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ÉTICA E ESTÉTICA SOBRE O ENSINO DE ESCRITA CRIATIVA

Jamesson Buarque

ADVERTÊNCIA

A discussão que apresento, embora sem citar diretamente, decorre de considerar a ética
a respeito da produção literária a partir da entrevista publicada como “Essa estranha
instituição chamada literatura” (“This Strange Institution Called Literature”), concedida
por Jacques Derrida a Derek Attridge em abril de 1989 e publicada por Attridge no livro
Acts of Literature, cujas perguntas foram em inglês e as respostas em francês, e foi
traduzida no Brasil por Marileide Dias Esqueda. Minha preocupação com o texto a
seguir é levar você à reflexão sobre o que fazer, como lidar, com textos decorrentes de
seu ensino de escrita criativa que se apresentar a você como algo que lhe provoque um
problema moral e um problema estético.

Os poemas, as narrativas ficcionais em prosa, os textos teatrais e roteiros, ou


seja, tudo que em geral se produz via escrita criativa literária ou artística, uma vez
realizado por seu alunado, terá valor muito mais positivo do que negativo. Com isso,
você poderá, de antemão, enfrentar mais um problema moral do que estético. Isso é bem
intrigante. Saiba que você jamais se depara com uma produção literária qualquer, de
autor/a de renome, canônico/a ou hegemônico/a, inclusive, com produção literária
estudantil que não seja controversa a algo, ainda que não seja polêmica.

Se eu escrever uma narrativa ficcional sobre um homem neopentecostal como


freelancer fazendo serviços domésticos de encanamento, eletricidade, pintura e outros,
pobre e que decide economizar se valendo da poupança, buscando viver mais no
mínimo do que vive, saindo de casa apenas para trabalhar, fazer compras e ir à igreja,
que em dado momento recebe uma orientação de um irmão de igreja sobre como fazer
seu dinheiro render mais, até tornar-se um especulador de sucesso, enricar e em seguida
abrir uma agência de terceirização de serviços de encanamento, eletricidade, pintura e
outros, na qual, abaixo do letreiro, escreve o dizer “Presente de Deus”, que também usa
em um adesivo no vidro traseiro do carro, em relação a quê isso será controverso?

Se você advertir as controvérsias possíveis àquela narrativa ficcional suposta da


qual descrevi o argumento, observe, advertir as controvérsias, não a narrativa, você
provavelmente não advertiria a controvérsia gerada sobre o romance A última tentação
de Cristo, de Nikos Kazantzákis (Ο τελευταίος πειρασμός é de 1951 e foi traduzido no
Brasil em 1989 por Waldea Barcellos e Rose Nanie Pizzinga). Digo considerando que,
das possíveis controvérsias àquela suposta narrativa, uma poderia ser que a empresa
daquela suposta personagem, bem como seu enriquecimento, não são presentes de
Deus, são frutos de investimento monetário e de especulação financeira. Se não conhece
o romance de Kazantzákis, descrevo-o ligeiramente: trata-se de uma narrativa em que
Jesus (personagem protagonista) passa por, conforme o discurso do romance, a maior
tentação que um ser divino poderia sofrer, a de ser uma pessoa comum – caso até
comum em algumas tradições religiosas e algumas mitologias – de exemplo: Buda é
tentado a ser uma pessoa comum, e assim também Bai She Zhuan, a serpente ou cobra
branca da mitologia chinesa. Em A última tentação de Cristo, a personagem Jesus é um
carpinteiro odiado pelo povo judeu porque fabricava cruz para o Império Romano, que
se valia da cruz como instrumento de tortura contra judeus condenados à morte – apenas
homens, pois mulheres eram apedrejadas. Na narrativa, Jesus diz ouvir vozes o
chamando para cumprir um destino messiânico do qual ele se mostra temeroso. As
pessoas que com ele conviviam achavam que era louco – no romance, é claro. Em dado
momento, Jesus vai para o deserto peregrinar e se tornar monge. Depois de purificar-se
no deserto, inicia sua vida messiânica e logo faz de um homem seu primeiro e mais
amado discípulo, Judas, que era zelote (defensor da palavra de Deus) do tipo militante
religioso radical. Jesus, no romance, confia tanto em Judas que encarrega este da tarefa
de traí-lo. Judas teme a tarefa, mas era zelote e confiava que Jesus era o verdadeiro
messias. Termina cumprindo a tarefa. Nisso, Jesus é crucificado. Na cruz, recorda-se
das tentações que sofreu no deserto pelo Diabo e o quanto penou para resistir. Em dado
momento, aparece um anjo e diz a Jesus que ele não precisava sofrer tanto e poderia sair
dali. Jesus sai da cruz e vai viver com Maria Madalena. Com um tempo, Maria
Madalena morre, depois disso, Jesus se casa com Marta e forma uma família. Um dia,
Jesus encontra Paulo pregando sobre o sacrifício messiânico. Jesus o adverte e o
desmente, mas Paulo diz que mesmo assim continuará com sua pregação. Quando Jesus
está no final da vida, os discípulos vão visitá-lo. Na visita, terminam o recriminando por
não ter consumado a Paixão. Jesus diz que foi autorizado por um anjo a interromper a
Paixão. Como na conversa os discípulos fazem Jesus reconhecer que o anjo era o Diabo
disfarçado, Jesus retornar a Calvário e cumpre a Paixão. Esse romance foi condenado
pela Igreja Católica Ortodoxa Grega, que terminou excomungando Kazantzákis em
1955. A Igreja Católica Apostólica Romana colocou A última tentação de Cristo no
Index Librorum Prohibitorum. Kazantzákis, no entanto, quer dizer, à parte de sua
condenação pelo catolicismo, foi nomeado a receber o Prêmio Nobel de Literatura
durante nove vezes, segundo os arquivos da Academia Sueca.

Observou? Se você advertiu a controvérsia de a suposta personagem


neopentecostal ter enriquecido e aberto uma empresa não como presentes de Deus, mas
como frutos de investimento e de especulação, dizendo que, sim, aquilo foram presentes
de Deus, logo, você provavelmente não advertiria a controvérsia da Igreja Católica
Ortodoxa Grega nem da Igreja Católica Apostólica Romana sobre o romance de
Kazantzákis, dizendo que sim, ou seja, concordando com o catolicismo, em defesa de
que aquele romancista grego não deveria ter posto Jesus sob as condições da narrativa
de A última tentação de Cristo, embora o Jesus desse romance não seja a personalidade
histórica que foi nem o messias do cristianismo, mas apenas uma personagem de ficção.
Se você adverte as controvérsias possíveis àquela suposta narrativa ficcional cujo
argumento descrevi e provavelmente não adverte as controvérsias sobre a Última
tentação de Cristo, é possível que advirta as controvérsias sobre o romance Versos
satânicos, de Salman Rushdie (The Satanic Verses é de 1989 e foi traduzido no Brasil
por Misael H. Dursan em 1998). Nesse livro, como, mesmo sem ser nomeado, o aiatolá
Khomeini aparece, como uma figuração, aparece nos sonhos da personagem Gibreel –
que, no romance, depois de vitimado entre tantas personagens por uma atentado a
bomba em uma avião, transforma-se em anjo e sonha em conhecer Mahound (nome
pejorativo para Maomé). Em decorrência disso, na Inglaterra, onde vivia radicado,
Rushdie sofre vários manifestos de mulçumanos, que queimam Versos satânicos em
praças públicas. No mesmo ano de lançamento do livro, o aiatolá Khomeini decreta a
sentença de morte para Rushdie. Na sequência, líderes religiosos mulçumanos oferecem
seis milhões de dólares para quem matasse Rushdie. Por que provavelmente você
advertiria essa controvérsia caso não advertisse aquelas? Porque você tem parte com o
cristianismo, logo, como é comum, pessoas cristãs julgam que o islamismo é mau.
Nesse caso, ao vir o aiatolá Khomeini e mulçumanos agindo contra Rushdie você
poderia achar isso um absurdo, e, quiçá, até dizer que Versos satânicos é apenas um
romance, mas ao vir o catolicismo agindo contra Kazantzákis, você poderia achar isso
certo, afinal, como pessoa cristão, você diria que não se deve fazer ficção com Jesus.

Você deve ter notado que as controvérsias possíveis e as que declarei são de
ordem política e religiosa, ordens que incluem a ordem econômica – vejam que a
personagem que supus levava uma vida de subemprego, e decerto pelo discurso de
prosperidade comum ao neopentecostalismo, empenhou-se em economizar até que,
orientado por um irmão de igreja, empenhou-se em enricar. Ao fazer isso, tanto passou
a contribuir com a especulação financeira, que decorre da exploração pelo trabalho,
quando passou a constituir um negócio para manter pessoas como ele vivia, em
subemprego, que também significa viver sob a exploração pelo trabalho. Das ordens
religiosas que indiquei – a Neopentecostal, a Católica e a Islâmica –, foi sobre a
primeira que mais a ordem econômica se tornou explícita em meus comentários – mas
não fiz tais comentários de má fé, eu os fiz porque a relação entre fé e prosperidade
econômica é abertamente pregada pelo neopentecostalismo, no entanto, a prosperidade
econômica somente existe via investimento monetário e especulação financeira, e esta e
aquele somente funcionam pela exploração do trabalho, pois ninguém enrica se não
houver manutenção da pobreza, nesse sentido, a questão do capitalismo é quem serão as
pessoas ricas e quem serão as pobres, como se essas escolhessem a pobreza ou desta não
saíssem porque não querem.

Digo tudo isso para que você tenha em mente que os textos produzidos via
escrita criativa por seu alunado poderá trazer de modo mais, mediano ou menos
explícito princípios e fundamentos de ordens que são muitíssimo polêmicas, como a
ordem política, a religiosa e a econômica. Relativas a essas, poderá trazer outras: sobre
o abordo, a transexualidade, o trabalho escravo, a violência contra a mulher, a revolução
armada e n mais. Inclusive, ainda não de modo polêmico, algum/a discente pode
apresentar uma perspectiva sobre o amor conjugal que você discorda: o amor santo, o
amor livre, o poliamor, o amor para sempre, o amor enquanto se ama e outras possíveis.
Conforme disse ao abrir este texto: questões morais decorrentes de textos artísticos
podem ser ou não ser polêmicas, mas não deixam de ser controversas.
Minha questão: observe que objetivamente, minha suposta personagem não
parece fazer mal a ninguém, embora atenda ao princípio liberal da superação individual
das dificuldades, e não da superação coletiva, não rouba, não mata, não estupra etc. Há
no comportamento de minha suposta personagem aspectos que são dados como bons,
porque ilibados, pois não bebe, não fuma, não farra – decerto, não transa, e quando
fosse transar, se eu escrevesse a narrativa de fato, provavelmente transaria somente
depois e no casamento. Contudo, minha suposta personagem se torna um explorador do
trabalho para o enriquecimento. Será condenada por isso: sim e não. Eu condeno. Mas
há quem não, pois enricar é muito bem visto, à parte de que a riqueza sempre gere e
mantenha pobreza. Gente rica, inclusive, para manter sua conduta ilibada, “faz sua
parte”: realiza caridade. No entanto, caridade não leva à superação, pois caridade é
apenas assistencialismo. Se você discordar de mim sobre minha suposta personagem,
provavelmente você julgue devida a condenação do catolicismo ao romance A última
tentação de Cristo, de Kazantzákis. Contudo, enfatizo, você poderá julgar um absurdo o
islamismo condenar Rushdie à morte, e até pode dizer que este autor está certo,
afirmando que a gente islâmica é terrorista, logo, é do mal.

Isso tudo que venho dizendo pode dar em uma sinuca de bico. Eu, por exemplo,
jamais levo nem levarei em conta o chamado “amor santo” (expressão vinda de
“namoro santo”), contudo, nada tenho a ver com quem vive desse modo, ou seja, não
condeno nem vejo por que condenar alguém que vive o “amor santo”. No entanto, quem
se rege pelo “amor santo” não vê gente como eu apenas como alguém com quem nada
tem a ver consigo, pois tende a condenar – diz, comumente, que gente como eu é
pecadora, porque considera outros modos de amor como pecado. Por sua vez, há quem
viva segundo o “poliamor” e mal julga a monogamia, mas também há quem viva
segundo o “poliamor” e se ponha como quem nada tem a ver com a monogamia, quer
dizer, não mal julga essa. Comumente, quem vive segundo o “poliamor” não condena o
“amor livre”, e quem vive conforme este, embora normalmente não condene, ignora o
“amor para sempre”. Quem, como eu, vive segundo o “amor enquanto se ama”, em
geral, não condena nenhum amor, no entanto, como eu disse, sofre a condenação de
quem vive segundo o “amor santo” – pelo menos em geral. Isso tudo pode aparecer,
como eu disse, de algum modo, em algum ou alguns textos de seu alunado. Também
como eu disse, tudo que aparecer, em alguma medida, será controverso, ainda que não
gere polêmica. Uma criança, em um poema, pode declarar ódio aos gatos porque tem
alergia, pois devido ao mal-estar que sofre, porque é criança, pode considerar que a
culpa da alergia é dos gatos, e logo, pode dizer que esses são do mal. Nesse caso, há
uma criança a orientar, não se trata de uma polêmica, mas não deixa de tratar-se de uma
controvérsia. Minha questão para você é como fará se o que lhe for controverso colocar
você diante de um problema moral, incluindo problemas ideológicos.

Em face disso, porque todo texto é conjuntamente único, embora não pareça, se
você se encontrar diante de um problema moral (ou ideológico), saiba, a respeito de
escrita criativa literária ou artística, você também se encontra diante de um problema
estético. Isso porque aquilo no texto que põe você diante de um problema moral está
esteticamente estruturado mediante elementos comumente integrantes de um ou de mais
de um dos gêneros literários. Em poesia, por exemplo, os elementos de ritmo e de
harmonia não têm princípio funcional, de “servir para”, não respondem a nenhum
pragmatismo, sonorizam os poemas e causam efeito de atenção sensível ao texto. Por
sua vez, esse efeito leva a outra atenção: sobre a figuração que organiza o sentido
produzido em poesia. Esse figuração resulta de um processo decorrente de identificação,
produção e criação de semelhança. A metáfora é exemplar disso, pois faz quem lê um
poema perceber uma semelhança ainda não percebida, ou até mesmo pode modificar a
percepção típica sob um semelhança. No livro Desenhos de sol, do poeta goiano Edmar
Guimarães, publicado em 2002, há um poema chamado “Axioma”, no qual se diz: “O
fogo recusa corpo” – isso é fazer perceber uma semelhança não percebida
anteriormente. Em “Mundo pequeno”, poema do livro O livro das ignorãças, de Manoel
de Barros, publicado em 2000, diz-se: “Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os/
besouros pensam que estão no incêndio” – isso é modificar uma percepção típica.
Embora não por polêmica, mas, sim, por controvérsia, alguém por viés muitíssimo
racionalista, por rigor lógico-denotativo, poderá dizer que fogo não recusa corpo, pois
fogo não tem vontade para recusar nada e tem corpo, embora informe, e que besouros
não pensam, muito menos que, sendo naturais, consideram que o arrebol é um incêndio.
Lendo tais poemas, você poderá notar que, de imediato, as palavras escolhidas por
ambos os poetas, o fraseamento dado as palavras, assim como o ritmo decorrente da
relação silábica e a sonoridade decorrente das palavras escolhidas não têm relação
objetiva com aquilo que se diz em tais poemas, mas isso somente de imediato, pois nada
em poemas existe à parte de nada no mesmo texto, tudo existe estruturado. Por isso eu
disse que um problema moral, bem como um ideológico, também é estético.
Nos três versos inicias do poema “Eu era gases puros”, de Stela do Patrocínio,
diz-se: “eu era gases puros, ar, espaço vazio, tempo/ eu era ar, espaço vazio, tempo/ e
gases puros, assim, ó espaço vazio, ó”. Observe: há um conjunto par de tônicas com ga-
pu-, pa-, -zi-, tem-, ar, -pa-, -zi-, tem-, ga-, pu-, -ssim, ó, -pa, -zi-, ó. São dezesseis
tônicas produzindo um ritmo binário. Por sua vez, as repetições de gases puros, espaço
vazio e tempo produzem harmonia. Nem o ritmo nem a harmonia são elementos
objetivos ao sentido produzido pelos versos, quer dizer, não há sentido por há ritmo e
harmonia, até porque, seria possível lista uma séria de sílabas aleatórias de modo
ritmado e harmônico. Contudo, a seleção das palavras e o fraseamento sobre elas que
geram o sentido não deixam de está estruturados sob o ritmo e a harmonia. Mas eu
falaria da metáfora como figuração que resulta do processo de identificação, produção e
criação de semelhança. Nisso, observe que aquelas repetições semelham dizer que o eu
do poema declara com insistência que era nada, ninguém. A partir daqueles versos de
Stela do Patrocínio, passa-se, agora, algo como pela primeira vez, a perceber-se que
aquilo que aqueles versos dizem é como dizer ser nada, ninguém. Se você ler o poema
todo – cujo título não é obra da poeta, mas da escritora Viviane Mosé, que organizou a
obra de Patrocínio, obra que, originalmente, era oral, logo, Mosé também transcreveu os
poemas –, perceberá que toda a figuração reforça o discurso de quem diz não ter
condições de pensar, de servir para algo na vida, o discurso de quem diz que equivale a
ser nada, ninguém. Como isso pode ser adverso? Quando alguém considerar que é um
discurso de humildade e outrem se contrapor dizendo que não, para dizer que é um
discurso de sabedoria por autoconhecimento. No entanto, não há nessa controvérsia
nenhuma polêmica. O máximo a que se poderia levar qualquer controvérsia, não
somente sobre aquele poema, mas sobre o conjunto da poesia de Patrocínio, seria a
respeito de como sendo esquizofrênica – viveu internada por trinta anos –, poderia fazer
a poesia que fez. No entanto, do que se sabe, a esquizofrenia em nada impede a
realização da criação poética. Para saber mais sobre Stela do Patrocínio, incluindo
buscar mais referências, leia o artigo “Stela do Patrocínio e a poética da clausura”, de
Tereza Virginia de Almeida e Letícia de Bonfim, disponível na plataforma Scielo.

Em tudo, importa que entenda que você vai se deparar com controvérsias. Se em
decorrência disso você se deparar com um problema moral, por sua vez, com o exemplo
que dei a partir de Edmar Guimarães, Manoel de Barros e Stela do Patrocínio, você
também se deparará com um problema estético, pois embora a forma do texto não seja
objetiva ao sentido produzido nem ao discurso (ponto ou conjunto de pontos de vista),
tanto o sentido quanto o discurso estão estruturados sob a forma do texto. Se você tentar
resolver o problema moral com o qual se deparar solicitando, ou pior, exigindo que o/a
estudante mude o texto, ou que altere, ressalve, atenue, você terminará fazendo com o/a
estudante modifique a própria forma estética do texto. Há nisso outra sinuca de bico.
Acontece que se você tiver um problema moral com dado texto, e perceber que o/a
estudante poderia empreender mais organicidade entre os elementos estéticos, isso, a
princípio, poderá parecer não afetar o discurso, mas como sem dúvida afetará o sentido,
pelo menos parcialmente, logo, sim, afetará o discurso, e nisso, mudará o/s ponto/s de
vista do/a estudante. Contudo, afetar o sentido, incluindo o discurso, no âmbito estético,
pode ser bom, mas isso é também controverso, pois somente é bom se o/a estudante, por
parte de sua argumentação, aceitar a alteração – e veja: argumentação, não emulação.

A discussão sobre ética tem suas delicadezas, afinal, quem explora a classe
trabalhadora tem consigo, e bem resolvida, a ética da exploração pelo trabalho. Quem
tortura tem consigo, também bem resolvida, a ética do flagelo ou da mortificação. Quem
frequentemente humilha alguém sob sua chefia tem consigo, igualmente bem resolvida,
a ética do opróbrio ou do desrespeito. Quem rejeita o contraditório valendo-se de
xingamento em vez de argumento, tem consigo, idem, a ética da difamação ou da
injúria. Em muitos casos, se você observar bem, a ética religiosa leva os indivíduos à
condenação de quem não faz parte de sua crença, de modo que a condenação leva à não
aceitação e, logo, à repulsa, comumente, com atitudes da ordem do tratamento
pejorativo. Misóginos têm consigo uma ética que fazem com que tenham por resolvido
que as mulheres são inferiores, logo, devem ser submissas, e isso a ponto de julgarem
que têm o direito de violentá-las moral, psicológica, fisicamente e sexualmente, e o
mesmo vale para homofóbicos e transfóbicos. À guisa disso tudo, que pode ser chamado
de “ética do mal”, inclua o racismo e a xenofobia. A respeito disso, inclui-se o
eudemonismo, que implica a busca pela felicidade ou pelo bem-estar como finalidade
última das pessoas, mas se busco como felicidade enricar, sem dúvida causarei e
manterei a pobreza, que sua vez implica em levar tristeza para outras pessoas, e isso se
para mim enricar é ser feliz.

Em Santo Agostinho, Immanuel Kant e Paul Ricoeur (por si e recorrendo


àqueles), apesar de pensarem diferentemente, a “ética do mal” tem relação com o livre
arbítrio, o desejo e a vontade a respeito do ato de afastamento de ser para não ser,
relativo ao pecado, ao erro e à culpa. Ora, observe: a felicidade última de quem explora
pelo trabalho pode ser manter a riqueza, que somente é mantida mediante a manutenção
da pobreza. Culpar quem é pobre pela pobreza, por exemplo, é típico de quem age
conforme essa ética, pois quem faz isso não observa e não quer observar que a pobreza
resulta da riqueza, e esta somente se sustenta mediante a exploração daquela. Culpar
alguém que não teve ou teve pouco acesso à educação formal, por limitação social, de
cometer “erros de linguagem” mediante o que é dado como “certo na linguagem”, é
exigir um conhecimento de quem não teve ou pouco teve acesso ao conhecimento
exigido como padrão, como “bom”, “certo”. Se na escola onde você trabalha há um
cachorro e você vê uma das crianças batendo nesse cachorro, aproxima-se da criança,
repreende o ato e a coloca de castigo apenas dizendo que aquilo é errado, em paralelo,
você age mediante a brutalidade ética que levou àquela criança – provavelmente, devido
ao contexto familiar ou comunitário – àquele ato. No entanto, para você, parece “certo”,
sem mais explicações, apenas repreender, dizer que aquilo é “errado” e, por isso,
castigar a criança. Nesse exemplo, tudo que você fez como “certo” para corrigir o “erro”
foi brutal, assim como foi brutal o que a criança fez, porque ela, provavelmente,
considerou “certo”, como eu disse, quiçá, devido ao contexto familiar ou comunitário.
Nesse sentido, quero dizer, que se você, por exemplo, não aceitar um texto criativo de
uma criança ou adolescente porque o discurso é ateu e com isso passa uma lição da
“verdade” cristã à criança, você simplesmente age por um dos vieses da “ética do mal”,
e a recíproca é verdadeira. Se alguém age por um desses atos da “ética do mal”, não é
pelo ateísmo nem por crença propriamente. Não é simples.

A título de referências, a concepção de “ética do mal” é de Ricoeur, e se


encontra em O conflito das interpretações: ensaios de Hermenêutica, publicado em
1969 (na tradução de Hilton Japiassu de 1978 para Le conflit des interprétations: essais
d’Herméneutique). A referência a Santo Agostinho é de De Moribus Ecclesiæ et de
Moribus Manichæorum (Sobre a moral eclesiástica e a moral maniqueísta), de 426.
Sobre Kant, verifique a concepção de “mal radical” em A religião nos limites da simples
razão, publicado em 1793 (na tradução de Artur Morão para Die Religion innerhalb der
Grenzen der bloßen Vernunft). O princípio de eudemonismo, retomado por Agostinho,
Kant e Ricoeur, vem de Ética a Nicômaco, de Aristóteles, na tradução de Mário da
Gama Kury para Ἠθικὰ Νικομάχεια. Além disso, meus comentários sobre “ética do
mal” se pautam pela concepção de ética de Karl Marx e Friedrich Engels, que pode ser
entendido em dois planos que se comunicam. Um a respeito das relações dominantes de
produção do capitalismo como sistema de exploração pelo trabalho. Esse plano implica
valores de mundo indesejáveis, à guisa da “ética do mal”, como heterônima,
desrespeito, exploração, relações de mando e hierarquia, egoísmo, competição,
alienação, embrutecimento e coisificação das pessoas. O outro plano da ética diz
respeito à luta de classes e se coloca contra o modo de produção capitalista, quanto a
valores de mundo desejáveis como a não exploração, relações de igualdade entre as
pessoas, altruísmo, autonomia, respeito, consciência, democracia e consideração entre
os humanos. Sobre isso, indico A origem da família, da propriedade privada e do
Estado, de Engels, publicado em 1884 (na tradução de Leandro Konder para Der
Ursprung der Familie, des Privateigentums und des Staates) e Manuscritos econômico-
filosóficos, de Marx, escritos em 1844 (na tradução de Jesus Ranieri para
Die Ökonomisch-philosophischen Manuskripte aus dem Jahre).

Por que trazer a discussão sobre ética a respeito do ensino de escrita criativa?
Porque é historicamente comum à literatura algo que o direito de tudo dizer. A bem da
verdade, isso é historicamente comum às artes em geral. No exemplo sobre
Kazantzákis, o catolicismo não empenhou um segundo de esforço interpretativo para
considerar que Kazantzákis foi muitíssimo cristão, até porque era católico tão
praticamente quanto convicto, por ter escrito uma ficção em que sua personagem que
representa – note, representa, não é – Jesus enfrentou a tentação de ser uma pessoa
comum, sendo, na verdade, um ser divino – e o romance defende que Jesus é divino,
pois o autor era católico, como eu disse. Inclusive, a falta de esforço interpretativo da
Igreja Católica Ortodoxa e da Igreja Católica Apostólica Romana foi tal que sequer
levaram em conta que ao final de A última tentação de Cristo a personagem Jesus
termina cumprindo a Paixão, e isso porque deu ouvidos a quem ensinou, aos apóstolos,
como é conveniente a quem ensina dar ouvidos ao alunado. A personagem Jesus de
Kazantzákis quis ser como as pessoas que tanto amava, quis ter humanidade plena, em
vez de humanidade mediada por divindade. Contudo, o catolicismo não aceitou ler um
Jesus que foi enganado pelo Diabo disfarçado de anjo durante a crucificação. Logo, o
catolicismo não considerou que A última tentação de Cristo não é um evangelho
propriamente e muito menos uma biografia de Jesus, pois é uma ficção. De resto, o
catolicismo deu o recado de que não aceita ficção sobre o que lhe é sagrado, contudo, o
catolicismo apoiou Salman Rushdie, auxiliou a Inglaterra a proteger o autor de Versos
satânicos, afinal, este romance confronta o islamismo, não o cristianismo. Para onde foi
a ética? Para quem tem uma concepção de bem que lhe diz respeito, concepção que,
para ser mantida, deve ser defendida inclusive causando o mal. É simples? Não.

Não vá você, por força de tudo que venho dizendo, falar para sua turma que não
aceita textos polêmicos. Se você não quer lidar com problema moral, que, em ensino de
escrita criativa, dá em problema estético, bem como em geral dá em problema
ideológico, é melhor deixar de ensinar língua e literatura na escola, quer dizer, não
somente deixar de ensinar escrita criativa. Em sala, se quem ensina se pautar jamais por
nada da “ética do mal”, diante de uma contrariedade, de uma controvérsia, não somente
poderá mediar as partes, mas poderá tomar a sua parte, pois o ganho será resultante dos
argumentos. Diante de argumentos que se contradizem, que se embatem, que são
controversos e, sobretudo, que geram polêmica, quem pensa algo poderá pensar
novamente, incluindo, você. E entenda: se você compreende diversos valores de mundo
como integrantes da “ética do mal”, pode, sim, combatê-los, contudo, por
argumentação, e não somente dizendo que isso ou aquilo é “errado”, dizendo “não é
assim” e ponto final, pois você bem sabe que sua posição de autoridade em sala de aula,
diante dessa atitude, levará o alunado a, cinicamente, escrever sobre aquilo que você
quer ler, pois você detém o poder da aprovação e da reprovação, e o alunado sabe disso.
Ao combater a “ética do mal” sem argumentar, sem espaço de debate, de escuta, você
age conforme a “ética do mal”, pois mutila a subjetividade e emprega o silenciamento.

Diante de textos que façam apologia à exploração pelo trabalho, à alienação pela
manutenção do domínio, à submissão, à violência (moral, psíquica, sexual e/ou física), à
misoginia, à homo e à transfobia, ao racismo e à xenofobia – além de outras formas
possíveis de “ética do mal”, como a propagação proposital de informações e de notícias
falsas –, prefiro provocar a reflexão do alunado, debater, discutir, mesmo que não haja
consenso ao final. De exemplo, experimente levar para sala de aula o conto “Maria”, de
Conceição Evaristo, publicado em 2014 na coletânea de contos Olhos d’água. Nesse
conto, Maria – personagem protagonista homônima ao conto – é uma trabalhadora
doméstica preta e pobre que, depois de sair da casa onde trabalhava, toma um ônibus
para casa. No ônibus, ela encontra o pai do filho. Ele conversa ligeiramente com ela e
manda um beijo para o filho. Em seguida, ele e outros homens assaltam o ônibus. Nisso,
fogem. Depois de o pai do filho de Maria e os demais assaltantes fugirem, parte de
quem está no ônibus acusa Maria de cumplicidade. Outra parte, sem fazer o mínimo
enfrentamento com a parte acusadora, desce do ônibus. O motorista entra em defesa de
Maria, dizendo que é uma trabalhadora e que costuma tomar aquele ônibus. A defesa é
vã. A parte acusadora termina linchando Maria, e o desfecho do conto – leia – é tão
terrível quanto assustador. Agora observe: durante o primeiro semestre de 2014, em
Guarujá, São Paulo, houve desaparecimento de algumas crianças. Nisso, aconteceu que
diante da denúncia de um homem e de duas mulheres, policias da 21a DP fizeram um
retrato falado de uma mulher suspeita de ser a sequestradora. De posse do retrato falado,
um homem fez um página no Facebook o divulgando, com acréscimo de que a
sequestradora fazia rituais de magia negra com as crianças sequestradas. Não demorou,
várias pessoas tomaram a mulher do retrato falado por Fabiane Maria de Jesus, mãe,
esposa e trabalhadora preta. Nisso, sem procurar se inteirar de nada, quase duas
centenas de habitantes do Guarujá foram linchar Fabiane de Jesus. Algumas pessoas
pediram que o linchamento parasse enquanto acontecia, mas sem nada mais fazer a não
ser falar. De resultado, Fabiane de Jesus foi morta em 06 de maio de 2014 por gente
comum moradora do Guarujá, que diz defender a lei, a moral, os bons costumes, a
família, a pátria etc., e isso com base em um retrato falado feito por policiais mediante
depoimento de quem dizia suspeitar que a sequestradora bruxa era daquele jeito a partir
de uma divulgação em uma página do Facebook. Fabiane de Jesus tinha alguma
semelhança com a mulher do retrato falado, como muitas pessoas têm semelhança com
outras tantas que sequer conhecem, e mais nada, pois era inocente do caso, conforme o
resultado da apuração policial, contudo, Fabiane de Jesus não teve direito à defesa, e
pedindo justiça, o marido, viúvo de Fabiane de Jesus, nada conseguiu, pois nenhuma
pessoa foi identificada como agente do linchamento, houve apenas o julgamento do
homem e das duas mulheres que divulgaram o retrato falado, mas não de quem fez a
falsa página no Facebook.

Mediante uma história ficcional, uma estória, Conceição Evaristo lida com
aquilo que aconteceu com Fabiane de Jesus, no entanto, sem se referir ao mesmo caso,
até porque mesmo o conto “Maria” tendo sido publicado em Olhos d’água, que também
é de 2014, já havia sido publicado pela escritora em 2008 na revista Cadernos negros.
Evaristo, em sua ficção, acusa um ato da “ética do mal”. As pessoas que mataram
Fabiane de Jesus, do que se sabe, antes do linchamento não haviam assassinato
ninguém. Eram todas pessoas comuns. Inclusive, segundo o inquérito, nenhuma das
pessoas tinham a mínima passagem policial, eram pessoas de ficha negativa, pessoas
“limpas”. Havia misoginia ali? Sim. Racismo? Sim. Preconceito de classe? Sim. A
motivação imediata foi por algo disso? Ao que parece, não, pois misoginia, racismo e
preconceito de classe costumam se camuflar bem, sobretudo, no Brasil. Mas houve algo
a mais: motivação por uma denúncia em fase de investigação, quer dizer, motivação por
algo inconcluso, sem resultado. Ou seja, ninguém se ocupou em, ao vir Fabiane de Jesus
e achar que parecia com a mulher do retrato falado, denunciá-la, pelo sim e pelo não,
para que fosse investigada, ocupou-se em linchá-la até a morte. Então, observe: a
motivação decorre da identificação em tudo malfadada porque baseada em uma falsa
identificação, contudo, as pessoas teriam partido imediatamente ao linchamento em
plena contemporaneidade – você sabe, não estamos na Idade Média – se entre elas não
houve um tanto de gente misógina, racista e com preconceito de classe, sobretudo
porque a maioria que linchou era homem? Não. Logo, não dá para tirar do linchamento
a motivação por aqueles domínios da “ética do mal”. O mesmo vale, a sua maneira,
sobre a personagem de Evaristo. Se você investigar os casos de condenação por bruxaria
no Brasil colonial – e todos os casos eram contra mulheres –, verá que se travam de
casos em que as pessoas denunciantes contrataram as “bruxas”, pagando-as, para que
fizessem adivinhação, mandingas e coisas mais. Nesses casos, sem satisfação com o
resultado, quem contratava as “bruxas” terminava as denunciando, e o resultado era
prisão perpétua, linchamento até a morte, condenação à forca ou à fogueira – as duas
condenações mais recorrentes na Idade Média. O período colonial brasileiro coincide
em parte com a formação da Idade Moderna europeia, entre os séculos XVII e XVIII, e
na Europa aquela condenação também havia no mesmo grau de brutalidade – sobre isso,
sugiro que assista à série Luna nera, da Netflix, que se passa na Itália do século XVII.

Se você lê, caso já não tenha lido, “Maria”, observará que não há ajuizamento,
questionamento, no conto, há narração pura, quer dizer, conta-se o que se sucedeu com
a personagem. Acontece que a narrativa vai progredindo de modo que: primeiro
conhecemos Maria, depois os passageiros vão soltando seus monstros, em seguida
Maria é linchada. Ou seja, a narrativa progride causando comiseração em quem lê, se
não for uma pessoa torturadora ou coisa do tipo. Sempre que leio “Maria”, sofro e
observo como tantas mulheres trabalhadoras pretas e pobres podem, a qualquer
momento, sofrer aquilo. O conto de Evaristo não diz que as pessoas no ônibus são más,
mostra-as sendo tais. Por sua vez, no conto “Hoje de madrugada”, de Raduan Nassar,
publicado na coletânea de contos Menina a caminho em 1994, há uma personagem
protagonista que é um homem, que também é o narrador, e sua esposa. Em dada altura
da madrugada, a esposa recorre ao marido, que está em seu “quarto de trabalho” – uma
espécie de escritório – em busca de afeto. Todas as investidas da esposa são repudiadas
pelo marido, que faz vários comentários pejorativos sobre a mulher. Depois de não
conseguir nenhum afeto, a mulher sai do “quarto de trabalho”, mas antes de sair, para
ligeiramente à porta. O marido comenta que aquela parada tinha um quê de reflexão,
mas que decerto não passava de uma lembrança repentina sobre algum afazer doméstico
trivial a cumprir no dia seguinte. O andamento da narração do conto de Nassar é tal que
termina causando em que lê asco, repúdio sobre aquele homem, logo, o que faz Nassar é
denunciar um caso de desprezo conjugal, típico por boa parte dos homens, e não
apresentar uma apologia a tal comportamento desprezível. Como no conto de Evaristo,
no de Nassar o narrador não diz que é mau, ele age como tal.

De resto, peço que atente a tudo que eu disse. A ética em relação à estética
apresenta ambiência muito delicada. Pode-se mostrar a “ética do mal” acontecendo, mas
sem apologia a ela. Contudo, disso para mostrá-la mediante apologia, tudo se dá por um
fio. Além disso, há sempre o risco, conforme discuti, de agir contra a “ética do mal”
mediante um de seus domínios, como condenar alguém quem escreve sobre figuras,
personalidades e símbolos cristãos de modo a criticar o cristianismo, mas não condenar,
quiçá aplaudir, quem escreve sobre figuras, personalidades e símbolos do islamismo, da
umbanda, do candomblé ou de outra religião que pareça mais adversa a sua, caso você
siga o cristianismo, seja o católico/a, o protestante ou espírito/a, e tanto faz em qual das
tantas variantes que há. Como eu apresentei, um problema moral que dá em um
problema estético não decorre apenas de religião, há muito mais causas, destaquei na
maioria das vezes a religião porque tende a indicar como se orientar por uma crença
nem a apenas apresentar o que seja como sagrado, à guisa de revelação a partir de coisas
dadas como mistérios divinos, da existência, do além e do espírito, mas também tende a
intervir nas condutas sociais, incutindo comportamentos de condenação de outras
condutas que sequer têm a ver com religião.

Apresento, por fim, quatro casos que podem muito bem se confundir com o
princípio de problema moral em face de problema estético, mas que não se trata disso.
O primeiro trata da perspectiva ideológica sobre a estética verbal do teórico da literatura
e da linguagem de Mikhail Bakhtin. Sobre esse intelectual, de imediato, advirto que não
discutiu objetivamente nada a respeito da escrita criativa. Contudo, com base no
pensamento dele, apresentarei uma hipótese a partir da seguinte indagação: Como seria
para Bakhtin o ensino de escrita criativa? Decerto seria o ensino da narrativa ficcional
em prosa, notadamente do romance, considerando sobretudo, o realismo mais objetivo.
Nisso, confio que Bakhtin não rechaçaria produções fantasiosas ou fabulares – até
porque tinha gosto pela arte verbal de François Rabelais e de Nicolau Gogol. No
entanto, se ele tivesse ministrado escrita criativa e se deparasse com produções
narrativas ficcionais fantasiosas ou fabulares, observaria em que medida são alegorias
objetivas à realidade vivida – a exemplo do conto “O nariz”, de Gogol, de 1836
(traduzido de “Нос” (Nós) por Paulo Bezerra em 2010). Bakhtin decerto não se
ocuparia do ensino de escrita criativa de poesia, mas se fosse se ocupar, seria a respeito
da poesia de estética simbolista, conforme era de seu gosto mediante seus escritos sobre
poesia. Se ensinando escrita criativa de poesia Bakhtin se deparasse com produções
acmeístas – uma prática poética das três primeiras décadas do século XX na Rússia de
certo modo semelhante ao parnasianismo, mas de acento subjetivista –, certamente não
rechaçaria, mas não trataria a par de produções simbolistas. Sem dúvida, Bakhtin
rechaçaria a poesia futurista – algo que equivalente ao que em geral se chama poesia
modernista. Por sua vez, porque foi um teórico da literatura com produção entre as
década de 1970 e 1990, Vadim Kojinov, cuja orientação era bakhtiniana, mas tinha
outros gostos, sobretudo se ocuparia, mediante seus escritos, de um ensino de escrita
criativa de poesia – e ele, sim, ocupou-se objetivamente disso em Poemas e poesia, de
1980 (do original Cтихи и поэзия) –, mas sem rechaçar nenhuma produção pela
filiação estética ou pelo estilo.

Um outro caso é de Jon Elster, intelectual sueco que escreve em inglês, autor de
Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições, de 2000
(traduzido de Ulysses unbound: Studies in Rationality, Precommitment, and Constraints
por Cláudia Sant’Ana Martins). Em se tratando de poesia, de imediato, caso Elster se
ocupasse do ensino de escrita criativa, rechaçaria produções em versos livres, conforme
ele muito bem deixa claro em Ulisses liberto – embora que não tratando de escrita
criativa, mas de poesia em geral, da arte. Note que a que questão estilística de
predileção de Bakhtin envolve uma perspectiva de preferência por certo olhar para o
mundo, uma vez que a poesia simbolista recorria à sensoriedade, a mistérios e a
subjetivismos. Ao que parece, Elster não demonstra interesse nesse tipo de poesia que
interessava Bakhtin, por demonstrar um gosto mais clássico, que na poesia moderna se
traduz nas estéticas objetivistas, como as de “arte pura” (que semelham o parnasianismo
francês e o acmeísmo russo) e de “arte engajada” (comumente, de tom sócio-político).
Embora Bakhtin não mostrasse interesse na poesia futurista russa, demonstrava em
certos nomes do futurismo, como Vielimir Khlébnikov, Vladímir Maiakóvski e David
Burliuk. Por sua vez, embora com pouca frequência, faça referência à arte romântica,
nada leva a crer que Elster rechaçaria poemas, caso ensinasse escrita criativa, com
algum perfil romântico, seja gótico, sentimental, de motivo nacional ou outro.

O quarto caso é o da poesia slam. Vou destacar o caso da jovem slammer Bell
Puã, vencedora da segunda edição do Slam BR – Campeonato Brasileiro de Poesia
Falada, que ocorreu em São Paulo em 2017, e terminou levando a poeta para a terceira
edição da Copa do Mundo de Poesia Falada, ocorrida em Paris, em 2018. Antes de
tornar-se slammer, Bell Puã (cujo nome é Isabella Puente de Andrade) ora atuava como
rapper e ora como hiphoper, uma vez que a slam veio do rap e do hip-hop. Em
entrevistas, Puã nunca se opôs à poesia ensinada na escola e na universidade – que
atende à tradição de poetas por escolas e vanguardas literárias –, inclusive já declarou
ter gosto por literatura canônica e hegemônica, citando nomes como Machado de Assis,
Cecília Meireles, Clarice Lispector e Manoel de Barros, a respeito do Brasil, e do
exterior, Toni Morrison, escritora estadunidense que foi Nobel de Literatura em 1993.
Contudo, como slammer, e Puã sempre afirma isto, ela dedica sua criação à poesia de
protesto e denúncia. Logo, sem propriamente rechaçar outras expressões poéticas, caso
ensinasse escrita criativa, decerto, Bell Puã conduziria sua prática voltada à slam.

No sentido das hipóteses que apresentei a partir daquela indagação sobre


Bakhtin – Como seria para Bakhtin o ensino de escrita criativa? –, se ele, Kojinov,
Elster e Puã ministrassem oficinas de escrita criativa – fosse na escola ou não –, decerto
orientariam seu ensino mediante seu gosto e os valores de mundo e estéticos de sua
orientação, mediante como lidam com a realidade, mas não censurariam outras
produções – pelo menos não a rigor. Nesse sentido, entenda: defrontar-se com um
problema moral que dá em um problema estético mediante a produção de escrita
criativa de seu alunado e lidar com isso cerceando o que o alunado produziu é, sim, um
modo de censura. Como você fará se tiver estudantes anarquistas em sala? Colocará
cada qual na parede, dizendo que aquilo que escreveram não é artístico, como quem, em
contato com uma performance de nudez, embora raramente aprecie arte, condena a
performance a partir do valor de que a nudez pública é uma impudicícia? Se for um/a
estudante socialista revolucionário/a, por exemplo, militante da UJC – União da
Juventude Comunista –, pois há estudantes dessa entidade política em escolas do Ensino
Médio – em Goiânia é comum entre militantes do Movimento Estudantil Secundarista –
a, o que você faria? Essas indagações também valem para se o/a estudante for praticante
do candomblé e da umbanda. Pense nisso antes de lidar com o ensino de escrita criativa
na escola, pois ao censurar estudantes, você violenta a subjetividade, cerceia a
criatividade, age como bedel, em vez de agir como docente, e por sua vez termina
prescrevendo certos valores de mundo e estéticos como melhores e devidos. Quero,
ademais, dizer que uma ação será própria da “ética do mal” quando ela for censora, ou
seja, quando não se mostrar em nada dialética nem dialógica. Sua ação não será censora
se tiver audiência, se não esperar produções que revelem condutas como as suas, e isso,
claro, que as produções não forem elas mesmas resultantes de uma “ética do mal”.

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