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Análise sociológica da didática museal: os sujeitos

pedagógicos e a dinâmica de constituição do discurso


expositivo

Martha MarandinoI

Resumo

Este artigo busca estudar o fenômeno educacional dos museus a


partir da análise sociológica da didática museal. Tomando por base a
Teoria do Discurso Pedagógico de Basil Bernstein e, em especial, os
conceitos de recontextualização e campo recontextualizador desse
autor, o processo de produção do discurso expositivo de cinco museus
de ciências foi estudado. Assumiu-se o discurso expositivo como
uma modalidade de discurso pedagógico e buscou-se evidenciar o
processo de recontextualização de vários discursos na produção da
exposição, além de caracterizar os sujeitos pedagógicos que compõem
o campo recontextualizador pedagógico dos museus estudados. Ao
revelar os agentes e instâncias responsáveis pela recontextualização
e a dinâmica existente entre eles, evidenciou-se as relações de poder
entre sujeitos e campos de conhecimento envolvidos na produção do
discurso expositivo. A análise, com foco na dimensão sociológica
da didática museal, fornece elementos-chave para a compreensão
das dinâmicas de seleção e de distribuição do poder na elaboração
das ações educativas dos museus, colaborando na formação dos
profissionais que atuam nesses locais e, por conseguinte, qualificando
as atividades educativas por eles elaboradas.

Palavras-chave

Educação em museus — Didática museal — Recontextualização —


Basil Bernstein.

I- Universidade de São Paulo, São Paulo,


SP, Brasil.
Contato: marmaran@usp.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 3, p. 695-712, jul./set. 2015.. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201507133421 695
Sociologial analysis of museum didactics: educational
subjects and the dynamics of constitution of exhibition discourse

Martha MarandinoI

Abstract

This article aims to study the educational phenomenon of museums


from the sociological analysis of museum didactics. Based on Basil
Bernstein’s theory of pedagogic discourse, and, in particular, on the
author’s concepts of recontextualization and recontextualizing field,
the study addresses the process of production of exhibition discourse
of five science museums. The study assumed exhibition discourse
as a pedagogic discourse modality and sought not only to bring
to light the process of recontextualization of various discourses
in the production of the exhibition, but also to characterize the
pedagogical subjects that comprise the pedagogic recontextualizing
field of the museums studied. By revealing the agents and instances
responsible for the recontextualization and the dynamics between
them, evidence was found of the power relations between subjects
and fields of knowledge involved in the production of exhibition
discourse. The analysis – focusing on the sociological dimension of
museum didactics – provides key elements for understanding the
dynamics of selection and distribution of power in the development
of educational activities of museums, contributing to the education of
professionals who work in these places and, therefore, to qualifying
the educational activities designed by them.

Keywords

Museum education — Museum didactics — Recontextualization —


Basil Bernstein.

I- Universidade de São Paulo, São Paulo,


SP, Brasil.
Contact: marmaran@usp.br

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201507133421 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 3, p. 695-712, jul./set.


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Introdução educação em museus, destacando as relações
de poder a partir das influências dos campos
A educação em museus vem se políticos, econômicos, culturais e sociais na
constituindo como temática relevante de estudo definição das ações educativas dentro dessas
tanto no âmbito nacional como internacional instituições. Tal dimensão é considerada por
(HOOPER-GRENHILL, 1994; CAZELLI et nós parte constituinte da didática museal.
al., 1997). Diferentes vertentes da pesquisa Neste texto, iremos explorar a análise
educacional tomam como objeto a educação sociológica da educação em museus e, mais
desenvolvida nos e pelos museus, enfocando os especificamente, da didática museal, com
aspectos de ensino e aprendizagem realizados base na Teoria do Discurso Pedagógico de
nesses locais (SIMONNEUX; JACOBI, 1997; Basil Bernstein. Serão apresentados dados
ALLEN, 2002; ASH, 2002; BIZERRA, 2009; oriundos de um estudo que investigou os
MORTENSEN, 2010). atores e as instâncias envolvidas na produção
Essas investigações evidenciam a de exposições de cinco museus de ciências
existência do fenômeno educacional nos brasileiros, discutindo como se deu a produção
museus e, para explorar seus aspectos do discurso expositivo nesses locais.
pedagógicos, busca-se, neste texto, construir Mas como se dá a produção do discurso
um olhar que possa situar as especificidades pedagógico nos museus? Quem o produz?
e caracterizar alguns dos elementos Como se dão as relações de poder entre os
constituintes da didática museal. Para tal, agentes dessa produção? Esses aspectos serão
optou-se por explorar uma das dimensões abordados neste trabalho, buscando-se assim
de análise da educação em museus, analisar a produção do discurso expositivo
cunhada dimensão sociológica, a qual busca entendido como um discurso pedagógico
compreender a constituição do papel social na perspectiva de Bernstein. Essa análise
dos museus enquanto instituição educativa tem por objetivo evidenciar os processos de
(MARANDINO, 2012). recontextualização e as relações de poder e
A trajetória histórica dos museus revela controle sobre a produção do discurso que
que estes se constituíram com base em funções aparece para o público nas exposições.
ligadas tanto à preservação do patrimônio Para situar a dimensão sociológica da
(coleta, salvaguarda, conservação e pesquisa didática museal, iniciaremos apontando os
científica) quanto à extroversão (comunicação aspectos da teoria de Bernstein que nos interessam
e educação); sendo assim, a educação é uma para este estudo, em especial os conceitos de
entre as demais funções dessa instituição na recontextualização e de campo recontextualizador,
contemporaneidade. Tendo os museus funções considerados centrais para entender os agentes
sociais variadas, é possível afirmar que a de seleção e controle da produção do discurso
educação nesses locais não é algo dado; trata- expositivo. Em seguida, apresentamos os dados
se de uma construção que certamente ganhou obtidos com base em entrevistas que exploraram
destaque entre os séculos XIX e XX e que o processo de produção de exposições de cinco
vem sendo realizada tanto pelos profissionais museus de ciências brasileiros, com a finalidade
que trabalham no cotidiano das instituições de apontar alguns dos agentes e instâncias
quanto por aqueles que estudam o tema que compõem o campo recontextualizador
(MARTINS, 2011). Compreender como vem pedagógico dos museus, revelando também
sendo realizada essa construção é um objeto seu funcionamento. Por fim, serão realizadas
de estudo da educação e, nesse sentido, é considerações sobre a importância da análise
relevante o desenvolvimento de investigações sociológica para caracterizar o fenômeno
que analisam a dimensão sociológica da educacional dos museus.

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A educação em museus na controlados pelos agentes e instâncias que
dimensão sociológica da participam do poder numa dada sociedade. Para
educação: apresentando as ideias de Bernstein, é fundamental compreender a base
Basil Bernstein social da distribuição do poder e os princípios de
controle que fazem parte do jogo de produção.
O trabalho de Basil Bernstein vem Segundo Bernstein, o dispositivo
sendo amplamente utilizado nas investigações pedagógico é formado pelas regras que irão
educacionais voltadas para os currículos gerar o discurso pedagógico. São elas as regras
escolares (GALLIAN, 2008), em especial nos distributivas, as regras recontextualizadoras
estudos no campo da sociologia da educação e as regras de avaliação, sendo que as três
(FORQUIN, 1993). Além disso, tem influenciado encontram-se hierarquicamente relacionadas.
algumas das investigações desenvolvidas As regras distributivas tentam regular quem
nos museus (MARANDINO, 2001; BOTELHO; tem acesso ao lugar de poder e controle do
MORAIS, 2004; MARTINS, 2011). discurso, mas o fazem imersas em contradições.
Neste trabalho, o olhar de Bernstein Elas realizam a seleção dos agentes que
sobre a escola e os processos de seleção da foram legitimamente pedagogizados e, assim,
cultura e dos conteúdos simbólicos que nela marcam e distribuem quem pode transmitir
circulam foi por nós assumido e transposto o que, a quem e sob quais condições. Logo,
para olhar, agora, como se dão os processos na produção do discurso pedagógico, os
de seleção, estruturação e legitimação da sujeitos pedagógicos são também criados,
cultura e dos conteúdos simbólicos que promovendo as estratificações dos grupos que
circulam nas ações educativas realizadas determinam o que e o como ensinar. Sendo
pelos museus. assim, as regras distributivas “criam um
campo especializado de produção do discurso,
A dinâmica de recontextualização com regras especializadas de acesso e controle
em Basil Bernstein especializados de poder” (BERNSTEIN, 1996,
p. 254).
Bernstein (1996) é um sociólogo da No caso da produção das exposições
educação que analisou a estruturação social dos museus, as regras distributivas também
do discurso pedagógico e das formas de sua atuam definindo quem tem acesso ao
transmissão e aquisição, interessando-se, em lugar de poder, controlando o discurso
especial, pela relação entre as estruturas de expositivo – considerado aqui como um
classe – com as desigualdades sociais – e a tipo de discurso pedagógico. O estudo sobre
linguagem da educação. A obra desse autor, a produção desse discurso expositivo nos
como nos aponta Leite (2007, p. 24), apesar de leva a compreender quem são os sujeitos
privilegiar “as relações pedagógicas escolares, pedagógicos que definem o que e o como
pretende que sua linguagem conceitual possa expor, os quais, por sua vez, podem ser
descrever qualquer relação pedagógica”. formados por grupos distintos que assumem
Em seu trabalho, Bernstein (1996) posições diferenciadas na definição das
indica as relações fundamentais de uma teoria regras de controle e legitimação do discurso
de comunicação pedagógica e analisa as final. Esses aspectos serão explorados nos
condições de constituição do texto pedagógico. dados analisados.
O dispositivo pedagógico, na perspectiva desse Por outro lado, as regras
autor, possui um ordenamento interno que recontextualizadoras, como afirma Leite (2007,
determina as condições de produção, reprodução p. 32), são o cerne do discurso pedagógico,
e transformação da cultura, processos esses o qual funciona a partir da apropriação de

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outros discursos, com a finalidade específica de pré-escolar/primário, secundário e terciário,
atender ao processo de transmissão e aquisição agências, posições e práticas. O terceiro
de conhecimentos. Bernstein (1996) entende contexto é o recontextualizador. Nele, as
que o discurso pedagógico pode ser definido posições, os agentes e as práticas estão
como as regras para embutir e relacionar dois preocupados com os movimentos de textos e
discursos e, nesse processo de relação, o discurso as práticas do contexto primário de produção
da competência, instrucional – dos conteúdos discursiva que passam para o secundário, de
e conhecimentos científicos, por exemplo – é reprodução discursiva. A função daqueles que
embutido no discurso regulativo, de ordem se encontram nesse terceiro contexto é a de
social – referente aos campos pedagógicos. Na regular a circulação dos textos entre os dois
produção do discurso pedagógico, os discursos outros contextos:
que se encontram em relação, são deslocados
de sua prática e contexto, transformando-se. [...] podemos dizer que o discurso
O princípio recontextualizador do discurso pedagógico é gerado por um discurso
pedagógico age de forma seletiva, apropriando, recontextualizador [...]. O princípio
refocalizando e relacionando outros discursos recontextualizador cria campos
a partir de sua própria ordem, tornando-o um recontextualizadores, cria agentes com
outro discurso e produzindo um novo. funções recontextualizadoras (BERNSTEIN,
Na produção do discurso expositivo 1998, p. 63).
nos museus, profissionais de várias áreas de
conhecimento, com seus próprios discursos, O campo recontextualizador onde os
participam da definição do que será agentes atuam realizando a recontextualização
selecionado como conhecimento final a ser pode ser subdividido em dois: o campo
apresentado para o público. Nesse processo, recontextualizador oficial (CRO) e o campo
os agentes envolvidos também definem como recontextualizador pedagógico (CRP) (LEITE,
o conhecimento será exposto e, desse modo, 2007; BERNSTEIN, 1996, 1998). O CRO é criado
os discursos das diferentes áreas estabelecem e dominado pelo Estado e seus agentes, pelos
relações entre si com a finalidade de tornar departamentos especializados e autoridades
esse conhecimento compreensível pelo público. educacionais locais, com suas pesquisas e
Os agentes e as áreas de conhecimento que sistema de inspeção. Já o CRP é composto pelos
participam da produção do discurso expositivo pedagogos e outros formadores de professores e
serão analisados neste texto. pesquisadores das escolas, pelas universidades
e seus departamentos/faculdades de educação,
Os campos recontextualizadores com suas pesquisas, mas também pelas
oficiais e pedagógicos fundações privadas, os “meios especializados
de educação, jornais semanais, revistas, etc. e
As regras do discurso pedagógico as editoras, juntamente com seus avaliadores e
atuam em três contextos fundamentais dos consultores”. Pode ainda se estender “para campos
sistemas educacionais. O contexto primário não especializados do discurso educacional”,
seria o da produção do discurso e refere- mas que exercem influência sobre o Estado
se ao processo de criação e modificação (BERNSTEIN, 1996, p. 270).
seletiva de novas ideias, formando o A dinâmica de funcionamento do
“campo intelectual” do sistema educacional campo recontextualizador é reveladora
(BERNSTEIN, 1996). O contexto secundário dos processos e agentes que realizam a
seria o da reprodução seletiva do discurso recontextualização e a criação do discurso
educacional e é formado por vários níveis: pedagógico. Existe, assim, uma dinâmica

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entre posições, sujeitos, práticas nos três Aqui apresentaremos os dados relativos
contextos recontextualizadores, sendo às entrevistas, considerando que nelas foi
possível ocuparem diferentes contextos, possível caracterizar com maior ênfase o
dependendo da autonomia concedida a eles. aspecto em destaque neste artigo, qual seja, as
Como indica o autor, a forma de regulação, instâncias e agentes envolvidos na produção
a composição social dos diferentes agentes, do discurso expositivo. Dessa forma, buscamos
pode variar de uma situação histórica para caracterizar a dinâmica de recontextualização
outra. E, no campo pedagógico, no nível da e o campo recontextualizador pedagógico do
universidade ou de instituição equivalente, discurso expositivo.
aqueles que produzem o novo conhecimento As entrevistas com os coordenadores e/
podem ser seus próprios recontextualizadores. ou elaboradores, identificados aqui com um
Bernstein afirma que o seu modelo número associado ao museu estudado – em
permite uma dinâmica interna considerável na Mu5-2, por exemplo, Mu5 equivale ao museu
produção, distribuição, reprodução e mudança 5 e 2, ao entrevistado 2 –, foram feitas com
do discurso pedagógico, já que os próprios base em um roteiro semiestruturado em que
princípios dominantes – expressão da relação se levantou a concepção da exposição, as
entre os grupos dominantes e regulados pela formas de seleção de conteúdos, objetos,
distribuição do poder – referem-se a uma textos, linguagem e elementos visuais. As
arena de conflito, em vez de significarem um entrevistas foram gravadas, transcritas
conjunto estável de relações (BERNSTEIN, e analisadas buscando-se identificar os
1996, p. 280). sujeitos e instâncias produtoras do discurso
As ideias de Bernstein, como ele expositivo e a relação entre eles. Optamos por
mesmo aponta, não se limitam a compreender não identificar as instituições e os sujeitos
a produção do discurso pedagógico de entrevistados nesse trabalho para garantir seu
forma restrita aos contextos escolares. Essa anonimato, conforme acordado no momento
visão nos move na direção de assumir que de coleta de dados.
o discurso produzido nas ações educacionais
dos museus de ciências, como as exposições, A produção do discurso
também é regulado pelas estruturas sociais expositivo em cinco exposições
mais amplas. Seus conceitos nos auxiliam a de museus de ciências
compreender as relações entre os princípios
de seleção e organização que subjazem a O Mu1, ligado a uma universidade
produção de ações educacionais dos museus pública, iniciou suas coleções na década
e seus contextos institucionais, bem como de 1890, tendo como principal foco
a relação entre tais princípios e a estrutura temático a zoologia e as questões ligadas à
social mais ampla. biodiversidade. Em sua exposição, é possível
identificar momentos em que se enfatiza
Aspectos metodológicos da a apresentação exaustiva dos espécimes
investigação zoológicos em vitrines, organizados de
acordo com os grupos taxonômicos e com
Neste trabalho, investigamos exposições informações relacionadas à sistemática
de cinco museus com temáticas ligadas às zoológica. Essa perspectiva retrata as
ciências biológicas (Mu1; Mu2; Mu3; Mu4; concepções sobre a pesquisa biológica e
Mu5), a partir de entrevistas junto a seus sobre a museografia do período em que a
elaboradores e/ou coordenadores, de análise de exposição foi montada, conforme indica o
documentos e de observação das exposições. depoimento de um de seus coordenadores:

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Então, eu acho interessante ver a exposição No caso do Mu2, um museu universitário
pública tal como ela é hoje, como um público dedicado à temática da anatomia
retrato de qual era a concepção tanto da veterinária, foi possível perceber também
museologia quanto da zoologia há cem a importância de outros conhecimentos e
anos. Eu acho interessante porque, na especialistas, para além do campo científico,
verdade, é um registro histórico. (Mu1-2) envolvidos na preparação da exposição.
Os técnicos que fazem parte do quadro de
O discurso expositivo do Mu1 enfatiza funcionários do museu são fundamentais
aspectos do campo científico referentes a uma para que os objetos anatômicos possam ser
determinada concepção de História Natural preparados e mantidos expostos no museu.
hegemônica ao longo do século XIX e início do A importância da especialidade desses
XX. Em alguns momentos, contudo, a presença profissionais foi ressaltada pela direção:
de outros discursos, referentes a outras áreas
do conhecimento, para além da científica/ E nós temos dois técnicos [...] Você já viu
biológica, foi notada. Em alguns depoimentos, montar um esqueleto? Depois que você
fica evidenciado o processo de negociação que macera tudo, aquilo vira um quebra-cabeça,
vigorou na realização dessas experiências: não é? E principalmente quando você está
montando um esqueleto de rato, um esqueleto
Então, teve a ajuda de um museu logo de pássaro, um esqueleto de cavalo-marinho,
que trabalhou num museu de arte [(...]) como a gente tem aí. Então, aquilo realmente
e ele me ajudou, tinha muito mais é um quebra-cabeça, uma coisa delicadíssima,
ideias. Inclusive os últimos temas das e o técnico tem um jeito, uma paciência, uma
exposições temporárias foi ele que bolou, coisa. É perfeito. (Mu2-1).
porque eu sou uma pesquisadora com
uma cabeça muito acadêmica. como são A interação entre as áreas científicas e da
todos os outros colegas aqui. (...) Numa museologia é também um elemento considerado
exposição, você tem que fazer a coisa positivo e rico pela direção de Mu2, com reflexos
toda da montagem visual, da mensagem. importantes para a própria exposição e o museu
É uma coisa da comunicação no museu. em geral. No entanto, como se vê a seguir, nem
Não adianta fazer texto comprido, sempre as diferentes perspectivas, resultantes
porque as pessoas não leem, não têm de outras áreas de formação, são negociadas
tempo. Mas o texto não pode atrapalhar de forma tranquila no processo de produção. A
o objeto, o exemplar museológico. fala de uma das especialistas revela os embates
(Mu1-4). presentes no jogo de poder entre os diferentes
campos de conhecimento ao longo do processo
O depoimento acima mostra que o de produção:
conhecimento do museólogo foi requisitado
para a elaboração de uma exposição que No começo, o pessoal teve assim uma
se preocupava com a compreensão do reação, porque é engraçado, não é,
público sobre o conteúdo que estava sendo não sei, isso é uma coisa bem atávica
apresentado. Processos de seleção e de na gente, até como esse museu foi
simplificação foram indicados na fala como nascendo, espontaneamente, e tudo.
parte do caminho de elaboração da exposição, Então, aquilo é muito assim da
sendo os critérios de escolha orientados pelo anatomia, dos professores da anatomia.
papel dado à mensagem e ao público e, logo, De repente, você entregar tudo isso para
ao processo de comunicação. a gestão de uma outra pessoa, que você

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tem que reconhecer que é especializado Depois de muitas visitas, a gente
em organizar museus. Então, você tem percebe que muitas curiosidades eram
que ceder espaço. Isso foi uma coisa constantes na cabeça das crianças,
que o pessoal teve muita dificuldade no dos adultos [...]. Então, a gente tentou
começo. [...]. Mas, enfim, essa coisa toda colocar um pouquinho mais do que a
de exposição para público, a dinâmica gente percebeu que era uma constante
do museu, tem que ter uma pessoa no público. (Mu3-3).
especializada. (Mu2-2).
A exposição de Mu3 foi pensada por
Assim sendo, as modificações uma equipe com formação na área científica,
implementadas na história do Mu2, mas também com experiência em educação,
principalmente com a entrada de uma museóloga no atendimento ao público e na produção de
na equipe, tiveram como um dos critérios materiais escolares. De início, um dos desafios
principais facilitar a compreensão dos temas era encontrar uma linguagem expositiva
apresentados pelo público: que fosse compreendida por um público
não especializado e que, ao mesmo tempo,
Então, a gente está recebendo um não afastasse o visitante especialista da
público maior de escolas de primeiro e universidade, onde se encontra o museu. No
segundo graus, e a gente se voltou um entanto, o público escolar foi se tornando cada
pouco também para esse lado. Acho que vez maior e mais presente entre os visitantes,
foi a partir daí também que começamos o que acabou influenciando as escolhas feitas
a nos preocupar mais com essa coisa sobre a exposição e levando à incorporação ao
de colocar instruções, esclarecimentos. discurso de conteúdos e elementos comuns ao
Tem muita coisa ainda no museu que ambiente escolar:
não está clara. (Mu2-1).
Em parte, porque nós, inclusive nas nossas
Pode-se afirmar, a partir dos dados atividades educativas, a gente tenta
apresentados sobre o Mu2, que o discurso do transversar com alguns temas dados em
público, no caso especial da escola, também salas de aula. (Mu3-2).
está presente no jogo de relações no processo de
constituição do discurso expositivo. Por outro O processo de elaboração da exposição
lado, o papel da museóloga foi fundamental do Mu3 teve forte influência do acervo
nas reorganizações pelas quais a exposição existente. Com pouca verba, o museu foi sendo
foi passando ao longo dos anos, o que coloca constituído a partir do esforço da equipe,
nesse jogo também o discurso da museologia. utilizando apenas o material básico pertencente
Além disso, saberes técnicos como daqueles aos seus pesquisadores, fornecido pelo instituto
profissionais que preparam as peças para a ao qual ele está ligado:
exposição foram fundamentais na constituição do
discurso expositivo final. O museu nunca teve uma verba própria fixa,
No Mu3, outro museu pertencente à muito menos elevada. Sempre o dinheiro
universidade pública, o acervo e o público era muito pouco, então nunca a gente
desempenharam papéis fundamentais na conseguiu mostrar o que a gente se propôs.
concepção e elaboração da exposição. Os O pessoal da marcenaria deu uma força
biólogos que estiveram presentes desde a tremenda, foi tudo reciclado do material
origem da montagem da exposição desse já existente, não foi nada comprado disso
museu ressaltam esses aspectos: aí que você está vendo. Só os aquários e

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equipamentos de manutenção, bombas, áreas da física, da biologia, da matemática, da
filtros, a parte de alimentação, tudo isso astronomia, entre outros, ou seja, o diálogo
foi comprado porque aqui dentro não tinha entre os diferentes discursos utilizados na
nada. (Mu3-3). construção do discurso expositivo se dava nos
seguintes termos:
Em cada exposição de museu,
diferentes fatores acabam por influenciar Havia reuniões gerais com todos eles, mais
o processo de constituição das exposições. de vinte pesquisadores, de todas as áreas.
Sem dúvida, o público visitante, o acervo Desses vinte, alguns sempre tinham uma
e a gestão de recursos foram elementos participação, desenvolvimento e contato
fundamentais na concepção da exposição do maior, e, a partir dessas reuniões gerais,
Mu3 e se comportaram como moduladores ou a Ana fazia o exercício da unidade. [...]
efetivamente como outros discursos no jogo E eram vários contatos, várias reuniões,
da produção do discurso expositivo. por telefone, era entender o que ele estava
O Mu4 é um centro de ciências falando e como a gente poderia musealizá-
pertencente a uma universidade pública, formado la, transformar aquela ideia em uma
por aparatos interativos das áreas de física, exposição. (Mu4-3).
matemática, química, biologia, astronomia,
história, entre outras. Contudo, foi concebido O depoimento acima, de uma das
para funcionar como um museu e essa decisão museólogas envolvidas na concepção
esteve relacionada inclusive com a equipe e execução dessa exposição, oferece a
responsável pela elaboração de sua proposta, dimensão do trabalho de mediação entre o
basicamente composta por museólogas. Esses discurso científico e aquele da museologia,
profissionais tomaram a decisão de que um com o qual as profissionais dessa área
centro de ciências é um museu e, nesse sentido, tiveram que lidar. Apresenta também um
procuraram incorporar, no processo de produção bom exemplo das etapas de elaboração do
das exposições desse espaço, a dinâmica de discurso expositivo, em experiências em
trabalho característica da cultura museológica. que o discurso central é o museológico e
Outra tarefa dessa equipe responsável não o científico. Nessas etapas, o papel
foi a de transpor o discurso científico dos do museólogo é compreender o discurso
consultores especialistas nas áreas disciplinares científico, seus conteúdos e sua estrutura,
(pesquisadores pertencentes às universidades para transpô-lo em uma exposição, criando
envolvidas no projeto inicial) para o discurso assim um “novo discurso”. Exemplo disso
apresentado na exposição: foi a tentativa de organização da exposição
ao redor de grandes temas e não por áreas
Nós tínhamos que nos apropriar e transpor disciplinares do conhecimento científico.
aquilo para o espaço físico. [...] Então, Entretanto, apesar de, na maioria das vezes,
tudo o que eram os “objetos museológicos” as museólogas terem o controle sobre o
foram criados, planejados e executados sob discurso expositivo, determinadas áreas e
nossa supervisão. A estrutura do discurso sujeitos acabaram definindo o que e o como
expositivo foi toda criada por nós [...]. expor a partir da estrutura de conhecimento
Mas existiu todo um trabalho com os de seu campo disciplinar:
pesquisadores. (Mu4-3).
Os assessores eram os pesquisadores
A relação estabelecida entre a equipe [...]. Então, teve uma dinâmica
de museólogas e os cientistas das diferentes bastante grande. Eles falavam, a gente

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pensava, chamava um profissional, licitação, de inflação... Estávamos na
apresentávamos a proposta para o época do gatilho salarial, nunca sabíamos
pesquisador, para ele dar seu palpite. o que iríamos receber no próximo mês
[...] No caso da física, quando a proposta em função da inflação que era enorme.
já está pronta e fechada, no geral, ela é (Mu4-3).
hermética, muito difícil a gente entrar na
proposta deles e desestruturar, mesmo Nota-se, assim, que fatores como o
porque, muitas vezes, ela não dá para ser orçamento, verba disponível, gestão de recursos
mexida, adequada: ou você usa ou não e até a situação econômica do país, naquele
usa. (Mu4-3). momento, influenciaram as opções sobre o
como e o que expor.
De acordo com essa fala, percebe-se que Além dos conhecimentos disciplinares
frequentemente as propostas dos assessores da da ciência, da divulgação científica e da
área de física já vinham fechadas e a mediação museologia, outros saberes permearam o
entre o discurso desses profissionais e o diálogo em torno da produção da exposição de
museológico era em alguns momentos difícil. Mu4, como, por exemplo, o da comunicação
Nesse exemplo, está presente a tensão entre visual e os saberes de áreas técnicas.
diferentes concepções de exposição e, como Entretanto, estes, na maioria das vezes,
afirma Bernstein (1996), a dinâmica interna acabavam sendo submetidos aos princípios do
de produção, distribuição, reprodução e discurso museológico:
mudança do discurso pedagógico é uma
arena de conflitos e não uma relação estável Nós trabalhávamos com serviços
e tranquila. Os conflitos representam, para terceirizados de uma pessoa de programação
esse autor, as formas de resistência e inércia visual, que fez toda a parte de programação
entre os agentes da recontextualização, visual. Existem lá várias coisas com o toque
sejam eles os oficiais ou os pedagógicos, e desse programador que dá para a gente
são geradores das negociações que acabarão perceber. Depois, tinham vários outros
por definir o que é selecionado e o que é serviços na parte de marcenaria. Mas o
abandonado no discurso final. Em Mu4, pessoal que executou o projeto de mobiliário,
o espaço de negociação variou entre os o fez em função das nossas orientações,
membros da equipe – neste caso, os sujeitos fomos nós que bolamos. (Mu4-3).
pedagógicos desta exposição – em função
de suas áreas de conhecimento, já que Na proposta conceitual da exposição
apresentavam propostas mais ou menos deste museu, o público foi considerado elemento
estruturadas sobre o discurso expositivo. fundamental. Inspirada nas teorias da recepção
Os discursos da ciência, da museologia do campo da comunicação, a fala da museóloga
e da divulgação científica estiveram presentes entrevistada ilustra a perspectiva de educação e
na elaboração da exposição de Mu4. No comunicação em museus que foi adotada, segundo
entanto, além do limite imposto pelo espaço a qual a mediação era o elemento fundamental:
físico e pela própria concepção de museu
que inspirava essa exposição – um centro A exposição não é só concebida a partir da
interativo de ciências –, outros fatores área científica ou simplesmente a partir do
impuseram restrições a ela: ponto de vista dos organizadores, mas você,
de alguma maneira, tem que compreender
Também tínhamos questões políticas, esse seu público, saber quem ele é, a forma
questões de tempo, de orçamento, de como ele se relaciona com aquele tema,

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positiva ou negativamente, intelectual assim”. Chegava lá, eu dizia “Você tirou a
ou emocionalmente, que conceitos imagem daqui que casava com a imagem
preestabelecidos ele já tem com relação dali”. Ele dizia “Mas é porque ficou mais
àquele tema, que preconceitos e informações bonito aqui”. Eu dizia “Mas não casa no
ele tem com relação àquele tema. (Mu4-3). conceito”. [...] Ele pode ter uma ideia de
criação, o que ele vai colocar rebaixado
Na medida em que o público é um e tudo mais. Você tem que acompanhar
elemento-chave do trabalho do museu, o passo a passo, no mínimo. (Mu5-5).
discurso expositivo impõe seus próprios
princípios seletivos com vistas a torná-lo Nessa exposição, é possível perceber,
inteligível e tem o papel de mediar os demais através da fala anterior, exemplos das negociações
discursos a partir de seus princípios e objetivos. que foram se configurando na medida em que
Esse seria o grande desafio das exposições os recursos expositivos iam sendo elaborados.
atualmente, na opinião da museóloga: mudar Técnicos de diferentes áreas da comunicação
de uma lógica de emissão ou transmissão para foram contratados para concretizar a proposta
a lógica da recepção. conceitual da exposição e, aos poucos, os
Em Mu4, pode-se evidenciar o diálogo e conflitos de perspectivas, os diferentes enfoques
os conflitos presentes no processo de construção particulares de cada área foram se revelando no
do discurso expositivo. Nesse caso específico, embate da produção do discurso final.
na história de elaboração desse espaço, O processo de tradução da concepção
estiveram presentes não apenas os discursos inicial, elaborada geralmente numa forma textual,
da ciência, mas também os da divulgação e do durante o qual são arrolados os conteúdos,
ensino formal e não formal de ciências, através os possíveis objetos, os diferentes recursos,
dos assessores que se envolveram na concepção as desejáveis estratégias que pretendem ser
desse museu. Além disso, o discurso do público apresentadas e explicadas verbalmente para
e o da comunicação foram levados em conta na o técnico, enfrenta desafio particular ao ser
elaboração do discurso expositivo. concretizado, especialmente no caso de uma mídia
O Mu5 é um museu pertencente a uma espacial como a exposição. Em Mu5, a responsável
renomada instituição pública de pesquisa brasileira por acompanhar o trabalho do programador visual
e, desde sua origem, teve a intenção de articular, negociou o tempo todo seus objetivos conceituais
em sua proposta conceitual, não apenas as com o trabalho técnico e mesmo artístico desse
dimensões científicas e históricas do conhecimento profissional. O projeto inicial sofreu assim
biológico, mas também as perspectivas educativas restrições em função do espaço expositivo, do
e comunicativas dos museus de ciências. público-alvo, das demandas estéticas, educacionais
Dessa forma, a relação entre diferentes campos e comunicacionais e se modificou na produção do
do conhecimento foi prevista na sua própria discurso expositivo final.
constituição. Esse fato pode ser evidenciado na Na transposição das ideias e conteúdos
negociação entre os conceptores que dominavam propostos inicialmente, seleções se processam,
as ideias científicas e os artistas e designers que as quais se relacionam também com o suporte
produziram os elementos expositivos: pelo qual essa informação será apresentada,
sendo necessário um trabalho conjunto entre
A parte de programação visual eu os profissionais que conceberam a proposta e
acompanhei direto, passei quase dois anos, aqueles que a realizam. Nesse sentido, a relação
fiz um curso intensivo de programação entre conteúdo e forma de apresentação deve
visual. Eu ia praticamente todo dia lá olhar chegar a um denominador comum, apesar deste
o painel, e aí eu dizia “Agora você modifica não ser um campo tranquilo de negociações:

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A gente fez tudo do início ao fim: a gente foram vários, mas é possível perceber claramente
fez pesquisa de imagem, de texto, de vídeo, a importância dada ao público, especialmente
fazia um texto, manda para a revisão, volta o escolar, nesse processo. O uso de referências
[...]. Então, a gente fez uma série de escolhas: pesquisadas em livros didáticos para auxiliar
as cores de cada sala, a gente então mexeu no processo de transposição dos conteúdos foi
com a cor do painel, tem painéis com tons indicado, o que aponta a presença dos saberes
esverdeados, azulados, avermelhados. oriundos da cultura escolar no espaço do museu.
Tudo foi um partido, que veio a parte da Mesmo que a estrutura do discurso escolar não
museografia, parte da programação visual, o seja a principal na elaboração da exposição,
partido é como uma escolha [...]. Você tem um ela surge como uma referência importante no
trabalho, tem um prazo para entregar e tem processo de recontextualização do conhecimento
um custo. Então, quanto mais você souber o científico, especialmente se esse perfil de público
que você quer e como você quer, na hora de é o que mais visita o museu.
fazer orçamento, vai poder fazer uma escolha A formação dos profissionais da equipe,
melhor. (Mu5-5). muitos com experiência como professores,
e a preocupação educacional da exposição
Mesmo internamente na equipe, como são marcas fortes na construção do discurso
mostram os depoimentos, houve momentos de expositivo do Mu5. Na mesma perspectiva,
conflitos, seja sobre que conteúdo abordar, seja outras produções oriundas da divulgação
sobre qual linguagem utilizar. Esse fato pode da ciência foram também consultadas para
ser evidenciado através das falas das biólogas a elaboração da exposição, como mostra o
que ficaram responsáveis por produzir os textos depoimento a seguir:
e hipertextos da exposição, as quais apontam
os desafios na tradução do conhecimento E você também, quando tenta simplificar
científico para o público que visita o museu: um texto ou algum conhecimento de
uma forma mais acessível, você pode
Eu nunca tive essa experiência, o que cometer um erro conceitual e nós temos
acontece com todo mundo, eu explicava uma leitura muito crítica. Recolhíamos
para a equipe algumas coisas que eu queria qualquer revista de divulgação e jornais,
colocar no hipertexto e eles diziam que estava principalmente em genética, e discutíamos.
complicada a maneira como estava sendo Porque às vezes falavam de uma forma
explicado aquilo. Eu não tenho experiência simplificada e cometiam erro de conceito.
nisso, foi assim aos trancos e barrancos; Então, a gente fazia um texto e passava
às vezes, simplificava demais e acabava para cada um de nós, que lia separado, e
mudando a ideia. [...] Tive que consultar perguntávamos: “Tem alguma coisa que
livros, bastante livro didático para fazer uma não ficou entendida?”. (Mu5-5).
coisa mais simples. Tinha que ver o livro
didático junto com um livro mais específico Esta exposição ainda apresenta outro fator
para acompanhar ali. [...] Se essa palavra fica particular. Por ter sido elaborada não por cientistas
muito complicada, não dá para substituir por do campo biológico, mas por educadores em
outra? Aí tentava mudar. (Mu5-6). biologia, psicólogos e historiadores da ciência, esses
profissionais também tiveram que dialogar com os
A elaboração dos diferentes recursos pesquisadores da área biológica da instituição à
utilizados na exposição implicou diferentes qual o museu pertence. Os discursos da educação e
escolhas, seja de objetos seja da linguagem dos da divulgação, estando representados na figura dos
textos. Os critérios que nortearam tais escolhas profissionais da equipe coordenadora do museu,

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estabeleceram relação com o discurso da ciência, do discurso expositivo e, mais especificamente,
que, nesse caso, não era o principal e foi submetido sobre a dinâmica de funcionamento do campo
aos princípios dos primeiros: recontextualizador pedagógico dos museus,
caracterizando os atores e instituições que estão
Essa relação [com cientistas] tem algumas envolvidos e as relações entre eles.
coisas engraçadas. Por um lado, ela é tensa
às vezes, e isso é eterno. Os cientistas querem A recontextualização e o
que todos gostem de sua descoberta e da funcionamento do campo
contribuição específica dela e que isso fosse recontextualizador pedagógico
compreensível a todos. O problema é que, na constituição do discurso
às vezes, não é. Temos que fazer uma bela expositivo
tradução do trabalho dele e do que ele está
querendo mostrar. É uma relação tensa, mas Para a análise do funcionamento do campo
funciona. Outra questão para nós complicada recontextualizador pedagógico, tomou-se por base
é a eficiência do rigor. É claro que o rigor é o conceito de discurso pedagógico e de princípio
necessário, mas às vezes ele limita muito. [...] recontextualizador que caracteriza esse discurso
E aí vai passar um tempo e você vai ver que (BERNSTEIN, 1996). Destaca-se, em primeiro
o rigor primeiro dificulta a questão estética. lugar, que os dados obtidos revelam a existência
Então, tem diversas dificuldades para serem de diferentes discursos que fazem parte do e que
resolvidas em relação a isso. (Mu5-2). são recontextualizados na constituição do discurso
expositivo. Alguns desses discursos por nós
Outro aspecto importante que marcou identificados foram:
a negociação de discursos na elaboração da
exposição deste museu refere-se às imposições • o discurso da ciência – representado
feitas ao seu projeto arquitetônico, com relação pelos conteúdos da biologia, da área de saúde e
à proteção do patrimônio histórico do local. As da história da ciência;
restrições a mudanças na arquitetura do prédio, • o discurso museológico – que considera
a obrigatoriedade da manutenção de aspectos a cadeia museológica que vai da aquisição até
históricos na construção do espaço, entre outros, a conservação, documentação, salvaguarda e
determinaram um perfil da exposição. Negociações extroversão do acervo e inclui as questões referentes
foram realizadas para se chegar a um consenso aos objetos históricos e interativos expostos;
sobre o que poderia ser ou não modificado e a • o discurso educacional – relacionado
construção da exposição teve que levar em conta à intencionalidade de levar o público a
a estrutura física do local. A solução, muitas vezes, compreender as informações científicas
foi incorporar esses elementos arquitetônicos à oferecidas nas exposições, apercebendo-se dos
narrativa da exposição, dando destaque a eles aspectos de ensino-aprendizagem que ocorrem
ou utilizando-os como parte da própria estrutura nesses espaços;
expositiva. Desse modo, os limites impostos pelo • o discurso da comunicação – centrado
espaço físico foram cruciais para a elaboração do no processo de transmissão das informações por
discurso final exposto. meio de estratégias das áreas da programação
Os exemplos anteriormente apresentados visual, das artes plásticas e do design.
buscaram evidenciar as negociações, os atores,
os discursos e os campos envolvidos na produção No processo de recontextualização, esses
do discurso de cinco exposições de museus discursos entram em relação e produzem um
de ciências. Esses dados nos levam a tecer novo, o discurso expositivo. Este age do mesmo
considerações sobre o processo de produção modo que o discurso pedagógico, a partir da

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 3, p. 695-712, jul./set. 2015.. 707


regra de recontextualização, transformando os especificidades do espaço de uma exposição,
discursos envolvidos de forma a embutir o discurso ressignificando textos, objetos e imagens,
instrucional (referente às áreas de conhecimento tornando-os atrativos e compreensíveis para o
científico) no discurso regulativo (referente às áreas público que visita o museu.
de conhecimentos museológicos, pedagógicos e Dependendo do contexto histórico e
comunicacionais), produzindo seu próprio discurso. político e de como a divisão do trabalho se dá
Mas quem participa e tem poder nas em cada instituição, atores como os diretores e
definições sobre esse novo discurso? Quem são membros das diferentes divisões e departamentos
seus atores e como ocorre a relação entre eles? existentes nos museus, como coordenadores
Como se caracteriza o campo recontextualizador de setores e curadores, podem ter maior ou
pedagógico do discurso expositivo? menor controle sobre o discurso expositivo.
Como indicado por Bernstein (1996) o Como destacado anteriormente, o estudo sobre
campo recontextualizador oficial (CRO) é criado e a produção do discurso expositivo nos leva a
dominado pelo Estado e seus agentes, incluindo as compreender quem são os agentes pedagógicos
autoridades educacionais locais, juntamente com que definem o que e o como expor, os quais
suas pesquisas e sistemas de inspeção. Desse modo, assumem posições diferenciadas na definição
no caso dos museus, o CRO pode contemplar tanto das regras de controle e legitimação do discurso
as instituições oficiais que mantêm relações diretas final. No caso de Mu5, por exemplo, alguns
com os museus quanto aquelas que indiretamente dos responsáveis pelo controle do discurso
estão ligadas a ele (MARTINS, 2011). Não nos expositivo final eram coordenadores de setores
deteremos na caracterização desse campo neste da instituição que possuíam formação nas
texto, mas, a título de ilustração, podemos indicar áreas científicas, históricas, mas também nas de
que o CROmuseus pode ser composto por órgãos educação e divulgação. Estes acompanharam de
do Estado – ministérios e secretarias de ciência e perto as ações dos artistas plásticos envolvidos
tecnologia, de educação e de cultura municipais, na produção dos painéis da exposição,
estaduais ou federais – que determinam esse controlando tanto o rigor como a possibilidade
discurso por meios de financiamentos e políticas de comunicação do discurso expositivo. Nesse
públicas. Também as universidades e centros de sentido, os objetivos do museu e da exposição e
pesquisas podem estar envolvidas no CROmuseus, a formação profissional da equipe impuseram a
dependendo da participação e da influência que necessidade de considerar o público, em especial
possuem na definição do discurso expositivo final. o escolar, para definir o nível de complexidade
No que se refere ao campo dos conteúdos trabalhados. O papel do público
recontextualizador pedagógico/CRPmuseus, escolar na produção da exposição também
nossos dados revelam aspectos interessantes foi evidenciado em Mu2 e Mu4, revelando
que auxiliam na sua caracterização. não somente o papel do discurso da escola na
Segundo Bernstein (1996), o CRP é composto recontextualização dos discursos expositivos,
pelos profissionais responsáveis pela mas também os níveis de complexidade conceitual
recontextualização do discurso pedagógico, no assumidos pelas exposições analisadas.
nível das instituições de ensino ou daquelas Os dados apresentados revelam o papel
que o influenciam diretamente. No caso das da formação dos vários profissionais envolvidos
cinco exposições estudadas, percebe-se que na produção da exposição dos museus estudados.
diferentes atores têm poder e participam de Além dos especialistas nos campos científicos,
formas diferenciadas desse processo, adaptando educadores e museólogos participaram da definição
o discurso científico de modo a torná-lo mais do discurso expositivo final das exposições
acessível ao público. Esses sujeitos agem estudadas, tendo maior ou menor poder de
reelaborando os conteúdos e adequando-os às decisão em função da autonomia que a instituição

708 Martha MARANDINO. Análise sociológica da didática museal: os sujeitos pedagógicos e a dinâmica...
propiciou a cada um deles para a realização do institucional. A decisão de dar voz ou não aos
trabalho. Vimos nos dados que, em Mu1, Mu2 e demais discursos para além do científico é
Mu4, por exemplo, as profissionais no campo da uma decisão política e de gestão da própria
museologia tiveram uma participação fundamental instituição e recebe influência dos órgãos
na seleção e formatação dos conteúdos e formas financiadores, das políticas governamentais
como a ciência foi apresentada nas suas exposições. de cultura e educação e dos grupos de
Nesses casos, em meio a negociações e tensões, controle – ou seja, do CROmuseus. Essas
a museologia também se revelou um discurso decisões implicam a escolha das equipes e
mediador importante e seus profissionais, atores dos profissionais das diferentes áreas – com
que determinaram o que efetivamente apareceu na seus diferentes discursos (CRPmuseus) – que
proposta final. participarão da elaboração e atuarão no
Contudo, mesmo que possuam menor processo de recontextualização durante a
autonomia e poder, outros profissionais produção do discurso expositivo.
estão contidos no campo recontextualizador Contudo, mesmo que seja dada voz a
pedagógico dos museus – CRPmuseus –, como diferentes atores, esse espaço por si só não
os designers e artistas plásticos, na medida garante que efetivamente esses participem com
em que, a partir de negociações, colocam em o mesmo peso nas decisões, escolhas e seleções
jogo suas ideias, concepções e visões sobre que serão realizadas durante o processo de
os conhecimentos apresentados. Esse aspecto recontextualização. Entram, nesse universo de
pode ser percebido especialmente na exposição negociação, fatores sociais, culturais, políticos e
de Mu5, já que se evidenciou a negociação ideológicos que poderão regular a relação entre
entre a coordenação (Mu5-5) e o artista os diferentes discursos, dando voz a uns e calando
plástico responsável pela produção dos painéis outros. São os grupos que se encontram no poder
existentes na exposição. no processo de produção do discurso expositivo
Nos demais museus, os técnicos a que poderão controlar essa distribuição do poder
cargo da preparação e montagem de animais e na elaboração das exposições.
da taxidermia, os técnicos de carpintaria, de Dessa forma, a determinação de quais
eletrônica, por exemplo, estão envolvidos na são os contextos de produção e reprodução
elaboração das exposições e também podem ser do discurso pedagógico nos museus
identificados como sujeitos ligados ao CRPmuseus. dependerá da autonomia relativa concedida
Suas especialidades acabam muitas vezes infl às agências, nos diferentes níveis do sistema
uenciando as decisões e promovendo intervenções de produção e reprodução do conhecimento
em certos aspectos da proposta expositiva, na sociedade, sendo que o discurso expositivo
adaptando-a, e sugerindo possibilidades para pode incluir, como parte de sua prática
as restrições na produção e mesmo para o recontextualizadora, discursos da escola e
funcionamento e segurança dos objetos expostos. de saberes técnicos, entre outros, a fim de
Pôde-se evidenciar este aspecto, por exemplo, tornar mais eficaz seu próprio discurso. Como
em Mu2, quando os técnicos responsáveis pela indica Bernstein (1996), a forma de regulação
preparação e montagem dos esqueletos dos e a composição social dos diferentes agentes
animais expostos definem a postura dessas podem variar de uma situação histórica
montagens e acabam influenciando a maneira para outra, podendo, no campo pedagógico,
como esses objetos aparecem na exposição. aqueles que produzem o novo conhecimento
É importante frisar que os diferentes ser seus próprios recontextualizadores.
atores que formam o CRPmuseus possuem No caso dos museus, como foi visto,
autonomia relativa na produção do discurso dependendo do contexto histórico, da política
expositivo e que esta varia conforme o contexto institucional e da proposta conceitual da

709 Martha MARANDINO. Análise sociológica da didática museal: os sujeitos pedagógicos e a dinâmica...
exposição, outros atores também podem elementos chaves para a compreensão das
fazer parte desse campo recontextualizador dinâmicas de seleção e de distribuição do
do discurso expositivo, como os funcionários poder na elaboração do discurso expositivo.
administrativos, científicos e técnicos do museu, Ao considerarmos que é especialmente por
além dos professores e o público em geral que meio da exposição que o público se envolve
o visita. Assim, postula-se neste trabalho que o nos processos de ensino e aprendizagem
discurso expositivo é um discurso próprio que, nos museus, pesquisas que exploram a
por possuir objetivos específicos e recolocar perspectiva sociológica da didática museal
outros discursos a partir de suas próprias podem colaborar, revelando a dinâmica de
características, acaba por se comportar como o produção desses elementos, contribuindo
discurso pedagógico na perspectiva de Bernstein. para a formação dos profissionais que atuam
Estudos sobre a educação em museus nesses locais e, por conseguinte, qualificando
em sua dimensão sociológica fornecem as atividades educativas por eles elaboradas.

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Recebido em: 11.04.2014

Aprovado em: 02.09.2014

Martha Marandino é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Doutora em educação
pela Universidade de São Paulo e livre docente pela Universidade de São Paulo. Coordena o Grupo de Estudo de Pesquisa em
Educação Não Formal e Divulgação da Ciência (GEENF).

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