Você está na página 1de 8

1

Os contos de fadas e seus simbolismos: a interpretação de elementos marcantes


nos contos, segundo a psicanálise

Os contos de fadas apresentam um formato que se repete a cada


história. Têm também algumas características que lhe são próprias.

Apresentaremos aqui a importância dessas características e qual seu


significado psicológico, pois ao perdurarem por tanto tempo, podemos concluir que seu
apelo psicológico é muito grande.

A custa de serem contados e recontados tantas vezes, por tanta gente,


elementos puramente pessoais e idiossincrasias culturais tendem a
desaparecer, subsistindo os enredos e os temas de interesse universal
(CHINEN, 1989, p.11).

Rapidamente vamos apresentar a interpretação de alguns contos à luz


da psicanálise. O estudo de seus elementos dentro da psicanálise foi realizado
principalmente por Bettelheim, psicanalista que utilizava os contos de fadas no seu
trabalho com crianças perturbadas emocionalmente, por isso utilizaremos
especialmente suas interpretações do assunto.

Bem X Mal

Podemos iniciar nossas reflexões tratando de um aspecto dos contos


que durante um certo período e inclusive nos dias de hoje, foi alvo de discussões: o
“mal” presente nos contos.

Nos contos de fadas o mal é tão presente quanto o bem. Isso por algum
tempo assustou adultos que optaram por banir os contos de fadas da educação das
crianças.

Isso se dá algumas vezes, por quererem ocultar à elas que o ser


humano tem de fato um “lado obscuro”, que por vezes queremos negar, não querendo
2

aceitar (e nem deixar que as crianças percebam) que as causas de problemas e


insucessos estão em nossa própria natureza.

Descobertas da psicanálise e da psicologia infantil mostraram que a


mente de uma criança (mesmo ainda pequena) tem nuances violentas, destrutivas e
sádicas. Ao contrário dessas descobertas confirmarem que os contos falariam de fato à
vida interior da criança, ocorreu com algumas pessoas, exatamente o contrário:
passaram a acreditar que os contos incentivariam esses sentimentos.

No entanto, ao manter esses sentimentos, esses “monstros” apenas


dentro da criança, ela é impedida de elaborá-lo e conhecer a si mesma. É muito mais
produtivo, construtivo que cada um possa deixar seu lado “escuro” vir à tona e poder
lidar com ele. No caso da criança, essa elaboração é feita através da fantasia e das
imagens presentes nos contos de fadas, o que faz com que ela possa conhecer seu
monstro interior, e o que é mais importante: pode aprender a dominá-lo (através das
sugestões a nível simbólico presente nos contos). Assim, uma criança que ouve um
conto de fadas estará mais instrumentalizada para lidar com seus sentimentos,
especialmente os negativos.

Se nosso medo de ser devorado toma a forma tangível de uma bruxa, podemos
nos livrar dele queimando a bruxa no fogão. Mas estas considerações não
ocorrem aos que baniram os contos de fadas (BETTELHEIM, 2000, p.151).

Acreditou-se que não alimentando a imaginação da criança ela não


teria fantasias “negativas”. Que os monstros de seu inconsciente não existiriam.
Espera-se que o ego racional reine de forma suprema desde o berço! (BETTELHEIM,
2000, p.151).

O adulto, muitas vezes, quer que a criança aceite a sua visão de mundo
e que pense “racionalmente”. E acredita que isso acontecerá se mantê-la longe da
fantasia.
3

Forçar a criança a reprimir radicalmente o conteúdo de seu inconsciente


pode ter conseqüências muito sérias. Isso porque o inconsciente (como já citamos
anteriormente) é um dos principais determinantes do comportamento humano.

O inconsciente é a fonte de matéria-prima e a base sobre a qual o ego erige o


edifício de nossa personalidade. Prosseguindo na comparação, nossas
fantasias são os recursos naturais que fornecem e moldam esta matéria-prima,
tornando-a útil para as tarefas de construção da personalidade que cabem ao
ego. (BETTELHEIM, 2000, p. 152)

Portanto, não é negando o “lado negro” de todos nós que a criança será
instrumentalizada a lidar com ele e muito menos esse aspecto deixará de existir.

Os personagens dos contos não são ambivalentes, isto é, sempre são


definidos como bons ou maus. Essa característica também atende a uma face do
pensamento da criança, que não consegue perceber que uma mesma pessoa pode ser
querida por ela e às vezes magoá-la.

Segundo Bettelheim (2000), essa separação dos personagens (entre


bons e maus) auxilia a criança a fazer suas escolhas, fazer opções sobre quem quer
ser, escolha importantíssima para todo o desenvolvimento da personalidade. Nesse
processo, a criança se projeta em um personagem, com o qual se identificou, querendo
ser parecido com ele.

Na infância e puberdade é muito comum um tipo de fantasia que dentro


da psicanálise é conhecida como “romance familiar”. Nessa fantasia a criança imagina
que os pais ou um deles é um impostor que tomou o lugar de seu verdadeiro pai ou
mãe, ou que na realidade ela é filha de outras pessoas, que seus pais apenas a
tomaram e que um dia os verdadeiros surgirão e que ela viverá feliz para sempre.

Esses pensamentos surgem principalmente quando a mãe contraria a


vontade da criança e assume uma postura dominadora e negativa aos olhos dela. Essa
4

é uma fantasia universal de extrema importância. Ela auxilia a criança ou adolescente


a se redimir da culpa de odiar seus pais em algumas situações. Esse sentimento de
culpa é muito difícil de ser lidado pela criança.

Por isso, a divisão feita nos contos de fadas, onde a mãe é sempre boa
e a madrasta é sempre má é muito importante para a criança porque ela se permite
“odiar” a figura da madrasta, sem culpas. Ou seja, a imagem da “mãe boa” é
preservada. Muitas vezes, a criança separa mesmo cada um de seus dois pais em duas
pessoas, uma boa e uma má, não tendo nada de comum entre si.

Para a criança pequena, é impossível entender a “dualidade” ou


integridade da personalidade humana, ou seja, ela não consegue perceber como uma
pessoa pode lhe parecer boa em alguns momentos e muito má em outros. Para ela
seria impossível, por exemplo, conceber que sua mãe, tão amorosa e protetora pode
em alguns momentos mostrar-se rejeitadora.

Assim também os contos de fadas retratam o mundo. A separação entre


o bem e o mal, a beleza e a feiúra, a felicidade e a infelicidade são muito nítidas. Isso
ajuda a criança a ordenar seu caos interno.

E viveram felizes para sempre....

Tolkien (apud Bettelheim, 2000, p.177) assinala que um bom conto de


fadas (aquele que á capaz de realmente falar intimamente à criança) necessariamente
tem algumas características: fantasia, recuperação (de um desespero profundo),
escape (de algum grande perigo) e consolo. Sendo que o mais importante é o consolo.
Para ele, o final feliz é de extrema importância para o todo do conto, funciona como
uma recompensa, não só ao herói como também ao ouvinte ou leitor, que se identificou
com ele e se envolveu intensamente na narrativa. O otimismo dos contos de fadas não
5

constitui um mero sentimentalismo, mas a expressão dos mais elevados e mais


profundos anseios da humanidade (CHINEN, 1989, p.12).

Quando uma história não tem final feliz (como alguns contos de
Andersen, por exemplo) não promovem na criança o “escape” e o “consolo”, ou seja, a
criança não se sente forte para enfrentar a vida, pois não lhe dizem da chance do
sucesso. Ao contrário, nos contos tradicionais, onde o final é sempre feliz, a criança
sente-se satisfeita em seu desejo de justiça.

Assim, o final feliz dos contos auxiliam para a formação de uma crença
positiva na vida.

Esse final feliz implica no castigo aos malfeitores (que atende ao


espírito de justiça da criança) além da recompensa do herói.

Essa característica dos contos de fadas é muito importante, caso


contrário não estaria presente em tantas fábulas e contos. A mensagem que um conto
(com as características que citamos) passa é a de que uma pessoa não deve desistir
apesar dos insucessos iniciais (BETTELHEIM, 2000, p.42) Essa mensagem é ainda
mais efetiva quando aparece de modo casual e não em forma de uma moral ou
solicitação diretas.

Todos podemos reconhecer a importância de crenças positivas, caso


contrário, a vida não teria sentido. Quando não acreditamos que a vitória é uma
possibilidade real, a própria vida torna-se desprovida de sentido.

Há evidências cada vez maiores de que os sistemas de crenças têm efeito


profundo sobre o funcionamento psicológico e biológico. Crenças que nos
infundem esperança e significado podem assistir-nos na superação de graves
dificuldades (WHITMONT, 1991).
6

A criança costuma viver muito intensamente seus sentimentos, por isso,


um acontecimento banal aos olhos dos adultos é muito grandioso para ela. Bettelheim
(2000, p.179) coloca que o maior medo do ser humano, tanto adulto quanto criança é o
medo de ser abandonado, de ficar sozinho. Esse medo é chamado pela psicanálise de
“ansiedade de separação”, que é tão mais intenso quanto menor for a idade do
indivíduo. Assim sendo, para a criança é preciso o “consolo”, a sugestão de que nunca
será abandonada. Somente o final feliz (dentro da estrutura dos contos de fadas) será
capaz de oferecer esse consolo, sugerindo à criança que por mais adversa que seja a
situação pela qual ela passa, estarão garantidas a superação e a felicidade, onde a
ansiedade de separação seja superada.

O consolo é o maior serviço que o conto de fadas pode prestar à criança: a


confiança em que, apesar de todas as tribulações que tem que sofrer, não
apenas ela terá sucesso, como as forças do mal se extinguirão e nunca mais
ameaçarão a paz de sua mente (BETTELHEIM, 2000, p. 181).

A linguagem simbólica dos contos

Os contos são tão ricos e importantes pois falam de nossos mais


profundos sentimentos e de nosso processo de crescimento. Os contos de fadas
retratam de forma imaginária e simbólica os passos essenciais do crescimento e da
aquisição de uma existência independente (BETTELHEIM, 2000, p.90).

Como já citamos, a psicanálise compara os contos de fadas aos


sonhos, considerando que também podem ser interpretados, pois tanto um quanto
outro são constituídos de linguagem simbólica que é

a linguagem da imaginação inconsciente, mais que da razão consciente – e


tratam de questões da alma e não apenas da mente. Além disso, quando
considerado isoladamente, um único sonho pode não ter muito sentido, mas,
em série, temas repetitivos surgem prontamente, servindo de chave ao
simbolismo do sonho (CHINEN, 1989, p. 15).
7

Em muitos contos, ser expulso de casa representa ter que se tornar


independente. “Crescer” implica em perigos psicológicos que nos contos são
representados pelos perigos que o herói enfrenta.

O conto de fadas não deixa dúvidas na mente da criança de que a dor deve ser
suportada e que as chances arriscadas devem ser enfrentadas, pois deve-se
adquirir a própria identidade, e, apesar de todas as ansiedades, não há dúvidas
quanto ao final feliz (BETTELHEIM, 2000).

O processo de crescimento traz consigo um verdadeiro caos, pois são


muitos sentimentos, por vezes contraditórios, presentes na mente da criança, sem que
ela possa ordená-los.

A criança, como todos nós, está a todo momento num tumulto de sentimentos
contraditórios. Mas enquanto que os adultos aprenderam a integrá-los, a
criança é esmagada por estas ambivalências dentro de si mesma. Experimenta
a mistura de amor e ódio, desejo e medo dentro de si mesma como um caos
incompreensível (BETTELHEIM, 2000, p.91).

Assim, é preciso que todo indivíduo, nesse processo, possa se


conhecer cada vez mais, conhecer seu eu mais profundo, pois só assim poderá ordenar
e dirigir sua vida. Conhecendo sua mente, ela (a criança) se tornará senhora de um
vasto domínio (BETTELHEIM, 2000). Esse domínio é o reinado que ela herda. Nos
contos é comum o herói herdar o trono, a criança sabe que isso não acontecerá com
ela, mas como essa é uma linguagem simbólica, podemos entender que o grande trono
que pode ser conquistado é o conhecimento e o domínio sobre si mesmo. A forma
específica da criança imaginar o ‘reinado’ depende de sua idade e estado de
desenvolvimento, mas ela nunca toma isso literalmente (BETTELHEIM, 2000).

Dando continuidade à essa idéia, o tornar-se rei ou rainha, portanto,


simboliza um estado de verdadeira independência.
8

Você também pode gostar