Fundamentos de Álgebra MacQuarrie e Schneider 1

0.1 Expansão dos números naturais na base b

Estamos acostumados de escrever números naturais como uma seqûencia de algarismos, por exemplo 4208
é o número “quatro mil, duzentos e oito”. A sequência “4208” representa o número escrito “na base 10”. O
“10” fica visı́vel quando abrimos o sentido de “4208”:

4208 := 4 · 103 + 2 · 102 + 0 · 101 + 8 · 100 .

A base “10” é completamente arbitrária! Gente suspeita (embora ninguém sabe) que 10 foi escolhida como
a base porque temos 10 dedos. Tem até grupos (veja a “Dozenal Society”) que acham 10 uma escolha muito
ruim, e que se dedicam à troca do sistema númerico mundialmente para ser “na base 12”. Boa sorte para
eles!
Vamos formalizar isso e ver como trocar entre bases.
Definição. Dados a, b ∈ N0 com b ⩾ 2, a expressão de a na base b é a sequência de algarismos [an an−1 · · · a1 a0 ]b
com cada ai em {0, . . . , b − 1} e tal que
Xn
a= ak · bk .
k=0

Veremos usando o teorema de divisão que podemos escrever qualquer a ∈ N unicamente numa dada base b.
Exemplos. • Com essa notação, devemos escrever o número 4208 como [4208]10 . Já que 10 é a “base
padrão”, nos permitirı́amos de escrever só [4208].
• O número [243]6 é
2 · 62 + 4 · 61 + 3 · 60 = 72 + 24 + 3 = 99,
ou mais formalmente, temos [243]6 = [99]10 .
Teorema. Sejam a, b ∈ N com b ⩾ 2. Então a pode ser escrito unicamente na base b. Isto é, existe uma
única sequência [an . . . a1 a0 ] com cada ak ∈ {0, . . . , b − 1}, an ̸= 0 e tal que
n
X
a= ak bk .
k=0

Os ak se chamam os “algarismos de a na base b”.

Demonstração. Novamente temos duas coisas para mostrar: existência de uma expressão de a na base b, e
unicidade dessa expressão.
Existência: vamos trabalhar por indução sobre a. Se a < b é fácil:

[a]b = a · b0 = a ✓

Suponha agora que a ⩾ b e que qualquer número q < a tem uma expressão na base b (nossa HI). Pelo
teorema de divisão, escrevemos

a = qb + a0 , a0 ∈ {0, . . . , b − 1}.

Já que q = (a − a0 )/b e b ⩾ 2, q < a e assim a HI se aplica. Escrevemos

n−1
X
q = [cn−1 . . . c1 c0 ]b = ck bk
k=0

com cada ck ∈ {0, . . . , b − 1} e cn−1 ̸= 0. Agora é só substituir. Definindo ak := ck−1 para cada k ⩾ 1 temos
n−1
X n
X
a = qb + a0 = ( ck bk )b + a0 b0 = ak bk = [an . . . a1 a0 ]b
k=0 k=0

– a expressão procurada.
Unicidade: Indução sobre a novamente. Claramente a expressão a = [a]b é única quando a < b. Suponha
que a ⩾ b e que cada q < a possui expressão única na base b (nossa HI). Sejam

[an . . . a1 a0 ]b = a = [cm . . . c1 c0 ]b
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duas expressões de a na base b com an ̸= 0, cm ̸= 0. Nossa tarefa e para ver que m = n e que cada ak = ck .
Expandindo:
Xn n
X
a= a k bk = ( ak bk−1 )b + a0
k=0 k=1

e similarmente
m
X
a=( ck bk−1 )b + c0 .
k=1

Essas duas expressões são divisões de a por b. Mas pelo teorema de divisão, tal expressão é única, Assim
n
X m
X
a0 = c0 e ak bk−1 = ck bk−1 =: q.
k=1 k=1
Pn k−1
Novamente,
Pm q < a já que b ⩾ 2, e assim q possui única expressão na base b. Já que k=1 ak b e
k−1
c
k=1 k b são expressões de q na base b, segue que m = n e que cada ak = ck , como querı́amos.
Não tratamos o caso de a = 0 neste resultado: 0 também pode ser escrito na base b, como [0]b , só que
neste caso, o algarismo an não é não nulo.

Algoritmo para calcular a expansão de a na base b

Seguindo os passos da prova, vimos como calcular os algarismos de a na base b. É só dividindo:
• Divide a por b, obtendo a = q1 b + a0 ,
• Divide q1 por b, obtendo q1 = q2 b + a1 ,
• Divide q2 por b, obtendo q2 = q3 b + a2 ,
• Continue assim até obtiver quociente 0.
Exemplo. Vamos calcular a expansão de 4208 na base 6:

4208 = 701 · 6 + 2 (assim a0 = 2)

701 = 116 · 6 + 5 (assim a1 = 5)
116 = 19 · 6 + 2 (assim a2 = 2)
19 = 3 · 6 + 1 (assim a3 = 1)
3=0·6+3 (assim a4 = 3)

Isto é, [4208]10 = [31252]6 (confirme!).

0.2 Critérios de divisibilidade

Questão: a é divisı́vel por b? É mais fácil decidir com uns números do que com outros.
• 226576721 é divisı́vel por 2? Não, pois o último algarismo é ı́mpar.
• 244645645 é divisı́vel por 5? Sim, pois o último algarismo é 5.
• 234543546 é divisı́vel por 6? Nenhuma ideia (mas minha calculadora disse que sim).
É fácil saber com 2 e 5 porque eles são divisores da base 10. Por isso umas pessoas lutam pra base 12 – tem
mais divisores: 2, 3, 4, 6.
Na base 10, têm mais alguns b para quais é razoavelmente fácil decidir se b divide a:
Teorema. (Uns critérios de divisibilidade) Considere o número a = [an . . . a1 a0 ]10 .
1. 2 | a ⇐⇒ 2 | a0 ,
Pn
2. 3 | a ⇐⇒ 3 | k=0 ak ,
3. 4 | a ⇐⇒ 4 | [a1 a0 ],
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4. 5 | a ⇐⇒ 5 | a0 ,
5. 8 | a ⇐⇒ 8 | [a2 a1 a0 ],
Pn
6. 9 | a ⇐⇒ 9 | k=0 ak ,
7. 10 | a ⇐⇒ a0 = 0,
Pn
8. 11 | a ⇐⇒ 11 | k=0 (−1)k ak .
Demonstração. Faremos as primeiras duas partes e deixaremos as outras como exercı́cios. Usaremos muito
o fato fácil que quando x = y + bq, então b | x ⇐⇒ b | y (confirme isso!).
1. Temos
n
X n
X
a = [an . . . a1 a0 ] = a0 + 10( ak 10k−1 ) = a0 + 2 · (5 ak 10k−1 ).
k=1 k=1

Assim pelo fato (com x = a, y = a0 ), 2 | a ⇐⇒ 2 | a0 .

2. Falei que faria essa parte mas menti:
Exercı́cio. Prove por indução que para todo n ∈ N, existe qn ∈ N tal que 10n = 1 + 3qn .

Temos

a = [an . . . a1 a0 ] = a0 + a1 101 + . . . + an 10n

= a0 + a1 (1 + 3q1 ) + . . . + an (1 + 3qn ) (pelo exercı́cio)
= (a0 + a1 + . . . + an ) + 3(a1 q1 + . . . an qn ).

Agora pelo fato fácil, 3 | a ⇐⇒ 3 | (a0 + . . . + an ).

O resto. Partes 3 a 7 são parecidas como 1 e 2. Para Parte 8, mostre que 10n = 11qn + (−1)n .

Exemplo. Encontre os valores de s ∈ {0, . . . , 9} para os quais [136st3] não é divisı́vel por 11 para nenhum
algarismo t.
R(=“Resposta”): Pelo critério,

11 | [136st5] ⇐⇒ 11 | (5 − t + s − 6 + 3 − 1) = s − t + 1.

Já que 0 ⩽ s, t ⩽ 9,

11 | [136st5] ⇐⇒ 11 | (s − t + 1) ⇐⇒ s − t + 1 = 0 ⇐⇒ t = s + 1.

Essa equação tem solução para cada s < 9, mas não tem solução quando s = 9. Assim a resposta é: s = 9.

0.3 Expansão decimal dos números racionais

O seguinte fato foi/será provado em Cálculo 2:
P∞
Lema. Seja q ∈ R com |q| < 1. A série infinita n=0 q n é convergente, e
∞
X 1
qn = .
n=0
1−q

Sabemos da escola que qualquer número real s tem uma expansão decimal. Isto é, ele pode ser expressado
como
s = [an . . . a1 a0 , a−1 a−2 a−2 . . .],
onde [an . . . a1 a0 ] ∈ N0 e a−k ∈ {0, . . . , 9} ∀k ∈ N. Por exemplo

π = [3, 14159 . . .].

Nesta seção, veremos por que isso é verdade, classificaremos as expansões decimais dos números racionais,
e calcularemos tais expansões decimais.
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Definição. Uma expansão decimal (ou fraçaõ decimal) é uma sequência (possivelmente infinita) da forma

[an . . . a1 a0 , a−1 a−2 a−2 . . .].

O número real correspondente à expansão acima é

∞
X a−k
s = [an . . . a1 a0 , a−1 a−2 a−2 . . .] = [an . . . a1 a0 ] + .
10k
k=1

Ainda temos que confirmar que o número real s é bem definido. Já que entendemos a parte [an . . . a1 a0 ]
já, focaremos daqui para frente somente na segunda parte. Isto é, nas expansões decimais da forma
[0, a−1 a−2 . . .].
Lema. Para qualquer sequência de algarismos a−1 , a−2 , . . . a expansão [0, a−1 a−2 . . .] representa um único
número real s entre 0 e 1.
Demonstração. Usaremos uns fatos de Cálculo 2. Considere primeiramente a expansão maior possı́vel
[0, 999 . . .]. Ela corresponde à série
∞ ∞  k
X 9 9 X 1
=
10k 10 10
k=1 k=0
9 10
= · (pelo lema acima)
10 9
= 1.

Olhando agora nossa expansão decimal, podemos considerar a sequência das somas parciais s1 , s2 , . . . onde
n
X a−k
sn = .
10k
k=1

Já que a sequência s1 , s2 , . . . é crescente e limitada superiormente por 1 (pela conta acima), ela é convergente
e temos
0 ⩽ s = lim sn ⩽ 1.
n→∞

Observação: O que não é única é a expressão de um número real como expansão decimal: por exemplo

[1, 000 . . .] = 1 = [0, 999 . . .].

Uma expressão decimal é periódica se depois de um momento ela só se repete para sempre. Formalmente:
Definição. A expansão decimal [0, a−1 a−2 . . .] é periódica se existem valores m, r ∈ N tais que a−n =
a−(n+r) para todo n ⩾ m.
Neste caso, a sequência [a−m . . . a−(m+r−1) ] é o perı́odo da expansão e a sequência [a−1 . . . a−(m−1) ] é a
parte pré-periódica da expansão.
Denotaremos a expansão decimal acima por

[0, a−1 . . . a−(m−1) a−m . . . a−(m+r−1) ]

Exemplo. A expansão decimal do número 1/44 é

1/44 = [0, 0227272727 . . .] = [0, 0227].

A parte pre-periódica é [0, 02] e o perı́odo é [27].

Teorema. O número real positivo s possui uma expansão decimal periódica se, e somente se, s ∈ Q.
Demonstração. Suponha primeiro que s possui uma expansão periódica

s = [an . . . a0 ; a−1 . . . a−(m−1) a−m . . . a−(m+r−1) ].

Temos
10m−1 s = [an . . . a0 a−1 . . . a−(m−1) , a−m . . . a−(m+r−1) ] = d + [0, a−m . . . a−(m+r−1) ]
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com d = [an . . . a0 a−1 . . . a−(m−1) ] ∈ N0 , então só temos que confirmar que [0, a−m . . . a−(m+r−1) ] ∈ Q. Seja
v = [a−m . . . a−(m+r−1) ] ∈ N0 . Temos
∞ ∞
X v v X 1 k v 1 v
[0, a−m . . . a−(m+r−1) ] = = ( r) = r = r .
(10r )k 10r 10 10 1 − 1/10r 10 − 1
k=1 k=0

Mas esse número é racional, como a gente queria!

Agora faremos a outra direção, entaõ suponha que s ⩾ 0 é racional. Como acima, podemos supor que
s < 1, assim s = a/b com 0 ⩽ a < b. Faremos a seguinte sequência de divisões por b:

10a = q1 b + a1 (0 ⩽ a1 < b) (1)

10a1 = q2 b + a2 (0 ⩽ a2 < b) (2)
10a2 = q3 b + a3 (0 ⩽ a3 < b) (3)
..
.
10an−1 = qn b + an (0 ⩽ an < b) (n)
..
.

Afirmamos que a/b = [0, q1 q2 q3 . . .]. Para ver isso, mostraremos

Pn que a/b − [0, q1 . . . qn ] < 1/10n para cada
qk
n ∈ N, e assim a sequência das somas parciais sn = k=1 10k tende a a/b.
Mais precisamente: mostraremos por indução que
an 1
a/b − [0, q1 . . . qn ] = (< pois an < b).
10n b 10n
Caso base:
a q1 (1) q1 b + a1 q1 q1 a1 q1 a1
a/b − [0, q1 ] = − = − = + − = ✓
b 10 10b 10  10 10b  10 10b
Suponha que a/b − [0, q1 . . . qn−1 ] = 10an−1
n−1 b para algum n > 1 (nossa HI). Temos
a qn
a/b − [0, q1 . . . qn ] = − [0, q1 . . . qn−1 ] − n
b 10
HI an−1 qn
= n−1 − n
10 b 10
(n) qn b + an qn
= n−1
− n
10 · 10 b 10
qn an qn
= n+ n − n
10 10 b 10
an
= n ✓
10 b
Então temos a expansão decimal [0, q1 q2 . . .] de a/b. Falta confirmar que ela é periódica.
Mas já que 0 ⩽ an < b ∀n, tem que existir números m, r tais que am−1 = am+r−1 . Fazendo as divisões:

qm b + am = 10am−1 = 10am+r−1 = qm+r b + am+r .

Mas o quociente e resto da divisão são únicos pelo teorema de divisão, logo qm = qm+r e am = am+r .
Repetindo esse argumento, vemos que [0, q1 q2 . . .] é periódica com perı́odo [qm . . . qm+r−1 ]. [Exercı́cio: se
tiver dúvidas sobre essa última parte, faça uma prova formal por indução]

Algoritmo para calcular a expansão decimal de a/b

Seguindo os passos do teorema, obtemos um algoritmo para calcular a expansão decimal de um número
racional s não negativo:
• Escreve s como d + a/b com d ∈ N0 e a < b.
• Divide 10a por b, obtendo 10a = q1 b + a1
• Divide 10a1 por b, obtendo 10a1 = q2 b + a2
• Repete até encontrar um resto an que já apareceu. Chama a primeira ocorrência por am−1 e a segunda
por am+r−1 .
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• A expansão decimal de s é d + [0, q1 . . . qm−1 qm . . . qm+r−1 ].

Exemplo. s = 1/44, logo a = 1, b = 44.

10 · 1 = 0 · 44 + 10
10 · 10 = 2 · 44 + 12
10 · 12 = 2 · 44 + 32
10 · 32 = 7 · 44 + 12 ←− 12 já apareceu então acabamos!

Logo, a expansão decimal de 1/44 é [0, 0227], como afirmamos antes!

O teorema anterior tem como corolário (= resultado que segue rapidamente de um teorema) que nem
todo número é racional:
Corolário. Existem números irracionais.

Demonstração. Pelo teorema, um número cuja expansão decimal não é periódica, não pode ser racional.
Assim é só encontrar uma expansão não periódica. Por exemplo, o número

0, 01001(três 0s)1(quatro 0s)1(cinco 0s)1 . . .

não pode ser racional.

Exercı́cio. Prove os resultados dessa seção pra base 6. Ou/e melhor ainda, prove os resultados dessa seção
para uma base qualquer.