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A LIGHT ESTA Revista do

Instituto Histórico e Geográfico


COMPLETANDO GBARUJÁ - BERTIOGA
SETENTA ANOS.
MAS NÃO É SÓ ISSO
O QUE ESTAMOS COMEMORANDO.

Com a nossa energia, contri¬


buímos decisivamente para a cria¬
ção do maior parque industrial da
América Latina, concentrado na
Região Rio-São Paulo.
Concorremos para a formação
da área mais desenvolvida do País,
elevando os padrões de conforto e
bem-estar de seus 15 milhões de
habitantes.
Com o nosso trabalho, con¬
quistamos a confiança do público
brasileiro e integramos na vida da empresa, no ano dc seu 70.° aniver¬ meiros geradores continuamos ho¬
sário, 111 mil novos acionistas. je, como no princípio do século, a
Com o seu testemunho, esta¬ trabalhar pelo progresso do Brasil.
mos executando um programa de Como você vê, a Light está
ampliação de nossas redes de abas- cheia de razões para comemorar
Revista do Instituto Histórico e Geográfico

GUARUJÁ - BERTIOGA
ANO I 19 6 9 N.° 1

APRESENTAÇÃO

Com êste número o INSTITUTO HISTÓRICO E GEO¬


GRÁFICO GUARUJÁ - BERTIOGA começa a editar a sua
Revista a exemplo das instituições congéneres do País. É
mais um esforço para atender seus associados e o público
em geral, estudioso da História, da Arte e da Geografia, e
os que cultuam as tradições de nossa terra.
é para o bem delas que Esta edição apresenta as conferências pronunciadas por
trabalhamos insignes professores, no. primeiro Curso organizado por êste
sodalício em 1961, “ARTE ANTIGA NO BRASIL”, conseguin¬
do-se uma das maiores afluências que se tem conhecimento,
O mundo em que um dia estas crianças irão viver e
trabalhar terá passado por nossas mãos. Tanto nossas
nal. 2 imperioso corresponder à confiança delas.
é por isso que a Organização Philips Brasileira
S com mais de mil e quinhentos alunos inscritos.
realizações, como nossas omissões, influenciarão seu reafir¬
ma solenemente o seu propósito de que, onde quer que
futuro. Assim, é pensando nelas que a PHILIPS cons¬
trói novas fábricas, amplia seus laboratórios, aperfei¬
as novas gerações brasileiras encarem o futuro, en¬ É esta revista pois, que ora oferecemos aos nossos ami¬
contrarão ai provas de sua determinação em ajudá-las,
çoa seus produtos, contribui para o treinamento de téc-
gos, mais uma colaboração, assinalando a presença do Ins¬
nicos e cientistas, proporciona assistência educacio¬ PHILIPS símbolo universal de confiança tituto Histórico e Geográfico Guarujá - Bertioga, na divulga¬
ção constante de nossas belezas históricas, artísticas e pai¬
sagísticas, que formam o grande acêrvo. de inestimável valor,
que de nossos antepassados recebemos, representando real¬
mente o DOCUMENTO PURO E REAL QUE IDENTIFICA
A NAÇÃO BRASILEIRA.

Lúcia Piza Figueira de Mello Falkenberg


Presidente
CURSO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
GUARUJÁ BERTIOGA
“ARTE ANTIGA NO BRASIL”
Iniciado em DIRETÓRIA
7/8/1961
———
Terminado em 8/11/1961 Presidente D» Lucia Piza F. de Mello Falkenberg
Vice-presidente Ministro José Romeu Ferraz

———
realizado no salão nobre da Faculdade de Direito, da Univer¬ 2.o presidente Sr. Herminio Lunardelli
Secretário-geral Sr. Celso Corrêa Dias
sidade de São Paulo, Largo São Francisco. l.o secretário Sr. Licinio Silva Filho

l.°) — ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS


Calmon — Pedro
2.o secretário
l.o tesoureiro
2.» tesoureiro
—— Sr . Frederico G . Brotero
Sr. Armando Cambiaghi
Carlos A. Roderbourg

2.°) — deIMAGENS PAULISTAS DO


Oliveira Ribeiro Neto
SÉCULO XVI — Pedro CONSELHO DELIBERATIVO

3.°) — Lourival Gomes Machado


CARACTERÍSTICAS DO BARROCO NO BRASIL
— Dom Antonio de Lancastre
Sr. Antonio Roberto Alves Braga
Dr. Aureliano Leite
Sr. Fernando Edward, Lee
General Francisco Oliveira Chagas
Sr. Jorge da Silva Prado
Sr . Antonio S . da Cunha Bueno Sr. Jose Pereira Fernandes
4.°) — DO
ASPECTOS ARTÍSTICOS DAS VELHAS CIDADES
Sr. Armando Simone Pereira
Sr. Alvaro do Amaral
Sr. Lino Morganti
Prof. Lucas Nogueira Garcez
BRASIL
— Oscar
Campiglia Sr. Adam Von Bulow
Sr. Augusto C. B. Trigueirinho
Sr. Pedro de Oliveira R. Neto
D.a Rita Lebre de M. Correa Dias
5.°) — ROTEIRO
SÃO
DOS MONUMENTOS
PAULO — Luiz Saia
HISTÓRICOSDE
Sr. Eduardo A. Matarazzo
Sr. Eldino Fonseca Brancante
.
Dr Egon Falkenberg
Sr. Tácito Van Langend onck
Sr. W. R. Marinho Lutz

CONSELHO DA MEDALHA
Embaixador Ernesto de M. Leme Sr. Manoel Chambers de Souza
Sr. Eldino da Fonseca Brancante Dr. Pedro de Oliveira R. Neto'
Ministro Jose Romeu Ferraz D.a Rita Lebre de M. Corrêa Dias

DIRETORES DE DEPARTAMENTOS CONSELHEIROS HONORÁRIOS

Ten . Gel . Francisco Bianco Jr . Prof. Josué Callender dos Reis


Sta . Haidée Nascimento Genador Jose Ermirio de Morais
Sr. Rubens de Moura Leite Dr. J. Adihemar de Almeida Prado
A ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS

Professor Pedro Calmon

Trazido pela nímia bondade da Comissão Organizadora


dêsse esperado Curso de História da Arte Brasileira até o
Salão Nobre da gloriosa Faculdade de Direito de São Paulo,
gostaria de começar a minha preleção dedicada ao primeiro
tema do sábio programa estabelecido — as origens desta
nossa brasileira arte com a frieza pedagógica de quem, em
meio amigo, versa com familiaridade um! assunto singelo.
Mas não é possível iniciar assim a conferência que me foi
generosamente atribuída, porque, sou acolhido, de entrada,
pela palavra quente, fraterna e erudita, pela nobre palavra
paulista de Mestre Leite Cordeiro, meu prezado confrade do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Quero agradecer-lhe a bondade cativante de seus concei¬
tos e, sobretudo, à consoladora reminiscência de páginas
escritas há 25 anos, ai de mim, das quais já não me recor¬
dava. . .
Quando ouvi que êle abria um velho livro e ali encon¬
trava uns pedaços de eloquência amarelecidas pelo tempo,
como estas flores votivas que entalamos entre as páginas de
um livro de reza, tive uma incontível emoção, porque en¬
contrei, para lá do horizonte amigo da minha terra natal,
um rapaz que juntava a tradição ao direito e iniciava a sua
jornada acadêmica sob os auspícios do patriotismo cândido
e desinteressado.
Vinte e cinco anos passaram depois daquelas páginas
tão bem recitadas por Mestre Leite Cordeiro. Foi em 1936
que as disse e ainda então me ressoava aos ouvidos a oração
acadêmica de um grande paulista, dos maiores que a cultura
6 PROFESSOR PEDRO C ALMON A ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS 7

desta terra produziu: Alcantara Machado, quando teve a bri¬ arquitetura e sem escultura que os portuguêses encontraram,
lhante audácia de declarar num momento amargo da vida favorecia a importação da arte metropolitana sem compro¬
de São Paulo, que paulista era de quatrocentos anos. misso com o meio regional. Não tivemos, como o Peru e o
Também sou baiano da mesma idade e talvez esta cir¬ México, como a América Central, com aquela misteriosa e
cunstância, que não é vanglória mas respossabilidade, me florida civilização dos maias, uma cultura aborigena sôbre a
tenha dado, no início da minha carreira, o gôsto dos estudos qual o espirito experiente, e inventivo da Europa construísse
históricos e, no meio dêles, da nossa velha arte. os seus projetos estéticos. O Brasil, quando foi revelado e
Aqui falo com a escassa autoridade de quem desde os investido pelos portuguêses, carecia de manifestações artís¬
primeiros tempos de sua vida estudiosa, analisa com amor as ticas que fossem por êles aproveitadas. Tudo vem da Euro¬
relíquias nacionais. Trago, portanto, a esta tribuna ilustre é
que Mestre Ernesto Leme inclementemente lembrava que foi pa. A arte no Brasil, antes portanto de ser arte brasileira,
a arte portuguêsa, instalando-se com a suavidade cautelosa
a tribuna a que uma vez subiu Castro Alves, a mensagem de
um grupo de espíritos, os que neste pais propugnamos pela do missionário ou com o ímpeto rompante do bandeirante
preservação do nosso partimônio histórico e artístico de pro¬ nestas verdes terras, onde as tribos esquivas dos seus donos
testo e de esperança. Esperança de que a educação do povo verdadeiros não tinham modificado em cidades que fôssem
vá salvando ao longo do território da pátria quanto lembra limitadas como aquelas admiráveis cidades de grossa pedra
o passado e deve ser preservado do impiedoso camartelo do dos incas do Peru, ou culturas invejáveis como as culturas
progresso. Responsável por muita demolição injustificável, astecas do México pré-colombiano.
por muita criminosa omissão das autênticas glórias do senti¬ Tudo começa, portanto, em português, de portuguêses
mento artístico do Brasil. para portuguêses. A arte no Brasil no século XVI é um ca¬
pítulo de história modesta da arte peninsular. Com esta,
E protesto, por tudo isto que nos faz prantear Jeremias portanto, metodicamente, é que devemos começar uma in¬
tardio sôbre os muros abatidos de uma Jerusalém ideal, a
cursão pesquisadora nos domínios da nossa arte — tradicio¬
devastação que passou sôbre a nossa paisagem histórica e em
virtude da qual debalde procuramos no horizonte das nossas
cidades que se transformam, o perfil amável daqueles san¬
nal. Arte portuguêsa — também é preciso que se acrescente
prefácio cronológico da arte brasileira. Tem de ser aprecia¬
da na decomposição regional das suas expressões próprias,
tuários remotos que abençoaram as gerações primitivas, à ou seja, temos de deixar de lado a que florescia ao tempo
sombra civil, religiosa, militar daquelas construções formi¬ Del Rei D. Manuel, “O Venturoso”. Aquele gótico retarda¬
dáveis que foram uma vez o antemural defendendo a inte¬ do e rebarbativo que um, brasileiro, paulista, Francisco Adol¬
gridade do Brasil. fo de Varnhagen batizou, criando a palavra de estilo ma
Êste curso com isto se reveste de um civismo desenga¬
nado, porque se insere num programa cultural e educativo
noelino. Um gótico manoelino que deriva numa sucessão
que estava tardando nesta terra. Aqui estou, portanto, antes imediato do gótico inglês, do Mosteiro da Batalha, que é uma
superposição de estéticas, indicando aliança da Casa de Aviz
de mais nada, para agradecer. Agradeço o convite e também com a Casa de Lencaster, à roda da Batalha de Aljubarrota,
a campanha; agradeço a bondade da acolhida e também o
esse gótico ficou à margem do espírito artístico português
estímulo da iniciativa: agradeço a lição que recebo antes de como uma floração episódica, meramente alegérica, um' es¬
dar; a lição de patriotismo otimista e reivindicante que cons¬ tilo monumental que nada tinha com a índole estética, com
titui a revisão da história da arte brasileira. E entro no as¬ os sentimentos próprios do povo português, cuja expressão
sunto . artística, predominante em linha reta, que liga as primeiras
As origens da nossa arte : pergunta que poderia transfor¬ manifestações artísticas do Norte de Portugal ao barroco.
mar numa consulta. De quando data, afinal, uma arte brasi¬ Aquêle humilde estilo românico das capelas do Norte do País
leira? Circunstância negativa e peculiar ao nosso caso, não ti¬ estilo com o qual começa a História do Brasil, foi o estilo ro¬
vemos uma pré-história artística predetermiante de estilos que mânico que, já no século XII produzia pequenos templos,
fossem, depois, estilos brasileiros. Ao contrário de outras
culturas latino-americanas, a do índio nómade, pobre, sem
aconchegados de familiares, cujos frontãos
que profecia à nossa igreja colonial.
— singelam, como
8 PROFESSOR PEDRO CALM ON A arte no brasil e suas origens 9

Mas, o descobrimento do Brasil coincide com uma épo¬ adjetivo que é excessivo, porque brasileiro realmente não era,
ca de crise em que, por tôda a Europa, o estilo gótico, ga¬ mas o primeiro construtor que traz ao Brasil uma forma ar¬
nhando então êste nome que é um depreciativo, cede lugar quitetônica destinada a fixar-se como exemplo, foi um Ir¬
ao neo-clássico, ou seja, à Renascença: mão leigo da Companhia de Jesus, chamado “O irmão Fran¬
cisco Dias”. Construiu êle a capela do Colégio de Olinda,
O Brasil abre os olhos para a cultura universal, em ple¬ em Pernambuco, que ainda hoje existe a figura numa tela
no período da redescoberta e revalorização do antigo, do
grego-rom(ano, do arco inteiro, da abóbada, das colunas clás¬ admiràvelmente descritiva de FRANZ POST, capela esta que
história, é a primeira do seu gênero no país. Caracterizada pela fa¬
sicas e das quatro ordens . 0 Brasil madruga para a
num período em que as construções obedeciam ao novo gôsto chada em empena, faceada por colunas embutidas que, por
artístico de Francisco da Holanda, em nome Del Rei D . João sua humildade, carecem de capital e se encrustam na alve¬
disciplinado logo naria daquela fachada singela, uma larga porta dando no¬
III que fôra estudar em Roma, estilo êste damos, im¬ breza ao conspecto da construção, e a tôrre do campanário
em seguida pelo Concílio de Trento e que aqui
estilo barroco jesuítico. isolada, uma grossa tôrre recordando as mensagens dos cas¬
perfeitamente, o nome de telos medievais tinham igualmente o objetivo defensivo, e
Não há, por isto, no Brasil, nenhuma manifestação artís¬ um interior desafogado, de acordo com cânon do Concí¬
tica que lembre aquele manoelino ocasional do Mosteiro da lio de Trento. Adotado pelos jesuítas e que Vignola tam-
Batalha, da Tôrre de Belém e do Convento dos Jerônimos ou
da Misericórdia Velha de Lisboa. É singular isto, se a colo¬ bém interpretou na planta da igreja de Jesus de Roma, ou
seja, de maneira que tivesse o público o maior espaço dispo¬
nização brasileira se tivesse antecipado a Martim Afonso de nível em tôrno do púlpito, pois a voz de Cristo era pela
Sousa- inevitàvelmente haveria, neste país e, quem sabe, aos contra-reforma convocada pela oratória dos padres para
cuidados do Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Ber- marcar a nova ênfase da religião militante, o altar-mor era
tióga, restos góticos de uma arquitetura de transição, trans¬ separado da nave pelo arco do transepto, um grande arco ro¬
portada para o nosso país pelos mesmos artífices daqueles mano e o altar sem profundidade, não lembrando, portanto,
monumentos manoelinos . aqueles altares das basílicas e das catedrais rodeados por
A tôrre de Belém é de 1502. Quando morreu D. Manoel um anel de pequenas capelas, que na planta cabalística das
em 1521, ainda estava em construção a igreja de Santa Maria catedrais góticas lembrava ou recordava os espinhos da co¬
de Belém dos Jerônimos. A Misericórdia Velha é da época
de D. João II, quer dizer, o estilo cortesão e oficial da côrte roa de martírios de Nosso Senhor.
do Rei, em cujo reinado Pedro Alvares Cabral descobriu o O padre Cristovão de Gouveia, Superior dos jesuítas,
Brasil, era o estilo gótico manoelino. determinou em carta aos vários colégios (descoberta pelo
Em 1634, constrói-se em Portugal o primeiro monumen¬ padre Serafim Leite, incluída na sua monumental História
to autêntico e revolucionàriamente renascente, ou seja, cal¬ da Companhia de Jesus, no Brasil) que fôsse o desenho do
cado nos modelos miguelangelescos, raf aelescos, de São Pedro Irmão Francisco Dias respeitado na construção das demais
de Roma. É o pátio do Convento da Ordem de Cristo de capelas, tendo em vista e, abro um parêntese para lembrar
Thomar, por onde se inicia a propagação do neo-clásslico a
que os jesuítas dão uma interpretação austera, pobre, triste,
apostólica ou missionária, criando a arte místico-civil dos
seus colégas e das suas capelas.
de arte no Brasil

que ai porventura nasce um conceito regional e autónomo
tendo em vista a desejada uniformidade
das construções jesuíticas. Vem daí, dêsse sentido de ana¬
logia, dessa limitação canónica, daquela simplicidade mis¬
Em 1531, quando aporta Martim Afonso a S. Vicente, sionária que era a primeira interpretação da arquitetura re¬
não traz êle, evidentemente, arquitetos capazes de construir ligiosa, segundo as austeras normas do Concílio de Trento,
monumentos. Os que vêm fazer os primeiros edifícios, que o jeito que toma no Brasil essa arquitetura eclesiástica e por
iniciam a armação de estrutura urbana dêste Brasil nascente, isso se parecem, no primeiro século, tôdas as igrejas; que
já se ressentem da influência do Concílio de Trento, que é tôdas têm o mesmo frontão em empena, a mesma grande
de 1547. Já trazem a mensagem da religião e da contra-refor- porta central, a pequena janela substituindo a rosácea góti¬
ma. O primeiro arquiteto brasileiro, pedindo excusas pelo ca e a grossa tôrre sineira, que vale também como tôrre de
8 PROFESSOR PEDRO CALMON A arte no brasil e suas origens 9

Mas, o descobrimento do Brasil coincide com uma épo¬ adjetivo que é excessivo, porque brasileiro realmente não era,
ca de crise em que, por tôda a Europa, o estilo gótico, ga¬ mas o primeiro construtor que traz ao Brasil uma forma ar¬
nhando então êste nome que é um depreciativo, cede lugar quitetônica destinada a fixar-se como exemplo, foi um Ir¬
ao neo-clàssico, ou seja, à Renascença: mão leigo da Companhia de Jesus, chamado “O irmão Fran¬
cisco Dias”. Construiu êle a capela do Colégio de Olinda,
O Brasil abre os olhos para a cultura universal, em ple¬ em Pernambuco, que ainda hoje existe a figura numa tela
no período da redescoberta e revalorização do antigo, do
grego-rom(ano, do arco inteiro, da abóbada, das colunas clás¬ admiràvelmente descritiva de FRANZ POST, capela esta que
história, é a primeira do seu gênero no país. Caracterizada pela fa¬
sicas e das quatro ordens. 0 Brasil madruga para a
num período em que as construções obedeciam ao novo gôsto chada em empena, faceada por colunas embutidas que, por
artístico de Francisco da Holanda, em nome Del Rei D . João sua humildade, carecem de capital e se encrustam na alve¬
disciplinado logo naria daquela fachada singela, uma larga porta dando no¬
III que fôra estudar em Roma, estilo êste damos, im¬ breza ao conspecto da construção, e a tôrre do campanário
em seguida pelo Concílio de Trento e que aqui
estilo barroco jesuítico. isolada, uma grossa tôrre recordando as mensagens dos cas¬
perfeitamente, o nome de telos medievais tinham igualmente o objetivo defensivo, e
Não há, por isto, no Brasil, nenhuma manifestação artís¬
tica que lembre aquele manoelino ocasional do Mosteiro da
um interior desafogado, de acordo com cânon do Concí¬
lio de Trento. Adotado pelos jesuítas e que Vignola tam¬
Batalha, da Tôrre de Belém e do Convento dos Jerônimos ou
da Misericórdia Velha de Lisboa. É singular isto, se a colo¬
bém interpretou na planta da igreja de Jesus de Roma, ou
seja, de maneira que tivesse o público o maior espaço dispo¬
nização brasileira se tivesse antecipado a Martim Afonso de nível em tôrno do púlpito, pois a voz de Cristo era pela
Sousa, inevitavelmente haveria, neste país e, quem sabe, aos
cuidados do Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Ber- contra-reforma convocada pela oratória dos padres para
tióga, restos góticos de uma arquitetura de transição, trans¬ marcar a nova ênfase da religião militante, o altar-mor era
’separado da nave pelo arco do transepto, um grande arco ro¬
portada para o nosso país pelos mesmos artífices daqueles mano e o altar sem profundidade, não lembrando, portanto,
monumentos manoelinos . aqueles altares das basílicas e das catedrais rodeados por
A tôrre de Belém é de 1502. Quando morreu D. Manoel um anel de pequenas capelas, que na planta cabalística das
em 1521, ainda estava em construção a igreja de Santa Maria catedrais góticas lembrava ou recordava os espinhos da co¬
de Belém dos Jerônimos. A Misericórdia Velha é da época
de D. João II, quer dizer, o estilo cortesão e oficial da côrte roa de martírios de Nosso Senhor.
do Rei, em cujo reinado Pedro Álvares Cabral descobriu o O padre Cristovão de Gouveia, Superior dos jesuítas,
Brasil, era o estilo gótico manoelino. determinou em carta aos vários colégios (descoberta pelo
Em 1634, constrói-se em Portugal o primeiro monumen¬ padre Serafim Leite, incluída na sua monumental História
to autêntico e revolucionàriamente renascente, ou seja, cal¬ da Companhia de Jesus, no Brasil) que fôsse o desenho do
cado nos modelos miguelangelescos, rafaelescos, de São Pedro Irmão Francisco Dias respeitado na construção das demais
de Roma. É o pátio do Convento da Ordem de Cristo de capelas, tendo em vista e, abro um parêntese para lembrar
Thomar, por onde se inicia a propagação do neo-clásslico a
que. os jesuítas dão uma interpretação austera, pobre, triste,
apostólica ou missionária, criando a arte místico-civil dos
seus colégas e das suas capelas .
de arte no Brasil

que aí porventura nasce um conceito regional e autónomo
tendo em vista a desejada uniformidade
das construções jesuíticas. Vem daí, dêsse sentido de ana¬
logia, dessa limitação canónica, daquela simplicidade mis¬
Em 1531, quando aporta Martim Afonso a S. Vicente, sionária que era a primeira interpretação da arquitetura re¬
não traz êle, evidentemente, arquitetos capazes de construir ligiosa, segundo as austeras normas do Concílio de Trento,
monumentos. Os que vêm fazer os primeiros edifícios, que o jeito que toma no Brasil essa arquitetura eclesiástica e por
iniciam a armação de estrutura urbana dêste Brasil nascente, isso se parecem, no primeiro século, tôdas as igrejas; que
já se ressentem da influência do Concílio de Trento, que é tôdas têm o mesmo frontão em empena, a mesma grande
de 1547. Já trazem a mensagem da religião e da contra-refor- porta central, a pequena janela substituindo a rosácea góti¬
ma. O primeiro arquiteto brasileiro, pedindo excusas pelo ca e a grossa tôrre sineira, que vale também como tôrre de
10 PROFESSOR PEDRO CALMON A ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS 11

menágio, de refúgio em caso de ataque, como tantas vêzes mundo, tanto pelo seu exterior como pela sua arrumação in¬
sucedeu em São Paulo. Aí temos, portanto, surgindo, o es¬ terna.
tilo jesuítico pré-barrôco. Observe-se que estamos no século Fui a Cuzco, no Peru e, antes que me dissessem, apontei
XVI e pouco mais se conhece da arte nesta época, até que um templo admirável que lá existe, dizendo: ali está a Igreja
três correntes estéticas se inserem nesses primórdios de uma da Companhia. Perguntaram-me, “mas como sabia o Senhor
estética endereçada ao Brasil. A corrente que o chamaria que era a igreja dos jesuítas, se há outras igrejas monumentais
beneditina, a corrente que pode classificar-se de franciscana que podiam também ser tidas por tais?” Respondi: “é muito
e a corrente civil-militar patrocinada por engenheiros, sobre¬ simples, ela imita de uma maneira impressionante o traço de
tudo engenheiros militares portuguêses e que vêm ao Brasil Felipe Tersi, o grande arquiteto italiano, discípulo de Vignola,
edificar as fortalezas, as igrejas-catedrais e os solares ou autor do projeto de São Vicente de Fora, em Lisboa, e cujo
paços onde se hospeda a autoridade. Refiro-me a essas três risco serviu para a igreja dos jesuítas de Santarém, que se
correntes, para fugir ao equívoco em que incidem de ordi¬ repete, de uma maneira impressionante, na igreja dos jesuí¬
nário os historiadores da nossa arte: o equívoco da simplifi¬ tas da Bahia, hoje Sé Catedral.” Mas, êsse tipo> monumental
cação. Acham êles que, um perfeito estilo jesuítico jesuítico já pertence ao século seguinte. No primeiro, o tipo
barroco congloba tôdas as manifestações da arte pri¬ perfeito- exemplar e que serve de norma para imitação em
mitiva >e não vêm que paralelamente aos mestres cons¬ série foi a igreja dos jesuítas de São Sebastião, do Rio de Ja¬
trutores da Companhia de Jesus (cujo grande modêlo foi a neiro. Tive ocasião de confrontar-lhe a fotografia, pois essa
igreja do Espírito Santo de Évora e não como se julgava até igreja foi arrasada quando se demonstrou a colina onde ela
há pouco, a Igreja de S. Roque de Lisboa) se elaboraram
outras correntes ou outros movimentos artísticos cuja auto¬
ponteava
— com a capela do Irmão Francisco em Olinda.
São parentes próximos. Percebe-se o ar de família que as
nomia podemos observar, comparando-os, como por exemplo, aproxima. Pertencem ao mesmo sentido construtivo e voca¬
em relação aos franciscanos, êsses pequenos conventos rurais cional. As igrejas jesuíticas do século XVI têm uma delicio¬
espalhados pelo Brasil inteiro, em relação aos beneditinos, as sa pobreza exterior, pobreza esta que talvez, repito, derive
suas formidáveis abadias, e em relação à arquitetura civil e intuição da felicidade bucólica da tranquilidade rural das
militar, os palácios de govêrno, os baluartes e fortins e as nos¬ populações minhotas contemporâneas daquelas pequena^
sas maiores igrejas do tipo da Igreja da Cruz dos Militares, capelas românicas do século XII, do século XIV, do tempo
da Igreja da Candelária, do Rio de Janeiro. em que a Ordem do Cluny de São Bernardo missionava por
Com efeito, a arte jesuítica tinha o compromisso do en¬ Portugal, exatamente como depois os jesuítas pelo Brasil.
sino; levava consigo um programa de expansão e de conquista No interior, porém, já o estilo transige com as exigências
tanto espiritual como territorial. Os colégios dos padres não do gôsto italiano que invade a arte peninsular. Portugal no
se assemelham aos conventos das ordens contemplativas ou século XVII deixa-se avassalar pelo neo-clássico . Êste neo¬
predicantes. O colégio da Companhia distingue-se por aquilo clássico encontra um campo maravilhoso de fertilidade cria¬
que poderíamos chamar o seu funcionalismo. Realmente, o dora que é o barroco, e êste barroco, transportado para o
colégio — e já no século XVI tem esta forma, o da Bahia
era um vasto quadrilátero sem preocupação de beleza externa,
— Brasil, inspira a primeira manifestação nativa de gênio ar¬
tístico, que é o florido da nossa escultura religiosa, escultura
que, em comunhão com a arquitetura jesuítica, compõe o
virtuosamente limpo de qualquer adorno, em que sobressai
a sinceridade do material utilizado. Prêsa àquela construção primeiro quadro nitidamente brasileiro da nossa arte, isto,
acachapada e ampla, há uma igreja que ali ficara ao lado, à porém, no século XVII.
semelhança do Colégio de São Paulo, que é um tipo ortodoxo No século XVII amanhece, por outro lado, o gôsto ou
dêsse estilo, igreja esta externamente parecida com tôdas as a forma beneditina que tem como monumento máximo, ao
igrejas jesuíticas.
É uma regra em história da arte que as corporações con¬
seu tempo, um convento da Bahia. Obra
provado — — já isto está hoje
de um português, Frei Bernardo de Brito, que
seguem identificar-se através da mesma gramática estilística. escreveu — saibam os estudantes de arquitetura o primeiro
Conhece-se uma igreja jesuítica do século XVII em todo o compêndio desta arte no Brasil, segundo as lições de Sércio
A ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS 13
12 PROFESSOR PEDRO CALMON

Misericórdia da Bahia, e, na mesma cidade ,o convento de


e Serrão. ÊsteSerrão foi Luiz Serrão Pimentel, o maior Santa Teresa. Êste já com um traço de igreja italiana lem¬
construtor militar do século XVII português, discípulo dos brando a fachada de Jesus, de Vignola, e como uma
mestres francêses e responsável pelo risco das nossas princi¬ heterodoxia em relação aos modelos portuguêses era
pais fortalezas do tempo, que tôdas obedeciam ao mesmo gos¬ numa diferenciação que ressaltam um conjunto monumen¬
to, ou seja, à mesma intuição militar proveniente da enge¬ tal do edifício que lhe fica ao lado, o amplo convento dos
nharia de Luiz XVI. Mas, é na abadia do Rio de Janeiro que Carmelitas de Santa Teresa. A que, com certa audácia chamei
encontramos, afinal a arte portuguêsa adaptando-se ao meio de corrente beneditina, encontramos a de Frei João de Maga¬
colonial, conciliando as noções rígidas que trouxera com as lhães, a corrente franciscana. Portugal, cuja paisagem histó¬
necessidades locais. Graças às investigações de Frei Cle¬ rica conheço detidamente de norte a sul, tem numerosos con¬
mente da Silva Nigra, que dedicou uma larga monografia ao ventos, sobretudo aqueles minúsculos conventos arrabiados de
mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, sabemos hoje que Cintra, da serra da Arrebida, perto de Lisbo. na qual se
a planta do mosteiro beneditino do Rio de Janeiro, é do sar¬ observa a humildade, e a pobreza, bem merecia que lhe
gento-mor Francisco Frias, o mesmo autor — isto já sabía¬ chamássemos — como realmente era de franciscana. Con¬
mos antes — de um dos castelos mais perfeitos que a arqui¬
tetura militar do século XVII nos legou, que é o Forte dos
ventos saborosamente em harmonia com a paisagem que os
hospeda, como se lhes fôra um complemento sentimental,
Reis Magos, do Rio Grande do Norte, a única das nossas forta¬ miúdos casas de oração que têm um traço singelo simpàtica-
lezas que suspende muralhas quase verticais, recordando os mente popular, nada indicando a pretensão artística ou o gê¬
espessos paredões dos castelos da Idade média. Francisco Fri¬ nio do arquiteto que os concebeu. Pois bem, essa modéstia
as era até as recentes informações de Frei Clemente tido co¬ franciscana reproduz-se numa série coniderável de casas
mo o primeiro do nosso engenheiros militares. A êle já alu¬ monásticas do mesmo tipo que encontramos na Paraíba, na
de Frei Vicente de Salvador, na sua História do Brasil, es¬ Bahia, em Angra dos Reis, em Taubaté em Sorocaba, um
crita na Bahia, em 1627. pouco por tôda a parte. Casas estas que têm uma origina¬
Ignorávamos, porém, que êle tivesse traçado a planta de lidade evidente, pois são inconfundíveis e nem encon¬
um convento. Fez o de São Bento do Rio de Janeiro, o qual tramos semelhantes na metrópole. A essa corrente francisca¬
tem uma regularidade que não encontramos em nenhum na se soma, diversificando no século XVII, a arte chamada
caso análogo em Portugal. É a aliança da igreja e da resi¬ “colonial”, a corrente erudita da arquitetura civil e militar
dência monástica com um pouco de templo, um pouco de trazida ao Brasil sobretudo pelos engenheiros militares co¬
solar rural, já não uma única tôrre mas duas torres de cam¬ missionados junto das tropas locais.
panário com suas pirâmides em vez do pináculo abobadado Francisco Frias é, na ordem dos engenheiros militares
que encontramos noutras igrejas e dentro uma deliciosa conhecidos, o primeiro dêles, mas até o século XIX êsses en¬
combinação do barroco ornamental com a severidade da li- genheiros militares sãos os grandes construtores dos edifícios
linha clássica. Êsse barroco de São Bento do Rio de janeiro monumentais neste país. Devemos a êles tantas admiráveis
está providencialmente datado. É um dos raros interiores proesas de urbanismo e é o caso do traçado enxadrezado do
de igreja brasileira, que têm uma data. Num, dos tre- Rio de Janeiro, já no século XVII, e que se atribuiu a um
mos dourados daquelas paredes profusamente adornadas ês¬ engenheiro francês comissionado por Turene e Luis XIV
te milésimo ilustre: 1694. Já aí há uma plenitude escultórica para auxiliar no Brasil as forças portuguêsas. As casas de
mostrando que esta arte secundária aliada à arquitetura, à
escultura barroca revestindo as paredes interiores do templo,
adquirira uma autonomia ou uma personalidade artística pró¬
pria. A arte beneditina, por outro lado ,se desdobra e, graças a
Frei Macário de São João guarde-se-lhe o nome — outro
igreja de alva pedra

govêrno e igrejas como a Sé da Bahia e aquela admirável
que é a Ordem Terceira de São Fran¬
cisco da Bahia. É claro que tais técnicos trabalhavam nas
horas vagas do seu ofício, distraindo-se do dever precípuo
ao tempo de que era levantar as cartas geográficas.
grande arquiteto português que na Bahia floresce
Brito, temos dois monumentos que repre¬ E aqui, é dever focalizar o forte de São João da Bert^óga,
Frei Bernardo de
sentam o melhor dessa arte seiscentista, — Santa Casa da essa pequena e considerável fortaleza quinhetistas, já esbo-
14 PROFESSOR PEDRO CALMON
p

çada nas gravuras que ilustram as proesas de Hans Staden,


a única fortaleza quinhetíista que s\e conserva na sua pureza
entre nós, porque, os dos Reis Magos, iniciada em 1594, perten¬
ce, realmente, ao século XVII e hoje, graças ao bom Deus, que
proteje os homens e também um pouco as ruinas, está con¬
fiada à guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Gua-
rujá-Bertióga. Só lhe peço, a êsse Instituto, que faça com
ela como faziam no século XVI os seus heroicos defensores:
não capitule na sua defesa.
Fortalezas espalharam-se neste país pelo traço daqueles
engenheiros militares desde o Amazonas ao Prata. Os portu-
guêses bordaram as fronteiras da pátria com essas muralhas
protetoras. Baluartes portuguêses desde Tabatinga, no Rio
Javari limítrofe do Brasil amazônico até em plena campina
uruguaia como sucede com o velho reduto de Santa Tecla.
Fortalezas por tôda a parte, concebidas pelo mesmo espírito
da engenharia militar do tempo e que se foi transformando
até êsses primores arquitetônicos que são o Forte de São Pe¬
dro, da Bahia> o Forte do Mar, cuja primeira traça é ainda
daquele Sargento-Mór, Francisco Frias, a Fortaleza de Santa
Cruz, no Rio de Janeiro, que pode ser visitada como uma das
poucas que conservam intacto o seu interior, a de Paranaguá, a
de Cabedelo, etc. Mas, nos palácios e nos conventos, a arte por¬
tuguesa, no século XVII já se emancipa daquela tristeza ini¬
cial que marca de uma sobriedade virtuosa a arquitetura je¬
suítica. Os primeiros autênticos palácios feitos no Brasil, fo¬
ram na cidade-capital, que era a Bahia, o palácio do govêrno
construído no tempo do Governador Francisco Barreto e a
casa da Câmara, do mesmo período. Ai, ainda predomina a
imitação da fachada portuguêsa. O primitivo palácio do go¬
vêrno da Bahia é impressionantemente parecido com o palácio
de Almada, em Lisboa. A Câmara da Bahia — esta um explên-
dido e amplo solar — foi infelizmente desfigurado pelo gos¬
to ou pelo mau gôsto do fim do século XIX, naquele período
Fig. 1 O Forte de S. João da Bertioga (Aquarela de Alfredo N or fim)
Estado de S. Paulo
máu da cultura brasileira, em que se julgava despresível o
colonial e se procurava enfeita-lo com uns arrebiques de um
melhoramento ridículo . Foi o que sucedeu com a Câmara da
Bahia. Vestiram-na de estilo moderno, como quem vestisse
por uma incompreensível pudicícia, uma núa e explêndida es¬
tátua grega. Quando, porém, um administrador sensafo, ou
quem sabe, o nosso benemérito Serviço do Património Históri¬
co e Artístico Nacional desvestir daquela caliça póstica —
o
prédio, despojá-lo daqueles enfeites impertinentes, tirando-
lhe aquela platibanda abominável e descobrir-lhe na pureza
A ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS 17

romana a linha autêntica dos arcos completos, se verificará


que existe alí um dos mais belos palácios da época. Porém,
onde esta arte já encontra a riqueza da terra, a ambição
da terra, a influência da terra no sentido de criar uma forma
a ela apropriada, é no famoso solar do Saldanha, cujo pór¬
tico imenso está reproduzido no Museu de Arte Barroca da
fundação Alvares Penteado . Êste pórtico explêndido do paço
do Saldanha une, pela primeira vez numa fachada, a escul¬
tura ornamental à arquitetura das grandes estruturas, atra¬
vés daquelas colunas e daqueles titãs que guarnecem a nobre
porta de entrada. O barroco seria e foi o estilo pelo qual
se revelou o gênio criador do artista nativo, exatamente
porque lhe ofereceu uma superfície lisa para que êle ali,
naquela tábua rasa, situasse tudo o que a sua imaginação
criava. O estilo clássico, o estilo geométrico, o estilo cien¬
tífico que joga com o equilíbrio das massas e as dispõe sà-
biamente, não é por certo um estilo convidativo para o ar¬
rebatamento intuitivo, para o lirismo interior, para a poesia
do artista criado no meio pobre, que era a colónia, sem edu¬
cação técnica específica e conduzido à arte por uma vocação
irrepremível. Nenhum grande artista pode ser revelado num
meio modesto quando a arte se limita a reproduzir os mo¬
delos clássicos e a usar a régua e o compasso. A ciência é aí
inimiga da inspiração. Cresta o sonho, impede a manifes¬
tação explosiva do gênio inventivo. 0 barroco é o mais bra¬
sileiro e autêntico dos nossos estilos, exatamente porque é o
mais desordenado. É o mais indisciplinado e rebelde. É
aquêle que desorienta, que desnorteia e surpreende. Que é
afinal êsse estilo barroco com o qual devo terminar o ponto
que me foi confiado ,ou seja, as origens da arte brasileira;
pois é no estilo com o qual termina a obssessiva influência
européa e com o qual começa a emancipação artística bra¬
sileira. 0 próprio nome barroco já indica o signo de rebelião
estética que êsse estilo trás consigo. 0 nome “cresce”, é um
portuguesismo e oxalá assim seja porque mostra, então, a
preponderância que a cultura portuguêsa tinha no mundo
das artes. Chamavam-se barroca, a pérola imperfeita, e o
nome estendeu-se a tudo o que fôsse irregular, assimétrico
ou não geométrico, para contrariar a idéia do linear, do clás¬
sico, do que imitava os cânones de Vitruvio, as grandes re¬
gras da arquitetura greco-romano. O barroco é uma irupção
do romantismo na arte, é um sôpro tempestuoso, convulsio¬
nando aquela arte arqueológica que é Renascença. Que é a
Renascença? A Renascença artística é uma redescoberta atra-
18 PROFESSOR PEDRO CALMON

vés das imitações eruditas do antigo; antigo que fôra sepul¬


tado nos suburbios de Roma, naqueles campos de Itália de¬
vastados pelas invasões dos bárbaros e ficara naquelas colu¬
nas despedaçadas naquelas paredes a mieio demolidas. 0
pantheon de Agripa, o Capitólio eram como fragmentos de
uma erudição esparsa, desafiando a cultura que quisses in¬
terpretá-los. Chamou-se Renascença exatamente o movimen¬
to de curiosidade, no sesfido de procurar nêsses elementos
dispersos de uma arte extinta, as forças inspiradoras da
nova arte. Êsse renascimento impôs, de início, o seu
jugo tirânico. Rafael apelidou de gótico o estilo' das
catedrais, com um tom de soberano desprêso próprio de
um latino, chamando de bárbaro ao gôsto medieval. Derro¬
gou-se de repente, ludo o que a Idade Média construirá desde.
Notre Dame de Paris, para que prevalecesse aquela nova for¬
ma artística. Mas o artificial não dura muito, o postiço é efé¬
mero. Cansa-se a humanidade da imitação. A Renascença
passou logo. A sua fase romântica é exatamente a fase barro¬
ca. E como se produziu o barroquismo? Através de um rea¬
lismo fácil de observar. A arte ortodoxamente renascente
traduz-se no frontão grego. O frontão grego é um frontão
exatamente copiado com as suas linhas inteiras daquelas ruí¬
nas veneráveis. Pois bem, a imaginação do artista passa a
copiar não um frontão perfeito, mas o frontão dè ruínas que
está no chão, ou seja, da ruína rasgada ou dilacerada pelo
tempo e então as linhas se desunem. Emerge de entre os tro¬
ços daquele frontão despedaçado, uma floração imitando os
arbustos, as árvores, as flores que nasciam naqueles campos
ou ruínas. As colunas perdem a dignidade inteiriça das or¬
dens gregas; convulsiona-se as colunas salomônicas de. Rer-
nini; substituem aquelas colunas perfeitas exatamente para
terem uma feição revolucionária que tirasse da idéia do povo
a opressão daquelas formas imitadas, repetidas e frias, e o
barroco surge apropriando-se das grandes superfícies, decora¬
Fig. 2-3
— Imagens de N. S. do Rosário e N. S. da Conceição da Igreja de
São Vicente.
tivas, Interioriza-se nas igrejas, e a religião concilia-se com Estado de S. Paulo
êsse ímpeto criador. Por fora, as igrejas manteem-se marmò-
reamente austeras. São grandes fachadas que têm uma seve¬
ridade impecável; por dentro, porém, o barroco, como se
fosse uma ventania rebojando por aquelas galeriais doira¬
das, perturbada, revoluciona tudo e surge, então, as inconce¬
bíveis interpretações de uma beleza figurativa ou abstrata,
que se apropria de determinados motivos. O motivo persis¬
— —-
tente do barroco é a concha, já direi porque e, atra¬—
vés de um interminável desdobramento floral se vai distri-
A ARTE NO BRASIL E SUAS ORIGENS 21

buindo pelos tremós, pelas colunas, pelas sanefas, por todos


aquêles muros que no Brasil preferentemente se revestem de
talha doirada. Úm escultor é também um pouco o joalheiro.
Os portuguêses — sempre foram grandes joalheiros. Há o
momento, e o estilo barrôminico xurrideresco ou plateresco,
— como dizem os espanhóis — marca êste instante em
que já não se distingue o toreuta, isto é, o escultor da madei¬
ra entalhada e o ourives que desenha e faz as suas maravi¬
lhas em prata e ouro. Confundem-se o ourives e o escultor.
Surgem essas admiráveis igrejas que têm como motivo fun¬
damental a concha, de onde José de Figueiredo, o Mestre
José de Figueiredo, de Portugal chama a êsse estilo, o
estilo concheado ou barroco. Por que a concha? Talvez seja
uma contribuição original o que vou dizer aqui, mas, se me
afigura que a concha, que é a vieira, ou seja, a insígnia do
peregrino, que de viagem ouvia o caminho. É uma
palavra galêga -que ficou na heráldica. Vieira, cujás
armas falantes são conchas e que deu em resultado tornar-se
a concha um elemento artístico, descritivo nas peregrinações
de Santiago de Compostela. Pois bem, o primeiro grande
monumento autênticamente barroco, concheado, é por sinal
a igreja de Santiago de Compostela, na Galicia, igreja que,
está visto, havia de valorizar em tôda a sua decoração a
vieira ou a concha, e propagou-se de tal forma, que pode¬
mos hoje identificar a época da ornamentação barroca por
êãse elemento ornamental primário. A concha permite,
realmente, como núcleo para o desdobramento floral, uma
riqueza de conseqíiência artística, fácil de observar nos nos¬
sos admiráveis interiores doirados das igrejas do século XVII,
sobretudo do século XVIII, no Recife, na Bahia, no Rio de Ja¬
neiro, sendo aquelha talha doirada de S. Bento de 1964, um
exemplo com data marcada, da expansão e do apogeu dêsse
estilo. 0 mais brasileiro dos estilos, por isto mesmo, porque
consultava a 'inspiração livre do artista que eratão mais feliz
quanto mais engenhoso, ou seja, quanto mais folhudo, quanto
mais imaginativo, quanto mais rico em desdobramento da¬
quelas formas absurdas e maravilhosas que depois a riqueza
das nossas m'inas palhetou do vivo oiro' destas talhas fulguran¬
tes que tanto enriquecem os interiores eclesiásticos do Brasil
colonial. Mas, minhas seshoras e meus senhores, fico por aqui,
abrindosôbre a paisagem da “Arte Brasileira”, umia janela
barroca, e devo evocar porque, o modêlo em arte, ou seja, a vi¬
são direta é indispensável para dela termos uma noção ve-
22 PROFESSOR PEDRO CALMON A arte no brasil e suas origens 23

ridica e duradoura. Devo evocar o contraste das formas na campo religioso, numa época em —
que a igreja era tudo.
evolução cronológica dos estilos. Primeiro, no século XVI, a Era o batistério, era o altar dos casamentos e era a sepultura
miuda igreja do Colégio de Olinda, do Irmão Francisco Dias, dos defuntos, tornando-se, com isto, um núcleo social por
casa santuário, cuja família artística pertence a saudosa excelência daquelas localidades em tôrno do templo. De¬
igreja do Colégio de São Paulo onde o sino bandeirante senvolvia a sua vida incipiente e modesta até que, em pleno
convocou tantas vêzes o povo desta bravia terra para século XVII, uma fidalguia pretensiosa que se forma no re¬
as reuniões conciliais em que eram debatidos os interês- côncavo açucareiro, ou então, a primeira prata trazida pelos
ses e os problemas da terra pequena que se tornou, bandeirantes que vão até as possesões espanholas dêste he¬
depois, a grande terra paulista. As abadias e os con¬ misfério, transportam para as cidades que se desenvolvem,
ventos beneditinos e franciscanos, conventos formidáveis, ece- elementos artísticos que as configuram de acôrdo com mo¬
nóbios modestos, com a sua suntuosidade específica, o con¬ delos mais pretensiosos e ilustres. Oxalá não percamos de
vento de freiras, que tem de ser apreciado na “História da vista êste passado e possamos, através desta revisão da nossa
Arte Brasileira”, como um valor à parte: o de Santa Clara arte, reencontrar um Brasil que por aí anda, pulverizado,
do Destêrro, da Bahia. E os solares, tanto os palácios de depreciado e esquecido . O Brasil que, evidentemente, é mui¬
govêrno, já na época em que a repulsa ao invasor dera o es¬ to diferente do nosso; que era humilde e vago Brasil portu¬
tímulo próprio à construção portuguesa no Brasil, os sobrados guês do tempo daquelas igrejas, daqueles solares, daquelas
as casas grandes dos engenhos e das fazendas. Nos quais se vai fortalezas, mas sem o qual não podemos conceber a nossa
perdendo de vista a influência no modêlo mjetropoliatno e se civilização de hoje. Deus permita —
e é a conclusão des¬
vão criando formas e se vão estabelecendo soluções e se vão tas palavras de fé e de confiança —
que tais monumentos
indicativos da evolução nacional, continuem preservados pe¬
construindo modelos que têm a essência do meio em que per¬


tencem e do tempo em que se situam. Aquelas casas tristes lo carinho previdente das orações, porque, apagando-se da
de rótulas como ainda as há nas ladeiras vetustas de Olin¬ superfície da pátria êsses vestígios da nossa evolução, tería¬
da, em Pernambuco — essa ameaçada Olinda onde amanhe¬
ceu a civilização, e os grandes solares como o solar
mos como que abalado as raizes materiais da nacionalidade,
que estão naquele Forte que guarda, com as suas guaritas
do Saldanha, na Bahia. — de D. Antonio de Saldanha, an¬
tepassado dos condes da Ponte, um dos, poucos solares he-
desertas, o nosso vasto litoral. Naqueles solares que lem¬
bram a altivez das gerações agressivas que ajudaram a de¬
ràldicamente brasonados do Brasil seiscentita — de janelas
gradeadas. Alto portal do tipo daquelas portas altas a que
fender o pátrio torrão e as igrejas em cujos — altares cheios
de ouro e floridos e refloridos pela arte imaginosa daqueles
aludiu num dos seus sermões, o Padre Antonio Vieira, de¬ maravilhosos escultores, os nossos antepassados pediam, com
monstrando que a sociedade enriquecia, que artistas euro¬ a virtude das almas puras de outrora, felicidade e paz para
peus traziam para o Brasil a sua técnica e aqui formavam os a nossa gente e a nossa terra.
seus discípulos. Que, todavia fracos no desenho daqueles
edifícios clássicos, eram admiráveis no tratamento da ma¬
deira, na escultura dos interiores barrocos, naquela enge¬
nhosa valorização de uma arte que mobilizava tôdas as ener¬
gias inesperadas e fecundas do talento criador. Até que a
nmis velha dessas artes surge tardia; entretanto, surge expe¬
rimentando o seu campo de atividade ainda sem traço de
brasileirismo ; a pintura. A pintura que só se desenvolve
com tectos aposi o atiepulum no principio do século XVIII,
que tudo isto forma a escala evolutiva de uma arte, em
cujos traços podemos observar o desenvolvimento dos cos¬
tumes, a emancipação da sociedade que se vai despojando

da timidez inicial. A riqueza que se distribui sobretudo no
I MAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 25

oeira ou o barro, obrigando o artista a seguir outros méto¬


dos de entalhe, de escultura ou de cozimento. O exame das
nossas pedras, das nossas madeiras e de nosso barro mostra
a diferença que fazem os materiais brasileiros dos seus con¬
géneres europeus, diferença tão mais compreensível se ve-
rificármos a mudança que existe até entre os materiais co¬
lhidos ou trabalhados no Norte ou no Sul do Brasil.
IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII Quando da esplêndida Exposição de Imagens Religiosas
Brasileiras, realizada em 1954 pelo Instituto Hitórico e Geo¬
gráfico de São Paulo, como uma das inúmeras contribuições
dessa alta instituição à comemoração da passagem do quar¬
to centenário da capital paulista, tivemos ocasião de estudar
Pedro de Oliveira Ribeiro Neto largamente e de a ela nos referirmos dentro das possibilida¬
da Academia Paulista de Letras des duma introdução de catálago, a arte das pequenas ima¬
gens brasileiras, estatuária feita com gôsto e devoção por
artistas, anónimos, para os oratórios e casas particulares, sem
qualquer caracteríticas comercial ou de objeto em série.
Propositalmente- naquela exposição, a primeira que,
Cabe-me, nesta segunda palestra do curso, falar dos ao que sabemos, foi realizada no Brasil, com o concurso
Santos de barro paulista, do Século XVII, assunto da tese de grande número de colecionadores particulares, a comis¬
que apresentei e foi aprovada pelas maiores autoridades são dela encarregada excluiu a apresentação das grandes
brasileiras, portuguêsas e estudiosas das nossas coisas, no imagens das igrejas brasileiras, que constituem riquíssimo
Colóquio Luso-Brasileiro que se realizou na Bahia em 1959, manancial à parte, muito estudado e percorrido por Dom
promovido pela Universidade. Clemente da Silva Nigra O.S.B., o qual procurando os do¬
Para os estudiosos das coisas brasileiras, é fato incon¬ cumentos de encomendas e imagens aos artistas do país con¬
testável que desde a chegada dos jesuítas ao Brasil, em prin¬ seguiu localizar e cadastrar, por todo o Brasil, um notável
cípios do Século XVI, para aqui vieram artistas e artesãos património artístico de grandes escultores. Fruto dêsses pa-
de vários talentos e especialidades, que desde logo se puzeram ciêntes estudos , de pequisa das artes religiosas em nossa pá¬
a braços com o tudo a fazer. Como é natural, seguiram êsses tria e de coragem de ação, foi sem dúvida a Exposição de
artistas, a princípio consciência ou inconscientemente, na Arte Retrospectiva Brasileira, que deslumbrou o Rio de Ja¬
confecção dêsses trabalhos, os métodos e modêlos das terras neiro e seus visitantes por ocasião do XXXVI Congresso Eu¬
de origem, — de Portugal, da Espanha, da Itália, da França,
conforme o pais originário de sua formação artística. Mas
carístico Internacional, em 1955, mostra essa onde, em cada,
canto, se encontrava a presença de fato ou da orientação dês-
com o correr do tempo, porque se fôsse esmaecendo a lem¬ se formidável beneditino a quem a Bahia em bôa hora con¬
brança dos modêlos europeus, ou porque a força da terra fiou a direção do seu suntuoso Museu de Arte Sacra.
nova modificasse a concepção das coisas, ou porque se reno¬ À exposição carioca de 1955 concorreu São Paulo com
vasse o quadro de artistas, o certo é que pouco a pouco fo¬ luzida coleção de arte, que ressaltava aos olhos e aos sentidos
ram aparecendo os objetos de arte tipicamente brasileira. de quantos visitaram os vastos pavilhões, causando isso sur-
A essa modificação natural e espontânea do gôsto, de¬ prêsa à maior parte das pessoas, mesmo estudiosas e de bôa
terminando a nova forma e os novos detalhes das peças fei¬ fé, que sempre tiveram a São Paulo Colonial como um am¬
tas nos primórdios do Brasil Colónia, devem-se juntar como biente de franciscana pobreza, sem vislumbres de gôsto ou
elemento de grande realce, a falta de certos instrumentos de de arte, sucedido por um São Paulo não há dúvida progressis¬
trabalho, ocasionando a simplificação da forma, e a diferen¬ ta e audacioso, mas sem tradições artísticas, sem cultura
ça de qualidade do material trabalhado, — a pedra, a ma- e sem espiritualidade.
26 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 27

Não foram só as ricas coleções de prataria e de jóias sar de nada constar a respeito, diz-nos o instinto que essa é
pertencentes ao Museu da Cúria Metropolitana de São Paulo, a mais antiga das três imagens, pelo menos a mais primitiva
oriundos das igrejas coloniais do nosso Estado, que testemu¬ e ingénua na forma, revelando certa inexperiência do ima¬
nharam o alto nível de arte em Piratininga na era colonial. ginário no emprêgo da argila paulista. A cabeça do Santo
Sem nos referirmos à prata das custódias, das pixides, dos está bem modelada, assim como as mãos, mas o Menino Je¬
relicários, das bandejas e bacias, das banquetas de altar ou sus que estas carregam é diminuto e o hábito esculpido na
das inúmeras e enormes lâmpadas de ólio, ou às coroas e imagem, feito com simplicidade, recobre um corpo de anato¬
jóias de ouro, esculpidas em São Paulo desde o Século XVI, mia algo estranha. Supomos que na prisão João Gonçalo
para as suas igrejas e capelas particulares, a arte paulista da Fernandes esculpiu o Santo Antonio e à vista dessa imagem
escultura sobressaia naquela imponente exposição, não ape¬ é que lhe foram encomendadas as duas Virgens.
nas pela quantidade como principalmente pela qualidade e Na Sacristia da mesma Matriz de São Vicente há um São
pela antiguidade da imaginária exposta, provando que a Braz, de barro cozido e policromado, com' cêrca de 79 cms.
São Paulo pertence a primazia, no Brasil, do sucesso nêsse de altura, da primitiva igreja, contemporâneo das imagens
elevado ramo de cultura humana . De fato, do litoral paulis¬ acima descritas de Nossa Senhora e Santo Antonio, que dá
ta, de Itanhaem e São Vicente, eram as duas mais antigas o que pensar. De postura hierática e gôsto românico, com
imagens dessa exposição. Nossa Senhora da Conceição e com certo mediavalismo, apesar de ser autor desconhecido,
Nossa Senhora do Rosário, ambas de 1560, de barro cozido e essa imagem, tem o rosto e as mãos muito parecidas com. os
policromado, feitas pelo ceramista João Gonçalo Fernandes que fazia Mestre João Gonçalo Fernandes, podendo-se-lhe
(Fotos 2 e 3 Departamento de Documentação da Univer¬ atribuir, ou a um seu discípulo, a autoria dessa peça.
sidade de São Paulo) . Fato curioso é que os nomes dessas Cabe aqui uma anotação que talvez possa vir a esclare¬
duas imagens de Nossa Senhora permanecem trocados desde cer a origem dêsse Mestre que deve ter aprendido em) Portu¬
o Século XVI, quando, por engano, foi remetida a imagem da gal a fôrça de sua arte. Pela forma das figuras de pouca
Virgem do Rosário para Itanhaem e a da Virgem da Con¬ estatura, pela posição dos braços e das mãos pouco salientes,
ceição para a Igreja de São Vicente, sendo certo que a pa¬ pelo tratamento dos cabelos, da bôca pequena e expressiva,
droeira de Itanhaem, decantada nos doces versos de Anchie¬ dos olhos de pálpebras pesadas, pelo movimento incerto das
ta, é Nossa Senhora da Conceição. Por dificuldade de trans¬ pregas dos mantos das suas imagens, poderia João Gonçalo
porte não se desfez na época a atrapalhação; por questão de Fernandes ser filiado à Escola salaico-Biscainha do Norte de
rivalidade entre as vilas não se acertaram os oragos depois. Portugal, de influência gótica importada por biscainhos e
E até hoje as imagens, perfeitamente reconhecíveis em seus galegos, que deixou a sua marca em princípios do Século
tributos, têm a denominação errada. Artisticamente as duas XVI, em Caminha, em Vila do Conde, em Viana do Castelo,
estátuas se equivalem, bem, como em tamanho, em fôrça e em Braga. Teria sido aluno de João de Ruão, de cujas Vir¬
em tradição milagrosa. A que está em São Vicente tem 108 gens e Santas tirou a expressão das imagens que nos deixou
cms. de altura, a de Itanhaem 110 cms. Ambas estavam de herança? Teria visto o Santo Antonio de Covões, dêsse
muito repintadas quando foram expostas no Rio de Janeiro, mestre, de 1558, que tem a mesma posição e as mesmas des¬
e fotografadas, mas hoje aparecem nas suas Igrejas com a proporções do seu Santo Antonio de São Vicente? Sendo
sua bela policromia primitiva, livres das sucessivas e inha- certo que nessa região portuguêsa, na época, não se esculpia
beis camadas, de tinta que as desfiguraram. em barro, mas sim em madeira e principalmente em pedra,
Dé João Gonçalo Fernandes só se sabe que veio da Bahia teria João Gonçalo Fernandes encontrado certa dificuldade
em meados do Século XVI, constando que estava prêso por no trato do barro para esculpir em São Vicente, conseguindo
motivos políticos na Cadeia de Itanhaem, quando lhe foram afinal dominar a matéria nas últimas imagens que fez. São
encomendadas as imagens. De sua autoria conhecida é a ima¬ hipóteses plausíveis, que aqui consignamos como contribui¬
gem de Santo Antonio,também de barro cozido, quase em ção modesta em homenagem ao primeiro mestre da cerâmi¬
tamanho natural, que está na Matriz de São Vicente, no Es¬ ca religiosa no Brasil, gloriosamente florescida na Capitania
tado de São Paulo, logo à entrada da porta da direita. Ape¬ de Martim Afonso.
28 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 29
Da mesma época dessas imagens, contemporânea da Roberto, Maria José Botelho Egas, Darci Penteado, Reinaldo
fundação da cidade de Santos, é a escultura de Santa Cata¬ Bairão, Octales Marcondes, Eldino de Fonseca Brancante,
rina da Alexandria, que se encontra guardada na Catedral Paulo Mendes de Almeida, Stanislaw Herstal e na minha
santista, e qne foi identificada por Don Paulo de Tarso, anti¬
muito modesta coleção.
go Bispo de Santos, como sendo a imagem principal da igre¬
ja jesuítica do Outeiro de Santa Catarina. Essa imagem, com
Logo da primeira década do Século XVII ou talvez
cêrca de um metro de altura, de barro paulista, é muito se¬ mesmo de fins do século anterior é a notável imagem de
Nossa Senhora do Destêrro, de barro cozido e policromado,
melhante, na escultura, às das Virgens de João Gonçalo com 125 cms. de altura, de uma dessas coleções que figurou
Fernandes, e precisa ser limpa das inúmeras camadas de
tinta que a desfiguram, estando até com uma das mãos pin¬
em inventário de 1608, o que prova que já naquela época era
considerada objeto precioso (Foto III) . O chapéu de pere¬
tada de purpurina prateada. grina, de cerâmica, que tem pendurado às costas por um
Se as obras de arte do primeiro1 século de nossa coloni¬ cordão esculpido, é quinhentista e quinhentistas o feitio e o
zação podem ser contados a dedo, o mesmo não acontece em pregueamento do vestido. O barro de que foi feito é claro
São Paulo, no século seguinte, quando os mamelucos já to¬ e limpo, parecendo-nos dos arredores de São Paulo, mas a
rnavam conhecimento da nacionalidade e começavam a fi¬ forma do cozimento da peça dividida em secções horizontais
xar-se em fazendas, arraiais e vilas pelo interior da capita¬ que eram soldadas depois de cozidas, e a forma do trabalho
nia. escultorial denotam artistas provàvelmente português ou es¬
Na exposição promovida pelo Instituto Histórico e Geo¬ panhol. Da mesma procedência e coleção, talvez do mesmo
gráfico de São Paulo, em 1954, havia seis imagens primitivas mestre é o fragmento de Cristo da Cana Verde, de barro
paulistas, classificadas como do Século XVII, distinguindo-se cozido, com 38 cms. de altura.
a cabeça de Cristo, de barro cozido e policromado, de 1600, Em Taubaté, logo depois da fundação da vila, floriu
de Embú, da coleção Paulo Mendes de Almeida, (fotografada
também a cerâmica religiosa. Entretanto, os seus artistas
no belo livro Imagens Religiosas no Brasil, de Stanislaw
Herstal) e a Nossa Senhora da Conceição, madeira dos fins
em geral não coziam as imagens, detalhe que até hoje é tra¬
do Século XVII, de Jundiaí, coleção Francisco Roberto. Na
dicional entre os ceramistas taubateanos, e a fragilidade dis¬
so resultante é a explicação de existirem atualmente poucas
exposição do — Rio de Janeiro cresceu múito o número de
imagens seiscentistas de São Paulo, umas esculpidas em ma¬
peças seiscentistas conhecidas, da região Taubateana. Seis¬
deira, outras em barro, tôdas fortes em beleza e técnica. centistas e muito primitivas são as duas figuras de presépio,
com o Menino Deus, o Cristo de Cana e o Padre Eterno, to¬
Dessa época, feitas em madeira lá estavam o Senhor da
Pedra Fria, da Matriz de Itanhaem, Nossa Senhora do Pilar
— dos com policromia da época. A imagem do Padre Eterno,
com 25 cms. de altura, é raríssima de representação, com
e Santa Gertrudes, do Mosteiro de São Bento, em São Paulo, seus longos cabelos brancos circundando a calva, o Espirito
Nossa Senhora dos Prazeres da Matriz de Itapecerica; a Santo de asas abertas sôbre o peito, a mão direita em gesto
imagem' e a porta do Sacrário representando Sant’Ana
Mestra, em talha de madeira com belíssima policromia e in¬
— de bênção, vestido curiosamente de batina e sobrepeliz, como
genuidade, da Matriz de Sant’Ana do Parnaíba. Um grande
concepção popular da indumentária de um padre, mesmo
número de imagens paulistas da mesma época lá não figu¬ sendo o Eterno.
rou. Deixemos de lado, entretanto, as imagens de madeira Da mesma zona chamada norte do Estado de São Paulo,
de Mogi das Cruzes, Bom Sucesso e Jacarei, são as pequenas
e voltemos ao campo da cerâmica onde há tanto que inves¬
imagens de Sant’Ana Mestre, Senhor dos Passos e Santo
tigar . Agostinho, de barro cozido e policromado, da primeira me¬
Digamos desde logo, para não repetirmos vêzes sem tade do século XVII. Duma capela da vila de Santo André
conta os nomes do atuais possuidores das imagens que vamos da Borda do Campo, mas da mesma época é a Nossa Senho¬
enumerar, que além das igrejas e conventos que citamos
essas imagens estão em importantes coleções particulares, ra da Piedade, de barro cozido e policromado, com 25 cms.
hoje em coleção particular.
em São Paulo, dos Srs. Celso e Rita Corrêa Dias, Francisco
Belíssima é a imagem seiscentista de barro, provinda
30 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 31

de uma capela particular em Araçariguama, nos arredores são as obras do maior ceramista brasileiro do Século XVII,
de São Paulo, representando Sant’Ana Mestra. Essa ima¬ Frei Agostinho da Piedade, de origem portuguêsa que pro¬
gem, com cêrca de 45 cms. de altura, tem a cintura esparti¬ fessou no Mosteiro de São Bento, da cidade de Salvador em
lhada e a sáia de balão oval para os lados, bem com o pen¬ 1610. A sua grande atividade, segundo ensina Don Clemente
teado típico das nobres espanholas da época, representadas na Silva Nigra O.S.B., desenvolveu-se entre 1630 e 1642; co¬
por Velasquez, notando-se a perfeição e o bom gôsto da mo provam as inscrições em algumas das sua sobras. Fale¬
pintura de flores sôbre o fundo cinza das vestes .
Da mesma coleção, mas vinda de Mogi das Cruzes, tam¬

ceu na Bahia em 1661 . Dêsse mestre, São Paulo possue uma
obra preciosa já identificada, no seu Mosteiro de São Bento.
bém de barro paulista e de 1600, uma Nossa Senhora do É a imagem de Nossa Senhora do Monte Serrat, de barro
Leite, sentada, com a sáia amplamente pregueada, dando de cozido, com 81 cms . de altura, feita na Bahia, em 1635 . Essa
mamar ao Menino Jesus, no seio direito, enquanto com o imagem, que está com pintura e douração da época, possue
braço esquerdo segura o menino São João que os observa. importante base, tôda esculpida com cabeças de anjo, e a
O Museu Paulista possue uma imagem, de Santa Mada¬ própria túnica da Virgem é semeada de pequenos serafins
lena na Gruta, de barro cozido, do século XVII, primitiva entre meiados de flores em relêvo, muito típicas na obra
e forte, provàvelmente base de um crucifixo muito semelhan¬
te a outra imagem da mesma santa e época, da coleção Sta¬
nislaw Herstal.
Embora o fato seja desconhecido da maior parte das
dêsse Mestre imaginário.
Apesar de, ao que consta, Frei Agostinho da Piedade

nunca ter saido da Bahia depois que se fez frade, parece-nos
que há, no nosso Estado, outras obras que lhe podem ser
pessoas, mesmo das que se dedicam profundamente ao es¬ atribuídas, dependendo ainda de maior exame por parte de
tudo das coisas de arte, existe em São Paulo na seiscentista Mestres como Dom Clemente. Encontramos por exemplo,
Igreja das Chagas do Seráfico São Francisco, da Ordem Ter¬ numa capela particular em Barueri, um busto relicário de
ceira da Penitência, bem no centro da cidade de cimento ar¬ Santa Úrsula, (?) muito semelhante pela escultura e dimen¬
mado, um verdadeiro tesouro em obras de barro da primeira sões, aos bustos relicários de vários santos pertencentes ao
metade de 1600, milagrosamente, conservado em tôda a for¬ Mosteiro de São Bento, da Bahia. Êsse é certo, poderia ter
ça de sua extraordinária escultura, da sua policromia e de ido de Salvador, levado pelos monges beneditinos ou por
sua douração riquíssima, que lembram o que há de melhor algum particular. O que nos excita a curiosidade são várias
na Renascença da Europa. Refiro-me aos seis bustos reli¬ outras imagens, com as mesmas características de escultura,
cários que se encontram guardados na cláusura da benemé¬ de expressão fisionómica, de tratamento das vestes e cabelos,
rita Ordem, e que são os de São Gregório Magno e São Pio V, usadas por — Frei Agostinho da Piedade. Obras de algum, dis¬
cípulo seu, como por exemplo, Frei Agostinho de Jesus, tam¬
com 53 cms. de altura, São Renevenute, São Luiz Bispo,
Santo Apolônia e Santa Inês, êstes com 65 cms. de altura, to¬ bém grande mestre ceramista, que em São Paulo deixou farto
dos de barro claro como o paulista, cozido. Notam-se nestes repositório de primorosas imagens? Não cremos, Frei Agos¬
sólidos trabalhos, detalhes de grande ceramista, conhecedor tinho de Jesus é muito típico também e muito menos renas¬
das modas da Europa, que enfeitou os cabelos soltos das duas
Santas com magníficos diademas e flores de pedras, sôbre a
centista
— — que o outro artista monge. Talvez outro aluno?!
Algumas imagens provadamente de meados de 1600, que
poderiam ter sido feitas por Frei Agostinho da Piedade, ou
testa, como as mulheres nobres da Renascença florentina. Na
mesma igreja o São Francisco das Chagas, com cêrca de um por um dos seus alunos: Santa Bárbara, barro cozido e po-
metro é da segunda metade do século XVII, não importando licromado, largura 64 cms., da Matriz de Sant’Ana do Par-
para o tornar mais novo as volutas da base, muito diferentes naiba. Além da forma peculiar do rosto, da cebeça e das
idas usadas no Século seguinte. mãos, os enfeites em relêvo das vestes da santa sugerem a
Também dos arredores de São Paulo, da Capela de San¬ autoria de Frei Agostinho da Piedade .
ta Cruz do Corisco é a imagem de presénio da foto XXIV, Recent.emente identificamos, na bela capela seiscentista
com 40 cms. de altura, em coleção particular. da Fazenda Pirai, nos arredores de Itú, uma Santa Bárbara,
Contemporâneas dos bustos relicários, acima referidos,
32 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO

com a mesmas caracteristicas de forma escultórica e o mes¬


mo requinte de relevo das vestes, das jóias, dos cabelos, que
se veem nas .esculturas de Frei Agostinho da Piedade. Essa
imagem, de 40 cms. assenta numa base ricamente trabalha¬
da em relevos de flores e folhas muito semelhantes ao dese¬
nho da talha de madeira do altar, o que achamos curioso
notar para o caso dessa imagem ter sido trazida da Bahia.
A muito dramática Nossa Senhora da Piedade, da Sa¬
cristia da Matriz de Parnaíba, de barro cozido com cêrca de
60 çms. de altura, infelizmente muito repintada, também
parece dêsse mestre imaginário, como a tão sugestiva e bela
Nossa Senhora da Assunção, de barro cozido, com 64 cms.
de altura, dos arredores de Parnaíba, de uma capela parti¬
cular de 1640. Notem-se a escultura do rosto e das mãos, a
linha do pescoço, a expressão risonha da bôca, as mãos com
pulsos largos e dedos de pontas quadradas, as flores em relê-
vo do manto e os rostos dos serafins, idênticos aos das outras
obras de Frei Agostinho da Piedade.
Da mesma escola e da nossa época, mas de barro claro
paulista cozido, com a altura de 70 cms. vemos em coleção
paulista, uma poderosa Nossa Senhora da Ajuda, forte e
convincente, das cercanias de São Paulo, com bôa policro¬
mia da época. O formato do rosto e do pescoço, a boca e
o nariz afilado, o trabalho dos cabelos e das mãos, são se¬
melhantes aos do mestre ceramista da Bahia, mas o preguea¬
do e o panejamento das roupas, principalmente o do manto
ziguezagueante e assimétrico, já lembram as influências es¬
panholas que não foram seguidas pelo Frei da Piedade.
Outras imagens seiscentistas de barro, feitas em São
Paulo, de autores anónimos e sem filiação de escola, são
ainda conhecidas e localizadas, entre as quais destacamos a
importantíssima imagem de Nossa Senhora dos Remédios,
maior que a estatura natural, da Irmandade dos Homens-
Pretos; a imagem de Nossa Senhora da Conceição, em ta¬
manho natural, na capela do morro da qual é padroeira, em
Taubaté (Barro cozido) ; a imagem de Santa Escolástica, com
a túnica pregueada como as imagens seiscentistas portuguê-
sas beneditinas de Arouca, da igreja do morro de São Bento,
em Santos; as imponentes imagens de São Bento e Santa Es¬
colástica, encontradas numa capela de São Bernado do Campo
e hoje colocadas dos lados do alto-mór da Igreja de São Bento,
em São Paulo; a Nossa Senhora do Rosário com 28 cms. de
altura, barro cozido da Igreja do Embú; a Nossa Senhora do São Vicente — Igreja Matriz
— Imagens ignoradas.
Estado de S. Paulo
IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 35

Rosário da Matriz de Cananéa; a imagens de Santo Antonio


e São Francisco da Matriz de Itanhaem.
Neste ponto devemos notar o aparecimento em nossas
coleções de três belas imagens de barro paulista, do 1600,
representando Nossa Senhora do Ó, com o corpo deformado
pela gravidez, sob o hábito da irmandade de Nossa Senhora
do Carmo . Além de terem o mesmo hábito, as três santas têm
o mesmo gesto gracioso e garrido de segurar o escapulário,
como que a sublinhar o divino fardo. Uma das imagens foi
encontrada na zona de Sabará, em Minas, onde está a linda
Igreja de Nossa Senhora do Ó, mandada fazer pelo paulista
Borba Gato. As outras duas são, uma da zona da Serra Ne¬
gra e outra de Mogi, ambas encontradas em São Paulo, sen¬
do que a escultura da Santa de Mogi, com brincos e enfeites
sôbre a testa, lembra a dos bustos-relicários da Igreja de
São Francisco da Penitência, acima referidos.
O fato dessas imagens estarem com o hábito carmelita,
parece-me que se explica pela grande amizade, com os frades
de Nossa Senhora do Carmo, dos bandeirantes José Preto e
Manoel Preto, que eram muito devotos da Virgem do Ó.
(Acabamos de enumerar apenas algumas imagens seis¬
centistas, cuja escultura não está filiadas a escolas determi¬
nadas, mas inúmeras outras peças conhecemos, de grandes
coleções paulistas, saídas das mãos de Frei Agostinho de
Jesus, discípulo dileto de Frei Agostinho da Piedade com o
qual trabalhou no mosteiro de São Bento da Bahia. Carioca
de nascimento, tendo estado em Portugal, para ordenar-se
beneditino em 1628, alí se aperfeiçoou como ceramista e
pintor, trazendo de volta ao Brasil os ensinamentos apreen¬
didos na Europa, onde por tôda a parte se seguiam as esco¬
las espanhola e flamenga, já barrocas, exuberantes e movi¬
mentadas. Nos Mosteiros Beneditinos da Bahia, do Rio de
Janeiro e de São Paulo, trabalhou o grande ceramista e pin¬
tor, mas em São Paulo é que se encontra a incomparável-
mente maior e mais importante parte de sua obra, bastando
notar que só para o Mosteiro de São Bento de Parnaíba Frei
Agostinho de Jesus produziu nove imagens. Dêsse mestre
ceramista, na Exposição de Arte Sacra do Rio de Janeiro, fi-
,curar am apenas quatro imagens, sendo três ligadas a São
Paulo: a Santa Gertrudes, de barro cozido, da altura de 34
cms., com o Menino Jesus no coração, do antigo Mosteiro de
São Bento de Parnaíba, hoje pertencente a Dom Clemente
da Silva Nigra; a Nossa Senhora do Ro«ár'o, de cêrca de 1650,
com 51 cms., do Mosteiro de São Bento, de São Paulo:
IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII

36 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO .


cms. de base e outros tantos de altura, que parece ser de
Frei Agostinho de Jesus; a de Santa Catarina, com 80 cms.
e a Nossa Senhora do Rosário, com 51 cms., de 1645> da de rosto quadrado e postura muito semelhante à da escultu¬
Matriz de Parnaiba, com a sua importantíssima base onde se ras de Frei Agostinho de Piedade, e a de São Benedito, numa
vem nada menos que doze cabeças de anjos. Outras imagens misula ao lado esquerdo do alto-mór , a única com pintura
dêsse autor existem, entretanto, que não foram expostas no da mesma época.
Rio, como a Nossa Senhora do Monte Serrat, da igrejinha
dêsse Morro em Santos e o busto relicário do Convénio de Aqui nos estamos referindo a imagens que não temos
São Francisco, em São Sebastião. A imagem de Nossa Se¬ dúvida que sejam de Frei Agostinho de Jesus, mas muitas
nhora do Rosário, de Parnaiba, com mais de um metro de outras conhecemos, de sua época em São Paulo, de autoria
altura é de Frei Agostinho de Jesus, como a Nossa Senhora incerta, que podem ser de seus discípulos. A mesma desen¬
dos Prazeres, de Itapecerica da Serra, de barro cozido, com voltura no planejamento, a mesma expressão de sorridente
cêrca de 104 cms. de altura, que estava tôda repintada mas beatitude, o mesmo porte flamengo, carnudo e exuberante
que uma equipe de amigos meus limpou da tinta nova, dei¬ nas Madonas, as mesmas bases bordadas de anjos e volutas,
xando agora com a sua bonita policromia original. Dêsse podem ser vistos nas imagens respectivamente de Nossa Se¬
Frei Agostinho são Nossa Senhora da Ajuda, de Guararema, nhora da Conceição, de barro crú, Lorena, com 40 cms.;
com, cêrca de um metro, a Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora de Nazaré, barro cozido, de Parati, com 26
Itapecerica, com perto de 40 cms., bem como a Nossa Se¬ cms.; e Nossa Senhora da Conceição, barro cozido, com 21
nhora da Purificação que se encontra no Museu da Curia, e cms., Parati. Ao lado dessas imagens, pertencente ao mesmo
isso afirmamos depois de confrontarmos essas imagens com colecionador, uma magnífica Nossa Senhora do Rosário,
aquelas reconhecidamente do metre, nelas encontrando não com 50 cms., barro cozido, com corôa na cabeça do mesmo
apenas os rostos e mãos típicos, mas as roupagens e mantos material, encontrada nos arredores de São Paulo. (Se classi¬
com a mesma queda, o mesmo ritmo, as mesmas zonas trian¬ ficamos como paulistas as duas imagens de Parati é porque
gulares, as mesmas pregas. Suas santas estão geralmente na até 1726 essa cidade fazia parte da Capitania de São Paulo
mesma posição, apesar do seu tamanho variar, e as volutas, e só passou nessa data para a Capitania do Rio de Janeiro) .
anjos e asas das bases, de forma evocativa do “M.” de Maria, Mais tardia, no mesmo século XVII, parece-nos a imagem de
são tão peculiares que logo saltam à vista de quem os exa¬ Nossa Senhora do Rosário, de barro cozido, com 32 cms . pro¬
mina. Com as características de Frei Agostinho de Jesus cedente de Taubaté, da mesma coleção .
encontramos, numa coleção, uma Nossa Senhora do Rosário, Também seicentistas e paulistas são a imagem de Nossa
com 40 cms., de altura, de barro cozido, com policromia da Senhora do Rosário, com três grandes cabeças de anjos na
época e, o mais importante, uma data e uma assinatura gra¬ base com 75 cms. e a Nossa Senhora do Rosário, de 64 cms.
vadas na parte de trás da base e repetidas na parte interna, como sete cabeças de anjos e um enorme dragão sob os pés,
bem fundas e visíveis: 1678— A— 1
(minúsculo), dentro dum
arabesco. Não fôra a data, posterior à morte dêsse ceramis¬
da capela do creso paulista Guilherme Pompeu de Almeida,
ambas atribuídas a Frei Francisco dos Santos que fez o San¬
ta, e poderíamos pensar que se tratasse de obra sua. Com as to Antonio do Priorado Premostatense de Pirapora.
mesmas características da imagem de Nossa Senhora do Ro- As seis imagens de barro cozido, respectivamente: Nossa
ssário de Parnaiba, outra coleção possue uma imagem, de
35 cms., de barro cozido e policromado, vinda de família Senhora do Rosário, com cêrca de um metro de altura, Nos¬
de Porto Feliz, que era uma das cidades dos bandeirantes. sa Senhora dos Prazeres (30 cms.), Santa Luzlia (60 cms.),
É Nossa Senhora do Prazeres e tem na base oito cabeças de Santo Amaro (50 cms.) e Santo Apóstolo (55 cms.), da velha
serafins . Matriz de São Vicente, são tôdas paulistas e do 1600 .
De imponente coleção de imagens antigas da Irmandade Cabe aqui uma nota a título de curiosidade. Tendo a
de Nossa Senhora do Rosário, da cidade de Santos, destaca¬ imagem de Nossa Senhora do Rosário, feita em 1560 por
mos quatro imagens de barro cozido , indubitàvelmente seis¬ João Gonçalo Fernandes, ido para Itanhem, como
centistas:— a do or ago da igreja, que se encontra no salão
superior; a de Nossa Senhora da Piedade, com cêrca de 80
38 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO

nos referimos, e ficando em São Vicente a imagem de Nossa


Senhora da Conceição, do mesmo autor, embora com a de¬
nominação de Rosário, perceberam os vicentinos o êrro e
por isso encomendaram, no século seguinte essa imagem de
Nossa Senhora do Rosário, de um metro, que se encontra
na sacristia da histórica Matriz da cidade de Martim Afonso .
Indubitàvelmente do princípio do século XVII é a ima¬
gem de Sant’Ana com Nossa Senhora, com mats de um metro
de altura, de barro cozido e policromado, muito primitiva,
procedente de Sant’Ana do Parnaíba, hoje no Museu da Cú¬
ria Metropolitana de São Paulo, e não menos importante em
tamanho e autenticidade a imagem de Nossa Senhora da Luz,

de coleção - particular, em barro cozido, tendo gravadas
nas costas, bem visíveis, as iniciais H.R. e a data 1662, pro¬
cedente da Capela da Fazenda do Gaecá, no litoral paulista
norte, próximo a São Sebastião, outrora dos Frades Carme¬
litas.
Na modesta capela da Barra do Rio Una, também no
litoral de São Paulo, local onde no século XVII houve um
convento de Carmelitas, estão as imagens da primitiva igre¬
ja, entre as quais se vê uma Nossa Senhora da Conceição,
com cêrca de 80 cms., que pela forma alongada, pela escul¬
tura do rosto, dos cabelos e do manto, parece feita, pelo
mesmo artista da Senhora da Luz Gaecá. A imagem do
Una está muito repintada, a tal ponto que tôdas as cabeças
de anjos da base, — para mais de doze — perderam a forma
e se mudaram em rosas, tendo as asas coloridas de verde co¬
mo folhas. Da mesma capela é um Senhor dos Passos, me¬
nor que o tamanho natural, de joelhos sob o peso da Cruz, O chafariz de Antônio- Dias, em Ouro Preto.
Minas Gerais
também de barro paulista, peça preciosa que merece maior
estudo, tirando-se-lhe a roupa de cetim roxo, que encobre a
escultura do corpo e das roupagens com que foi feita.
Muito semelhante à imagem de Nossa Senhora dos Pra-
zeres, de São Vicente é a Nossa Senhora do Rosário da Cape¬
la do Sítio Santo Antonio, em São Roque, e tudo1 leva a crêr
que tenha sido o mesmo o autor das duas imagens.
Ainda notáveis no seiscentismo paulista são, no final do
século, a Nossa Senhora da Conceição da Escola Frandiscana,
de Frei Franciso dos Santos, pertencentes ao priorado Pre-
mostatense de Pirapora, de barro cozido, com 57 cms. tendo
na base a figura de Santo Antonio com o Menino, entre dois
querubins e quatro serafins, o que constitue elemento de
grande realce artístico para a peça, e as imagens de São
J MAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 41

Francisco (1 metro) e de Nossa Senhora do Rosário, também


de barro cozido, da Igreja de Nossa Senhora da Escada, de
Guararema.
Com a enumeração de tôdas essas imagens seiscentistas
de São Paulo, trabalhadas em barro, algumas de primorosa
execução, chegamos a uma fase ou diríamos mesmo escola da
segunda metade do Século XVII. Dessa escola existem vá¬
rias imagens nas nossas coleções, sendo conhecidas mais
de duzentas do mesmo tipo, românicas, severas, ôcas, com
a base lisa em fornia de tronco de cône ou de pirâmide po-
liédrica .
Tempos atrás, em conversa com uma das maiores auto¬
ridades sôbre arte colonial brasileira, referindo-nos à classi¬
ficação dessas imagens de caráter popular, ouvimos do mes¬
tre a opinião de que, a seu ver, essas imagens seriam portu¬
guesas, de Alcobaça, provàvelmente de princípios do Século
XIX. Essa opinião foi dada sem ver as peças, apenas por
descrição rapidíssima, que fizemos. Outros elementos que
colhemos depois, entretanto, convenceram-nos de que a nos¬
sa classificação está certa e não poderá ser refutada por
quem conheça detalhes da questão .
Logo ao voltarmos a São Paulo identificamos as imagens
de Alcobaça, a que se referia o m'estre, das quais temos um
São José, recolhido em Parati, e conhecemos mais cêrca de
dez imagens. Estas também têm a base ôca, como as ima¬
gens paulistas a que nos referimos, mas são de barro aver¬
melhado, de massa fina como as bilhas portuguêsas, de for¬
nia e decoração típicas da. época Império, ostentando na
base, à guisa de relicário, uma pequena depressão oval. Na¬
da têm a ver, na forma, qualidade ou policromia, com as
pequenas imagens populares cuja fatura reinvindicamos pa¬
ra São Paulo seiscentista. Destas, além das fotografadas,
possuímos outras inúmeras e conhecemos cêrca de duzentas,
de vários santos e tamanhos, mas tôdas encontradas nos ar¬
redores de São Paulo, nas velhas cidades onde houve escolas
jesuíticas. Tôdas têm as mesmas características de arte e a
mesma qualidade de barro acinsentado claro, que sabemos
ser do nosso Estado porque em repetidas experiências de
ceramista verificamos que até hoje o barro paulista, quando
cozido no forno primitivo, apresenta a mesma coloração e o
mesmo aspecto do barro das ditas imagens, enquanto o barro
das outras regiões do país é completamente diferente de as-
1 ecto e consistência. Possue Pernambuco, por exemplo, ima-
42 PEDRO DE OLIVEIRA RIBEIRO NETO IMAGENS PAULISTAS NO SÉCULO XVII 43

gens aproximadamente dêsse feitio, da mesma época, mas escondida nas matas locais. 0 povo que batizou a imagem
feitas em barro escuro, de tom vermelho, muito mais grosso de São Bento com o nome de Pedro Belchior de Pontes, ao
e pesado. Em tôdas as localidades antigas, vizinhas à capi¬ que pensamos só pode ser contemporâneo do milagre pois
tal paulista, essas imagens são encontradas, e só sabemos de êsse só consta na tradição local que rodeia essa imagem.
duas ou três imagens recolhidas em outros Estados brasi¬ Essas imagens são rigorosamente da mesma linha técnica,
leiros mas cuja procedência longínqua, por desconhecida, artística e tradicional que vimos estudando, feitas com as
pode muito bem ser paulista. mesmas caracteristicas de forma e de matéria.
A principio, quando encontramos as primeiras imagens Não tivemos, nesse trabalho, qualquer intenção de exal¬
desse tipo, tivemos certa dúvida sôbre a. sua confecção, real- tar a cerâmica religiosa paulista em relação à das outras
mente ingénua, mas que pela simplicidade e lisura poderiam regiões brasileiras. Queremos apenas fixar, porque não é
ser moldadas em fôrma e assim feitas em série. Entretanto, assunto muito palmilhado, o papel de São Paulo na cerâmi¬
à medida que as várias representações dos santos, dessa fase ca religiosa do Brasil nos dois primeiros séculos de nossa
eeultórica, foram sendo por nós examinadas, chegamos à colonização .
conclusão de que cada exemplar foi feito isoladamente, por
certo com a mesma técnica e iguais caracteristicas de escola,
de conformação e de base, mas tôdas, até as que representam
o mesmo santo, absolutamente diferentes entre si pelo tama¬
nho,, geralmente entre dez e quarenta centímetros de altura,
pela variada posição e pela policromia, notando-se quanto a
esta certa predominância de ingénuo desenho florido e miú¬
do, feito com pequenos pontos .
Um fato curioso veio provar melhor a certeza das nossas
convicções a respeito da época e da origem dessas importan¬
tes obras de arte popular colonial brasileira. Quando a Co¬
missão do 4.° Centenário da cidade de São Paulo, começou a
fazer planos para os festejos que. tão feèricamente organizou,
e se resolveu a procurar uma casa paulista de sítio, da época
bandeirista, para dela fazer padrão da Casa do Bandeirante,
foi encontrada e escolhida nos terrenos outrora pertencentes
a Afonso Sardinha, perto do Butantã, uma antiga morada
colonial. Nessa casa antiquíssima morava um ancião, des¬
cendente de seus antigos proprietários, que ali nascera e vi¬
vera sempre, conhecendo as tradições locais e que guardava
ainda, no fundo do bauzinho pobre, alguns velhos trastes de
seus avoengos. Entre êsses objetos uma pequena imagem de
São Bento, com uma cobra na batina, logo chamou a atenção
do organizadores da Casa do Bandeirante, que ficaram sa¬
bendo tratar-se da última lembrança da capela daquele solar
seiscentista. Pois bem, essa imagem que é a pedra de toque da
nossa opinião acima exposta, era conhecida com a denomi¬
nação de Padre Belchior de Pontes, figura tradicional do
bandeirismo paulista de fins do século XVII e também mo¬
rador daquela zona, do qual um dos milagres celebrados era
o de ter vencido com a sua santidade uma cobra venenosa
CARACTERÍSTICAS DO BARROCO NO BRASIL 45

dêste livrinho. Alí, de maneira ainda mais maçante do que


aquela em que agora me dirijo às Senhoras e aos Senhores,
procurei condensar as múltiplas teorias que surgiram sôbre
o barroco nos últimos 60 anos e sobretudo buscar um sentido
para estas teorias, um sentido geral que a tôdas. unisse. Não
sei se o consegui, nem será êste o momento de repetir a sú¬
CARACTERÍSTICAS DO BARRÔCO NO BRASIL mula dessas teorias, mesmo porque bastaria lembrar, assim
pela rama, que aos teóricos o barroco sempre desafiou e que
êles procuraram responder a esse desafio colocando-se em
duas posições fundamentais.
Há teorias do barroco que procuram explicar o fenôme¬
Lourival Gomes Machado no dizendo que o espírito humano tem certas constantes, e
que estas constantes sempre reaparecerão na história da
arte: ocupam essa posição tanto um Wolfflin, que opôs o
conceito de clássico ao conceito de barroco, quanto um
Focillon, que retomou a idéia de Wolfflin para dizer que
dentro de todos os estilos há uni momento pré-clássico, um
Sejamos sinceros: em sua relativa indefinição, “barro¬ momento clássico e um momento barroco, e mesmo o ta¬
co” é uma linda palavra. Estranha já na sonoridade de vo¬ lento, um pouco descabelado, de Eugênio D’Ors ao dizer que
cábulo, de formação ignorada uma palavra, enfim, o barroco é um “eon“, têrmo grego bastante vago, que assim o
cheia de mistério, cheia atrações, porém ainda, em quis para qualificar uma espécie de recorrência fatal do
grande parte, indefinida. E quando incluímos a pa¬ espírito humano, em tôdas as culturas, em tôdas as épocas.
lavra “barroco”, na expressão “barroco no Brasil”, crescem Para êste primeiro grupo de teorias, o barroco se apresenta
os problemas em que se torne mais clara a definição básica, como uma espécie de fatalidade, um inevitável histórico : os
porque é de supor — todos o supomos, e nessa suposição se ba¬ homens ora são clássicos, ora são barrocos, e haverão sem¬
seia nossa curiosidade e o nosso encanto ao estudar o barro¬ pre de ser clássicos e depois barrocos: porque, a alma huma¬
co no Brasil — que aqui, efetivamente, esta forma de arte
assumiu caracteres tais, que nos autoriza a falar de um bar¬
na primeiro tende à organização clara, racional, retilínea,
construtiva, funcional das coisas belas, para no momento
roco nosso, senão em oposição, ao menos em diferenciação seguinte cansar-se de tais proposições e volver-se para o que
do barroco Europeu. Perdoem, portanto, mas teremos de, é complexo e curvilíneo, para o que é rico e emocional, para
juntos, passar por esta porta estreita, que é a definição do o que é movimentado e expressivo. Não será preciso acres¬
barroco . centar que, sempre, êsses teóricos caem num pecadilho an-
Comecemos por tentar lembrar — não para positivar,
mas apenas para lembrar, que são muitas e conflitantes as
tebarrôco. Supõem que o barroco vem depois do clássico, e
vindo depois, quase fatalmente assume um sabor de deca¬
definições que o barroco inspirou, na Europa, aos analistas dência. Então, à luz dessas teorias, o barroco da Europa, que
e aos teóricos da arte e da filosofia da cultura. Eu próprio, floresce nos anos 600 para entrar pelos 700 a dentro, seria
sempre fiel à denominação que há pouco lembrava certa vez .ima espécie de queda inevitável depois do classissismo re-
escrevi um livrinho dedicado às teorias do barroco: tenho nascente .
ouvido falar das suas virtudes medicinais contra a insónia Contra esta proposição teórica, ergue-se o grupo de ana¬
e também das suas virtudes políticas. Publicado pe¬ listas e doutrinários que procuram lembrar que o barroco
lo Ministério da Educação, todos reclamam de mim não en¬ Europeu apareceu e se desenvolveu ligado a determinada
contrá-lo nas livrarias, mas, em compensação, tenho tam¬ conjuntura social e, nessa conjuntura, se mesclou ou mesmo
bém ouvido um profundo silêncio acêrca da parte teórica se subordinou a determinados fatores, a determinados gru¬
pos, a determinadas forças operantes na vida coletiva. Aqui,
46 LOURIVAL GOMES MACHADO CARACTERISTICAS DO BARRÔCO NO BRASIL 47

um Weisbach, por exemplo, sempre estará, disposto a dizer- porque com êles a arte atingira os auges do ideal. Que de-
nos que o barroco é a arte da contra-reforma, exato título pois de um Leonardo, depois de um Michel Ângelo, depois
do seu livro, isto é, que o barroco foi criação do jesuitismo de um Raphael, seria inócuo tentar fazer arte diferente ou
na necessidade de redecorar as igrejas, de reambientar o maior. Chegamos ao cúme dizia Vasari e realmente fôra
sagrado no artístico de forma que voltasse a ser comunica¬ atingido um máximo, porém adstrito às proposições do Re¬
tivo a ponto tal, que a paixão estética já fôsse um começo do nascimento, cuja arte do renascimento fôra essencialmente a
fervor da fé. Imediatamente ao lado de um Weisbach, va¬ tomada de posse visual do homem sôbre os fenômenos da
mos, porém, encontrar um Leo Ballet para dizer-nos que natureza que os cercava. Uma vez atingida a culminância,
não, que efetivamente o barroco não correspondeu à contra- houve efetivamente a dificuldade revelada pelos maneiristas
reforma, mas sim ao absolutismo dos reis, pois foram os que se seguiram aos renascentes; que não sabiam pintar
grandes monarcas, que precisaram de um estilo que se identi¬ senão “à maneira” de Raphael ou Michel Angelo ou Leonar¬
ficasse com os caracteres do seu próprio e ilimitado poder. do ou outro de tal porte; que não ousavam pintar à sua pró¬
E vale a pena lembrar que essa teoria traaç paralelos entre pria maneira. Mas, porque a arte é sempre mais forte do
o mundo ilimitado dos déspotas e o movimento sem fim das que os artistas, pouco a pouco e sempre julgando simples¬
formas barrocas: entre, por exemplo, a expansão incontida mente continuar o caminho dos grandes e velhos mestres,
do poder dos reis, qua queriam mandar em territórios cada foram os maneiristas abrindo perspectivas novas, dentro
vez maiores, e a beleza imposifiva do barroco, que não1 se con¬ •las quais, subitamente, surge um Caravaggio fragmentando,
tenta, por exemplo, num ornato, em vibrar e em comunicar- pela sombra e luz, o fenômeno ótico que orientava a sua
se apenas em seu campo, mas tende a invadir e dominar todo visão plástica e, portanto, propondo uma nova arte que, nes¬
o espaço monumental. E afinal, a espécie de irrefreável te caso e no campo da pintura, já é, plenamente, o barrôco.
contradição da natureza que se incarna nos monarcas abso¬ Um Borromine, um Bernini, na arquitetura e na escultura,
lutos, incapazes de respeitar a liberdade natural dos indi¬ encontrariam caminhos simétricos aos que encontrou, na
víduos, e no barroco a competir com a natureza, a fazer ima¬ pintura, Caravaggio .
gem do natural, tão próximas da natureza que, ao olhá-las, Mas então, como vemos, tôdas as teorias são argutas e
temos a impressão de ver um homem de um santo, artistica¬ belas porém nenhuma parece recobrir a inteira realidade do
mente feitos, isto é, perfeitos, tal-e qual a natureza raramen¬ barrôco. Tôdas, a meu ver, padecem de alguma defeito,
te é capaz de produzir. mas também gozam de uma virtude muito rara nas teorias,
porquanto, opondo-se não se destroem, antes se completam,
Como vêm as senhoras e os senhores, estamos agora porque tôdas afinal, acabam por mostrar-se apenas como
bem longe das teorias que queriam fazer do barroco uma teorias parciais que somadas, se não recobrem tôda a rea¬
constante do espírito humano, pois o segundo grupo de teó¬ lidade do barrôco, ao menos indicam-nos um caminho para
ricos procura explicar o barrôco como algo entrosado direta¬ compreendê-la melhor e mais amplamente. Assim, não cus¬
mente na vida social a que veio dar expressão artística. Vi¬ ta abrir os olhos, sem preconceitos teóricos e verificar que,
uma vez surgido o barrôco na Europa, a Europa inteira se
da social que uns procuram no político, outros no religioso b'arroquizou e, no reconhecê-lo, já não cabem, mais linhas
e, então, caberá lembrar que há os mais modestos, e os discriminatórias, já não cabe mais dizer, por exemplo, que a
mais modestos são sempre intelectualmente os mais verda¬ Itália é “a terra do barrôco”, pois também o Norte da Euro¬
deiros e efetivos quando, à maneira de um Dvorak, por pa está recoberto pelo melhor barrôco. Já não cabe recla¬
exemplo, nos contam como o barrôco surge enquanto forma mar, como origem de um dos ramos do barroquismo, o Con¬
da arte dentro da história da arte. Dvorak nos mostra que, cílio de Trento, porque não só os países católicos, mas tam¬
bém os protestantes, se barroquizam plenamente. Já não
de uma certa maneira, o velho Vasari, que convivera com os cabe sequer insistir em que o barrôco convinha aos monar¬
gigantes do Renascimento, tinha razão quando dizia que, cas absolutos, porque não são apenas as grandes monarquias,
depois dos renascentes não poderia mais haver arte “nova”, senão igualmente as repúblicas burguêsas, a exemplo dos Paí-
48 LOURIEAL GOMES MACHADO

ses Baixos, que produzem estupendo barroco. E desmerece


até mesmo aquela distinção que de comum se faz entre o
sacro e o profano, pois quando visitamos a Europa à procura
do barroco, êste se multiplica e desconhece dimensões geo¬
gráficas, políticas, religiosas. Recobre o ecumeno europeu
do Século XVII; então, não se saberia dizer1 onde está
o barroco» se na “Gesú” romana, ou se na Gran-
Place de Bruxelas, isto e, se no templo decorado para exal¬
tação sacral, ou se na praça pública em que as guildas de
mercadorias e navegadores procuraram patentear sua pros¬
peridade sindical em barroquizadas fachadas de pedra. A
cada momento, a cada passo, a perspectiva do barroquismo
alarga-se de tal maneira que, afinal, me consenti dizer, com
um pouco de ousadia (e o disse talvez um, pouco antes de
poder explicá-lo bem, de maneira que o repito agora na es¬
perança de sair-me menos mal na explicação) que o barro¬
co, em si só, pode ser compreendido, na minha pobre manei¬
ra de vêr, como uma “formas mentis” definindo uma cultura
bem caracterizada.
Se usei essa expressão latina, por favor não pensem que
vá entregar-me à metafísica. Por “forma mentis”, entendo
uma maneira de comportamento mental considerada em si
mesma, nada difícil de compreender-se. Afinal as for¬
mas mentais consideradas em si mesmas não nos chocam
quando nós as encontramos num silogismo ou numa equa¬
ção . Sabemos e aceitamos que o silogismo é uma forma, que
uma equação é uma forma; forma lógica, forma matemática,
que poderão assumir conteúdos concretos. Na equa¬
ção, os números quantitativamente representativos das rea¬
lidades palpáveis substituirão as expressões abstratas da
relação constante que se fixou algèbricamente. No silogis¬
mo, a realidade a ser equacionada vai substituir as palavras-
padrão daqueles tipos de pensamento fixados em relações
estáveis pela lógica formal. Pois bem, sem poder dar uma
expressão em números (ou em premissas maiores e menores
relacionadas com uma conclusão) da “forma mentis” do
barroco, proponho que aceitemos, provisoriamente, a exis¬ Ornato Barroco
tência dessa “forma mentis”, uma forma mental, uma estru¬
tura intelectual como outra qualquer. Uma forma válida em
si mesma e, como aquelas formas matemáticas e lógicas a
que aludia, susceptível de continuar válida e reconhecível
quando incorpora um contéudo. Êsse, em sua feição concre¬
ta e tangível, é aquilo que chamamos de estilo barroco, com¬
preendida também esta palavra — —
estilo na sua latitude
CARACT ERISTIC AS DO BARROCO NO BRASIL 51

maior, que um bom velho critico acadêmico, como Charles


Blanc, indicava ao dizer que o estilo de arte é a marca que
o espírito humano impõe à natureza, ou seja, a maneira es-
pecial pela qual os homens, em determinado momento, vêm
as coisas.
Porque jamais vemos as coisas de maneira igual. Nós
próprios, em nossa existência individual, sabemos das tran¬
sições da maneira de ver. Sentimos dificuldade em reconhe¬
cer o que antes tínhamos visto e, para não carregar em abs¬
trações, lembremo-nos — o tema é tão conhecido na nove¬
lística quanto na própria vida cotidiana
um

enfrenta
lembremo-nos da
quando, havendo
terrível dificuldade que cada
saido menino da cidade em que crescemos, para lá voltamos
adultos. O esforço para reconhecermos em seu novo dimen¬
sionamento, as mesmas coisas que de antes conhecíamos
chega a ser perturbador: em nossa mjemória infantil, a sim¬
pática pracinha da cidade do interior que um dia deixamos
lá atrás, é, efetivamente, cinco ou dez vêzes maior do que
na sua realidade física. Eis como a natureza se mostra sus-
ceptível de submeter-se à “marca” que o homem lhe impõe
e, visto que por esta marca se vai impor nossa visão à natu¬
reza, aproximamo-nos daquilo que pedia, ainda há pouco,
que aceitassem como uma “forma mentis”. Meu exemplo
primário e vulgar, caracterizou uma “forma mentis” infan¬
til. Pois bem, a mente coletiva
— —- sobretudo a mente coletiva
tem a capacidade de assumir formas e de projetar estas
formas sobre a natureza. E quando a natureza passa a ser
vista da maneira pela qual a encontramos interpretada no
barroco, a “forma mentis”' do barroco já está em ação, e
esta concretização no estilo artístico permite-nos falar de
uma estrutura barroca: estrutura que tanto é forma mental
quanto é arte realizável, que tanto é marca do homem sôbre a
realidade, quando concretização de seu poder criador. Sim,
poder de criação — porque, efetivamente, aqui estamos, emr
bora ao nível dos humanos, na perspectiva em que se coloca¬
va Decartes ao caracterizar o poder de criações continuada de
Deus. Lembram-se, os Senhores e as Senhoras, que Decartes
assegurava que se um dia Deus quisesse deixar de querer o
mundo, o mundo deixaria de existir. Se um dia, digo eu, em
nosso nível humano, os homens deixarem de ver a natureza
de determinada maneira, a natureza deixa de existir dessa
maneira, como passa a existir de outra determinada manei¬
ra desde que o homem assim a veja. Essa possibilidade de
criar o homem em paralelo à criação divina é, efetivamente,
52 LOU RIC AL GOMES MACHADO

a única definição válida de arte que conheço. Assim, partin¬


do duma noção de “forma mentis” aparentemente abstrata,
senão mesmo metafísica, viemos ter àquilo que, para manter
o luxo do latim, poderíamos chamar de “forma creata”.
Esta “forma creata”, êste barroco, o que será então?
Será a estrutura mental característica de bem determinar
a cultura: a cultura europeia do século XVII. Eis que, efeti¬
vamente, as raízes históricas desta estrutura aí estão, à nossa
vista.
jHouvera, antes, o Renascimento, houvera aquela “vita
nuova” dos renascentes que afirmara a validade do fenôme¬
no humano; que levara o homem à sua máxima dimensão:
que considerara o homem tanto mais realizado quanto mais
homem, na razão, nos sentimentos e nas paixões; que culti¬
vara o “condotiére”, como cultivara o grande amoroso, e
cultivara o filósofo, como cultivara o grande libertino, por¬
que em todos, afinal, a criatura humana alcançava uma di¬
mensão máxima .Houvera a Renascença que, nesses qua¬
dros, afirmara um poder político que era sem contraste,
porque não ser mais um poder vindo da unção divina, mas
um poder conquistado pelo pulso do homem que assaltava
castelos, do homem que sitiava cidades, do homem que pi¬
lhava as populações e, desta maneira, adquiria o direito de
mando. Houvera a Renascença que se desdobrou tanto atra¬
vés dos temas da tolerância religiosa que logo a seguiria,
quanto do próprio conhecimento científico da existência de
um universo que também desconhecia limites. Mas a Renas¬
cença definira todos os entes naturais pela própria existên¬
cia, tais como existiam. A renascença, poderíamos dizer,
apresentar-se como uma idade que pode ser conjugada pelo
verbo “ser”: para ela, as coisas são.
Ora, as coisas não são, apenas; são e, também transfor¬
mam-se. As transformações já se contêm na própria nature¬
za das coisas porque, não há existência definitivamente cris¬
talizada, ao contrário do que poderíamos supor a partir da
tal'izada. Ao contrário do que poderíamos supor a partir da
ocupa um lugar exato, a arquitetura é construção clara em
ângulos e linhas retas, o proporcionamento da composição
é estático, e tal visão nítida e imóvel, sobrepujando a arte,
chega à filosofia, à literatura, à tôdas a maneiras e campos
do conhecimento. Em verdade, os entes, que a renascença
definira pela só existência, têm em si, essencial potenciali¬
Dcsfile de ornato de Capela Mor.
dade de transformação que, já à inspeção empírica, se reve-
CARACTERÍSTICAS DO BARROCO NO BRASIL 55

lava pela tão encarecida ausência de limites. Homem sem


limites, poder sem limites, universo sem limites
de que limites se fala? Não se trata,
— sim, mas
propriamente, de au¬
sência de limites, simples noção negativa, senão de afirmar
a irrestrição inerente à natureza dos sêres, porque todos os
sêres são capazes de movimentação. 0 poder não é poder,
senão quando se impõe, e o gesto de imposição do poder já é
um movimento gerado pelo poder para realizar-se. 0 ho¬
mem só é homem quando conquista, quando conhece, quan¬
do cria, e tais, são os movimentos de apreensão ou de reelabo-
ração ou mesmo de engendramento de algo novo. Sempre,
movimentos. E o próprio universo, o sistema universal de
Copérnico já se resumia num sistema de movimentos de
corpos. Portanto, realizada a renascença, impunha-se a ne¬
cessidade de uma nova cultura que não contraditaria, mas
a prolongaria porque ’ao invés de bastar-se com definir os
sêres comío são e porque são deveria dizer como são e, so¬
bretudo, como podem vir a ser. A idéia de devir, a idéia da
transformação constante, é a idéia central da cultura póst-
renascente, da cultura dos anos 600 que invadirá os 700.
Esta busca da realidade do movimento e o desejo de expri¬
mi-la por intermédio de símbolos capazes de torná-la tangí¬
vel, êsse desejo de assim ver e assim crear é a “forma men¬
tis” do barroco, enquanto a simbolização realizada dessa
aspiração constitue a “forma creata” do barroco.
Assim, mostra-se afinal o barroco, pura e simplesmente,
como a afirmação criadora da “forma mentis” da Europa
ou, para sermos mais precisos, do mundo europeu entre o Re¬
nascimento e a Revolução francesa. Se algum dia me pas¬
sasse pela cabeça a idéia pouco sensata de fabricar a minha
própria teoria do barroco, confesso que estaria tentado a ser¬
vir-me, sobretudo, da teoria de Leo Rallet que relacionou
absolutismo e barroco. E procuraria reconhecer aquele
desejo de poder infinito, aquela oposição à natureza pela
superação criadora, aquela expansão aos máximos, não só
nos déspostas de Rallet, nem tampouco nos jesuítas de Weis-
back, mas no homem, no homem sem corôa e em roupeta, no
homem europeu que o Renascimento nos trouxe à Revolução.


Nestes quadros teremos de examinar o problema do
barroco no Rrasil. Se, efetivamente, conhecendo a nossa histó¬
ria, não podemos supor aqui os mesmos quadros que deram
forma e estrutura ao barroco da Europa, ao mesmo tempo não
podemos ignorar que aqui o barroco está presente e a sua
56 LOU RIVAL GOMES MACHADO CARACTERÍSTICAS DO BARROCO NO BRASIL 57

presença mais do que uma insistência de fato, mais do que nomes de artistas, do que segundo três grandes momentos
uma evidencia histórica é afirémação criadora do belo. vivenciais. No primeiro momento, clara é a impossibilidade
0 barroco ocorre e recorre no Brasil, às vêzes até onde material de realizar-se o padrão europeu, embora se apre¬
julgaríamos impossível sua emergência. Parece, porisso sente viva e exigente, a necessidade espiritual; o segundo
adequado tentar interpretar o fenômeno barroco no Brasil, momento será aquêle em que a possibilidade, material já se
a partir daquele meio passo daquele período intermediário instalou e o necessário espiritual como tal permanece; no
entre a “forma mentis” e a “forma creata” da passagem terceiro momento, continuando a não haver entraves mate¬
entre a aspiração intelectual e a arte já criada, daquele es¬ riais, já não mais, como necessidade, a estrutura espiritual
tágio de tensão em que os homens sentem latejar o desejo trazida da Europa e, contudo, permanecemos, consciente e
de criar (mas, áinda, não chegaram a fazêlo) . e poderíamos voluntariamente na mesma trilha. Por isso mesmo, não me
chamar sem exagêro literário, de momento de aspiração. satisfaz o examinar o problema do barroco no Brasil apenas
como o caso de um estilo com tal fôrça de radicação que
Aspiração —- entendamo-nos bem — no mais amplo
svntido da palavra, na acepção que abrange desde o físico
aqui sobreviveu à matriz europeia, pois e também um estilo
que teve tal fôrça de aspiração que aqui já se revelava como
até o intelectivo . A física elementar de nosso tempo de ginᬠdesígnios antes de ser inteiramente possível a sua efetiva
sio (quando tínhamos de estudar as bombas aspirantes para realização. Isto acontece, é notável, não apenas com o bar¬
não sermos reprovados) define mecânicamente a aspiração roco brasileiro visto na sua totalidade, mas com o barroco
como aquele movimento de um corpo ao apoderar-se de um do Brasil considerado, individualmente, em cada lugar onde,
fluido exterior para com êle preencher um vácuo interno. por via dos ciclo de colonização ou de produção, venha a
Fisiològicamente, o fenômeno mecânico se repete mas, ago¬ aparecer, a qualquer tempo, a intenção artística.
ra, o fluido exterior ainda serve para alimentação vital do Assim, vão-se revelando, fixando, reiterando, desdobran¬
corpo. Se, mecânicamente, aspirar é um simples incorporar, do aquelas espécies concretizadas no seio de barroco que nos
fisiològicamente o fenômeno se desdobra e aspirar já obe¬ nabituamos a ver e prezar. Explicando-se porque, por exem¬
dece a um ritmo próprio em que inspirar e expirar comple¬ plo, de comum falemos em peças barroca® primitivas, isto é,
tam-se no respirar, sendo que a completa respiração é a pró¬ em peças barrocas que não trazem marca de erudição. Se
pria evidência da vida. Também intelectualmente repetimos, não nos precipitarmos ao recorrer à palavra “primitivo”, lo¬
ppr assim dizer, êsses dois movimentos, pois tanto podemos as¬ go percebemos que o primitivismo da expressão nem sem¬
pirar apenas para mitigar a nossa vaziez interna, e neste é o pre resulta da não-erudição ou da não-informação do artis¬
caso das que aspiram a conhecer para preencher o vácuo de ta porquanto, por vêzes e entre outras causas, pode decorrer
sua ignorância, quanto podemos aspirar para integrar, em de limitações materiais, da impossibilidade concreta de le¬
exaltação expectante, algo que poderá vir a viver em nós ou var a aspiração até sua plena satisfação. Como é claramen¬
por nós, e êste é o caso dos que, pela aspiração, tendem à te visível na construção (para não falar já em arquitetura)
criação . do Brasil recém-colonizado que, como indicam as poucas
Ora, êste País nasceu europeu. Os homens que vieram amostras restantes, devem confinar-se aos mínimos da fun¬
para cá, pertenciam, ao menos no pôrto de embarque, à Eu¬ cionalidade. Então, a construção para as primeiras igrejas
do Brasil reduziu-se às quatro paredes com duas abas por
ropa, e consigo traziam, portanto, a “forma mentis” da Eu¬ cima para firmar-se na forma mínima mais próxima da
ropa. Aqui chegados, deveriam tentar a realização dessa idéia mínima de casa, que até as crianças encontram em seus
“forma mentis”, valendo notar a fôrça, o vigor de que pode desenhos. Ora, nesses mínimos materiais não se poderia es¬
dispor uma estrutura mental, porque continua lutando por perar por ondulação de paredes, por bombeamentos na cons¬
realizar-se mesmo quando impossíveis parecem as condições trução, por tetos decorados simulando o infinito, simples¬
de fato. Eis porque prefiro dividir a história do barroco no mente porque não havia como fazê-los, com que fazê-los.
Não obstante, já nesse primeiro momento os mínimos mate¬
Brasil, menos por zonas, por regiões, por “ateliers” ou por riais disponíveis, desde que existam, vão-se barroquizar . Na
58 LOURIVAL GOMES MACHADO CARACTERÍSTICAS DO BARROCO NO. BRASIL 59

arquitetura e, sobretudo, nas outras artes. A mesa de comu¬ çoso nesta altura, mas que era toda a ciência de que dispu¬
nhão da Capela de São Miguel mostrando um querubim que nha para compor.
aos turistas se insinua, sem muita certeza, ser de mão índia, Depois, vamos andando para o barroco íntegro e realiza¬
como os altares da Capela de Votoruma e do Sítio Santo do, o barroco concretizado dentro do possível material já em
Antônio, são peças do momento inicial que não podemos cha¬ plena fartura e do necessário espiritual já em plena cons¬
mar, segundo o padrão europeu, de barrocos, mas nos quais ciência. Há um monumento-registro desta evolução na Ca¬
é indisfarsável a aspiração daqueles mesmos padrões barrocos tedral da Bahia. Não me refiro à arquitetura, nem a um ou
que só se realizam dentro do possível. Em particular os dois outro dos seus altares, mas a tôda e admirável série de al¬
altares, que não são muito provàvelmente obras do mesmo tares que parte de uma concepção post-clássica e chega à
artificie, como não dispusessem das possibilidades da talha plena estrutura construtiva e visual barroca, isto é, na qual
farta suposta pelo barroco ortodoxo, resolveram-se por uma o barroco se realiza concretamente sob os nossos olhos, co¬
espécie de plateresco que ignora o verdadeiro plateresco, mo se fôra um esquema didático para demonstrar a perti¬
num inesperado paralelo daquele barroquismo sem relêvo nácia dessa aspiração e o seu avanço constante até esca-
que, no mesmo momento, a Espanha produzia na Europa
irrecusável sintoma de que também aqui, a aspiração barroca
— choar-se, incontida, nos dois imensos altares do transcepto.
E depois, é o barroco transformado, já não transformado
está presente e opera. Será ainda mera inspiração, pura ne- pela limitação material ou mental, mas, pelo contrário, gra¬
ssidade de preencher um vácuo interno . Ainda não é a expira¬ ças a aspirações novas e aqui nascidas, êste barroco trans¬
ção posterior à plena assimilação, ainda não chega, propria¬ formado, êste barroco re-criado que vai esplender em Minas
mente, a criar. Mas está presente, viva, ativa. Há uma segunda Gerais, exatamente no momento em que a estrutura econó¬
maneira dêsse primeiro momento e, nesta, a impossibilidade mica e social do Brasil, da fase colonial, sofre a sua maior
de plena barroquização deixa de ser impossibilidade instru¬ alteração, ou seja, a sucção dos recursos humanos do Norte
mental ou material e se estabelece como impossibilidade de¬ e Nordeste para o Centro-Sul, a inversão das zonas ricas e
rivada do equipamento mental anteriormente adquirido. Em pobres. Nêsse momento, efetivamente, já não há mais uma
outras e mais simples palavras: comumente encontramos, “forma mentis” a exigir o barroco na Europa. 0 europeu
sobretudo na pintura, a inspiração evidente de modêlos gó¬ fizera-se rococó e apenas rococó: abrira mão da expressão
ticos ou de maneiras-de-fazer clássicas. Assim, há pinturas barroca. Pois nêsse mesmo momento a “forma mentis” que
no Recife ou em Olinda (aliás, Pernambuco dispõe de um no Brasil entrara em plena respiração, em pleno exercício
acêrvo de pinturas barrocas que, a meu ver, constituirá o \ital, é tão autêntica que exigirá dos artistas mineiros a rea¬
grande campo de investigação dos próximos anos) em que,
freqíientemente, vamos encontrar uma composição sôbre
bsorção da novidade temática do rococó — que lhes chegava

—-
pelos modelos, pelas gravuras, pelos mestres europeus que
duas diagonais com uma bem forçada perspectiva segundo vinham trabalhar aqui — como temas mas apenas simples
um só ponto de fuga, enfim, uma composição calcada na temas de invenção plástica — nos quadros da velha, da boa,
linguagem clássica. As figuras, a figuração, também nada da sólida estrutura barroca. Acontece, então, um barroco
têm de barroquizante. À medida, porém, que vamos olhan¬ inteiramente diferente. Diferente, não por ser singular, nem,
do e analisando encontramos uma série de ritmos produzidos tampouco, por ser original embora o sendo muito, mas di¬
pelas formas repetitivas. E então os elementos vão formando ferente por ser uma criação nova dentro dos padrões barro¬
um ritmo que não é clássico, um ritmo que náo é maneírista, cos. Acostumamo-nos a ver êsse barroco num Athayde,
um ritmo que já é, sem dúvida, uma barroquisação dentro do sobretudo num Aleijadinho, e nada mais justo, porque são
que se tornou possível. Aquêle artista não aprendera, como os dois pontos máximos e geniais, da pintura e da escultura
barroquizar o conjunto da composição, mas, como a barro¬ e arquitetura. Precisamos, porém, lembrar-nos de que todo
quização constituía o cerne (talvez inconsciente) da sua inten¬ complexo de arte das Gerais no tempo do ouro, está integra¬
ção criadora, ela aparece, apesar de todos os ditames, de todas do nesse mesmo espírito e, que cada um do muitos artistas
as normas anti-barrôcas do seu clasissismo, já um pouco ran¬ que cada dia vamos conhecendo melhor e identificando, te¬
mos de atribuir, de justiça, êste mesmo título de tentar a
60 LOURIVAL GOMES MACHADO

reelaboração de um estilo que não mais correspondia a uma


exigência européa mas, tão assimilado era à nossa vida na¬
cional, que se mostrava capaz de reabsorver o estilo, novo e
fraco, que a Europa passa a oferecer, na experimentada e só¬
lida estrutura mental, já então nossa. Tão funda, tão exten¬
sa e tão inovadora é esta reelaboração, que o sociólogo nela
muito encontrará para investigar acêrca do processo social
que, simulíâneamente à integração duma cultura em seu
fluxo histórico, já a prepara para superar, em grau, em gê¬
nero ou em direção, essa mesma tradição que acaba de lhe
ser comunicada.
Mas, se fôssemos entrar em digressões dêsse tipo, pro-
vàvelmente não chegaríamos, para desespêro das Senhoras
e dos Senhores, ao fim de minha arenga. Porisso, apenas
pedirei licença para perguntar se agora, à vista desta rápida
síntese biográfica, dêste, por assim dizer, breve romance da
vida do barroco no Brasil, não estará justificada a afirma¬
ção de que, por intermédio do barroco, pudemos ver como o
homem europeu — que trazia na mente uma estrutura inte¬
lectual e artística européa ao chegar, mas que aqui não en¬
controu desde logo uma estrutura material e social suficien¬
te para realizar suas aspirações como êste homem conseguiu
preservar tais aspirações até chegar o momento de expandi-
las plenamente e, afinal, conseguiu por essa realização che¬
gou a autodefinir-se, afirmando-se no novo meio natural e
humano? Efetivamente, se a “forma mentis” européa do
barroco era, como tentei caracterizar, a expressão estética
(ío desêjo de captar e simbolizar o movimento sem fim tal
como delineado em uma inédita visão da natureza aqui a
formação material, humana e cultural dêste novo país que
país coeso ainda não era, dêste novo terreno ainda sem de¬
nominação e sem ligação vivencial complexiva, haveria de
fluir, também ela, como uma história dominada pelo movi¬
mento; com uma existência regida pela dinâmica. A come¬
çar pela dinâmiica demográfica seja no lento mas eficaz for-
migamente dos núcleos do litoral onde arribaram os recém-
-vindos e onde iniciavam uma vida tôda nova, seja na ex¬
pansão dinâmica, verdadeiramente surpreendente que ca-
racterizou aquela fase de ativa ocupação do solo para a qual
nós reservamos o termo “bandeirismo”. Mas era uma din⬠Tocheiro Barroco
mica que alcançava não apenas a ocupação física do solo
pelo homem, se não ainda o desdobramento do poder que
èsse homem ia criando na afirmação de sua vida e que já
não era tão só o poder que lhe transferia a Corôa portuguê-
CARACTERIST1CAS DO BARROCO NO BRASIL 63


sa. O poder que foi criando e exercendo sôbre a terra e sô¬
bre a família, sôbre a escravaria e sôbre a clientela. Poder do
patriarcalismo agrário, numa palavra. Que nunca foi en¬
comendado por Portugal, nem de lá assim trazido, mas que
devesse crescer aqui para dar base nas células de um tecido
vital, a uma estrutura social nova. 0 poder do Patriarca era
absoluto; também êle pulsava no ritmo da dinâmica expan¬
siva que caracterizava o mando do monarca europeu. E, no
expandir-se, sem contraste, sôbre a terra, sôbre a lavoura,
sôbre os escravos, sôbre os filhos, também êle se definia
como um poder sem limites. Enquanto isso, novos grupos se
firmavam e se estruturavam e, através dos desencontros e
encontros de sua história, a cada passo vemos a possibilidade
de novo poder criar-se e recriar-se. Assim, o poder das câ¬
maras municipais, que em Portugal fôra especificamente
marcado para o burgo interjacente aos feudos poder auto-
reger-se e que aqui se transforma numa célula representa¬
tiva do novo poder feudal, com uma arrogância por vêzes
incómoda à metrópole. Ou então, quando a metrópole inibe
o poder religioso, proibindo ordens e monastérios nas Minas
Gerais para que os frandes Vagamundos não levassem ouro
por sob a sotaina, a estrutura social pôde imediatamente
criar uma forma inédita de poder leigo para reger a vida
religiosa; e cresceram, e modificaram-se as ordens terceiras,
com o total laicato de suas mesas diretoras, as mesmas or¬
dens terceiras que deram contratos de trabalho e liberdade
de criação ao Athaide, ao Aleijadinho, ao Noronha, ao Bar¬
ros Barriga, ao Servas, a todos os grande criadores de Minas.
Dessa liberdade criadora, insòlidamente nascida duma
cultura dominada pelo poder sem limites, sairia o novo
barroco, inédito barroco que é só nosso, pois já não é soli¬
citado pela “forma mentis” européa, respondendo apenas às
solicitações de uma nova cultura, a nossa. Assim, parece
que, se a Europa procurou identificar o seu barroco com os
monarcas absolutos, com a contra-reforma jesuítica, ou com
envolver da sua própria visão estilística, maneirista e post-
-maneirita, nós também temos o direito de correlacionar
essa expressão artística com a nossa própria vivência histó¬
rica e nela reconhecer, não a repetição do figurino europeu,
nem tampouco a integração de mais um país na moda geral
que já arrastara outros países, mas, sim, a forma de arte
que corresponde a uma estrutura mental, que embora ini¬
cialmente importada, acabou por apoiar-se em nossa estru¬
tura social. Forma que, porisso mesmo, pode traduzir a fi-
64 LOURIFAE GOMES MACHADO

sionomia, concretamente simbolizada num estilo, de uma


nova gente, de um novo povo, de uma nova ordem social,
que aqui nascera.

Mas, não pensem que exagero . Aqui volto e aqui espe¬
ro terminar
— exatamente ao ponto de onde um dia parti.
Ao ponto por onde comecei a estudar o assunto1, isto é, co¬
mo lembrava há pouco dos ensinamentos de Mário de Andra¬
de. em 1927
— quando o conhecimento documentário e mo¬
numental da nossa arte antiga era tão reduzido
compreensão crítica

do
já propu¬
Aleijadi-
nha, como intróito para a
nho, a análise das formas artísticas e das aspirações (que,
com a sensibilidade que o distinguia, caracterizou como an¬
gustiosas, e de fato o foram) de uma nacionalidade a adivi¬
nhar-se. De uma nacionalidade que ainda não existia e
porisso ainda era apenas uma aspiração. Essa nacionalida¬
de que vimos aos poucos aprender a inspirar e a expirar, já
sentia agora uns pulmões e suas veias animadas por um
ritmo vivo tal, que a nova gente, o novo povo, a nova ordem
social local começou a cuidar de definir-se a si mesma. A
tanto aspirou e, frustada embora materialmente nêsse pri¬
meiro instante, continuou aspirando e, um dia, acabou por
conquistar a definição da sua própria soberania. Se ousei
dizer que o barroco europeu é a própria linha de existência
da Europa entre o Renascimento e a Revolução, cometeria
agora, instigado pela exemplar paciência das Senhoras e
dos Senhores, uma segunda ousadia dizendo que no barroco
reflete-se inteiro o Brasil . Não, por certo, o Brasil que conhe¬
cemos realizado, mas o Brasil que, até alcançar auto-cons¬
ciência e auto-determinação, traduziu tôda sua vida numa
aspiração, têm a sua expressão artística, a sua arte
ma-se barroco. —
aspiração. Essa longa, essa angustiada, essa afinal atendida
cha¬

Igreja do Convento de São Francisco de Assis


— Salvador.
ASPECTOS ARTÍSTICOS DAS VELHAS CIDADES
DO BRASIL

Oscar Campiglia
Diretor da Divisão de Documenta¬
ção da Universidade de São Paulo.

Preliminarmente, desejo, de público expressar meus


agradecimentos ao Instituto Histórico Guarujá-Bertioga, a
honra do convite para que o modesto documentalista profira
uma das palestra nêste magnífico “Curso” em o qual ilustres
“Titulares” da Arte no Brasil, proferiram conferências de
alto gabarito. Apenas o desejo de servir e assim honrar a
indicação, justifica a nossa presença, com, a documentação
que reunimos nos levantamentos dos monumentos histórico-
artísticos, nos mais distantes rincões do Brasil.
Precisamente, a vivência com os documentos e os mo¬
numentos, nos sugeriu o tema para esta palestra que objeti¬
vará, em tese, evidenciar as diferenças que caracterizam a
arquitetura e outras formas de arte nas diversas regiões e
períodos históricos no Brasil, para situar o problema do
Barroco, estilo dominante nessas manifestações enquanto
examinadas nos seus aspectos remanescentes atuais, parti¬
cularmente nos seus elementos de decoração arquitetônica
d" interiores e exteriores.
Situemos, pois, de inicio, as origens do Barroco, no tem¬
po e no espaço, conseqíientemente, em Roma, no Século XVI,
e mais precisamente, no ano de 1520 quando Michelangelo
Buonarotti arquiteto, manifesta seu gênio na Capela dos
Medieis, na Biblioteca Laurentiana em 1524, em Florença,
nas quais deixou os elementos que marcaram a orientação do
68 OSCAR CAMPIGLIA

novo estilo que sucederia o Renascença : tendência para o


grandioso, superposição de planos e linhas entrecruzantes,
frontões quebrados, perfis curvilíneos interrompidos por vo-
lutas, acentuadas notas coloristicas, planos ondulantes e o
sublinhar os valores plásticos anatômicos, inserção da es¬
cultura como e elemento integrante da arquitetura, fato que,
mais tarde, Bernini escultor e arquiteto, consolida de forma
decisiva e assim, a escultura passa a ser um argumento da
arquitetura “Barroca por execelência”. Ote elementos de
composição fundamentam-se agora, no arredondamento, no
emprêgo intensivo das linhas curvas, da movimentação dos
planos cujas saliências e reentrâncias geram sombras rele¬
vantes dos valores plásticos que se movimentam com os fe¬
nômenos e o trânsito da luz.
O realismo é objetivado na pintura barroca, particular¬

mente nas representações dos efeitos luminosos que emer¬
gem violentos das sombras e está expresso nas obras de Ca¬
ravaggio cujas composições baseam-se em ritmos lineares
elípticos e outras figurações geométricas complexas e dinâ¬
micas, no desenvolvimento, pois, objetiva-se animar as fi¬
guras com atitudes, gestos e expressões ricas de vida. Dêsses
efeitos vibrantes, do grandioso, do teatral, da inquietação
dos planos e dos espaços, pretendem os críticos do Século
XVIII e princípios do XIX, criar um clima pejorativo e de¬
cadente para êsse estilo, hoje, reconsiderado por força dos
seus valores intrínsecos e de criação,
O Barroco encontra inspiração e o gôsto pelo movimen¬
to de planos, na arte helenística-romana e, também, a drape-
jar dos planejamentos não raro, nas fortes expressões de al¬
guns reíratos romanos. Assim, também, na pintura, os efei¬
tos de perspectiva arquitetônica que se encontram nos inte¬
riores romanos de Pompéia e alhures do II.0 Século A.C..
Êsses, alguns dos elementos constituintes do Barroco
europeu particularmente na fonte de suas origens italianas:
adota e aplica elementos (todos) técnicos, científicos, até
então isolados no tempo e no espaço: — geometria, perspec¬
tiva, fenômenos óticos cromáticos “modernos”, anatomia e,
a física, especialmente no concernente aos fenômenos da
luz. Há ainda todo um mundo de princípios estéticos ree-
laborados e valorizados, todo um complexo que, a nosso ver,
estruturou as bases da “era moderna” encerrando séculos de
cultura clássica, não no término do período, mas na essência
dos objetivos, dos princípios estéticos e técnicos do estilo.
Em o concernente a situação das artes em Portugal, no
Decoração interior da Igreja de São Francisco de Assis
— Salvador.
ASPECTOS ARTÍSTICOS DAS VELHAS CIDADES DO BRASIL 71

período da Renascença e no sucessivo que corresponde ao


Barroco que se desenvolveu na Itália a partir da segunda
metade do século XVI, diz: Reinaldo dos Santos o insigne
historiador em sua obra “L’Arte Portugaise”: . . . “Nossa
sensibilidade foi de tal modo marcada pelo senso plástico do
romano e do naturalismo manuelino que, o refinamento da
Arte da Renascença foi apenas uma Arte de assimilação por
parte de Castilho e dos escultores francêses Chant,erène,
Hodart e Jean de Rouen e, o clacissismo encontrou em Tor¬
ralva, uma inspiração italianizante de onde a Igreja da Con¬
ceição de Tomar contituiu uma jóia única na Peninsula. . . ”.
E ainda: “... Nosso gôsto das proporções, dos jogos de
luz e a sobriedade na decoração revela sua mais forte perso¬
nalidade nacional na segunda metade do século XVI., na arte
dos Alvares”. . .
A arquitetura barroca do século XVII é particularmente
austera, considerada em confronto com as manifestações do
século XVIII.0, no reinado de Don João V. Mas, é na decora¬
ção dos interiores das Capelas que se afirma o espírito do
Barroco português nos grandes enquadramentos dos retábu¬
los de madeira entalhada, dourada e policromada. ...”
E, a página 14: “ . . . O estilo manuelino que foi a criação
de quatro grandes personalidades: Boytac (1490 -1525?);
Mateus Fernandes (1490-1515) ; e os dois irmãos Arrudas,
Diogo (1508-1531) e Francisco (1510-1547)...”.
Verifica-se, pois, com base nas datas, a predominância
dos manuelino como arte nacional, em Portugal, na mesma
época em a qual, na Itália, o Barroco manifestava-se inscrito
nos efeitos plásticos de Michelangelo, na escultura, confirma¬
do depois, na arquitetura que viria a manifestar-se especifi-
camente, com Vignola, na Igreja do Gesú, em Roma, em
1568 quando iniciada a obra cuja sagração deu-se em 1584, e
cuja influência considerável estendeu-se ao Brasil depois,
de forma extraordinária.
Para os efeitos desta nossa exposição em tese, com base
nas datas e opiniões precedentes, constata-se, como de fato,
que a expansão do Renascença italiano, em Portugal, “foi
uma arte de assimilação”, ocorrida, sem integração do espíri¬
to nacional, híbrida e tardia já nas suas manifestações “ma-
neirísticas”, no repetir exaustivamente os cânones originários
das obras de Mechelangelo, de Rafael, obras que, se produzi¬
ram por tôda a segunda metade do século XVI até que os
irmãos Garraci, por um lado e, Caravaggio, por outro, reagi¬
ram, embora conservando o fundo de inspiração ao qual so-
72 OSCAR CAMPIGLIA ASPECTOS ARTÍSTICOS DAS VELHAS CIDADES DO BRASIL 73

maram o ecletismo, os efeitos dramáticos e a partir de Cara¬ isso, dá à arquitetura e aos espaços arquitetônicos renascen¬
vaggio, na pintura, o realismo, a procura da representação tistas um sentido de equilíbrio perfeito, de pêso, de auto-
real da luz que, em Rembrandt, em um Salvador Rosa e ou¬ -suficiência, de solução, de estática, de quietude.
tros artistas do período barroco podemos traçar uma trajetó¬ No interior, contudo, nas igrejas, o espaço arquitetônico
ria de evolução até Manet. De resto, o exame, ou por outra, a adota um partido destinado a atender os problemas da Con-
utilização dos valores eternos das expressões e ordens artísti¬ tra-Reforma. A doutrinação, os púlpitos, a locação dos fiéis,
cas de todos os tempo, utilizadas pelos artistas dos séculos a posição do altar mor, a forma da nave central, a posição
XVII.0 e XVIII.0, constituem uma soma genial de valores, de das capelas laterais tem uma destinação específica e, a pin¬
conhecimjentos reelaborados na formulação de um estilo em tura dos forros, também, como veremos nas projeções.
o qual não estaria ausente a intuição, o pensamento científico 0 confronto da datas citadas evidencia o fato de que,
contemporâneo. 0 Barroco é, pois, a nossa ver, na Europa, a em Portugal, no período da Renascença italiana, desenvol¬
cúpula de uma cultura acumulada por séculos de civilizações, vem-se as formas do manuelino e, ao tempo do Barroco na
nos quadrantes do mundo. Itália, Portugal adota o “maneirismo” que Reinaido dos
Em 1549, com a fundação da cidade do Salvador na situa¬ Santos diz: ... “não ter encontrado nenhum eco de convic¬
ção urbanística medieval que a caracteriza no alto do pe¬ ção. A arte da Renascença foi somente uma arte de assimi¬
nhasco, inicia-se o ciclo das construções dêsse período sob a lação por parte de Castilho e dos escultores franceses (cita¬
égide de arte “maneirística” do B.enascença transferido de dos)”.
Portugal. Felipe Terzi, italiano, introduz em Portugal o pla¬ Descoberto o Brasil na época dessas transições estilísti¬
no Jesuítico da Igreja do Gesú que é uma “renovação”, sem cas, fundada a cidade de Salvador em 1549, é precisamente
embargo do espírito clacissista de Vignola que o projetou o espírito clacissista que irá transubstanciar-se na arquitetu¬
e de Felipe Terzi que o adota. A influência de Terzi em Por¬ ra e outras formas de arte no nosso século XV.0, em base do
tugal foi considerável deixando inúmeras obras que realizou qual, evoluem a igrejas ditas “barrocas” da região do Leste
no período de suas atividade em Portugal, particularmente Setentrional. 0 Nordeste Oriental sofreria inicialmente, ou¬
a Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa. Terzi atuou em tra ordem de influência, também de origem, clássica.
Portugal a partir de 1576 até quando faleceu em 1597. Fun¬ Na Bahia é a Companhia de Jesus que predomina e in¬
dou em Lisboa uma escola de arquitetura e podemos imagi¬ fluência e, assim as formas de arte se revestem dos caracteres
nar, pois, a influência inclusive de seus alunos. Estamos, específicos das manifestações artísticas adotadas pelos jesuí¬
pois, no último quartel do século XVI, primeiro da nossa his¬ tas com tôdas as implicações que êsse fato histórico deter¬
tória e formação. minou.
Em 1549, Nóbrega, desembarca na Bahia e funda o pri¬ Em Pernambuco, em 1585, membros da família do pri¬
meiro Colégio Jesuítico no Brasil, e com êle, situa no Leste meiro donatario da Capitania, Duarte Coelho, trouxeram
Setentrional, (Bahia Sergipe) especificamente, na cidade do para assistir, “os povos”, religiosos franciscanos cuja in¬
Salvador, as primeiras manifestações da cultura lusa. Logo fluência foi extraordinária e considerável na região do nor¬
depois, chega ao Brasil o arquiteto ignaciano, — Francisco
Dias que trabalhara com Terzi, na Igreja de São Roque, em
deste oriental, d'esenvolvendo-se depois, em direção ao Sul,
com a fundação de um colar de Conventos magnificientes
Lisboa, onde primeiro se aplicou o sistema espacial do plano cujas datas e locais de fundação, são os seguintes, segundo
da Igreja do Gesú. Conseqúentemente, Francisco Dias, trans¬ Jaboatan o Cronista da Ordem.
fere para o Brasil, quase que simultâneamente, o espírito
clacissista implícito nas obras de Felipe Terzi, e com êle o N.S. das Neves da Cidade de Olinda 1585
Renascença, mas suas manifestações “maneirísticas”, cujas S. Francisco da Cidade de Bahia 1587
formas arquitetônicas estão vinculadas ao emprêgo baseados St.0 Antonio da Vila de Igaruçú 1588
na geometria definida das formas triangulares, retangulares, St.0 Antonio da Cidade de Paraíba 1590
retilineares e o arco romano de pleno centro, formas que, São Francisco da Vila de Victoria 1591
por sua própria definição visual não oferece problemas e por St.0 Antonio da Cidade do Rio de Janeiro 1606
74 OSCAR CAMPIGLIA

St.0 Antonio da Cidade do Recife 1606


St.° Antonio do lugar de Pojuca 1606
S. Francisco da Vila de Seregipe do Conde 1629
São Francisco da Vila Formosa de Serenhaem 1630
St.0 Antonio da Vila de Santos 1629
S. Francisco e S. Domingos da Cidade de S. Paulo 1639
São Boa Ventura de Casserebú 1649
St.0 Antonio do lugar de Paraguassú 1649
St.0 Antonio da Vila de Cayrú 1650
N. Senhora da Penha no Espirito Santo 1650
N. S. da Conceição da Vila de Itanhaem 1655
Bom Jesus da Cidade de Seregipe del Rey 1658
N. Senhora do Amparo da Vila de São Sebastião 1659
N. Senhora dos Anjos da Vila de Penedo 1660
Santa Maria Magdalena da Vila de Alagoas 1660

No Sul, a fundação de São Vicente em 1530, constitui


o fator determinante de sucessivos fatos históricos da maior
importância económica e cultural, pois, dêsse centro origina-
se a fundação de S. Paulo e a constituição das Bandeiras
que, em fins do século XVII.0, penetrando no sertão dos
Cataguás, descobriu ouro em quantidade na região dó cerro
do Tripui que passou, à denominação de Ouro Prêto. Conhe¬
cemos os fatos históricos dessa descoberta que atraiu para a
região do Leste Meridional levas e mais levas de homens
ávidos de ouro, provenientes do sul e do norte e, particular¬
mente, do Reino, de onde imigraram cêrca de 800.000. Ini¬
ciou-se, com êsse evento, o chamado “Ciclo económico do
Ouro” nos primórdios do século XVII, na região das “Minas Casa de Fazenda do Pe. Inácio em Cotia.
Gerais”.
Dêsse importante acontecimento histórico surgiram po¬
voados e vilas que se tranformaram em cidades situadas no
interior do país, fato que, a par de fatores sociológicos múlti¬
plos, determinou as manifestações artísticas mais típicas da
sociedade da qual se originam. O emprêgo dos materiais da
região foi um dentre os fatores de coniderável importância,
pois, êsses materiais foram elaborados por inúmeros artis¬
tas formados na região então menos sujeita às facilidades e
comodidades dos contactos culturais litorâneos.
Estabeleceu-se assim, outra região básica de formação
e desenvolvimento da nossa cultura histórico-artística re¬
presentadas pelas cidades de Salvador, Olinda e São Vicente .
Na primeira região, predominou a influência dos jesuí¬
tas que na arquitetura adotaram formas clacissistas ou proto-
ASPECTOS ARTÍSTICOS DAS VELHAS CIDADES DO BRASIL qq

barrocas de acordo com a classificação de insignes historia¬


dores, formas inspiradas no “maneirismo renascentista” en¬
tão em voga em Portugal, como é o caso da Catedral atual
da Bahia, iniciada em 1657. Exerceu considerável influên¬
cia nas construções sucessivas inclusive as que se fizeram
por outras Ordens religiosas. Na fachada, a austeridade do
Renascença de equilíbrio estático é evidente. A superfície
plana dessas fachada, sem embargos da evolução que sofreram
na transição e no chamado período das construções mais espe-
cificamente chamadas de “Barrocas”, conservou-se como
uma constante, sem movimentação de planos; relêvos de
pilastras ou colunas são raros e os elementos de esculturação
são processados em superfícies sem grandes relêvo ou reen¬
trâncias características do Barroco específico Europeu. Nos
Interiores, a caixa da nave e demais dependências dessas
construções são retangulares, retilineares . Estruturas de ma¬
deira formam as abóbadas e cúpulas ou forros das capelas
Arcos de pleno centro no cruzeiro e nas capelas laterais são
reminicências de gôsto clássico . Algumas cúpulas de madeira
entalhada, dourada, e policromada, na sua composição cru-
xiforme, são de inspiração gótica inspiradas nas cúpulas com
nervuras construídas com pedras ricamente esculturadas.
A austeridade é evidente; as curvaturas “caprichosas” do
Barroco e do Rococó, salvo raras exceções, são empregadas
predominantemente nos perfis dos frontões e terminais de
torres e, de forma discreta, no remate de janelas e portas.
Nos Interiores, a planta da Igreja do Gesú, nos seus linea¬
mentos fundamentais, foi o partido adotado e que evoluiu
nas construções chamadas “Barrocas”, de modo a acentuar
o princípio espacial de origem. Suprimem-se as capelas la¬
terais intercomunicantes que geram a impressão do partido
de Igrejas com três naves, ampliando-se, pois, o “salão” re¬
presentado pela nave, agora ladeada por extensos corredo¬
res laterais de acesso independente à sacristia, dependências
conventuais, ordens terceiras e outras. Origina-se, em conse¬
quência dêsses corredores, duas novas portas nas fachadas,
somando cinco ao em vez de três, do período anterior. A
conveniência dêsse partido, no Brasil, não é mais para aten¬
der os problemas da Contra Reforma, mas, para a doutrina¬
ção, é evidente. É também, conveniente, do ponto de vista
construtivo na conjuntura dos problemas técnicos na época
e no “meio”.
A nosso ver, pois, na região do nordeste e nas zonas de
influência do Leste Setentrional (Bahia), o esquema geomé-
78 OSCAR CAMPIGLIA ASPECTOS ARTÍSTICOS DAS VELHAS CIDADES DO
BRASIL 79
trico regular das figuras clássico-renascentistas se constituí¬ elusive por meio de saliências e reentrâncias
ram em uma constante sôbre o qual, na ordem do tempo, se
aplicaram decorações de inspiração barroca. E, aqui, como
em Portugal, o “Barroco” haveria de se manifestar nos seus
importante
— retilíneas e a
inscrição do elemento escultórico como argu¬
mento da arquitetura, no exterior e nos interiores,
mento que encontrou no artista nacional Antonio argu¬
aspectos essenciais de suas características portuguêsas, na Lisboa o intérprete maior. Essa arquitetura integra-seFrancisco
decoração dos interiores, particularmente nós retábulos de paisagem das “Minas Gerais”, quer do ponto de na
altares de madeira esculpida, “talha” dourada e policro- vista
cificamente paisagístico quer do ponto de vista cultural. espe¬
mada, enquadrada nas construções primitivas deformadas As Igrejas mais belas, dessa região,
por restaurações sucessivas, no século XVIII. gunda metade do século XVIII, não mais quase tôdas da se¬
A influência franeiscana se manifesta na adoção de pla¬ das Ordens Terceiras que possibilitaram aconventuais, e sim,
nos de Igrejas e conventos^ cujas formas se inspiram geral¬ livre
dos artistas no interpretar, sem embargos do fundo participação
mente em construções clássicas de épocas mais remotas: gó¬ ração européia, do barrôco alemão e austríaco, de inspi¬
ticas-romanas que evoluem desde o XVIII.° século, na Itália. das demais
influências conseqíiêntes de outros
A fachada se inscreve em um esquema triângulo, por meio ses, franceses, orientais e outros, contatos culturais inglê-
de ordens retangulares ligadas entre si, por meio de grandes das formas, na terra do adobe, nasrevestiram, -se, no espírito
pedras do1 alicerces, nas
volutas sendo exemplo a Igreja de Santa Maria Novella, de pilastras, nas colunas, na esculturação
1246-1279. A tôrre situa-se fora do plano da fachada. São ondulante das porta¬
das formas, na terra do adobe, nas pedras
exemplos magníficos as Igrejas dos Conventos de João Pes¬ regional e nacional sem perda da linguagem dos alicerces, nas
soa, na Paraíba, e, de Olinda, em Pernambuco e outras. As expressões artísticas legítimas. universal das
pesquisas constantes revelam que, a grande maioria das Observemos, agora, nas ilustrações as diferenças assi¬
obras de decoração dos interiores especificamcnte Barrocas, naladas.
quase sempre importadas, foram construídas em Portugal
e aplicadas no século XVIII; não raro, em princípios do sé¬
culo XIX, nas obras de carácter Bococó já impregnadas de
elementos neo-clássicos do estilo que caracterizou o perío¬
do sucessivo, até nossos dias. No leste Setentrional e mais
intensivamente no Nordeste Oriental e Ocidental, o emprêgo
dos azulejos e outros elementos clássicos de inspiração mu-
çúlmana e indu-portuguêsa, acentuam as características da
influência direta de Portugal, nessas regiões.
Não se exclua a participação artística de outras Ordens
religiosas particularmente os beneditinos e carmelitas.
Em São Paulo, na época de sua fundação e ulterior de¬
senvolvimento imediato, a pobreza era acentuada e gera as
“Entradas e o Bandeirismo”, na busca do índio para o tra¬
.,
balhos, 0 ouro e o mais. . O Bandeirismo gera um ciclo eco¬
nómico, amplia o território nacional e, no dizer do Poeta,
estende “um colar de cidades”, nos mais distantes rincões
do país e nas quais se desenvolveu a arquitetura e outras
formas de arte mais especificamente, “barrocas” na essen-
cialidade de suas formas dinâmicas : no empregar os elemen¬
tos curvilineares, elípticos, redondos, articulados às formas
clássicas de ordens artísticas de muitas épocas e regiões, tal
como no Barrôco original, movimentando-se os planos in-
MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 81

tra, se aprisiona a visão da atividade criadora ao periodis¬


mo duvidoso do clássico, do romântico e do barroco.
Quando o extraordinário esforço do pensamento con¬
temporâneo, voltado à defesa dêsses critérios e padrões, é
duramente atingido pelas contradições do seu parcialismo
interessado a resultantes da sua vinculação aos cânones da
ROTEIRO DOS MONUMENTOS HISTÓRICOS lógica clássica, todo o aparente objetivismo dos estudos tradi¬
E ARTÍSTICOS DE SÃO PAULO cionais de história e de arte é substituído pela magia in-
tuicionista. Pretende-se assim, destruir impiedosamente a
ação da inteligência em beneficio da manutenção intransi¬
gente dêsses esquemas indispensáveis para a conservação de
.
Arq Luís Saia um status no qual a divisão internacional do trabalho e a de¬
pendência cultural dos povos mestiços são eficientemnte

Chefe do 4.° Distrito da DiretóriaNa¬ preservadas .
Património Histórico e Artístico É claro que não podemos aceitar tais esquemas, tais cri¬

cional São Paulo.
Conferência realizada dia 22/11/61
térios e padrões, e que devemos pesquisar outros, mats con-
formes ao nosso próprio ângulo de visão dos acontecimentos,
mais consequêntes com as nossas preferências no domínio
da criação artística e mais adequados à valorização daquilo
que, como povo, como sociedade e como cultura reputamos
dos monumen¬ e compreendemos.
Para o estudo, apreciação e consideração aceitar os Assim, despreconceituados em têrmos de raça, de filo¬
arte, não podemos
tos paulistas da história e de para sustentar esquema de sofia, de economia e de política, sem necessidade de grandes
critérios e padrões armados diversos da¬ heróis, de grandes batalhas decisivas, de grandes gestos e
formação histórico-sócio-econômica totahncnte
regional e que, além libertados afinal do periodismo exclusivista, podemos, cal¬
queles que assistiram ao nosso passado uni¬ ma e confiantemente, pesquisar os. sucessos e motivos que
de não conterem nenhuma verdade incontrastàvelmente
versal, não apresentam valor operativo algum capaz
ao
de so¬
esforço

fizeram dêste povo, um povo também - capaz de criar, um
povo também capaz de pesquisar suas próprias condições de
teóricas úteis
correr a composição de armadurasinstrumentação cultural. progresso, um povo capaz de escolher e deiimr aquelas con¬
de nossa valorização histórica e
dições limites indispensáveis para a conquista de um melhor
economia, como cultura
Como povo, como sociedade, como nesses esquemas aque¬ nível de humanidade. E também capaz de extrair dessas
e, a fortiori, como política, ocupamos subdesen¬ condições limites um rendimento compatível com suas pre-
la posição incómoda e inaceitável de inferioridade
de qualidade e de lenções de civilização e liberdade.
volvida que rechaça qualquer pretenção
esquemas representam uma Não parece, afinal, tão difícil e impossível abandonar o
personalidade. Na verdade, taisda realidade e um grupo de jugo de esquemas e padrões já absoletos mesmo na Europa.
seleção interessada de aspectos da familiaridade A verdade é que, quando se iniciou a colonização, a própria
conceitos, tanto uns como outros extraídoscuja estrutura a par¬ Europa abandonava o mundo da magia e do artesanato, do
com os acontecimentos e sucessos em
feudalisio e da escravidão, para voltar seu pensamento e sua
ticipação das antigas colónias europeias é apenas circuns¬
ação para a ciência e para a técnica, para o capitalismo e pa-
tancial . intenção de o colonialismo. A colonização se realizou pois, de conformi¬
E estão irremediàvelmente marcados pela dade com as proposições resultantes dessa nova fase de ação
valorizar o colonizador e pela divisão internacional do tra¬
se como pon¬ e do pensamento e nela se reflete, portanto, uma problemá¬
balho pressuposta nessa tarefa. Numa, oferece decisiva: nou¬ tica de natureza particularíssima, com eventualidades que
to culminante o herói, o grande gesto, a batalha
nada contém de caráter universal definitivo. Agora, exata-
ARQ. luís saia MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO
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mente no instante crucial em que a humanidade passa da hoje propriedade da Universidade de São Paulo, aguardan¬
época da técnica, da ciência tradicional, do capitalismo, do do pacientemente uma iniciativa governamental que os usi-
colonialismo e do imperialismo para o mundo da técnologia, neiros municiariam financeiramente de bom grado e com
ultrapassando os limites da lógica clássica, o que permite à
ciência a pesquisa de novos horizontes, se assiste o declínio
evidentes
— perspectivas psicológicas. O que mais resta
dêste período heroico da instalação europeia no litoral pau-
definitivo do colonialismo, se aceita, uma revisão substan¬ lista são nomes que a história registrou mas que o homem
cial do problema da divisão internacional do trabalho e se não transformou com marca duradoura: Pôrto das Náus,
luta pelo fim próximo do imperialismo, exalamente nesse Cananéia, Bertioga, etc.
momento parece legítimo reconhecer que o abandono dos Como tese ancilar, a penetração territorial, segundo a
esquemas, critérios e padrões já absoletos e ultrapassados, técnica européia de guerra e de conquista, também, foi nega¬
constituem uma preliminar para a análise daqueles: fatos ou da: a expedição de Pero Lobo, promovido também por Mar¬
coisas de que dispomos como património histórico e artísti¬ tin Afonso de Souza, desapareceu nos sertões e não deixou de
co. si senão aquela negativa surda e definitiva com que a his¬
Dos dois caminhos disponíveis para intentar esta pes¬ tória marcou as tentativas malogradas de operações ortodo¬
quisa, preferimos, estabelecer, como hipótese de trabalho, xas em território paulista. Êste tipo de negativa inaugura
uma procura das teses — que caracterizaram a formação
paulista, para o que procuramos determinar os sucessivos
uma espécie de comportamento regional cada dia confirma¬
da tódas as vêzes que se intentar realizar a repetição exdrú-
períodos da colonização na sua expressão regional. Tais di¬ xula de formulações teóricas estranhas ao ambiente regio¬
visões dizem respeito exclusivamente a acontecimentos que nal, enquanto é raro se regatêie endosso às iniciativas que
se verificaram na área do atual estado de São Paulo. Ape¬ acolhem um conteúdo interpretative extraído legítima e di¬
sar deste estreito ponto de partida, tal pesquisa pode, even¬ retamente das específicas condições regionais.
tualmente, alcançar âmbitos mais generosos, nacionais, ou Outra tese ancilar dêste período foi a da sediação sim¬
mesmo abordar ou refletir fenômenos de caráter universal. bólica dé São Paulo no planalto, num local de há muito pre¬
Num primeiro período, até 1554, tôda a ação se realiza ferido pelos indígenas como fulcro fixo de suas andanças.
como um fenômeno de impacto entre a coisa europeia e o Dois fatos desta escolha parecem realmente significativos.
ambiente americano. É, na verdade, um fato quase inteira¬ Em primeiro lugar, o guia que trouxe o colonizador ao futu¬
mente europeu, embora já as suas barbas a experiência de ro sítio urbano de São Paulo foi um mestiço, filho primogé¬
mestiçagem de João Ramalho e a escolha (também mestiça) nito de João Ramalho; em segundo lugar, a preferência por
do futuro sítio urbano de São Paulo, pronunciaram os acon¬ um ponto que é o centro virtual de um compartimento geo¬
tecimentos posteriores. A tese principal dêste período é a lógico bem definido, é um tipo de preferência largamente
tese de uma exploração mercantilista . Sua expressão mais repetido ao longo da formação paulista.
clara foi a tentativa de instalar no litoral paulista a produção A tese principal do segundo período, que vai de 1554 até
de açúcar em moldes industriais e coloniais. Essa tentativa, 1611, ano do estabelecimento de Parnaiba e Mogi das Cruzes,
promoção oficial, a cuja testa estava o próprio Martin Afonso é a tese da mestiçagem. Mestiçagem de tudo, de gente, de
de Souza, continha em germem uma forma de capitalização técnica militar, de dieta alimentar, de linguagem, de estilo
que depois fêz carreira no mundo capitalista. A Cia. dos de vida. A experiência positiva da família de João Ramalho,
Almadores do Trato, fundada por aquele donatário, prenun¬ a indispensável, e cada vez mais acentuada, participação do
ciava a formação das sociedades anónimas, como aquela indígena na vida do colonizador, o alheiamento da metrópo¬
que os holandêses armaram para arrecadar compulsoria- le desinteressada de uma região falta de substância econó¬
mente o financiamento da sua aventura nordestina.
Essa tese de exploração mercantilista desta parte da
mica — que alimentasse suas intenções mercantilistas, o su¬
cesso das tentativas de montagem de poder com base na
colónia portuguêsa foi negada pelas condições topográficas conveniência com os nativos, são êsses os fatores que contri¬
e pedológicas do litoral santista. Dela nos resta apenas um buem para instalar em Piratininga uma problemática com
testemunho nas ruinas dos engenho São Jorge dos Erasmos, um mínimo de caráter europeu. Sem ouro, sem pau-brasil,
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ARQ. LUIS SAIA
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a tentativa de impostação da técnica ortodoxa que animava
de açúcar, a colonização oficial, foram menosprezados, arrebentados e
fracassada a experiência de produção volumosa própria sorte e jamais consertados, como freqúentemente se queixavam os
a sociedade paulista se vê abandonada à
disposta a construir seu próprio destino. camaristas. Êsses muros simbolisavam a instalação teórica
de Martini Afonso de Souza e as pretensões dos jesuítas, e
Essa mestiçagem representa um contraste com o que
técnica de foram negados pela solução colona, sem muros, sem baluartes,
acontecia então na América espanhola, onde a maiores do sem cidades, mas com uma produção volumosa de mestiços
destruição do indígena atingiu níveis porventura
que os conseguidos pelo europeu na— África. E contrasta
América
também com o que acontecia nas demais partes da desde,
que ràpidamente permitem surjam soluções peculiares e po¬
sitivas para os problemas regionais de colonização. A teoria
no Nordeste, por exemplo, onde lo¬ do baluarte cercado, destinado a explicitar o sentido apossea-
Portuguesa, como africa¬ dor da colonização portuguêsa, se opôs a solução biológica
go o escravo indígena foi substituído pelo elemento
prática e o retorno às formas já obsolecentes do feudalismo
no. um su- e de organização primitivista da sociedade.
Esta solução de mestiçagem intensiva constituiu sua im¬
,
Dêste período da formação paulista nada restou senão a
porte fundamental para os sucessos posteriores, e a
portância no comportamento dos habitantes de Piratininga lembrança dos locais dos estabelecimentos então fundados,
ser avaliada pela dessiminação do sangue indígena nos provàvelmente em têrmos tão precários e tão próximos da
pode pela influên¬ técnica indígena que o tempo tudo demoliu e arrasou, menos
principais troncos das antigas famílias paulistas,
e pela permanência pertinaz aquele entranhado espírito ambulatório que bem mais tarde
cia na nomenclatura geográfica espantaria, e muito, ao conde de Assumar. Carapicuiba, uma
de traços de temperatura indígena nos paulistas dos séculos
. aldeia de índios fundada nesta fase da vida paulista, tanto
posteriores andou de cá pra lá, antes de encontrar um pouso definitivo,
Um comportamento despreconceituado e destemeroso que muitos historiadores se confundem quanto ao local da sua
da ação ultramarina é, sem dúvida, uma componente
funda¬
mental da tese ancilar de dessacralisação da formação re¬ instalação . Santo André da Borda do Campo, provàvelmente
em local hoje imerso no reservatório do Rio Grande, já em
gional. De fato, ao sentido carismático da ação
tas na América do Sul e dos franciscanos no México,
em São Paulo, uma ação colona de sentido

religiosa,
alcançava expressões tão explícitas no esforço • dos. jesuí¬
que
se opôs,
dessacralisante,
lins do século passado desafiava a faina pesquisadora de
Teodoro Sampaio, que tentou inutilmente localizá-la. No li-
!oral, sempre mais vinculado às coisas da Metrópole e, por
isso, tão descasado da civilização paulista, sobram algumas
fundada na montagem de uma estrutura social de caráter imagens e talvez umas colunas de talha . Coisa mais de portu¬
feudal-militar. Aos aspetos utópico e idealista cuja que norteavam
jesuítas, e para explicação guês no Brasil do que de paulista. A primitiva São Vicente
a ação dos franciscanos e dos foi tragada pelo mar, o antigo bastião de Hans Staden subs-
não é possível esquecer as ligações dessas Ordens com os
saltavam a cada canto do pensamento erudito lituido, as primitivas capelas desaparecidas.
utopistas que
europeu, se opõe um quadro social carregado de rcminicên- O terceiro período (1611-1727) se inicia quando surgem
e facili¬ os resultados das dissenções entre colonos e que alguns dêstes
cias feudais, insuflado pelo ímedíatísmo biológico cõin se estabelecem de modo a criar novos pontos focais da gente
regionais de conquista do poder
tado peias perspectívas de li¬ paulista. Mogi das Cruzes e principalmente Parnaíba são os
base na posse de escravos e nas possibilidades locais
derança. 0 fator posse da terra, ao contrário do que aconte- pontos preferidos. O “território” no qual se disseminavam os
paulistas já está então perfeitamente definido, bem assim a
cia nas demais partes da América, é um fator negligenciado. que forma deles se distribuírem. Esta escolha de novos pontos
Uma dessacralisação, como se vê, sem o fundo averroista Europa, em focais da vida regional liquida as tentativas de concentrar a
marcava as tendências dominantes no Norte da
luta contra Florença e Roma; mas também sem a coloração vida paulista num estabelecimento urbano (Piratininga) e
f’bonacciana e mercantilista que anunciava o nascimento do marca o início da atuação dessa sociedade que se montara
capitalismo moderno . segundo moldes estranhos e mesmo contrapostos às teses ofi¬
cer¬
Nesse quadro fundamental, os muros de taipa quemodo, ciais de colonização . Essas teses repartim a influência ibé-
cavam a antiga Piratininga e representavam, de certo
86 ARQ. LUÍS SAIA MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 87

rica entre a saída carismática dos jesuítas e a solução mer- A idéia de concentrar os índios numa “aldeia grande”,
cantilita do govêrno metropolitano. Esta fôra posta à margem sob o controle dos padres da Companhia, e onde a mestiça¬
com o malogro da indústria de açúcar; aquela fôra extirpada gem encontraria impecilhos de vulto, como ficou evidencia¬
pela adoção de uma fórmula espacial de sediação de subs¬ do no exemplo das Missões, matrisava a tese jesuítica para
tância dessacralisada e pela mestiçagem intensiva. 0 paulista São Paulo.
como que englobou tais teses num único polo e lhe antepôs Os colonos, entretanto, caminhavam noutra direção, pre¬
um tipo de estrutura demográfica e uma família de soluções ferindo se distribuir sôbre um território relativamente vasto,
político-económicas que constituíam mais frontal negação ao com um raio de aproximadamente 50 quilómetros a partir
binário urbano-rural. daquele ponto já endossado como sede oficial. Os índios e
O binário urbano-rural constituía, nessa época, em pleno mestiços acompanhavam nessa distribuição, quer como pe¬
século XVII, a tese mais cara ao mundo que orbitava em têr- ças de serviço” na escravaria das fazendas, quer como “almas
mos europeus, inclusive e principalmente no que dizia res¬ administradas” das inúmeras aldeias que repetiam o estilo
peito às instalações de conquista. A ocupação das “vacareis”, dos estabelecimentos colonos. Mais tarde, êsse raio foi ex-
o remanejamento dos núcleos existentes e o desenvolvimento lendido para mais de 100 quilómetros, porém já numa época
geral da população urbana, inclusive por motivo das fran¬ em que a decadência marcava, com seus sinais ineludíveis, o
quias e da relativa liberdade que aí conquistavam os “servos esfacelamento próximo dêste estilo da formação regional.
da gleba”, o comércio e os novos têrmos do mercado e da Os “restos” de habitações das classes dirigentes paulis¬
produção, transformaram a temática urbana em tônica da tas do século XVII e comêço do século XVIII o testemunho
Europa post-Renascença. De qualquer modo, porém, as pre¬ cabal dêsse estilo da sociedade paulista. Mesmo as habita-
liminares de divisão da terra estavam de antemão estabele¬ ções daqueles homens que exerciam importantes cargos de
cidas e estabelecimento do binário urbano-rural é apenas direção na governança da terra estavam localizadas em pon¬
uma nova forma de gregarismo da população européia. Na tos afastados da “cidade”. Para esta, os homens somente
América, o fenômeno é totalmente novo, desde as suas raí¬ ocorriam nas ocasiõe de reuniões ou festas religiosas. Por
zes abstratas de divisão da terra, até as formas adotadas pa¬ outro lado, a precariedade das instalações urbanas é atesta¬
ra instalar as cidades. Se na Europa o quadro geral de da pelas inegligíveis referências exaradas nas atas da Câ¬
ocupação de terra já estava esboçado e comprometido, na mara e nos demais documentos que compõem a documenta¬
América está sujeito de um lado às imposituras de ordem ção escrita da época. A Casa da Câmara não existia como
erudita, como é o caso da aplicação das Leyes de lo Reyno edifício próprio; abicava aqui ou ali, em moradas particula¬
de las índias na América Espanhola, enquanto que as condi¬ res, ao sabor dos acontecimentos. O reticulado urbano, que
ções empíricas da colonização podiam, cm alguns casos, de¬ tanta expressão alcançava na América espanhola, e mesmo
monstrar o predomínio de fatores regionais e locais, como é em certas partes da Colonia Portuguêsa, era recusada pelos
o caso da solução paulista. colonos mestiços de São Paulo.
Pelo menos duas ações de ordem erudita inspiraram a O próprio Jesuíta, tão insistente e jeitoso nas táticas de
colonização ibero-americana: a associação das ordens reli¬ luta, foi afinal envolvido pela tese que era contrária aos
giosas com as utopias e os preceitos hipodâmicos revelados interêsses da Companhia; as aldeias, que representavam
pelos Dez Livros de Vitruvio. Os jesuítas e os franciscanos uma tese ancilar da instalação paulista no século XVII, se
íoram os portadores das idéias respectivamente de Campa- aninharam na forma preferida pelos colonos, em círculos
nela e Tomaz Morns e o reticulado hipodâmico, que sempre concêntricos e sucessivamente afastados de Piratininga. Na
estivera aliado, desde a sua criação por Hipodamus de Mile- base dêste envolvimento, estavam as doações de terras feitas
to, ao imperialismo colonizador, assumiu um caráter domi¬ pelos colonos mais afeiçoados à Companhia e nas quais os
nante na legislação que pretendia disciplinar a instalação soldados de Jesus se instalavam bem ou mal. Geralmente
espanhola na América. As Leys de lo Reyno de Ias índias mal, e longe de lembrar aqueles estabelecimientos carismá¬
traduzem e acolhem, literalmente, o capítulo poli ano refe¬ ticos da República Guarani. Carapicuiba, Embú, São Miguel,
rente à instalação de cidades. Escada, Barueri, Itaquaquecetuba, etc., são aldeias que tive-
88 ARQ. LUÍS SAIA

ram origem na doação de sesmarias colonos cuja incapaci¬


dade de desenvolvimento demonstrou não se enquadrarem
exatamente na órbita das preferência regionais. 0 próprio
fatos destas aldeias perderem aquela fisionomia abstrata, que
procedia do reticulado hipodâmico nelas experimentando, e
que cedo cedia ante a pertinência dos fatores topográficos e
das tendências normais da população, é mats um indicio do
dominio completo da teses colonos sôbre a tese jesuítica.
Nas habitações da classe dirigente, únicas capazes de
sobreviver à precariedade que perseguia as demais constru¬
ções, a mestiçagem das soluções arquitetônicas é suficiente¬
mente visível para ser considerada e computada. Sistemati-
tisaram um projeto erudito, de procedência paladiana, tor¬
nando-o a temática central de um processo de evolução
técnica e tuncional capaz de retratar as condições internas
dêsse periodo. E o único exemplar urbano dêslc tipo de
morada, encontrado em Parnaíba e iá restaurado pela
DPHAN, tudo leva a concluir se trata apenas de uma adap¬
tação do esquema geralmente utilizado na halutaçao dos
maiorais bandeirantes , Neste exemplar desapareceu exata¬
mente aquela parte da morada tradicional que mais evidente
vinculação possuia com o regime de vida dos bandeiristas:
a faixa fronteira. Esta parte da planta tipo se compõe subs¬
tancialmente de um alpendre central e dois compartimentos
laterais, uma capela e um quarto de hóspedes. Como planta,
além da origem mediterrânea tradicional e do tratamento
paladiano erudito, deve-se assinalar o seu comparecimento
nas diterente regiões de colonização ibérica. Pelo menos no
Novo México, na Colombia e no Paraguai, isto já foi denun¬
ciado bibliogràficamente. Segundo informações ainda não
documentadas, porém, de fontes responsáveis, o mesmo se
íerifica naqueles pontos do Oriente onde a presença ibérica
ficou assinalada em “restos” arquitetônicos.
Funcionamento, dois fatos importantes devem ser indi¬
cados. Em primeiro lugar a já acusada sistema tisação desta
planta pelos paulistas da época bandeirista, o que é indica¬
do pela quase unanimidade dos exemplares deste período
encontrados e ainda pelo fato de estar presente naquela re-
gião das Minas Gerais onde a influência paulista teria sido
considerável, pelo menos na primeira fase da colonização de
Minas. Como interpretação funcional, esta solução de planta São Roque
Capela de Santo Antônio
só poderia alcançar o consentimento coletivo, como de fato
alcançou, na medida em que respondesse rendosamente aos
termos de um programa peculiar como substância econômi-
MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 91

ca, sociológica, religiosa e doméstica. E uma coisa denuncia


essa sensibilidade: é o fato dela acolher, nas suas variantes
e evoluções, a repercussão arquitetônica dos fenômenos que
ocorriam na própria sociedade bandeirista. Isso é fàcilmente
verificável na volumosa documentação já arrolada pela
DPHAN.
Como sistema construtivo e processos de fatura, o con-
junto destas residências apresenta uma notável riquesa de
problemas que não cabe relacionar no presente trabalho, o
qual nem pretende nem poderia aceitar caráter de compên-
dio. Um dêles vale entretanto destacar, já pela sua conse¬
quência não só neste período da vida paulista e nas demais
fases da evolução regional, mas de um modo mais geral,
constituir mesmo um problema genérico da formação de so¬
ciedade sob o esquema colonialista que foi moldado pela ex¬
periência renascentista da técnica. Refiro-me à aplicação
daquelas soluções que, sendo originalmente de compleição
técnica, involuiram, sob as condições adversas vigentes nas
sociedades sob o domínio colonialista, para níveis artesa-
nais. Trata-se verdadeiramente de um processo de artesana-
tificação da técnica, resultado da divisão internacional de
trabalho e da filosofia que sustentou a montagem das profis¬
sões contemporâneas, a partir da Renascença, com base na
distinção escolástica entre Prudência e Arte, entre o Agir e o
Fazer. Tal distinção, enquanto nos focos centrais do colonia¬
lismo servia para estabelecer uma separação rigorosa entre
os diferentes setores do conhecimento e do exercício profis¬
sional, isolando-se e submetendo-os a um interessado controle
da Prudência e do Agir, através do que se reduziu os profis¬
sionais ao domínio das classes dirigentes, nas áreas domina¬
das pelos países colonialistas e imperialistas, proporcionava
o desdobramento dêste domínio, permitindo atingisse a tota¬
lidade da sociedade. Nestas circunstâncias, a técnica, que
apresenta como dado conceituai dominante o exercício da
inteligência, é reduzida, na prática, a uma forma involuida
na qual não há oportunidade da inteligência se exercer, vol-
tando tudo àquela condição limite do artesanato : o exercício
da especialização muscular.
Embora o mundo da técnica também aceite a distinção
escolástica mencionada, sendo mesmo êste fato uma cons¬
tante da sua maneira de ser, isto se verifica aí porque a téc¬
nica trabalha numa faixa de inteligência exclusivamente
confinada à lógica clássica e sob o império dos prejuízos tra¬
dicionais do periodismo e da mania classificatória . Em que
92 ARQ. LUÍS SAIA
MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 93
pezem, porém tais limitações, a participação da inteligência
é uma condição limite do seu exercício. No artesanato, ao de pilão e madeira) . O mesmo não aconteceu com a arquite¬
contrário, a condição limite é a especialização muscular. A tura religiosa desta época, nesta região, a qual, exatamente
versão de uma solução já evoluída para termos puramente devido à impropriedade do esquema construtivo adotado,
artesanais, como é o caso em pauta, de artesanatificação da não pode, senão em raros casos, resistir e mal, à ação do
técnica, não impede, como também no caso da técnica ou do tempo e do abandono que as submeteu a superposição de es¬
artesanato, que as decisões de tipo coletivo manifestem alto truturas sócio-econômicas supervenientes .
nível e capacidade de seleção. A inteligência c, na verdade, Já no século XVIII o padre Manuel da Fonseca, ao des¬
minimisada ou desaparece por completo como manifestação crever o ambiente e as ações particulares nos quais se teriam
individual do criador de particular obra, mas isto não im¬ realizado os milagres do padre Belchior de Ponte, tem opor¬
pede que a decisão coletiva, responsável pelo cndôsso e sis¬ tunidade de oferecer observações argutas sôbre a vida pau¬
tematização de um programa ou de um partido, patenteie lista do século anterior; e uma das suas denúncias recae sô¬
um alto gráu de discernimento em face dos problemas pro¬ bre o fato da ruina precoce que perseguira as capelas con¬
postos em têrmos do interêsse geral da coletividade. Na temporâneas do seu biografado. No geral, estas capelas
verdade, uma solução qualquer, técnica ou artesanal, pode possuíam alpendre como agenciamento relacionado com um
alcançar a condição de sistemática na medida em que possa programa que incluia a severa divisão de classes e eram
representar uma resposta correta e eficiente a determinado construídas com taipa de pilão. Êstes dois compromissos con-
problema tipo, independentemente do técnico ou artesão ir flitavam, e o esquema construtivo adotado pelo partido des¬
ou não além da pura repetição empírica, a resultados posi¬ tas capelas não permitiu a experiência o comprova, uma efi¬
tivos. Tudo funciona como se houvesse uma inteligência ciente amarração para a estrutura alpendrada. Os dois úni¬
coletiva no comando das ações e que apenas recebem o en¬
dosso da generalidade dos interessados àqueles resultados
que atráem anuência e aprovação na generalidade dos casos
la do sítio Santo Antônio — —
cos exemplares sobreviventes capela de São Miguel e cape¬
delatam os aspectos negativos
do esquema construtivo adotado na generalidade dos casos,
tipo . exatamente por constituírem exceção. Tanto num como
No caso presente, de escolha de um partido arquitetôni- noutro caso, as colunas do alpendre eram de fatura diversas
co para as habitações das classes dirigentes de uma socieda- daquele adotada nas demais partes da construção. Num caso
de particularmente libertada das amarras governamentais de tijolo, e noutro de pedra. 0 tijolo, mats favorável à uma
ultramarinas, as circunstâncias favorecem para que a inte- bôa amarração interna, resistiu melhor; a pedra (caso da
ligência coletiva se manifestasse sem impedimentos de mon¬ capela de Santo Antônio) com argamassa de argila, pouco
ta. Isso veio valorizar a solução alvitrada, impedindo que melhorou o esquema geral, embora na tôrre, também desta
o lado negativo da artesanatificação prevalecesse. Noutra fatura, tenha resistido de forma satisfatória. 0 fato do ar¬
situação regional, em que as forças colonialistas se exerciam quiteto desta capela ter escolhido processo de fatura diverso
com maior plenitude, como é o caso do ciclo do café, que da taipa para a execução da tôrre e das colunas da capela,
adiante estudaremos, os aspectos negativos da artesanatifi¬ indica que, já naquela época, o uso da taipa para determina¬
cação da técnica se instalaram tão profundamente que a sua das partes da construção estaria condenado. Mas esta alter¬
erradicação somente surgiu como possibilidade em conse¬ nativa não foi suficiente para garantir a integridade do alpen¬
quência das próprias contradições internas dêsse ciclo eco¬ dre. Foi encontrado, em 1937, com apenas restos das colunas
nómico . e realmente ameaçada a fachada vasada, de madeira.
O alto nível de adequação das residências paulistas das Ainda uma terceira capela desta época, mandada cons¬
classes dirigentes da época das bandeiras, permitiu que truir pelo padre Guilherme Pompeu ao sopé do Morro do
muitos exemplares dêste tipo de construção sobrevivessem às Ibituruna, no município de Parnaiba, e encontrada na mais
diferentes e sucessivas superposições de estruturas econô- extrema ruina, conservou dois elementos documentários da
mico-sociais, o que não deixa de ser notável, principalmente maior valia: o altar-mor, justamente reputado como das pri¬
tendo em vista a precariedade do material utilizado (taipa meiras peças de arte religiosa brasileira, em contraposição
as de arte religiosa portuguêsa construídas no Brasil, e a mar-
94 ARQ. LUÍS SAIA MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO
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ca do alpendre fronteiro, indentificável nos alicerces e no re¬ experiência, em têrmos de estrutura e de organização
mate frontais das paredes laterais. espaço, foi aproveitada, embora bisonhamente, nas edifica¬ do
Dessas três peças da arquitetura religiosa paulista do ções posteriores, mais do que isso a geografia da
habitação
segundo século, a mais antiga, São Miguel, data de 1622. sofreu uma completa modificação. A ponto de os “restos” de
Embora frei Mariano da Conceição Veloso tenha ai realizado moradas seiscentistas estarem, quando foram identificadas
uma reforma em fins do século XVIII, alteando o corpo da pela DPHAN, afastadas das vias normais de
comunicação e
nave, ficaram preservadas indicações de um dispositivo (de¬ isoladas daqueles pontos que os séculos seguintes haviam
pois restaurado) de particular interêsse: o vasamento do preferido como focos de sediação humana.
“corredor” lateral e seu tratamento com elemento de ma¬ O mesmo não ocorreu com os pontos escolhidos para a
deira. Tal dispositivo prelimina o tratamento da fachada da instalação das precárias unidades urbanas. Êstes denun¬
capela do sítio Santo Antônio, 60 anos depois. ciam uma estratégia peculiar em relação ao quadro geoló¬
A arquitetura religiosa paulista do segundo século pro¬ gico, como São Paulo e Taubaté, centros virtuais de compar¬
punha aos arquitetos de então um problema de relação inte¬ timentos geológicos bem definidos, ou Itú e Sorocaba, mar
rior-exterior, como condição de funcionamento da igreja cos definidores da linha divisória entre faixas geológicas
relacionada com a separação de classes e com a lotação ins¬ diferentes; êsses pontos não só receberam o endosso
nômenos posteriores, como demonstraram constituírem fe¬
tantânea variável. A interpretação arquitetônica deste item dos
na capela do sítio Santo Antônio, mais rica como tratamento primeiras manifestações de um tipo de preferência que as
plástico e mais drástica como solução funcional, denuncia evolução paulista iria “trabalhar” com especial agrado. tôda
alguns fatos que merecem destaque especial : aquele tipo de tecido demográfico pontilhado, e Mas
a) mestiçagem arquitetônica de fato, as capelas alpen- largamen¬
te extendido sôbre o primitivo “território” paulista,
dradas são comuns na Europa Medieval e especial mente na esquecido, como locais e como estilo de tecitura, êste foi
Ibéria, mas o vasamento das suas fachadas parece ter sido todo o tempo que mediou o período bandeirista durante
uma resultante regional paulista relacionada com a tecitura fase da instalação industrial, na qual
e a atual
demográfica caracteristica e com certa intimidade com a cativa vitalidade.
revive com signifi¬
tradição da arquitetura arabe.
b) a combinação, num partido único, de soluções de di¬ O período seguinte, de 1727 até a vinda do Morgado de
versas procedências, denuncia a presença de um arquiteto Mateus com a restauração da Capitânia, em 1765, em que
cuja inteligência não estaria inativa frente à complexidade pesem os testemunhos tradios de iniciativas,
habitações
das tendências e dos acontecimentos paulistas. demais estabelecimentos relacionados com a temática dase
c) o fato desta solução arquitetônica se haver tornado bandeiras e das descobertas, pode ser interpretado como
popular na região paulista indica, por seu turno, duas coisas: fenômeno de circunstâncias. Faltou-lhe uma propositura
1)generalidade programática; económica capaz dç dar-lhe individualidade definida e pró-
2) artesanatificação da solução tecnicamente elaborada. pria, com temática autónoma e diretrizes próprias
de desen¬
Como armadura dialética, os resultados positivos da volvimento . Um exemplo disso está na ocupação e povoamen¬
época bandeirista conduziram-na ao próprio aniquilamento. to do litoral norte do Etado.
As consequências político-geográficas, os retumbantes efei¬ Enquanto o ciclo das bandeiras dispusera de elementos
tos económicos e o deslocamento demográfico para a região extraídos do próprio âmbito de exercício e da maneira
das minas, determinaram o despovoamento de São Paulo, o culiar de propôr seus problemas mantendo com o exterior pe¬
aniquilamento completo do esquema feudal-militar que es¬ (e neste exterior se incluem as regiões da Colónia
onde
tava na sua base, a perda de individualidade política e o pareceu) aquele tipo de relações que o fazia orbitar emcom¬
abandono daquelas instalações que traduziam sua fisiono¬ no da temática paulista, e revelando certa autonomia tor¬ na
mia especial caracteristica. É importante assinalar que, seleção dos têrmos que aceitava na composição da sua pro¬
mais do que o abandono daquela planta peculiar da morada blemática (embora tais têrmos procedessem eventualmente
da classe dirigente, a qual não foi total uma vez que a sua de problemas já resolvidos), no caso das instalações do lito-
96 ARQ. LUÍS SAIA
MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 97
ral norte de São Paulo, nada ocorre de parecido ou equiva¬
lente. etc., tanto no plano como nos cortes. O fato de um partido
Em primeiro lugar, esta região dificilmente se compõe como ête, já maduro, se repetir nas diversas variantes en¬
com os demais do território paulista, sendo restritas e circuns¬ contradas, revela que aquela condição limite de excelência
tanciais suas relações com o planalto e mesmo com Santos
São Vicente. Em segundo lugar, os temas económicos que
na arquitetura tradicional —
foi neste caso, trazida de fora.
longa experiência coletiva —
aceita nem são de molde a repercutir serra-acima, nem con¬ Outro tipo de construção que marca o caráter de circuns¬
seguem uma substância capaz de lhe permitir alcançasse tância da arquitetura do litoral norte de São Paulo é o das
uma estrutura independente. Consequentemente, suas ins¬ fortificações que foram durante êste período aí erguidas ou
talações constituem, literalmente, instalações de circunstân¬ edificadas de novo sôbre locais anteriormente aproveitados.
cia: é o fato desta parte do Estado representar um possível Com exceção daquelas fortificações erguidas nas imediações
caminho para as Minas Gerais que atrái os colonizadores. de Santos, as demais, e não foram poucas na vasta costa en¬
Como o percurso para as minas gerais era obstado de todos tre Santos e Parati, eram percárias e cedo ruíram ou desa¬
os modos pelo trancamento dos caminhos, o aventureirismo é pareceram por completo, naturalmente por falta de suporte
estancado na sua faina ambulatória ,e deriva para uma fixa¬ económico que sustentasse sua necessidade de conservação e
ção nos engenhos e nas vilas do litoral. funcionamento. As construções religiosas não conseguiram,
As peças encontradas neste litoral, como “restos” das por seu turno, nem um volume nem uma qualidade que pu¬
antigas instalações, excelentes como projetos e geralmente dessem delatar qualquer indicio ou fato mais vinculado ao
más como execução, indicam que as soluções arquitetônicas caráter particular desta região paulista. E se mais alguma
aí aproveitadas provieram de uma experiência estranha ao coisa devesse ainda ser indicada como denúncia dêste aci-
ambiente, e que aí não teriam encontrado mão-de-ohra do dentalismo na ocupação desta parte do Estado, durante esta
memo nível que desfrutavam nos locais de origem. Além época, valeria chamar a atenção sôbre a circunstância de
disso, não se deve esquecer que a marinha sul de São Paulo, ter desaparecido, exatamente nesta época, a curta tradição
seria a mais indicada para possível indústria de açúcar, da¬ de escultura religiosa em terra cota, que durante o século
das as suas condições topográficas e pedalógicas mais fa¬ XVIII foi característica do litoral.
voráveis . Com a vinda de Morgado de Mateus, em 1765, novo pe¬
O mats antigo dêstes engenhos, de meados do século ríodo se abre para a região de São Paulo. Ou porque as ini¬
XVIII, precisamente de 1743, o engenho Santana,, é de ilheu ciativas dêste governador tivessem, na verdade, um conteúdo
e parece ter inaugurado a preferência pelo partido tradicio¬ desenvolvimentista, ou porque os fatores naturais voltassem
nal para os estabelecimentos açucareiros da região, com a sobrepujar as condições de atraso, o certo é que neste pe¬
tôdas as suas partes componentes colocadas sob um mesmo ríodo de 1765 a 1834, ano do Ato Adicional que organizou o
teto. Em contraposição, portanto,, à já estabelecida tradição poder civil já em têrmos nacionais, novas zonas foram ocupa¬
da principal região açucareira da Colónia, no Nordeste, onde das pelo colonizador, novas cidades foram fundadas, inúme¬
o partido aberto se instalara com a maior desenvoltura e ros estabelecimentos de produção foram implantados aden¬
firmeza. trando o interior até então desabitado, igrejas urbanas reedi¬
A desimportância da produção regional não seria, na ficadas ou reformadas e outras novas construídas . Como que
verdade, um suporte suficiente para justificar a maturidade substituindo os vigorosos impulsos internos que a coletividade
dos projetos dos engenhos encontrados no litoral norte do paulista dispuzera no século anterior, e que a fizeram de
Estado. Como planejamento geral, sua implantação relacio¬ tão marcada atuação no cenário nacional, a fermentação das
nada de um lado com o transporte marítimo e de outro com idéias que então revolucionavam a Europa repercutiram em
com o aproveitamento das águas interiores, é tão excedente São Paulo, incutindo ritmo progressista à população que rà-
quanto a organização do espaço construído, especialmente pidamente se avolumou. Em 1777 já ostentava 116.975 ha¬
no que se refere à especialização funcional, com uma per¬ bitantes, alcançando 158.450 em 1797 e 192.729 em 1805. As
feita organização e separação dos serviços, moradia, igreja, antigas povoações, que antes estavam “faltas de gente e sem
nenhum modo de ganhar o vida” se enriquecem e novas vi-
98 ARQ. LUÍS SAIA MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 99

las são fundadas, abrindo novas terras ao cultivo e à ocupa¬ com o criatório extensivo, com a política predatória que foi
ção. No Norte são estabelecidas as vilas de Cunha, São Luiz acolhida pela agricultura. Todos êsses fatos significam na
do Paraitinga e Lorena; no arqueano, na direção das Minas, verdade uma preliminar para o esquema resolutamente co¬
são fundadas Atibaia e Bragança, e, nos limites do arqueano lonial que envolveria o país na fase seguinte. Todas a ini¬
com a primeira faixa do sedimentário, adentrando pelo ser¬ ciativas partem do govêrno ou significam uma ação paterna¬
tão, Campinas e Porto Feliz põe a diposição dos novos habi¬ lista governamental. Em têrmos de tese coletiva, todo êsse
tantes as terras férteis de conformação favorável ao cultivo período não conseguiu levantar uma linha de desenvolvi¬
extensivo; Apiaí, Itapetininga e Faxina cobrem a região do mento capaz de formas explícitas independentes e definidas;
Sul, intensificando o comércio de gado pelo Caminho do a ação oficial acusava uma dependência frente à atuação
Viamão, centralizando na Vila de Sorocaba; no litoral Norte pertinaz do capitalismo.
a fundação de Vila Bela da Princesa oficializa a ocupação As construções e instalações que cobrem o desenvolvi¬
realizada no período anterior, em busca de estabilização. O mento regional desde 1765 até 1834 não explicitam partidos
govêrno promove censos e determina a reabertura de estra¬ capazes de representar uma preferência coletiva; ou repre¬
das e fundação de novos núcleos de abastecimentos destinados sentam a repercussão de soluções abstratas impostas ao sa¬
a proteger o transporte da produção que ràpidamente cresce, bor das circunstâncias, como é o caso de algumas residências
principalmente nas balidas do sedimentário que se cobre de urbanas e das construções religiosas, ou estão irremediàvel-
canaviais e de engenhos. O marques do Lavradio manda vir da mente marcadas pela insubstância que procede da pobreza
Bahia especialistas no preparo do fumo. Tudo se faz para in¬ e da dependência. No primeiro caso estão os exemplos da
centivar o cultivo do anil e do algodão. Montam,-se fábricas capela votiva do Pilar, de Taubaté, da reforma da igreja
de tecido grôsso e de cerâmica, e a fábrica de ferro do Ipane¬ seiscentista de São Miguel, executada por Frei Mariano da
ma é posta a funcionar sob a direção do ituano João Manso. Conceição Veloso, que trouxe de Minas Gerais o apêgo, pelo
Embora de modo precário, e com uma. técnica insustentável, adobe, técnica geralmente discrepante na área paulista, e nos
intensifica-se a navegação pelo Tietê e a de cabotagem, no inúmeros exemplos de construções religiosas executadas em
litoral Norte. Procura-se instalar um serviço postal com ga¬ São Paulo, em Mogi das Cruzes, Jacareí, Itú, Sorocaba, Tau¬
rantia de sigilo de correspondência e as mulheres são proibi¬ baté, Santos, etc., e cuja inconsistência estilística apenas faz
das de andarem “rebuçadas”. Criam-se “escolas menores” e éco à própria inconsistência económica que persegue êste
introduz-se o ensino no plano do saber epecializado, inclusi¬ período da vida paulista. Isto explica a ausência do explen-
ve com aulas de “cirurgia”. Constroe-se finalmente a Casa »,or plástico, tão caracteristico do século XVIII, e tão exube¬
de Câmara e Cadeia da cidade de São Paulo e inicia-se a pa¬ rante em Minas, na Bahia, no Rio de Janeiro e Pernambuco.
vimentação da ruas da capital, assim como os trabalhos de Um confronto mais detido entre a arquitetura religiosa
saneamento do Tamanduateí. de Minas e São Paulo do século XVIII revela que abundava
É claro que se tudo isso reflete de um lado a relativa naquela o que faltava às construções paulistas: aquela ri¬
vitalidade surgida com a restauração da Capitania e como queza proveniente da fartura do ouro e da nitidez das teses
decorrência das pretenções militaristas do Morgado de Ma¬ coletivas de instalação . Às matrizes mineiras do século XVIII
teus, de outro lado representa um ralo sôpro longínguo das ricas como as de Sabará e Antônio Dias, se opõem às matri¬
idéias que varriam o pensamento europeu, desobstruindo-o zes paulistas, mais pobres do que propriamente severas, como
das formas estruturais medievais e preparando-o para o as de Porto Feliz e Taubaté; às igrejas das Ordens religio¬
amadurecimento do capitalismo e advento do imperalismo. sas mineiras, vigorosas e decididas na sua formulação e na
Aqueles emperramentos que provocaram a proibição das sua definição plástica, como as franciscanas de Ouro Preto
indústrias (1785) e forjaram Iguatemi, que liquidaram a ou São João.Del Rey, e opõem as igrejas paulistas apoucadas
franquia da cabotagem (1802), embora aparentemente supe¬ e pobres, sem pretenção de representar coisa alguma que
rados pela vinda da família real para o Brasil, na verdade não fôsse uma proteção governamental interessada mas pí¬
representavam a preparação do país para o regime da explo¬ fia, e o natural fervor religioso da população da época. En¬
ração colonial que veio afinal com a monocultura do café, quanto nessa época; em Minas, as construções religiosas têm
100 ARQ. LUÍS SAIA
MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 101
uma retaguarda armada numa forma gregaria bem definida,
carregada de intenções e com grande vivacidade no piano já liquidada a exploração do ouro de lavagem, iniciaram um
da emulação, em São Paulo representam um empenho do movimento para São Paulo, trazendo consigo as caracteristi¬
govêrno e do clero, ambos tentando aparentar vitalidade, e cas das construções montanhesas. Já foi mencionado o caso
sobretudo um desesperado esforço da população em luta da reforma da igreja de São Miguel pelo frei Mariano da
contra a pobreza e a insolubilidade da vida coletiva falta de Conceição Veloso, em fins do século XVIII. Nas construções
substância económica. rurais foram identificadas duas residências que documentam
Dentre a construções civis, a Casa de Câmara e Cadeia êste torna viagem; uma, no município de São Luis do Pa-
(1784/88), o Hospital Militar (1797). o Quartel dos Volun¬ raitinga (Fazenda Alves), e outra, nas proximidades de Al-
tários (1776/90), o Mercado Público (Casinhas, 1773), o Cha¬ tinópolis (Fazenda Jaborandi), ambas do' inicio do século
fariz da Misericórdia (1792) e especialmente a estrada São XIX.
Paulo-Santos (1827), chamada Caminho do Mar, constituem Nada entretanto, que pudesse indicar uma base sólida
coisas de iniciativa governamental. É verdade que esta ação do para a organização da coletividade paulista em têrmos de
govêrno era acompanhada por um esfôrço da população, es¬ determinadas preferências por esta ou aquela solução coleti¬
forço êste que é expresso principalmente pelo número de en¬ va, por êste ou aquele partido construtivo resultante de es¬
genhos arrolados pelo Ensaio do Quadro Estatístico de 1834, pecíficas condições regionais. E nada, portanto’ equiparável
e espalhados na faixa sedimentária que se dispõe em seguida ao que ocorrera no período bandeirista (1611-1727), nem do
ao arqueano, na zona de Campinas, Itú e Sorocaba. Vale que ocorreria em seguida, com uma coletividade perfeita¬
anotar também que alguns núcleos de população, que não mente alinhada segundo os têrmos de uma tese principal e
estavam enquadrados na visão oficial, foram instituídos à de teses ancilares definidas e claras.
revelia da inspiração governamental. O período que vai do Ato Adicional (1834) responsável
Um tipo de construção característica desta época, rela¬ pela organização interna do país já politicamente indepen¬
cionada com a relativa vitalidade que alcançava a popula¬ dente até 1929, ano em que uma crise internacional estourou
ção, é a de edifícios destinados a albergar as tropas e via¬ a estrutura agrária colonial, tem como tese principal a da
jantes, localizados especialmente nas saídas das cidades. instituição do binário urbano-rural, sob o qual se efetuou a
“Restos” ou apenas lembranças destas construções foram ocupação territorial, demográfica e económica da maior par¬
identificadas em Sorocaba e Atibaia. te do Estado de São Paulo . A população, que em 1834 era da
As edificações mais caracteristicas dêste período pau¬ ordem de 330.000 habitantes, ganha uma firme curva de
lista estão situadas no litoral, principalmente em Ubatuba crescimento, atingindo 837.354 em 1872, 1.384.753 em 1890,
e São Sebastião. A mais notável de tódas, pela excelência 2.282.279 na passagem do século, pràticamente dobrando
da sua impostação arquitetônica é, sem dúvida, uma peça nos 20 anos seguintes pois em 1920 acusava 4.592.188 habi¬
encontrada em São Sebastião (Casa Esperança), mixta de tantes. Quando estourou a crise de 1929 a população rondava a
residência e comércio, e cujos tetos, decorados no início do casa de 6.000.000, com uma contribuição da ordem de...
século XIX, época que fixa também nesta residência e comér¬ 1.000.000 de estrangeiros naturalizados e imigrantes. Dêsse
cio, e cujos tetos, decorados no início do século XIX, época montante,, quase a metade vivia nas lides rurais e, desta
que fixa também nesta residência, a substituição das portas metade, pelo menos 1/3 está vinculada à cultura do café. Até
cegas dos janelões do sobrado por peças envidraçadas e os 1834 existiam 29 sedes municipais, repartidas da seguinte
gradis do balcão por trabalho de ferro com encaixe, para maneira: 7 na zona da capital, e 7 também no litoral; ao norte,
luminárias . na direção da Corte, 6; na direção de Sorocaba e Sul, 5; na
Do ponto de vista das construções rurais, além dos edi¬ zona de Campinas, 2; na zona de Piracicaba, 1 e na zona de
fícios que serviam à indústria do açúcar e cuja procedência Franca, 1. Por outro lado,a produção de café na época do
da arquitetura residencial seiscentista é patente em alguns Ato Adicional é da ordem de 600.000 arrobas. Em 1930, dos
exemplares já identificados em Sorocaba e Itú, vale anotar 243 municípios existentes no Estado, 214 haviam sido funda¬
a arquitetura dos mineiros que, no comêço do século XIX, dos sob o regime da economia do café, entre os anos de 1834
e 1929. Desde 1855, quando já contava com uma produção de
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MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 103
4.338.756 arrobas, produzidas em mais de 2.500 fazendas, a
cultura do café tendia “a reduzir consideràvelmente, e não a ar frio provenintes da Frente Polar Continental. Há quem
i bsorver tôdas as demais indústrias agrícolas”.
pense que a malária teria afastado a cultura do café das bai¬
Atras dêsses dados estão os fatos que contribuiram decisi¬ xadas. É possível que êste motivo tenha agido psicologica¬
vamente para definir o quadro de ocupação territorial de¬ mente de algum tanto, porém jamais constituiu razão rele¬
mográfica e económica e cultural da maior parte do território vante, posto que alguns terrenos ribeirinhos, especialmente
paulista e que, além disso, influíram substancialmente no re- ricos, foram largamente aproveitados, como é o caso das
manejamento daquela parte que fôra anteriormente ocupada . margens do rio Mogi Guassú, na região de Água Vermelha,
F. um fato da maior relevância se configura, dede logo, como de cuja riqueza saiu uma equipe de políticos e dirigentes do
responsável pelo desenvolvimento regional: é o elevado nú¬ fim do Império e comêço da República.
mero de pessoas exigido pela técnica tradicional de cultura, 2) Paralelamente a essa primeira tese ancilar, e natural-
beneficiamento, transporte e comercialização do café. De mente em consonância com ela, duas outras teses recebem
fato, o grupo de tese ancilares através das quais a tese prin¬ uma definição bastante clara. A primeira diz respeito à dis¬
cipal (binário urbano-rural) acolhe as mais diferentes in¬ tribuição das cidades em rosários estendidos ao longo dos es¬
fluências que travaram o desenvolvimento regional, cada pigões; a segunda está no estabelecimento de uma rêde fer¬
uma delas têm sempre na sua estrutura e refarto manancial roviária de forma dendritica, também preferindo as diretri¬
demográfico, na sua condição numérica em primeiro lugar, e zes dos espigões que demandam a calha do rio Paraná, e
depois nas demais condições, económicas, culturais, políti¬ convergindo para o fulcro São Paulo-Santos.
cas, etc. Dentre as numerosas teses ancilares que formam A tese das cidades em rosário se afigura simplesmente
êsse grupo, seis parecem constituir a família dominante, res¬ uma decorrência do gôsto do café pelos solos mais altos,
ponsável pelo que há de mais característico na formação mas traz no seu bojo os elementos fundamentais do processo
paulista dêste período. Sua simples enumeração é bastante evolutivo que sofreram 90% das cidades fundadas durante
para denunciar a maneira pela qual se enquadram no con¬ êste período, nascido nas imediações de pequenos córregos, e
texto geral da evolução paulista e qual a importância de ca¬ cujo crescimento lhes impos uma fuga dêsses mananciais,
da uma nos resultados finais dêste ciclo económico. inicialmente fontes de abastecimento e depois transformadas
1) A Conquista territorial por faixas sucessivas e a cul¬ em fator negativo, pela poluição e pelas enchentes. Daí uma
tura extensiva constituem uma primeira tese ancilar do ciclo incoercível tendência das cidades paulistas de instalarem
do café. Esta dinâmica geográfica, o estabelecimento de fai¬ seu centros principais, ou na linha de cumiada, ou tendendo
xas pioneiras sucessivas e contínuas e a cobertura, relativa¬ para ela. Note-se ainda, neste sentido, que algumas cidades
mente rápida, de larga extensão territorial, constituem ca- de certa importância, situadas nas margens de rios volumo¬
racterísticas peculiares da cultura do café em São Paulo, e sos, ou foram criadas antes do período do café, ou represen¬
ainda hoje se prolongam pelo Norte do Paraná e Sul de Ma¬ tam casos excepcionais de solos férteis ribeirinhos, como é
io Grosso. O aproveitamento do humus e do cimento calcá- o caso, já mencionado, na zona do rio Mogi Guassú. Esta
reo disponíveis em determinados tipos de solos paulistas, condição do regime urbano no estado de São Paulo é um
juntamente com uma política agrágria de tipo predatório, fator inegligível na tradição negativa da navegação fluvial
estiveram na base desta decisão tipo. Os espigões, onde o ci¬ regional .
mento calcáreo se conservara melhor, e por isso também 3) a rêde viária de forma dendritica, em que pesa re¬
melhor aquinhoados de florestas e, consequentemente, de presentar uma repercussão direta da preferência do café
humus, apontaram as direções preferenciais para os cami¬ pelos solos de espigão, constitue, significativa e especialmen¬
nhos do café em demanda do interior do Estado. 0's terre¬ te no caso paulista, um fiel retrato da condição colonial da
nos de baixada, nos quais o calcáreo fôra carreado pela li¬ economia do café, cujo esquema básico reside na exportação
xiviação, foram postos de lado, quer por motivo da sua aci¬ da produção primária e importação dos produtos industria-
dez, quer porque os vales dos rios que demandam a calha do ’Eados, Atras dêste esquema está a divisão internacional do
Paraná, formam canais favoráveis ao percurso de ondas de trabalho, está a estrutura filosófica que sustentou a formação
das profissões sob o regime capitalista, está a tradição prefe-
104 ARQ. LUÍS SAIA MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 105

rencial da engenharia (o Gabinete Topográfico foi fundado em de Mato Grosso e Norte do Paraná, nas áreas submetidas ao
São Paulo em 1835 e a Escola Politécnica tinha, na época da mesmo impulso de colonização, é perfeitamente possível pre¬
sua fundação, o período de aulas coincidente com o entre- ver o que acontecerá com os estabelecimentos urbanos exis¬
safra do café) e está, principalmente, aquêle processo de tentes, e quais aqueles que terão a responsabilidade de centros
involução da técnica para níveis artesanais, que explicam a das sucessivas zonas e, portanto, quais os equemas mais ren¬
escala em que as iniciativas de conteúdo explícito progressista dosos para as vias de transporte.
poderiam tantas vêzes trabalhar no sentido de entravar o Esta compartimentação das diferentes zonas do Estado,
progresso e amarrar o esforço coletivo a reboque de interêsse conseqíiência direta de uma colonização subordinada à eco¬
contrários ao desenvolvimento regional. nomia do café, oferece as condições preliminares para a
Uma rêde viária regional armada especificamente como regionalização da produção e para remanejamento da rede
um dispositivo de transporte destinado a atender, com exclu¬ viária existente.
sivismo, ao esquema colonial de economia, certamente se Se no âmbito da tecitura económica e demográfica re¬
afastou de outras soluções porventura mais inteligentes e gionais essas teses ancilares marcam a tônica do ciclo do café,
equilibradas. Mas a sua subordinação completa a um esque¬ no ambiente estrito das áreas urbanas, pelo menos duas teses
ma particularita, não só a afastou de uma análise isenta devem ser enunciadas: hipodamisação do traçado urbano e
do problema, como a colocou numa posição chave, capaz tratamento artesanal dos problemas técnicos.
inclusive de levar o esquema da economia colonial à contra¬ 5) Hipodamisação do Traçado urbano. Ao contrário do
dição fundamental dêste. ciclo económico, isto é, à metropoli- que aconteceu na América Espanhola, onde o reticulado hi-
sação da Cidade de São Paulo, primeiro passo para a liber¬ podâmico foi uma imposição abstrata comendada, desde os
tação dêsse esquema. Como arranjo montado para servir à primórdios da colonização, pela Leyes de lo Reyno de las ín¬
essa economia, essa rêde representa, melhor do que qual¬ dias, nas cidades paulistas, o reticulado foi imposto por par¬
quer outro aspecto do desenvolvimento paulista, o retrato de celas sucessivas e tomando como pontos de partida as divisas
uma dependência económica e cultural. das glebas. Em consequência, as nossas cidades resultaram
4) A simbiose café-ferrovia, aliada às condições parti¬ numa soma de reticulados parciais, cuja implantação depen¬
culares da geologia e da pedologia, facultou o surgimento de deu dos limites naturais (córregos e espigões) que constituíam
uma nova tese regional: a formação de zonas centralizadas os marcos menos sujeitos a controvérsias e pendências judi¬
em cidades chaves. A bitola das mesopotamias caracterís- ciais. Esta desracionalização do reticulado hipodâmico, que
ticas, e o percurso entre cidades categorizadas como centros correspondia, em certo sentido, ao próprio reticulado dos
nas diferentes zonas do Estado, são os parâmetros que defi¬ talhões de café, representa também uma forma de tratamen¬
nem tais compartimentos. Na região oeste do Estado isto to artesanal dos problemas de implantação urbana.
se verifica com particular clareza, ao longo das linhas da 6) Tratamento artesanal dos problema técnicos. Três
Araraquarense, do Noroeste do Brasil, da Alto Paulista, da aspectos desta tese ancilar parecem de particular relevância:
Sorocabana, Araraquara, Rio Preto, Votuporanga; Baurú, o condicionamento das soluções de equipamento às formas
Lins, Araçatuba e uma previsão para Andradina: Marilia e de implantação urbana adotadas, o monopólio dos serviços
alternativas para Tupã e Lucélia; Ourinhos e Presidente Pru¬ públicos fundamentais e a importação dos estilos.
dente. A probalidade para Lucelia é demonstrada pelo espa¬ A dinâmica do desenvolvimento das cidades e seus com¬
çamento maior entre Ourinhos e Presidente Prudente. Êste promissos iniciais de implantação, juntamente com o aspecto
espaçamento maior explicita a interveniência de um novo financeiro que desde logo esmaga as administrações munici¬
fator: o transporte rodoviário, colocado pela política oficial pais, restringindo seu fôlego independente de ação a um mí¬
em posição de preferência. nimo definido pela sua capacidade de reter, no âmbito mu¬
Fora da área do sedimentário do Oeste do Estado, Ri¬ nicipal, uma parcela minima da arrecadação tributária, colo¬
beirão Preto, Barretos, Franca, Casa Branca, Botucatú, So¬ cam o problema dos equipamentos urbanos numa dependên¬
rocaba, Itapetininga, Taubaté, etc., repetem o fenômeno. cia total e num estado carencial crónico. Quando um proble¬
Nos extremos ainda não completamente ocupados, como Sul ma de equipamento é resolvido, geralmente já entrou num
106 ARQ. LUÍS SAIA MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 107

regime de desespêro, e isto facilita a aceitação de qualquer seguiram se salvar, pelo menos parcialmente, e alcançar
solução, mesmo as que se afiguram mais contrárias aos inte- maior legitimidade como expressão de cultura regional.
rêsses locais. Esta circunstância situa as administrações mu¬ É claro, por tudo o que foi dito, que o documentário
nicipais na mais completa dependência dos órgãos estaduais, mais decisivo desta época é constituído pelo conjunto das ins¬
de técnica ou de crédito, obrigando-as a aceitar, não só talações que resultara desta fase da formação paulista. Difi¬
aquelas soluções involuidas configuradas pelo conhecimento cilmente se conseguiria destacar uma cidade que, em seu con¬
incompleto dos problemas locais, mas especialmente aquelas junto, pudesse representar, como monumento característico,.
lormas de realização que conduzem os serviços públicos a ti¬ o ciclo do café com tôdas as suas implicações e com um mí¬
pos de monopólios inteiramente contrários aos interêsses do nimo de unidade. Inclusive e principalmente porque os re¬
povo. Nas cidades do interior, tal problema fica muitas vê- sultados dêste ciclo económico levaram a região a novas-
zes no plano simples do mal feito e da solução menor, pois proposições, .atualmente ainda em curso . Caso totalmente
que os volumes financeiros em jôgo nunca foram de molde diversos, por exemplo, do que aconteceu com as instalações
a despertar o interêsse dos grupos de cúpola que estava em do ciclo do ouro, cujas cidades, uma vez estancada a fonte de
posição de aproveitar estas disponibilidades proporcionadas produção principal, estacionaram numa determinada fisiono¬
pelo esquema capitalista. Na capital, entretanto, e de uma mia urbana característica. Neste sentido, nem mesmo aque¬
fornia mais geral, na implantação dos equipamentos que gi¬ las cidades paulistas cujo desenvolvimento principal se rea¬
ravam na órbita estadual, a concessão de serviços públicos lizou num tempo limitado e que, por isso, oferecem um nú¬
fundamentais representou sempre uma forma negativa de mero maior de monumentos dêsse tempo, nem mesmo essas
dependência de grupos estrangeiros, perfeitamente capazes cidades apresentam um conjunto cuja unidade justifique sua
de absorver o quinhão principal. Em troca, além de uma caracterização global.
prestação de serviços geralmente abaixo da critica, impunham Uma ou outra peça merece entretanto uma atenção es¬
compromissos negativos, no aproveitamento das disponibili¬ pecial, quer pela singularidade do seu valor arquitetônico,
dades especiais, e técnicas. quer pelo significado histórico eventualmente expresso por'
A importação de técnicos, que aqui sofriam um processo essas construções. Ê o caso por exemplo, das Casas de Câ¬
involutivo no sentido de perder inteiramente a inteligência mara e Cadeia de Santos e Atibaia e da Chácara do Viscon¬
dos problemas, correpondeu a importação dos estilos, que de, em Taubaté. A Casa de Câmara e Cadeia de Santos,.,
aqui também perdiam a substâncias que, nos países de ori¬ sôbre constituir uma peça de arquitetura oficial perfeita-
gem, os explicavam e justificavam. mente característica da época (1836), soma à essa condição,
Tal quadro expressava um regime de dependência eco¬ já de si bastante, aquela de ser o primeiro edifício onde se
nómica e cultural, e representava a etapa preliminar para a expressa a instituição do poder civil do país independente,
desfiguração da maioria dos monumentos dêste período, re¬ logo em seguida ao Ato Adicional. A sede da Chácara do
duzindo-os a um tipo de amostragem de significado conside¬ Visconde, em Taubaté, padrão das tradicionais chácaras que
ravelmente restrito. O “art nouveaux” em São Paulo, que envolviam as cidades do café, e que os loteamentos sucessi¬
ofereceu peças individualmente de primeira qualidade, é um vos foram abocanhando impiedosamente, foi também a re¬
exemplo da aplicação vasia de substância. Enquanto na Eu¬ sidência que viu nascer Monteiro Lobato, o qual associou a sua(
ropa êste estilo equivale a um grito de libertação da madena- imagem à sua obra de literatura infantil, que tamanha pene¬
tura clássica, que emperrava as manifestações artísticas, em tração e endosso vem alcançando da infância brasileira.
São Paulo foi apenas e simplesmente um dos muitos estilos Das sedes das antigas fazendas de café do Estado de São.
importados por uma classe dirigente submetida, de alto a bai¬ Paulo vale indicar desde logo a da fazenda Pau Dalbo, no
xo, ao esquema colonial de economia e de cultura. município de São José do Barreiros, a qual, pela circunstân¬
Enquanto a arquitetura oficial e religiosa sofreram mais cias de ser das mais antigas, das que expressam uma organi¬
com tal situação, posto que estavam numa dependência mais zação especial inteiramente determinada pela monocultura,,
direta da mentalidade dos grupos de cúpola, a arquitetura e ainda, pela experiência do enunciado plástico, merece um
de residência, tanto rural como urbana, de certo modo con¬ destaque. Para cada região e para cada época do longo ci—
108 ARQ. LUÍS SAIA

clo do café, é relativamente fácil levantar elementos carac-


terísticos, portanto, peças também características. As demais
zonas cafeeiras do Estado de São Paulo, cada uma referida MONUMENTOS HISTÓRICOS E ARTÍSTICOS DE S. PAULO 109
a um determinado instante da frente pioneira que acompa¬
nhou a expansão geográfica do café, tôdas possuem sedes de da City e da nova linguagem arquitetônica obtida com ar¬
fazendas que mereceriam preservação. Êste fato, entretanto, quitetos importados da Europa;
se afigura de um tipo de interêsse todo regional. No sentido 3) estouro da organização dos serviços públicos, espe¬
de complementar as atividades da DPHAN no Estado, já de cialmente energia e transporte, explicitado pelas conferên¬
há muito (1953) foi sugerido se criasse uma repartição equi¬ cias de Anhaia Melo no Instituto de Engenharia, em 1933;
valente no âmbito estadual. Apesar de vários projetos terem
4) industrialização forçada pela dificuldades de impor¬
sido elaborados neste sentido, e todos êles por comissões es¬
pecialmente designadas, ao final dos trabalhos o assunto é tação de produtos industrializados.
impiedosamente estrangulado pelos interêsse menores. Po¬ A fundação da Universidade de São Paulo e a incorpora¬
liticos, certamente, porque financeiramente as importâncias ção dos núcleos de população próximos a São Paulo no pró¬
que o Estado poderia, e deveria dispender, na proteção dos prio contexto urbano da capital, assinalam a passagem para
monumentos de interêsse puramente regional, são positiva¬ a metropolização de São Paulo. No interior, no âmbito ur¬
mente pequenas em face da responsabilidade que o Estado bano, o fenômeno é caracterizado pela diferenciação das
tem, pelo próprio fato de ser Estado. cidades centros de zonas, que passam, desta época em diante,
a um nível reivindicatório mais consciente e dirigido no sen¬
Os dois períodos seguintes, um que vai de 1929 até o fim tido de melhor preparo para as funções que exerceriam
da guerra em 1945, e outro que se inicia neste ponto e hoje
neste e no período seguinte. O quadro, já insustentável, do
está em curso, dizem respeito a problemas que., embora fun¬ tratamento artesanal para os problemas de organização das
damentais pela sua importância na vida da coletividade pau¬ cidades e dos respectivos equipamentos, entra em fase de
lista, não constituem matéria da finalidade desta palestra.
liquidação.
Vale, contudo, assinalar, em cada um, qual a tese principal e
as teses ancilares, não só para justificar, em conjunto, os O último período, que se inicia em 1945, com o findar da
critérios adotados para a análise dos ciclos anteriores, mas guerra mundial, tem como tese principal a montagem de
especialmente para que esta palestra não se resuma a uma uma nova estrutura econômico-social, e tem o seu fulcro
visão saudosista do nosso passado regional. Na verdade, o principal na industrialização. Seus problemas fundamentais,
estudo do passado e a sua justa computação, somente valem expressos em têrmos de teses, tudo parece indicar, sejam os
na medida que possam ser instrumentados em apôio e be¬ seguintes :
nefício da presente coletividade e para as perpectivas que 1) implantação de um sistema industrial a partir da base
se abrem para o futuro. metropolitana. É indispensável notar que êsse ponto de par¬
tida não implica em nenhum compromisso urbano exclusi¬
O período que vai de 1929 até 1945 tem como tese prin¬ vista; ao contrário, há motivos sérios para se pensar que o
cipal a Metropolização de São Paulo, como contradição fun¬
damental da economia do café. E as teses ancilares, que binário urbano-rural tenha encontrado novamente uma ne¬
expressam, mais de perto, as transformações ocorridas em gativa por parte do desenvolvimento regional paulista. A
consequência do rompimento da estrutura económica do ca¬ negação dêste binário não importa, como pode parecer a ura
fé, das revoluções de 30, 32, 35 e 38 e da guerra mundial, observador desprevenido (ou utópico e idealista, como são
vale referir:
os casos de F.L. Wright e das Cidades Jardins) em negação
da Cidade; apena nega o exclusivismo da proposição. Em
1) policultura, seguida das primeiras tentativas de re¬
gionalização da produção;
2) transformação das estruturas urbanas e superação
São Paulo — e no interior também

as novas fábricas que
se instalam, não o fazem necessàriamente no âmbito urba¬
no. Geralmente preferem servir como ponto de partida para
do reticulado hipodâmico, exemplificado nos novos traçados um novo tipo de estabelecimento, que não é mais nem urba¬
no nem rural.
2) Complementação do esquema viário. Já em 1929 a
Mairinque Santos expressara o rompimento da antiga estrutu¬
ra prnnômip.a do pafp nma vm mip imnlicava na limn’daean
110 ARQ. LUÍS SAIA

do monopólio de ligação São Paulo-Santos, monopólio êste


montado a duras penas pelo capitalismo centralizado na In¬
glaterra. Substituindo o capitalismo centralizado na Ingla¬
terra, o novo período se coloca sob o comando do capitalis¬
mo norte-americano e é com esta base que se movimentam ,

ainda as forças que sustentam o restos do esquema colonia-


lita em São Paulo. Não é possível desconhecer a circunstân¬
cia das decisões que ainda procuram amarrar o problema
viário ao velho esquema colonial são influênciadas pelos
resíduos capitalistas, ainda atuantes. O papel do govêrno
tem sido freqiientemente negativo, na medida em que de um
lado procura apenas melhorar as condições empíricas do
transporte, e de outro se furta às responsabilidade que têm
!em face dos novos têrmos da estrutura. Quer fugindo à pro¬
posição clara e drástica de complementar o esquema existen¬
te com a construção de canais transversais, quer realizando
uma política de franco e decidido apôio às rodovias, em de¬
trimento das ferrovias. O primarismo empírico desta políti¬
ca é claro: uma estrada de rodagem exige do govêrno, uma
vez acabada, a pista de rolamento, um mínimo de responsa¬
bilidade e participação; uma ferrovia, depois de implantada
a infraestrutura, exige uma participação e responsabilidade
crescente por parte do Govêrno.
3) Explicitação do zoneamento funcional das diferentes
•zonas e cidades principais do Estado.
4) Tratamento tecnológico (em contraposição ao técni¬
co) dos problemas de equipamento urbano e regional.
5) Planejamento urbano e Regional.
Como indícios seguros de que essas teses, embora ainda
'não expressas por uma orientação permanente, consciente e
segura do Govêrno e das classes dirigentes, estão emergindo
da própria ação da coletividade paulista, pode-se citar ini¬
ciativas que foram levadas a cabo, na maior parte das vêzes
como imposições que a opinião pública faz ao govêrno e às
classes dirigentes:
a) fundação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo;
b) planos diretores para cidades lo interior;
c) primeira tentativa de planejamento governamental;
d) iniciativas tendentes a implantar os novos critérios Composta e impressa
de planejamento, como é o caso dos cursos de planejamento
promovidos pelo Departamento de São Paulo do Instituto
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