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DirEiTo CiviL

Parte Geral
2
DirEiTo CiviL
Parte Geral

2015
ISBN 978-85-02-63540-1
Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César – São Paulo – SP
CEP 05413-909
PABX: (11) 3613 3000
SAC: 0800 011 7875
De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30 Direito civil : parte geral / obra coletiva de autoria da
www.editorasaraiva.com.br/contato Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia e
Thaís de Camargo Rodrigues. – São Paulo : Saraiva, 2015.

Direção editorial Luiz Roberto Curia 1. Direito civil - I. Curia, Luiz Roberto. II. Rodrigues,
Gerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues Thaís de Camargo. III. Título.

Coordenação geral Clarissa Boraschi Maria CDU-347


Preparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e
Ana Cristina Garcia (coords.) Índice para catálogo sistemático:
Projeto gráfico Isabela Agrela Teles Veras 1. Direito Civil 347
Arte e diagramação Isabela Agrela Teles Veras
Lais Soriano
Revisão de provas Amélia Kassis Ward e
Ana Beatriz Fraga Moreira (coords.) Data de fechamento da edição: 16-7-2015
Rita de Cássia Sorrocha Pereira
Dúvidas?
Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva Acesse www.editorasaraiva.com.br/direito
Kelli Priscila Pinto
Marília Cordeiro Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário

1. O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO, 15

1.1. O que é direito?, 16


1.2. A relação entre o direito e a moral, 17
1.3. Quais as fontes do direito?, 18
1.4. Como se organiza o direito?, 20
1.5. O direito civil, 21
1.6. O fenômeno da codificação, 21
1.7. O Estado Liberal e o Código de Napoleão, 22
1.8. O Código Civil Brasileiro, 24
1.9. A estrutura do Código Civil Brasileiro, 25
1.9.1. Da Evolução Histórica da Codificação Civil, 25
1.9.2. O Sistema Misto – As Cláusulas Gerais e os Conceitos Vagos, 29
1.9.3. Os Princípios Norteadores do Código Civil, 31
1.10. O campo de incidência do Código Civil, 32
1.11. Direito Civil e a Constituição Federal de 1988, 34
1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade Humana 34
1.12. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, 38
1.12.1. A Interpretação da Norma Jurídica, 38
1.12.2. Prazos para Vigência de Lei, 38
1.12.3. A Revogação da Lei, 39
1.12.4. A Vigência Temporária da Lei, 39
1.12.5. Da Extensão da Revogação da Lei, 39
1.12.6. Da Forma de Revogação da Lei, 40
1.12.7. As Antinomias, 40
1.12.8. A Repristinação da Lei, 41
1.12.9. A Obrigatoriedade das Normas, 41
1.12.10. Da Integração da Norma Jurídica, 41
1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica, 42
1.12.12. Da Interpretação da Norma Jurídica, 43
1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo, 44
1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço, 45

2. A PESSOA NATURAL, 47

2.1. A pessoa natural, 48

5
2.2. A personalidade jurídica, 48
2.3. A natureza jurídica do nascituro, 48
2.3.1. A Capacidade Civil e suas Classificações, 51
2.4. A incapacidade. As restrições de direito, 52
2.5. O suprimento e a cessação da incapacidade civil, 52
2.5.1. Cessação da Incapacidade Civil, 52
2.5.2. Suprimento da Incapacidade Civil, 53
2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica, 53
2.6. O nome civil, o estado civil e o domicílio civil, 54
2.6.1. Os Modos de Individualização da Pessoa Natural, 54
2.6.2. O Nome Civil, 54
2.6.3. A Classificação do Nome Civil, 54
2.6.4. A Composição do Nome Civil, 55
2.6.5. Da Alteração do Nome Civil, 56
2.6.6. Da Modificação Administrativa, 56
2.6.7. Da Modificação Judicial, 58
2.6.8. O Estado Civil, 61
2.6.9. O Domicílio Civil, 61
2.7. A comoriência e a ausência: caracterização e efeitos jurídicos, 62
2.8. A morte presumida: caracterização, 63

3. PESSOA E DIREITOS DA PERSONALIDADE, 65

3.1. Conceito, 66
3.2. Fundamento, 66
3.3. Características dos direitos da personalidade, 67
3.3.1. Direito ao corpo, 71
3.3.1.1. Doação do corpo, 71
3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico, 73
3.3.2. Direito ao nome, 73
3.3.2.1. Elementos do nome, 74
3.3.2.2. Pseudônimo, 74
3.3.3. Direito à imagem, 74
3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade, 76
3.4. Proteção dos direitos da personalidade, 76
3.4.1. Medidas preventivas, 77
3.4.2. Medidas reparatórias, 77
3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a reparação, 77

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Direito Civil

4. A PESSOA JURÍDICA, 79

4.1. Conceito, 80
4.2. Natureza jurídica, 80
4.3. Elementos estruturais (pressupostos existenciais da pessoa jurí-
dica), 81
4.4. Personalidade jurídica, 82
4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da personalidade, 82
4.4.2. Início da personalidade, 83
4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direi-
to público, 83
4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas jurídicas de direi-
to privado, 83
4.4.3. Ato constitutivo e registro da pessoa jurídica, 84
4.4.3.1. Natureza jurídica do registro das pessoas jurídicas, 85
4.4.3.2. Local do registro, 85
4.4.4. Fim da personalidade, 88
4.5. Representação da pessoa jurídica, 88
4.6. Responsabilidade da pessoa jurídica, 89
4.7. Das diversas classificações das pessoas jurídicas, 90
4.7.1. Classificação quanto à estrutura interna, 90
4.7.2. Classificação quanto à função, 90
4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público, 90
4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 91
4.8. Sociedades, 92
4.9. Empresa individual de responsabilidade limitada, 93
4.10. Associações, 93
4.10.1. Constituição de uma associação, 94
4.10.2. Composição da associação, 94
4.10.2.1. Associados, 94
4.10.2.2. Diretoria, 95
4.10.2.3. Assembleia geral, 95
4.10.3. Dissolução da associação, 95
4.11. Fundações, 96
4.11.1. Constituição das fundações, 97
4.11.2. Alteração do estatuto da fundação, 99
4.11.3. Fiscalização, 99
4.11.4. Extinção da fundação, 100

7
4.12. Nacionalidade, 100
4.13. Domicílio da pessoa jurídica, 101
4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público, 101
4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado, 101
4.14. Desconsideração da personalidade jurídica, 102
4.14.1. Teorias da desconsideração da personalidade jurídica, 104

5. OS BENS, 107

5.1. Conceito, 108


5.1.1. Bens e coisas: distinção, 108
5.2. Patrimônio, 109
5.3. Das diversas classificações dos bens, 109
5.4. Classificação dos bens de acordo com a mobilidade, 110
5.4.1. Bens imóveis, 110
5.4.2. Bens móveis, 111
5.5. Classificação dos bens de acordo com a fungibilidade, 112
5.5.1. Bens fungíveis, 112
5.5.2. Bens infungíveis, 112
5.6. Classificação dos bens de acordo com a consuntibilidade, 113
5.6.1. Bens consumíveis, 113
5.6.2. Bens inconsumíveis, 113
5.7. Classificação dos bens de acordo com a divisibilidade, 113
5.7.1. Bens divisíveis, 113
5.7.2. Bens indivisíveis, 114
5.8. Classificação dos bens de acordo com a materialidade, 114
5.8.1. Bens materiais (res corporalis), 114
5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis), 114
5.9. Classificação dos bens de acordo com a individualidade, 115
5.9.1. Bens singulares, 115
5.9.2. Bens coletivos, 115
5.10. Classificação dos bens de acordo com a dependência ou recipro-
cidade, 116
5.10.1. Bem principal, 116
5.10.2. Bem acessório, 116
5.10.2.1. Fruto, 117
5.10.2.2. Produtos, 117
5.10.2.3. Benfeitorias, 118

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Direito Civil

5.10.2.4. Pertenças, 119


5.11. Classificação dos bens de acordo com a titularidade, 119
5.11.1. Bens particulares, 119
5.11.2. Bens públicos, 120
5.11.2.1. Características dos bens públicos, 120

6. DOS FATOS JURÍDICOS, 123

6.1. Fato jurídico, 124


6.2. Fato jurídico natural, 124
6.2.1. Fato jurídico natural ordinário, 125
6.2.2. Fato jurídico natural extraordinário, 125
6.3. Fato jurídico humano, 125
6.3.1. Fato jurídico humano ilícito, 125
6.3.2. Fato jurídico humano lícito, 126
6.3.2.1. Ato jurídico stricto sensu, 126
6.3.2.2. Negócio jurídico, 127
6.3.2.3. Ato-fato jurídico, 127

7. DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS, 129

7.1. Teoria geral do negócio jurídico, 130


7.2. Classificações do negócio jurídico, 130
7.2.1. Classificação quanto à manifestação de vontade, 130
7.2.2. Classificação quanto às vantagens para as partes, 130
7. 2.3. Classificação quanto ao momento da produção dos efeitos, 131
7.2.4. Classificação quanto à forma, 131
7.2.5. Classificação quanto à independência ou autonomia, 131
7.2.6. Classificação quanto às condições pessoais dos negociantes, 132
7.2.7. Classificação quanto à causa determinante, 132
7.2.8. Classificação quanto ao momento da eficácia, 132
7.2.9. Classificação quanto à extensão dos efeitos, 132
7.3. Interpretação do negócio jurídico, 133
7.4. Elementos constitutivos do negócio jurídico, 134
7.5. Planos do negócio jurídico, 134
7.5.1. Plano de existência, 135
7.5.2. Plano de validade, 135
7.5.2.1. Partes, 136

9
7.5.2.2. Objeto, 136
7.5.2.3. Forma, 137
7.5.2.4. Vontade, 138
7.5.2.4.1. Reserva mental, 138
7.5.2.4.2. Representação, 139
7.5.3. Plano de eficácia, 140
7.6. Elementos acidentais, 141
7.6.1. Condição, 141
7.6.1.1. Requisitos da condição, 141
7.6.1.2. Classificação da condição quanto à certeza, 142
7.6.1.3. Classificação da condição quanto aos efeitos, 142
7.6.1.4. Classificação da condição quanto à licitude, 143
7.6.1.5. Classificação da condição quanto à possibilidade, 144
7.6.1.6. Classificação da condição quanto à natureza (ou
fonte), 144
7.6.2. Termo, 145
7.6.2.1. Classificação do termo quanto aos efeitos, 145
7.6.2.2. Classificação do termo quanto à certeza, 146
7.6.2.3. Contagem do prazo, 146
7.6.3. Modo ou encargo, 147

8. DEFEITOS NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS, 149

8.1. Introdução, 150


8.2. Erro ou ignorância (Código Civil, arts. 138 a 145), 150
8.2.1. Consequências do erro, 150
8.2.2. Classificação do erro quanto à determinação, 151
8.2.2.1. Erro substancial, 151
8.2.2.2. Erro acidental, 152
8.2.2.3. Erro obstativo, 152
8.2.3. Escusabilidade ou recognoscibilidade, 153
8.3. Dolo, 153
8.3.1. Consequências do dolo, 153
8.3.2. Classificação do dolo quanto à determinação, 154
8.3.2.1. Dolo essencial, 154
8.3.2.2. Dolo acidental, 154
8.3.3. Classificação do dolo quanto à conduta, 154

10
Direito Civil

8.3.3.1. Dolo positivo, 154


8.3.3.2. Dolo negativo, 154
8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco, 155
8.3.4. Classificação do dolo quanto ao conteúdo, 155
8.3.4.1. Dolo mau, 155
8.3.4.2. Dolo bom, 155
8.3.5. Dolo de terceiro, 155
8.3.6. Dolo do representante, 156
8.4. Coação, 156
8.4.1. Espécies de coação, 156
8.4.1.1. Coação absoluta, 156
8.4.1.2. Coação relativa, 157
8.4.2. Requisitos da coação, 157
8.4.3. Consequências da coação, 159
8.4.4. Coação por terceiro, 159
8.5. Estado de perigo a coação, 159
8.5.1. Requisitos do estado de perigo, 160
8.5.2. Consequências, 161
8.6. Lesão, 161
8.6.1. Requisitos da lesão, 162
8.6.2. Consequências da lesão, 163
8.7. Fraude contra credores, 164
8.7.1. Requisitos para caracterização da fraude contra credores, 164
8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores, 166
8.7.3. Consequências da fraude contra credores, 167
8.7.4. Fraude contra credores versus fraude à execução, 168

9. INVALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS, 171

9.1. Invalidade, 172


9.1.1. Invalidade versus inexistência, 172
9.2. Nulidade, 173
9.2.1. Hipóteses de nulidade, 173
9.2.2. Regras da nulidade, 174
9.3. Anulabilidade, 175
9.3.1. Hipóteses de anulabilidade, 175
9.3.2. Consequências da anulabilidade, 176

11
9.4. Simulação, 177
9.4.1. Natureza jurídica, 177
9.4.2. Requisitos da simulação, 178
9.4.3. Consequências da simulação, 178
9.4.4. Classificação da simulação quanto ao seu conteúdo, 179
9.4.4.1. Simulação absoluta, 179
9.4.4.2. Simulação relativa, 180

10. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA, 181

10.1. Introdução, 182


10.2. Prescrição, 182
10.2.1. Conceito de prescrição, 182
10.2.2. Prescrição extintiva e prescrição aquisitiva, 183
10.2.3. Prescrição da exceção, 183
10.2.4. Alegação da prescrição, 184
10.2.5. Renúncia da prescrição, 184
10.2.6. Declaração de ofício da prescrição, 184
10.2.7. Previsão legal da prescrição, 185
10.2.7.1. Prazos especiais, 185
10.2.8. Contagem do prazo de prescrição, 189
10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar, 190
10.2.8.2. Continuação do prazo em face de herdeiros, 190
10.2.9. Prescrição intercorrente, 191
10.2.10. Impedimento e suspensão da prescrição, 191
10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e suspensão, 192
10.2.10.2. A relação entre a suspensão da prescrição e as obri-
gações solidárias, 195
10.2.11. Interrupção da prescrição, 195
10.2.11.1. Hipóteses de interrupção da prescrição, 196
10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção, 197
10.3. Decadência, 198
10.3.1. Conceito de decadência, 198
10.3.2. Alegação da decadência, 199
10.3.3. Espécies de decadência, 199
10.3.3.1. Decadência legal, 199
10.3.3.2. Decadência convencional, 200

12
Direito Civil

10.3.4. Contagem do prazo de decadência, 200


10.3.5. Impedimento, suspensão e interrupção do prazo de decadên-
cia, 200
10.3.6. Prazos de decadência, 201
10.3.6.1. Principais prazos de decadência, 201

11. ATOS ILÍCITOS E RESPONSABILIDADE CIVIL, 205

11.1. Conceitos, espécies e distinções necessárias, generalidade civil, 206


11.1.1. Atos ilícitos, 206
11.1.2. Responsabilidade civil e responsabilidade criminal, 206
11.1.3. Elementos da responsabilidade civil, 207
11.1.4. Responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva, 208
11.1.5. Abuso de direito, 209

13
14
1 o Código Civil Brasileiro
Antes de ingressarmos no estudo do Código Civil Brasileiro, é ne-
AuTor cessário identificar o campo de estudo do direito civil, e para isto é pre-
ciso entender com clareza o conceito comum de direito.
Aristóteles (384
a.C. a 322 a. C.)
– Filósofo grego,
nascido em Es- 1.1 o QuE É DirEiTo?
tagira. Foi aluno
de Platão e pro- A palavra direito deriva do latim, directum, que significa “aquilo
fessor de Alexandre o Grande.
que é reto”.
Entre suas grandes obras, desta-
cam-se pela contribuição ao Di- Mas para conceituar o que é direito, torna-se necessário estudar-
reito: A Política e Ética a Nicôma- mos a sua origem primária, que é o anseio de satisfação das necessidades
co. Platão, o professor de Aristóte- humanas. De fato, faz-se necessário compreender também os fenôme-
les fora aluno de Sócrates. nos que são relevantes à existência do homem, a fim de se obter o escla-
recimento quanto ao conceito comum do que é o direito.
Georg Jellinek (16-
06-1851 a 12-01- O pensador grego Aristóteles foi o primeiro a observar que o ho-
1911) – Juiz e filósofo mem é um ser gregário e que se distingue de todos os outros animais da
do direito, nascido Terra por ser o único a experimentar o sentimento do bem e do mal, do
em Leipzig, Alema- justo e do injusto e das outras qualidades morais. Segundo este pensa-
nha. Este professor
dor grego, a cidade é uma criação natural do homem, a qual precede até
que lecionou nas
mesmo a família. Para sobreviver e ser feliz, o homem, como ser gregário
Universidades de Basileia e Hei-
delberg na Alemanha, foi quem e racional, precisa da vida social, necessita da convivência com outros
desenvolveu a “Teoria do Mínimo seres semelhantes (viver em sociedade).
Ético. O mínimo ético, segundo O convívio em sociedade é uma atividade que demanda obrigató-
sua teoria, é o conjunto mínimo rio respeito a um “conjunto mínimo de condições essenciais para ma-
de regras morais obrigatórias
nutenção da paz e segurança”. Este conjunto de condições, que procura
para se sobreviver em sociedade.
estabelecer a paz e a segurança entre os homens (o dever ser), é o que
hoje se define por conceito comum de direito.
CiNEmATECA No mesmo sentido, George Jellinek, com base nos ensinos de Je-
“Sócrates”, filme de Roberto Ros-
remy Bentham, define o direito por este conjunto mínimo de condições
selline, exibe com clareza o início e regras morais obrigatórias para sobrevivência moral e conservação da
do conceito de direito e justiça na paz social, da segurança da vida em sociedade (bem comum).
Grécia antiga. Imaginava-se o di- Assim, para que seja possível viver em sociedade, devem ser obser-
reito como algo provindo dos deu- vados os limites e restrições morais impostos aos indivíduos, justamente
ses. Note que o tribunal de Helias-
com a intenção de se manter a paz e a segurança entre todos, pois o
tas, e sua composição como júri
direito nasce e se desenvolve através da sociedade – ubi homo, ibi jus,
popular, era formado por milhares
de pessoas escolhidas por sorte. O a expressão em latim, por tradução livre, que quer dizer “onde está o
juiz era um leigo que tomava suas homem, está o direito”.
decisões por meio do costume. Os Agora que já estudamos o conceito comum do direito, é preciso en-
crimes contra a polis eram conde- tender a dicotomia, a divisão, as semelhanças e diferenças entre o direito
nados com a morte. Sócrates foi
e a moral.
punido com a morte por questio-
nar racionalmente o conceito de Conceito: Direito é o conjunto mínimo de condições e regras
justiça da polis, segundo eles, “por essenciais morais para manter a paz e a segurança na convi-
perverter a juventude e os bons vência entre os seres humanos (vida em sociedade).
costumes”.

16
Direito Civil

1.2 A rELAÇÃo ENTrE o DirEiTo E A morAL CurioSiDADE

TEoriA Do mÍNimo ÉTiCo –


Teoria dos círculos concêntricos ou Teoria do mínimo ético: Para Jellinek o direito seria o mí-
Como pudemos perceber, George Jellinek, após estudar os aponta- nimo de moral imposto para que
mentos de Jeremy Bentham, compreendeu o direito como parte da a sociedade possa viver em har-
moral. Sua teoria dos círculos concêntricos ou teoria do mínimo éti- monia.
co ficou conhecida por indicar que o direito (ordenamento jurídico)
estaria contido na moral. A figura abaixo ilustra o entendimento de
AuTor
Jellinek:
Jeremy Bentham
(15-02-1748 a 06-
06-1832). Filósofo
e jurista inglês,
nasceu em Lon-
dres. Foi um dos
últimos iluministas.
Difundiu o utilitarismo ao lado de
John Stuart Mill e James Mill. Seu
Contudo, existem outras teorias que buscam explicar a relação en- importante estudo sobre a moral,
tre o direito e a moral, vejamos então... exposto pela teoria dos círculos
Teoria dos círculos secantes: Para Claude Du Pasquier, o direito e concêntricos, possibilitou a Georg
Jellinek a construção do conceito
a moral são independentes, interligando-se em alguns momentos. Com
do direito como o mínimo ético.
base neste pensamento, compõe a figura abaixo para representar a teoria
dos círculos secantes: Claude Du Pas-
quier. Para o ju-
rista francês, que
viveu no século
XIX, o direito e
a moral coexis-
tem, não se separam, pois há um
campo comum de competência,
onde existem regras de qualida-
de jurídica com caráter moral.
Teoria dos círculos independentes: Hans Kelsen afirma que o di-
reito possui normatização, enquanto a Moral se refere a atos praticados Hans Kelsen (11-
com observação de princípios éticos. Pelo direito possuir aspectos mo- 10-1881 a 19-04-
rais, não se faz confundir com aquela. Assevera que o direito e a moral 1973) – Jurista e
são distintos, compondo sua teoria dos círculos independentes, como filósofo austríaco,
sugere a imagem abaixo: nascido em Ber-
kley. Autor da Te-
oria Pura do Di-
reito, que trouxe relevante contri-
buição quanto ao estudo do po-
sitivismo jurídico, introduzindo os
conceitos de norma fundamental
e justiça. Reconhecido como um
dos maiores teóricos do Direito do
século XX.

17
Teoria Tridimensional: Miguel Reale, diversamente dos demais,
AuTor entende que a moral é apenas um dos vetores que compõem o direito.
Para o jusfilósofo brasileiro, o direito é fato, valor e norma. Fato é o fe-
miguel reale (06-
nômeno que importa ao direito identificar, enquanto valor seria aquele
11-1910 a 14-04-
que abrange o conceito moral relativo àquele fato concreto, e a norma
2006). Nascido
em São Bento é como o ordenamento jurídico tratará aquele fato relevante ao direito.
do Sul, o filósofo, A teoria tridimensional do direito pode ser representada pela ilustração
jurista, educador abaixo:
e poeta brasilei-
ro contribuiu significativamente valor

com os estudos jurídicos, criador


da teoria tridimensional do direito.
Autor de inúmeros livros e obras
jurídicas, ocupou a cadeira 14,
fato norma
tornando-se imortal da Acade-
mia Brasileira de Letras. Responsá- Ponto comum e de divergência: O que existe em comum entre as
vel pelo Projeto que deu origem normas jurídicas e as morais é o fato de ambas constituírem regras de
ao Código Civil de 2002. comportamento. Contudo, existe uma distinção fundamental entre as
normas jurídicas e as normas morais, pois no caso das primeiras é o
Estado que impõe a sanção.
As normas morais se traduzem na consciência individual de cada
ser humano em relação à sociedade em que vive, são identificadas pelos
costumes estabelecidos pela sociedade.
O estudo dos fundamentados desses valores morais que orientam
o comportamento do homem em sociedade, no uso de sua opção de
escolha, é conhecido como ética.
Uma conduta ética indica que a opção realizada pela pessoa não
ofende os valores morais e normas jurídicas da sociedade, conservando
a paz social.

1.3 QuAiS AS foNTES Do DirEiTo?

Partindo da dicotomia, da distinção entre a moral e o direito, po-


demos notar que o costume (normas morais) é a fonte primitiva do
direito, de onde nasceram suas normas jurídicas (a lei – o dever ser),
compondo estas duas, a lei e o costume, suas fontes diretas. Foi a partir
do costume que o direito foi evoluindo, surgindo a lei e outras fontes
relevantes ao seu estudo (fontes indiretas), as quais podem ser descritas
na seguinte ordem de importância:

18
Direito Civil

Lei – As normas jurídicas, ou leis, são a fonte direta e primária do


direito. Elas são impostas pelo Estado organizado à obediência de todas
pessoas que estiverem sob sua soberania. Não dependem da vontade dos
cidadãos, sendo impossível alegar sua ignorância. Configura-se como
fonte autêntica do direito, representada por texto expresso, escrito.
Costume – O costume, como já descrito, se configura pela prática
reiterada de comportamento geral aceito na sociedade, observando sem-
pre a continuidade, uniformidade, diuturnidade, moralidade e obriga-
toriedade. Embora seja a mais antiga entre as demais fontes do direito,
contemporaneamente é fonte secundária.
Jurisprudência – Como a própria palavra indica, a jurisprudência
é a prudência dos Tribunais, que se constrói pelas decisões de casos se-
melhantes, entendimento que, aos poucos, vai se tornando pacífico pelas
semelhanças dos casos concretos julgados, servindo tais fundamentos
como fonte secundária do direito, destinada ao estudo e à aplicação prá-
tica, a evidenciar também a tendência das correntes jurisprudenciais e
da compreensão prévia sobre cada caso, fornecendo relevantes elemen-
tos para aplicação em casos novos análogos, concedendo assim certa
previsibilidade, que muito contribui com a segurança jurídica. Trata-se
de fonte intelectiva do direito muito útil à pesquisa e ao estudo, pois exi-
be o esforço realizado pelo Poder Judiciário na decisão de conflitos reais,
um acervo de inteligência prévio.
Princípios gerais do direito – Os princípios gerais do direito reves-
tem as condutas mínimas que o Estado espera de cada cidadão. Embora
não estejam escritos, os princípios são conhecidos de todos, pois, como
se fossem mandamentos morais, estão impregnados na consciência in-
dividual das pessoas, orientando e informando o direito. São identifica-
dos por três condutas básicas, cujas expressões latinas também seguem
abaixo:
a) viver honestamente – honeste vivere;
b) dar a cada um o que é seu – suum cuique tribuere, e
c) não lesar o próximo – alterum non laedere.
Doutrina – A doutrina reflete a construção do intelecto dos estu-
diosos da ciência jurídica. Os doutrinadores são aqueles que interpre-
tam as leis, levando em conta o comportamento humano e o contexto
social de seu tempo, considerando todos os fenômenos sob os mais
variados aspectos, construindo teorias, conceitos e elementos relevan-
tes ao direito.
Podemos notar que as fontes do direito, sejam elas primárias ou
secundárias, diretas ou indiretas, são os meios pelos quais se formam as
regras jurídicas.
Por questão didática e para facilitar a memorização, trataremos
da aplicação das fontes do direito na formação da norma jurídica mais
adiante, quando estudarmos a LINDB, Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, no tópico 5 desta Unidade I.

19
ComENTário 1.4 Como SE orGANiZA o DirEiTo?
O francês
Augusto Comte O direito se organiza, se classifica ou se divide pelo campo desti-
(1789 a 1857) foi o nado ao seu estudo e aplicação à norma jurídica (lei). O organograma
responsável pela abaixo descreve as referidas classificações mais comuns na doutrina:
construção da te-
oria na sociologia
conhecida como
positivismo. A teoria atribui fato-
res humanos para explicações
de diversos temas, contrariando o
primado da razão, da teologia e
da metafísica. Em vez de se pre-
ocupar com a origem do homem
e sua criação, os positivistas bus-
cam explicar as coisas práticas e
úteis às relações sociais (lei). Direito natural – O direito natural compreende as regras de convi-
vência humana que foram estabelecidas pela própria natureza. Para os
antigos gregos, havia a crença de que o direito natural se sobrepunha às
CurioSiDADE
leis humanas, evidenciando-se esta compreensão na declaração de He-
ráclito, quando disse que: “Todas as leis humanas se alimentam de uma,
qual seja a divina; esta manda quando quer, basta a todos e as supera”. Os
Jusnaturalistas são os que compõem a corrente que defende que o direito
esteja ligado a princípios superiores, identificados na natureza racional
e social do homem.

O pensamento positivista in-


Direito positivo – O Estado compõe seu ordenamento jurídico
fluenciou nosso país. A frase "Or- através das leis vigentes, as quais representam a vontade do povo em
dem e Progresso" na bandeira determinada época, por meio de princípios para convivência pacífica. O
brasileira se inspirou na máxima ordenamento jurídico é, portanto, o conjunto de todas as leis vigentes
ética buscada pelo positivismo em um país, compondo assim o seu direito positivo.
de Augusto Comte: "O amor por
Direito objetivo – O conjunto de normas impostas pelo Estado que
princípio, a ordem por base, o
possuem caráter geral (norma agendi), pois obrigam a todos indistinta-
progresso por fim."
mente através da coerção – dever ser. O direito objetivo é assim chama-
do por atender ao objetivo do Estado, que é obrigatório, imposto erga
voCABuLário omnes através da lei.
Direito subjetivo – Enquanto o direito objetivo impõe uma con-
Erga omnes (latim): Efeito vin-
duta geral (dever ser), anulando a vontade ou escolha, o direito sub-
culante a todos; oponível a to-
dos; contra todos. jetivo (facultas agendi) protege a vontade, permitindo que qualquer
pessoa física ou jurídica busque o Estado para impelir outrem a um
determinado comportamento, toda vez que houver lesão ou ameaça de
lesão a direitos (vinculando-se à vontade do sujeito quanto ao impulso
da tutela do Estado).
Direito público – Esta classificação é anterior ao Direito Romano;
compreende-se do ramo do direito público tudo o que diga respeito à
coisa pública (do Estado), deste modo, poderíamos dizer que o direito

20
Direito Civil

público abrange o estudo do Direito Constitucional, Direito Tributário,


voCABuLário
Direito Administrativo, Direito Penal e Processual Penal, Direito Inter-
nacional, etc. Codificação: Processo cultural
Direito privado – Se destinam ao ramo do direito privado todos e histórico oitocentista que re-
os temas de estudo que não abrangidos pelo direito público, ou seja, alizou a ordenação e sistema-
aqueles temas que interessam à solução de conflitos entre os particu- tização do direito, proporcio-
nando o seu desenvolvimento
lares e grupos sociais. Exemplos: Direito Civil, Direito Comercial ou
técnico como ciência jurídi-
Empresarial.
ca, dada sua uniformização e
prescrição abstrata de situa-
ções e condutas.
1.5 o DirEiTo CiviL
ComENTário
O Direito Civil, por sua vez, orienta, regula e estuda a relação entre
os particulares, pessoas físicas ou jurídicas. As relações entre os particula- O Iluminismo, ou Século das
Luzes, marcou o início de uma era
res é campo do Direito Privado, e divide-se em relações pessoais, familia-
em que o poder da razão buscou
res, patrimoniais e obrigacionais, estando disciplinadas no Código Civil,
reformar a sociedade, livrando-se
conhecido entre os estudiosos por “constituição do homem comum”. dos arcaicos conceitos impregna-
Diante do que estudamos até aqui, podemos notar que a sociedade dos pela Era das Sombras (Idade
requeria muito a organização das leis por meios de códigos, pois se en- Medieval). O conhecimento da
natureza passou a ter um objetivo
tendia que só este seria o caminho para uniformizar as condutas espera-
mais claro de utilidade ao homem
das dos indivíduos pelo Estado. Surge então o fenômeno da codificação,
moderno. Esse movimento cultural
a começar pelo direito civil. do Século XVIII teve impulso na Eu-
ropa. Do iluminismo surgiu a ideia
de mecanização, organização e
controle, que influenciou o direito.
1.6 o fENômENo DA CoDifiCAÇÃo
Immanuel Kant foi um grande
pensador do iluminismo e contri-
A dinâmica, amplitude e complexidade das relações privadas in- buiu muito com o direito por suas
dicavam a necessidade de sua codificação, com vistas a tornar claro e obras, das quais destaca-se: “Crí-
uniforme a aplicação do direito a cada caso concreto. tica da Razão Pura”. Ele descreve
o iluminismo assim:
Francisco Amaral esclarece que o fenômeno da codificação pretendia
"O iluminismo representa a
organizar estruturalmente a disciplina das relações privadas para propor-
saída dos seres humanos de uma
cionar igualdade e coordenação, pois expressava o racionalismo do direito, tutelagem que estes mesmos se
que era influenciado naquela época pelo pensamento iluminista, o qual impuseram a si. Tutelados são
marcou a ciência jurídica da modernidade (séculos XVIII e XIX). aqueles que se encontram inca-
Analisando o processo histórico, é possível identificar a codificação pazes de fazer uso da própria ra-
zão independentemente da dire-
do direito como uma consequência lógica a que se chegou por razões
ção de outrem. É-se culpado da
políticas, filosóficas e técnicas daquela época. Regular e sistematizar o própria tutelagem quando esta
tratamento para solução das questões, tanto no âmbito privado quanto resulta não de uma deficiência do
público, realmente apontava ser o melhor caminho para criação de uma entendimento mas da falta de re-
sociedade melhor, mais justa. solução e coragem para se fazer
uso do entendimento indepen-
Desse modo, a codificação trazia alguns paradigmas de sua cultu-
dentemente da direção de ou-
ra, a saber: a influência iluminista; o racionalismo; o individualismo; a trem. Sapere aude! Tem coragem
consideração da norma jurídica como comando imperativo lógico-hi- para fazer uso da tua própria ra-
potético do Estado; o desenvolvimento do pensamento sistemático na zão! – esse é o lema do iluminismo"

21
aplicação e interpretação do direito; a teoria monista das fontes do di-
voCABuLário
reito, que compreende o direito como sistema unitário, positivo e criado
Subsunção: do latim sumo, as- pelo Estado; a generalidade e abstração como características da lei e das
sumir, tendo o prefixo sub, em normas jurídicas, tornando possível a existência de norma antes do caso
lugar de. Literalmente, quer concreto por sujeitos descritos pelas condutas previsíveis; a segurança
dizer tomar o lugar de. No
contexto de sua leitura, a sub-
jurídica, que justificava o formalismo para se identificar a justiça por
sunção do juiz era a atividade todos almejada; a simplificação jurídica e a técnica da ciência jurídica;
lógica dedutiva, que apenas a centralidade do Código Civil no sistema das fontes do direito, por sua
adequava o resultado ao fato
posição central em face da política e da filosofia (constituição do homem
já previsto na lei.
comum); a divisão dos papéis e relações entre Estado (Direito Público)
e particulares (Direito Privado); a redução do processo interpretativo,
primando por seguir a previsão do que contido na norma jurídica; e,
por fim, a separação radical entre os conceitos de criação e aplicação
do direito, neste aspecto, transportando por competência à própria lei
dizer, por previsão nela contida, qual a decisão a ser tomada, consistindo
ComENTário a sua aplicação em atividade meramente mecânica do juiz, que fazia a
Para a teoria monista, o Es- subsunção, agindo como “a boca da lei ”.
tado é a fonte única do direito,
porque quem dá vida ao Direito
é o Estado através da “força co-
ativa” de que só ele dispõe. Des- o ESTADo LiBErAL E o CÓDiGo DE
se modo, como só existe o Direi- 1.7 NAPoLEÃo
to quando emanado do Estado,
ambos se confundem em uma só
realidade. Esta concepção ficou
ultrapassada, pois não havendo O Direito Civil teve o seu auge no “Estado Liberal”, período his-
norma jurídica que disponha so- tórico marcado pela Revolução Francesa, em 1789, no qual se exaltava
bre a questão, não poderia o juiz a liberdade e a autonomia dos indivíduos nas relações privadas, sob o
decidir.
grito de liberdade, igualdade e fraternidade.

ComENTário

Ao examinar as formas de governo, Montesquieu identifica a Monarquia (princípio, a honra), o


Despotismo (princípio, o medo) e a República (princípio, a virtude). Por influência da esquecida Cons-
tituição Inglesa, Montesquieu identifica a harmonia da atuação de três poderes, e a necessidade de
respeito quanto ao âmbito de atuação de cada um deles. Para Montesquieu as leis compreendiam
um comando normativo hermético, fechado, em respeito à teoria da tripartição dos poderes e o juiz
tinha a atividade de ser meramente “a boca da lei”. Cabia ao magistrado apenas aplicar a norma
jurídica ao caso concreto previsto na lei. Não podia o juiz interpretar a lei, de modo diverso do que nela
expresso, sob pena de quebrar a harmonia democrática sustentada no que a lei representa (a vonta-
de de todos). Cada Poder deveria, portanto, estar restrito apenas à sua função
própria. A relevância do respeito à norma jurídica como prescrição absoluta e
completa pode ser identificada pela leitura de sua obra “O Espírito das Leis”,
da qual extraímos pequeno trecho abaixo:
“As leis escritas ou não, que governam os povos, não são fruto do capricho
ou do arbítrio de quem legisla. Ao contrário, decorrem da realidade social e da
História concreta própria ao povo considerado. Não existem leis justas ou injus-
tas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e Charles-Louis de Secondat,
a uma determinada circunstância de época ou lugar. O autor procura estabe- Barão de Montesquieu
(18-1-1689 a 10-2-1755).
lecer a relação das leis com as sociedades, ou ainda, com o espírito dessas.”

22
Direito Civil

CurioSiDADE

A revolução francesa (1789), marcou a divisão entre a Idade Moderna e a Contemporânea. A França
vivia sob o governo absolutista do monarca rei Luís XVI, o qual personificava em si mesmo o Estado, reunin-
do portanto a autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A população daquela época na
estrutura do Estado Absolutista se representava por três classes sociais: a) Os bispos de alto Clero, identifica-
dos como o primeiro Estado; b) A nobreza, ou aristocracia francesa, identificada como segundo Estado, e
c) Burguesia, que contava com apoio de membros do baixo clero, comerciantes, empresários, banqueiros,
trabalhadores urbanos e camponeses.
O terceiro estado, conhecido por “burguesia”, representava 97% (noventa e sete por cento) da Fran-
ça. Influenciados pelo pensamento iluminista e motivados pela crise financeira, falta de modernização
econômica e desinteresse pelo investimento no setor industrial, os burgueses deflagraram a Revolução,
tomando à força a Bastilha no dia 14 de julho de 1789.
No esforço de combater a Revolução, o Rei Luis XVI pediu apoio à monarquia austríaca e prussia-
na, sendo que no ano de 1792, a Áustria invadiu a França, quando o Rei declarou guerra. Ocasião em
que a burguesia aproveitou para exterminar a corte, decapitando o rei Luís XVI e sua esposa Maria An-
tonieta, os quais ostentavam um luxo absurdo com suas festas e gastos incompatíveis e que contribuía
significativamente com a crise econômica. A crise social contribuiu com a crise econômica e culminou
na crise política com a mutação do paradigma de Governo através da Revolução.

Após lograr êxito no golpe do 18 de Brumário (1799), Napoleão


Bonaparte, um ano depois, pela nova Constituição promulgada, assu- BiBLioTECA
miu o cargo de cônsul vitalício. Entre seus esforços de unificação do Es-
CODE CIVIL DES FRANÇAIS
tado francês reabilitou a Igreja Católica, promovendo reformas no clero,
– Disponível em <http://www.
controlando-a até a instituição do Código Civil (1804). assemblee-nationale.fr/evene-
O Código Civil da era do imperador Napoleão Bonaparte (1804) foi ments/code-civil-1804-1.asp>.
um avanço estupendo para sua época, tanto que, pela sua complexidade, Acesso em 26 fev. 2015.
serviu de base para o Direito Constitucional e Internacional moderno
em todo mundo.
O referido Código se preocupava muito em garantir a liberdade
ampla e o irrestrito direito de contratar (autonomia de vontade), enfati- voCABuLário
zando também a defesa ao direito de propriedade. Isto porque naquele
pacta sunt servanda: Brocardo
período se compreendia que a lei seria suficiente para demonstrar o de- do latim que quer dizer: “os
sejo do Estado. O contrato, por sua vez, consentido pelas partes, passava pactos devem ser respeita-
a fazer lei entre elas (pacta sunt servanda). dos”, “os acordos devem ser
cumpridos”.
Para a elaboração do Código francês, os estudiosos juristas de Na-
poleão buscaram inspiração na inteligência do Código Justiniano, do
Corpus Juris Civilis e das institutas, que apresentam noções gerais, de-
finições e classificações em três temas: pessoas, coisas e ações. Assim,
o Código Napoleão apresentava uma parte preliminar, que tratava das ComENTário
regras de publicação e da não retroatividade das leis; o livro primeiro,
Estado Liberal: O Estado Libe-
que tratava das pessoas; o segundo livro, de bens, e o terceiro livro, de
ral sucedeu o Estado Absolutista.
aspectos ligados à aquisição da propriedade. O liberalismo se refere ao período
Como se pode observar, o Estado Liberal marcou profundamente o do Estado Liberal, que foi marca-
Direito Civil por permitir com a codificação sistematizá-lo. Entretanto, do pela liberdade e autonomia
tinha o viés patrimonialista, haja vista a preocupação do Código Civil dos indivíduos, que se configura-
francês em estabelecer a máxima liberdade de contratar e a autonomia va na defesa dos bens e de sua
na defesa dos bens e da propriedade. propriedade.

23
ComENTário 1.8 o CÓDiGo CiviL BrASiLEiro
ORDENAÇÕES
FILIPINAS – As Or- O Brasil, no período colonial, era regido pelo sistema jurídico vi-
denações Filipinas, gente em Portugal, quando então vigiam as Ordenações Filipinas1 que
foram compostas tratavam de todos os aspectos jurídicos do país, desde a proclamação da
pela junção das independência em 1822, até o dia 1º de janeiro de 1917, quando entrou
Ordenações reais, em vigor o Código Civil (1916) elaborado pelo jurista Clóvis Beviláqua.
as quais surgiram Antes do Código Civil de 1916, a Constituição de 1824 previa
em 1595 no reina-
a elaboração de um Código Civil, cuja tarefa, de início, fora confia-
do de Felipe I. Contudo só vieram
da ao jurista Augusto Teixeira de Freitas, apresentada sob o nome de
a entrar em vigor em1603, já no
“ConSolidação das Leis Civis”2. O referido esboço do Código Civil
reinado de Felipe II. As Ordena-
ções Filipinas foram compostas continha cinco mil artigos e não foi aceito por críticas da comissão
aproveitando o que já havia nas revisora, que culminaram em desestimular o jurista a continuar. En-
Ordenações Reais anteriores, ou tretanto, o esboço de Teixeira de Freitas influenciou o Código Civil
seja, sintetizou de modo a ajustar Argentino. Com efeito, somente após a proclamação da República do
os textos das Ordenações Afon- Brasil (1889) é que foi possível concluir o nosso primeiro Código
sinas de 1446, das Ordenações Civil (1916), por Clóvis Beviláqua, o qual sofreu forte influência da
Manuelinas de 1521, e outras le- Escola dos Pandectas.
gislações extravagantes da épo-
O Código Civil (1916) era precedido por uma pequena lei, a LICC,
ca do reinado de Felipe. As Or-
Lei de Introdução ao Código Civil, que na realidade ao longo de décadas
denações Filipinas não buscavam
inovar, mas consolidar o que já serviu como parâmetro de interpretação de todas as leis brasileiras. Após
existia, surgiram como um resul- o texto da LICC, o Código Civil surgia trazendo a parte geral, que apre-
tado do domínio castelhano. As sentava princípios gerais aplicáveis aos livros da Parte Especial.
Ordenações Filipinas tratavam de A exposição de motivos do Código Civil (2002) vigente, demonstra
regular diversos ramos do direito, os objetivos da lei na ocasião em que o referido Diploma fora publica-
incluindo o público e o privado, do. O direito se realiza, em atenção às necessidades da sociedade de sua
dividia-se em cinco livros, dispon-
época, por isto é imprescindível que quem estuda o direito busque com-
do dos temas na seguinte ordem:
preender sua evolução histórica, e sua incidência no espaço e no tempo.
Livro I – O Direito Administrativo e
a Organização Judiciária, Livro II – A comissão de juristas foi nomeada em 1967, sob a supervisão de
O Direito dos Eclesiásticos, do Rei, Miguel Reale, sendo que o projeto do Código Civil veio a ser aprova-
dos Fidalgos e dos Estrangeiros, Li- do somente em 1984, após o cuidadoso debate e estudo de suas 1.063
vro III – O Processo Civil, Livro IV – O emendas, apresentando seu texto final consolidado com cerca de 2.046
Direito Civil e o Direito Comercial e artigos. Faziam parte da comissão conhecidos e renomados nomes do
no Livro V – O Direito Penal e o Di- direito brasileiro, sendo José Carlos Moreira Alves (São Paulo) destina-
reito Processual Penal. Não havia do a escrever sobre a Parte Geral, Agostinho de Arruda Alvim (São Pau-
igualdade entre as pessoas, fato
lo), Direito das Obrigações, Sylvio Marcondes (São Paulo), Direito de
notório pela existência do Livro II.
Empresa, Ebert Vianna Chamoun (Rio de Janeiro), Direito das Coisas,

voCABuLário

Exposição de motivos é a justi-


1. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Código Philippi-
ficativa temporal histórica que
no, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Disponível em <http://www2.
demonstra os pontos impor-
senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733.
tantes da alteração pela legis-
2. BRASIL. SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. FREITAS, Au-
lação introduzida no ordena-
gusto Teixeira de. A consolidação das leis civis. Disponível em <http://www2.
mento jurídico. senado.leg.br/bdsf/item/id/242360.

24
Direito Civil

Clóvis do Couto e Silva (Rio Grande do Sul), Direito de Família e Tor-


quato Castro (Pernambuco), Direito das Sucessões.
ComENTário
Os juristas buscaram manter a estrutura e as disposições do Código A ESCoLA
Civil anterior (1916), ajustando aos valores sociais e éticos com atenção DAS PANDECTAS
à jurisprudência e legislação da época, olhando para o futuro. – Na busca de
Elaborado de modo a facilitar sua compreensão e uso prático, tor- interpretar o di-
nou-se muito mais didático que o Código Civil de 1916, desligando-se reito, surgiram
também da visão individualista, que brindava o cunho patrimonialista, várias escolas.
inquinando-se a zelar pela socialização e por valorizar mais a dignidade Pandectas era o nome grego que
se dava ao Digesto, expressão la-
da pessoa humana.
tina que se traduz como “pôr em
Entre suas características marcantes, enfaticamente citadas na ex- ordem”, nome do antigo Corpus
posição de motivos da lei, o Código Civil (2002) buscou unificar o direi- Juris Civilis, código estabelecido
to das obrigações, exclui matéria de ordem processual e adota o sistema no Direito Romano por Justiniano.
de cláusulas gerais, permitindo ao juiz uma margem mais flexível de in- O curioso é que na interpretação
terpretação para proferir suas decisões a cada caso em concreto. jurídica dos casos, a Alemanha
passou a admitir a aplicação do
direito romano, não através do
Legislativo, mas pelo direito con-
suetudinário, pela prática comum
de aplicação dos juristas, os pan-
dectas, que se valiam desse re-
gramento para fundamentarem
suas decisões e pareceres.

A ESTruTurA Do CÓDiGo CiviL


1.9 BrASiLEiro

1.9.1. Da Evolução Histórica da Codificação Civil


Observando o quadro abaixo, notamos a evolução histórica da co-
dificação civil no Brasil. As Ordenações Filipinas, que regiam Portugal
desde 1603, regulavam também o Brasil-Colônia, tratando de aspectos
ligados a outras áreas do direito e organização judiciária:

AS ORDENAÇÕES FILIPINAS
LIVRO I Direito Administrativo e Organização Judiciária
LIVRO II Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos e dos
Estrangeiros
LIVRO III O Processo Civil
LIVRO IV O Direito Civil e o Direito Comercial
LIVRO V O Direito Penal e o Processo Penal

É possível identificar sem nenhuma dificuldade o alto grau de dis-


tinção que se fazia dos indivíduos, e a consolidação do poder da mo-
narquia, no sistema jurídico imposto pelo sistema Brasil-Colonial, pois

25
as leis administrativas, a organização judiciária, os direitos do rei, dos
CiNEmATECA fidalgos, dos estrangeiros e até mesmo os direitos civis, comerciais, o di-
reito penal e o processo penal, ficavam sob o seu comando e supervisão.
“Danton, o pro-
cesso da re- Conforme já estudamos, por influência da Revolução Francesa, a
volução” (dire- codificação civil brasileira adotou valores do Estado Liberal, inspirando-
ção de Andrzej -se Clóvis Beviláqua na estrutura do Código de Napoleão para constru-
Wajda, 1982). O ção do nosso Código Civil de 1916. O Código de Napoleão, como co-
filme retrata a nhecido ficou o Código Civil Francês (Code Civil des Français), trazia em
situação econô- sua estrutura quatro livros, sendo o primeiro deles um título preliminar
mica da França, que procurava descrever o efeito das leis no espaço tempo:
quatro anos após a Revolução
Francesa.
Code Civil des Français 1804 – Código Civil Francês – Código de Napoleão
PRELIMINAR Arts. 1º a 6º Da publicação, dos efeitos e da
aplicação das leis em geral
LIVRO I Arts. 7º a 515 Das pessoas
LIVRO II Arts. 516 a 710 Dos bens e das modificações da
propriedade
LIVRO III Arts. 711 a 2302 Dos modos de aquisição da
propriedade

O Código Civil de 1916, Lei n. 3.071/1916, sob a supervisão do ju-


rista Clóvis Beviláqua, sofreu influência do iluminismo, adotando valo-
res do Estado Liberal, com um viés burguês e patrimonialista, por força
da Revolução Francesa, inspirando-se também no Código de Napoleão,
trazia ainda a compreensão oitocentista de que o Código representava o
sistema jurídico em completude (fechado). Tinha três pilares: a família,
a propriedade e o contrato. Antes do seu texto, era precedido pela LICC
– Lei de Introdução ao Código Civil, uma pequena lei de 21 artigos que
identificava o início da vigência, a obrigatoriedade, a integração, a inter-
pretação e aplicação das Normas no Tempo e no Espaço:

CÓDIGO CIVIL 1916 – Clóvis Beviláqua


LICC Arts. 1º a 21 Introdução
PARTE GERAL
LIVRO I Arts. 2º a 42 Das Pessoas
LIVRO II Arts. 43 a 73 Dos Bens

LIVRO III Arts. 74 a 179 Dos Fatos Jurídicos


PARTE ESPECIAL
LIVRO I Arts. 180 a 484 Do Direito de Família
LIVRO II Arts. 485 a 862 Do Direito das Coisas
LIVRO III Arts. 863 a 1.571 Do Direito das Obrigações
LIVRO IV Arts. 1.572 a 1.805 Do Direito das Sucessões
Arts. 1.806 e 1.807 Disposições Finais

26
Direito Civil

O Código de 1916 teve influência predominantemente francesa (in-


dividualismo quanto conteúdo do Código), além da influência germâni-
ca (quanto à estruturação formal do Código). No revogado Código Civil
havia uma parte geral, tal qual a codificação alemã – BGB (O Código dos
franceses não tem parte geral). Aquele Diploma legal adotava a ideia da
codificação total, de completude. Deste modo, o Código Civil era uma
lei considerada completa, não precisava de leis especiais. Ao analisarmos
comparativamente os Códigos Civis de 1916 e 2002, devemos ressaltar
suas diferenças, em razão dos momentos históricos de cada século (XIX
e XX). Houve a influência também da reforma das situações jurídicas,
novos fatores sociais como o advento da Lei do Divórcio (n. 6.515/77);
Lei dos Conviventes (n. 9.278/96) e a Lei do Inquilinato (n. 8.245/91).
E claro, primordialmente, a Constituição Federal de 1988. Reportando-
-nos ao Código Civil vigente, este conservou sua estrutura semelhante,
tanto na parte geral quanto na especial. Adicionou as obrigações mer-
cantis (comerciais) às cíveis. Prestigiou os microssistemas, cedendo a
diversas influências do Código de Defesa do Consumidor. No tocante a
sua recodificação, prestigiou as matérias e as interpretações consolidadas
a partir do Código Civil de 1916.
O Código Civil de 2002 não foi uma obra solo, mas teve a parti-
cipação de juristas de diversas regiões do Brasil, que ocuparam dife-
rentes papéis como operadores do direito (magistrados, advogados e
professores de direito), por conta do notável saber jurídico, houve qua-
tro versões iniciais do projeto, publicadas na imprensa oficial (1972,
1973,1974 e 1975).
Sob a supervisão de Miguel Reale, o qual esclareceu que a inicia-
tiva de um novo Código Civil não surgiu de repente, mas foi conse-
quência de duas tentativas anteriores que já demarcaram as condições
que deveriam ser evitadas ou, então, complementadas. Não houve a
intenção de unificar o Direito Privado em um só Código, como erro-
neamente se pensa; o intento era consolidar e aperfeiçoar o que já era
seguido no país. Se refere à superação do Código Comercial de 1850 e às
questões comerciais que por ele não eram mais abrangidas, o que força-
va os juízes a se socorrerem no Código Civil de 1916, situação que pro-
vocou a necessidade de adequação da parte que tratava das obrigações.
Então, deixou-se de lado a ideia de fazer um Código das Obrigações em
separado, aproveitando o trabalho já desenvolvido naquele sentido pe-
los juristas Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de
Azevedo, desempenhado no anteprojeto do Código das Obrigações; e,
depois, do trabalho realizado por Orlando Gomes e Caio Mário da Sil-
va Pereira, quando da proposta de elaboração separada de um Código
Civil e de um Código das Obrigações, contando com a colaboração, nes-
te caso, de Silvio Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias
Gueiros. Optar pelo aproveitamento do trabalho já realizado daqueles
juristas foi o motivo da alteração da ordem da matéria.

27
Como bem se pode notar, o Código atual, levou em consideração a
realidade de uma sociedade de natureza agrária, começando a tratar do
Direito de Família, passando pelo Direito de Propriedade e das Obriga-
ções, até chegar ao das Sucessões.

CÓDIGO CIVIL 2002 – Miguel Reale

PARTE GERAL

LIVRO I Arts. 1º a 78 Pessoas

LIVRO II Arts. 79 a 103 Bens

LIVRO III Arts. 104 a 232 Fatos Jurídicos

PARTE ESPECIAL

LIVRO I Arts. 233 a 965 Direito das Obrigações

LIVRO II Arts. 966 a 1.195 Direito de Empresa

LIVRO III Arts. 1.196 a 1.510 Direito das Coisas

LIVRO IV Arts. 1.511 a 1.783 Direito de Família

LIVRO V Arts. 1.784 a 2.027 Direito das Sucessões

Livro Complementar Arts. 2.028 a 2.046 Disposições finais e


transitórias

A antiga LICC – Lei de Introdução ao Código Civil, instituída pelo


Decreto-Lei n. 4.657/42, por muito tempo serviu como tábua rasa de
auxílio a todas as demais normas do direito brasileiro, deixando de se
tratar apenas de introdução ao Código Civil. Passou então a ser chama-
da de LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por
alteração legislativa introduzida pela Lei n. 12.376/2010, desaparecendo
da parte introdutória do Código Civil novo.
A Parte Geral passou a enunciar os direitos e deveres gerais da pes-
soa humana e estabelecer pressupostos gerais da vida civil. Na Parte Es-
pecial, disciplina as obrigações que emergem dos direitos pessoais. Pode-
-se dizer que, enunciados os direitos e deveres dos indivíduos, passa-se
a tratar de sua projeção natural, que são as obrigações e os contratos.
O direito obrigacional traz extensa essa disciplina, diante da neces-
sidade de tratar as questões já não abrangidas pelo Código Comercial
de 1850, unificando as obrigações civis com as obrigações empresariais,
termo adotado preferencialmente por Miguel Reale, pois a atividade
econômica não se assinalava mais pelos atos de comércio de outrora,
tendo uma projeção maior, por relevantes aspectos de natureza indus-
trial ou financeira.
Após o Direito das Obrigações, o Código Civil de 2002 trouxe uma
parte nova, que é o Direito de Empresa, também no sentido de atender
às necessidades de uma norma que pudesse regular situações em que as

28
Direito Civil

pessoas se associam e se organizam a fim de, em conjunto, dar eficácia e


realidade ao que pactuam. Sem dúvida nenhuma esta foi uma inovação
inigualável, por não existir codificação semelhante.
O próximo livro trata do Direito das Coisas, trazendo para o Direi-
to Real uma nova forma de identificar o conceito de propriedade, já sob
a influência do princípio constitucional, que empresta função social à
propriedade, abandonando o conceito burguês anterior em que prima-
va o interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor.
Concluído o livro do Direito das Coisas, surge o Livro do Direito de Fa-
mília, seguido do Livro do Direito das Sucessões. Aqui outro ponto que
merece destaque, pois trouxe alteração relevante na estrutura do código,
a qual não encontra símile na codificação dos demais países.
A Comissão trabalhou no sentido de buscar preservar e respeitar o
trabalho intelectivo do saber jurídico que construiu a estrutura do siste-
ma civil, mantendo a mesma disposição da Parte Geral do Código Civil,
conquistada desde Teixeira de Freitas, organizando a matéria em coerên-
cia lógica com as recentes codificações3.
Excluiu a matéria de ordem processual, restringindo-se apenas
aquelas que profundamente ligadas à natureza material.

1.9.2. o Sistema misto – as Cláusulas Gerais e os


Conceitos vagos
A estrutura ideal de um sistema jurídico dotado de cláusulas gerais
é aquela que se admite incompleta, aberta e com mobilidade em cer-
tas áreas (novo pensamento sistemático). Para que as cláusulas gerais
ocupem sua função, demandam flexibilidade do sistema. Desse modo, o
sistema deve ser aberto ou elástico o suficiente para permitir o melhor
desempenho de suas cláusulas gerais.
Segundo muitos autores, o Código Civil Brasileiro de 2002 seria ca-
racterizado, então, como um sistema misto, eis que constituído por uma
parcela de disposições rígidas, por meio das quais o legislador lançou
mão do método casuístico, que obriga o aplicador da norma a valer-se
do método lógico-subsuntivo, e outra parcela de disposições flexíveis,
típicas de um sistema aberto e móvel, possibilitando a incidência de
cláusulas gerais.
Adotou a possibilidade do uso das cláusulas gerais e conceitos ju-
rídicos indeterminados ou vagos, através da linguagem, como forma
de flexibilização do sistema jurídico, dilatando ao juiz a possibilidade de
interpretação para aplicação da norma ao caso concreto. Desprendendo-

3. BRASIL, SENADO FEDERAL. Biblioteca Digital do Senado. Quadro com-


parativo entre o novo Código Civil e o Código Civil antigo. Disponível em <
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70309/704509.pdf?se-
quence=2 > . Acesso em 30 mar. 2015.

29
-se do falso conceito que existia quanto à completude do sistema jurí-
dico positivado em Código, a mudança na técnica legislativa, incluindo
cláusulas gerais e conceitos vagos, permitiu a abertura ao sistema jurídi-
co, tornando-o de fechado em misto, o que quer dizer que não é aberto,
mas apenas permite sua abertura quando diante de um caso concre-
to aplicável. Esta técnica pós-moderna surgiu das transformações que
ocorreram após a Revolução Industrial; diante das enormes mudanças
ocorridas na sociedade, não havia mais condições de manter a antiga
estrutura tradicional, atendendo muito melhor a integração do sistema
jurídico através das cláusulas gerais.
Judith Martins-Costa descreve como a linguagem empregada per-
mite que a codificação funcione como um sistema aberto, facilitando a
constante incorporação de soluções de novos problemas, pela jurispru-
dência ou por atividades de complementação legislativa. A jurista afirma
que as cláusulas gerais são como janelas deixadas pelo legislador civil em
razão da mobilidade da vida:

“Estas janelas, bem denominadas por Irti de ‘concetti di collegamen-


to’, com a realidade social são constituídas pelas cláusulas gerais,
técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o in-
gresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorati-
vos ainda não expressos legislativamente, de standards , arquétipos
exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previs-
tos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não
advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configura-
dos segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas,
sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos meta-
jurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressiste-
matização no ordenamento positivo.
Nas cláusulas gerais a formulação da hipótese legal é procedida
mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado
intencionalmente vagos e abertos, os chamados ‘conceitos jurídi-
cos indeterminados’. Por vezes, e aí encontraremos as cláusulas
gerais propriamente ditas – o seu enunciado, em vez de traçar
pontualmente a hipótese e as consequências, é desenhado como
uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que ca-
racteriza os seus termos, a incorporação de princípios e máximas
de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificados, do
que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios,
diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de no-
vas normas”.
A utilização de cláusulas gerais é uma técnica legislativa que per-
mite fazer uso de normas formuladas a partir do uso de concei-
tos jurídicos indeterminados. A vagueza de conteúdo semântico
possibilita a incorporação, no momento da aplicação do direito, de
valores filosóficos, sociológicos e econômicos.

30
Direito Civil

JuriSPruDÊNCiA

Tribunal de Justiça de Minas Gerais


“Neste sentido, NELSON NERY
JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE
NERY anotam: “A cláusula geral
contida no art. 422 do novo Có-
digo Civil impõe ao juiz interpre-
Segundo Rodrigo Reis Mazzei, existem três espécies de cláusulas ge- tar e, quando necessário, suprir
rais no Código Civil de 2002: e corrigir o contrato segundo a
1. Cláusulas gerais restritivas – que restringem em certas situações o boa-fé objetiva, entendida como
âmbito de um conjunto de permissões advindas da regra ou prin- exigência de comportamento
leal dos contratantes.” (Código
cípio jurídico. Por exemplo: a liberdade de contratar está restrita
Civil Anotado e legislação extra-
à função social do contrato (CC, art. 421)4;
vagante, Saraiva, 2ª Edição, 2003,
2. Cláusulas gerais regulativas – que regulam com base em um prin- p. 340-341). Apelação Cível n.
cípio, hipóteses de fato ou não previstas em lei. Por exemplo: a re- 1.0024.04.262215-9/001, rel. Des.
gulação da responsabilidade civil por culpa (CC, arts. 927 e 943), e Tarcísio Martins Costa, j. 6.3.2007).
3. Cláusulas gerais extensivas – que ampliam a regulação jurídica,
permitindo a introdução de princípios e regras de outros textos
normativos. Por exemplo: O que dispõe o Código de Defesa do
Consumidor (artigo 7º)5.

1.9.3. os Princípios Norteadores do Código Civil


Miguel Reale também se preocupou em dar ao Código Civil de 2002
princípios norteadores básicos, os quais deverão ser sempre observados,
por serem considerados valores essenciais, são eles:

a) Princípio da Eticidade;
b) Princípio da Socialidade; e
c) Princípio da Operabilidade.
Quanto à eticidade, procurou-se superar o apego ao formalismo
jurídico, conservando as conquistas das técnicas jurídicas (normas ge-
néricas ou cláusulas gerais), sem a preocupação com o rigorismo con-
ceitual, buscando com ênfase proteger a pessoa humana, priorizando a
boa-fé, a justa causa, a equidade e outros critérios éticos. No que tange a
sociabilidade, buscou-se afastar o caráter individualista da lei, priman-

4. Código Civil, art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na con-
clusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
5. Código de Defesa do Consumidor, art. 7º – Os direitos previstos neste Códi-
go não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de
que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos ex-
pedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que de-
rivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Parágrafo
único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela
reparação dos danos previstos nas normas de consumo.

31
do pelo predomínio do social, dos valores coletivos sobre os individuais
ComENTário (surge então a função social nos direitos: posse, contrato, propriedade,
etc.). A operabilidade busca as soluções simples que se estabeleçam de
oS TrÊS TiPoS DE DiáLoGoS
DAS foNTES:
modo a facilitar a interpretação e aplicação e dar maior efetividade ao
operador do direito. Característica que permeia o Código Civil, tornan-
Para o Ministro João Otávio
do-o mais didático e prático.
de Noronha, no entendimento de
Claudia Lima Marques, existem Deste modo, o sistema jurídico misto brasileiro permite que as
três tipos de diálogo das fontes questões cíveis sejam julgadas conforme cada caso concreto. Isto é possí-
entre o Código Civil e o Código vel por conta dos conceitos vagos, que para obterem a melhor aplicação
de Defesa do Consumidor: 1) o diante de casos em que exista dúvida ou lacuna interpretativa, permite a
diálogo sistemático de coerên- aplicação das cláusulas gerais, sempre primando por manter o respeito
cia – a aplicação simultânea das aos princípios norteadores do Código Civil.
duas leis; 2) a incidência coorde-
nada de duas leis – quando uma
lei pode complementar a aplica-
ção de outra, conforme o caso
concreto, valendo também aos
princípios; 3) o diálogo de influên-
cias recíprocas com uma possível
redefinição do campo de aplica-
ção de uma lei. Exemplo: defini-
ção de consumidor stricto sensu
e a de consumidor equiparado, Ainda estudaremos, logo adiante, as regras de interpretação da nor-
que pode sofrer influência finalís-
ma jurídica para a correta aplicação do direito em cada caso, por meio
tica do Código Civil.
da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
NORONHA, João Otávio. Cri-
se de fontes normativas: Código
Civil x Código de Defesa do Con-
o CAmPo DE iNCiDÊNCiA Do
sumidor. Disponível em <http://
www.editorajc.com.br/2011/10/
1.10 CÓDiGo CiviL
crise-de-fontes-normativas-codi-
go-civil-x-codigo-de-defesa-do-
consumidor-parte-1/>. Acesso em O campo de incidência do Código Civil se refere a área que abrange
22 mar. 2015. o seu alcance. Conforme pudemos aprender durante o estudo da es-
trutura do Código Civil, no seu Livro Geral, cuida das situações que
envolvem o direito subjetivo relacionado às pessoas, aos bens e aos fa-
tos jurídicos. Na Parte Especial, desenvolve a regulação do direito das
obrigações, do direito empresarial, do direito das coisas, do direito de
família e, finalmente, do direito das sucessões.
Ao entrar em vigor, o Código Civil de 2002 provocou mudanças
não apenas em relação ao direito das obrigações. Além das mudanças
que já apontamos nos dois últimos tópicos de estudo, Rosa Maria de
Andrade Nery6 esclarece que a legislação civil vigente revogou a Parte
Primeira do Código Comercial (arts. 1º a 456), poupando apenas sua
Segunda Parte (Arts. 457 a 796), que cuida do Comércio Marítimo.

6. NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria


geral do direito privado. Editora RT: São Paulo, 2008, p. 81.

32
Direito Civil

Em razão da vigência anterior do Código de Defesa do Consumi-


dor, cogitou-se uma crise das fontes (Código Civil e Código de Defesa do CiNEmATECA
Consumidor), contudo a doutrina superou este entendimento ao com- Veja “o merca-
preender possível a coexistência de ambas, contribuindo neste sentido o dor de veneza”
esclarecimento de Claudia Lima Marques, quando trouxe ao Brasil a teo- (direção de Mi-
ria do diálogo das fontes de seu orientador e mestre alemão, Erik Jaime7. chael Radford,
Entretanto, não se pode esquecer que o Código Civil de 2002 con- 2004); observe
serva a possibilidade de servir como fonte subsidiária do direito, ou que no contrato
seja, trata-se de fonte de integração da norma jurídica, aplicável quan- da época figura-
do houver alguma lacuna de norma, utilizado como instrumento de in- va a autonomia
tegração interpretativa do juiz, ao julgar o caso concreto. Estudaremos da vontade, não a autonomia
mais detidamente esta atividade do juiz, quando observarmos o contido privada. Compare a diferença na
na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Como se pode visão de direito no Estado Liberal
para o Estado Social.
notar, o uso do Código Civil como fonte de integração da norma jurídi-
ca pelo juiz, sem dúvida nenhuma, dilata aumentando ainda mais o seu
campo de incidência. CurioSiDADE
O Direito Civil, ao longo de sua história no mundo romano-ger-
mânico, sempre ocupou um lugar normativo privilegiado, e ao seu lado A autonomia da vontade
as normas do direito civil, como pudemos perceber, são as mais antigas trazia o conceito de que uma vez
formas de regulação das relações interpessoais da sociedade, transcen- manifestada a vontade, como
dendo as mudanças sociais, políticas e econômicas ao longo dos séculos. por exemplo, em um contrato as-
Diante desta condição inegável, que descreve sua robusta e portentosa sinado, deveria ela ser obedeci-
da. Este era o conceito do Estado
composição ao longo dos séculos, o direito civil sempre forneceu as ca-
Liberal, fazer garantir a liberdade
tegorias, os conceitos e classificações que consolidaram diversos ramos
plena, enquanto, na autonomia
do direito público, inclusive o constitucional.
privada, o Estado intervém sem-
A migração do Estado Liberal para o Estado Social a partir do sé- pre que a vontade das partes ex-
culo XX, pode ser percebida pela intervenção estatal nas relações pri- pressa no contrato vier a ofender
vadas. No Estado Social, passou a ocorrer uma mitigação da amplitude o ordenamento jurídico. Desse
da autonomia da vontade, restringindo condicionalmente a autonomia modo, se existir um valor resguar-
privada para garantir os interesses dos mais fracos, pela influência dos dado pelo ordenamento, não
direitos fundamentais e direitos humanos que surgiram após a Segunda podem as partes usar de tal liber-
Guerra Mundial. dade de contratar para tornarem
válido o contrato. Exemplo: loca-
dor que aluga imóvel e faz con-
Pessoas,฀Bens฀e฀Fatos฀Jurídicos฀ •฀Arts.฀1º฀a฀103฀CC trato, sendo o objeto da locação
uso industrial que ofende ao meio
Obrigações,฀Empresa,฀Coisas,฀฀ •฀Arts.฀104฀a฀2.027฀CC ambiente. Pode o Estado intervir
Família e Sucessões e tornar sem efeito o contrato,
por ofensa a preceito de ordem
Aplicação฀Subsidiária฀ ฀ •฀Fonte฀de฀integração pública.

7. NORONHA, João Otávio. Crise de fontes normativas: Código Civil x Código de


Defesa do Consumidor. Disponível em <http://www.editorajc.com.br/2011/10/
crise-de-fontes-normativas-codigo-civil-x-codigo-de-defesa-do-consumidor
-parte-1/>. Acesso em 22 mar. 2015.

33
voCABuLário o DirEiTo CiviL E A CoNSTiTuiÇÃo
1.11 fEDErAL DE 1988
infraconstitucional: é a legislação
que está abaixo da Constituição.
1.11.1. o Personalismo Ético e a Dignidade
Humana
CiNEmATECA
Após a Segunda Grande Guerra Mundial, em razão da consciência
o julgamento de Nu- em defesa da humanidade provocada pela reflexão quanto às atrocida-
remberg. O filme re- des cometidas contra os seres humanos nos campos de concentração
trata de modo claro, nazistas, foi proclamada a DUDH – Declaração Universal dos Direitos
com cenas reais, o
Humanos (10-12-1948), através da Assembleia Geral das Nações Uni-
motivo que provocou
das, tornando a defesa desses ideais a principal tarefa da ONU – Orga-
a existência do personalismo ético.
nização das Nações Unidas, a qual pactuou em consenso com diversos
Estados o esforço comum mundial no sentido de tornar claro que a dig-
AuTor nidade é inerente a todos os membros da família humana, e que todo ser
humano tem direitos iguais e inalienáveis à liberdade, à justiça e à paz8.
KArL LArENZ (1903 a
De acordo com Karl Larenz9, rompe-se assim com o antigo o paradigma
1993). Jurista alemão
que foi professor nas patrimonialista, o qual adotava o contrato e a propriedade como meio
duas mais importan- para efetivação dos direitos individuais, passando a firmar-se o direito
tes universidades da das pessoas na sua própria existência, pelo simples fato de se tratar de
Alemanha: Kiel e Munique. Dedi- pessoa humana, de onde decorre o novo paradigma, conhecido como
cava-se ao estudo do Direito Civil, personalismo ético.
tendo publicado diversas obras
Portanto, o ordenamento jurídico deslocou o foco de valores do viés
jurídicas. Entre suas obras mais
importantes, além do estudo da
individual patrimonialista, que conservava o Estado Liberal, para o viés
jurisprudência e valores, trouxe o da valorização da pessoa humana, passando o Estado Social a garantir
conceito de personalismo ético. a preservação do direito à dignidade da pessoa humana como garan-
CLAuS-WiLHELm CA- tia fundamental, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos
NAriS (01-07-1937). (1948). Na visão antiga, sob influência do iluminismo, o homem só era
Notável jurista ale- compreendido como um indivíduo. Para o homem exercer seus direitos
mão, nascido em privados, tinha maior relevância aquele que tivesse seu direito ampara-
Liegnitz, que identifi- do por um contrato, pela posse ou em razão do direito de propriedade.
cou as lacunas na lei.
Esta nova visão do pensamento jurídico pós-Grande Guerra rom-
Professor e doutrinador com 16 li-
vros publicados em diversos países, peu definitivamente com o modelo patrimonialista. Claus-Wilhelm Ca-
além de mais de 180 artigos cientí- naris esclarece que, a partir de então, quase todo ordenamento jurídico do
ficos. Por sua destacada atuação mundo moderno passou a instituir a garantia dos direitos fundamentais
e contribuição jurídica e filosófica dos cidadãos por meio de Constituições, organizando sua legislação hie-
com o Brasil, recebeu em 2012 o rarquicamente, passando tais valores a incidirem efeitos no Direito Priva-
título de doutor honoris causa pela do e em toda legislação infraconstitucional e na jurisprudência.
Pontifícia Universidade Católica do
No personalismo ético, todo homem deve ser percebido como pes-
Rio Grande do Sul. Sobre o tema
sugerimos a leitura de: CANARIS,
soa, ser da espécie humana, e por isto digno é de atenção do Estado So-
Claus-Wilhelm. A influência dos di-
reitos fundamentais sobre o direito
privado na Alemanha, p. 225. In: 8. UNESCO. Declaração Universal dos Direito Humanos, 1948. Disponível em
SARLET, Ingo Wolfgang (org). Cons- <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em
tituição, Direitos Fundamentais e 26 fev. 2015.
Direito Privado. Porto Alegre: Livra- 9. LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Tradução de Miguel Izquierdo y
ria do Advogado, 2010, p. 206-207. Macías. Picavea. Madri:Ed. Revista de Derecho Privado, 1978. § 2º.

34
Direito Civil

cial, independentemente de estar questionando judicialmente proteção de


direito contra outra pessoa ou ente privado em defesa de contrato, posse
CurioSiDADE
ou propriedade. A pessoa enquanto ser da espécie humana (personalismo
Teoria da eficácia horizontal
ético) prevalece sobre o antigo paradigma do ter (patrimonialismo). ou irradiante dos direitos funda-
Dentro desta compreensão, emergiu como garantia fundamental a mentais.
todos cidadãos brasileiros o princípio da dignidade da pessoa humana, Os direitos são transindividu-
através do qual se contempla a evolução social histórica do personalismo ais por zelarem por uma classe
ético, um dos pilares básicos de nosso Estado Democrático de Direito específica de cidadãos, indepen-
(descrito no inciso III do artigo 1º da Carta Magna de 1988). dentemente de exprimirem sua
Com a constitucionalização ocorrendo em diversos países, obser- vontade. Por exemplo: o Ministé-
va-se que as normas buscam uma natural reorganização, em razão da rio Público tem legitimidade para
intervir quando existir interesse
mudança dos seus valores fundamentais, no sentido de repor a pessoa
das crianças e adolescentes, dos
humana como centro do direito civil; esta trajetória de emancipação hu-
idosos, dos consumidores etc. A
mana, chamam os doutrinadores de repersonalização dos direitos civis.
organização dessas leis infracons-
Desse modo, o Estado Social passou a dar maior relevância à soli- titucionais, quando apresenta
dariedade e à função social dos institutos (propriedade, contrato, res- conjunto complexo e capaz de
ponsabilidade civil, família e empresas) para atender melhor à tutela dos lhe conceder certa autonomia,
mais fracos, delimitando a autonomia privada por meio da intervenção chama a doutrina de microssiste-
estatal com aplicação direta e dos direitos fundamentais às relações pri- ma jurídico.
vadas, sempre que necessário. Por força dessa influência da Constituição
sobre as relações civis, o legislador passou a criar diversas outras nor-
mas infraconstitucionais específicas, que tratam com certa autonomia SAiBA mAiS
de questões de ordem pública envolvendo direitos transindividuais (O
NETTO LOBO, Paulo Luiz. Cons-
Estatuto da Criança e Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor,
titucionalização do direito civil.
o Estatuto do Idoso, etc.).
Revista de informação legislativa.
Paulo Luiz Netto Lobo explica que esta atividade intervencionista Senado Federal. Brasília, ano 36, n.
do Estado em defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos foi res- 141 jan./mar. 1999.
ponsável por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos
transformadas em ramos autônomos do direito, como, por exemplo: o
direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da
habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, como já citamos, o
estatuto da criança e do adolescente, o direito do consumidor, os direitos
autorais, entre outros. Este movimento legislativo que de certo modo
provocou algum esvaziamento das matérias e do campo de incidência
do Código Civil, movido pelo impulso dos novos valores sociais, na pro-
teção dos direitos da pessoa humana, alguns juristas chamam também
de descodificação do direito civil. Então, este fenômeno também citado
como constitucionalização do direito civil poderia ser visto como uma
elevação dos princípios fundamentais do direito civil, ao plano constitu-
cional, condicionando-os à observância de todos os cidadãos e à aplica-
ção, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional.
Nota-se com facilidade que existe de fato um esforço por acomodar
estes novos valores que se pautam na defesa da pessoa humana, o que
tem provocado uma verdadeira reconstrução da regulação das relações
civis, impondo uma nova leitura do Código Civil à luz da Constitui-
ção Federal de 1988. São inúmeros os nomes que podem retratar este
fenômeno, entre eles: repersonalização do direito civil, despatrimo-

35
nialização do direito civil, constitucionalização do direito civil. A
doutrina cogita inclusive a criação de uma nova disciplina ou ramo
metodológico do direito, denominada Direito Civil Constitucional,
a qual estuda o direito civil à luz da Constituição Federal, tendo como
eixo norteador os princípios constitucionais (a dignidade da pessoa
humana, Art.1.º, inciso III; a solidariedade social, Art. 3.º, inciso I; a
igualdade substancial, Arts. 3.º, inciso IV, e 5.º, caput; a erradicação
da pobreza e redução das desigualdades sociais, Art. 3.º, incisos III
e IV) (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 19). Nessa linha, temos
no elenco quatro categorias de temas da Constituição Federal que ir-
radiam efeitos sobre os direitos civis, sendo que os três primeiros se
tornaram princípios constitucionais, conhecidos por: a) princípio da
dignidade da pessoa humana; b) princípio da solidariedade, e c) prin-
cípio da isonomia ou igualdade. Convém informar que existe projeto
no Senado Federal para erigir a erradicação da pobreza a um princí-
pio também; quando isto ocorrer, poderemos afirmar que o Direito
Civil Constitucional estuda a influência dos princípios constitucio-
nais sobre o direito civil. Isso porque a erradicação da desigualdade
social, de certo modo, já estaria sendo aplicada através da efetividade
do princípio da igualdade substancial.

Então, embora muito mais jovem que o Código Civil, a Constitui-


ção Federal de 1988 passou a influenciar diretamente toda a legislação
brasileira, garantindo o exercício dos direitos fundamentais dos cida-
dãos. No direito de família, consolidou-se a família núcleo natural e fun-
damental da sociedade; o princípio da isonomia (igualdade) extirpou
as diferenças que haviam entre homem e mulher, entre os filhos havidos
no casamento e fora dele.
Por força e influência da Constituição Federal de 1988, também o
direito passou a estabelecer a função social (da propriedade, do contra-
voCABuLário to etc.) como meio de controle do Estado Social, garantindo sua inter-
venção imediata nas relações privadas.
equidade: traz consigo a ideia A função social deve ser respeitada e, neste sentido, exige determi-
de distribuição de modo justo,
nadas condutas dos sujeitos nas relações civis, sob pena de invalidação
proporcional e razoável, sob
do negócio jurídico. A função social permite ao juiz seguir as regras ou
análise do caso concreto.
cláusulas gerais para resolver a questão através da equidade.No que diz

36
Direito Civil

respeito aos contratos, por exemplo, o Código Civil estabelece no Artigo


voCABuLário
421 que as partes devem contratar, obedecidos a razão do contrato e os
limites da sua função social. Isto quer dizer que não pode uma parte abuso de direito: ocorre quan-
contratar em prejuízo da outra, ou da coletividade, sob pena de abuso de do o titular de um direito, ao
direito. Logo mais à frente, no Artigo 422, isto se demonstra claramente, exercê-lo, excede manifesta-
quando o Estado impõe aos contratantes a obrigação de guardar na exe- mente os limites impostos pelo
cução e conclusão do contrato os princípios da probidade e da boa-fé. seu fim econômico ou social,
Miguel Reale explica que a função social do contrato no Código Civil pela boa-fé ou pelos bons cos-
existe por derivar da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo tumes, conforme descreve o
Art. 187 do Código Civil.
5.º, incisos XXII e XXIII, descreve que o direito de propriedade atenderá
sempre a sua função social.
ComENTário
As cláusulas gerais do Código Civil, conforme já estudamos, podem
ser a) restritivas; b) regulativas e c) extensivas. Ainda com estas categorias Personalismo Ético: Teoria ins-
em mente, examinemos os artigos 112, 113, 114, 421, 422 e 423 do Có- pirada no pensamento iluminista
digo Civil. Tais artigos fornecem critérios interpretativos ao magistrado de Kant, desenvolvida por Karl
para que lhe permitam, ao julgar o caso concreto, conservar os princípios Larenz, na qual a pessoa deve ser
considerada o fim e não o meio,
da intencionalidade, da probidade e da boa-fé nas relações negociais.
pois não possui um preço. Base
fundamental para a construção
CLÁUSULAS GERAIS DO CÓDIGO CIVIL do princípio da dignidade da pes-
soa humana adotado pela Cons-
Art. Texto PALAVRAS-CHAVE
tituição Federal de 1988.
Nas declarações de vontade se atenderá mais
PRINCÍPIO DA IN-
112 à intenção nelas consubstanciadas do que ao CurioSiDADE
TENÇÃO
sentido literal da linguagem.
A influên-
Os negócios jurídicos devem ser interpreta- PRINCÍPIO DA cia dos direitos
113 dos conforme a boa-fé e os usos do lugar de BOA-FÉ OBJETIVA E fundamentais
sua celebração. COSTUMES garantidos pela
Constituição
INTERPRETAÇÃO
RESTRITA sobre o Direito
Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia
114
interpretam-se estritamente. Privado recebe
negócios gratuitos,
doação e renúncia vários nomes si-
nônimos pela doutrina, tais como:
A liberdade de contratar será exercida em constitucionalização do direito
421 razão e nos limites da função social do con- FUNÇÃO SOCIAL civil ou direito privado; descodi-
trato. ficação do direito civil; reperso-
nalização do direito privado ou
Os contratantes são obrigados a guardar
PRINCÍPIO DA dos direitos civis, despatrimoniali-
assim na conclusão do contrato como em
422 PROBIDADE E DA zação etc. Alguns doutrinadores
sua execução os princípios da probidade e da
BOA-FÉ OBJETIVA cogitam ainda o surgimento de
boa-fé.
um outro ramo do direito: o Direi-
Quando houver no contrato de adesão cláu-
INTERPRETAÇÃO to Civil Constitucional.
sulas ambíguas e contraditórias, dever-se-á
423 BENÉFICA AO MAIS
adotar a interpretação mais favorável ao
FRACO SAiBA mAiS
aderente.
REALE, Miguel. Função Social
A aplicação imediata pelo Judiciário dos direitos fundamentais às do Contrato, 2003. Disponível em
relações privadas, a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos http://www.miguelreale.com.br/
fundamentais. artigos.

37
ATENÇÃo A LEi DE iNTroDuÇÃo ÀS NormAS Do
1.12 DirEiTo BrASiLEiro
Lei Complementar n. 95/98,
art. 8º – A vigência da Lei será
indicada de forma expressa e 1.12.1. A interpretação da Norma Jurídica
de modo a contemplar prazo ra-
zoável, para que dela se tenha A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei n.
amplo conhecimento, reserva- 12.376/2010), antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n.
da a cláusula "entra em vigor na 4.657/1942), embora pequena, com apenas dezenove artigos, apresenta
data da sua publicação" para as diversas regras destinadas a orientar o operador e aplicador do direito:
leis de pequena repercussão. §
1º – A contagem do prazo para LINDB
entrada em vigor das leis que es-
Arts. 1º e 2º Vigência das normas
tabeleçam período de vacância
far-se-á com a inclusão da data Art. 3º Obrigatoriedade das normas
da publicação e do último dia do Art. 4º Integração da norma
prazo, entrando em vigor no dia
subsequente à sua consumação. Art. 5º Interpretação da norma
Art. 6º Aplicação da norma no tempo
Arts. 7º a 19 Aplicação da norma no espaço

A LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro


aplica-se na orientação de todas as normas do ordenamento jurídico
brasileiro, seja no âmbito Privado ou Público, inclusive no Direito In-
ternacional.

1.12.2. Prazos para vigência de Lei


Os prazos para vigência de uma lei são em regra contados a partir
da sua publicação oficial.
Ao lapso temporal entre a publicação e a vigência de uma lei cha-
mamos de vacatio legis. A vacatio legis é o prazo razoável para que nin-
guém alegue a ignorância da lei. Durante a vacatio, a lei existe mas não é
obrigatória, contudo para garantir o seu texto integral, será considerada
vigente retroativamente desde o dia da sua publicação, após exaurido o
lapso da vacatio, conforme esclarece o Art. 8º, § 1º da LC n. 95/98.
O prazo para vigência de uma lei no Brasil é de quarenta e cinco
dias após sua publicação oficial. Admitindo exceção, quando o próprio
texto de lei expressar disposição contrária. Contudo para vigorar no es-
trangeiro, se aceita a lei, o prazo é de noventa dias a partir da publicação
oficial.
Toda legislação antes de entrar em vigor passa por um processo,
que envolve cinco fases: a) a elaboração; b) a promulgação; c) a publica-
ção; d) a vacatio legis; e e) a vigência.
Se vier a ocorrer nova publicação da lei, desde que ainda não te-
nha entrado em vigor e mesmo que exclusivamente para correção de
meros erros materiais, sua obrigatoriedade ficará condicionada a novo
período de vacatio, a contar da última publicação. Se a lei corrigida já

38
Direito Civil

estava em vigor, será considerada a versão corrigida e última como lei


nova (LINDB, Art. 1º, § 4º). voCABuLário

revogar: é retirar a eficácia da


lei anterior. A lei nova, em re-
gra, revoga a lei velha.

ATENÇÃo

A lei temporária, em regra,


trará expressamente em seu texto
o prazo da sua duração ou da vi-
gência integral.

ATENÇÃo

LiNDB:
1.12.3. A revogação da Lei – Art. 2º. Não se destinando à
Não se tratando de lei temporária, a vigência de uma lei permane- vigência temporária, a lei terá vi-
ce até que outra a modifique ou revogue, este é o princípio da conti- gor até que outra a modifique ou
nuidade das leis. revogue.
– Art. 2º – § 1º – A lei posterior
revoga a anterior quando expres-
1.12.4. A vigência Temporária da Lei
samente o declare, quando seja
Examinando o Art. 2º, caput, da LINDB é possível verificar que com ela incompatível ou quando
existem dois tipos de leis, as leis de vigência permanente e as leis de vi- regule inteiramente a matéria de
gência temporária. Em regra, todas as leis são de vigência permanente. que tratava a lei anterior.
No entanto, serão de vigência temporária quando expressamente delas – Art. 2º – § 2º – A lei nova, que
constar: a) prazo de duração; b) condição resolutiva; ou c) se é alcançada estabeleça disposições gerais ou
sua finalidade. Nestes casos ocorre a caducidade da norma, quando a especiais a par das já existentes,
circunstância torna a norma sem eficácia. não revoga nem modifica a lei
anterior.
1.12.5. Da Extensão da revogação da Lei – Art. 4º – Quando a lei for omis-
A revogação da lei se divide em duas classes, a primeira refere-se à sa, o juiz decidirá o caso de acordo
sua extensão e a segunda quanto à forma de execução. com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito.
A revogação quanto à I) extensão, pode ser: a) total ou b) parcial.
– Art. 5º – Na aplicação da
A revogação total, também denominada por ab-rogação, configu-
lei, o juiz atenderá aos fins sociais
ra-se quando o texto da lei nova sepulta por completo a vigência do
a que ela se dirige e às exigências
texto anterior, sem qualquer ressalva.
do bem comum.
A revogação parcial, também chamada de derrogação, afeta apenas
– Art. 2º, § 3º – Salvo disposi-
parcialmente a norma anterior, permitindo que ainda vigore parte do
ção em contrário, a lei revogada
texto legal.
não se restaura por ter a lei revo-
Além das duas situações acima, em que temos a perda de eficácia da gadora perdido a vigência.
norma jurídica, cumpre salientar também que o Supremo Tribunal Fe- – Art. 3º – Ninguém se escusa
deral pode afastar vigência das leis que julgar inconstitucionais quando de cumprir a lei, alegando que
suspensas pelo Senado Federal através do controle difuso de constitu- não a conhece.
cionalidade (art. 52 da CF).

39
1.12.6. Da forma de revogação da Lei
voCABuLário
Quanto à classe de revogação pela forma de II) execução, pode ser:
antinomia: trata-se de confli- a) expressa ou b) tácita.
to de normas. Ocorre quando
A revogação será expressa quando a lei nova descrever de modo
duas ou mais normas dispõem
expresso que revoga a lei anterior, é o que diz a primeira parte do § 1º
da mesma matéria. Segundo
Maria Helena Diniz, a antinomia
do Art. 2º da LINDB.
pode ser real ou aparente. A revogação de forma tácita exige um maior esforço interpretativo
do aplicador da norma, pois a situação pode apresentar uma antino-
lex derogat legi priori: do la-
tim, lei posterior revoga a lei mia, ou seja, um conflito de normas (antiga e nova), obrigando-o a
anterior. adotar certos critérios para a sua solução, como explica Maria Helena
Diniz (DINIZ, Conflito de normas. 2009):
a) critério cronológico – lex derogat legi priori
b) critério hierárquico – lex superior derogat legi inferior, e
c) critério especial – lex specialis derogat legi generali.
a) Critério cronológico, lex derogat legi priori, é aplicável quando a
lei nova for incompatível com a lei anterior ou regule de modo integral
a mesma matéria, como se pode notar da segunda parte do § 1º do Art.
2º da LINDB.
b) Critério hierárquico, lex superior derogat legi inferiori, prevê a
possibilidade de revogação tácita, quando uma lei hierarquicamente in-
ferior cuidar de matéria dita por uma lei de maior grau hierárquico.
Por exemplo: A Constituição Federal revogou de forma tácita diversas
disposições legais de leis infraconstitucionais.
c) Critério Especial – O critério da especialidade ou critério espe-
cial, lex specialis derogat legi generali, prevê que a lei especial prevalece
sobre a lei geral, revogando-a. Contudo se a lei nova estabelecer dispo-
sições gerais ou especiais, a par das já existentes, não revoga, nem mo-
difica a lei anterior. Isto quer dizer que, se a lei nova nada disser sobre a
conservação do conteúdo existente em lei anterior, e com aquele texto
anterior vier a conflitar sua matéria, poderá ser revogada tacitamente,
pela lei especial, ainda que mais velha (critério da especialidade). A co-
existência de normas tratando do mesmo assunto é possível, desde que
não exista entre elas incompatibilidade. Quando esta surgir, competirá
ao aplicador da norma aplicar os critérios para afastar a antinomia.

1.12.7. As Antinomias
Os conflitos de normas, que recebem o nome de antinomias, pos-
suem então três critérios para sua solução, conforme já estudamos no
que era tratado quanto à revogação tácita da norma. Os critérios cro-
nológico, hierárquico e especial obedecem a mesma lógica já exposta. A
antinomia aparente é um conflito que se resolve pelos critérios de modo
simples, não trazendo maiores dificuldades. Enquanto a antinomia real
não se resolve tão somente pela aplicação dos critérios, sendo necessário
aplicar a técnica de integração para lacunas da lei. A antinomia será de

40
Direito Civil

primeiro grau, quando um critério for suficiente à resolução do conflito


e de segundo grau quando envolver mais outro. voCABuLário

Non liquet, do latim, não está


1.12.8. A repristinação da Lei claro. A cláusula non liquet
era muito comum no período
A repristinação da lei é o fenômeno que permitiria devolver o esta-
do Estado Liberal, em que se
do anterior de vigência de uma lei já revogada. Embora nosso ordena-
acreditava que o ordenamen-
mento não permita que uma lei revogada restaure sua vigência, se a lei
to jurídico se resumia no direito
nova fizer expressa menção à lei revogada (note o art. 2º, § 3º, o qual diz positivado. Era invocado pelos
"salvo o contrário...") para que o efeito repristinatório se aplique, isto juízes de tribunais para que es-
será possível. tes pudessem deixar de julgar
quando um caso trouxesse
1.12.9. A obrigatoriedade das Normas questões obscuras ou sem disci-
plina clara na lei. Esta cláusula
A vacatio legis, que se inicia com o período de publicação de uma foi afastada do ordenamento
lei, após seu longo trâmite legislativo, tem a função de dar amplo conhe- brasileiro.
cimento da lei, sendo que a partir de sua vigência a lei opera erga omnes
Como se percebe, não se pode alegar ignorância da lei, pois ela
possui eficácia global, pelo princípio da obrigatoriedade. Entretanto, de
acordo com Rene Gustavo Nicolau, quando excepcionalmente em casos
nos quais a ignorância ou errônea compreensão da lei ocorrer, poderá a
pena deixar de ser aplicada, nos moldes do que dispõe o Art. 8º do DL n.
3.688/41 (Lei das Contravenções Penais). Exemplo: emissão de fumaça
que impede o motorista de ver a placa de trânsito ou semáforo.

1.12.10. Da integração da Norma Jurídica


Conforme pudemos observar, o sistema jurídico para solução dos
conflitos judiciais privados é misto sendo, portanto, possível o uso das
técnicas legislativas de integração da norma jurídica. Estudamos a apli-
cação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, além
da influência dos princípios constitucionais (princípio da dignidade da
pessoa humana, princípio da solidariedade e princípio da isonomia), da
função social e dos princípios norteadores do Código Civil (eticidade,
socialidade e operabilidade), para auxílio do magistrado na decisão do
caso concreto.
Nosso ordenamento jurídico não permite ao juiz invocar a cláusula
non liquet, deste modo, está o magistrado obrigado a julgar todos os
pedidos que receber, ainda que não exista norma jurídica que discipli-
ne a matéria. Caso não exista norma (lacuna) ou persistindo dúvida, o
sistema se abre para que o aplicador lance mãos das técnicas de integra-
ção da norma, até que, após ponderar, decida, julgando o caso concreto.
Desse modo, o juiz cria através de seu julgamento a norma para aquele
caso, colmatando a lacuna, afastando o conflito, e a coisa julgada, quan-
do emergir, fecha o sistema em relação àquela disputa específica.
A atividade de interpretação das normas jurídicas se destina a for-
necer ao juiz subsídios para auxiliá-lo no julgamento da causa, mesmo
quando estiver diante de uma lacuna da lei ou de um conflito de normas.

41
Temos vários recursos a auxiliarem o magistrado nesta tarefa de
voCABuLário
integração da norma, inicialmente o juiz dispõe, como vimos, dos prin-
Analogia é o estudo das seme- cípios constitucionais, das cláusulas gerais, dos conceitos jurídicos inde-
lhanças. No direito a Jurispru- terminados e da função social. Não sendo bastantes, seguirá ao estudo
dência se compõe de decisões das fontes do direito. Vamos recordar as fontes diretas e indiretas estu-
dos Tribunais referentes a casos dadas no início desta obra, conforme ilustração aqui repetida:
semelhantes. Portanto, quando
a lei dispõe sobre analogia, po-
demos entender que se trata
de julgamentos análogos sobre
a mesma matéria em estudo.

1.12.11. As Lacunas da Norma Jurídica


Como o juiz está impedido de deixar de julgar o caso concreto,
quando a lei for omissa, ou seja, existindo uma lacuna da norma, ele
recorrerá as fontes do direito, na seguinte ordem de preferência: a) ana-
logia; b) costumes e c) princípios gerais do direito. Sem dificuldade se
observa pela ilustração abaixo em comparação com a anterior que as
fontes do direito são o recurso primário para integração da norma, em
especial, a jurisprudência (analogia), o costume e os princípios gerais
do direito.

Quando vimos as fontes do direito observamos que a Lei é fonte


primária, e o costume fonte secundária, além de outras fontes suple-
tórias como a Jurisprudência, a Doutrina e os Princípios Gerais do
Direito.
Para aplicação da analogia, é necessário: 1) a constatação da exis-
tência da lacuna; 2) a semelhança entre o caso concreto e outra lei ou
julgado; e 3) os fundamentos jurídicos e lógicos devem ser semelhan-
tes ao caso em concreto. Convém salientar que é possível recorrer a
analogia legislativa, situação na qual se busca reger por legislação
diversa caso semelhante, ou analogia jurisprudencial, na qual o juiz
poderá se socorrer de julgados de questões semelhantes analisados
pelos tribunais.
Os costumes são fonte supletória ou secundária, tratam da prática
uniforme, conhecida de todos quanto a determinado ato. Podem ser:

42
Direito Civil

a) Praeter legem – quando aplicáveis subsidiariamente pela omissão de


lei, e b) Secundum legem – quando o próprio legislador determinar. Os
voCABuLário
costumes não são aplicáveis quando forem contra legem. Isto porquê a Desuso e dessuetude são pala-
aplicação dos costumes quando a lei estiver em desuso pode configurar vras sinônimas.
abuso de direito (art. 187 do CC).
Ratio Legis, o espírito da lei, seu
Os princípios gerais do direito, como já vimos quando estuda- objeto, sua razão de existir, seu
mos as fontes do direito na introdução desta obra, são regras incuti- sentido e extensão.
das na consciência dos povos, universalmente aceitas, resumidas em
três categorias: a) viver honestamente – honeste vivere; b) dar a cada
um o que é seu – suum cuique; e c) não lesar o próximo – suun cuique
tribuere.
A equidade é a atividade do aplicador da lei que traz a ideia de
distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso
concreto. Embora não se qualifique como elemento de integração da
norma, ocupa espaço para tal finalidade sempre que a própria lei fizer
sua previsão10. Se a lei não expressar sua aplicação para este fim a equi-
dade não deverá ser aplicada11.

1.12.12. Da interpretação da Norma Jurídica


Interpretar consiste em descobrir sua essência, a ratio legis. Para que
o juiz possa aplicar a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências
do bem comum é necessário que proceda à sua interpretação quanto à
origem, quanto ao método ou quanto ao resultado, considerando seu
contexto social contemporâneo, em harmonia com todo o ordenamento
jurídico, levando em conta o caso concreto através das provas lícitas nele
contidas, valorando-as, e, ao final decidindo por sentença, a pacificação
do conflito, não violando direito alheio12.
Portanto, a aplicação e a interpretação da norma jurídica pelo ma-
gistrado se dará quanto: 1) à origem, 2) ao método ou 3) ao resultado.
1) Quanto à origem, pode ser: a) Autêntica – quando decorre
do próprio legislador, pois seu sentido é explicado por outra lei; b)
Doutrinária – quando sua interpretação vier da doutrina, das obras
científicas, e c) Jurisprudencial – quando proveniente da jurisprudên-
cia dos tribunais.
2) Quanto ao método, pode ser: a) Gramatical – quando buscar
auxílio nas regras da língua; b) Lógica – quando procura reconstituir o
pensamento do legislador; c) Histórica- busca o momento da criação
da norma; d) Sistemática – quando visa harmonizar o texto ao sistema

10. CPC, Art. 127. O Juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.
11. Nota Explicativa: O legislador desejou limitar a aplicação da equidade para
evitar sua evocação pelo magistrado em casos nos quais ela não é devida.
12. LINDB, Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum.

43
jurídico como um todo; e e) Teleológica – quando se apega aos fins para
os quais a lei foi editada.
3) Quanto ao resultado, pode ser: a) Declaratória – quando se
limita a dizer qual é o sentido da norma; b) Restritiva – quando se res-
tringe ao sentido da lei, por ter o legislador dito mais do que deveria
dizer; e c) Ampliativa – quando se amplia a interpretação do sentido da
lei, por ter o legislador dito menos do que deveria dizer.

1.12.13. Da Aplicação da Norma no Tempo


A lei visa atender às situações que ocorrem durante a sua vigên-
cia, ou seja, projeta-se ao futuro. Em solução às dúvidas que venham a
surgir, em razão da intertemporalidade, a lei obedece aos critérios das
disposições transitórias e da irretroatividade.
No Código Civil, encontraremos as disposições finais e transitórias,
nos artigos 2.028 a 2.046. Trata-se de critérios que visam facilitar a apli-
cação da norma no tempo, a fim de evitar conflitos entre normas.
Como vimos, existirá um conflito de normas (antinomia) quando
duas ou mais leis regularem a mesma relação jurídica.
Para compreensão da aplicação da norma no tempo, o estudo da
noção básica do direito intertemporal se faz necessário. Este divide as
relações jurídicas em três hipóteses de ocorrências: a) A retroativida-
de da lei nova; b) O efeito imediato da lei; e c) Se dá a sobrevida da
lei antiga.
A lei em regra não retroage a fatos anteriores à sua vigência13, a não
ser quando ela formalmente expresse em seu texto esta finalidade e não
ofenda ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Tam-
bém é possível que a lei retroaja em benefício do réu no direito penal14.
A lei nova, conforme já estudamos, produz efeitos imediatos após
seu período de vacatio legis, aplicando-se aos casos passados e futuros.

13. Nota Explicativa: O direito brasileiro aplica o princípio da irretroatividade


da lei. Deste modo a lei vigente aplica-se a partir de sua entrada em vigor a todos
os casos presentes e futuros.
14. Nota Explicativa: Princípio da retroatividade benéfica penal, na Consti-
tuição Federal de 1988, Art. 5º, XL, que dispõe que: “A lei penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu.”

44
Direito Civil

A sobrevida ou manutenção dos efeitos de legislação anterior se


refere a três situações: a) ato jurídico perfeito; b) direito adquirido; e
c) coisa julgada.
A lei antiga continuará emanando seus efeitos sobre relações ju-
rídicas definidas pelas hipóteses acima descritas, em razão de terem se
consubstanciado de modo pleno antes da vigência da lei nova.
a) Ato jurídico perfeito – se consumou de modo cabal anterior-
mente à lei nova15;
b) Direito adquirido – se incorporou ao patrimônio de seu titu-
lar ; e
16

c) Coisa julgada – decisão judicial irrecorrível17.

1.12.14. Da Aplicação da Norma no Espaço


Nos artigos 7º a 19 da LINDB encontraremos a descrição da aplica-
ção da norma no espaço. Trata-se das disposições de Direito Internacio-
nal Público e Privado.
O legislador dispõe que é o domicílio da pessoa, em ânimo definiti-
vo, que determinará as regras sobre o início e o fim da personalidade, o
nome, a capacidade e os direitos de família18.
Quanto ao casamento existem algumas regras específicas. Confor-
me abaixo descrevemos:
Quanto ao local onde é celebrado o casamento, se a questão ju-
dicial busca arguir impedimentos ou questões ligadas às formalidades
do casamento, pouco importará se os nubentes não são brasileiros; será
competente o Brasil para apurar a questão, afastando-se a regra do foro
de domicílio19.

15. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados
o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º. Reputa-se
ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que
se efetuou.
16. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o
ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 2º. Consideram-se
adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer,
como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pre-
estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
17. LINDB, Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o
ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 3º. Chama-se coisa
julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
18. LINDB, Art. 7º, caput. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras
sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família.
19. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras so-
bre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família. § 1º. Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira,
quanto aos impedimentos dirimentes às formalidades da celebração.

45
Considera-se eficaz o casamento brasileiro feito no estrangeiro, ou
vice-versa, perante autoridades diplomáticas ou consulares de ambos os
nubentes20.
Quando se pleitear a invalidade do casamento, e havendo domicílio
diverso entre os nubentes, restará eficaz a lei que viger no lugar do pri-
meiro domicílio conjugal21.
A lei que regerá o regime de bens no casamento, seja legal ou con-
vencional, será aquela vigente no lugar onde forem domiciliados, ou no
local do primeiro domicílio conjugal22.
Quanto aos bens, aplica-se a lei de onde estiverem localizados, ou
a lei do domicílio de seu proprietário quando este estiver de transporte
para outro lugar23.
As obrigações se cumprirão no local onde foram constituídas24.
Ainda restam alguns poucos artigos os quais não são indispensáveis
ao estudo proposto.

20. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre
o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de famí-
lia. § 2º. O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades
diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes.
21. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre
o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de famí-
lia. § 3º. Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do
matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal.
22. LINDB, Art. 7º. A lei em que domiciliada a pessoa determina as regras
sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família. § 4º. O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em
que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio
conjugal.
23. LINDB, Art. 8º. Para qualificar os bens e regular as relações a eles concer-
nentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados. § 1º. Aplicar-se-á a
lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que
ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.
24. LINDB, Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do
país em que constituírem.

46
2 A pessoa natural
CurioSiDADE 2.1 A PESSoA NATurAL
O estudo da origem da pa-
lavra pessoa demonstra que ela A etimologia da palavra pessoa indica que os indivíduos possuem
deriva do latim persona, que signi- um papel a representar na sociedade. Este papel se expressa pela perso-
fica indivíduo, seja homem ou mu- nalidade de cada ser. Pessoa natural é o nome que o direito civil atri-
lher, a personagem. Personagem, bui ao ser da espécie humana, considerado enquanto sujeito de direito
pois a palavra deriva da atuação e obrigações1. Para ser pessoa natural, basta existir, enquanto ser da es-
dos atores do teatro grego da an-
pécie humana.
tiguidade, os quais emprestavam
a voz para dar vida a seus perso-
nagens fictícios, sempre represen-
tados por máscaras que eram uti- 2.2 A PErSoNALiDADE JurÍDiCA
lizadas para ocultar a identidade
de quem os animava. Então, sob
Ao desempenho deste papel na sociedade, que permite à pessoa
a atuação sonora que dava vida
humana ser sujeito de direitos e obrigações ou deveres, chamamos de
aos personagens, surgiu o con-
ceito de pessoa. Pessoa é aquela personalidade civil ou jurídica.
que ocupa papel ou papéis na A personalidade civil ou jurídica é a aptidão genérica para ser su-
sociedade, sendo que na acep- jeito de direitos e deveres, aptidão esta que poderá ser exercida a partir
ção jurídica do termo, pessoa é do seu nascimento com vida2 e dura até a sua morte. O simples fato de
todo ente físico ou moral, suscetí-
nascer, constatado pela oxigenação de seus pulmões, é suficiente a lhe
vel de direitos e obrigações, sinô-
garantir a personalidade jurídica. Contudo, ainda que não nascido, mas
nimo de sujeito de direitos e sujeito
da relação jurídica.
concebido, vivo e aguardando nascimento no ventre materno, garan-
te-lhe o Estado a proteção da personalidade jurídica, pela qualidade de
nascituro, ser humano concepto.
voCABuLário A existência de vida humana, ainda que em estado uterino, é o fato
jurídico que torna o ser apto a ser considerado sujeito de direitos e obri-
Concepto: concebido, em pro-
cesso gestacional.
gações na ordem civil. Tal aptidão da pessoa natural abre condições para
que se estabeleçam as relações jurídicas com outros seres semelhantes a
si mesmo (sociedade).

CurioSiDADE

A nidação ocorre quando se 2.3 A NATurEZA JurÍDiCA Do NASCiTuro


dá depósito do óvulo fecundado
no útero da mulher. Após a fecun-
O nascituro é o ser já concebido, aquele que está por nascer. Nas-
dação do óvulo nas trompas, ele
se movimenta até o endométrio,
cituro é o ser humano em estágio fetal que se mantém vivo e ligado à
passando a fixar-se nesta espé- sua mãe, aguardando que ela lhe dê à luz. A potencialidade do seu nas-
cie de parede do útero, permitin- cimento com vida deve ser certa, fato que pode ser constatado através
do que ocorra a gravidez. Neste de exames médicos. Não se deve confundir com nascituro, o natimorto,
momento, desde que possível ser pois enquanto o primeiro permanece vivo com a expectativa de vida
constatada a gravidez, no en-
tendimento do STF, haveria um
ser potencial, digno de proteção 1. Código Civil, Art. 1º – Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem
como pessoa humana. civil.
2. Código Civil, Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimen-
to com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

48
Direito Civil

fora do útero, este último já se acha morto, embora ainda ligado ao útero
materno. O natimorto não tem expectativa de deixar o útero materno
ComENTário
com vida, pois o óbito ocorre durante o seu período gestacional.
Conforme Maria Helena Diniz,
Descreve claramente o Art. 2º do Código Civil que: “A personalida- no direito civil francês e holandês
de civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, não basta o nascimento com
desde a concepção, os direitos do nascituro.” vida; é necessário que o recém-
Como se pode notar pela nossa atual lei civil, a condição de nas- -nascido seja viável, isto é, apto
cituro é que marca o início à aquisição da personalidade civil ou jurí- para a vida. O direito espanhol
dica das pessoas naturais, mas o fato da concepção também é relevante exige que o recém-nascido deve
ter a forma humana e viver pelo
ao direito. Pois em torno destas peculiaridades, que tornam complexa
menos 24 horas, para que possa
a resolução da questão quanto à personalidade jurídica do nascituro, a
adquirir a personalidade. No direi-
doutrina desenvolveu algumas teorias, das quais aqui descreveremos as
to português, se condicionava à
três mais recorrentes: vida à figura humana. No argen-
a) TEORIA NATALISTA OU NATIVISTA tino e húngaro, a concepção já
A teoria natalista ou nativista defende que o ser humano adquire dá origem à personalidade. No
personalidade civil ou jurídica somente a partir do seu nascimento com direito civil brasileiro, afastaram-se
vida, antes disto o que se tem é mera expectativa de direito. Esta teo- todas estas hipóteses para evitar
ria está incorporada ao Direito Civil brasileiro desde o Código Civil de dúvidas, condicionando ao nasci-
mento com vida (DINIZ, Maria He-
1916, na ocasião defendida por Silvio Rodrigues, Caio Mario da Silva Pe-
lena. Curso de Direito Civil Brasilei-
reira, Vicente Ráo e Eduardo Espínola. Para os natalistas o feto enquanto
ro, Teoria Geral do Direito, 1º Vol.
não nascido é apenas uma extensão do corpo de sua mãe.
22ª Ed. Saraiva, p. 191-192).
Esta teoria também foi adotada em parte pelo Supremo Tribunal
Federal, ao julgar o emblemático caso das células-tronco embrionárias.
CurioSiDADE
Quando do julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
n. 3.5103, o então Ministro Ayres Brito consignou que a Constituição Células-
Federal de 1988 se refere sempre a dignidade da pessoa humana e aos -tronco são
direitos da pessoa humana, bem como aos direitos e garantias individu- células com
ais. No entendimento do Excelentíssimo Ministro, ao lidar com referidas capacidade
terminologias o Legislador Constituinte teria deixado claro se tratar de de regene-
direitos do indivíduo-pessoa; deste modo, não haveria dúvidas de que a ração, ca-
intenção era proteger um estágio da vida humana, mas a vida que já é pazes de originar tipos especia-
própria de uma pessoa concreta, ou seja, de um indivíduo já persona- lizados de células, que formam
diferentes tecidos do corpo hu-
lizado. Tal expectativa, segundo o Ministro Ayres Brito, não se aplicaria
mano. As células-tronco embrio-
aos embriões excedentários (dos quais seriam colhidas as células-tronco
nárias são as células-tronco dos
para fins de pesquisa), pois ainda não chegaram a ser inseminados no
embriões que excedem (embri-
útero materno. Concluiu assim o STF que somente se poderia consi- ões excedentários) às tentativas
derar pessoa humana aquele ser humano concepto, alimentado e vivo de inseminação artificial. O STF foi
intrauterinamente. Com este entendimento, o STF afastou o entendi- confrontado a decidir se permitia
mento narrado pela teoria concepcionista. ou não o uso das células-tronco
Como se pode observar, para os natalistas ou nativistas, a lei apenas embrionárias dos embriões fecun-
protege os direitos que o nascituro adquirirá quando nascer com vida, dados que se encontravam con-
gelados em laboratórios. A Lei de
Biossegurança estava em ques-
tão, para se saber se haveria vida
3. BRASIL, STF. Adin n. 3510. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/ge- humana digna de proteção na-
ral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor%20 queles embriões, ou se poderiam
ADI%20/%203510>. Acesso em 30 mar 2015. ser utilizados para a pesquisa.

49
sendo estes descritos de modo restrito (direito à vida, direito à herança,
ATENÇÃo posse).
i JorNADA DE DirEiTo CiviL b) TEORIA CONCEPCIONISTA
Enunciado n. 1 Para os concepcionistas, é possível o ser humano adquirir a per-
Art. 2.º: a proteção que o Có- sonalidade civil ou jurídica desde a concepção, ou seja, antes de nascer.
digo defere ao nascituro alcan- A lei ressalva em seu benefício alguns direitos patrimoniais originados
ça o natimorto no que concerne de herança, doação ou legados, os quais ficarão condicionados ao seu
aos direitos da personalidade, tais nascimento com vida. Ao contrário do que presume a teoria da perso-
como nome, imagem e sepultura. nalidade condicional.
Existem diversas situações que demonstram conceder direitos da
personalidade ao nascituro enquanto concepto, os quais passaremos a
elencar alguns: 1) o direito ao reconhecimento de paternidade4; 2) o di-
reito à curatela5; 3) ser donatário6; 4) ter o direito à herança7; 5) direito
à vocação hereditária por indicação em testamento (prole eventual)8;6)
direito à indenização9; 7) direito aos alimentos10; 8) proteção criminal
quanto à vida, entre outros11.
São inúmeros os casos concretos através dos quais podemos no-
tar que o posicionamento da lei e da jurisprudência dão o sentido de
que o nascituro tem o direito da personalidade jurídica ou civil reco-

4. Código Civil, Art. 1.609 – O reconhecimento dos filhos havidos fora do casa-
mento é irrevogável e será feito: I – no registro do nascimento; II – por escritura
pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento,
ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expres-
sa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e
principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode pre-
ceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar
descendentes.
5. Código Civil, Art. 1.779 – Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer
estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar.
6. Código Civil, Art. 542 – A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo
seu representante legal.
7. Código Civil, Art. 1.798 – Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já
concebidas no momento da abertura da sucessão.
8. Código Civil, Art. 1.799 – Na sucessão testamentária podem ainda ser cha-
mados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo
testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
9. CONJUR. STJ concede indenização para nascituro por danos morais. Dis-
ponível em <http://www.conjur.com.br/2008-jun-19/stj_concede_indeniza-
cao_nascituro_danos_morais>. Acesso em 31 mar 2015.
10. Lei de Alimentos Gravídicos. Lei n. 11.804/2008, Art. 6.º – Convencido
da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que
perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte
autora e as possibilidades da parte ré. Parágrafo único. Após o nascimento com
vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor
do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.
11. Código Penal, Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que
outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

50
Direito Civil

nhecido pelo simples fato de ter sido concebido. E ainda que não fos-
se nascituro, se estivesse morto no útero materno (natimorto), ainda
assim possuiria o resguardo de alguns direitos da personalidade (nome,
imagem e sepultura).
c) TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL
Embora concorde que a personalidade jurídica do nascituro se ini-
cie a partir da concepção, a teoria da personalidade condicional, conhe-
cida como teoria mista, apresentada pela jurista Maria Helena Diniz,
entende que a personalidade do nascituro assume uma condição sus-
pensiva. Tal condição suspensiva ficaria condicionada ao nascimento
com vida do nascituro para sua implementação, e, nascendo este com
vida, retroagiriam os efeitos da personalidade jurídica desde a concep-
ção. Para esta teoria, o nascituro é uma “pessoa condicional”, e por este
motivo a lei lhe garante expectativas de direitos, que dependem do seu
nascimento com vida para que se convalidem.
Deste modo, os direitos patrimoniais do nascituro na teoria da per-
sonalidade condicional devem ficar resguardados por seu curador até
o seu nascimento com vida, enquanto os direitos da personalidade são
tutelados desde a concepção.
Concluído o estudo quanto à natureza jurídica e as teorias da per-
sonalidade do nascituro, observamos que se torna sujeito de direitos e
deveres a pessoa natural, que é o ser humano que nasce com vida ou
enquanto concepto for representado.

2.3.1. A Capacidade Civil e suas Classificações


Para que o sujeito de direitos possa exercer os poderes inerentes à
personalidade jurídica ou civil, necessita do que o direito chama de ca-
pacidade civil. Chamamos de capacidade civil, ou capacidade jurídica,
a medida ou proporção do exercício da personalidade jurídica de cada
pessoa, que pode ser classificada em: a) capacidade de direito; b) capaci-
dade de fato; c) capacidade plena; ou d) capacidade limitada.
a) Capacidade de direito é a capacidade que todas as pessoas pos-
suem, não sendo necessário o implemento de nenhuma condição para
aquisição ou gozo de direitos, basta nascer com vida para possuir capa-
cidade de direito;
b) Capacidade de fato exige uma aptidão descrita na lei, é aquela
que se adquire quando atingida a maioridade civil, aos dezoito anos de
idade completos, ou por escritura de emancipação, passando a poder
exercer por si mesmo todos os atos da vida civil;
c) Capacidade plena se identifica presente quando a pessoa possui
tanto a capacidade de direito quanto a de fato ao mesmo tempo;
d) Capacidade limitada se dá quando uma pessoa possui a capa-
cidade de direito, mas não possui a capacidade de fato.
Como podemos notar, a capacidade civil está ligada à personalidade
jurídica e garante à pessoa o exercício de direitos e obrigações na ordem

51
civil. Contudo, sua ausência também provoca efeitos no ordenamento
jurídico, configurando restrições ao exercício de tais poderes, sendo ne-
cessário identificarmos suas hipóteses de incidência.

A iNCAPACiDADE. AS rESTriÇÕES DE
2.4 DirEiTo

A incapacidade nada mais é do que a restrição ao exercício dos


direitos e obrigações da pessoa, e pode ser classificada em: a) absoluta
ou b) relativa.
a) Incapacidade absoluta: A prática de um ato por pessoa abso-
lutamente incapaz acarreta a sua nulidade12, pois se trata de proibição
total. Desse modo, para que o absolutamente incapaz possa praticar
algum ato civil, ele deverá ser representado por outra pessoa capaz.
São absolutamente incapazes aqueles descritos no Art. 3.º do Código
Civil.
b) Incapacidade relativa – A lei permite aos relativamente capa-
zes13 que pratiquem os atos da vida civil, desde que assistidos; se pra-
ticarem atos sozinhos, o ato será anulável. São relativamente incapazes
aqueles elencados no Art. 4.º do Código Civil.

o SuPrimENTo E A CESSAÇÃo DA
2.5 iNCAPACiDADE CiviL

2.5.1. Cessação da Incapacidade Civil


A incapacidade civil cessará de modo natural quando a pessoa
adquirir a maioridade civil, completando dezoito anos14, a partir de
quando exercerá a capacidade civil de fato e de direito (capacidade
civil plena).

12. Código Civil, Art. 3.º – São absolutamente incapazes de exercer pessoal-
mente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por en-
fermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para
a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem
exprimir sua vontade.
13. Código Civil, Art. 4.º – São incapazes, relativamente a certos atos, ou à ma-
neira de os exercer: I – os maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento
mental completo; IV – os pródigos. Parágrafo único – A capacidade dos índios
será regulada por legislação especial.
14. Código Civil, Art. 5.º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos,
quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.

52
Direito Civil

2.5.2. Suprimento da incapacidade Civil


O suprimento da incapacidade civil ocorrerá por meio da emanci-
pação, sendo que existem três formas de emancipar a capacidade civil da
pessoa natural: a) Emancipação voluntária; b) Emancipação judicial; e
c) Emancipação legal.
A) EMANCIPAÇÃO VOLUNTÁRIA
Esta emancipação ocorre quando os pais, por ato voluntário, reco-
nhecem que o filho adquiriu maturidade suficiente para zelar por sua
pessoa e suas posses, seus bens, não necessitando mais da proteção pelo
Estado na qualidade de incapaz. Esta espécie de emancipação exige que
os pais sejam titulares do poder familiar e é ato unilateral de cada um
deles, lavrado obrigatoriamente por escritura pública, produzindo efei-
tos apenas após o registro15. Se um dos pais discordar, deverá se buscar a
outorga daquele que se nega por suprimento judicial16.
B) EMANCIPAÇÃO JUDICIAL
Quando completados dezesseis anos, torna-se possível a emancipa-
ção da pessoa natural, desde que ouvido o tutor em favor do tutelado17.
Também condicionada a escritura pública e registro para produzir efei-
tos (CC, Art. 9º, II).
C) EMANCIPAÇÃO LEGAL
A lei descreve determinados fatos em a pessoa natural supre sua in-
capacidade civil: a) casamento; b) exercício de emprego público efetivo;
c) colação de grau em curso de ensino superior; e d) abertura de estabe-
lecimento civil ou comercial ou relação de emprego, desde que possua
economia própria. Independe de escritura pública e registro, surtindo
efeitos a partir do dia do fato jurídico.

2.5.3. Extinção da Personalidade Jurídica


Extingue-se a personalidade jurídica da pessoa natural quando esta
vier a morrer. A morte da pessoa natural pode ser real ou presumida.

15. Código Civil, Art. 9º – Serão registrados em registro público: I – os nasci-


mentos, casamentos e óbitos; II– a emancipação por outorga dos pais ou por
sentença do juiz;
16. Código Civil, Art. 1.631 – Durante o casamento e a união estável, compete o
poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá
com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício
do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução
do desacordo.
17. Código Civil, Art. 5º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos,
quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Parágrafo
único. Cessará, para os menores, a incapacidade: I – pela concessão dos pais, ou
de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independente-
mente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o
menor tiver dezesseis anos completos;

53
A morte real ocorre quando cessam as atividades cardíacas ou res-
voCABuLário
piratórias da pessoa, ou quando se dá a morte cerebral ou encefálica.
morte cerebral ou encefálica: A personalidade jurídica da pessoa natural também se extingue
quando por laudo médico, quando ocorre a morte presumida, a qual estudaremos logo à frente,
atesta-se que a atividade neu- após o instituto da ausência.
ral da pessoa não possui mais
condições de reagir.

o NomE CiviL, o ESTADo CiviL E o


2.6 DomiCÍLio CiviL

2.6.1. Os Modos de Individualização da Pessoa


Natural
Para que o sujeito de direitos e deveres seja identificável, torna-se
imprescindível que exista segurança quanto aos modos pelos quais ele
poderá ser encontrando na sociedade. Os principais elementos de indi-
vidualização da pessoa natural são: a) o nome civil; b) o estado civil; e
c) o domicílio civil.

2.6.2. o Nome Civil


Conforme já estudamos, o homem é um ser gregário, e por ne-
cessitar viver em sociedade torna-se imprescindível que seja possível a
individualização para identificar a cada pessoa como titular de direitos
e deveres na sociedade. Os elementos fundamentais de individualização
do homem civil, são o nome, o estado civil e o domicílio.
Toda pessoa natural tem direito à identidade civil, e o nome civil
ocupa o relevante papel de tornar cada pessoa um ser único, inte-
grando ao nome civil sua personalidade pessoal, que permanece viva
durante toda sua existência, e, após a morte, indicando suas origens e
família. O nome civil é um direito da personalidade da pessoa natural.

2.6.3. A Classifi cação do Nome Civil


A identidade civil, segundo Silmara Juny Chinellato, logo se per-
cebe pelo nome civil da pessoa natural, e se divide ou se classifica em:
pessoal, familiar e profissional, sendo que no âmbito pessoal o nome
civil tem grande relevância, pois é considerado entre os povos mais pri-
mitivos como sendo um direito natural. O nome civil é composto por
duas partes, sendo mencionado pelo Código Civil (Código Civil, Lei n.
10.406/2002) em “prenome” e “sobrenome”18.
O direito ao nome é o primeiro da personalidade e tem garantia
constitucional. A República Federativa garante aos nascidos no Brasil o

18. Código Civil, Art. 16 – Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendi-
dos o prenome e o sobrenome.

54
Direito Civil

nome como identidade civil, isentando de custo o seu registro de nasci-


mento, obrigando os familiares a efetuarem esse documento.
Antes de concluirmos de modo visual a classificação sugerida por
Silmara Juny Chinellato, conforme descrito acima (pessoal, familiar e
profissional) vamos estudar a composição do nome como meio de iden-
tidade civil da pessoa natural.

2.6.4. A Composição do Nome Civil


A identificação civil possui como principal finalidade dar seguran-
ça jurídica à sociedade, na medida em que não deixa dúvidas quanto à
pessoa natural, facilitando desse modo ao Estado punir os autores de
crimes, bem como aos terceiros interessados (credores), promoverem
ações judiciais para tutelar e salvaguardar os seus interesses.
O nome civil é regido pelo princípio da imutabilidade, o que im-
plica concluir de modo geral que o sistema jurídico não admite requeri-
mentos de mudança do nome, sem uma justificativa legal plausível, em
casos excepcionais, como veremos neste estudo.
A composição do nome obedece, portanto, a um padrão preestabe-
lecido no direito civil. É composto de duas partes distintas: o prenome
e o sobrenome.
O prenome ou nome próprio é o primeiro nome que a pessoa pos-
sui, aquele que é dado ao nascer por escolha dos seus pais. Por exemplo:
José da Silva, prenome: José. O prenome pode ser simples ou composto;
no exemplo referido o prenome é simples, pois só existe uma palavra
para indicar o prenome; quando houver mais de uma palavra, teremos
o prenome composto. Por exemplo: José Carlos da Silva, prenome: José
Carlos.
É importante frisar que na escolha do nome pelos pais, a Lei de
Registros Públicos (Lei n. 6.015/73) proíbe que se utilizem de nomes
pejorativos, vexatórios ou ridículos19.
Sobrenome, cognome ou patronímico é o apelido de família,
transmitido na identificação do parentesco sucessório. Por exemplo:
José da Silva, sobrenome: da Silva.
Além destes nomes, temos ainda outros que auxiliam a composição
do nome e maior certeza na identidade civil, são eles o agnome e o nome
vocatório.

19. Lei n. 6.015/73, Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome comple-
to, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e, na falta,
o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade,
salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não
registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores. Quan-
do os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por es-
crito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão
do Juiz competente.

55
O agnome serve para diferenciar os membros da mesma família
JuriSPruDÊNCiA que possuam o mesmo nome; eles são inseridos ao final da composição
nominal sob a referência de: Filho, Júnior, Neto, Sobrinho, ou ainda por
Boletim Informativo n. 245 do STJ
números ordinais: Primeiro, Segundo, Terceiro, etc. Por exemplo: José
TERCEIRA TURMA
da Silva Júnior, agnome: Júnior.
O nome vocatório ou profissional é a abreviação do nome com-
RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL.
pleto da pessoa, que visa facilitar a identificação. Por exemplo: Marco
A jurisprudência deste Supe-
Aurélio Mendes de Farias Mello, vocatório: Marco Aurélio (Ministro
rior Tribunal autoriza a alteração
do STF). Não se deve confundir o nome vocatório ou profissional com
do nome civil quando o nome que
alcunha ou apelido, estes últimos são conhecidos como variações de
a pessoa deseja adotar é aquele
pelo qual ela é conhecida no seu cognome, que são formas pejorativas ou afetivas de se identificar uma
meio social ou quando a pessoa pessoa.
quer acrescer ou excluir sobre-
nome de genitores ou padrastos. 2.6.5. Da Alteração do Nome Civil
Na espécie, o recorrente não é
conhecido no meio social pelo A regra geral que subsiste quanto à alteração do nome civil, como
prenome que pretende acrescer. vimos, baseia-se no princípio da imutabilidade do nome civil. Contudo,
Ademais, o Tribunal a quo reco- este princípio não é absoluto. A possibilidade de alteração do nome ci-
nheceu, com base nas provas, vil mostra-se viável quando demonstrado de modo claro e específico o
que o recorrente não se expõe motivo que fundamenta o pedido. De acordo com a orientação do Supe-
a circunstâncias vexatórias e de rior Tribunal de Justiça, a motivação para alteração do nome é legítima
constrangimento em razão de ho- quando a pessoa: a) deseja acrescer ou excluir sobrenome de genitores
mônimos existentes. Assim a Turma ou padrastos; b) é conhecida no meio social por outro prenome, o qual
não conheceu do recurso. Prece-
pretende acrescer, ou c) provar que esteja sofrendo constrangimentos
dentes citados: REsp 538.187-RJ,
ou situações ridicularizantes por homônimo depreciativo . Em tais hi-
DJ 21/2/2005; REsp 146.558-PR,
DJ 24/2/2003; REsp 213.682-GO,
pótese, a lei autoriza a modificação do nome civil, o que quanto à forma
DJ 2/12/2002; REsp 284.300-SP, pode se dar pela via administrativa ou judicial.
DJ 9/4/2001, e REsp 66.643-SP, DJ Observamos, então, que apenas nos casos excepcionais, como estu-
9/12/1997. REsp 647.296-MT, Rel. daremos adiante, a jurisprudência prefere sempre que ocorra o acrésci-
Min. Nancy Andrighi, julgado em mo de um prenome ou sobrenome, mantendo-se os demais existentes,
3/5/2005. raríssimas vezes excluindo, e substituindo quando necessário. Em todas
as situações, após demonstrada a efetiva motivação necessária no âmbi-
to administrativo ou judicial.

2.6.6. Da Modifi cação Administrativa


A Lei de Registros Públicos identifica algumas situações nas quais
é possível iniciar administrativamente o pedido de alteração do nome
pelo próprio interessado ou procurador por meio de requisição direta
ao Oficial do Cartório do Registro Civil onde foi registrado o seu nasci-
mento, independentemente do pagamento de selos e taxas.
a) Maioridade civil – Ao completar os dezoito anos (maioridade
civil) e até o último dia antes de completar dezenove é possível a pes-
soa natural requerer a alteração do seu nome diretamente ao Oficial do
Cartório do Registro Civil. Esta é a única possibilidade imotivada de
alteração do nome civil. O pedido administrativo poderá ser atendido
desde que não prejudique os apelidos da família, como descreve a Lei

56
Direito Civil

de Registros Públicos20. Nesta oportunidade o interessado pode pedir a


inclusão ou a exclusão do nome de genitores ou padrastos.
Interessante decisão do Superior Tribunal de Justiça, sobre a refe-
rida questão, flexibilizou o princípio da imutabilidade do nome civil,
permitindo a um filho abandonado por seu pai, adotar o sobrenome da
avó que o criou desde a infância. O Tribunal de Justiça de São Paulo ha-
via negado o pedido com base no artigo 56 da Lei de Registros Públicos,
entendendo que haveria prejuízo ao apelido de família paterno. Entre-
tanto, a decisão foi reformada pelo STJ, pois não haveria modificação na
sua filiação, tão somente seria alterado o seu nome civil, além de evitar o
constante sofrimento de recordar angústias vividas na infância toda vez
que mencionar seu nome civil.
b) Erros aparentes de grafia – Desde que visivelmente tenha ocor-
rido um erro na posição das letras do nome, ou a inserção ou escrita er-

20. Lei n. 6.015/73, Art. 56 – O interessado, no primeiro ano após ter atingido
a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o
nome, desde que não prejudique os apelidos da família, averbando-se a altera-
ção que será publicada na imprensa.

ComENTário

filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou.
No recurso julgado pela Terceira Turma, o rapaz sustentou que a decisão violou o artigo 56 da Lei
6.015/73, já que estariam presentes todos os requisitos legais exigidos para a alteração do nome no pri-
meiro ano após ele ter atingido a maioridade civil. Argumentou, ainda, que não pediu a modificação
da sua paternidade no registro de nascimento, mas somente a exclusão do sobrenome do genitor, com
quem não desenvolveu nenhum vínculo afetivo.
Posição flexível
Citando vários precedentes, o ministro relator, Paulo de Tarso Sanseverino, ressaltou que o STJ tem
sido mais flexível em relação à imutabilidade do nome civil em razão do próprio papel que o nome de-
sempenha na formação e consolidação da personalidade.
Para o relator, considerando que o nome é elemento da personalidade, identificador e individu-
alizador da pessoa na sociedade e no âmbito familiar, a pretensão do recorrente está perfeitamente
justificada nos autos, pois, abandonado pelo pai desde criança, foi criado exclusivamente pela mãe e
pela avó materna.
“Ademais, o direito da pessoa de portar um nome que não lhe remeta às angústias decorrentes
do abandono paterno e, especialmente, corresponda à sua realidade familiar, parece sobrepor-se ao
interesse público de imutabilidade do nome, já excepcionado pela própria Lei de Registros Públicos” –
ressaltou o ministro em seu voto.
Ao acolher o pedido de retificação, Sanseverino enfatizou que a supressão do sobrenome paterno
não altera a filiação, já que o nome do pai permanecerá na certidão de nascimento. A decisão foi
unânime.
Número do recurso omitido por segredo de Justiça.
Fonte: STJ. Filho abandonado poderá trocar sobrenome do pai pelo da avó que o criou. Disponível
em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Filho-abandonado-poderá-trocar-so-
brenome-do-pai-pelo-da-avó-que-o-criou>. Acesso em 20 mar. 2015.

57
rônea (troca do L pelo R, por exemplo: Cráudia, quando o correto seria
CurioSiDADE Cláudia), inversão ou outros erros aparentes no nome civil, é possível a
requisição administrativa de sua correção. A Lei de Registros Públicos
CASO ANTERIOR À MODIFICAÇÂO
DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS requer apenas que seja possível a imediata constatação do erro na grafia
do nome para ser possível o pedido21, o qual será corrigido pelo Oficial
Em meados de 1995 e 1996,
uma propaganda veiculada em do Cartório de ofício, após manifestação do Ministério Público pelo rito
todo o Brasil pelo Ministério da sumaríssimo.
Saúde na televisão em combate
à AIDS, popularizou o nome de 2.6.7. Da Modifi cação Judicial
Bráulio.
a) Nomes ridículos, exóticos ou vexatórios – Como já mencio-
A LRP ainda não tinha sido
nado nesta obra, a Lei de Registros Públicos proíbe aos pais escolherem
modificada pela Lei n. 9.807/99,
obrigando o interessado na modi- para seus filhos nomes ridículos, vexatórios, que os exponham ao ri-
ficação do nome ir à Justiça. dículo (LRP, Art. 55, parágrafo único). Contudo, caso tenham surgido
O jornalista Bráulio de S., foi nomes atribuídos à pessoa, que a exponha a tais circunstâncias, poderá
aos tribunais e obteve a modifica- ela requerer a alteração, demonstrada a motivação pela via judicial.
ção do nome para Cláudio Lira, b) Vítimas, réus delatores ou testemunhas de crimes – Admite-
em virtude da popularização na- -se a mudança do nome em proteção às testemunhas (conforme disposi-
cional do seu nome, que o colo- ções da Lei de Proteção às Testemunhas)22, às vítimas ou aos réus delatores
cou em situação constrangedora, que colaborem com a Justiça no esclarecimento de atos criminosos, sem-
vexatória, expondo-o ao ridículo. pre que presente a coação ou ameaça (LRP, Art. 58, parágrafo único)23.
(JTJ – Lex 204/136, Rel. Osvaldo
c) Uso prolongado – O uso prolongado e constante de nome di-
Caron)
verso que conste do registro de nascimento também justifica a altera-
ção24, pois, o “prenome imutável é aquele que foi posto em uso, embora não
conste do registro” (STJ, REsp 146.558/PR).

21. Lei n. 6.015/73, Art. 110 – Os erros que não exijam qualquer indagação para
a constatação imediata de necessidade de sua correção poderão ser corrigidos de
ofício pelo oficial de registro no próprio cartório onde se encontrar o assenta-
mento, mediante petição assinada pelo interessado, representante legal ou pro-
curador, independentemente de pagamento de selos e taxas, após manifestação
conclusiva do Ministério Público.
22. Lei n. 9.807/99, Art. 9º – Em casos excepcionais e considerando as carac-
terísticas e gravidade da coação ou ameaça, poderá o conselho deliberativo en-
caminhar requerimento da pessoa protegida ao juiz competente para registros
públicos objetivando a alteração do nome completo. § 1º – A alteração de nome
completo poderá estender-se às pessoas mencionadas no § 1º do Art. 2º desta
Lei, inclusive aos filhos menores, e será precedida das providências necessárias
ao resguardo de direito de terceiros.
23. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia,
a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único – A substi-
tuição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça
decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sen-
tença de juiz competente, ouvido o Ministério Público.
24. Lei n. 6.015/73, Art. 57 – A alteração posterior de nome, somente por ex-
ceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida
por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e
publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta
Lei.

58
Direito Civil

d) Alcunha ou apelido – Na mesma compreensão, pelo uso pro-


longado do nome, constante e habitual, a Lei25 permite a alteração do
JuriSPruDÊNCiA
nome civil, para inclusão do apelido ou alcunha. Obviamente que a Tribunal de Justiça de Minas Gerais
agregação da alcunha atinge apenas o prenome, ampliando-o. Exemplo: NOME - Acréscimo de sobre-
Maria da Graça Xuxa Meneghel, alcunha inserida: Xuxa. nome materno omitido no assento
e) Inclusão do sobrenome de ascendente – Estudamos ser possí- de nascimento, após o nome do
vel a inclusão do nome do ascendente quando o interessado requer, ad- pai - Admissibilidade por não en-
ministrativamente, dentro de um ano de quando adquire a maioridade contrar qualquer vedação legal
civil. Entretanto, poderá ainda requer a alteração judicial do sobrenome, (TJMG) RT 775/345.
quando superado aquele prazo, pugnando pela inserção do sobrenome
do ascendente, mesmo que este sobrenome não tenha sido usado por voCABuLário
uma ou mais gerações. E após inserto o sobrenome do pai, poderá ainda
requer a inserção do sobrenome da mãe . homonímia: Qualidade do que
f) Inclusão de sobrenome do padrasto ou madrasta – No mesmo é homônimo. Ou seja, nome
sentido, é possível a inserção do sobrenome do padrasto ou da madrasta idêntico a outro.
desde que estes concordem26.
g) Homonímia – O simples fato de possuir um nome muito co-
mum ou popular não é sozinho motivação suficiente ao ensejo de alte- JuriSPruDÊNCiA
ração do nome civil. Se a intenção de afastar a homonímia for apenas
Boletim informativo n. 245 do Su-
evitar equívoco ou confusão da pessoa, antes de ingressar com o pedido
perior Tribunal de Justiça
para alteração do nome, deve estudar primeiro a possibilidade de afas-
tá-la pelo acréscimo do sobrenome de seus ascendentes, sob pena de
RETIFICAÇÃO. REGISTRO CIVIL.
ver indeferido seu pedido. Há que demonstrar o interessado, para que
justifique seu pedido de alteração judicial, os prejuízos e as humilhações A jurisprudência deste Supe-
rior Tribunal autoriza a alteração
sofridas, os constrangimentos caso permaneça a homonímia. Por isto, a
do nome civil quando o nome
chamamos de homonímia depreciativa, pois a homonímia para justifi-
que a pessoa deseja adotar é
car a mudança do nome deve depreciar a pessoa quando pronunciado o
aquele pelo qual ela é conheci-
seu nome. Desse modo, só se entende possível o pedido de alteração do
da no seu meio social ou quan-
prenome por homonímia quando demonstrado de modo cabal que a tal do a pessoa quer acrescer ou
homonímia está lhe causando problemas sociais (REsp n. 647.296/MT). excluir sobrenome de genitores
h) Alteração do prenome do adotado – É facultado aos pais da ou padrastos. Na espécie, o re-
criança adotada requererem judicialmente a alteração do prenome do corrente não é conhecido no
adotando, por disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente27. meio social pelo prenome que
pretende acrescer. Ademais, o
Tribunal a quo reconheceu, com
base nas provas, que o recorren-
te não se expõe a circunstâncias
25. Lei n. 6.015/73, Art. 58 – O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia,
vexatórias e de constrangimento
a sua substituição por apelidos públicos e notórios.
em razão de homônimos existen-
26. Lei de Registros Públicos, Art. 57, § 8º – O enteado ou enteada, havendo
tes. Assim a Turma não conheceu
motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao
do recurso. Precedentes citados:
juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome da famí-
lia de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância REsp 538.187-RJ, DJ 21/2/2005;
destes, sem prejuízo de seus apelidos de família. REsp 146.558-PR, DJ 24/2/2003;
REsp 213.682-GO, DJ 2/12/2002;
27. Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 47 – O vínculo da adoção cons-
titui-se por sentença judicial, que deverá ser inscrita no registro civil mediante REsp 284.300-SP, DJ 9/4/2001, e
mandado do qual não se fornecerá certidão; § 5º – A sentença conferirá ao ado- REsp 66.643-SP, DJ 9/12/1997. REsp
tado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a 647.296-MT, Rel. Min. Nancy Andri-
modificação do prenome. ghi, julgado em 3/5/2005.

59
i) Tradução de nome estrangeiro – É admitida a alteração do
ComENTário
prenome estrangeiro traduzindo-o para o português com a finalida-
i JorNADA DE DirEiTo CiviL
de de tornar mais clara e precisa sua identidade civil no Brasil (Lei n.
6.815/80 – Estatuto do Estrangeiro)28. Havendo erros materiais, poderão
ser corrigidos de ofício (EE, Art. 43, § 2º).
ENUNCIADO 99
j) Inclusão ou exclusão do sobrenome do cônjuge – O Código
“O Art. 1.525, § 2º, do Códi-
go Civil não é norma destinada Civil atual29 permite aos noivos, facultativamente, incluírem o sobreno-
apenas às pessoas casadas, mas me do consorte em seu nome civil quando casados. Se ocorrer o divór-
também aos casais que vivem cio ou a anulação do casamento poderão optar por excluir o nome de
em companheirismo, nos termos seu ex-cônjuge quando não houver dado causa a extinção do casamen-
do Art. 226, caput e §§ 3º e 7º, e to. Reservado ao cônjuge inocente renunciar ao direito de uso do nome
não revogou o disposto na Lei nº de casado30.
9.263/96.”
k) Inclusão ou exclusão do sobrenome do companheiro – Os
A Lei n. 9.263/96 se refere ao
companheiros são aqueles que vivem em união estável. A união estável31
planejamento familiar, aplicável
se equiparou ao casamento, com garantia constitucional, no mesmo
tanto aos casados quanto aos
artigo que protege a família32. Não poderia ser diferente, pois a união
companheiros, em atenção ao
Art. 226, § 7º, da Constituição Fe- estável é entidade familiar que constitui a família, neste sentido já houve
deral de 1988. registro do Enunciado n. 99 da I Jornada de Direito Civil .

28. Estatuto do Estrangeiro, Art.43 – O nome do estrangeiro, constante do


registro (art. 30), poderá ser alterado: I – se estiver comprovadamente errado;
II – se tiver sentido pejorativo ou expuser o titular ao ridículo; ou III – se for
de pronunciação e compreensão difíceis e puder ser traduzido ou adaptado à
prosódia da língua portuguesa.
29. Código Civil, Art. 1.565 – Pelo casamento, homem e mulher assumem mu-
tuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos
da família. § 1º – Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o
sobrenome do outro.
30. Código Civil, Art. 1.578 – O cônjuge declarado culpado na ação de se-
paração judicial perde o direito de usar o sobrenome do outro, desde que ex-
pressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar: I
– evidente prejuízo para sua identificação; II – manifesta distinção entre o seu
nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; III – dano grave
reconhecido na decisão judicial. § 1º – O cônjuge inocente na ação de separação
judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome
do outro. § 2º – Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de
casado.
31. Código Civil, Art. 1.723 – É reconhecida como entidade familiar a união es-
tável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família.
32. Constituição Federal, Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar a sua conversão em casamento. § 7º – Fundado nos princípios da digni-
dade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar
é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais
e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte das instituições oficiais ou privadas.

60
Direito Civil

Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal interpretou ser


possível a constituição de união estável por pessoas do mesmo sexo, apli-
ComENTário
cando-se portanto as mesmas possibilidades quanto ao nome civil. O Supremo Tribunal Fede-
l) Concubinato33 – A lei permite que ao concubina(o) obtenha o ral entendeu, ao julgar a Ação
sobrenome do(a) companheiro(a) enquanto durar o concubinato, mas Declaratória de Inconstituciona-
isto só será possível quando houver concordância mútua, vida em co- lidade (ADIN) 4277 e a Arguição
mum por mais de cinco anos ou a existência de filho(s) comum(ns). de Descumprimento de Preceito
Contudo, nenhum deles pode ser casado, embora exista a impossibilida- Fundamental (ADPF) 132, que o
de de se casarem. artigo 1.723 do Código Civil abran-
ge o entendimento de se tratar
m) Transgenitalização – Com a evolução da ciência e da medici-
de união de pessoas e não limita-
na, a mudança de sexo cirúrgica tornou-se uma realidade. Não haveria tivamente homem e mulher. Com
nenhuma lógica conservar o nome de homem naquele que por cirurgia isto, tornou-se possível a união es-
deixou de guardar todas as características masculinas. O Superior Tribu- tável de pessoas do mesmo sexo,
nal de Justiça enfrentou o referido caso, dando ao requerente o direito incluindo todos os benefícios pre-
à modificação de seu nome civil, inclusive determinando que não deve- vistos às uniões estáveis de sexos
riam constar do teor das novas certidões a referida alteração para evitar diversos, inclusive a sua conversão
constrangimentos (STJ, REsp 1.008.398/SP; REsp 679.933/RS e REsp em casamento.
737.993/MG).

2.6.8. o Estado Civil


De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, a soma das qualificações
de uma pessoa na sociedade, que indicariam o modo peculiar inerente
à pessoa, constitui o estado civil, ou status como deriva do latim34, e dis-
tingue-se na ordem: a) individual – através da descrição física do ser, cor,
altura, sexo, idade, capaz ou incapaz, criança, adolescente ou adulto; b)
familiar – a indicar sua descrição quanto à solteiro, casado, divorciado,
viúvo, bem como graus de parentes e origem da família, e c) política –
quanto a se tratar de brasileiro nato ou estrangeiro. Como o estado está
ligado à pessoa, pode-se afirmar que recebe proteção jurídica por suas
características: indivisível, indisponível e imprescritível.

2.6.9. O Domicílio Civil


A localização certa dos sujeitos de direito é muito relevante, pois
permite o cumprimento das relações jurídicas, concedendo segurança
ao cumprimento das obrigações e facilidade na implementação da paz
social. O domicílio civil é o ponto no qual o sujeito de direitos e obri-
gações se permite ser localizado, onde reside, ou mora. É no domicílio
que a pessoa se presume presente para dar cumprimento aos seus atos e
negócios jurídicos.

33. Código Civil, Art. 1.727 – As relações não eventuais entre o homem e a
mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
34. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 1. Esquematizado. Parte Geral,
Obrigações e Contratos. Coord. Pedro Lenza. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 141.

61
Existem dois elementos que caracterizam o domicílio: o elemento
objetivo, que é o local propriamente dito, a residência da pessoa, e o ele-
mento subjetivo, que se refere ao ânimo definitivo, que é a intenção de
permanecer e ali fixar moradia (domicílio residencial)35 ou exercer sua
atividade central (domicílio profissional)36.
Quanto ao número, o domicílio pode ser único ou plúrimo37.
Quanto à existência, é real ou presumido38. Quanto à liberdade de esco-
lha, pode ser necessário ou voluntário, sendo que o necessário é aquele
descrito por lei39, e o voluntário o que pode ser estipulado pelas partes
em relação jurídica40.

A ComoriÊNCiA E A AuSÊNCiA: CA-


2.7 rACTEriZAÇÃo E EfEiToS JurÍDiCoS

DA COMORIÊNCIA – Quando dois ou mais indivíduos vierem a


falecer ao mesmo tempo, havendo dúvidas quanto a quem tenha morri-
do primeiro, a legislação civil permite a aplicação da presunção de que
tenham morrido ao mesmo tempo41. Esta regra afasta a incidência da
sucessão entre os comorientes.
DA AUSÊNCIA – O instituto da ausência se aplica quando a pessoa
desaparece de seu domicílio sem deixar notícias, tampouco alguém que
o representante. As relações jurídicas e os bens que esta pessoa deixou
necessitam de cuidados e administração. Para garantir a continuidade
das relações jurídicas e manter a segurança jurídica, o Estado permite
a aplicação da morte presumida pela ausência da pessoa, que se pleiteia
em três fases: a) A declaração de ausência; b)A sucessão provisória; e c)
A sucessão definitiva.
A) Declaração de ausência – A requerimento do interessado ou
do representante do Ministério Público, o juiz declarará a ausência

35. Código Civil, Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela esta-
belece sua residência com ânimo definitivo.
36. Código Civil, Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às
relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.
37. O direito brasileiro adotou o princípio da pluralidade domiciliar, como se
observa nos artigos 71 e 72 do Código Civil.
38. O domicílio real é o físico e indubitável. O presumido é aquele que utiliza a
regra da presunção, conforme o artigo 73 do Código Civil.
39. Código Civil, Art. 76.
40. Código Civil, Art. 78. Por exemplo o foro de eleição nos contratos, a cláu-
sula arbitral, etc.
41. Código Civil, Art. 8º. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma oca-
sião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros,
presumir-se-ão simultaneamente mortos.

62
Direito Civil

e nomeará um curador determinando que os bens deixados sejam


arrecadados42. Para garantir a defesa do ausente, são publicados edi-
tais por um ano, a cada bimestre43, pondo-se os filhos menores sob
tutela, se houver44.
B) Sucessão provisória – Após um ano do primeiro edital45, po-
derá ser aberta a sucessão provisória, passando-se aos herdeiros a
posse dos bens, desde que prestem garantia de devolvê-los integral-
mente caso o ausente apareça46.
C) Sucessão definitiva – Após dez anos da sucessão provisória47,
poderão os interessados requererem a sucessão definitiva levantan-
do as cauções que prestaram ao juízo48. Caso o ausente apareça, nos
dez anos seguintes, receberá os bens no estado em que se encon-
tram49. Se passado o referido prazo não surgir sucessor, o espólio
passará ao Estado por herança jacente50. Aberta a sucessão definiti-
va, a morte presumida extingue o vínculo conjugal51.

A morTE PrESumiDA:
2.8 CArACTEriZAÇÃo

Como já tivemos a oportunidade de estudar, a personalidade ju-


rídica da pessoa natural se inicia a partir do nascimento com vida e se
extingue com a morte, que pode ser real (morte física) ou presumida.
A morte presumida é aplicável em duas situações distintas. Poderá
ser consequência de um processo de declaração de ausência (como vi-
mos anteriormente), ou quando houverem indícios veementes (perigo
de vida, desaparecimento em campanha, feito prisioneiro, não for en-
contrado após dois anos do término da guerra)52.

42. Código Civil, Art. 22 e Art. 1.159.


43. Código de Processo Civil, Art. 1.161. Feita a arrecadação, o juiz mandará
publicar editais durante 1 (um) ano, reproduzidos de dois em dois meses, anun-
ciando a arrecadação e chamando o ausente a entrar na posse de seus bens.
44. Código Civil, Art. 1.728, I.
45. Código Civil, Art. 26. Ou após três anos se o ausente deixou procurador.
46. Código Civil, Art. 30.
47. Ou caso o ausente tivesse mais de oitenta anos de idade, passados cinco anos
das últimas notícias.
48. As garantias fornecidas para a sucessão provisória poderão ser restituídas.
49. Código Civil, Art. 39.
50. Código Civil, Art. 39, parágrafo único. Entende-se por herança jacente a si-
tuação na qual o Município inicia a arrecadação dos bens deixados pelo falecido,
por inexistirem herdeiros.
51. Código Civil, Arts. 6º e 1.571, § 1º.
52. Código Civil, Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem decreta-

63
A sentença que declara a morte presumida dissolve o vínculo con-
jugal53 e põe fim à sucessão definitiva quanto ao espólio54.

ção de ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em


perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro,
não for encontrado até dois anos após o termino da guerra. § único. A declara-
ção da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de
esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do
falecimento.
53. Código Civil, Art. 1.571, § 1º, e Art. 6º.
54. Código Civil, Art. 37.

64
3 Pessoa e Direitos da
Personalidade
voCABuLário 3.1 CoNCEiTo
intuito: objetivo, intenção.
Direitos da personalidade são direitos subjetivos conferidos a todas
as pessoas naturais (seres humanos) com o intuito de proteger a sua in-
tegridade física, moral e intelectual. Impõem a todas as pessoas o dever
legal de não causar dano, isto é, de não violar a integridade dos outros.
Por causa da imposição desse dever jurídico todas as pessoas (refletindo
um direito “contra todos” ou, em latim, erga omnes), podemos afirmar
que os direitos da personalidade são do tipo excludendi alios. Isto é,
exclui as outras pessoas. Mas essa obrigação de respeito não é imposta
apenas para terceiros. Também o titular (o “dono”) do direito deve abs-
ter-se de (ou seja, deixar de) praticar qualquer ato que possa prejudicar
sua própria integridade.

3.2 fuNDAmENTo

Todos os direitos da personalidade encontram fundamento no


princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no inciso III
do art. 1º da Constituição Federal de 1988 (“A República Federativa do

CurioSiDADE

Direitos da personalidade e as pessoas jurídicas


Para a doutrina majoritária, todas as pessoas, naturais ou jurídicas, são detentoras de personalida-
de jurídica. Consequentemente, também se defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos
da personalidade. Contudo, essas posições não são pacíficas, havendo autores que sustentam que as
pessoas jurídicas não são titulares de direitos da personalidade.
Tal polêmica não foi eliminada pelo legislador, que adotou enigmática redação no art. 52 do Có-
digo Civil: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.
A leitura do dispositivo pode resultar em duas conclusões absolutamente distintas: a de que as pessoas
jurídicas teriam direitos da personalidade; e a de que não teriam. Na doutrina podemos encontrar essas
duas correntes:
1ª Corrente (majoritária): defende que as pessoas jurídicas são titulares de direitos da personalida-
de, por serem detentoras de atributos que a individualizam e que a inserem no meio social, tais como
o nome, identidade, marcas e símbolos que lhes são próprios etc. Para os defensores dessa corrente, o
art. 52 do Código Civil defere direitos da personalidade às pessoas jurídicas.
2ª Corrente (minoritária): defende que as pessoas jurídicas não são detentoras de direitos da per-
sonalidade, sendo estes exclusivos das pessoas naturais (físicas). Essa corrente sustenta que todos os
direitos da personalidade têm por objetivo a proteção da dignidade do ser humano, logo, não seria
admissível estender essa proteção às pessoas jurídicas. Nesse sentido, o Enunciado 286/CJf prescreve
que “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de
sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. O art. 52 é interpretado da se-
guinte forma: por não serem as pessoas jurídicas titulares de direitos da personalidade, o ordenamento
confere uma proteção semelhante àquela da qual gozam as pessoas naturais para proteção dos seus
interesses extrapatrimoniais (ou seja, não patrimoniais).

66
Direito Civil

Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do


Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana”). Este
princípio é uma cláusula geral de proteção da pessoa humana, que vin-
cula todas as esferas do Direito e irradia-se por todos os seus ramos. Não
seria diferente em relação ao Direito Civil: a leitura das regras presentes
no Código Civil deve se dar sempre à luz dos preceitos constitucionais
(isto é, das determinações previstas na Constituição).

CArACTErÍSTiCAS DoS DirEiToS DA


3.3 PErSoNALiDADE

A doutrina nacional aponta a existência de diversas característi-


cas comuns aos direitos da personalidade. Em especial, afirma-se que
são inatos, vitalícios, absolutos, ilimitados, extrapatrimoniais, impres-
critíveis, intransmissíveis, indisponíveis ou relativamente disponíveis,
irrenunciáveis e inexpropriáveis. Vejamos uma a uma, a seguir.
a) Inatos: todos os seres humanos, ao nascer, já se encontram do-
tados de direitos da personalidade. A aquisição é automática

CurioSiDADE

Dano moral da pessoa jurídica


No estudo dos direitos da personalidade da pessoa jurídica, surge outra questão polêmica: a de
definir se pessoa jurídica pode sofrer dano moral. A indagação é pertinente, pois, atualmente, o dano
moral é definido como toda e qualquer forma de lesão a direito da personalidade, não devendo ser
confundido com suas consequências: dor, tristeza, angústia etc. Desta forma, dependendo da atri-
buição, ou não, de personalidade jurídica às pessoas jurídicas, abre-se a possibilidade para que estas
sofram dano moral. Sobre a questão podem ser apontadas as seguintes correntes:
1ª Corrente (doutrina majoritária): defende que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral
quando condutas alheias repercutem de forma negativa sobre a sua imagem, abalando a credibilida-
de conquistada (ofensa à honra objetiva). Podemos afirmar que esse é o posicionamento majoritário
na doutrina e na jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, que já sumulou a questão
(Súmula 227/STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral).
2ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não possui direitos da personalidade e, portanto, não
pode sofrer dano moral. Não nega, contudo, o direito à reparação dos danos extrapatrimoniais ou
patrimoniais de difícil liquidação, quando atingida a credibilidade ou reputação da instituição. Na
verdade, o que os defensores dessa corrente propõem é a substituição da expressão dano moral por
dano institucional, reservando a primeira expressão apenas para a caracterização de lesão a direitos
da personalidade dos seres humanos.
3ª Corrente: defende que a pessoa jurídica não pode sofrer dano moral, mas tão só dano patri-
monial. Apenas o prejuízo patrimonial demonstrado (danos emergentes e lucros cessantes) pode ser
ressarcido. Esta corrente, minoritária, é muito criticada, pois não consegue solucionar as ofensas extra-
patrimoniais dirigidas a uma pessoa jurídica sem intuito lucrativo (p. ex.: associação filantrópica).

67
(quer dizer, independentemente de qualquer ato jurídico). Para
os defensores da teoria natalista, o termo inicial da aquisição
dos direitos da personalidade é o nascimento com vida (art.
2º do Código Civil). Por outro lado, para os defensores da te-
oria concepcionista, o termo inicial é a concepção (art. 4º do
Pacto de São José da Costa Rica). Devemos destacar que alguns
autores utilizam o termo “inato” para designar que os direitos
da personalidade são direitos naturais, surgindo assim nova
divergência doutrinária:
Jusnaturalistas: defendem que os direitos da personalidade são
inerentes ao ser humano, não dependendo de previsão legal. Dessa for-
ma, os direitos da personalidade são considerados como espécie de di-
reito natural. Nesse sentido: Maria Helena Diniz, Rubens Limongi Fran-
ça, Carlos Alberto Bittar, Rizzato Nunes.
Positivistas: defendem que a existência dos direitos da persona-
lidade depende de previsão específica do ordenamento jurídico. Nesse
sentido: Pietro Perlingieri, Adriano de Cupis, Miguel Reale.
Observação: não se pode afirmar que uma das correntes acima seja
majoritária.
b) Vitalícios: os direitos da personalidade acompanham o ser
humano ao longo da vida. Com a morte, extinguem-se a per-
sonalidade jurídica e, consequentemente, os direitos da perso-
nalidade. A sucessão causa mortis é capaz de transmitir apenas
direitos patrimoniais. Contudo, se uma pessoa já morta for alvo
de uma ofensa, seus familiares ainda vivos são lesados de for-
ma indireta, podendo exigir em juízo a reparação pelo dano
moral em ricochete. Nesse sentido, o art. 12, parágrafo único,
do Código Civil de 2002 dispõe que, “em se tratando de morto,
terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo
o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou
colateral até o quarto grau”.
c) Absolutos: os direitos da personalidade impõem um dever ge-
ral de abstenção a todas as pessoas (sujeição passiva universal);
todas as pessoas devem abster-se de praticar qualquer ato que
possa prejudicar a integridade de um ser humano. O desrespei-
to a esse dever, ou até mesmo a ameaça de desrespeito, dá ao
ofendido a possibilidade de requerer medidas para prevenção
desse dano ou para sua repressão, conforme previsão do caput
do art. 12 do Código Civil (“Pode-se exigir que cesse a ameaça,
ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e da-
nos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”).
O termo “absoluto” só não pode ser utilizado para designar a ine-
xistência de limites no exercício do direito, uma vez que não existe
no ordenamento jurídico nenhum direito absoluto. Nem mesmo os
direitos fundamentais podem ser tidos como absolutos. Os direitos da
personalidade têm seus limites impostos por outros direitos funda-

68
Direito Civil

mentais, pela lei, pelos bons costumes, pela moral etc. Nesse sentido, o
Enunciado 139 da III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ assim afir-
ComENTário
ma: “os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que
No que diz respeito às medi-
não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com das reparatórias (p. ex.: pretensão
abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos de indenização por dano moral),
bons costumes”. a doutrina diverge a respeito da
d) Ilimitados: não há dúvidas de que o rol dos direitos fundamen- existência ou não de prazo de
tais listados pelo Código Civil de 2002 e pela Constituição Fede- prescrição para a propositura da
ral são meramente exemplificativos (ao que se refere a expres- ação (exercício da pretensão em
são latina numerus apertus). Compete à doutrina e ao trabalho juízo), podendo ser apontadas as
dos tribunais a identificação e o reconhecimento de novos di- seguintes correntes:
reitos da personalidade diante da evolução da sociedade, com 1ª Corrente: defende que a
seu progresso econômico, cultural, científico etc. Atualmente, pretensão de reparação de da-
nos morais é sempre imprescritível,
estão positivados (isto é, descritos textualmente) no Código
em virtude da natureza dos direi-
Civil de 2002 e na Constituição Federal de 1988 os seguintes
tos da personalidade.
direitos da personalidade:
2ª Corrente: defende que a
CÓDIGO CIVIL DE 2002 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 pretensão de reparação de da-
nos morais prescreve no mesmo
Direito à imagem (art. 20) Direito à imagem (art. 5º, V, X e XXVIII) prazo que a pretensão de repara-
Direito à honra (art. 20) Direito à honra (art. 5º, X) ção de danos materiais. Se a re-
lação for civil, o prazo de prescri-
Direito à vida privada (art. 21) Direito à vida privada (art. 5º, X)
ção será de 3 (três) anos, aplican-
Direito ao próprio corpo (arts. 13 do-se à hipótese o art. 206, § 3º,
Direito à vida (art. 5º, caput)
a 15) V, do CC/2002. Se a relação for
Direito ao nome (arts. 16 a 19) Direito à intimidade (art. 5º, X e LX) de consumo, o prazo de prescri-
ção será de 5 (cinco) anos para
Direito à liberdade (art. 5º, caput) o consumidor pleitear a indeniza-
Direito ao sigilo (art. 5º, XII) ção, em atenção ao disposto no
art. 27 do Código de Defesa do
Direito autoral (art. 5º, XXVII)
Consumidor.
Direito à voz (art. 5º, XXVIII)
ATENÇÃo
e) Extrapatrimoniais: é impossível atribuir valor econômico aos
direitos da personalidade, pois não integram o patrimônio da Na reparação de danos cau-
pessoa (ou seja, dizem respeito ao ser, e não ao ter). O fato de a sados em razão de crime de tor-
lesão aos direitos da personalidade ser reparada de forma pe- tura, o Superior Tribunal de Justiça
cuniária (isto é, mediante o pagamento de uma indenização tem decidido que a pretensão
em dinheiro) não afasta sua extrapatrimonialidade. Entende-se indenizatória é imprescritível (REsp
que a condenação monetária é uma forma de diminuir o dano 1.002.009/PE, j. 12-2-2008, DJ 21-2-
causado à vítima e uma forma de evitar repetição do ato pelo 2008, Rel. Min. Humberto Martins).
causador do dano (função educativa da condenação), mas nunca
uma valoração, em dinheiro, do direito em si. Também não des-
virtua a extrapatrimonialidade o fato de o exercício do direito
da personalidade poder ter repercussão econômica (p. ex.: a re-
muneração recebida por um artista que autorizou a exploração
de sua imagem).
f) Imprescritíveis: os direitos da personalidade são considerados
imprescritíveis, pois o não exercício pelo seu titular não acarreta

69
a extinção do direito nem o afastamento da proteção dada pelo
ComENTário
ordenamento jurídico. Desse modo, a qualquer momento po-
Também podemos falar em
de-se exigir que cesse a violação a um direito da personalidade
legítima disponibilidade relativa (medidas preventivas/protetivas).
quando uma pessoa realiza uma g) Intransmissíveis: os direitos da personalidade estão ligados de
tatuagem em seu corpo, uma vez tal forma à personalidade jurídica de cada ser humano que não
que esta prática revela um costu- se admite a sua transmissão. Não podem ser transferidos em
me social. vida (inter vivos), mediante contrato, nem após a morte (causa
Quanto à disponibilidade do mortis), por meio de sucessão. É absolutamente inconcebível
corpo humano, o Enunciado 401
que uma pessoa exerça direito da personalidade de outra (p. ex.:
da V Jornada de Direito Civil do
direito à vida). Afirma-se, portanto, que esses direitos surgem e
CJF/STJ dispõe que “não contraria
desaparecem ope legis (por força da lei) com o seu titular.
os bons costumes a cessão gratui-
ta de direitos de uso de material h) Relativamente disponíveis: embora não se admita a transmis-
biológico para fins de pesquisa são dos direitos da personalidade, nada impede que uma pessoa
científica, desde que a manifesta- disponha de algum aspecto de sua personalidade de forma rela-
ção de vontade tenha sido livre e tiva e temporária. Podemos citar, por exemplo, a possibilidade
esclarecida e puder ser revogada de uma pessoa autorizar a exploração de sua imagem para uma
a qualquer tempo, conforme as
propaganda, de forma gratuita ou onerosa (ou seja, mediante
normas éticas que regem a pes-
pagamento).
quisa científica e o respeito aos
direitos fundamentais”. i) Irrenunciáveis: os titulares dos direitos da personalidade não
podem ser renunciados, pois surgem com o ser humano e o
acompanham ao longo da vida (vitalícios). A cessão de alguns
direitos de forma relativa também não descaracteriza a irre-
nunciabilidade. Pelo contrário, reforça a ideia da titularidade
do direito e prevê que, no exercício dele, poderão acontecer ne-
gócios jurídicos voluntários.
j) Inexpropriáveis: por serem inatos e ligados à pessoa, os direi-
tos da personalidade não podem ser retirados da esfera de seu
titular. Não podem, dessa forma, ser arrematados, adjudicados
ou utilizados com o objetivo de garantir uma obrigação, carac-
terísticas estas reforçadas pelo art. 832 do novo CPC: “não estão
sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis
ou inalienáveis”.
Não há consenso na doutrina quanto à taxonomia (classificação)
dos direitos da personalidade. Autores como Pontes de Miranda, Ale-
xandre De Cupis, Orlando Gomes, Francisco Amaral, Rubens Limongi
França e Carlos Alberto Bittar propõem distintas formas de classifica-
ção, levando em consideração elementos diversos. Contudo, ainda que
a discussão seja intensa, não há importância prática na adoção de uma
ou outra classificação.
Exatamente por isso, o próprio legislador também se furtou de tal
tarefa ao enumerar alguns dos direitos da personalidade no Código Civil
de 2002 e na Constituição Federal de 1988. Sem a pretensão de esgotar
o estudo de todos os direitos da personalidade existentes, observemos
quais as regras presentes em nosso Código Civil.

70
Direito Civil

3.3.1. Direito ao corpo


ATENÇÃo
Nos termos do art. 13 do Código Civil, “salvo por exigência médica,
é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar dimi- Transexual é a pessoa que re-
nuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costu- jeita sua identidade genética e a
mes”. O dispositivo proíbe todo e qualquer ato de disposição do corpo própria anatomia de seu gênero,
quando importar diminuição permanente da integridade física (p. ex.: identificando-se psicologicamen-
te com o gênero oposto. Difere,
amputação de membro sem exigência médica) ou contrariar os bons
portanto, do homossexual, pois
costumes (p. ex.: prostituição, venda de órgãos humanos etc.). As cirur-
este se sente atraído por pesso-
gias plásticas, reparadoras ou estéticas, são admitidas por não ser, em
as do mesmo sexo, mas não tem
regra, prejudiciais à saúde.
qualquer problema de rejeição
Constituem exceções as hipóteses de exigência médica, como, por quanto a sua própria anatomia.
exemplo, a amputação de membro gangrenado, a cirurgia de adequação
de sexo do hermafrodita, a cirurgia de mudança de sexo do transexual
etc. Ampliando o conceito de exigência médica, o Enunciado 6 da I Jor- voCABuLário
nada de Direito Civil do CJF propõe que “a expressão ‘exigência médica’,
contida no art. 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-es- hermafrodita: ser vivo que pos-
tar psíquico do disponente”. sui os órgãos genitais de ambos
os sexos.
E quanto aos transexuais, o Enunciado 276 da IV Jornada de Di-
reito Civil do CJF defende que “o art. 13 do Código Civil, ao permitir a transgenitalização: procedimen-
disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias to cirúrgico popularmente co-
nhecido como “mudança de
de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabe-
sexo”.
lecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do
prenome e do sexo no Registro Civil”.

3.3.1.1. Doação do corpo


Além das hipóteses de exigência médica, a disposição do corpo
também é admitida para fins de transplante. Nesse sentido, o art. 13,
parágrafo único, do Código Civil dispõe que “o ato previsto neste artigo
será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei es-
pecial”. A doação de partes do corpo humano pode ser feita em vida ou
após a morte.
A doação em vida (inter vivos) de parte do corpo humano por pes-
soa viva para fins terapêuticos ou para transplantes deve obedecer às
regras presentes no art. 9º da Lei n. 9.434/97, em especial: a) capacidade:
o doador deve ser pessoa juridicamente capaz, mas admite-se a doação
por pessoas incapazes em situações excepcionais mediante autorização
judicial; b) gratuidade: a doação só poder ser realizada gratuitamente;
c) favorecido: se a doação for feita em favor de cônjuge ou parentes con-
sanguíneos até o quarto grau, a autorização deverá ser concedida prefe-
rencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificando o teci-
do, o órgão ou a parte do corpo objeto da retirada. Se a doação for feita
a pessoas diversas, é necessária autorização judicial, dispensada esta em
relação à medula óssea (art. 9º da Lei n. 9.434/97); d) objeto: só é permi-
tida a doação de órgãos duplos (p. ex.: rins), de partes de órgãos, tecidos
ou partes do corpo, cuja retirada não impeça o organismo do doador
de continuar vivendo sem risco para a sua integridade, não represen-

71
te grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental, não
voCABuLário cause mutilação ou deformação inaceitável (p. ex.: leite, sangue, medula
revogado: tornado sem efeito,
óssea, pele, óvulo, esperma) e corresponda a uma necessidade terapêu-
inválido. tica comprovadamente indispensável à pessoa receptora; e e) revogabi-
lidade: a doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis
altruístico: dotado de amor ao
legais a qualquer momento antes de sua concretização.
próximo, desprendido, filantró-
pico. Altruísmo é termo que se Quanto à doação após a morte (post mortem), o art. 14 do Código
opõe à ideia de egoísmo. Civil determina que é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a dispo-
sição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
disposição: uso, emprego.
O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
omisso: aquele que deixa de
A doação post mortem pode ser feita para fins de transplante ou para
manifestar ou de fazer algo.
fins científicos (p. ex.: pesquisa de doença, estudo de anatomia etc.), ob-
revogabilidade: possibilidade de servados os seguintes requisitos: a) gratuidade: os titulares não podem
ser desfeito, de ser invalidado. ser remunerados; b) beneficiário: pode ser indicado para fins científicos
presumido: admitido como cer- (p. ex.: deixar o corpo para a faculdade de medicina da Santa Casa de
to ou verdadeiro, algo que se São Paulo), mas não pode ser indicado para fins de transplante, deven-
supõe ou se admite sobre de- do ser respeitada uma lista de espera para esse fim; c) revogabilidade: a
terminado objeto, pessoa ou disposição manifestada mediante testamento ou escritura pública pode
situação. Deriva da palavra ser revogada a qualquer momento (sine die) pelo doador.
“presunção”.
Em sua redação original, o art. 4º da Lei n. 9.434/97 estabelecia pre-
sunção relativa de que toda pessoa era doadora de órgãos (princípio do
consenso presumido – presumed consent ou opting out). Se esta não
CiNEmATECA fosse a vontade da pessoa, bastava inscrever na Carteira de Identidade
ou na Carteira de Habilitação que não era doadora de órgãos e tecidos.
Não me abandone
jamais. (Direção Infelizmente, a inovação legislativa não agradou a todos, e o dis-
de Mark Romanek, positivo foi alterado pela Lei n. 10.211/2001 para determinar que “a
2011) Uma revela- retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para
ção surpreendente transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização
sobre doação de do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória,
órgãos muda as vi- reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento
das de três jovens que cresceram subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte” (prin-
juntos num internato. cípio do consenso afirmativo – affirmative consent ou opting in).
Outros filmes com a mesma O maior problema da alteração legislativa é que o dispositivo não
temática: confere ao falecido o direito de disposição do corpo, mas, sim, aos seus
feitiço do coração, um ato parentes. Esse problema foi resolvido com a entrada em vigor do Código
de coragem, Sete vidas, Coisas Civil de 2002, que confere à pessoa o direito de dispor sobre seu pró-
belas e sujas, Tudo sobre minha
prio corpo para após a morte, somente devendo ser respeitada a vontade
mãe, uma prova de amor, 21
de parentes se o falecido foi omisso (vide Enunciado 277/CJF abaixo).
gramas.
Contudo, observa-se que, na prática, médicos e hospitais têm, equivo-
cadamente, exigido a manifestação de vontade dos parentes do falecido.
Enunciado 277 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Jus-
tiça Federal: “O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da dispo-
sição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico,
para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doa-
dor de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portan-
to, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de
silêncio do potencial doador”.

72
Direito Civil

3.3.1.2. Direito à recusa ao tratamento médico


voCABuLário
Todo paciente tem direito de receber as informações sobre o tra-
tamento a que será submetido e, a partir daí, concordar ou não com o inviolabilidade: proibição ou
referido tratamento (consentimento informado). Isto porque a pessoa, impossibilidade de violar, infrin-
tendo ciência dos riscos e consequências que pode sofrer, poderá esco- gir, ferir.
lher entre as opções apresentadas a que julgar ser a melhor para si. Tal intenção difamatória: intenção
consentimento é dispensado nos casos de iminente perigo de vida e de de difamar, ofender a reputa-
intervenção necessária e inadiável, como, por exemplo, na hipótese em ção de alguém, desacreditar
que a pessoa fica desacordada após um acidente de trânsito. ou desabonar alguém publica-
mente.
Nesse sentido, o art. 31 do Código de Ética Médica determina que é
vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu represen-
tante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósti-
ComENTário
cas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (Resolu-
ção 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina).
“É válida a declaração de
De acordo com o art. 15 do Código Civil, ninguém pode ser cons- vontade expressa em documen-
trangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a to autêntico, também chama-
intervenção cirúrgica. Interpretando o dispositivo, o Conselho da Justiça do ‘testamento vital’, em que a
Federal aprovou o Enunciado 403 na V Jornada de Direito Civil, com pessoa estabelece disposições
o seguinte teor: “o direito à inviolabilidade de consciência e de crença, sobre o tipo de tratamento de
previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pes- saúde, ou não tratamento, que
soa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, deseja no caso de se encontrar
com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, sem condições de manifestar a
desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, sua vontade” (Enunciado n. 527
excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação aprovado na V Jornada de Direito
Civil).
de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito
exclusivamente à própria pessoa do declarante”. Ver também a Portaria n.
1995/2012 do Conselho Federal
de Medicina
3.3.2. Direito ao nome
O nome da pessoa integra a sua própria personalidade, permitindo rEfLEXÃo
que ela seja identificada e individualizada perante a sociedade. A prote-
ção do nome é matéria de ordem pública, tendo em vista o interesse do Há uma colisão de direi-
Estado na identificação das pessoas. É por essa razão que impõe diversas tos fundamentais, em especial o
restrições à alteração de qualquer um dos seus elementos (prenome ou direito à vida e o direito à liber-
sobrenome). dade (o qual engloba as liber-
O Código Civil dispõe sobre a proteção do nome, impedindo sua dades de crença, religião e cul-
divulgação em publicações ou representações que exponham a pessoa ao to), na recusa das Testemunhas
desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória, e proi- de Jeová ao recebimento de
transfusões de sangue? Leia o
bindo sua utilização em propaganda comercial não autorizada (art. 17).
artigo disponível em http://jus.
De acordo com o art. 18 do mesmo Código, o nome da pessoa não
com.br/artigos/27471/as-teste-
pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a munhas-de-jeova-e-o-direito-fun-
exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamató- damental-de-recusa-as-trans-
ria. Consoante determina a Súmula 221 do STJ, “são civilmente responsáveis fusoes-de-sangue-na-consti-
pelo ressarcimento do dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto tuicao-brasileira-de-1988#ix-
o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”. zz3fImGNwTs e discuta com seus
Além das normas do Código Civil de 2002, a Lei de Registros Públi- colegas e professor.
cos também regulamenta o nome nos arts. 54 a 58.

73
3.3.2.1. Elementos do nome
CiNEmATECA
a) Prenome: é popularmente conhecido como “primeiro nome”,
o casamento de e pode ser simples (João, Flávio, Fernando etc.) ou composto
muriel. (Direção (Maria Clara, João Pedro, Ana Carolina etc.). É escolhido livre-
de P. J. Hogan, mente pelos pais, desde que não exponha o filho ao ridículo,
1994) Retrata uma devendo, nessa hipótese, o oficial do Registro Civil se recusar a
adolescente que, registrá-lo e encaminhar a questão ao juiz.
ao fugir da casa b) Sobrenome: também conhecido como nome, patronímico ou
de seus pais após apelido de família, é o sinal que indica a procedência da pes-
praticar um ilícito, soa, sua família e filiação. A Lei n. 11.924/2009 (Lei Clodovil)
muda seu nome para não poder alterou o § 8º da Lei de Registros Públicos, permitindo que o
ser localizada e também para vi- enteado ou a enteada acrescente o nome de família do padrasto
ver uma nova experiência. Expõe, ou da madrasta, mediante requerimento judicial.
assim, os aspectos jurídicos e psi-
c) Agnome: é o sinal que distingue membros da família que utili-
cológicos da alteração do nome.
zam o mesmo nome e sobrenome (p. ex.: Filho, Neto, Sobrinho,
Júnior etc.).
d) Partícula: é utilizada entre o prenome e o sobrenome ou entre
os sobrenomes (p. ex.: de, da, dos etc.).
e) Alcunha: também conhecida como cognome ou epíteto, é a
designação atribuída a uma pessoa em razão de alguma par-
ticularidade ou características, tais como habilidade, profissão,
aparência, local de nascimento (p. ex.: Aleijadinho, Tiradentes
etc.). Apenas por sentença judicial pode a alcunha passar a fazer
ATENÇÃo parte do nome da pessoa.

Sob proteção especial por se 3.3.2.2. Pseudônimo


tratar de direito da personalidade,
O pseudônimo pode ser definido como o nome fictício utilizado
o uso da imagem de uma pessoa
por uma pessoa no exercício de seu trabalho ou profissão. É comumente
não requer autorização quando
utilizado por literatos e artistas, podendo ser citados como exemplos:
feito no contexto de uma notícia
Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque de Melo), Sílvio Santos (Senor
jornalística, sem exploração co-
Abravanel) etc.
mercial e sem identificação de
seus componentes, especialmen- O pseudônimo não deve ser confundido com o heterônimo, em
te se retratar uma coletividade que há a criação não só de um nome fictício, mas de uma personalidade
de pessoas. Já as pessoas publi- fictícia. É o que ocorria com Fernando Pessoa, que escrevia e assinava
camente conhecidas (famosos, suas poesias em nome próprio e também por meio de seus heterônimos
celebridades) têm certa restrição (Ricardo Reis, Álvaro Campos, Alberto Caeiro etc.), cada qual com seu
quanto ao direito de reclamar estilo, sentimentos e biografias próprias.
contra o uso indevido de sua ima- Nos termos do art. 19 do Código Civil, “o pseudônimo adotado
gem, comparativamente ao de para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome”. Embora
pessoas “comuns”. Há nesses ca- exista distinção entre os conceitos, e o art. 19 do Código Civil somente se
sos uma presunção de consenti- refira ao pseudônimo, ambos recebem a mesma proteção conferida ao
mento, devendo-se preservar a nome. Contudo, requisito essencial para a proteção tanto de um quanto
sua vida privada. Sobre o tema, de outro é que sejam utilizados para atividades lícitas.
acesse o artigo disponível em
http://psilvafreitas.jusbrasil.com.
3.3.3. Direito à imagem
br/artigos/149456872/a-inexisten-
cia-de-autorizacao-no-uso-da O direito à imagem é o direito da personalidade conferido a todos
-imagem-do-artista os seres humanos para que possam controlar o uso e a exploração de sua

74
Direito Civil

imagem, como a representação fiel de seus aspectos físicos (fotografia,


retratos pintados, gravuras etc.), sua aparência individual e distinguível,
voCABuLário
concreta ou abstrata. veracidade: qualidade de ver-
Além da Constituição Federal, o Código Civil também veio prote- dadeiro, que demonstra cor-
ger o direito à imagem ao dispor que, “salvo se autorizadas, ou se neces- responder à verdade.
sárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, notoriedade: fama, consagra-
a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a ção, reconhecimento por todos.
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibi-
das, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem
a fins comerciais” (art. 20).
O objetivo do dispositivo é o de proteger o direito à imagem e ou-
tros direitos conexos, conferindo ao titular a disponibilidade sobre a
divulgação de escritos, transmissão da palavra e sua publicação, a expo-
sição ou utilização de imagem. Cabe ao indivíduo autorizar ou proibir
a exploração desses aspectos de sua personalidade. Contudo, essa dispo-
nibilidade é relativa e cede diante de interesses sociais maiores como a
administração da justiça ou a manutenção da ordem pública.
Segundo o Enunciado 279/CJF, “a proteção à imagem deve ser pon-
derada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especial-
mente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de
imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do re-
tratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as

JuriSPruDÊNCiA

CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. NOME CIVIL. PRENOME. RETIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. MOTIVAÇÃO SUFI-
CIENTE. PERMISSÃO LEGAL. LEI 6.015/1973, ART. 57. HERMENÊUTICA. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JU-
RISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I - O NOME PODE SER MODIFICADO DESDE QUE MOTIVADAMENTE
JUSTIFICADO. NO CASO, ALÉM DO ABANDONO PELO PAI, O AUTOR SEMPRE FOI CONHECIDO POR OU-
TRO PATRONÍMICO. II - A JURISPRUDÊNCIA, COMO REGISTROU BENEDITO SILVERIO RIBEIRO, AO BUSCAR
A CORRETA INTELIGÊNCIA DA LEI, AFINADA COM A “LÓGICA DO RAZOÁVEL”, TEM SIDO SENSÍVEL AO EN-
TENDIMENTO DE QUE O QUE SE PRETENDE COM O NOME CIVIL É A REAL INDIVIDUALIZAÇÃO DA PESSOA
PERANTE A FAMÍLIA E A SOCIEDADE (STJ, Quarta Turma, Recurso Especial 1995/0025391-7, julgado em
21/10/1997, publicado no DJ em 9/12/1997, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CASAMENTO. NOME CIVIL. SUPRESSÃO DO PATRONÍMI-
CO MATERNO. POSSIBILIDADE. JUSTO MOTIVO. DIREITO DA PERSONALIDADE. INTEGRIDADE PSICOLÓGI-
CA. LAÇOS FAMILIARES ROMPIDOS. AUTONOMIA DE VONTADE. 1. Excepcionalmente, desde que pre-
servados os interesses de terceiro e demonstrado justo motivo, é possível a supressão do patronímico
materno por ocasião do casamento. 2. A supressão devidamente justificada de um patronímico em
virtude do casamento realiza importante direito da personalidade, desde que não prejudique a plena
ancestralidade nem a sociedade. 3. Preservação da autonomia de vontade e da integridade psico-
lógica perante a unidade familiar no caso concreto. 4. Recurso especial não provido (STJ, RECURSO
ESPECIAL, Terceira Turma, n. 2014/0022694-1, julgado em 26/5/2015, publicado no DOJe em 2/6/2015,
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).

75
características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), pri-
ComENTário vilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”.
E, sobre o tema, a Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça deter-
Exigência prévia de autoriza-
ção para biografi as
mina que independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação
não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.
Por unanimidade, o Plenário
do Supremo Tribunal Federal jul-
gou, em 10/6/2015, procedente 3.3.4. Direito à privacidade e direito à intimidade
a Ação Direta de Inconstitucio-
De acordo com o art. 21 do Código Civil, a vida privada da pessoa
nalidade (ADI) 4815. Seguindo o
natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as
voto da relatora, ministra Cármen
providências necessárias para impedir ou interromper ato que desres-
Lúcia, a decisão dá interpretação
peite essa norma.
conforme a Constituição da Re-
pública aos artigos 20 e 21 do Có- Enquanto alguns autores defendem que os termos privacidade e in-
digo Civil, em consonância com timidade são equivalentes, outros, como Maria Helena Diniz, apontam
os direitos fundamentais à liber- diferenças. Enquanto a privacidade protege os aspectos externos da vida
dade de expressão da atividade humana, como seus hábitos, e-mails, telefones e cartas, a intimidade
intelectual, artística, científica e refere-se aos aspectos internos da existência humana, como o segredo, o
de comunicação, independente- relacionamento amoroso, as situações de pudor, o sofrimento em razão
mente de censura ou licença de de enfermidade ou a perda de uma pessoa próxima.
pessoa biografada, relativamente Privacidade e intimidade são bens jurídicos tutelados não só pelo
a obras biográficas literárias ou Direito Civil, mas pela própria Constituição Federal, em diversos incisos
audiovisuais (ou de seus familiares,
do art. 5º (V, X, XI, XII e LX). Protege, assim, a vida privada de viola-
em caso de pessoas falecidas). O
ções à casa, à correspondência, ao estilo de vida e aos demais aspectos
tema havia sido objeto de audi-
próprios de cada pessoa em sua individualidade. Essa tutela também é
ência pública convocada pela
sentida no Direito Penal, que pune o desrespeito a esses direitos, consi-
relatora em novembro de 2013,
derando crimes a violação de correspondência, a violação de domicílio
com a participação de 17 ex-
e a interceptação telefônica, entre outras práticas.
positores. Decisão disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/pro- Ao tutelar a privacidade e a intimidade, o art. 20 do Código Civil
cesso/verProcessoAndamento.as- também protege a honra das pessoas. De acordo com a doutrina, a hon-
p?numero=4815&classe=ADI&o- ra pode ser dividida em duas espécies, ambas protegidas pelo direito.
rigem=AP&recurso=0&tipoJulga- Honra subjetiva é o sentimento que a pessoa tem de si mesma, senti-
mento=M. Acesso em 7-jul-2015. mentos internos de autoestima e dignidade. Por sua vez, honra objetiva
é a forma como a pessoa é vista pelas outras pessoas, o seu conceito
perante a sociedade, sua reputação.
CiNEmATECA Evidente que as ofensas dirigidas a um ser humano podem acar-
retar a violação tanto da honra subjetiva quanto da objetiva, ensejando
o voo. (Direção de o direito à reparação dos danos. Se as ofensas forem dirigidas a pessoas
Robert Zemeckis, jurídicas, com ou sem intuito lucrativo, haverá apenas violação à honra
2013) A trama con- objetiva, visto que elas não possuem honra subjetiva.
fronta a questão
da honra subjetiva
e da honra objeti- ProTEÇÃo DoS DirEiToS DA
va quando um pi- 3.4 PErSoNALiDADE
loto comercial, vivido por Denzel
Washington, com problemas liga-
dos a bebida e drogas, salva vi-
Além de regular alguns direitos da personalidade, o Código Civil
das após controlar uma pane na
também se preocupou em garantir que eles sejam respeitados, estabele-
aeronave por ele conduzida.
cendo um tratamento especial. Em caso de ameaça, o titular do direito

76
Direito Civil

pode se valer de medidas judiciais preventivas; em caso de lesão, o titular


do direito pode buscar a reparação dos danos morais. JuriSPruDÊNCiA

INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS


3.4.1. medidas preventivas – HERDEIROS – LEGITIMIDADE – 1. Os
As medidas preventivas ou inibitórias têm por objetivo influir de pais estão legitimados, por terem in-
teresse jurídico, para acionarem o
forma eficaz na vontade daquele que possa vir a violar direitos da per-
Estado na busca de indenização por
sonalidade. Essas medidas judiciais podem, inclusive, apresentar-se por danos morais sofridos por seu filho,
tutela inaudita altera pars (ou seja, antes mesmo de a parte supostamen- em razão de atos administrativos pra-
te agressora ser ouvida pelo juiz), visto que a atuação deverá ser efetiva e ticados por agentes públicos que de-
primar pela proteção do bem jurídico de maior valor no caso concreto. ram publicidade ao fato de a vítima
O Código de Processo Civil tutela as formas de coibir lesão a direi- ser portadora do vírus HIV. 2. Os auto-
res, no caso, são herdeiros da vítima,
tos prevendo multas, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras
pelo que exigem indenização pela
e impedimento de atividade nociva, garantindo inclusive a possibilida- dor (dano moral) sofrida, em vida,
de de requisição policial para seu cumprimento (art. 536, § 1º). Como pelo filho já falecido, em virtude de
exemplo concreto de tais medidas, podemos citar a exclusão de sites na publicação de edital, pelos agentes
internet contendo fotos não autorizadas. do Estado réu, referente à sua con-
dição de portador do vírus HIV. 3. O
direito que, na situação analisada,
3.4.2. medidas reparatórias poderia ser reconhecido ao falecido,
As medidas reparatórias têm por objetivo amenizar as consequên- transmite-se, induvidosamente, aos
seus pais. 4. A regra, em nossa ordem
cias da violação ao direito da personalidade (em observância do princí-
jurídica, impõe a transmissibilidade
pio da satisfação compensatória). Devemos lembrar que o dano moral dos direitos não personalíssimos, sal-
é a lesão a qualquer direito da personalidade e não deve ser confundido vo expressão legal. 5. O direito de
com as suas consequências: dor, angústia, tristeza, depressão etc. Embora ação por dano moral é de natureza
não se confundam, o objetivo da reparação do dano moral é justamente patrimonial e, como tal, transmite-se
o de afastar as consequências da violação ao direito da personalidade, aos sucessores da vítima (RSTJ, vol.
71/183). 6. A perda de pessoa queri-
proporcionando à vítima algo que amenize o sofrimento suportado.
da pode provocar duas espécies de
Na jurisprudência, restou afastada a discussão do passado sobre a dano: o material e o moral. 7. “O her-
impossibilidade de se pleitear indenização por dano material cumulada deiro não sucede no sofrimento da
com indenização por dano moral. Na atualidade, o entendimento pela vítima. Não seria razoável admitir-se
possibilidade da cumulação é pacífico e sedimentado no STJ. Nesse sen- que o sofrimento do ofendido se pro-
longasse ou se entendesse (deve ser
tido, a Súmula 37 do STJ dispõe que “são cumuláveis as indenizações
estendesse) ao herdeiro e este, fazen-
por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato” (publicada do sua a dor do morto, demandasse
em 17-3-1992). o responsável, a fim de ser indenizado
da dor alheia. Mas é irrecusável que
3.4.3. Legitimidade para requerer a proteção e a o herdeiro sucede no direito de ação
que o morto, quando ainda vivo, ti-
reparação nha contra o autor do dano. Se o
Quem pode requerer a tutela jurisdicional de proteção ou de repa- sofrimento é algo entranhadamente
pessoal, o direito de ação de indeni-
ração a direito da personalidade é o próprio lesado. O lesado direto é a
zação do dano moral é de natureza
pessoa que está sofrendo a lesão em seus direitos da personalidade. Além
patrimonial e, como tal, transmite-se
do lesado direto, o parágrafo único do art. 12 do Código Civil prevê que aos sucessores” (Leon Mazeaud, em
lesados indiretos possam pleitear a proteção e a reparação a direitos da magistério publicado no Recueil Cri-
personalidade de pessoa morta, ao dispor que também têm legitimida- tique Dalloz, 1943, p. 46, citado por
de, para tal fim, o cônjuge sobrevivente e qualquer parente em linha reta Mário Moacyr Porto, conforme referi-
do no acórdão recorrido). 8. Recurso
e colateral até o quarto grau.
improvido. (STJ – REsp – 324886 – PR
De acordo com o Enunciado 398 da V Jornada de Direito Civil – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU
do Conselho da Justiça Federal, “as medidas previstas no art. 12, pará- 03.09.2001 – p. 159)

77
grafo único, do Código Civil podem ser invocadas por qualquer uma
das pessoas ali mencionadas de forma concorrente e autônoma”. Esse
enunciado tem por objetivo afastar a tese de que haveria uma ordem de
vocação hereditária, semelhante àquela existente no Código Civil para
estabelecer quem são os herdeiros, para pleitear indenização por dano
moral. Afinal, o sofrimento pela ofensa dirigida ao ente querido não tem
qualquer relação com eventual direito hereditário.
Especificamente quanto ao direito de imagem, o art. 20, parágra-
fo único, do Código Civil dispõe que, “em se tratando de morto ou de
ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os
ascendentes ou os descendentes”. De acordo com o Enunciado 275 do
Conselho da Justiça Federal, “o rol dos legitimados de que tratam os
arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil também
compreende o companheiro”.

78
4 A Pessoa Jurídica
voCABuLário 4.1 CoNCEiTo
fi cção: no sentido empregado
nesse texto, fantasia, algo cria- Denominam-se pessoas jurídicas os entes formados pela coletivi-
do artificialmente dade de bens ou de pessoas a quem a lei atribui personalidade jurídica,
com o objetivo de que seja atingida uma determinada finalidade au-
torizada ou não proibida por Lei (ou seja, lícita). Em outras palavras,
para que a coletividade possa agir como uma unidade, o ordenamento
AuTor jurídico confere uma personalidade própria, que não deve ser confun-
dida com a personalidade de cada um de seus integrantes (conforme a
León Duguit
expressão latina universitas distat a singulis).
(1859-1928) foi
um doutrinador
Quando o agrupamento é de pessoas, afirma-se que a pessoa jurídi-
francês que tra-
ca é intersubjetiva, podendo assumir a forma de uma associação ou de
tou do direito uma sociedade. Quando é resultado do agrupamento de bens, a pessoa
público e das jurídica é patrimonial, sendo denominada fundação. Excepcionalmen-
limitações ao poder do Estado. te, o ordenamento jurídico também confere personalidade a entidades
marcel fer-
sem coletividade, podendo ser citada como exemplo a Eireli (Empresa
dinand Planiol
Individual de Responsabilidade Limitada).
(1861-1959) foi o
jurista que deu
ao Direito Civil 4.2 NATurEZA JurÍDiCA
francês um olhar
diferenciado na
É pacífico o entendimento na atualidade de que as pessoas jurídicas
chamada Belle Époque.
devem ser classificadas como sujeitos de direito, justamente por serem
rudolf von
entes dotados de capacidade e personalidade jurídica própria. Entretan-
Jhering (1818-
to, por muito tempo não houve consenso com relação à natureza jurídi-
1892), autor ale-
ca das pessoas jurídicas. No passado, não foram poucos os autores que
mão, teve gran-
negaram a qualidade de sujeito de direito à pessoa jurídica (Duguit, Pla-
de influência
niol, Berthélemy, Ihering, Wieland, Bolze etc.). Consideravam a pessoa
para a ciência
jurídica uma forma especial de patrimônio (mera forma de condomínio
jurídica ociden-
ou propriedade coletiva), em que as decisões eram tomadas pelos seus
tal. Seu livro “A
Luta pelo Direito” é obra clássica
proprietários de forma coletiva.
que introduz a concepção finalis- Paulatinamente, as teorias negativistas da pessoa jurídica foram
ta do Direito. sendo rebatidas e hoje a posição majoritária é no sentido de que as pesso-
as jurídicas têm personalidade jurídica própria. Contudo, os autores di-
vergem sobre a tese que fundamentara a personalidade. Dentre as diver-
sas teorias afirmativistas da pessoa jurídica, destacam-se as seguintes:
a) Teoria da equiparação: baseia-se na ideia de que a pessoa jurí-
dica é um patrimônio que recebe do ordenamento jurídico, por
equiparação, o mesmo tratamento dispensado às pessoas natu-
rais (seres humanos). Por tratar bens como sujeitos de direitos,
essa teoria é muito criticada pela doutrina, havendo até mesmo
quem entenda que pertença ao grupo das teorias negativistas
da pessoa jurídica. Dentre os defensores dessa teoria, destacam-
-se Windscheid e Brinz.
b) Teoria da ficção legal: para essa teoria, a pessoa jurídica é uma
mera abstração legal, isto é, uma criação artificial do legislador.
A crítica recai sobre o fato de que esta teoria reconhece apenas a

80
Direito Civil

existência ideal da pessoa jurídica, negando sua existência real


e colocando a lei como força criativa, e não como uma força
AuTor
confirmativa da personalidade jurídica. Além disso, se a perso-
friedrich Carl
nalidade das pessoas jurídicas é fruto de ficção, fictício será o von Savigny (1779-
direito que dela deriva. O desenvolvimento da teoria de ficção 1861) foi um jurista
legal é atribuído a Savigny, sendo defendida também por Or- alemão de grande
lando Gomes. Importante salientar a existência de outra teoria, influência nos paí-
decorrente dela, que defende que a personalidade da pessoa ju- ses de tradição ju-
rídica é resultado de invenção dos estudiosos do direito (teoria rídica romano-ger-
da ficção doutrinária). Trata-se de posicionamento pouco di- mânica, além de
fundido, e que é alvo das mesmas críticas acima mencionadas. ter sido o grande nome da Escola
Histórica do Direito e ter tratado
c) Teoria da realidade objetiva: a teoria da realidade objetiva,
em sua obra de conceitos como
também conhecida como teoria da realidade orgânica, teoria
relação jurídica e fato jurídico.
orgânica ou teoria organicionista, defende exatamente o opos-
orlando
to da teoria da ficção legal. As pessoas jurídicas são, portanto,
Gomes (1909-
entes de existência real (detentoras de identidade organiza-
1988), brasileiro
cional própria), cuja personalidade jurídica independe do re-
de Salvador,
conhecimento legal. Reconhece-se a dimensão sociológica das Bahia, foi jurista
pessoas jurídicas ao considerá-las um organismo social vivo. A de grande im-
formulação dessa teoria é atribuída a Gierke e Zitelmann. portância para
d) Teoria da realidade técnica: mesclando as ideias das teorias ante- o Direito Civil.
riores, a teoria da realidade técnica defende que a personalidade Tratou de todos
da pessoa jurídica é resultado de sua existência real aliada à sua os temas da disciplina e consoli-
existência ideal. Reconhece, desta feita, a importância da dimen- dou vários dos seus conceitos fun-
são social e legal das pessoas jurídicas, sem ignorar o lado fictício damentais no Brasil.
da pessoa jurídica (criação legal). Assim sendo, a personalidade
jurídica seria conferida pela lei a qualquer agrupamento suscetí-
vel de ter uma vontade própria e de defender seus próprios inte-
resses. Defende essa posição Caio Mário da Silva Pereira.

ELEmENToS ESTruTurAiS (PrESSuPoSToS


4.3 EXiSTENCiAiS DA PESSoA JurÍDiCA)

Para que a pessoa jurídica possa ser constituída de forma válida,


são exigidos diversos requisitos. Importante observar que a doutrina
está longe de chegar a um consenso com relação ao tema. Contudo, en-
tendemos que os principais pressupostos gerais são: a vontade humana
criadora; a coletividade de pessoas ou de bens; e a finalidade lícita. E
diz-se “gerais” porque, além destes, deverão ser observados outros exi-
gidos pela lei, a depender do tipo específico de pessoa jurídica que será
constituída. A título de exemplo podemos citar: a elaboração do estatuto
ou contrato social; a inscrição do ato constitutivo; a autorização prévia
do Poder Executivo exigida em hipóteses excepcionais (p. ex.: institui-
ções bancárias e seguradoras) etc.
Vejamos, agora, de forma detalhada, os três principais requisitos:

81
1º Requisito: vontade humana criadora
A vontade humana criadora é sempre um requisito essencial para a
constituição da pessoa jurídica formada, não importando se é compos-
ta pela coletividade de pessoas ou de bens. Nas pessoas jurídicas inter-
subjetivas, há uma conversão de vontades de todos os participantes do
grupo para que os fins comuns sejam alcançados. Nas pessoas jurídicas
patrimoniais, o fundador manifesta a sua vontade para que a coletivi-
dade de bens adquira personalidade jurídica (vontade heterônoma). A
vontade humana criadora deve ser manifestada de forma livre e cons-
ciente por pessoa capaz ou devidamente representada.
2º Requisito: coletividade de pessoas ou bens
A coletividade de pessoas (nas sociedades e nas associações) ou a
coletividade de bens (nas fundações) é a base estrutural da pessoa jurí-
dica. Excepcionalmente, o ordenamento jurídico confere personalidade
jurídica a entes despidos de coletividade, como ocorre com a Eireli (Em-
presa Individual de Responsabilidade Limitada).
3º Requisito: finalidade lícita (liceidade)
CiNEmATECA Uma pessoa jurídica sempre será constituída com o fim de alcançar
uma finalidade específica, seja lucrativa (p. ex.: sociedade) ou não (p.
A firma. (Direção
ex.: associação filantrópica, educativa, recreativa, política, religiosa etc.).
de Sydney Polla-
Qualquer que seja esse objetivo, certo é que não poderá estar desconfor-
ck, 1993) Retrata
me o ordenamento jurídico, devendo respeitar a lei, a moral, a ordem
uma sociedade
de advogados
pública e os bons costumes.
cuja finalidade Caso tenha sido constituída com finalidade lícita e durante sua
é a lavagem de existência se desvirtuado, o Ministério Público poderá requerer sua dis-
dinheiro de uma solução. Cite-se como exemplo, aqui, o episódio envolvendo algumas
organização criminosa, demons- torcidas organizadas de clubes de futebol do Estado de São Paulo.
trando a falta de liceidade da
pessoa jurídica.
4.4 PErSoNALiDADE JurÍDiCA

Já se estudou que, no que concerne às pessoas naturais, todos os


seres humanos são dotados de personalidade jurídica e, por isso, podem
titularizar relações jurídicas. O mesmo ocorre com as pessoas jurídi-
cas: assim como a lei confere personalidade jurídica às pessoas naturais,
também a confere às pessoas jurídicas, permitindo que sejam titulares
de direitos e deveres. Daí resulta que as pessoas jurídicas também são
detentoras de capacidade jurídica, podendo praticar diversos atos da
vida civil, como, por exemplo, celebrar contratos, adquirir bens móveis
e imóveis, receber herança etc. Contudo, não se pode afirmar que as
pessoas jurídicas podem praticar todos os atos da vida civil, pois alguns
são reservados aos seres humanos, como a adoção, o casamento, a cele-
bração de testamento etc.

4.4.1. Personalidade jurídica e direitos da


personalidade
Com relação à titularidade de direitos da personalidade, vimos no

82
Direito Civil

capítulo anterior (Direitos da Personalidade) que a posição doutriná-


ria majoritária é no sentido de que as pessoas jurídicas possuem alguns
JuriSPruDÊNCiA
direitos da personalidade, tais como o direito à imagem e à honra ob-
Súmula 227 – STJ:
jetiva. Nesse sentido, o art. 52 do Código Civil determina: “aplica-se às
“A pessoa jurídica pode so-
pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personali-
frer dano moral".
dade”. Por serem detentoras de direitos da personalidade, podem sofrer
dano moral, como, aliás, prevê a Súmula 227/STJ. Recomendamos a
leitura da Unidade anterior para conferir as posições doutrinárias so-
bre o tema.

4.4.2. início da personalidade


Já estudamos as diversas teorias existentes quanto à determinação
do momento em que os seres humanos adquirem personalidade jurídica
(se a partir do nascimento ou da concepção). Com relação às pessoas ju-
rídicas, a questão também não é simples, mas, diferentemente da pessoa
física, que surge de um fato jurídico natural (biológico), a pessoa jurí-
dica surge a partir de um fato jurídico humano: a vontade.
Para determinação do momento do surgimento da personalidade
da pessoa jurídica, deve ser feita a distinção entre as pessoas jurídicas de
direito público e as pessoas jurídicas de direito privado.

4.4.2.1. Início da personalidade das pessoas


BiBLioTECA
jurídicas de direito público
As pessoas jurídicas de direito público são normalmente constitu- o sexto membro permanen-
ídas por lei e, desta forma, adquirem personalidade no exato momen- te: o Brasil e a criação da ONU,
to em que a lei instituidora entrar em vigor. Excepcionalmente, a lei de Eugênio Vargas Garcia, que
assume papel secundário, autorizando que o chefe do Poder Executivo discorre, especialmente em seus
capítulos iniciais, sobre o planeja-
(municipal, estadual ou federal) crie uma pessoa jurídica por força de
mento político que culminou na
decreto, adquirindo personalidade a partir da vigência deste. Além da
criação da organização suprana-
criação por força de lei e por força de decreto, as pessoas jurídicas tam-
cional que sobrevive até os dias
bém podem ser constituídas por meio da promulgação de uma nova atuais.
constituição, de um fato histórico ou de um tratado internacional.
Vale lembrar que os tratados internacionais são normalmente utilizados
oswaldo Aranha – uma bio-
para a criação de pessoas jurídicas de direito público externo – ONU, grafia, de Stanley Hilton, sobre o
OIT, OMS etc. brasileiro que viveu à época da
criação da ONU e participou da
4.4.2.2. Início da personalidade das pessoas sua Assembleia Geral, em que
jurídicas de direito privado aprovou-se, no ano de 1947, a di-
visão do território palestino em um
O legislador brasileiro adotou como regra o sistema das disposi- Estado judeu e outro árabe, por
ções normativas ao exigir a observância de determinados requisitos le- meio da Resolução n. 181.
gais, dentre eles o registro (a inscrição) do ato constitutivo. De acordo
com o art. 45 do Código Civil, a existência legal das pessoas jurídicas de
direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respec-
tivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação
do Poder Executivo. Antes da análise detalhada do registro de cada uma

83
das pessoas jurídicas, devemos verificar cada um dos sistemas que tra-
tam da existência das pessoas jurídicas:
Sistema da livre formação: foi o sistema adotado no Brasil até
setembro de 1983, contudo era atacado por diversas críticas. Defende
que a existência da pessoa jurídica tem início a partir da simples ma-
nifestação de vontade dos membros que a compõem, bastando, assim,
a elaboração do ato constitutivo. Ao dispensar o registro do ato, não
oferece qualquer segurança para as pessoas que contratam com a pessoa
jurídica.
Sistema do reconhecimento: defende que a pessoa jurídica somen-
te existe a partir do momento em que o Estado a reconhece, mediante
um decreto de reconhecimento. Esse sistema, que tem suas origens no
direito romano, ainda é adotado na Itália, França e Portugal.
Sistema das disposições normativas: sistema atualmente adotado
no Brasil, representa uma posição intermediária entre os dois anteriores,
ao estabelecer que a existência da pessoa jurídica não depende do reco-
nhecimento ou da autorização estatal, mas do cumprimento de certos
requisitos legais (p. ex.: o registro). Em situações excepcionais, exige-se
no nosso país prévia autorização do Estado para criação da pessoa jurí-
dica (p. ex.: instituições financeiras).

4.4.3. Ato constitutivo e registro da pessoa jurídica


As pessoas jurídicas passam por duas fases quando de sua criação:
a primeira, consistente na elaboração do ato constitutivo; e a segunda,
representada pelo registro do ato constitutivo. O ato constitutivo de
uma sociedade é denominado contrato social; já o de uma associação
ou de uma fundação é chamando estatuto. De acordo com o art. 46
do Código Civil, o registro deverá mencionar os seguintes requisitos:
I – a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social,
quando houver; II – o nome e a individualização dos fundadores ou ins-
tituidores, e dos diretores; III – o modo por que se administra e repre-
senta, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV – se o ato
constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V
– se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações
sociais; VI – as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do
seu patrimônio, nesse caso.
A Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73 – art. 115) também
estabelece regras para a constituição da pessoa jurídica, proibindo o seu
registro “quando o seu objeto ou circunstâncias relevantes indiquem
destino ou atividade ilícitos, ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem
público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou so-
cial, à moral e aos bons costumes”. Caso um estatuto ou contrato social
seja levado a registro e o oficial que o receber perceber que se trata de
pessoa jurídica cujo objeto a lei proíbe, deverá sobrestar o feito, de ofício
ou por provocação de qualquer autoridade, e suscitar dúvida para que
o juiz decida.

84
Direito Civil

Em regra, a constituição de uma pessoa jurídica não depende de


prévia autorização do Poder Executivo, somente exigida em situações
excepcionais, como, por exemplo, para entidades financeiras (que reque-
rem autorização do Banco Central), e seguradoras (as quais dependem
de autorização da SUSEP).

4.4.3.1. Natureza jurídica do registro das pessoas


jurídicas
Diferentemente do que acontece com as pessoas físicas, em que o
registro tem natureza meramente declaratória (retroagindo ao momen-
to do nascimento/concepção – portanto, dotadas de eficácia ex tunc),
o registro das pessoas jurídicas tem natureza constitutiva, pois a per-
sonalidade somente é adquirida a partir dele. Dessa forma, podemos
afirmar que o registro das pessoas jurídicas tem eficácia ex nunc, não
legitimando ou convalidando atos pretéritos. Essa é a posição majori-
tária na doutrina, mas devemos destacar que alguns autores do direi-
to empresarial, como Fábio Ulhoa Coelho, defendem que o registro é
declaratório e que a pessoa jurídica existe desde o momento em que o
contrato social é celebrado.
Denominam-se entes despersonalizados as sociedades de fato (ine-
xiste o ato constitutivo) e as sociedades irregulares (que possuem ato
constitutivo, mas este não se encontra devidamente registrado). Ambas
recebem o mesmo tratamento jurídico e dentre os diversos problemas
enfrentados por uma sociedade despersonificada podemos destacar os
seguintes:
• Responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada dos sócios em face JuriSPruDÊNCiA
de quem contratou com a pessoa jurídica e de terceiros lesados.
CARTÓRIO. ENTE DESPERSO-
• Impossibilidade de obter número de inscrição no Cadastro Nacio-
NALIZADO. ILEGITIMIDADE ATIVA
nal das Pessoas Jurídicas – CNPJ, perante a Receita Federal. AD CAUSAM. RESOLUÇÃO SEM
• Impossibilidade de participar de uma licitação ou de obter em- MÉRITO. HONORÁRIOS ADVOCA-
préstimos ou financiamentos bancários. TÍCIOS. CABIMENTO. Na condição
• Impossibilidade de ingressar em juízo em face de terceiros (em de ente despersonalizado e des-
regra). provido de patrimônio próprio, a
serventia extrajudicial não possui
personalidade jurídica nem ju-
4.4.3.2. Local do registro diciária que lhe permita figurar
A determinação do local onde deve ser levado a registro o ato cons- no polo ativo ou passivo de uma
titutivo varia de acordo com o tipo de pessoa jurídica que se pretende demanda judicial. TRF-3 - APELA-
registrar. A questão nem sempre é simples, pois, além das leis federais ÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO APE-
LREE 63639 SP 1999.03.99.063639-
sobre a matéria (p. ex.: Lei de Registros Públicos), as Corregedorias dos
7 (TRF-3). Data de publicação:
Tribunais de Justiça estaduais estabelecem normas sobre competência
17/02/2011.
registral.
a) Junta comercial (Registro Público de Empresa): nas Juntas
Comerciais Estaduais devem ser registradas as sociedades empresárias
(antigamente denominadas de sociedades mercantis), conforme dispõe
a Lei n. 8.934/94. Também são registradas na Junta Comercial:

85
Seguradoras: o ato constitutivo das seguradoras deve ser registra-
do na Junta Comercial do Estado em que se constituírem. Esse registro
somente é possível após prévia autorização da Superintendência de Se-
guros Privados – SUSEP, consoante Resolução 166/2007 do Conselho
Nacional de Segurados Privados – CNSP.
Operadoras de plano de saúde: a constituição de uma operadora
de plano privado de assistência à saúde depende de registro na Junta
Comercial, na Agência Nacional de Saúde – ANS, bem como de registro
nos Conselhos Regionais de Medicina e Odontologia, conforme o caso,
em cumprimento ao disposto no art. 1º da Lei n. 6.839, de 30 de outubro
de 1980, e conforme o disposto no art. 8º da Lei n. 9.656/98.
Instituições financeiras: a existência legal das instituições finan-
ceiras também depende do registro de seus atos constitutivos na Junta
Comercial. Para que o registro seja promovido, exige-se prévia autoriza-
ção do Banco Central, consoante determinação da Lei n. 4.595/64, que
instituiu o Conselho Monetário Nacional.
b) Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (CRCPJ):
para que possam ser consideradas regularmente constituídas, as asso-
ciações e fundações deverão ter seus estatutos devidamente registra-
dos no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (“Livro A”) do
município onde se estabelecerem. No mesmo local também deverão
ser levados a registro os contratos sociais das sociedades simples (con-
forme art. 114 da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6.015/77). Além das
associações, fundações e sociedades simples, devem ser destacadas as
seguintes entidades:
Sociedades de profissionais liberais: devem ser registradas no Car-
tório de Registro Civil das Pessoas jurídicas por desenvolverem atividade
intelectual. De acordo com o art. 966 do Código Civil de 2002, “não
se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de nature-
za científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares
ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento
de empresa”. Como exemplo, podemos citar as sociedades de médicos,
dentistas, engenheiros, contadores etc. Além do registro no CRCPJ, es-
sas sociedades também devem ser registradas na respectiva entidade de
classe (CRM, CRO, CREA, CRC etc.).
Partidos políticos: devem ter seus estatutos registrados no Cartó-
rio de Registro Civil das Pessoas Jurídicas do Distrito Federal e, poste-
riormente, no Tribunal Superior Eleitoral (Constituição Federal, art. 17,
§ 2º; Lei n. 9.096/95, arts. 7º e 8º e Lei de Registros Públicos, art. 114, III).
Sindicatos: o registro do sindicato deve ser feito no Cartório de
Registro Civil das Pessoas Jurídicas no “Livro A” (Constituição Federal,
art. 8º, I e Lei de Registros Públicos, art. 114, I). Nos termos do art. 518
e seguintes da CLT, o sindicato também deverá ser cadastrado no Minis-
tério do Trabalho. De acordo com a jurisprudência do STJ o sindicato
adquire sua personalidade jurídica a partir do registro no CRCPJ, sendo
desnecessário o registro junto ao Ministério do Trabalho. Contudo, para

86
Direito Civil

o Supremo Tribunal Federal, a constituição válida dos sindicatos depen-


de do duplo registro.
Cooperativas: existe divergência doutrinária a respeito do local
onde devem ser registradas as atas das assembleias constitutivas das co-
operativas, podendo ser apontadas duas correntes. A primeira corrente
defende que as cooperativas devem ser registradas na Junta Comercial,
de acordo com as Leis ns. 5.764/71 (Lei das Cooperativas) e 8.934/94
(art. 32, II). A segunda corrente defende que as cooperativas devem ser
registradas no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, pois
teriam sido tratadas como sociedades simples pelo Código Civil de 2002
(arts. 982, II; 1.093 e seguintes). A questão é bem polêmica, e podemos
afirmar que na prática tem prevalecido a primeira corrente, tendo a Re-
ceita Federal recusado a emissão de CNPJ para cooperativas registradas
no CRCPJ.
ONGs: as Organizações Não Governamentais são entidades filan-
trópicas que adquirem personalidade jurídica a partir do registro dos
seus estatutos no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Para

ATENÇÃo

Adequação das pessoas jurídicas ao Código Civil de 2002


O art. 2.031 do Código Civil dispõe que “as associações, sociedades e fundações, constituídas na
forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código
até 11 de janeiro de 2007”. Em sua redação original, o prazo era de um ano, depois foi dilatado para
dois anos (pela Lei n. 10.838/2004) e, finalmente, para quatro anos – 11-1-2007 (Lei n. 11.127/2005). O
parágrafo único do art. 2.031 (incluído pela Lei n. 10.825/2003) ressalvou as organizações religiosas e os
partidos políticos, dispensando-os de promover qualquer regularização.
A aplicabilidade do caput do art. 2.031 do Código Civil é objeto de controvérsia doutrinária, pois
estabelece uma obrigação para pessoas jurídicas já constituídas. Sobre a questão podem ser apresen-
tadas duas correntes:
1ª Corrente: defende que o caput do art. 2.031 do Código Civil é válido e que as pessoas jurídicas
constituídas anteriormente devem se adequar ao novo diploma. Essa é a corrente majoritária. O pro-
blema é que o CC/2002 não estabeleceu qual seria a consequência da inobservância do dispositivo.
Entendemos que a melhor solução é a equiparação das pessoas jurídicas que não se adequaram
às sociedades irregulares, suportando as consequências desse tratamento. Assim, enquanto não se
regularizarem, não poderão participar de licitações; não poderão obter empréstimos bancários; não
poderão receber verba pública etc.
2ª Corrente: defende que o dispositivo é inconstitucional por violar a proteção do ato jurídico per-
feito, em afronta ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Essa corrente é minoritária.
Quanto às fundações, o art. 2.032 determina que aquelas instituídas segundo a legislação anterior,
inclusive as de fins diversos dos previstos no parágrafo único do art. 62, subordinam-se, quanto ao seu
funcionamento, ao disposto no Código Civil de 2002.
Salvo o disposto em lei especial, as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referi-
das no art. 44 (p. ex.: sociedades, associações, fundações etc.), bem como a sua transformação, incor-
poração, cisão ou fusão, regem-se desde logo por esse Código (art. 2.033). Diversamente, a dissolução
e a liquidação dessas mesmas pessoas jurídicas, quando iniciadas antes da vigência do Código Civil
de 2002, obedecerão ao disposto nas leis anteriores.

87
que possam receber o Certificado de Fins Filantrópicos, devem ser ins-
voCABuLário critas no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, que é o ór-
decurso: esgotamento ou tér- gão responsável pela regulamentação da política nacional de assistência
mino (de um prazo). social. A inscrição das entidades no CNAS somente é possível após a
inscrição no Conselho Municipal da localidade em que exercem suas
atividades (art. 9º, § 3º, da Lei n. 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência
Social). Caso o município ainda não tenha instituído o Conselho Muni-
cipal de Assistência Social, a entidade deverá inscrever-se no Conselho
Estadual do estado em que estiver localizada sua sede.
Empresas de comunicação: de acordo com o disposto nos arts. 116,
II, e 122 e seguintes da Lei de Registros Públicos, o registro de jornais, ofi-
cinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias deverá
ser feito no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (no “Livro
B”). De acordo com o art. 125 da Lei de Registros Públicos, considera-
-se clandestino o jornal, ou outra publicação periódica, não matriculado
(registrado) nos termos do art. 122 ou de cuja matrícula não constem os
nomes e as qualificações do diretor ou redator e do proprietário.
c) Outros locais: algumas pessoas jurídicas são registradas em ou-
tros locais, como, por exemplo, as sociedades de advogados, que devem
ser registradas exclusivamente na Ordem dos Advogados do Brasil, no
Conselho Seccional em cuja base territorial tiverem sede, conforme dis-
põe o art. 15, § 1º, do Estatuto da OAB.

4.4.4. fim da personalidade


Assim como ocorre com as pessoas naturais, a extinção da pessoa
jurídica determina o fim de sua personalidade jurídica. Deve ser lem-
brado que a extinção nunca é instantânea, pois, seja qual for a hipótese,
deverá ser feita sua liquidação, com a realização do ativo (créditos) e
o pagamento do passivo (débitos). Encerrada a liquidação, poderá ser
requerido o cancelamento da inscrição da pessoa jurídica.
Como hipóteses de extinção, podemos citar o decurso do prazo de
sua duração; a sua dissolução; a deliberação dos sócios; a falta de plu-
ralidade dos sócios; uma determinação legal; um ato governamental; a
dissolução judicial; a morte de sócio etc.
Com a extinção da pessoa jurídica, deve ser dado um destino aos
bens remanescentes. Nas sociedades, os bens remanescentes vão para os
sócios. Nas associações e nas fundações, os bens devem ser destinados,
em regra, a outra instituição com fins semelhantes, como veremos nos
respectivos tópicos mais à frente.

4.5 rEPrESENTAÇÃo DA PESSoA JurÍDiCA

A forma pela qual será representada a pessoa jurídica deve cons-


tar do ato constitutivo no momento do registro. A representação é feita
pelos administradores nomeados, nos limites dos poderes conferidos

88
Direito Civil

(Código Civil, art. 47). De acordo com o Enunciado 145 da III Jornada
de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, “o art. 47 não afasta a
ATENÇÃo
aplicação da teoria da aparência”, nos casos de responsabilização do só-
Logo após a entrada em vi-
cio por atos praticados em nome da pessoa jurídica. gor do Código Civil de 2002, sur-
Se a administração da pessoa jurídica for coletiva, as decisões serão giu divergência sobre qual seria
tomadas pela maioria dos votos dos presentes, salvo se o ato constitutivo o prazo de prescrição aplicável
dispuser de modo diverso. Podem ser anuladas no prazo decadencial de à pretensão indenizatória exerci-
3 (três) anos as decisões tomadas pela maioria em caso de violação do da em face do Estado: o prazo
estatuto ou lei, erro, dolo, simulação ou fraude. Se a administração da de 3 anos, previsto no art. 206, §
3º, V, do Código Civil de 2002 ou
pessoa jurídica vier a faltar, o juiz, a requerimento de qualquer interessa-
o prazo de 5 anos, previsto no art.
do, nomear-lhe-á administrador provisório (ad hoc).
1º do Decreto n. 20.910/32. Na ju-
risprudência do Superior Tribunal
de Justiça, prevaleceu o enten-
rESPoNSABiLiDADE DA PESSoA dimento de que deve ser aplica-
4.6 JurÍDiCA do o prazo previsto no referido
decreto.

Por serem detentoras de personalidade jurídica própria, as pessoas


jurídicas de direito privado respondem com seu próprio patrimônio pe-
los danos que causarem a terceiros (responsabilidade extracontratual) e
pelas obrigações assumidas pelos seus administradores, nos limites esta-
belecidos em seus estatutos (responsabilidade contratual).
Os atos praticados por administradores que extrapolem os poderes
definidos no estatuto, bem como os atos praticados por falsos adminis-
tradores, em regra, não geram responsabilidade para as pessoas jurídi-
cas. Excepcionalmente, a pessoa jurídica poderá ser chamada a respon-
der por esses atos diante da aplicação da teoria da aparência (boa-fé sub-
jetiva). Exemplo: uma empresa pode ser obrigada a honrar um contrato
celebrado por um administrador que foi demitido se o fornecedor não
tinha conhecimento da demissão (agiu de boa-fé). CiNEmATECA
Nos termos do art. 53 do Código Civil, as pessoas jurídicas de direi-
Erin Brockovich
to público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes
– uma mulher
que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regres-
de Talento. (Di-
sivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa reção de Ste-
ou dolo. Em outras palavras, as pessoas jurídicas de direito público in- ven Soderber-
terno têm, em regra, responsabilidade objetiva pelos danos causados a gh, 2000) Narra
terceiros. Em situações excepcionais, relacionadas a conduta omissiva, a a história verídi-
responsabilidade será subjetiva. ca da mulher
Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, a responsabilidade que lutou contra a empresa de
energia Pacific Gas and Electric
civil também é, em princípio, do tipo objetiva, pela incidência dos arts.
Company (PG&E), que contami-
932 e 933 do Código Civil de 2002, que determinam que, ainda que não
na o ambiente de uma comuni-
haja culpa de sua parte, o empregador responde pelos atos de seus em-
dade de moradores próximos às
pregados, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. suas instalações, causando-lhes
Essa afirmação é reforçada por outros dispositivos, como o art. 927 câncer. Aborda a questão da res-
do Código Civil, que estabelece responsabilidade objetiva quando a ati- ponsabilidade civil objetiva das
vidade desenvolvida implicar risco aos direitos de outrem (atividade de pessoas jurídicas.

89
risco – art. 927, parágrafo único). Também será objetiva pelos danos
ATENÇÃo causados pelos produtos postos em circulação (art. 931), bem como pe-
los acidentes de consumo na prestação de serviços e fornecimento de
Sociedades de economia
mista e empresas públicas são
produtos no mercado de consumo (Código de Defesa do Consumidor,
consideradas pessoas jurídicas de arts. 12 a 17).
direito privado, em que pese inte-
grarem a administração indireta,
conforme art. 4º do Decreto-lei n. DAS DivErSAS CLASSifiCAÇÕES DAS
200/67. 4.7 PESSoAS JurÍDiCAS

As pessoas jurídicas podem ser classificadas levando-se em consi-


deração a sua nacionalidade, a estrutura interna, ou a função a que se
submetem. Vejamos cada uma dessas classificações e as principais con-
sequências:

4.7.1. Classifi cação quanto à estrutura interna


Quanto à estrutura interna, as pessoas jurídicas podem ser dividi-
das em corporações (universitas personarum) e fundações (universitas
bonorum). Corporações são pessoas jurídicas formadas pela reunião de
pessoas, podendo assumir a forma de sociedade ou de associação. Fun-
dações são pessoas jurídicas formadas pela coletividade de bens. O estu-
do das sociedades, das associações e das fundações é realizado de forma
detalhada mais à frente nesta obra.

4.7.2. Classifi cação quanto à função


Classificadas em atenção à função que desempenham, as pessoas
jurídicas podem ser divididas em pessoas jurídicas de direito públi-
co e pessoas jurídicas de direito privado. Esta é a principal forma de
classificação das pessoas jurídicas e foi adotada nos arts. 40 a 44 do
Código Civil.

4.7.2.1. Pessoas jurídicas de direito público


As pessoas jurídicas de direito público são aquelas reguladas por
normas de direito público e estudadas pelo Direito Administrativo, po-
dendo ser divididas em pessoas jurídicas de direito público externo e
interno:
a) Pessoas jurídicas de direito público externo: de acordo com
o art. 42 do Código Civil, são consideradas pessoas jurídicas
de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as
pessoas regidas pelo direito internacional público (ONU,
OIT, OMC, FMI, OEA, UNESCO, INTERPOL, Santa Sé, Cruz
Vermelha, MERCOSUL, ALCA, União Europeia etc.).
b) Pessoas jurídicas de direito público interno: de acordo com o
art. 41 do Código Civil, são pessoas jurídicas de direito público

90
Direito Civil

interno: I – a União; II – os Estados, o Distrito Federal e os Ter-


ritórios; III – os Municípios; IV – as autarquias, inclusive as as-
sociações públicas (redação dada pela Lei n. 11.107, de 2005); e
V – as demais entidades de caráter público criadas por lei. Salvo
disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público,
a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no
que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas desse
Código.
Portanto, são consideradas pessoas jurídicas de direito público in-
terno:
UNIÃO, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL, TERRITÓRIOS E MU-
NICÍPIOS: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
compõem a administração direta, enquanto os Territórios Federais
são considerados entes da administração indireta.
AUTARQUIAS, INCLUSIVE AS ASSOCIAÇÕES PÚBLICAS: as
autarquias e as associações públicas compõem a administração in-
direta. Como exemplo de autarquias podemos citar: USP, INCRA,
INPI, INSS, IPHAN, CADE, as agências reguladoras (Anatel, Aneel,
Anvisa, ANP) e as agências executivas também (Lei n. 9.649/98).
DEMAIS ENTIDADES DE CARÁTER PÚBLICO CRIADAS POR
LEI: como exemplo, podemos citar os consórcios públicos forma-
dos por pessoas jurídicas de direito público interno que compõem
a administração indireta.

4.7.2.2. Pessoas jurídicas de direito privado


As pessoas jurídicas de direito privado são aquelas reguladas por
normas de direito privado, tais como o Código Civil e a CLT – Consoli-
dação das Leis do Trabalho. Nos termos do art. 44 do Código Civil, são
pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades;
III – as fundações; IV – as organizações religiosas (incluído pela Lei n.
10.825, de 22-12-2003); V – os partidos políticos (incluído pela Lei n.
10.825, de 22-12-2003); e VI – as empresas individuais de responsabili-
dade limitada (Eireli).
De acordo com o Enunciado 144 da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “a relação das pessoas jurídicas de direito
privado estabelecida no art. 44, I a V, do Código Civil, não é exaustiva”.
E, segundo o Enunciado 142 da mesma Jornada, “os partidos políticos,
sindicatos e associações religiosas possuem natureza associativa, apli-
cando-lhes o Código Civil”.
São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o fun-
cionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público
negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e neces-
sários ao seu funcionamento. Os partidos políticos serão organizados
e funcionarão conforme o disposto em lei específica (Lei n. 9.096/95).

91
Como não há dispositivos do Código Civil regulando os partidos
voCABuLário políticos e as entidades religiosas, não iremos aprofundar aqui o estudo
cláusulas de incomunicabilida- dessas pessoas jurídicas.
de e inalienabilidade: regras,
em geral previstas em um con-
trato, que determinam que um 4.8 SoCiEDADES
bem não pode ser objeto de
comunhão ou compartilha-
São pessoas jurídicas de direito privado formadas pela união de pes-
mento (incomunicável) nem
pode ser alienado, isto é, ter
soas (universitas personarum), que se organizam para desenvolver uma
sua propriedade transferida a atividade econômica com intuito lucrativo. Antigamente as sociedades
outra pessoal (inalienável). eram reguladas pelo Código Comercial de 1850. Com a introdução do
Código Civil de 2002 as obrigações civis e comerciais foram unificadas
em um mesmo diploma e a matéria passou a ser tratada em seus arts.
981 e seguintes.
No Código Comercial de 1850 as sociedades eram classificadas em
civis e comerciais. Essas expressões foram substituídas por sociedades
simples e empresárias. Embora não exista perfeita correspondência, po-
demos dizer que, em geral, as sociedades simples correspondem às civis,
e as sociedades empresárias correspondem às comerciais.
As sociedades simples são aquelas sem fins comerciais que visam
ao lucro mediante prestação de serviços relativos a determinada pro-
fissão ou serviços técnicos. Como exemplos podemos citar uma socie-
dade em escritório de advocacia, uma cooperativa, uma empresa de
consultoria etc.
As sociedades empresárias são aquelas com fins comerciais. Visam
ao lucro mediante o exercício de atividade econômica organizada para
a produção ou circulação de bens ou serviços. Para ser empresária, exi-
gem-se o requisito material (atividade empresarial) e o requisito formal
(registro na Junta Comercial), conforme previsão dos arts. 982 e 967 do
Código Civil. Independentemente de seu objeto, considera-se empresá-
ria a sociedade por ações; e simples a cooperativa.
Conforme determinação dos arts. 1.039 a 1.092 do Código Civil
de 2002, as sociedades empresárias podem assumir diversas formas:
sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, socie-
dade em comandita por ações, sociedade limitada, sociedade anônima
ou por ações.
Sociedade entre cônjuges: os cônjuges podem contratar sociedade,
entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da
comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória. Indepen-
dentemente do regime de bens, o empresário casado pode, sem necessi-
dade de outorga conjugal, alienar os imóveis que integrem o patrimônio
da empresa ou gravá-los de ônus real (Código Civil, arts. 977 e 978).
Serão arquivados e averbados no Registro Civil e no Registro Pú-
blico de Empresas Mercantis os pactos e declarações antenupciais do
empresário, o título de doação, herança, ou legado, de bens clausulados
de incomunicabilidade ou inalienabilidade.

92
Direito Civil

EmPrESA iNDiviDuAL DE CurioSiDADE


4.9 rESPoNSABiLiDADE LimiTADA
Microempreendedor Indivi-
dual (MEI) é a pessoa que traba-
A Lei n. 12.441/2011 acrescentou mais uma modalidade de pessoa lha por conta própria e que se
jurídica de direito privado ao rol do art. 44 do Código Civil: a empresa legaliza como pequeno empresá-
rio. Para ser um microempreende-
individual de responsabilidade limitada. Suas regras estão estabelecidas
dor individual, é necessário faturar
no art. 980-A. no máximo até R$ 60.000,00 por
A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída ano e não ter participação em
por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamen- outra empresa como sócio ou ti-
te integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário tular. O MEI também pode ter um
empregado contratado que re-
mínimo vigente no País. O nome empresarial deverá ser formado pela
ceba o salário mínimo ou o piso
inclusão da expressão “Eireli” após a firma ou a denominação social da da categoria. A Lei Complemen-
empresa individual de responsabilidade limitada. A pessoa natural que tar nº 128, de 19/12/2008, criou
constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente po- condições especiais para que o
derá figurar em uma única empresa dessa modalidade. trabalhador conhecido como in-
formal possa se tornar um MEI le-
A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá
galizado. Entre as vantagens ofe-
resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num recidas por essa lei está o registro
único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concen- no Cadastro Nacional de Pessoas
tração. Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade Jurídicas (CNPJ), o que facilita a
limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a abertura de conta bancária, o pe-
remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou dido de empréstimos e a emissão
de notas fiscais. Além disso, o MEI
de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa
será enquadrado no Simples Na-
jurídica, vinculados à atividade profissional. cional e ficará isento dos tributos
Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no federais (Imposto de Renda, PIS,
que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas. Cofins, IPI e CSLL). Assim, pagará
apenas o valor fixo mensal de R$
40,40 (comércio ou indústria), R$
44,40 (prestação de serviços) ou
4.10 ASSoCiAÇÕES R$ 45,40 (comércio e serviços),
que será destinado à Previdência
Social e ao ICMS ou ao ISS. Essas
As associações são pessoas jurídicas de direito privado formadas
quantias serão atualizadas anual-
pela união de pessoas (universitas personarum) que se organizam para mente, de acordo com o salário
desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não mínimo. Com essas contribuições,
tenha intuito lucrativo. Podem, portanto, desenvolver atividade educa- o Microempreendedor Individual
cional, pia (isto é, filantrópica), religiosa, esportiva, científica, literária, tem acesso a benefícios como
recreativa, política etc. (exemplos: sindicatos, grêmios estudantis, escolas auxílio-maternidade, auxílio-doen-
ça, aposentadoria, entre outros.
de samba, clubes esportivos). Diferenciam-se das fundações por serem
Caso o empreendedor não tenha
formadas pela coletividade de pessoas, e não de bens, e diferenciam-se a intenção de possuir sócios e sua
das sociedades por não terem finalidade lucrativa. atividade não se enquadre nos
Entretanto, a ausência de intuito lucrativo não as impede de ter pa- requisitos legais do MEI, poderá
trimônio e desenvolver atividades visando arrecadar valores para que ele optar pela abertura da EIRELI
(Fonte: http://www.portaldoem-
possam atingir seus fins (p. ex.: uma associação filantrópica pode reali-
preendedor.gov.br/mei-microem-
zar bingos; uma associação educacional pode cobrar mensalidades etc.). preendedor-individual, acesso em
Desta forma, o lucro pode ser um meio, mas nunca o fim de uma asso- 7-7-2015).
ciação, sendo absolutamente vedada (proibida) qualquer repartição de
receita (valores recebidos) entre os associados.

93
4.10.1. Constituição de uma associação
voCABuLário
Em capítulo anterior vimos que a associação somente adquire per-
órgãos deliberativos: grupos sonalidade jurídica por meio do registro do seu ato constitutivo (estatu-
ou conselhos que examinam e to) no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. A criação de uma
discutem questões dentro de
associação não depende de prévia autorização do Poder Executivo por
uma determinada instituição,
ser um direito fundamental da pessoa humana (princípio da liberdade
tomando decisões que passam
de associação – Constituição Federal, art. 5º, XVII).
a ser obrigatórias sobre os as-
suntos tratados. O estatuto de uma associação deve ser feito por escrito (mediante
instrumento público ou particular) e, de acordo com o art. 54 do Có-
digo Civil, deverá indicar, sob pena de nulidade: I – a denominação, os
fins e a sede da associação; II – os requisitos para a admissão, demissão
e exclusão dos associados; III – os direitos e deveres dos associados; IV –
as fontes de recursos para sua manutenção; V – o modo de constituição
e de funcionamento dos órgãos deliberativos; VI – as condições para a
alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; e VII – a forma
de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.

4.10.2. Composição da associação


A análise da estrutura interna de uma associação revela a existência
de três órgãos em sua composição: a assembleia geral, os órgãos delibe-
rativos e os associados. De acordo com a jurisprudência do STJ, as as-
sociações são “dotadas de autonomia de organização e funcionamento”.
Vejamos, então, as principais características de cada um dos órgãos que
compõem a associação:

4.10.2.1. Associados
Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá ins-
tituir categorias com vantagens especiais (Código Civil, art. 55), seja
em razão de serviços prestados, tempo de associação, mérito, ou qual-
quer outro fundamento que não constitua forma de preconceito em ra-
zão de raça, sexo, orientação sexual etc. É em virtude dessa possibilidade
de distinção de categorias entre os associados que surgem expressões
como: sócio-fundador, sócio-remido, sócio-proprietário, sócio-bene-
mérito etc. O estatuto não poderá estabelecer direitos e obrigações
recíprocos entre os associados (art. 53, parágrafo único), mas poderá
estabelecer outras obrigações, como o pagamento de uma quantia para
ingresso na associação, o pagamento de contribuições periódicas ou o
cumprimento de determinadas atividades.
Do princípio da liberdade de associação extrai-se que “ninguém
poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”
(Constituição Federal, art. 5º, XX). Isso não significa, contudo, que o
associado não possa ser excluído da associação. De acordo com o art. 57
do Código Civil, a exclusão do associado só é admissível havendo justa
causa, assim reconhecida em procedimento que assegure a este direito
de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto.

94
Direito Civil

Deve ser lembrado que a qualidade de associado é intransmissível


(gratuita ou onerosamente), salvo disposição em sentido contrário no
voCABuLário
estatuto (Código Civil, art. 56). Se o associado for titular de quota ou invulnerabilidade: impossibili-
fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não dade de ser atacado, blinda-
importará, por si só, na atribuição da qualidade de associado ao ad- gem, proteção contra possíveis
quirente ou ao herdeiro, salvo orientação contrária do estatuto. ameaças ou danos a direitos.
Por fim, o art. 58 do Código Civil assegura a invulnerabilidade dos sanções disciplinares: penas
direitos individuais dos associados ao estabelecer que nenhum associa- (“castigos”) aplicadas para
do poderá ser impedido de exercer direito (p. ex.: direito à presidência) correção de comportamento,
ou função que lhes tenham sido legitimamente conferidos, a não ser nos previstas previamente em leis,
casos e pela forma previstos na lei ou no estatuto. estatutos ou contratos, buscan-
do evitar que atitudes indeseja-
das ocorram ou se repitam (ex.:
4.10.2.2. Diretoria multa, suspensão etc.).
Compete à diretoria o dever de regular o funcionamento da asso- mandatário: representante com
ciação e de cobrar o cumprimento das normas previstas no estatuto, poderes para agir em nome de
podendo impor sanções disciplinares, como multas, suspensão ou até alguém.
mesmo a expulsão dos associados que violarem o estatuto, sempre res- quorum: número mínimo de
peitando o direito de defesa. Os membros que irão compor a diretoria pessoas presentes exigido por
devem ser eleitos de acordo com as regras estipuladas no estatuto. Com a uma Constituição, lei, estatuto
nomeação, os administradores (diretores) passam a ser mandatários da ou regulamento para que as
associação, podendo representá-la judicial ou extrajudicialmente. decisões por elas tomadas se-
jam válidas (termo latino).
4.10.2.3. Assembleia geral
A assembleia geral é considerada o órgão máximo dentro da associa-
ção, podendo, dentre outras deliberações, de forma privativa, destituir
os administradores e promover a alteração do estatuto (Código Civil,
art. 59). Qualquer alteração do estatuto sem determinação da assembleia
geral é considerada nula. A convocação dos órgãos deliberativos será
feita na forma do estatuto, garantido a 1/5 (um quinto) dos associados
o direito de promovê-la (art. 60). A lei não exige requisitos específicos
para as deliberações em geral, mas para a destituição de administradores
ou alteração estatutária a assembleia deverá ter sido convocada especial-
mente para esse fim.
Em atenção ao art. 48 do Código Civil, as deliberações assembleares
são tomadas pela maioria simples dos presentes, salvo se o ato consti-
tutivo dispuser de modo diverso. O estatuto poderá, desta forma, de-
terminar quorum especial para certas deliberações, como, por exemplo,
a de alteração do estatuto. Aprovada a deliberação, todos os associados
deverão a ela se submeter, inclusive os dissidentes, restando-lhes, apenas,
o direito de retirar-se da entidade.

4.10.3. Dissolução da associação


Em caso de dissolução de uma associação, o caput do art. 61 do
Código Civil determina que os bens remanescentes do seu patrimônio
líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais

95
referidas no parágrafo único do art. 56, serão destinados à entidade de
fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por delibe-
ração dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins
idênticos ou semelhantes.
Por cláusula do estatuto ou, no seu silêncio, por deliberação dos
associados, podem estes, antes da destinação do remanescente referi-
da nesse artigo, receber em restituição, atualizado o respectivo valor, as
contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação (Códi-
go Civil, art. 61, § 1º).
Essas quotas ou frações ideais a que se refere o caput do art. 61
dizem respeito ao valor eventualmente pago para aquisição do título,
como é comum em clubes esportivos, e correspondem a uma fração do
patrimônio da associação. Nada mais justo do que recuperar o capital
eventualmente investido na aquisição das cotas e nas contribuições pres-
tadas. Mas deve ser destacado que os associados não podem retirar ou-
tros valores, como, por exemplo, aqueles obtidos por doações de outras
pessoas ou arrecadados em campanhas.
Não existindo no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no
Território, em que a associação tiver sede, instituição nas condições in-
dicadas nesse artigo, o que remanescer do seu patrimônio se devolverá à
Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União.

4.11 fuNDAÇÕES

As fundações são pessoas jurídicas de direito privado formadas por


um patrimônio, uma coletividade de bens (universitas bonorum) para
desenvolver uma atividade lícita que não seja econômica, isto é, que não
tenha intuito lucrativo. Diferenciam-se das associações por serem for-
madas pela coletividade de bens, e não de pessoas, mas, assim como as
associações, não possuem finalidade lucrativa.
Outra característica marcante das fundações é a fiscalização realiza-
da pelos Ministérios Públicos Estaduais, pelas respectivas curadorias das
fundações. Ao contrário das sociedades e das associações, as fundações
não possuem sócios nem associados para fiscalizar o cumprimento
de suas normas e de seus fins sociais, justificando a legitimidade do
Ministério Público.
As fundações foram concebidas originalmente como pessoas
jurídicas de direito privado, mas na atualidade o Estado também pode
constituir fundações. As fundações privadas são aquelas constituídas
por particulares (pessoas naturais ou jurídicas) e regidas pelos arts. 62
a 69 do Código Civil. As fundações públicas são aquelas instituídas pelo
Estado (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) e são reguladas
por normas próprias de direito administrativo. Contudo, iremos aqui
analisar apenas as fundações privadas, pois são as únicas afeitas ao Di-
reito Civil.

96
Direito Civil

4.11.1. Constituição das fundações


Para que uma fundação possa ser regularmente constituída, é
necessário percorrer quatro etapas. Vejamos:
1ª ETAPA – Manifestação de vontade do instituidor: para criar
uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamen-
to, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina,
e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la (art. 62, parágrafo
único). Da norma extrai-se que a fundação pode ser instituída mediante
manifestação de vontade em vida (inter vivos) por escritura pública ou
mediante declaração de última vontade (causa mortis) por testamento
de qualquer espécie (público, cerrado ou particular). Essa manifestação
de vontade possui dois requisitos essenciais (dotação de bens e indicação
da finalidade) e um dispensável (a forma de administração). Vejamos,
então, os requisitos essenciais:
a) Finalidade: as fundações têm como finalidade um bem social,
de interesse da própria sociedade, não podendo ter fins lucrati-
vos. Compete ao instituidor definir a finalidade a ser cumprida
e, uma vez determinada, esta é imutável. Nos termos do art. 62,
parágrafo único, “a fundação somente poderá constituir-se para
fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.
O uso do termo “somente” conduz a uma interpretação de que o rol
presente no dispositivo é taxativo (numerus clausus), contudo o enten-
dimento majoritário na doutrina é no sentido de que ele é meramente
exemplificativo (numerus apertus). Nesse sentido, Maria Helena Diniz
defende que a finalidade da fundação deve apenas ser nobre, isto é, lícita,
social (interesse público) e não lucrativa.
Corroboram esse entendimento: o Enunciado 8 da I Jornada de Di-
reito Civil do Conselho da Justiça Federal: “a constituição de fundação
para fins científicos, educacionais ou de promoção do meio ambiente
está compreendida no CC, art. 62, parágrafo único”; e o Enunciado 9
da mesma Jornada: “o art. 62, parágrafo único, deve ser interpretado de
modo a excluir apenas as fundações de fins lucrativos”.
b) Dotação de bens livres e suficientes: a escritura pública ou o
testamento devem especificar os bens livres e suficientes que
irão constituir a fundação: podem ser móveis, imóveis, fun-
gíveis, infungíveis, créditos etc. Bens livres são aqueles sobre
os quais não se apresenta qualquer constrição jurídica (p. ex.:
penhora, arresto, hipoteca etc.). Também devem ser observa-
das as regras que protegem a legítima dos herdeiros necessários
(descendentes, ascendentes e cônjuges). Bens suficientes são os
exigidos para que possa ser cumprida a finalidade da fundação,
pois a ideia é de que esses bens possam produzir renda mensal
suficiente para que sejam alcançados os objetivos da fundação.
Se os bens forem insuficientes para constituir a fundação, deverão
ser incorporados em outra fundação que se proponha a fim igual ou

97
semelhante, salvo se o instituidor dispuser de forma diversa. Constituída
voCABuLário a fundação por negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a
mandado judicial: ordem judi- transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dota-
cial expedida por meio de um dos, e, se não o fizer, serão registrados, em nome dela, por mandado
despacho em processo, para judicial (Código Civil, art. 64).
que alguém faça, entregue ou A norma supracitada estabelece que nas instituições inter vivos o
deixe de fazer algo. instituidor não poderá revogar a sua doação, pois os bens serão adjudi-
compulsoriedade: obrigatorie- cados compulsoriamente à fundação que está sendo instituída. Se ins-
dade. tituída mortis causa (por testamento), a manifestação de vontade pode-
denegação: recusa, negação, rá ser revogada. Não haverá a compulsoriedade do registro, pois nada
indeferimento. impede que o testamento (cerrado, público ou particular) venha a ser
revogado por qualquer motivo, ocasionando assim a revogabilidade dos
homologação judicial: valida-
ção judicial, aprovação por bens doados para a constituição da fundação.
um juiz que torna válido ou ofi- 2ª ETAPA – Elaboração do estatuto: a celebração do estatuto
cial determinado ato ou docu- pode ser direta ou própria, quando feita pelo próprio instituidor, ou
mento. fiduciária, quando o instituidor destina terceira pessoa de confiança,
para que esta realize a elaboração do estatuto. Nos termos do art. 65,
caput, do Código Civil, “aqueles a quem o instituidor cometer a apli-
cação do patrimônio, em tendo ciência do encargo, formularão logo,
de acordo com as suas bases (art. 62), o estatuto da fundação projetada,
submetendo-o, em seguida, à aprovação da autoridade competente, com
recurso ao juiz”.
Caso o estatuto não venha a ser elaborado no prazo estabelecido,
ou quando o instituidor não designar pessoa de sua confiança para rea-
lizá-lo, transcorrido 180 (cento e oitenta) dias competirá ao Ministério
Público realizar a sua elaboração.
3ª ETAPA – Aprovação do estatuto: para que o estatuto da funda-
ção possa ser registrado, é necessário que seja devidamente aprovado
pelo Ministério Público estadual (ou distrital) da localidade em que será
registrado. O Ministério Público, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá
adotar uma das seguintes medidas: a) aprovar o estatuto, dando a devi-
da autorização para seu registro; b) indicar as modificações que com-
preender necessárias; ou c) denegar a aprovação.
Se o interessado na instituição da fundação entender como inca-
bíveis as modificações propostas ou a denegação da aprovação, poderá
solicitar o suprimento do magistrado. Devemos destacar que o juiz tam-
bém tem poder para requerer as alterações ou para diretamente alterar
as cláusulas do estatuto, requerendo modificações. Da decisão de proce-
dência ou improcedência caberá recurso de apelação. Quando o estatuto
é elaborado pelo Ministério Público também deverá ser submetido à
homologação judicial.
4ª ETAPA – Registro: o registro da fundação deverá ser realizado
no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. É considerado como
ato essencial, pois somente com o registro é que a fundação adquirirá a
personalidade, passando a ter existência legal (arts. 114 a 121 da Lei de
Registros Públicos).

98
Direito Civil

4.11.2. Alteração do estatuto da fundação


Se for necessária qualquer alteração nas disposições presentes no
estatuto da fundação, será essencial que este passe por aprovação do
Ministério Público. De acordo com o art. 67 do Código Civil, para que
se possa alterar o estatuto da fundação, é mister que a reforma: I – seja
deliberada por dois terços dos competentes para gerir e representar a
fundação; II – não contrarie ou desvirtue o fim desta; III – seja aprovada
pelo órgão do Ministério Público, e, caso este a denegue, poderá o juiz
supri-la, a requerimento do interessado.
Quando a alteração não houver sido aprovada por votação unânime,
os administradores da fundação, ao submeterem o estatuto ao órgão do
Ministério Público, requererão que se dê ciência à minoria vencida para
impugná-la, se quiser, em dez dias. As alterações não podem abranger a
finalidade da fundação, pois esta é imutável.
Em princípio, também não é possível a alienação dos bens que com-
põem o patrimônio da fundação. Entretanto, essa inalienabilidade pode
ser afastada mediante autorização judicial desde que seja comprovada a
necessidade da venda dos bens. O produto obtido com a alienação deve
ser aplicado na aquisição de outros bens necessários ao funcionamento
da fundação. A alienação, sem autorização judicial, dos bens que com-
põem a fundação deve ser considerada nula.

4.11.3. fiscalização
Como já mencionado anteriormente, compete ao Ministério Pú-
blico a fiscalização das fundações. Velará pelas fundações o Ministério
Público do Estado onde situadas. Se estenderem a atividade por mais de
um Estado, caberá o encargo, em cada um deles, ao respectivo Ministério
Público.
De acordo com o art. 66, § 1º, do Código Civil, se as fundações
funcionarem no Distrito Federal, ou em Território, caberá o encargo
ao Ministério Público Federal. Esse dispositivo foi declarado inconsti-
tucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 2.794-8), pois a com-
petência é do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, con-
forme prescreve a Constituição Federal.
Se a fundação for de natureza previdenciária, sua fiscalização não
compete ao Ministério Público.
Em se tratando de fundação pública (aquela constituída pelo Esta-
do com personalidade jurídica de direito público), deverá ser fiscalizada
pelo Tribunal de Contas, conforme dispõe o art. 71, II, da Constituição
Federal. Mas tal fiscalização não afasta a competência do Ministério Pú-
blico para investigar eventuais ilícitos. Se a fundação pública for instituí-
da pela União, a competência será do Ministério Público Federal e, se for
instituída por Estado, Município ou pelo Distrito Federal, a competên-
cia será do respectivo Ministério Público Estadual ou pelo Ministério
Público do Distrito Federal, na última hipótese.

99
Durante a III Jornada de Direito Civil do CJF foi aprovado o Enun-
ciado 147 dispondo que “a expressão ‘por mais de um Estado’, contida
no § 2º do art. 66, não exclui o Distrito Federal e os Territórios. A atri-
buição de velar pelas fundações, prevista no art. 66 e seus parágrafos,
ao Ministério Público local – isto é, dos Estados ou do Distrito Federal,
onde situadas – não exclui a necessidade de fiscalização de tais pessoas
jurídicas pelo Ministério Público Federal, quando se tratar de fundações
instituídas ou mantidas pela União, autarquia ou empresa pública fede-
ral, ou que destas recebam verbas, nos termos da Constituição, da Lei
Complementar n. 75/93 e da Lei de Improbidade”.

4.11.4. Extinção da fundação


Tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a
fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério
Público, ou qualquer interessado, promoverá sua extinção, incorporan-
do-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato consti-
tutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se
proponha a fim igual ou semelhante.
A finalidade da fundação se torna ilícita quando o seu objeto passa
a ser contrário ao ordenamento jurídico, afrontando a lei, a moral, os
bons costumes ou a ordem pública. A impossibilidade é verificada quan-
do a fundação não possuir mais meios para sua manutenção (ex.: falta
de recursos financeiros, falta de voluntários, falta de profissionais espe-
cializados para tratamento de pessoas portadoras de deficiência física
etc.). A inutilidade é normalmente verificada quando o objetivo preten-
dido com a constituição da fundação já foi alcançado (p. ex.: erradicação
de uma determinada doença).
A extinção da fundação pelo decurso do tempo é hipótese excep-
cional, pois são raras as fundações em que o seu instituidor estabelece
prazo de duração. Se este não foi estabelecido, não poderá ser presumi-
do, e a fundação somente poderá ser extinta se se tornar ilícita, impos-
sível ou inútil a finalidade a que visava.
A extinção da fundação por qualquer um dos motivos elencados
poderá ser solicitada por qualquer interessado ou pelo representante do
Ministério Público.

4.12 NACioNALiDADE

A ideia de nacionalidade da pessoa jurídica leva em consideração a


ordem jurídica a que se submetem, não importando a nacionalidade dos
membros que a compõem ou a origem do controle financeiro. De acor-
do com o art. 11 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,
“as organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as socie-
dades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem”.
Assim, classificadas quanto à nacionalidade, as pessoas jurídicas podem

100
Direito Civil

ser divididas em nacionais e estrangeiras. Pessoas jurídicas nacionais


são aquelas constituídas à luz do ordenamento jurídico brasileiro e que
mantêm aqui a sede de sua administração (Código Civil, art. 1.126). Não
basta, portanto, que a pessoa jurídica tenha sido constituída no Brasil
(teoria da constituição), exigindo-se que mantenha aqui a sua sede. Por
outro lado, as pessoas jurídicas estrangeiras são aquelas constituídas
fora do Brasil ou que, mesmo constituídas no Brasil, mantêm a sua sede
fora do País. Independentemente de qual seja o seu objeto (isto é, seu
ramo de atividade), as sociedades estrangeiras somente poderão fun-
cionar no País com autorização do Poder Executivo (Código Civil, art.
1.134).

4.13 DomiCÍLio DA PESSoA JurÍDiCA

O domicílio da pessoa natural é, em regra, determinado pela


residência com o animus (ou seja, sua vontade) de permanência. Como
a pessoa jurídica não tem residência, seu domicílio é determinado, em
regra, pela sua sede ou estabelecimento, por ser o local onde costuma
celebrar seus negócios jurídicos. Com base no art. 75 do Código Civil
podem ser extraídas as seguintes regras sobre o domicílio das pessoas
jurídicas:

4.13.1. Pessoas jurídicas de direito público


As pessoas jurídicas de direito público interno que compõem a
administração direta têm como domicílio a sede de seu governo: o
domicílio da União é o Distrito Federal; o domicílio dos Estados e Ter-
ritórios são as respectivas capitais; e o domicílio dos Municípios é o
lugar onde funcionar a administração municipal.
O Código Civil estabelece apenas regras sobre domicílio, e não so-
bre o foro competente para a propositura de ações. Exemplificando: o
Código Civil de 2002 estabelece que o domicílio da União é o Distrito
Federal, mas a União deve propor ações no foro do domicílio da outra
parte. Quando a União for ré, a ação poderá ser proposta no foro do
domicílio do autor, no local dos fatos, no local onde situado o bem ou
Distrito Federal (Constituição Federal, art. 109, §§ 1º e 2º).
Quanto às pessoas jurídicas de direito público que compõem a ad-
ministração indireta (as autarquias), o entendimento doutrinário é no
sentido de que o seu domicílio é determinado pelo ente a que estão su-
bordinadas (União, Estado, Distrito Federal ou Município).

4.13.2. Pessoas jurídicas de direito privado


Após dispor sobre o domicílio das pessoas jurídicas de direito pú-
blico, o caput do art. 75 do Código Civil determina que o domicílio das
demais pessoas jurídicas é o lugar onde funcionarem as respectivas di-

101
retorias e administrações, ou onde elegerem domicílio especial no seu
estatuto ou atos constitutivos (domicílio de eleição). De acordo com a
Súmula 363/STF, “a pessoa jurídica de direito privado pode ser demanda-
da no domicílio da agência ou estabelecimento em que se praticou o ato”.
Se a pessoa jurídica tiver diversos estabelecimentos em lugares dife-
rentes (p. ex.: filiais), cada um deles será considerado domicílio para os
atos nele praticados, facilitando a vida das pessoas que litigarem com
as pessoas jurídicas. Como essa pluralidade de domicílio é estabelecida
em favor da pessoa que precisar litigar contra a pessoa jurídica, admite-se
que o demandante opte pelo domicílio da sede.
Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-
-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações con-
traídas por suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a
que ela corresponder (Código Civil, art. 75, § 2º). O objetivo da norma
é a proteção das pessoas que litigarem contra as pessoas jurídicas de
direito privado estrangeiras, que não precisarão ingressar com ações
em outros países.

DESCoNSiDErAÇÃo DA
4.14 PErSoNALiDADE JurÍDiCA

A responsabilidade civil das pessoas jurídicas incide diretamente


sobre o seu próprio patrimônio. Entretanto, em determinadas situações
a responsabilidade pode ser ampliada ao patrimônio dos seus sócios ou
administradores pelo instituto da desconsideração da personalidade ju-
rídica, como veremos neste tópico.
Vimos que na atualidade é indiscutível que as pessoas jurídicas
possuem personalidade jurídica própria. Isso significa que as pessoas
jurídicas têm aptidão para serem titulares de direitos e deveres distintos
dos direitos e deveres de seus sócios ou administradores. Como a soma
de direitos e deveres de uma pessoa é denominada patrimônio, podemos
afirmar que as pessoas jurídicas possuem um patrimônio distinto dos
membros que as compõem.
Essa distinção estava prevista no art. 20 do Código Civil de 1916,
que estabelecia o denominado princípio da separação patrimonial,
consagrado na parêmia societatis distat a singulis. Embora não exista
dispositivo semelhante no Código Civil de 2002, entende-se que a regra
continua existindo de forma implícita no nosso ordenamento jurídico,
pois negar a existência dessa regra significaria negar a própria existência
da pessoa jurídica.
Excepcionalmente, admite-se que seja decretada a desconsideração
da personalidade jurídica para que os sócios ou administradores de uma
pessoa jurídica sejam responsabilizados pelas obrigações desta.
A desconsideração da personalidade jurídica pode ser definida
como a simples medida processual em que o juiz determina a inclusão

102
Direito Civil

dos sócios ou administradores de uma pessoa jurídica no polo passivo


da demanda para que respondam com seu patrimônio particular pelas
dívidas dela.
Devemos alertar que a desconsideração não determina a extinção
da pessoa jurídica, nem mesmo sua liquidação, dissolução ou anulação
dos atos constitutivos. Seus efeitos são restritos ao plano processual e
não afetam a existência ou o funcionamento da pessoa jurídica. Tecnica-
mente, a desconsideração não afeta em nada a pessoa jurídica, mas tão
só seus sócios ou administradores.
A desconsideração da personalidade não pode ser confundida com
a despersonalização, pois esta importa na dissolução da pessoa jurídica
ou na cassação da autorização para o seu funcionamento.

JuriSPruDÊNCiA

DirEiTo CiviL. LimiTES À APLiCABiLiDADE Do ArT. 50 Do CC.


o encerramento das atividades da sociedade ou sua dissolução, ainda que irregulares, não são
causas, por si sós, para a desconsideração da personalidade jurídica a que se refere o art. 50 do CC.
Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social – adotada pelo CC –,
exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucio-
nais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros. É a intenção ilícita
e fraudulenta, portanto, que autoriza, nos termos da teoria adotada pelo CC, a aplicação do instituto
em comento. Especificamente em relação à hipótese a que se refere o art. 50 do CC, tratando-se de
regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, deve-se
restringir a aplicação desse disposto legal a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instru-
mento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão
patrimonial. Dessa forma, a ausência de intuito fraudulento afasta o cabimento da desconsideração
da personalidade jurídica, ao menos quando se tem o CC como o microssistema legislativo norteador
do instituto, a afastar a simples hipótese de encerramento ou dissolução irregular da sociedade como
causa bastante para a aplicação do disregard doctrine. Ressalte-se que não se quer dizer com isso
que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas
que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei,
com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial. Assim é que o enunciado
146, da III Jornada de Direito Civil, orienta o intérprete a adotar exegese restritiva no exame do artigo
50 do CC, haja vista que o instituto da desconsideração, embora não determine a despersonalização
da sociedade – visto que aplicável a certo ou determinado negócio e que impõe apenas a ineficácia
da pessoa jurídica frente ao lesado –, constitui restrição ao princípio da autonomia patrimonial. Ade-
mais, evidenciando a interpretação restritiva que se deve dar ao dispositivo em exame, a IV Jornada
de Direito Civil firmou o Enunciado 282, que expressamente afasta o encerramento irregular da pessoa
jurídica como causa para desconsideração de sua personalidade: "O encerramento irregular das ati-
vidades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica".
Entendimento diverso conduziria, no limite, em termos práticos, ao fim da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica, ou seja, regresso histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da
atividade econômica. Precedentes citados: AgRg no REsp 762.555-SC, Quarta Turma, DJe 25/10/2012;
e AgRg no REsp 1.173.067/RS, Terceira Turma, DJe 19/6/2012. ErEsp 1.306.553-SC, rel. min. maria isabel
Gallotti, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014.

103
Nos termos do art. 50 do Código Civil, “em caso de abuso da per-
sonalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela
confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou
do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos
aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Além da tradicional desconsideração da personalidade jurídica, a
doutrina e a jurisprudência apontam a possibilidade da desconsidera-
ção inversa da personalidade jurídica, consistente na responsabilização
da pessoa jurídica pelas dívidas pessoais de seus sócios ou administra-
dores. Nesse sentido, o Enunciado 283 do CJF aponta que “é cabível a
desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para
alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou
desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.

4.14.1. Teorias da desconsideração da


personalidade jurídica
A primeira lei brasileira a consagrar o instituto da desconsideração
da personalidade jurídica foi o Código Tributário Nacional, que em seu
art. 135 permitia a responsabilização pessoal dos diretores, gerentes ou
representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos cor-
respondentes às obrigações tributárias. Posteriormente, também trou-
xeram previsões do instituto o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.
8.078/90), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 9.605/98)
e o Código Civil em vigor.
Mas antes da previsão legal a desconsideração da personalidade já
era aplicada por nossos Tribunais pela construção de diversas teorias.
Aliás, o termo “teoria” refere-se justamente a uma construção doutri-
nária. A partir do momento em que a lei consagra essa construção, po-
demos nos referir simplesmente a “instituto”. Não obstante, o estudo
das teorias da desconsideração, também conhecidas como teorias da
penetração ou disregard doctrine, auxilia a compreensão do instituto
e da ratio legis.
a) Teoria Maior da Desconsideração: é aquela que exige um mo-
tivo para que ocorra a desconsideração da personalidade, não
bastando a simples inexistência ou insuficiência de bens da pes-
soa jurídica executada. A teoria maior se subdivide em subjetiva
e objetiva:
Teoria Maior Subjetiva: o motivo para que seja deferida a descon-
sideração repousa na conduta dos sócios ou administradores. Como
exemplo de fatos atribuíveis a estes, podem ser citados a fraude e o abuso
de direito. Essa teoria é defendida em nosso país por Rubens Requião.
Teoria Maior Objetiva: para que ocorra a desconsideração, basta o
desvio de função (disfunção), caracterizado quando ocorre o desvio de
finalidade ou a confusão patrimonial entre controlador (sócio ou admi-
nistrador) e controlado (pessoa jurídica). No direito americano, fala-se

104
Direito Civil

em comingling of funds (= promiscuidade de fundos). Essa teoria é de-


fendida em nosso país por Fábio Konder Comparato, que foi o redator
ATENÇÃo
do art. 50 do Código Civil. Sobre a desconsideração da
b) Teoria Menor da Desconsideração: é aquela que não exige mo- personalidade jurídica existem inte-
tivos para que seja decretada a desconsideração, bastando a ine- ressantes Enunciados do Conselho
da Justiça Federal, além daqueles
xistência ou insuficiência de bens da pessoa jurídica executada.
já analisados acima. Vejamos:
A teoria menor da desconsideração está presente no § 5º do art.
Enunciado 7/CJf: só se aplica
28 do Código de Defesa do Consumidor: “Também poderá ser a desconsideração da personalida-
desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade de jurídica quando houver a práti-
for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos ca de ato irregular e, limitadamen-
causados aos consumidores”. te, aos administradores ou sócios
que nela hajam incorrido.
Enunciado 51/CJf: a teoria da
desconsideração da personalidade
jurídica – disregard doctrine – fica
positivada no novo Código Civil,
mantidos os parâmetros existentes
nos microssistemas legais e na cons-
trução jurídica sobre o tema.
Enunciado 146/CJf: nas rela-
ções civis, interpretam-se restritiva-
mente os parâmetros de desconsi-
deração da personalidade jurídica
previstos no art. 50 (desvio de fina-
lidade social ou confusão patrimo-
nial). (Este enunciado não prejudi-
ca o Enunciado n. 7.)
Enunciado 281/CJf: a aplica-
ção da teoria da desconsideração,
descrita no art. 50 do Código Civil,
prescinde da demonstração de in-
solvência da pessoa jurídica.
Enunciado 282/CJf: o encerra-
mento irregular das atividades da
pessoa jurídica, por si só, não basta
para caracterizar abuso de perso-
nalidade jurídica.
Enunciado 284/CJf: as pessoas
jurídicas de direito privado sem fins
lucrativos ou de fins não econômi-
cos estão abrangidas no conceito
de abuso da personalidade jurídica.
Enunciado 285/CJf: a teoria da
desconsideração, prevista no art. 50
do Código Civil, pode ser invocada
pela pessoa jurídica em seu favor.
Enunciado 406/CJf: a descon-
sideração da personalidade jurídi-
ca alcança os grupos de sociedade
quando presentes os pressupostos
do art. 50 do Código Civil e houver
prejuízo para os credores até o limi-
te transferido entre as sociedades.

105
106
5 os Bens
AuTor 5.1 CoNCEiTo
Silvio ro-
drigues (1917- Bens são todos os objetos materiais e imateriais existentes na na-
2004), advogado tureza, que proporcionam uma utilidade às pessoas. O estudo dos bens
e professor pau- é importante, pois são considerados objetos de direitos nas relações
lista, cuja obra jurídicas, cujos titulares são as pessoas (sujeitos de direitos). A matéria
completa sobre tem implicações no Direito Civil, Penal, Administrativo, Tributário e em
Direito Civil con- vários outros ramos do ordenamento jurídico.
sistiu num marco
Embora toda relação jurídica subjetiva exija um objeto, nem sem-
para o ensino jurídico no Brasil.
pre este será algo material (p. ex.: um livro). Também podem ser consi-
Com ideias liberais e sempre ar-
rojadas, seu nome logrou reper- derados objeto de relações jurídicas os direitos (direito autoral, direito
cussão também no exterior. de crédito etc.) e as obrigações (de dar, de fazer, de não fazer).
Caio mário
da Silva Perei- 5.1.1. Bens e coisas: distinção
ra (1913-2004),
Existe forte divergência doutrinária sobre a definição de bens
natural de Belo
Horizonte, Minas
e coisas. Como são infinitas as posições doutrinárias sobre o tema,
Gerais, deixou procuramos reproduzir abaixo quatro correntes consideradas princi-
como principal pais. Vejamos:
legado suas Ins- 1ª Corrente: defende que coisas são todos os objetos existentes na
tituições de Di- natureza, com exceção das pessoas. Ao passo que bens são apenas aque-
reito Civil, com grande impacto las coisas que têm valor econômico e que são suscetíveis de apropriação
na doutrina da disciplina. (animais, livros, automóveis etc.). Em síntese, defende que coisa é o gê-
nero do qual bem é uma espécie. Esta é a posição de Maria Helena Diniz,
rEfLEXÃo Agostinho Alvim, Silvio Rodrigues e Francisco Amaral.
2ª Corrente: aponta exatamente o oposto da primeira corrente ao
“Filosoficamente, bem é tudo defender que coisas são os objetos materiais suscetíveis de valoração
quanto pode proporcionar ao ho- econômica. Já os bens têm acepção mais ampla, abrangendo os objetos
mem qualquer satisfação. Nesse dotados ou não de conteúdo patrimonial. Para essa corrente, bem seria
sentido se diz que a saúde é um
o gênero; e coisa, a espécie. Esta é a posição de Orlando Gomes.
bem, que a amizade é um bem,
que Deus é o sumo bem. Mas, se 3ª Corrente: bens podem ser considerados em sentido amplo ou
filosoficamente, saúde, amizade e estrito. Amplo ou genérico, o termo bens representa tudo aquilo que
Deus são bens, na linguagem jurí- pode ser objeto da relação jurídica, sem distinção da materialidade ou
dica não podem receber tal qua- da patrimonialidade. Em sentido estrito, são os imateriais (aqueles que
lificação” (Washington de Barros não podem ser tocados – p. ex.: o direito de crédito) e as coisas (os mate-
Monteiro). riais – aqueles que podem ser tocados – p. ex.: um livro). Esta é a posição
de Caio Mário da Silva Pereira.
4ª Corrente: a distinção tem por base o conteúdo jurídico: bens
jurídicos são todos os bens da vida submetidos à tutela jurídica. Ao pas-
so que as coisas, em sua acepção comum, representam o elemento ma-
terial do conceito jurídico de bem (noção pré-jurídica). Esta é a posição
de Gustavo Tepedino.
Com relação à divergência doutrinária exposta, entendemos que a
posição mais adequada é a esposada na primeira corrente, que, a propó-
sito, é majoritária. Contudo, no âmbito legal, é de notar que o legislador

108
Direito Civil

parece ter adotado a segunda corrente no Código Civil de 2002, pois na


parte geral há um capítulo dedicado aos bens (abrangendo os materiais
e os imateriais) e, na parte especial, um capítulo dedicado ao direito das
coisas, para tratar da posse e dos direitos reais que incidem sobre alguns
bens (as coisas).

5.2 PATrimôNio

É o complexo de relações jurídico-materiais (valoráveis economi-


camente) de uma pessoa física ou jurídica, abrangendo os direitos reais
e obrigacionais (pessoais). A noção de patrimônio tem íntima relação
com a de personalidade jurídica, pois representa o conjunto de bens
(universalidade de direito) sobre o qual incide as relações jurídicas
econômicas.
O estudo do tema tem especial importância na matéria de respon-
sabilidade civil e no direito processual civil, pois é o patrimônio de uma
pessoa, atual e futuro, que responde por suas dívidas (Código Civil, art.
391 e Código de Processo Civil de 2015, art. 789).
A classificação do patrimônio pode se dar:
Patrimônio global: é o patrimônio que abrange todas as relações
jurídicas de conteúdo econômico de uma pessoa. Engloba créditos e
débitos.
Patrimônio ativo: restringe-se às relações jurídicas em que a
pessoa é credora (sujeito ativo). Aplica-se somente aos casos em que
a pessoa tenha um crédito a receber. Pode ser subdividido em bruto
(soma de todos os créditos de uma pessoa) e líquido (composto pelo
resultado de todos os créditos, subtraídos os débitos e as obrigações de
uma pessoa).

DAS DivErSAS CLASSifiCAÇÕES DoS


5.3 BENS

A classificação dos bens tem por objetivo facilitar o trabalho dos


operadores do Direito, permitindo a aplicação das mesmas regras
jurídicas àqueles que se apresentem com características semelhantes.
Com esse propósito o legislador do Código Civil de 2002 classificou os
bens de acordo com três critérios: a) bens considerados em si mesmos
(imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis;
divisíveis e indivisíveis; materiais e imateriais; singulares e coletivos); b)
bens reciprocamente considerados (principais e acessórios); e c) con-
siderados em relação ao titular (particulares e públicos). Vejamos cada
uma destas classificações:

109
CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE
5.4 ACorDo Com A moBiLiDADE

5.4.1. Bens imóveis


Bens imóveis ou bens de raiz são aqueles que não podem ser trans-
portados, sem destruição, de um lugar para outro. A remoção causaria
alteração de sua substância ou de sua forma. O conceito legal de bem
imóvel, conferido pelo Código Civil, compreende o solo e tudo quanto
lhe for incorporado de maneira natural ou artificial (art. 79).
Na doutrina, apresentam-se diversas espécies de bens imóveis:
a) Por natureza (ou por essência): trata-se do solo e tudo quanto
lhe for incorporado de forma natural (p. ex.: árvores, frutos, pedras etc.).
Compreende também o espaço aéreo e o subsolo, mas os arts. 1.229 e
1.230 do Código Civil apresentam limitações ao direito de propriedade
sobre estes.
b) Por acessão física artificial: são todos os bens que as pessoas
incorporam ao solo de forma artificial e permanente – não podem ser reti-
rados, em regra, sem destruição, modificação, fratura ou dano. De acor-
do com o art. 81 do Código Civil, não perdem a característica de bens
imóveis:
As edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua uni-
dade, forem removidas para outro local. Exemplo: o deslocamento de
uma casa de madeira ou mesmo de alvenaria de um lugar para outro.
Os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele
se reempregarem: para o Direito Civil, prédio é toda construção que
tem a característica de imóvel. Pode ser uma casa, um galpão, uma pon-
te etc. Se o prédio for demolido para reconstrução, os materiais con-
tinuarão sendo tratados como imóveis. Se a demolição não tiver esse
propósito, os materiais passarão à condição de móveis.
c) Por acessão intelectual (ou por destinação): são todos os bens
móveis que o proprietário mantém empregados de forma duradoura e
intencional na exploração industrial, aformoseamento (embelezamen-
to) ou comodidade do bem imóvel. Para que ocorra a acessão, o bem
móvel deve pertencer ao proprietário do imóvel e estar à disposição do
bem imóvel, e não da pessoa. Essa imobilização pode cessar a qualquer
momento, bastando manifestação de vontade do proprietário.
Como exemplos de bens imóveis por acessão intelectual, a doutri-
na costumeiramente aponta os ornamentos (vasos, estátuas nos jardins,
cortinas etc.), máquinas agrícolas, animais e materiais utilizados para
plantação, escadas de emergência justapostas nos edifícios, geradores,
aquecedores, aparelhos de ar-condicionado etc.
No Código Civil de 1916, o art. 43, III, consagrava expressamente
os bens imóveis por acessão intelectual, que foram retirados do rol dos
bens imóveis no Código Civil de 2002 (art. 79), fazendo a doutrina ques-
tionar a continuidade desta classificação:

110
Direito Civil

1ª Corrente: defende que a classificação persiste no Código Civil


de 2002, pois o legislador apenas deslocou o tema para um dispositivo
à parte – o art. 93, que trata das pertenças. Para os defensores desta cor-
rente, os bens imóveis por acessão intelectual e as pertenças devem ser
tratados como sinônimos. Vale dizer que a redação é semelhante entre os
arts. 43, III, do Código Civil de 1916 e 93 do Código Civil de 2002. Esta é
posição de Maria Helena Diniz, com quem concordamos.
2ª Corrente: defende que a categoria de bens imóveis por acessão
intelectual foi eliminada do sistema e não deve ser confundida com as
pertenças, pois estas não constituem partes integrantes do imóvel. Além
do que, em regra, as pertenças não seguem o destino do principal. Nesse
sentido, o Enunciado 11 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da
Justiça Federal, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Ce-
lina Bodin de Moraes.
d) Por determinação legal: são os bens considerados imóveis
por força da lei para receber maior proteção jurídica, consistente, em
regra, na exigência de escritura pública para a disposição de direitos. É
o caso da herança (direito à sucessão aberta – Código Civil, art. 80, I),
considerada bem imóvel ainda que composta só de bens móveis. Para
a cessão de direitos hereditários, é exigida a escritura pública (Código
Civil, art. 1.793).
Também são considerados imóveis por determinação legal os direi-
tos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram (Código Civil, art. 80,
II). Portanto, podem ser considerados bens imóveis os seguintes direitos
constituídos sobre imóveis: propriedade, superfície, servidão, usufruto,
uso, habitação, direito do promitente comprador, hipoteca e anticrese.
Com relação às ações que asseguram os direitos reais (ação reivindica-
tória, hipotecária, negatória de servidão, anulatória ou declaratória de
nulidade de negócio etc.), entendemos que não são propriamente bens e
que a referência legal é equivocada, mas tal posição é minoritária.
Devemos, ainda, destacar os seguintes pontos:
Navios e aeronaves: embora sejam registrados e transmitidos da
mesma forma que os bens imóveis (podendo inclusive ser oferecido em
hipoteca – Código Civil, art. 1.473, VI e VII), são classificados como bens
móveis. O tratamento de imóvel é utilizado como uma forma de com-
pensar a instabilidade existente em razão do constante deslocamento
desses bens com a estabilidade do registro.
Penhor agrícola: o Código anterior definia o penhor agrícola como
bem imóvel (art. 44, I). O Código atual não o inclui entre os bens
imóveis, mas determina que o penhor rural (que compreende o agrícola
e o pecuário) deva ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis
(art. 1.438).

5.4.2. Bens móveis


São aqueles que podem ser movidos de um local para outro sem que
seja alterada a substância ou a destinação econômico-social. A remoção

111
de um lugar a outro pode ocorrer por força própria (semoventes), no
caso dos animais, ou por força alheia, que são os móveis propriamente
ditos (p. ex.: livro, caneta, fruta etc.). Os bens móveis podem ser classi-
ficados em:
a) Por natureza: compreendem tanto os semoventes (aqueles que
se movem por força própria – exemplo: os animais) como as coisas ina-
nimadas que possam ser transportadas de um lugar a outro, sem que se
destruam, isto é, sem que ocorra alteração de sua substância ou de sua
destinação social (Código Civil, art. 82) – exemplos: carro, lápis, cadeira
etc. O bem móvel por natureza é sempre uma coisa corpórea.
b) Por antecipação: são aqueles mobilizados (transformados em
bens móveis) pelos seres humanos em atenção a sua finalidade econômi-
ca (p. ex.: fruta colhida, madeira cortada, pedra extraída, casa vendida
para ser demolida etc.). Por receberem o tratamento de bens móveis,
não exigem escritura pública para sua alienação e dispensam a vênia
conjugal (autorização do cônjuge).
c) Por determinação legal: são: a) as energias que têm valor econô-
ATENÇÃo mico: elétrica, térmica, solar, nuclear, eólica, radioativa, radiante, sonora,
da água represada etc.; b) os direitos reais sobre bens móveis (direito de
Tenha corporalidade (como propriedade, usufruto, penhor e propriedade fiduciária) e as ações cor-
o gás) ou não (como a corrente
respondentes; c) os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas
elétrica), toda energia dotada de
ações: direitos obrigacionais, também denominados de crédito; d) os di-
valor econômico é considerada
reitos autorais: nos termos do art. 3º da Lei n. 9.610/98; e e) a propriedade
bem móvel, nos termos do art. 83,
I, do Código Civil. O mesmo ocor- industrial: nos termos do art. 5º da Lei n. 9.279/96.
re no Direito Penal, para o qual a
energia com valor econômico é
equiparada à coisa móvel (Códi- CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE
go Penal, art. 155, § 3º). 5.5 ACorDo Com A fuNGiBiLiDADE

5.5.1. Bens fungíveis


São os móveis passíveis de substituição por outros da mesma espé-
cie (gênero), qualidade e quantidade. Como exemplo de bens fungíveis,
podemos citar dinheiro, milho, água etc.
A fungibilidade é uma característica natural dos bens móveis, mas
as partes podem transformar, mediante simples manifestação de vonta-
de (contrato), um bem fungível em infungível. Como exemplo, pode-
mos citar o empréstimo ad pompam vel ostentationem de uma garrafa de
vinho para exposição com a obrigação de ser restituída ao final.

5.5.2. Bens infungíveis


São os bens que não podem ser substituídos por outros em razão
de determinadas qualidades individuais e específicas. A infungibilidade
é uma característica própria dos bens imóveis, mas também se encontra
presente em alguns bens móveis, como os veículos automotores (indi-

112
Direito Civil

vidualizados por seu chassi, placa etc.), obras de arte (p. ex.: a escultura
O pensador, de Rodin). A infungibilidade pode resultar da natureza do ATENÇÃo
bem ou da vontade das partes.
É possível transformar um bem
inconsumível em consumível. Isso
ocorre, por exemplo, quando um
CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE automóvel é comercializado em
5.6 ACorDo Com A CoNSuNTiBiLiDADE uma revenda e passa a ser consi-
derado consumível de direito.

5.6.1. Bens consumíveis


rEfLEXÃo
Bens consumíveis são os destinados à satisfação de necessidades e
interesses das pessoas. Os bens consumíveis podem ser de duas espécies: A classificação dos bens
a) Consumíveis de fato: são os bens cujo uso importa na destrui- como consumíveis está apoiada
ção imediata da própria substância ou na sua extinção – a consuntibili- em seu sentido econômico. Com
dade é natural – p. ex.: frutas, verduras etc.; o Código de Defesa do Consu-
midor, criado em 1990, deu-se
b) Consumíveis de direito: são os bens destinados à alienação – a
grande destaque a esta classe
consuntibilidade (característica dos bens consumíveis) é jurídica – ex.:
de bens, em função do papel por
livros e automóveis à venda em uma loja (Código Civil, art. 86). eles desempenhado na econo-
mia de massa ante a necessidade
5.6.2. Bens inconsumíveis imperiosa de se proteger a figura
do consumidor.
São os que podem ser usados de forma contínua e reiterada, sem
que isso importe na sua destruição imediata. Os bens inconsumíveis ca-
racterizam-se pela possiblidade de retirada de suas utilidades, sem que ATENÇÃo
seja atingida sua integridade.
As partes podem transformar um bem consumível em incon- A maior parte dos bens fun-
sumível por meio de disposição contratual. Exemplo: com o contrato gíveis são também consumíveis,
mas nem por isso fungibilidade e
de empréstimo ad pompam vel ostentationem que impede a alienação e
consuntibilidade se confundem.
o consumo do bem (p. ex.: o empréstimo de uma garrafa de vinho para
Há bens industriais que são fun-
exposição).
gíveis, porém não consumíveis,
como é o caso, por exemplo, do
mobiliário de uma residência.
CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE
5.7 ACorDo Com A DiviSiBiLiDADE

A classificação dos bens de acordo com a divisibilidade tem impac-


to em diversos dispositivos do Código Civil: capacidade civil (art. 105),
compra e venda (art. 504), depósito (art. 639), transação (art. 844), con-
domínio (art. 1.322), condomínio edilício (arts. 1.331 e 1.336) e legado
(art. 1.968, § 1º).

5.7.1. Bens divisíveis


Os bens divisíveis são os que podem ser fracionados em partes ho-
mogêneas e distintas, sem alteração na sua substância, diminuição con-
siderável de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam (Código
Civil, art. 87).

113
Para que o bem possa ser considerado divisível, cada fração autôno-
voCABuLário ma deve manter as mesmas utilidades e qualidades essenciais do todo.
usucapião: aquisição da pro-
Exemplo: um saco de feijão é divisível, pois pode ser fracionado em duas
priedade de um bem por meio ou mais partes, mantendo as suas características originais.
da posse pacífica e ininterrup- Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por
ta deste por um determinado determinação legal ou por vontade das partes.
período de tempo, implicando,
consequentemente, a perda 5.7.2. Bens indivisíveis
deste mesmo bem por seu an-
São naturalmente indivisíveis os bens que não podem ser fraciona-
terior proprietário.
dos, sob pena de perderem sua utilidade, valor ou qualidades essenciais.
A indivisibilidade de um bem pode ser de três espécies:
a) Por sua natureza: são os bens que não podem ser divididos sob
pena de alterarem sua substância, perderem sua utilidade ou reduzirem
consideravelmente o seu valor. Exemplos: touro reprodutor, automóvel,
obra de arte etc.
b) Por determinação legal: são os bens considerados indivisíveis
por força de dispositivo legal expresso. A lei rotula o bem como indivisível.
Exemplos: o direito à sucessão aberta/herança, que é considerado indi-
visível até o momento da partilha (Código Civil, art. 1.791, parágrafo
único); as servidões prediais (Código Civil, art. 1.386); o direito de hi-
poteca (art. 1.421); o condomínio forçado instituído pela usucapião co-
letiva (Lei n. 10.251/2001, art. 10, § 4º) etc.
c) Por vontade das partes: são os bens divisíveis transformados
em indivisíveis por força da vontade manifestada em contrato (exercício
da autonomia privada), deixando seu aspecto de divisibilidade para trás.
Temos duas hipóteses legais previstas no Código Civil que bem retratam
a indivisibilidade por vontade das partes: quando duas ou mais pessoas
forem proprietárias de um mesmo bem (ou seja, o tiverem em condo-
mínio), poderão contratar a indivisibilidade por prazo não superior a
cinco anos, suscetível de prorrogação ulterior (Código Civil, art. 1.320, §
1º); a indivisibilidade também poderá ser imposta pelo doador ou pelo
testador por prazo não superior a cinco anos, sem possibilidade de pror-
rogação (art. 1.320, § 2º).

CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE


5.8 ACorDo Com A mATEriALiDADE

5.8.1. Bens materiais (res corporalis)


Também denominados bens corpóreos ou tangíveis, são aqueles que
têm existência material, podendo ser percebidos por nossos sentidos.
Exemplos: armários, lâmpadas, telefones celulares, livros etc.

5.8.2. Bens imateriais (res incorporalis)


Também denominados bens incorpóreos ou intangíveis, são todos
os bens que possuem existência abstrata, não podendo ser sentidos/toca-

114
Direito Civil

dos fisicamente pelos seres humanos. São bens que consistem em direitos.
Somente existem porque a lei assim determina, por força de determi-
nação jurídica. Exemplo: direitos autorais de quem escreveu um livro,
direitos de crédito, direito à herança, invenções, direitos reais, direitos
obrigacionais etc.
O Código Civil atual não prevê a classificação dos bens quanto à
tangibilidade. A classificação continua relevante, mesmo não expressa
em lei, pois somente os bens corpóreos podem ser objeto de posse e,
portanto, de proteção possessória (interditos possessórios). Somente os
bens corpóreos podem ser objeto de tradição (entrega) e de aquisição
por usucapião.

CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE


5.9 ACorDo Com A iNDiviDuALiDADE

Vejamos agora a classificação dos bens de acordo com a individua-


lidade no atual Código Civil:

5.9.1. Bens singulares


Bens singulares ou individuais são aqueles que, embora reunidos, se
consideram de per si, independentemente dos demais (Código Civil, art.
89). Em regra os bens são singulares. Somente serão considerados cole-
tivos quando houver determinação legal ou determinação das partes. Os
bens singulares podem ser de duas espécies:
a) Bens singulares simples: são os bens cujas partes formam um
todo homogêneo e estão agrupadas em razão da sua própria natureza (a
coesão é natural). Podem ser materiais (p. ex.: árvore) ou imateriais (p.
ex.: crédito).
b) Bens singulares compostos: são aqueles bens que, reunidos,
formam um só todo, mas sem desaparecer a condição jurídica de cada
parte (a coesão é artificial – p. ex.: navios, materiais utilizados na cons-
trução de uma casa etc.).

5.9.2. Bens coletivos


Bens coletivos ou universais são aqueles formados por vários bens
singulares que, reunidos, passam a formar uma coisa só (individualidade
incomum), mas sem que desapareça a condição jurídica de cada parte
(autonomia funcional).
Dessa forma, o titular dos bens pode contratar sobre a coletividade
dos bens (p. ex.: vender uma biblioteca) ou sobre um dos bens de forma
individualizada (p. ex.: alienar apenas um livro de uma biblioteca). A
coletividade aqui mencionada pode ser de duas espécies:
a) Universalidade de fato (universitas rerum): é a pluralidade de
bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação

115
unitária (Código Civil, art. 90). A universalidade de fato é formada pela
coletividade de bens singulares, corpóreos e homogêneos, pertencentes a
uma mesma pessoa. Exemplos: rebanho, biblioteca, pinacoteca, frota,
floresta, cardume etc. Como visto acima, nada impede que os bens sin-
gulares que formam a universalidade de fato sejam objeto de relações
jurídicas próprias, podendo ser alienados separadamente.
b) Universalidade de direito (universitas iuri): complexo de re-
lações jurídicas de uma mesma pessoa, dotadas de valor econômico
(Código Civil, art. 91). É formada pela coletividade de bens singulares
incorpóreos (direitos) e, eventualmente, entre estes e bens corpóreos hete-
rogêneos (na verdade, reúne os direitos existentes sobre os bens corpóreos).
Exemplo: herança, patrimônio, massa falida.

CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE


5.10 ACorDo Com A DEPENDÊNCiA ou
rECiProCiDADE

Reciprocamente considerados, os bens são classificados em princi-


pais e acessórios. Os bens acessórios são subdivididos em frutos, produ-
tos, benfeitorias e pertenças.

5.10.1. Bem principal


Considera-se bem principal todo aquele que tem sua existência in-
dependente de qualquer outro. O bem principal existe sobre si mesmo,
abstrata ou concretamente (Código Civil, art. 92), enquanto o acessório
depende de outro para sua existência.
Quanto aos imóveis, o solo é o bem principal e tudo que se incor-
pora nele de forma permanente é acessório. Quanto aos móveis, bem
principal é aquele para o qual os outros bens se destinam (para enfeitar,
permitir o uso ou servir como complemento). Exemplos: a caneta é o
principal, a tampa é o acessório; o computador é o principal, o teclado é
o acessório; o automóvel é o principal, o pneu é o acessório; o capital é
o principal, os juros são acessórios etc.

5,10.2. Bem acessório


Bem acessório é aquele cuja existência pressupõe a do principal,
isto é, sua existência é subordinada à existência de outro bem considerado
principal (vide exemplos acima). A maior consequência que se extrai da
distinção é o princípio da gravitação jurídica: o acessório segue o prin-
cipal (acessorium sequitur principale). Embora essa seja a regra, ela não
é absoluta, podendo haver disposição das partes ou da própria lei em
sentido contrário (como ocorre com as pertenças – Código Civil, arts.
93 e 94). De acordo com a doutrina, os bens acessórios podem ser clas-
sificados em naturais, civis e industriais.

116
Direito Civil

Naturais: aqueles que aderem naturalmente ao bem principal (p.


ex.: árvores e frutos – ainda que venha a existir atividade humana volta- ATENÇÃo
da a melhoria ou aumento de produção).
A distinção entre os frutos
Civis: aqueles que aderem ao bem por determinação legal (abstra- percebidos e pendentes tem im-
ção jurídica), não dependendo de vinculação material (p. ex.: aluguel, portância na determinação dos
juros, dividendos, ônus reais em relação à coisa gravada etc.). efeitos da posse exercida sobre
Industriais: aqueles que aderem ao bem principal por força do en- o bem (Código Civil, arts. 1.214 a
genho humano (p. ex.: prédio erigido sobre um lote, um vestido cos- 1.216). O possuidor de boa-fé tem
turado com uso de um tecido, um desenho sobre a folha de papel, uma direito, enquanto ela durar, aos
frutos percebidos. Os frutos pen-
escultura desenvolvida a partir da argila etc.).
dentes ao tempo em que cessar a
Os bens acessórios também podem ser de diversas espécies: frutos,
boa-fé devem ser restituídos, de-
produtos, benfeitorias e pertenças. Vejamos, então, as regras aplicáveis a pois de deduzidas as despesas da
cada um desses bens acessórios: produção e custeio; devem ser
também restituídos os frutos colhi-
5.10.2.1. Fruto dos com antecipação.

Fruto é toda utilidade que um bem produz de forma periódica e cuja


percepção mantém intacta a substância do bem que a produziu. Embora
sejam bens acessórios, podem ser objeto de relação jurídica independen-
temente do bem principal. Em relação à sua natureza, os frutos podem
ser classificados em: naturais ou verdadeiros (p. ex.: frutas), civis (p. ex.:
aluguel) e industriais (p. ex.: canetas fabricadas). Os frutos também po-
dem ser classificados de acordo com a vinculação com o bem principal e
o seu estado em:
Percebidos ou colhidos: aqueles que já foram colhidos, isto é, já fo-
ram destacados do bem principal. Se o fruto for natural ou industrial,
reputa-se colhido e percebido logo que é separado do bem principal. Se o
fruto for civil, reputa-se percebido dia por dia (Código Civil, art. 1.215).
Pendentes: aqueles que ainda estão unidos naturalmente ao bem
principal (p. ex.: uma fruta que está ligada à árvore que a produziu).
Percipiendos: aqueles que deveriam ter sido colhidos, mas não o
foram.
Estantes: são os frutos que já foram colhidos e encontram-se arma-
zenados ou acondicionados para venda.
Consumidos: são os frutos que não mais existem em razão de seu
destino normal (consumo), ou que pereceram.
Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos,
logo que são separados; os civis reputam-se percebidos dia por dia. O pos-
suidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem
como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em
que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e custeio.

5.10.2.2. Produtos
Embora seja comum a utilização das expressões frutos e produtos
como sinônimas, existe uma distinção entre os termos que deve ser ob-
servada. Enquanto os frutos são bens que se reproduzem periodicamente,

117
os produtos são bens que se retiram da coisa desfalcando a sua substância
ATENÇÃo e diminuindo a sua quantidade. As frutas colhidas de um pomar são
frutos, pois nascem e renascem de forma periódica. Os cereais colhidos
A classificação das benfeito-
rias em necessárias, úteis e volup-
de uma plantação de arroz, assim como os minerais extraídos de uma
tuárias tem importância no estudo jazida e o petróleo extraído de um poço, são produtos, por não se reno-
das consequências do exercício varem. Assim como os frutos, os produtos também pode ser objeto de
da posse sobre o bem (Código Ci- negócio jurídico autônomo.
vil, arts. 1.219 a 1.222). Carlos Roberto Gonçalves compreende que os minerais foram
transformados em bens principais em razão do art. 176 da Constituição
Federal, que dispõe que as jazidas pertencem à União, constituindo pro-
priedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamen-
to industrial, sendo assegurada ao proprietário do solo participação nos
resultados da lavra.

5.10.2.3. Benfeitorias
Benfeitoria é toda espécie de despesa ou obra (melhoramento) reali-
zada em um bem, com o objetivo de evitar sua deterioração (benfeitoria
necessária), aumentar seu uso (benfeitoria útil), ou dar mais comodidade
(benfeitoria voluptuária). Os melhoramentos ou acréscimos sobrevindos
ao bem sem a intervenção do proprietário, possuidor ou detentor, não
devem ser considerados como benfeitorias (Código Civil, art. 97).
Assim, não são consideradas benfeitorias as acessões naturais, isto
é, as melhorias e acréscimos produzidos pela natureza (p. ex.: alusão,
aluvião etc.). Também não são benfeitorias as acessões artificiais, isto é,
as obras que criam uma coisa nova que adere a outra já existente (p. ex.:
a construção de uma casa, uma plantação etc.). A benfeitoria não cria
uma coisa nova, apenas incrementa. É por essa razão que a pintura em
relação à tela e a escultura em relação à matéria-prima não podem ser
consideradas benfeitorias.
Sobre o tema preparamos o seguinte quadro comparativo:

OBJETIVO CONSEQUÊNCIAS
Conservar a coisa ou evitar O possuidor de boa-fé tem
que se deteriore (p. ex.: con- direito à indenização e à
BENFEITORIAS
serto de telhado, porta, enca- retenção. O de má-fé tem
NECESSÁRIAS
namento, muro etc.). direito à indenização, mas
não à retenção.
Aumentar ou facilitar o uso O possuidor de boa-fé tem
da coisa (p. ex.: construção direito à indenização e re-
BENFEITORIAS
de um quarto ou garagem, tenção. O de má-fé não tem
ÚTEIS
ampliação de um galpão direito à indenização (não
etc.). tem direito a nada).
Deleite ou recreio. Tornar o O possuidor de boa-fé não
uso da coisa mais agradável e tem direito a cobrar indeni-
cômoda (p. ex.: piscina, sau- zação. Se esta não for paga
BENFEITORIAS na, churrasqueira em uma espontaneamente, poderá
VOLUPTUÁRIAS casa, decoração luxuosa ou levantar (retirar) a benfei-
pintura). toria. O de má-fé não tem
direito à indenização (não
tem direito a nada).

118
Direito Civil

Valor da indenização: se o possuidor for de boa-fé, o reivindican-


te será obrigado a indenizar as benfeitorias pelo valor atual delas. Se o
imPorTANTE
possuidor for de má-fé, o reivindicante tem o direito de optar entre o
A distinção entre as benfeito-
seu valor atual e o de seu custo (Código Civil, art. 1.222). Em ambas rias necessárias, úteis e voluptuá-
as hipóteses, as benfeitorias podem ser compensadas com os danos e rias também tem importância no
só obrigam ao ressarcimento se ao tempo da evicção ainda existirem estudo do Direito das Obrigações
(art. 1.221). (Código Civil, arts. 453, 578 e 878),
do condomínio (art. 1.322), do Di-
5.10.2.4. Pertenças reito de Família (art. 1.660, IV), do
Direito das Sucessões (art. 2.004, §
Pertenças são os bens que, não constituindo partes integrantes, des- 2º), da Locação de imóveis urba-
tinam-se, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento nos (Lei n. 8.245/91, arts. 35 e 36).
de outro (p. ex.: trator em uma fazenda, cama, mesa ou armários de uma
casa, o ar-condicionado de uma loja etc.). Em regra, são bens móveis
que servem a um imóvel, mas, excepcionalmente, um bem imóvel tam-
bém pode ser pertença. São consideradas coisas anexadas (res annexa)
ao bem principal, embora não o integrem.
Conforme prescreve o art. 94 do Código Civil, os negócios jurídicos
que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo
se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade ou das circun-
stâncias do caso.

CLASSifiCAÇÃo DoS BENS DE


5.11 ACorDo Com A TiTuLAriDADE

O Código Civil realiza a classificação dos bens públicos e particu-


lares utilizando o critério da titularidade em razão de sua simplicidade.
Todavia, a doutrina é unânime em criticar a permanência dessa classi-
ficação no Código Civil de 2002, principalmente na parte em que dis-
ciplina o regime dos bens públicos, por se tratar de matéria estranha
ao Direito Civil (é matéria de Direito Constitucional e Administrativo).
Em que pese a crítica doutrinária, traçaremos algumas linhas sobre o
assunto.
Além dos bens particulares e públicos, existem aqueles que não per-
tencem a ninguém, por nunca terem sido apropriados (res nullius) ou por
terem sido abandonados (res derelictae). Exemplos: animais selvagens,
conchas na praia, águas pluviais não captadas etc. Devemos lembrar que
os bens imóveis nunca serão res nullius, pois, se forem abandonados,
serão arrecadados como bens vagos e incorporados ao patrimônio do
Município ou do Distrito Federal.

5.11.1. Bens particulares


O conceito de bens particulares é extraído por exclusão do conceito
de bens públicos, tendo em vista que o Código Civil de 2002 limitou-se a
definir apenas estes últimos. Assim, são bens particulares todos aqueles

119
que não forem públicos, isto é, que não pertencerem às pessoas jurídicas
voCABuLário de direito público interno.
bens afetados: bens públicos
sendo utilizados para determi- 5.11.2. Bens públicos
nado fim, não podendo ser alie-
São públicos os bens de domínio nacional, pertencentes às pes-
nados enquanto se mantenha
soas jurídicas de direito público interno, como os de propriedade da
tal situação.
União, Estados e Municípios. Os bens públicos podem ser classificados
em três tipos:
Bens públicos de uso comum do povo: aqueles bens que, embora
pertencentes a uma pessoa jurídica de direito público, podem ser uti-
lizados por qualquer pessoa do povo. O domínio é da entidade de direito
público e o uso é do povo (p. ex.: mares, rios, estradas, ruas, praças etc.).
Importante ressaltar que os bens públicos não perdem a sua característi-
ca ainda que a administração pública limite ou suspenda o seu uso ou
imponha o pagamento de retribuição (p. ex.: cobrança de pedágio etc.),
conforme previsão do art. 103 do Código Civil.
Bens públicos de uso especial são os bens que as pessoas jurídicas
de direito público interno destinam aos seus serviços ou outros fins de-
terminados. Como exemplos, podem ser citados os imóveis onde estão
instalados prefeituras, escolas, creches, hospitais, quartéis, museus e te-
atros públicos e os móveis utilizados na realização dos serviços públicos
(radar, caneta, computador etc.). De acordo com o Código Civil, abran-
gem não só aqueles destinados a serviço ou estabelecimento da adminis-
tração federal, estadual, territorial ou municipal, como também os de
suas autarquias (art. 99, II).
Bens públicos dominicais: também conhecidos como patrimo-
niais, são aqueles que compõem o patrimônio das pessoas jurídicas de
direito público interno, como objeto de direito pessoal ou real, de cada
uma dessas entidades (Código Civil, art. 99, III). Não dispondo a lei
em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pes-
soas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito
privado. Admite-se, assim, que a lei instituidora dessas pessoas jurídicas
qualifique seus bens como públicos ou particulares. Os bens dominicais
consideram-se desafetados, enquanto os de uso comum e os de uso es-
pecial são bens afetados.

5.11.2.1. Características dos bens públicos


a) Inalienabilidade: é uma característica dos bens afetados, logo os
bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inaliená-
veis, enquanto conservarem a sua qualificação (Código Civil, art. 100).
Por outro lado, os bens públicos desafetados, também denominados
como bens dominicais, podem ser alienados (art. 101), observadas as
exigências da lei: em regra, deve haver prévia avaliação e a alienação deve
ser realizada mediante licitação (Lei n. 8.666/93, arts. 17 e 19). Deve ser
lembrado que os bens públicos afetados podem ser desafetados mediante

120
Direito Civil

disposição expressa de lei ordinária. No que diz respeito às terras indíge-


nas, o art. 231, § 4º, da Constituição Federal impõe a inalienabilidade e a
JuriSPruDÊNCiA
indisponibilidade.
SÚmuLA 340 do STf: desde a
b) Imprescritibilidade: são imprescritíveis as pretensões da admi-
vigência do Código Civil (1916),
nistração pública com relação aos bens públicos. Como efeito da im- os bens dominicais, como os de-
prescritibilidade, os bens públicos também não podem ser adquiridos por mais bens públicos, não podem
usucapião. Embora os bens desafetados possam ser alienados, o Código ser adquiridos por usucapião.
Civil de 2002, em consonância com os arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo
único, da Constituição Federal, dispôs que os bens públicos (afetados ou
desafetados) não estão sujeitos a usucapião (art. 102). Essa proibição se voCABuLário
justifica pelo descaso da administração pública na conservação de seu
patrimônio. Todavia, alguns autores ainda defendem a possibilidade de indisponibilidade: impossibilida-
de da pessoa usar de manei-
usucapião de bens dominicais, sobretudo de terras devolutas (terras que
ra completamente ilimitada
não pertencem a particulares e não estão sendo destinadas a qualquer
ou de dispor (vender, alugar,
uso público).
transferir, emprestar a terceiros)
c) Impenhorabilidade: a impenhorabilidade dos bens públicos algum objeto ou algum direito
decorre de sua inalienabilidade. Desta forma, os bens públicos não po- que lhe pertence.
dem ser dados em garantia e não podem ser objeto de execução judicial
imprescritibilidade: impossibili-
(adjudicação ou arrematação). dade de um direito prescrever,
ou seja, de seu titular (proprietá-
rio desse direito) perder o direi-
to de ação. Também se aplica
a crimes que não prescrevem
(não deixam de ser penaliza-
dos por decurso do prazo para
a propositura da ação penal).
bens desafetados: bens públi-
cos sem utilização, podendo
ser alienados enquanto assim
se encontrarem. O mesmo que
bens dominicais.
impenhorabilidade: impossibi-
lidade de ser dado como ga-
rantia de uma dívida, apreen-
dido, executado, confiscado.

121
122
6 Dos fatos Jurídicos
voCABuLário 6.1. fATo JurÍDiCo
irrelevante: sem importância,
cuja existência ou opinião é in- A distinção entre os fatos jurídicos e os fatos não jurídicos é razão
diferente para os demais. de controvérsia entre os autores. Para alguns, fato jurídico (lato sensu) é
todo fato que produz efeitos jurídicos, seja pela criação, modificação,
extinção ou conservação de direitos e deveres. Para outros, fato jurídico
é aquele que estabelece uma relação jurídica. Não é necessária a efetiva
AuTor
produção de efeitos jurídicos, bastando que o fato seja capaz de produ-
Um dos maio- zir efeitos jurídicos. Assim, a incidência de regras jurídicas sobre um
res juristas brasi- determinado evento já seria suficiente para caracterização dele como
leiros, natural de um fato jurídico.
Alagoas, francisco Essa segunda posição, defendida por Pontes de Miranda, apresenta
Cavalcanti Pontes perfeita compatibilidade com a teoria que desenvolveu, distinguindo os
de miranda (1892-
planos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico, como vere-
1979) escreveu uma obra vastíssi-
mos mais adiante.
ma sobre os mais variados temas,
entre eles o direito privado. A par- De outro lado, o fato não jurídico, também conhecido como fato
tir da influência alemã e do diá- material ou fato ajurídico, é definido como aquele irrelevante para o
logo com outras ciências, como, Direito, por não acarretar consequências jurídicas. Portanto, para deter-
por exemplo, a Física Clássica, minar se o fato é jurídico, ou não, deve ser observado se este tem impor-
aproximou vários ramos do nosso tância para o Direito. Assim, um simples evento como a chuva pode ou
Direito a conceitos completamen- não ser um fato jurídico.
te inéditos no estudo da disciplina
Definido o que é um fato jurídico, resta observar que este comporta
até então.
algumas classificações. De acordo com a função na relação jurídica, os
fatos jurídicos podem ser classificados em: a) constitutivos: são os fatos
que criam uma relação jurídica; b) extintivos: os fatos que põem fim
a uma relação jurídica; ou c) modificativos: aqueles que alteram uma
relação jurídica já existente.
Todavia, a principal classificação dos fatos jurídicos continua sendo
a que leva em consideração a natureza do fato, isto é, se o evento foi um
fato humano (p. ex.: a celebração de um contrato) ou um fato da natu-
reza (p. ex.: a aluvião – forma de aquisição originária de propriedade
imóvel). Assim, o fato jurídico em sentido amplo (lato sensu) divide-se
em fato natural e fato humano.

6.2. fATo JurÍDiCo NATurAL

O fato jurídico natural, também conhecido como fato jurídico em


sentido estrito (stricto sensu), é todo evento capaz de provocar conse-
quências jurídicas que independem da vontade humana. Ressalte-se,
contudo, que o fato jurídico natural não é estranho aos seres humanos,
pois a eles interessam na qualidade de sujeitos de direitos.
Os fatos jurídicos naturais podem ser devidos em duas espécies: os
ordinários e os extraordinários:

124
Direito Civil

6.2.1. fato jurídico natural ordinário


ComENTário
Considera-se fato jurídico natural ordinário todo fato comum da
A prescrição e a decadên-
vida que tem importância para o Direito. Como exemplos, podemos ci-
cia serão objetos de estudo mais
tar: a concepção e o nascimento, que determinam o início da personali-
adiante. Esses institutos estão dis-
dade jurídica; a morte, que põe fim à mesma personalidade; a maiorida- ciplinados nos artigos 189 a 211
de, que confere à pessoa capacidade civil plena. do Código Civil.
Da mesma forma, podemos considerar a prescrição e a decadência
como exemplos de fatos jurídicos naturais ordinários, pois o simples de-
curso do tempo produz consequências jurídicas: a prescrição extingue a CurioSiDADE
pretensão, e a decadência extingue o direito.
O STJ analisa, caso a caso, se
é a força maior ou o caso fortui-
6.2.2. fato jurídico natural extraordinário to que está na raiz dos acidentes
que geram a maioria dos pedidos
Os fatos jurídicos naturais extraordinários são os fatos incomuns
de indenização.
da vida, isto é, os fatos do acaso: caso fortuito e força maior. Questão
complexa é a distinção entre esses dois institutos. Tamanha é a confusão
entre eles que concordamos com os autores que defendem a ideia de que
ATENÇÃo
devem ser tratados como sinônimos.
Com efeito, não existe razão para promover a distinção entre eles Apesar da confusão que as
se a importância para o Direito é a mesma: tanto o caso fortuito como a expressões possam causar na prá-
força maior são excludentes de responsabilidade civil. Exemplos: raios, tica, especialmente por causa de
terremotos, tsunamis, tempestades etc. suas consequências serem idên-
ticas, alguns autores esforçam-se
por diferenciar os conceitos de
caso fortuito e de força maior. En-
6.3. fATo JurÍDiCo HumANo tre eles, Yussef Said Cahali afirma
que a força maior decorre de um
O fato jurídico humano, também conhecido como fato jurídico fato externo, estranho ao objeto
voluntário ou fato jurígeno, é toda conduta humana (comissiva ou do negócio, o caso fortuito pro-
vém do mau funcionamento des-
omissiva) que gera consequências jurídicas. É caracterizado, portanto,
se mesmo objeto. Por isso, é de-
pela presença da vontade humana (elemento volitivo). O fato jurídico
fensável a exclusão da responsa-
humano é classificado de acordo com a sua compatibilidade com o or-
bilidade no caso de força maior,
denamento jurídico em lícito e ilícito. subsistindo, entretanto, no caso
fortuito, por estar incluído este últi-
6.3.1. fato jurídico humano ilícito mo no risco assumido pelas partes
ao contratarem.
Também conhecido como ato ilícito, é todo comportamento hu-
mano contrário ao ordenamento jurídico: lei, moral, ordem pública e
bons costumes. No Direito Penal, a importância do ato ilícito está na ca- voCABuLário
racterização do crime e sua punição. No Direito Civil, a preocupação do
estudioso do Direito está na apuração da responsabilidade patrimonial conduta comissiva: ato de re-
pelos danos causados. alizar algo indevido, ter uma
ação efetiva.
A definição do ato ilícito civil está presente no art. 186 do Código
Civil, que dispõe: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negli- conduta omissiva: Não realiza-
gência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que ção de algo que era devido,
deixar de fazer uma ação de-
exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O dispositivo corresponde
terminada.
parcialmente ao art. 159 do Código Civil de 1916, mas substitui o ter-

125
mo “ou” por “e” (grifado acima), com o propósito de pôr fim à antiga
discussão doutrinária quanto ao conceito de ato ilícito. Discutia-se se o
dano era um requisito necessário à caracterização do ato ilícito.
O legislador do Código Civil de 2002 inovou, igualmente, ao intro-
duzir o conceito de abuso de direito no art. 187: “também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes”.
O abuso de direito é uma espécie de ato ilícito, mas não se confunde
com o ato ilícito previsto no art. 186. O ato ilícito previsto no art. 186
é duplamente ilícito: ilícito em seu conteúdo (viola direito) e em sua
consequência (causa dano a outrem). Por sua vez, o abuso de direito é
parcialmente ilícito: é lícito em seu conteúdo (há um direito legítimo),
mas ilícito em suas consequências (causa dano a outrem).
Nos termos do art. 188 do Código Civil, não constituem atos ilíci-
tos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido; e II – a deterioração ou destruição da coisa alheia,
ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. No caso do inciso
II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem ab-
solutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para
a remoção do perigo.
O estudo aprofundado do ato ilícito e dos arts. 186 a 188 do Código
Civil é objeto de outra parte do Direito Civil, a da chamada Responsa-
bilidade Civil.

6.3.2. fato jurídico humano lícito


Fato jurídico humano lícito ou ato jurídico em sentido amplo (lato
sensu) é toda ação humana (manifestação de vontade) que, estando de
ATENÇÃo acordo com o ordenamento, é capaz de produzir efeitos na órbita ju-
rídica. Devemos destacar que há quem entenda que o ato jurídico em
Ato jurídico stricto sensu - efei- sentido amplo pode ser lícito ou ilícito, mas de acordo com a doutrina
tos jurídicos não decorrem de ma- majoritária só pode ser lícito.
nifestação da vontade, mas dire-
O ato jurídico em sentido amplo pode ser dividido em três espécies:
tamente da lei.
ato jurídico stricto sensu, negócio jurídico e ato-fato jurídico.
Classificação: 1. atos materiais:
mera atuação da vontade (ex.:
ocupação, achado de tesouro, es- 6.3.2.1. Ato jurídico “stricto sensu”
pecificação); 2. participações: de-
O ato jurídico em sentido estrito (stricto sensu) é todo comporta-
clarações para ciência ou comuni-
mento humano lícito capaz de gerar consequências jurídicas impostas
cação de intenções ou tratos (ex.:
por lei. Na verdade, tanto o conteúdo do ato como as suas consequências
intimação, interpelação).
estão predeterminados na lei. No ato jurídico stricto sensu, a vontade hu-
mana não tem o condão de determinar ou modificar os efeitos previstos
voCABuLário na lei, daí a afirmação de que sua eficácia é ex lege (por força da lei).
Como exemplos de atos jurídicos stricto sensu, podemos citar a per-
perfi lhação: reconhecimento
filhação, a notificação para constituição em mora, a fixação de domicílio
voluntário de filho/a.
voluntário e o pagamento.

126
Direito Civil

6.3.2.2. Negócio jurídico


CiNEmATECA
Negócio jurídico é todo comportamento humano lícito capaz de
gerar consequências jurídicas permitidas pela lei e desejadas pela pes- Para refletir
soa. Tanto o conteúdo do negócio como os seus efeitos são determinados acerca dos com-
portamentos hu-
pela vontade das partes, gozando, portanto, de eficácia ex voluntate.
manos e das suas
É justamente no negócio jurídico que a autonomia privada se
consequências ju-
manifesta em sua plenitude, criando um instituto jurídico próprio rídicas, sugere-se o
voltado à composição do interesse das partes, que buscam alcançar um filme "O Presente".
objetivo (finalidade) permitido pela lei. Como exemplos de negócios Ano de lançamento: 2006. Dire-
jurídicos, podemos citar os contratos, a promessa de recompensa, o ção: Michael O. Sajbel.
testamento etc.

6.3.2.3. Ato-fato jurídico BiBLioTECA


O ato-fato jurídico é uma espécie de fato jurídico qualificado pela
conduta humana sem se levar em consideração a vontade de praticar MELLO, Marcos Bernardes.
Teoria do fato jurídico. Plano da
o ato ou não. Em outras palavras, no ato-fato jurídico não importa a
eficácia. 9. ed. São Paulo: Saraiva,
intenção da pessoa que realizou o ato (se houve, ou não, vontade de pra-
2014.
ticá-lo), tendo relevância apenas os efeitos que o ato produziu.
MELLO, Marcos Bernardes.
Assim como no Código Civil de 1916, no Código Civil de 2002 Teoria do fato jurídico. Plano da
não há regramento específico sobre o ato-fato jurídico, mas podem ser existência. 20. ed. São Paulo: Sa-
encontrados exemplos como a caça, a pesca, a comissão, o achado do raiva, 2014.
tesouro, a especificação etc. Procurando facilitar a compreensão do ins-
tituto, podemos imaginar uma criança de 10 anos de idade que pescou
um peixe no mar. Ela será a dona do peixe, não tendo qualquer relevân-
cia o fato de ser absolutamente incapaz.

127
128
7 Dos Negócios Jurídicos
BiBLioTECA 7.1 TEoriA GErAL Do NEGÓCio JurÍDiCo

AZEVEDO, Antonio Junqueira


De todas as espécies de atos jurídicos, o mais importante é o negó-
de. Negócio Jurídico – Existência,
cio jurídico. Essa importância resta evidente da análise do Código Civil
Validade e Eficácia. 4. ed. São
de 2002, que na parte geral dedicou os arts. 104 a 184 para tratar do
Paulo: Saraiva, 2002.
negócio jurídico. Aos demais atos jurídicos reservou apenas o art. 185
do Código Civil, dispondo que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam
negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título
JuriSPruDÊNCiA anterior” (o título anterior é o que trata do negócio jurídico). Vejamos
então as principais regras envolvendo o negócio jurídico.
uNiLATErAL
DIREITO CIVIL E SUCESSÓ-
RIO. APLICAÇÃO DA ANALOGIA CLASSifiCAÇÕES Do NEGÓCio
COMO MÉTODO INTEGRATIVO. 7.2 JurÍDiCo
TESTAMENTO. VALIDADE. PARENTES
DE LEGATÁRIO QUE FIGURARAM
COMO TESTEMUNHAS DO ATO DE 7.2.1. Classifi cação quanto à manifestação de
DISPOSIÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO vontade
ARTIGO 1.650 DO CÓDIGO CIVIL.
(...) 2.o testamento é um negócio Unilaterais: são os negócios jurídicos formados pela declaração de
jurídico, unilateral, personalíssimo, vontade de apenas uma pessoa (p. ex.: testamento, renúncia de crédito,
solene, revogável, que possibilita promessa de recompensa). Subdividem-se em: a) receptícios: aqueles
à pessoa dispor de seus bens para em que a declaração de vontade deve ser levada ao conhecimento do
depois de sua morte. Justamente destinatário para que produza efeitos (p. ex.: promessa de recompensa);
por essas características, tanto se e b) não receptícios: aqueles em que o conhecimento do destinatário é
faz necessário observar o preen- irrelevante (p. ex.: testamento).
chimento de todos os seus requi- Bilaterais: aqueles em que há duas manifestações de vontade. Os
sitos egais para conceder-lhe va- contratos, por exemplo, exigem, ao menos, dois contratantes, duas ma-
lidade. (STJ, rEsp 176473-SP)
nifestações de vontade.
BiLATErAL
Plurilaterais: são os negócios jurídicos em que há mais de duas
TRIBUTÁRIO. CONTRATO DE pessoas com interesses coincidentes. Essa situação é comumente verifi-
CONCESSÃO DE USO. IPTU. INE-
cada em alguns contratos, como o de incorporação imobiliária.
XIGÊNCIA. 1. o contrato de con-
cessão de uso é negócio jurídico
bilateral de natureza pessoal. (STJ, 7.2.2. Classifi cação quanto às vantagens para
rEsp 681406-rJ) as partes
Gratuitos: são os negócios jurídicos representados por atos de liberali-
dade, isto é, atos que outorgam vantagens sem exigir uma contraprestação.
Exemplos: contrato de doação pura, contrato de comodato, testamento etc.
Onerosos: são aqueles negócios que envolvem sacrifícios e van-
tagens patrimoniais para todos os envolvidos. Exemplos: contrato de
compra e venda, contrato de locação etc.
Bifrontes: são os negócios jurídicos que, de acordo com a vontade
das partes, podem ser gratuitos ou onerosos. Exemplos: contrato de de-
pósito, contrato de mútuo, contrato de mandato etc.
Neutros: são aqueles que não podem ser enquadrados na categoria
de gratuitos nem de onerosos. Os negócios jurídicos neutros caracteri-

130
Direito Civil

zam-se pela ausência de atribuição patrimonial. Exemplos: instituição


de bem de família (Código Civil, arts. 1.711 a 1.722), cláusula de inalie-
voCABuLário
nabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade etc.
décuplo: dez vezes.

7.2.3. Classificação quanto ao momento da


produção dos efeitos
CiNEmATECA
Inter vivos: são os negócios jurídicos que têm por objetivo a pro-
dução de efeitos durante a vida dos participantes. Como exemplos de Para refletir
negócios inter vivos, podem ser citados os contratos, a promessa de re- sobre a promes-
compensa, o pacto antenupcial. Eventualmente, podem continuar pro- sa de recom-
duzindo efeitos após a morte, como ocorre com alguns contratos. pensa e a licitu-
Mortis causa: são aqueles que somente produzem efeitos após a de no negócio,
morte da pessoa que manifestou a vontade. A morte é considerada requi- sugere-se o filme
sito de eficácia do negócio jurídico. Exemplos: testamento e codicilo (ato "A Recompen-
simplificado de última vontade, para as disposições de pequena monta). sa". Ano de lan-
çamento: 2014. Direção: Richard
Shepard.
7.2.4. Classificação quanto à forma
Solenes ou formais: são os negócios jurídicos que devem seguir
uma solenidade ou formalidade imposta pela lei para que sejam válidos.
Há quem faça distinção entre os termos formalidade (exigência de for-
ma escrita) e solenidade (exigência de instrumento público). Quando
são requisitos de validade, diz-se que a solenidade ou a formalidade são
do tipo ad solemnitatem ou ad substantiam. A sua não observância de-
termina a nulidade do negócio jurídico, conforme previsão do art. 166
do Código Civil (p. ex.: testamentos, contrato de compra e venda ou
doação de imóvel com valor superior a trinta salários mínimos). Quan-
do são exigidas apenas para a prova do ato, são consideradas ad pro-
bationem tantum (o art. 227 do Código Civil determina que, salvo os
casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos
negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário
mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados).
Não solenes ou informais: são os negócios jurídicos que têm forma
livre. No Direito Civil, os negócios são, em regra, não solenes e informais.
Nesse sentido, o art. 107 do Código Civil dispõe que “a validade da de-
claração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a
lei expressamente a exigir”. Exemplo: os contratos de comodato (contrato
unilateral e gratuito, pelo qual alguém (comodante) entrega a outrem (co-
modatário) coisa infungível, para ser usada temporariamente e retituída
no tempo combinado) e de locação podem ser celebrados verbalmente.

7.2.5. Classificação quanto à independência ou


autonomia
Principais (ou independentes): são os negócios jurídicos que têm
existência própria, não dependendo de qualquer outro para que te-
nham validade ou eficácia. A locação é um exemplo clássico de con-
trato principal.

131
Acessórios (ou dependentes): são aqueles cuja existência está su-
voCABuLário bordinada a outro negócio jurídico. Exemplos: a cláusula penal e os con-
tratos de fiança, hipoteca, penhor e anticrese.
cláusula penal: consequência
negativa, prevista em contrato,
a ser sofrida pela parte que des- 7.2.6. Classifi cação quanto às condições
cumprir o que havia prometido. pessoais dos negociantes
fi ança: contrato pelo qual o fia- Impessoais: são os negócios jurídicos que independem da condi-
dor compromete-se a cumprir ção pessoal dos envolvidos. Se uma das partes não cumprir a obriga-
a obrigação prometida pelo
ção assumida, outra pessoa poderá cumpri-la. Essa situação é comum
devedor a um credor.
em diversos contratos: na compra e venda, por exemplo, havendo a
hipoteca: garantia real repre- morte de um dos contratantes, seus herdeiros são obrigados a cum-
sentada pela entrega ao cre- prir o contrato.
dor do próprio bem imóvel que
Pessoais: também conhecidos como personalíssimos ou intuitu
é objeto de uma dívida, no
personae, são os negócios jurídicos que dependem de condição pessoal
caso desta não ser paga.
dos negociantes, havendo obrigação infungível (insubstituível). Em caso
penhor: garantia real de pa- de morte, os herdeiros não são obrigados a cumprir o contrato (p. ex.:
gamento representada por um
contrato de prestação de serviço e contrato de fiança).
bem móvel (ex.: uma joia, um
equipamento, o salário de uma
pessoa) para o caso de deter- 7.2.7. Classifi cação quanto à causa
minada dívida não ser paga. determinante
anticrese: garantia real pela Causais (ou materiais): são os negócios jurídicos em que o motivo
qual o devedor entrega ao cre- consta expressamente do seu conteúdo. Exemplo: termo de separação
dor um bem imóvel para que os ou divórcio.
frutos provenientes deste amor-
Abstratos (ou formais): são aqueles em que a razão não está inse-
tizem uma determinada dívida.
rida no conteúdo. Exemplo: termo de transmissão da propriedade; sim-
comodato: empréstimo de um ples emissão de título de crédito etc.
bem infungível. Difere do mú-
tuo, que é o empréstimo de um
7.2.8. Classifi cação quanto ao momento da
bem fungível.
efi cácia
contrato estimatório: popular-
mente conhecido como “ven- Consensuais: são os negócios jurídicos que se consideram forma-
da em consignação”, é o ne- dos a partir do momento em que há acordo de vontades. Exemplo: com-
gócio pelo qual uma pessoa pra e venda pura.
entrega um bem à outra para Reais: são os negócios que somente se aperfeiçoam após a entrega
que esta o venda, restituindo do objeto. Exemplos: contrato de comodato, contrato de depósito e con-
o valor recebido ou o próprio trato estimatório.
bem ao final de um prazo de-
terminado. 7.2.9. Classifi cação quanto à extensão dos
efeitos
Constitutivos: são os negócios jurídicos que geram efeitos ex nunc
(não retroativos), a partir de sua celebração para o futuro. Em geral os
contratos têm eficácia constitutiva.
Declarativos: são aqueles que produzem efeitos ex tunc (retroa-
tivos), a partir do momento em que ocorreu o fato que constitui seu
objeto. Como exemplo de negócio declarativo, temos a partilha de bens
na sucessão de uma pessoa, que retroage ao momento da morte.

132
Direito Civil

iNTErPrETAÇÃo Do NEGÓCio voCABuLário


7.3 JurÍDiCo
liberalidade: concessão es-
pontânea e gratuita de algu-
Assim como as leis, os contratos também devem ser interpreta- ma vantagem, bem ou direito.
dos para que possam ser cumpridos corretamente, afinal ambos criam
normas jurídicas. As leis criam normas jurídicas gerais e os contratos
criam normas jurídicas individuais, que devem ser observadas pelos
contratantes.
Interpretar é buscar o sentido e o alcance das normas ou, no caso,
das cláusulas contratuais. Trata-se de tarefa indispensável para identifi-
car a real vontade dos contratantes, que muitas vezes está escondida na
redação de cláusulas confusas, ambíguas, complexas etc. É por essa razão
que o art. 112 do Código Civil determina que “nas declarações de vonta-
de se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido
literal da linguagem”.
A redação do dispositivo exige cautela: a intenção que deve ser ob-
servada não é aquela presente na mente do contratante no momento
em que celebrou o contrato, mas aquela manifesta no contrato. Por essa
razão, a norma utiliza o termo “consubstanciada” em vez de “imaginada”.
Na sequência, o art. 113 do Código Civil declara que “os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
de sua celebração”. Esse dispositivo é considerado como um dos mais
importantes do Código Civil de 2002 por Miguel Reale. Ao dispor que
deve ser observada a boa-fé (objetiva) e também os usos do lugar de sua
celebração (costumes), a norma permite que o intérprete aplique a teo-
ria tridimensional do direito, conjugando os valores ao lado do fato e
da norma para definir o direito no caso concreto.
Conforme o Enunciado 409 da V Jornada de Direito Civil do Con-
selho da Justiça Federal, “os negócios jurídicos devem ser interpretados
não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas tam-
bém de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes”.
Por fim, o art. 114 determina que “os negócios jurídicos benéficos e
a renúncia interpretam-se estritamente”. Os negócios benéficos, também
denominados gratuitos, são aqueles em que uma das partes pratica uma
liberalidade a favor de outra pessoa sem que exista uma contraprestação
(p. ex.: doação pura). A renúncia consiste na manifestação de vontade
de abdicar, independentemente de motivo, de um direito titularizado.
Como não existem vantagens ou contraprestações para quem prati-
ca ato benéfico e para quem renuncia a direitos, a lógica impõe que esses
atos sejam interpretados restritivamente. Em outras palavras, na dúvida,
tais atos devem ser interpretados a favor de quem praticou a liberalida-
de, e não de quem foi beneficiado por ela.
Na Parte Especial do Código Civil de 2002 ainda podem ser encon-
tradas outras normas restringindo a interpretação de negócios jurídicos:
a) art. 423: “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas

133
ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao
rEfLEXÃo aderente”; b) art. 819: “a fiança dar-se-á por escrito, e não admite in-
terpretação extensiva”; c) art. 843: “a transação interpreta-se restritiva-
É válido o negócio que ocor- mente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem
re no filme “Proposta indecente”? direitos”; e d) art. 1.899: “quando a cláusula testamentária for suscetível
Ano de lançamento: 1993. Dire- de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a obser-
ção: Adrian Lyne. Cumprimento
vância da vontade do testador”.
ou não cumprimento poderiam
ensejar alguma medida judicial?

ELEmENToS CoNSTiTuTivoS Do
7.4 NEGÓCio JurÍDiCo

Desde o direito romano o negócio jurídico é estudado a partir da


análise de três elementos: os elementos essenciais (essentialia negotii), os
elementos naturais (naturalia negotii) e os elementos acidentais (aciden-
talia negotii).
Os elementos essenciais são aqueles que conferem a estrutura do
negócio jurídico. São os requisitos indispensáveis à existência e à vali-
dade do negócio celebrado. Os elementos essenciais podem ser dividi-
dos em gerais e especiais. Gerais são os elementos mínimos exigidos em
todos os negócios jurídicos (p. ex.: objeto lícito) e correspondem aos
requisitos que compõem os planos de existência e validade na teoria de
Pontes de Miranda, como veremos adiante. Especiais são aqueles exigi-
dos somente para determinados negócios (p. ex.: na compra e venda são
elementos essenciais a coisa, o preço e o consentimento).
Os elementos naturais são as regras comuns a determinados negó-
cios jurídicos, sem que seja necessária sua previsão expressa no contrato.
Da própria natureza do negócio celebrado, podem ser extraídas algumas
consequências determinadas pela lei. Como exemplo de elemento na-
tural, podemos citar a responsabilidade pelo vício redibitório (prevista
nos arts. 441 e seguintes do Código Civil) nos contratos comutativos (p.
ex.: contratos de compra e venda).
Elementos acidentais são cláusulas que as partes podem inserir nos
negócios jurídicos com o objetivo de alterar a sua eficácia natural. Nor-
malmente, o negócio jurídico produz efeitos imediatamente após a sua
formação. Então, quando as partes desejam postergar o início da pro-
dução dos efeitos ou determinar o momento em que cessarão os efeitos
de um negócio, podem (porque se trata de uma faculdade) inserir um
elemento acidental. Como exemplos destes, temos a condição, o termo e
o modo/encargo, que serão analisados mais adiante.

7.5 PLANoS Do NEGÓCio JurÍDiCo

Com base no direito romano e no direito alemão, Pontes de Mi-


randa dividiu o estudo do negócio jurídico em três planos distintos:

134
Direito Civil

existência, validade e eficácia. Muitas vezes, esses termos são utilizados


pelos estudiosos do Direito como sinônimos, mas não podem ser con-
ComENTário
fundidos. Cada um desses planos possui significado distinto e elementos
Contudo, em nosso país, a
específicos a ser analisados. E, seguindo as lições de Giselda Hironaka, união estável e o casamento en-
podemos visualizar o estudo dos planos do negócio jurídico como se tre pessoas do mesmo sexo são
estes formassem uma escada: admitidos desde 2012, a partir de
julgamentos do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de
Justiça. São negócios existentes,
válidos e eficazes desde que res-
peitadas as demais regras aplicá-
veis aos institutos.

A ideia de visualizar os planos no formato de uma escada facilita


muito a compreensão da matéria. Assim como subimos uma escada de-
grau por degrau, devemos estudar o negócio jurídico plano por plano.
Se não forem preenchidos os requisitos de existência, o negócio jurídico
será inexistente. Se não forem preenchidos os requisitos de validade,
o negócio será inválido, podendo ser nulo ou anulável, a depender da
situação específica. E se não forem preenchidos os requisitos de eficácia,
o negócio será ineficaz.
Antes de proceder à análise de cada um desses planos, devemos
alertar que o legislador do Código Civil de 2002 não adotou integral-
mente a teoria de Pontes de Miranda, pois referiu-se apenas à validade e
à eficácia dos negócios jurídicos, deixando de fora o plano de existência.

7.5.1. Plano de existência


O plano de existência compreende os elementos mais básicos do
negócio jurídico: agente, objeto, vontade e forma. Esses elementos (subs-
tantivos) serão adjetivados (ou seja, têm suas qualidades examinadas)
somente no plano de validade. No plano de existência exige-se apenas
que o negócio contenha esses elementos e, caso não estejam presentes, o
negócio jurídico deverá ser considerado inexistente. Se necessário, pode-
rá ser proposta ação declaratória de inexistência.
A teoria dos atos inexistentes foi construída na França para justifi-
car a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entendia-se
que a diferença de sexo seria um requisito tão essencial para o casamento
que, se não fosse verificada, não existiria casamento.

7.5.2. Plano de validade


O plano de validade é a continuação do plano de existência, pois,
a partir dos elementos do negócio, impõe a análise dos seus requisitos.
Indaga-se, desta forma, o que cada um dos elementos do negócio deve
conter para que seja válido: os requisitos são as qualidades dos elementos.

135
O art. 104 do Código Civil inaugura o estudo do negócio jurídico,
dispondo que a validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma
prescrita ou não defesa em lei.
Procederemos à análise dos requisitos existentes na lei inserindo
outros de natureza doutrinária, com o propósito de acrescentar novos
elementos ao exame da matéria.

7.5.2.1. Partes
Para que o negócio jurídico exista, vimos que deve conter agente
(parte, sujeito etc.) e, para que seja válido, o agente deve ser capaz e
legitimado. A capacidade exigida é, em princípio, a plena, que decorre
das somas da capacidade de direito/gozo (que todas as pessoas têm) com
a capacidade de fato/exercício/ação (que decorre do discernimento e é
normalmente adquirida com a maioridade).
Se o agente for incapaz, também poderá ser praticado o ato desde
que suprida a incapacidade. Os absolutamente incapazes (rol do art. 3º
do Código Civil) devem ser representados nos atos da vida civil, sob
pena de nulidade; o negócio será considerado nulo e deverá ser pro-
posta ação declaratória de nulidade. Os relativamente incapazes (rol do
art. 4º) devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabi-
lidade: o negócio será anulável (ou seja, poderá ou não ser considerado
nulo), devendo ser proposta ação anulatória.
Em situações excepcionais, a lei confere capacidade civil plena a
quem não completou a idade mínima para a prática de certos negócios
jurídicos. Exemplo: no contrato de mandato, o maior de dezesseis e me-
nor de dezoito anos não emancipado pode ser mandatário (Código Ci-
vil, art. 666). Também com dezesseis anos de idade é possível casar com
autorização dos pais (art. 1.517) e realizar testamento sem assistência,
mesmo não estando emancipado (art. 1.860, parágrafo único).
Embora o art. 104 do Código Civil mencione apenas a capacidade
do agente, a legitimidade também dever ser verificada para que o negó-
cio seja válido. A legitimidade é uma capacidade especial exigida para a
prática de certos negócios jurídicos. Exemplificando: uma pessoa maior
de dezoito anos tem capacidade para celebrar contratos de compra e
venda de imóvel. Mas, se for casada, dependerá, em regra, de autorização
do outro cônjuge – exemplo de legitimidade.

7.5.2.2. Objeto
Todo negócio jurídico possui um objeto, seja ele material ou imate-
rial, fungível ou infungível, com conteúdo econômico ou não. Para que
o negócio seja válido, exige-se apenas que o objeto seja lícito, possível,
determinado ou determinável. Se o objeto for ilícito, impossível ou in-
determinado, o negócio será considerado nulo, devendo ser proposta
ação declaratória de nulidade.

136
Direito Civil

Objeto lícito é aquele que está de acordo com o ordenamento jurí-


dico, pois não ofende a lei, a moral, a ordem pública e os bons costumes.
voCABuLário
O negócio que tem objeto ilícito, além de ser nulo, pode gerar outras dolo recíproco ou bilateral:
consequências, como a propositura de ação de reparação de danos. Tam- dolo simultâneo de ambas as
bém permite a aplicação do princípio geral de direito pelo qual ninguém partes envolvidas num negócio
pode se valer da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem de forma que nenhuma delas
allegans), proibindo, por exemplo, a alegação do dolo recíproco ou bila- poderá alegá-lo, com o objeti-
teral (Código Civil, art. 150), e o pedido de repetição de pagamento feito vo de anulá-lo ou de reclamar
para obter fim ilícito ou imoral (art. 883). indenização.

Objeto possível é aquele que pode ser realizado do ponto de vista


físico e jurídico. A possibilidade física é examinada sob a luz das leis da
natureza. Somente a impossibilidade física absoluta (aquela que atinge a
todas as pessoas no universo) determina a nulidade do negócio. Exem-
plos: construir uma ponte ligando a Terra à lua; colocar toda a água do
rio São Francisco em um copo etc.
Se a impossibilidade for relativa (atingir o devedor, mas não outras
pessoas), em princípio o negócio será válido. Conforme o art. 106 do
Código Civil, a impossibilidade inicial do objeto não invalida o negócio
jurídico se for relativa, ou se cessar antes de realizada a condição a que
ele estiver subordinado. Se a impossibilidade não cessar até o momento
do cumprimento da obrigação ou até o implemento da condição, o ne-
gócio será nulo.
Além da possibilidade física, alguns autores também se referem à
possibilidade jurídica como um requisito de validade do negócio. O ob-
jeto possível juridicamente é aquele que não está proibido pelo ordena-
mento jurídico. Como exemplo de objeto impossível juridicamente po-
demos citar a proibição de contratar tendo por objeto herança de pessoa
viva (Código Civil, art. 426). Todavia, entendemos que a impossibilidade
jurídica está compreendida na noção de licitude, estudada acima.
Objeto determinado é aquele que está individualizado no negócio
jurídico. No estudo das obrigações o objeto determinado é o conteúdo
da obrigação de dar coisa certa (Código Civil, art. 232). Objeto determi-
nável é aquele que será individualizado no futuro, contendo, de início,
ao menos a indicação do gênero e da qualidade. No direito das obri-
gações o objeto determinável é o conteúdo da obrigação de dar coisa
incerta (art. 243). Se faltar a indicação do gênero ou da quantidade, a
obrigação e o negócio jurídico serão nulos.

7.5.2.3. Forma
A forma é o meio pelo qual se revela a manifestação de vontade do
agente. Para que o negócio jurídico seja válido, a forma deve ser aquela
prescrita ou não defesa (não proibida) em lei. Contudo, no Direito Civil,
a regra é a forma livre e somente em situações excepcionais é exigida for-
malidade (forma escrita) ou solenidade (instrumento público). De acordo
com o art. 107 do Código Civil, a validade da declaração de vontade não
dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.

137
Diversamente, será nulo o negócio jurídico que não revestir a for-
ma prescrita em lei ou se for preterida alguma solenidade que a lei con-
sidere essencial para a sua validade (Código Civil, art. 166, IV e V). Não
dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade
dos negócios jurídicos que visem constituição, transferência, modifica-
ção ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no país (art. 108).
De acordo com o Enunciado 289 da IV Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal, “o valor de 30 salários mínimos constante
no art. 108 do Código Civil brasileiro, em referência à forma pública ou
particular dos negócios jurídicos que envolvam bens imóveis, é o atribu-
ído pelas partes contratantes e não qualquer outro valor arbitrado pela
Administração Pública com finalidade tributária”.
Algumas vezes as próprias partes podem determinar que o negócio
só será válido se for observada determinada forma. É o que se denomina
forma contratual e está prevista no art. 109 do Código Civil: “no ne-
gócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento
público, este é da substância do ato”.
A forma também pode ser classificada em ad solemnitatem e ad pro-
bationem, como vimos ao estudar as classificações do negócio jurídico.
A forma ad solemnitatem, também conhecida como ad substantiam, é
aquela exigida como requisito de validade do negócio (p. ex.: Código
Civil, arts. 166, 108 e 109). A forma ad probationem tantum é aquela
exigida para a prova do ato em juízo (p. ex.: arts. 227 e 1.536).

7.5.2.4. Vontade
O negócio jurídico é uma manifestação de vontade que está de
acordo com o ordenamento jurídico e produz efeitos desejados pelo
agente. Entretanto, para que o negócio seja válido, a vontade deve ser
manifestada de forma livre.
Vontade livre é aquela manifestada de forma consciente e sem
qualquer um dos defeitos ou vícios do negócio jurídico: erro, dolo, coa-
ção, estado de perigo, lesão, fraude contra credores e simulação. Os cinco
primeiros são denominados vícios da vontade ou do consentimento e
contaminam a formação da vontade. Os dois últimos são denominados
vícios sociais e contaminam a manifestação da vontade. O estudo dos
vícios do negócio jurídico será realizado em capítulo próprio, adiante.
Devemos lembrar que o silêncio importa anuência (concordância),
quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária
a declaração de vontade expressa (Código Civil, art. 111). Portanto, não
se pode afirmar que o direito tenha acolhido por completo o ditado po-
pular “quem cala, consente”.

7.5.2.4.1. Reserva mental


De acordo com o art. 110 do Código Civil, “a manifestação de von-
tade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não

138
Direito Civil

querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimen-


voCABuLário
to”. A reserva mental é a emissão de uma vontade não desejada em seu
conteúdo nem em suas consequências. múnus: encargo, função que
Quando o negócio jurídico é celebrado sem que a outra parte tenha compreende a outorga de pode-
conhecimento da reserva mental do agente, o negócio será válido. Com res e deveres a quem a recebe.
efeito, nesta hipótese a reserva mental será irrelevante para o direito,
subsistindo a vontade declarada no negócio. Contudo, se a outra parte
tiver conhecimento da reserva mental, o negócio não subsistirá.
Não é simples, entretanto, determinar exatamente qual a conse-
quência que atingirá o negócio quando a reserva mental é conhecida
da outra parte. Alguns autores, como Moreira Alves, defendem que não
existirá a declaração de vontade, logo o negócio não será formado (plano
de existência). Contudo, vimos que o Código Civil de 2002 não adotou o
plano de existência do negócio. Parece-nos, então, que a melhor solução
na hipótese seria apontar a nulidade do negócio jurídico.

7.5.2.4.2. Representação
Representação é a legitimidade conferida a uma pessoa para prati-
car atos em nome de outra. A pessoa que atua é denominada represen-
tante e a pessoa em nome de quem são praticados atos é denominada
representado. Os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo
interessado.
A representação legal é aquela conferida pela lei aos pais, tutores,
curadores, síndicos, administradores etc. Trata-se de um munus público
e somente pode ser exercida no interesse do representado. Na verdade,
os únicos representantes legais são os pais, tutores e curadores. Síndicos
e administradores da falência ou da recuperação são representantes ju-
diciais, contudo o Código Civil de 2002 unificou o tratamento das duas
espécies sob o título de representação legal.
A representação convencional, também denominada voluntária, é
aquela conferida mediante o contrato de mandato. Opera-se o mandato
quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar
atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do man-
dato (Código Civil, art. 653).
Diversamente da representação legal, em que o representante só
pode agir no interesse do representante, na representação voluntária
podem ser conferidos poderes para que o representante atue em causa
própria (procuração em causa própria).
Tanto na representação legal como na convencional exige-se que
o mandatário tenha capacidade civil plena (capacidade de direito/gozo
+ capacidade de fato/exercício/ação). Apesar disso, permite que o me-
nor com dezesseis ou dezessete anos e não emancipado seja nomeado
mandatário, mas o mandante não tem ação contra ele, senão segundo as
regras gerais, aplicáveis às obrigações contraídas por menores (Código
Civil, art. 655).

139
Também em ambas as formas de representação compete ao repre-
JuriSPruDÊNCiA
sentante provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado,
a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo,
Embora o Código Civil de
responder pelos atos que a estes excederem.
2002 não tenha fixado limites para
o autocontrato, a jurisprudência De acordo com o art. 116 do Código Civil, a manifestação de vonta-
do Superior Tribunal de Justiça tem de pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em re-
pontuado que a validade do ne- lação ao representado. O representante tem o dever de agir estritamente
gócio depende da ausência de de acordo com os poderes conferidos pelo representado. Se o represen-
conflito de interesses. Neste senti- tante ultrapassar os limites definidos, será considerado mero gestor de
do, a Súmula 60 do STJ determina negócios, enquanto o mandante não lhe ratificar os atos (Código Civil,
que “é nula a obrigação cambial
arts. 665 e 861 a 875).
assumida por procurador do mu-
tuário vinculado ao mutuante, no
É anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse
exclusivo interesse deste”. ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo, se não existir autori-
zação legal ou do representado. Para esse efeito, tem-se como celebrado
pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes
houverem sido substabelecidos (art. 117).
Esse dispositivo admite a celebração do autocontrato ou contrato
consigo mesmo desde que presente autorização da lei ou do mandante.
O exemplo mais comum desta figura negocial é o mandato em causa
própria, em que o mandante transfere poderes ao mandatário para alie-
nar determinado bem, por certo preço, a terceiros ou a si próprio (art.
685).
O art. 119 do Código Civil dispõe que é anulável o negócio conclu-
ído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se
tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou.
A ação anulatória deve ser proposta no prazo decadencial de cento e
oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da inca-
pacidade.
A invalidade do negócio concluído pelo representante em conflito
de interesses com o representado não deve ser confundida com a invali-
dade do negócio concluído por pessoa incapaz sem a devida represen-
tação. Se a pessoa absolutamente incapaz celebrar negócio jurídico sem
estar representada, este será nulo, devendo ser proposta ação declarató-
ria de nulidade (a qual não tem prazo para ser proposta). E se pessoa re-
lativamente incapaz celebrar negócio sem assistência, este será anulável,
devendo ser proposta ação anulatória no prazo de quatro anos, contados
a partir do dia em que cessar a incapacidade (Código Civil, art. 178, III).
Conforme dispõe o art. 120 do Código Civil, os requisitos e os efei-
tos da representação legal são os estabelecidos nas normas respectivas
(p. ex.: Código Civil, arts. 3º e 4º; Lei de Falências etc.); os da represen-
tação voluntária são os da Parte Especial do Código (arts. 653 a 692).

7.5.3. Plano de efi cácia


Em regra, o negócio jurídico que existe e é válido tem eficácia ime-
diata, devendo as partes cumprir as obrigações assumidas logo após a

140
Direito Civil

sua formação. Contudo, nada impede que as partes insiram no negócio


jurídico uma cláusula acessória para modificar ou limitar os efeitos que
seriam produzidos ou até mesmo para determinar o surgimento de um
direito. Essas cláusulas acessórias são denominadas elementos aciden-
tais (acidentalia negotii), pois o negócio subsistiria e produziria efeitos
mesmo sem eles.

7.6 ELEmENToS ACiDENTAiS

Os elementos acidentais mais comuns são a condição, o termo e o


modo ou encargo, mas nada impede que as partes criem outras formas
de elementos acidentais, exigindo-se, apenas, que sejam lícitos (ou seja,
que estejam de acordo com a lei, a moral, a ordem pública e os bons cos-
tumes). Os negócios jurídicos em geral admitem a aposição de elemento
acidental. Contudo, alguns negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sen-
su não admitem elementos acidentais, como aqueles que dizem respeito
ao estado das pessoas, os direitos de família puros e outros. Exemplos:
emancipação, casamento, adoção, reconhecimento de filho, aceitação e
renúncia da herança etc.

7.6.1. Condição
Condição é a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade
das partes, subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro
e incerto (Código Civil, art. 121). É normalmente inserida nos negócios
jurídicos pelos termos se ou enquanto (p. ex.: compro o seu guarda-
-chuva se chover amanhã) e pode subordinar tanto o surgimento do di-
reito (condição suspensiva) como a sua extinção (condição resolutiva).
Normalmente, atua apenas no plano de eficácia, mas em determinadas
situações atinge o plano de validade do negócio jurídico (p. ex.: a condi-
ção ilícita gera a invalidade do negócio), conforme estudaremos adiante.
A condição pode ser identificada sob três formas: a) pendente: é
o estado da condição que ainda se verificou ou frustrou; b) verificada
(implemento): é a condição em que se averiguou o seu cumprimen-
to, não importando se é suspensiva ou resolutiva; e c) frustrada: é a
condição que não foi verificada. Reputa-se verificada (isto é, considera-
se ocorrida), quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento
(ocorrência) for maliciosamente obstado (ocultado) pela parte a quem
desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição
maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu imple-
mento (Código Civil, art. 129).

7.6.1.1. Requisitos da condição


Do conceito básico da condição podemos extrair os seus três requi-
sitos: a voluntariedade, a futuridade e a incerteza. Vejamos:

141
a) Voluntariedade: a condição deve ser resultado da manifestação
de vontade das partes (vontade unilateral ou bilateral). Deve ter sido
inserida voluntariamente e expressamente no negócio jurídico, não se
admitindo condição tácita ou presumida. Esta é a verdadeira condição,
também denominada condição própria, e está regulada nos arts. 121
a 130 do Código Civil. Não deve ser confundida com a condição im-
própria (também denominada condição legal ou conditio iuris), que
nada mais é do que uma exigência legal (um requisito) para validade ou
eficácia de um ato jurídico (p. ex.: a exigência de que o absolutamente
incapaz seja representado nos atos da vida civil; a exigência de que o
pacto antenupcial seja feito mediante escritura pública etc.).
b) Futuridade: o segundo requisito da condição é que o evento do
qual dependerá a eficácia do negócio jurídico seja futuro, isto é, seja um
fato posterior à celebração do negócio. Se o evento for presente ou pre-
térito (conditio in praesens vel in preteritum collata) ou for apenas desco-
nhecido do agente (incerteza subjetiva), não há condição. Se o evento já
houver ocorrido, o negócio é considerado plenamente desenvolvido. Se
não, o negócio não se formou.
c) Incerteza: este último requisito permite a distinção entre a con-
dição (evento futuro e incerto) e o termo (evento futuro e certo). De
acordo com a doutrina, a incerteza que caracteriza a condição deve ter
natureza objetiva, isto é, deve ser um evento incerto no plano dos fatos,
independentemente da pessoa que celebra o negócio.

7.6.1.2. Classificação da condição quanto à


certeza
a) Condição incerta (incertus an incertus quando): é aquela em
que as partes não sabem se o evento ocorrerá nem quando poderá ocor-
rer. Exemplo: “vou te dar um capacete quando o Rubinho ganhar uma
corrida de Fórmula 1” (não se sabe se irá ganhar nem quando irá ga-
nhar).
b) Condição certa (incertus an certus quando): é aquela em que
não se sabe se o evento ocorrerá, mas, se ocorrer, deverá ser em um mo-
mento determinado. Exemplo: “vou te dar um capacete se o Rubinho
ganhar a corrida do dia 15 do mês que vem” (não se sabe se irá ganhar,
mas, se ganhar, a condição só vale para aquela corrida determinada).
Também é exemplo de condição certa a maioridade de um ser humano,
pois não se sabe se o menor estará vivo (incertus an) até o dia do seu
aniversário de dezoito anos (certus quando).

7.6.1.3. Classificação da condição quanto aos


efeitos
a) Condição suspensiva: é a condição que suspende o exercício e a
aquisição do direito até o seu implemento. Portanto, a condição suspen-
siva impede que o negócio jurídico produza efeitos desde o momento

142
Direito Civil

de sua celebração. A venda a contento (aprovação ad gustum – Código


Civil, art. 125) é um bom exemplo de condição suspensiva.
CurioSiDADE
A condição suspensiva gera expectativa de direito (spes debitum A perspectiva civil-consti-
iri), mas este já é objeto de proteção, podendo o seu titular se valer de tucional pode ser descrita, em
medidas conservatórias (p. ex.: inscrição do título no registro, interrup- linhas muito gerais, como a eleva-
ção da prescrição etc.). A menção que o art. 130 faz à condição resolutiva ção ao plano constitucional dos
é uma impropriedade, já que ociosa. Se a pessoa já está no exercício de princípios norteadores do Direito
um direito, é óbvio que pode reclamar sua proteção (p. ex.: ação para Civil. Assim, a interpretação dos
garantir a existência jurídica da prestação, reclamação das perdas e da- institutos civis passa a ser feita a
nos etc.). partir de parâmetros da Consti-
tuição, tais como a dignidade da
Embora sob condição suspensiva, o negócio está formado e a re-
pessoa humana, a solidariedade
lação jurídica, criada, podendo, inclusive, ser transmitido inter vivos
social e a igualdade substancial.
ou mortis causa (elemento ativo in fieri do patrimônio). Evidente que
Segundo os autores que abra-
a transmissão do negócio mantém a condição prevista (nemo ad alium çam esta orientação, ela repre-
plus iuris tranferre potest quam ipse habet). senta uma mudança de modelo
A condição suspensiva tem, em regra, eficácia retroativa, mas, em teórico ocorrida com o advento
alguns negócios em que se exige tradição da coisa ou registro, não retro- da Constituição Federal de 1988,
age. Se a coisa perecer ou se deteriorar de forma não culposa e pendente que forçou o abandono do espí-
condição suspensiva, o alienante sofre a perda (regra res perit domino). rito individualista e patrimonialista
do então vigente Código Civil de
b) Condição resolutiva: é aquela que, quando verificada, põe fim
1916 e passou a examiná-lo sob a
aos efeitos do negócio. A aquisição do direito ocorre desde a formação
ótica da promoção do bem co-
do negócio, que produz todos os efeitos enquanto a condição não se
mum e da supremacia do interes-
verificar (art. 127). Verificada a condição resolutiva, extingue-se, para se coletivo sobre o privado.
todos os efeitos, o direito a que ela se opõe, mas, se aposta em negócio de
execução continuada ou diferida, não tem eficácia com relação aos atos
já praticados de boa-fé.
Questão interessante é a de determinar se a condição resolutiva
opera de pleno direito ou se depende de reconhecimento judicial. En-
tendemos que, em regra, a resolução é automática, mas em algumas hi-
póteses será necessária a decisão judicial. Isto ocorre, por exemplo, no
compromisso de compra e venda com cláusula resolutiva, que exige a
propositura de ação judicial para que seja decretada a resolução.

7.6.1.4. Classificação da condição quanto à


licitude
a) Condição lícita: é a condição que está de acordo com o ordena-
mento jurídico (lei, moral, ordem pública e bons costumes – Código
Civil, art. 122) e, consequentemente, é validada. Numa perspectiva ci-
vil-constitucional, a licitude da condição deve ser verificada também
de acordo com os valores do ordenamento, em especial à luz dos prin-
cípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, liberdade, igualda-
de etc.).
b) Condição ilícita: é aquela contrária ao ordenamento jurídico,
por ofender a lei, a moral, a ordem pública ou os bons costumes. Exem-
plo: prometer um prêmio a uma pessoa que atropelar outra. A condi-
ção ilícita gera a nulidade do negócio jurídico, não importando se ela

143
é suspensiva ou resolutiva. De acordo com o art. 122 do Código Civil,
são ilícitas as seguintes condições: I) condições perplexas ou contra-
ditórias: aquelas que privam de todo o efeito o negócio. Exemplo de
Francisco Amaral: Instituo “A” meu herdeiro universal se “B” for meu
herdeiro universal; e II) condições puramente potestativas: aquelas que
sujeitam a eficácia do negócio ao puro arbítrio de uma das partes.

7.6.1.5. Classificação da condição quanto à


possibilidade
a) Condição possível: é a condição que pode ser cumprida tanto
do ponto de vista físico como do jurídico. A possibilidade física é anali-
sada a partir das leis da natureza. A possibilidade jurídica tem por base
o ordenamento jurídico. As condições possíveis são válidas.
b) Condição impossível: a conditio impossibilis é aquela que não
pode ser cumprida. Pode ser impossível fisicamente (se nenhuma pes-
soa puder cumprir a condição) ou juridicamente (se a conduta aten-
tar contra o ordenamento jurídico). Diferentemente do que se costuma
imaginar, nem sempre a condição impossível determinará a nulidade do
negócio. Se a condição impossível for suspensiva, o negócio será consi-
derado nulo. Entretanto, se for resolutiva, a condição será considerada
inexistente, e o negócio, válido.

7.6.1.6. Classificação da condição quanto à


natureza (ou fonte)
a) Condição casual: é a condição que fundamenta em um evento
alheio à vontade das partes. Dependem do acaso e do fortuito sem pos-
sibilidade de intervenção dos interessados. Por essa razão os eventos da
natureza podem ser bons exemplos de condições casuais (p. ex.: prome-
to doar um guarda-chuva a uma pessoa se chover amanhã em São Pau-
lo). Também são condições casuais aquelas que subordinam a eficácia
do negócio ao comportamento de terceiros (p. ex.: prometo doar um
carro a um amigo se Vitor Belfort vencer a próxima luta contra Ander-
son Silva).
b) Condição potestativa: é aquela que depende da vontade de
um dos contratantes, que pode provocar ou impedir o seu implemen-
to. Pode ser classificada em simplesmente potestativa e puramente po-
testativa:
Simplesmente ou meramente potestativa: é a condição cujo im-
plemento depende da vontade intercalada de duas pessoas – uma das
partes impõe a condição e a outra deve cumpri-la (p. ex.: será dado
um carro a quem der uma volta correndo no quarteirão). As condições
simplesmente ou meramente potestativas são lícitas. No Código Civil
também podem ser encontrados exemplos de condições simplesmente
potestativas: I) art. 420: trata do direito de arrependimento; II) art. 505:
dispõe sobre a cláusula de retrovenda; III) art. 509: trata da venda a con-
tento; e IV) art. 513: dispõe sobre o direito de arrependimento.

144
Direito Civil

Puramente potestativa: é a condição que subordina a eficácia do


negócio jurídico ao arbítrio de uma das partes. O implemento da con-
dição depende da vontade da própria pessoa que a impôs. As condições
puramente potestativas consagram a cláusula si voluero (se me aprouver
– exemplo: doarei um relógio amanhã se eu quiser) e, por essa razão,
são consideradas ilícitas, gerando a nulidade do negócio. No direito das
obrigações, Caio Mário da Silva Pereira aponta que a indeterminação
potestativa da prestação (p. ex.: deixar de indicar a quantidade do obje-
to a ser entregue) é uma espécie de condição potestativa pura. A potesta-
tividade do negócio se desloca da sua realização para a estimativa do res
debita. Pagar quanto quiser (quantum volam) é a mesma coisa que pagar
se quiser (si volam).
c) Condição mista: é a condição que depende, ao mesmo tempo,
da conduta (vontade) de uma das partes e de um ato que não depende
da vontade das partes (depende do acaso ou da vontade de um terceiro).
Exemplo: prometo doar uma televisão a um amigo se ele se casar com
determinada pessoa – observe que a celebração do casamento depende
não só da vontade de meu amigo, mas também da vontade da outra pes-
soa. As condições mistas são válidas desde que resultem da combinação
de uma condição casual com outra simplesmente potestativa (como no
exemplo acima).

7.6.2. Termo
É a cláusula que subordina a eficácia do negócio jurídico a um even-
to futuro e certo. Ao contrário da condição, que somente pode ser criada
pela vontade das partes, o termo pode ser introduzido no negócio pelas
partes (termo convencional) ou pode ser estipulado pela lei (termo legal
ou termo de direito). O termo também não deve ser confundido com
prazo, que é o lapso temporal existente entre o termo inicial e o termo
final. O prazo pode ser contado em minutos, horas, dias, meses ou anos.

7.6.2.1. Classificação do termo quanto aos


efeitos
a) Termo suspensivo: também conhecido como termo inicial ou
dies a quo, é aquele que, quando verificado, determina o início dos efeitos
negociais. Em outras palavras, o termo suspensivo suspende o exercício,
mas não a aquisição do direito, gerando direito adquirido. Não se con-
funde, portanto, com a condição suspensiva, que suspende o exercício e
a aquisição do direito, gerando simples expectativa de direito. Exemplo
de termo suspensivo: alugarei uma casa a partir do dia 1º de janeiro do
próximo ano.
b) Termo resolutivo: também conhecido como termo final ou dies
ad quem, é aquele que, quando verificado, põe fim aos efeitos do negócio
jurídico. Exemplo de termo resolutivo: o contrato de locação vencerá no
dia 30 do próximo mês. Diante das semelhanças existentes entre o termo
e a condição, o art. 135 do Código Civil prescreve que “ao termo inicial

145
e final aplicam-se, no que couber, as disposições relativas à condição
suspensiva e resolutiva”.

7.6.2.2. Classificação do termo quanto à certeza


a) Termo certo (certus an certus quando): é o termo certo que
ocorrerá e se sabe quando ocorrerá. No termo certo o evento é uma
decorrência da lei da natureza. Assim, toda data futura é um exemplo
de termo certo (p. ex.: no dia 1º de janeiro do ano que vem lhe darei um
carro).
b) Termo incerto (certus an incertus quando): é o termo certo
que ocorrerá, mas não se sabe quando. O melhor exemplo de termo in-
certo é a morte de uma pessoa – sabemos que todos morreremos, mas
não sabemos quando.

7.6.2.3. Contagem do prazo


Prazo é o lapso temporal existente entre um termo inicial e um ter-
mo final. Também pode ser conceituado como o lapso de tempo entre
a declaração de vontade e a superveniência do termo (inicial ou final).
Salvo disposição legal ou convencional em contrário, a contagem do
prazo deve ser feita com a exclusão do dia do começo, e com a inclusão
do dia do vencimento (Código Civil, art. 132, caput).
Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorro-
gado o prazo até o seguinte dia útil (Código Civil, art. 132, § 1º). Há
entendimento doutrinário no sentido de que a mesma regra deve ser
aplicada aos domingos, mas não aos sábados. Entretanto, para as obri-
gações bancárias, se o vencimento ocorrer no sábado ou no domingo, o
prazo será prorrogado até o dia útil seguinte.
Nos termos do art. 132, § 2º, do Código Civil, meado considera-se,
em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. Desta forma, não impor-
tando se o mês tem vinte e oito (fevereiro), vinte e nove (fevereiro em
ano bissexto), trinta ou trinta e um dias, o meado será sempre o décimo
quinto dia.
Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de
início, ou no imediato, se faltar exata correspondência (Código Civil,
art. 132, § 3º). Entendemos que a aplicação dessa regra ocorre de forma
autônoma ao caput do art. 132. Na jurisprudência do Superior Tribu-
nal de Justiça podem ser encontradas decisões nesse sentido e também
aplicando o § 3º simultaneamente com o caput do art. 132. Se os prazos
forem fixados por hora, deverão ser contados de minuto a minuto.
Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos
contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do
instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefí-
cio do credor, ou de ambos os contratantes (art. 133 do CC).
Esse dispositivo estabelece uma presunção absoluta (jure et jure/
iuris et de iure) a favor dos herdeiros, permitindo que cumpram encar-

146
Direito Civil

gos antes do prazo estabelecido pelo testador. Também permite que o


herdeiro antecipe o pagamento do legado. Quanto aos devedores, o dis-
positivo estabelece presunção relativa (juris tantum), dispondo que são
presumidos ao seu favor os prazos para cumprimento das obrigações,
salvo se das disposições contratuais ou das circunstâncias do negócio re-
sultar que o prazo foi estabelecido em benefício do credor ou de ambos.
Essa presunção permite, por exemplo, que o devedor pague uma dí-
vida antes do seu vencimento. Em se tratando de relação de consumo, o
consumidor devedor sempre tem o direito de liquidar antecipadamente
seu débito, não importando se o prazo foi estabelecido a favor dele ou
do fornecedor e credor (Código de Defesa do Consumidor, art. 52, § 2º).
Os negócios jurídicos sem prazo, celebrados entre pessoas vivas (p.
ex.: contrato por prazo indeterminado), têm vencimento imediato, salvo
se o negócio tiver de ser cumprido em lugar diverso do contratado ou
exigir tempo para sua execução. Nessas hipóteses, o prazo para o cum-
primento da obrigação deve ser interpretado de acordo com a natureza
e as condições do negócio.

7.6.3. modo ou encargo


O modo ou encargo é a cláusula que impõe uma obrigação a quem
é beneficiado por uma liberalidade. Como elemento acidental do negó-
cio jurídico, é normalmente identificado pelo uso das expressões “para
que” ou “com o fim de” e normalmente tem por objetivo dar relevância
aos interesses particulares do autor da liberalidade. Exemplos: uma doa-
ção de terreno feita ao município de Avaré para que nele seja construída
uma escola (doação modal – Código Civil, art. 540); a nomeação de uma
pessoa como herdeira em um testamento com a obrigação de cuidar de
um animal de estimação.
A obrigação imposta pelo encargo pode ser de qualquer espécie
(dar, fazer ou não fazer) e o seu cumprimento pode ser exigido em juí-
zo mediante a propositura de execução, quando houver título executivo
extrajudicial (p. ex.: contrato assinado por duas testemunhas), ou me-
diante ação de obrigação, quando não houver título executivo (p. ex.:
contrato sem a presença de testemunhas).
Essa obrigatoriedade é reforçada pelo art. 553 do Código Civil, que
dispõe que o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação,
caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral. Se
desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir
sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.
Além da possibilidade de exigir em juízo o cumprimento do en-
cargo, também é possível requerer a revogação da liberalidade, exigin-
do, por exemplo, a devolução do bem que foi doado. Consoante prevê
o art. 562 do Código Civil, “a doação onerosa pode ser revogada por
inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo
prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o
donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação
assumida”.

147
Nos termos do art. 136 do Código Civil, “o encargo não suspende
nem a aquisição nem o exercício do direito, salvo quando expressamente
imposto no negócio jurídico pelo disponente, como condição suspen-
siva”. Assim, ainda que a pessoa que praticou o ato venha a falecer ou
se tornar incapaz, a liberalidade não será atingida. Diversamente, se se
tratar de condição suspensiva, o negócio perderá sua eficácia.
Se o encargo for ilícito ou impossível, será considerado não escrito,
salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que
se invalida o negócio jurídico. Normalmente o motivo é irrelevante para
o direito. Contudo, quando é aposto como razão determinante, passa a
integrar o conteúdo do próprio negócio, tornando ilícito o seu objeto.
Esta é a razão pela qual o negócio jurídico deverá, em tais casos, ser
considerado nulo.

148
8 Defeitos nos negócios
jurídicos
voCABuLário 8.1 iNTroDuÇÃo
diligência: cuidado, zelo, pres-
teza. Conforme estudado anteriormente, a vontade humana é requisito
essencial para a existência dos negócios jurídicos. E, para que o negócio
seja considerado válido, vimos que a vontade não pode estar viciada,
isto é, deve ser manifestada de forma livre e consciente. Contudo, como
veremos, nem sempre isso ocorre, havendo inúmeras situações em que a
vontade é formada ou declarada de maneira defeituosa.
Quando o problema é interno, isto é, na formação da vontade,
fala-se em vício da vontade, também denominado defeito do consen-
timento, existindo cinco espécies no Código Civil de 2002: erro ou ig-
norância, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Quando o problema é
externo, isto é, na declaração da vontade, fala-se em vício social, sendo
exemplos deste a fraude contra credores e a simulação.
Outro fator de distinção entre os vícios é a pessoa prejudicada. Nos
vícios da vontade o prejudicado é sempre um dos contratantes. Quando
o vício é social, o prejudicado é um terceiro, isto é, uma pessoa que não
participou da relação contratual, mas foi atingida por ela.

Erro ou iGNorÂNCiA (CÓDiGo


8.2 CiviL, ArTS. 138 A 145)

O erro é a falsa representação da realidade, isto é, a falsa percepção


sobre um elemento determinante na realização de um negócio jurídico.
Já a ignorância é o completo desconhecimento da realidade. Embora
exista diferença conceitual (a ignorância é um erro mais acentuado), o
regramento conferido aos institutos é o mesmo, devendo estes ser trata-
dos como sinônimos.
De acordo com o art. 138 do Código Civil, são anuláveis os negócios
jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial
que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das
circunstâncias do negócio.

8.2.1. Consequências do erro


ComENTário
Quando presente o erro ou a ignorância, o negócio jurídico é con-
Decisão do STJ estabelece siderado anulável, devendo ser proposta ação anulatória no prazo deca-
que, no caso de bem imóvel, a dencial de quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídi-
ação anulatória tem como termo co (Código Civil, art. 178, II). A ação somente pode ser proposta pela
inicial a data de registro do ato parte prejudicada pelo erro, não pela beneficiada.
ou contrato no cartório imobiliário
A transmissão errônea da vontade é anulável, seja quando ocorre
(REsp 1.205.147 - AgRg).
por meio direto (p. ex.: pessoalmente), como também por meios inter-
postos, como, por exemplo, um meio de comunicação (internet, e-mail,
fax etc.), ou por um intermediário (Código Civil, art. 141).

150
Direito Civil

Conforme determina o art. 144 do Código Civil, o erro não preju-


dica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifes-
tação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade
da vontade real do manifestante. Tal dispositivo consagra o princípio da
conservação do contrato, que decorre do princípio da função social do
contrato, ao preferir a revisão do contrato à anulação.
Para que o erro torne o negócio jurídico anulável, deverá ser subs-
tancial e real (deve causar verdadeiro prejuízo para o interessado). Se
o erro for acidental, o negócio jurídico será válido, conforme veremos.

8.2.2. Classificação do erro quanto à


determinação

8.2.2.1. Erro substancial


ComENTário
Erro substancial (error in substantia) ou erro essencial é aquele que
recai sobre aspecto determinante (relevante) do negócio, incidindo so- Em decisão do TJSP (Ap.
bre o núcleo essencial da declaração. Se a pessoa tivesse conhecimento 0011043-31.2013.8.26.0566), verifi-
da realidade, o negócio não teria sido celebrado. Quando o erro é subs- camos caso emblemático de de-
tancial, o negócio jurídico é anulável. feito do negócio jurídico. O autor
O próprio Código Civil determina, em seu art. 139, que o erro é da ação recebeu uma carta do
substancial quando: INSS informando-lhe a respeito de
diferença derivada de revisão em
I – interessa à natureza do negócio (error in negotio – p. ex.: a pes-
seus benefícios previdenciários.
soa aluga uma casa, mas achava que a estava emprestando), ao objeto Procurou auxílio do réu, que lhe
principal da declaração (error in corpore – p. ex.: a pessoa acredita que ofereceu serviços para interme-
está comprando um determinado carro e na verdade adquire outro), diação junto ao órgão público,
ou a alguma das qualidades a ele essenciais (error in qualitate ou in cobrando-lhe o equivalente a
substantia – p. ex.: a pessoa compra um relógio de latão, achando que 30% do montante a ser levantado.
é de ouro); Contudo, este deixou de informar
II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a que seus serviços não seriam ne-
cessários, já que bastaria compa-
quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta
recer diretamente para receber
de modo relevante (error in persona – p. ex.: a pessoa acha que está con-
os valores.
tratando uma banda famosa, mas acaba contratando uma homônima);
III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for
o motivo único ou principal do negócio jurídico (error iuris).
O erro de direito (error iuris) é aquele em que a pessoa desconhe-
ce o conteúdo ou a consequência de um dever jurídico imposto por lei
ou assumido mediante acordo de vontade. Podemos afirmar que há um
falso conhecimento ou uma falsa interpretação sobre o direito. Para que
o erro de direito possa conduzir à anulação do negócio, devem estar pre-
sentes dois requisitos:
a) Motivo determinante: a pessoa deve ter declarado a vontade
somente porque teve uma errônea compreensão da norma jurídica.
b) Não pode implicar recusa à aplicação da lei: quando se estu-
da o erro de direito, é muito comum a indagação se não haveria uma
antinomia (isto é, um conflito) entre o art. 139, III, do Código Civil de

151
2002 e o art. 3º da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito
JuriSPruDÊNCiA Brasileiro, que proíbe a alegação de ignorância para descumprimento
da lei (ignorantia legis neminem excusat), conhecido como princípio da
A jurisprudência (TJSP, Ap.
obrigatoriedade. A resposta, a nosso ver, é negativa. O art. 3º da LINDB
0036433-36.2010.8.26.0007) forne-
ce a resolução de um caso bem
proíbe a alegação do erro de direito para afastar a norma jurídica geral,
comum de ocorrer: o autor da a lei. O art. 139, III, do Código Civil admite a alegação do erro de direito
ação alega divergência entre o para afastar a norma jurídica individual, o contrato. Como se vê, são
veículo automotor efetivamente situações distintas.
adquirido e o indicado no contra-
to de financiamento. O erro não 8.2.2.2. Erro acidental
foi apto a invalidar este negócio
jurídico, descabendo a anulação É aquele que recai sobre aspecto secundário, ou seja: a pessoa tem
e a devolução do bem financia- uma falsa percepção sobre um elemento que não é determinante para
do. O tribunal estabeleceu a ade- a concretização do negócio jurídico. Por essa razão, afirma-se que o
quação à real vontade das par- negócio viciado por erro acidental não é anulável.
tes, tendo alterado as cláusulas O art. 142 do Código Civil contempla o erro acidental ao dispor que
contratuais relativas à descrição
“o erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração
do bem e ao valor financiado.
de vontade, não viciará o negócio, quando, por seu contexto e pelas cir-
cunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada”. Todavia,
voCABuLário se as qualidades secundárias da pessoa ou da coisa forem consideradas
como razões determinantes do negócio, se estará diante de hipótese de
colimado: objetivado, desejado erro substancial, permitindo a anulação.
O erro que incide sobre a qualidade acessória do objeto (error in
qualitate) ou sobre sua medida, peso ou quantidade (error in quantitate)
ComENTário
é considerado acidental desde que não importe efetivo prejuízo ao con-
tratante.
Exemplo extraído de de-
cisão do TJSP (Ap. 0016749- O erro sobre o motivo ou erro quanto ao fim colimado, em regra,
47.2011.8.26.0248): duas pessoas não permite a anulação do negócio. Os motivos que levam uma pessoa
fizeram contrato de compra e a agir de determinada forma normalmente não têm importância para
venda de um imóvel. O valor o direito. Todavia, quando o motivo passa a ser expresso como razão
ajustado de compra foi de R$ determinante de um negócio jurídico, entende-se que ele passa a incor-
19.000,00. Contudo, foi estipulado porar o próprio conteúdo do negócio, contaminando-o, quando falso.
que o comprador deveria pagar
O erro sobre o cálculo também pode ser apontado como exemplo
24 parcelas de R$ 200,00, o que
de erro acidental, pois não contamina o negócio jurídico e, portanto,
se mostra equivocado, pois o cer-
to seria R$ 791,66. Assim, houve não permite a sua anulação. É uma espécie de erro material retificável,
mero erro de cálculo do valor da daí por que o art. 143 do Código Civil apenas autoriza a retificação da
parcela mensal, o que autorizaria declaração de vontade, isto é, o recálculo, consagrando o princípio da
apenas a retificação do cálculo. conservação do contrato.

8.2.2.3. Erro obstativo


O erro obstativo, obstáculo ou impróprio é aquele de exagera-
da importância, constituindo uma profunda divergência entre as partes
contratantes de tal modo que não haveria vontade negocial. Por essa
razão, explica Carlos Roberto Gonçalves, as doutrinas alemã, francesa
e italiana defendem que essa espécie de erro conduz à inexistência do
negócio jurídico. Como exemplos de erros obstativos nesses países, po-

152
Direito Civil

dem ser apontados aqueles que incidem sobre a natureza do negócio ou


sobre o objeto principal da declaração.
Entretanto, no direito brasileiro o legislador não fez distinção entre
o erro obstativo e o erro substancial, acolhendo todas as hipóteses como
erro substancial e, portanto, anuláveis.

8.2.3. Escusabilidade ou recognoscibilidade


Na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina entendia que o
erro deveria ser escusável para que o negócio pudesse ser anulado. Erro
escusável é aquele perdoável, justificável, desculpável, isto é, aquele que
qualquer pessoa poderia incidir com o emprego da diligência comum.
Com a introdução do Código Civil de 2002, autores passaram a di-
vergir sobre o conteúdo do art. 138: “São anuláveis os negócios jurídicos,
quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que
poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das cir-
cunstâncias do negócio”.
Para a doutrina majoritária, o dispositivo não exige mais a escusa-
bilidade como um requisito para a anulação do negócio jurídico, mas,
sim, a recognoscibilidade ou cognoscibilidade. Enquanto a escusabilida-
de consiste na análise do comportamento da parte prejudicada, a recog-
noscibilidade consiste na verificação da conduta do outro contratante,
que, percebendo o erro da outra parte, quedou-se inerte.
Nesse sentido, aliás, o Enunciado 12 da I Jornada de Direito Civil
do Conselho da Justiça Federal dispõe que, “na sistemática do art. 138,
é irrelevante ser ou não escusável o erro, porque o dispositivo adota o
princípio da confiança”.

8.3 DoLo

É o artifício (manobra, maquinação) utilizado com o propósito de


enganar uma pessoa para que ela celebre determinado negócio. Para que
o negócio seja anulável, não se exige a demonstração de efetivo prejuízo,
sendo suficiente a intenção de prejudicar. O dolo não deve ser confun-
dido com o erro. No erro há um equívoco espontâneo do celebrante e
no dolo a pessoa é induzida a errar pelo outro contratante ou por um ComENTário
terceiro.
O STJ apresenta decisão
8.3.1. Consequências do dolo (REsp 664.499) em que restou ca-
racterizado o dolo, tornando o
Assim como o erro, o dolo também torna o negócio anulável. A negócio anulável. O autor pediu
parte enganada poderá propor ação anulatória no prazo decadencial de rescisão do contrato por omissão
quatro anos, a contar da data da celebração do negócio jurídico (Código dolosa do vendedor do imóvel,
Civil, art. 178, II). Porém, deverá ser identificada a espécie de dolo de que escondeu a existência de
que se está diante, pois algumas determinam a anulabilidade do negócio ação demolitória em curso na
e outras não, como veremos. época da transação.

153
8.3.2. Classifi cação do dolo quanto à
determinação
8.3.2.1. Dolo essencial
O dolo essencial, também conhecido como dolo principal ou
dolus causam, é aquele que contamina o negócio jurídico, permitindo
a sua anulação pelo fato de ter sido a sua causa, isto é, a pessoa somente
realizou o negócio jurídico por ter sido enganada. Se o contratante tives-
se conhecimento da realidade, o negócio não seria anulado. Conforme o
art. 145 do Código Civil, “são os negócios jurídicos anuláveis por dolo,
quando este for a sua causa”.

8.3.2.2. Dolo acidental


ComENTário
O dolo acidental (dolus incidens) não constitui vício de consen-
timento, por não influir diretamente na realização do ato, que se teria
Veja-se caso de dolo aciden-
tal trazido pela jurisprudência (TJSP,
praticado independentemente do emprego de artifícios pelo outro con-
Ap. 9208874-22.2009.8.26.0000): o tratante. Essa espécie de dolo não acarreta a anulação do ato, obrigando
autor da ação requereu a anu- apenas à satisfação de perdas e danos ou a uma redução proporcional da
lação da partilha homologada prestação contratada.
em ação de reconhecimento e De acordo com o art. 146 do Código Civil, “o dolo acidental só
dissolução de sociedade de fato, obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu des-
alegando omissão dolosa da in- peito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”.
formação de que um dos imóveis
integrantes da partilha era objeto
de disputa judicial possessória. O
8.3.3. Classifi cação do dolo quanto à conduta
Tribunal considerou que o silêncio,
ainda que intencional, do apela- 8.3.3.1. Dolo positivo
do constitui dolo acidental, já que
a partilha – negócio jurídico que Dolo positivo ou comissivo é aquele consistente em uma ação vol-
se pretendia anular – teria sido re- tada a enganar uma das partes contratantes, permitindo, consequente-
alizada de qualquer maneira, ain- mente, a anulação do negócio jurídico. Exemplo: uma pessoa vende um
da que por outro modo. relógio para outra afirmando que é feito de ouro, quando na verdade é
feito de latão.

8.3.3.2. Dolo negativo


É aquele que consiste na omissão (silêncio) de um aspecto rele-
vante para realização do negócio, permitindo a sua anulação. Para que
ocorra dolo negativo ou omissivo, a pessoa deve omitir informação
de que tinha conhecimento. Se não tinha conhecimento, não haverá
dolo. Exemplo: uma pessoa vende um relógio para outra afirmando
não saber qual o material com que ele é feito, mas tendo ciência de que
se trata de latão.
De acordo com o art. 147 do Código Civil, nos negócios jurídi-
cos bilaterais (aqueles que estabelecem obrigações para ambos os con-
tratantes), o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato
ou qualidade que a outra parte haja ignorado constitui omissão dolosa,
provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado.

154
Direito Civil

8.3.3.3. Dolo bilateral ou recíproco


ComENTário
Ocorre quando ambos os contratantes agem com dolo. Como nin-
guém pode se valer da própria malícia (nemo auditur propriam turpitu- Exemplo de dolo bilateral pro-
dinem allegans), o dolo bilateral não permite a anulação do negócio nem veniente da jurisprudência (TJSP,
pedido de reparação de danos, quando o prejuízo de uma das partes for Ap. 0006138-85.2010.8.26.0081): o
maior que o da outra. autor da ação aderiu a grupo de
O dolo de uma parte sempre compensa o da outra parte, não im- consórcio sob promessa de que
portando o tipo de dolo. Desta forma, mesmo que uma das partes tenha seria contemplado de imediato,
o que não ocorreu. Contudo, ele
agido com dolo essencial e a outra com dolo acidental, não será possível
tinha conhecimento de como
a anulação do negócio jurídico nem o pedido de reparação de danos
funciona o contrato de consórcio
proporcional.
e que deveria esperar por um sor-
teio eventual.
8.3.4. Classificação do dolo quanto ao conteúdo

8.3.4.1. Dolo mau


O dolo mau (dolus malus) consiste no emprego de manobras as-
tuciosas destinadas a prejudicar alguém. Por ser utilizado para iludir e
prejudicar a outra parte, acaba por viciar o negócio jurídico, tornando-o
anulável, em regra.

8.3.4.2. Dolo bom


ComENTário
A doutrina aponta dois sentidos para o dolo bom (dolus bonus).
Num primeiro é entendido como um comportamento lícito e tolerado O TJRS julgou caso em que
no comércio, consistente em reticências, exageros nas boas qualidades restou configurado o dolus bo-
ou dissimulações de defeitos (p. ex.: quando o vendedor fala que uma nus (Ap. 71.002.727.139): Não
TV é a melhor do mundo). Observe-se que, se houver abuso ou prejuízo, configura propaganda engano-
o negócio poderá ser anulado. Nas relações de consumo, essa espécie de sa a divulgação, por parte da
dolo não é tolerada, pois caracteriza propaganda enganosa e induz o financeira, de que opera com
consumidor a erro. as melhores taxas do mercado.
Tal mensagem publicitária, para
Num segundo sentido, fala-se em dolus bonus quando uma pessoa
qualquer cidadão com o mínimo
engana a outra com o objetivo de beneficiar a pessoa enganada (p. ex.:
de discernimento, apenas exerce
uma pessoa que compra um relógio de um amigo pagando um preço
a força atrativa a que se propõe
mais caro com o objetivo de ajudar). No caso, o artifício não tem a fina- toda propaganda, jamais tendo
lidade de prejudicar. o condão de ludibriar o consu-
Independentemente do sentido adotado, o dolus bonus não gera a midor ou gerar vício no consenti-
anulabilidade do negócio. mento. Outrossim, o dolus bonus,
evidentemente presente na hipó-
8.3.5. Dolo de terceiro tese, não vicia o negócio, sendo
aceito socialmente. Trata-se de
Normalmente na caracterização do dolo temos uma das partes sen- mecanismo muito utilizado como
do levada a erro pela outra parte, mas também é possível que um ter- técnica de publicidade, inexistin-
ceiro (pessoa estranha ao negócio jurídico) realize a indução. De acordo do qualquer ilicitude no realce do
com o art. 148, “pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo produto, com finalidade de atrair
de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhe- os clientes. Improcedência do pe-
cimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o ter- dido mantida.
ceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou”.

155
Assim, o dolo de terceiro pode ocorrer com a cumplicidade da parte
voCABuLário a quem aproveita; com mero conhecimento da parte a quem aproveita;
ação de regresso: aquela pro- e, ainda, exclusivamente por conta do terceiro, sem que dele tenha co-
movida pela pessoa conde- nhecimento a parte favorecida. As duas primeiras hipóteses são passíveis
nada ao pagamento de inde- de anulação. Na última hipótese, o negócio persiste, mas o autor do dolo
nização por um ato ilícito que, (o terceiro) responde pelas perdas e danos em razão do ilícito praticado.
agora na condição de autora,
volta-se contra aquele que en- 8.3.6. Dolo do representante
tende ser o verdadeiro respon-
sável pelo dano. O dolo do representante legal obriga o representado a responder
civilmente até a importância do proveito que tirou. Entretanto, tratan-
constrangimento: imposição
do-se de representação convencional (aquela em que o representado es-
de força, violência.
colhe e nomeia o seu representante, aceitando todos os riscos que assim
corre), o representado responderá solidariamente pelas perdas e danos
(Código Civil, art. 149). Se for chamado a reparar os danos, o represen-
tado terá direito à ação de regresso em face do representante.
A distinção promovida pelo art. 149 do Código Civil entre a re-
presentação legal e convencional é coerente, pois na representação legal
(pais, tutores e curadores) o representado não escolhe quem será o seu
representante, devendo ser mais protegido. Na representação conven-
cional, a escolha do representante decorre da vontade do representado.
Se escolheu mal, deverá reparar o dano causado por seu representante.
Tanto na hipótese de dolo do representante legal como na de dolo
do representante convencional, o negócio será anulável se o dolo for
substancial e não será anulável se o dolo for acidental.

8.4 CoAÇÃo

A coação é qualquer forma de ameaça injusta (física ou moral) com


o objetivo de forçar uma pessoa a realizar determinado negócio jurídico.
Quem exerce a coação é denominado coator, e quem sofre é denomi-
nado coato, coagido ou paciente. Não necessariamente quem exerce a
coação é quem dela se beneficia, como veremos no estudo da coação por
terceiro.

8.4.1. Espécies de coação


Desde o direito romano, a coação é dividida em duas espécies:
coação absoluta (vis absoluta) e coação relativa (vis compulsiva). Essa
distinção não foi consagrada nem no Código Civil de 1916 nem no de
2002, mas a doutrina continua defendendo a sua importância diante dos
efeitos que cada uma produz:

8.4.1.1. Coação absoluta


A coação absoluta, também denominada física ou vis absoluta, é
o constrangimento corporal que retira toda a capacidade de manifes-

156
Direito Civil

tação de vontade, implicando ausência total de consentimento. Exem-


plos: forçar uma pessoa sob a mira de uma arma de fogo a assinar um
contrato; pressionar a digital de um analfabeto em um contrato contra
a vontade dele etc.
Essa espécie de coação não está prevista no Código Civil de 2002,
mas, de acordo com a doutrina majoritária, tem como consequência a
inexistência do negócio jurídico. Se necessário for, deverá ser proposta
ação declaratória de inexistência. Com efeito, a coação absoluta não
deixa opção ao coagido para que possa exercer um ato de escolha ma-
nifestando a sua vontade. Há um ato mecânico, não uma manifestação
de vontade viciada. Por essa razão, a coação absoluta não é considerada
vício da vontade ou do consentimento.

8.4.1.2. Coação relativa


Também conhecida como coação moral, psicológica ou vis com-
pulsiva, é aquela que está presente no Código Civil de 2002, art. 151, e
funda-se no temor (receio, medo) de dano iminente e considerável à pes-
soa do negociante, aos seus bens ou à sua família. Ao contrário da coação
absoluta, a coação relativa deixa opção ao coagido, que prefere celebrar
o negócio a sofrer o dano. É espécie de vício do consentimento, pois con-
tamina a formação da vontade e gera a anulabilidade do negócio, como
veremos adiante. Aliás, como o Código Civil de 2002 previu apenas essa
espécie de coação, iremos nos ater a ela nos próximos tópicos.

8.4.2. Requisitos da coação


JuriSPruDÊNCiA
Conforme prescreve o art. 151 do Código Civil, a coação, para viciar
a declaração da vontade, há de ser tal que desperte ao paciente temor Decisão que dispõe sobre os
de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus requisitos da coação (TJRS, Ap.
bens (caput). Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do 70.060.217.379): “CONTRATOS AGRÁ-
paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação RIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. NE-
(parágrafo único). Da norma podem ser extraídos os requisitos para GÓCIO JURÍDICO. DISTRATO DE
caracterização da coação: CONTRATO DE ARRENDAMENTO.
ALEGAÇÃO DE VÍCIO DO CON-
a) A ameaça deve ser grave: a ameaça somente caracterizará
SENTIMENTO. COAÇÃO. A decla-
coação se for grave e causar fundado temor de dano iminente
ração de vontade é viciada pela
ao coagido. A análise desse requisito não deve levar em con-
coação se esta for séria, grave,
sideração o homem médio, mas, sim, a vítima em concreto da atual, injusta e motivadora do
coação. Por essa razão o art. 152 determina que, “no apreciar a ato. CC, art. 151. A coação deve
coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o ser cabalmente comprovada nos
temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que autos”.
possam influir na gravidade dela”. A ameaça que pode ser grave
para uma idosa que mora sozinha pode não ser grave para um
homem adulto.
Em caso de simples temor reverencial, não haverá coação, já que não
há ameaça grave. Temor reverencial é o receio de desagradar uma pessoa
a quem devemos respeito e obediência. Exemplos: o respeito que os filhos
têm pelos pais; os empregados pelos empregadores; o soldado pelo ca-

157
pitão etc. Assim, quando um pai fala para seu filho vender o automóvel,
em princípio não se poderá alegar coação. Escrevemos “em princípio”
porque se, em vez do respeito, existir verdadeira ameaça grave, a coação
estará configurada. Exemplo: um pai condenado por cinco homicídios é
solto e ameaça matar a filha se ela não lhe doar a casa em que mora.
b) A ameaça deve ser de dano iminente: deve ser um dano atual
que não pode ser evitado pelo coagido. Entretanto, dano imi-
nente não significa dano imediato. O importante é que a amea-
ça cause prontamente fundado temor de dano ao coagido. Por
outro lado, se o dano puder ser evitado pelo agente, sozinho ou
com ajuda de terceiros, a ameaça não caracteriza a coação. Tam-
bém não existirá coação se o mal for impossível.
c) A ameaça deve ser injusta: somente haverá coação se a ameaça
consistir na prática de um ato contrário ao ordenamento jurí-
dico, um ato ilícito (p. ex.: uma pessoa ameaça agredir outra se
uma dívida não for paga). De acordo com o art. 153 do Códi-
go Civil, se a ameaça corresponder ao exercício regular de um
direito, não haverá coação (p. ex.: uma pessoa ameaça protes-
tar o cheque devolvido sem fundos no Cartório de Protesto de
Títulos). Se consistir em ameaça de abuso de direito, também
haverá coação porque é espécie de ato ilícito (p. ex.: uma pessoa
ameaça colocar um outdoor de cobrança na frente da casa do
devedor se a dívida não for paga).
d) A ameaça deve recair sobre a pessoa, seus familiares ou seus
bens: o art. 151 do Código Civil determina que a ameaça deve
ser dirigida ao próprio coagido, à sua família, ou aos seus bens
(p. ex.: ameaça incendiar o automóvel do coagido). Interessante
observar que o legislador utilizou o termo “família” em vez de
“parentes” com o propósito de ampliar as possibilidades (p. ex.:
o filho do cunhado não é parente, mas pode ser considerado
familiar). E, mesmo que a pessoa não pertença à família do pa-
ciente, o juiz, com base nas circunstâncias, poderá decidir se
houve coação, conforme dispõe o parágrafo único do art. 151
(p. ex.: noivos, namorados, amigos íntimos etc.). Questão in-
teressante é a hipótese em que o coator dirige a ameaça a si
próprio para coagir outra pessoa a realizar um negócio (p. ex.:
o filho ameaça se matar se o pai não lhe doar um automóvel).
Entendemos que se a ameaça for séria e real nada impede o
reconhecimento da coação pelo juiz, em que pese a omissão
legislativa.
e) A ameaça deve ser a causa da celebração do negócio: o negócio
jurídico só será anulado por coação se a ameaça foi o fator de-
terminante para sua celebração. Assim como na responsabili-
dade civil, deve estar presente um nexo de causalidade entre o
fato (a ameaça) e o dano (o negócio celebrado). Se o coagido
celebrasse o negócio mesmo sem a ameaça, não haveria coação.

158
Direito Civil

8.4.3. Consequências da coação


De acordo com o Código Civil de 2002, a coação determina a anu-
labilidade do negócio jurídico. A ação cabível é a anulatória, devendo
ser ajuizada no prazo decadencial de quatro anos a contar do dia em que
cessar a coação. A legitimidade para a propositura da ação é da pessoa
coagida. Na parte especial (Direito de Família), o Código Civil estabelece
o prazo de quatro anos para anulação do casamento por coação, contado
o prazo da data da celebração (art. 1.560, IV).
Além da anulabilidade do negócio, a parte prejudicada pela coação
também poderá pleitear o ressarcimento pelas perdas e danos, cumu-
lando a ação anulatória com pedido de reparação de danos (materiais,
morais etc.).

8.4.4. Coação por terceiro


Se outra pessoa realizar a coação em vez do contratante, o negócio
será anulável desde que o contratante beneficiado tivesse ou devesse ter
conhecimento da coação realizada. Nessa hipótese, além da anulabili-
dade do negócio, o terceiro e o contratante que se aproveitou da coação
responderão solidariamente pelos danos causados ao coagido.
No entanto, se a coação decorrer de terceiro, sem que a parte a que
aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento, o negócio não será
anulável, mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos
que houver causado ao coato.

8.5 ESTADo DE PEriGo A CoAÇÃo

O estado de perigo consiste na celebração de um negócio jurídico


com onerosidade excessiva porque o agente estava premido da necessi-
dade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido
pela outra parte. Esse vício do consentimento não estava previsto no
Código Civil de 1916 e foi incluído no Código Civil de 2002, no art. 156.
Como exemplos de estado de perigo, podemos citar: a) a pessoa que
dá um cheque caução de alto valor em um hospital para garantir a inter-
nação de um familiar doente; b) a pessoa que aceita pagar a um médico
o dobro do valor normalmente cobrado por uma cirurgia para salvar a
vida do filho atropelado; c) a pessoa que vende uma casa a um amigo por
um preço irrisório para pagar o resgate do sequestro de seu irmão etc.
O estado de perigo não se confunde com a coação, uma vez que
nesta o outro contratante compele o agente a contratar. No estado de
perigo, há uma situação que força o agente a celebrar o negócio. Além
disso, no estado de perigo deve estar presente a onerosidade excessiva
(requisito objetivo), enquanto na coação não importa se o coagido so-
freu prejuízo ou não.

159
8.5.1. requisitos do estado de perigo
ATENÇÃo
Para configuração do estado de perigo, devem estar presentes um
A onerosidade excessiva exi- requisito objetivo (onerosidade excessiva) e dois requisitos subjetivos
gida no estado de perigo é con- (situação de perigo e dolo de aproveitamento):
comitante à celebração do ne-
a) Onerosidade excessiva: para que o negócio possa ser anulado
gócio e não deve ser confundida,
por estado de perigo, será necessário que a obrigação assu-
portanto, com a teoria da impre-
mida seja exorbitante, isto é, que gere onerosidade excessiva
visão (cláusula rebus sic stantibus),
que é baseada na onerosidade
para o agente. O Código Civil não estabelece qualquer por-
excessiva superveniente e funda- centagem para a caracterização da onerosidade, deixando o
menta pretensão de revisão ou seu reconhecimento a cargo do juiz, que irá analisar as cir-
resolução contratual (arts. 317 e cunstâncias do caso concreto e decidir com base na equidade.
478 a 480, CC). Essa onerosidade deve ser avaliada no momento da celebração do
negócio, não importando se o objeto do contrato sofreu redução ou ma-
joração de valor no futuro. Assim, se uma pessoa vender uma casa por
um preço justo para pagar o tratamento de saúde de um filho e dois
anos após a venda a casa dobrar de valor, não será possível a anulação
do negócio.
b) Situação de perigo: para caracterização do estado de perigo, o
agente deve ter assumido a obrigação excessivamente onero-
sa com o objetivo de livrar a si próprio, um familiar ou uma
pessoa próxima de uma situação iminente de perigo de vida
(morte) ou grave dano moral (integridade física, moral ou in-
telectual). A situação de perigo é a razão de a pessoa contratar
em condições desfavoráveis.
De acordo com o caput do art. 156, a situação de perigo pode aco-
meter o próprio agente que realizou o negócio jurídico ou alguém de sua
família: filhos, netos, bisnetos, pais, avós bisavós, irmãos, tios, sobrinhos,
primos, sobrinhos-netos etc. Como o dispositivo se referiu a familiares, e
não a parentes, podem ser contempladas outras pessoas que não são pa-
rentes, como os filhos dos cunhados ou os tios do cônjuge. Além disso,
devemos lembrar que cônjuge e companheiro não são parentes, embora
exista parentesco com os parentes destes (parentesco por afinidade).
Não bastasse isso, o parágrafo único do art. 156 dispõe que “tratan-
do-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá
segundo as circunstâncias”. Admite-se, assim, que o estado de perigo seja
reconhecido quando o agente praticar o ato para salvar um grande ami-
go, a namorada, a noiva etc.
c) Dolo de aproveitamento: como último requisito para caracte-
rização do negócio jurídico, o art. 156 do Código Civil exige
que a situação de perigo que levou o agente a contratar seja
conhecida do agente que se beneficiou. Exemplo: a pessoa que
comprou a casa por preço irrisório sabia que a outra estava ven-
dendo para salvar a vida do filho.
A expressão dolo de aproveitamento representa corretamente o seu
conteúdo: intenção de se aproveitar. Em algumas situações, esse requisito
pode ressaltar da própria circunstância que envolve o negócio jurídico

160
Direito Civil

(p. ex.: o hospital que exige o cheque caução para aceitar internar um
enfermo), mas em geral deverá ser objeto de prova específica no processo.
ComENTário

Assim como o estado de pe-


8.5.2. Consequências rigo, a lesão também não estava
prevista no Código Civil de 1916,
Conforme determinação do art. 178, II, do Código Civil, o estado
mas a Lei da Economia Popular
de perigo determina a anulabilidade do negócio, devendo ser proposta
(Lei n. 1.521/51) já previa essa mo-
ação anulatória no prazo decadencial de quatro anos a contar da cele-
dalidade de lesão subjetiva ao
bração do negócio. A legitimidade para a propositura da ação é da parte considerar crime de usura pecu-
prejudicada pelo negócio com onerosidade excessiva. niária ou real “obter, ou estipular,
Nos termos do Enunciado 148, da III Jornada de Direito Civil do em qualquer contrato, abusando
Conselho da Justiça Federal, “ao estado de perigo (art. 156) aplica-se, por da premente necessidade, inex-
analogia, o disposto no § 2º do art. 157”. E, de acordo com o art. 157, § periência ou leviandade de ou-
2º, do Código Civil, “não se decretará a anulação do negócio, se for ofe- tra parte, lucro patrimonial que
exceda o quinto do valor corren-
recido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a
te ou justo da prestação feita ou
redução do proveito”.
prometida”.
Tal dispositivo consagra o princípio da conservação dos contratos,
que encontra suas raízes no princípio da função social, para privilegiar
a subsistência do contrato com revisão do seu conteúdo, em vez da
anulação. A aplicação analógica dessa regra prevista para a lesão ao es-
tado de perigo é justificada pela semelhança entre os institutos, como
veremos adiante.
Embora o Código Civil preveja apenas a anulabilidade como conse-
quência do estado de perigo, há entendimento doutrinário no sentido de
que a parte prejudicada pode optar pela propositura de ação de revisão
contratual, com base nos mesmos princípios: conservação dos contratos
e função social. Concordamos com esse entendimento, até porque em
muitas situações não será possível às partes retornar ao status quo ante,
isto é, ao estado anterior à realização do negócio.

8.6 LESÃo

É a celebração de um negócio jurídico com onerosidade excessiva


porque o agente se encontrava em uma situação de premente necessi-
dade ou de inexperiência. Nesse sentido, o art. 157, caput, do Código
Civil dispõe que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente ne-
cessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente
desproporcional ao valor da prestação oposta”.
Esses dispositivos consagram a lesão subjetiva, porquanto exigem
para sua caracterização a análise dos motivos que levaram a pessoa a
contratar com onerosidade. Não se confundem, desta forma, com a lesão
objetiva, também conhecida como lesão enorme (laesio enormis). A le-
são objetiva se caracteriza, simplesmente, pelo grave desequilíbrio entre
as prestações assumidas pelas partes em um contrato, sem investigação
dos motivos que levaram as partes a contratar.

161
Não é demais lembrar que a lesão pode estar presente em qualquer
ComENTário contrato bilateral, também denominado sinalagmático (p. ex.: compra
e venda, locação, prestação de serviço, empreitada, transporte etc.), com
iii Jornada de Direito Civil
qualquer espécie de obrigação (dar, fazer ou não fazer).
Enunciado 150 do CEJ: “A lesão
de que trata o art. 157 do Código
Civil não exige dolo de aprovei- 8.6.1. Requisitos da lesão
tamento”. O reconhecimento da lesão exige a presença de um requisito obje-
tivo (onerosidade excessiva) e outro subjetivo (premente necessidade ou
inexperiência). Ao contrário do estado de perigo, na lesão não precisa
ser provado o dolo de aproveitamento, isto é, que o outro contratante
tinha conhecimento da situação de necessidade ou inexperiência em
que se encontrava a parte prejudicada (nesse sentido, o Enunciado 150
da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal).
a) Onerosidade excessiva: o simples fato de contratar sob pre-
mente necessidade ou por inexperiência não permite a anula-
ção do negócio jurídico. Para que tal ocorra, é necessário que o
agente assuma obrigação com prestação manifestamente des-
proporcional ao valor da prestação oposta (onerosidade exces-
siva). Como o Código Civil não estabelece uma porcentagem a
ser observada, cabe ao juiz analisar se a desproporção entre as
prestações é excessiva.
Assim como no estado de perigo, a onerosidade deve ser avaliada
no momento da celebração do negócio. Nesse sentido, o § 1º do art. 157
do Código Civil estabelece: “aprecia-se a desproporção das prestações
segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio
jurídico”. Sobre a questão o Enunciado 290 da IV Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que “a lesão acarretará a
anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a
desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não
se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado”.
Se o desequilíbrio entre as prestações for provocado por fato futuro
(p. ex.: alta no preço dos imóveis, inflação, alta do dólar etc.), não poderá
ser invocada a lesão para a anulação do negócio jurídico. Nesse caso, a
parte prejudicada poderá se valer da revisão contratual por onerosidade
excessiva superveniente, mas deverá comprovar que o fato que provocou
o desequilíbrio é extraordinário e imprevisível (Código Civil, arts. 317
e 478 a 480).
b) Premente necessidade ou inexperiência: o que distingue es-
sencialmente a lesão do estado de perigo é o motivo que levou
o agente a contratar (indaga-se o que levou alguém a contratar
em condições tão desfavoráveis). Nesse ponto, o requisito sub-
jetivo da lesão pode ser a situação de premente necessidade ou
de inexperiência (basta uma delas).
A premente necessidade a que se refere o art. 157 do Código Civil
não é necessariamente econômica, embora seja a mais comum. Segundo
Caio Mário da Silva Pereira, a premente necessidade é a contratual, isto

162
Direito Civil

é, a necessidade de contratar, que independe da condição financeira do


contratante. A necessidade de contratar é a situação que se revela quan-
do o agente está impossibilitado de evitar o contrato. Como exemplo,
podemos citar uma agência de turismo que venda passagens aéreas na-
cionais, que não terá como evitar os contratos impostos pelas poucas
companhias aéreas brasileiras.
A inexperiência exigida para o reconhecimento da lesão deve ser
verificada de acordo com o conteúdo do contrato celebrado, pois se re-
fere à falta de conhecimentos específicos quanto à natureza do negócio.
Essa inexperiência pode ser técnica, negocial, jurídica, financeira etc.
Como não se refere à falta de cultura, toda pessoa pode ser considerada
inexperiente (p. ex.: um juiz de direito pode ser considerado inexperien-
te em um contrato de compra e venda de safra futura).
Quanto à inexperiência, o Enunciado 410 da V Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal propõe que “a inexperiência a que
se refere o art. 157 não deve necessariamente significar imaturidade ou
desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral,
podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contra-
tos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o ne-
gócio em causa”.

8.6.2. Consequências da lesão


O art. 178, II, do Código Civil estabelece que o negócio jurídico
viciado pela lesão é anulável, devendo ser proposta ação anulatória no
prazo decadencial de quatro anos, a contar da celebração do negócio
jurídico. A legitimidade para propositura da ação é apenas da parte pre-
judicada.
A anulação do negócio jurídico poderá ser evitada se o réu da ação
anulatória (a parte favorecida) oferecer suplemento suficiente ou con-
cordar com a redução do proveito. Essa regra, prevista no art. 157, §
2º, do Código Civil, decorre do princípio da conservação contratual.
Exemplo: se uma pessoa, por inexperiência, vender uma casa que valia
um milhão de reais pela metade do preço e propuser ação anulatória, o
comprador evitará a anulação se oferecer a outra metade do valor.
Sobre o tema, o Enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal prevê que “em atenção ao princípio da con-
servação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre
que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação,
sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do
art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002”.
Mais interessante, ainda, é o conteúdo do Enunciado 291 da IV Jor-
nada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Nas hipóteses de
lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por
não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pre-
tensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do
proveito do lesionador ou do complemento do preço”.

163
É certo que o Código Civil de 2002 não previu essa solução, mas
entendemos que pode ser adotada com base nos princípios da função
social e da conservação dos contratos: a revisão mantém o contrato vivo.
Além disso, a anulação do negócio pode não ser uma solução possível
para a parte prejudicada pela lesão porque a sentença determinará às
partes o retorno ao status quo ante. Imaginemos, então, um contrato
de compra e venda com lesão: com a anulação o comprador beneficia-
do deverá devolver o bem e o vendedor prejudicado deverá devolver a
quantia recebida. Se o vendedor tiver gastado o dinheiro, não terá como
pleitear a anulação, mas poderá requerer a revisão contratual para rece-
ber a diferença do preço.

8.7 frAuDE CoNTrA CrEDorES

A fraude contra credores é o ato do devedor insolvente ou próxi-


mo da insolvência alienar (vender ou desfazer-se de algum outro modo)
de um bem com o objetivo de prejudicar o credor, em virtude da di-
minuição do seu patrimônio. Exemplo: uma pessoa está devendo cem
mil reais e, sem quitar a dívida, doa para um amigo o único bem que
poderia ser utilizado para pagá-la.
A fraude contra credores representa, portanto, uma violação ao
princípio da responsabilidade patrimonial, pelo qual o patrimônio
de uma pessoa responde por suas obrigações. O devedor se antecipa à
reação de seus credores, alienando ou onerando seus bens que poderiam
ser objeto de expropriação judicial.
A fraude contra credores integra, ao lado da simulação, o grupo
dos vícios sociais: atuam na manifestação da vontade e o prejudicado é
sempre uma pessoa que não participou do negócio jurídico (terceiro).
Os cinco vícios já estudados (erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão)
são considerados vícios da vontade ou do consentimento, pois atuam
na formação da vontade e o prejudicado é sempre um dos contratantes.

8.7.1. Requisitos para caracterização da fraude


contra credores
O reconhecimento da fraude contra credores depende do reconhe-
cimento de três requisitos: evento danoso, anterioridade do crédito e
conluio fraudulento (ou ciência da fraude). Os dois primeiros requisitos
têm natureza objetiva e devem ser provados em todas as hipóteses de
fraude. O último requisito, de natureza subjetiva, deverá ser provado em
algumas situações e em outras será presumido.
a) Evento danoso (eventus damni): o credor deverá provar que
o ato de alienação tachado de fraudulento reduziu o devedor à
condição de insolvente. O requisito do evento danoso depende,

164
Direito Civil

portanto, da análise do patrimônio do devedor (créditos e débi-


tos) no momento em que aliena o bem.
voCABuLário
É evidente que o instituto da fraude contra credores não impede Ação pauliana: também de-
que a pessoa que tenha dívidas aliene os seus bens. Só haverá fraude nominada revocatória, é aque-
no ato de alienação ou oneração se for maliciosa e desfalcar o patrimô- la que visa desfazer a fraude
nio global do devedor a ponto de não conseguir responder pelas suas contra credores, de modo que
obrigações. os bens alienados fraudulenta-
mente pelo devedor retornem
b) Anterioridade do crédito: para caracterização da fraude con-
ao seu patrimônio por determi-
tra credores o autor da ação pauliana deverá provar que já era
nação judicial, a fim de que se-
credor do réu no momento em que ele alienou ou onerou os
jam usados pelo credor para a
bens. A anterioridade do crédito não leva em consideração o satisfação da dívida.
momento do vencimento dele, mas, sim, da sua origem.
Nesse sentido, o Enunciado 292 da IV Jornada de Direito Civil do
Conselho da Justiça Federal propõe que “para os efeitos do art. 158, § 2º,
a anterioridade do crédito é determinada pela causa que lhe dá origem,
independentemente de seu reconhecimento por decisão judicial”.
Em se tratando de responsabilidade civil contratual, o crédito
reputa-se constituído no momento da formação do contrato. Exemplo:
se uma pessoa recebeu dinheiro emprestado em 2013, alienou bens em
2014 e não pagou o empréstimo no momento do seu vencimento em
2015, terá agido em fraude, uma vez que já era devedora desde 2013.
Na hipótese de responsabilidade civil extracontratual ou aquili-
ana, o crédito considerar-se-á constituído desde o momento em que foi
praticado o ato ilícito. Exemplo: se uma pessoa atropelou outra em 2012,
alienou bens em 2013, foi processada em 2014 e condenada em 2015 a
reparar os danos causados, terá agido em fraude porque já era devedora
desde 2012.
c) Conluio fraudulento (consilium fraudis) ou ciência da fraude
(scientia fraudis): o credor deverá provar que o adquirente do
bem agiu em conluio com o devedor ou que tinha ciência da situ-
ação de insolvência do devedor. Em outras palavras, deverá ser
provada a má-fé do adquirente. A prova do conluio ou da ciência
da fraude pode ser feita por todos os meios admissíveis no pro-
cesso civil, inclusive indícios e presunções. Como exemplos de
forte indício de fraude, podemos apontar a aquisição de bens por
preço vil e a aquisição de bens por parentes próximos.
No entanto, ao contrário dos demais requisitos, esse último nem
sempre precisará ser provado. Se a alienação de bens pelo devedor for
gratuita (p. ex.: doação), a má-fé do adquirente será presumida (pre-
sunção absoluta). Se a alienação de bens for onerosa (p. ex.: compra e
venda), em regra será necessário provar a má-fé do adquirente (que agiu
em conluio ou que tinha ciência da fraude).
Por fim o art. 164 do Código Civil estabelece que “presumem-se,
porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à ma-
nutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à sub-
sistência do devedor e de sua família”. O objetivo da norma é, primeiro,

165
evitar que a situação do devedor seja agravada com a paralisação da
voCABuLário sua atividade econômica. Assim, o comerciante que estiver insolvente
credor quirografário: aquele poderá continuar vendendo os produtos de sua loja (negócio ordinário),
que não possui uma garantia mas incorrerá em fraude se alienar o próprio estabelecimento (negócio
real como a hipoteca, o pe- extraordinário).
nhor ou a anticrese. O segundo objetivo da norma é a garantia da subsistência do de-
vedor e de sua família, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Seria absurdo proteger o crédito de uma pessoa em detrimento
da sobrevivência de outra.

8.7.2. Hipóteses de fraude contra credores


O Código Civil apresenta expressamente quatro hipóteses em que
poderá ser reconhecida a fraude contra credores:
a) Atos de transmissão gratuita, remissão de dívidas ou renún-
cia de direitos (Código Civil, art. 158): ocorre quando um de-
vedor insolvente cede parte de seu patrimônio reduzido, abrin-
do mão do que indiretamente pertence a seus credores. Nessas
hipóteses não importa a ciência da insolvência do doador pelo
donatário, pois o interesse do credor prevalece sobre o interesse
do donatário. É mais justo proteger o devedor para que não
fique com prejuízo do que proteger o lucro do donatário. Essa é
a razão pela qual a prova do conluio fraudulento é dispensada.
Aplica-se o mesmo raciocínio para a remissão (perdão) de dívi-
das ou remissão de direitos, já que, quando o devedor perdoa
alguma dívida ou renuncia a algum direito, estará reduzindo
o patrimônio ou direito que poderia ser executado pelos seus
credores.
b) Alienações onerosas quando a insolvência é notória ou de
conhecimento do outro contraente (Código Civil, art. 159):
nessa hipótese existe um conflito entre o credor do alienante
(devedor) e o adquirente de boa-fé. Se o adquirente não tem
ciência da insolvência do devedor, seu interesse é que vai pre-
valecer sobre o do credor. Porém, se o adquirente sabia da in-
solvência do devedor ou se a insolvência é notória (p. ex.: tem
títulos protestados) e agiu de má-fé, o negócio será anulável.
O art. 160 do Código Civil determina que, se o adquirente dos bens
do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproxi-
madamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com
a citação de todos os interessados. Porém, se for inferior, o adquirente,
para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda
ao valor real.
c) Pagamento antecipado de dívida a credor quirografário
(Código Civil, art. 162): se o devedor paga dívidas vencidas, age
licitamente. Porém, se paga débitos que ainda não venceram,
age de maneira anormal, que já revela o propósito fraudulento.
Nessa hipótese, o art. 162 do Código Civil dispõe que o credor

166
Direito Civil

quirografário (aquele sem preferência no crédito), que receber


do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não venci-
da, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se
tenha de efetuar o concurso de credores.
d) Outorga fraudulenta de garantias reais (Código Civil, art.
163): nos termos do art. 163, presumem-se fraudatórias dos di-
reitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor
insolvente tiver dado a algum credor. O devedor insolvente que
presta qualquer forma de garantia real (hipoteca, penhor, anti-
crese ou propriedade fiduciária – alienação fiduciária) a um de
seus credores quirografários acaba prejudicando os demais em
razão da preferência estabelecida. Se a garantia prestada for pes-
soal/fidejussória (fiança ou aval), não haverá fraude, pois estas
não geram preferência e por isso não prejudicam os demais cre-
dores. O art. 163 estabelece uma presunção legal absoluta (juris
et de jure) de fraude, acarretando a anulabilidade da garantia.
Com a anulação da garantia (não do crédito) o credor retornará
à condição de credor quirografário (sem preferência).

8.7.3. Consequências da fraude contra credores


Ignorando forte crítica doutrinária, o legislador manteve no Códi-
go Civil de 2002 a mesma consequência para a fraude contra credores
que já estava prevista no diploma de 1916: a anulabilidade do negócio
jurídico. Concordamos com os autores que se posicionam diversamente
à solução adotada defendendo que a consequência adequada seria a ine-
ficácia relativa do negócio: o ato fraudulento é ineficaz perante os cre-
dores prejudicados, mas válido e eficaz entre as partes. Em questões de
concursos públicos recomendamos que seja gabaritada a jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça, que tem optado pela anulabilidade em
vez da ineficácia.
Para que o negócio jurídico seja anulado, o credor prejudicado
deverá propor ação revocatória, também denominada ação pauliana
(recebe esse nome porque foi inventada pelo pretor Paulo, no direito
romano), no prazo decadencial de quatro anos a contar da celebração
do negócio jurídico. De acordo com a jurisprudência, a fraude contra
credores não pode ser reconhecida em sede de embargos de terceiro, de-
vendo ser proposta a ação pauliana para tanto.
A legitimidade ativa (ou seja, para propor a ação) é das pessoas que
já eram credoras no momento em que a fraude foi praticada. Quanto
à legitimidade passiva (ou seja, para ser processado, figurando como
réu) o art. 161 do Código Civil determina que, “nos casos dos arts. 158
e 159, a ação poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa
que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros
adquirentes que hajam procedido de má-fé”. O termo poderá foi utiliza-
do de forma equivocada pelo legislador. Na verdade, a ação deverá ser
proposta em face do devedor e do outro contratante que participou da
fraude. Nesse sentido, aliás, é a jurisprudência do STJ.

167
8.7.4. fraude contra credores versus fraude à
execução
É muito comum a confusão entre a fraude contra credores e a
fraude à execução. Na fraude à execução, instituto de direito processu-
al civil, o devedor já tem contra si processo judicial capaz de reduzi-lo
à insolvência e, ainda assim, atua ilicitamente, alienando ou onerando
seus bens em prejuízo não só dos seus credores, mas também do próprio
processo, caracterizando reprovável atitude de desrespeito à justiça.
Caracteriza-se principalmente como ato de rebeldia à autoridade
estatal exercida pelo juiz, pois alienar bens na pendência deste e redu-
zir-se à insolvência significaria tornar inútil o exercício da jurisdição e
impossível a imposição do poder sobre o patrimônio do devedor.
Por outro lado, na fraude contra credores, instituto de direito civil,
o devedor não se insurge contra o processo ou a autoridade judicial.
Procura apenas se desfazer do seu patrimônio executável para que não
responda pelas obrigações anteriormente assumidas em contrato ou im-
postas pela lei.
A fraude à execução conduz à ineficácia do negócio jurídico e o seu
reconhecimento não depende de propositura de ação específica, poden-
do ser alegada incidentalmente mediante simples petição no processo,
resultando em decisão interlocutória. Diversamente, a fraude contra
credores determina a anulabilidade do negócio e exige a propositura
da ação pauliana para o seu reconhecimento. De acordo com a Súmu-
la 195 do STJ, “em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por
fraude contra credores”.
O grande problema é identificar a partir de que momento a
alienação de bens pelo devedor deixa de ser fraude contra credores e
passa a ser fraude à execução. A doutrina majoritária defende que o mo-
mento que separa os institutos é o da propositura da ação (de conheci-
mento ou execução). Se o bem foi vendido antes, haverá fraude contra
credores e, se o bem foi vendido após, haverá fraude à execução.
Adiantamos que esta é a posição mais justa, pois, a partir da propo-
situra da ação, o nome do devedor passará a constar dos distribuidores
cíveis, dos quais qualquer pessoa tem acesso aos dados ao requerer cer-
tidão (a cobrança se torna pública, impedindo a alegação de desconhe-
cimento da dívida pelo adquirente do bem).
Entretanto, na jurisprudência dos tribunais tem prevalecido a tese
de que somente haverá fraude à execução a partir do momento em que
o devedor foi citado da ação. Essa posição permite favorecer o devedor
de má-fé que pretenda dilapidar seu patrimônio e prejudica o credor
que deverá propor outra ação para tentar recuperar seu crédito. É muito
mais difícil e custoso anular a venda por fraude contra credores do que
declará-la ineficaz em razão da fraude à execução.
Outro fator de distinção entre os institutos, apontado pela doutri-
na, é a necessidade de prova da má-fé do adquirente na fraude contra

168
Direito Civil

credores (salvo quando a alienação é gratuita), enquanto na fraude à


execução haveria uma presunção absoluta de má-fé por parte do ad-
quirente. Entretanto, no início de 2009, o Superior Tribunal de Justiça
editou a Súmula 375 dispondo que “o reconhecimento da fraude à
execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova
de má-fé do terceiro adquirente”.
Entendemos que esta súmula representa verdadeiro retrocesso por
confundir os requisitos da fraude contra credores com os da fraude à
execução e, principalmente, por estabelecer uma proteção exagerada do
devedor e do terceiro adquirente em detrimento do credor.
Quanto aos efeitos da decisão que reconhece os institutos, temos
que a fraude contra credores beneficia todos os credores, enquanto na
fraude à execução a decisão judicial beneficia apenas o credor do proces-
so em que foi praticado o ato fraudulento.

169
170
9 invalidade dos
Negócios Jurídicos
9.1 iNvALiDADE

Após tratar dos vícios do negócio jurídico, o Código Civil de 2002


dispõe sobre a nulidade e anulabilidade no Capítulo V (“Da invalidade
do negócio jurídico”), em seus arts. 166 a 184. Invalidade, em sentido
amplo, é expressão utilizada para designar o negócio que não produz as
consequências desejadas pelas partes. É gênero do qual decorrem duas
espécies: a nulidade (negócio jurídico nulo); e a anulabilidade (negócio
jurídico anulável).
No Código Civil de 1916 o legislador utilizava a expressão nulidade
absoluta para se referir ao negócio jurídico nulo e nulidade relativa
para se referir ao negócio jurídico anulável. No Código Civil de 2002
as expressões foram eliminadas, mas continuam sendo utilizadas pela
doutrina e jurisprudência.
A escolha do legislador por uma ou outra sanção (consequência a
ser aplicada) decorre da análise do interesse envolvido. Quando há ofen-
sa a princípios básicos do ordenamento jurídico e, consequentemente,
lesão a interesse da coletividade (hipóteses mais graves), o legislador
impõe a nulidade. Quando o interesse é particular (hipóteses menos
graves), a sanção escolhida é a anulabilidade.
Nos termos do art. 184 do Código Civil, “respeitada a intenção das
JuriSPruDÊNCiA partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na
parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal
(STJ, 3ª T., Resp 981.750, Min.
implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obriga-
Nancy Andrighi, j. 13.4.2010, DJ
ção principal”.
23.4.2010).
A aplicabilidade dessa norma se dá tanto às hipóteses de nulidade
como às de anulabilidade, preservando, se possível for, parte do negócio
jurídico que não esteja contaminado pela invalidade. Trata-se de reco-
nhecimento do princípio da conservação dos contratos.

9.1.1. invalidade versus inexistência


Ao estudarmos os planos do negócio jurídico, vimos que a ausên-
cia dos elementos que compõem o plano de existência (partes, objeto,
forma e vontade) determina sua inexistência. Já a invalidade decorre da
não observância dos requisitos exigidos pelo plano de validade.
É certo que o Código Civil de 2002 não adotou a teoria dos atos
existentes e inexistentes, concebida no século XIX, para impedir o ca-
samento entre pessoas do mesmo sexo (entendia-se que a diferença de
sexo seria um pressuposto tão elementar do casamento que, se não veri-
ficada, não existiria casamento). Entretanto, não são poucos os autores
que defendem a importância do plano de existência no estudo dos ne-
gócios jurídicos (Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira, Renan
Lotufo, Sílvio Venosa, Francisco Amaral etc.).
O ato inexistente é aquele que não preenche os elementos essen-
ciais à sua constituição. Ao contrário dos atos inválidos, o ato inexistente

172
Direito Civil

é considerado um simples fato que não tem força para produzir efeitos
jurídicos. Desta forma, em princípio, não é sequer necessária a proposi-
tura de ação judicial para reconhecer o ato como inexistente (o ato existe
no mundo dos fatos, mas não no do direito).
No entanto, a prática revela que muitas vezes será necessária a pro-
positura de ação declaratória de inexistência. Isso faz com que desapa-
reça o principal fator de distinção entre a inexistência e a nulidade: a
necessidade de declaração judicial.

9.2 NuLiDADE

Nulidade em sentido amplo é a sanção legal que determina a pri-


vação de efeitos jurídicos do negócio praticado em desacordo ao orde-
namento jurídico. Pode ser de dois tipos: a nulidade e a anulabilidade. A
nulidade em sentido estrito decorre da violação de preceitos de ordem
pública que consagram interesses sociais. A anulabilidade será estudada
mais à frente e decorre da violação de interesses privados.
A nulidade textual é aquela em que a própria norma jurídica dis-
põe expressamente que o ato será nulo (p. ex.: Código Civil, art. 166). A
nulidade virtual ou implícita é aquela deduzida de expressões utiliza-
das pelo legislador com o fim de proibir a prática de determinados atos
(p. ex.: “não pode”, “não se admite” etc.).

9.2.1 Hipóteses de nulidade


O art. 166 do Código Civil contém sete hipóteses em que o negócio
jurídico será considerado nulo. Será nulo o negócio quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz: quando a pessoa é
absolutamente incapaz sua vontade é desprezada pelo ordenamento
jurídico, devendo ser representada (a vontade é substituída) nos atos
da vida civil sob pena de nulidade do ato. O rol dos absolutamente
incapazes está previsto no art. 3º do Código Civil.
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto: o negócio
será nulo se o objeto for: a) ilícito: aquele que viola o ordenamento
jurídico (lei, moral, ordem pública ou bons costumes); b) impossí-
vel: aquele que não pode ser cumprido em razão dos limites físicos
dos seres humanos (impossibilidade física) ou dos limites jurídicos
(impossibilidade jurídica); c) indeterminável: aquele que não permi-
te individualização (p. ex.: falta do gênero ou da quantidade em uma
obrigação de dar).
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito: o
motivo que leva uma pessoa a realizar um negócio jurídico em regra
não tem relevância para análise da validade deste. Contudo, quando
o motivo for a razão determinante do negócio, há relevância jurídica
na sua análise, determinando a nulidade do ato.

173
IV – não revestir a forma prescrita em lei: em regra o direito civil
não exige formalidade para a validade dos negócios jurídicos (Códi-
go Civil, art. 107). Contudo, quando esta é exigida e não for cumpri-
da, o negócio será nulo.
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial
para a sua validade: embora alguns autores utilizem as expressões
“solenidade” e “formalidade” como sinônimas, entendemos que a
formalidade diz respeito à exigência de forma escrita, enquanto a so-
lenidade é a exigência de instrumento público (p. ex.: Código Civil,
art. 108). A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurí-
dico sempre que este puder provar-se por outro meio.
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa: deve ser considerado
nulo o negócio jurídico que tenha por objetivo violar norma jurídica
considerada de ordem pública (aquelas que não podem ser afastadas
pelo exercício da autonomia privada).
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática,
sem cominar sanção: o negócio jurídico será nulo se a lei assim o
determinar (nulidade textual ou expressa) ou se proibir a prática do
ato sem estabelecer sanção específica (nulidade virtual ou implícita).

Além das hipóteses do art. 166, o art. 167 do Código Civil dispõe
que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissi-
mulou, se válido for na substância e na forma”. O legislador do novel
diploma considerou a simulação como simples causa de nulidade diante
das inúmeras formas que ela pode revestir, mas a doutrina majoritária
continua considerando-a como vício social. Um vício social que deter-
mina a nulidade do negócio jurídico.

9.2.2. regras da nulidade


Quando o negócio jurídico é considerado nulo, deve ser propos-
ta ação declaratória de nulidade. Qualquer interessado ou até mesmo
o Ministério Público têm legitimidade para requerer a declaração de
nulidade do negócio jurídico nas hipóteses previstas nos arts. 166 e 167
do Código Civil. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, o legislador do
Código Civil de 2002 se afastou do antigo princípio francês do pas de
nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), abandonando o crité-
rio do prejuízo para a declaração de nulidade do negócio.
ComENTário Por envolver interesse público, as nulidades devem ser pronuncia-
das pelo juiz (decretação de ofício), quando conhecer do negócio jurídi-
i Jornada de Direito Civil co ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido
Enunciado 13 do CEJ: “O aspec- supri-las, ainda que a requerimento das partes (Código Civil, art. 168,
to objetivo da convenção requer parágrafo único).
a existência do suporte fático no Portanto, o negócio jurídico nulo não pode ser suprido, sanado
negócio a converter-se”. (sobre ou convalidado, mas pode ser objeto de conversão, nos termos do art.
o art. 170 do CC)
170 do Código Civil: “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os
requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes
permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.

174
Direito Civil

Como exemplo de conversão, podemos citar a celebração de um


contrato de compra e venda de um imóvel com valor superior a trinta
voCABuLário
salários mínimos mediante instrumento particular. Por força do dispos- pródigo: pessoa portadora de
to nos arts. 108 e 166, V, do Código Civil, o negócio jurídico será nulo, distúrbio mental que a impede
mas qualquer uma das partes poderá requerer em juízo a conversão dele de controlar seus gastos e man-
em um compromisso de compra e venda que, independentemente do ter seu patrimônio, o que acar-
valor, pode se valer do instrumento particular. reta incapacidade para deter-
O art. 169 do Código Civil ainda determina que o negócio jurídico minados atos da vida civil.
nulo não convalesce pelo decurso do tempo. Não se tem dúvidas de que
referido dispositivo consagrou a imprescritibilidade do negócio jurí-
ATENÇÃo
dico nulo, mas na doutrina podemos encontrar as seguintes correntes
sobre o tema:
Nulidade: é o negócio jurídi-
1ª Corrente: defende a imprescritibilidade da ação declaratória de co considerado nulo.
nulidade, nos termos da redação do art. 169 (Silvio Rodrigues). Esta é a
Anulabilidade: é a sanção
posição mais segura para quem for prestar concursos públicos. imposta ao negócio quando pre-
2ª Corrente: defende a inexistência de direitos patrimoniais im- sentes os vícios. Produz efeitos até
prescritíveis. Desta forma, a ação declaratória de nulidade deve respeitar ser anulado.
o prazo geral de prescrição de dez anos, previsto no art. 205 do Código
Civil (Caio Mário da Silva Pereira).
3ª Corrente: defende que a ação declaratória de nulidade é impres-
critível, mas pondera que as consequências do ato só podem ser desfeitas
dentro do prazo geral de prescrição de dez anos (Pablo Stolze e Rodolfo
Pamplona Filho).

9.3 ANuLABiLiDADE

A anulabilidade é a sanção imposta pela lei quando presente viola-


ção de interesses particulares. Ao contrário da nulidade, que apresenta
um estado fixo (o negócio já nasce nulo), a anulabilidade revela um esta-
do mutável (o negócio nasce com a possibilidade de ser anulado). É por
essa razão que o negócio jurídico nulo não produz efeitos, e o negócio
jurídico anulável produz efeitos até ser anulado.

9.3.1. Hipóteses de anulabilidade


O art. 171 do Código Civil prevê que, além dos casos expressamente
declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:
I – por incapacidade relativa do agente: os relativamente incapazes
devem ser assistidos nos atos da vida civil, sob pena de anulabilidade
do negócio. De acordo com o art. 4º do Código Civil, são relativamen-
te incapazes: a) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; b)
os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência
mental, tenham o discernimento reduzido; c) os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo; e d) os pródigos.
II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, le-
são ou fraude contra credores: o legislador consagrou o princípio

175
da operabilidade ao uniformizar o tratamento conferido aos vícios
CurioSiDADE do negócio jurídico no Código Civil de 2002: todos determinam a
anulabilidade do negócio e ação deve ser proposta no prazo decaden-
Defeitos dos negócios jurídicos: cial de quatro anos. A simulação não seguiu o mesmo padrão, pois o
a) erro: “(...) quando a pessoa legislador entendeu que ela não seria vício do negócio.
manifesta sua vontade negocial em
razão de determinada pessoa ou de Além das hipóteses previstas no art. 171, o Código Civil apresenta
determinada coisa, mas fazendo com
outra pessoa ou coisa aparentes”.
diversas outras hipóteses de anulabilidade: arts. 117, 119, 141, 496, 533,
b) dolo: “(...) a malícia ou o arti- II, 1.550, 1.558, 1.649 e 2.027.
fício inspirado na má-fé para induzir a
outra parte a realizar o negócio jurídi-
co, em seu prejuízo”.
9.3.2. Consequências da anulabilidade
c) coação: “(...) a ameaça à Para que o negócio seja anulado, a parte interessada deverá propor
pessoa ou à família da outra parte ca-
ação anulatória. A legitimidade ativa é exclusiva da parte prejudicada
paz de incutir medo de dano pessoal
ou material caso não realize o negó- pelo ato e os seus efeitos só aproveitam aos que a alegarem, salvo o caso
cio jurídico pretendido pelo coator”. de solidariedade ou indivisibilidade do objeto.
d) lesão: “(...) o defeito do negó- A anulabilidade não pode ser pronunciada de ofício pelo juiz e
cio jurídico caracterizado pela van-
produz efeito antes de julgada por sentença. Essa sentença tem natu-
tagem desproporcional de uma das
partes, que age de má-fé, aproveitan- reza desconstitutiva e eficácia ex nunc consoante doutrina majoritária.
do-se da situação de vulnerabilidade Entretanto, há quem entenda que a eficácia seria ex tunc em razão do
da outra”. disposto no art. 182 do Código Civil: “anulado o negócio jurídico, resti-
e) estado de perigo: “(...) espécie tuir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo
do gênero lesão, caracterizado pelo
fato de que a pessoa prejudicada
possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”.
tem consciência da desvantagem ou O negócio jurídico anulável pode ser confirmado pelas partes, re-
iniquidade provocadas pelo negócio troagindo à data em que foi celebrado o ato. Essa confirmação do ato
jurídico, mas o realiza ante a situação
não será possível se prejudicar direito de terceiro de boa-fé. O ato de
peculiar da necessidade de salvar-se
ou de salvar alguém de sua família”. confirmação pode ser expresso ou tácito. Se a confirmação for expressa,
f) fraude contra credores: “Cre- deverá conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa
dor e devedor, agindo de má-fé, utili- de mantê-lo. Também deverá ser observada a solenidade se esta for da
zam-se da aparência de determinado substância do ato.
negócio jurídico, que esconde a real
intenção, ou seja, de impedir que o A confirmação tácita pode ser verificada em duas hipóteses: a pri-
terceiro, credor de um deles, possa meira decorre do fim do prazo decadencial para a anulação do negócio;
ter satisfeito ou garantido, patrimonial- a segunda resulta do cumprimento parcial do negócio pelo devedor,
mente, o seu crédito”.
quando ciente do vício que o inquinava (o art. 174 dispõe que é escusa-
FONTE: LÔBO, Paulo. Direito Civil.
da – ou seja, dispensada – a confirmação expressa nesta situação).
Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015.
p. 259-278. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anu-
lável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as
ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse o devedor (art. 175).
voCABuLário Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de tercei-
ro, será validado se este a der posteriormente (art. 176).
Efeito ex tunc: é aquele que retro-
age à época em que se formou a A ação anulatória deverá ser proposta no prazo decadencial de qua-
relação jurídica. tro anos, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar; II – no
Efeito ex nunc: começa a atuar a de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia
partir da prolação da sentença, em que se realizou o negócio jurídico; e III – no de atos de incapazes, do
preservando os efeitos negociais dia em que cessar a incapacidade.
já produzidos. Se a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer
prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data
da conclusão do ato (Código Civil, art. 179). Esse prazo, por exemplo,

176
Direito Civil

deve ser observado na ação anulatória de venda de ascendente a descen-


dente, sem autorização dos demais descendentes (art. 496).
CiNEmATECA
O art. 180 do Código Civil consagra a regra pela qual a malícia A Proposta
supre a incapacidade, ao dispor que “o menor, entre dezesseis e dezoito (The Proposal,
anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se 2009).
dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato Neste filme,
de obrigar-se, declarou-se maior”. Margaret, uma
Por fim, o art. 181 do Código Civil dispõe que “ninguém pode re- imigrante ca-
clamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não nadense, des-
cobre que po-
provar que reverteu em proveito dele a importância paga”.
derá enfrentar
acusações por deportação em
função de seu visto estar expiran-
9.4 SimuLAÇÃo do. Disposta a manter sua função
como chefe-executiva em uma
A simulação é uma declaração enganosa da vontade com o objetivo Editora, Margaret convence seu
assistente a atuar como seu ma-
de provocar uma ilusão no público, seja por não existir negócio de fato,
rido até que ela resolva seus pro-
seja por existir um negócio diferente daquele que se aparenta. Há, por-
blemas de visto, no entanto, com
tanto, um desacordo intencional entre a vontade interna (intenção) e a
o passar do tempo, a relação dos
vontade externa (manifestação), com o objetivo de iludir terceiro. dois vai se intensificando. Enten-
Como requisito da simulação figura, assim, um acordo (simulató- de-se que a relação dos dois foi
rio) entre as partes com objetivo de declarar perante terceiros um ne- um negócio simulado, pela rela-
gócio jurídico aparente (negócio simulado), podendo, igualmente, haver ção afetiva não existir de fato.
um negócio verdadeiro entre as partes contratantes (negócio dissimula-
do). Percebe-se, dessa forma, que o propósito do negócio aparente é o de
enganar a coletividade, e não o outro contraente.
Consoante prescreve o art. 167, § 1º, do Código Civil, haverá si-
mulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou
transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se con-
ferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição
ou cláusula não verdadeira; ou III – os instrumentos particulares forem
antedatados, ou pós-datados.
A simulação é quase sempre verificada em negócios jurídicos bila-
terais (normalmente contratos), mas também pode estar presente em
negócios jurídicos unilaterais, se houver ajuste simulatório entre a pes-
soa que pratica o ato simulado e a outra que suportará as consequências
do ato.

9.4.1. Natureza jurídica


No Código Civil de 1916 a simulação era tratada juntamente com
os demais vícios do negócio jurídico, mas no Código Civil de 2002 foi
deslocada para o capítulo que trata da invalidade do negócio jurídico,
deixando dúvida se continua a ser espécie de vício ou se passou a simples
hipótese de nulidade absoluta.
Entendemos que o deslocamento da matéria não alterou a nature-
za do instituto, devendo ser tratada como espécie de vício social, pois,

177
assim como a fraude contra credores, a simulação apresenta defeito na
voCABuLário manifestação da vontade e tem por objetivo prejudicar terceiros que
conluio: ação combinada en-
não participaram do negócio.
tre duas ou mais pessoas com
o objetivo de lesar um terceiro, 9.4.2. requisitos da simulação
obter vantagem ilícita ou fur-
a) Conluio das partes envolvidas: na simulação os contratantes
tar-se ao cumprimento de uma
agem de forma conjunta e combinada. Nesse aspecto, a simu-
obrigação imposta por Lei.
lação não deve ser confundida com a reserva mental, embora
nas duas figuras o sujeito declare conscientemente algo diverso
do que na verdade pretende, com o fim de enganar alguém. Na
reserva mental a pessoa envolvida no negócio não tem conheci-
mento do fato e das intenções da outra parte, sendo vítima das
pretensões do sujeito; na simulação a vítima é um terceiro que
não participa do ato simulado. Além disso, ao estudarmos os
requisitos de validade do negócio jurídico no capítulo anterior,
vimos que a reserva mental, em regra, não gera a invalidade do
negócio (Código Civil, art. 110).
b) Propósito de iludir e enganar: a simulação é realizada com o
objetivo de produzir um efeito diverso do ostensivamente indi-
cado, que vicia o ato desde o seu nascimento. Sobre a aparência
de um ato lícito pretende-se prejudicar terceiros ou violar a lei.
Essa é a razão pela qual a simulação não deve ser confundida
com o dolo: na simulação as partes desejam prejudicar tercei-
ros, no dolo uma parte quer prejudicar outra.
c) Divergência consciente entre a vontade declarada e a vontade
real: as partes não se enganam de forma involuntária na simu-
lação. A diferença entre a vontade interna (intenção) e a vonta-
de externa (manifestação) é sempre consciente e desejada.

9.4.3. Consequências da simulação


ComENTário
Diversamente dos demais vícios do negócio jurídico que determi-
iii Jornada de Direito Civil nam a anulabilidade (o negócio jurídico é anulável), a simulação gera a
Enunciado 152 do CEJ: “Toda si- nulidade (o negócio jurídico é nulo). Nesse sentido, o art. 167, caput, do
mulação, inclusive a inocente, é Código Civil determina que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas
invalidante”. subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.
Ao dispor que subsistirá o que se dissimulou, o dispositivo permite que a
pena de nulidade seja aplicada de forma distinta a depender do tipo de
simulação. Conforme veremos no próximo tópico, na simulação abso-
luta a nulidade atinge todo o negócio, enquanto na simulação relativa a
nulidade atingirá apenas a parte viciada do negócio.
Para que seja reconhecida a simulação, deverá ser proposta a ação
declaratória de nulidade a qualquer tempo, pois, de acordo com o art.
169 do Código Civil, o negócio jurídico nulo não convalesce pelo decur-
so do tempo (é imprescritível).
Por ser causa de nulidade, a ação pode ser proposta por qualquer
interessado, inclusive pelo Ministério Público, quando lhe couber in-

178
Direito Civil

tervir (interesses de menores ou de incapazes, ou quando entender ne-


cessária a intervenção para proteção de interesses metaindividuais ou
individuais relativos à dignidade da pessoa humana).
Em que pese a declaração de nulidade absoluta, são preservados os
efeitos gerados pelo negócio aparente em relação a terceiros de boa-fé
(aqueles que desconheciam a divergência entre a vontade real e a decla-
ração dos contratantes). Com a intenção de proteger a confiança impres-
cindível entre os agentes, a ordem jurídica ressalva os direitos de tercei-
ros de boa-fé que acreditaram e fundamentaram suas ações na aparência
do negócio jurídico a eles apresentado (Código Civil, art. 167, § 2º).

9.4.4. Classificação da simulação quanto ao seu


conteúdo

9.4.4.1. Simulação absoluta


É aquela em que a declaração de vontade viciada não visa a produ-
ção de qualquer efeito jurídico. As partes procuram transmitir a tercei-
ComENTário
ros uma impressão enganosa de que teriam convencionado determina-
iv Jornada de Direito Civil
do negócio jurídico (aparente), mas na realidade não desejam realizar
Enunciado 294 do CEJ: “Sendo a
qualquer negócio. Quando a simulação é absoluta, o negócio jurídico é simulação uma causa de nulida-
completamente nulo por não existir nada de verdadeiro na manifestação de do negócio jurídico, pode ser
de vontade. alegada por uma das partes con-
Abaixo transcrevemos interessantes exemplos de simulação absolu- tra a outra”.
ta apresentados pela professora Maria Helena Diniz:
a) o proprietário de uma casa alugada que, com a intenção de faci-
litar a ação de despejo contra seu inquilino, finge vendê-la a ter-
ceiro que, residindo em imóvel alheio, terá maior possibilidade
de vencer a referida demanda (RT, 177:250, 439:92);
b) a emissão de títulos de crédito, que não representam qualquer
negócio, feita pelo marido, em favor de amigo, antes da separa-
ção judicial, para prejudicar a mulher na partilha de bens (RT,
255:451, 307:376, 441:276, 317:155 e 179:844);
c) a alegação de uma situação patrimonial inexistente, quando, p.
ex., o proprietário de uma pedreira que explodiu, causando gra-
ves prejuízos a terceiros, declara que é devedor de enormes quan-
tias a um amigo seu, a quem dá garantia real, com a finalidade de,
mediante a preferência concedida, ilidir a execução que lhe seria
movida pelas vítimas do referido acidente (RF, 40:546);
d) o devedor que finge vender seus bens para evitar a penhora;
e) a pessoa que, ante o incessante pedido de parentes para que ve-
nha a prestar fiança ou aval, transfere, para pôr fim àquele “assé-
dio”, seus bens para um amigo, fazendo com que não haja em seu
nome lastro patrimonial, tornando-lhe impossível a prestação de
qualquer garantia real ou fidejussória.

179
9.4.4.2. Simulação relativa
ComENTário
A simulação relativa, também conhecida como dissimulação, é
iii Jornada de Direito Civil aquela em que há um negócio jurídico falso (negócio simulado) enco-
Enunciado 153 do CEJ: “Na simu- brindo outro verdadeiro (negócio dissimulado). Visa-se com o negócio
lação relativa, o negócio simula- simulado produzir efeitos diferentes daqueles que seriam naturais ao
do (aparente) é nulo, mas o dis- negócio. O negócio aparente, na simulação relativa, é um meio de reali-
simulado será válido se não ofen- zação do ato dissimulado, desejado. Ao contrário da simulação absoluta,
der a lei nem causar prejuízos a na simulação relativa a nulidade atingirá apenas a parte falsa do negócio,
terceiros”.
desde que a restante preencha os demais requisitos de validade (conteú-
iv Jornada de Direito Civil do e forma) do negócio jurídico.
Enunciado 293 do CEJ: “Na simu-
A simulação relativa pode ser classificada como subjetiva ou ob-
lação relativa, o aproveitamento
jetiva. Simulação relativa subjetiva é aquela em que o elemento falso
do negócio jurídico dissimula-
do negócio é o sujeito, isto é, a pessoa com quem se pretende contratar.
do não decorre tão somente do
afastamento do negócio jurídico
Por não poder contratar diretamente com determinada pessoa, o agente
simulado, mas do necessário pre- celebra o negócio jurídico com outra (interposta pessoa). Exemplo: a
enchimento de todos os requisitos pessoa que doa um imóvel à mãe de sua amante com o objetivo de burlar
substanciais e formais de validade a proibição legal de beneficiar diretamente sua amante (Código Civil,
daquele”. art. 550).
Simulação relativa objetiva é aquela em que o elemento falso do
contrato diz respeito a algum elemento objetivo. Pode ser quanto ao ob-
jeto (p. ex.: afirma que está vendendo um bem e na verdade é outro), à
natureza jurídica (p. ex.: o contrato é de compra e venda, mas pretende
a doação do bem), à data (p. ex.: o contrato é assinado hoje com data
futura ou pretérita), ao preço (p. ex.: a escritura pública de compra e
venda apresenta um valor abaixo do verdadeiro para que as partes pa-
guem menos impostos) etc.

180
10 Prescrição e
decadência
10.1 iNTroDuÇÃo

Com o objetivo de garantir a estabilidade social e a segurança das


relações jurídicas, o legislador estabelece prazos para que as pessoas
possam buscar seus direitos em juízo, afinal, dormientibus non sucur-
rit jus (o direito não socorre quem dorme). Esses prazos, denominados
prescrição e decadência, permitem a consolidação das situações jurídi-
cas, impedindo que o exercício de um direito fique pendente de forma
indefinida no tempo. No Código Civil de 2002, observa-se a preocupa-
ção do legislador em distinguir as hipóteses e os prazos de prescrição e
decadência, facilitando o trabalho do profissional do direito em consa-
gração ao princípio da operabilidade.
Na vigência do Código Civil de 1916 era muito comum a confusão
entre os institutos: em parte devido ao tratamento legislativo da matéria
e, em parte, devido à falta de consenso doutrinário sobre a definição dos
institutos. Nesse sentido era comum a lição de que “a prescrição põe
fim a ação e a decadência ao direito”. Atualmente, compreende-se como
absolutamente equivocada a afirmação de que a prescrição põe fim à
ação, pois o direito de ação é o direito público, abstrato e indisponível
que toda pessoa tem de ter acesso ao Poder Judiciário.
Esse direito de peticionar é garantido pelo princípio constitucional
da inafastabilidade do provimento jurisdicional (Constituição Federal,
art. 5º) e não está sujeito a qualquer prazo. Não deve ser confundido,
evidentemente, com o conteúdo da ação, isto é, com o direito pleiteado
em juízo que pode estar sujeito a um prazo de prescrição ou de decadên-
cia, conforme veremos.

10.2 PrESCriÇÃo

10.2.1. Conceito de prescrição


Na atualidade a prescrição pode ser definida como a perda da pre-
tensão de reparação do direito violado em virtude da inércia de seu titu-
lar, no prazo previsto em lei. Nesse sentido, o art. 189 do Código Civil de
2002 determina que, violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a
qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e
206. E o que vem a ser a pretensão?
Pretensão é o poder de exigir de outrem, coercitivamente, o cum-
primento de um dever jurídico previsto em lei ou em contrato. A pre-
tensão é, portanto, o poder de exigir o cumprimento de um direito
subjetivo patrimonial em juízo. Como exemplo de pretensão, podemos
citar: o direito de cobrar uma dívida vencida e não paga; o direito de
cobrar indenização em virtude de danos causados; o direito de cobrar
aluguéis atrasados etc.

182
Direito Civil

De outra forma, podemos afirmar que o conceito de prescrição está


diretamente relacionado à estrutura da obrigação civil, composta por ATENÇÃo
débito e responsabilidade civil. O débito é o dever jurídico de cumprir
Não confundir prescrição com:
espontaneamente uma prestação de dar, fazer ou não fazer. A respon-
Preclusão: é a perda da fa-
sabilidade civil é a consequência patrimonial do descumprimento do
culdade ou direito processual em
débito – permitindo que o credor ingresse em juízo pleiteando o cum-
virtude da inércia do interessado
primento forçado da prestação ou a reparação pelo dano causado. As-
(p. ex.: a perda do prazo para re-
sim, a prescrição fulmina a responsabilidade civil, nunca o débito. É
correr de uma decisão judicial).
por essa razão que o pagamento de uma dívida prescrita não autoriza
Perempção: é a perda do
pedido de repetição do indébito (o débito existia, apenas não podia ser
direito ativo de processar uma
exigido em juízo).
pessoa, em razão da extinção
do processo por três vezes sem
10.2.2. Prescrição extintiva e prescrição julgamento do mérito (art. 267 do
aquisitiva CPC), pelo abandono imputável
à parte que deveria promover-lhe
Na doutrina é comum a referência a dois tipos de prescrição: a ex-
a tramitação.
tintiva e a aquisitiva. A prescrição extintiva é tratada na Parte Geral do
Código Civil de 2002 e se refere à perda de um direito. Por outro lado, a
prescrição aquisitiva, também denominada usucapião, se refere à aqui-
sição de um direito e vem regulada na Parte Especial do Código.
Para alguns autores, a expressão prescrição aquisitiva é inapropria-
da para se referir à usucapião. Contudo, a proximidade entre os institu-
tos é tamanha que o próprio legislador estabeleceu que na usucapião se
estende ao possuidor o disposto quanto ao devedor, acerca das causas
que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição (art. 1.244). Neste
capítulo trataremos apenas da prescrição extintiva, deixando o estudo
da aquisitiva para o capítulo que trata do direito das coisas.

10.2.3. Prescrição da exceção


A palavra exceção possui diversos significados, mas, em geral, re-
presenta uma forma de defesa apresentada pelo réu em contraposição
ao direito do autor. Essa defesa não pode ser apresentada a qualquer
momento, pois, de acordo com o art. 190 do Código Civil, a exceção
prescreve no mesmo prazo em que a pretensão. Em que pese a omissão
do legislador, a correta interpretação do dispositivo exige a distinção en-
tre duas modalidades de exceção: as dependentes e as independentes.
As exceções dependentes, também denominadas não autônomas,
são aquelas diretamente relacionadas a uma pretensão, isto é, um direito
que o réu poderia cobrar do autor mediante uma ação própria (além de
servirem como meio de defesa, constituem um meio de ataque). Como
exemplo, podemos citar a exceção de compensação em que o réu alega ser
credor do devedor. Se esse crédito já estava prescrito e não poderia ser
cobrado judicialmente por meio de uma pretensão, também não pode
ser alegado como exceção. Portanto, o art. 190 do Código Civil tem apli-
cabilidade quanto às exceções dependentes.
As exceções independentes, também denominadas autônomas,
são aquelas que não estão relacionadas a uma pretensão que o réu tem
contra o autor (não servem como meio de ataque, mas apenas de defe-

183
sa). Desta forma, as exceções independentes representam fatos que ape-
nas têm o poder de impedir o sucesso da pretensão do autor e podem
ser alegadas em qualquer momento (não prescrevem). Como exemplo
de exceções independentes, podemos citar a alegação pelo réu de que a
dívida já foi paga (exceção de pagamento); de que há coisa julgada; de
que a pretensão do autor está prescrita etc.

10.2.4. Alegação da prescrição


O art. 193 do Código Civil dispõe que a prescrição pode ser alegada
em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Admite-se,
portanto, a alegação da prescrição em qualquer fase do processo durante
a instância ordinária (primeira ou na segunda instância): na contesta-
ção, em embargos, apelação etc. Contudo, se não foi alegada na instância
ordinária, não pode ser alegada em instância extraordinária (Recurso
Especial ao STJ ou Recurso Extraordinário ao STF), em razão do requi-
sito do prequestionamento (Súmulas 282 e 356/STF e 211/STJ). Também
não pode ser alegada: a) na fase de liquidação de sentença (durante a
execução só é admitida a alegação de prescrição intercorrente); b) em
ação rescisória, se não foi arguida na ação que se pretende rescindir a
sentença.
Ainda que seja comum a alegação da prescrição na contestação sob
a forma de preliminar, a sentença judicial que reconhece a prescrição
provoca a extinção do processo com julgamento do mérito (Código de
Processo Civil, art. 487, I). Isto ocorre, pois a prescrição é uma prelimi-
nar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas que,
devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pontos
controversos quanto ao mérito.

10.2.5. renúncia da prescrição


A renúncia é o ato unilateral pelo qual o devedor de uma obrigação
abre mão do direito de alegar a prescrição da pretensão. É unilateral,
pois a validade e a eficácia do ato não estão sujeitas à anuência do credor.
A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita. A renúncia tácita
é aquela que se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a
prescrição (p. ex.: pagamento voluntário da dívida prescrita). Para que a
renúncia seja válida, deve preencher dois requisitos: 1º) o prazo já deve
estar consumado (isto é, não é admitida renúncia prévia da prescrição);
e 2º) não pode prejudicar terceiros. É por essa razão que não é admitida
a renúncia da prescrição por parte do devedor insolvente, impedindo
assim o prejuízo de outros credores.

10.2.6. Declaração de ofício da prescrição


Em sua redação original, o art. 194 do Código Civil de 2002 não
admitia a declaração de ofício da prescrição, salvo se favorecesse pessoa
absolutamente incapaz. Contudo, com o advento da Lei n. 11.280/2006,
a regra presente no art. 194 do Código Civil foi revogada e a prescrição

184
Direito Civil

passou a ser decretável de ofício pelo juiz (Código de Processo Civil de


1973, art. 219, § 5º, sem correspondente no diploma de 2015). A mu-
ComENTário
dança legislativa criou um conflito interno na estrutura da prescrição,
chegando alguns autores a questionar se ainda seria possível a renúncia São imprescritíveis as ações que
versem sobre:
da prescrição. Com o tempo, a doutrina se pacificou no sentido de que
o direito de renúncia prevalece sobre a possibilidade de declaração de l direitos da personalidade: vida,
integridade, honra, nome, ima-
ofício (Enunciado 295/CJF: “A revogação do art. 194 do Código Civil
gem, intimidade;
pela Lei n. 11.280/2006, que determina ao juiz o reconhecimento de
l o estado da pessoa: como filia-
ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia
ção (p. ex.: investigação de pa-
admitida no art. 191 do texto codificado”), devendo o juiz promover a
ternidade), condição conjugal,
intimação prévia das partes para se manifestarem: o réu, para que possa,
cidadania;
eventualmente, renunciar à prescrição; o autor, para que possa alegar
l ações declaratórias de nulidade
e demonstrar alguma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição.
absoluta (por envolverem ques-
Quanto à exigência da intimação das partes, podemos identificar as se-
tões de ordem pública);
guintes correntes doutrinárias:
l direito de família, no que con-
1ª Corrente: defende que ambas as partes devem ser intimadas: o cerne a regime de bens, alimen-
réu, para, se desejar, exercer o direito de renúncia da prescrição; o autor, tos, vida conjugal, nulidades,
para apresentar algum fato que afaste o reconhecimento da prescrição separação, divórcio, e reconhe-
(p. ex.: equívoco no cômputo do prazo, causa suspensiva, causa inter- cimento e dissolução de união
ruptiva etc.). Entendemos que essa é a melhor posição a ser adotada pe- estável;
los juízes. l bens públicos de qualquer natu-
2ª Corrente: defende que só o autor deve ser intimado. A intimação reza.
do réu não seria necessária, pois a renúncia da prescrição poderia ser
manifestada posteriormente mediante ação declaratória ou incidental-
mente em outro processo.
3ª Corrente: defende que o juiz deve declarar de ofício a prescrição
tão logo a verifique no processo (p. ex.: ao despachar a inicial), indepen-
dentemente da intimação das partes.

10.2.7. Previsão legal da prescrição


Os prazos de prescrição estão expressos no Código Civil de 2002
e não podem ser criados nem alterados pela vontade das partes. Des-
se modo, ao contrário da decadência, que pode ser legal ou contratual,
a prescrição só pode ter origem legal. O art. 206 do Código Civil traz
expressos os prazos especiais de prescrição, isto é, os prazos específicos
para determinadas situações concretas (prazos de 1, 2, 3, 4 e 5 anos). E
o art. 205 do Código Civil traz expresso o prazo geral de prescrição de
10 anos (também conhecido como prazo ordinário ou comum), deven-
do ser aplicado subsidiariamente quando a situação sub judice não se
encaixar nos prazos especiais do art. 206. O Código atual eliminou a du-
alidade de prazos gerais existente no Código Civil de 1916 (um para as
ações pessoais/obrigacionais e outro para as ações reais), estabelecendo
um prazo geral único.

10.2.7.1. Prazos especiais


O art. 206 do Código Civil contém cinco parágrafos, contemplando

185
prazos especiais de prescrição que variam de um a cinco anos. Esse rol
é meramente exemplificativo, pois no ordenamento jurídico são encon-
trados diversos outros prazos especiais, como, por exemplo: Constitui-
ção Federal, art. 7º, XXIX; art. 27 da Lei n. 8.078/90; Código Tributário
Nacional, art. 168; art. 21 da Lei n. 4.717/65 (ação popular – 5 anos) etc.
Contudo, iremos nos ater apenas à análise dos prazos previstos no art.
206 do Código Civil:
a) Prescreve em um ano:
I – a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres desti-
nados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da
hospedagem ou dos alimentos: o Código Civil de 2002 eliminou a dis-
tinção existente no Código Civil de 1916 entre as modalidades de hospe-
dagem, estabelecendo um prazo único de um ano. Contudo foi omisso
quanto ao termo inicial do prazo, apontando a doutrina a necessidade
de aplicação das regras previstas para a mora (Código Civil, art. 397) e
para o penhor legal (arts. 1.467, I, e 1.470).
II – a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste con-
tra aquele, contado o prazo: a) para o segurado, no caso de seguro de
responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação
de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a
este indeniza, com a anuência do segurador; b) quanto aos demais se-
guros, da ciência do fato gerador da pretensão: o Código Civil de 2002
unificou o prazo para exercício da pretensão do segurado contra o segu-
rador, eliminando a distinção existente no Código Civil de 1916 quanto
ao local do fato que deu origem à indenização (se em nosso país ou no
exterior). A única distinção existente é quanto ao termo inicial do prazo:
no seguro de responsabilidade civil o prazo deve ser contado a partir
da citação se o segurado foi demandado por terceiro prejudicado ou da
data em que segurado paga o terceiro prejudicado com a anuência do
segurador; nos demais seguros o prazo de um ano deve ser contado da
ciência do fato gerador da pretensão. Se o titular da pretensão não for o
segurado, mas, sim, o beneficiário, o prazo de um ano não será aplicável.
No caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório, o beneficiário
tem prazo de três anos para exercer sua pretensão contra o segurador
(art. 206, § 3º, IX).
III – a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários
judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de emolumentos, custas e
honorários: compreende-se que este dispositivo deve ser aplicado tam-
bém para a pretensão dos delegatários do foro extrajudicial (Constitui-
ção Federal, art. 236). Como o legislador não especificou o termo inicial,
compreendemos que deve ser considerado o momento da conclusão dos
serviços, em analogia ao art. 206, § 5º, II, do Código Civil.
IV – a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que en-
traram para a formação do capital de sociedade anônima, contado da
publicação da ata da assembleia que aprovar o laudo: este inciso traz
regra restritiva que só deve ser aplicada para regular a pretensão inde-
nizatória dos prejudicados em face do perito responsável pela avaliação

186
Direito Civil

dos bens na formação do capital da sociedade anônima.


V – a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acio-
nistas e os liquidantes, contado o prazo da publicação da ata de en-
cerramento da liquidação da sociedade: os credores (sócios ou não) da
sociedade dissolvida poderão cobrar os valores devidos no prazo de um
ano da publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade.
b) Prescreve em dois anos:
I – a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data
em que se vencerem: o direito a alimentos é imprescritível, podendo ser
exercido em qualquer momento que o ser humano passe por necessi-
dade. Esse direito de pedir alimentos (ação de alimentos) não deve ser
confundido com o direito de cobrar alimentos vencidos e não pagos
(execução de alimentos), cuja pretensão prescreve no prazo de 2 anos,
contados retroativamente a partir da propositura da ação (prescrição
parcelar).
c) Prescreve em três anos:
I – a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos:
o Código Civil de 2002 reduziu o prazo de cinco para três anos para que
o locador cobre o locatário do pagamento do aluguel. Consoante enten-
dimento doutrinário, esse prazo não se aplica à cobrança dos encargos
da locação nem à cobrança dos débitos condominiais.
II – a pretensão para receber prestações vencidas de rendas tem-
porárias ou vitalícias: o dispositivo estabelece prazo de três anos para
cobrança das prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias
(previstas nos arts. 803 a 813).
III – a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer pres-
tações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com
capitalização ou sem ela: o prazo de três anos para cobrança de juros,
dividendos ou quaisquer prestações acessórias referidas nesse inciso
deve ser contado a partir do respectivo vencimento.
IV – a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa:
de acordo com entendimento doutrinário, o prazo de três anos para o
ressarcimento de enriquecimento sem causa deve ser contado a partir
da verificação do locupletamento. Como os prazos específicos devem
ser interpretados restritivamente, o inciso não deve ser utilizado para a
pretensão relativa a pagamento indevido (Código Civil, arts. 876 a 883).
V – a pretensão de reparação civil: a pretensão de reparação de da-
nos que, durante a vigência do Código Civil de 1916, se submetia a prazo
geral, passou a ser hipótese de prazo especial no Código Civil de 2002.
Esse prazo, de três anos, é aplicável a toda e qualquer forma de dano
(material, moral ou estético), mas deve ser destacado que em algumas
situações excepcionais os tribunais têm reconhecido a imprescritibili-
dade da pretensão (p. ex.: indenização por danos morais em razão de
tortura). Se o dano for causado em virtude de prestação de serviços ou
fornecimento de produtos em relação de consumo, deverá ser observa-
do o prazo de cinco anos previsto no Código de Defesa do Consumidor

187
(art. 27). Se o dano for decorrente de acidente de trabalho ou doen-
ça profissional, o entendimento do TST é no sentido de que deve ser
aplicada a prescrição trabalhista, com prazo de dois anos (RR 237200-
96.2006.5.02.0315 – julgado em 2010).
VI – a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebi-
dos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi deliberada a distri-
buição: o pagamento de lucros e dividendos nas sociedades por ações é
regulamentado pela Lei n. 6.404/76, que atribui responsabilidade soli-
dária dos administradores e fiscais em caso de pagamento com inobser-
vância do disposto no art. 201 da citada lei.
VII – a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por vio-
lação da lei ou do estatuto, contado o prazo: a) para os fundadores,
da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima; b) para
os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balan-
ço referente ao exercício em que a violação tenha sido praticada, ou
da reunião ou assembleia geral que dela deva tomar conhecimento;
c) para os liquidantes, da primeira assembleia semestral posterior à
violação: o dispositivo estabelece o prazo de três anos para as pretensões
exercidas em face dos fundadores, administradores, fiscais e liquidantes
fundamentadas na violação da lei ou do estatuto (desvio de valores, des-
mandos, excesso de mandato etc.). A matéria também é regulamentada
pela Lei n. 6.404/76.
VIII – a pretensão para haver o pagamento de título de crédito,
a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial: o
prazo de três anos previsto no dispositivo é para a pretensão de execu-
ção do título de crédito. Caso esgotado o prazo, ainda resta ao credor
cobrar a dívida por meio da ação monitória (Código de Processo Civil,
art. 700), no prazo de cinco anos, consoante entendimento jurispru-
dencial do STJ fundado no art. 206, § 5º, I, do Código Civil. Por fim,
deve ser destacado que o prazo de 3 anos previsto nesse inc. VIII, do §
3º, tem aplicação subsidiária: só deve ser invocado se inexistente prazo
específico em lei extravagante. Não se aplica, por exemplo, à execução de
cheque, que tem prazo de seis meses contados da expiração do prazo de
apresentação (art. 59 da Lei n. 7.357/85 – Lei do Cheque).
IX – a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do ter-
ceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obri-
gatório: como exemplo de seguro de responsabilidade civil obrigatório
podemos citar o DPVAT, que já foi objeto de controvérsia no Superior
Tribunal de Justiça quanto à aplicabilidade do prazo de três anos (prazo
especial), previsto nesse inciso, ou de dez anos (prazo geral), previsto
no art. 205 do Código Civil. Atualmente a jurisprudência daquela Corte
está pacificada em três anos. O seguro DPVAT é regulamentado pelas
Leis n. 6.194/74 e 8.441/92, prevendo cobertura para eventos como lesão
corporal ou óbito em acidentes de trânsito.
d) Prescreve em quatro anos:
I – a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação

188
Direito Civil

das contas: o Código Civil impõe aos tutores o dever de apresentar um


balanço anual de sua gestão e o dever de prestar contas a cada dois anos e
ao fim da tutela (arts. 1.755 e 1.762), sendo estes submetidos à aprovação
judicial. A partir desta começa a correr o prazo de 4 anos para exercício
de pretensão relativa à tutela.
e) Prescreve em cinco anos:
I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de ins-
trumento público ou particular: a regra prevista neste dispositivo tem
caráter subsidiário e só deve ser aplicada se não existir outra específica
nos incisos anteriores ou em leis extravagantes. Além disso, o inciso em
comento exige que a dívida a ser cobrada seja líquida, isto é, certa quanto
à sua existência e determinada quanto ao seu objeto/valor.
II – a pretensão dos profissionais liberais em geral, procurado-
res judiciais, curadores e professores pelos seus honorários, contado
o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos con-
tratos ou mandato: o prazo de cinco anos previsto no inciso também
tem aplicabilidade quanto às sociedades de profissionais liberais no
exercício da respectiva atividade (p. ex.: sociedade de médicos em um
consultório médico). Quanto aos advogados, o Estatuto da Advocacia
(Lei n. 8.906/94) já previa o mesmo prazo de cinco anos para cobrança
dos honorários.
III – a pretensão do vencedor para haver do vencido o que des-
pendeu em juízo: este último inciso trata da cobrança dos ônus sucum-
benciais, previstos no art. 20 do Código de Processo Civil. O prazo de
cinco anos deve ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença
e deve ser observado tanto pelo vencedor como pelo advogado, que tem
direito autônomo de cobrar os honorários sucumbenciais (art. 23, Lei
n. 8.906/94).

10.2.8. Contagem do prazo de prescrição


Determinar a forma como deve ser contado o prazo de prescrição
não é tarefa fácil, a começar pela definição do seu termo inicial. De acor-
do com a concepção objetiva, o prazo de prescrição deve ser contado a
partir do momento em que foi violado o direito, surgindo para o titular
a pretensão (nesse sentido, é regra prevista no art. 189 do Código Civil).
Para a concepção subjetiva (teoria da actio nata), o prazo só deve ser
contado a partir do momento em que a pessoa tem ciência da violação
do direito ou das consequências. Essa posição foi adotada pelo Código
Civil no art. 206, § 1º, II, a e b.
Podemos afirmar, então, que como regra o Código Civil de 2002
adota a concepção objetiva e, em caráter excepcional, a concepção sub-
jetiva. Contudo, na doutrina e na jurisprudência o tema é controverso,
havendo muitos julgados favoráveis à aplicabilidade da teoria da actio
nata em hipóteses não consagradas expressamente no Código Civil.
Definido o termo inicial, resta saber como deve ser contado o pra-
zo de prescrição. Com esse propósito o art. 132, caput, do Código Civil

189
determina que, salvo disposição legal ou convencional em contrário,
CurioSiDADE
computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do ven-
cimento.
A título de exemplo, em ação
indenizatória por erro médico o Como os prazos de prescrição são contados em anos (1, 2, 3, 4, 5 e
STJ já decidiu que o termo a quo 10 anos), deve ser aplicada a regra presente no § 3º: “os prazos de meses
do prazo prescricional deve ser o e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato,
dia em que a vítima tomou co- se faltar exata correspondência”. Entendemos que esse dispositivo deve
nhecimento de que instrumentos ser aplicado sem o caput do art. 132. Assim, se um acidente de trânsito
cirúrgicos foram deixados dentro ocorreu no dia 31 de dezembro de 2013, o último dia para ser proposta
do seu corpo (REsp 1.020.801/SP, a ação será o dia 31 de dezembro de 2016.
Rel. Min. João Otávio de Noronha,
Se não existir o dia correspondente no ano seguinte, deverá ser con-
julgado em 26-4-2011).
siderado o dia imediato (isso ocorre em caso de ano bissexto). Se o dia
do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até
o dia útil seguinte (Código Civil, art. 132, § 1º). Entendemos que essa
regra também vale para sábados e domingos, em razão de os fóruns esta-
rem fechados. Vale dizer que esse é o entendimento do Superior Tribunal
de Justiça.

10.2.8.1. Prescrição nuclear versus parcelar


Prescrição nuclear ou de fundo de direito é aquela que atinge a
exigibilidade do direito como um todo. Exemplificando: quando uma
pessoa agride outra, causando diversos danos, o direito de exigir a re-
paração de todos os danos prescreve no mesmo momento – três anos
após a agressão. Por sua vez, prescrição parcelar é aquela que não atinge
o direito como um todo, mas somente as suas parcelas. Exemplifican-
do: a pretensão de cobrar prestações alimentícias vencidas e não pagas
prescreve em dois anos. Assim, ainda que exista débito superior a dois
anos, quando da propositura da demanda, o prazo de dois anos deve ser
contado regressivamente.

10.2.8.2. Continuação do prazo em face de


herdeiros
Conforme determina o art. 196 do Código Civil, a prescrição inicia-
da contra uma pessoa continua a correr contra os seus sucessores: sejam
eles sucessores universais (herdeiros) ou sucessores singulares (legatá-
rios). A regra se justifica pelo fato de que a sucessão opera a transmissão
de todos os direitos patrimoniais do falecido, incluindo as pretensões
que o falecido tinha em face de terceiros. Exemplificando: se João, credor
de uma obrigação líquida prevista em instrumento público, vier a falecer
um ano após o vencimento da dívida, seus herdeiros ainda terão quatro
anos para cobrá-la (prazo total: 5 anos – Código Civil, art. 206, § 5º).
Conquanto a Parte Geral do Código Civil não diferencie a contagem
do prazo de prescrição (extintiva) entre sucessores universais e singula-
res, a Parte Especial conferiu tratamento distinto ao regular a prescrição
aquisitiva (usucapião), dispondo que o sucessor universal (herdeiro)
continua de direito a posse do seu antecessor (sucessio possessionis) e

190
Direito Civil

que ao sucessor singular (legatário) é facultado unir sua posse à do an-


tecessor (acessio possessionis), para os efeitos legais. Isso significa que,
quanto aos herdeiros, a posse do antecessor deve obrigatoriamente ser
computada junto à sua; e que, quanto aos legatários, estes podem esco-
lher se desejam computar a posse do antecessor. A doutrina não é pací-
fica sobre o tema.

10.2.9. Prescrição intercorrente


Denomina-se prescrição intercorrente aquela computada duran-
te o curso da ação, diante da inércia do autor em promover o andamen-
to do processo. Ao propor uma ação, o autor tem o dever de realizar
os atos necessários ao seu curso para que esta não se arraste de forma
indefinida no tempo. Deve, portanto, peticionar, produzir provas, re-
querer diligências, expedição de ofícios etc. Se desta forma não procede,
a sua inércia não deve ser acobertada pelo ordenamento jurídico (dor-
mientibus non sucurrit ius – o direito não socorre quem dorme), não
se podendo permitir que o processo fique abandonado por um prazo
superior àquele exigido para a propositura da ação (leia-se: para o exer-
cício da pretensão em juízo). Embora o tema ainda desperte muitas
dúvidas na doutrina, o próprio legislador se preocupou em regulamen-
tar a prescrição intercorrente no art. 202, parágrafo único, do Código
Civil ao dispor que “a prescrição interrompida recomeça a correr da
data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a
interromper”.

10.2.10. impedimento e suspensão da prescrição


Em algumas situações específicas o ordenamento jurídico determi-
na que o prazo de prescrição não corre em razão da situação ou condi-
ção em que se encontra o titular do direito violado (situação pessoal,
profissional, familiar etc.). Os arts. 197, 198 e 199 do Código Civil de
2002 retratam causas que podem ser tanto de impedimento como de
suspensão. Se a causa já existia quando do surgimento da pretensão, a hi-
pótese é de IMPEDIMENTO e o prazo de prescrição começará a correr
quando esta desaparecer. Se a causa só veio a existir depois do surgimen-
to da pretensão, a hipótese é de SUSPENSÃO e o prazo voltará a correr
quando esta desaparecer.
Exemplificando: o art. 197, I, do Código Civil, determina que a
prescrição não corre entre os cônjuges na constância da sociedade con-
jugal. Assim, se um cônjuge causar dano ao outro durante o casamento,
o prazo de prescrição ficará impedido de correr; dissolvida a sociedade
conjugal, o prazo começará a correr do zero. Por outro lado, se o dano foi
causado antes do casamento, celebrado este, o prazo será imediatamente
suspenso; dissolvida a sociedade conjugal, o prazo voltará a correr pelo
período restante.

191
10.2.10.1. Hipóteses de impedimento e
suspensão
O Código Civil de 2002 agrupou as hipóteses de impedimento e
suspensão em três artigos, cada qual com três incisos. Por representarem
exceções à contagem do prazo de prescrição, devem ser interpretadas
restritivamente, compreendendo a doutrina majoritária que o rol dos
arts. 197, 198 e 199 do Código Civil é taxativo (recomendamos que essa
posição seja gabaritada em fase objetiva). Contudo, concordamos com
forte corrente doutrinária que sustenta que o rol pode ser ampliado pela
regra contra non valentem agere non currit praescriptios: a prescrição não
corre contra quem estiver impossibilitado de agir. A taxatividade do rol
impede a analogia, não a interpretação extensiva. Como exemplo dessas
JuriSPruDÊNCiA situações, podemos citar: a paralisação da justiça por caso fortuito ou
força maior, a ocultação dolosa do débito pelo devedor, pedido de paga-
Súmula 229- STJ: mento de indenização à seguradora (Súmula 229/STJ) etc.
“O pedido do pagamento
Vejamos, agora, quais são as hipóteses de impedimento e suspensão
de indenização à seguradora sus-
da prescrição que estão previstas no Código Civil de 2002:
pende o prazo de prescrição até
que o segurado tenha ciência da a) Entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal (art.
decisão”. 197, I – impedimento e suspensão): a hipótese se justifica pela
necessidade de se proteger a convivência harmônica entre os
cônjuges durante o casamento, evitando que sejam propostas
ações entre eles. Deve ser destacado que o Código Civil de 2002
substitui a expressão matrimônio, presente no Código Civil de
1916, por sociedade conjugal, uma vez que somente durante a
existência desta é que persiste a comunhão plena de vida (afe-
to e patrimônio). Dissolvida a sociedade conjugal pela separa-
ção, divórcio, viuvez etc., o prazo começará ou voltará a correr.
Quanto à separação de fato, entendemos que esta deve ser equi-
parada à separação judicial em seus efeitos, permitindo que a
prescrição corra. Em caso de anulação ou decretação de nuli-
dade do casamento, o cônjuge de boa-fé deve ser considerado
protegido até o fim da sociedade conjugal; quanto ao de má-
-fé, não haverá suspensão nem interrupção do prazo. A questão
mais polêmica diz respeito à aplicação analógica do dispositivo
à união estável:
1ª Corrente: defende que o dispositivo deve ser aplicado por
analogia. Compreendemos que essa é a posição mais coeren-
te em razão da obrigação constitucional que o Estado tem
de proteger a família, formada seja pelo casamento, seja pela
união estável (Constituição Federal, art. 226). Esse também
é o posicionamento do Conselho da Justiça Federal, nos
termos do Enunciado 296: “Não corre a prescrição entre os
companheiros, na constância da união estável”.
2ª Corrente: defende que não há impedimento ou suspensão
do prazo de prescrição na constância da união estável em
razão da omissão legislativa. Em fase objetiva de concursos
públicos que sigam a literalidade da lei, recomendamos que

192
Direito Civil

essa posição seja gabaritada. Já em fase subjetiva deve ser ga-


baritada a primeira corrente.
b) Entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar
(art. 197, II – impedimento e suspensão): assim como o dis-
positivo anterior, o objetivo da norma é a proteção da unida-
de familiar formada pelos pais e filhos, evitando o litígio entre
eles durante o exercício do poder familiar (antigo pátrio po-
der). Cessado o poder familiar, por meio da maioridade ou da
emancipação, o prazo voltará ou começará a correr. Há quem
entenda que o dispositivo retrata unicamente causa de impe-
dimento, mas compreendemos que também pode servir como
causa de suspensão, por exemplo, se o poder familiar foi estabe-
lecido posteriormente à violação do direito, mediante adoção.
Cessado o poder familiar (por meio da maioridade, morte ou
destituição), o prazo de prescrição começará ou voltará a cor-
rer. Se em vez da destituição (que é definitiva) ocorrer simples
suspensão do poder familiar (que é temporária), o prazo de
prescrição não correrá.
c) Entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores
durante a tutela ou curatela (art. 197, III – impedimento/sus-
pensão): também sob o fundamento de preservação da convi-
vência harmônica entre determinadas pessoas, o ordenamento
jurídico impede o transcurso da prescrição entre tutores e tute-
lados e entre curadores e curatelados. Se houver a remoção do
tutor ou curador, mas permanecer a tutela ou curatela, o prazo
de prescrição poderá correr entre o incapaz e o tutor/curador
removido. No entanto, em se tratando de absolutamente inca-
paz, deve ser observada a regra do art. 198, I do Código Civil.
d) Contra os incapazes de que trata o art. 3º (art. 198, I – impedi-
mento/suspensão): de acordo com o dispositivo, não corre pra-
zo de prescrição contra os absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de 16 anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem
o necessário discernimento para a prática desses atos; e III – os
que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua
vontade. O prazo só não corre contra o absolutamente incapaz,
isto é, quando este é o titular do direito violado (o incapaz é o
autor da ação). Se, por outro lado, o absolutamente incapaz for
o violador do direito de outrem, o prazo de prescrição fluirá
normalmente a favor dele, que será beneficiado pela inércia do
titular do direito (o incapaz é o réu da ação). Devemos destacar
que a hipótese do art. 198, I, do Código Civil, refere-se apenas
aos absolutamente incapazes. Em se tratando de incapacidade
relativa (art. 4º), o prazo flui normalmente consoante determi-
nação do art. 195.
e) Contra os ausentes do País em serviço público da União, dos
Estados ou dos Municípios (art. 198, II – impedimento/sus-

193
pensão): como a norma não especifica o tipo de serviço públi-
co, a doutrina tem admitido sua aplicabilidade para proteger
toda pessoa que preste, fora do País, serviços de utilidade para
a União, Estados ou Municípios: agentes diplomáticos; agentes
consulares; adidos militares; delegados em missões oficiais; co-
missionados para estudos ou pesquisas no exterior etc. Não se
exige que sejam servidores públicos em sentido estrito, basta
que exerçam atividade assim qualificada, a favor da administra-
ção direta ou indireta.
Outros ausentes: embora não exista dispositivo legal regulan-
do o impedimento e a suspensão da prescrição em favor dos
ausentes (pessoas que desaparecem de seu domicílio sem deixar
notícias – Código Civil, arts. 22 a 39), há enunciado do Conse-
lho da Justiça Federal no sentido de que “desde o termo inicial
do desaparecimento, declarado em sentença, não corre a pres-
crição contra o ausente” (Enunciado 156/CJF).
f) Contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em
tempo de guerra (art. 198, III – impedimento/suspensão): a
norma deve ser interpretada de forma a proteger as pessoas que
compõem as Forças Armadas durante períodos de guerra, es-
tejam cumprindo função dentro ou fora do País. Protege, tam-
bém, os membros das Forças Armadas que integram as forças
de paz da ONU.
Observação: todos os incisos dos arts. 197 e 198 do Código Civil
(acima analisados) retratam hipóteses subjetivas de suspensão
E impedimento da prescrição. Diversamente, todos os incisos
do art. 199 do Código Civil (abaixo analisados) representam
hipóteses objetivas de suspensão OU impedimento da prescri-
ção.
g) Pendendo condição suspensiva (art. 199, I – causa impediti-
va): a regra é explicada pela natureza da condição suspensiva:
suspende o exercício e a aquisição do direito, gerando mera ex-
pectativa de direito. Como o direito condicional não é exerci-
tável, não há falar em prazo de prescrição para o exercício do
direito em juízo.
Súmula 229 do STJ: “pedido de pagamento de indenização à
seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado
tenha ciência da decisão”.
h) Não estando vencido o prazo (art. 199, II – causa impeditiva):
as mesmas razões invocadas para justificar o dispositivo ante-
rior se aplicam a essa hipótese, pois o direito submetido a um
prazo, embora integre o patrimônio do seu titular (direito ad-
quirido), não é exercitável antes do implemento do termo certo
(evento futuro e certo).
i) Pendendo ação de evicção (art. 199, III – causa impeditiva):
denomina-se ação de evicção aquela que pode resultar na con-

194
Direito Civil

denação de uma pessoa à perda de um bem com base em mo-


tivo jurídico anterior à sua aquisição (p. ex.: a ação pauliana).
Procedente a ação, o evictor toma o bem do evicto, restando a
este ingressar com ação de regresso contra o alienante. O pra-
zo para ser proposta essa ação só começa a correr a partir do
trânsito em julgado da ação de evicção, pois é a partir desse
momento que surge a pretensão ressarcitória do evicto em face
do alienante.
j) Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no
juízo criminal, antes da respectiva sentença definitiva (art.
200 – causa suspensiva): embora a responsabilidade civil tenha
certa independência da responsabilidade criminal (vide art. 935
do Código Civil), o legislador determinou que a prescrição para
ser exercida pretensão civil não deve correr enquanto não exis-
tir sentença penal com trânsito em julgado. Entendemos que
a hipótese não é de impedimento, mas, sim, de suspensão da
prescrição a partir do início da ação penal (recebimento da de-
núncia ou da queixa) até o advento da sentença definitiva, seja
condenatória ou absolutória.

10.2.10.2. A relação entre a suspensão da


prescrição e as obrigações solidárias
De acordo com o art. 201 do Código Civil, suspensa a prescrição a
favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obri-
gação for indivisível. Isto ocorre, pois a suspensão e o impedimento es-
tão fundamentados em uma situação pessoal (p. ex.: o absolutamente
incapaz, o casado, o tutelado etc.), não havendo motivo para se estender
a exceção aos outros credores. A única exceção é a hipótese em que a
obrigação solidária tem por conteúdo uma prestação indivisível: é im-
possível separar a parte não prescrita da prescrita.

10.2.11. interrupção da prescrição


Diversamente da suspensão da prescrição, em que o prazo volta
a ser contado de onde parou, na interrupção o prazo recomeça a ser
contado por inteiro, independentemente do tempo já transcorrido. A
prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a inter-
rompeu, ou do último ato do processo para a interromper. Na vigência
do Código Civil de 1916, não havia limite para o número de interrup-
ções. Atualmente, com a introdução do Código Civil de 2002, a inter-
rupção da prescrição somente poderá ocorrer uma vez (Código Civil,
art. 202, caput). De acordo com a doutrina, a única exceção a essa regra
diz respeito à hipótese em que a prescrição é interrompida por uma
das causas previstas nos incisos II a VI do art. 202, e posteriormente é
proposta a ação e ordenada a citação (inciso I), devendo ser admitida
essa segunda interrupção.

195
10.2.11.1.Hipóteses de interrupção da prescrição
O Código Civil de 2002 prevê no art. 2002 seis hipóteses em que a
prescrição é interrompida. Além dessas, podem ser encontradas diver-
sas outras na legislação extravagante: art. 66, V, da Lei n. 6.435/77; art.
174, parágrafo único, do Código Tributário Nacional; art. 17, parágrafo
único, do Decreto-lei n. 204/67 etc. Procurando nos ater aos objetivos
desta obra, analisaremos detidamente apenas as hipóteses previstas no
Código Civil:
a) Por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a
citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da
lei processual (art. 202, I): essa é a hipótese mais polêmica de
interrupção da prescrição diante do conflito existente entre o
dispositivo e o art. 219 do Código de Processo Civil, que de-
termina que a interrupção da prescrição ocorre com a citação
válida, retroagindo à data da propositura da ação. Para tanto,
a citação deve ser promovida no prazo de 10 dias subsequentes
ao despacho que a ordenar, prorrogáveis até o máximo de 90
dias. Como o autor não é prejudicado pela demora imputável
exclusivamente ao serviço judiciário, se a citação não for efe-
tuada nos prazos mencionados, haver-se-á por interrompida a
prescrição (Código de Processo Civil, art. 240 e Súmula 106/
STJ). Deve ser destacado que, ainda que a norma processual
(Código de Processo Civil) estabeleça a interrupção com a cita-
ção válida e a norma material (Código Civil) com o despacho
do juiz que ordenar a citação, não há um conflito relevante
entre as normas pelo fato de que a eficácia da segunda hipótese
foi condicionada pelo legislador civilista à realização da citação
válida (“...se o interessado a promover no prazo e na forma da
lei processual”), sempre retroagindo à data da propositura da
ação. Por fim, devemos destacar que a interrupção da prescri-
ção ocorrerá ainda que o juiz seja absoluta ou relativamente
incompetente.
b) Por protesto, nas condições do inciso antecedente (art. 202,
II): o protesto a que se refere esse dispositivo é o protesto ju-
dicial, regulado no Código de Processo Civil no art. 719 e se-
guintes, utilizado, em regra, para garantir a conservação de um
direito. Na ação de protesto, o despacho do juiz, mesmo incom-
petente, que ordenar a citação irá interromper a prescrição, se o
interessado a promover no prazo e na forma da lei processual.
c) Por protesto cambial (art. 202, III): o protesto cambiário ou
extrajudicial é aquele realizado no Cartório de Protesto de Tí-
tulos e Documentos. Desde o advento da Lei n. 9.492/97, que
regulamentou o protesto cambiário, deve ser considerada su-
perada a Súmula 153 do Supremo Tribunal Federal, pela qual o
“simples protesto cambiário não interrompe a prescrição”.
d) Pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário
ou em concurso de credores (art. 202, IV): o credor de uma

196
Direito Civil

pessoa que faleceu deve peticionar no juízo do inventário re-


querendo o reconhecimento do seu título de crédito. Da mesma
forma, em caso de falência ou de insolvência civil o credor deve
peticionar requerendo o reconhecimento do seu direito junto ao
concurso de credores. Em todas essas situações, a apresentação
do título de crédito configura o exercício da pretensão (compor-
tamento ativo), justificando a interrupção da prescrição.
e) Por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor
(art. 202, V): com redação genérica, o dispositivo abrange
todo comportamento judicial ativo por parte do credor que
constitua o devedor em mora (em atraso) no cumprimento da
obrigação. Como exemplos desses comportamentos, podemos
citar as notificações e interpelações judiciais. A propositura de
ação pauliana também já foi considerada ato suficiente para
interrupção da prescrição. Também com base na redação do
inciso, temos que o legislador não quis conferir o mesmo efei-
to interruptivo a atos extrajudiciais praticados pelo credor
como cartas de cobrança enviadas pelo correio ou notificações
extrajudiciais.
f) Por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que im-
porte reconhecimento do direito pelo devedor (art. 202, VI):
enquanto os incisos anteriores interrompem a prescrição a par-
tir do comportamento ativo do credor, o último inciso do art.
202 do Código Civil exige o comportamento ativo por parte do
devedor. Qualquer ato realizado por este, judicial ou extraju-
dicial, verbal ou por escrito, que importe em reconhecimento
do direito (da dívida) será hábil para interromper a prescrição.
Exemplos: requerimento de parcelamento da dívida, requeri-
mento de moratória (prorrogação do prazo para pagar), reco-
nhecimento da dívida, pagamento parcial ou total da dívida ou
da cláusula penal etc.
Quem pode interromper? O art. 203 do Código Civil de 2002
determina que a prescrição pode ser interrompida por qual-
quer interessado. Assim, além do próprio titular do direito,
devem ser considerados interessados: os assistentes dos relati-
vamente incapazes, os representantes das pessoas jurídicas, os
representantes convencionais (mandatários), os herdeiros do
credor, os credores do credor, fiadores, avalistas etc.

10.2.11.2. Efeitos pessoais da interrupção


Os efeitos da interrupção da prescrição são, em regra, pessoais
(personalíssimos), logo, a interrupção por um credor não aproveita
aos outros cocredores, assim como a operada contra o devedor, ou seu
herdeiro, não prejudica os demais codevedores (regra latina: persona ad
personam non fit interruptio). Excepcionalmente, o art. 204 do Código
Civil apresenta 3 exceções em seus parágrafos:

197
Credores ou devedores solidários (art. 204, § 1º): a interrupção da
prescrição por um dos credores solidários aproveita aos outros, assim
como a interrupção efetuada contra o devedor solidário prejudica
os demais e seus herdeiros. Para aplicação da regra, não importa se
a obrigação é divisível ou não. Deve ser lembrado também que a so-
lidariedade é uma situação excepcional e nunca deve ser presumida
(resulta da lei ou da vontade das partes – Código Civil, art. 265).
Herdeiros do devedor solidário (art. 204, § 2º): a interrupção operada
contra um dos herdeiros do devedor solidário não prejudica os outros
herdeiros ou devedores, senão quando se trate de obrigações e direitos
indisponíveis. O legislador nada dispôs quanto à interrupção da pres-
crição promovida por um dos herdeiros do credor solidário, devendo
ser compreendido que esta não aproveita aos demais credores.
Fiador (art. 204, § 3º): em decorrência do princípio da gravitação
jurídica, também conhecido como princípio da acessoriedade, a in-
terrupção produzida contra o principal devedor (o afiançado) pre-
judica o fiador (o acessório segue a sorte do principal). O contrário
não ocorre: se a interrupção for realizada contra o fiador, o devedor
não será prejudicado. Embora inexista previsão expressa quanto ao
contrato de aval, deverá ser aplicada a regra prevista no § 1º do art.
204, diante da solidariedade obrigacional estabelecida por este (art.
43, Decreto n. 2.044/1908).

10.3 DECADÊNCiA

Vimos que a distinção entre prescrição e decadência pela afirma-


ção de que a primeira põe fim à ação e a segunda ao direito deve ser
tida por superada na atualidade, diante dos equívocos já apresentados.
O elemento que diferencia os institutos é na verdade a natureza do di-
reito a que estão vinculados: a prescrição está relacionada aos direitos
subjetivos patrimoniais, enquanto a decadência está atrelada a direitos
potestativos. Vejamos:

10.3.1. Conceito de decadência


Decadência é a perda efetiva de um direito potestativo, pela falta
de seu exercício, no período previsto na lei (decadência legal), ou pela
vontade das partes (decadência convencional). Portanto, a compreensão
do sentido de decadência exige do estudioso do direito o conhecimento
da estrutura dos direitos potestativos, que podem ser definidos como
aqueles que conferem ao seu titular o poder de provocar mudanças na
esfera jurídica de outrem de forma unilateral, sem que exista um dever
jurídico correspondente, mas tão somente um estado de sujeição.
Diferem essencialmente dos direitos subjetivos, pois, nestes, a exis-
tência do direito para uma pessoa gera para outra um dever jurídico,
enquanto os direitos potestativos não geram deveres jurídicos para a
outra parte. São considerados direitos sem pretensão, logo, não podem

198
Direito Civil

ser inadimplidos nem executados. O sujeito passivo do direito potestati-


vo se encontra apenas em uma situação de sujeição à vontade (poder) do
sujeito ativo, o titular do direito. Para facilitar a compreensão do tema,
podemos citar como exemplo de direito potestativo o direito de anular
um contrato por vício da vontade: a parte que foi prejudicada tem o
poder de exigir em juízo a anulação do negócio jurídico.
Os direitos potestativos podem ser constitutivos (p. ex.: o direi-
to do dono de prédio encravado exigir que o dono do prédio vizinho
lhe conceda passagem) ou desconstitutivos (p. ex.: o direito de desfazer
a compra de um automóvel em razão de vício redibitório). Contudo,
nem todos os direitos potestativos estão sujeitos a um prazo de deca-
dência para serem exercidos (p. ex.: o direito de pedir divórcio, direito
de requerer a desconsideração da personalidade jurídica), prevalecendo
o princípio da inesgotabilidade ou da perpetuidade se o legislador não
fixar um prazo determinado. Como exceção a essa regra, o art. 179 do
Código Civil prevê prazo geral de 2 anos para as ações anulatórias quan-
do omissa a lei.

10.3.2. Alegação da decadência


Assim como a prescrição, a decadência pode ser alegada em qual-
quer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita. Claro que essa ale-
gação deve ser feita durante a instância ordinária (primeira ou segunda
instância). Se a decadência não foi alegada na instância ordinária, não
poderá ser alegada nas instâncias extraordinárias (STJ ou STF), em ra-
zão do requisito do prequestionamento.
Embora seja comum a alegação da decadência sob a forma de preli-
minar em uma contestação, a sentença judicial que a reconhece põe fim
ao processo com julgamento do mérito (Código de Processo Civil, art.
487, I). Isto ocorre, pois, assim como a prescrição, a decadência é uma
preliminar de mérito, isto é, um assunto que diz respeito ao mérito, mas
que, devido à sua importância, deve ser analisado antes dos demais pon-
tos controversos quanto ao mérito.

10.3.3. Espécies de decadência


Diferentemente da prescrição, que só pode ter origem legal, a deca-
dência pode ser prevista tanto pela lei (decadência legal) como em con-
trato (decadência convencional). A distinção entre as modalidades de
decadência tem especial importância na determinação das regras quanto
a possibilidade de renúncia e declaração de ofício.

10.3.3.1. Decadência legal


Decadência legal (ex vi legis) é aquela prevista em lei, havendo en-
tendimento do STJ no sentido de que a decadência não pode ser criada
por decreto, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade, insculpido
no art. 5º, II, da CF/88 (REsp 526.015). Quando o juiz está diante de

199
decadência legal, deve declará-la de ofício, consoante determina o art.
210 do Código Civil. De forma coerente, o legislador também dispôs
que a decadência legal não pode ser renunciada (nem antes nem de-
pois de consumada). A explicação para tanto é simples: a decadência
legal envolve questões consideradas de ordem pública (interesse geral
da coletividade), daí não se admitir que, diante de um interesse público,
a parte possa abrir mão do prazo imposto pelo legislador. Pela mesma
razão não se admite que os prazos de decadência legal sejam alterados
(aumentados ou diminuídos) pelas partes.

10.3.3.2. Decadência convencional


A decadência é considerada convencional (ex vi voluntatis) quan-
do resulta da manifestação de vontade das partes em uma determinada
relação jurídica. Pode ser estabelecida de forma unilateral ou bilateral.
Ao contrário do que ocorre com a decadência legal, a convencional diz
respeito a matéria de ordem privada (direitos disponíveis). Essa é a ra-
zão pela qual a decadência pode ser renunciada pelas partes e não pode
ser declarada de ofício pelo juiz (Código Civil, art. 210) nem provocada
pelo Ministério Público. Como o Código Civil não estabeleceu as regras
para a renúncia da decadência convencional, a doutrina aponta como
solução a analogia aos requisitos para renúncia da prescrição (art. 191):
o prazo deve estar consumado e não deve haver prejuízo de terceiro. O
exemplo mais comum de decadência convencional é o prazo de garantia
estabelecido entre as partes em um contrato de compra e venda. Toda
garantia contratual é um prazo de decadência convencional.

10.3.4. Contagem do prazo de decadência


Entendemos que a contagem do prazo de decadência deve ser feita
da mesma forma que a contagem do prazo de prescrição: excluindo-se
o dia do começo e incluindo o do vencimento (Código Civil, art. 132).
Contudo devemos ressaltar que antigamente era comum a distinção
quanto ao termo final da prescrição e da decadência, no sentido de que,
quanto à primeira, se o prazo caísse em dia que não fosse útil, a prática
do ato seria possível no dia útil subsequente e que, quanto à decadência,
o prazo não poderia ser prorrogado, devendo o ato ser praticado anteci-
padamente. Essa distinção tinha por base a analogia às regras do direito
penal quanto à prescrição e à decadência. Com a evolução do estudo da
matéria no direito civil, a distinção foi superada. Assim, à semelhança do
que ocorre com a prescrição, se o prazo decadencial para o exercício do
direito se esgotar em dia que não seja útil, o ato poderá ser praticado até
o dia útil subsequente.

10.3.5. impedimento, suspensão e interrupção


do prazo de decadência
Diferentemente do que ocorre com a prescrição, a decadência nor-
malmente corre para todos e contra todos. Enquanto a prescrição está

200
Direito Civil

relacionada à violação de um direito, a decadência está associada ao


exercício de um direito que depende exclusivamente da iniciativa do in-
teressado. Essa é a razão pela qual, em regra, não se aplicam à decadên-
cia as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.
Essa regra é excepcionada em algumas situações pela norma jurídica.
Como exemplo de exceção, podemos citar: a) art. 208 do Código Civil,
que dispõe que não corre prazo de decadência contra o absolutamente
incapaz (hipótese de impedimento e suspensão); b) o art. 501, parágra-
fo único, do Código Civil (hipótese de impedimento); c) art. 26, § 2º,
do Código de Defesa do Consumidor, que determina que a reclamação
comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de
produtos e serviços obsta a decadência até a resposta negativa corres-
pondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (hipótese de
impedimento e suspensão).

10.3.6. Prazos de decadência


Procurando facilitar a compreensão e a distinção dos institutos da
prescrição e da decadência, o legislador adotou uma solução geográfica
dispondo sobre os prazos de prescrição apenas nos arts. 205 e 206 do
Código Civil. Todos os demais prazos encontrados em outros artigos do
Código Civil foram considerados pelo legislador como prazos decaden-
ciais. Os prazos de decadência são especiais, com exceção do art. 179, que
traz um prazo geral de 4 anos, a contar da data da conclusão do ato, para
as hipóteses em que o legislador determinar a anulabilidade de um ato
sem estabelecer prazo específico.

10.3.6.1. Principais prazos de decadência


3 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readquirir
a coisa móvel, a contar da data da notificação promovida pelo com-
prador (Código Civil, art. 516).
10 dias: para a minoria vencida impugnar a alteração do estatuto da
fundação, a contar da ciência promovida pelo Ministério Público
(Código Civil, art. 68).
30 dias: para que o adquirente de bem móvel reclame de vício redi-
bitório de fácil constatação, a contar da tradição da coisa (Código
Civil, art. 445); para o consumidor reclamar do produto/serviço
não durável adquirido com defeito, a contar da tradição ou do co-
nhecimento do defeito (Código de Defesa do Consumidor, art. 26).
60 dias: para o vendedor exercer o direito de preferência e readqui-
rir a coisa imóvel, a contar da data da notificação promovida pelo
comprador (Código Civil, art. 516).
90 dias: para o credor prejudicado requerer a anulação de atos re-
lacionados à incorporação, fusão ou cisão de uma pessoa jurídica, a
contar da data da publicação do ato (Código Civil, art. 1.122); para
o consumidor reclamar do produto/serviço durável adquirido com
defeito, a contar da tradição ou do conhecimento do defeito (Códi-
go de Defesa do Consumidor, art. 26).

201
120 dias: para o interessado impetrar mandado de segurança (art.
18 da Lei n. 1.533/51 e Súmula 632 do STF); para o transportador
reclamar indenização pelo prejuízo que sofrer em caso de infor-
mação inexata ou falsa descrição, a contar do ato (Código Civil,
art. 745).
180 dias: para anular negócio concluído pelo representante em
conflito de interesses com o representado, a contar da conclusão
do negócio ou da cessação da incapacidade (Código Civil, art. 119);
para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitório de
difícil constatação (art. 445); para o condômino preterido em seu
direito de preferência haver para si a parte vendida por outro con-
dômino a estranho (art. 504); para o vendedor exercer o direito de
preferência contratual na alienação de coisa móvel (art. 513); para o
prejudicado reclamar da solidez e segurança da obra na empreitada
de edifícios ou outras construções consideráveis, a contar do apa-
recimento do defeito (art. 618); para anulação do casamento por
diversas razões (arts. 1.555 e 1.560).
1 ano: para o adquirente de bem imóvel reclamar de vício redibitó-
rio de fácil ou difícil constatação, a contar da tradição ou da consta-
tação (Código Civil, art. 445); para o adquirente reclamar comple-
mento da área ou para o alienante reclamar devolução, na compra
e venda ad mensuram, a contar da transcrição do título (art. 501);
para o doador pleitear a revogação da doação, a contar do conheci-
mento do fato que autoriza a revogação (art. 559).
1 ano e 1 dia: para o proprietário exigir que se desfaça janela, saca-
da, terraço ou goteira sobre o seu prédio (art. 1.302); para o possui-
dor pleitear liminar em ação possessória.
2 anos: para anular negócio jurídico, não havendo prazo específico,
a contar da celebração (Código Civil, art. 179); para o vendedor
exercer o direito de preferência contratual na alienação de coisa
imóvel (art. 513); para anular aprovação do balanço (art. 1.078, §
4º); para anulação do casamento celebrado por autoridade incom-
petente (art. 1.560); para anulação de negócio realizado por cônju-
ge sem a devida vênia (autorização) conjugal, a contar da extinção
da sociedade conjugal (art. 1.649); para o interessado requerer a
rescisão de julgado (Código de Processo Civil, art. 975).
3 anos: para anular a constituição de pessoa jurídica de direito pri-
vado por desrespeito aos requisitos legais (Código Civil, art. 45, pa-
rágrafo único); para anulação de decisões tomadas por maioria de
votos com violação de lei ou estatuto ou se viciadas por erro, dolo,
simulação ou fraude (art. 48, parágrafo único); para o vendedor de
coisa imóvel recobrá-la na compra e venda celebrada com cláusula
de reversão (art. 505); para anulação do casamento em razão de
erro essencial quanto à pessoa do cônjuge (art. 1.560, III).
4 anos: para anular negócio jurídico viciado por erro, dolo, estado
de perigo, lesão ou fraude contra credores, a contar da celebração

202
Direito Civil

do negócio (Código Civil, art. 178); para anular negócio jurídico


viciado por coação, a contar do dia em que cessar a coação (art.
ATENÇÃo
178); para anular casamento viciado por coação (art. 1.560, IV);
Em duas situações, entendemos
para requerer exclusão do herdeiro ou legatário, a contar da abertu-
que o legislador se equivocou ao
ra da sucessão (art. 1.815, parágrafo único); para anular disposição
tratar como prazos de decadên-
testamentária viciada por erro, dolo ou coação, contado da ciência cia hipóteses que revelam preten-
do vício (art. 1.909, parágrafo único). sões de direitos patrimoniais:
5 anos: prazo para impugnar o testamento, a contar da data do re- Art. 618 do Código Civil: “Nos con-
gistro (art. 1.859). tratos de empreitada de edifícios
ou outras construções considerá-
veis, o empreiteiro de materiais e
execução responderá, durante o
prazo irredutível de cinco anos,
pela solidez e segurança do tra-
balho, assim em razão dos ma-
teriais, como do solo. Parágrafo
único. Decairá do direito assegu-
rado neste artigo o dono da obra
que não propuser a ação contra
o empreiteiro, nos cento e oitenta
dias seguintes ao aparecimento
do vício ou defeito”. Entendemos
que esse prazo de cinco anos é
de prescrição, pois está relacio-
nado à pretensão de reparação
de danos (exercício de direito
subjetivo patrimonial).
Art. 745 do Código Civil: “Em caso
de informação inexata ou falsa
descrição no documento a que
se refere o artigo antecedente,
será o transportador indenizado
pelo prejuízo que sofrer, devendo
a ação respectiva ser ajuizada
no prazo de cento e vinte dias,
a contar daquele ato, sob pena
de decadência”. Esse prazo é de
prescrição, e não de decadência,
pois o dispositivo também se refe-
re a uma pretensão indenizatória
(direito subjetivo patrimonial).

203
11 Atos ilícitos e
responsabilidade Civil
ATENÇÃo CoNCEiTo, ESPÉCiES E DiSTiNÇÕES
11.1 NECESSáriAS, GENErALiDADE CiviL
Os artigos abaixo, todos do
Código Civil, são fundamentais
para o entendimento da matéria: O Estado Democrático de Direito garante a todos os cidadãos a or-
Art. 186. Aquele que, por dem e a paz estabelecendo entre as garantias fundamentais da Consti-
ação ou omissão voluntária, ne- tuição Federal de 1988 a apreciação pelo Poder Judiciário sempre que
gligência ou imprudência, violar
houver lesão ou ameaça a direito.1
direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, Quando o legislador constituinte se refere à proteção sempre que
comete ato ilícito. houver lesão ou ameaça a direito, subentende o dever legal de não causar
Art. 393. O devedor não res- dano a outrem.
ponde pelos prejuízos resultantes
de caso fortuito ou força maior, se
11.1.1. AToS iLÍCiToS
expressamente não se houver por
eles responsabilizado. Parágrafo O ato ilícito é a conduta, a ação ou a omissão do agente que ge-
único. O caso fortuito ou de força rou o dano, o prejuízo a outrem. Recebe o nome de ilícito porquê
maior verifica-se no fato necessá- interrompe, ofende, invade a direito alheio, provocando resultado in-
rio, cujos efeitos não era possível desejado, sem consentimento prévio ou autorização legal. A vítima
evitar ou impedir.
simplesmente é constrangida aos efeitos danosos causados pelo ato
Art. 927. Aquele que, por
ilícito do agente.
ato ilícito (Arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a O ato ilícito civil é um fato jurídico relevante para o direito civil,
repará-lo. pois acontece por ação ou omissão do agente, resultando em dano pa-
Art. 935. A responsabilidade trimonial (material) ou extrapatrimonial (moral) sobre o direito de ou-
civil é independente da criminal, trem, que injustamente o suporta, assistindo-lhe por esta razão, o direito
não se podendo questionar mais à reparação. A vítima de danos cíveis busca que o Poder Judiciário con-
sobre a existência do fato, ou so- dene o autor do fato à reparação do seu estado anterior ao dano (status
bre quem seja o seu autor, quan- quo ante).
do estas questões se acharem de-
Onde estiver o ato ilícito aí estará a infração ao dever legal de não
cididas no juízo criminal.
lesar a outrem.
Art. 936. O dono, ou detentor,
do animal ressarcirá o dano por
este causado, se não provar cul- 11.1.2. rESPoNSABiLiDADE CiviL E
pa da vítima ou força maior. rESPoNSABiLiDADE CrimiNAL
Art. 937. O dono de edifício
ou construção responde pelos Por outro lado, o ato ilícito penal consiste em ação ou omissão do
danos que resultarem de sua ru- agente, cujo fato é previamente tipificado por norma penal de direito
ína, se esta provier de falta de público. O interesse lesado é da sociedade e a sua forma de reparação se
reparos, cuja necessidade fosse dá através de punição, que pode ser desde uma pena pecuniária (multa
manifesta. ou fiança) até restrição total da liberdade da pessoa (reclusão ou deten-
Art. 938. Aquele que habitar ção – conforme a gravidade do tipo penal). O agente responderá por
prédio, ou parte dele, responde
pelo dano proveniente das coisas
que dele caírem ou forem lança-
das em lugar indevido.
1. CF, Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
Art. 944. A indenização me- garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabili-
de-se pela extensão do dano. dade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito.

206
Direito Civil

dolo ou culpa pela responsabilidade penal do ato ilícito criminal a que


der causa, desde que maior e garantido o seu direito à ampla defesa e
voCABuLário
contraditório (CF, art. 5º: (...) LV – aos litigantes, em processo judicial Dolo: quando o agente tinha a
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contradi- intenção de causar o dano.
tório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.). Portanto, Culpa: quando o agente não
a responsabilidade criminal, visa punir aqueles que ofenderem à socie- tinha a intenção de causar o
dade por descumprimento à norma penal pública. Embora as respon- dano, mas age com imprudên-
sabilidades civil e criminal tenham instrução em foros diversos, quando cia, negligência ou imperícia.
houver sentença penal irrecorrível, os fatos ali narrados, bem como a
autoria deles, se tornam inquestionáveis no cível.
Na responsabilidade civil o legislador civil impõe àquele que causar
dano (ainda que moral), o dever de indenizar a vítima. Então, pode-se
dizer que o ato ilícito civil é também fonte de obrigação.
A ação ou omissão que provoca a lesão ao direito induz à respon-
sabilidade civil que, por sua vez, é uma reação provocada pela infração
a um direito preexistente. Entretanto, não haverá direito à indenização
quando ocorrer violação a direito e ao mesmo tempo não ocorrer um
dano ou efetivo prejuízo (ainda que tenha havido culpa ou dolo do agen-
te), pois para que haja direito à reparação ou indenização devem ocorrer
simultaneamente a violação ao direito e o dano (material ou moral).

Violação Ação / Omissão Dano / Prejuízo


•฀Dever฀legal •฀Dolo •฀Material
•฀Não฀lesar฀a฀outrem •฀Culpa •฀Moral = RESPONSABILIDADE CIVIL

nexo causal

11.1.3. ELEmENToS DA rESPoNSABiLiDADE CiviL


Assim, podemos concluir que a responsabilidade civil se compõe
dos seguintes elementos: a) ação ou omissão do agente; b) dolo ou culpa
do agente; c) nexo causal e d) dano (material ou moral)
a) ação ou omissão do agente – o agente poderá responder quando
for autor direto do fato, ou por este derivar de ato próprio; ou de ato de ATENÇÃo
terceiro que esteja sob sua guarda; ou de animais e coisas de sua proprie-
De acordo com o art. 942 do
dade ou posse. Código Civil, a responsabilidade
b) dolo ou culpa do agente – o dolo demonstra a intenção do por ato praticado por terceiro
agente em causar o dano, uma violação deliberada do dever de não é de responsabilidade solidá-
lesar a outrem. Enquanto a culpa opera com a conduta não diligen- ria. Equivale dizer que todas as
pessoas que estejam envolvidas
te, pouco cuidadosa, que por sua imprudência, negligência ou impe-
com a causa do evento danoso
rícia culmina no dano a outrem. A culpa pode ser classificada em: a) responderão solidariamente pe-
contratual; b) extracontratual; c) in cometendo (aquela que resulta de los prejuízos sofridos, podendo a
uma ação. Exemplo: motorista avança o sinal vermelho); d) in omitin- vítima os eleger a teor do que dis-
do (aquela que resulta da negligência ou omissão. Exemplo: motorista põe ainda o art. 932 do mesmo
deveria ter trocado as pastilhas de freio do automóvel); e) in vigilando diploma legal.
(aquela que decorre do dever de vigilância. Exemplo: patrão quanto
aos empregados, pais em relação aos filhos); f) in elegendo (aquela que

207
resulta da escolha inadequada. Exemplo: empresa contrata motoris-
ATENÇÃo ta sem carteira de habilitação para o caminhão); e e) in custodiando
(aquela que decorre da guarda e conservação de coisas ou bens. Exem-
A culpa aquiliana ou strictu
sensu é a culpa extracontratual
plo: depositário, locatário etc.).
do agente; é aquela que se pauta c) nexo causal – trata-se da relação existente entre a causa (conduta
em sua imprudência, negligência do agente) e o efeito (dano a ser reparado). O nexo de causalidade de-
ou imperícia. A culpa contratual monstra quem deu causa ao dano, ao prejuízo sofrido injustamente, o
viola um dever jurídico prescrito qual deverá indenizar a vítima.
no acordo entre as partes. No entanto, caso esteja presente uma das hipóteses abaixo, estará
excluída a ilicitude do ato, por romperem o nexo de causalidade: I) culpa
O dano moral pode ser, ain- exclusiva da vítima; II) caso fortuito; e III) força maior.
da, direto, como se dá pela inscri- d) dano (material ou moral) – deverá haver prova de dano efeti-
ção indevida do nome no cadas-
vo, seja patrimonial (material) ou extrapatrimonial (moral). Os danos
tro de inadimplentes, uma ofensa
materiais e morais possuem meios técnicos para sua quantificação (CC,
aos direitos da personalidade. E o
arts. 944 a 954). A pretensão de reparação não subsistirá se não houver
dano moral indireto ou ricochete,
no qual se dá um desfalque pa-
demonstração do prejuízo. Em regra, deverá a vítima provar a existên-
trimonial e por reflexo, atinge um cia do dano e quantificá-lo para obter a reparação. Isto porque o pedido
valor da personalidade. Exemplo: deve permitir a ampla defesa e o contraditório. Contudo, existem muitas
o violino que pertencia ao seu bi- hipóteses aceitas na jurisprudência em que se permite a aplicação da pre-
savô e estava em sua companhia sunção de existência de dano moral (dano in re ipsa), como por exemplo
há mais de 30 anos foi roubado. O decidiu o Superior Tribunal de Justiça nos casos de: a) inscrição indevida
violino tem um valor material (pa- do nome no cadastro de inadimplentes; b) talões de cheques extraviados
trimônio) e um valor inestimável do Banco e utilizados por terceiros; c) atrasos de voo; d) impedimento
(extrapatrimonial). do฀exercício฀da฀profi฀ssão฀por฀diploma฀sem฀reconhecimento฀no฀MEC;฀e)฀
multas de trânsito lavradas por erro administrativo; e f) publicação do
O risco apresenta diver- nome de médico que não pertence a convênio.
sas modalidades: risco proveito,
quando quem colhe os bônus
11.1.4. rESPoNSABiLiDADE SuBJETivA E
suporta os ônus; risco profissional,
que se relaciona ao trabalho; ris-
rESPoNSABiLiDADE oBJETivA
co excepcional, atividades que Com fundamento na teoria clássica, a responsabilidade subjetiva é
envolvem grau elevado de pe- aquela que busca a prova da culpa do agente a fim de com ela lhe impu-
rigo, e risco integral, quando o tar o dever de indenizar a vítima. Na responsabilidade subjetiva, se não
grau de perigo é tão alto que não encontrada a culpa, em sentido amplo (dolo ou culpa) não responderá
admite exclusão da responsabili-
por perdas e danos causados o agente.
dade.
São excludentes de responsabilidade civil subjetiva: I) legítima
defesa; II) estado de necessidade; III) o exercício regular de um direi-
to; IV) o estrito cumprimento do dever legal; V) o caso fortuito; e VI)
a força maior.
A responsabilidade objetiva não exige que se prove a culpa do agen-
te; basta provar a existência do dano e do nexo causal. A admissibilidade
da responsabilidade sem culpa se justifica em razão de estar prevista na
lei (ex.: é responsabilidade objetiva dos pais (CC, art. 932, I) os atos pra-
ticados por seus filhos incapazes (CC, art. 933), ou por força do risco
inerente à atividade do autor e a natureza do risco.
A teoria subjetiva foi adotada como regra geral para imputação da
responsabilidade em nosso Código Civil.

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Direito Civil

Para que seja possível imputar o dano ao agente, deverá ele pos-
suir capacidade de discernimento. Então como fica a responsabilidade
ATENÇÃo
daqueles que não possuem condições mínimas para exercerem o discer-
Enunciado 361 da iv Jornada
nimento? de Direito Civil: “361 – Arts. 421,
O responsável será aquele que os representar (pai, tutor, curador 422 e 475. O adimplemento subs-
etc.); nestes casos, a responsabilidade objetiva decorre da previsão legal. tancial decorre dos princípios ge-
E se o representado possuir patrimônio, este responderá, desde que se rais contratuais, de modo a fazer
faça por equidade (não permitindo que prive o incapaz e as pessoas que preponderar a função social do
dele dependerem para seu sustento). contrato e o princípio da boa-fé
objetiva, balizando a aplicação
do art. 475”.
11.1.5. ABuSo DE DirEiTo
O abuso de direito é um ato ilícito que se configura quando o titu-
lar do direito, ao exercê-lo, excede os limites impostos pelo ordenamen-
to jurídico (ignorando a finalidade social do seu direito subjetivo). O
agente se desvia dos fins sociais estabelecidos para harmonizarem-se ao
ordenamento jurídico como um todo.
Entre os casos mais típicos de abuso de direito, estão as questões
envolvendo o direito de vizinhança, como, por exemplo, o uso indevido
do direito de propriedade, que terminam por afetar a saúde, o sossego e
a segurança alheios. E, ainda, demandar por dívida antes de vencida ou
por dívida já paga.
Na aplicação da lei, como já estudamos, o juiz deverá levar em conta
os fins sociais e as exigências do bem comum aos quais ela se dirige.
Considerando que um contrato de financiamento de veículo com
36 (trinta e seis) parcelas seja executado por inadimplemento, quando
restavam apenas três, não parece que a ação judicial atenda à boa-fé e
aos fins sociais. Neste caso, poderá o magistrado, com força no art. 5º da
LINDB, aplicar a teoria do adimplemento substancial (Enunciado 361
da IV Jornada de Direito Civil ).
Ao lado da teoria do abuso de direito, existem alguns desdobramen-
tos: a) venire contra factum proprium; b)supressio, surrectio e tu quoque.
a)Venire contra factum proprium – Fundamentando-se no prin-
cípio da solidariedade, esta teoria compreende que as partes durante a
relação contratual admitem um comportamento que permite certa pre-
visibilidade ou coerência habitual, provocando uma expectativa que não
deve ser contrariada repentinamente, em razão da boa-fé e da necessá-
ria conduta leal e ética entre as partes. Para que se configure a conduta
contraditória, a parte deverá desde o início da relação manter sempre
determinada conduta (factum proprium). Por exemplo, um locador cujo
locatário sempre atrasa o pagamento do aluguel, nunca cobrou multa,
até que, quando faltavam dois meses para o término do contrato, passou
a cobrá-las todas de uma vez. Aqui houve quebra do factum proprium
identificado na conduta inicial de não ter cobrado as multas.
b) Supressio, surrectio e tu quoque – A supressio é a supressão, a
perda de determinada faculdade jurídica no decurso do tempo. Esta
teoria compreende ser inadmissível o exercício de um direito por seu

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retardamento desleal. A omissão gera na outra parte uma expectativa le-
ATENÇÃo gítima, fazendo nascer para ela um novo direito subjetivo. Na surrectio é
o contrário, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em
Enunciado 412 da V Jornada
de Direito Civil. Art. 187: As diver-
razão do não exercício por outrem de um determinado direito; admite a
sas hipóteses de exercício inad- aquisição de um direito subjetivo.
missível de uma situação jurídica Desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, ligado à regra de
subjetiva, tais como supressio, tu proibir um comportamento contraditório (venire contra factum pro-
quoque, surrectio e venire contra prium ), o tu quoque, será invocado para afastar o comportamento abu-
factum proprium, são concreções sivo de uma das partes que buscaria surpreender a outra em situação de
da boa-fé objetiva. desvantagem (Enunciado 412 da V Jornada de Direito Civil).

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