lenta mas
seguramente.
Eu sou o início de uma garota: sua garganta se enche de cinzas,
arrancando desesperadamente o caminho da terra com membros fracos e
trêmulos e uma mensagem urgente nos lábios.
Eu subo a superfície. Abro os olhos para ver o amplo céu cinzento. Um
grito parecendo um uivo atravessa o ar - eu percebo que é meu.
Minhas unhas afundam no solo úmido enquanto eu levanto o resto do
meu corpo para fora do chão. Eu caio, minha bochecha pressionada contra a
terra. Eu suspiro palavras que pegam na minha garganta, uma ladainha na
minha língua sem pensamento, sem memória, sem razão. A mensagem cresce
irregular com a minha respiração, cada vez mais incoerente quando eu volto
para mim mesma. Como pensamentos começam a se formar. Enquanto eles
nublam minha mente, muitos de uma vez.
Onde estou? Como eu cheguei aqui? Não me lembro.
Eu me levanto cambaleando, agarrando um galho próximo para me
firmar. Eu pisco contra a luz, minha visão se clareando quando olho ao redor.
Estou em uma floresta que queimou, toda árvore arrancada e caída.
Galhos retorcidos me prendem, alcançando o céu como pontas dos dedos
retorcidos. Eu tusso com o cheiro avassalador de fumaça de um incêndio
recentemente extinto. O ar está tão saturado que preciso pressionar as costas
da mão no nariz. Não está melhor. Meus braços nus estão cobertos de fuligem
e sujeira. O vestido preto que estou usando está coberto de sujeira.
Passei a mão pelo tecido sedoso. Como eu vim usar isso? Nem é familiar.
Nada é familiar. Não tenho lembrança da minha vida antes de agora.
Minha respiração trava em alarme.
—Pense. — Minha voz é áspera, chocante. Pressiono uma mão no meu
peito como se isso pudesse diminuir meu batimento cardíaco. —Tem que
haver alguma coisa.
Tento pegar algum pedaço de memória, desesperada para acalmar os
pensamentos de pânico que vêm novamente. Quem sou eu? Onde estou? Como
eu cheguei aqui? Mas nada vem. Minha mente está vazia. Um vazio sem fim
onde eu sei - eu sei - deveria haver uma vida inteira de lembranças.
Algo sussurra atrás de mim. A alguns metros de distância, um corvo
pousa em um galho enegrecido e bate suas asas. Seus pequenos olhos escuros
fixam-se em mim, sem piscar. O som que produz é um cruzamento entre um
grunhido e um grito agudo. Dou um passo para trás, minha pele arrepiada.
Olhos negros como piche. Pele murcha esticada sobre os ossos. Vou te
encontrar. Onde quer que você vá, eu vou te encontrar.
Eu estremeço com a imagem rápida e fugaz em minha mente - uma
cacofonia de asas de ébano e risadas que me enchem de pavor. Lampejos
perturbadores de bicos longos e afiados pingando algo. Sangue? Então, uma
voz que sobe das partes sombrias da minha mente, velha e trêmula, mas cheia
de malícia.
Depois disso, você tem um tempo emprestado.
A quem essa voz pertencia? Não me lembro, e algo me diz que preciso,
que a mensagem que ela me deu - a que recitava enquanto lutava para sair do
chão - é importante. E o que quer que fosse, me assustou muito.
A voz volta novamente, desta vez mais fraca. Desvanecendo, morrendo.
Eu vim para fazer uma oferta.
Ela se dissolveu em cinzas nos meus braços.
Afasto a memória com um empurrão assustado que assusta o corvo. Ele
decola com uma enxurrada de plumagem, chegando muito perto quando
passa. Dou um passo para trás tão rapidamente que um dos galhos
pontiagudos da árvore corta minha palma. Um assobio de dor escapa dos meus
lábios enquanto eu encaro o sangue jorrando que começa a serpentear em meus
dedos.
Antes que eu possa me parar - antes que eu perceba o que estou fazendo
- o poder surge nas minhas veias. Ele corre pelo meu pulso para onde o sangue
se acumula na palma da minha mão. A energia é insistente, exigente. Paira no
ar como se estivesse pedindo um comando, qualquer coisa que eu desejasse.
Eu posso torná-lo real.
Eu não quero nada. Apenas algo familiar. Uma memória.
Observo em choque como o galho que me corta é deformado em metal
tão afiado quanto a ponta pontiaguda de uma adaga. Isso é perturbador.
Lembro-me da forma dele, no fundo do espaço em branco de minhas
memórias. Enquanto estou tentando desenhar a imagem, o metal se espalha ao
longo da árvore, seus membros se transformando em mil lâminas torcidas.
Uma visão de pesadelo, desenhada a partir de pensamentos de um lugar que
eu nunca, nunca quero recordar. Onde monstros com dentes serrilhados se
escondiam nas sombras de uma floresta escura.
Volte para o que era. Queime novamente. Por favor.
Galhos chamuscados e pretos substituem o metal - mas meu poder não
para por aí. Ele explode em chamas azuis vivas e surpreendentes que lambem
o ar e consomem as árvores mortas e contorcidas ao meu redor.
Ofegando, fecho os olhos enquanto o medo dá um nó no estômago.
Um estalo ensurdecedor preenche o silêncio. Abro os olhos no momento
em que todas as árvores caem no chão, enviando cinzas para o céu que
extinguem uma a uma como mil estrelas moribundas.
Agora o que resta é um caminho perfeitamente cortado através dos restos
dos galhos retorcidos.
Puxe-o. Puxe-o agora. Meu poder se instala de volta no meu peito, um peso
sólido e doloroso que me deixa dobrada com um suspiro. Como se estivesse
esticando os ossos do meu corpo, torcendo-se em um espaço que não se encaixa
- que não foi feito para isso.
Como se nunca tivesse me pertencido.
Eu ouço aquela voz novamente, aquela que soa como uma velha em seus
últimos momentos preciosos antes da morte; preenchido com uma triste e
cansada consciência da mortalidade. Você é meu único sangue.
Lembre-se, eu digo a mim mesma. Eu procuro desesperadamente minha
mente, mas as poucas lembranças são muito tênues, delicadas.
—Eu não posso. — Eu mal posso dizer as palavras. Não posso, não posso,
não posso.
Tente mais.
Começo a percorrer o caminho das árvores queimadas, rasgando cordas
após cordas de lembranças fugazes. Elas desaparecem como se fossem grãos
de areia caindo pelas pontas dos meus dedos. Foco. Eu tento redirecionar meus
pensamentos para algo simples. Como eu vim estar aqui. Onde estou.
O meu nome.
O meu nome. Não sei meu nome.
Uma onda quente de pânico me bate forte. Isso não é possível. Quem
esquece seu próprio nome?
Parece que deveria vir facilmente. Está bem ali, ao meu alcance: as letras,
o som disso, a maneira como meus lábios formam as sílabas. Mas quando eu
apelo pela memória, ela não vem.
O medo me faz andar mais rápido. Meus pés descalços andam pelo chão
coberto de cinzas a uma velocidade que faz minhas pernas queimarem com o
esforço, mas estou chateada demais para me importar. À frente, no outro
extremo da floresta, uma lasca de luz solar espreita através das nuvens e reflete
através da superfície de um lago.
Faço uma pausa quando uma imagem daquele lago flutua em minha
mente, veloz como asas de pássaros. Eu estava voando - não, andando a cavalo
sobre a paisagem tão rapidamente que parecia que estava voando. Eu estava
correndo atrás de um homem de cabelos escuros e uma mulher que também
estavam a cavalo. Estávamos em uma batalha, defendendo as pessoas com
quem eu me importava. Mas onde eles estão? Quem eram eles?
Talvez meu reflexo me ajude a lembrar.
Começo a correr, rasgando a linha de árvores mortas, ignorando a dor
aguda quando meus pés são cortados por galhos. Atravessei a floresta e corri
pela praia rochosa, rumo aos restos de uma doca. A madeira parece resistente
o suficiente para continuar.
Meu nome está nos meus lábios; Estou tentando formar os sons. É algo
que dura várias sílabas - mas há outra, mais curta. Uma nota simples e concisa,
direta.
Isso vem com a memória do homem que entrou em batalha comigo.
Deus, meu peito dói ao pensar nele. Ele sussurrou esse nome abreviado como
se amasse o som dele. Como se ele estivesse me contando um segredo. Como
se isso significasse eu te amo e te quero. Como se fosse uma promessa em seus
lábios, uma declaração.
Meus pés batem no cais. Toda a estrutura geme sob o meu peso. Dou os
últimos passos timidamente, para que a madeira não desmorone. Então me
deito de bruços, espio por cima da borda e olho para a água parada.
Esses não são os meus olhos.
É a primeira coisa que noto. Eles deveriam ser diferentes - castanho, eu
acho. Uma mistura de marrom e profundo, verde profundo. Agora eles são o
âmbar claro do mel cru. A cor é rica, vibrante e perturbadora.
Esses não são os meus olhos. Eles não podem ser.
Estudo meus recursos para qualquer outra coisa que se destaque. Meu
rosto olha para mim e parece familiar. Sob a fina camada de terra e fuligem,
sardas de gengibre estão espalhadas pela ponta do meu nariz, pelas maçãs do
rosto e pelos ombros, onde o vestido os deixou nus. Meu cabelo encaracolado,
cor de cobre, mergulha mais perto da água, um único cacho que mal toca a
superfície. Eu conheço meu rosto, assim como eu saberia meu nome se o
ouvisse.
O resto de mim é comum, normal. Características humanas em um rosto
humano. Minha atenção volta aos meus olhos. Não é meu. Não humano. Um
calafrio passa por mim quando vejo um brilho sob as íris, como uma sombra
atravessando a água.
Estendo a mão para tocar meu reflexo. No momento em que faço contato
com a água, ela puxa a força dentro de mim. Deus, isso dói. A dor só diminui
quando a liberto novamente da prisão no meu peito.
Forma gelo nas pontas dos meus dedos - mas não para por aí. Ele se
espalha rapidamente pela superfície da água, espalhando-se em gavinhas de
gelo. A superfície elegante e lisa é tão clara quanto um espelho. É tão bonita
que não posso deixar de admirá-la.
Até eu perceber que o gelo não está parando. Tento recuar, mas é tarde
demais. Não posso. Meus poderes não serão enjaulados agora, eles não serão
contidos ou retardados. O gelo continua se espalhando pelo lago, atingindo as
rochas ao longo da margem oposta.
Desacelere. Desacelere -
Trovões batem ao longe e eu paro. No alto, o raio de luz do sol que
iluminava as águas prateadas do lago desaparece por trás de nuvens negras de
tempestade que não existiam há um momento atrás. Um vento gelado
repentino corta o tecido delicado do meu vestido.
—Pare com isso. — Digo para meu poder em um sussurro engasgado,
lutando para puxá-lo de volta para aquele espaço pequeno demais no meu
peito. —Pare, pare, pare.
Meu poder volta tão rápido e dolorosamente que eu clamo. Eu me
levanto, acelerando o pulso. O lago e a praia estão cobertos por uma espessa
camada de gelo.
O que eu acabei de fazer? O poder é como meus olhos - não parece certo.
Não é meu. Como pode ser? Eu não posso controlar isso.
Aceite. Você deve aceitar agora.
Uma mão esquelética envolvendo a minha em um aperto duro e
machucado. Um corpo murcho me abraçando, e uma repentina dor agonizante
e abrasadora.
Lembro-me de como joguei a cabeça para trás e gritei, gritei e gritei.
Cambaleando com a memória, corro para longe daquele maldito cais
antes que eu possa fazer algo pior do que congelar a água e provocar uma
tempestade.
O que diabos foi isso? O que eu sou?
Meus pensamentos sussurram uma palavra. Uma sugestão horripilante
que me deixa ainda imóvel com consternação. Fada.
Não, eu não sou fada. Olho para os meus pés, inchado de ter corrido pela
floresta. Fadas não sangram facilmente. A realização é um pequeno conforto.
A memória vem rapidamente: eu enrolando as unhas nas palmas das mãos
para lembrar como era a dor.
Dor que disse que eu ainda sou humana. Eu ainda sou eu. Sangrar é o
que os mortais fazem.
Eu ainda sou mortal.
A batida aguda de cascos de cavalo me tira dos meus pensamentos. O
ritmo é um staccato fraco e constante contra a terra. Não é apenas o som - eu
posso sentir. Nas rochas, da mesma forma que meu poder se conectava à água.
Está vindo da floresta viva do outro lado do lago.
Três cavalos. Cada um com um cavaleiro e...
Poder. Tem um peso, como o ar em dias úmidos. Um peso acompanhado
por um aroma selvagem e terroso que é vagamente floral. Isso chama algo
dentro de mim que sabe - com certeza - que esses cavaleiros são meus inimigos.
Seu poder se aproxima, deslizando pela terra em gavinhas tão escuras quanto
sombras projetadas por árvores.
Eles estão procurando por alguém.
Olho de relance para minhas mãos, ainda fria da água. Eles devem estar
procurando a fonte de energia. Por quem queimou a floresta no chão. Por quem
congelou a superfície do lago.
Eu. Eles estão me procurando.
Eu corro. Meus pés descalços batem nas rochas lisas da praia e sobem a
margem até chegar à sujeira macia e carbonizada da floresta morta. O poder
sai de mim em uma explosão através dos galhos, dobrando-os em um caminho
arqueado para me deixar passar. Eu corro em direção às árvores altas mais
acima na praia, onde a floresta foi deixada intocada por minhas habilidades
destrutivas.
Os cavaleiros estão se aproximando. Como se sentissem que eu estava
por perto, o ritmo dos cascos dos cavalos cresce mais rápido, mais alto.
Combina com a batida do meu coração, o rugido da minha respiração.
A floresta viva está cheia de pinheiros escoceses altos, o tipo perfeito de
lugar para se esconder - ou atacar. As árvores cresceram tão densamente que
pouco é visível além da primeira linha do bosque. O dossel de folhas
exuberantes e vibrantes absorve avidamente a luz do sol antes que ela possa
tocar o chão, deixando os troncos envoltos em sombras impenetráveis. Os
galhos rangem e gemem, o ar fica mais frio quando me aproximo.
Eu corro para a cobertura da escuridão, uma emoção inexplicável
passando por mim. Isso é reconfortante - a familiaridade disso, a maneira como
montar uma emboscada é uma segunda natureza. Eu já fiz isso antes. Muitas,
muitas vezes.
Ao me aproximar da linha das árvores, os gravetos e pedras no solo aqui
são mais afiados contra meus pés descalços. Acelero e pulo os últimos metros
no meio do mato, como se estivesse mergulhando em uma corrente fria. Sem
luz para chegar ao chão, até o ar é frio e áspero contra a minha pele.
Encontro um espaço escuro entre os pinheiros e espero as fadas
chegarem.
Os cavalos estão logo atrás de mim na entrada da floresta. Um dos
cavaleiros fada libera seu poder em um golpe suave e perscrutador, enquanto
outros desmontam e se dirigem para as árvores. Uma mecha dele escova os
cabelos ao longo do meu pescoço, seguido por uma voz no fundo da minha
mente dizendo: Encontrei você.
Espero que ele ouça meu desafio silencioso: venha me pegar.
Eu me movo contra uma árvore, pressionando minhas costas firmemente
no tronco e diminuindo o fôlego. Meu poder recua em minhas veias e eu o
pressiono ainda mais, ignorando o quanto dói. Pulsa no meu peito, instável; o
espaço onde está sendo mantido é muito pequeno, muito confinado. Ele deseja
ser libertado.
Ainda não. Em breve.
Neste denso bosque com meu poder contido, eles não podem ver ou
sentir onde estou. Eu sou invisível. Eu sorrio com a emoção crescendo no meu
peito. Quase. Eles estão tão perto agora; Eu posso senti-los.
Eu espio ao redor do tronco para ver os cavaleiros. A pele deles brilha
mesmo no bosque sombrio. Embora seus rostos não ativem nenhuma
lembrança, meu poder sente o deles e o identifica facilmente. Daoine sìth, as
fadas mais poderosas dos tribunais Seelie e Unseelie, capazes de controlar os
elementos. Eles se especializam em entrar na mente dos humanos e são capazes
de manipulá-los com um único pensamento.
Estes são Unseelie. Eu posso dizer. Mesmo enquanto me procuram, sua
fome de energia humana é insaciável, um rugido exigente no fundo de suas
mentes. Meu poder pode sentir isso.
—Aqui. — Diz um deles. Do meu esconderijo, posso vislumbrar o
vermelho sangue de seus cabelos, a inclinação de sua mandíbula forte. —A
trilha termina aqui.
—É a rainha? — Diz outro.
—Não parece. — Diz o primeiro em voz baixa. —Mas ela pode ter
enviado alguém para matar por ela.
A rainha. Uma lembrança se agita dentro de mim, mas se foi no momento
em que as fadas se aproximam da minha árvore. Elas se movem pela floresta
como fantasmas, cada passo tão controlado que nem um único som as
denuncia.
Mas elas não sabem que estou a poucos metros delas. Eu posso dizer pela
maneira cautelosa que elas se mantêm, olhos procurando a distância. Elas não
me sentem pressionada contra a árvore como se eu fosse parte dela.
Olho ao meu redor em busca de uma arma, parando quando percebo a
folhagem aos meus pés. Penso no que aconteceu no lago, na maneira como
meu sangue se misturou com o poder de transformar madeira em metal. Eu
posso fazer minha própria lâmina.
Um sorriso curva meus lábios quando eu arranco um galho do chão para
abrir a pele do meu braço. Eu vacilo com o corte um pouco. Meu poder flui
pelo meu pulso em um pulso sutil que os soldados fada não notam. A
antecipação da batalha me mantém focada, atenta. Destemida. Não há tempo
para medo.
Uma fina linha de metal derretido se forma ao redor do galho, entortando
e achatando para formar uma borda fina. Em seguida, aumenta em um ponto
afiado o suficiente para romper facilmente através da pele. A lâmina é linda,
perfeitamente adequada para mim, com seu próprio brilho interno e ardente.
Um objeto de poder. Feito do meu sangue. Criado para matar as fadas.
Eu me movo com a espada em minhas mãos, deslizando para a frente em
passos ágeis e silenciosos pelo chão. Não preciso me lembrar do meu passado
para saber que já fiz isso muitas vezes antes. Meu corpo lembra para mim. A
maneira como meus joelhos dobram para manter meus movimentos rápidos.
A maneira como meus dedos tocam o solo e suportam meu peso. O jeito que
eu prendo a respiração para expirar tão silenciosamente quanto o ar ao nosso
redor.
Assim, a fada na parte de trás do trio nem percebe que estou lá - até o
momento em que coloco um braço em volta dele, pressiono a palma da mão
nos lábios e deslizo minha lâmina pela garganta.
Ele morre antes que ele possa emitir um som.
Sua energia me enche. Meu sangue canta em resposta, um hino da morte
que só eu posso ouvir. As outras duas fadas fazem uma pausa, como se
sentissem alguma coisa, mas não se viram. Elas estão confiantes de que ele está
atrás delas, pronto para defender suas costas. Pronto para protegê-las.
Esse é o erro delas.
A da frente faz dois movimentos para avançar. Perfeito.
Eu gentilmente coloco o corpo da fada no chão e dou voltas em torno de
uma árvore, pressionando minhas costas enquanto me aproximo da segunda.
Eu estava errada em ter caçado assim antes. É eficiente, brutal e familiar
- mas diferente. Meu poder zumbe. Abafa meus passos. Faz minhas
articulações se moverem tão fluidamente quanto a água através das rochas. Há
uma selvageria que tenho certeza de que nunca senti antes, como se soubesse
de toda a floresta e todos os movimentos que meu inimigo está prestes a tomar.
Deslizo atrás dele como uma sombra. Uma palma nos lábios, exatamente
como a outra. Um sussurro alegre e selvagem em seu ouvido que assusta uma
parte de mim da vida que esqueci: peguei você.
Meu braço serpenteia ao redor da fada macho como se quisesse abraçá-
lo, e então mergulho a ponta afiada da lâmina através de suas costelas e em
seu coração. Seu grito abafado pressiona a minha palma. Eu levanto minha
cabeça para ver se o último notou.
Nossos olhos travam.
Ele assiste horrorizado enquanto eu puxo a espada de seu companheiro
e deixo seu corpo cair no chão. Seu sangue escorre da minha lâmina, uma
queda lenta contra a sujeira.
Quando a energia da segunda fada morta me enche, eu sorrio. Naquele
momento, eu sei que pareço com a morte.
Sua expressão muda para uma de reconhecimento. Ele gerencia uma
única palavra: —Você.
Minutos atrás, isso teria me feito parar. Teria sido suficiente para romper
minha névoa de confusão. Mas estou longe demais agora. Meu poder está
finalmente calmo, saciado, cantando as palavras que terminam, terminam em
um rugido de sangue batendo nos meus ouvidos. Afinal, ele não está correndo.
Esse é o seu segundo erro.
Meus dedos agarram o punho da lâmina. Eu aperto meu pulso e a lâmina
voa pelo ar. Atinge a fada no pescoço. Suas pernas se enrolam embaixo dele,
como faria um veado depois de ser baleado em uma caçada.
Nós somos todos o veado.
Quem me disse isso? Estremeço com a repentina pontada de
vulnerabilidade que essas palavras trazem. Pare com isso. Nada importa além
da sensação de seu poder através das minhas veias. Meu agora. Ele precisava
morrer. Ele teria me matado.
Enrolando meu lábio, eu passo e arranco a lâmina dele.
Minha cabeça surge quando sinto outra fonte de poder. Este é menos
substancial; não tem tanto peso ou a mesma fome profunda e insaciável. É mais
como raios de sol que rompem a névoa do meu próprio poder e chamam algo
vulnerável dentro de mim.
Algo humano. A ideia me faz querer chorar de alegria.
Eu me viro, a lâmina pendendo frouxamente ao meu alcance. Aí está ele:
um pequeno brilho no meio das árvores. Uma auréola de luz que caberia
perfeitamente na palma da minha mão.
Ele sussurra um nome, não mais que um sopro de som. Como se estivesse
doendo.
—Aileana.
Aileana. Esse nome é um fardo, algo doloroso, de arestas afiadas e
espinhoso. Sete letras e quatro sílabas que arranham algo dentro de mim,
descascando-o como uma camada de pele para ver o sangue embaixo.
Aileana.
Minha memória dessa fada é tão forte que eu praticamente posso sentir
suas pequenas asas de libélula farfalhando sob as pontas dos meus dedos,
macias e lisas como seda. Sua risada musical em meus ouvidos, clara como um
sino.
Aileana.
Não. Não, eu não quero isso. Seja o que for que vem com esse nome - seja
qual for esse fardo esmagador - é muito, muito opressivo. É um peso
paralisante, mais do que qualquer pessoa deveria suportar.
—Aileana. — Diz a fada novamente, encantada. —Senti uma explosão de
poder e parecia você e...— Ele faz uma pausa e inclina a cabeça levemente. —
Seus olhos parecem diferentes. Como você pode...
Então ele está voando em minha direção, seus movimentos tão rápidos
que sou sacudida de minhas memórias. Volto ao conforto do instinto, da
prontidão para a batalha. É a única coisa que eu sei. É a única coisa que parece
certa desde que arranquei meu caminho para fora da sujeira e abri meus olhos
para me encontrar sozinha em uma floresta queimada.
Eu não te conheço. Eu não conheço esse nome. Você não estava lá. Ninguém
estava.
—Pare! — Minha lâmina corta o ar entre nós, a ponta parando um
pontinho longe do rosto pequenino do pixie. —Pare. — Eu digo novamente,
abaixe esse tempo. —Não se aproxime de mim.
Ele levanta as mãos, mas seus olhos se estreitam. —Abaixe isso. O que há
de errado com você?
Nada. Tudo. Não me lembro.
Ele tenta voar em volta da espada, mas eu a coloco novamente entre nós.
—Eu disse para não chegar perto de mim. — Meu corpo está em uma posição
de luta. —Não me faça machucá-lo.
Por alguma razão incompreensível, me sinto culpada por dizer isso.
—Você ficou maluca? — O pixie lança um olhar para minha espada e ele
parece irritado. —O que você vai fazer, me apunhalar? — Quando eu não
respondo, ele solta um bufo. —Pelo amor de Deus. Eu assisti você morrer. Pelo
menos, deixe-me sentar em seu ombro e trançar seu cabelo antes de me
ameaçar.
Sentar no meu ombro? Trançar meu cabelo? O que?
Então as palavras anteriores dele afundam: eu assisti você morrer.
Uma súbita dor fantasma dispara no meu peito - logo acima do meu
coração. Parece real o suficiente que eu pressiono uma mão lá, quase esperando
encontrar uma lâmina saindo das minhas costelas. Em vez disso, há apenas a
pele enrugada de uma cicatriz fresca, longa e fina.
Olho para baixo e arrasto um dedo pela marca, avaliando a forma, a
profundidade da lesão que teria causado uma coisa dessas. Três marcas
menores formam um semicírculo em torno dela - o desenho da parte inferior
do punho de uma espada, com força suficiente para deixar uma impressão para
trás.
Com força suficiente para rasgar a pele, ossos e coração. Um golpe
mortal.
—Eu morri? — Eu mal posso conter meu horror. É por isso que eu estava
no chão? Então o que me trouxe de volta?
Um sussurro no fundo da minha mente mais uma vez, suave como um
farfalhar de penas. Aceite. Você deve aceitar agora.
O bufo impaciente do pixie interrompe meus pensamentos. —Sim. Agora
podemos chegar à parte em que você me dá um abraço maldito?
Eu quase sorrio, mas então outra voz passa pela minha mente, rá pida
como um batimento cardíaco. As palavras de uma jovem cheia de tristeza: não
posso curar isso. Eu pisco para trás a picada de lágrimas por isso. —Há quanto
tempo estou morta?
As mãos do pixie estão ao lado dele, como se ele estivesse resistindo à
vontade de me tocar. —Dois meses, dezenove dias. Eu continuei contando.
Dois meses, dezenove dias. E não consigo me lembrar de nada disso ou
da minha vida antes disso.
Eu procuro minha mente novamente, e tudo o que consigo entender são
impressões, restos de profunda alegria e tristeza. De perseguir monstros
durante a noite. De toques íntimos e promessas sussurradas. Nada que me diga
quem eu sou ou como cheguei a estar em uma floresta, cercada por quilômetros
de árvores mortas, sem memória.
Abaixo minha lâmina e deslizo meus dedos pelos meus braços nus,
cobertos de sangue e sujeira. Como se eu encontrasse as respostas lá. Como se
tudo de repente se tornasse tão claro.
Nada.
Sob a sujeira, a pele é lisa e sem manchas. E ainda... isso parece errado.
Só me lembro de fragmentos, mas meus dedos lembram a sensação de pele
irregular, marcada por marcas de meia-lua. A forma dos dentes. Dezenas e
dezenas de mordidas que falam de perda e solidão.
—Não me lembro. — Eu sussurro.
—Você precisará ser mais específica. — Diz o pixie. Ele coloca as mãos
nos quadris. —Você se lembra de morrer?
—Não.
—Como você conseguiu aqueles olhos esquisitos?
—Não.
—Como você ganhou o poder de explodir uma floresta inteira?
Soltei uma pequena risada apesar de mim. —Ainda não. Escute...
—Você se lembra de mim, certo? — O pixie explode. Quando balanço a
cabeça, o rosto dele cai. —Mas... Eu sou Derrick. Eu morava no seu armário.
Você é minha companheira. — Ele balança as mãos freneticamente. —Eu fiz
seus vestidos!
Franzo a testa para o meu vestido. —Você fez isso?
Agora Derrick parece insultado. —Não, eu não fiz isso. Isso é horrível.
Fiz coisas para você com fitas e babados e parecia que você pertencia ao topo
de um bolo chique.
Quando eu apenas pisco para ele, ele leva meu momento de incerteza
para voar até mim. Então, antes que eu possa protestar, Derrick está preso no
meu cabelo.
Eu quase o empurro para longe. Abro a boca para dizer a ele: Pare de me
tocar, porque estou começando a sentir as coisas. Coisas demais. Matar é fácil,
é instintivo. Não requer pensamentos, lembranças ou arrependimento pela
minha mente vazia. Não vem com um nome que se parece mais com um fardo.
Então as mãos do pixie deslizam pelos fios de cabelo logo atrás da minha
orelha, sua bochecha pressiona brevemente a minha, e eu não posso dizer as
palavras. Cada toque é suficiente para romper meus impulsos violentos de
falar com as partes de mim que esqueci. Algo em mim que sabe que ele está
fazendo isso para garantir que eu esteja realmente aqui. Viva.
Há quanto tempo estou morta?
Dois meses, dezenove dias. Eu continuei contando.
Uma inalação, outra, enquanto ele respira meu perfume. Derrick franze
a testa. —Você cheira diferente.
Suas asas batendo contra a minha pele são tão familiares que fechei os
olhos. Meu corpo relaxa. Todos os meus instintos de luta e poder são
acalmados pelo conforto imediato que seu perfume e toque traz, uma sensação
de lar. Eu não posso ajudar, mas estendo a mão para acariciar suas asas. Estou
em casa. Estou em casa. Ele é minha casa.
—O que eu cheiro?
—Você, mas não. — Derrick fareja novamente e faz uma careta. — Eu
não gosto disso. Isso me lembra muito... — Ele pressiona os lábios, a auréola
ao redor dele piscando em vermelho.
—Agora, agora — Eu digo gentilmente. Ele parece chateado, e algo me
diz que um pixie chateado nunca é uma coisa boa. Mas eu tenho que saber. —
Você não pode iniciar uma frase como essa e não terminá-la.
—Tudo bem. — Ele morde. —Você cheira a ele.
De repente, acho doloroso engolir e não sei por quê. —Ele?
As asas de Derrick estão abanando suavemente, sua mandíbula apertada.
—Você perdeu muito. Vamos guardar essa conversa para mais tarde.
Acabei de receber você de volta. — Ele me olha, parando com a mistura de
fuligem e sujeira no meu rosto. De repente, sua luz diminui e ele parece
abatido. —Oh Deus. Por favor, não me diga que você está vagando por todo
esse tempo...
—Não — Digo rapidamente. Então, mais silenciosamente: —Saí do chão
e não conseguia me lembrar de como cheguei lá. — E não havia ninguém lá
para me lembrar. —Você não me deixou para trás?
Os olhos chocados de Derrick encontram os meus. —Claro que não...—
Então ele percebe o que eu acabei de dizer. —Você saiu da... ? Puta merda. Puta
merda. Não é à toa que você apontou essa espada para mim. Ninguém mais
estava aqui, exceto aqueles malditos Unseelie.
Agora ele está cutucando minha têmpora com os dedos pequeninos,
procurando ferimentos. —Você está machucada? Você bateu a cabeça quando
voltou? — Derrick pergunta, toda preocupação agora. —Vocês humanos têm
cabeças muito frágeis. Seu cérebro não está prestes a vazar dos seus ouvidos,
está?
Estremeço quando ele toca um corte raso ao longo da minha linha do
cabelo, onde um galho deve ter me prendido enquanto eu estava correndo. —
Hum. Acho que não.
—Bom. Você pode contar até cinco? — Ele acena com a mão na frente do
meu rosto. —Quantos dedos eu estou segurando?
Eu me afasto. —Pare com isso. Não sou idiota e não tenho deficiência
visual.
—Bem, como eu devo saber? — Ele pergunta, clicando sua língua. Após
mais um minuto de inspeção, ele diz: —A boa notícia é que você não tem
ferimentos graves e sua cabeça não está quebrada. Parabéns.
—E as más notícias?
—Você saiu do chão, não tem memória e fica parada olhando para mim
como uma ovelha confusa. Além disso, você cheira. Só um pouco.
Eu olho para ele. —Alguma outra observação útil? Teorias sobre por que
não consigo me lembrar de nada?
Derrick se afasta, batendo um dedo nos lábios. —Eu nunca ouvi falar de
alguém voltando depois de morto, especialmente alguém que não tinha um
corpo para quem retornar. Isso, e seu frágil cérebro humano, provavelmente é
o culpado pela perda de memória. — Ele estala os dedos. —Conheço alguém
que pode ajudá-la.
—Quem?
—Aithinne, é claro. — Quando eu apenas olho para ele, ele suspira. —
Ela é a rainha Seelie. Ela fala um pouco como se estivesse escandalosamente
bêbada a maior parte do tempo, mas é inofensiva a menos que queira matar
você. Mas as primeiras coisas primeiro. — Ele faz um gesto para os corpos a
nossos pés, como se eu soubesse o que fazer com eles. —Precisamos nos
desfazer delas. Rapidamente. Passamos muito tempo aqui como está.
Derrick mergulha no chão e começa a cavar com uma combinação de
mãos e pequenas explosões de poder. Ele move a sujeira pesada e as rochas
com velocidade e eficiência surpreendentes para uma criatura tão pequena,
empilhando-as em uma pilha no chão da floresta. Em pouco tempo, o buraco
cresce alguns metros de profundidade e largura e ele apenas continua.
Quando ele me pega olhando, ele diz impaciente: —Bem? Não fique aí
parada. Você as matou, ajude a enterrá-las.
Balanço a cabeça e agarro uma das fadas mortas, grunhindo enquanto a
puxo pelo chão. Com toda essa armadura, a fada é mais pesada do que parece.
—Existe uma razão para escondê-las? Por que não podemos simplesmente
deixá-las para trás?
—Porque, minha amiga esquecida, ao contrário do resto dos sìthichean,
daoine sith não decai. Estamos no meio de um acordo tenso entre a rainha Seelie
e o rei Unseelie, e uma vez que ele descobre os corpos de seus soldados mortos,
as coisas tendem a se tornar terríveis muito, muito rapidamente. — Derrick diz
isso uniformemente, mas há uma nota de preocupação sob suas palavras.
Urgência. —O rei vai assumir que Aithinne declarou guerra. Enterrar seus
olheiros nos dará tempo suficiente para avisá-la.
Acabei de voltar dos mortos e já comecei uma guerra entre dois
monarcas. Brilhante. —Eu não quis...
—Não há nada para se desculpar. — Diz ele em breve. —Um deles tem
que matar o outro, e eles o estão atrasando na esperança de que outra solução
se apresente. Não tem. Isso era inevitável.
Não é de admirar que as outras fadas estivessem falando sobre territórios
e a rainha enviando alguém para matar por ela; nós devemos estar na terra do
rei. Isso pica uma lembrança no fundo da minha mente, outra importante que
não consigo me lembrar.
Tem a ver com os monarcas. O rei. Posso não me lembrar do nome dele,
mas as emoções que sinto quando penso nele são fortes. Eu me importei com
ele. Profundamente o suficiente para que as palavras de Derrick me encham
de pavor.
Pergunte outra coisa. —Eles têm?
—Eles não têm escolha. — Diz ele.
—Então eu preciso falar com o rei. — Eu preciso que ele saiba que estou
viva. —Vou dizer a ele que fui eu. Não precisa ser inevitável. Eu sei que não
precisa. Tem que haver algo mais-
—Não. — Diz Derrick.
—Derrick-
—Não fez nenhuma diferença. — Diz ele bruscamente. —Estamos
ficando sem tempo. — O chão ronca e seu poder joga tanta sujeira que bate em
uma árvore próxima. —Temos que aceitar que um deles vai morrer e ela é a
monarca melhor e mais gentil. Ela deveria ser a única a viver.
No meio de arrastar o terceiro corpo em direção à cova, congelo com suas
palavras. Ela deveria ser a única a viver. Estamos ficando sem tempo.
Ele vê minha expressão e retarda sua escavação. —Inferno, — Ele
murmura. —Eu sinto muito. Eu não deveria ter dito isso.
Eu não respondo. Superfícies de memórias borradas. Elas são um assalto
de imagens e palavras, nenhuma delas clara, exceto por uma urgência que me
deixa tremendo. Uma sensação desesperada de que não é tarde demais, de que
podemos salvar os dois. Mas quando tento ver como, a dor bate tanto nas
minhas têmporas que as estrelas brilham na minha visão. Eu mordo minha
língua para não gritar.
—Estão ficando sem tempo? — Eu pergunto, a voz rouca. Balanço minha
cabeça em frustração. Qual o sentido de ser trazida de volta se não consigo me
lembrar de nada?
—Você vai ver. A terra está desmoronando logo após a fronteira da
floresta. — Derrick volta a cavar rapidamente, só que desta vez seus
movimentos são mais agitados. A cova tem pelo menos um metro e meio de
profundidade agora, mas as fadas seriam capazes de sentir o cheiro da morte
deles depois disso. Ele continua indo. —Nosso reino está se desfazendo porque
eles se recusam a se matar. Se um deles não morrer, todos nós iremos.
Nosso reino. Lá está novamente; a voz em minhas memórias está
sussurrando algo sobre maldições e poder. Quando eu empurro para mais,
minha cabeça começa a bater novamente. Estremeço e pressiono as pontas dos
dedos nas têmporas.
Quando olho para Derrick, ele desvia o olhar. Mas não sou nada senão
persistente. Quero saber quem é o rei Unseelie. Por que me sinto tão fortemente
ligada a ele. —Se você acha que ele deveria morrer — Digo baixinho. —Pelo
menos não deveria falar com ele antes do fim?
A boca de Derrick pressiona uma linha dura. —Você não estava aqui
para ver as coisas que ele fez. — Diz ele calmamente. —Ele está tão longe, ele
pode não dar a mínima para você.
Eu empalideci com isso, piscando as lágrimas que repentinamente picam
meus olhos. Eu não tenho uma resposta; não há nada nas minhas memórias
para insistir que Derrick está errado. Apenas o que eu sinto. E também não sei
se posso confiar nisso.
Então eu rolo os cadáveres para a cova e ajudo Derrick a cobri-los com
terra.
Derrick me leva pela floresta a uma velocidade exigente. Se eu
desacelerar uma corrida, ele me empurra para ir mais rápido. —Quanto mais
longe chegarmos desses corpos antes do anoitecer, melhor. — Diz ele. —Eu
tenho pessoas para avisar.
Quase tropeço na raiz de uma árvore. Estou respirando com tanta
dificuldade que não posso dizer nada a princípio. Finalmente, eu consigo: —
Voar em frente?
A boca de Derrick se alinha em uma linha. —Não.
—Mas-
—Eu não vou te deixar. — Suas asas agitam em agitação. —Não quando
estou meio convencido de que você é o produto de algum sonho insano ou da
minha imaginação hiperativa. Acebei de sentar no seu ombro outra vez. Agora,
mexa sua bunda.
Eu pego meu ritmo, correndo até meus músculos queimarem. Nenhum
de nós fala, nem mesmo horas depois, quando encontramos uma cabana
abandonada no meio da floresta. Derrick decide que estamos longe o suficiente
da floresta morta para descansar a noite.
E não um momento muito cedo, porque estou prestes a cair.
O telhado de palha é resistente o suficiente para impedir a maior parte
da chuva. O ar lá dentro está mofado. Um único buraco no canto da pedra
deixa chover o suficiente para que a água e o musgo se espalhem pelas paredes.
Meus pés doem. Cuidadosamente, abaixo meu corpo dolorido no chão
frio de pedra e sento-me enquanto Derrick vasculha um baú do outro lado do
quarto. Os cobertores que encontra lá dentro estão comidos e sujos de traça, a
lã velha cheia de buracos. Com um suspiro satisfeito, ele puxa uma agulha e
linha do bolso do casaco e começa a costurar o tecido.
—Derrick. — Testo o peso do nome dele na minha língua, na esperança
de usá-lo para conjurar uma memória. A sensação de retorno em casa, o
conforto, mas nenhuma lembrança. Nenhuma imagem da minha vida anterior.
—Aileana. — Eu tento meu próprio nome, alcançando as partes escuras
da minha mente. Eu tenho que saber por que voltei. Como voltei. Eu sussurro
meu nome repetidamente até que ele respire em meus lábios. Até que não seja
mais que um som. Esse sentimento de imenso fardo aumenta novamente e eu
tento resistir. Eu deixei a tempestade crescer e vi para onde me levava, mas
além dela ainda não havia nada.
Oh, chega disso. Desisto.
—Eu tinha outro nome — Digo irritada com a minha incapacidade de
lembrar até as coisas mais básicas. —Eu não tinha? Era mais curto. Uma sílaba.
Derrick fica quieto e seus dedos estão subitamente imóveis. Ele está
evitando o meu olhar. —Você tinha. — Ele enfia a agulha no material e morde
o lábio. Ele está pensando muito, isso é óbvio.
Eu estreito meus olhos. —Talvez eu não tenha minhas lembranças suas,
mas conheço esse olhar. Você não quer ser honesto comigo.
—Bem. — Ele encolhe os ombros. —Se você quer honestidade, prefiro
Aileana. É distinto, sai da língua de uma maneira agradável...
— Diga-me ou não vou deixar você sentar no meu ombro.
—Kam, — Derrick finalmente diz em um pequeno suspiro. —Ele te
chamava de Kam, abreviação de seu sobrenome, Kameron. Pronto. Você está
feliz agora?
Kam. É esse. Lembro-me do som entre beijos selvagens, como se ele
nunca se cansasse de dizer isso. Kam. Eu amo esse nome. Eu posso senti-lo
sussurrando contra o pulso na minha garganta. Isso significava tudo. Dizia
tudo.
Mas com essas lembranças vem um lembrete da mensagem urgente que
voltei a entregar. Tem a ver com ele. É por isso que estou aqui.
—Derrick. — Eu digo baixinho. Ele olha para mim, cauteloso agora. —
Ele é o rei Unseelie?
Ele fica quieto por mais tempo. —Sim.
—Eu o amo?
—Mais do que nada.
Dói de engolir. —Ele me amava?
A chuva bate no telhado. Uma brisa sacode a porta de madeira. Quando
Derrick fala, sua voz é tão suave, eu me esforço para ouvi-lo. —Ele te amou
tanto que, quando você morreu, ele também poderia ter morrido com você.
Gavin nos encontra do lado de fora da casa. Percebo que ele está
carregando armas, como se estivesse treinando para isso.
Ele olha para a minha espada e seus lábios se abrem. —Agora essa visão
traz boas lembranças. Embora eu admita, sinto falta dos vestidos rasgados. As
calças simplesmente não têm o mesmo toque de loucura imprudente.
Eu reviro meus olhos. —Confie em você para flertar comigo antes de uma
batalha. O que aconteceu com o Gavin Cismado?
—Cismado, Gavin tinha uma cidade para proteger — Diz ele. —Tudo o
que tenho agora é minha própria bunda. Ah, e esse uísque. — Ele abre o casaco
e a garrafa está bem ali no bolso interno. Ele está realmente determinado a
salvar aquele maldito uísque.
—Você é ridículo. — Digo a ele.
Aithinne, no entanto, se ilumina quando o vê. —Graças a Deus — Diz
ela. —Guarde um trago para mim. Eu sempre gosto de um pouco de uísque
depois de matar coisas.
Deus me ajude. Ou me mate agora. Apenas me tire da minha miséria.
Eu ouço o rápido bater de cascos atrás de mim. São Catherine e Daniel,
saindo correndo das árvores com três cavalos fada selados e prontos para
partir. —Fique comigo — Daniel diz para Gavin. —Não faça nada estúpido,
está bem? Não é como da última vez.
—Você me conhece, meu velho — Diz Gavin, subindo em seu cavalo.
Derrick se acomoda no ombro com as asas dobradas. —Maldito estúpido é
apenas o meu plano B.
Daniel olha para mim, seu olho avaliando. —É bom ter você de volta. —
É tudo o que ele diz. Então ele monta seu cavalo e Catherine faz o mesmo.
Todos dizemos adeus antes que os cavalos fada decolem, tão rápido que eles
se apagam. Eu nem os ouço quando eles desaparecem na floresta escura.
Aithinne e eu esperamos e ouvimos.
No espaço de minutos, sinto os soldados se movendo pela floresta. Envio
uma tentativa de golpe de poder. Alguns soldados partem na direção dos
humanos e Derrick foram, mas Kiaran não está com eles. Graças a Deus.
Os soldados devem me sentir, no entanto, porque seu poder empurra
contra o meu, um aviso: estamos vindo para você.
Pelo canto do olho, vejo o sorriso sombrio de Aithinne em resposta.
Estamos prontas.
Os soldados se aproximam, seu poder é quente contra a minha pele, uma
energia combinada que faz com que o tórrido ar, fique pesado.
Ao contrário das fadas que encontrei na floresta, elas não estão tentando
esconder sua presença. Elas estão anunciando isso a cada passo. Elas estão
gritando. É a entrada arrogante das fadas que não têm ideia do que estão
enfrentando. Elas não entendem que estão prestes a ser as primeiras vítimas
da guerra. Elas estão prestes a ser a declaração.
Meu poder se desdobra, uma escuridão no fundo da minha mente apenas
esperando para ser desencadeada. À espera de matar.
Aproximando-se.
Quando as fadas chegam aos arredores do acampamento, meu poder
ruge. Exige. Anda dentro de sua gaiola óssea muito pequena. Quando elas
finalmente atravessam as árvores, eu mal consigo segurar.
Espera... Espera...
Aithinne coloca a mão no meu braço como se ela sentisse minha luta. Seu
poder envolve o meu para mantê-lo no lugar. Há uma firmeza em seu olhar,
uma paciência que eu não esperava antes de uma batalha. Aguarde.
As fadas na floresta nos cercam, seus olhos brilhando como faróis na
escuridão. Meu poder sente vinte batimentos cardíacos. Vinte inspirando e
exalando, respirando como um.
Vinte fadas estúpidas e suicidas que não viverão para ver o amanhã.
Dou um passo à frente, mas o aperto de Aithinne se aperta. —Espere. —
Ela me diz em voz baixa. Depois, mais alto, para que os outros possam ouvir:
—Vocês estão invadindo meu território.
Um Unseelie na frente ri. É um arranhão baixo e áspero no fundo da
garganta. —Nós sabemos.
—Eu percebi. — Aithinne parece calma. Tão calma. Quase como se ela
sentisse pena deles. —Então você deve estar ciente de que Kadamach pretende
que vocês sejam mortas.
Elas permanecem imóveis, impassíveis. Talvez elas não tenham
aprendido a se sentir ainda. Talvez Kiaran tenha ensinado a elas o que
aprendeu na Corte Unseelie: que as emoções são uma fraqueza.
—Você é jovem. — Diz ela com desdém. —Apenas feito.
—O que isso deveria significar? — Uma delas pergunta.
Aithinne encolhe os ombros. —Não é sua culpa que ele te enviou para a
sua morte. Ele pode apenas fazer mais soldados. Você é dispensável.
Olho atentamente para Aithinne. O que você está fazendo?
Sua expressão diz tudo. Ela está dando a elas a oportunidade de mudar
de lado. Para salvar a si mesmas. Elas estão tomando seu lugar em uma guerra
que nunca começaram, uma que começou milhares de anos atrás.
Aithinne é a monarca mais gentil. Ela é a melhor monarca. Ele é apenas o mais
forte. Aquele era para viver.
Nenhuma das fadas responde. A compostura delas nunca vacila; elas
estão prontas para morrer, se necessário. Kiaran deve tê-las treinado bem.
Aparentemente, ele nunca perdeu sua crueldade.
Uma fada na frente desliza sua lâmina para fora da bainha e as outras a
seguem. Elas declararam sua lealdade. A soldada cobra em direção a Aithinne
como uma idiota com um desejo de morte.
Aithinne não hesita. Ela agarra a soldada no pescoço como uma criança
errante e a mantém sem esforço no lugar. Estremeço com o som estrangulado
que a soldada faz.
—Última chance — Ela diz as outras. —Escolham meu lado e vivam, ou
morram aqui. Agora mesmo. Como forragem de canhão do seu rei.
O silêncio delas é a resposta dela. Quando nenhuma delas se aproxima,
Aithinne aperta a mandíbula. —Bem.
Ela estala o pescoço da soldada e enfia a espada no estômago. Então ela
se lança para a outra fada. Aithinne é espetacular na batalha. Ela corta uma,
gira, corta outra.
Eu tomo meu lugar ao lado dela. E é como se eu tivesse chegado em casa.
A morte está no meu sangue. Eu respiro como oxigênio. A escuridão
dentro de mim ruge em resposta, impulsionando cada impulso da minha
espada, forçando minha lâmina através dos tendões e ossos. A energia delas
me enche, uma após a outra. Eu me alimento em toda matança. Cada uma me
faz mais forte, mais poderosa.
A batalha acontece tão rapidamente que é como se o tempo estivesse
suspenso. Derrick queria que eu me tornasse a criatura que eu era na floresta,
mas com minhas lembranças sou algo diferente. Sou eu, apenas mais rápida,
mais eficiente. Eu mato com a velocidade do fogo através de uma floresta.
Nada pode me parar. Elas nem sequer têm a chance de gritar.
A escuridão dentro de mim cresce. Cada impulso da minha espada faz
rugir em resposta, faz gritar. O poder da Cailleach é um grito de guerra no meu
sangue, nos meus ossos. Meu coração está cantando.
Tenho a última fada à minha vista, a lâmina em sua garganta -
—Aileana!
Algo nessa voz me faz parar.
—Aileana — Ela diz novamente, lentamente. Cuidadosamente. Como se
eu fosse um animal em estado selvagem - um animal mortal.
Eu estou respirando com dificuldade quando a escuridão desaparece da
minha visão.
É Aithinne que eu pressionei contra uma árvore. Aithinne que estou
prestes a matar. Aithinne eu tenho no final da minha lâmina com uma corrente
de sangue fresco em seu pescoço - um lembrete de quão perto eu cheguei de
matá-la.
—Está tudo bem — Diz ela quando vê o olhar no meu rosto. —Está tudo
bem. Você esta bem.
Não, não estou. Eu quase matei você e quase matei Derrick antes e não estou
bem. Eu não estou...
Uma dor lancinante explode em minha têmpora. Eu cambaleio de volta.
O oxigênio sai dos meus pulmões e, de repente, não consigo respirar o
suficiente.
—Aileana!
Estou no chão, unhas cravando na terra quando volto para mim mesma.
Leva um momento para minha visão embaçada clarear.
Uma umidade repentina cruza meus lábios. Afasto a língua e sinto o forte
cheiro de sangue acobreado que sai do meu nariz. —Aithinne. — Eu respiro. É
tudo o que consigo gerenciar. O medo acelera meu pulso.
Eu posso trazer você de volta à vida, mas eventualmente meus poderes vão matá-
la.
Começou. Eu posso sentir isso. A maneira como meu corpo está
enfraquecendo. Agora que a escuridão se foi e meu poder está contido, estou
tremendo de tanto uso, cansada. Tão cansada que não consigo me mexer.
O que os humanos fazem melhor? Eles morrem.
Aithinne se agacha ao meu lado e gentilmente levanta meu queixo para
ver melhor. —Você terá que ter mais cuidado ao procurar o livro. Use seus
poderes com moderação ou eles vão acabar com você.
Eu me afasto de seu toque. —Quanto tempo eu tenho?
—Isso depende — Diz ela com cuidado. —Se você continuar usando-os
assim, não demorará muito. Se não, pode ter mais...
—Aithinne. — Respire menina. Só respire. —Quanto tempo?
Ela desvia o olhar. —Alguns dias.
Alguns dias. E então eu estou morta de novo.
Eu ri na cara da Cailleach quando ela me disse que seus poderes
acabariam me matando. Claro que havia um preço a ser trazida de volta.
Sempre há um preço. Não pensei que desta vez as repercussões por não
encontrar o livro não fossem apenas a minha morte: seria todo mundo que eu
amo ter que se entristecer mais uma vez.
Talvez essa seja sua maldição, Aileana Kameron. Quem ama você está condenado
a vê-la morrer repetidas vezes.
Concentre-se em outra coisa. Algo em seu controle.
Olho para a fada que Aithinne acabou de matar. —Você quis dizer o que
disse antes? Que Kiaran as criou apenas para serem mortas aqui?
—Você achou que, só porque ele recebeu o título de rei, isso desfaria dois
mil anos dele caçando sua própria espécie? — Na minha carranca, a expressão
de Aithinne endurece. —Ele as odeia.
Eu fiz você o mesmo que eu. Kiaran me disse isso uma vez, e agora me
pergunto se ele estava errado. Talvez ele não tenha me feito o mesmo. Talvez
eu o tenha feito odiar mais as fadas.
—Ele não precisa ser rei. — Eu digo. Eu odeio o quão infantil isso soa.
Que perigosamente ingênua. Eu sei melhor do que ninguém como é ser forçada
a um papel que eu nunca quis. Ele não escolheu ser rei. Não escolhi ser uma
Falcoeira. Não foi nada além de um acidente de nascimento.
Pela expressão aguçada de Aithinne, aposto que ela também acredita que
sou ingênua. —Quando Sorcha restaurou seus poderes, ela roubou sua
escolha. Ele e eu não podemos ignorar isso, assim como não podemos ignorar
o fato de que um de nós precisa morrer. — Ela se levanta e me oferece sua mão.
—E agora eu preciso que você adie nossa guerra.
Pego a mão dela e a sigo na floresta. Embora o ritmo de Aithinne seja
rápido e determinado, seu pequeno cenho trai sua preocupação. Eu quase digo
a ela que sinto muito. Se eu tivesse minha memória quando a Cailleach me
trouxe de volta, nunca teria matado aquelas outras fadas. Agora eu forcei
Aithinne a entrar em guerra com Kiaran.
Ela é a garota cujo presente é o caos. Onde quer que ela vá, a morte segue-a.
Suponho que não posso evitar, posso? Eu quebrei o mundo e agora
comecei a guerra. É o meu presente. Meu propósito. É para isso que eu fui feita.
—Diga-me o que eu preciso fazer. — Eu digo. Eu ignoro a fraqueza
trêmula do meu corpo e empurro a dor.
—Você terá que chamar a atenção de Kadamach. Ele deveria estar com
um humor de escutar. — Ela faz uma pausa, considerando. —Eu acho.
—Você acha?
Aithinne suspira e desvia o olhar. —Ele deixou outro humano para mim
esta manhã. Então ele foi alimentado recentemente. — Sua voz é baixa, grossa.
—Ele estará mais... no controle.
Outro humano adicionado à cabana. Outra vida se foi. —Por quanto
tempo?
—Ele pode aguentar mais tempo porque te ama, ou não porque você é
humana. Não tenho certeza. — O olhar de Aithinne pega o meu. —Não
importa o quão normal ele possa parecer a princípio, sua fome sempre vencerá.
Sempre. Lembre-se disso.
Eu ignoro o tremor de medo que suas palavras trazem. Eu tenho que me
concentrar na tarefa em questão. —Como chamo a atenção dele?
O sorriso de Aithinne é lento, brilhante; ela está claramente aliviada por
voltar a um tópico mais confortável. —Bem, se você quiser o meu conselho,
mate seus soldados. Ele notará quando estão todos mortos do lado de fora de
seus portões. Ele provavelmente assistirá e se apaixonará por você novamente.
—Inferno, eu nunca vou pedir conselhos sobre romance no futuro.
'Apenas mate todos os soldados, Aileana' — Eu zombei em falsete, revirando
os olhos. —Conte-me sobre como encontrar o livro.
Ela parece divertida. —A boa notícia é que o caminho para o livro é
através do palácio. Você pode usar o poder do cristal para abrir o portal.
—E a ruim? — Eu não vou gostar disso.
Aithinne segue em frente. —Você terá que encontrar uma maneira de
sequestrar Sorcha. Somente sua linhagem pode encontrar o portal que leva ao
livro.
—Aithinne. — Eu digo o nome dela com muito, muito cuidado. —Você
está dizendo que eu deveria sequestrar - contra a vontade dela - a fada que me
matou para me ajudar a encontrar este livro?
—Bem, sim. A consorte de Morrigan era uma relação de Sorcha e
Lonnrach. O Fogo fátuo estava muito claro que o sangue dela era a chave da
prisão. Você vai precisar dela, viva, infelizmente.
Certo. Claro que seria o parente dela. Claro. Coisas terríveis. Sempre.
Acontecem. Para mim.
—Mesmo que Kiaran concorde com esse plano, nunca convencerei
Sorcha a ajudar.
—Você não precisa convencê-la. Amarre-a. Arraste-a. — Aithinne
encolhe os ombros. —Se ela começar a ficar irritante, dê um soco na cara dela.
Quando chegar a hora, use seu poder para enviar uma mensagem para mim e
eu vou ajudá-la. Estou bastante ansiosa para bater meu punho no nariz dela.
—Você e eu, ambas. — Murmuro.
Sorcha e Lonnrach me destruíram de maneiras diferentes. Sorcha matou
minha mãe e, eventualmente, me matou. Eu costumava ter pesadelos com ela.
Eu costumava rastrear suas mortes. Ela foi a razão pela qual desisti de tudo
para me tornar o que sou.
Mas Lonnrach... ele quase fez o que ela não pôde: ele tentou quebrar
minha própria alma - e quase conseguiu. As marcas de seus dentes podem não
estar mais na minha pele, mas seus efeitos não diminuíram.
Passei apenas dois meses presa por ele no reino das fadas, o equivalente
a três anos no mundo humano. Mas cada dia se estendia tão vasto que eu não
tinha noção de tempo. Ele invadiu minha mente por informações para usar
contra mim, uma extração que exigia meu sangue. Ele perfurava minha pele
com os dentes, dia após dia, uma e outra vez. Suas mordidas deixaram
centenas de cicatrizes nos meus braços e na minha garganta. Cortes que
continham memórias preciosas.
Com o tempo, essas lembranças desapareceram em minha mente, como
gravuras antigas que foram lixadas. Para trazê-las novamente, tive que raspar
minhas unhas sobre as cicatrizes, cavando-as apenas para trazer à tona as
lembranças de quem eu era. Elas eram tudo o que me restava.
Fechei os olhos brevemente. Eu tenho que fazer isso por Kiaran e
Aithinne. Por Catherine, Gavin e aquelas pessoas no chalé de Aithinne que não
escolheram seu destino. Eu tenho que fazer o que for preciso para encontrar o
livro e devolver a vida a eles. Não vou falhar com eles novamente.
—Eu odeio isso. — Murmuro.
—Realmente? Estou me divertindo muito— Diz Aithinne, animada.
—Isso é porque você é maluca.
—Eu acredito que você apenas pronunciou de forma magnífica.
Ela me leva de volta à beira do precipício. Desta vez, quando espio o
castelo de Kiaran, os soldados ainda estão em formação. Como se estivessem
esperando instruções. Temos que agir agora.
—Você não pretende abrir o portal até a metade, não é?
Aithinne parece que está considerando. Na minha expressão indignada,
ela pisca. —Eu vou fazer isso aqui. — Ela gesticula para os soldados. —Esteja
pronta. Assim que sentirem poder, eles vão atacar. Certifique-se de não perder
o controle e quase matar meu irmão como você quase me matou. — Ela sorri.
—Fácil.
Certo. Basta combater quatro dúzias de soldados para chamar a atenção
do meu amante, que pode ou não ser mau, dependendo do humor dele.
—Você sabe — Digo levemente. —Acho que precisamos repensar o seu
uso da palavra fácil. Apenas uma sugestão.
—Levei sua sugestão em consideração e decidi ignorá-la. — Ela dá um
passo para trás com um sorriso. —Pronta?
Lembro-me de outro portal que Aithinne abriu para eu atravessar ilhas.
—Você não vai me deixar quase esmagada por galhos de árvores novamente,
vai?
—Não, não. Esmagada pela água.
Com isso, ela levanta a mão como se estivesse acenando para alguma
coisa. A água sobe do mar, subindo e subindo em direção ao céu, até fluir com
a força de uma cachoeira. O córrego me envolve, a água correndo como um rio
suspenso no ar. Isso me envolve, névoa pulverizando minhas roupas, minha
pele.
Pouco antes de fechar completamente, Aithinne diz: —Boa sorte. Vou
aguardar sua palavra.
Então eu estou cercada por água. A corrente é tão ensurdecedora que
qualquer som além dela é abafado. Aperto minha espada com força, pronta
para me envolver. Meu corpo está em posição de luta.
Então, de repente, a água limpa. Aithinne me deixou bem no meio dos
soldados, sem dúvida de propósito. Um silêncio passa por eles. Todos estão
tensos.
Meu poder dá um toque zombeteiro em seus ombros. Bem aqui.
Eles atacam como um. Deus, eles são rápidos. Mais rápido que as fadas
na floresta. Estes devem ser os melhores soldados de Kiaran, porque se movem
como eu. Como se eles fossem treinados para isso - treinados para mim.
Os poderes da Cailleach me incentivam a usá-lo. Tudo o que tenho a
fazer é deixar ir e eu poderia destruir esses soldados em um minuto - alguns
segundos, se eu quisesse me exibir. Seria tão fácil. Tudo o que eu teria que fazer
é...
Use seus poderes com moderação.
A instrução sem sentido de Aithinne me traz de volta do limiar.
Mantenha o foco, Aileana. Não desista. Não morra ainda.
Eu poderia ser mais lenta sem ele, mas nunca precisei dos poderes da
Cailleach para vencer minhas batalhas no passado. Eu tenho que reaprender
como usar meu corpo com suas limitações humanas.
Todo movimento é uma descoberta. São meus membros em chamas
enquanto eu bloqueio, invisto e corto. É a respiração nos meus pulmões, cheia
de alegria. É meu punho batendo no rosto de uma fada tão forte que meus
dedos sangram. É lembrar o que posso fazer com uma espada e como sou
graciosa. E estou me exibindo para Kiaran. Lembra-se disso? Lembra de nós? Você
disse uma vez que eu era excelente em batalha. Deixe-me te mostrar. Deixe-me lembrá-
lo.
Minha espada canta. Eu luto como se estivesse dançando, tentando-o,
acenando para ele. Para Kiaran - para nós - é assim que seduzimos. E eu posso
senti-lo assistindo.
Esta sou eu. Entrando em um quarto. Prestes a lhe fazer perguntas
irritantes.
Quando tudo acaba, fico olhando para o castelo, minha respiração
rápida. Agora me deixe entrar, seu burro teimoso.
As portas do castelo se abrem com um eco que provavelmente pode ser
ouvido do outro lado do mar.
Eu sorrio. Peguei você, Kiaran MacKay.
O castelo parecia um pesadelo do ponto de observação nos penhascos, é
ainda mais desolado de perto. Minhas botas trituram no solo seco e rachado
quando entro nos portões. Eles se erguem de cada lado de mim, portas
enormes esculpidas em rocha negra que levam ao interior escuro.
Uma brisa gelada bagunça meu cabelo e eu resisto à vontade de tremer.
Este lugar é perturbador. Nenhuma coisa é reconhecível como sendo formada
a partir dos restos da casa de Derrick, uma cidade-pixie que estava cheia de
vida. Este castelo foi erguido sobre os escombros.
Nada resta dessa cidade. É como se nunca tivesse existido.
No interior, é uma caverna. A antecâmara é vasta, com grandes colunas
em arco que levam ao teto iluminado por velas tremeluzentes suspensas no ar.
Cada centímetro das paredes negras de pedra está coberto de símbolos de fada.
Há uma aura na sala, um brilho estranho de energia que lança um brilho ao
longo dos arcos de pedra, como quando a luz do sol atinge a água em um
determinado ângulo.
As paredes respiram como se estivessem vivas, como se todo esse lugar
estivesse vivo, uma criatura adormecida. É enervante e bonito, aterrorizante e
sombriamente adorável. Um milhão de dicotomias diferentes. Como tudo das
fadas.
—MacKay?
Sem resposta.
Você me convidou para entrar e agora está preso comigo, Kiaran MacKay. Você
terá que falar comigo se quiser que eu vá embora.
Atravesso a antecâmara e sigo em direção a uma enorme porta de
carvalho que conecta o grande salão a outra sala, igualmente vasta e deserta.
Um estrado vazio ocupa o outro extremo, indicando isso como a sala do trono.
Mas não há trono lá, nem sinal de que alguém governe do palácio. Minha pele
está arrepiada quando passo pelo estrado vazio.
Juro que posso sentir a idade deste lugar como se estivesse escrito ao
longo das paredes, uma tapeçaria de poder representando a ascensão e queda
do palácio original de onde o cristal veio. Esta é uma extensão do Reino Antigo,
então. Não é um palácio substituto, mas a casa das Morrigan, criada de novo.
Estremeço quando meus passos ecoam pelo chão. É tão alto: o único som
neste lugar vazio. Apesar das velas flutuando perto do teto, o ar está frio. Como
as ruínas de uma antiga catedral, desolada e cheia de lembranças há muito
perdidas. Um antigo reino caído ressuscitado dos escombros e da destruição
de outro.
—MacKay — Eu chamo novamente. Ainda sem resposta. —Tudo bem,
se você não falar, eu falarei: matei seus soldados na floresta. Sua irmã não fez
isso. Nada. — Nem mesmo passos. —Peço desculpas, mas não sinto muito.
Suspiro irritada quando não há resposta. Inferno, MacKay.
Bem. Se ele não falar comigo, me sentirei bem-vinda. Vou gritar
perguntas irritantes pelos corredores, se for preciso.
Atravesso a sala do trono e atravesso outra porta, parando um pouco
além do limiar. Agora isso parece mais vivido. É um espaço íntimo, mobiliado.
No outro extremo do quarto, há uma janela que se estende do chão ao teto.
Bem na frente dela, há uma única cadeira de couro preto. Quase sorrio com a
lembrança da casa de Kiaran em Edimburgo, o que parece ser há tanto tempo
atrás agora. Os únicos móveis que ele tinha naquele lugar eram uma cadeira,
uma mesa e uma cama com cobertores quentes de lã. Praticidade e pequenos
confortos em relação à opulência.
Aithinne estava certa: ele é uma criatura de hábitos.
Eu me aproximo da janela. A vista tem vista para os penhascos do
continente até onde as ondas batem contra as rochas logo abaixo do palácio.
Deslizo as pontas dos dedos pelas costas da cadeira. Eu posso imaginá-lo
sentado lá tão facilmente, ouvindo o mar furioso lá embaixo. Kiaran sempre
encontrava consolo na quietude; nós dois encontrávamos. Essa é uma das
razões pelas quais treinamos tão bem juntos.
À minha esquerda, noto a cama. A cama. É exatamente a mesma que era
no meu sonho, até as esculturas na cabeceira da cama. Como isso é possível?
As palavras de Aithinne passam pela minha mente. O poder da Cailleach
reconhece o seu. E é mais fácil porque ele é seu amante.
Quando minhas memórias voltaram à tona, deve ter ajudado nossa
conexão. Minhas pontas dos dedos roçam meu pescoço. Apesar da pele lisa e
sem marcas, a pressão dos dentes não diminuiu. Nem minha memória deste
quarto. Não era inteiramente um sonho, então. De alguma forma, meu poder
estava ligado ao de Kiaran e eu vi esse quarto antes mesmo de pôr os pés nele.
A única diferença é uma mesa enorme construída em carvalho pesado no
outro extremo do quarto, bem em frente à grande lareira. A partir daqui, eu
posso ver uma dispersão de objetos nela.
Eu me aproximo da mesa lentamente.
Um mapa está colocado lá, marcado com o que parece couro e coberto
com peças de xadrez antigas esculpidas em marfim. Traço as linhas do mapa e
reconheço a curva da baía logo depois do castelo, a floresta pela qual viajei com
Derrick que se estende para o leste ao longo da ilha. Cada peça está definida
deliberadamente no mapa.
Peão. Peão. Peão. Três deles caíram como árvores em uma floresta.
Engulo em seco quando percebo que eles marcam campos diferentes nas
terras de Aithinne. Os que ele planeja atacar primeiro. Bem no centro está a
rainha.
E a coroa dela está quebrada.
A pesada porta de madeira atrás de mim se fecha e eu fico imóvel. Eu o
sinto parado lá, tão certo como se ele estivesse me tocando. Eu prendo a
respiração e me viro.
Kiaran.
Kiaran está ainda mais estranho do que eu me lembro, cada polegada do
Rei das Fadas que ele nasceu para ser. Sua pele pálida e luminosa se destaca
em contraste com seus brilhantes cabelos escuros. A luz das velas o lança em
um halo de vermelho e dourado, um efeito angustiante e angélico. Mas um
anjo nunca poderia parecer tão perigoso, tão selvagemente bonito. Um anjo
não olharia para você como se estivesse dividido entre desejo e violência, entre
desejo e outra coisa. Algo primordial. Algo sombrio.
Fico quieta quando nossos olhares se encontram. Seus olhos lilás outrora
vívidos agora estão frios e rodeados de preto, como tinta respingada nas
pétalas das flores.
Não me lembro da última vez que fiquei tão insegura sobre ele, tão
dividida entre brigar, correr ou querer. A lembrança de seus lábios contra a
minha superfície, espontaneamente. Lembro-me perfeitamente agora. Beijos
quentes e mãos trêmulas deslizando pelos meus braços, minhas costas, meus
quadris. Os sons que ele fez, seus incentivos sussurrados contra a minha pele.
Kiaran solta um suspiro irregular. Gostaria de saber se ele está se
lembrando também. Se ele está pensando em todas as palavras que já
dissemos, todas as promessas que já fizemos. Eu me pergunto se ele vê aquele
espaço dentro de mim que pertence a ele e sempre o pertencerá. E ele não
aceitou pela força ou coerção. Ele gastou pequenos pedaços dele até que tanto
foi levado com ele que antes que eu percebesse, eu tinha lhe dado todo o meu
coração. Eu tinha lhe dado minha alma. Eu tinha dado todas as minhas partes
para oferecer.
Kiaran vira a cabeça bruscamente, seu corpo inteiro tenso. Como se
estivesse se controlando - ou pelo menos tentando.
Então ele olha para mim novamente, e sua expressão é muito uniforme,
muito composta e ilegível. Eu seguro a mesa. Não está pronto para ser
executado. Não foi possível voltar atrás. Incerto sobre dar um passo à frente.
A voz de Aithinne em minha mente é um lembrete para permanecer
cautelosa. Não importa o quão normal ele possa parecer a princípio, sua fome sempre
vencerá. Sempre.
Ele é Kiaran agora? Ou ele é Kadamach? —Olá. — Eu digo baixinho.
Então ele está caminhando em minha direção com um brilho duro em
seu olhar, proposital. Ameaçando? Não sei dizer. Não sei dizer. Eu agarro o
punho da minha espada em aviso, mas ele nem olha para ela.
Sua fome sempre vencerá. Sempre.
Puxo a lâmina da bainha. No espaço de uma respiração, a ponta é
pressionada na base do pescoço.
Kiaran fica parado. Seus olhos travam nos meus, suas feições suavizam.
—Kam. — Ele sussurra.
É tudo o que preciso ouvir. A única sílaba é uma declaração entre nós,
uma admissão. Senti sua falta e ainda estou aqui e ainda sou eu.
Eu largo a espada e ela cai no chão, esquecida.
Minhas primeiras palavras são ditas através de lágrimas.
—Entrei neste quarto para fazer perguntas irritantes. Você ainda está ai?
Kiaran diz algo baixinho. Uma maldição? Então ele dá um passo à frente,
pressiona a testa na minha e envolve os braços em volta da minha cintura.
—Ainda não sei. Faça-me outra pergunta irritante. Me incomode com
elas.
Eu soltei uma risada sufocada. —Oh! Graças a deus. Eu estava
preocupada em ter que desafiá-lo a um duelo.
—Você ainda pode. — Ele fecha os olhos, como se estivesse saboreando
o som da minha voz. —Gosta de um bom duelo, não é?
—Espadas ou socos, MacKay?
O sorriso dele é a coisa mais linda que eu já vi. —Ambos. Ou. Eu não ligo
Eu só quero você. — Ele segura minha bochecha. —Kam. — Ele diz meu nome
como se não pudesse dizer o suficiente. Como se fosse a oração dele. Como se
eu fosse a salvação dele. Então, em uma voz logo abaixo de um sussurro. —
Toque-me.
Deslizo as pontas dos dedos pela mandíbula dele, meu polegar roçando
seu lábio inferior. Ganhar tempo antes que eu explique tudo. Eu tenho tanto à
dizer. —Então você provavelmente está se perguntando-
—Não termine essa frase ainda — Diz Kiaran, me empurrando
suavemente contra a mesa. Ele puxa a gola da minha camisa para o lado e
pressiona um beijo no meu ombro. —Prefiro isso ao invés.
—Você não tem ideia do que eu estava prestes a dizer.
—Algo sobre como você está viva, por que seus olhos parecem assim e
por que seu poder parece diferente. — Os lábios de Kiaran seguem até minha
clavícula quando ele começa a desabotoar minha camisa. Beijando mais baixo,
até que ele encontra a cicatriz no meu coração. Quando ele se afasta para olhar,
o anel preto em torno de sua íris sangra na cor e os pelos finos do meu corpo
se erguem. Eu nunca vi os olhos dele fazer isso antes. —E envolverá nossos
reinos pendurados na balança, tanto nossas vidas quanto uma inevitável e
exaustiva batalha. Eu tenho a ideia certa?
—Temo que sim.
As íris de Kiaran tornam-se lilás novamente. —Então não me diga ainda.
Prefiro fingir, neste exato momento, que o mundo pode se consertar. — Ele se
inclina, as pontas dos dedos roçando minha cicatriz e deslizando para baixo,
baixo, baixo, desabotoando. —Me toque mais. Me beije. Diga meu nome. —
Cada pedido traz outro toque quente de seus lábios, mãos, um novo botão
desfeito. Outro. Outro. —Eu preciso ter certeza.
—Sobre o que?
—Que você é real. — Então ele pressiona um beijo dolorosamente suave
nos meus lábios, um que eu mal sinto. Depois outro, mais difícil. —Diga-me
que você é real.
—Eu sou real. — Eu sussurro. —Ainda estou aqui. Posso fazer mais
perguntas, se você quiser.
—Mais tarde. — Diz ele.
Então os lábios de Kiaran estão nos meus. Desesperados. Como se ele não
tivesse o suficiente de mim; como se eu pudesse desaparecer. Como se a
qualquer momento ele acordasse desse sonho e eu me fosse.
Kiaran me beija como se estivesse prestes a me perder de novo.
Ele não é gentil. Não há suavidade, hesitação, toques delicados. E eu não
quero. Eu não quero gentil. Meu desejo é tão feroz quanto exigente. Agarro a
parte de trás da camisa dele, cavando as unhas com força. Mais. Eu quero mais.
Eu preciso disso. Eu preciso dele.
Afasto-me apenas brevemente para arrancar minha camisa, o resto das
minhas roupas, as dele. Então é a pele de Kiaran contra a minha e nós dois
estamos queimando, beijando, mordendo, arranhando. É uma urgência física,
uma necessidade devoradora, uma bênção do sim, agora, mais.
Kiaran me levanta na beira da mesa. Os peões se espalham pelo mapa; a
rainha cai no chão com uma batida forte.
Então Kiaran relaxa em mim, as mãos segurando minhas coxas com
força. Quando ele pressiona os lábios na minha garganta, eu tenho um breve
lampejo o meu sonho. Para os dentes mordendo, tirando sangue. Eu endureci
um pouco, incerta.
Mas ele apenas sussurra: —Não desapareça novamente, Kam. Não
desapareça.
Mais tarde, quando meus olhos estão pesados de sono, eu digo a Kiaran:
—Devo terminar essa frase agora?
Kiaran me abraça por trás, arrastando as pontas dos dedos pelas minhas
omoplatas. Estamos na cama dele e parece que estamos de volta ao meu sonho.
Como se nada disso fosse real e estivéssemos em um espaço seguro, separado
do mundo. Casulo em uma bela mentira.
Do outro lado do quarto, um raio de luz da lua cheia se acumula sob a
janela lá fora. O rugido abafado das ondas batendo contra a ilha rochosa
preenche o vasto espaço silencioso. E é tão reconfortante. Eu poderia ficar
assim com ele, nesta cama, para sempre.
Se tivéssemos tanto tempo. Eu gostaria que tivéssemos.
—MacKay? — Olho por cima do ombro para ele. Quando meus olhos
encontram os dele, algo em sua expressão me faz ficar imóvel. Fome.
Ele se afasta de mim, respirando fundo. Kiaran não responde. Eu assisto
enquanto ele luta consigo mesmo, seus traços tensos. Seus lábios se movem,
como se estivesse contando. Obtendo o controle novamente.
—Você está bem? — Eu sussurro incerta.
—Bem. — Ele balança a cabeça uma vez e depois a tensão deixa seu
corpo. —Estou bem. Não termine sua frase ainda. Isso vai me levar a matar
coisas.
—Você gosta de massacrar coisas.
—Comparado a isso? Não. — Ele me toca de novo, seus dedos roçando
meu braço. Tentando, hesitante. Quando eu digo a ele que ele geralmente é
prático, ele responde: —Deve ser sua influência. Na verdade, estou prestes a
fazer várias sugestões, e todas elas são impraticáveis.
Eu sorrio. —Ooh, várias sugestões? Meu... Impraticável Kiaran MacKay
é... ouso dizer? Adorável.
Kiaran olha para mim com nojo. —Eu não sou.
—Você é e você nem sabe disso. Adorável.
—Adorável é algo que chamamos de humanos tolos antes de matá-los.
—Adorável é o que chamamos de homens adultos que gostam de abraçar
e amaldiçoar por suas vidas que não gostam. — Kiaran faz um som na
garganta. —Você pode rosnar para mim o quanto quiser. Eu conheço suas
fraquezas, MacKay. Carinho. Beijos no pescoço. Aquele ponto delicado logo
acima do seu...
Eu rio enquanto ele me agarra pela cintura e me puxa contra ele. Ele me
beija ferozmente o suficiente para fazer meus dedos enrolarem. Então ele se
afasta com a expressão presunçosa de alguém que teve milhares de anos para
aperfeiçoar a sedução e sabe exatamente como usá-la contra mim.
Entre toques, sussurro que em breve teremos que voltar ao mundo e
enfrentar nossos destinos. Kiaran não responde. Ele apenas me beija como se
eu fosse morrer de novo. Ainda não consegui dizer a ele que ainda posso.
—Deixe-me contar uma história. — Digo em seu lugar. —Era uma vez
uma garota cuja vida foi salva pelo rei das fadas...
—Essa história parece bem familiar. Acho que já ouvi isso em algum
lugar antes.
Eu o silencio e digo para não interromper. —Se alguém perguntasse
como ela se sentia em relação ao rei, ela teria dito que o odiava. Ele a treinou
sem piedade para lutar contra sua própria espécie. Ele a ensinou a matar. Ela
aprendeu com as lições dele como acalmar a raiva que ardia dentro dela. Mas
ela já havia decidido que um dia, quando tivesse ficado forte o suficiente e
aprendido tudo o que pudesse sobre a batalha, iria matá-lo.
Kiaran fica quieto, seus olhos brilhando na escuridão. Ele não diz nada.
—Sua oportunidade veio uma noite quando ele decidiu que ela estava
pronta para caçar sua primeira fada. Era um skriker que aterrorizava uma vila
próxima, matando crianças durante a noite. O rei entregou a espada à garota e
ordenou que ela matasse a criatura parecida com um pixie.
—Ela mal ganhou. Mas no final, quando ela enfiou a espada
profundamente no intestino do monstro, sentiu algo tão profundamente que
pensou que a consumiria. Então ela disse ao rei. Ela sussurrou as palavras e as
quis dizer com todas as partes de sua alma cheia de raiva: 'Eu te odeio. Eu
odeio todas vocês.' Quando ela ergueu a espada novamente, ela pretendia
atravessá-la através do coração dele.
—Foi a primeira vez que a garota viu o rei das fadas sorrir.
Eu levanto minha mão e pressiono minha palma na bochecha de Kiaran.
—Você terá que terminar a história. Ela nunca soube por que ele sorriu. Só que
um dia, ela queria vê-lo fazer isso de novo. Então ela largou a espada e poupou
a vida dele. E ela nunca disse ao rei o que realmente aconteceu naquela noite.
Kiaran parece divertido. —O rei sabia o plano da garota o tempo todo.
Ele sorriu porque decidiu que gostava dela. Ela mantinha as coisas
interessantes.
Eu olho para ele. —Então o rei das fadas é um tipo perturbado. Como a
garota sempre suspeitou.
—E o lado dele dessa história? — Ele me puxa para perto, seus lábios
macios no meu ombro. —Ele nunca disse à garota que, durante uma caçada,
quando ela corria ao lado dele com o vento nos cabelos e a luz da lua atrás dela,
era a coisa mais magnífica que ele já vira e a queria.
Então as mãos de Kiaran estão no meu cabelo, lábios roçando os meus.
—E quando o rei a observava em batalha, ela olhava para ele com um sorriso
e ele a desejava.
—Nunca foi de uma vez — Continuou ele. —Foi depois de tudo o que
eles passaram e depois foi o rei e a menina enfrentando um exército inteiro
juntos. E ele sabia a verdade. O coração dele era dela. Sempre foi. Sempre será.
Uma sombra cruza as íris de Kiaran. Um lembrete de que ele ainda está
lutando. Só para estar aqui. Comigo. Ele fecha os olhos, a expressão tensa.
Antes que eu possa perguntar se ele está bem, ele me puxa contra ele e me
abraça.
Suas próximas palavras são proferidas em voz baixa, tão baixas que me
pergunto se as ouvi. —A menina ajuda o rei a manter sua escuridão à distância.
Nas horas antes do anoitecer, sei que é hora de contar tudo a ele. —Não
vá à guerra com Aithinne.
Ele suspira. —Kam-
—Ela não quer isso — Eu interrompo. —Fui eu quem matou seus
soldados.
—Eu percebi isso quando você anunciou no meu corredor — Diz Kiaran
secamente. —E quando você fez um trabalho rápido dos meus homens lá fora.
— Ele está contando minhas vértebras, dedos deslizando um de cada vez,
centímetro por centímetro. Seu toque é gentil. Quando ele beija minhas costas,
seus lábios são tão leves quanto asas de mariposa.
—Eu tive que chamar sua atenção. Foi ideia de Aithinne.
—Eu pensei que aquela entrada dramática havia sido sugerida por
Aithinne por toda parte. — As pontas dos dedos varrem minha espinha. Tão
lento que eu tremo. —Eu posso sentir o pulso do poder sob a sua pele. — Ele
murmura. —Eu sei que não é seu. Você tomou uma decisão terrível, não é?
—Como você sabe?
—Fácil. Você tem um talento especial para atrair caos.
—Acho que foi uma decisão maravilhosa, considerando todas as coisas.
Estou aqui, não estou?
—Você está usando meus afetos para obter simpatia. Não vai funcionar.
— Ele se afasta e olha para mim, sério agora. —Diga-me o que você fez.
—O que eu tinha que fazer. — Eu digo.
Não havia outra escolha. A decisão entre a morte e um último adeus não
é realmente uma escolha. A Cailleach apostou em mim dizendo que sim.
Ela fez sua aposta e ganhou.
Eu conto a ele sobre o que aconteceu depois que Sorcha me matou. —Se
encontrarmos o livro, você não precisa matar Aithinne. — Digo suavemente.
—Terminará a maldição. Podemos mudar tudo de volta ao que era antes de
tudo isso. Todas as pessoas que não conseguimos salvar terão suas vidas de
volta, suas casas de volta. — Quando ele não responde, eu pressiono mais
perto, sussurrando em seu ouvido: —Você e eu vamos correr a noite toda
novamente. Dançaremos na chuva e assistiremos o sol nascer sobre o mar.
Desta vez, eu nem me importo se você aparecer sem aviso prévio em minha
casa, desde que não quebre os vasos de meu pai novamente.
Kiaran não retribui meu sorriso. Ele gentilmente me afasta, olhos
procurando os meus. —O que você não me disse?
Meu coração bate forte no meu peito. Eu soltei um suspiro. —A Cailleach
me deu seus poderes como solução de curto prazo. Meu corpo não foi feito
para segurá-los.
Enquanto ele olha para mim, eu sei que ele entende. Mas tenho que dizer
as palavras. Elas ficam na minha garganta primeiro e eu fecho os olhos.
Lá fora, as ondas batem contra a rocha. O vento sacode as janelas. Então
tudo fica quieto e tudo o que posso ouvir é meu pulso em meus ouvidos. —
Estou morrendo, MacKay. — Eu sussurro. —Se não encontrarmos esse livro...
Kiaran não me deixa terminar. Ele me beija, me pressionando nos
travesseiros, e as palavras desaparecem nos meus lábios.
Eu não tenho a chance de dizer a ele que cada vez que eu uso os poderes
da Cailleach, eles me matam um pouco mais. Nunca tive a chance de contar a
Kiaran sobre a necessidade de Sorcha encontrar o livro. Cada beijo interrompe
minhas palavras. Suas mãos pavimentam um caminho de calor pelo meu
corpo. Ele me toca como se quisesse esquecer o mundo. Esquecer nossos
destinos. Esquecer tudo. Como se ele quisesse se afogar nisso, em nós, em mim.
Eu deixei ele
Eu me deixei afogar nele também.
Eu acordo para me encontrar sozinha no quarto de Kiaran. O lado da
cama onde ele dormia está frio ao toque; ele não está lá há horas. O edredom
ainda está imperturbável, como se eu sonhasse com a coisa toda.
É de manhã cedo. Os primeiros vestígios da luz do dia atravessam a
janela aberta e eu posso ouvir o fraco bater das ondas do oceano enquanto a
maré entra - o único som no quarto imenso e silencioso.
Levanto-me da cama e pego minhas roupas descartadas do chão. Está tão
frio nesse espaço vazio que visto meu casaco e botas quando vou para a porta.
Não sei se Kiaran me quer vagando pelos vastos corredores desse palácio de
pesadelo, mas também não me sinto confortável em ficar no quarto dele.
Abro a porta e deslizo para o grande salão.
—MacKay?
Meu grito é recebido pelo silêncio. As velas que flutuavam no alto
quando cheguei se foram; a única luz é das tochas tremeluzentes que revestem
as paredes de obsidiana. Eu não percebi antes que as paredes foram lustradas
e polidas com tanta perfeição que parecem piscinas escuras e profundas. Meus
passos ecoam quando atravesso o grande salão e entro em outro corredor.
Sou recebida por uma fileira de portas que parece interminável. Dezenas
delas, e todas são feitas da mesma madeira de freixo escuro da cama de Kiaran.
Eu nunca teria tempo para procurar por todos elas.
Há algo inquietante sobre este lugar, sobre o modo como as pedras se
parecem, como se estivessem se aproximando. Não ajuda que o ar esteja
pesado e parado. Minha respiração trava com a lembrança do quarto
espelhado onde Lonnrach me manteve presa depois que ele destruiu
Edimburgo. Como aqueles espelhos pareciam se fechar também. Até que
parecia que eu não tinha espaço suficiente para respirar.
É assim que as paredes enegrecidas se parecem. Como se não fosse um
palácio, mas uma tumba - uma que pertencia a Morrigan.
Pare de perder tempo. Encontre Kiaran. Conte a ele sobre Sorcha. Então faça-o
ajudá-la a encontrar o livro.
Eu começo pelo corredor, com propósito agora. Se eu fizer barulho
suficiente, ele provavelmente vai me ouvir - pelo menos, é o que presumo até
perceber o quão vasto e vazio é este castelo.
Então eu uso meu poder para encontrar Kiaran. Seu poder chama o meu
como uma corda me puxando. Um vínculo que não consigo descrever
completamente. Eu começo a correr, meus calcanhares batendo no chão. As
paredes se estendem cada vez mais, girando e girando, um labirinto construído
de obsidiana.
Sigo seu poder por outro cômodo, depois por um corredor igualmente
longo. Nada neste lugar muda, como se cada porta tivesse sido replicada mil
vezes, cada detalhe espelhado perfeitamente.
Pouco antes de fazer outra curva, vejo um raio de luz em uma das
paredes. Lá. Uma porta aberta, a primeira desde que saí do quarto de Kiaran.
Eu passo devagar, me aproximando com cautela. Faço uma pausa quando vejo
o que está do outro lado.
Não é outro cômodo, mas um prado ao anoitecer. A lua cheia paira no
horizonte, rodeada de roxo e azul, no céu crepuscular. Cores de azul-petróleo,
safira e ébano brilham em um gradiente que começa no horizonte e se estende
para cima. Sob o lindo céu, o prado é tão vasto quanto o oceano.
Kiaran está a alguma distância de mim, preparando um cavalo das fadas.
O animal é semitransparente, o metal de sua pelagem é fino o suficiente para
que seus órgãos sejam visíveis. Mesmo daqui, eu posso ver o sangue dourado
bombeando em suas veias, o pulso rápido do coração de seu verdadeiro cavalo.
Sei por experiência que, apesar de ser feita de metal, a criatura é suave ao
toque, como nada criado por humanos. Observo enquanto Kiaran escova
lentamente o pelo nas costas. De novo e de novo.
Com meus sentidos de fada, noto pequenas coisas sobre a reação de
Kiaran que eu não poderia ter detectado sem o poder de Cailleach. Sua
respiração é tão constante, mas engata um pouco quando ele percebe que estou
atrás dele. Ele murmura uma maldição.
Ele continua escovando o cavalo em movimentos fáceis. Ele está fingindo
que não estou lá. Sem dúvida, ele veio aqui para ter algum tempo sozinho,
depois do que eu disse antes. Kiaran tem uma tendência a se distanciar quando
sente muitas coisas, e ele já me viu morrer duas vezes.
Bem, ele só vai ter que lidar comigo. Eu estou aqui agora. Eu voltei.
Temos que encontrar o livro. E agora eu preciso de Sorcha.
Atravesso a campina, caminhando rapidamente. A grama quebra sob
minhas botas e meus dedos roçam as flores na altura da coxa enquanto vou em
direção a Kiaran. O ar aqui é úmido, mas confortavelmente quente, como a
costa em uma manhã enevoada de verão. O cheiro de urze e chuva fica mais
forte quanto mais longe eu vou.
Kiaran não olha quando me aproximo, mas percebo a maneira como seus
dedos agarram a escova com mais força. Sua respiração diminui como se ele
estivesse controlando cuidadosamente cada inspiração, expiração.
—Deixe-me adivinhar. — Diz ele quando eu chego ao lado dele. —Você
me seguiu.
Eu dou de ombros. —Serve por todas as vezes que você fez em
Edimburgo. Aparecendo aleatoriamente no parque, em minha casa...
O sorriso de Kiaran é pequeno como ele suaviza a escova para baixo o
pescoço do cavalo. —Você me ofereceu seu chá humano sujo. Eu queria tirar a
roupa ridícula que você estava vestindo e você me pediu para destruí-la. — Ele
finalmente olha para mim por baixo dos cílios. —Acredite em mim, eu lembro.
Eu queria você. Eu queria por muito tempo.
Eu olho para ele surpresa. —Você queria? — Eu suspeito. —Você
continuou me dizendo que eu era uma garota humana boba. Você era tão
condescendente e superior nisso.
—Bem, você era uma garota humana boba que eu queria. — Ele encolhe
os ombros. —E eu não discutirei o resto.
O cavalo cutuca meu ombro com o focinho em uma clara dica de atenção.
Estendo a mão gentilmente para acariciar as pontas dos dedos pelo nariz. Faz
um som de satisfação e eu sorrio - até perceber a sela no chão ao lado do cavalo.
Kiaran estava prestes a sair.
—Você está me evitando? — Eu pergunto a ele, sem me preocupar em
esconder minha irritação. —É por isso que você estava indo para algum lugar?
Seja honesto.
Sua mandíbula aperta. —Não. — Diz Kiaran. —Eu estava saindo para
poder me preparar para encontrar esse livro.
—Preparar?
Olho bruscamente para o cavalo das fadas, para a sela novamente. Está
coberto de marcações familiares. Onde eu já vi esses símbolos em particular
antes? Lembro-me dos sulcos deles sob as pontas dedos durante a batalha em
Edimburgo. Esses são os símbolos da caçada selvagem.
—Você ia caçar uma vítima humana. — Quando ele não responde,
pergunto com mais nitidez: —Você não ia?
Quando Kiaran olha para mim, sua expressão está distante. Quase fria.
—Então Aithinne mostrou a você. E você ainda veio.
Eu seguro uma vacilada com a lembrança da mulher magra no chalé, os
sons de pânico que ela fez quando a fada em seu pescoço afastou os dentes. —
Claro que vim. — Eu digo. —Eu era a única que deveria impedir Sorcha de
usar o cristal-
—Não. — Kiaran retruca. —Não fale assim, isso é algo que você não
permitiu que acontecesse comigo. Esse é quem eu sou. É quem eu era há
milhares de anos antes de conhecer você. É quem eu nasci para ser.
Minhas unhas roem as palmas das mãos. —É quem você foi forçado a
ser.
—Semântica, Kam. — Ele retoma a escovação do cavalo. —Se eu não fizer
isso, não poderei ajudar ninguém, nem mesmo você.
Penso nas vítimas dele no chalé e no que ele as reduziu. Mas as fadas na
minha frente parecem calmas, não más. Não estão além de calmas. Kiaran riu
na cama comigo. Ele fez amor comigo e me deixou contar a minha história
boba. Ele não é Kadamach.
Ou então acredito até o momento em que toco seu ombro e o vento do
prado sopra a gola do meu casaco. Ele olha para mim, olhando cintilando para
a pele exposta na minha garganta.
E eu vejo a fome em seus olhos.
O corpo de Kiaran está tenso. Ele desvia o olhar e afaga a escova no pelo
do cavalo. Ele está se controlando. O preto ao redor de sua íris começa a
sangrar na cor. Ao contrário das fadas na floresta, não sinto seu desejo
insaciável de se alimentar. Mas eu posso ouvir o modo como sua respiração se
tornou irregular. Rude.
—Volte para dentro, Kam. — Sua voz é aguda. O lilás de suas íris é
apenas um pequeno anel interior.
Fique quieta. Fique calma. Meu coração bate contra o meu peito. O jeito
que ele está olhando para mim é tão esplêndido que mal o reconheço. —Eu
preciso de algo de você.
O ar fica mais frio. —Então você apareceu por motivos ocultos, então.
Eu odeio o jeito que ele diz isso, como eu vim aqui e ri com ele e o beijei
e foi tudo por um favor. —Pare com isso, MacKay.
—Apenas me diga o que você quer.
Eu hesito. —Eu preciso de Sorcha.
Quando ele olha para mim, seus olhos são pretos. Brutal. O ar frio morde
minha pele e meus pulmões se contraem. —Não. — Ele diz com uma voz que
eu só ouvi uma vez antes.
Aquela voz tão gelada e afiada como um rio no inverno, em que eu
poderia me afogar. Voz de Kadamach. A voz do rei Unseelie.
Eu não me mexo. Eu nem pisco. —Eu não perguntaria isso se não fosse
importante. Você sabe disso. Não quando se trata dela.
—Eu disse não. — Suas palavras são um aviso perigoso.
Não me faça usar meus poderes contra você. —Sua ancestral era a consorte
da Morrigan. — Eu digo. —Eu preciso do sangue dela para encontrar o livro.
—Então pegue o sangue dela. Escorra-a, por tudo que eu me importo. —
Eu odeio essa voz. Eu odeio o jeito que rola sobre mim, me faz tremer de pavor.
—Mas ela fica onde está.
Engulo em seco, com medo de perguntar. —Onde você a colocou,
MacKay?
O sorriso de Kiaran me arrepia a espinha. —Exatamente onde ela
pertence. Ela é onde eu deveria tê-la guardado dois mil anos atrás, e ela merece
cada segundo disso.
O ar é tão brutalmente gelado que dói. Eu posso sentir meu poder se
rebelando, exigindo se defender. Mas eu mantenho o controle. Eu abraço a dor
porque sei com que facilidade eu poderia me perder por causa disso - e quão
facilmente Kiaran poderia fazer o mesmo. No momento, seus poderes mal
estão contidos. Seus olhos tornaram-se tão duros e escuros quanto obsidiana,
sem emoção. Inflexível.
Como se Kiaran sentisse meu poder se agitar, o próprio dele se eleva em
resposta. Sombras se reúnem no chão aos seus pés. Minha pele está coberta por
uma fina camada de gelo, tão pálida do frio que é quase azul.
—Pare com isso. — Eu sussurro. —Eu não quero te machucar.
Eu vejo o momento em que minhas palavras são absorvidas. Kiaran se
encolhe, se virando. De repente, a temperatura aumenta - tão rápido que minha
pele arde com o calor. As sombras recuam para o chão e o prado parece como
antes: tão acolhedor quanto uma manhã de verão.
—Vamos discutir sobre Sorcha mais tarde. — Eu ouço a tensão em sua
voz. Suas juntas estão brancas em volta da escova. —Eu preciso ir. Não fique
no meu caminho.
—Ajude-me a entender. Quanto mais tempo você passa entre a
alimentação, pior fica?
Kiaran joga a escova no chão e agarra a sela. Seus movimentos são rígidos
quando ele o posiciona no cavalo e o prende no lugar. —Você não me
reconheceria no meu pior. Não quero que você me veja assim.
Assim que ele está prestes a entrar na sela, eu me movo para detê-lo, mas
ele se afasta do meu toque. Eu largo minha mão. —Quantas pessoas você
caçará antes de decidir que está preparado para encontrar o livro? Hm? — Seus
dedos apertam a sela, mas ele não responde. — Quantas pessoas você está me
pedindo para deixar você matar, MacKay?
—Eu não estou-
—Você está. — Eu digo entre dentes. —Eu os vi. Você pode não parar o
coração deles, mas tira a vida deles. O que você faz com eles é pior que a morte.
Quanto?
Kiaran desvia o olhar, mas não antes que eu veja sua expressão.
Vergonha. Culpa. Arrependimento. Ele não responde, nem mesmo quando eu
coloco minha mão sobre a dele. —Você não precisa fazer isso. Quando
encontrarmos o livro, vamos usá-lo para quebrar essa maldição.
Sua risada é dura, amarga. —Você acha que isso importa para mim? Eu
estava pronto para matar Aithinne e acabar com isso. Você viu o mapa na
minha mesa. Então você voltou e me disse que eu estava prestes a te perder de
novo. — Desta vez, quando seus olhos encontram os meus, eles são tão
sombrios que quase não consigo suportar olhar para ele. —Você está
perguntando quantas pessoas estou preparado para matar? A resposta é
quantas forem necessárias. De quantas forem necessárias para salvá-la.
Eu dou um passo para trás. —Não ouse dizer que está fazendo isso por
mim. Não coloque isso em mim, MacKay.
—Você não sabe o que está perguntando. Você quer que eu vá com você
para encontrar este livro e eu mal posso ficar ao seu lado agora.
—Por que...
—Porque eu não confio em mim mesmo com você. — Ele retruca.
Quando ele olha para mim, o lilás de seus olhos está quase completamente
envolvido. —Você ainda é humana — Ele diz em voz baixa. — E meu controle
não é ilimitado. Preciso lembrá-la do que aconteceu com a última mulher que
confiou em mim para não machucá-la?
UEu calei minha boca. Catríona. A Falcoeira por quem ele se apaixonou
milhares de anos atrás. Ele parou de se alimentar de humanos e não conseguiu
parar de matá-la.
Desta vez, quando Kiaran se aproxima, seu toque é frio. Brutalmente. —
Devo lhe dizer a verdade? No que não consegui parar de pensar desde ontem?
— Seus dedos roçam a artéria no meu pescoço. —Como quando eu te beijo lá,
eu posso sentir seu sangue se movendo em suas veias. Eu podia sentir o poder
dentro de você. Corre daqui — Pressiona uma palma fria no meu peito. — até
aqui. — O toque de Kiaran segue lentamente meus braços até as pontas dos
dedos. Fecho os olhos com o arrepio que corre através de mim. —E deve ser
um impedimento, mas não é. Você só queima mais brilhante. — Então ele
mergulha a cabeça e pressiona os lábios na minha garganta. Indiferentemente,
ele sussurra: —Aqui. Eu te morderia aqui.
Quando seus dentes arranham o comprimento do meu pescoço, eu
congelo.
Não. Por favor não. Isso não.
Com um som suave, Kiaran se afasta abruptamente. —E é por isso que
não confio em mim mesmo com você. É por isso que eu preciso ir.
Estendo a mão para segurar sua mão, percebendo como seus olhos
escurecem um pouco. Não como antes, mas apenas o suficiente para me dizer
que preciso tomar cuidado.
—Quando vi suas vítimas humanas no chalé—, digo. —Aithinne disse
que não sabia mais se você era meu Kiaran MacKay.
Aí está, o lampejo de culpa em seu olhar. Tão rápido que quase perco. Eu
continuo, sabendo que estou certa desta vez. —Pensei nos seus presentes.
Como você costumava fazer com que seu sluagh entregasse os corpos das
Falcoeiras para Aithinne. E eu pensei que ela estivesse certa. Eu pensei que
você poderia estar atormentando-a novamente como costumava fazer.
—Bom. — Ele diz friamente. —É mais fácil assim.
Eu levanto minha mão para tocar seu rosto. —Mas então me lembrei da
única vez em que você sentiu culpa, quando matou Catríona, você a entregou.
Você é quem leva aqueles humanos para o acampamento de Aithinne, não é?
Porque ela não é a pessoa que você está atormentando. Você está se
atormentando, eu acho. Você está. — Como se ele lesse minha mente, ele não
disse nada. Mas percebo como seu olhar se suaviza. Porque ele ainda é meu
Kiaran MacKay. Ele é. —Não faça isso para me salvar, MacKay. Não quando
você é quem me ensinou que eu preciso me salvar.
—Kam. — Ele sussurra.
Eu continuo, porque sei que só tenho segundos para fazê-lo ouvir. —
Quando você fez isso, você me ensinou a suportar. — Eu digo baixinho. —
Estou pedindo para você fazer o mesmo. Estou pedindo que você seja mais
forte que sua maldição.
Desta vez, quando ele olha para mim, eu sei que ele tomou sua decisão.
—Então eu preciso que você me faça uma promessa antes de fazer qualquer
outra coisa. Antes de te levar para Sorcha.
Eu engulo. —Tudo certo.
—Se eu for com você e me tornar alguém que você não reconhece, não
me deixe machucá-la. Deixe-me para trás se for necessário. — Quando eu
hesito, ele diz novamente. —Prometa-me.
Então faço algo que nunca fiz durante todo o tempo que conheci Kiaran:
minto na cara dele. —Eu prometo.
Eu mal passei pela porta onde Kiaran está mantendo Sorcha antes que eu
tenha vontade de correr na outra direção. Agora eu entendo o que Kiaran quis
dizer quando disse que Sorcha estava exatamente onde ela pertence. Por que
ele não disse que ela estava pagando pelas coisas que fez?
Desde meu tempo em Sìth-bhrùth, eu me familiarizei com os métodos
criativos de prisão das fadas. Elas empregam poder contra suas vítimas. Tudo
o que elas fazem tem o objetivo de destruí-las aos poucos a cada dia, a cada
hora, a cada segundo. Elas fazem você decidir o que é mais fácil: morte ou
entregar sua alma.
—O que diabos é isso? — Eu murmuro para mim mesma.
A prisão de Sorcha é uma encruzilhada à noite. Ela está acorrentada entre
duas árvores, uma de cada lado da estrada, e os grilhões são tão apertados que
seu corpo está espalhado e quase todo imóvel. As árvores se inclinam em sua
direção, como se a prendessem. Os aromas combinados quase me fazem
tampar meu nariz. Ferro. Carne. Algo queimando.
Ela parece tão quebrada.
Ao longo dos braços e pernas de Sorcha há longos cortes irregulares que
escorrem por sua pele pálida e caem no chão - onde uma poça de sangue se
acumula tão profundamente em uma marca que a cobre até os tornozelos.
Eu ficaria satisfeita em ver Sorcha sofrer - do jeito que ela fez minha mãe
sofrer quando arrancou seu coração e a deixou morrer na rua. Eu poderia ter,
uma vez, nos meses após a morte de minha mãe, quando eu não me importava
com nada além de vingança. Que Aileana não teria dado a mínima para
compaixão. Não para Sorcha.
Mas agora...
Talvez fossem os dias semanas ou anos que Lonnrach teve comigo.
Desamparada. Quando ele me manteve na sala espelhada, ele me torturou
assim, com controle e isolamento. Um castigo para caber nos meus crimes. Eu
havia passado um ano caçando as fadas e, no meu tempo com ele, eu não era
mais a caçadora. Eu era a presa. Ele garantiu que eu nunca esquecesse isso.
As palavras de Lonnrach ecoam em minha mente, uma terrível
lembrança dos meus piores dias. Agora você sabe exatamente como estar tão
desamparada.
Ninguém merece estar sob o controle completo de outra pessoa, incapaz
de revidar, mesmo que quisesse.
Talvez eu tenha ficado mole demais. Talvez eu esteja cansada da morte.
Talvez seja a compaixão que nos separa dos monstros. Isso me faz melhor do
que elas ou me faz de boba?
—Kam? — O toque de Kiaran é leve no meu braço, mas eu me afasto.
Como se ele lesse meus pensamentos, seu olhar escureceu. —Não me olhe
assim.
—Você vem aqui apenas para... — fazê-la sangrar? Como Lonnrach fez
quando me visitou?
Algumas punições são tão terríveis que estão além da justificação. Mas
as fadas operam sob um código moral que pouco reflete na empatia.
Especialmente quando essa fada é o rei Unseelie.
—Eu tenho muitas falhas — Diz Kiaran em uma voz dura. —Mas eu não
torturo por diversão.
—Você fez uma vez.
Como você amou. Como você viveu por isso. Porque você acreditava que
a emoção era uma fraqueza.
Sua expressão se fecha. —Se eu chegar a esse ponto novamente — Ele
olha de relance para mim. — é quando você saberá que eu fui embora. — Ele
gesticula para Sorcha com um aceno de cabeça. —Essas são as memórias dela.
Sua tortura é auto infligida.
—Suas memórias?
—Foi isso que ela fez com as pessoas quando as atraiu a encruzilhadas à
noite. — Kiaran se inclina contra o batente da porta, suas feições sombreadas
ao luar. —As correntes são imersas em água com infusão de seilgflùr, para que
seus poderes sejam ligados. O poder aqui a força a suportar a morte daqueles
que ela matou. É considerado um castigo justo.
Uma brisa pega, farfalhando suavemente as árvores que alinham a
estrada, e o leve cheiro de sangue chega até mim. As correntes de Sorcha
tilintam suavemente, um som estranho.
Ela ainda não olhou para cima.
Não percebo que recuei até esbarrar em Kiaran. —Você me acha cruel. —
Quando eu não respondo, ele diz: —Foi o que ela fez por milhares de anos com
a sua espécie. Toda noite. Ela não merece nenhuma piedade.
—E o que você fez? — Não posso deixar de perguntar. Ele pode usar a
penitência de sua morte na pele, mas não é nada disso. —Qual foi o seu castigo?
Ele está ilegível, frustrantemente. Eu odeio quando não posso dizer o que
ele está pensando.
Kiaran tira a mão do meu braço. —Eu dei meu coração a uma humana.
— Ele se afasta antes que eu possa responder.
Depois de um momento de hesitação, eu sigo.
Sorcha nem sequer olha quando nos aproximamos. Seu cabelo escuro
brilha ao luar, caindo até os quadris. Esconde o rosto dela como uma mortalha.
Ela usa um vestido preto fino que a cobre dos pulsos aos tornozelos, como algo
que uma mulher usaria para um funeral. Ela parece tão pequena assim; os
ombros estão curvados para a frente, as mãos penduradas sem peso. As
correntes são a única coisa que a mantém na posição vertical.
É uma visão tão macabra que outro choque de pena passa por mim. Isso
só cresce quando nos aproximamos e suas respirações curtas e sibilantes
enchem meus ouvidos. Estremeço quando as ouço.
Eu odeio esse som.
São as exalações rápidas e ofegantes de um animal com tanta agonia que
é tudo em que conseguem pensar. Se eu tivesse ouvido isso durante uma
caçada, teria matado a criatura rapidamente. Teria sido a coisa certa a fazer.
Teria sido uma misericórdia.
Eu conheço essa dor em primeira mão. Eu respirava assim depois dos
interrogatórios de Lonnrach.
Paramos na frente dela e, sob a cascata de seus cabelos, vejo os lábios
sangrentos de Sorcha se curvarem em um sorriso. Um que não me engana.
—Você veio se vangloriar, Kadamach? — Sua voz é áspera, como se ela
estivesse gritando. —Ou você simplesmente está aqui para assistir e apreciar
meu castigo? Não sei por que você desistiu de sua coroa. Unseelie combina
com você.
—Você acha que eu gosto disso? — Kiaran parece cansado. —Eu nunca
quis ser seu rei.
—Você queria uma vez. — A risada de Sorcha é mais um sufoco. —Você
estava disposto a matar por isso. O velho você, teria olhado para todo esse
sangue e me dito que era um desperdício. Que eu deveria ter sangrado.
Uma imagem repentina explode em minha mente. Sorcha no pescoço da
minha mãe, dentes enterrados na pele. Ela se afastando, os lábios cobertos pelo
sangue da minha mãe. Marcava sua pele pálida tão severamente quanto o óleo
sobre a porcelana.
Não consigo segurar o som que escapa da minha garganta.
Sorcha levanta o rosto e seus olhos se estreitam através do véu de seus
profundos cabelos negros. Então ela joga a cabeça para trás e ri, um ruído
gutural que ecoa na noite, meio enlouquecido.
—Para uma humana, você não sabe como ficar morta, sabe? — O sorriso
dela corta através de mim como uma lâmina. —Eu deveria ter cortado seu
coração e comido. Como eu fiz com a sua mãe.
Estou impressionada com as lembranças de tudo o que Sorcha já fez. A
noite em que ela matou minha mãe. A dor dela enfiando uma espada no meu
peito. O rangido e feio arranhão de metal através dos tendões, músculos e ossos
do meu corpo para atingir o coração. E Kiaran olhando para mim através de
tudo. Ela tirou dele a única escolha que ele havia feito para si: não ser rei.
Meus pensamentos devem ser tão claros; Sorcha apenas ri mais, uma
risada arrogante e zombeteira que diz: Eu não sinto por você. Eu não ligo para
você. Eu sou implacável.
—Você estava certa. — Digo a Kiaran firmemente. —Ela merece isso.
A risada áspera de Sorcha é auto-satisfeita. —Oh, não me diga — Diz ela.
—Você me viu pendurada aqui e sentiu pena de mim. Que doce.
—Um lapso momentâneo na memória, julgamento e sanidade que não
acontecerá novamente.
—Ela é uma pequena humana tão boba, Kadamach. E aqui eu pensei que
você preferia seus animais de estimação em silêncio.
—Eles nunca ficaram em silêncio — Responde Kiaran casualmente. —
Você não podia ouvi-los sobre o barulho constante vindo de sua armadilha
aberta.
—Talvez não fique em silêncio, então. — Diz ela com um sorriso doce. —
Mas sempre de joelhos.
Dou um passo afiado em direção a ela, mas Kiaran me para com uma
mão restritiva no meu ombro. Ele voltou ao calmo e prático Kiaran. Sou grata
por isso, pelo menos. Especialmente agora que estamos na pior situação
possível.
Kiaran se inclina, virando a cabeça para que Sorcha não possa ouvi-lo ou
ler seus lábios. —Ela está tentando te irritar. Sorcha não responde bem à pena.
—O que você sugeriria?
Ele coloca um dedo embaixo do meu queixo, então sou forçada a
encontrar seus olhos. Não posso deixar de estremecer. Essas lindas íris lilás
nunca mais serão como eram antes. Nunca serão tão claras. Elas são um
lembrete de que o Unseelie dentro dele está sempre lá, mal contido. —Não
deixe ela ver suas fraquezas. Descubra o que ela quer.
Aperto minha mandíbula e olho para Sorcha para encontrá-la nos
observando com interesse descarado. —Quão suave você se tornou,
Kadamach. Conversando com seu animal de estimação como se fosse um igual.
Ela deveria estar rastejando aos seus pés como o animal inútil que ela é. — Seu
olhar me arrasta. —A menos que ela esteja um passo acima de um animal de
estimação. O que a tornaria sua prostituta.
A mão de Kiaran agarra a minha em uma mensagem silenciosa: não
dignifique isso com uma resposta.
Aperto sua mão e a libero para dar um passo em sua direção. Sorcha
levanta o queixo, como se estivesse esperando um golpe que não chegaria.
—Você comete o erro de me definir por sua propriedade — Eu digo
baixinho. —Você não parece entender que ele é meu tanto quanto eu sou dele.
Sorcha solta seu sorriso arrogante apenas o tempo suficiente para eu ver
algo vulnerável em sua expressão. Algo que anseia por ele.
Como se ela percebesse o que quase me mostrou, ela aperta o queixo. —
Existe uma razão para você estar aqui, Falcoeira? A menos que você tenha
triunfado sobre minha miséria. Deixe-me assegurar-lhe: prefiro ser torturada
aqui por mil anos do que ouvi-la por outro momento.
—O Livro da Lembrança. — Eu digo, a voz tensa. —Diga-me como
encontrá-lo sem o comentário cínico habitual. Agora.
Sorcha fica parada, como se estivesse surpresa com a pergunta. Se eu não
estivesse observando a resposta dela, eu poderia não ter notado a emoção
fugaz em seus olhos. Mesmo assim, foi tão rápido que me pergunto se
imaginei.
Sua armadura de indiferença presunçosa está firmemente de volta no
lugar. —Oh. Isso — Ela diz, no mesmo tom casual que alguém pode usar para
dizer: “Oh, aquela coisa velha.” Eu entendo que foi perdido há muito tempo.
— Seu sorriso lento é, sem dúvida, deliberadamente destinado a me irritar. —
Mas eu posso ser persuadida a ajudá-la a encontrá-lo. Pelo preço certo, é claro.
Vou te despedaçar membro a membro e fazer você me ajudar.
Talvez quando a Cailleach reviveu meus ossos e me deu seu poder, um
pequeno pedaço dela viveu dentro de mim. Ou talvez ela me fizesse menos
humana e mais fada. Essa é a única explicação que tenho para o que faço a
seguir: agarro Sorcha pela garganta e aperto até saber que ela não consegue
respirar.
Atrás de mim, sinto Kiaran se aproximar. —Kam -
—Não. — Digo bruscamente, sem desviar o olhar de Sorcha. —Estamos
ficando sem tempo e opções, e estou perdendo a paciência. Você disse para
descobrir o que ela quer. Então deixe-me fazer isso.
É a minha vez de sorrir presunçosamente. É a minha vez de ter o poder.
É a minha vez.
—Fazer o que? — Eu posso ouvir a incerteza em sua voz.
Desta vez, quando meu poder deixa sua gaiola e a escuridão me domina,
deixo que me consuma. Deixei lavar minhas emoções, minhas preocupações,
minhas aflições. Eu deixei levar minha compaixão também. Se a compaixão é
para os humanos, a brutalidade é para as fadas.
E eu sou os dois.
Meus olhos encontram os de Sorcha. —Nada que ela ainda não tenha
feito comigo.
Eu sei que Sorcha meu pode engrossar no ar, agudo como a eletricidade.
Emite o fedor inebriante de ferro e ozônio.
Ela tem medo de mim. Eu vejo nos olhos dela; Eu posso provar. Bom.
Quando toco meus dedos em sua têmpora, ela luta, como se soubesse o
que estou prestes a fazer. Sua garganta convulsiona em meu aperto enquanto
ela engasga, cutucando algo humano em mim. Algo que me obriga a lembrar
as palavras duras de Derrick para mim na floresta.
A amiga que eu conhecia teve alguém que invadiu sua mente, dia após dia,
durante meses. Se você fosse ela, nunca faria isso com ninguém.
Eu não posso mais ser Aileana. Não posso ser ela e encontrar o livro. Não
posso favorecer minha humanidade quando meu reino está desmoronando em
pó e tantas vidas estão em risco. A compaixão não vai me ajudar agora - Sorcha
não dá a mínima para piedade. Ela usaria isso contra mim.
Uma parte de mim ainda duvida. Faça isso e não há como voltar atrás. Você
será a criatura sombria que Derrick viu na floresta, e desta vez não terá desculpas. Suas
memórias estão intactas. Faça isso, e você não é melhor que ela. Não é melhor que
Lonnrach.
Sorcha olha para mim e vejo o quanto ela me odeia. Eu tomo minha
decisão. Que assim seja.
Eu rasgo em sua mente como uma espada rasgando carne. Ela está tão
surpresa que não apresenta resistência. Eu pego os primeiros vislumbres de
cores em seus pensamentos, semelhantes aos de Derrick. Somente as dela são
todas com bordas vermelhas e afiadas, galhos espinhosos de hera que cobrem
suas memórias em um escudo protetor.
Sorcha se recupera de seu choque inicial e sua mente bate na minha. Ela
me empurra com tanta força que vejo estrelas debaixo das minhas pálpebras.
Eu cerro os dentes. Seu poder é um ataque de dentes e garras contra mim.
Você terá que me matar primeiro, ela está pensando. Você terá que matar
Kadamach.
O ataque ao poder dela é tremendo - mas não é páreo para o meu. Eu
passo através, vislumbrando as memórias além dos espinhos. Eu posso ver as
margens externas delas - imagens que piscam tão rapidamente que não consigo
acompanhar.
Ela luta novamente, frenética agora. Desesperada. Não.
Meus dedos apertam sua garganta. Renda-se, penso nela. Essa voz
interior é tão dura e fria quanto qualquer fada. Eu pareço poderosa. Eu pareço
a Cailleach.
Eu me enfio em sua mente novamente, assim como minhas unhas
rompem sua pele. Eu disse renda-se.
As lutas de Sorcha se tornam mais fracas agora, suas defesas se
enfraquecem. Não posso evitar a pequena onda de triunfo que ela finalmente
está desamparada contra mim. Finalmente. Finalmente.
Não, penso comigo mesma quando a repulsa dá um nó no estômago. Não
fique tão parecida com Lonnrach que esqueça por que está fazendo isso.
Eu me concentro na minha tarefa: encontrar informações. Assim como
Derrick, minha mente humana não consegue compreender o fluxo de imagens
que compõem o período das experiências de Sorcha. Existem milhares de anos
de pensamentos, eventos e emoções para filtrar. Cada um está perfeitamente
intacto, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Como se o tempo fosse diferente
para ela, sem sentido.
Quando Lonnrach fez isso, ele examinou minhas memórias com cuidado
e precisão, como se estivesse passando uma linha por uma agulha. Eu tento
sua tática de evocar memórias, persuadi-las do fluxo de imagens com base
especificamente no que eu quero.
O livro da lembrança. Mostre-me o que ela não quer que eu veja. Mostre-
me. Mostre-me.
Sorcha usa a última gota de sua força para resistir e me enviar em outra
direção, mas eu me mantenho firme. Dobro-a à minha vontade. Seus últimos
vestígios de determinação desaparecem sob a força do meu comando, meu
poder. Eu sinto seu corpo afrouxar em suas correntes e afrouxo meu aperto em
sua garganta.
Sua mente se abre e eu entro em sua memória.
Estou de pé em um vale logo após o crepúsculo, ao lado de uma árvore
que alcança o céu com galhos nus e afiados. O perfume bonito e fresco das
flores da primavera está perfumando o ar. Gotas de água se acumularam ao
longo da casca, sinais de chuva recente. Gravado na árvore está um símbolo de
fada que eu nunca vi antes. Quando estendo a mão para tocá-lo, meus dedos
atravessam o tronco.
Pode parecer real, mas é apenas uma memória - tão perfeitamente intacta
que posso ver cada sulco na casca.
Sorcha está ao meu lado e eu estou chocada com a aparência dela. O que
há de errado com ela?
Ela parece doentia e magra demais. Sob o brilho da pele, ela tem um
rubor febril nas bochechas. O suor brilha ao longo de sua testa e sua mão treme
quando ela empurra o cabelo para trás. Seus olhos estão cheios de
profundidades de emoção que nunca vi dela. Desespero?
Eu estremeço com a voz de Lonnrach atrás de mim. —Eu não posso ir
com você.
Eu me viro, esperando o mesmo olhar severo que eu tinha visto tanto
enquanto ele me mantinha prisioneira. Mas, como Sorcha, ele não se parece
com o Lonnrach que eu conheci. Não é a fada fria que me mordeu todos os dias
apenas para ler minhas memórias e descobrir meus segredos.
Ao contrário de sua irmã, a pele de Lonnrach está surpreendentemente
bonita, brilhando ao luar. Seus cabelos claros estão presos na nuca, os fios
brancos como sal brilhando em uma auréola ao redor do alto da cabeça.
Como ele considera sua irmã, a expressão de Lonnrach é severa, mas
simpática. Estou surpresa com o quão aberto ele é, como legível. Ele muitas
vezes tentava esconder seus sentimentos de mim na sala espelhada,
especialmente quando ele procurava em minha mente. Às vezes, quando ele
reunia lembranças minhas e de minha mãe, acho que sentia pena de mim.
Aqueles vislumbres de seu verdadeiro eu sempre foram ofuscados pelo que
ele fez comigo e com Aithinne.
Mas nesta memória... seus olhos não são os mesmos cansados da batalha
que se apossavam de mim com desdém todos os dias entre suas sessões de
tortura.
A mente de Sorcha me diz o porquê: isso aconteceu antes que Lonnrach
fosse preso. Antes de ambos os reinos caírem. Antes de Kiaran matar sua
Falcoeira e desistir de seu trono.
—Bheil thu eagal 1? — A pergunta de Sorcha é provocadora. Ao olhar
repentino e afiado de Lonnrach, ela sorri. —Então você está com medo. É
apenas um livro.
—Bi sàmhach 2— Dolta Lonnrach. Ele olha em volta, como se esperasse
ser atacado. Com a risada de Sorcha, Lonnrach faz uma careta. —Ouvi dizer
que a Cailleach nunca realmente matou a Morrigan. É melhor que ela não esteja
presa lá.
—Oh pare com isso. Essas histórias são para crianças. — Sorcha acena
com a mão com desdém. —Mesmo que fossem verdadeiras, a Morrigan estava
enfraquecida. Enquanto presa, ela está...
—Ainda mais forte que você — Interrompe Lonnrach. —Você não tem
ideia do que está se metendo.
—Se você está tão preocupado, então venha comigo. — Ela soa
provocadora novamente, mas eu ouço a sugestão de preocupação sob suas
palavras. Eu posso sentir pelos pensamentos dela que ela precisa do Livro, não
apenas para possuí-lo pelo poder.
Por que então?
—Prometi ajudá-la a encontrar o portal. Agora eu ajudei — Ele diz. —Se
eu for com você, minha rainha...
—Executaria você por sua traição. — Os lábios dela se curvam com nojo.
Então ela odiava Aithinne mesmo assim. —Eu sei. Você me disse.
Lonnrach olha para a árvore por um momento, como se estivesse tentado
a ajudá-la, mesmo com o risco de morte. —Talvez você devesse deixá-lo
morrer. — Diz Lonnrach, sua voz tão baixa que eu mal o ouço.
3 Meu querido
4 Já chega
—Encontrar o livro não vai mudar nada. — As palavras de Lonnrach são
surpreendentemente gentis. Ele alcança o braço dela, como se a fizesse
entender. —Ele não vai te amar de volta. Você entende isso?
Sorcha endurece, mas ela não se afasta. —Ele é meu rei. Não é o que eu
pedi.
Sorcha fica em silêncio por mais tempo. Emoções flutuam em seu rosto:
tristeza, incerteza e, finalmente, saudade. Como se ela já o tivesse perdido. Eu
não sabia que ela sentia tanto por Kiaran.
—Eu entendo. — Ela sussurra. —Ele vale tudo.
Lonnrach a encara com descrença - e quando a expressão dela confirma
a verdade de suas palavras, ele faz uma careta.
Então, nos pensamentos profundos e persistentes dessa memória, ouço
isso com tanta clareza: não faço promessas a menos que me refira às palavras.
Eu quase saio de sua mente com uma maldição surpresa. Sorcha nunca
contou a Lonnrach sobre a promessa que fez a Kiaran, aquela que entrelaçou
suas vidas. Kiaran disse uma vez que era uma promessa que as fadas faziam
com seus consortes, mas talvez isso tenha sido apenas no Reino Unseelie.
Eu assumi que ela fez sua promessa pelas razões que Kiaran tinha, por
obrigação ou tradição. Mas ela não tinha - ela quis dizer isso com cada pedaço
de sua alma.
Sorcha amava Kiaran. Ela o amou uma vez do jeito que eu o amo. Ele
irradia em sua memória, pura e imaculada.
Não é à toa que ela olhava para Kiaran e para mim do jeito que ela olhava;
doía para ela nos ver assim. Não é à toa que Sorcha traiu Lonnrach durante a
batalha sobre o cristal.
Ela escolheu Kiaran ao invés de seu próprio irmão. Porque ela ainda o
ama. Eu sempre assumi que o que ela sentia por ele não era real. Eu estava
errada - talvez seja isso que milhares de anos de afeição não correspondida,
tragédia e guerra façam para amar. Elas destroem isso. Elas o transformam em
algo sombrio, feio e corrompido.
—Você não pode realmente dizer isso. — Diz Lonnrach.
—Sim —, ela diz a Lonnrach com firmeza. —Mas não precisa ser apenas
sobre mim. Se encontrarmos o livro, podemos usá-lo para acabar com a guerra.
Simples.
—E então o que? — A voz de Lonnrach é frágil. —Você acha que Aithinne
e Kadamach governarão felizes, lado a lado? Que os tribunais podem esquecer
milhares de anos de abate e viver em paz juntos?
—Tem que começar por algum lugar. Por que não pode começar
conosco? — Sua expressão é suplicante. — Não me abandone, Lonnrach. Faça
isso comigo e eu vou te perdoar por tudo.
Eu vou te perdoar por tudo. O que isso significa? Lonnrach olha para os
galhos da árvore e, por um momento, acho que ele dirá que sim. Eu posso ver
suas feições se abrandando, os primeiros sinais de cansaço de batalha que vi
quando estava na prisão espelhada estão lá, deixados por séculos de guerra
amarga entre seus reinos.
Mas então Sorcha sussurra: —Ajude-me a salvar os dois.
—Não. — Lonnrach recua. —Você não quer salvar os dois, quer que eu
o salve. E eu não vou ajudá-lo a viver. Não trairei minha rainha e minha corte,
especialmente não por... — Ele fecha a boca.
—Pelo quê? — Os olhos de Sorcha escurecem. —Um imundo Unseelie?
Assim como nossa mãe.
Sua respiração é sutil, mas perceptível. Quando ele fala novamente, é por
entre os dentes. —É assim, Sorcha. Não podemos mudar isso.
—Você não quer mudar isso. — Ela assobia. —Eu deveria saber disso
quando você me deu as costas pela primeira vez. Você vai se arrepender disso.
—Eu duvido.
—Eu vou fazer você se arrepender disso.
—Sorcha-
—Honrado cavaleiro — Ela zomba. — Escravizado à sua amada rainha.
Espero libertá-la da maldição e salvar sua vida, apenas para ver Kadamach
arrancar seu coração de qualquer maneira. — Seus dentes pontudos brilham
no sorriso que conheço muito bem. —E quando ele o fizer, eu implorarei que
ele poupe você. Para que você saiba, pelo resto de sua eterna vida patética, que
foi seu senso de dever equivocado que a matou.
—Se você não fosse minha irmã — Lonnrach rosna. —Eu te mataria por
isso.
Sorcha pisca os dentes em um rosnado. —E se você não fosse meu irmão,
eu teria matado você depois que você me mostrou como encontrar o portal. —
Ela se aproxima. —Não, há muito tempo. Eu deveria ter te caçado e matado
quando ganhei minha liberdade.
Ganhei minha liberdade. Algo deve ter acontecido no passado deles. Algo
horrível. Algo irreconciliável. Ela não estava livre?
A vacilada de Lonnrach é tão rápida que mal a pego. —Você vai morrer
lá. — Diz ele sem rodeios.
—Melhor morrer lá do que estar como você. — Ela puxa sua lâmina, mas
a mantém ao seu lado. —Você é um covarde chorão e irracional. Desta vez, não
vou esquecer. — Então ela corta a pele da palma da mão e bate com a mão no
tronco da árvore.
Antes que eu possa ver o que acontece a seguir, Sorcha me surpreende
recuando e batendo na minha mente. A força é tão forte que eu grito e
cambaleio de volta, arrancada dos pensamentos de Sorcha.
Quando abro os olhos, estou de joelhos na estrada de terra.
Eu toco na umidade que escorre do meu nariz aos lábios. Sangue. A voz
castigadora de Aithinne surge em minha mente. Você terá que ter mais cuidado
ao procurar o livro. Use seus poderes com moderação.
—Kam? Você está bem?
Kiaran se ajoelha ao meu lado e passo a manga no nariz antes que ele
possa ver. —Tudo bem. — Eu digo, acenando para ele me deixar. Não quero
que Sorcha o veja me ajudar.
Ela foi em busca do livro para salvá-lo.
—Nighean na galla 5— Ela retruca, cuspindo no chão. —Espero que doa.
Jamais esquecerei a sensação da sua pequena e nojenta mente humana...
—Ah, você não gostou disso? — Eu cruzo meus braços. —Uma coisa
terrível, não é? Ter alguém na sua cabeça, manipular seus pensamentos.
Sorcha rosna. —Quaisquer que sejam os poderes emprestados que você
estiver usando, não o use, garotinha. Deixe-me sair dessas correntes e te
alimentarei por dentro antes que eu te mate...
Meus poderes a cortam e sua sentença morre em um estrangulamento
ilegível. O aviso de Aithinne não tem chance contra a maré crescente de
escuridão dentro de mim, exigindo ser liberado. Exigindo derramamento de
sangue. Exigindo lutar.
Só um pouco de dor.
5 Filha da puta
Torço meus dedos para cortar o ar dela. Meu poder desliza pelas minhas
veias, pronto para matar.
Só mais um pouco-
Kiaran agarra meu ombro. —Pare.
Eu o sacudo. —Eu nunca vou esquecer a espada dela. — Minhas mãos
fecham e sangue sai da boca de Sorcha. —Parecia assim.
—Kam. — Kiaran me vira para encará-lo. Suas mãos estão em ambos os
lados do meu rosto, sua voz suave. —Olhe para mim. Olhe para mim. — Ele
fala através da escuridão para algo humano em mim.
—Ela foi encontrar o livro, MacKay. Ela sabe onde está o portal. — Não
posso evitar o poder da minha voz, o tom baixo e perigoso que não soa mais
como eu. Isso mal soa humano. —Eu posso fazê-la me ajudar.
Eu posso fazê-la fazer qualquer coisa. Eu poderia fazê-la dançar até seus pés
sangrarem. O que eu quiser.
—Não se ela estiver morta.
Meus lábios se curvam. —Eu sei disso.
—Você sabe? Porque você está matando ela — ele me diz, a voz rouca.
—Eu posso sentir isso.
Choque percorre através de mim, apenas clareza suficiente para forçar
meus poderes a recuar. Prendê-los no espaço apertado do meu peito e impedi-
los de derramar novamente.
Sorcha imediatamente engole ar, o peito arfando com o esforço.
Dói demais para manter todo esse poder. Eu sinto como se estivesse
morrendo. Eu estou morrendo. Mas Kiaran está me estudando muito de perto,
então afasto a dor. Eu ignoro a dor. Depois de sua vontade de matar pessoas
para me salvar, não posso dizer a ele que toda vez que uso meus poderes,
morro mais rápido. Não posso arriscar o que ele pode fazer.
Não deixe ele ver.
—Sinto muito. — Digo para ele, balançando a cabeça. —Eu não posso -
me desculpe.
—Você deve se desculpar — Sorcha suspira atrás de nós. Sua voz mal
está acima de um sussurro. —Se havia uma chance de eu estar disposta a ajudá-
la antes, eu retiro. Prefiro ficar aqui por toda a eternidade.
Eu dou um passo ameaçador em direção a ela, mas Kiaran me para. Ele
está olhando Sorcha com um olhar intenso e pensativo. Conheço essa
expressão: ele está tomando uma decisão. Pesando as alternativas. Kiaran é
cuidadoso assim.
É assim que sei que tudo o que ele está prestes a propor é incrivelmente
tolo ou muito perigoso, e provavelmente os dois.
—MacKay-
—Você disse que faria por um preço. — Ele finalmente diz a Sorcha,
evitando o meu olhar. —Diga.
—Não. — Coloquei minha mão no peito dele para empurrá-lo de volta.
—Não se atreva.
Mas a bunda teimosa nem sequer olha para mim. Ele diz a Sorcha: —
Apenas me diga o que você quer.
O sorriso de Sorcha é lento. Corta através de mim mais rápido e mais
dolorosamente do que qualquer lâmina. E quando ela olha para mim com
aquela ponta arrogante e zombeteira de uma presa entre os lábios, eu sei. Eu
sei o que ela está considerando.
O que quer que me machuque mais.
—Ela sabe exatamente o que eu quero — Diz Sorcha naquela voz alegre
e cantante. A dos meus pesadelos. —Você não?
Kiaran. Ela quer Kiaran.
Meus dedos se enrolam em punhos. —Vá para o inferno.
Sorcha ri, um som gutural e sedutor. —Estive lá, fiz isso —Diz ela. —E
eu estou preparada para ir novamente. Por isso, meu preço é alto.
Eu empalideci. E eu estou preparada para ir novamente. Pelo portal. O que ela
experimentou do outro lado?
A Morrigan. A expressão de Sorcha diz tudo. A Morrigan ainda está viva.
Sorcha não espera minha resposta. —Você precisará do meu sangue para
abrir o livro também. Você pode até tê-lo quando o encontrarmos. Mas você,
Kadamach? Você será meu, totalmente e para sempre. Ela nunca mais te verá.
Esses são os meus termos.
Eu a ajudo com um olhar. —Este é um acordo nojento, mesmo para
alguém como você.
—Oh, mas fiquei tão emocionada e inspirada pelas suas palavras
anteriores. — Sua voz melódica está de volta, zombando de mim. —Ele é meu
tanto quanto eu sou dele. Você disse que eu não entendia isso. Agora eu vou,
não vou? Kadamach não será mais seu; ele será meu.
Meu controle está se desgastando nas bordas. A mão restritiva de Kiaran
no meu braço é a única coisa que me impede de quebrar o pescoço de Sorcha.
Então ele desliza os dedos pelo meu braço e pressiona a palma da mão na
minha, um toque calmante.
Ele sussurra no meu ouvido: —Não a deixe ver. Lembra?
Eu tento. Eu tento tanto esconder tudo. O terrível desamparo em espiral
que não sinto desde que perdi minhas memórias está voltando e me puxando
para baixo, para baixo, para baixo novamente.
Os dentes de Sorcha brilham em um sorriso. —O que você diz, Falcoeira?
Salvar o mundo significa mais para você do que seu precioso Kiaran? Quão
desesperadamente você precisa da minha ajuda?
Ela sabe quantas opções temos. E ela está zombando de nós por isso.
Quando Kiaran olha para mim, vejo que ele está realmente considerando
isso. E o pensamento de que ele suportaria uma eternidade ao lado dela me
deixa doente. Estou tão perto de deixar meus poderes assumirem, perto de
machucá-la, matá-la -
—Kam. — A voz de Kiaran, corta a escuridão.
O meu nome. Apenas meu nome. Como se ele estivesse me pedindo para
entender que ele está disposto a se entregar - não, sua alma - a Sorcha para me
salvar.
É tudo o que preciso para recuperar meu foco. Não posso deixá-lo fazer
isso. Não. Kiaran não é uma propriedade. Você não faz alguém te amar por
possuir sua alma.
E Sorcha está fazendo isso porque ela sabe que ele é dono de todos os
pedaços do meu coração.
Ela está fazendo isso porque o ama tanto quanto me odeia.
—Sim, que tal, Kam? — Minhas unhas roem minha palma quando
Sorcha diz meu nome. —Nós temos um acordo?
—Não. — Eu digo entre dentes. —Não, não temos um acordo, porra.
Mas quando os olhos de Kiaran encontram os meus, posso ver que ele já
tomou sua decisão. Ele pesou as opções e nossas alternativas.
E ele decidiu que realmente estamos desesperados.
Quando ele fala, é em voz baixa que mata algo dentro de mim. —Se eu
fizer isso, você concorda com meus termos. Sem saída. Você fará uma
promessa de não prejudicar Kam.
—O mesmo vale para você. Se ela tentar usar o livro para quebrar a
promessa, você morre. Se ela tentar colocar outra marca sobre isso, você morre.
Se ela te ver depois que o encontrarmos, considere a parte da minha promessa
de não machucá-la nula e sem efeito. Você me conhece, Kadamach. Aprendi
minha lição sobre a linguagem das promessas.
Eu olho para ela bruscamente. O que isso significa?
Kiaran assente uma vez. —O livro é de Kam. E nem pense em sair
matando-a, colocando-a em um estado de sono permanente. Sem jogos. Sem
termos distorcidos. — Ele a estuda com um olhar severo. — Também aprendi
minha lição sobre a linguagem das promessas. Com você.
Sua risada é outra espada no meu peito. —Acredite, quero que ela viva
uma vida muito, muito longa. Totalmente consciente de que ela nunca mais o
verá.
Pego a camisa de Kiaran para puxá-lo para longe de Sorcha antes que
algo em mim se encaixe. —Eu preciso falar com você. Agora.
Kiaran me deixa levá-lo longe o suficiente de Sorcha para que eu saiba
que sua audição aprimorada de fada não consiga captar nossas palavras. O
único som entre nós é a brisa farfalhando entre as árvores que ladeavam a
estrada, o distante barulho de um riacho próximo.
Kiaran não diz nada quando paramos; ele apenas me olha com aquela
expressão silenciosa e estoica.
Escondendo seus sentimentos. Escondendo tudo.
Uma vez, era a única maneira que ele olhava para mim. Quando
caçávamos juntos, quando vivi metade da minha vida em segredo. Naquela
época, eu assumi que todas as fadas eram sem emoção, que não eram capazes
de sentimentos. Depois que ele e Aithinne me salvaram da prisão de Lonnrach,
Kiaran ficou diferente. Ele não estava mais reservado. Seu desejo espelhava o
meu.
Mas agora Kiaran esconde suas emoções de mim quando ele sente
demais. Quando ele não quer que eu veja o quanto ele sente.
Pare de tentar me proteger, MacKay.
—O que você está fazendo? — Eu assobio.
Sua expressão não muda e isso me deixa mais irritada. Eu quero ver
emoções dele. Saudade, arrependimento, pesar, culpa - alguma coisa.
—Quais são minhas alternativas, Kam? — Ele pergunta. —A morte de
Aithinne? Sua morte? Sorcha tem a vantagem e ela sabe disso.
—Então vamos caçar Lonnrach.
Os olhos de Kiaran encontram os meus. —Quanto tempo temos antes de
você morrer?
Eu quase cambaleio com a pergunta. —Não fale sobre-
—Não me peça para ignorar — Ele retruca. —Não temos tempo para
encontrar Lonnrach, temos?
Desvio o olhar e balanço minha cabeça. Ele suspira, um som de frustração
e um cansaço profundo que eu entendo muito bem. Eu me pergunto se ele está
pensando em nosso tempo juntos na cama, quando parecia tão fácil esquecer
todo o resto. Se ele estiver tentado a voltar para lá e nos afogarmos novamente.
Eu também estou tentada.
—Ofereça a ela outra coisa. — Eu sussurro. —Qualquer coisa. —
Pressiono minha mão contra seu peito, onde sei que a marca de Sorcha está
escondida sob sua camisa. —Então, quando encontrarmos o livro, você não
ficará mais vinculado pela sua promessa a ela.
—Ela não aceitará outra oferta. Não quando ela sabe que não a
pediríamos se tivéssemos outra escolha.
—Você não é uma posse. — Digo a ele bruscamente. —Só porque você
usa a marca dela não significa que ela é sua.
Com isso, sua expressão suaviza e ele me toca. Seus dedos correm ao
longo do meu braço, traçando até que ele alcança as costas da minha mão. —
Você sabe o que eu mais sinto falta de você, Kam?
Balanço a cabeça. Não me diga agora. Não quando você está pensando em
desistir de sua vida por ela.
Mas ele desliza a mão para segurar minha bochecha e me força a olhar
para ele. —Eu nunca tive que usar sua marca para saber que sempre serei seu.
Então ele está me beijando, seus lábios macios contra os meus. —Um dia,
você contará às pessoas a história do rei das fadas e da garota humana. —
Sussurra Kiaran. —E como ele assistiu de longe enquanto ela vivia vinte mil
dias humanos. E se ela ouvia atentamente durante o inverno, quando o vento
estava frio e as noites eram mais longas, ela podia ouvi-lo sussurrar que ele a
amava tanto que estava disposto a dar a ela o mundo.
Fechei os olhos antes que as lágrimas caíssem. —E se eu não quiser o
mundo? — Pergunto-lhe. —E se eu apenas quiser você?
—Você já me tem. Isso não muda isso. — Outro beijo, e então ele se afasta
e sinto sua ausência como uma dor. —Eu não estou pedindo sua permissão.
Estou lhe dizendo para me deixar ir.
Me deixar ir.
Ele me disse isso antes no campo de batalha em Edimburgo. Eu estava
disposta a fazer isso. Mas agora?
Uma parte de mim deseja que ele não tenha mudado. Que ele tinha
alguma crueldade indiferente que diria a Sorcha que aceitasse o acordo e
queimasse. Mas então ele não seria Kiaran. Ele não seria meu Kiaran.
Não diga as palavras. Depois de dizer as palavras, você o perderá.
Não posso. Todo instinto em mim está gritando. Eu poderia usar meus
poderes. Eu poderia fazê-la mais disposta. Mas toda vez que uso meus
poderes, sei que tenho menos tempo. Menos tempo com ele.
—Kam. — Ele diz suavemente. —Você tem que me deixar ir.
—Eu sei disso. — Eu mal posso falar. —Mas eu não posso ficar aqui e
ouvir enquanto você vende sua alma.
Eu dou as costas para ele e vou embora.
Kiaran me encontra no quarto mais tarde, sentada na grande poltrona de
couro perto da janela. A lareira está em chamas - um pequeno conforto que me
permiti.
Não olho quando ele se aproxima. Observo as ondas do oceano ao redor
da ilha inchar e recuar, inchar e recuar. Eu temporizo minha respiração com o
som, precisando controlar algo. Qualquer coisa. Porque eu sei que, se não
souber, vou sair deste quarto, encontrar Sorcha e colocar uma lâmina nela.
Sinto seu calor diretamente atrás de mim, mas ele não faz nenhum
movimento para me tocar. —Você fez a promessa. — Não é uma pergunta.
Minha voz soa mais calma do que eu sinto. Eu mantenho minha respiração
calma, assim como aquelas ondas do oceano.
—Sim. — Diz Kiaran calmamente.
Minhas unhas picam a pele da palma da mão dolorosamente. —E
Sorcha?
—Ela está descansando. Ela vai nos levar até o portal amanhã.
Fico de pé, lutando para manter meus últimos vestígios de controle. —
Ela não precisa descansar — Eu digo, virando-me para encará-lo. —Vamos
apenas fazer isso.
Quando tento passar por ele, a mão de Kiaran dispara para agarrar meu
braço. —Kam.
Não deixe ele ver. Controle sua respiração. Controle sua expressão. Não
deixe ele ver.
Se eu não sair agora, não poderei segurar minhas lágrimas. No segundo
em que meus olhos encontrarem os dele, isso vai me quebrar. —Solte, MacKay.
— Os primeiros sinais de emoção estão surgindo na minha voz. —Quanto mais
cedo encontrarmos o livro...
—Preciso de uma noite com você.
Eu olho para ele, surpresa ao encontrar sua expressão nua e vulnerável.
Como se ele estivesse me implorando. Fique. Fique comigo.
Uma última noite juntos antes de encontrarmos esse livro e eu perde r
Kiaran, de um jeito ou de outro. Essa promessa que ele fez a Sorcha está em
algum lugar do seu corpo. Ela o marcou. Duas vezes.
—Deixe-me ver. — Eu digo, a voz rouca. —Mostre-me a promessa dela.
—Não. — Ele sussurra. —Não faça isso.
—Mostre-me.
Com a mandíbula pressionada, Kiaran tira o casaco com força e o joga no
chão. Depois a camisa dele.
Eu respiro fundo quando vejo as novas marcas nele.
O torso de Kiaran é um mapa de desenhos de redemoinhos esculpidos
em sua carne e curados em cicatrizes. Aquela que se estende por todas as costas
é a promessa que fez a Catríona, a Falcoeira por quem se apaixonou milhares
de anos atrás: sua promessa de nunca matar seres humanos.
A marca de Sorcha jazia sobre seu coração em uma bagunça de galhos
pontiagudos que se estendiam por sua pele, expandindo-se para o alto de seus
ombros como se quisesse cobrir cada centímetro dele. Como se quisesse
consumi-lo.
E agora conseguiu.
Sua promessa para Sorcha se entrelaçou ao redor e dentro da outra,
através de sua caixa torácica, para cima e para cima em torno da carne
muscular de seus braços e ombros.
Eu ando em volta dele para ver que continua nas costas dele,
desaparecendo sob a cintura da calça, continuando bem alto em direção ao
pescoço, onde ela mergulha sob a linha do cabelo.
Kiaran fica tenso quando eu o toco, mas ele não se move, não diz nada.
Eu tento sentir seus poderes, mas tudo o que posso sentir são os de Sorcha.
Como se ela estivesse envolvida em torno dele, se forçou sob a pele dele.
Isso não é apenas uma promessa: é uma marca de propriedade. Diz: Você
é meu para sempre e nunca vou deixar você ir.
Eu me afasto dele, como se a pele dele queimasse. —Eu vou encontrar
uma maneira de tirar isso de você. — Eu digo firmemente. —O que for preciso.
Antes que eu possa piscar, Kiaran me pega pelos braços e ele está me
beijando. É dolorosamente lento no começo, seus lábios leves, hesitantes. Mas
eu quero mais. Eu o beijo mais forte. Eu coloco tudo o que sinto nele, cada parte
de mim. Tudo o que não posso dizer em palavras.
—Eu sou seu. — Ele diz roucamente contra os meus lábios.
Ele me arrasta contra ele, seus dedos puxando freneticamente a minha
camisa para sentir minha pele por baixo. Afasto-me apenas para deixá-lo
levantar sobre minha cabeça e então suas mãos estão por toda parte, tocando,
acariciando.
—Eu sou seu. — Ele diz novamente.
Seus lábios descem para o meu pescoço, meu ombro. Cada toque queima.
Seus lábios ardem um caminho de calor pelo meu corpo enquanto ele sussurra
essas duas palavras repetidas vezes. Um lembrete. Uma promessa. Uma
promessa para mim, esta marcado em sua alma.
—Sou seu.
Parece que ele está se despedindo.
Kiaran e Sorcha estão esperando na antecâmara do palácio na manhã
seguinte. Suas cabeças estão inclinadas e estão em uma discussão acalorada.
Suas vozes são baixas, urgentes. Ambos olham para cima quando meus passos
ecoam no chão escuro de ônix.
Sorcha está usando um deslumbrante vestido de brocado vermelho e
botas com saltos pontudos, como se estivéssemos a caminho de um baile. Ela
até parece que está usando joias.
Bom Deus, ela está. É um colar elaborado, pingando rubis. Como algo
que a realeza usaria.
—Pretendemos combater um mal antigo ou ir a um baile? — Eu pergunto
quando me aproximo.
O sorriso de Sorcha é lento, preguiçoso. Vitorioso. Diz, tenho tudo o que
quero e não me importo com o que você pensa. —Entro em uma guerra vestida para
o resultado.
Olho para o colar de rubi. Espero que a Morrigan te sufoque com isso.
Sorcha olha para a minha espada e ouço os pensamentos dela: espero que
a Morrigan a apunhale.
Se eu não a odiasse tanto, eu riria. Um dia eu vou te destruir, penso nela. Eu
vou queimar sua vida no chão.
Ela sorri. —Alguém está mal-humorado esta manhã. Você deve estar
bem descansada. Ao contrário de Kadamach, que parece tão perto — Ela
levanta o polegar e o indicador. — De rasgar sua garganta.
Eu balanço minha cabeça. Quando os olhos de Kiaran encontram os
meus, eu quase dou um passo para trás em alarme. A parte negra de suas íris
está ainda mais no lilás. Pior, ele tem um olhar selvagem, uma selvageria mal
contida. Ele está se esforçando para se controlar ao meu redor.
Eu deveria ter percebido isso ontem à noite, quando ele saiu da cama.
Pouco antes do amanhecer, eu o ouvi murmurando algo para mim, a cadência
disso me embalando de volta aos meus sonhos. Ele deu um beijo no meu
ombro, e então pensei ter sentido a leve raspagem de seus dentes contra a
minha pele.
Quando eu me mexi, ele se afastou bruscamente. —Falbh a chadal. — Ele
sussurrou da cabeceira, respirando pesadamente. —Vá dormir.
A cama estava fria depois disso.
Como se estivesse lendo meus pensamentos, Kiaran desvia o olhar.
Sorcha ri. —Ah, então você está se negando por conta dela. Eu deveria ter
adivinhado. Tão nobre. Tão justo. Tão humano.
—É melhor do que ser uma prostituta moralmente falida. — Eu digo.
—Suas necessidades não têm nada a ver com a moralidade, sua menina
ingênua. — Ela revira os olhos e depois estuda as unhas. —Se a Morrigan não
matar você antes de encontrar o Livro, Kadamach provavelmente matará. Ele
não será capaz de se ajudar. Como você acha que o primeiro animal de
estimação morreu?
Kiaran estreita o olhar. —Se você passasse três segundos inteiros sem
dizer algo vil e de coração frio, você morreria no local, não é?
—O que você chama de vil e de coração frio, eu chamo de honesto. —
Sorcha encolhe os ombros. —Você continua me culpando pela morte dela, mas
eu nunca tive que fazer nada. Eu só tive que empurrá-la em um quarto sozinha
com você.
Desta vez, ele pisca os dentes em um assobio e vejo uma ponta de presas
descendo de suas gengivas - até que ele percebe meu suspiro suave. Não posso
esconder completamente minha expressão de desconforto com aquelas presas,
como as que marcaram meus braços, pescoço, ombros, peito. Assim como
aquela mulher no chalé.
—Kam. — Ele sussurra. Então ele fecha a boca.
Balanço a cabeça. —Me desculpe, eu já pedi para você trazê-la para isso.
—Lamento ouvi-la, mas aqui estamos nós.
A risada de Sorcha é melódica, irritante o suficiente para me fazer
estremecer. —Oh, venha agora. Eu pensei que éramos todos amigos.
—Engraçado — Eu digo. —Eu pensei que éramos inimigos amargos.
—Não foi isso que eu disse? — Ela levanta o pulso, onde sua promessa
marca sua pele em uma marca como a de Kiaran. —Agora você tem minha
promessa para ajudá-la a encontrar o Livro, e Kadamach não pertence a mim
até que seja seu. Você não terá que se preocupar comigo esfaqueando você
novamente. Eu diria que isso nos torna ainda melhores que amigas.
—Leve-nos até a porta antes que eu te estrangule. — Diz Kiaran,
apontando para a porta que leva aos corredores labirínticos.
Com uma varredura de seu longo vestido de brocado, Sorcha vai para o
corredor. Assim que Kiaran se vira para segui-la, eu o paro. —Espera. — Na
sua carranca, eu digo: —Estou trazendo Aithinne.
—Oh, uma reunião. — Diz Sorcha, encantada. —Adoro reuniões com
todas as pessoas que tentei matar. É tão catártico, você não acha?
Aperto a ponta do meu nariz. —MacKay? Alguma chance de você
reformular essa promessa de impor silêncio pelo resto de sua vida muito
longa?
Kiaran ignora isso. —Eu não concordei em trazer Aithinne.
—Você também não discordou. Nós nunca discutimos isso.
Kiaran olha para Sorcha, que está nos observando divertida. Ele me pega
pelo braço e me leva para o outro lado da vasta antecâmara para uma aparência
de privacidade. —O pixie. Não Aithinne.
—Se Sorcha está dizendo a verdade sobre a Morrigan, vamos precisar de
sua irmã conosco.
O aperto de Kiaran no meu braço aperta. —Se eu perder o controle lá e
machucá-la, não confio em Aithinne para fazer a escolha certa. Ela é muito
mole, Kam.
Eu franzo a testa. —Que escolha, exatamente?
—Você já prometeu que me deixaria lá.
—Não é disso que você está falando, é? — No seu silêncio, minha voz
diminui. MacKay? Você quer que eu te mate?
—O que for preciso. — Sua voz é um silvo áspero. —O livro é nossa
prioridade. Se tudo se resume a mim ou a descobri-lo, confio em você para
tomar a decisão certa. — Ele me libera. —Minha irmã me escolheria. Ela
sempre escolhe. Às vezes, suspeito que ela deixaria o maldito mundo se
destruir sobre mim.
Não está chegando a isso. Eu nunca vou deixar chegar a isso.
Mas estamos fazendo isso para impedir a maldição de Aithinne também.
Ela deveria estar lá, ao nosso lado. Ela deveria estar lá para nos ajudar a acabar
com tudo. E se eu morrer antes de encontrarmos o Livro, ela terá que reverter
a destruição em nossos reinos. Não tenho certeza de que o Livro possa me
ressuscitar se eu morrer com os poderes da Cailleach, mas pelo menos Aithinne
poderá devolver Catherine, Daniel e Gavin tudo o que eles perderam na
guerra. Eles merecem uma vida melhor que essa.
Eu me afasto dele. —E se o pior acontecer e você me chamar? Então o
que? — Eu abaixo minha voz. —Você espera que eu a subjugue? Eu só superei
você uma vez. E isso foi antes...
Antes de você. Antes de nós. Antes de tudo.
—Se você acha que vou ser mais objetiva que Aithinne — Digo em vez
disso. —Então você é um idiota. E essa não é uma palavra que eu usaria para
descrever você.
Tentei não deixar meus sentimentos por Kiaran me cegar, mas é tarde
demais. Eu já deixei. Ele não sabe que eu faria o que fosse necessário para salvá-
lo? Assim como ele faria por mim? Nenhum de nós é objetivo. Estamos longe
demais.
Em vez disso, tento apelar para a natureza prática de Kiaran: —Derrick
não tem poder suficiente para combater a Morrigan, e ele está melhor no
acampamento, onde pode ajudar os outros caso a terra comece a desmoronar.
Você sabe disso.
Isso funciona. Kiaran recua, sua expressão fechada novamente. —Bem.
Envie uma mensagem para Aithinne.
Hesito antes de explorar meu poder, cautelosa para não deixá-lo se tornar
esmagador demais. É muito tentador deixar isso me dominar, me perder nele.
Ele desliza pelas minhas veias e na palma da minha mão e eu o direciono
com um rápido golpe no meu pulso. Encontre Aithinne.
A resposta é quase instantânea. Ela está no acampamento com Derrick e
os outros - sinto-me aliviada por estarem ilesos. As chamas de sua fogueira
ardem alto, e todos estão sentados no chão com velhos cobertores de lã sobre
os ombros. Gavin voltou a beber aquele uísque terrível, enquanto Derrick fala
com Catherine e Daniel sobre nada em particular.
A cabeça de Aithinne aparece quando ela me sente. Deixo um fio
remanescente de poder para sugerir que ela o siga. —É hora de sangrar. — Diz
ela com alegria. —Eu vou fazer um portal. Diga a Kadamach para abrir os
portões.
Eu me afasto e dou a mensagem a Kiaran. Ele atravessa a sala para pegar
uma enorme alavanca perto das portas duplas que eu não tinha visto. Com um
puxão rápido, ele a puxa para o lado e a pesada entrada de carvalho se abre.
Derrick voa primeiro pelo portal. —Olhe para você. — Diz ele, parando
para me estudar. —Viva. Incólume. Bem. Se você não estivesse, eu teria cortado
os dedos dele.
Kiaran se move para ficar ao meu lado. —Eu teria arrancado suas asas.
—Ignore-o, pixie. — Aithinne entra na sala, seu casaco comprido
ondulando atrás dela. —Eu deveria ter imaginado que ele seria sombrio e mal-
humorado.
O olhar sem emoção de Kiaran cintila para ela. —Phiuthair.6
—Bhràthair. 7— Ela para e o estuda. —Você parece um inferno. Suponho
que você não se alimenta há alguns dias, se a falta de presentes é alguma
indicação.
—Não. — A voz de Kiaran mergulha em aviso.
—A propósito, eu estou maravilhosa. — Ela continua, como se ele não
tivesse falado. — Você gosta do meu casaco? Eu não pareço adorável? Eu não
sou a melhor irmã por ficar aqui, ainda disposta a falar com você depois que
você me ignora há meses, seu bastardo teimoso?
6 Irmã
7 Irmão
—Bem, isso é divertido — Diz Derrick. —Estou realmente sentindo o
amor nesta sala. É lindo. Aileana, não é bonito?
—Você está aqui porque Kam queria sua ajuda. Não porque eu queria.
—Droga, MacKay-
—Você pode não ter, querido — Diz Aithinne, ignorando minhas
tentativas de ficar entre eles. —Mas olhe a rapidez com que vim. Porque eu
ainda me importo com você. Embora só os Deuses saibam o porquê, já que
você é uma dor tão obstinada na minha bunda.
—Adoro quando Aithinne amaldiçoa as pessoas. — Derrick diz para
mim. —Eu digo que nós os deixamos lutar contra isso. Uma rodada de socos.
Sem matança. Vou procurar refrescos.
—Oh, pelo amor dos Deuses. — Diz Sorcha atrás de nós. —Se todos vocês
vão brigar, eu preferiria estar de volta na minha prisão. Isso não foi tortura.
Isso é tortura.
Derrick espreita pelo meu cabelo. —O que aquela idiota assassina está
fazendo aqui?
Sorcha pisca para ele. —Como você acabou de me chamar?
—Você me ouviu, bruxa de dentes pontudos.
—Sorcha pode encontrar o livro — Eu interrompo. —E precisamos do
sangue dela para chegar lá. Era ela ou Lonnrach.
—Então, tendo uma escolha entre idiotas assassinos, você escolheu quem
te matou. — A risada de Derrick é seca. —Isso é interessante.
—Eu escolhi aquela que estava convenientemente acorrentada, em vez
do que estava escondido.
Derrick não parece convencido. —E nós devemos acreditar que ela está
ajudando com a bondade daquele pedaço de rocha negra no peito que ela
chama de coração?
—Estou bem aqui. — Diz Sorcha bruscamente.
—Queria que você não estivesse. — Derrick canta. Então, para mim: —
Deixe-me dar um conselho, amiga. Se você vai levá-la junto, faça-a ir primeiro.
Dessa forma, você não precisa se preocupar com ela enfiar uma lâmina nas
suas costas.
—Doce pixie — Diz Sorcha. —Se há uma coisa que você deveria ter
aprendido, é que estou perfeitamente disposta a esfaqueá-la na frente. — Ela
se vira e se dirige para o grande salão, o tecido de seu vestido de brocado
varrendo o chão como uma capa. —Se vocês vem, o portal é por aqui.
Derrick começa a seguir, mas eu o paro. —Eu preciso que você fique no
acampamento.
—Mas não vou conseguir matar nada lá. — Lamenta.
—Eu levaria você comigo se pudesse, mas não posso deixar os outros
desprotegidos. Não com o reino desmoronando.
Derrick suspira. —Bem. Bem. Apenas tenha cuidado, sim? Não faça nada
tolo. E faça o que fizer, não deixe Sorcha colocar as mãos em uma lâmina.
—Eu não vou. — Ele me abraça e eu descanso minha bochecha contra ele
brevemente. —Faça para mim uma fantasia de pirata.
Sinto o sorriso dele contra a minha pele. —Só se você me salvar uma
dança.
Com isso, Derrick voa para fora do palácio e me viro para seguir Sorcha.
Kiaran segue de perto por trás de Sorcha, sem dúvida, para manter um
olho sobre ela, enquanto eu ando com Aithinne. O longo corredor de obsidiana
ainda é estranhamente silencioso. As luzes parecem mais fracas, o corredor
lançado em sombras que parecem estar crescendo, se movendo. Respirando.
Ao meu lado, Aithinne estremece. —Eu odeio esse lugar. — Ela sussurra.
—Apenas uma vez, eu gostaria de passar por um portal sob um arco-íris ou
perto de uma ninhada de gatinhos.
Eu rio.
Sorcha faz uma pausa e pressiona a palma da mão nos tijolos, os dedos
permanecendo ali em uma carícia quase amorosa. Ela balança a cabeça uma
vez e continua se movendo, os calcanhares estalando decisivamente contra o
chão.
Aithinne se inclina. —Ainda estou convencida de que ela está nos
levando à nossa morte.
—Ela fez uma promessa para me ajudar a encontrar o livro. — Eu digo.
—Ela está ligada a isso.
Kiaran é um mestre em meias mentiras e manipulação das fadas. Ele teria
garantido que os termos de sua promessa fossem os mais rigorosos possível.
Mas eu também sei o seguinte: Sorcha estará procurando maneiras de se virar
contra mim. Só porque as fadas não podem mentir não significa que são
honestas, e as limitações de uma promessa não as tornam incapazes de serem
enganadoras. Eu não conheci uma única pessoa que Sorcha não traiu, mesmo
aqueles que ela ama.
No momento, ela tem todas as vantagens. Ela encontrou o portal antes;
ela conhece seus segredos; ela viu a Morrigan. E de alguma forma ela ainda
está viva.
—Na minha corte, temos um ditado para pessoas como ela. — Aithinne
solta uma pequena risada. —Você pensará que venceu a luta até dar um passo
atrás e ela te passar uma rasteira.
—Eu posso ouvir você. — Sorcha pressiona as palmas das mãos em outra
parede. O sorriso dela é pequeno. Ela provavelmente gosta desse ditado.
Provavelmente foi feito apenas para ela.
—Você pode? — Aithinne pergunta deliciada. —Oh, que bom. Agora que
tenho sua atenção, acrescentarei que muitas vezes me divirto imaginando
como seria se você fosse jogada de um penhasco no mar. A propósito, belo
vestido.
—Qual o propósito de ter você aqui? — Os olhos verdes de Sorcha
brilham com irritação. —Além de ser uma pequena bagagem louca que perdeu
a cabeça em algum lugar nas entranhas de Edimburgo. — O sorriso de
Aithinne vacila e Sorcha o vê. —Diga-me, quanto tempo meu irmão levou para
quebrar sua sanidade? Quantas vezes ele teve que quebrar seus ossos e
queimar seu corpo antes que você se tornasse tão patética? Demorou cem anos?
Quinhentos? — O sorriso de Sorcha é impiedoso. —Ou isso é muito generoso?
Em algum lugar no meio das perguntas cruéis de Sorcha, os olhos de
Aithinne ficam em branco. Mortos. Eu já vi isso antes.
Aperto gentilmente a mão dela. —Aithinne. — Murmuro o nome dela
novamente, até ver um lampejo de reconhecimento em seus olhos.
—Você não deve se preocupar. — Diz Sorcha para mim. —Aithinne está
quebrada. A Morrigan vai destruí-la facilmente.
Kiaran puxa Sorcha para ele. —É o bastante. — Há algo selvagem em sua
expressão, algo louco. Algo sombrio. —Fale com minha irmã assim
novamente, e a próxima tortura que eu fizer vai deixar você me implorando
para acabar com nós dois. — Sua espada está na mão antes que eu possa piscar.
—Talvez eu devesse começar agora? Que tal um desses adoráveis olhos
verdes? — Ele bate na bochecha dela com a ponta da lâmina.
Eu recuo. Sua voz é irreconhecível. Desconhecida. Essa voz é como
imagino a morte soando: uma voz baixa e perigosa que me congela até os ossos.
A expressão de Sorcha não muda, mas um pequeno tremor percorre seu
corpo. —Venha agora, Kadamach. Você fez uma promessa...
—E isso não entra em vigor até encontrarmos o Livro. Agora se mexa. —
Então ele a afasta.
Sorcha apenas olha para Aithinne, levanta o queixo e continua
procurando. Ela pode ser uma especialista em esconder como se sente, mas não
estou enganada. Kiaran a assustou muito.
Ele também me assustou muito.
Enquanto continuamos pelo corredor, Aithinne não fala. De vez em
quando, seus dedos se apertam e soltam o punho da espada; o que Sorcha disse
está chegando até ela. Inclino-me e sussurro no ouvido de Aithinne que ser
vulnerável não significa que ela está quebrada. A mão de Aithinne agarra a
minha, aperta em entendimento. Lonnrach tentou nos despedaçar.
Depois de um tempo, Sorcha para novamente, as pontas dos dedos
deslizando ao longo da parede. Sinto seu poder no ar, apenas por um
momento, antes que ela se afaste novamente com uma maldição suave e
frustrada.
—Se você encontrou o portal antes que este castelo existisse, por que
estamos procurando agora? — Eu pergunto.
—Quando Lonnrach encontrou a prisão da Morrigan para mim pela
primeira vez — Diz Sorcha. — Foi através de Sìth-bhrùth. E como Sìth-bhrùth
desapareceu praticamente para nada, precisamos encontrá-lo aqui. Estou
usando o cristal para dirigir meus poderes, mas o maldito portal se move.
—Ele se move? — Eu pergunto ceticamente.
—Por que você acha que eu tive que pedir a ajuda do meu irmão pela
primeira vez? — Ela parece irritada agora. —Como exigia nosso sangue, era
mais fácil para nós dois.
—Ou encontrá-lo exigia alguém com uma habilidade além de
subterfúgios e traição. — Murmura Aithinne, parecendo mais com seu antigo
eu.
Sorcha sacode a mão e sinto seu poder aumentar. Um momento antes do
golpe, Aithinne estende a mão e desintegra o poder de Sorcha tão facilmente
como se estivesse rasgando um pedaço de papel.
—Não se envergonhe. — Diz Aithinne com um sorriso doce. —Eu posso
estar quebrada, mas se eu quisesse, eu poderia fazer seu coração explodir em
seu peito.
Com uma careta, Sorcha vira outro corredor comprido. Ela estende as
mãos, as pontas dos dedos roçando as paredes de pedra, e eu posso sentir seu
poder no ar novamente. Tem gosto de ferro e tem uma textura abrasiva, áspera
como pedra-pomes.
Ela pressiona as palmas das mãos na parede, o rosto uma máscara de
concentração. —O portal existe entre os nossos mundos — Ela murmura. —No
espaço certo, eu posso evocá-lo, da mesma maneira que viajaríamos entre este
reino e Sìth-bhrùth.
—Por que você não encontrou o livro? — Eu pergunto. —Se você queria
tanto, o que fez você ir embora?
Por que desistir de terminar sua maldição e salvá-lo? Se você o amava
tanto?
Quando Sorcha olha para mim, seus olhos estão vidrados, seu poder
ainda está procurando. —É aí que você entendeu errado, Falcoeira. Eu não fui
embora; Fiquei de joelhos e me arrastei. Com a minha vida.
Sua testa se enruga e ela dá alguns passos para nós. Então ela para com
uma parada difícil, com a cabeça balançando para a esquerda. Ela está olhando
para a parede, como se visse algo que o resto de nós não vê.
Eu alcanço meus poderes e sinto uma sombra de... algo lá. Mas é tão leve
que não consigo entender. Poder, mas apenas um vislumbre dele - tão fraco
quanto uma rajada de urze no ar.
—Kadamach. — Diz Sorcha em voz baixa. —Me dê sua lâmina.
Rapidamente.
Antes que eu possa protestar contra Sorcha estar no comando de algo
pontudo, Kiaran tira uma adaga da bainha de seu pulso e a passa para ela,
primeiro com o punho. Sem nenhuma explicação ou hesitação, Sorcha corta a
arma pelas duas mãos com dois golpes rápidos. Então ela devolve a lâmina e
mancha seu sangue através da parede de obsidiana.
Ela bate as palmas das mãos contra as pedras. Observo o sangue se juntar
ao longo da rocha lisa, brilhando como melaço. Só que não escorre como
deveria. Em vez disso, ele se curva através da pedra para formar um padrão.
Como algo de uma das marcas de Kiaran, um design rodopiante que se move
em torno de si, tornando-se menor e mais complexo.
—Aí está você. — Sussurra Sorcha. —Fosgail 8.
Um estalo surpreendente ressoa pelo corredor, tão alto que minha mão
imediatamente vai para o punho da minha espada. Diante de nós, uma fissura
se forma na parede, estendendo-se do chão ao teto. As pedras se desintegram,
rasgando para revelar um buraco escuro que eu não consigo ver além - uma
abertura grande o suficiente para uma única pessoa passar.
Sorcha pisca e se afasta da fissura. —Aí está. Um portal para o inferno.
Olho para a abertura escura com uma sensação iminente de alarme. O
que a Morrigan poderia ter feito para fazer Sorcha decidir que Kiaran não valia
a pena?
—Você nunca disse o que fez você desistir. — Eu digo a ela.
Estou surpresa com a pequena sugestão da humanidade nas profundezas
de seus olhos verdes geralmente frios. Já vi momentos de suas emoções antes,
quando ela olha para Kiaran com saudade. Mas isso é algo mais, um
sentimento de perda que reconheço por sentir isso há tanto tempo.
—A Morrigan fará o que for preciso para sair dali — Ela murmura. —No
momento em que entrarmos, ela decide quem de nós é o peão e qual é a chave
para sua fuga.
Eu engulo em seco. —Quem era você?
O sorriso de Sorcha é amargo e brutal. —Nada. Eu era o entretenimento
dela.
Com isso, ela dá um passo para trás e me olha como se dissesse: Que tal,
Falcoeira? Ele vale a pena?
Os olhos de Kiaran pegam os meus. Sua expressão é desconhecida,
perturbadora. Um vislumbre de algo sombrio e familiar logo abaixo da
8 Abra
superfície, mal contido. A maldição dele. A maldição que tenho uma chance
de desfazer.
Me salvar, Kam? Você desejaria ter me matado.
Desvio o olhar bruscamente e passo pelo portal.
O corredor do outro lado é semelhante ao que resta - uma passagem larga
e sombreada. Só que não há portas - pelo menos nenhuma que eu possa ver
através das faixas de hera morta que serpenteiam pelas pedras do chão ao teto.
Nem uma única folha verde permanece, apenas trepadeiras marrons murchas
que se estendem até o final escuro do corredor.
Tremo de frio pelas velhas pedras úmidas, minha respiração exalando na
névoa branca. O frio é do tipo que não provém da temperatura, mas da
atmosfera. As paredes parecem muito próximas e muito distantes ao mesmo
tempo. Enquanto estou ali, o corredor fica mais escuro, mais frio e mais longo.
Em algum lugar na hera - neste espaço vazio e morto - alguém está me
olhando.
Eu me viro de pavor. Kiaran, Sorcha e Aithinne saem do portal - e ele
desaparece, fechando-se como uma ferida que se cura rapidamente. Depois,
fecha-se como se nunca tivesse estado lá.
—Bem, isso não é um bom sinal — Diz Aithinne, estudando a hera. Ela
desliza o dedo ao longo de um galho. —Este lugar parece errado. Morto. —
Então ela murmura: —Por que não poderia ter sido gatinhos? Só uma vez?
Sorcha olha para o corredor, empalidecendo de medo. —Não parecia
assim antes. — Uma maldição suave em seus lábios. Ela percebeu alguma
coisa. —A Cailleach estava mantendo este lugar junto. Agora que ela está
morta e seus poderes estão no corpo de uma humana incompetente, esse reino
está desmoronando exatamente como o nosso. — Ela olha bruscamente para
Aithinne. —Eu devo empurrar você contra a lâmina de Kadamach. Não vou
morrer porque ele ficou mole demais para te matar.
—Não é útil. — Eu estalo.
—Eu não ligo. Isso muda as coisas. Você percebe o quão desesperada a
Morrigan estará para escapar? Esta é sua última chance. — Ela dá um passo
atrás em direção ao portal pelo qual acabamos de passar. Quando a encontra
fechada, ela fecha os olhos. —Kadamach, apenas mate sua irmã idiota e torne-
se o próximo Cailleach. Salve-nos do problema.
—Prefiro te matar. Agora encontre o livro.
Sorcha se endireita. —Se fosse assim tão fácil, ainda não estaria aqui,
estaria? — Ela se endireita. Então, para mim: —Ore para que você sobreviva
para torná-lo seu, Falcoeira.
Ela passa por nós e o resto de nós segue. Enquanto continuamos pelas
vinhas mortas, o corredor continua se estendendo à frente. Isso nunca muda.
As trepadeiras se misturam em um galho aparentemente interminável, murcho
e morto. As folhas cobrem o chão, a única indicação de que esse lugar já estava
cheio de vida.
As plantas foram uma provocação cruel que a Cailleach deixou para a
Morrigan, um lembrete de que nunca mais veria a verdadeira natureza ou o
mundo? Ou talvez fossem uma pequena gentileza que a Cailleach deu à irmã
antes de trancá-la aqui e jogar fora a chave: um jardim para enfeitar as paredes
da prisão.
Enquanto empurramos um amontoado de folhas, expulso meus sentidos
um pouco, o suficiente para procurar no corredor sem me exaurir ou ser
consumida por meus poderes. Um calafrio repentino desliza pela minha pele
e eu paro. Há olhos em mim novamente, nas paredes, além daquelas folhas.
Uma voz se agita em minha mente - uma semelhante à de Cailleach, mas
não velha, assustada e moribunda. Essa voz é poderosa. Parece uma promessa
de morte.
Eu te vejo.
O ar no corredor engrossa, ondulando como se uma pedrinha tivesse
sido jogada em uma poça de água. Todos paramos repentinamente. Ao meu
lado, Kiaran sussurra uma maldição imunda.
—Acho que todos vocês sentiram isso? — Aithinne pergunta. Nós
assentimos. —Alguém mais tem a sensação de que está prestes a ser estripado
e amarrado pelo intestino? — Ela diz. Quando acenamos de novo, ela
acrescenta: —Eu nunca me senti pavor nas calças antes.
Kiaran agarra sua lâmina. —Aithinne. — Ele murmura, seus olhos nas
videiras mortas. —É mais informação do que eu gostaria de saber.
—Você é tão delicado. — diz Aithinne levemente, mas ela se aproxima
de mim com a espada também.
Um arranhão de pedra contra metal de algum lugar no corredor nos faz
pular. A respiração de Sorcha fica irregular. —Eu digo que matamos a
Falcoeira — Diz ela. Não sinto falta do tremor na voz dela. —A velha magia
adora um bom sacrifício.
Eu a encaro. —Você percebe que todo mundo aqui te odeia, não é?
Antes que ela possa responder, o corredor estremece novamente, desta
vez com mais violência. A pedra ao nosso redor geme. Algo trava. Giro para
ver um pedaço do teto cair e se despedaçar no chão. E quando eu olho para
cima...
Videiras espessas batem no telhado, carregando espinhos afiados como
lâminas.
Kiaran agarra meu braço e me puxa com tanta força que quase perco o
equilíbrio. —Corra!
Voamos pelo corredor, nossas botas batendo nas folhas mortas. Algo
puxa meu pé para me segurar, mas eu avanço. Outro puxão, mais forte. Outro.
Outro. Algo me agarra com força pelo tornozelo e, quando olho para baixo,
meu estômago se contrai com alarme.
Videiras. Estourando através das lajes de ônix e crescendo rapidamente
em volta das minhas pernas. Me segurando no lugar.
Oh Deus. Uma explosão de pânico traz de volta memórias indesejadas
da sala espelhada onde Lonnrach me mantinha. As videiras me seguravam no
lugar, apertadas se eu lutasse. Me segurando enquanto seus dentes mordiam
meus pulsos. Meus braços. Meus ombros. Pescoço -
—MacKay. — Eu apenas consigo sussurrar.
—Merda. — Kiaran agarra minha mão novamente com um puxão
áspero.
As videiras estalam, mas ainda não consigo me mexer, não consigo
pensar, não posso fazer nada. Mova-se e só vai doer mais. Mexa-se e as trepadeiras
cobrirão minha boca para abafar meus gritos.
As mãos de Kiaran estão ásperas em volta da minha cintura enquanto ele
me puxa. —Kam, você tem que correr!
Você não está aí. Esta não é a sala espelhada. Vá!
Eu tento. Deus, eu tento. Videiras brotam ao redor de nossos pés, subindo
do chão. Elas agarram meus tornozelos, mas eu rombo. Eu rasgo. Eu agarro.
Eu rasgo. Mas quando as videiras envolvem meus pulsos, não posso mais
lutar. Meus membros relaxam.
Não pode. Não pode, não pode, não pode. Dentes no meu pulso. Dentes na minha
garganta. Marcas de meia-lua. Não se mexa ou vai doer mais.
Estou consumida pelas minhas memórias. Eu não posso revidar. Parece
real. É real.
Dentes no meu pulso. Mordendo. Tirando sangue. Quebrando em minha
mente.
Não posso me mover. Não posso gritar. Não consigo pensar...
Kiaran me puxa para frente, cortando sua lâmina através do crescimento.
—Kam! — Suas mãos estão em ambos os lados do meu rosto. —Estou aqui.
Estou bem aqui com você.
—É o medo dela. — Sorcha arfa atrás de nós. —A Morrigan a leu.
—Estou aqui. — Ele sussurra novamente. —Estou aqui.
É tudo o que preciso para me mexer mais uma vez. O toque de Kiaran
me ancora. Isso me lembra que eu ainda posso lutar. Eu não sou uma
prisioneira.
Em algum lugar atrás de nós, outro pedaço do teto de ônix cai no chão.
Outro. E outro. Videiras brotam de cada lado de nós, fechando-nos.
Prendendo-nos.
Aithinne enxuga o corte sangrento no rosto. —Se alguém tiver alguma
ideia, agora pode ser um bom momento para compartilhar com o resto de nós.
Kiaran balança a cabeça bruscamente. —Nós vamos ter que forçar a
nossa saída. — Ele olha para trás, avaliando.
—Kadamach — Diz Sorcha, erguendo a palma da mão. —Espere...
Kiaran dá uma volta e bate com o punho na parede. Um impacto que
deveria ter despedaçado os tijolos.
Seu assobio de dor me assusta. Quando Kiaran puxa a mão para trás, os
nós dos dedos estão sangrando. A parede quebrou sua pele de fada quase
invulnerável. Como diabos isso é possível?
Em meio ao caos, ele olha fixamente para Sorcha. Embora seu olhar esteja
calmo, posso ver algo fervendo lá. Algo selvagem novamente. Sua expressão
está sombria e ligeiramente tensa.
—Kam — Ele diz lentamente. —Você pode destruir esta parede?
Aithinne fica na minha frente. —Eu vou fazer isso-
—Não. — A voz de Kiaran é dura. Ele acena para mim. —Eu preciso que
seja Kam. — Sua expressão não deixa espaço para perguntas.
Aithinne pressiona os lábios e, como se ela estivesse projetando seus
pensamentos para mim, eu posso ouvi-la em minha mente. Diga à ele.
Eu balanço levemente a minha cabeça.
Se eu disser a Kiaran, sua atenção seria dividida entre encontrar o Livro
e se preocupar que cada pequena explosão de poder seja a que me mata. Ele
me impedia de usar minhas habilidades para encontrar o livro - e contra a
Morrigan, não terei escolha. Eu vou precisar deles.
—Afaste-se.
Meus poderes são uma tempestade crescendo dentro de mim. A
eletricidade crepita no ar. Eu jogo minha cabeça para trás quando a energia
corre pelas minhas veias, através do meu sangue. Meu coração bate cada vez
mais rápido, enchendo meus ouvidos com um rugido surdo.
Videiras quebram a pedra ao redor dos meus pés e eu sorrio
sombriamente. Pare. Quando as videiras cessam, ordeno que morram. Elas
começam a se separar ao nosso redor, caindo no chão e murchando. Isso deve
nos dar tempo suficiente para sair daqui antes que a Morrigan ataque
novamente.
Segundos parecem minutos. Os pelos finos dos meus braços se erguem e
a sensação de uma tempestade aumenta e aumenta dentro do meu peito até
que se torne uma pressão dolorosa lá.
Respire como ar, digo a mim mesma. Fácil.
Eu deixei meu poder ir em uma explosão que transforma a parede em
escombros - e tudo o que está por trás dela é um corredor idêntico a isso. Bem,
muito por isso.
Outra videira rompe a parede atrás de nós com um estrondo. Pelo canto
do olho, vejo folhas crescendo sob as velhas mortas. Elas disparam para fora
das paredes e do chão mais rápido do que antes, quebrando as pedras ao nosso
redor. A folhagem é maior, mais grossa e mais forte, com espinhos longos o
suficiente para empalar.
—Bom trabalho, Falcoeira. — Diz Sorcha. —Você deixou a Morrigan
zangada.
Teremos que nos arriscar no próximo corredor. Os arcos atrás de nós
estão desmoronando, perfurados por espinhos. Uma parede ao meu lado se
despedaça e uma videira enorme vem direto para nós.
—Vão! — Eu grito.
Subimos pelo buraco na cantaria pouco antes de o corredor atrás de nós
dobrar e as plantas começarem a se fechar. Tijolos quebram no chão, detritos
espanam o ar. Minha respiração sai com uma tosse. Não consigo ver...
Reconstrua. Rapidamente.
Eu aperto meu punho e levanto minha mão, direcionando meu poder
para empilhar as pedras, jogando-as no lugar para que haja algo estável o
suficiente para segurar por enquanto. Só precisamos de tempo suficiente para
correr. A parede improvisada se forma para cobrir as rachaduras pelas quais
as videiras podem passar, e então... silêncio. Somente nossa respiração cansada
preenche o espaço.
Uma explosão de poder empurra contra mim, a Morrigan é tão forte -
—Espere, Kam.
Esperar? Ele está bravo? Fechei os olhos, meu corpo se contraindo
quando o poder do Morrigan luta contra o meu, empurrando com força contra
minha parede improvisada.
—MacKay. — Eu digo. —Agora não é um bom momento...
—Eu preciso de um momento — Diz ele. Alguma emoção fria e brutal
escurece sua expressão. —Aithinne, sinta o seu poder.
Aithinne fecha os olhos. Quase imediatamente, ela franze a testa.
Quando ela abre os olhos, é a primeira vez que a vejo parecer assustada. —Está
lá, mas não posso... Não consigo alcançá-lo. — Aithinne estende a mão, como
se estivesse esperando que algo acontecesse. —Eu nem consigo conjurar uma
chama. Um truque de criança. — Ela olha para Sorcha com acusação. —O que
você fez conosco?
—Nossos poderes estão limitados. — Diz Kiaran brevemente. Ele puxa
Sorcha para ele.
Eu suspiro quando os poderes da Morrigan batem contra os meus
novamente. O corredor treme. Acima de nós, uma pequena porção da parede
desmorona e cai. Aguarde. Espere, caramba.
—MacKay. — Eu digo em advertência.
Mas Kiaran ignora o caos ao nosso redor. Seu olhar está focado em
Sorcha, seu aperto contundente no braço dela. —Você sabia, não sabia?
Sorcha tenta parecer indiferente. —Eu sabia que aquela garotinha
precisava do livro.
Kiaran a bate na parede e Sorcha suspira de dor. —Explique-se. Para cada
resposta que eu não estiver satisfeito, você perderá um dedo. Tente cultivá-lo
de volta sem nenhum poder.
O medo brilha nos olhos de Sorcha. —Tudo bem. — Diz ela bruscamente.
—Tudo certo.
O poder da Morrigan bate no meu e eu reprimo um grito. Meu corpo está
tremendo agora, minha visão trêmula. O corredor começa a balançar. Um tijolo
cai do topo da pilha improvisada. —MacKay, depressa.
Kiaran lança Sorcha. —Fale rápido.
—Faz parte da prisão. A Cailleach foi capaz de matar o corpo da
Morrigan, mas ela era forte demais. A prisão amortece suas habilidades o
suficiente para que ela não possa reconstruir seu corpo e escapar dela. —
Sorcha olha para mim, onde eu consertei o buraco na parede. —A Falcoeira
deve estar imune porque não foi criada para conter um humano. O efeito nas
fadas menos poderosas é quase completamente vinculativo.
—O que isso significa? — Minha voz está rouca pelo esforço de segurar
a parede no lugar. Fechei os olhos brevemente contra outro empurrão. Outro.
Começo a balançar em pé, tonta.
A maldição de Kiaran é alta no corredor silencioso. Ele se afasta de
Sorcha e estuda os nós dos dedos. Cortes finos pontilham sua pele pálida desde
quando ele socou a parede. O sangue está pingando nas costas de sua mão
inchada.
Sua ferida não está cicatrizando.
—Isso significa — Diz Kiaran com os dentes cerrados. —Que todos nós
podemos morrer aqui. E Sorcha não se deu ao trabalho de nos contar.
—Uma oportunidade se apresentou, então eu a aproveitei. — O sorriso
dela é familiar, terrível e sombrio. —Eu não seria eu se não o fizesse. Eu queria
você e a odeio.
A risada de Kiaran é baixa, perigosa. Isso me faz tremer. —Ah, mo
chridhe. 9— Ele murmura para ela, escovando dois dedos em sua bochecha. —
Vou viver o resto da minha existência imaginando todas as maneiras diferentes
de matar você, se pudesse. — Sua voz baixa. —Isso soa familiar? Como é ser
melhor do que seu ex-mestre?
O que isso significa?
Sorcha respira fundo. —Kadamach — Ela sussurra. A mão dela treme
quando ela alcança o braço dele. —Escute...
A Morrigan bate no escudo de poder que estou segurando com força
suficiente para gritar. —Eu não pretendo interromper... — Ela empurra
novamente, e desta vez eu cerro os dentes contra o ataque.
Videiras serpenteiam através das fendas dos escombros. O poder da
Morrigan está crescendo ao nosso redor como uma tempestade que se
aproxima, atravessando a minha com um deleite quase zombador.
Uma voz sussurra em minha mente, fria como gelo ao vento. Uma humana
com os poderes da minha irmã. Agora isso é interessante.
Agora ela conhece minhas fraquezas. Ela sabe que vou morrer se
continuar tentando.
Kiaran está ao meu lado. —Kam?
Eu tento me concentrar, mas meus músculos doem. Meu corpo se esforça
com o esforço de manter a Morrigan afastada, de manter a parede erguida. —
Eu não aguento.
9 Meu coração
—Solte e corra quando eu disser — Ele me diz. Então ele conta no meu
ouvido. — Um. Dois. Três. Vá.
Eu largo meus poderes e corremos pelo longo corredor, minhas botas
atingindo o chão de ônix com força. Atrás de nós, a parede se abre. Videiras
rastejam pelo teto, agora mais grossas. Espinhos rasgam os tijolos como papel.
À medida que passamos pelas fendas que se formam ao longo da pedra,
a Morrigan está em minha mente, cavando e cavando. Me lendo. Avaliando
meus poderes e procurando outra fraqueza. Eu não posso impedi-la. Não
posso mantê-la completamente afastada, não depois de manter seu poder sob
controle. Ela sabe disso e... juro que posso senti-la sorrir.
O corredor treme e eu sou desequilibrada. Algo bate nos tijolos. —Você
sente isso? — Eu digo para Kiaran, ofegando com força.
Ele balança a cabeça uma vez como se quisesse limpá-la. Sua resposta é
tensa. —Sim.
Um momento depois, o chão abaixo de mim cede.
Meu estômago despenca. Mordo de volta um grito enquanto mergulho
no chão e na escuridão. Tijolos quebrados batem nas paredes abaixo de mim.
Sinto o aperto áspero dos dedos de Kiaran em minhas roupas, me puxando
para mais perto. Ele diz meu nome e ecoa à nossa volta.
Eu consigo abrir meus olhos para ver abaixo e... não há nada - nada.
Apenas um poço, infinitamente preto, sem fundo visível. Eu corri um risco, fiz
uma aposta de que iria encontrar o Livro, e agora meus únicos pensamentos
são que vou morrer e falhar com as pessoas com quem me preocupo. Só que
desta vez eu vou embora para sempre.
Desta vez, não há volta para mim.
—Kam. — A voz aguda de Kiaran me tira dos meus pensamentos. Ele
está com um forte aperto no meu braço e me puxa para ele em um abraço duro
enquanto o ar corre ao nosso redor. Até onde caímos? Até onde nos resta?
—Mantenha seu corpo reto.
Como diabos ele pode parecer tão calmo em um momento como este?
Ele é mortal agora, pelo amor de Deus.
—O que?
As mãos de Kiaran deslizam pela minha cintura, dedos cavando no meu
casaco para me impedir de lutar. Como não posso lutar? Estamos caindo
rápido, sem peso, para baixo -
—Você não pode sentir o cheiro?
Foco. Calma.
Eu inspiro. E através do odor a mofo de pedra ao nosso redor, respiro o
aroma limpo e nítido da água. Como se estivéssemos caindo no fundo de um
poço ou caverna. É uma chance de sobrevivência. Uma bênção na forma de um
lago subterrâneo. Faça isso direito, e poderemos viver. Faça isso errado, e nós
morremos.
—Você se lembra dos penhascos em Skye? — A respiração de Kiaran é
suave na minha garganta. Eu mal posso ouvi-lo no ar correndo ao nosso redor
enquanto caímos e caímos. —Empurre com seu poder para diminuir o
impacto. — Eu tremo quando seus dedos roçam logo abaixo das minhas
costelas. —De lá. Você sente isso?
Eu sinto. Um pulso na minha pele. Uma cadência: Confie no seu corpo.
Confie em sua mente. Confie no seu poder.
Mas como eu posso? Ainda estamos caindo. Esta caverna é interminável.
Como se estivéssemos mergulhando através das estrelas, através do espaço, no
oceano. Tento não me distrair com meu corpo trêmulo, meus pensamentos de
pânico. Eu me concentro na sensação de meus poderes, enrolados e prontos
como se estivesse apenas esperando meu comando. Eu os deixei me acalmar.
Eu sou destemida. Eu sou poderosa. Confie-
—Agora deixe sair, Kam.
Eu deixei todo esse poder sair. Antes, era como tentar respirar pelo fogo,
com fumaça nos pulmões e tudo apertado e contraído. É cada vez mais fácil,
menos doloroso. Agora é como tentar inalar em um dia frio de inverno. Apenas
uma pressão dos meus pulmões e depois... dentro e fora. Dentro e fora.
—É isso aí. — Como se Kiaran não pudesse evitar, ele pressionou um
beijo na parte de baixo da minha mandíbula. —Agora construa uma corrente
de ar para nos desacelerar.
Eu faço exatamente como ele diz. Eu nunca percebi quanto do poder de
uma fada estava simplesmente manipulando os elementos existentes, como ar,
água ou terra. Dobre-os à sua vontade e use-os para sua vantagem.
Meu poder comanda o ar ao nosso redor para engrossar e criar um
vendaval ascendente tão severo que nos atrasa, exatamente como Kiaran fez
por nós quando caímos dos penhascos de Skye. Somente quando ele fez isso,
foi gracioso. Ele fez parecer sem esforço.
No espaço de alguns segundos, meu controle começa a murchar. Confie
no seu poder. Confie no seu corpo. Confie -
Meu peito aperta. Respiro fundo, mas não consigo respirar. Meu canto
mental não é suficiente quando meus pulmões estão queimando com o esforço
de controlar todo esse poder. Minha visão começa a embaçar.
Kiaran deve sentir que há algo errado. —Kam?
Concentre-se na água. Sua rede de segurança.
Sua única chance de sobrevivência.
Último suspiro. Um empurrão final. Um pulso fraco de poder antes do
fim. Minha concentração destrói o momento antes de atingirmos a água.
Não consigo me mexer. De repente, meus membros estão pesados
demais, pesos mortos me arrastando ainda mais para a água fria. Não há
corrente para me lavar, nada além de uma água parada sem fundo.
Eu devo ter perdido a consciência, porque a próxima coisa que sei é que
estou ouvindo Kiaran dizendo meu nome. Repetindo isso repetidamente como
uma oração. Seus dedos desajeitadamente pressionam algumas vezes no meu
pescoço para procurar meu pulso. E ouço seu pequeno suspiro, uma traição à
sua fachada normalmente calma.
—Kam. — Ouço medo em sua voz.
Kiaran não precisa me dizer. Eu posso ouvir o pulso lento e pesado nos
meus ouvidos. Um tambor irregular que me lembra: você está morrendo. Você
está morrendo. Você está morrendo
Eu abro meus olhos. Com meus sentidos fada, posso ver as feições
sombreadas de Kiaran na escuridão da caverna, do jeito que sua pele pálida
está brilhando com água.
—Que raio foi aquilo? — Sua voz é áspera como pedra.
Mentira. —Nada. — Eu digo, minha voz rouca. Mentir é melhor. —O
poder da Cailleach leva algum tempo para me acostumar, só isso.
Kiaran me olha com força, seu polegar suavemente roçando meu lábio
superior. —Seu nariz está sangrando. — Suas palavras são desiguais. De
repente, ele se afasta, nadando rápido para colocar distância entre nós. Que
poucos pés de separação são vastos.
Não sei mais o que fazer, além de dar uma cutucada no meu nariz. Com
meus olhos aguçados como o de uma fada, eu posso ver a mistura leve de
sangue e água. Mal seria perceptível para um humano, mas com a natureza
Unseelie de Kiaran...
Kiaran se encolhe e desvia o olhar. Suas feições estão tensas, seu queixo
endurecido. Meus movimentos são lentos enquanto mergulho a cabeça na
água e apago o sangue. Da mesma maneira que eu encontraria um predador
na natureza: sem movimentos bruscos. Afaste-se um centímetro de cada vez.
Não pareça presa.
—Ser mortal agora não faz diferença?
Ele balança a cabeça uma vez. —Meus poderes são limitados, não
existem. Ser temporariamente mortal não me torna humano mais do que ter
poderes faz de você o mesmo.
As palavras de Kiaran são uniformes, sem emoção e quase um pouco
severas. Como se ele estivesse me culpando por sangrar - mas não é isso. Nós
caçamos juntos por tanto tempo que eu posso ler seus pensamentos tão
claramente como se fossem meus: Kiaran se culpa por ser tentado.
Aqui. Eu te morderia aqui. E é por isso que não confio em mim com você.
Depois de um longo período de silêncio entre nós, eu falo. —Você está
bem agora? — Minha voz é fraca, hesitante. Cuidado. Ele sabe o que estou
perguntando. Você é Kiaran ou você é Kadamach?
—Ainda não. Converse. Me distraia.
Tento me concentrar em nosso ambiente, olhando para o buraco pelo
qual caímos. É tão alto que parece uma pequena estrela brilhante no meio da
escuridão. —Você acha que elas ainda estão lá em cima?
Eu ouço a inspiração suave de Kiaran quando ele olha para cima também:
—Se foram, minha irmã é tola o suficiente para ter mergulhado conosco.
—Você acha que elas estão bem?
—Acredito que sim. — Quando eu não respondo, ele murmura: —Diga-
me o que você vê.
Meus olhos se ajustam à caverna quase escura e eu digo a ele. A única
luz vem do buraco no alto, uma pequena quebra na rocha espessa que nos
rodeia. Nado até uma pequena alcova e relaxo ao redor de uma pedra
levantada para fora do lago subterrâneo, a rachadura na parede deste lado do
lago é escura, porque tudo o que eu sei que leva mais fundo em um sistema de
caverna subterrânea parece perigoso, e muito apertado para Kiaran passar.
Minhas mãos trilham de qualquer maneira. E, apesar das seções de
rochas lisas dentro do lago, não há outros túneis - pelo menos, nenhum acima
da água.
Não há saída.
Hesitantemente, olho para Kiaran. Digo isso a ele? Seus olhos estão
fechados, como se ele fosse embalado pelo som da minha voz. —Continue
falando. Só por mais alguns minutos.
—O que eu deveria dizer?
—Qualquer coisa. — Sua voz é bruta. —Qualquer coisa. Conte-me outra
história.
Eu respiro fundo e digo a primeira coisa que vem à mente: —O rei das
fadas e a menina costumavam treinar nas primeiras horas da manhã — Eu
digo, mantendo meu tom suave e firme. —Eles lutavam até a primeira luz do
amanhecer surgir sobre o Mar do Norte. Em raras manhãs quando o céu estava
limpo de nuvens de chuva, a menina iria olhar sobre o rei, assim como os
primeiros raios brilhavam através dos edifícios e banhavam a cidade em um
belo brilho, dourado.
—Porque era quando o rei inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos,
e a garota se permitia, por breves momentos, pensar em coisas que nunca
poderia admitir em voz alta. Como, a cada dia que passava, ela o odiava. Até
que chegou a manhã em que ela o viu cumprimentar o sol e sabia que não o
odiava mais, ela não entendeu mais. Ela entendeu que um dia ela estaria lá
quando o sol nascer sobre o mar, e ela olharia para ele e perceberia que ela o
amava.
Eu quase digo isso. As palavras estão em meus lábios e a escuridão
parece prender a respiração, esperando, esperando que eu diga.
Eu te amo, eu te amo, eu te amo.
Então eu ouço algo. Quase inaudível. Afasto minha cabeça para o lado e
Kiaran olha para cima, prestes a falar.
Pressiono um dedo na boca, ouvindo com atenção.
Um sussurro fraco - como se estivesse vindo de longe. Giro bruscamente,
mas não há nada lá. Eu imaginei? Estou enlouquecendo?
Não, aí está outra vez. Uma voz tão baixa que eu não posso fazer -
soltando as palavras, ditas em uma língua desconhecida.
Viro de novo, minha mão estendendo a mão, mas não há nada além de
ar. —MacKay — digo cautelosamente. —Você...
Kiaran está ao meu lado em um instante, Ele amaldiçoa baixo e sujo. —
Eu não sei.
Há outro murmúrio à minha esquerda, quieto e escuro, e eu pressiono
mais perto de Kiaran. —Eu definitivamente ouvi isso. — Diz ele.
Nós dois ouvimos novamente, mas a caverna está silenciosa. Muito
silenciosa. Não há nenhum toque suave. Nem água gotejando ou qualquer
coisa que indique que estamos em uma caverna. É como se estivéssemos
arremessados ao espaço, flutuando em um lago desolado sem luz ou som -
nada além de nossa respiração -
E mais alguma coisa. Que eu não posso ver, nos observando das sombras.
Alguém que certamente pode nos ver. Meus sentidos podem ser melhorados
agora, mas eu ainda sou humana. Meu corpo tem suas limitações. Kiaran
também.
Estamos ambos vulneráveis. Ambos mortais. Ambos quase humanos.
Há um pequeno respingo atrás de nós. Alguém está se movendo através
da água. Um sussurro à minha esquerda, depois uma súbita dor lancinante na
minha bochecha. Eu grito, mais por choque do que por dor, e pressiono a
palma da mão para a minha pele.
Ela vem molhada com sangue.
—Não se mova. — A voz de Kiaran é baixa, áspera. Ele faz um som na
garganta, algo como um rosnado. Eu tenciono. Ele cheira meu sangue.
—Respire — Digo bruscamente. —Porra, apenas respire. — Eu agarro
seu braço e nos puxo através da água até que haja uma pedra nas nossas costas
e nós estamos escondido na alcova.
Só um minuto. Se a Morrigan vai atacar, temos apenas um minuto.
—Alguma ideia? — Quando ele não responde, eu pego a camisa dele com
força e o forço a olhar para mim. —Não me faça sentir algum sentido em você,
Kiaran MacKay. Ideias. Agora.
Os olhos de Kiaran se concentram nos meus e ele respira pela boca, com
os traços tensos. —A Morrigan era conhecida por sua capacidade de
influenciar mentalmente outras fadas. Ela podia invadir suas mentes, fazê-las
fazer o que quisesse. — Eu concordo. Continue. Continue falando: —Se a
Cailleach destruiu seu corpo, talvez ela possa apenas manipular nosso
ambiente ou assumir a forma de outras fadas.
A Morrigan fará o que for preciso para sair dali. Ela decidirá qual de nós é o peão
e qual é a chave.
Quem somos nós?
—Se ela está assumindo outra forma, então as fadas vivem na água?
Quem também gosta do escuro? Fadas que...
— Você vai continuar listando?
—Vou continuar listando se você não me der uma maldita resposta.
Pense!
Um sussurro à minha esquerda, uma risada zombeteira. Uma risada logo
atrás de mim. Eu giro. Ela está circulando, uma predadora pronta para pular.
—MacKay...
Eu grito quando a Morrigan corta meu braço. Desta vez dói mais, como
se a fada usasse uma espada em brasa. Afasto-me de Kiaran antes que ele sinta
o cheiro do sangue. Examino a água, mas não vejo nada. Não ouço nada. Meus
poderes estão acenando, tentadores, mas se eu usá-los, arrisco-me.
Desmaiando novamente...
Não há saída. Não há para onde ir.
—MacKay. — Eu digo, um tanto desesperada. —A forma dela?
Algo está se movendo através da água; eu não consigo mais ver
impressões. É como se a escuridão estivesse espessa, a caverna enevoada. O ar
fica quente e úmido.
Kiaran respira fundo e eu sei que a Morrigan deve ter atingido ele. —
Cavalo marinho. — A sugestão de uma forma de fada cai de seus lábios com
desprezo, como se ele estivesse dizendo algo sujo. Ele continua listando: —
Fuath. Fideal. Afanc-
Eu grito de dor enquanto garras se arrastam por minhas costas,
profundas e afiadas. O sussurro da Morrigan em meu ouvido novamente:
—Faz muito tempo que não vejo um humano.
Eu balanço meu braço em um ataque, pegando mechas de cabelo
comprido que se dissipam como fumaça. Há um lampejo de seus brilhantes
olhos de safira antes que a Morrigan se afaste nas sombras. A risada dela se
espalha ao meu redor numa onda de frio repentino que rompe a umidade da
caverna.
—Ela é uma forma feérica com garras e cabelos longos. — Digo a Kiaran.
—Ela simplesmente evaporou nas sombras malditas e...
A cabeça de Kiaran se volta para mim no escuro. —O que você acabou
de dizer?
— Eu vou matá-la-
—Ela evaporou nas sombras? — Antes que eu possa piscar, Kiaran
segura meu pulso. —Estamos saindo daqui. Agora.
—MacKay, eu já te disse. Não há saída.
Sua resposta é dita entre dentes: —Então eu vou empurrá-la através
desse pequeno túnel, se for preciso.
Kiaran está me puxando com tanta força para o outro lado do lago que
eu tenho que nadar ou acabar com um bocado de água da caverna. —Espere...
A Morrigan me tira do alcance de Kiaran e me joga violentamente na
água. A superfície, a poucos centímetros de bater na parede da caverna. Eu
emergi, ofegante.
—Kam! — Kiaran mergulha para mim, seus golpes rápidos.
Algo o golpeia com força. Kiaran bate na parede com um forte solavanco
que o faz rosnar. Ele gira, mas a escuridão está completa. Eu me empurro pela
água para alcançá-lo. Suas mãos encontram as minhas em um aperto
esmagador.
Uma risada ecoa ao nosso redor e algo pisca no canto do meu olhar, mas
se foi rapidamente. Então sua voz está no meu ouvido, garras roçando meu
pescoço suavemente. —O que você acha? Ele te ama o suficiente, humana?
Eu assumo o risco, uso meus poderes, construindo-os como uma
tempestade dentro de mim e lutando através da minha visão embaçada, mas
antes que eu possa me defender, a Morrigan golpeia suas garras no meu braço
em um golpe rápido e doloroso, deixando para trás uma dor nas minhas
têmporas.
A forte respiração de Kiaran enche meus ouvidos e ele me libera.
—MacKay. — Quando o alcanço, aproveito apenas o ar.
—Não se aproxime de mim. Ela está fazendo isso de propósito. Ela é um
espectro da água.
—O que?
Parece que suas palavras são ditas através de uma careta. —E ela está
brincando com a gente.
Não me lembro das lições dele. Agora não. Não com a escuridão
pressionando, sufocando. Minhas pernas queimam por pisar na água. —
Espectro da água? — Eu ofego.
—Eles atraem amantes e os deixam um contra o outro. Ela está usando
isso para encontrar nossas fraquezas. Ela quer que eu te machuque.
A risada do Morrigan está no meu ouvido. —Machucar você? — Ela
sussurra com uma risada. —Ele quer matar você.
Eu golpeio para bater meu punho no rosto da criatura, mas ela é muito
rápida. Ela já está atrás de mim, respirando frio, mordendo palavras no meu
ouvido. —Ele não pode esconder seus pensamentos de mim. Eu fui a primeira
Unseelie. Seu sangue é o meu sangue.
Eu giro, atacando novamente.
Ela está nas minhas costas, um demônio enchendo minha cabeça com
terríveis dúvidas. Onde está Kiaran?
Como se ela me sentisse procurando por ele, a névoa quente da caverna
limpa apenas o suficiente para eu vê-lo de perfil. Imóvel.
É quando eu sei, inquestionavelmente, que a Morrigan não está apenas
falando comigo. Ela não está apenas no meu ouvido.
Ela está no dele.
Eu digo o nome dele, baixo e urgente. E quando ele olha para mim... Oh
Deus.
Eu ainda vou. Kiaran está olhando para mim através de seus cílios, seu
olhar sombrio e intenso.
Você é Kiaran ou Kadamach?
Algo brilha em seus olhos. Eu não sei.
—Você vê o jeito que ele olha para você? — A Morrigan parece uma
vencedora no campo de batalha, caminhando pelos corpos. Neste momento,
ele mal consegue respirar sem ser tentado pelo seu sangue. Essa é a minha
maldição. Seus lábios estão perto do meu ouvido. —Esse é o castigo de sua
linhagem.
Rosnando, eu me viro para pegar a Morrigan, mas justamente quando
acho que me conectei com algo sólido, ela se transforma em névoa, escapulindo
com uma risada gutural.
—MacKay. — Eu atravesso a água em direção a ele. —Ouça-me. — Digo
bruscamente quando o alcanço. —Escute minha voz. Você é o rei Unseelie.
Agora saia dessa e me ajude. Como a matamos?
Kiaran balança a cabeça uma vez, mas a escuridão não deixa seu rosto.
Nadamos para outro conjunto de pedras que sobressaem da água; é o mais
perto que ele pode chegar sem me tocar.
Sua voz baixa apenas o suficiente para eu ouvir, suas palavras desiguais,
forçadas. —Se ela assumir a forma física, você poderá dominá-la e impedir que
ela se torne incorpórea novamente.
—Como a fazemos tomar forma física?
Kiaran exala uma respiração trêmula, depois descansa a palma da mão
na minha bochecha. —Confie em mim.
Quando ele se aproxima, eu posso ver a fome em seu olhar. Suas pupilas
estão dilatadas como um predador pronto para atacar sua morte.
Então, com suavidade dolorida, ele pressiona seus lábios nos meus.
É preciso todo o meu esforço para ficar parada, para me impedir de puxá-
lo para mais perto. Minhas unhas roem a pele das palmas das mãos. Fique
parada. Não se mexa. Não respire. Nem pense. Eu sei que o controle dele é
tênue. Sinto quando seus lábios tremem contra os meus. Da maneira lenta e
deliberada, ele respira como se estivesse tentando manter a calma.
Para nós, é um beijo casto. Não sei como um toque tão simples me deixa
tremendo, mas não sou a única.
Os dedos de Kiaran percorrem meu casaco molhado, um toque de fogo
através do material frio. Então sua mão desliza por baixo para encontrar minha
cintura, dedos roçando a pele onde minha camisa e calça se encontram. Minha
mente sussurra uma palavra simples. Sim.
Garras cortam minhas costas, rasgando o tecido e profundamente em
minha pele, e eu grito. Mas meus instintos não me falham. Eu torço para fora
dos braços de Kiaran, levanto minhas mãos e libero meu poder.
Fique, eu ordeno com toda a força da Cailleach. Fique parada.
A Morrigan no corpo do espectro se agita, espalhando água por toda
parte. Seus olhos de safira brilham com raiva e nojo. —Humana imunda.
—Esta humana imunda que deixou você presa. — Eu digo. —MacKay.
— Quando ele não se move para atacar, eu olho para ele. —MacKay?
Uma maldição suave me escapa.
Ele está olhando para mim - não, não para mim. Nas minhas costas, onde
a Morrigan cortou suas garras fantasmagóricas através da minha pele tão
profundamente que eu posso sentir meu cheiro de sangue se misturando na
água.
Os lábios de Kiaran se separam. Então eu vejo o pequeno lampejo de
presas descendo sobre seus dentes. Quando seus olhos encontram os meus, o
lilás normalmente brilhante e misterioso de seus olhos é sombreado por algo
mais sombrio.
Algo voraz.
—Aí está. — Sussurra a Morrigan. —Minha linda maldição Unseelie.
—Cale a boca. — Digo bruscamente.
A energia para mantê-la corporal já está cobrando seu preço. Estou
ficando tonta. Minhas têmporas batem e pontos piscam em minha visão. Meu
corpo humano não aguenta e não tive chance de consertar desde o último uso
dos meus poderes. Receio que, se eu for matá-la, desmaiaria novamente.
Confie nele. Confie nele.
A Morrigan se aproxima, lutando contra os limites dos meus poderes.
Ela sente uma oportunidade. —Eu posso ler os pensamentos dele. Devo lhe
contar?
—Pare. — Minha visão está desaparecendo.
—Ele está lutando entre seus sentimentos por você e sua vontade de
sobreviver. Qual você acha que triunfará? Você acha que ele pode ir contra o
que foi feito? O que eu o projetei para fazer? Minha maldição sempre vence.
Sua fome sempre vencerá. Sempre.
—MacKay. — Eu digo, seu nome quase um sussurro enquanto luto para
me manter consciente. —Olhe para mim. Escute minha voz.
Você é Kiaran ou Kadamach?
Ele está mais perto, movendo-se através da água como uma grande
sombra. Isso o faz parecer maior, mais formidável. Mesmo sem seus poderes,
Kiaran não é humano. Ele é uma criatura das trevas, fada em todos os sentidos.
Aquele Unseelie nele que eu sempre via escondido sob a superfície não está
mais escondido.
E o foco de sua atenção - daquela construção imponente e aqueles olhos
profundos e escuros - sou eu. Não há nada em seu olhar para indicar que ele
me vê como algo além de um meio de sua sobrevivência.
Confie nele. Confie nele.
O nome dele está nos meus lábios, um sussurro suplicante. Olhe para mim.
Volte para mim.
A Morrigan ri.
Confie nele. Confie nele.
Ele está tão perto. Suas presas piscando, me alcançando, para sufocar a
vida fora de mim -
Kiaran agarra o espectro pela garganta e com um empurrão rápido de
sua mão, quebra seu pescoço. Ofegando, eu encaro a forma desalinhada e sem
vida do espectro enquanto atraio meus poderes de volta para dentro de mim.
Eu ignoro a dor de cabeça latejante em minhas têmporas e olho para Kiaran,
mas ele não olha para mim.
Ele não precisa.
À minha esquerda, a parede da caverna começa a desmoronar tão
facilmente quanto a lama seca para revelar um portal. Pequenos pedaços de
pedra caem ao nosso redor. Eu golpeio a água na minha cara, preparando-me
para outra luta - para a Morrigan voltar. Mas através do portal, tudo o que vejo
é uma floresta abaixo das magníficas estrelas de um céu noturno. Uma saída
da caverna.
Logo depois da linha das árvores escuras, juro que vejo uma garota de
cabelos longos e pele pálida, uma silhueta contra a luz da lua.
Mas quando olho novamente, ela se foi.
Do lado de fora da caverna, a floresta se eleva com árvores tão grossas e
escuras quanto colunas cobertas de fuligem. Uma lua cheia brilhante paira alto,
a luz iluminando os topos dos galhos em uma névoa sombria e brilhante.
Inclino minha cabeça para trás com a brisa fresca, tremendo um pouco em
minhas roupas molhadas.
Quem era aquela garota?
—Você viu... — Minha voz diminui quando olho para Kiaran.
Sua respiração é lenta e constante, como se estivesse contando os
segundos para se acalmar. Ele levanta a mão trêmula para afastar o cabelo. —
Vi o que? — O sotaque dele é desigual.
—Nada. Deixa pra lá. — Eu pressiono meus lábios, sem saber o que dizer.
—Devemos atravessar a floresta? — Eu pergunto em vez disso. —A Morrigan
não nos encontrará facilmente aqui?
—Até a Morrigan teria que se recuperar de um ataque como esse. — Diz
ele. —Tomar forma física exigiria muito poder. Vamos aproveitar a
oportunidade para descansar. — Kiaran me joga seu casaco. —Aqui. Há um
rolo de pão para você no bolso interno. Você precisa comer alguma coisa.
O pão está embrulhado em folhas que o mantêm seco. Eu murmuro meus
agradecimentos por Kiaran ser tão prático. Entre os ataques da Morrigan e a
preocupação com o livro, eu nem percebi o quanto estava faminta.
Kiaran reúne lenha para o fogo e eu a acendo com meus poderes. Um
pouco de energia que estou disposta a arriscar porque estou muito cansada e
também nunca vi Kiaran parecer tão áspero.
Agora você sabe como me sinto, penso ironicamente enquanto me sento
perto das chamas. Nenhuma pele fada invulnerável e brilhante. Sem cura
imediata. Apenas o cansaço profundo da mortalidade.
Kiaran está sentado em frente, o mais longe possível de mim. O cheiro
de madeira queimada deve mascarar o cheiro do meu sangue, pelo menos um
pouco. Seus olhos piscam para mim em uma avaliação rápida e controlada. —
Suas feridas precisam ser atadas.
Não posso deixar de sorrir. —Primeiro o pão, agora minhas feridas. Esse
é o jeito Kiaran MacKay de se irritar com alguém?
—Eu não irrito. — Diz Kiaran. —Dou instruções severas, como: limpe
suas malditas feridas.
—Eu não gosto de homens dominadores.
Sua boca se torce em um sorriso malicioso. —E, no entanto, eu amo
mulheres assertivas e teimosas.
Eu rio de surpresa. —Deus, eu te adoro.
Eu tiro meu casaco dos ombros para verificar meus ferimentos. Existem
alguns arranhões superficiais nos meus braços. Os mais profundos, ao longo
dos meus ombros, precisarão de costura. Mas não tenho o luxo de tais coisas
agora. Tudo o que tenho para curar minhas feridas é o tecido do meu casaco.
Seda não é exatamente ideal, mas qualquer coisa é melhor do que sangrar.
Enquanto tiro o casaco ensopado pelo resto do caminho, a voz aguda de
Kiaran me assusta. —Queime isto.
Eu olho em choque. —Perdão?
—Queime. O. Casaco. — Desta vez, ele diz as palavras entre os dentes.
—Use o meu para encobrir seu perfume. Sinto o cheiro do seu sangue e isso
está me deixando louco. — Então ele diz algo que eu nunca esperaria em mil
anos: —Por favor.
Por favor. Durante todo o tempo em que conheci Kiaran, ele nunca disse
isso. Juntamente com “desculpa”, presumi que não estava no seu vocabulário.
Mas aí está, a palavra pairando no ar entre nós, uma marca de seu
desespero. Por favor. Agora eu sei que o jeito que ele me olhou na caverna antes
de matar a forma de espectro da Morrigan não era para se mostrar. Não era
para fazer a Morrigan pensar que ela havia vencido.
Ela quase venceu.
—Muito bem. — Eu digo baixinho.
O espectro triturou o suficiente do meu casaco para que seja fácil rasgar
em tiras. Pressiono o mais longo por cima do ombro, prendendo-o no lugar
com outro pedaço de material que eu laço com os dentes. Eu faço o meu melhor
para limpar o sangue ao longo das minhas costas, esfregando-o até minha pele
doer.
Então jogo os restos do meu casaco esfarrapado no fogo e encolho os
ombros no casaco descartado de Kiaran. É tão grande para mim que tenho que
arregaçar as mangas.
Eu levanto meus braços com um leve sorriso. —Quão boba eu pareço
nisso? Seja honesto agora.
Percebo que um pouco de tensão deixa seus ombros. —Kam. — Ele
balança a cabeça com uma pequena risada. —Você é adorável.
Eu sorrio —Meu Deus. Você acabou de me chamar de adorável no
contexto apropriado. E aqui eu pensei que você só usasse essa palavra por um
motivo terrível.
—Segunda razão, não é terrível: você. Nesse casaco. Com esse sorriso.
—E a minha definição? — Eu me levanto e começo ao redor do fogo. —
Você. Eu. Afago...
—Não. — Kiaran estende a mão para me parar. Eu congelo quando suas
pupilas dilatam. —Não. — Ele diz novamente. —Fique lá.
Fico quieta enquanto o olho. Quanto tempo temos até você se afastar demais,
MacKay? Quanto tempo até eu não poder mais ver Kiaran?
É quando eu noto a ferida em seu braço: um corte longo e irregular.
Profundo o suficiente para que o sangue esteja encharcando sua camisa de lã
áspera. A Morrigan provavelmente o machucou para ajudar a cortar seu
controle. Sem seus poderes, ele não pode se curar.
Lentamente, me inclino para pegar as tiras de tecido que deixei no chão.
—Seu braço está sangrando.
—Estou bem. Sua preocupação não é necessária.
Ele costumava falar comigo assim quando caçávamos juntos. Era a
distância fria de professor e aluna, especialista e novata. Um toque de
condescendência, uma pitada de superioridade, e sempre me dava vontade de
bater na cabeça dele com um guarda-sol.
Dou um passo em sua direção e ele diz meu nome com força suficiente
para que eu pare. —Eu não quero te machucar.
Eu olho para ele pacientemente, porque eu vou envolver seu maldito
braço, se eu tiver que segurá-lo para fazê-lo. —Eu não ligo para o que você
quer. Você nunca experimentou perda de sangue antes. E você não está bem.
Você está pálido, tremendo e parece um inferno. — Quando ele olha para mim,
cruzo os braços. —Se você tentasse me atacar agora, eu apostaria uma quantia
por tê-lo na sua bunda em dois segundos. Deixe-me cuidar dessa lesão, ou você
corre o risco de desmaiar em uma luta. Sua escolha.
Após um momento de silêncio, ele assente uma vez. Bom. Isso me poupa
o esforço de encontrar um galho para lhe dar algum sentido.
Eu me aproximo dele lentamente, meus passos cuidadosos e uniformes.
Quando seus dedos se fecham, eu paro até que ele relaxe um pouco. Então me
agacho ao lado dele e estendo minha mão, palma para cima. Aguardando
permissão.
—Isso está bom? — Eu pergunto, mantendo minha voz baixa, firme.
Ele assente novamente.
Afasto o material esfarrapado para ver melhor. Ao contrário do meu, sua
ferida já começou os estágios iniciais do processo de cura, o que significa que,
mesmo sem seus poderes, sua cura é muito mais rápida. Não será instantâneo,
mas ele é um bastardo sortudo.
Eu uso um dos restos para esfregar o ferimento. Kiaran não faz barulho,
nem quando envolvo o pano para prender a ferida e começar a próxima.
—Isso te incomoda? — Eu pergunto. —Sabendo que você não vai se curar
tão rapidamente aqui?
—Não. É... — Ele fica quieto. —Às vezes é fácil tomar a vida como certa
quando você não precisa se preocupar em morrer.
Viro as palavras em minha mente, imaginando como seria ser imortal.
Que algo tão pequeno quanto a visão do seu próprio sangue possa ser uma
revelação.
—Eu não sei. — Digo levemente. Não me importaria em entrar em uma
batalha me preocupando um pouco menos em ser mortalmente ferida. Às
vezes eu gostaria de ser fada.
—Não, você não sabe. — Diz ele com uma risada amarga.
Eu olho para ele surpresa. —Você não gostaria que eu vivesse para
sempre? — Com você?
Kiaran olha para o fogo, sua expressão revelando uma pitada de
desconforto com o pensamento.
—Não. — Sua resposta é o toque de uma espada.
—Oh. — Não quero ver o quanto essa lâmina vai mais fundo.
Viro-me para distanciar-nos, mas a voz de Kiaran soa atrás de mim. —
Meus anos de tesouros, porque somos egoístas por natureza. — Diz ele,
parecendo quase zangado. —Nós adicionamos cada um à nossa coleção até
reunirmos tantos que viver não tem mais significado. Torna-se trivial, sem
importância e chato. É isso que você quer para si mesma? O que você quer que
eu deseje para você? Porque não se engane, uma morte humana seria muito
mais gentil.
Eu congelo. Esse é o seu futuro, sua vida, sua existência. Se eu sobreviver
para encontrar o livro e torná-lo meu, ele vai viver. Meus ossos estarão no chão
e ele ainda vai suportar.
As fadas realmente não vivem. Elas simplesmente existem.
Quando meus olhos encontram os dele, o preto de suas íris exterior
sangra sobre a cor mais clara novamente. Eu odeio aquele pequeno pedaço de
escuridão ali, aquele lembrete de sua natureza Unseelie, uma separação entre
nós.
A necessidade de sentir a pele dele na minha é avassaladora. Acabei de
vislumbrar nossos futuros separados, e agora me lembro de quanto tempo
resta para nós. Se encontrarmos o Livro, é isso. Encontre o livro, é isso. Essas
pequenas respirações entre batalhas.
—Eu quero você. — Eu sussurro, engolindo antes que minha voz pegue.
Eu nunca disse isso a ele antes. Não, nunca. Olho para o espaço ao lado dele.
— Posso me sentar?
A escuridão continua se espalhando por sua íris e depois se retira. Ele
respira fundo e assente. Eu lentamente me relaxo ao lado dele, pressionando
minha coxa na dele. Ele coloca a mão no meu joelho, um gesto que é familiar e
distanciador. Se ele quisesse me tocar em troca ou me afastar.
—Diga-me para parar e eu irei. — Pressiono a palma da mão na bochecha
dele e ele fecha os olhos. —Apenas diga a palavra.
Eu me inclino e o beijo suavemente, apenas uma vez. — Tudo bem?
O aperto de Kiaran no meu joelho aumenta, mas ele assente novamente.
Eu mergulho minha cabeça para pressionar meus lábios no espaço acima
de seu ombro. — Tudo bem? — Eu sussurro novamente.
Ele ainda está. Tão quieto. Eu o ouço engolir. —Sim. — A palavra é um
apelo em seus lábios, e eu ouço a falta flagrante lá. A necessidade. Tanto quanto
eu quero e preciso.
Eu esfrego meus dentes suavemente em seu pescoço e sinto sua
respiração suave e trêmula contra a minha língua. Ele parece mais humano do
que nunca. Mais vulnerável. Somente... Mais. Mais tudo.
Quando deslizo minha mão para o fundo de sua camisa ele segura meu
pulso. Eu assisto a luta em sua expressão e entendo que, mesmo que ele se sinta
humano, ele não é. Ele é Unseelie. E eu estou testando seus limites.
Quando ele abre os olhos novamente, eles estão claros. Eu posso dizer
que ele está exausto, que a batalha para manter sua natureza Unseelie está
começando a tomar seu pedágio.
—Durma. — Digo a ele. —Pela primeira vez, você precisa.
Quando eu começo a me levantar, ele não me solta. —Fique. — Ele
murmura. —Não vá.
Ele me puxa para baixo e pressiona um beijo suave nos meus lábios,
sussurrando as palavras novamente. Fique. Outra vez. Fique. Mais uma vez. Ele
diz que é tudo o que resta para aterrá-las. Ele diz as palavras porque não temos
anos...
Nós acumulamos nossos minutos, nossas preciosas horas, porque elas
são tudo o que ele tem e que me resta.
Quando me mexo e dou um tapinha no espaço ao meu lado, acho frio.
Vazio. Algo tritura por perto e eu fecho meus olhos, minha mão procurando
uma lâmina.
Sorcha e Aithinne estão debruçadas sobre mim.
—Você estava roncando. — Diz Aithinne, inclinando a cabeça levemente.
—E arranhando o chão como um cachorro pequeno. Os seres humanos são
muito estranhos quando dormem.
Sorcha bufa. —Você é capaz de dizer algo que não é completamente
ridículo?
—Vou dizer algo que não é completamente ridículo quando você diz algo
que não faz as pessoas ao seu redor quererem arrancar sua cabeça.
Sento-me tão rápido que minha cabeça gira. Ainda é noite na floresta -
ou talvez sempre seja. A fogueira já morreu há muito tempo, mas a lua ainda
está cheia no céu, brilhante o suficiente para iluminar os espaços entre as
árvores. Eu procuro Kiaran na floresta, mas não o vejo. A única indicação de
que ele estava aqui é a grama achatada ao meu lado, seu casaco dobrado em
volta de mim como um cobertor. Ele deve ter me coberto antes de sair.
—Onde está Kiaran?
Aithinne se endireita. —Você era a única aqui. Passamos por um portal
e lá estava você. Roncando.
Por que ele sairia sozinho com a Morrigan ainda lá fora? Meu estômago
dá um nó de pavor. Espero que ela não o tenha atraído. Ela foi capaz de
manipular sua natureza Unseelie na caverna com muita facilidade.
—A Morrigan nos atacou. — Digo a elas, levantando-me. Enfio meus
braços no casaco de Kiaran e pego minha espada. —Precisamos encontrá-lo.
Agora.
Aithinne parece confusa. —Você só caiu naquele buraco alguns minutos
atrás, como poderia...
—Não seja idiota, Aithinne — Diz Sorcha irritada. —O tempo funciona
de forma diferente aqui, dependendo de onde você está. É o mesmo que em
Sìth-bhrùth.
Onde quer que ele esteja, Kiaran está ferido, cansado e perdendo o
controle. Ele pode estar com problemas.
Prendo a bainha da espada na cintura e vou para as árvores. —Se vocês
vêm, apressem-se.
Elas se entreolham, mas seguem. Aithinne corresponde ao meu passo,
olhando de soslaio para mim. —Você nem sabe para onde está indo, sabe? Você
não está lutando, está lutando a toda velocidade com a venda nos olhos e os
ouvidos cortados e...
— Obrigada. — Digo. —Essa metáfora não precisava ser estendida.
Corro o risco de usar um pequeno pulso de poder, um golpe nas árvores
ao nosso redor. Encontre Kiaran.
Nada. Nem agitação, nem fôlego, nem sussurro.
Aithinne acena com a mão desdenhosa. —Você sabe o que eu quero
dizer.
Balanço a cabeça uma vez. —Nenhuma de nós sabe para onde estamos
indo. — Eu digo. —Você? — Olho para Sorcha, que está me olhando com
cautela - sem dúvida porque pareço louca. —Ela?
Encontre Kiaran. Encontre o livro. Mate a Morrigan. Concentre-se nessas três
coisas com a vontade de ferro de alguém que tem tudo a perder. Alguém que pode ter
apenas horas restantes.
Se eu me preocupar demais com o que está acontecendo com Kiaran,
farei algo imprudente. Mas eu preciso dele. Para acalmar minhas dúvidas. Para
me dizer que posso fazer isso, minha batalha final. É a minha última tentativa
de corrigir as coisas.
—Falcoeira. — A voz de Aithinne é paciente. —Nós devemos planejar o
nosso próximo-
—Eu não tenho tempo para isso e você sabe disso.
Aithinne agarra meu braço para me parar. —Você percebe como você soa
agora? — Ela diz bruscamente. —Mar theine beumach 10. Como se você estivesse
em um caminho de destruição. Você não está pensando claramente.
—Ela é humana — Rebate Sorcha. —Eles pensam claramente?
Eu giro para Sorcha, desembainhando minha lâmina. O metal assobia em
um arco, a ponta pressionando contra sua garganta. —Você sabe como
encontrar o livro, não é?
—Aileana.
Eu ignoro Aithinne, meu olhar totalmente focado em Sorcha. —Me
responda.
Os olhos verdes de Sorcha brilham. —Eu não gosto de falar com uma
lâmina na garganta.
11 Freira (????)
Os lábios do homem fada pressionam uma linha cruel quando ele tira
um lenço do bolso do casaco e o joga na direção dela. —Limpe isso.
Com um grunhido, Sorcha pega o tecido e limpa a saliva de suas botas.
—Satisfeito? — A palavra sai como uma maldição.
—Não. — Ele agarra a lâmina no quadril e a joga no chão. —Pegue a
adaga e pressione-a sobre o seu coração. — A mão de Sorcha treme, mas ela
faz o que ele pede. Seus olhos são duros, assassinos. —Deslize para dentro,
menina. — Diz ele em um silvo.
Pressiono a mão na boca enquanto Sorcha empurra a lâmina através do
tecido do vestido e da pele. Sua respiração está rápida, seus olhos se fecham
com força, mas ela nunca grita. Eu posso dizer que ela quer. Um pequeno grito
escapa de seus lábios, mas ela morde o lábio inferior com força.
—Pare. — Diz o homem fada. —Bem ali. Mais um empurrão, e eu posso
forçá-la a terminar sua própria vida. Toda vez que você pensar em me desafiar,
lembre-se deste momento. Lembre-se bem disso. — Ele ordena que ela retire a
lâmina e Sorcha puxa-a com um suspiro áspero. —Devo perguntar
novamente? — Ele pergunta enquanto ela pressiona a mão na ferida. —Você
vai tomar o seu lugar ao meu lado?
Ela olha para ele. —Prefiro colocar essa adaga no meu coração.
O homem fada não responde. Ele se ajoelha ao lado de Sorcha e a agarra
bruscamente pelo queixo. —Você é ainda mais espirituosa que sua mãe. Cem
anos aqui embaixo e ela teria feito o que eu pedisse. Alguns dias, lamento ter
aceitado sua oferta para substituí-la. Lamento muito que você queira tanto
começar.
Sorcha mostra suas presas. —Bom.
Os dedos dele apertam a mandíbula dela. —Então eu penso sobre como
será quando você finalmente aceitar. — Com a outra mão, ele traça a linha da
garganta dela, até a base do pescoço dela, onde vejo marcas que não havia
notado antes. Marcações que Sorcha não tem agora. Eu a encaro bruscamente.
Uma promessa? Para ele? —Um dia você verá isso e não pensará mais nisso
como um fardo. Você virá a mim de bom grado.
Sua risada é áspera, zombeteira. —Um dia essa marca terá desaparecido,
e a primeira coisa que farei é abrir sua garganta.
Os olhos dele endurecem. —Você me força a ser cruel. Felizmente para
você, também sou muito, muito paciente. — Ele a libera e fica de pé. — Mais
cem anos, então. Desta vez, nem vou lhe trazer um humano moribundo para
se alimentar. Vamos ver quanto tempo você dura antes de implorar por um.
A porta se abre para a linda luz do sol e então se fecha cruelmente para
deixá-la na escuridão com os mortos.
A memória muda. As paredes escuras se desvanecem em uma sala rica e
opulenta em uma enorme tenda. Uma cama grande, coberta com lençóis de
seda branca, parece minúscula na parte de trás. A tenda é composta por
tapeçarias intricadamente tecidas que representam batalhas. Unseelie contra
Seelie. Kiaran contra Aithinne.
No meio da tenda, ocupando a maior parte do quarto, há uma mesa larga
e resistente de carvalho. Kiaran está lá, em pé com o mestre de Sorcha. Não,
não Kiaran. Seus olhos têm o mesmo olhar profundo, escuro e sem esperança
que eu reconheci. Este é Kadamach.
Ele está olhando para um mapa que cobre quase toda a largura e
comprimento da mesa, uma intrincada representação das terras Seelie e
Unseelie.
—Se enviarmos uma frota de navios — Diz a outra fada. —Podemos
tomar as aldeias portuárias facilmente. Interromper suas linhas de suprimento
a partir daí e forçar uma retirada.
Sorcha está agachada aos pés de Kiaran, prendendo um guarda protetor
de metal em torno de sua canela. Preparando-o para a batalha. Ela trabalha em
silêncio, habilmente puxando a pulseira de couro. Inferno, ela parece terrível.
Muito pior do que antes. As manchas roxas sob seus olhos escureceram, e
aqueles lindos olhos verdes se embotaram de fome. Ela está tão magra que
parece uma das vítimas de Kiaran, tão perto da morte que não sei como ele não
percebeu.
Quando ela se move para colocar outro adereço em volta da outra perna
de Kiaran e ele apenas endireita a perna sem olhar para baixo, eu entendo o
porquê.
Ela é uma criada. Ele nem a vê.
Kiaran passa um dedo pelas peças do mapa que marcam seus navios e
os ataca, um após o outro. —É isso que você pensa, estrategista? Estou
perdendo meu tempo atacando a frente oriental? — Ele olha para cima e eu
tremo com o quão frio seu olhar é. —Diga-me, por que você acha que eu
mantenho meus soldados em nossas costas, em vez de enviá-los para o mar?
—Me perdoe. Eu falei fora de hora. — A voz do estrategista treme
levemente de medo.
—Não. — Diz Kiaran. —Você não falou. Responda à pergunta.
Sorcha pega o peitoral no baú. Enfraquecida por não se alimentar, ela
cambaleia sob seu peso e joga o metal no chão com um barulho pesado. Ela
congela, sua respiração saindo em um suspiro aterrorizado.
Kiaran olha para ela, como se ele a tivesse notado pela primeira vez.
—Sua garota estúpida — O estrategista rosna para Sorcha. Ele a agarra
bruscamente pelo braço. —Desta vez, vou mantê-la naquela caverna até que
você não consiga se mexer...
—Tire a mão dela. — A voz de Kiaran é baixa, perigosa. Quando o
estrategista hesita, ele acrescenta: —Agora. — Kiaran acena com a cabeça para
a cadeira do outro lado da tenda. —Sente-se e fique em silêncio. Se você emitir
um som, cortarei sua língua e a engolirei.
Sorcha permanece imóvel, com o olhar abatido, enquanto Kiaran se
aproxima dela. —Olhe para mim. — Ele ordena.
Os olhos dela encontram os dele. Embora ela esteja claramente com
medo, há um desafio em seus traços. Como se ela estivesse dizendo, faça o que
quiser. Me castigue. Não vou implorar pela minha vida.
Os lábios de Kiaran se contraem, e eu sei que ele também vê. —Por que
você não me diz o que meu estrategista não entendeu? — Ele pergunta quase
gentilmente. —Por que mantenho meus soldados em nossas costas?
Sorcha contrai os lábios. —Os Seelie... — Sua voz treme, e ela respira
antes de tentar novamente. —Eles podem falar com o mar, aprender segredos
da água. Eles saberiam que estávamos vindo. — Na expressão expectante de
Kiaran, ela explica com uma pitada de amargura: —Eu tenho um irmão. Ele é
Seelie.
Do jeito que os olhos de Kiaran brilham, eu sei que ela respondeu
corretamente. —O que você sugeriria?
—Eu não sou uma estrategista.
Kiaran acena a mão em direção ao mapa. —Conceda-me.
Observo enquanto Sorcha analisa silenciosamente as características
geográficas. Sua mente repassa possibilidades, ataques, contra-ataques. Ela
interpreta cenários de batalha da maneira como planejo invenções, como se
fosse uma segunda natureza.
Finalmente, ela desliza o dedo pelo mapa e bate na passagem da
montanha. —Lá. É perto o suficiente do mar que a rainha considerará sua
posição uma vantagem. Os penhascos dos dois lados são altos o suficiente para
que nossos soldados possam puxar as sombras para esconder seus verdadeiros
números. — Ela olha para Kiaran. —Você pode enviar alguns soldados em
nossa costa para liderar os Seelie em direção a esse desfiladeiro.
—Você está sugerindo que eu os sacrifique.
Sorcha levanta um ombro. —Eu te disse; Eu não sou uma estrategista. —
Kiaran olha para o mapa, para Sorcha, para seu estrategista. —Eu acho que
você é. Acho que você decidiu que a vitória valeria a pena a morte deles. — Ela
não diz nada enquanto ele se senta na cadeira ao lado da mesa e a olha. Os
olhos dele observam o desenho em volta do pescoço dela. —Você usa uma
marca de servidão.
Sorcha endurece. —Sim.
—Você não me parece tola o suficiente para fazer essa promessa sem uma
razão convincente. Conte-me.
—Ele enganou minha mãe a fazer isso primeiro — Diz Sorcha. —Vi o que
ele fez com ela. Como a marca a forçou a obedecer a todos os seus comandos,
não importa o quanto isso a machucasse. Não iria viver muito mais se ficasse
com ele. — Ela levanta o queixo. —Então eu me ofereci no lugar dela, porque
eu era tola. Eu era criança.
A expressão de Kiaran não muda. —Ele ordenou que você a matasse.
Os lábios da outra fada se apertam, mas ele não faz barulho. Ele não vai
arriscar Kiaran cumprindo sua ameaça.
—Ele ordenou. — Diz Sorcha, sua voz tremendo de raiva desta vez. —
Claro que ele fez. Ela não era a pessoa que ele queria.
A voz de Kiaran é quase suave quando ele pergunta: —Quando foi a
última vez que você se alimentou?
Ela respira trêmula. —Quase duzentos anos atrás.
Eu posso sentir a surpresa de Kiaran. Seu rosto permanece impassível
como sempre, mas há algo crescendo em seu olhar, algo com raiva. Algo cruel.
—Você gostaria de poder matá-lo?
No canto da tenda, o estrategista faz um som baixo de asfixia.
O sorriso de Sorcha é pequeno, um fio de punhal. —Todo dia.
Os olhos de Kiaran piscam para o estrategista. —Liberte-a de sua
promessa.
A voz do estrategista treme quando ele fala. —Mas, meu rei...
—Isso não foi uma sugestão — Diz Kiaran friamente. —Não me faça
dizer de novo.
A outra fada olha para Sorcha e fecha os olhos em derrota. Suas palavras
mal são ditas acima de uma respiração. —Eu liberto você da sua promessa.
Sorcha se dobra com um grito agudo enquanto a marca em volta do
pescoço brilha em brasa como metal derretido. A marca se desintegra em pó
em suas roupas. Ela se endireita, sentindo os dedos acima da clavícula com um
olhar atônito no rosto. Quando ela olha para Kiaran, é com alívio e gratidão.
—Obrigada meu rei. Obrigada.
—Não me agradeça. Não faço nada por gentileza. — Kiaran pega a
lâmina no quadril, puxa a adaga e a entrega a ela, primeiro o punho. —Você
disse que desejava a morte dele. Vingue-se.
O sorriso de Sorcha se amplia. —Eu planejo.
O estrategista está de pé e caminhando para a frente da tenda, mas
Sorcha está lá primeiro. Ele nunca teve a chance. Ela cai sobre ele, o poder
saindo dela com uma força surpreendente para mantê-lo quieto. Então ela pega
a lâmina e abre a garganta dele. Ela não para por aí. Ela o esfaqueia repetidas
vezes, um grito saindo de sua boca a cada vez. Isso dura tanto tempo que fecho
os olhos para bloquear a visão.
Quando ela termina, está respirando com dificuldade, seus membros
tremendo. Ela está coberta de sangue. Os olhos dela estão molhados de
lágrimas.
Ela nem percebe quando Kiaran se aproxima dela. —Me diga seu nome.
—Sorcha. — Ela sussurra.
—Sorcha. — Ela fecha os olhos, como se o som de seu nome nos lábios
dele fosse uma música que só ela pudesse ouvir. —Parece que estou precisando
de uma nova estrategista. Você está interessada?
—Sim. — O sorriso dela é um lampejo de dentes, com o qual estou
familiarizada. —Ai sim.
Catherine, Gavin e Daniel estão aqui para uma de suas visitas quinzenais.
—Cristo, Catherine. — Gavin está dizendo. —Por que você não pega
todos os bolos de chá? Continue, apenas jogue-os na retícula como um ladrão.
Eu vim para apreciar esses momentos de leviandade. Eu não tenho que
fingir com esses três. Nenhum de nós tem. Minha mãe ainda me olha às vezes
como se não soubesse quem eu sou. Sou uma soldada cansada de batalhas no
corpo de sua filhinha.
As únicas pessoas que se lembram das fadas estão sentadas nesta sala. E
estamos tentando aprender a viver com nossas memórias de guerra. A verdade
é: o mundo pode ter sido curado, mas nenhum de nós foi.
—Aileana. — Diz Gavin, interrompendo meus pensamentos. —Você
sabe que Catherine está roubando comida de todas as festas que participamos
no último mês? Ela está acumulando sobremesas em seu quarto.
—Por que você está tão preocupado com meus hábitos alimentares? —
Ela olha para Daniel. —Se eu ganhar vários quilos, e daí? Eu não como bolos
de chá há três anos. E Daniel me incentiva, não é, querido? Você gosta de bolos
de chá também.
Na pergunta de Catherine, Daniel levanta as mãos. —Eu não estou no
meio de uma disputa entre irmãos. Para minha própria sobrevivência.
Daniel voltou a essa época de reajuste com um conveniente condado
passado por algum primo distante que ele nunca ouvira falar - que
provavelmente não existia - e uma repentina e espantosamente grande fortuna.
Aithinne está ajudando. Para uma fada, ela é romântica.
Daniel e Catherine agora precisam se casar novamente. Para conseguir
um rápido compromisso, Gavin teve que falar com a mãe e sugerir que ele
descobrisse Catherine em uma posição comprometida.
—Oh, pelo amor de Deus. — Eu interrompo. Eu aceno minha mão. —
Gavin, pare de incomodar Catherine e deixe-a comer os malditos bolos de chá.
De fato, tem mais cinco.
Catherine empilha mais cinco e olha diretamente para Gavin enquanto
ela enfia um na boca. —Mmmm — Diz ela fechando os olhos. —Esse peso extra
valeria a pena. Senti falta de bolos de chá. E chá. E biscoito amanteigado.
Sinto falta de Derrick. Sinto falta das músicas dele. Sinto falta de tê-lo sentado
no meu ombro.
Sinto falta de Ki -
Não. Não pense nele.
Hoje estava um pouco mais fácil respirar. Hoje de manhã, consegui me
segurar. Mas se eu pensar nele, começarei a sentir muito novamente. Eu vou
me perder em minhas emoções.
—Não é isso de novo. — Gavin geme e ele me diz, —Catherine tem essa
lista de coisas que ela perdeu e tinha cerca de cem itens. Ela recitou às três da
manhã e eu não dormi... — Ele aperta os lábios com o repentino olhar duro de
Catherine. —Desculpe. — Ele murmura.
Eu olho para ela. —Você ainda está tendo pesadelos?
Catherine pega o vestido. —Enquanto eu aprecio os bolos e a cidade e
tudo mais, algumas partes eu... — Ela engole. —Eu pareço ingrata.
Daniel coloca o braço em volta dela. —Faz três anos, Cat. Não peça
desculpas por não se sentir assim logo após um mês sangrento.
—Eu sei. Eu só... — Catherine olha para a porta aberta.
Eu me levanto do sofá e fecho a porta. Não queremos que os funcionários
ouçam nossas conversas, não quando estamos discutindo o que parece um
sonho. Um sonho coletivo onde o mundo ardeu em cinzas.
—Eu também não durmo. — Eu digo. Mais que isso. —Às vezes eu ainda
saio.
Gavin faz uma careta. —O que você espera encontrar? Não há mais fadas
na cidade.
—Obrigada por me lembrar. Eu estou ciente disso. — Eu digo isso com
um toque muito agudo.
—Então por que?
—Eu não sei mais. — Eu minto.
—O que diabos você tem para estar tão agitada? — Mamãe diz enquanto
me ajuda a vestir. Este deve ser o trabalho da minha empregada, mas hoje à
noite minha mãe insistiu em me ajudar. Assim como ela fez da última vez. Ela
está usando o vestido que eu lembro: o tecido de seda tingido em um rosa tão
claro que é quase marfim. Uma cor incomum para uma matrona de
Edimburgo, mas complementa sua pele pálida e seu cabelo ruivo.
A última vez que vi aquele vestido, estava coberto de sangue.
Carmesim combina com você.
Eu vacilo. —E se nós não formos? — Minha mão está tremendo enquanto
aliso meu vestido. —Tudo bem?
Mãe sorri para mim como se eu estivesse sendo boba. —Você está
nervosa, não está?
—Não. Mãe -
—Pronto. — Ela abre o último botão e dá um passo para trás para me
inspecionar. —Você está tão bonita. Eu tenho apenas uma última coisa e ficará
perfeita.
Mãe vai até o armário e pega um pacote de lã. Meu coração bate quando
eu olho para o tecido familiar. Por favor, não.
Ela abre-o e ali, aninhado na lã, estão os talos familiares do cardo azul.
Seilgflùr.
Meu coração ruge em meus ouvidos e minha visão turva. Eu encaro a
flor e as lembranças brilham em minha mente.
Minha mãe na rua, vestido encharcado de sangue. Como eu pressionei
minhas mãos em seu peito vazio como se eu pudesse colocá-lo de volta juntos,
como se eu pudesse lhe dar um coração; naquele momento, eu lhe daria o meu.
—Não é adorável? Será a única cor em você.
Será a única cor em você. A única cor.
Eu me afasto dela, quase batendo na penteadeira. —Onde você
conseguiu isso?
Mãe parece um pouco surpresa com a força das minhas palavras. —Uma
mulher me deu.
Uma mulher. Não um homem. Na primeira vez, Kiaran a deu à minha
mãe para minha proteção. Ela a trançou nos meus cabelos e seu poder me
permitiu ver Sorcha.
—Quem? Como ela era? — Estou ciente do terror em minha voz, mas não
posso reprimi-lo.
Mamãe parece alarmada. —Não me lembro. Por que isso importa?
Sorcha disse que faria as mesmas escolhas novamente. Ela mataria minha
mãe novamente. Ela deixou claro que não estava ganhando meu perdão. E eu
não sou mais uma Falcoeira. Eu não tenho poderes para lutar contra ela.
Eu sou apenas humana.
Agora a pergunta: Quem era a mulher Sorcha ou Aithinne?
—Aileana. Por que isso importa? — Ela pergunta novamente.
—Não. — Eu digo rapidamente. —Não é nada. — Eu menti para ela
tantas vezes. Sobre mim. Sobre tudo. —Eu prometo, não é nada.