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Ora, há, historicamente, uma aura mística que circunda o fenômeno literário,
e que não gratuitamente lhe é atribuído, pois sedimentou-se, no correr do tempo, o
estigma de erudição edificante ao universo das letras e, mais especificamente, ao
fazer literário. Lega-se à ficção o poder de espelhar nossa consciência em outra
realidade, à poesia o potencial de nos conectar em primeira instância com a
verdade do ser, ao drama a capacidade de romper as fronteiras entre o outro e o eu.
A verdade é que toda faculdade supracitada pode ser de fato desenvolvida a partir
do contato com as letras, mas que não há absolutamente nada que garanta a
presença de qualquer aspecto transcendente ou construtivo nesse contato. Nesse
sentido, começo a já esboçar um conceito um tanto quanto abstrato de literatura —
entendendo a necessidade de haver uma noção, ainda que volátil, do que se
entende pelo objeto a ser ensinado, tendo em vista que esta concepção delimita
essencialmente a postura didática a ser assumida em sala de aula — que seguirei
compondo, nesse momento inicial, a partir de uma lógica de oposição, tendo em
vista tudo aquilo que a literatura não é, baseado nas ideias de Durão (2017).
literatura e moral, isto é, entender que a literatura não cumpre papel humanizador.
Basta pensar na história: o alto escalão do partido nazista alemão gozava de
altíssimo capital cultural e consumia a nata do que se produzia em questão literária
na época, ou pensemos no Poema Quinze de Novembro, de Murilo Mendes, retrato
burlesco do descaso do culto monarca ao povo brasileiro. A literatura por si só não
salva o mundo, como aponta Durão ao afirmar que "No máximo seria possível dizer
que a literatura alarga horizontes mentais e fortalece a inteligência, que pode ser
usada para qualquer fim, inclusive, naturalmente, os mais maléficos." (DURÃO,
2017, p. 228). E para além, isenta-se a literatura de qualquer função social direta,
pois não reside nela quaisquer conhecimentos práticos que não estejam
inegavelmente melhor desenvolvidos em outros objetos articuladores de saberes
específicos. Nesse sentido, delineia-se a ideia de uma aula de literatura que não
esteja preocupada em transmitir conteúdos, mas sim em criar um espaço de
investigação, produção e troca de sentidos. Daí surge uma justa indagação: por
que, então, ensinar literatura? Ora, apesar da aparente inutilidade do artefato
literário, existe algo de extraordinário que circunda a boa aula de literatura.
Falássemos de evento ímpar, de uma desaceleração do tempo, de uma suspensão
da lógica utilitarista, na qual tudo deve existir por um propósito pragmático na
construção social. Nesse aspecto, Sales (2017) acusa que:
papel do docente postular os sentidos "corretos" e pré fixar interpretações, mas sim
clarear a construção do texto, explicitar como a composição formal se entranha
diretamente com o conteúdo e, a partir do domínio da leitura, os alunos terão a
possibilidade de encontrar sentidos diversos na obra, de debatê-los, e de, aí sim,
ampliá-los a partir de seu repertório sociocultural.
"Em lugar da idolatria, que projeta uma imagem da literatura como de algo
intocável, uma sublimidade etérea, é melhor trabalhar com outra
representação e pensá-la como um brinquedo, ou como feita de algo que
se pode tocar, lambuzando-se, como argila ou lama." (DURÃO, 2017, p.
226).
Referências Bibliográficas
SALES, Cristiano de. A aula de literatura como gesto. In: CECHINEL, André,
SALES, Cristiano (org.). O que significa ensinar literatura? Florianópolis:
EdUFSC; Criciúma: Ediunesc, 2017.