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J. J.

Gomes Canotilho / Vital Moreira


Professores da Faculdade de Direito de Coimbra

Constituição
da República
Portuguesa
Anotad
Volume I

4a edição revista

Coimbra Editora
2007
LIVRARIA IN i EKI~AI,;IUI~AL

livrariainternacional@sbs.com.br
I
:

V,
Prefácio à 4 a edição

10 - Desde 1993, data da 3a eclição deste comentário, até hoje, o texto


da Constituição da República de 1976 foi sujeito a mais quatro revisões
(1997, 2001, 2004 e 2005), o que só por si justifica uma extensa revisão
deste comentário constitucional nesta nova edição. Ê certo que nenhuma
das últimas revisões alterou tão profundamente a lei fundamental da
República como o fizeram as revisões de 1982 (que reestruturou a orga-
nização do poder político) e de 1989 (especialmente centrada na mudança
da constituição económica). Mas nem por isso as revisões da última
década foram despiciendas. Por um lado, algumas das últimas revisões
introduziram dimensões inteiramente novas, formalizadas em sede de
princípios fundantes e estruturantes do Estado de Direito (ex.: identi-
dade genética do ser humano, extraterritorialidade da justiça penal, plu-
ralismo normativo, serviço militar voluntário). Por outro lado, mesmo
quando o texto da Constituição se manteve inalterado, assistiu-se a pro-
fundas alterações na contextualização do programa normativo de muitos
preceitos. As modificações observadas em múltiplos domínios consti-
tucionalmente regulados - desde o reforço da União Europeia até às des-
locações do Estado de direito democrático e social para um Estado de
regulação social, passando pelos novos contextos e problemáticas da bio-
genética e das telecomunicações - obrigam também a uma repondera-
ção global contextualizada de muitas anotações. Algumas das mudan-
ças actualizadoras registadas nesta edição dizem respeito às referências
omposição Coimbra normativas e jurisprudenciais tanto nacionais como europeias e interna-
C oimbra Editora, Limitada cionais. Por um lado, o Tribunal Constitucional, que à data da última edi-
ção desta obra completava dez anos de actividade, tomou-se incontornável
ISBN 978-972-32-1464-4 - Obra completa
ISBN 978-972-32-1462-8 - Volume I, 4." ed. protagonista qualificado da leitura da CRP. Por outro lado, a imbricação
entre o direito constitucional português e o direito europeu aponta para
Depósito legal n.o 251 178/2006 a necessidade de articulação da ordem jurídica nacional com os esque-
Impresso no Brasil mas reguladores e jurisprudenciais da esfera jurídica europeia. Por
[04- 2007] último, a emergência do direito internacional constitucional obrigará,
por sua vez, a introduzir com mais pormenor anotações jusinternacionais.
A presente obra foi publicada no Brasil,
em 7a edição, pela Editora Revista dos Tribunais
[Art. 17°] Parte I - Direitos e deveres fundamentais Tít. I - Princípios gerais [Art. 18°]

apoio a certos tipos de associações, facultar às igrejas o acesso às esco- Artigo 18°
las públicas para ensino religioso, etc.). Questão é que o Estado paute
a sua intervenção de forma objectiva e não discriminatória e com obser- (Força jurídica)
vância dos princípios constitucionais aplicáveis (por exemplo, o princí-
pio da separação, no caso da liberdade religiosa). 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
No caso dos direitos, liberdades e garantias que têm conteúdo posi- liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
tivo (por exemplo, o direito de antena, entre outros), a sua garantia passa entidades públicas e privadas.
naturalmente por uma obrigação de organização ou prestação do Estado. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garan-
tias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo
VIII. À margem da aplicação do regime dos direitos, liberdades e
garantias ficam os direitos económicos, sociais e culturais, que não as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros
tenham natureza análoga àqueles, nos termos assinalados. Trata-se em direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
geral de direitos de natureza positiva (direitos a prestações), sem den- 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm
sidade bastante para alcançarem o nível de determinabilidade neces- de revestir carácter geral e abstrado e não podem ter efeito
sário para fruir do regime dos direitos, liberdades e garantias. retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo
Não quer isto dizer que eles sejam desprovidos de qualquer garan- essencial dos preceitos constitucionais.
tia. Desde logo, valem para eles os princípios da universalidade e da
igualdade (arts. 12° e 13°). Depois, eles não deixam de dispor de impor-
tantes efeitos jurídicos. Para começar, tais preceitos constitucionais A. REFERÊNCIAS
implicam a interpretação das normas legais do modo mais conforme com
eles (por exemplo, em caso de dúvida sobre o âmbito legal de certa 1 - Origem do texto: redacção da LC nO 1/82, que alterou os nOS 2 e 3.
prestação da segurança social como foi o caso de apoio social a portu- 2 - Direito internacional: CEDH, art. 18°; DUDH, arts. 3°, 29° e 30°;
gueses emigrantes binacionais, deve seguir-se a interpretação conforme PIDCp, art. 2°; PIDESC, art. 4°.
3 - Direito Europeu:
a teleologia intrínseca do Estado social). Depois, a inércia do Estado em
Legislação: CDFUE, arts. 52° e 53°.
cumprir a obrigação constitucional dá lugar à inconstitucionalidade por
Pareceres: CES, sobre a «Para uma Carta dos Direitos Fundamentais da
omissão (cfr. art. 283°). Em terceiro lugar, e sobretudo, tais preceitos União Europeia» (2000/C 367/08).
implicam a inconstitucionalidade das normas legais que realizam um 4 - Direito nacional:
direito em termos diferentes dos constitucionalmente previstos ou que ani- Legislação: Cód. Proc. Adm., art. 5°-2.
quilem ou neutralizem, sem esquemas materiais e de organização, fun- Jurisprudência: selecção dos seguintes AcsTC por temas:
cionamento e processo alternativos, as densificações normativo-consti- - Quanto ao nO 1, la parte (aplicabilidade directa): 31/84, 90/84 e 472/94;
tucionais juridicamente adquiridas. - Quanto ao nO 1, 2a parte (vinculação das entidades públicas e privadas):
198/85,472/89 e 195/94;
- Quanto ao n° 2, 1" parte (reserva de lei): 12/84, 49/84, 74/84, 77/85,
248/85, 248/86, 37/87, 198/88, 358/94, 119/96, 185/96, 96/00, 440/00, 515/00,
140/02,143/02,43/04,70/04 e 113/04;
- Quanto ao n° 2, 2a parte (expressa admissão constitucional de restrições):
23/83,4/84,8/84,12/84,32/84,74/84,56/85, 198/85,201/86,298/86,307/90,
17/84,479/94,198/95,694/95, 121,L00, 479/03, 494/03 e 572/03;
- Quanto ao n° 2, 3a parte (princípio da proporcionalidade): 4/84, 25/84, 282/86,
103/87, 236/92, 458/93, 594/93, 634/93, 650/93, 494/94, 516/94, 13/95, 73/95,
451/95,561/95,631/95,758/95870/96,1182/96,48/97, 53/97, 329/97, 407/97,
274/98,288/98,108/99, 176/00,484/00,6/01,26/01,92/01, 183/01, 187/01,

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[Art. 18°] Parte I - Direitos e deveres fundamentais Tít. I - Prindpios gerais [Art. 18°]

200/01,20/102,202/02,236/02,259/02,336/02, 349/02, 464/03 (princípio da boa, 1990; ID., «Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa», BM],
necessidade/restrição de direitos), 594/03, 607/03, 610/03, 38/04, 70/04, 148/04, n° 400, 1990, pp. 15-39; ID., «Algumas reflexões críticas sobre os direitos funda-
211/04 e 219/04; mentais», Ab Vno ad Omnes, pp. 965 SS.; ID., Os direitos fundamentais na jurispru-
- Quanto ao nO 3, la parte (generalidade e abstracção): 4/84, 8/84, 12/84, dência do 'D'ibunal Constitucional Português, Coimbra, 1990; ID., «Os direitos funda-
74/84,201/86,248/86,358/86,51/87,365/91, 121/92, 357/94 e 1/97; mentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional», BFDe, VoI. Lxv, pp. 60-120;
- Quanto ao nO 3, 2a parte (proibição de retroactividade): 11/83,20/83,23/83, NOVAIS, Jorge Reis, «Renúncia a direitos fundamentais», Perspectivas Constitucio-
8/84,10/84,32/84,89/84,141/85,201/86,409/89, 256/90, 287/90, 303/90, nais, VoI. II, Coimbra, 1996, pp. 263-335; ID., As Restrições aos Direitos Fundamen-
67/91,95/92,156/95 e 172/00; tais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003; PATO, Pedro
- Quanto ao nO 3, 3" parte (conteúdo essencial): 8/84, 201/86, 31/87, 433/87, Vaz, «A vinculação das entidades públicas pelos direitos, liberdades e garan-
e 254/99. tias», DDe, n° 33 e 34, 1988, pp. 473-518; PINHEIRO, Alexandre Sousa, «Restri-
Pareceres: PGR, selecção dos seguintes, por temas: ções aos direitos, liberdades e garantias», DJA?, VoI. VII, 1996, nO 280 e ss.; PINTO,
- Quanto ao nO 1, la parte (aplicabilidade directa): P000711979 e P000821992 Paulo Mota, «O direito ao livre desenvolvimento da personalidade», Portu-
(o acto administrativo de licenciamento de obras violador de um plano muni- gal-Brasil, Ano 2000, BFDC Stvdia Ivridica, 40, 2000, pp. 149 e ss.; SILVA, Vasco
cipal); Pereira da, «A vinculação de entidades privadas pelos direitos, liberdades e
- Quanto ao nO 1, 2a parte (vinculação das entidades públicas e privadas): garantias», RDES, Abril-Junho 1987, pp. 259-274; SOUSA, António Franco, «Actua-
P001011988 (federações e associações desportivas / pessoas de utilidade pública); ção policial e princípio da proporcionalidade», RMP, 1998, pp. 41-50.
Quanto ao n° 2, r parte (reserva de lei): P000141987 e P000011989; 6 - Preceitos constitucionais relacionados: arts. 17°,20°,21° e 165°-1/b.
- Quanto ao nO 2, 3a parte (princípio da proporcionalidade): P000271982 7 - Remissões: notas ao art. Ir.
(restrição de direitos/liberdade de expressão), POOl021985 (expropriação por
utilidade pública/propriedade privada), .'P000011989 (compatibilização entre a
B. ANOTAÇÕES
liberdade de expressão e todo um conjunto de valores também constitucional-
mente tutelados), P000281995 (fiscalização do cumprimento das obrigações fis-
cais/ restrição ao direito de acesso aos tribunais), P001371996 (flexibilidade na exe- °
I. Este artigo integra essencial do regime constitucional especí-
cução de medidas privativas de liberdade/inaplicabilidade à execução da prisão fico dos «direitos, liberdades e garantias», referido no artigo anterior.
preventiva) e P000351999 (detenção); Mas é igualmente uma das normas constitucionais que mais profunda-
Quanto ao n° 3, 1" parte (generalidade e abstracção): P000771991 (lei indi- mente implica com os limites da relevância da Constituição no contexto
vidual/lei medida/lei concreta/ CCB); da ordem jurídica global. Designadamente, ao fazer aplicar directa-
- Quanto ao n° 3, 2a parte (proibição de retroactividade): P00l83197'7, mente nas relações entre particulares (e não apenas nas relações entre
P001891980 e P000451994 (incompatibilidades entre cargos políticos e altos car- estes e o Estado) os preceitos relativos aos «direitos, liberdades e garan-
gos públicos / incompatibilidade entre presidente da câmara e deputado euro- tias» - com a extensão que este conceito tem no art. 17° - , este preceito
peu/retrospectividade), P000071997 e P000261998 (contagem do tempo de ser-
transforma a Constituição em estatuto fundamental da ordem jurídica
viço/ administração pública).
5 - Bibliografia: ABRANTES, José Nunes, Vinculação de entidades privadas aos geral, das relações sociais em geral e, não apenas da ordem jurídica do
direitos fundamentais, Lisboa, 1990; ANDRADE, José C. Vieira de, Os direitos funda- Estado e das suas relações com a sociedade.
mentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 2001, pp. 197 sS.; ID., Os As normas contidas neste artigo condensam princípios fundamen-
direitos fundamentais nas relações entre particulares, Lisboa, 1982; CANAS, Vitalino, tais de uma doutrina ou teoria geral de direitos, liberdades e garantias cons-
«O princípio da proibição do excesso na Constituição: arqueologia e aplicações», titucionalmente adequada. No n° 1 especifica-se a força normativa de todos
Perspectivas Constitucionais, VoI. I, Coimbra, 1996, pp. 323-357; ID., «Proporciona- os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias;
lidade», DJA?, VoI. VI, Lisboa, 1994; CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucio- nos nOS 2 e 3 estabelece-se o estatuto global das leis restritivas, individua-
nal e Teoria da Constituição, 7a ed., Coimbra, 2004, pp. 437 SS.; GOUVEIA, Jorge lizando-se os princípios constitucionais heteronomamente vinculativos das
Bacelar, «Regulação e limites dos Direitos Fundamentais», DJAP, 2° suplemento,
intervenções do legislador na esfera -dos direitos, liberdades e garantias.
Lisboa, 2001, pp. 950 SS.; MENDES, J. Castro, «Os direitos, liberdades e garan-
tias», Estudos sobre a Constituição, VoI. I, Lisboa, 1977; MIRANDA, Jorge, «O regime
dos direitos, liberdades e garantias», Estudos sobre a Constituição, VoI. III, Lisboa, n. A primeira característica do regime próprio dos «direitos, liber-
1979; NABAIS, José Casalta, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa, Lis- dades e garantias» é de as normas que os reconhecem e garantem serem

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[Art. 18°] Parte I - Direitos e deveres fundamentais Tít, I - Princfpios gerais [Art. 18°]

directamente aplicáveis (nO 1). Esta cláusula de imediaticidade aplica- actos normativos que, de forma directa, ou mediante interpretação,
tiva ganhou inspiração na Grundgesetz de Bonn (art. 1°-3) e representa o infrinjam os preceitos consagradores de direitos, liberdades e garantias,
acolhimento no constitucionalismo europeu da radicada compreensão impondo-se, assim, na solução dos casos concretos, contra a lei e em vez
norte-americana dos direitos de liberdade consagrados na Constituição. da lei, ou contra determinada interpretação da lei.
Aqui ganhou rapidamente peso de communis opinio que os direitos e
liberdades, prenaturalisticamente fundamentados e posteriormente posi- IH. O segundo elemento do regime próprio dos «direitos, liber-
tivados na Constituição, alicerçavam direitos subjectivos juridicamente dades e garantias» traduz-se em que os respectivos preceitos vinculam
accionáveis. No constitucionalismo europeu, pelo contrário, punha-se em as entidades públicas (n° 1). Este princípio não pode ser apenas uma
dúvida a validade" vinculatividade, actualidade e força obrigatória geral dos repetição particularizada do princípio geral da constitucionalidade, con-
direitos constitucionalmente consagrados. signado no art. 3°, e que concerne a todos os actos do Estado e não
O primeiro e decisivo sentido da imposição constitucional da apli- apenas aos que se referem aos direitos, liberdades e garantias. O men-
cabilidade directa das normas constitucionais consagradoras de direi- cionado princípio só pode ter aqui significado autónomo quando cono-
tos, liberdades e garantias é o de que elas não são normas «enfraqueci- tado com a ideiada aplicação directa dos preceitos respeitantes aos
das», «imperfeitas» ou programáticas que só adquirem operacionalidade direitos fundamentais.
jurídica através de leis de regulamentação. Os direitos, liberdades e A primeira das «entidades públicas» subordinadas aos direitos,
garantias não estão, prima facie, dependentes de lei concretizadora. Em liberdades e garantias é o Estado (em sentido estrito), quer enquanto
termos jurídico-dogmáticos, os direito!" liberdades e garantias são direc- legislador, quer enquanto administração, quer enquanto juiz. O pri-
tamente aplicáveis porque: (1) concebem-se e valem constitucionalmente meiro não pode emitir normas incompatíveis com os direitos funda-
como norma concretamente definidora de posições jurídicas (norma nor- mentais, sob pena de inconstitucionalidade; a segunda, quer no âmbito
mata) e não apenas como norma de produção de outras normas jurídi- da «administração coactiva», quer no âmbito da «administração de pres-
cas (norma normans); (2) prima facie, isto é, numa primeira aproximação, tações», está igualmente obrigada a respeitar e dar satisfação aos direi-
aplicam-se sem necessidade de interposição conformadora de outras tos fundamentais. O terceiro está obrigado a decidir o direito para o caso
entidades, designadamente do legislador (interpositio legislatoris); (3) tam- em conformidade com as normas garantidoras de direitos, liberdades e
bém em princípio, constituem direito actual e eficaz e não apenas direc- garantias e a contribuir para o desenvolvimento judicial do direito pri-
tivas jurídicas de aplicabilidade futura. vado através da aplicação directa dessas mesmas normas. Problema
O facto de serem directamente aplicáveis não dispensa, porém, a não isento de dificuldades, a este propósito, consiste em saber se tam-
investigação dos pressupostos de aplicabilidade directa. Com efeito, e bém a administração está obrigada, em caso de lei que viole um direito
em primeiro lugar, a aplicabilidade directa não significa que as normas fundamental, a preferir a Constituição à lei, desaplicando esta e aplicando
garantidoras de direitos, liberdades e garantias configurem, desde logo, directamente aquela em vez da lei (como fazem os tribunais). Na ver-
direitos subjectivos absolutos e autónomos susceptíveis de poderem dade, estabelece-se um conflito entre a eficácia directa das normas refe-
valer como alicerce jurídico necessário e suficiente para a demanda de rentes a direitos, liberdades e garantias (que obrigam a administração)
posições jurídicas individuais. A aplicabilidade directa não dispensa, e a observância do princípio da legalidade, igualmente vinculativo da
em segundo lugar, um grau suficiente de determinabilidade, isto é, administração (art. 266°-2). Os tribunais têm constitucionalmente o
um conteúdo jurídico suficientemente preciso e determinável, quanto direito e o dever de fiscalização da constitucionalidade das leis, desapli-
aos pressupostos de facto, consequências jurídicas e âmbito de protecção cando-as, caso estejam em contradição com as normas constitucionais
do direito invocado, sendo a própria Constituição a dizer que, em cer- (art. 204°); às entidades administrativas, porém, não é reconhecido este
tos casos, se torna indispensável uma lei concretizadora. Em terceiro direito de fiscalização prévia, impondo-se antes, como princípio geral,
lugar, a aplicabilidade directa transporta, em regra, direitos subjecti- a observância da lei (princípio da legalidade). Por isso, face ao con-
vos, o que permite: (1) invocar as normas consagradoras de direitos, flito entre direitos, liberdades e garantias e o bem constitucional con-
liberdades e garantias na ausência de lei; (2) invocar a invalidade dos substanciado no princípio da legalidade, as entidades administrativas

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Parte I - Direitos e deveres fundamentais Tít. I - Princípios gerais [Arl. 18°]
[Arl. 18°]

devem: (a) proceder a uma tarefa de «concordância prática» (que justi- o paradigma liberal assente na ideia das relações indivíduo-Estado. À face
ficará, por ex., a não decisão imediata do problema e a apresentação da CRP, porém, os particulares não são «terceiros», nem constituem uma
do caso aos superiores hierárquicos); (b) optar pela prevalência das nor- componente «externa» da eficácia directa dos «direitos, liberdades e
mas constitucionais de direitos fundamentais quando a observância do garantias».
princípio da legalidade conduzir à prática de um crime (art. 271°-3); Importa, porém, esclarecer se a eficácia dos direitos fundamentais
(c) não praticar actos aplicadores da lei violadora de direitos, liberdades nas relações entre particulares é uma eficácia imediata ou mediata, isto
e garantias sempre que estes se defrontem, concretamente, com o direito é, se a vinculação das entidades privadas decorre de forma directa e
de resistência dos particulares (art. 21°). De todo o modo, a prevalên- necessária dos direitos constitucionalmente garantidos ou se se afirma
cia do princípio da constitucionalidade - e aqui de constitucionalidade apenas através da lei, ou seja, na medida em que o Estado configure legal-
reforçada - obriga a reconhecer a bondade de alguma doutrina recente mente a situação jurídica das entidades privadas de acordo com os direi-
no sentido de que, observados determinados pressupostos de facto e tos fundamentais. O texto da Constituição não faz qualquer restrição,
de direito, se impõe aos titulares de órgãos da administração a obser- e o facto de se dizer que os direitos fundamentais são «directamente
vância dos direitos, liberdades e garantias em detrimento do princípio aplicáveis e vinculam as entidades ( ... ) privadas» parece não poder dei-
da legalidade. xar de ler-se no sentido de que os direitos fundamentais previstos neste
Ponto igualmente questionável é o da vinculação das entidades artigo têm uma eficácia imediata perante entidades privadas. Aplicam-se tam-
públicas aos direitos fundamentais quando actuam, não soberanamente, bém às relações entre particulares e, em princípio, nos mesmos termos
mas nas vestes do direito privado. A melhor solução é a de manter a em que se aplicam às relações entre os particulares e o Estado.
eficácia dos direitos fundamentais, mesmo quando os poderes públicos A eficácia horizontal dos direitos, liberdades e garantias implica
utilizam meios de direito privado, seja no exercício de tarefas públicas que tal como o Estado, também todas as entidades privadas estão sujei-
(direito privado da administração), seja no exercício de tarefas mera- tas a um dever de não perturbar ou impedir o exercício dos direitos fun-
mente privadas. A solução contrária colidiria com a eficácia erga omnes damentais. Os direitos, liberdades e garantias traduzem-se, assim, num
dos direitos fundamentais, também reconhecida na Constituição, e abri- dever geral de todos os cidadãos de respeitar e não infringir os direitos
ria no seio da Constituição um inadmissível espaço livre dos direitos fun- alheios. Na teoria liberal clássica, uma vez que os direitos fundamen-
damentais. Na prática, a questão é, porém, irrelevante, pois o Estado, tais eram defesas perante o Estado, eles só impunham directamente um
actuando como sujeito de direito privado, sempre estaria, como tal, vin- dever ao Estado, pelo que as entidades privadas só estavam obrigadas
culado aos preceitos dos direitos fundamentais como qualquer outra a respeitar os direitos fundamentais alheios de forma indirecta, quando
entidade privada (dr. nota seguinte). a lei os traduzisse em direitos e obrigações privadas; a Constituição não
era fonte directa de direitos e obrigações entre privados. Agora esse
IV. Os preceitos dos «direitos, liberdades e garantias» vinculam dever impende sobre todas as pessoas, directamente, salvo quanto aos
também as entidades privadas (n° 1, in fine), pessoas singulares ou direitos que não sejam de todo em todo exequíveis por si mesmos e
colectivas, adquirindo assim eficácia geral, erga omnes. A eficácia dos necessitem de concretização legislativa. Pode dizer-se que esse é impli-
direitos fundamentais também nas relações entre particulares pressu- citamente o primeiro dos deveres fundamentais da Constituição (dr.
põe uma concepção dos direitos fundamentais incompatível com a tese supra, nota prévia, 6.).
liberal, que via nestes direitos, exclusivamente, direitos subjectivos de Também se pode discutir se a eficácia dos «direitos, liberdades e
defesa perante o Estado e, consequentemente, os considerava relevantes garantias» nas relações privadas vale para todos eles e para todas as
apenas nas relações entre os particulares e o Estado (v. nota prévia, 2.2.1.). relações privadas ou se deveria limitar-se àqueles direitos e àquelas
Há-de por isso considerar-se incorrecta a designação «eficácia externa» relações privadas em que se exprimem relações de poder ou de depen-
ou «eficácia em relação a terceiros» (em alemão: Drittwirkung), com que dência que justifiquem qualquer analogia com as relações entre o indi-
por vezes a doutrina se refere à eficácia dos direitos fundamentais nas víduo e os poderes públicos (v. g. relações dos trabalhadores com a
relações entre particulares, pois aquelas designações ainda pressupõem entidade patronal, dos inquilinos com o senhorio, dos membros de
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[Art. 18°] Parte I - Direitos e deveres fundamentais Ta, I Prindpios gerais
[Art. 18°]

uma associação com esta, etc.). Concepções restritivas têm sido defen- sua vinculação imediata mas porque o Estado tem de assumir o dever
didas em ordenamentos constitucionais em que a eficácia dos direitos de p~otecção (Sch~tzpflicht) desses direitos, liberdades e garantias perante
fundamentais nas relações privadas não está expressamente afirmada terceIrOS que os ViOlam ou ameaçam violar. Neste sentido, a anulação
na lei fundamental, sendo ela, portanto, o resultado de construção dou- de um negócio jurídico possibilitador da escravatura, da «coisificação»
trinaI e jurisprudencial. Invoca-se, designadamente, que uma vincula- d~ pessoa h~mana (caso célebre do «anão» em França, em que um indi-
ção geral conduziria a uma grave amputação da autonomia privada VIduo de baIxa estatura aceitou «negociaI» e autonomamente servir de
ou até do direito privado como tal. Na realidade, a eficácia das nor- «bola de arremesso» entre jogadores), do canibalismo (caso recentíssimo
mas dos direitos fundamentais nas relações privadas transforma estes em. que através da Internet uma pessoa aceita ser devorada por outra)
em princípios objectivos da ordem jurídica civil, tornando inválidos os t:nam pr~tecção jurídica mediante o mecanismo do dever de protec-
actos ou negócios jurídicos contrários aos direitos fundamentais e sus- çao de pnvados contra privados através do Estado e não através da
ceptíveis de serem civil e criminalmente sancionáveis os. fa~t~s que os vinculação directa de entidades privadas aos direitos, liberdades e garan-
infrinjam. Do que não há dúvida, porém, é que a ConshtUlçao portu- tias. Mas os exemplos dados mostram exuberantemente que não é a
guesa faz aplicar expressamente os direitos fundamentais às relações m~sma coisa falar-se em vinculação imediata de entidades privadas (Drit-
entre entidades privadas, sem qualquer restrição ou limitação, não tWlrkung) ou em dever de protecção (Schutzpflicht) dos direitos, liberda-
sendo portanto legítimo limitar essa eficácia apenas aos casos em que des e garantias de privados contra privados através do Estado. Parece
a doutrina estrangeira a admite quando nada nas respectivas leis fun- óbvio que a dignidade da pessoa humana obriga directamente as enti-
damentais a impõe. Desse modo, ~ aplicação dos direitos, liberdades dades privadas .a não fazerem uso da autonomia privada e negociaI
e garantias às relações entre particulares só não tem lugar no caso para, de forma lIvre e atípica, reduzirem a pessoa a nada ou a objecto
daqueles direitos que, expressamente ou pela sua própria natureza, só (<<escravatura») ou eliminarem mesmo a existência física dessa pessoa
podem valer perante o Estado (v. nota UI ao art. 17°) e só pode ser (<<canibalismo») .
restringida legalmente nos mesmos termos em que o pode ser nas rela-
ções entre os particulares e o Estado ou outras entidades públicas, V. A ef~cáda dos dir~itos fundamentais nas relações jurídico-pri-
podendo o princípio da autonomia negociaI privada, na medida em vadas devera colocar-se hOJe também a nível da «sociedade civil global»
que seja um bem constitucionalmente protegido, funcionar como fun- e do «Estado-rede». A existência de uma espécie de «soberania do cibe-
damento dessa restrição (dr. notas seguintes). respaço» coloc~ ~o~ acuidade a questão de saber se e como se poderá
É evidente que os efeitos em relação a entidades privadas pode- estender a «eÍlcacIa externa» dos direitos, liberdades e garantias aos
rão estar, desde logo, expressamente determinados na Constituição, mas novos entes soberanos. Além disso, passa também a questionar-se a
o princípio da vinculação das entidades privadas só tem autonomia fora forma c?mo as instâncias políticas (nacionais e internacionais) podem e
dos casos expressamente previstos na Constituição. Assim, por exem- devem Impor a certas entidades privadas a observância dos direitos
plo, terá de ser considerada inválida, por efeito do preceito do art. 51°, fundamentais (~x.: imposição a um lost provider comercial que possibilite
a cláusula de uma doação que a condicionasse ao abandono, por parte ao content ,rroVlder em rede o acesso a websites de pornografia e propa-
do donatário, do partido em que esteja inscrito; ou, face ao art. 36°, uma ga~da nazI). Nesta perspectiva poderá discutir-se, por ex., a Cyber-Drit-
condição do donatário não contrair casamento; ou, face ao art. 58°, a tV:lrk~n~ ?u efi~ácia jurídica dos direitos, liberdades e garantias nas rela-
cláusula de um contrato de trabalho que o condicionasse ao facto do tra- çoes JUTIdIco-pnvadas desenvolvidas por meio da Internet. Os conhecidos
balhador não fazer greve; a convenção antenupcial que atribuísse a um cas~s do port~l Yahoo em França (venda de objectos relativos ao regime
dos cônjuges o direito de abrir a correspondência do outro, etc. Pode- naZI e ao nazIsmo) e da divulgação,_ via Internet, do livro do Presidente
ria dizer-se que, nestes casos, os negócios jurídicos, os actos privados, os Mitterrar:d, feito pelo seu médico particular, demonstram que a cha-
comportamentos das entidades privadas considerados violadores de mada «vInculação pública e privada» através dos direitos fundamen-
normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias, serão repri- tais obedecerá mais a uma lógica regulatória do que a um comando
midos não porque os sujeitos de direito privado estejam submetidos à imposto através do Estado.

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[Ar!. 18°] Parte I - Direitos e deveres fundammtais Tít. I Princípios gerais
[Art. 18°]

VI. O regime próprio dos direitos, liberdades e garantias não proíbe


este pod~ r~meter p~a ~ lei essa delimitação ou ao menos a concretização
de todo em todo a possibilidade de restrição, por via de lei, do exercí-
cio dos direitos, liberdades e garantias. Mas submete tais restrições a
d~ ~m l~mIt~ c~nstltuclOnalmente previsto. A este propósito há que
dIStIngUlr tres tipos: (a) os casos em que a própria Constituição estabe-
vários e severos requisitos. Para que a restrição seja constitucional-
lece um limite ao âmbito potencial de determinado direito fundamental
mente legítima, torna-se necessária a verificação cumulat~v~ das seguin-
podendo então a lei aclará-lo ou concretizá-lo: é o caso, por exemplo, do~
tes condições: (a) que a restrição esteja expressamente adrrutida (ou, even-
arts. 46°-4 (proibição de certas associações) e 62°-1 (propriedade pri-
tualmente, imposta) pela Constituição, ela mesma (n° 2, la parte); (b) que
va~a)~ (b)_ os casos em que a Constituição remete para a lei apenas a
a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucional-
delImItaçao de um aspecto específico do âmbito de um determinado
mente protegido (n° 2, in fine); (c) que a restrição seja exigida por essa
direito fundamental, cabendo então à lei executar essa delimitação: é o
salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para
~as~, por .e~~mplo, dos arts. 35°-2 (definição de dados pessoais) e 400-1,
alcançar esse objectivo (n° 2, 2a parte); (d) que a restrição não aniquile o
In fine (cntenos de distribuição do direito de antena); (c) finalmente, os
direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito
cas~s, qu~ s~o ~s mais numerosos, em que a Constituição remete para
(n° 3, in fine).
a leI a delImItaçaogeral do âmbito do direito: é o caso, entre outros, dos
Além da verificação destes pressupostos materiais, a validade das leis
arts. 52°-3 (acção popular), 56°-3 (contratação colectiva), 61°-1 (iniciativa
restritivas de direitos, liberdades e garantias depende ainda de três requi- privada) e 61°_5 (direito de autogestão).
sitos quanto ao carácter da própria lei: (a) a lei deve re:estir cará~ter
O grau e a intensidade de vinculação constitucional da lei não são
geral e abstracto (n° 3, la parte); (b)..a lei não pode ter efeito retr~actlvo
idên~c~s em todos estes tipos de casos, sendo tanto maior quanto mais
(n° 3, 2 a parte); (c) a lei deve ser uma lei da AR ou, quando mUlto, um
especIfIcada f~r a norma constitucional. Todavia, mesmo no último tipo
decreto-lei autorizado (art. 165°-1/b).
de casos, a lIberdade de conformação legislativa tem como limite a
Embora a Constituição se refira expressamente apenas a leis res-
garantia de um mínimo de conteúdo útil e constitucionalmente relevante do
tritivas de direitos, liberdades e garantias, existe outro tipo de restri- direito legalmente delimitado.
ções que a doutrina mais recente designou por intervenções restritivas.
Considera.çã~ particular neste contexto exige o caso em que a lei pre-
As intervenções restritivas consistem em actos ou actuações das auto-
tende revelar hmItes que não se encontram previstos ou mencionados na
ridades públicas restritivamente incidentes, de modo concreto e ime-
Constituição, mas que hajam de entender-se implicitamente decorrentes
diato, sobre um direito, liberdade e garantia ou direito de natureza aná-
do seu texto, designadamente por efeito de colisão de direitos: são as
loga (ex.: decisão judicial de prisão preventiva, decisão administrativa de
«~estrições não expressamente autorizadas pela Constituição», tradi-
proibição de manifestação, decisão de requisiç~o. em caso .de, g.reve).
CIonalmente conhecidas como «limites imanentes». Logo, por isto mesmo,
Estas intervenções restritivas estão, desde logo, sUjeitas aos prmcIplOs da
se ~ev~ ser particularmente exigente e rigoroso na admissão deste tipo
constitucionalidade e da legalidade, mas, além disso, estão juridica-
d: hmI~es: havendo de respeitar-se pelo menos três requisitos: (a) que a
mente vinculadas à observância dos princípios fundamentais de um
leI se lImite a «revelar» ou a concretizar limites de algum modo pre-
Estado de direitos fundamentais (proibição do excesso, proporcionalidade,
sentes na Constituição, não sendo de admitir que se criem autonoma-
adequação, necessidade) (dr., por ex., arts. 28° /2 e 272° /2 e 3).
mente limites supostamente imanentes; (b) que a definição de tais limi-
tes seja. o ~níco meí~ de. resolver conflitos de outro modo insuperáveis
VII. A figura da restrição do exercício de direitos fundamentais
entre dueItos constItUCIOnais de idêntica natureza; (c) que tais limites
deve ser distinguida rigorosamente da figura da delimitação do âmbito
reduzam o âmbito do direito ou direitos atingidos apenas na medida
do próprio direito fundamental. Na verdade, só se pode falar em ~es­
estritamente necessária à superação do conflito (sob pena de as leis tra-
trições do exercício de um direito depois de juridicamente garantldo
dutoras de limites imanentes virem -a ficar, paradoxalmente, com uma
estar delimitado o seu âmbito, ou seja, depois de definido o seu conteúdo.
li~:rdade de conformação mais ampla do que a concedida às leis res-
Ora, a esfera de acção de um direito fundamental pode não decor-
tntlv~s do exercício de direitos fundamentais, que são expressamente
rer directa e imediatamente do texto constitucional, na medida em que autonzadas pela Constituição).

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[Art. 18°] Parte I - Direitos e deveres fundamentais Ta. I - Princ(pios gerais
[Art. 18°]

Deve salientar-se ainda que as «restrições não expressamente auto- art. 43°-4), mas também o direito de conferir diplomas de valor oficial,
rizadas» não deixam de ser restrições ao âmbito de exercício dos direitos submeta este último direito a autorização administrativa (o que, obvia-
fundamentais. Elas não surgem ab initio adstritas aos direitos funda- mente, não seria possível para o direito constitucionalmente protegido).
mentais, não são limites originários ou internos conaturais aos respectivos
direitos fundamentais, que só haveria que revelar. Tais limites têm sem- X. O primeiro pressuposto material de legitimidade das restrições
pre de resultar da necessidade de conjugar ou compatibilizar os direitos ao exercício de direitos, liberdades e garantias (cfr. supra, nota VI) con-
fundamentais com outros direitos ou bens constitucionais. Por isso, não siste na exigência de previsão constitucional expressa da respectiva res-
se pode recorrer a valores extraconstitucionais ou sem adequada densi- trição. Não existe, portanto, na CRP (ao contrário do que sucede com
dade constitucional para justificar a introdução de restrições não expres- outras constituições) nenhum princípio geral, expresso ou implícito, de
samente autorizadas. reserva de lei restritiva aplicável a todos os direitos fundamentais. Pelo
contrário: toda a restrição tem de estar expressamente credenciada no
VIII. Deve igualmente fazer-se a destrinça entre leis restritivas e texto constitucional, tornando-se portanto necessário que a admissibili-
leis de garantia do exercício de direitos fundamentais. Com efeito, a pro- dade da restrição encontre nele expressão suficiente e adequada (parecendo
pósito de diversos direitos a Constituição incumbe expressamente a lei de admitir, porém, que a previsão não necessita de ser directa para ser
de garantir um ou mais aspectos do seu exercício: é o caso dos arts. 26°-2 expressa).
(<<garantias efectivas» contra a utilização abusiva, ou contrária à digni- Há dois tipos de casos previstos na Constituição que importa dis-
dade humana, de informações relativas às pessoas e às famílias), 38° tinguir. Nuns é a própria Lei Fundamental que prevê directamente
(garantia da liberdade de imprensa)' e 55°-6 (garantia de protecção dos certa e determinada restrição, cometendo à lei a sua concretização e
representantes dos trabalhadores). Mas essa incumbência não precisa ser delimitação: é o caso, por exemplo, dos arts. 27°-3 e 34°-2 e 4; noutros a
expressa, bastando decorrer naturalmente do próprio contexto e con- Constituição limita-se a admitir restrições não especificadas: é o caso, por
teúdo do direito fundamental: será, por exemplo, o caso do art. 37°-4 exemplo, dos arts. 35°-4, 47°-1, 49°-1 e 270°. No primeiro caso, a lei
(direito de resposta) e dos arts. 54°-5 e 56° (garantia dos direitos das limita-se a declarar a restrição prevista na Constituição; no segundo caso,
comissões de trabalhadores e das associações sindicais). Igual neces- a lei cria a restrição admitida pela Constituição. É evidente que no pri-
sidade pode estar ínsita em direitos à primeira vista pouco adequados: meiro tipo de leis restritivas, o grau de vinculação do legislador é ainda
assim, na medida em que o direito de manifestação exija o direito de uti- maior do que no segundo. A estas restrições há que acrescentar as res-
lização de vias e locais públicos, deve a lei garantir a sua disponibilidade; trições não expressamente autorizadas pela Constituição para captar
do mesmo modo, exigindo o direito de voto, entre outras coisas, o recen- aquelas restrições que são criadas por lei sem habilitação constitucio-
seamento eleitoral, deve a lei garantir a competente organização. Os nal, mas que não podem deixar de admitir-se para resolver problemas
exemplos poderiam multiplicar-se. de ponderação de conflitos entre bens ou direitos constitucionais.

IX. Finalmente, deve ainda destrinçar-se entre a lei restritiva do XI. O segundo pressuposto material para a restrição legítima de
exercício de um direito fundamental e a lei que, reconhecendo um direito «direitos, liberdades e garantias» (cfr. supra, nota VI) consiste em que ela
para além dos limites constitucionalmente garantidos - ampliação legal de só pode se justificar para salvaguardar um outro direito ou interesse
direitos constitucionais -, procede à regulamentação do exercício dessa constitucionalmente protegido (nO 2, in fine). Este requisito - consti-
componente acrescentada ao direito constitucionalmente protegido. Será o ~c~onalmente explicitado apenas na revisão constitucional de 1982 - sig-
caso, por exemplo, de uma lei que, reconhecendo o direito de asilo fora mfIca fundamentalmente que o sacrifício, ainda que parcial, de um
dos casos previstos na Constituição (art. 33°-8), estabeleça nessa parte direito fundamental, não pode ser -arbitrário, gratuito, desmotivado.
requisitos diferentes dos constitucionalmente permitidos para os casos As leis restritivas estão teleologicamente vinculadas à salvaguarda
abrangidos pela lei fundamental; ou de uma lei que, reconhecendo não de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, ficando
apenas o direito de fundar escolas particulares ou cooperativas (cfr. vedado ao legislador justificar restrição de direitos, liberdades e garan-

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Parte I - Direitos e deveres fundamentais Tít. I - Princípios gerais [Art. 18°]
[Art. 18°]

tias por eventual colisão com outros direitos ou bens tutelados apenas podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos,
a nível infraconstitucional. Torna-se necessário que o interesse, cuja sal- liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido res-
vaguarda se invoca para restringir um dos direitos, liberdades ou garan- trito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos
tias, tenha no texto constitucional suficiente e adequada expressão. Algu- devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de
mas vezes é o próprio preceito constitucional que, ao prever as restrições, medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação
indica também os interesses constitucionais que as podem reclamar ou aos fins obtidos.
justificar (cfr. arts. 47°-1, 62°-2 e 270°), não podendo, pois, vir a recorrer-se Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de «direi-
a outros; quando a Constituição nada diz, é legítimo invocar qualquer tos, liberdades e garantias», que consiste no respeito do «conteúdo essen-
cial» dos respectivos preceitos (infra, nota XV).
interesse constitucional pertinente, isto é, que tenha alguma ligação com
o direito fundamental, cuja restrição é suposto justificar. Para além dos
restantes direitos fundamentais constitucionais e, bem assim dos deve- XIII. Um dos requisitos de legitimidade das leis restritivas de direi-
res constitucionais, poderão eventualmente justificar restrições aos direi- tos, liberdades e garantias (v. supra, nota VI) é o seu carácter geral e
abstracto (n° 3, 1aparte). Lei geral é a lei que se dirige a uma generali-
tos, liberdades e garantias certos interesses constitucionais, como os que
decorrem dos arts. 272°-1 (<<segurança interna»), 273°-1 (<<defesa nacional»), dade de pessoas, sendo o contrário de lei individual (aplicável apenas a
etc. Deve, porém, observar-se como dimensão garantística ineliminável uma pessoa ou a um conjunto identificado de pessoas); lei abstracta é a
do regime das leis restritivas a reserva constitucional de bem, pois o alar- lei aplicável a um conjunto indeterminado de casos, sendo o contrário
gamento das restrições a quaisquer ~ens daria guarida a uma con~epção da lei concreta (aplicável apenas a um caso ou a um número concreta-
relativista de bem potencialmente dissolvente da força normabva da mente limitado de casos). Estes dois requisitos são cumulativos. Aqui
Constituição e do regime «reforçado» dos direitos, liberdades e garantias. estão constitucionalmente interditas não apenas as leis individuais e con-
É importante sublinhar que nem todos os interesses constitucio- cretas (aquelas que se aplicam a um número determinado de pessoas e
nalmente garantidos são adequados para justificar a restrição; sobre- de casos), mas também as leis gerais e concretas (aquelas que, abrangendo
tudo, quando se tratar de cláusulas demasiado vagas para suportarem um círculo indeterminado de pessoas, se aplicam a um caso determinado
qualquer confronto consistente com os direitos, liberdades e garantias. ou conjunto determinado de casos) e as leis individuais e abstractas (aque-
las que, tendo destinatários determinados, valem para um número inde-
XII. O terceiro pressuposto material para a restrição legítima de terminado de casos).
direitos, liberdades e garantias (v. supra, nota VI) consiste naquilo que Note-se que não basta que as leis sejam formalmente ou aparente-
genericamente se designa por princípio da proporcionalidade. Foi a LC mente gerais e abstractas. Importa que o sejam material e realmente,
n0 1/82 que deu expressa guarida constitucional a tal prinápio (art. 18°-2, sendo ilegítimas as leis individuais e / ou concretas camufladas em forma
2a parte), embora já antes, não obstante a ausência de texto expresso, ele geral e abstracta. No campo dos direitos, liberdades e garantias as leis
fosse considerado um prinápio material inerente ao regime dos direitos, restritivas têm, pois, de possuir as tradicionais características da lei, não
liberdades e garantias (cfr. nota IX a este artigo na la edição desta obra). tendo lugar, neste domínio, as modernas figuras da lei (leis-medida,
O prinápio da proporcionalidade (também chamado princípio da leis-plano, leis-de-grupo, para não falar nas leis-acto-administrativo); que,
proibição do excesso) desdobra-se em três subprinápios: (a) princípio da todavia, não estão constitucionalmente proibidas noutros domínios. Sus-
adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medi- citam-se, porém, problemas quanto à admissibilidade de leis individuais
e/ ou concretas garantidoras de certas prestações (ex.: pensões vitalícias,
das restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio ade-
quado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de subsídios, perdões fiscais, etc.), sobr~tudo porque estas podem pôr em
outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da crise o prinápio constitucional da igualdade.
exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensa-
bilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se XIV. Um segundo requisito das leis restritivas de direitos, liberdades
necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não e garantias (v. supra, nota VI) é não terem carácter relroactivo (n° 3,

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[Art. 18°]

2a parte), não podendo, portanto, aplicar-se a situações ou actos passa- Outro problema é o de saber se o conteúdo essencial é uma reali-
dos; mas antes e apenas aos verificados ou praticados após a sua entrada dade de natureza absoluta ou relativa, isto é, se só pode conhecer-se em
em vigor. A proibição incide sobre a chamada retroactividade autêntic~, cada caso concreto, mediante uma ponderação de bens ou interesses
em que as leis restritivas de direitos afectam posições jusfundam;ntaIs concorrentes (conteúdo relativo) ou se ele possui substancialidade pró-
já estabelecidas no passado ou, mesmo, esgotadas. E~a. abra~gera Ata~­ pria, delimitável independentemente da colisão de interesses verificada
bém alguns casos de retrospectividade ou de retroactzvldade mautentzca no caso concreto (conteúdo absoluto). A questão do conteúdo essen-
(a lei proclama a vigência para o futuro mas afecta direitos ou posições cial de um direito não pode equacionar-se senão em confronto com
radicadas na lei anterior) sempre que as medidas legislativas se revela- outro bem; mas, nos termos da Constituição, nunca essa ponderação
rem arbitrárias, inesperadas, desproporcionadas ou afectarem direitos poderá conduzir à aniquilação de qualquer direito fundamental. A garan-
de forma excessivamente gravosa e impróprias as posições jusfunda- tia do conteúdo essencial é um mais em relação ao princípio da pro-
mentais dos particulares (dr. AcsTC nOS 354/00 e 449/02). A razão de porcionalidade.
ser deste requisito está intimamente ligada à ideia de protecção d.a con- A própria definição de conteúdo essencial é, por isso mesmo, con-
fiança e da segurança aos cidadãos, defendendo-os contra o pengo. de trovertida. Umas vezes, aponta-se como critério saber se a restrição
verem atribuir aos seus actos passados ou às situações transactas efeItos deixa algum sentido útil ao direito fundamental, isto é, se há possibilidade
jurídicos com que razoavelmente não podiam cont~r. ,T~ata-se, ao fim e de este, depois de restringido, ainda poder desempenhar a sua finalidade;
ao cabo, de consubstanciar um dos traços do pnnClpIO do Estado de outras vezes, o núcleo essencial é identificado com a subsistência de
direito democrático constitucionalmente afirmado no art. 2° (dr. nota VI a um mínimo de autonomia da posição jurídica do cidadão face ao Estado,
havendo intromissão no núcleo essencial quando o cidadão for conver-
esse artigo). .' . .
O princípio da não retroactividade da lei só estava constItucIOnal- tido em mero objecto da actividade estadual.
mente afirmado aqui e, como qualificação deste preceito, no art. 29°-1 A garantia do conteúdo essencial é uma baliza última de defesa
(irretroactividade da lei penal desfavorável ao arguido). Depois da revi- dos direitos, liberdades e garantias, delimitando um núcleo que em
são de 1997, o princípio é também expressamente positivado no âmbito nenhum caso deverá ser invadido. Em termos práticos, pode dizer-se que
do sistema fiscal (dr. art. 103°-3). Pode, todavia, suscitar-se a questão de o requisito da proporcionalidade (v. supra, nota XII) é uma primeira
saber se o princípio do Estado de direito democrático não reclama con- aproximação, dado que a existência de uma restrição «arbitrária», «des-
siderá-lo como princípio geral válido para todas as leis que diminuam proporcionada», é um índice relativamente seguro da ofensa do núcleo
direitos ou criem deveres ou encargos para os cidadãos (dr. nota VIII ao essencial. Mas, independentemente de haver ou não «excesso de res-
art. 103° e AcsTC nOS 11/83, 20/83, 32/84 e 201/86). trições», há que salvaguardar sempre a extensão do núcleo essencial.
Haverá de recorrer-se, porventura, a uma teoria mista, a um tempo abso-
XV. O último pressuposto material da legitimidade das leis restri- luta e relativa: relativa, porque a própria delimitação do núcleo essencial
tivas dos direitos fundamentais consiste em não poderem diminuir a dos direitos, liberdades e garantias tem de articular-se com a necessidade
extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais de protecção de outros bens ou direitos constitucionalmente garantidos;
(nO 3, in fine). Vários problemas suscita este preceito. absoluta, porque, em última análise, para não existir aniquilação do
O primeiro está em saber qual é o objecto de protecção da norma, núcleo essencial, é necessário que haja sempre um resto substancial de
ou seja, se esta protege o conteúdo essencial da garantia geral e abs- direito, liberdade e garantia, que assegure a sua utilidade constitucional.
tracta ou, antes, o conteúdo essencial da posição jurídica e individual de
cada cidadão. A expressão «preceitos constitucionais» utilizada na Cons- XVI. Requisito importante da l~gitimidade constitucional das res-
tituição parece apontar para a necessidade de se tomar assim em con- trições aos direitos, liberdades e garantias, é o que consiste na reserva
sideração os direitos fundamentais como bens jurídicos objectivos (sem, cor:- de lei. A reserva de lei tem aqui um duplo sentido: (a) reserva de lei mate-
tudo, abstrair do facto de se tratar sempre de direitos fundamentaIs rial, que significa que os direitos, liberdades e garantias não podem ser
restringidos (ou regulados) senão por via de lei e nunca por regula-
com sujeito).
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Parte I - Direitos e deveres fundamentais Tít. I - Princípios gerais [Art. 19°]
[Art. 18°]

-o podendo a lei delegar em regulamento ou diferir para ele Artigo 19°


ment o, na . 'gnili'
qualquer aspecto desse regime; (b) reserva de lez formal, o que SI ca .que (Suspensão do exercício de direitos)
os direitos, liberdades e garantias só podem ser regulados por leI. da
AR ou, nos termos do art. 165°, por decreto-lei governa~ental devld~­ 1. Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou sepa-
mente autorizado, havendo casos (os previstos no art. 164 ) e~ que nao radamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e
existe sequer essa possibilidade de delegaç~o ..Gara.n:.,e-se aSSIm que os
garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de
direitos, liberdades e garantias não fiquem a dlsposlçao do p~d.er regu-
lamentar da administração e que o seu regime há de ser def1m~o p~lo emergência, declarados na forma prevista na Constituição.
próprio órgão representativo, e não pelo Governo (salvo aut?nzaça~) 2. O estado de sítio ou o estado de emergência só podem
e muito menos, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarqUlas 10C~IS ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos
;u, ainda, pelas entidades públicas dotadas ~e p~der ~e auto-regulaçao. casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras,
Em matéria de direitos, liberdades e garantIasnao ha lugar para :eg~­ de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional demo-
lamentos autónomos (cfr. nota ao art. 112°) nem para decretos legIslatI- crática ou de calamidade pública.
vos regionais (cfr. arts. 165°/a e c e 22°-1/b).. . 3. O estado de emergência é declarado quando os pressu-
Aliás, essa reserva de competência legIslatIva parlamentar - e
postos referidos no número anterior se revistam de menor gra-
implicitamente reserva material de lei - estende-se a todos os aspectos
r:
do regime dos direitos, liberdade~ e. g~ran:ias .e ão apenas ao caso das
vidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns dos
direitos, liberdades e garantias susceptíveis de serem suspensos.
restrições, pois a al. b do art. 165 -1" nao dlscnmma.
4. A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emer-
gência, bem como as respectivas declaração e execução, devem
respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomea-
damente quanto às suas extensão e duração e aos meios utili-
zados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento
da normalidade constitucional.
5. A declaração do estado de sítio ou do estado de emer-
gência é adequadamente fundamentada e contém a especifica-
ção dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica sus-
penso, não podendo o estado declarado ter duração superior a
quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em conse-
quência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais
renovações, com salvaguarda dos mesmos limites.
6. A declaração do estado de sítio ou do estado de emer-
gência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à inte-
gridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à
cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de
defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.
7. A declaração do estado de sítio ou do estado de emer-
gência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos

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