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Como, nos termos bakhtinianos, todo gênero tem memória e esta traz consigo o “tesouro
técnico” do gênero, pensando-se seja em crianças, seja em adolescentes, quer dizer, em indivíduos da
Educação Básica do Brasil, convém, em uma proposta de ensino de escrita criativa, de antemão,
garantir a cada estudante que mostre o quanto coletiva e individualmente acessa a memória e o
“tesouro técnico” de um gênero. Conforme nossa ementa, está proposto o ensino de escrita criativa
do poema e do conto. A memória do gênero costuma nos dizer como eles vêm sendo, que implica em
acúmulo de práticas criativas. Sobre o poema, esse acúmulo está, por exemplo, tanto em gênero ser
monódico quanto em geralmente ser versificado e recorrer a metáfora – seja em alguns versos, em
todos ou no conjunto do poema. Tal acúmulo implica também tanto no monologismo bivocal do conto
quanto no conflito devido à recursiva prática de ser dado como texto de extensão breve. O “tesouro
técnico” do poema, devido à memória de versificação, contém modos de versificar entre outros
valores, como a estrofação e a rima. O “tesouro técnico” do conto, devido ao monologismo bivocal,
contém pelo menos um narrador e uma personagem, ainda que esta e aquele sejam a mesma figura,
entre outros valores, como o recurso a um problema que desencadeia um conflito a ser tratado pelo
princípio de causa e consequência da progressão textual.
Uma vez que abrimos este texto citando termos bakhtinianos, convém destacar que Mikhail
Bakhtin, ao lado de Valentin Volochinov, de Pavel Medvedev e comentaristas, será recursivamente
retomado. Sobre o ensino de escrita criativa na Educação Básica, porque é um ensino que orienta
estudantes a produzirem textos literários, quer dizer, orienta uma prática autoral literária, de imediato
importa destacar que trabalhamos com a concepção de autoria de Bakhtin, partilhada por Volochinov
e Medvedev, bem como pelos demais membros do Círculo de Vitebsk. Dessa concepção, importa de
antemão que Bakhtin e demais refutavam as concepções românticas de liberdade e de criatividade.
Sabe-se que a perspectiva romântica considerava a liberdade individualmente, pelo primado liberal
de que a liberdade de um indivíduo termina na liberdade de outro, por sua vez, dado isso, o estilo é
sempre uma idiossincrasia. Uma vez que o estilo é tal, romanticamente, “meu estilo sou eu”, conforme
George-Louis Leclerc, o Conde de Buffon, destacou em conferência proferida na Academia Francesa
esta conhecida sentença: “O estilo é o homem”, implicando que o estilo é algo que uma expressão do
indivíduo, como se uma tradução de seu caráter. Logo, uma vez que a liberdade coincide com o
indivíduo, em ênfase, seu estilo é ele mesmo. Em relação a essa concepção de liberdade, a concepção
romântica de criatividade destaca essa como algo excepcional. Nesse sentido, a criatividade está fora
da cadeia causal do contexto e é redundada a uma irrupção súbita. No estudos de escrita criativa que
levam ao ensino desta, as concepções de liberdade e de criatividade são caras e implicadas em um
debate com as concepções de intuição e inspiração. Entenda-se que não há relativismo sobre nenhum
desses termos. Na perspectiva romântica, a liberdade sempre diz respeito exclusivamente ao
indivíduo, e por sua vez, a criatividade emana somente deste. Logo, para criar, o indivíduo intui, quer
dizer, alcança algo espontaneamente, de modo involuntário, influenciado por uma força invisível que
a ele acorre misteriosamente, força que o toma e o leva à criação. Ainda nesse ideário romântico
pautado em tais concepções de liberdade e de criatividade, ao intuir, o indivíduo se inspira, e inspirado
é despertado transitoriamente da práxis para a criação. Esse ideário traz, ainda que de modo sui
generis, a antiga concepção de inspiração como possessão. Uma vez que a criatividade dependa de
possessão, ela não é ensinável, e logo, não é aprendível. Qualquer processo educacional que se
permita confiar que a criatividade somente é possível por inspiração não tem como levar a cabo
nenhuma educação artística. Nisso, ensinar a criação de qualquer arte seria uma quimera, e restaria à
educação artística apenas o ensino da análise de obras artísticas, e quando muito, da crítica.
Para observar o acesso à memória de um gênero e seu “tesouro técnico”, sugiro que se evite
uma espécie de diagnóstico que faça o alunado dizer o que sabe de poema e de conto – pelo menos
no que diz respeito ao ensino inicial da escrita criativa. A prática do diagnóstico é demasiadamente
escolarizada, quer dizer, é muito institucionalmente protocolar mediante às políticas gerais de ensino.
Logo, fazer uma espécie de diagnóstico tal seria como empregar um fundamento de Teoria da
Literatura padrão, que solicita um conceito de poema (que geralmente termina levando em conta um
conceito de poesia) e um de conto. De maneira prática, seria como, diante de alguns poemas e contos,
questionar o alunado sobre quais textos são de um gênero e de outro e por quê. Não se vá pensar, no
entanto, que esse tipo de questionamento, assim como a prática do diagnóstico, seja inútil nem
indevido. Considere-se que esse tipo de estratégia pode muito mais inibir a escrita criativa estudantil
do que auxiliá-la. Diante dos dois polos da Educação Básica, se qualquer docente se solicitar a um
alunado do quinto ano do Ensino Fundamental e a um alunado da terceira série do Ensino Médio a
escrita de um poema e a escrita de um conto, os indivíduos de ambos os alunados – bem como dos
demais alunados no interstício entre os dois polos – saberão, de algum modo, o que fazer. Será
possível notar que, por exemplo, ninguém do quinto ano escreverá um poema inicialmente dizendo
algo como “Era uma vez”, como também será notável que ninguém da terceira série escreverá um
poema inicialmente dizendo “Certo dia, quando saía de casa…”. Uma vez que ninguém fará nem isto
nem aquilo, logo, assertivamente o alunado tem consigo parte da memória de ambos os gêneros,
poema e conto, e assim, parte do conhecimento de seu “tesouro técnico”. A bem da verdade, artistas
da estética verbal, da literatura, sempre detêm apenas parte (por mais ampla que seja) da memória e
do “tesouro técnico” de qualquer gênero. Os exemplos a respeito das obras referidas de Dante,
Goethe, Mann e Leminski tiveram também a finalidade de mostrar isso. Tais exemplos, certamente
por evidência, foram escolhidos porque correspondem a três casos consagrados pelo cânone ocidental
– a Divina comédia, o Fausto e a Montanha mágica – e a um caso frequentemente dado no Brasil
como exemplar de ficção experimental na literatura contemporânea – embora outro igualmente
lembrado, principalmente a respeito da poesia, que é Galáxias, de Haroldo de Campos. Não se vá
entender as obras referidas como uma apologia ao cânone nem a casos exemplares ou hegemônicos.
De todo modo, via de regra, casos canônicos, exemplares e hegemônicos têm mais circulação, e isso
por serem valorados tacitamente como notáveis, que termina com que sejam dados como referências
– seja para serem seguidos (parafraseados ou parodiados), transgredidos ou subvertidos.
Nos termos da Matriz de Referência do ENEM conforme o INEP, aplicar aquela espécie de
diagnóstico seria observar os seguintes eixos cognitivos do alunado: II. Compreender fenômenos (no
caso, construir e aplicar conceitos de Teoria da Literatura); III. Enfrentar situações-problemas (no
caso, selecionar, organizar, relacionar e interpretar dados e informações para encontrar soluções sobre
o poema e o conto); e IV. Construir argumentação (no caso, relacionar dados e informações de Teoria
da Literatura mediante soluções encontradas a respeito do poema e do conto). Tudo isso, conforme o
primeiro eixo apresentado, sempre mediante à Teoria da Literatura no que diz respeito ao
conhecimento dos gêneros literários, e em particular, ao poema e ao conto. Ainda nos termos da
mesma Matriz, no que diz respeito à Competência de Área 5 (Analisar, interpretar e aplicar recursos
expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função,
organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção),
aplicar aquele diagnóstico seria como observar se o alunado responde (e como responde) à Habilidade
16 (Relacionar informações sobre concepções artísticas e procedimentos de construção do texto
literário). Não se vá pensar que mensurar como o alunado responde àqueles eixos cognitivos e à
Competência de Área 5 no âmbito da Habilidade 16 é uma estultícia, é inútil ou é indevido. Trata-se
de que essa mensuração implica uma produção escrita de análise e interpretação crítica do objeto
artístico, e não na produção deste. Como já foi dito, inicialmente, convém solicitar ao alunado que
produza poema e conto. Apenas isso. O diagnóstico, a partir das primeiras produções, será útil
(devido) no sentido de mensurar ao quê da memória e do “tesouro técnico” de tais gêneros o alunado
recorre. Conforme também já foi dito, essa observação é tão coletiva quanto individual. Disso, note-
se: como o ensino formal é e somente pode ser escolarizado, sua prática é institucional e responde às
políticas educacionais vigentes, logo, é muitíssimo recorrente que a quase totalidade do alunado
recorra a uma mesma parcela da memória e do “tesouro técnico” de um gênero. Pode haver, contudo,
quem faça algo diferente, quer dizer, pode haver quem mostre um conhecimento mais amplo do
gênero. [Certa vez, na cidade de Goiás, ministrei uma oficina de poema para crianças entre oito e
nove anos – crianças do segundo ano do Ensino Fundamental. Com exceção de uma criança, uma
menina, todas as demais ou escreveram sobre a mãe ou sobre a cidade e compuseram versos rimados
de extensão mais ou menos idêntica (todos entre cinco e oito sílabas) distribuídos em quadras e/ou
quintetos. O recurso à variedade métrica não significa que as crianças soubessem de escansão, mas
que ouvem, desde mais jovens, cantigas e canções, que são (principalmente aquelas) redondilhadas
(às vezes em cinco, e mais recorrentemente, em sete sílabas). Isso fica inculcado. Versificar integra a
memória do gênero, o modo da versificação (na variante de arte menor de cinco a oito sílabas) integra
o “tesouro técnico” do gênero. A criança de produziu por exceção em relação às demais, a menina
que mencionei, por sua vez, criou um poema de versos livres bem irregulares sobre o pôr-do-sol. Essa
menina é filha – não precisei averiguar, porque já sabia – de uma família que introduzia poesia,
música, dança, teatro e cinema para ela, sua irmã e seus irmãos desde a infância mais tenra. Logo, a
memória e o “tesouro técnico” do gênero é, para aquela menina, maior, quer dizer, ela apresentava
mais conhecimento (mais acúmulo) do gênero por experiência de leitura.]
Por que a advertência de evitar aquela espécie de diagnóstico? Ora, os eixos cognitivos da
Matriz de Referência do ENEM conforme o INEP, bem como suas competências de área e respectivas
habilidades a respeito do ensino de língua e literatura, dizem respeito à capacidade discente de fazer
crítica mediante análise e interpretação de dados e informações de acordo com os princípios e
fundamentos de uma área de conhecimento. Entenda-se que embora literatura, música, pintura e
dança sejam artes (entre outras), e ainda que – com exceção da literatura – essas artes tenham sua
prática produtiva (criativa) ensinada na escola, o ENEM avalia mediante o conhecimento discente do
que há da história, do patrimônio, da partilha social, dos procedimentos e das estruturas das artes.
Chamei atenção para o ENEM porque, embora seja nominado Exame Nacional do Ensino Médio, ele
avalia conhecimentos adquiridos ao longo do Ensino Básico. Para que se entenda isso, observe-se:
quando se estuda a poesia do trovadorismo na primeira série do Ensino Médio, anteriormente, ao
longo do Ensino Fundamental, o alunado já teve acesso à leitura e à análise de poemas e de canções.
Assim, isto implica naquilo, uma vez que a poesia trovadoresca era feita para o canto acompanhado
de instrumentos musicais. O ENEM, contudo, não avalia a “aptidão artística” de ninguém. Esse tipo
de avaliação existe nas universidades depois de alguém passar pelo ENEM e conseguir o pré-ingresso
para o curso indicado no Sisu. Certos cursos exigem um VHCE (Vestibular de Habilidades e
Competências Específicas). Esse é o caso da maioria dos cursos de artes. No entanto, para ingressar
na quase totalidade dos cursos de Letras do Brasil, até mesmo em um curso de Literatura do grau de
bacharelado, não há avaliação da “aptidão artística” do alunado pré-aprovado. Quer dizer, embora os
cursos de Letras brasileiros costumem incluir quase sempre o ensino de literatura, que é uma arte, tais
cursos, via de regra, não ensinam a produção (criação) artística verbal, ensinam sua análise e
interpretação de dados e informações para que se faça crítica, incluindo nisso o ensino de teorias e de
métodos, assim como de História da Literatura. A respeito da literatura, os cursos de Letras se
limitam, em geral, ao ensino de uma escrita descritiva (de fichamentos, resumos e sinopses) e
dissertativa (como resposta a questões sob um comando orientador, de artigos e de trabalhos de
conclusão de curso) sobre poemas, contos, novelas, peças teatrais e romances mediante uma ou mais
abordagens teórico-críticas, bem como uma ou mais metodologias de estudo e de pesquisa. Assim, se
alguém espera se tornar poeta ou ficcionista depois de cursar Letras no Brasil, em geral, dará com os
burros n’água.
Uma vez que estudantes que concluam a Educação Básica não passarão por uma avaliação de
suas possíveis habilidades e competências de criação literária para ingressar na universidade, como
muito menos passarão por uma avaliação dessa espécie se não ingressarem na universidade e forem
diretamente para o mercado de trabalho apenas com a formação básica, para que cargas d’água ensinar
escrita criativa na escola? Antes de responder a isso, convém destacar que não se faz essa indagação
sobre o ensino artístico de música, dança, pintura, desenho e de outras artes na escola. Se se observar,
se se fizer um levantamento estatístico de dados sobre quantos indivíduos que concluem a Educação
Básica ingressam em cursos, por exemplo, de Música, Artes Visuais, Artes Cênicas e Dança, será
notado que são pouquíssimos. Ainda assim, exceto mediante políticas de exceção – como no caso do
governo de Michel Temer, aprofundado pelo governo de Jair Bolsonaro, a respeito de fazer barreira
à compulsoriedade do ensino das artes na escola –, não se questiona por que, enquanto estiveram na
Educação Básica, tais indivíduos passaram por aquelas artes pelo modo produtivo da criação ou da
interpretação criativa. A performance (interpretação criativa) é comum, por exemplo, no ensino
escolar da música e da dança, uma vez que comumente não se orienta o alunado a compor peças
musicais nem apresentações de dança, pois o alunado é apenas orientado a performar música (cantar
e tocar peças alheias) e a performar dança (dançar apresentações de composição alheia). Nesse
sentido, pode-se dizer que o ensino das artes, como exceção da literatura, por mais limitado ou mesmo
deficiente que seja no Brasil, é bem mais eficaz. Essa eficácia, inclusive, diz respeito ao que acontece
na universidade às artes – com ênfase à exceção da literatura. Quem ingressa no curso de Música,
Artes Visuais, Artes Cênicas ou no de Dança aprenderá, além do que previamente pode aprender na
escola e do que passou se seu curso exigiu um VHCE (como é mais comum aos cursos de Música), a
produzir (criar, além de performar) música, alguma/s das artes visuais, algo de teatro ou de dança.
Ainda não respondendo diretamente àquela primeira pergunta, veja-se esta: por que o ensino
das outras artes é mais eficaz? Essa segunda pergunta importa porque sua resposta orientará a resposta
da primeira, que não é demais lembrar: para que cargas d’água ensinar escrita criativa na escola? Ora,
não se espera que ao ensinar na escola a produção criativa (ou de interpretação criativa, performática)
das outras artes que os indivíduos se tornem artistas. (Conveio ressalvar que na escola porque na
universidade, sim, espera-se que estudantes de arte se tornem artistas.) Se alguém se torna artista de
música, pintura, desenho, dança ou de outra arte mediante o ensino de criação artística escolar, esse
efeito é colateral, logo, não é principal. Entenda-se que, principalmente, o ensino prático (criativo) de
uma arte prevê, antes de tudo, o desenvolvimento algo que mais íntimo de apreciação da arte.
[Lembro-me de quando, da primeira vez em que falei sobre escrita criativa na Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Goiás (FL/UFG), em 2009, eu estava em uma mesa de debate com a
Professora Goiandira Ortiz Camargo, que foi minha orientadora, e com a Professora Zaira Turchi,
então Diretora da FL/UFG na época. Hoje ambas são professoras aposentadas. Estamos em outro
tempo. À parte do dado sobre a aposentadoria daquelas professoras, convém chamar a atenção para
uma fala da Professora Zaira Turchi na época, enquanto compartilhávamos da mesma mesa de debate.
Na ocasião, aquela professora disse que durante a infância e parte da adolescência estudava a prática
do piano. No frigir dos ovos, ela não se tornou pianista compositora nem intérprete. Mas, conforme
o depoimento dela, seu estudo de piano a fez saber não somente apreciar mais de perto a música de
peças para piano, mas a música em geral – e nisso, mais notadamente, a música erudita. Conforme
também a Professora Zaira Turchi declarou na época, se ela fosse tocar piano, mal saberia o que fazer,
embora tenha dito que saberia fazer algo, ainda que pouco. Mal saber fazer algo posteriormente,
depois que deixou o estudo de piano, contudo, não afetou sua capacidade de apreciação da música.
Ou seja, o efeito principal, de educar à apreciação da arte de modo mais íntimo, efetivou-se.]
Chegamos ao ponto. Como foi dito, a resposta àquela segunda pergunta orientaria a resposta
à primeira, que é a pergunta que importa mais objetivamente. [Serei indireto.] Em 20 de julho de
1974, aquele que pode ser dado como o poeta máximo da língua portuguesa – com o risco de tudo de
excessivo que há nesse julgamento –, Carlos Drummond de Andrade, publicou no Jornal do Brasil,
diário do Rio de Janeiro, o artigo de opinião “A educação do ser poético”. [Vocês tiveram acesso a
esse artigo porque lhes foi enviado previamente ao início desta disciplina.] No artigo, Drummond diz
que se o ensino de poesia fosse recursivamente mantido na escola, esta arte, nas palavras do Poeta,
“como primeira visão direta das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica”,
poderia manter o senso criativo nas crianças e adolescentes. Antes de dizer isso, Drummond adverte
que não pretende cometer, em seu texto, o crime de incitar as escolas a formarem “milhões de
poetinhas”. Mais adiante, ele diz que mediante esse modo de ensino, a “vocação” (“aptidão”) poética
teria uma “franca largada”. Com isso se entenda que o principal do ensino de escrita criativa,
conforme nossa ementa, de poemas e contos, não enseja a formação de um sem-número de poetas e
contistas na escola. Embora seja um efeito colateral, não se deve perder de vista, no entanto, que tal
ensino é capaz de algo que guiar um caminho para quem desejar ou passar a desejar se tornar poeta
ou contista. [Eu diria ficcionista, mas o ensino de escrita criativa de novela e romance na escola
demandaria um tempo muito extenso, que se deve às peculiaridades desses gêneros, os quais
costumam gerar textos em uma maior extensão de escrita em relação a outros gêneros literários.
Contudo, não se vá pensar que um projeto escolar de orientação à escrita criativa de novela ou
romance é impossível, assim como não é impossível um sobre a escrita criativa do roteiro de filme
de longa-metragem.] Mesmo havendo a possibilidade daquele efeito colateral, o principal, conforme
já foi destacado, é o desenvolvimento da capacidade mais íntima de apreciação da arte literária. Antes
mesmo do conhecimento histórico, teórico, crítico e metodológico, importa que experimentar a escrita
da literatura promove uma primeira visão direta das coisas – e isso por adaptação daquilo que
Drummond declarou sobre a poesia. A de discutir-se – e será discutido – se alguém tem “vocação”
(“aptidão”) para qualquer arte que seja.
Para efeito de retomada, espera-se claro por que não é viável iniciar o ensino de escrita criativa
na escola a partir de um diagnóstico do tipo descrito. Por sua vez, convém inicialmente apresentar às
crianças e adolescentes uma proposta de escrita aberta ou livre. Depois, convém apresentar um
fechamento da abertura, e isso nos termos da orientação open-ended, que ainda será apresentada. Não
se vá com isso ignorar a presença da Teoria, da Crítica e da História da Literatura na escola. [Nem
me seria devido ignorar tais conhecimentos, afinal, minha formação é, sobretudo, em Teoria da
Literatura. Inclusive, meus estudos, minha pesquisa, assim como minha orientação têm como foco
um dos elementos mais fundamentais da Teoria da Literatura, que é a autoria, a qual é tópico desta
disciplina que lhes apresento. Considero apenas, à guisa de Drummond, que esses conhecimentos
especializados são posteriores à prática objetiva da criação literária. Inclusive, na medida em que se
estuda literatura paralelamente experimentando-a na prática, tenho sempre a expectativa de que
indagações de ordem teórica, crítica e histórica serão formuladas pelo alunado.] Sobre a prática como
trabalho da criatividade, fica a pergunta: como, pois, começar? Ora, escrevendo, quer dizer,
solicitando e orientando crianças e adolescentes a escrever. Isso é, de certo modo, como sugere o
título deste livro de Drummond de 1985: Amar se aprende amando. Entenda-se essa referência por
analogia: escrever se aprende escrevendo. No início desta conferência, dito o seguinte: “Como, nos
termos bakhtinianos, todo gênero tem memória e esta traz consigo o ‘tesouro técnico’ do gênero,
pensando-se seja em crianças, seja em adolescentes, quer dizer, em indivíduos da Educação Básica
do Brasil, convém, em uma proposta de escrita criativa, de antemão, deixar que mostrem o quanto
coletiva e individualmente acessam a memória e o ‘tesouro técnico’ de um gênero”. Isso foi dito
mediante uma ressalva, conforme a ementa da disciplina, sobre o poema e o conto. Neste estágio da
discussão, aquela declaração inicial incutia que crianças e adolescentes da Educação Básica, que,
conforme é de conhecimento, inclui o Ensino Fundamental (do primeiro ao nono ano e seus ciclos
correspondentes) e o Ensino Médio (da primeira à terceira série) têm experiência de leitura, por mais
parca que seja e por mais que o aprendizado da leitura e da escrita da língua esteja aquém do esperado
em cada ano e série.
Em ênfase do que já foi dito, agora de modo mais ampliado, o alunado, desde a primeira
infância, conhece cantigas, canções, estórias, lendas, mitos. Sobre isso, há todo um folclore
enciclopédico, telúrico, rural e urbano, e além disso, o alunado cresce assistindo a animações, seriados
de TV, filmes, como não raro, lê gibis. Ou seja, conhece a ficção. No mais, desde a primeira infância,
há certo acesso a livros infantis e depois juvenis. Sugiro que não se perca isso de vista. Tudo esse
conhecimento da criança e do adolescente é específica e parcialmente obra da criação verbal. Assim,
se se diz que é para escrever um poema, o alunado saberá mais ou menos o que fazer. O mesmo vale
para se se diz que escreva um conto, uma estória curta, uma “história inventada”, uma ficção. A
primeira observação disso dá em como a memória do gênero se revela, e por sua vez, com ela, o
“tesouro técnico” do gênero. Se se educa crianças, pelo menos até o sétimo ano, em geral, será
observado que elas conhecem poemas com versos mais ou menos de mesma extensão (em geral, em
torno das sete sílabas, que é o verso mais popular do português), estrofados em quadras e/ou quintetos
e com rimas, ainda que irregulares entre emparelhadas, alternadas (ou cruzadas) e interpoladas (ou
intercaladas). Ainda que a sentença “Era uma vez” não apareça, é possível se observar que as
narrativas poderiam ter essa sentença incutida logo no início. Essa sentença, no geral das orientações
de escrita criativa, equivale ao princípio de “E se” (What if), que ainda será apresentado. Será possível
observar também que haverá um narrador e pelo menos uma personagem. O poema escrito por
qualquer estudante, sobretudo se mais jovem, ainda criança, poderá não apresentar nenhuma metáfora
além das mais usais da língua, pois como bem advertiu Aristóteles, tanto na Retórica quanto na
Poética, a metáfora é uma figura pedestre, quer dizer, coloquial, e, conforme os estudos de Semântica,
não há comunicação linguística sem metáfora. “A mulher é uma flor”, “Minha mãe mora em meu
coração”, “Engoliu o mundo”, “Olha o alface”, “Fulano/a pulou o corguinho de ré”, “Não vou nem a
pau”, “Deu com os burros n’água”, “Ixi, deu merda”, “Rapadura é doce, mas não mole não” são
metáforas. O conto escrito por qualquer estudante, igualmente se mais jovem, poderá não ter um
conflito, e sem conflito não há trama, ainda que possa haver enredo (articulação de início,
desenvolvimento/andamento e fim ou desfecho). Incialmente, tanto faz. Tudo isso, tenha-se certeza,
acontecerá. Uma vez que acontecerá, significa que o alunado tem alguma memória do gênero, e logo,
ainda que de modo mínimo, conhecimento do “tesouro técnico”. Alguma experiência em relação à
existência também será observada. Há sempre um recorte da vida a aparecer. A experiência poderá
ter sinal de mais próxima do vivido ou mais próxima do vicário, da alteridade.
Convém adiantar, conforme mais adiante da disciplina será discutido de modo mais detido,
que nos termos bakhtinianos somente haverá autoria artística na medida em que pelo menos duas
consciências se apresentarem. Uma é mais imediata, porque diz respeito ao que da memória do gênero
e do “tesouro técnico” for mostrado. Essa implica uma formação estética e linguística, ainda que
mínima. É muito possível observá-la, além daquilo que for notado sobre a versificação, as rimas, a
figuração da linguagem, o enredamento de tempo, espaço, narrador e personagens, bem como por
escolha de tema – e, sim, isso implica que é conveniente, de início, deixar a escrita dada a temas livres
–, por seleção vocabular e estratégias de articulação sintática. A primeira, do par mínimo de
consciência, ainda conforme Bakhtin, revela-se também nos tons (de humor, ironia, sarcasmo,
exagero, atenuação, agressividade e outros), nas volições (gosto pelo cômico, pelo trágico, por
afetações diversas, pela surpresa, pelo suspense, pela sentimentalidade, pelo confessionalismo e
mais), nos valores (julgamentos negativos, positivos, neutros e parciais), nas bases ideológicas
(familiares, regionais, nacionais, sociais, políticas, econômicas, religiosas, místicas) e identitárias (de
classe, gênero, região ou nação, etnia e faixa etária). Todas essas observações apenas serão de ordem
artística no sentido do que for identificado sobre a memória e o “tesouro técnico” do gênero por uma
consciência que sabe deste e daquela (como resposta ao mundo) e por outra consciência, configurada
no texto (que responde à primeira consciência). Não se espere de imediato, porque esta é uma resposta
à primeira, encontrar a outra segunda consciência do par mínimo nas produções iniciais do alunado.
Até o âmbito da primeira, o que se verá será menos uma consciência consciente, e mais uma
consciência decorrente da formação, do coletivo, mas ainda não necessariamente cônscia disso. Nesse
sentido, as experiências mais visíveis serão a de memória de leitura e do vivido. Somente quando
houver uma experiência vicária configurada no texto, aquela de revelar uma alteridade, uma empatia
– não uma simpatia – com o que é alheio, ou de revelar algo difuso entre vivido e vicário, será
observada uma consciência própria de uma arquitetônica literária nos termos bakhtinianos. Isso
porque essa segunda consciência do par mínimo é uma consciência mais propriamente criada e faz
saber que a primeira é uma consciência consciente. Logo, até a segunda consciência não está
devidamente configurada, a primeira não deverá ser tratada como uma consciência consciente.
Convém, como docente, não se frustrar quando parte de seu alunado ao final de todas as
práticas de escrita criativa apresentadas não revelar na produção no mínimo duas consciências. Isso
não é simples de dar por resolvido. Além do mais, a produção da escrita criativa poderá não efetivar
afecção em certos indivíduos. Há indivíduos que produzirão de acordo com as propostas de escrita
criativa apresentadas, mas que não demonstrarão empenho de envolvimento de fato nisso. Não se vá,
mediante essa situação bastante possível, uma vez que acontecerá, desprezar quem não apresenta, ao
final de uma série de orientações, a afecção esperada pela arte literária. É bom tem em mente que o
principal de tudo é levar a um desenvolvimento da capacidade de apreciação da arte verbal, e somente
de modo colateral a uma provocação de que, senão todo mundo, quase todo mundo, pode, a sua
maneira, produzir literatura, como muita gente canta e dança sem ser artista. Note-se: não aprecia
menos o samba quem não sabe sambar. Pode-se performar desenho sem demonstrar criatividade nessa
arte. É preciso entender que performar uma arte não é necessariamente agir de maneira criativa. Nesse
caso, como já dito, não se pontua performance como criação artística, conforme é vigente e legítimo,
mas como desempenho de protocolos de uma arte. Como é produto da linguagem verbal, a literatura,
antes de ser produzida, precisa ser lida. Como é verificável, a cada oficina de escrita criativa,
inevitavelmente, para realizar as tarefas, o alunado terá de ler mais do que costumeiramente ler. E
levar o alunado a ler mais é de interesse mais devido do que levá-lo a escrever literatura. Afinal, quem
faz crítica literária necessariamente não produz literatura. Entenda-se também que a literatura é uma
arte peculiar, e isso não por ser uma arte melhor nem superior às demais, mas apenas porque ela é
aquela que em tudo se vale do material mais cotidianamente empregado na comunicação: a linguagem
verbal. Quem não entende uma língua, não tem como, para além do bailado ou do ruído dos sons,
entender nada da literatura oral da língua. Por sua vez, quem não sabe ler uma língua não tem como
apreciar nada da literatura escrita da língua. Mas é muito possível apreciar mediante uma volição-
emotiva – que é uma escolha decorrente de afecção – um balé russo sem nada saber de russo, bem
como apreciar um concerto para violino de Beethoven sem nada saber de alemão, e assim apreciar o
quadro “Impressão, nascer do sol”, de Claude Monet, sem nada saber de francês. Quer dizer, o código
da dança, da música e da pintura não são linguísticos a priori, embora sejam discursivamente
exprimíveis quando alguém dá expressão à apreciação (ou contemplação) daquilo que experimentou
com essas artes. Inclusive, na prática da apreciação geral, que não é de ordem crítica, é possível
contemplar como demonstrar prazer (fruição ou gosto) sobre aquele balé, aquele concerto e aquele
quadro sem ter conhecimento de dança, música nem pintura. Para isso, basta dar expressão às
sensações sentidas. Quiçá por isso, historicamente, o ensino artístico de dança, música e pintura pela
prática criativa seja mais eficaz, afinal, embora exista comunicação bailada, musical e pitoresca, é a
comunicação linguística (oral, escrita e de sinais) a mais vital nas relações humanas em geral. Isso
pode implicar um empecilho, pois muito bem diversos indivíduos podem se distanciar da literatura
porque têm outras relações com a linguagem verbal. Contudo, levando em conta que o principal é
desenvolver a capacidade de apreciação, espera-se que o empenho gere afecção principalmente pela
leitura de literatura – e isso, claro, porque estamos tratando de escrita criativa, não de oralidade
criativa, nem de vocalização criativa nem performática, que são outras atividades da estética verbal.
No mais, convém destacar que chamamos de escrita o conjunto de signos gráficos organizados para
representar as línguas orais e de sinais, muito embora, neste curso, estejamos sob a limitação das
línguas orais.
Vários tópicos até então já foram apresentados. Todos eles mediados pelo interesse de
conversar sobre quais as perspectivas mais gerais do ensino de escrita criativa na Educação Básica.
A título de revisão, foi recursivamente destacado que o principal interesse desse ensino é o
desenvolvimento da capacidade de apreciação de literatura (quanto à escrita, conforme ressalvado),
notadamente, no sentido fruitivo, e somente depois, no sentido crítico. A crítica é um conhecimento
fundamentado em analisar, interpretar e julgar informações e dados sobre alguma coisa (as artes, a
política, a economia, a sociedade, as religiões, as ideologias, os usos das linguagens, outros
conhecimentos/saberes). Somente se faz crítica se se conhece o objeto a ser analisado, interpretado e
julgado (comentado valorativamente). Para fazer-se crítica, comumente, é preciso paixão, profundo
interesse, e isso, por sua vez, envolve prévia paixão pelo objeto a ser criticado. Dado isso, que somente
com paixão à literatura poderá haver crítica, que é um conhecimento que a escola, ainda que de modo
básico, incute ao ensinar literatura. Ao participar do processo criativo, ao envolver-se com ele
escrevendo literatura, via de regra, há a perspectiva de que o alunado mostrará mais interesse, mais
paixão pelo objeto, afinal, não se ama aquilo que não se conhece. Por exemplo, se se ama a imagem
de alguém, suas feições e sua compleição física, ama-se tal imagem porque ela é conhecida, porque
alguém se avizinhou dela, inclusive chega-se, por amar, a criar uma imagem dessa imagem, uma
imagem mental, que na ausência da imagem mesma que se ama, ela é admirada por obra de
imaginação. Assim, se qualquer docente pretende fazer seu alunado escrever literatura, deveria fazer
isso de modo que o alunado tenha a possibilidade de amar a literatura, no sentido de não querer apenas
apreciá-la, mas produzi-la. Ainda que a maior parte do alunado não vá continuar produzindo
literatura, terá a possibilidade de amar essa arte, pois teve uma relação íntima com ela enquanto a
produzia. Nesse sentido, comumente, amamos mais alguém se podemos tocar nessa pessoa, se
conseguimos ter intimidade com ela. No caso da literatura, haveria, assim, pela prática da escrita
criativa, o amor de contemplar e o amor de tocar, que são dois modos de intimidade. Comumente, a
escola aposta em apenas uma dessas intimidades, a da contemplação. Contudo, a contemplação se
aprofunda quanto há toque, quando uma pele roça na outra pele, quando um corpo se une a outro,
porque assim, além da intensidade da contemplação, acontece a profundidade disso, devido à
penetração de um corpo no outro, à união, à comunhão dos corpos – é quando os dedos de um corpo
tateiam e penetram em outro corpo, que também repete tais gestos, e assim os dedos de um corpo e
outro se entrelaçam, terminando por desejarem-se e se enamorarem. Essa é a relação esperada pela
prática da escrita criativa. No entanto, quando a maioria do alunado, como é também esperado, deixa
de escrever literatura, diferentemente dessa relação individual de um corpo amante de outro, há
grande possibilidade da permanência da contemplação, isso que se equivale à apreciação, que
somente é possível porque o desejo restou como permanente. Há com isso de querer que, mesmo
quando a afecção mal seja de produzir literatura ou quando foi e deixou de ser, que se mantenha,
porque houve intimidade pela escrita criativa, de modo que arte verbal possa permanecer ali como
algo que se pode visitar sempre que for desejado, como quando, jamais com abuso, pode-se
reencontrar quem se ama depois da distância do convívio para tocar, deixando em todas as expressões
o prazer do reencontro, de modo visível e vívido, sem meios-termos. Isso como porque, como foi
dito, ama-se o que se conhece, e o amor, como se sabe, há na distância, na proximidade e na
interioridade. Para quem um dia teve uma frequente relação pela interioridade da literatura, que se dá
pela prática da escrita criativa, ainda que mediante a distância, senão a interioridade, a proximidade
será sempre possível. Isso é como, parafraseando a penúltima estrofe do poema “Pequena ode a uma
pétala seca ou a esperada ressurreição da rosa”, do livro Algumas partituras, de 2002, fosse possível
dizer que da distância à proximidade, da pétala seca de uma rosa, agora visitada, a “rosa se torne a
ser o que foi rosa outrora”.
Em tudo, nesta longa conferência de apresentação desta disciplina, além dos tópicos revisados
nos três parágrafos imediatamente anteriores, importou que se tenha acesso ao que em geral se espera
do ensino de escrita criativa na Educação Básica: a princípio, os conhecimentos teórico, crítico e
histórico é de quem ensina, e somente lateralmente, na medida em que o ensino da escrita criativa é
ministrado, o alunado vai tendo acesso a esses conhecimentos. Note-se que mesmo tendo esse acesso
lateralmente, tudo que for da ordem teórica, crítica e histórica da literatura aparecerá ao alunado de
modo parcial, pois, como se sabe, o ensino de literatura na escola não se equivale a esse ensino nos
cursos de Letras. Se quem ensina não toma consciência disso tudo, a possibilidade de conduzir, por
orientação, o alunado a ter consciência da literatura, de conviver com ela, da existência dela aí, na
vida, há muitíssimo longa data, do interesse em produzi-la para, sobretudo, atingir o interesse de
apreciá-la – até porque, quem é escritor/a principalmente é mais leitor/a em assiduidade –, será bem
remota. Não se deve esperar muito nem menos. Por exemplo, se se diz ao alunado: escreva um poema
ou escreva um conto, deve-se esperar que escreva e em seguida avaliar (analisar, interpretar e
julgar/comentar) o que foi escrito, observando se algo próximo, parecido, semelhante ou igual ao que
comumente são poemas ou contos terminou sendo produzido. Caberá a quem propôs, ou seja, a quem
ensina, na sequência, discutir. Convém, posteriormente, e isto não foi propriamente apresentado,
sugerir nova escrita, desde que a discussão de quem ensina a escrita criativa tenha deixado o mais
evidente possível o que normalmente acontece em poemas e contos aconteceu no que foi escrito para
que a próxima produção decorra de mais conhecimento adquirido. Na sequência, os eixos cognitivos
previstos pela Matriz de Referência do ENEM conforme o INEP podem se úteis, se compreendidos
em torno do ensino de escrita criativa. Para isso, convém tornar o princípio open-ended a mola-mestra
das propostas seguintes de escrita criativa. No entanto, por questão de cronologia própria à apreensão
do que aqui vem sendo discutido, somente serão apresentados modelos de oficinas acerca do poema
e do conto do princípio open-ended no último encontro desta disciplina. Mas convém um
adiantamento. O termo em inglês trata de algo simultaneamente aberto e fechado. Sobre isso, sim, o
Céu é o limite. Mas é para lá de bastante possível fazer restrições. O princípio de restrição que será
fundamentado diz respeito à teoria do pré-comprometimento racional de Jon Elster. Essa teoria será
associada à noção de contexto dos valores literários de Bakhtin. Funciona mais ou menos assim, a
título de exemplo sobre o poema: alguém que escrever sonetos, em específico, uma suíte, quer dizer,
um conjunto de sonetos mediante um assunto, um tema, um motivo ou uma forma – sim, não há
apenas a forma italiana e sua variante francesa de soneto. Essa aí é a restrição, o pré-
comprometimento racional, aquilo escolhido a ser feito e que, porque escolhido, deverá ser cumprido.
O contexto dos valores literários diz não somente o que pode ser um soneto e como pode ser, mas
também que é vigente, que ainda é – e muito – praticado, logo, que tem valor para quem aprecia
poesia, para o público, tanto o público contemplador fruitivo quanto o público contemplador crítico.
Coadunando isso à teoria de sistema literário de Antonio Candido, entende-se que, escrevendo
sonetos, porque isso foi decidido porque pretende escrevê-los mediante porque sonetos têm valor
vigente, tem-se consciência do papel autoral, do qual se participa. Escrevendo sonetos, mediante
aquele papel, quem os escreve integra o contexto literário, uma vez que há público possível de
apreciar sonetos. Por sua vez, se também se coadunar tudo isso à teoria do campo literário de Pierre
Bourdieu, além de tudo que diz a teoria de sistema, que inclui haver público, haverá circulação de
sonetos, âmbito editorial, e logo, livrarias ou outros espaços (como os digitais), que podem tornar os
sonetos acessíveis, bem como a teoria de Bourdieu diz, no sentido aqui discutido, que há mais gente
na atualidade publicando sonetos e que o alunado que escrever poemas em tal gênero será avaliado
em face dessa produção publicada. Essa descrição, é claro, é muito sumária, aliás, sintética, e portanto,
elementar, mas decerto serve.
A Competência de Área 5 pode também ser levada em conta quanto ao ensino de escrita
criativa na escola. Recobre-se o texto de caput da Competência de área 5: “Analisar, interpretar e
aplicar recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a
natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção
e recepção”. De imediato, vale também recobrar que análise e interpretação somente são possíveis
mediante tomada de consciência do conhecimento que se tem. Se duas vezes por semana alguém vai
até uma frutaria comprar banana prata e sempre faz escolha de certa quantidade de bananas mediante
certo aspecto da fruta, esse/a alguém reproduz um conhecimento. Reproduz se não pensa a respeito
do conhecimento. A quantidade recursivamente escolhida, sem dúvida, vem de uma prática de
consumo que o/a alguém tem, incluindo nisso que deve ter consigo uma prática de evitar desperdício,
não somente daquilo que compra, mas também de dinheiro. Já sobre o aspecto da fruta, deve ter um
gosto em particular, mas, sem dúvida, esse é mediado a algo que aprendeu a respeito do consumo de
bananas, que, provavelmente, de modo mais imediato, vem de sua casa familiar. Se apenas faz aquilo,
enfatize-se: reproduz-se um conhecimento adquirido. Se se pensa a respeito e se apresenta respostas,
deixa-se de reproduzir, e se passa a produzir conhecimento, pois tomou-se consciência, ainda que não
haja mudança propriamente do que se fazia, muito embora, ao tomar consciência, a tendência é que
se refine mais a escolha, tanto de quantidade quanto de aspecto sobre as bananas. Não vai o alunado
que nunca é levado a escrever poemas nem contos, ou que simplesmente fez isso aqui e ali mediante
uma proposta aleatória, ser capaz de analisar e interpretar o que fez de imediato nem mesmo em curto
prazo. Por isso interessa, de início, solicitar que somente escreva, e depois discutir sobre o que foi
escrito. Aplicar recursos expressivos da linguagem vai acontecer sempre. Mas fazer isso relacionando
(outros) textos com seus contextos, corresponde à aquisição do eixo cognitivo I, sobre Lidar com
linguagens, conforme a variação apresentada dos eixos. Isso mediante “a natureza, função,
organização, estrutura das manifestações” tem haver com o eixo II. Compreender e aplicar conceitos,
e com o eixo III. Operacionalizar problemas, conforme foi apresentado. Tudo isso realizado “de
acordo com as condições de produção e recepção” corresponde ao eixo IV. Pensar/refletir sobre o
que se fez, para, depois de um dado estado de trabalho com a escrita criativa, V. Pré-comprometer-se
racionalmente com uma proposta. Ou seja, uma vez que a variação dada sobre os eixos cognitivos da
Matriz pode funcionar a respeito da prática da escrita criativa, o fundamento geral da Competência
de Área 5 também pode funcionar. No entanto, o caput dessa Competência, sobre analisar e
interpretar, somente funciona depois das primeiras produções, diferentemente de aplicar, que é algo
que se faz conscientemente ou não. De todo modo, os eixos cognitivos previstos articulados ao
fundamento geral da Competência de Área 5 atendem, mediante uma variação, à didática exposta:
primeiro apresentar uma proposta de escrita criativa livre, ainda que mediada por um gênero (poema
ou conto) e somente depois discutir, para ampliar o conhecimento e apresentar nova proposta.
O verso metrificado e o verso livre são dois valores literários vigentes, quer dizer, ambos
convivem. Hoje em dia, somente certos indivíduos ou certos que se dedicam à poesia os tencionam.
No entanto, o verso metrificado passou, na cultura poética escrita, a ser cada vez menos e menos
praticado, diferentemente do verso livre. De sorte que, a anterior capacidade de notar a metrificação
de um poema na leitura ou na audiência cada vez mais foi se perdendo, e está quase que totalmente
perdida. Logo, aquilo que foi uma oposição ao verso metrificado, o verso livre, quer dizer, aquilo que
foi uma fuga à regra, tornou-se regra, porque se tornou tácito e abertamente aceito. Já não se julga
mais um poema pela métrica nem pela sua falta de métrica. Inclusive, a leitura e a audiência já nem
é afeita a isso. Por sua vez, na prosa de ficção, enquanto nas três décadas finais do século XIX era
comum encontrar-se contos, novelas e romances em primeira pessoa singular, com quem narra sendo
quem protagoniza a estória como personagem, via-se nisso uma figura inventada, em nada
convergente com a pessoa autoral. Já a partir dos anos 1990, cada vez mais vemos narrativas de ficção
escritas com quem narra sendo quem protagoniza a estória como personagem, em primeira pessoa
singular, no entanto, essa figura, em geral, assemelha-se de modo identitário à pessoa que escreveu a
narrativa. Isso, a sua maneira, alterou os “procedimentos de construção do texto literário”, variou os
valores, inventou novas tradições, porque relaciona o presente ao passado mais próximo. [Em minhas
oficinas de poesia, por exemplo, costumo dizer que nada é mais esperado, salvo raríssima exceção,
que todo mundo comece a escrever em versos livres, coisa quase impossível de levar em conta para
a quase totalidade de poetas iniciantes até pelo menos o trânsito entre as décadas de 1940 e 1950.
Nesse sentido, que diz respeito objetivo à memória do gênero e a seu “tesouro técnico”, quiçá, ou
certamente, a Habilidade 16 da Competência de Área 5 é a mais eficaz, sem excluir que seja mediada
pela Habilidade 15 conforme as ressalvas apresentadas, para uma orientação à escrita criativa na
escola.
No final das contas, foi feito um longo exercício forçoso de discussão, devido àquele
documento-chave a respeito do que se espera do alunado ao final da Educação Básica a respeito do
conhecimento de literatura. Tal exercício forçoso foi feito no sentido de mostrar que, mais para mal
do que para bem, pelo menos em termos de escrita criativa, de pouco a pouquíssimo a quase nada, os
eixos cognitivos e aquela Competência e suas Habilidades podem servir ao ensino de escrita criativa,
uma vez que se exigiu variação e adaptação. Claro que de pouco a pouquíssimo a quase nada também
é servir, senão seriam desnecessárias a variação e a adaptação apresentadas. [Particularmente, até
porque eu, comigo mesmo, somente posso ser particular, não arriscaria meu pescoço promovendo
oficinas de imitação de estilo para discentes da Educação Básica.] Entenda-se: nós estamos na
contemporaneidade, e mais do que nós, mais estão na contemporaneidade todo o alunado da Educação
Básica, e isso pelo simples fato de ser mais jovem, bem mais jovem. Isso não implica ignorar o
passado e muito menos as tradições. Já foi dito: as tradições mais vigentes são aquelas decorrentes
do passado mais próximo do presente. Além disso tudo, o longo exercício forçoso também foi útil
para observar-se que as políticas de ensino de literatura na Educação Básica não preveem o ensino de
escrita criativa, caso contrário, nenhuma ou quase nenhuma variação e adaptação seria necessária.
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