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All content following this page was uploaded by Fabio Akcelrud Durão on 13 November 2017.
RESUMO
O artigo propõe uma prática docente a partir uma concepção es-
pecífica do que seria a literatura. Os pressupostos são o de que a
literatura não é um discurso, que o literário não precisa necessaria-
mente estar envolto em uma lógica de prestígio, que ele não está
ligado ao Bem, e que só surge a posteriori. Disso tudo emerge uma
noção do espaço da sala de aula como elaboração de ideias, e não
transmissão de conteúdos.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Ensino. Transmissão.
I. Considerações sobre o objeto e sua transmissão1
Qualquer prática de ensino de literatura acontece sob o pano de
fundo daquilo que se concebe que seja seu objeto. Isso não significa que
o literário deva ser definido a priori para que possa ser estudado, pois
quase sempre a definição, ao basear-se somente no conteúdo proposicio-
nal, mostra-se inferior ao exibir; mas também não quer dizer que não
haja hiatos ou possíveis tensões entre a compreensão implícita do que é a
literatura e o que se faz com os textos na sala de aula2. Se tal compreensão
funciona como uma espécie de ideia reguladora que abre o horizonte do
dizível, ela não precisa ser estanque, uma vez que frequentemente sofre
mutações com a prática pedagógica, nem deve ser asfixiante, relegando os
textos à função de exemplo. Seja como for, por mais problemática e pro-
visória que se mostre a conexão entre imagem teórica e atividade docente,
a relação é ainda assim suficientemente estruturante para ser operacional.
Mesmo nos casos mais extremos, como no ecletismo desmesurado, na
total falta de rigor, sempre será possível identificar uma noção subjacente,
neste caso gelatinosa, sem contornos definidos, a da literatura como uma
espécie de vale-tudo.3 Já aqui há duas consequências preliminares a ser
apontadas. Em primeiro lugar, obviamente, diferentes posições em relação
ao literário implicarão atuações didáticas dissimilares; excetuando-se os
anacronismos, aqueles professores que pararam no tempo (ou que nunca
entraram nele), o ensino reflete, de um modo ou de outro, o debate mais
amplo da teoria literária, especialmente em relação a concepções de base
incompatíveis entre si. Deixar tais divergências evidentes para os alunos
é importante para que sejam capazes de inserir-se nessa disputa de modo
consciente, a partir de seu próprio julgamento, e não em decorrência da
cooptação por parte de um docente mais engajado ou sedutor.4 Em se-
gundo lugar, sob este prisma não faz sentido algum falar de “técnicas
de ensino” da literatura. Os procedimentos didáticos não existem em um
vácuo, não são ferramentas neutras, mas estão necessariamente atrelados
à representação teórica que a atuação em sala de aula tanto exemplifica
quanto tensiona. Isso é importante, pois entre outras coisas marca a sepa-
ração entre a área de Letras e a da Educação: esta última, na ausência de
um conhecimento das linhas de força que compõem o campo no presente,
não tem o que dizer sobre o ensino de literatura.
Gostaria de discutir neste capítulo [artigo] algumas noções básicas
que delineiam meu entendimento do que é a literatura, que representam
resultado de uma atuação de vinte anos no magistério superior, bem como
apontar para as implicações que trazem para o ensino. A intenção não é
apresentar uma visão abrangente nem pormenorizada, mas tão-somente
desenvolver alguns pontos centrais que possam ser úteis para a discussão
daquilo que ocorre nos estudos literários em sala de aula, primordialmen-
te no ensino superior. A primeira ideia é a de que a literatura não é um
discurso. Não há qualquer espécie de atributo ou característica, qualida-
de, traço, aspecto ou recurso composicional que possa garantir por si só
que determinado texto mereça ser chamado de obra.5 Geralmente, quando
a referência é feita a um “discurso literário”, o que se tem em mente é 1.
um uso formal ou erudito da língua, 2. a presença da ficcionalidade, 3. um
cânone de obras dadas, cujo princípio ordenador não está em jogo, 4. um
recurso publicitário. A conceituação que gostaria de defender do literário
é outra; ele seria a decorrência da fatura exitosa do artefato, de sua arti-
culação interna: prova material de que existe como um objeto que se sus-
tenta, algo que não é derivado, que não repete simplesmente os achados
Ainda que como especulação, seria possível postular que são duas
as imagens principais que motivam um adolescente a fazer o vestibular
para Letras.17 A primeira é a de que a universidade forma professores para
o ensino médio, e que suas aulas seriam do mesmo molde, apenas mais
difíceis; o aprendizado seria assim de gramática, principalmente de análi-
se sintática, e de literatura segundo os estilos de época. Neste caso estão
aqueles que querem inserir-se no mercado de ensino de línguas, o único
ponto forte de contato das Letras com o mercado. Para esses alunos, que
visam um domínio técnico de um idioma estrangeiro, ou do português
para estrangeiros, a literatura tenderá a ser um estorvo. Na melhor das
hipóteses será vista como uma boa fonte para aprimorar o vocabulário. A
segunda associaria o literário a um espaço de expressão do eu singular e
de sua interioridade abissal; daí a sua proximidade ao lírico, à escrita de
diários etc.. Subjacente a essa concepção, além do isolamento, está uma
ideia da literatura como ligada ao belo e ao inefável. Se a universidade
for competente, esse tipo de representação irá por água abaixo já no pri-
meiro semestre. A ênfase não recairá na escrita, mas na leitura, não na
autoexpressão do eu, mas na análise de textos. Em suma, a maioria dos
alunos de Letras descobre seu métier à medida que o aprendem, e devem
adaptar-se àquilo que a universidade oferece, deixando para trás suas pre-
concepções.18
No entanto, para além da ausência de uma representação social
do profissional de Letras, é importante sublinhar que a caracterização
do literário esboçada acima choca-se em diversos aspectos com valores
amplamente difundidos socialmente. Cada um dos aspectos desenvol-
vidos acima entra em conflito com disposições arraigadas em diversos
grupos. É sempre necessário lembrar a força pré-estética, que, no extre-
mo da intolerância, sente-se ferida pela liberdade da literatura de tudo
poder dizer. Porém mesmo para a ideologia liberal há pontos de tensão.
Como já aludido anteriormente, a concepção de que a artefatualidade
do objeto, seu caráter de construção, só pode emergir a partir do pres-
suposto da falta de utilidade e interesse não se harmoniza com uma
visão de mundo na qual só tem justificativa aquilo que gera lucro. Não
há motivo, segundo a lógica neoliberal vigente, para a manutenção de
um sistema nacional de ensino de literatura baseado nos pressupostos
aqui apresentados, como algo existente em si mesmo. Ter isso em mente
mudaria bastante posturas de política acadêmica (incluindo greves), que
conferem às humanidades uma solidez que não têm.19
ABSTRACT
This article proposes a teaching practice derived from a particular
conception of what literature is. The presuppositions are that litera-
ture is not a discourse, that the literary does not necessarily need
to be subsumed under a logic of prestige, that it is not related to
Goodness, and that it only emerges a posteriori. From these ideas
a characterization of the classroom appears that views it as a space
for the elaboration of ideas, rather than the transmission of contents.
KEYWORDS: Literature. Teaching. Transmission.
REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Algumas das ideias apresentadas aqui foram primeiramente expostas em meus
Fragmentos Reunidos (2015a). Agradeço a Renan Salmistraro pela leitura e co-
mentários feitos ao texto.
2
Seria interessante pensar como o paradoxo desenvolvido por Paul de Man em
Blindness and Insight (1983) entre pressuposto conceitual e resultado de leitura
poderia ser transferido para a prática didática.
3
Talvez os termos utilizados aqui não sejam os mais apropriados, pois sugerem
um aspecto instrumental da teoria. Em oposição a ele seria interessante propor
uma internalização tão intensa da teoria que ela passaria a confundir-se com uma
forma de comportamento. Desse modo, a mediação entre o conceber e o agir
torna-se muito mais imediata e orgânica.
4
Para uma defesa do ensino e da pesquisa como lugares nos quais o confronto de
visões opostas deveria vir à tona, cf. Graff (2007).
5
É sempre bom lembrar que a recusa a uma substância qualquer da literatura foi
o gesto inaugural dos Formalistas Russos, que abriu o caminho para o desenvol-
vimento posterior do estruturalismo e para a consolidação da teoria literária como
campo de estudos. Cf.,e.g. Viktor Chklovsky, “A arte como procedimento”, em
Todorov (2013).
6
Há ainda um outro ponto de disputa, que se refere à adoção de técnicas desenvol-
vidas inicialmente em âmbito literário e posteriormente apropriadas pela indústria
cultural. Um estudo mais sistemático dessa relação ainda está por ser feito. O
princípio de montagem é um exemplo óbvio, mas também seria possível pensar
no discurso indireto livre, hoje totalmente banalizado, na associação surrealista
de campos semânticos incompatíveis, ou mesmo na própria ideia de ruptura que
alimentou a inovação no modernismo.
7
Com efeito, trata-se de uma nova tendência, que merece uma alcunha própria,
a “crítica força-barra”. Ela procura dizer coisas interessantes de objetos pobres;
muito do que se faz nos Estudos Culturais estadunidenses inclui-se nessa catego-
ria. Valeria a pena investigar os recursos utilizados para tanto. Cito dois: a ênfase
no detalhe sem relação ao todo, e a atenção ao enredo como algo destacável das
articulações formais.
8
Exemplo disso é a leitura de Senhora, de José de Alencar, feita por Roberto
Schwarz (2000).
9
Para ser mais preciso: o surgimento do valor como tópico visível e tema central é
paralelo ao alastramento e intensificação da lógica da mercadoria na sociedade. Sua
função é ambígua, pois se por um lado antepõe-se à mera reprodução do existente,
por outro, é facilmente associável a mercadorias culturais de luxo. No século XIX, o
valor não era questionado, porque era evidente; sua visibilidade como objeto de crí-
tica conceitual tem como pressuposto sua perda de relevância social. O equivalente
do valor no presente é o poder: um lugar comum como tal inatacável.
10
É diante dessa idealização do ensino que vale a pena mobilizar aqueles
argumentos desmascaradores, que em outros contextos têm um papel tão nocivo.
Porque é fácil o professor (assim como para o general) internalizar a autoridade
de sua posição e alargá-la para o mundo, assim como é fácil descontar nos alunos
as suas frustrações pessoais. Quanto à escola, seu papel na manutenção das desi-
gualdades de classe não é eficaz somente na distinção entre a pública, precarizada,
e a privada; já na própria separação entre os bons e maus alunos prepara-se a
oposição entre empregado e empregador.
11
Obviamente, o discurso semirreligioso ligado ao ensino contribui para justificar
os baixos salários nessa área.
12
Desenvolvi essa ideia em Modernism and Coherence (2008).
13
Essas ideias, bem como outras deste capítulo, estão presentes na Teoria Estética
(1973), de Adorno.
14
Note-se que a posição defendida aqui é diametralmente oposta à tendência dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a práticas pedagógicas usuais de se
apoiar em meios de massa para lidar com objetos literários.
15
Essa caracterização contraintuitiva da aula como um ambiente não democrático
encontra seu oposto em uma abordagem da leitura e da escrita como atividades
coletivas. Se na prática didática a condução da discussão tem algo de solitário
em seu cerne (salvo nos raríssimos casos de turmas excepcionais), o estudo, pelo
entusiasmo que gera, leva à troca de impressões e ideias (Durão, 2016). É claro
que seria possível imaginar uma mistura dos dois, uma pedagogia do grupo de
estudos, por assim dizer; no entanto, estaria tão distante daquilo que de fato existe,
que sua implementação em algum ambiente institucional seria uma quimera.
16
http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_
Brasil_-_2015.pdf
17
Quando há alguma imagem, pois existem os casos nos quais o aluno ingressa
em Letras simplesmente porque o curso é fácil, ou porque foi remanejado de sua
opção inicial devido à existência de vagas ociosas. Em ambos os casos prevalece
o ideal do diploma, como título valorizado e porta de acesso à ascensão social,
sobre o saber que representa.
18
A exceção são aqueles que vieram de famílias com formação cultural sólida, via
de regra de classe média para cima. Na área de Letras combinam-se assim duas
tendências opostas de mobilidade social. Por um lado, devido à pouca concorrên-
cia, ela acolhe pessoas de baixa renda; por outro, no entanto, como ter familiari-
dade prévia com o mundo da cultura traz vantagens enormes para o estudante, ela
contribui na manutenção da divisão de classes existente.
19
O caso da Colômbia é instrutivo. Terceiro maior PIB da América do Sul, teve
seu primeiro programa de doutorado em literatura recentemente estabelecido na
Universidad de los Andes.