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3
Instituto Histórico e Geográfico
GUHRUJÁ - BERTIOGA
Declarado de Utilidade Pública pela Lei Estadual
N.° 5.614 de 3 de maio de 1960
—
PHILIPS
símbolo universa!
PHILIPS B de confiança
Revista N.° 3 — Ano 2 1970
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
DIRETÓRIA
Presidente
Více-presidente
——— D.a Lucia Piza F. de Mello Falkenberg
Ministro José Romeu Ferraz
CURSO
2.° presidente
Secretário-geral
—— Sr. Herminio Lunardelli
Sr Celso Corrêa Dias
Iniciado em 7/8/1961
Terminado em 8/11/1961 CONSELHO DELIBERATIVO
sidade de São Paulo, Largo São Francisco. Sr. Antonio Roberto Alves Braga Sr. Fernando Edward Lee
Dr. Aureliano Leite General Francisco Oliveira Chagas
l .°
— ESQUEMA HISTÓRICO DO MÓVEL BRASILEIRO
José de Almeida Santos
— Sr. Antonio S. da Cunha Bueno Sr. Jorge da Silva Prado
Sr. Armando Simone Pereira
Sr. Alvaro do Amaral
Sr. Adam Von Bulow
Sr. José Pereira Fernandes
Sr. Lino Morganti
Prof Lucas Nogueira Garcez
2 .°
— PRATARIA NO BRASIL
Santos
— Francisco Marques dos
Sr. Augusto C. B. Trigueirinho
Sr. Eduardo A. Matarazzo
Sr. Eldino Fonseca Brancante
D.’ Rita Lebre de M. Correa Dias
Sr. Tácito Van Langendonck
Sr. W. R. Marinho Lutz
3.°
— ARTE NA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO:
ITU E SEUS ARTISTAS
CONSELHO DA MEDALHA
DIRETORES DE
DEPARTAMENTOS SÓCIOS HONORÁRIOS
ceito passou à prática com o pedagogo suíço João Henrique da...” (1). Começados pela improvisação, surgiram dife¬
Pestalozzi (1746-1827) e, mais tarde, com Maria Montessori renças de estrutura, sobretudo na ensamblagem (ensam-
(1870-1952), pedagogista italiana e a primeira mulher for¬ blamento, ensambladura) obtida por recursos primários co¬
mada em medicina. A. Austregésilo, em “Caracteres huma¬ mo o do cravo de ferro metido a rubro e o das cavilhas vi¬
nos”, diz: A doutrina do bem estar se origina em a sensa¬ síveis. Com tais vínculos, e os fluxos baseados nas catego¬
ção do prazer psíquico que sente o homem ante o meio em rias fundamentais absolutas: Clássica, Gótica e Barroca, não
que vive, e a harmonia da existência surge do contraste da seria de esperar para o mobiliário brasileiro formas dife¬
dor e do prazer, do bem e do mal, com o predomínio final rentes das formas em curso, cujas modificações foram de-
da alegria”. Dos objetos exteriores, os móveis, de um modo
particular, provocam nossos sentidos pela vivência ou prá¬
tica psíco-social.
Por esta rápida escala no mundo da metafísica e da ex¬
periência, percebemos o escalão do material historiográfico
disponível. Isto pôsto, tomemos a parcela cuja substância
se liga, como fragmento de um todo potencial, às principais
noções das formas em seus caracteres unívocos e relativos,
segundo a conceituação kantiana, como introdução ao co¬
nhecimento consciente do móvel brasileiro. No desenvolvi¬
mento da tarefa procuramos disciplinar a nomenclatura
dos estilos por meio das contingências dos objetos em estu¬
do, e assim lançar fundamentos para a sistematização do
currículo em suas conexões particulares e genéricas. A fal¬
ta de subsídios preliminares, salvo raras exceções, empresta
à matéria um caráter de novidade. Contudo, era realidade
sincrética nos episódios sociológicos, ou seja na Lei da cau¬
sa e do efeito. Assim veremos as referências à mão de obra
e aos artífices circunscreverem-se à subordinação imposta
pelo ambiente de colónia, com suas possibilidades de traba¬
lho e de aplicação plástica. Verificaremos, também, a atua¬
ção telúrica sôbre aqueles indivíduos. Desde logo inferi¬
mos que o estudo dos estilos brasileiros traz implícito o es¬
tudo das formas vinculadas aos interêsses religiosos e polí¬
ticos dominantes. A génese dos modêlos obedeceu a impe¬
rativos circunstanciais normativos, ou seja, com fôrça da
regra. Variações ocorridas em virtude dos índices de cul¬
tura, dos sistemas de viver e dos meios de produzir ao al¬ Mesa Império, coleção do dr. Oscar da Cunha.
cance, deram origem aos tipos diferentes dos móveis, carac-
terizados pela sobriedade ingénua, pelos fastos das madei¬ vidas a pormenores, de solução ecológica. Eis como se expli¬
ras (uma delas batizando o país), cuja beleza e resistência ca a preferência pela denominação MISSÕES para os mó¬
emprestaram longevidade às peças brasileiras. veis seiscentistas e setecentistas quadrangulares, que con-
Entre 1500 e 1627, frei Vicente do Salvador registou:
“Folgavam todos em trabalhar e exercitar cada um as habi¬ (1) 4.a edição da História do Brasil, folhas 150, Melhoramentos,
lidades que tinha . . . ainda que a não tivessem aprendí- S. Paulo.
12 JOSÉ DE ALMEIDA SANTOS
ESQUEMA HISTÓRICO DO MÓVEL BRASILEIRO 13
servam o signo do viver primitivo missionário e profano. Os
elementos estereotômicos são materiais peculiares: couros D. João V
para assentos e espaldares, para cilhar de catre e pavimen¬ D. José ou Pombalino
tação de cama de sobrecéu; madeira pródiga e nobre, em D. Maria I.a
suas zonas de extração. Sem dúvida, Missões foi região his¬ Sheraton-brasileiro
pânica, entre Brasil, Paraguai e Argentina, sob jurisdição D. João VI
dos jesuítas. Êstes não se confinaram em suas Reduções e Império, compreendendo:
partiram (como também religiosos de outras ordens), atra¬ Pé de Cachimbo
vés das Américas para levar a Fé e a civilização aos núcleos Ber anger ou Pernambuco
aborígenes. De seus esforços e hdaptação às condições de
cada região nasceu o móvel MISSÕES no Brasil e nos paí¬ Adventos
ses da costa do Pacífico. Seu desenvolvimento ocorreu, em
maior escala, sob a égide de Felipe II. O nome genérico está Pré-cabralino 1500
muito a propósito. Foram os missionários que, para satisfa¬ D. Manuel 1521
zerem indispensabilidades, incrementaram sua produção, D. João III 1557
revelando à posteridade seu espírito acomodado às con¬ Domínio Espanhol 1580
tingências, visíveis nas soluções plásticas de cada latitude. Domínio holandês 1654
Missões é móvel de reminiscências góticas, miscegenadas ao (Bandeiras, século XVIII
plateresco, de feitura rude ou bronca, mesmo quando alheio (D. João V 1750
à cuna hierática. Nesta categoria incluímos o Filipino, o (D. José I.° 1777
Holandês e o Mineiro-goiano, como matizes da cronologia, (D. Maria I.a 1792
dado o caráter irrevogável, comum, da fatura. Do mesmo (D. João VI 1816
modo se explica a preferência pela denominação de Minei¬ (Império brasileiro 1822
ro-veneziano para os móveis da época do Aleijadinho, pro¬
duzidos na Província de Minas Gerais. Veneziano porque Nota: Podia ser admitido o período D. João VI entre
Veneza foi a capital baroca do século XVIII, e foi dali ex¬ 1792, data do início da Regência, a 1825, quando D. João VI
portado o sabor peculiar por meio de artífices contratados, reconheceu a Independência do Brasil, proclamada em 1822
ou de desenhos, ou mesmo obtido de edículas adrede pre¬ por seu filho D. Pedro I. No entanto, adotamos critério ver¬
paradas. náculo, considerando o advento 1816, subida ao trono e 1822,
Segundo os dados históricos e o material remanescen¬ Proclamação da Independência como limites ortodoxos.
te, organizamos a seguinte Tábua de Datas: A maioria dos estilos brasileiros rege sua nomencla¬
tura pelos fenômenos do determinismo. São parafernais o
Estilos Manuelino, o D. João V, o D. José e o D. Maria l.a, êstes
dois pouco representativos. Sua caracterização e, portanto,
Indígena sua APERCEPÇÃO, tem por base os fatores normativos da
Manuelino génese, como vimos. Influências, modificações e deforma¬
(Missões, compreendendo:
ções devem ser estudadas tomando em consideração as re¬
lações ecológicas e as consequentes do escalão do desenvol¬
( Filipino
vimento.
Sabor Agora evoquemos as transformações, operadas através
Gótico dos séculos, das formas elementares do móvel, nascido sob
( Holandês e
induções do instinto: o leito e o assento que, com a caixa,
( Mineiro-goiano
constituíram as. matrizes de tôdas as formas subsequêntes,
( Mineiro-veneziano (Barroco) pouco-a-pouco transfiguradas pelas necessidades de expres¬
são e função religiosas e dinásticas: o arón ou ahrón, o es-
14 JOSÉ DE ALMEIDA SANTOS ESQUEMA HISTÓRICO DO MÓVEL BRASILEIRO 15
cabelo, a arca, até alcançar o sentido doméstico no medie¬ tes magníficos, de variedade assinalada. A evasão das for¬
vo. Nesse momento, as mesas cavaletes, consignadas por mas eruditas ocorreu por falta de aparelhamento ou de in¬
Homero e pela Bíblia (aqui no Livro de Esther e nos Após¬ ventiva. Maneiras diferentes de interpretar, através da ade¬
tolos) , passaram a DORMENTES, isto é, passaram a ser quação de métodos empíricos, criaram, nessa fase, mode¬
fi¬
xas, e suas TAMPAS passaram a TAMPOS. A evolução sim¬ los de membros planos e quadrangulares, a seguir casados
plificava o POR e TIRAR a mesa, literais na era homérica com motivos barrocos.
e até os Aquemênides, quando não havia salas especiais pa¬ Os móveis eram, na Europa renascentista, encomenda¬
ra os repastos. Os cavaletes, com suas TAVOLAS, eram
montados nos jardins, nos páteos internos ou em qualquer
cômodo da casa. Com Homero as pessoas sentavam-se em
mesas individuais. Dos Aquemênides até o Império romano
a postura passou a reclinada, e os cavaletes eram esteios
baixos e a mesa coletiva. O rasto dos hábitos foi perdido até
a Idade Média. Nessa ocasião os tampos fixos surgiram nos
refeitórios monásticos e, simplificando o uso das mesas,
contribuíram para sua aplicação doméstica. No Brasil as
mesas DORMENTES sobreviveram até o século XIX, con¬
forme testemunham Luccock (2) e Rugendas, como vere¬
mos adiante.
Excetuando o ambiente pré-cabralino da cultura indí¬
—
gena, que apenas contava com a rêde, o escabelo e o girau
a história do mobiliário brasileiro teve início já enqua¬
drada nos conceitos novos do SENTIDO DOMÉSTICO. Na
América latina tal sentido foi subsidiário do evolutir ape-
lativo (3) dos religiosos, naquele momento mais aptos ao
gôzo das amenidades que a civilização começava a popula¬
rizar. A vida, sob pressão metropolitana, era um cadinho
de ambições; a terra uma espécie de tesouro, a ser explora¬
do por beneficiário. Frei Vicente do Salvador, que viveu en¬
tre 1564 e 1636 ou 1639, regista (4): "... Os portuguêses,
grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas,
mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar
como caranguejos”. Em ambiente negligenciado, falta de
iniciativas, os reflexos históricos correspondiam as contin¬
gências. Nem por isso houve emprêgo de madeiras inferio¬
res, como de árvores frutíferas. No Brasil abundavam fus-
(2) John Luccock, “Notas sôbre o Rio de Janeiro”, fls. 131, Liv] Mesa de bolachas, coleção do dr. Oscar da Cunha.
Martins Ed., São Paulo, 2? ed.: “Nas casas de categoria que descre¬
vemos, a peça principal do mobiliário dos aposentos melhores é a
infalível mesa comprida e tôsca . . . feita de madeira dura para que dos pela nobreza que, segundo a formação coeva de crité¬
sirva a gerações”. rios, julgava ser “proteção” dispensada a artistas e arteza-
(3) Que convém a todos.
(4) 4.a ed., História do Brasil, fls. nos, a permuta de valores. A necessidade em que se viam
44 e 46, Melhoramentos, São
Paulo. êles de apelar para a nobreza era fruto do ambiente, bem
16 JOSÉ DE ALMEIDA SANTOS
(5) Athena Ed„ São Paulo. 1939, fls. 233, vol. 1«.
(6) “História Geral, do Brasil”. Poltrona da Conceição da Praia.
(7) Leitão de Barros, “Elementos de História da Arte”, fls. 169,
sem data.
ESQUEMA HISTÓRICO DO MÓVEL BRASILEIRO 19
(8) Doc. hist. XXXVII, 2, cit. por Pedro Calmon em “Hist. fund,
da Bahia”, fls. 166.
20 JOSÉ DE ALMEIDA SANTOS ESQUEMA HISTÓRICO DO MÓVEL BRASILEIRO 21
temente. Beseleel e Ooliab trabalharam “cheios do espírito singelas de traça portuguêsa, um todo, como estamos ven¬
de Deus, de sabedoria, de inteligência e de tôda ciência para do, de sabor gótico. As pranchas maiores eram axiais e mui¬
ocasionais do sertão, obediente menos às exigências da es- tos espaldares de camas e bancos trazem o sinete telúrico
tôda casta de obras, para inventar tudo o que se pode fabricar esculpido em ramos e animais ou frutos da região, num
de oiro, de prata e de cobre, de mármore e de pedras preciosas
ecletismo estético do espírito predominante, o da Campa¬
e de tôda diversidade de madeira”, como o “tabernáculo da nha oriental levada a efeito pelos países ibéricos, pela In¬
Aliança, a Arca do testemunho, o propiciatório que está por glaterra, pela Holanda, espírito traduzido nas versões aborí¬
cima dela, e todos os vasos do tabernáculo, e a mesa com genes pelo emprêgo de couros, pelos bilros e desenhos geo¬
seus vasos e os altares dos perfumes” (Exôdo, XXXI-2 a 8). métricos fenestrados, evocando o mucharabi ou muchara-
Brunelleschi, arquiteto e escultor; Donatello, escultor; biê; os móveis recipientes, armários, arcas e caixões, pelos
Chilberti, arquiteto e escultor; Verocchio, engenheiro, pin¬ pés de esteio, pelo traço evocador, às almofadas, cujo desdo¬
tor e escultor; Rotcelli, pintor; mais tarde Andrea del Sar¬ bramento reproduz, ampliada, a ornamentação dos conta¬
to, pintor; Della Robbia, escultor e ceramista; Cellini, gra¬ dores asiáticos, aproveitados nos repositórios embutidos das
vador e escultor (e quantos poderiam ser nomeados? eram, igrejas de Pernambuco.
também, ourives e contribuíram para o conforto doméstico. O estilo Mineiro-veneziano surgiu por ocasião do sur¬
Em verdade, a Renascença foi o fulcro do lar com seu nôvo to de riquezas proporcionado pelas explorações do solo em
significado, lar já um bem com Jó (Jó, VII-10). A influên¬
cia de tantos nomes de primeira grandeza entre os colabo¬
radores da ORDEM DOMÉSTICA, contribuiu para transfor¬
mar o ambiente e dar impulso às concepções novas de viver,
amparadas pelos conceitos de governança postos em práti¬
ca em Florença e Veneza (9). No Brasil havia fechaduras e
dobradiças de oiro maciço aplicadas em oratórios: e puxa¬
dores de prata, em quantidade, aplicados em gavetões de
arcazes e de repositórios. Em uma das capelas laterais da
Sé da Bahia, há móveis de prata. Os embutidos de madei¬
ras contrastantes são métodos de ourivesaria (como o tau-
xiado), estiveram em voga até o começo do século XIX em
caráter universal, e em particular aparecem no D. João VI
e no Sheraton-brasileiro, havendo exemplares com aplica¬
ções de marfim e de madrepérola, exemplares chamados
ENCONCHADOS.
O estilo Mineiro-goiano é expressão retardada, ocorri¬
da para atender aos bandeirantes, satisfazendo interêsses
ocasionais do sertão, obediente menos às exigências da es¬
tética e muito às relações do ambiente e de seu cortejo na¬
tural de restrições. A mesa, por exemplo, apresenta-se bron¬
ca: pernas em feitio de cavalete com sub-ensamblagem qua¬
drangular (desgastada pelos pés das pessoas), tampos mo-
nóxilos, ornatos geométricos e esculpidos em estilizações
tronas da era imperial brasileira, sendo conhecidas as pol¬ e expressado no caráter”, referendando o truísmo de Spen¬
tronas do Teatro Lírico, do Rio de Janeiro, já desaparecido. gler, e moldando o engaste do estilo Béranger na tradição
Há alguns sofás e canapés no tipo. A influência francêsa, das artes plásticas brasileiras. Os estudos efetuados, na Eu¬
acentuada na sociedade contemporânea, é verificada na mo- ropa, por Béranger Filho, devem ter marcado seu espírito,
delagem das pernas e das travessas anteriores do assento, sem lhe alterar o temperamento, impregnado pelos senti¬
de corte convexo. mentos nascidos do meio onde trabalhava.
O estilo Béranger floresceu em Pernambuco desde o O mobiliário Império, conglobando o Pé de Cachimbo
primeiro têrço do século XIX. Pereira da Costa, em 1901 re¬ e o Béranger, está ligado ao presente por impressões recen¬
gistrou o evento (16). Consta ter sido Béranger o introdutor tes, que lhe acrescem sabor e emotividade. E por falar em
do verniz de boneca no Brasil. As formas do Mestre coinci¬ sabor e emotividade, há notícias de que desde tempos remo¬
diam com o gôsto e o desenvolvimento material coevos. Já tos houve inclinação sensual-estética pelos móveis. Plutar-
no século XVIII o Recife possuia ótimos edifícios. No comê-
ço do XIX o engenheiro francês Louis Léger Vauthier cons¬
truiu o Teatro Santa Izabel e algumas residências para ne¬
gociantes abastados, sendo compreensível o acúmulo de mo¬
biliário e o sucesso dos Béranger Pai e Filho. Êste foi à têm
Eu¬
ropa aprimorar seus conhecimentos. Os móveis legados
sabor regional. Sua estrutura, desenvolvimento e solução
lhes conferem foros de estilo. Representam fase serôdia do
Barroco, com certo cunho Império, inevitável. As pernas dos
consolos e mesas de centro (jardineiras) lembram modilhões
em duas volutas com sub-ensamblagem em feitio de aranha
com girândolas convergentes para um ornato central tor¬
neado ou esculpido. Há cadeiras de pernas torneadas e mo¬
deladas. Os assentos biselados são típicos. Atributos cons¬
tam da flora e da fauna regionais. Há reminiscências eclé¬
ticas: a- lira, a folhagem (que persiste desde os ensaios da
arquitetura); a cornucopia; o pescoço de ganso alongado
das travessas superiores dos espaldares. No Salão Nobre do
Palácio do Govêrno, no Recife, há um canapé que obedece
aos princípios de construção francêsa, utilizando folhas es¬
pessas de madeira de Lei revestindo grossas travessas cur¬
vas dianteiras, modeladas em espécies de qualidade infe¬
rior. Cajus, goiabas e outras frutas brasileiras estravazam
de cornucopias canhas, lançadas no espaldar. Dominado pe¬
la própria concepção do desenho coevo, Béranger interpre¬
tou-o sob o calor evocativo do ambiente. Diz Ingenieros:
“Efetivamente, o que se move em a natureza e na sociedade,
é o homem; suas idéias e .seus sentimentos nascem e atuam
em função do meio, porém têm, por si mesmos, a virtuali¬
herança
dade congénita do temperamento impregnado pela
—
centos;
—
Acaju (aguano, araputanga, mogno de Marabá), em¬
pregado no Mineiro-goiano e peças rudes do fim do seis¬
Cathrino.
leiro;
—
Caviuna ou cabiuna, empregada no Sheraton-brasi-
(APERCEPÇAO
—— Feito de uma só peça.
Conhecimento através da razão. Conhecimento
cação. A relação é completada pela indicação da Idade do consciente.
acaju. Assim como o carvalho, 1500-1660, dá início à Histó¬
ria européia do mobiliário, o acaju assinala a alvorada do
móvel brasileiro. Dessa madeira existem: arcazes de sacris¬
(PERCEPÇÃO
kantianos).
— Conhecimento originado da intuição (Conceitos
ram ao sincretismo histórico. No apogeu da riqueza do sé¬ ESTEREOTOMIA — Parte da geometria descritiva que ensina a divi¬
dir cientificamente e regularmente os materiais de construção:
culo XVIII, quando a Metrópole se locupletava e dilapidava madeiras, pedras e outros.
o ouro e as pedras das Minas Gerais, algo sobrava, sobretu¬
do por iniciativa do clero, e era aplicado em edificações de
templos e em alfáias preciosas. Hoje podemos reconstituir,
MANEIRA — É o caráter imprimido a qual o curso dos acontecimen¬
tos é determinado pela Lei da causa e do efeito.
com o móvel remanescente, religioso e doméstico, o ambien- PARAFERNAIS (Só plural) —
Diz-se de objetos, usos e costumes
correntes em dado momento, provenientes do exterior.
(17) Publicação N.° 17 da Diretória do Património Histórico e BANZOS (Só plural) — São as varas para transportar rêdes, palan¬
quins, a sede gestatória (cadeira papel), andores, andas, etc.
Artístico Nacional, 1951, fls. 357, trabalho de autoria do Cónego R.
Trindade.
(18) “Viagem Pitoresca e Histórica do Brasil”, Jean Baptista
Debret, 3.a edição, Livraria Martins, Ed. folhas 282.
PRATARIA NO BRASIL
—
assim ela se manifestará com seu caráter próprio, definido
no tempo e no espaço.
Durante tôdas as épocas da História existe entre os cos¬
tumes, os hábitos, as leis, a religião dos povos e as artes uma
relação íntima.
54 PROF. ARQUIMEDES DUTRA MIGUELZINHO, SUA VIDA, SUA OBRA 55
Difícil definirem-se as transformações sucessivas da ar¬ geiras é totalmente alcançada por José Ferraz de Almeida
te sem a apresentação, ao mesmo tempo, de um apanhado Júnior, na pintura, conseguindo o genial artista ítuano es¬
geral da civilização da qual esta arte é como que um envol¬ truturar as bases de uma arte nacional, cujo sentido é mui¬
tório, pela mesma razão de nós não podermos admitir o to bem expresso na frase que encima o seu mausoléu, na ci¬
estudo das vestes independentemente do estudo do homem dade de Piracicaba: “Paulista na sensibilidade, Brasileiro
que as trás no corpo, afirmava Viollet Le Due. nà arte, Universal no gênio”.
Meio-ambiente criado entre nós — Colónia e Império A arte na Província de São Paulo
Resultando da catequese e evangelização dos nativos, a
nossa primitiva arte colonial e do I.° Império traduz, mar¬
A arte paulista, partindo do seu nascedouro —
São Vi¬
cente, caminhou serra acima até atingir o planalto de Pi-
cante e decisiva, ação jesuítica e franciscana, na formula¬ ratininga.
ção do seu conteúdo, a par das obras de mérito dos mestres Manoel da Nóbrega (1553), dando expansão à conquis¬
seiscentistas, peninsulares, para aqui trazidas. ta do nosso território pela civilização, funda em diversos
O sentido evolutivo das artes nos séculos XVII, XVIII pontos do planalto, núcleos destinados à catequese e evan¬
e grande parte do século XIX esteve quase que, exclusiva¬ gelização, aparecendo nada menos de 16 aldêias distribuí¬
mente, a serviço da religião. das por São Vicente, Piratininga e as frustradas Missões de
Entretanto, a situação geográfica das zonas de pene¬ Maniçoba, na região de Itú e Jeribatiba, nas vizinhanças
tração catequista; os recursos materiais dessas zonas, e, a de Santo André.
índole e cultura das raças dominadoras, estabelecidas nas A fé e decisão missionárias conduziram os trabalhos de
diferentes regiões do Brasil, completavam a unidade de am¬ tal maneira e de tal monta foi a sua envergadura que, des¬
biente, unidade essa necessária para os reflexos indispen¬ de logo, o êxito das ações se tornava patente e insofismá¬
sáveis tanto na formação de um espírito estético nacional, vel: vilas floresciam no planalto de Piratininga, enchendo
como na sistematização de cânones fundamentais capazes os seus obreiros de orgulho e de crença nos destinos gran¬
de se constituírem em coluna mestra na ação expansiva e diosos da terra, em cujo céu esplendia a Cruz de Cristo,
evolutiva da arte brasileira. Pernambuco, Bahia, Rio de Ja¬ constituída de estrelas! E, entre aquelas que mais se desta¬
neiro, São Paulo e Minas Gerais são centros típicos dêsses cavam, ao lado de São Paulo, cresciam surpreendentemen¬
meios colonizadores expancionistas. te as hoje tricentenárias cidades de Mogí das Cruzes e Itú.
Êsse determinismo religioso, cultural, geográfico e eco- Itú, boca do sertão, célula viva do organismo paulista
cômico obrigou a sistematização de um processo evolutivo em 1610 e, em 1644, o arraial que se apresentava como a
das nossas artes, cronologicamente, constante de: l.°) a mais avançada das sentinelas da civilização nas terras do
obra dos mestres responsáveis pela dilatação das zonas ci¬ Brasil: mais longe do mar do que Parnaíba, Jundiaí, Mogi
vilizadas, de penetração (missionários ou não) ; 2.°) a con¬ das Cruzes, Taubaté e, distante cem quilómetros da Vila de
tribuição dos discípulos, sorvendo a lição dos mestres e se¬ São Paulo do Campo de Piratininga, tinha o seu destino
guindo-lhes as pegadas, dentro das possibilidades materiais traçado dentro da nossa História, já como estêio robusto
do meio e da sua situação geográfica; 3.°) a expressão nu¬ das tradições das artes de São Paulo, desde o anónimo da
mérica de obras artísticas “importadas e de mestres aqui do¬ Capela Velha (séc. XVIII) até José Ferraz de Almeida Jú¬
miciliados ou a serviço, insuficiente” para fazer frente a tão nior (século XIX), já como defensora intransigente das li¬
dilatada zona de expansão colonizadora, ocasionando: 4.°) berdades democráticas da nação brasileira, desde Diogo An¬
as obras oriundas da pura inspiração patrícia, dando asas tônio Feijó, Paula Souza e Campos Vergueiro, no Império,
à sua imaginação e aos seus sentimentos de regionalismo, (séc. XIX) até Prudente José de Morais Barros, o primei¬
e, caminhando consequentemente, para a definição de um ro Presidente civil da nossa República (séc. XX) .
perfil sentimental-artístico, de cunho pronunciadamente Bêrço de Bandeirantes, na conquista da pátria; ninho
brasileiro, no século XIX. Esta libertação das pêias estran- de artistas, na espiritualidade das artes; celeiro de vultos
56 PROF. ARQUIMEDES DUTRA
essência poder-se-ia resumir no seguinte: Deus, pátria e obras admiráveis, que é a cidade de Itú, estamos certos de
que muitos elementos novos serão revelados para novas pes¬
tradição.
Bem expressivo número de artistas compunha a equi¬ quisas como também, pontos obscuros e controvertidos da
pe da cidade de Itú, louvando-se nas notas deixadas por história da arte ituana serão devidamente esclarecidos e pos¬
Miguelzinho que, ao recenceá-los numa fôlha de suas “Me¬ tos nos seus lugares exatos.
mórias”, conseguiu organizar, em lista, para mais de quin¬ Para isto, recorramos a documentos originais, registra¬
ze nomes. dos há quase 115 anos, por Benício Dutra, em suas “Memó¬
Homens de saber, em não raros e sugestivos
momentos rias”, nada mais se fazendo do que uma pura e simples lei¬
surpreendentemente, no cenário das tura de tais peças Estejamos atentos para a citação
puderam se avantajar,
artes nacionais: eis, que, mercê de sua cultura não se deti¬ mes e de obras, e para o destaque dado a várias delas.de no¬
veram, por vêzes, nas funções especializadas de uma arte Comecemos pelo Salto:
apenas, mas, exerceram várias delas com mestria, a exem¬ do
plo de certos mestres renascentistas europeus. Jesuino “O Salto é o mais magnífico passeio de Itú. Medonha
Assunção Du¬ é a sua queda, que vai precipitada até o seu final remate.
Monte Carmello e Miguel Arcanjo Benício da
tra, são exemplos dessa admirável extensão de conhecimen¬ Magníficos penedos formam as duas margens do rio. Um
tos artísticos. continuado nevoeiro saido da queda das águas, a certa ho¬
Ademais, não se restringia ao meio ituano a ação cons¬ ra, reproduz à vista do observador a visão do arco-iris. Mi¬
trutiva dos seus artistas. Como Bandeirantes, em seus mis¬
tiam para outras localidades, no cumprimento de
arte, par¬ lhares de pássaros
— tapéras, se abrigam e moram em uma
grande fenda junto ao mesmo Salto. Parasitas e uma
pró¬
teres, desde a Capital de São Paulo, até aos mais longínquos pria vegetação de musgos e flores próprias ou naturais
dos
centros populosos. Comprovam-no, os Conventos do Carmo penedos enlevam a vista do observador. No tempo do
Penha, na ci¬ há concorrência de gente para os banhos e distrações.
verão
e de Santa Tereza, as Igrejas de Belém e da
e Jundiaí;
os templos e edifícios vários
ra, decoração, escultura
vação e ouriversaria,
de
em
—
dade de São Paulo; os Conventos de Santos
imagens,
outras cidades
de
com serviços de arquitetu¬
obras de entalha, gra¬
interioranas, a
Acha-se o Salto, já, com muitas bonitas casas e a Ca¬
pela, que é de Nossa Senhora do Monte Serrate,
pelo Padre João Leite, de Itú, é linda, com três
edificada
altares. No
altar-mór está a Senhora do mesmo nome, muito linda ima¬
exemplo de: Pôrto Feliz, Piracicaba, Limeira, Brotas, Casa gem feita em Itú mesmo, pelo escultor Antônio Joaquim.
Branca, Araras, Mogi das Cruzes, Taubaté, Guaratinguetá, O altar é formado de 8 colunas compostas rematando a ma¬
Lorena, etc. chegando, mesmo, a atingir o ponto extremo neira de uma corôa imperial. Tem sôbre cada capitel um
de Itapura, como é o caso de Miguelzinho. anjo sentado, pegando em festões. O altar da direita, lado
Em Piracicaba, na linha do picadão para as terras de do evangelho, é de São Francisco do Deserto e o da esquer¬
Cuiabá, Itú plantou uma tradição de arte, no ano de 1844. da é de Santa Clara, ambas lindas imagens. No tempo da
E, a semente lançada em solo ubérrimo, pelas mãos de
Mi¬ festa da Senhora, que é a 8 de setembro, há aí uma afluên¬
guelzinho — dando início à pintura de cavalete
cia de São Paulo, esplendidamente germinou e frutificou
na Provín¬ cia extraordinária de povo. Passam por êste lugar as estra¬
das de Campinas, Capivarí e outras localidades. Dista de
no ambiente familiar, primeiramente, e, depois, nosmodo têrmos
a
Itú uma légua e, acima do Salto há uma lavra de ouro no
da comunidade piracicabana. Consolidou-se de tal rio, da qual já retiraram muito, em outros tempos; meu pai
expressão das artes em Piracicaba, consequência lógica do trabalhou no metal dessa lavra. Junto a ela faz, o Tietê,
corpo adquirido pelo progresso técnico e espiritual dos seus uma grande cachoeira, intransponível e é daí que se ouve
artistas que, não temos dúvida em afirmar ser, êste, o cen¬ a bulha ou sussurro, em Itú. A ponte é uma das mais segu¬
tro de maior projeção das artes plásticas do interior dereais, São ras do Tietê e, no tempo da sêca, passa todo o rio só pelo
Paulo, com os seus quase quarenta artistas de méritos seu centro, em um canal de 10 palmos, com muita fúria, e,
alguns dos quais de renome nacional e internacional. por isso se chama “o Funil”. Desde aí até o Salto, que dista
No exame a ser procedido neste celeiro de artistas e de mais de 10 braças, é um contínuo precipício ...”
60 PROF. ARQUIMEDES DUTRA
MIGUELZINHO, SUA VIDA, SUA OBRA 61
ja tôda pintada, as paredes e teto e, sobretudo, a Capela-
Matriz ãe Itú: Mór, que é o teto mais bem desenhado, a meu ver.
Unido à Igreja, à direita, está o Convento que é bem
... “O principal edifício desta cidade é a Matriz, aca¬ asseado. À esquerda acha-se a Capela do Jazigo, para enter¬
bada em 1780. É uma das melhores obras da Província. Sua ramento de Terceiros. É de bom gôsto, tendo carneiras to¬
sólida construção, ainda que de taipa, é para se notar: é das construídas de tijolos, pelo Pedro Parada; um altar com
de uma arquitetura excelente. O entalhador e pintor foram o painel da Ressurreição de Lázaro, pintado por mim e idéia
homens de saber; a obra de talha é de um célebre Bartolomeu minha, e tem, também, um depósito para ossos, com um
e, a pintura foi do Patrício (Patrício José da Silva) po¬ soneto da morte e o último ramo de uma poesia ou “Can¬
rém, só existe o teto dêste autor. O mais acha-se retocado. ção da Morte”, feita pelo Doutor José Bonifácio de Andrade
Tem 7 altares. O principal é da padroeira, que é Nossa Se¬ e Silva, o grande Patriarca da nossa Independência” . . .
nhora da Purificação ou da Candelária; ao lado direito es¬
tá São Pedro e, ao esquerdo, está São Paulo (isto, no altar- Convento de São Francisco:
-mór). No colateral, à direita, está Nossa Senhora do Rosá¬
rio, e no da esquerda São Miguel, lindíssima imagem. Tem
o altar do Coração de Jesus, Maria e José, outro de São José,
. . . “São Francisco— Convento de Franciscanos, uma
das mais antigas igrejas de Itú é, ainda, do gôsto jesuítico.
outro de Santa Gerturdes e outro da Senhora das Dores, Sua construção é baixa e forte, muito singela e com talha-
onde estão o Senhor Crucificado, São João e Santa Maria mento antigo. O Padroeiro é São Luiz, Bispo de Tolosa, lin¬
Madalena. da imagem tendo ao lado direito Santo Antônio e, à esquer¬
No ano de 18 . . . foi reedificada e posta no estado em da, Santa Bárbara. No altar lateral direito está a belíssima
que está pelo Padre Elias do Monte Carmello, à custa de imagem da Santa da Conceição, e abaixo, São Benedicto.
muitos e muitos sacrifícios, não só para reedificar como No altar da esquerda estão São Francisco e Nossa Senhora
munir das alfáias, utensílios, etc. de que está provida. Tem das Dores, e uma urna, dentro da qual está a venerável ima¬
êste templo, um adro com escadaria de lages à roda e, uma gem de Nosso Senhor Morto, que veio de São Paulo para
torre no centro, de altura de mais ou menos 100 palmos, e, êste Convento quando se apoderou, o Govêrno, do Conven¬
um relógio que foi feito em Itú mesmo, pelo alemão Pedro to de São Paulo, para Universidade ou Academia. O Con¬
Kiehl, residente nesta cidade. As pinturas, retoques dos pai¬ vento velho está estragado e o nôvo é grande, espaçoso e
néis e novas talhas desta Igreja, foi tudo feito na reedifica- de bom gôsto, tendo linda vista para os contornos de Itú.
ção pelos filhos da terra. Somente o teto do Patrício foi con¬ Nêste Convento foi que aprendi a tocar órgão com o Padre
servado” . . .
— A Matriz primitiva foi obra do Padre João Leite Fer¬
Mestre — Frei José de Santa Delfina, a quem devo muito
por ter-me aplicado a isto, pintura, etc. e isso pelo ano de
raz, o edificador da Capela de Nossa Senhora do Monte Ser¬ 1827. Foi, êste religioso, um dos que muitos serviços pres¬
rate, de Salto. taram a Itú. A Ordem Terceira é unida ao Convento. É um
Igreja do Hospício do Carmo, Convento do Carmo e Ca¬ templo grande e bem construído. Esteve muito tempo sem
pela do Jazigo: que os Terceiros cuidassem dêle, com gôsto. Hoje, vai em
“A Igreja do Hospício do Carmo é boa, tendo o al- progresso: tem as imagens que saem pela procissão de Cin¬
tar-mór com Nossa Senhora do Carmo, em frente; ao lado zas que são as melhores que nêste gênero tenho visto. Seu
direito, Santo Elias, e, ao esquerdo, Santa Tereza, rica ima¬ autor foi insigne. Jaz nesta Ordem o grande e estimado Dr.
gem. No altar lateral, à direita, está o Passo do Calvário, Carlos Engler, médico alemão. Esta igreja está na Rua da
com imagens pequenas, porém ótimas; no da esquerda está Palma” . . .
a Sagrada Família e, também, Nossa Senhora da Boa Mor¬
te, que tem neste Hospício a sua Irmandade. O corpo da Igreja do Senhor Bom Jesus:
Igreja tem 6 altares dos Sagrados Passos, com Imagens Di¬ ... “A Igreja do Senhor Bom Jesus, da Rua Direita, é
vinas, de uma escultura notável. Èste Hospício tem a Igre¬ um bom templo. A imagem do Senhor é respeitável, tendo
62 PROF. ARQUIMEDES DUTRA M1GUELZINHO, SUA VIDA, SUA OBRA 63
ao lado direito Nossa Senhora e, ao esquerdo, São Fran¬ diferentes Ordens, pintura de pintores ituanos, como um
cisco de Paula. O altar da direita é de Nossa Senhora da painel de Santo Ambrósio, ainda, pintura do falecido Pa¬
Conceição e o da esquerda, de Nossa Senhora do Rosário. dre Jesuino, fundador desta Igreja; os outros são de Eliseu
Tem a sua Irmandade de pretos. Desta igreja, foi Diretor e de Joaquim José de Quadros, todos falecidos.
o falecido Padre Jerônimo Pinto Rodrigues e, hoje, dirige-a Tem, esta Igreja, muitos ricos paramentos e tôdas as
o Padre Francisco Paixão, homem de virtudes, que tomou
Ordem depois de 60 anos, após ter dado tôda a sua riqueza
alfaias precisas e uma custódia doirada — a maior que há
em Itú, com os raios todos cravejados de preciosas pedras
aos pobres. Esta igreja tem uma boa sacristia, com muitos brancas. Estão sepultados nesta Igreja, somente: o seu ve¬
ricos e antigos painéis, assim como em São Francisco exis¬ nerável fundador, Padre Jesuino do Monte Carmello e os
tem: a “Morte de São José” e “Morte de Santo Antônio”, seus dois filhos, Padre Elias e Padre Simão. Em 1842, quan¬
que são pintadas por mestres antigos e insignes” . . . do foi prêso o Padre Diogo Feijó, êste veio, despedir-se dos
seus amigos falecidos e entreteve-se silencioso junto à cam¬
pa dêstes heróis da religião, e não dizendo palavra retirou-
Capela de Santa Rita: se e. . . para sempre! O Imperador Pedro II visitou esta ca¬
pela no dia 25 de março, aniversário da Constituição” (25
. . . “Está situada à esquerda da mesma rua, subindo- de março de 1846) . . .
se. É uma Capela térrea, somente à maneira de uma sala,
onde está o altar da Santa. Ao lado tem u«ia Sacristia com Santa Casa de Misericórdia:
todos os paramentos necessários para o culto e até os tem,
supérfluos. Ê muito frequentada por romeiros que vêm ... “A Misericórdia, principiada ainda em vida do Pa¬
cumprir suas promessas à Santa dos impossíveis. É Capela dre Elias do Monte Carmello, e por seus esforços, contando
de 1600 e tantos e já serviu por algum tempo de Matriz. É apenas com uma pequena deixa do falecido Caetano José
pena não ter-se aumentado, crescendo mais para trás, para Portella, de 3 ou 4 contos, penso eu. Acha-se quase pronta
acomodar o povo. A sua frente está reedificada com fron¬ ou, para bem dizer, pronta. Sua frente é respeitável: 21 jo-
tispício firme, de tijolos” . . . nelas fazem sua perspectiva, ornada com ordem e em cujo
— Esta reforma foi procedida no ano de 1728. centro ou frontão está a legenda — “Santa Casa de Mise¬
ricórdia”. Está situada no fim da Rua da Palma, olhando
para o nascente. Os cômodos da Casa são bem ordenados e
Igreja de Nossa Senhora do Patrocinio: muito asseados, tendo no centro uma Capela, tôda de talha,
obra do Marcelino, rapaz curioso que, tendo trabalhado no
... “A Igreja da Nossa Senhora do Patrocínio é no fim edifício, depois encarregou-se da feitura do altar. E, está
da rua dêste nome. Sua frente é linda, tendo duas torres e bem ordenado. O Padroeiro é São João de Deus, imagem
muito bons sinos. Sua arquitetura é nova tendo, também, feita na Itália, obra a mais perfeita que tenho visto: tem-se
o altar-mór com a Santa, muito linda. É formada de zim¬ a impressão de um ser vivo! Tem uma linda e espaçosa Sa¬
bórios e com colunatas desde a entrada, formando arcos cristia e um quintal bem plantado” . . .
até fechar o trôno que é, de Itú, o mais esbelto. Entre cada
coluna forma-se uma tribuna e de muito bom gôsto. No
tempo das festividades cada pedestal é ornado com uma es¬ Seminário do Padre Campos:
tátua de Santo ou Santa. Tôda a talha e imagens é obra do
falecido Eliseu do Monte Carmello, irmão do falecido Padre ... “O Seminário do Padre Campos, assim chamado
Elias e Simão. Tem ao lado direito, no fim do corredor, por ter êste Padre sido o seu fundador, depois que veio de
uma Capela do Santíssimo e outra do Senhor dos Aflitos e Roma, é situado no fim da Rua do Pirai, perto do córrego.
ao lado esquerdo, a Capela do Carmo e a sacristia. Nos cor¬ É edifício de taipa, assobradado, tendo unida a sí uma boa
redores inferiores e superiores há 40 painéis de Santos de Capela à moda de Roma, com naves ao lado. Não está aca-
g4 PROF. ARQUIMEDES DUTRA MIGVELZimiO, SUA VIDA, SUA OBRA 65
bado, porém, bem adiantada a sua construção. Em outros Padre Elias do Monte Carmello (Dados biográficos)
tempos serviu de Seminário” . . .
—- Oliveira Cesar recenceou, neste Seminário, duas
grandes obras da pintura ituana: a “Senhora do Bom Con¬
“Filho do falecido Padre Jesuino, imitou suas virtudes.
Desde a infância, contaram-me os seus colegas, que êste
selho”, de notável mestre italiano, seiscentista e, “Adoran¬ Padre foi muito bem morigerado, irrepreensível e de uma
do o Salvador do Mundo”, de Joaquim José de Quadros, fi¬ vida pura. Depois de Padre foi sempre muito devoto do
lho da cidade de Itú. Santíssimo Sacramento, cuja solenidade fazia com majes¬
tosa pompa no oitavário do Corpo de Deus. Seu principal
ofício foi sempre fazer congraçarem-se aqueles que anda¬
Dados biográficos do Padre Jesuino do Monte Carmello: vam com desavênças. Foi fundador do Seminário de Edu-
candas da Senhora das Mercês; foi quem reedificou a Ma¬
Jesuino Francisco de Paula Gusmão, no século, (Nas¬ triz em tempo tão difícil de recursos, no tempo do trôco do
cido em Santos em 1772 e falecido em Itú em 1819). cobre e deixou-a no estado em que se acha, munida de to¬
. . . “Êste grande sacerdote, depois de ter sido casado, das as alfaias e utensílios que existem. Foi o fundador, tam¬
de cujo matrimónio resultaram quatro filhos: Elias, Eliseu, bém, da Santa Casa de Misericórdia, com o princípio em
Simão e Maria Tereza, falecendo sua esposa, tomou a deli¬ que a deixou”.
beração de ordenar-se, o que conseguiu. Sua vida tão exem¬ Em face do depoimento que nos é dado por essa pre¬
plar, suas ocupações foram tôdas tendentes ao culto e à ciosa documentação concluímos, de modo categórico:
glória de Deus. Homem dotado das maiores habilidades. Na
pintura foi insigne: suas obras se vêm em Santos, São Paulo
—
A - Na pintura
3.°) que, embora contestado por alguns autores, o Padre Ouro Preto, Congonhas do Campo, etc. Tão cheia de méri¬
Eliseu do Monte Carmello, entalhador e escultor de profis¬ tos e valorosa é esta quanto aquela o é.
são, “autor de tôda a obra de talha e de tôdas as imagens Além disso, o valioso acervo de imagens que povoam
da Igreja da Senhora do Patrocínio foi, também, pintor. O os interiores dos templos ituanos dignificaria qualquer
certo é que: “nos corredores inferiores e superiores dadeIgre¬ di¬
grande meio artístico da época, dadas as suas reais virtu¬
ja da Senhora do Patrocínio há 40 painéis de Santos des, e, é parte importante e positiva da bagagem artística
ferentes Ordens, pintura de pintores ituanos, como um pai¬ do nosso Estado.
nel de Santo Ambrósio, ainda pintura do falecido Padre Je- Também, digno de atenção é o notável trabalho de en¬
suino, fundador desta Igreja; outros são de Eliseu e de Joa¬ talha que reveste, internamente, as paredes de suas igrejas
quim José de Quadros”, afirmam os documentos da época; e conventos, expressão decorativa de indiscutível interêsse
4.°) que, as afirmativas de Oliveira Cesar e Francisco Nar- e do mais alto quilate artesanal.
dy de que Eliseu do Monte Carmello tem painéis pintados Tudo o que compõe o cerne da arte religiosa, da cidade
na Matriz são, provavelmente, certas. Êsse pintor poderia de Itú, merece ser catalogado para que se inicie, de modo
para essa Igreja, ou, alguns de surpreendente, o “Museu de Arte Religiosa de Itú” criado,
tê-los feito especialmente ter sido re¬ recentemente, pelo atual Govêrno de São Paulo.
seus painéis da Igreja do Patrocínio poderiam
movidos para a Matriz, como não raro se praticava, na épo¬ Dizíamos que a iconografia paulista bem como a pin¬
ca; 5.°) que, realmente, o Padre Elias do Monte Carmello tura de cavalete, na Província de São Paulo, nasceram pe¬
nunca foi pintor, concordando com Mário denão Andrade e dis¬ las mãos de Miguel Arcanjo Benício da Assunção Dutra, o
cordando de outros autores. O Padre Elias poderia ter popular Miguelzinho.
feito pinturas na Matriz, de vêz que não era pintor. Os seus Pois bem.
méritos foram bastante grandes como reedificador da Ma¬ Vamos à sua história:
triz, como fundador do Seminário de Educandas e como De sua terra natal, Lorena, mudava-se para Itú, em
fundador e edificador da Santa Casa de Misericórdia, de começo do século XIX, um artista, gravador e ourives, cujos
Itú; 6.°) que, além de “Adorando o Salvador do Mundo”, de méritos eram sobremaneira notáveis pela correção e preci¬
Francisco José de Quadros e, “Senhora do Bom Conselho”,
de autor anónimo italiano, recenceados por Oliveira Cesar,
são de sua técnica — Tomaz da Silva Dutra, o popular “To-
maz Ourives”, das terras ituanas.
ainda,
no Seminário do Padre Campos, há que se incluir, “A
Dentre os seus descendentes aparecia um, aos 15 de
na arte colonial e do Io Império, como grandes obras: agosto de 1810 que nascera para engrandecer o nome da
Morte de São José” e “Morte de Santo Antônio”, pintados sua cidade e da sua pátria, como costuma acontecer aos
por mestres antigos e insignes — do Convento de São Fran¬
cisco, e, “os ricos e antigos painéis”, da
Igreja do Senhor
eleitos e predestinados — Miguel Arcanjo Benício da As¬
sunção Dutra, o “Miguelzinho”, da arte bem lançada e de¬
Bom Jesus, apontados por Miguelzinho. finida nos seus têrmos, da Imperial Província de São Paulo.
B
— Na escultura e nas obras de entalha
Urge fazer-se um levantamento da obra que constitui
cidade
O pai da iconografia paulista e precursor da pintura
de cavalete na Província de São Paulo, esplende em nossa
História das Artes pelos seus méritos reais, nada mais tra¬
todo êsse conjunto admirável da escultura sacra, da zendo que o pudesse impôr aos olhos dos seus concidadãos
de Itú. do que um espírito notável, posto a serviço de uma brilhan¬
Sôbre ser a escultura uma das grandes artes, a par da te inteligência e de uma desmedida capacidade de trabalho,
e da perso¬ atributos que Deus lhe dera, naturalmente, para suavizar
excelente plasticidade das obras apresentadas
nalidade marcante dos escultores ituanos, a madeira
mento empregado na concepção dos trabalhos,
—
atesta
ele¬
as
a pobreza material da sua vida.
Afonso de Escragnolle Taunay, nome que pronuncio
possibilidades materiais da região paulista, tão diferente com respeito, amizade e profunda admiração, diz: “Ainda
da zona de Minas, onde a mesma arte escultórica se desen¬ não se escreveu convenientemente sôbre Benício Dutra,
volveu na pedra, em grande parte, como se constata em cuja vida se escoou no interior paulista, e a cuja arte tanto
68 PROF. ARQUIMEDES DUTRA
duvidas em declarar ser complexa a sua obra e digna de sua querida igreja da Boa Morte, hoje abandonada pela
um acurado estudo técnico. descrença dos homens, atestando o olvido do repúdio!”
Não pôde, no entanto, levar avante o seu intento, pois,
logo a seguir, sofríamos a perda irreparável de seu grande
— Conheçamos esta obra, à luz irrefutável de documen¬
tos, da época:
espírito, apesar de ter à sua disposição os testemunhos ci¬ “A construção desta igreja teve início em 1853 e foi
tados, de minha propriedade e compostos de um álbum de idéia de um homem muito original, ituano e morador em
músicas contendo inúmeras composições, inclusive duas Piracicaba desde 1844, onde fundou a Irmandade da Boa
missas; peças de escultura em madeira; desenhos de arqui¬ Morte. Era êle Miguel Arcanjo Benício Dutra que, com as
tetura e de figura; vários planos de arquitetura interna de suas próprias mãos trabalhava na igreja como arquiteto,
igrejas e conventos de São Paulo, Itú, Piracicaba e outras entalhador, escultor e pintor. . . . Êste homem modesto, in¬
cidades, com detalhes de construção, por êle desenhados e fatigávelmente laborioso e imensamente talentoso teria,
executados entre 1836 e 1867, e, um album de memórias, com certeza, se houvesse recebido educação européia, an¬
datado de 1847. gariado celebridade”.
Mas, os conhecimentos de Miguelzinho atingiam raios “Em dezembro de 1850, Miguelzinho fundou a Irman¬
mais amplos do que se possa imaginar. Porisso dizíamos, de dade de Nossa Senhora da Boa Morte e, a 5 de abril de 1853,
início, ser êle portador de um espírito notável, pôsto a ser¬ iniciou a edificação do templo, cuja Capela concluiu-se em
viço de uma brilhante inteligência e de uma desmedida ca¬ 26 de junho de 1855, sendo solenemente benta no dia I.° de
pacidade de trabalho. A sua obra não poderia enquadrar-se setembro dêsse mesmo ano com o traslado da imagem de
no simples decurso de uma palestra porque, para tão larga Nossa Senhora da Boa Morte, da Matriz, para a sua igreja
soma de realizações, todo um volume seria necessário. com a maior pompa de que se teve memória na cidade de
O campeão da eloquência e conterrâneo emérito, Dr. Piracicaba.
Brasílio Machado, nome que é uma bandeira nas tradições A Capela é tôda construída de arcadas o que junta à
destas Arcadas de São Francisco, contemporâneo e conhe¬ comodidade a elegância da obra. Além da Capela-Mór tem
cedor pessoal das virtudes do artista escrevia, pela passa¬ à direita, a de Nossa Senhora da Assunção e, a esquerda, a
gem do IIo aniversário da morte de Miguelzinho, ocorrida a de Santa Rita.
22 de setembro de 1875 em Piracicaba: “Está ainda na me¬
mória de todos o que foi Miguelzinho, e os relevantes ser¬ O corpo da igreja é rematado por uma cúpula, ao cen¬
viços que durante trinta anos prestou a esta terra. Ativo,
tro, oferecendo êste detalhe, e outros mais introduzidos no
inteligente, trabalhador, era versado em quase tudo; bom conjunto, uma arquitetura nova, de grande efeito e de bela
ourives, zbom músico, excelente organista, escultor, pintor e e impressionante perspectiva”.
arquiteto; bom latinísta, versado em teologia, reunindo a
todos êstes dotes, a mais fina educação., O seu culto, porém,
— Partindo de Piracicaba, viagens penosas e longín¬
quas realizou Miguelzinho, por todo o interior, angariando
mais fervoroso, o seu fanatismo, era a caridade. fundos para a construção da sua igreja, a cujos óbulos re¬
Que o digam os pobres cujas lágrimas vivia a afogar! tribuía com pequenas lembranças de sua autoria, como: ni¬
Como político, era liberal extremado, e a imagem ve¬ chos, pequenas imagens, desenhos, etc. dos quais tenho
neranda da virtude cívica! Ninguém, como êle, provou exemplares, chegando mesmo a atingir, na sua peregrina¬
maior isenção, maior hombridade de princípios, maior ele¬ ção, Itapura e Rio de Janeiro, a cavalo.
vação de caráter. Por isso, sem ódios e sem ambições, aus¬ Sua formação religiosa, aliada à capacidade e sensibi¬
tero, mas magnânimo, logrou o grandioso intento: de pas¬ lidade artística permitiram-lhe conceber e realizar esplen-
sar, como passou, íntegro e ilêso, e o que é mais, adorado e didamente esta obra, desde os planos arquitetônicos, deco¬
respeitado por entre os corrilhos dos podres partidos desta ração das paredes e fôrro, execução de painéis, até os deta¬
nação! lhes de revestimento interno, como: trabalhos de entalha,
A morte prostrou-o, quando êle ia talvez a meio da sua escultura de imagens e demais serviços complementares, in¬
gigantesca obra de sacrifícios e sagrado entusiasmo a— clusive duas portas de crivo — que honrariam qualquer
72 PROF. ARQUIMEDES DUTRA MIGUELZINHO, SUA VIDA, SUA OBRA 73
grande artista, e um órgão para as cerimónias religiosas, cas, pintando alegorias em arcos de triunfos, erguendo co¬
cujos acordes levariam até Deus a pureza da sua fé. lunatas em côres simbólicas, prestando o concurso da sua
No entanto, a obra iniciada por Miguelzinho, com cin¬ inspiração ao realce das festividades cívicas e religiosas.
co patacas e cem mil réis, que recebera das mãos da Impe¬ Reproduziu numerosos aspectos de paisagens, edifícios,
ratriz, quando lhe entregara uma imagem de Santa Tereza costumes; e, entre o muito que produziu e perdeu-se, ou
que esculpira em jaspe, não teve o destino que se impunha que pertence a particulares, existe ainda vultosa coleção
lhe fôsse reservado pois que, o incêndio do Colégio da As¬ valiosa, incorporada ao acervo do “Museu Paulista” e “Mu¬
sunção e o total desinterêsse das Irmãs religiosas pelas coi¬ seu da Convenção de Itú”.
sas de arte, causaram-lhe a ruina. Jamais o velho artista poderia calcular a importância
Na noite de 25 de janeiro de 1891, o edifício do Colégio do seu trabalho ao fixar, em hora precisa, tudo quanto se
da Assunção, que funcionava anexo à Igreja da Boa Morte, passava no seu meio ambiente, com olhos de brasileiro ver¬
foi destruído por um pavoroso incêndio. dadeiramente amante das coisas de sua terra. Não se im¬
pressionou com os estranhos motivos, de grande efeito co-
Na reedificação dêste Colégio, aconteceu aquilo que lorístico e compositivo, daqueles que tanto exaltaram os
ninguém poderia imaginar, tal o absurdo dos seus propósi¬
tos: sob pretexto de concepção de um nôvo conjunto arqui¬ sentidos dos artistas europeus, que aportaram terras brasi¬
leiras, atraídos pela curiosidade dos têmas, não. Tudo lhe
tetônico, um peninsular italiano, de sobrenome Borelli, in¬
interessou, na multiplicidade dos assuntos: desde o histó¬
cluiu nos seus planos a demolição da igreja, e, com plena rico, folclórico, paisagístico e religioso até as singelas figu¬
autorização das Irmãs religiosas, sem o menor índice de es¬
ras dos tipos populares e de rua. A expressão da vida, toma¬
crúpulo e sensatez, procedeu-se a destruição da Boa Morte, da nos seus têrmos reais, foi registrada pelo pincel fecundo
reduzindo-se a frangalhos tôda aquela robusta expressão de de Miguelzinho, no momento em que a única possibilidade
arte que, na plenitude de sua beleza vinha abaixo, por mãos de fazê-lo surgia pela vida de acesso da pintura, dada a
impiedosas e, talvez, se consumindo a seguir, como simples inexistência, ainda, da fotografia. E, com isto, o “hoje” do
material combustível! Império pôde chegar até nós, dando asas à inspiração de
Assim, se destruía um templo de alto padrão artístico, um artista, na consecução de resultados plenamente satis¬
histórico e religioso. fatórios.
Em substituição ao conjunto primitivo, dentro dos mes¬
mos antigos limites de construção levantam-se, hoje, nos São Paulo:
altos da Paulista, os edifícios posteriormente construídos,
sob as invocações primeiras, conservadas, — de pobre ex¬
pressão arquitetônica e atestando o vandalismo praticado,
Uma visita ao “Museu Paulista” esclarecerá a impor¬
tância da contribuição dêste artista, no estudo de vários
nos tempos que se foram.
— O meu irmão, pintor Alípio Dutra, guarda consigo o
“Diário de Construção da Boa Morte”, onde o, velho artista
do passado relata, com detalhes, o seu sacrifício, as mil e
elementos pertencentes ao conjunto da nossa história, dos
nossos costumes e das nossas organizações urbanas.
Para não nos alongarmos na citação e exame dos tra¬
balhos expostos, uma vêz que todos êles aí estão para um
uma preocupações que tivera e fatos diretamente ligados à estudo analítico e conhecimento de têmas, de cunho pura¬
construção dêsse templo. mente nacional, voltemos a nossa atenção para dois dêles,
Miguelzinho se apresenta com uma bagagem enorme, apenas, tidos como dos mais importantes do conjunto e, re¬
distribuída por diferentes pontos, do Estado. presentando: l.°) local onde se deu a proclamação da nos¬
Azevedo Marques coadjuvado por Afonso de Taunay sa Independência; 2.°) um rancho de tropeiros, ao tempo
manifestam-se sôbre a sua fertilidade artística, dizendo. da Província.
“Pintor de raça, foi talvez o homem que mais pintou no Es¬ l.°) Desenhou Benício justamente, o pavilhão do Ipi-
tado de São Paulo. Percorrendo grande número de cidades ranga, por ocasião da visita de D. Pedro II à Capital da Pro¬
nessas aparecia em todos os momentos de festas patrióti- víncia. È o mais velho documento iconográfico existente
74 PROF. ARQUIMEDES DUTRA MIGUELZINHO, SUA VIDA, SUA OBRA
75
sôbre o local onde se deu a proclamação da nossa Indepen¬
dência. Como se vê, a colina está completamente deserta. O Piracicaba:
mangrulho armado em frente ao grande coreto assinala o
do Em 1844, Miguelzinho transferiu-se com sua família
lugar exato onde se verificou o histórico fato, o fundo para Piracicaba.
quadro só se vêm as montanhas da Cantareira, linda mol¬
base do mor¬ Nesta cidade sua obra se avulta!
dura de tão dilatado e pitoresco panorama. Na E, como não deveria ser assim, se os mais importantes
ro destaca-se a casa de campo de Visconde de Castro. No
mais, a solidão do caminho do Cambucí, o trilho a que se empreendimentos da cidade lhe estavam afetos? Quem tem
do mar. aos ombros a responsabilidade de responder, numa comu¬
reduzia o caminho nidade, pela construção e funcionamento de um teatro, de
2.°) “No rancho coberto de sapé e por tôda a parte aber¬ uma santa casa de misericórdia e dos seus três templos re¬
to aos ventos, nota-se uma cama armada ondeespalhadoshá um casal
acham-se em ligiosos, além de comprovada capacidade profissional
sentado; canastras, bacias, surrões monstra, por outro lado, ser merecedor da confiança dos de¬
desordem. No primeiro plano uma mulher examina o fogo di¬
rigentes da terra e de sua população.
que está aquecendo um caldeirão dependurado em tropas
tripeça.
pro¬ O projetista e edificador da Matriz de Santo Antônio,
Que estradas, que caminhos venceriam
as
planalto?” Eis, como, a de elegante porte e original arquitetura, esplendidamente
curando trazer ao litoral o café do apanhou o sentido arejada e iluminada pela inovação das “tribunas” rasgadas
agudeza de observação de um espírito
em tôda a extensão da igreja, desde o altar-mór até o côro,
descritivo do quadro e a sua função informativa. indicações desaparecida há pouco, com a criação da Diocese de Piraci¬
São de tal modo precisas e minuciosas asnão falseia, caba; o idealizador e construtor da Igreja de São Benedicto,
aí
contidas nessas aquarelas que a verdade nas quais êstes ainda existente em minha cidade, e cujos planos originais
como já foi constatado em várias pesquisas, de construção pertencem a S. Exma. Revma. D.
documentos serviram de guia para as desejadas verifica¬ Paulo de
Tarso, Bispo de Campinas; o criador absoluto da Igreja
ções. Boa Morte, da qual já tratamos, não se deteve e, indo além, da
Da cidade de São Paulo existe, ainda, uma série1835 e
enor¬
executada entre planejou e construiu a primeira Santa Casa de
me de vistas e edifícios públicos, dia da cidade, em 1865, da qual tenho a planta e o Misericór¬
1860, pertencente ao “Museu Paulista”. frontispí¬
— Em mãos de particulares, encontra-se uma larga
soma de trabalhos seus, relativos à obra de entalha e deco¬
imagens; deta¬
cio, ao tempo que punha em funcionamento
Boa Morte”, cuja chapa de impressão das suas
curiosa feitura, guardo com respeito e carinho.
o “Teatro da
entradas, de
ração dos templos paulistanos; escultura
lhes importantes e interessantes
desenhos e aquarelas fixando
como é o caso da “Cabeça de Libero
de
vultos
de
elementos
da
Badaró”,
nossa
feito
urbanos e
História,
em 1830,
Alguns dos “Sagrado Passos”, da época
— as pequeni¬
nas construções feitas especialmente para servirem nas
cissões de Domingo de Ramos são-lhe, também, devidos e,
pro¬
constituindo, êste desenho, uma peça importante e inédi¬ dêstes, um ainda existe, desafiando o espírito de destruição
que anima os homens. Singelo na sua fachada, que
ta. Pertencente ao meu irmão, o pintor João Dutra. gue no próprio alinhamento da rua, é, no entanto, deseinte¬ er¬
Sôbre templos religiosos de São Paulo, existem os ori¬
ginais de tôda a obra de entalha executada nos altares do
Convento de Santa Tereza e das igrejas do Belém e Penha,
ressante estrutura interna
— com porta trabalhada a for¬
mão, bons entalhamentos no seu bem proporcionado altar
e, com uma bela imagem de roca, representando Cristo
da lavra de Miguelzinho, esclarecendo pesquisas até agora Horto.
no
feitas e que não lograram identificar o autor dêsses conjun¬
tos. Tais documentos são de minha propriedade, estando à De São Benedicto, desapareceram todos os expressivos
disposição de todos quantos queiram examiná-los. Êstes de¬ elementos internos, inclusive um painel de Nossa Senhora
senhos, assinados, datados de 1847, 1849 e 1867, aquarela- das Dores, de Jesuino do Monte Carmello, restando-lhe ape¬
dos e envernizados a coronha trazem, além das possibilida¬ nas a massa arquitetônica.
des de variações no estilo, a escala empregada e o custo da Da Matriz de Santo Antônio, além dos desenhos de to¬
obra. dos os altares construídos por suas mãos, datados de 1847,
rjQ PROF. ARQUIMEDES DUTRA
dim”, no seu número 63, reproduz uma miniatura de Mi¬ Reverenciando a memória dêsse artista, tronco de uma
guelzinho: “Regente Feijó”, sôbre marfim, pertencente à família de pintores que têm lutado pela arte, seguindo a
coleção do Sr. Dr. Godofredo Wilken, desta Capital, assim tradição, faço minhas as palavras sentimentais de um gran¬
como tenho, também, um minúsculo livro de sua confecção, de amigo e culto conterrâneo, o Dr. Osório de Souza, ende¬
contendo a “Regola e Testamento del Seráfico Padre S. Fran¬ reçadas a êsse mesmo artista, quando fichado o seu nome
cesco”, nele aplicando uma miniatura do Santo de Assis, da no livro dos ciprestes:
qual encontrei apenas uma parte, rompida que foi, a cha¬
pa, pela insignificante espessura do marfim, de base.
Augusto Emilio Zaluar disse, em 1860, depois de exta¬ “Viver sonhando foi a tua sorte,
siar-se ante a obra de Miguelzinho: “Miguel Arcanjo Bení- morrer sorrindo foi a tua morte!
cio da Assunção Dutra é filho de Itú e só veio estabelecer- Si morte pode haver a quem na vida
se em Piracicaba em 1844. Pobre, mas honesto e honrado,
vê-lo-eis na sua infatigável atividade, percorrer as ruas da primaveras semeou de Lúz e de Arte,
cidade no modesto trajo de um homem popular, sem outro estas eternamente irão levar-te
distintivo que o recomende aos seus concidadãos mais do a palheta de auroras guarnecida.”
que a sua fisionomia franca e olhar desassombrado.
As honras e as condecorações, reparte-as o Govêrno pe¬
los que prestam serviços eleitorais e são já bem aquinhoa¬
dos pelos cofres públicos: êste há de morrer obscuro”.
O indiferentísmo que notara nos meios oficiais pelas
coisas do espírito fez com que Zaluar vaticinasse para Be-
nício Dutra o perecimento do seu nome. Felizmente enga¬
nou-se, neste ponto, o ilustre e curioso visitante.
A arte de Miguelzinho e as suas nobres qualidades mo¬ PROJETOS
rais e intelectuais atravessaram os tempos, chegando até
nós com o mesmo brilho, quando se ouve a voz sincera e CONSTRUÇÕES CIVIS
erudita dêsse grande paulista, expoente das nossas tradi¬ CONSTRUÇÕES INDUSTRIAIS
ções e da nossa cultura, que é Afonso de Escragnolle Tau-
nay, dizendo ao velho artista do passado, como que com êle INCORPORAÇÕES
conversando: “ — Benemérito Miguel Dutra, Miguelzinho
como lhe chamavam! Quanto lhe deve a nossa tradição!”
É que, no templo universal do tempo não há favoritis¬
mo, nele se agasalhando por méritos reais, longe das sim¬
patias e do protecionismo de grupos, espíritos conquistado¬
res dos mais altos planos de luz, consequência lógica da sua
destacada atuação no cumprimento dos seus desígnios, jus¬
to prémio conferido àqueles que, fugindo ao castigo das po¬
A I CONSTRUTORA
sições inferiores, souberam se libertar das trevas e da me¬
diocridade espiritual.
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R. GENERAL JARDIM, 703 - 6.° E 7.° ANDARES - TEL: 256-0411 (PABX)
O Corpo de Miguelzinho está sepultado no ângulo di¬
reito da nave principal da Igreja da Boa Morte, junto da
Capela-Mór, sem que haja nesse ponto uma lápide sequer,
fazendo lembrar a presença do seu benemérito idealizador.
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GUARUJÁ-BERTIOGA E A LIGHT