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A região Rio-São Paulo Revista do

é uma ideia luminosa. Instituto Histórico e Geográfico


Você já reparou como as indústrias brotam
quando há energia?
GUARUJÁ - BERTIOGA
Hoje você chega a essa conclusão sem pen¬
sar duas vêzes.
Mas há 70 anos, foi uma idéia luminosa
dotar a região Rio-São Paulo- de infra-estrutura
para ela se desenvolver.
Energia é tudo. Sem ela não há produção,
não há progresso, não há nada.
E aquela idéia luminosa transformou-se na
realidade que se vê em tôda região São Paulo-
Rio: uma indústria ao lado de outra.
A idéia luminosa de ontem é hoje a região


mais desenvolvida da América Latina.
Por essas e outras, a Light continua inves¬
tindo: de 1969 a 1973 serão aplicados, na expansão
do sistema de distribuição, cêrca de um bilhão
e meio de cruzeiros novos.

BERTIOGA
Você pode até pensar que é um exagêro
de dinheiro. Mas nós achamos que isto é também

GUARTÁ
Revista do Instituto Histórico e Geográfico
GUARUJÁ - BERTIOGA

ANO I 1970 N.° 2

APRESENTAÇÃO

Graças ao espirita público em sumo grau da Presidente


Lúcia Falkemberg, o Instituto Histórico e Geográfico Guaru-
já-Bertioga vem cumprindo galhardamente os seus desígnios.
Ideado e realizado pela ilustre dama, a novel entidade
está conquistando lugar saliente no seio das organizações in¬
cumbidas da defesa de nosso património histórico.
Não se resumiu a reconstruir na tradicional Bertioga o
forte quinhentista de São João, arrancando.-o da lama marí¬
tima em que jazia abandonado, inteiramente olvidado. Criou
é para o bem delas que dentro daquelas quatro grossas e valentes paredes de pedra
bruta um Museu explêndido, levando para êle relíquias liga¬
trabalhamos das a seus dias gloriosos. E para lhe comunicar vida, para
acordar aquele fragmento do Oceano que foi teatro de faça¬
O mundo em que um dia estas crianças irão viver e nhas guerreiras de nossos antepassados, organiza regatas
trabalhar terá passado por nossas mãos. Tanto nossas cívicas, festejos típicos, tudo para lembrar os tempos heroicos.
realizações, como nossas omissões, influenciarão seu Mas não ficou nisso e no mais que vem realizando. O
futuro. Assim, é pensando nelas que a PHILIPS cons¬ Instituto pilotado por Dona Lúcia, oferece agora ao público
trói novas fábricas, amplia seus laboratórios, aperfei¬ uma revista cheia de dados preciosos e crónicas bem feitas,
çoa seus produtos, contribui para o treinamento de téc¬ com o fito de que aqueles que não pertencem ao Sodalício
nicos e cientistas, proporciona assistência educacio¬ tomem contato com as suas atividades através de suas
nal. É imperioso corresponder à confiança delas. E páginas.
é pór isso que a Organização Philips Brasileira reafir¬
Já, êste que está em preparação, é o segundo número.
ma solenemente o seu propósito de que, onde quer que
Outros virão a seu tempo. Para manter tão útil publicação,
as novas gerações brasileiras encarem o futuro, en¬
contrarão aí provas de sua determinação em ajudá-las.
garantir a sua vivência, posta-se através dela, como motor que
não sofre panes, a dedicação incomum, o esforço tenaz da
PHILIPS Presidente Lúcia Falkemberg.
símbolo universal
PHILIPS de confiança
Aureliano Leite
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
GUARUJÁ BERT IOGA -
Declarado de Utilidade Pública pela Lei Estadual n.° 5.614 de 3 de Maio de 1960

DIRETÓRIA
SUMÁRIO
Presidente
Vice-presidente ——— D.a Lúcia Piza F. de Mello Falkcmberg
Ministro José Romeu Ferraz
2.° presidente
Secretário-geral
—— Sr. Hermínio Lunardelli
Sr. Celso Corrêa Dias

I? — Enrico Schaeffer
A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA — Prof.
1° secretário
2.° secretário
—— Sr. Licínio Silva Filho
Sr. Frederico G. Brotero

2.° — C.VIDA Vasconcelos


E ARTE DO ALEIJADINHO
— Sílvio
Prof.
7 1.® tesoureiro
2.° tesoureiro
— Sr. Armando Cambiaghi
Carlos A. Roderbourg

de 23 CONSELHO DELIBERATIVO

3.° — Helena BrancanteBRASIL ANTIGO — Prof.a Maria


CERÂMICA NO
45
Dom Antonio de Lencastre
Sr. Antonio Roberto Alves Braga
Dr. Aureliano Leite
Sr. Fernando Edward Lee
Geneal Francisco Oliveira Chagas
Sr. Jorge da Silva Prado
Sr. Antonio S. da Cunha Bueno Sr. Johé Pereira Fernandes
4.°
— ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL
mente da Silva-Nigra
— Dom Cle¬
63
Sr. Armando Simone Pereira
Sr. Alvaro do Amaral
Sr. Adam Von Bulow
Sr. Lino Morganti
Prof. Lucas Nogueira Garcez
Sr. Pedro de Oliveira R. Neto
Sr. Augusto C. B. Trigueirinho D.a Rita Lebre de M. Correa Dias
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Sr. Eldino Fonseca Brancante Sr. W. R. Marinho Lutz
Dr. Egon Falkemberg

CONSELHO DA MEDALHA
Embaixador Ernesto de H. Leme Sr. Manoel Chambers de Souza
Sr. Eldino da Fonseca Brancante Dr. Pedro de Oliveira R. Neto
Ministro José Romeu Ferraz D.a Rita Lebre de M. Correa Dias

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Ten. Gel. Francisco Bianco Jr. Prof. Josué Callender dos Reis
Sta. Haidée Nascimento Senador José Ermirio de Morais
Sr. Rubens de Moura Leite Dr. J. Adhemar de Almeida Prado
I
EMBRATUR
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CASA GRANDE HOTEL S/A


COLOCAM O GUARUJÁ NA LINHA DO TURISMO
INTERNACIONAL!

São Paulo — Av. Paulista, 2202


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8.° Tel.: 287-1615
Guarujá — Av. Miguel Estefno, 999
— Tel.: 9-0407
“A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA”

Enrico Schaeffer

-—
Professor da Fundação Alvares
Penteado São Paulo

Conferência realizada em 17-11-1961

Não seria possível falar sôbre os artistas da assim cha¬


mada Missão Nassau, semb tratar, no mínimo, em linhas
gerais, daquela figura interessantíssima, que representa o
Conde João Maurício de Nassau, governador das terras ho¬
landesas no norte do Brasil, durante os anos de 1636 até
1644, quando voltou, desliludido pelo espírito mesquinho de
certos membros do Conselho dos XIX, dos métodos arbitrá¬
rios dos administradores e de tôda a luta constante por di¬
nheiro e soldados, que precisava para enfrentar a hostilidade
que encontrou e para firmar o domínio holandês no Brasil.
E, como o embaixador Joaquim de Souza Leão na sua obra
a respeito de Frans Post disse: “Como o espírito que, afinal
predominou no Conselho das índias Ocidentaisi, fôsse o do
mercantilismo estreito que não compreendia a formação de
um império colonial de larga visão civilizadora, viu-se Nas¬
sau tolhido na sua ação, a ponto de abandonar a emprêsa
encetada com tanto entusiasmo. Com a sua partida esta¬
vam contados os dias do domínio holandês”.
Não é aqui o lugar, de diácutir as emprêsas comerciais
da Companhia das índias Ocidentais do ponto dei Vista po¬
lítico, social ou histórico. O que nos interessa, além da
8 ENRICO SCHAEFFER “A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA” 9

magnifica personalidade orientadora de Nassau, que tanto e Piso, e de “seis pintores” dos quais, infelizmente, conhe-
amava o Brasil, que o descreveu como “uma das mais belas mos com certeza absoluta somente os nomes de dois: Frans
terras do mundo”, são os artistas que o acompanhavam du¬ Pos e Albert van den Eckhout, e, acrescentamos, para a nossa
rante a sua expedição. conferência de hoje, ainda o nome de Zacharias Wagner, que
O conde João Mauricio de Nassau, mais tarde agrade¬ tinha chegado poucos anos antes, como simples soldado,
cido com O' titulo de “Principe do Sacro Império Romano” ao Brasil, tornando se, mais tardej escrivão doméstico e
descendia da linha mais nova de uma casa principesca, pintando nas suas horas vagas.
que mesmo deu uma vez um Imperador ao Império Ger¬ Sem dúvida, naquela época, a Holanda contava com
mânico. Esta linha mais nova se dividiu, no inicio do sé¬ centenas de bons pintores e Nassau teve a possibilidade, de
culo XVI numa linha neerlandeza, com a sede em Breda e escolher entre os bons, pois um convite, para conhecer aquela
numa linha alemã, com a residência em Dillenburg, e a terra fabulosa, da qual ainda há pouco se contava que era
esta pertenceu o conde João Maurício, que nasceu em 1604. habitada por sêres lendários, misturas, entre homens e ani¬
Já na infância mostrava capacidadesf Ifora do comum, e mais, era de um interêsse enorme.
foi mandado, aos 11 anas, para as “altas escolas” de Basi- E também sem dúvida, Nassau possuía a capacidade de
léa e Geneva, de onde voltou depois de alguns anosi, para escolher dentre os bons os melhores para a sua tarefa artís¬
entrar na carreira militar. Tradicionalmente ligado à linha tica, que era, fixar em quadros tudo o que era desconhecido
neerlandeza, o Príncipe Maurício de Oranie era o seu pa¬ no Velho Mundo e o que podia interessar, seja do ponto de
drinho, João Maurício lutava, aos 16 anos pela primeira vez, vista das ciências, da etnografia, da botânica, zoologia, ou
sob o comando do seu tio, o condo Guilherme Luis, gover¬ seja o que fôsse.
nador da Frieslândia e de Groningen, fazendo uma carreira Dai, já de antemão se cristalizavam os campos de ati¬
das mais brilhantes, alcançando, aos 27 anos, o alto cargo vidades para os artistas: Post, por exemplo, teve de pintar
de coronel. as paisagens, enquanto Eckhout se ocupava com a parte
Poucos anos depois recebeu, da Companhia das índias botânica, retratando também os indígenas do Brasil.
Ocidentais a proposta de ir, como governador, e com poderes Falamos, em primeiro lugar de Post, que é bem mais
fora do comum, ao Brasil, para defender e re-organizar as conhecido entre nós não por último devido ao grande número
possessões da Companhia, que, devido a atividade de Al¬ de quadros, existentes nas várias galerias oficiais e particu¬
buquerque, se encontrava em considerável dificuldade, sen¬
do aquele estabelecimento comercial de u’a importância ex¬
lares do pais e — naturalmente também — fora Brasil, pois
calcula-se, que Post pintou cêrca de duzentos quadros, dos
traordinária para a companhia, pois era o Brazil, que na quais a maioria foi criada, depois da sua volta à Europa. Por¬
primeira metade do século XVII foi capaz, de fornecer quase que a grande maioria dos acionistas da Companhia das índias
todo o açúcar, necessitado na Europa, uma fonte de riqueza queria possuir no mínimo um quadro das paisagens da terra,
inimaginàvelmente grande.
E dai a preocupação da Companhia de encontrar uma
onde tinha investido uma parte da sua fortuna, e outros
não-acionistas — por mera curiosdade ou pelo desejo de

personalidade que unisse, em si, a capacidade de um grande
militar e a de um diplomata de extrema habilidade. Ambas

enfeitar suas casas, seguiam o exemplo * dos outros.
Frans Post nasceu em Leyden, na ano de 1612, filho do
aí exigências se apresentaram na pessoa de João Maurício pintor de vitrais, Jan Janszoon Post e irmão do arquiteto
e êle, como filho mais jovem de uma pequena casa reinante, Peter, que também foi encarregado de várias tarefas pelo
sem a possibilidade de1 governar a terra dos seus ancestrais, Nassau, ignorando-se porém, se Peter, o arquiteto, jamais
aceitou a oferta da Companhia das índias, uma oferta que chegou até ao Brasil, enquanto a estadia de Frans está fora
lhe deu cognome: Maurício o Brasileiro. de qualquer dúvida.
Quando o novo “Governador-Capitão e Almirante-Gene¬ Consta, que Frans, por certo tempo foi discípulo do
ral”, pois êste era o seu titulo, embarcou para o Novo Mundo, grande pintor Van Dyck e parece bem provável, que o seu
se fez acompanhar, não somente de soldados e de pessoal irmão Peter o apresentou a João Maurício de Nassau, quan¬
administrativo, mas também de cientistas como Margrave e do o conde estava ocupado em escolher os membros artísti-
10 ENRICO SCHAEFFER
“A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA"
cos da sua comitiva. Trouxe-o para o Brasil, em 1637, in-
corporando-Q às diversas expedições militares. rante os seus anos “brasileiros” a critica e o intercâmbio,
Frans Post voltou, em 1644, quando Nassau embarcou pois os seus colegas no Brasil podiam-se contar quase nos
de volta à Europa. Era, dois anos depois admitido à corpora¬ cinco dedos da mão.
ção da “Lukasgilde”, espécie de sindicato dos pintores de Não possuem ainda o equilíbrio perfeito, resultado de
sua pátria. Casou-se, em 1650, tornando-se, no decorrer dos longos anos de trabalho num ambiente orientador, possuía
anos, pai de cinco filhos. Daquela época possuímos um re¬ porém, a boa vontade e o entusiasmo da juventude junto
trato dêle, pintado pelo grande Frans Hals, que o represen¬ com o amor pela terra nova, que o acolheu tão hospitalei-
ta como um burguês, pois os anos da “aventura no Brasil” ramente.
já pertenciam ao passado. Um burguês parecendo inteli¬
gente e bom humorado, gostando dos prazeres da vida. E
sabemoíí, que se entregava, mais tarde, ao vício de beber,
assim que terminou a sua vida completamente governado
pelo álcool. Faleceu em Haarlem, em 1680.
Reconstruindo sua vida, sabemos, que chegou aos 25
anos ao Brasil, não era ainda, portanto, um pintor defini¬
tivamente formado, poiá se assim fôsse, talvez nem tivesse
aceito o convite, para, de certo modo, aventurar-se numa
terra não distante e tão efstranha e pouco conhecida.
Para a sua arte significava esta viagem o encontro com
cores de paisagem completamente diferente àquelas da ve¬
lha Europa, côres muito mais vivas e “eloquentes” daquelas,
a que estava acostumado. Cm fato aliás, que até hoje,
quando tivemos a oportunidade de comparar as telas pin-
tadaa aqui por artistas recém-chegados com as respectivas
obras pintadas antes na Europa, é bem percebível: a “Pa¬
lea” do artista muda em geral quase por completo. As cores
tornam-se muito mais vivas e brilhantes», influenciadas pelo
encanto da paisagem do sol tropical ou subtropical.
O mesmo aconteceu com as telas de Post. Comparando-as
com suas obras pintadas depois da sua volta, obervamos que
estas últimas talvez ganharam em perfeição artística, porém
perderam em vivacidade e aproximação do colorido à natu¬
F. Post — O Forte das Cinco Pontas (1640).

reza, mas, mesmo sendo executadas longe do Brasil, são ima¬ De certo modo, tudo isso vale também para o segundo
gens fiéis da terra, em que Post se especializou, pois a grande artista da nosa palestra de hoje: Albert van den Eckhout.
maioria de tôdas as suas telas tem. um único assunto: o Brasil. As datas pessoais referentes a Eckhout são as mais in¬
Parte destas telas, aliás, tem também para nós um valor completas. Não sabemos quando nasceu. Parece que nasceu
histórico, pois permitem a reconstrução e identificação dê em Groningen entre os anos 1607 e 1612 e morreu aproxi-
certos edifícios, destruídos completa ou parcialmente no madamente em 1665.
decorrer dos séculos. Às investigações incansáveis do já mencionado embai¬
E quando comparamos suas obras com aquelasi dos mes¬ xador brasileiro na Holanda, dr. Joaquim de Souza Leão,
tres holandeses da sua época, mestres porém, que não Pai¬ um dos mais competentes peritos no assunto, devemos a gran¬
ram da Holanda, a não ser por estágio curto na Itália, de¬ de maioria das informações seguintes: eram seus pais Albert
vemos lembrar de uma coisa: faltaram ao jovem artista du¬ van den Eckhout e sua mulher, Marryen Rocleffs, que se
casaram em 1606. Sabemos ainda, que o pai esteve nos anos
•“A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA” 13
12 ENRICO SCHAEFFER

de 1619 até 1621 em dificuldades financeiras, pois emprestou tias por escrito. Cremos poder tirar algumas conclusões sôbre
dinheiro do seu cunhado, Gheert Roeleffs, que era pintor, a vida de casado, quando o Príncipe João Maurício escreve:
o maior
“ . . . porque também na Holanda, as mulheres têm Dresden,
e do qual o jovem Albert provavelmente recebeu as primei¬ a espôsa do pintor não queria ir para
ras liçõés do pintura. govêrno,
Albert van den Eckout foi convidado pelo Conde Nas¬ antes de ser lavrado um contrato ...”
sau a acompanhá-lo durante' a sua “Missão no Brasil” e es¬ Chegou em 1653 a Dresden, onde foi imeumbido da de¬
teve, como Frans Post também, todo o tempo com João coração do teto de uma grande sala, no castelo de Hofloes-
Maurício, comprovam as cartas posteriores de Nassau. snitz, perto da pequena cidade de Radebeul, para a qual
Voltou com éle, em 1644, e encontrou-se, em março de escolheu inúmeros passaros brasileiros, pois levou para a
1645 em Groningen, e m ais tarde, em Amersfoort, uma cidade Saxônia todo o material que “ainda possuia da sua estadia
perto de Groningen, onde se casou, com Annctgen Jansen no Brasil”. Naturalmente refere-se aos desenhos e esboços
Wigboldi, que morreu e foi enterrada em 13-5-1684. A data que levara da nossa terra.
de casamento não é conhecida. Nasceram duas filhas Ficou na Saxônia durante pouco mais de dez anos e
criou, ainda além de animais selvagens, para um dos quar¬
e um filho. Porém somente uma filha, Gertruyd, não morreu
jovem e casou-se em 1680 com pastor protestante. Mais tos do Príncipe-Eleitor, dez grandes quadros para um outro
uma filha, parecei ter nascido em Dresden — entre os anos
de 1653 e 1644, que se casou em 1695, também em Groningen.
Existem ainda documentos que provam a existência de
castelo, quadros que mais tarde, isto é, durante a última guer¬
ra, foram destruídos, num ataque que incendiou o castelo.
No ano de 1664, um pintor de nome Albert Eckhout,
outras pessoas de nome Eckhout, como por exemplo o pin¬ mui provavelmente idêntico ao nosso artista, tornou-se ci¬
tor Gerbrand van den Eckhout (1621-1674), ou o pintor An¬ dadão da cidade de Groningen, na Holanda, e desde então
tônio van den Eckhout, que foi assassinado, em 1695. em se perdem tôdas as demais notícias.
Lisboa. Nada se sabe, porém, a respeito de um parentesco Os seus trabalhos podem ser divididos em dois grupos:
1) aqueles que pintou durante a sua estadia no Brasil, pois
com o “nosso” pintor Albert. anteriores àquela viagem que desconhecemos1; e
A tarefa de Eckhout, no Brasil, está bem claramente 2) aqueles que pintou durante a sua estadia na côrte Sa-
explicada por Nassau: representar frutas, animais, flores,
indígenas, negros, etc., tudo que pudesse interessar ao Ve¬ xônica.
Do primeiro grupo existem ainda vinte-e-um quadros,
lho Mundo.
Como já dissemos, Eckhout esteve com Nassau: até 1644 que o Principe João Maurício deu de presente, em 1654, ao
no Brasil; data em que o Conde voltou para a Holanda. A seu parente, o rei Frederico III da Dinamarca. Êste, rei, que
situação de Nassau porém, depois da sua volta à Europa, muito estimava as belas artes, havia criado, em 1650, um “Ga¬
não permitia mais manter um “pintor” na sua côrte; e binete de Raridades”, no qual, conforme o gôsto do tempo,
Eckhout, que viveu alguns anos em Groningen e Amersfoort,. guardava, entre verdadeiros objetos de arte, as coisas mais
foi recomendado pelo Conde João Maurício ao Príncipe- curiosas que imaginar se possam. E para aquele “Museu”
Herdeiro, futuro príncipe-Eleitor João George HI. da Saxônia. estavam destinadas as dádivas do Príncipe de Nassau, o
qual, por sua vêz, almejava ser condecorado com a “Ordem
Numa correspondência entre os dois príncipes, lemos o que do Elelfante Branco”, uma das mais altas distinções protes¬
João Maurício escreve, em 1653. . . que o pintor com esposa e
filha viajará para Dresden — a capital da Saxônia
que o tempo o permitir”. Seu passaporte leva a data de
— logo tantes de então.
São indiscutivelmente as “obras primas” do nosso pin¬
tor. Consistem em representações de frutas, plantas, natu¬
19-4-1653, valendo para êle mesmo, para' a espôsa e a filha
e empregados, parecendo desta maneira, que se encontrava, rezas mortas, da flora brasileira e de indígenas, negros, etc.
realmente, em boas condições financeiras. A viagem iniciou- O mais impressionante dêstes quadros é aquêle dos “Indí¬
se na primavera, isto é, em fins de abril ou no coinêço de genas”, um quadro do qual disse uma das testemunhas ocu¬
maio. Atrasou-se um pouco, pois a espôsa do pintor, con¬ lares de uma exposição daquele tempo: “Ceei a causé beau-
forme lemos em outra carta de Nassau, queria certas garan- coup de raillerie et rise parmi toute sorte de gens”.
14 ENRICO SCHAEFFER
“A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA” 15

Quando D. Pedro II visitou, em 1876, a capital da Dina¬


marca, e aproveitou a estadia em Copenhague, para visitar
aqueles quadros de Eckhout, que tinham chamado a atenção
de muitos visitantes famosos, tais como Alexandre de Hum¬
boldt, mandou o imperador copiar cinco dêles para o “Ins¬
tituto Histórico” do Rio de Janeiro.
Eckhout mesmo, antes de pintar as suas telas, fez estu¬
dos minuciosos da natureza, estudos que, por parte, exis¬
tiam em forma de esboços e guaches na “Handschriften Ab-
teilung” da Riblioteca Nacional em Berlim, onde se perde¬
ram durante a última Guerra Mundial. Felizmente, conser¬
varam-se os negativos de algumas fotos dêstes trabalhos de
Eckhout.
Êstes esboços, execuções preparatórias, for am entre¬
gues, junho a sete grandes quadros no tamanho de “sete bra-
bantische Ellen”, isto é, mais ou menos de cinco metros de
altura, para enfeitar uma sala completa e mais nove peque¬
Dança dos índios (Copenhagen). nos quadros, provàvelmente “naturezas mortas” (e animais)
em 1652, ao Príncipe Eleitor de Brandenburgo.
Os desenhos e esboços foram classificados e encadernados
Mas êsse quadro, além da importância artística, possue mais tarde em vários “Folios”, pelo médico da côrte, Chris¬
também um valor científico: foi criado quando a estupefação, tian Mentzel.
que se seguiu à descoberta do Novo Mundo, com todos aque¬ Sôbre os quadros a óleo, pouco sabemos. Encontra-se, no
les estranhos costumes, já tinha desaparecido, porém antes castelo de Charlottenburg, em Berlim, um retrato de u’a mu¬
de uma época que olhava aqueles indígenas através de um lher negra, a qual se supõe fazer parte daquela remessa.
romantismo errado, no estilo de Jean Jacques Rousseau. Os outros quadros, que representam indiscutivelmente as¬
Os corpos daquêles indígenas, pintado por Eckhout, mos¬ suntes brasileiros, acredita-se serem os mesmos com que o
tram as mesmas características raciais que ainda hoje po¬ Principe Nassau, em 1679, presenteara o Rei Luis XIV da
demos observar. França. Em 1667, êsses quadros se encontravam ainda em
É lastimável, que justamente um quadro que represen- Berlim. Mas parece bem possível que Nassau os readquirisse
tavaí o próprio Nassau, e que fez parte do presente ao Rei mais tarde do Príncipe Eleitor de Brandenburgo. Pesquisas a
da Dinamarca, foi destruído num incêndio no Castelo de respeito dêstes quadros, nas Galerias Prussianas, resultaram
Christi ansborg, em 1794, onde então se achava, separado dos infrutíferas.
outros. Um presente de Nassau ao Rei da França, presente ver¬
Os demais três quadros daquela remessa para Dinamar¬ dadeiramente real, continha “quarenta peças”. Não se sabe,
ca, que representam uma embaixada negra do Gongo, e que porém, se se tratava de quadros e desenhos somente, ou, como
eram considerados, até agora como sendo de autoria de parece, também de outros objetos, tais como armas, etc., tu¬
Eckhout, eram pintados, como descobriu o dr. Joaquim de do de origem brasileira, pois caso se trate dos quadros de
Souza Leão, pelo pintor Wexck de Middelbourg. Berlim, havia lá anteriormente só sete grandes e nove peque¬
Da maioria dos quadros, Frederico III mandou fazer có¬ nas telas, além dos desenhos esboços, cujo número exato
pias pelo pintor Lazarus Rarretta, em Hamburgo, que pare¬ ignoramos.
cem ter sido destinados para o “Gabinete de Raridades” de Luís XIV estimava o presente de Nassau de maneira sin¬
algum outro príncipe, cópias cujo destino ignoramos. gular e resolveu mandar confeccionar uma série de gobelins,
a famosa “Série des Indes”, que foi, mais tarde, várias vêzes
16 ENRICO SCHAEFFER "A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA" 17
repetida por manufaturas diferentes, e dos quais se encon¬
tram fragmentos também no “Museu de Arte” em São Paulo,
e um exemplar muito belo numa fazenda perto de Campinas. ——
cos —
do ponto de vista artístico que se pode acreditar que
Eckhout se serviu também de discípulos, pois não parece
justo acreditar que a sua arte haja decaido tanto durante
Tais gobelins, indiscutivelmente, mostrando “composições êsses anos.
conforme as telas de Eckhout, não parecem ser feitos seguin¬
do os seus próprios desenhos. Todavia, não se pode negar
que as suas obras fornecessem a base artística para aquelas
tapeçarias, bem decorativas.

Os anos da estadia em Dresden, de 1653 até 1663, parecem


ter sido de grande atividade. Durante êsse tempo, além dos
quadros que enfeitam o castelo de Hofloessnitz e aqueles,
destruídos durante a última guerra, com certeza pintou tam¬
bém outros quadros, os quais infelizmente se perderam. É
sem dúvida uma hipótese, mas bem provável, que pintou •
também retratos durante aquele tempo, pois era bom retra¬ —
tista.
Nos quadros para Hofloessnitz e Pretzsch, porém, se per¬
cebe bem o dilema, no qual o artista se encontrava, um dile¬
ma criado pelo gôsto singular do Príncipe Eleitor da Saxônia,
que queria ver o seu castelo ornado de “raridades do mundo
inteiro” conforme a curiosa moda do tempo, não correspon¬
dendo à opinião do artista.
O resultado era um “compromisso” com todos os defeitos
de tais caprichos. O quadro por exemplo, que se refere ao Cena exótica (Ásia) afitigamente em Schwedt - Alemanha.
Brasil era infeliz na sua composição. Não tem uma “linha
geral” na construção do quadro. O pintor mostra quase tudo
o que se podia imaginar, mui provavelmente correspondendo O que Eckhout, depois da sua partida de Dresden, ainda
assim aos desejos de seu “freguês principesco”. Em outros criou, não sabemos. Existe uma referência que um quadro
quadros, representando cenas da China ou da Pérsia, países “Retrato de Negro” foi vendido num leilão, em 1914, e que
que o artista nunca tinha visitado, Eckhout se serviu das des¬ foi atribuído a Eckhout. Porém não conhecendo aquele qua¬
crições fantásticas da sua época, como por exemplo do livro dro e não sabendo onde se encontra, também não se pode
de Adam Olearius “Vermehrte Moscowische und Persianische dizer se era, de fato, uma obra do artista; ou talvez somente
Reisebeschreibung” — “Descrição de Viagens à Moscou e à
Pérsia”, editado1 em 1656, com desenhos e ilustrações de um
uma das copias já mencionadas.
Aqui, no Brasil existem dois quadros, que se podem bem
atribuir ao pintor Eckhout: um se encontra na coleção do
outro pintor, que os criou conforme as indicações do autor. O
Príncipe da Saxônia queria ver o máximo possível em “rari¬ Conde Honório Penteado, enquanto o outro, representando
dades” nos quadros, daí Eckhout serviu-se
— — sem grande dis¬
tinção • de quase tudo que existia no “Museu de Raridades”
um papagaio, faz parte da galeria do sr. José Mariano da
Cunha Carneiro, do Rio de Janeiro.
em Dresden. Alguns desses quadros são parcialmente tão fra¬
I

18 ENRICO SCHAEFFER "A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA 19

Chegamos, finalmente, a última parte da nossa conferên¬ rentes principalmente aos indígenas, negros, mulatos, um re¬
cia e vamos tratar, em noções gerais, do terceiro pintor-escri¬ presentando a casa antiga de Nassau, outro descrevendo
tor, Zacharias Wagner, indiscutivelmente uma das figuras um engenho de açúcar”, outro mostrando um “mercado de
mais interessantes da antiga história da arte brasileira, que escravos” enquanto dois outros se ocupam de danças indí¬
nasceu, em 1614, na cidade de Dresden, como filho de um genas e de negros.
juiz de paz e “supervisor da religião protestante”. Aos 19
anos, um forte desejo de conhecer terras, distantels levou-o,
com a devida aprovação dos seus pais, para a Holanda, on¬
de se alistou como soldado raso, para os serviços nas colónias
holandesas do Brasil. Devido à sua boa caligrafia, logo foi
nomeado para um cargo administrativo no exército holan¬
dês, e pouco depois da chegada do Conde Nassau, que as¬
sumiu' em 1636, o govêrno daquela colónia, Wagner foi no¬
meado “escrivão doméstico”, isto é, ocupou o cargo de “res-
poteiro” na côrte de Nassau, cargo no qual serviu até 1644,
quando voltou para a Europa.
Durante aquêle tempo escreveu um “jornal” o qual in¬
felizmente não sobreviveu aos tempos, ficando porém um
extrato feito por um. dos seus amigos contemporâneos e que
se encontra no Arquivo de Dresden. Ao lado dêste jornal,
também em Dresden, encontra-se o interessante “thierbuch”,
Livro de Animais ou Zoobiblion, que Wagner
horas de lazer— — nas suas
desenhou para os seus amigos na Alemanha,
e êste livro lhe dá um lugar definitivo na história de pintura
brasileira. Tartarugas (Haya - Holanda).
Durante sua estadia em Pernambuco, Wagner sem dúvida
teve a oportunidade de encontrar os pintores holandeses Post
e Eckhout, que fizeram parte da comitiva de Nassau. Porém É verdade, para muitos dêstes, os esboços de Eckhout
êstes pintores eram profissionais enquanto Wagner se ocu¬ serviriam de modêlo. Mas isto indica sòmente, que naquela
pava da arte somente nas suas horas de folga, e, conseqiien- pequena colónia holandesa, um conhecia o outro, o que vem
temente, não é justo julgar suas obras comparando-as com as depôr, afinal de contas, a favor do jovem alemão, que era
telas de Post ou Eckhout, pois o próprio Wagner confessou o único “não profissional” e que teve a idéia feliz de retratar
no prefácio do seu Thierbuch, que o único objetivo do mesmo a vida e os costumes daquela época.
era, dar uma impressão exata e fiel dos animais, plantas, fru¬ Mas seria mais interessante, ouvir o próprio Wagner, no
seu jornal; um jornal que mostra a mesma ingenuidade e
tas e selvicolas do Brasil, de uma forma mais popular — e
não cientifica— como se verifica nas obras de um Margrave
ou Piso, também componentes da assim camada “Missão
primitivismo que seus desejos, e justamente por êste motivo,
precisa ser considerado com um carinho todo especial; ali
Nassau ”. lemos o seguinte:
Êste Thierbuch, de tamanho 36x21,5cm. num estado não “Pequena descrição das viagens que durante 35 anos o
muito bem conservado, encontra-se, há no mínimo dois sé¬ senhor Zacharias Wagner realizou a serviço das Companhias
culos, no arquivo de Dresden. Como chegou até lá, ignora¬ das índias, na Europa, Ásia, África e América (Wagner ser¬
mos. Também ignoramos, quem escreveu o extrato do “jor¬ viu mais tarde também no Oriente) extraída do seu jornal”.
nal” de Wagner. O “Thierbuch” contém 109 desenhos-aqua¬
relas de peixes, animais, aves, frutas, plantas, alguns refe¬
Ano 1633
— No dia 3 de junho, com a aprovação de meu
querido pai, benemérito juiz de paz e “supervisor de religião
ENRICO SCHAEEEÈR A MISSÃO ARTÍSTICA HOLANDESA” 21
20

(protestante) de Dresden, embarquei num pequeno navio pa¬ tantos anos no estrangeiro. Pouco depois da sua chegada à
ra Hamburgo, em companhia do camareiro da côrle, senhor Holanda, em 1668, morre, sem rever a sua terra natal.
Frederico Lebzelter, e já que naquela cidade (Hamburgo)
não podia realizar o meu desejo, continuei, sozinho, a via¬ íi"
*
gem num pequeno barco para Amsterdam, onde fiquei quase
um ano com o If arnoso livreiro, senhor Wilhelm Janson Blau. Tudo é relatado no seu “jornal” e no extrato do mes¬
Em 1634 resolvia, a conselho do senhor Blau, continuar as mo. O que interessa ao nosso trabalho, é, antes de mais
minhas viagens. nada, a sua estadia no Brasil. E desta época o seu jornal
Ano de 1634 — No dia 18 de julho embarquei num gran¬
de navio, de duas fileiras de canhões, chamado “Amsterdam”,
relativamente pouco conta. Muito mais falam o seu Thierbuch
o as anotações do mesmo. Mostram >bem que sabia observar
com clareza e que não era hostil ou demasiadamente crítico
como soldado raso, com destino ao Brasil, depois de uma
viagem de 16 semanas chegando em Becife. Pouco tempo para tudo que encontrou : abacaxis, bananas, aves, peixes e
depois, abandonei o meu serviço de soldado e fui nomeado animais desconhecidos, ou, finalmente, os próprios habi¬
“escrivão” na companhia militar do senhor Bajarts, na for¬ tantes.
taleza “Ernestus”, e mais tarde, fui nomeada “escrivão do¬ Wagner não se deixa levar pela fantasia. O que êle
méstico” de sua excia o general conde João Maurício de desenha e descreve, são fatos, comprovados com os próprios
Nassau.. olhos. E quando copiava, esboços do pintor Eckhout, cor¬
Ano de 1638 — No dia 20 dè abril, em companhia da aci¬
ma mencionada excelência, com uma frota bem considerável
rigiu certas falhas explicáveis do ponto de vista artístico
nas obras do pintor holandês, para mostrar a verdade nua
de 447 navios, fomos à Bahia de Todos os Santos para sitiar e crua. Se, por outro lado, um quadro de Eckhout, a fa¬
a cidade de Salvador, e contávamos no nosso acampamento mosa “Dança dos índios” o inspirava, Wagner sente que a
com oito mil cabeças brancas e três mil brasileiros (indíge¬ sua capacidade não é suficiente, para concorrer com Eckhout:
nas). Porém não era possível conquistar aquela cidade e, cria êle então um desenho bem primitivo, porém ilustrati¬
depois de dois meses, voltamos sem êxito para casa. vo, e a nossa estima para com Wagner aumenta.
E assim continuam as suas descrições, até que final-
mente, em 1641, voltou para a sua pátria, onde, como es¬ * * *
creve: “encontrei os meus; pais dei boa saude, o que causou
a todos nós, muita alegria. Depois de ter permanecido apro- A respeito dos outros pintores, que durante a “Missão
ximadamente quatro meses com os. meus pais, achei conve¬ Nassau” estiveram no Brasil, pouco sabemos. Parece que
niente iniciar novas viagens e passar outra vez à Holanda, Abrão Willaerts foi o único pintor de Utrecht, na Holanda,
para embarcar para a índia Oriental, pois, para mim era que fêz a viagem ao Brasil. Quanto tempo ficou, não sa¬
impossível viver numa cidade tão calma, de uma maneira bemos. Foi retratista e marinista e tomou parte numa ex¬
bem burguêsa, como os meus estimados e virtuosos pais. É pedição, destinada a Angola. As pistas de outros se perdem
daí, no ano 1642, realizei êste desejo”. na índia, no mistério do oceano, etc., sendo provável que
As viagens futuras de Wagner o levaram não para o haviam sido engajados na qualidade de marujos, soldados,
Brasil, mas para a índia Oriental. Em 1643 encontra-se na administrativos, como Zacharias Wagner, ou o pintor de gê¬
Batávia, como desenhista de mapas. E agora começa uma neros Isaias Boursse, o paisagista Michel Sweerts ou o re¬
carreira fantástica, porém não fora do comum, naquele tem¬ tratista Cornelius Suythoff, conforme o interessante tra¬
po. De 1656 até 1658 Wagner é embaixador em Cantão na balho de Argeu Guimarães: “Na Holanda com Frans Post”.
côrte do Impérador do Japão e nas cortes de Príncipes Java¬ Neste campo resta ainda muito para investigar e para
neses. Três anos mais tarde é supremo arquiteto para tôda a completar o glorioso quadro da atividade artística da “MIS¬
índia Holandesa um ano depois governador de Kapland, em SÃO NASSAU”.
1668 é nomeado Vice-Almirante e como tal volta para a $
Holanda. Porém a sua saúde não resistiu à permanência do * *
22 ENRICO SCHAEFFER

BIBLIOGRAFIA

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Idem, Frans Post, Seus quadros Brasileiros, Ed Civilização Brasileira, 1958.
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XIV

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Idem, Les “Indes”, série triomphale de 1'exotisme


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Enrico Schaeffer Prof. Sílvio C. de Vasconcelos
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Alfredo de Carvalho— —
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tituto Arqu. e Geogr. Pernambuco, vol. XI, 1904.
Chefe do 3.» Distrito da Diretória do Patri-
itnônio Histórico e Artístico Nacional
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Idem — —
Alfred Lueck

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Der Staatlialter, biographischer Roman, 1947.
Enrico Schaeffer
— Fuerst Johann Morits von Nassau
Nachrichten 19-2-1959.
——
— Siegen-Deutsche 1730. Desbravado o território das Minas Gerais, ultra¬
Idem

Drcsdencr Zacharias Wagner, Deutsch? Nachrichten
— 14-9-1958.
passado o período turbulento das bandeiras, já os mi¬
neiros se aglomeravam em determinados pontos da região,
Idem

Zacharias Wagner (1614-1668)
Idem • Frans Post, ein Hollander malt Brasilien

Deutsche Nachrichten, 19-4-1961.
Deutsche Nachrichten, u^banizando-os. O poder real se impusera e, resolvidas
Gerd Hauswald

18-1-1959.
Forschungsreise nach Brasilien
blaetter, Heft 5-1951.

E. Benezit Dictionaire
— Saechsische Heimat-
Critique et documentaire sur les peintres.
afinal as dficuldades próprias dos grandes movimentos mi¬
gratórios, entravam as Minas em calma.
As povoações, consolidadas pelo comércio fixo, desen¬
volviam-se ràpidamente. Dentre estas, plantada entre o
vale do Tripuí e a cumiada da serra do Ouro Prêto, uma
delas adquire, desde logo, significativa importância: Vila
Rica. São vários os arraiais estabelecidos naquelas] abrup¬
tas e que, reunidos, vão formar a cabeça da capitania:
Bomsucesso, Ouro Pôdre, Piedade, Padre Faria, Antônio
Dias, Alto da Cruz, Passadez, São Sebastião, Santana e Otr
vertiginoso crescimento se manifestaria nos extraordinários
ro Prêto. Da junção dêstes arraiais resulta a Vila, cujo
vertiginoso crescimento se manifestaria: nos extraordinários
(festejos perpetuados nas páginas do “Triunfo Eucarístico”,
publicadas em 1734. Seu povo mostra-se pleno de conf
fiança no futuro. Prontas estavam as duas matrizes e
firme o comércio; novas ruas subiam, coleantes, os morros
íngremes e dragões luzidios guardavam a autoridade en¬
quanto uma nova gente — —
pardos é mulatos . surgia en¬
tre os claros portuguêses e os negros escravos. Tudo su-
24 PROF. SÍLVIO C. DE VASCONCELOS VIDA E ARTE DO ALE1JADINH0 25

geria continuado progresso e dias melhores para aquêle campo de especialidade. Alguns profissionais nem mesmo
povo que tanto esforço dispendera, tamanhos sacrifícios su¬ sabem ler e escrever como, por exemplo, oí Mestre Moreira,
portava e tanto já construirá. construtor da Capela de N. S. do Carmo de Sabará, para
A década iniciada em 1730 prenuncia-se decisiva. Em cuja ordem assina recibos em cruz. Êste, porém, não é o
pouco a população de homens livres alcançaria cerca de caso de Antônio Francisco, cuja assinatura revela bela ca¬
12.000 almas, acrescidas de 17.000 pardos e 50.000 pretos. ligrafia e cujo aprêço pelas inscrições leva a cred fôsse da¬
De 1735 a 1751 arrecadam-se, só de quintos, na Casa de do à leituras. Ocorre observar, apenas, que nem sempre
Fundição local, cêrca de 457 arrobas de ouro. São 34.275 essas inscrições correspondem a transcrições dos textos
quilos do precioso metal, arrancados do chão, fora as sone¬ sagrados, como consta de biografias suas, para, de- fato, inte-
gações sabidamente vultosas. 2.142 quilos por ano, ou sejam, rirem ter sido a Bíblia sua leitura predileta e constante. Na
calculados ao preço atual da grama-ouro, quase um bilhão verdade, quase tôdas as frases que aparecem em suas obras
de cruzeiros. são sinteses de vários versículos. Daí se supôr as tives¬
É nêsse ambiente que, filho de Manoel Francisco Lis¬ se redigido o próprio Francisco ou obtido, por essa, tarefa,
boa e de sua escrava Isabel, nasce Antônio Francisco. Seu a cooperação de latinistas como, por exemplo, seu irmão,
pai, natural de Odivelas, arcebispado de Lisboa, filho legí¬ Pedro Félix. De uma maneira ou de outra, a simples ocor¬
timo de João Francisco e Madalena Antunes, já era então rência dessas inscrições, inusuais na arte mineira, atesta a
mestre consagrado, responsável por inúmeras obras, públi¬ cultura e a erudição do artista.
cas e particulares, dentre as quais a Matriz de N. S. da Con¬ Cultura e erudição que, pouco a pouco, substituem a rus-
ceição, a Casa dos Governadores e a Misericórdia. Incumbe- ticidade dos primitivos aventureiros que se instalaram na
-se, com freqiiência,de riscos, empreitadas e louvações, não região. A música difunde-se extraordinàriamente e são tan¬
só na Vila como nas povoações vizinhas. Gomo êle, muitos tos os compositores e executantes que “certamente excedem
outros oficais trabalham nas numerosas construções que, si¬ o número dos que há em todo o Reino”, informa Teixeira
multâneamente, se erguem : o sargento-mór-engenheiro Pe¬ Coelho (Mem. Gap. APM. VIII, 561). O mesmo se dá com
dro Chaves, Antônio Francisco Pomba, Antônio de Souza a literatura, através a Arcádia Mineira, cujos componentes
Calheiros, José Pereira dos Santos, José Coelho de Noronha, brilhariam, mais tarde, tanto nas letras como na política. A
Francisco Xavier de Brito, Felipe Vieira, José Fernandes pintura de tal modo sei expande que vai influir até na “es¬
Pinto Alpoim e vários mais. Alvanéus, carapinas, entalhado- cola baiana”, com José Joaquim da Rocha. Tôda Minas
res, douradores, ferreiros, e mestre de risco, acudidos do floresce em inteligência, engenho e arte.
Reino e do litoral, atraídos pelo ouro. Fervilham oportuni¬ Antônio Francisco presencia, em sua infância e adoles¬
dade, apresentando-se ambiente francamente propício à cência, a eclosão dessas manifestações culturais d delas, na¬
formação de aprendizes, junto aos quais o menino Antônio turalmente, se aproveita ao máximo; em tôdas as oportuni¬
Francisco desenvolve suas excepcionais aptidões. dades e circunstâncias que se lhe oferecem. Adquire, assim,
Os ofícios regulam-se pelas corporações, limitando-se, soma considerável de conhecimentos, muito acima daquê-
contudo, os conhecimentos profissionais às primeiras letras le.4 peculiares ao simples artesão, apenas limitados pelas
e à experiência adquirida diretamente junto às obras. Os contingências da época e do meio em que vive. Contingên¬
brancos, no geral, recusam-se ao trabalho manual, havido cias essas que, no entanto, ano a ano se superam, pressiona¬
como depreciativo da condição de senhores que ostentavam das por continuo desenvolvimento.
em meio à escravaria. Esta, por sua vez, fica responsável Com o govêrno de Gomes Freire de Andrade grandes
pelas atividades braçais mais primárias. Em consequência, transformações beneficiam a Vila: pontes de pedra lançam
a arte e o artesanato, tanto questão de cultura quando de seus arcos romanos sôbre os cursos d’água que deslizam
habilidade manual, diferem-se negros e mulatos, dentre entre os abruptos contrafortes da região; meia centena de
os quais brilhariam muito, como Antônio Francisco, Ma¬ fontes, algumas de encantadora beleza, instalam-se em suas
noel da Costa Ataide e Mestre Valentim. ruas enquanto se pavimentam as vias públicas e configuram-
Geralmente os conhecimentos limitam-se ao restrito se praças. Antonio Francisco cresce com a Vila. Em 1751,
26 PROF. SÍLVIO C. DE VASCONCELOS E ARTE DO ALEIJ ADINHO” 27

já adolescente, trava conhecimento com João Gomes Ba¬ de seus componentes, Ifilhos dd mineradores bem sucedidos,
tista, discipulo de Mengim e de Vieira, o Lusitano, abridor são ^educados na Universidade de Coimbra e sua estadia na
de cunhos da Casa de Fundição. Hábil no desenho, meda¬ Europa parece que lhes estimula, mais do que diminui, o res¬
lhista, recém chegado da côrte, João Gomes Batista seria sentimento contra a subjugação do Brasil à distante mãe
um excelente mestre, provavelmente o mais erudito daque¬ patria. É a essa geração, nascida entre 1730 e 1740, que per¬
las paragens, conhelcedor das últimas novidades do estilo em tencem os pais da independência. Por essa geração foram
voga e, sem dúvida portador de grande sensibilidade artís¬ construídas as mais notáveis igrejas mineiras. É compre¬
tica. É com êle que, certamente, Antônio Francisco adquire ensível, pois, que essas igrejas reflitam inteligência versá¬
o gôsto pelos relevos e pelas composições heráldicas que, til, determinadas predileções artísticas c forte desejo de
mais tarde, se revelaria em suas formosas portadas. emancipação nacional. Arquitetônicamente isto implica na
Manoel Francisco, seu pai, mestre sempre acatado, con¬ de um estilo original, brasileiro, do mesmo modo que,
tinua em trabalho intenso na Vila e em povoações vizinhas. politicamente, implicou num país independente” (Bury-Arch.
A arquitetura singela, em madeira e barro, já repetidamente Forum, 1952).
usada nas Matrizes de Mariana, Sabará, Ouro Prêto e outras Antônio Francisco representa bem essa consciência na¬
vilas, enriquecida apenas pela exuberante talha dos retábulos, cionalista e a afirmação dos valores nativos, manifestados
tende a renovar-se visando maior apuro e um senso plásti¬ em sua originalidade, bem como sua independência em rela¬
co mais evoluído. Rompe a “marcha gloriosa” dessa nova ção à rotina que então se processava.
fase a Matriz de N. S. do Bomsucesso de Caeté, executada À eclosão de seu talento não opunham maiores obstá¬
por Antônio Gonçalves Bracarena, segundo risco de Manoel culos o ambiente e muito menosi seu pai, Manoel Francisco
Francisco Lisboa. É o primeiro templo, inteiramente de pe¬ Lisboa, pois a simples ocorrência de um busto semi-despido
dra, erguido nas Mlinas Gerais. Pedra chamada do Itacolomi, em local onde comumente se instalava a cruz, testemunha
roseo quartzito que, em Vila Rica só foi introduzida “para as a confiança que nêle era depositada e a liberdade que se
obras do Palácio, entre os anos de 1735 e 1738, sendo pre¬ lhe permitia ou mesmo, provàvelmente, se lhe estimulava.
ciso o braço forte do govêrno para o descortíneo eficaz das Confiança que faz crer tivesse Antônio Francisco partici¬
jazidas e abertura de carreiras”, conforme conta Diogo de pado de obras do pai, não como simples operário mas
Vasconcellos (Bi. 139). Antes dela, só a canga superficial como eficiente colaborador, cuja capacidade, aos poucos,
havia sido aproveitada nas alvenarias de pedra e barro das se demonstraria das mais significativas. De outra forma
paredes ou nas de pedra sêca dos paredões. Agora, afinal, não se compreenderia que,< já em 1766, fôsse Antônio Fran¬
podem ser encetadas construções de maior dura e nobreza, cisco o escolhido para elaborar o risco da Capela dos Ter¬
firmes em suas bases e sólidas nas elevações, definidas pela ceiros Franciscanos, obra da maior responsabilidade, ence¬
cantaria bem trabalhada das estruturas. tada por uma Ordem que só confiava suas iniciativas a per¬
Antônio Francisco interessa-se pelo nôvo material e, ao sonalidades de indiscutível valor. Somente uma sua inter¬
mesmo tempo que se dedica ao entalhe na madeira; encon¬ venção direta e valiosa em anteriores realiEações, compro¬
tra uma nova pedra, macia de trabalhar ao instrumento e vando assim suas excepcionais qualidades, justificaria a
agradável em côr e contextura. Ê a pedra talcosa, a pedra confiança nele depositada pela Ordem Terceira de São Fran¬
sabão, com a qual executa sua primeira obra datada
busto feminino, quase desnudo, que arremata o chafariz do
— o cisco. È provável, pois, que tivesse inteTferido no risco ori¬
Alto da Cruz
—construído por seu pai em 1761. Composi¬
ção pagã que, segundo Germain Bazin, é a única com essa
ginal da Capela de N. S. do Carmo de Vila Rica, que mais
tarde modificaria; na Matriz de N. S. do Bonsucesso de Caeté,
onde também teria executadô a talha de alguns retábulos;
característica na época, já distante das liberdades renascen¬ na Santa Casa de Misericórdia, nos chafarizes da região e
tistas. Começa a revelar-se o gênio do artista patrício, que em muitas obras, principalmente aquelas executadas por
não se limitaria ao apuro das formas já consagradas mas que seu pai.
se ampliaria, também, pela inventiva, ousadia e criação. Em 1763 entalha um oratório para a Matriz de N. S. do
“Em 1760 a segunda geração dos povoadores, filha dos Pilar de Ouro Prêto e, pela mesma época aproximadamente,
pioneiros, já está crescida e consciente de sua pátria. Alguns
28 PROF. SÍLVIO C. DE VASCONCELOS "VIDA E ARTE DO ALEIJADINHO" 29

deve ter trabalhado nos citados retábulos de Caeté, onde dei¬ no gôzo de perfeita saúde; e tanto que era visto muitas vê'
xa tamlbém uma imagem de Virgem. Muito embora a compo¬ zes tomando parte nas danças vulgares”, batuques. e fandan¬
sição dos retábulos seja idêntica, observa-se nitidamente a gos como revela Bretãs e que, mais tarde, escandalizariam
caligrafia do mestre em um deles. Seu trabalho é mais Saint-Hilaire. Por isso mesmo, inclina-se para as figuras
limpo os detalhes mais desenvoltos, as figuras mais naturais, femininas em suas composições. Entre essas, o já citado
o acabamento mais seguro e o conjunto mais elegante. Nas busto do chafariz do' Alto da Cruz, a Virgem de Caeté, Sta.
cabeças notam-se a caracteristica estilização dos cabelos, o Helena da capela de N. S. do Rosário, a Samaritana do cha¬
desenho firme da bôca, a acentuação das arcadas supercilia- fariz de Mariana, a aguadeira do Solar dos Nobres de' Ouro
res e o amendoado dos olhos com suas pupilas facetadas. Prêto e, certamente, muitas outras imagens como a de Maria,
Enquanto os querubins possuem caheças ligeiramente maio¬ incorporada ao acêrvo do Museu da Inconfidência, e a de
res do que o natural, em proporção com seus respectivos Santana, das coleções do Gondim de Oliveira, além de ou¬
corpos, obedecendo a antigos princípios da estatuária, a tras conhecidas ou extraviadas. São tôdas; figuras graciosas,
imagem de N. S. do Carmo a tem mas delicada e fina. Isso elegantes, frágeis e risonhas como as cabeças de anjos que
faz supor que Antônio Francisco à ela se tivesse limitado, ornam seus retábulos; peças que traduzem a alegria do ar¬
permitindo que a fábrica do corpo coubesse a seus auxilia¬ tista, sua juventude c sensibilidade. Sensibilidade que, em
res. Igual desproporção ocorre na imagem de S, Helena da pouco, iria manifestar-se em concepções de maior arrojo,
Capela de N. S. do Rosário dos Prêtos, de Ouro Prêto. Apesar interessadas à arquitetura das Capelas dos Terceiros que,
dessa circunstância, ambas imagens são, realmente distin¬ a partir de 1766, começam a ser erguidas nas Minas Gérais.
guíveis, ao menor exame, das demais que pela mesma época As populações das vilas maiores definem-se, então, em
se esculpem. sociedades estratificadas cujas classes se esforçam em tradu¬
Com séus vinte e poucos anos, Antônio Francisco co¬ zir suas peculiares caracteristicas, principalmente pelas reali¬
meça a desabrochar para a glória. Já é um homem. “Pardo zações de caráter religioso. Unem-se os prêtos pobres em tôrno
escuro, tinha a voz. forte, a fala arrebatada e o gênio agas¬ das Capelas de N. S. do Rosário; os pardos junto às Capelas
tado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, de S. José ou de N.. S. das Mercês; os comerciantes ricos
o rosto e a cabeça redondos,, e esta volumosa; o cabelo aí integram-se nas irmandades do S. S. Sacramento das matri¬
prêto e anelado, o da barba serrada e basto, a testa larga, zes. Quanto às classes mais favorecidas, agrupam-se nas Ca¬
o nariz regular e algum tanto ponteagudo, os beiços grossos, pelas de N. S. dos Anjos e do Carmo, eretas pelas Ordens
as orelhas grandes, o pescoço curto”. Êsse o retrato que Terceiras, beneficiárias de determinados privilégios. Rivali¬
dêle faz Rodrigo José Ferreira Bretãs. dades intensas instalam-se: lutas, conflitos e prerrogativas,
A fama de seus méritos espalha-se rapidamente e cres- cada grupo se desdobrando ao máximo para que suas res-
cem as solicitações do seu trabalho. Riscos, louvações, obras pectivas iniciativas se apresentassem superiores às demais.
de vulto e de pequeno porte. Antônio Francisco1 firma-se no Quase simultâneamente, começam a ser construídas as Cape¬
cenário artístico de Vila Rica e seu nome de pronto ultra¬ las de N. S. do Carmo e de S. Francisco em tôdas as vilas
passaria os limites da povoação para atingirl outras regiões, de maior desenvolvimento. Reformam-se, por outro lado,
desde Mariana a São João del Rei, de São João do Morro as matrizes das povoações que não alcançaram ainda sufi¬
Grandd a Santa Luzia do Rio das Velhas. Brilha o mulato ciente progresso para permitir a instalação das Ordens Ter¬
feio cuja mocidade expande-se tanto no trabalho como em ceiras. É possível que, em 1765, tenha Antônio Francisco
farras noturnas junto às negras dengosas que vagueiam pe¬ interferido no risco da nova Matriz de Morro Grande, intro¬
los morros, com elas multiplicando os contínuos e escanda¬ duzindo-lhes as curiosas torres e a mureta do adro.
losos citados por Antonil. Ama, então, e suas obras refle¬ A virada do século coincide com um surto extraordiná¬
tem amor, “...eis que o artista, se alguma coisa apura no* rio de construções. Parece que o povo, prevendo o futuro
seu cinzel, está na exação das curvilíneas, suprema distinção de decadência e pobreza, se apressa por materializar sua
do corpo feminil”, conta Diogo de Vasconcellos. Apega-se capacidade, testemunhando para a história sua personali¬
o mestre às mulheres, “cuidando sempre em ter bôa mesa, e dade e valôr. Uma nova arquitetura, desenvolta e renas-
30 PROF. SILVIO C. DE VASCONCELOS “VIDA E ARTE DO ALEIJAD1NHO" 31

cente, um barrôco, peculiar e escorreito, surgem então nas terior à Capela Franciscana: de Ouro Prêto, não é provável
Minas e, com êles, o arquiteto Antônio Francisco Lisboa. que o mestre fôsse o responsável pelo seu risco original, em
Escolhido para projetar a Capela Franciscana de Vila Rica., desacordo com a dinâmica peculiar de suas composições.
concebe-a de modo inteiramente diverso dos templos ante¬ Sua participação na obra teria se limitado, assim, à corre¬
riores da região. Abandona o partido romântico e pesado ções, sugestões novas e ao desenho de detalhes, alguns dos
da tradição portuguêsa, que transforma e recria, mais leve, quais também executaria.
dinâmico e equilibrado. Recua as torres e as If az cilíndricas, Começa, então, um período de intensa atividade para o
enquanto avança o frontespicio do corpo principal, enri¬ artista. Tendo projetado e executado o frontespicio das
quecendo-lhe os cunhais com colunas jónicas. Incorpora Capelas Carmelitas de Sabará e Vila Rica, em 1772 trabalha
o óculo da empena à composição decorativa da fronteira e nos púlpitos da Capela Franciscana da mesma Vila, que co¬
introduz, sôbre a Via Sacra, terraços descobertos, incomuns loca os pilares do arco-cruzeiro e não nas paredes da nave
na arquitetura nacional, harmonizando os volumes, antes como era usual. Os seis baixo-relêvos que compõem os guar'
apenas justapostos. Modifica, finalmente, as proporções da-corpos das peças confirmam a excepcional capacidade
quadrangulares da composição para ajustá-la ao retângulo do mestre no trato de pedra-sabão, macia e dócil qual argila
vertical, obediente à clássica lei áurea da média e extrema em mãos experientes. Em cada púlpito, as faces laterais
razão, relacionados, seus elementos componentes, pelo para¬ do balcão mostram os evangelistas com seus símbolos apoca¬
lelismo das diagonais. A escala torna-se modular e, embora lípticos. As faces principais contém as cenas de Cristo fa¬
barroca, a obra apresenta-se clássica em seu perfeito equilí¬ lando ao povo no Tiberiades e Jonas sendo jogado à baleia.
brio sendo difícil acreditar fôsse o resultado apenas de uma Pela primeira vêz, Antônio Francisco interessa-se pelo Velho
intuição genial e não de consciente intenção, originada de Testamento e toma contato com gravuras medievais, facil¬
avançados conhecimentos teóricos. mente reconhecidas no grupo a Jonas, nos barretes e cha¬
“Com efeito, Antônio Francisco, o nôvo Praxiteles, (é péus das figuras, na expressividade dos corpos contorcidos e
quem) honra igualmente a arquitetura e a escultura”, como no vestuário com que se apresentam, notando-se ser uma
diz o verdadeiro Joaquim José da Silva, seu contemporâneo. das figuras completamente calva. Êsse curioso detalhe se
É o líder incoteste de sua geração, superando o pai cujo repete no relevo da sôbre-porta da Capela do Senhor Bom Je¬
falecimento em breve se daria (1767). Com grande segu¬ sus de Matozinhos de Ouro Prêto e em um dos púlpitos da
rança e ousadia, modilfica o risco original da Capela Car¬ Capela d? N. S. do Carmo de Sabará, aquêle quê representa
melita de Ouro Preto, introduzindo-lhe chanfros nas ilhar¬ Cristo referindo-se aos tesouros. Cópias de gravuras medie¬
gas do arco-cruzeiro, alterando-lhe o barrete da capela-mór, vais evidenciam-se, igualmente, na pintura do fôrro da Ca¬
suprimindo-lhe os arcos destinados aos retábulos da nave. pela de N. S. do Rosário de Cachoeira do Campo, confir¬
Alteando e arredondando-lhe as torres, traça-lhe também mando seu conhecimento por narte de Antônio Francisco.
nôvo frontespicio para que a obra se adaptasse ao seu estilo Concluídos os púlpitos, inicia Antônio Francisco, em
pessoal, como acentua Lúcio Costa (A.F.. 16). O arquiteto 1773, o barrete da Capela-mór da Capela de S. Francisco
não se esquece, contudo, do cinzel e enriquece as singelas “dividido por arestas ornamentadas e caixilhos ovais, con¬
fachadas, até então, retilíneas e despidas de ornamentos, tendo alto-relêvos que representam grandes santos da Or¬
com graciosas ondulações. Surge então, uma decoração no¬ dem: S. Boaventura, Santo Antônio, S. Ivo e S. Conrado”
va, exuberante e inspirada, que principia nos portais, sobe (Diogo, Bi. 150). Ao centro, grande anjo de asas abertas,
por êles, superpõe-se às vergas, espalhando-se pelas sobre¬ conduz sôbre a cabeça uma cesta de flores em arremate
porias em heráldica composição, para arrematar-se ao al¬ monumental.
to, junto ao óculo da empena, afinal encimado pelas volutas, Na mesma época, é o artista convocado pelos Irmãos
curvas e contra-curvas do fronlão aberto. de S. José para o risco do nôvo retábulo da capela-mór da
É essa a arquitetura que Antônio Francisco propõe para Capela que reconstruíam. É provável que, além dêsse risco,
a capela de N. S. do Carmo de Sabará em. 1771. cujo partido tivesse também o mestre sugerido o nôvo frontespicio. com
assemelha-se bastante ao adotado pela Matriz de Caeté. Pos¬ sua tôrre central circundada por terraço, elemento já ten-
32 PROF. SILVIO C. DE VASCONCELOS “VIDA E ARTE DO ALEIJADINHO” 33

lado na Capela Franciscana onde seria, posteriormente, co¬ mesma linha de evolução, infere-se que a sôbre-porta car¬
berto em virtude das infiltrações que permitia. melita de Vila Rica é posterior à de Sabará pois, embora
A seguir, Antônio Francisco principia a portada da Ca¬ de composição idêntica, é tratada com maior desenvoltura,
pela de N. S. dos Anjos de Ouro Prêto e risca a Capela de incorporando o óculo da empena à decoração do frontes-
igual invocação dos franciscanos de São João del Rei. Nêste picio cujos ornatos não mais apenas se superpõem aos ele¬
mesmo ano de 1774 vai ao Rio de Janeiro, impressionando-se mentos arquitetônicos mas integram-se nêles em perfeita
com a portada portuguêsa da capela carmelita local, insta¬ unidade..
lada desde 1761 e que avultava no cenário da cidade, no di¬ Acabadas as portadas, trabalha Antônio Francisco na
zer de Lúcio Costa (A.F.). Voltando à Minas modifica Capela de N. S. das Mercês e Perdões de Vila Rica onde,
então, os projetos que elaborara para acrescentar à portada em 1775, executa um crucifixo e as cabeças de S. Pedro e
de S.. Francisco de Vila Rica os dois serafins assentados e S. Raimundo Nolasco, contribuindo também com sugestões
sôbre as ombreiras da porta principal, encurvadas, agora, para a arquitetura do templo que então se reconstrói. É
em dinâmica concentração. Fecha, ainda, o óculo da em¬ provável que tenha, pela mesma época, executado a cabeça
pena, da mesma Capela, com grande medalhão relevado. de 5. Francisco de Paula da Capela de igual invocação da
Marca, assim, plasticamente, o ponto de fixação do contra- mesma Vila.
pêso dos sinos, cerrando as portas travessas e conferindo ao “O melhor gôsto francês”, aludido por Bretãs, vai, con¬
tempo uma nova monumentabilidade. Como todo artista tudo, revelar-se completamente nos lavatórios das sacristias
de categoria, Antônio Francisco nunca se mostra satisfeito que conclui, o da capela de N. S. do Carmo, em 1776, e o da
com suas obras que, constantemente, modifica e aperfeiçoa. Capela de S. Francisco, em 1777, ambas em Vila Rica. O trata¬
O estilo Luiz XIV (ou D. João V), que havia inspirado mento que dá à peça carmelita lembra, por seu primoroso de¬
suas composições, evidenciando-se, principalmente, na Ca' senho, trabalho em ourivesaria, principalmente aquêle reali¬
pela de N. S. do Carmo de Sabará, evolui para as soluções zado em prata e que ocorre em escrineos, ostensórios e baixe¬
Luiz XV (ou D. Jose), no caminho do rococó. É essa: evolu¬ las. Requintada miniatura do plateresco que difere das porta¬
ção que diferencia a obra carmelita sabarense da francis¬ das pela profusão de ornatos, em delicada composição que
cana de S. João; — a primeira tratada com largueza e gran¬
diosidade de certo modo enfática; a segunda com a “graça
recobre tôda a superfície da peça. A bacia apresenta-se como
meia-taça; volutas e conchoides armam a molduração do
irregular e petulante, própria do, estilo D. José” (Lúcio, A. painel central, onde a figura da Virgem com o menino flu¬
F„ 18). tua entre nuvens. Cabeças aladas de anjos guardam as ilhar¬
É verdade que tanto a portada carmelita de Sabará co¬ gas da peça e todo o conjunto integra-se na arquitetura do
mo a franciscana de Ouro Prêto e o risco de S. João foram cômodo onde se acha instalada, conjugando-se com a cor¬
concebidos pela mesma época, de 1771 a 1774. Traduzem, nija que circunda o fôrro. É, principalmente, nessa peça
assim, uma inquietação do artista, a procura de uma linha que se confirma a opinião do segundo vereador da Câmara
evolutiva natural de quem não se apega à rotina nem se con¬ de Mariana, Capitão Joaquim José da Silva, sôbre o artista:
tenta com as soluções padronizadas. Linha evolutiva que “admira-se a invenção, o equilíbrio natural ou compôsto, a
ira definir-se mais claramente após a viagem do mestre ao justeza das dimensões, a energia dos usos e costumes e a
Rio de Janeiro, em consequência da qual modificaria êle escolha e disposição dos acessórios com os grupos verossímeis
o projeto inicial das portadas franciscanas em exame. A que inspira a bela natureza”. E nela, ainda, que se patenteiam
última destas a de São João del Rei, infelizmente, só foi os profundos conhecimentos que Antônio Francisco teria
completada muito tarde, em 1810, e por outros mestres. adquirido, principlamente com João Gomes Batista, reco¬
E provável também que a sôbre-porta carmelita de Sa¬ nhecidos na sugestão heráldica das fitas falantes, na solu¬
bará seja obra posterior à empena da mesma capela, pois ção medalhística dos relêvos e no apuro do entalhe, pró¬
os querubins soltos sôbre a parede caiada e o entalhe mais prio dos gravadores de mérito.
delicado da pedra distanciam-se bastante das fortes volutas Já o lavatório franciscano é mais sóbrio e de ornamen¬
e conchoides que arrematam a frontaria. Obedecendo à tação menos profusa, deixando as superfícies quase lisas pa-
34 PROF. SÍLVIO C. DE VASCONCELOS VIDA E ARTE DO ALEIJAD1NH0” 35

ra a enfâse das figuras que nelas ocorrem. Antônio Fran¬ mesmo autor, que ambas se diferenciam substancialmente
cisco começa a sofrer, “com um corpo enfermo que pre¬ quanto às figuras. Na chafariz, tanto Cristo como a mulher
cisa ser conduzido a qualquer parte para poder obrar” se apresentam jovens e em. amável colóquio, ao passo que,
(A.F., 31). A vida desregada que, provàvelmente, levava no púlpito, Cristo, na maturidade, adverte assustada matro¬
traz-lhe, afinal, suas inevitáveis conseqiiências. De 1777 em na. A figura feminina de Mariana, de esguio corpo, e cabelos
diante, conta Bretãs, “as moléstias venéreas provindas tal¬ presos ao alto, e a do Solar dos Nobres de Ouro Prêto já não
vez, em grande parte, dos excessos, começam a atacá-lo tem encantos nem inspira amor quando transporta para o
fortemente. As pálpebras inflamaram-se e, permanecendo trabalho de Sabará. Antônio Francisco, consumida a juven¬
nêsse estado, ofereciam à vista sua parte interior; perdeu tude e o encanto de suas primeiras obras. O grupo colocado
quase todos os dentes e a bôca entortou-se como sucede, junto ao tesouro, num dos púlpitos de Sabará, é o mesmo que
frequentemente, com o estuporado; o queixo e o lábio in¬ atira Jonas à baleia, no púlpito de Vila Rica. São as mes¬
ferior abateram-se um pouco; assim o olhar' do infeliz mas vestes, os mesmos rostos enrugados e a mesmas fi¬
adquiriu certa expressão sinistra e de ferocidade que che¬ sionomias perplexas, cheias de temor, com) suas despropor¬
gava mesmo a assustar a quem quer o encarasse inopinada¬ cionadas cabeças e penetrante olhar.
mente”. Só compensa, então, os sofrimentos o nascimento No mesmo ano de 1781 risca o retábulo do altar-mór da
de seu único filho conhecido, fruto de ligação com. sua es¬ Capela de S. Francisco de São João del-Rei e, a seguir, con¬
crava Narcisa Rodrigues da Conceição, e que se chamaria,, forme se presume, cuida dos retábulos da Igreja de Jaguara.
como o avô, Manoel Francisco Lisboa, em homenagem àquele hoje incorporados à Matriz de Nova Lima. São pouco conhe-
que Antônio Francisco prezava como pai e mestre. das as atividades do artista nessa décadla!. Anosi sucessivos
Apesar de tudo, continua o artista a trabalhai} intensa¬ de sofrimento, de luta pela sua arte e pelo seu pão de cada
mente, mas sua arte, cada vez mais vigorosa, não teria, to¬ dia. Muitas de suas obras, encontradas aqui e ali, como o
davia, daí por diante, aquela alegria, aquela juvenil presença Cristo da Flagelação de Cachoeira do ampo, agora no Museu
da mulher que, em sua mocidade, eternizara na pedra. Avi¬ da Inconfidência, as pequenas imagens encontradas em São
zinham-se tragédias. Antônio Francisco inclina-se agora João del Rei, o retábulo da fazenda da Serra Negra, são
pelas cenas dramáticas do Velho Testamento e por circuns- provàvelmente, realizações dêsse período. É necessário en¬
pectos modelos masculinos. Já no lavatório franciscano, onde tender que, na época, não gozavam os artistas das possibilida¬
poderia ter colocado a Virgem dos Anjos, prefere a severa des que hoje lhes são freqiientes. Cabia-lhes, então, apenas a
figura da fé, cega e inabalável; nos retábulo» da Capela Car¬ oportunidade de trabalho, compreendido como artesanal e
melita de Sabará executa, em 1778, as graves imagens de S. remunerado por ajuste prévio. Trabalho duro, estafante,
Simão Stock e S. João da Cruz; nos púlpitos da Capela de S. como o de qualquer outro trabalhador e onde os eventuais
Francisco de Vila Rica grava advertências de Cristo e o sacri¬ riscos da empreitada só a êles incumbiam. Em meio a tanta
fício de Jonas e, na Capela do Senhor Bom Jesus de Matozi- riqueza, um profissional como Antônio Francisco, só me¬
nhos, também1 de Vila Rica, sugere o juízo Ifinal e o castigo recia oitava de ouro por dia, no valor de seiscentos reis. Is¬
dos pecadores, simbolizados pela imagem de S. Miguel e pelo so pouco representava em confronto com os altíssimos pre¬
relêvo do purgatório. ços alcançados pela alimentação, as despesas com ferra¬
Em 1781, volta a Sabará para executar as robustas gra¬ mentas, auxiliares, pêrdas de trabalho por êrro ou defeito
des da nave, os enérgicos atlantes que sustentam a viga mes¬ de material, além de outros compromissos. Em consequên¬
tra do côro e os púlpitos. Nos painéis dêstes últimos entalhes cia, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não
mais uma vez os evangelistas e duas cenas da vida de Cris¬ é grande ou excessiva a produção do artista. Vivendo do
to: “Veio uma mulher de Samaria; a tirar água e Jelsus lhe trabalho, dia a dia, naturalmente não poderia permanecer
disse— dá-me de beber”. “Onde está voss otesouro,— aí tam¬
bém estará o vosso coração”. Nota-se claramente, confron¬
inativo por muito tempo e para quem produziu, assim, pela
vida afora, continuam ente, as obras que lhe são atribuídas
tando a cena da Samaritana de Sabará com a mesma cena podem ser consideradas até em menor número do que se
que ocorre em chafariz de Mariana, indubitavelmente do deveria supor. Alguns riscos, quatro púlpitos, quatro por-
“ VIDA E ARTE DO ALE1JADINHO 37
36 PROF. SÍLVIO C. DE VASCONCELOS
lência das represálias tomadas, pela coroa, contra os mais
tadas, dois lavatórios, dois chafarizes, poucos retábulos e ilustres homens da Capitania, relegados à condição de galés.
uma dezena de imagens, se excluída a obra final de Con¬ Com alguns dêles teria o mestre contato freqiiente, pelo me¬
gonhas do Campo, longos períodos de sua vida permanecem nos com o poeta Cláudio Manoel da Costa, interessado
inteiramente vazios de informações. Seriam mêses e mêses na construção da Capela da Ordem Terceira de S. Francisco
de tortura, de fome talvez, de angústias e abandono. que o tinha como irmão dos mais prestimosos. Recolhe-se,
Em 1784 teria executado os retábulos da Capela de então, Antônio Francisco ao arraial de Rio Espera onde,
a partir de 1790, entalha o monumental retábulo da capela-
N. S. do Rosário de Santa Rita Durão, antes da pintura re¬
cebida pelo templo, em 1792, conforme consta de inscrição -mór franciscana de Vila Rica. Curiosamente prefere colocar,
sob o côro. Teria, também, trabalhado no Cristo crucificado sôbre o sacrário, os membros estigmatizados do santo, que
também figuram na carteia do arco-cruzeiro, quem sabe por
de Catas Altas, semelhante ao. flagelado de Cachoeira, que, sugestão do martírio de Joaquim José da Silva Xavier que,
por suas atléticas proporções, lembra os atlantes de Sabará
diferindo, substancialmente, das tradicionais figuras do cru¬ com tôda certeza, o impressionara. Concebe agora, êste
cificado, no geral flácidas e lânguidas como as prefere o retábulo, não mais como peça autónoma, encostada à parede,
sentimentalismo das populações humildes. O Cristo de mas sim integrada na arquitetura do templo, em perfeita
harmonia com o barrete que, anos antes, executara. O par¬
Antônio Francisco é, ao contrário, másculo, vivo e forte, tido é quase o mesmo do retábulo da Jaguara, mas o dese¬
apresentando os músculos do tronco contraídos como a
desejar arrancar-se da cruz. Tem a cabeça erguida, olhar nho é bem mais desenvolvido, os anjos mais naturais em sua
resoluto, a postura ereta, testemunha do gênio criador postura, a decoração mais marcada e o acabamento mais
primoroso. Êsse último, principalmente em sua parte su¬
daquele que o concebeu. Pela mesma época, teria executado
perior os fêchos da arquivolta, os arranques da. empena e a
os retábulos da nave da Matriz de N. S. do Bomsucesso de
Caeté, cujo altar-mór, de Antônio Coelho de Noronha, con-
clúiu-se em 1765 e que evidencia-se como anterior aos de¬
composição concentrada da carteia — denuncia o estilo D.
João V, que caracteriza o frontão da capela carmelita de
mais. Tanto a composição, ao alto, como os anjos sôbre as Sabará. Já o retábulo franciscano se manifesta francamen¬
te. no dstilo D. José I, em composição aberta e leve, de vária
colunas centrais e a carteia do Padre Eterno, lembarm solu¬ superfície lisa e branca, tão moderno e rococó quanto o
ção dada por Antônio Francisco no altar-mór Ifranciscano permitiam as condições locais. “A Santíssima Trindade que
de Ouro Preto, obra de 1790, cuja arquivolta, com seus arran¬ encima o altar exibe a maneira do artista com maior cla¬
ques em volutas, assemelha-se às dos retábulos de Caéte, reza”, consigna Diogo de Vasconcellos (Bi.,152) “e é um gru¬
fazendo crer tenham sido êles concebidos mais ou menos po admirável de perfeição, em que as figuras, se não falam,
num mesmo período. pensam e mostram o pensamento na transparência das fei¬
Por volta de 1786, teria Antônio Francisco riscado a ções”. Essa obra toma vários anos de Antônio Francisco,
fachada da Capela do Carmo die São João del Rei, na qual perdurando até 1794, quando, já em Vila Rica, talvez tenha
também trabalharia pessoalmente. esculpido também a imagem de S. Jorge.
Em 1788, ocupa-se dos retábulos da capela franciscana, É, contudo, em 1796 que tem início a obra do incompa¬
sendo visível sua caligrafia nos baixo-relêvos dos sacrários rável Antônio Francisco. Obra qud coroaria, de modo defi¬
e em detalhes da portada onde se salienta a cabeça de nitivo e consagrador, tôda sua brilhante carreira de escul¬
Cristo, colocada como fêcho da verga principal. tor inimitável, de entalhador insuperável e de consumado
Joaquim José da Silva Xavier hava sido prêso, com seus arquiteto: Congonhas do Campo.
companheiros de inconfidência para, depois de longo e an¬ Desde 1757 o persistente ermitão Feliciano Mendes vi¬
gustiante processo, ser levado ao local da fôrca e nela pa- nha lutando pela construção da Capela do Senhor Bom
ddcer morte natural. Seu corpo, esquartejado, iria jazer Jesus de Matozinhos, de sua particular devoção. Com o an¬
nás encruzilhadas dos caminhos das Gerais e sua cabeça damento da obra, entendeu Feliciano de completá-la com
escarmentaria o povo em praça pública de Vila Rica. Antô¬ as pequeninas capelas que balizam a encosta, desde o vale
nio Francisco aflige-se com os acontecimentos e com a vio¬
PROF. SILVIO C. DE VASCONCELOS VIDA E ARTE DO ALEIJADINHO 39
38

do ribeirão até o alto, plantadas em meio a jardins. Permi¬ desde 1780 pelo mestre Pedro Thomaz de Maia Brito. É
tiam êstes, pelos zigue-zagues contínuos, não só uma subida provável que Antônio Francisco nêle tivesse interferido des¬
mais suave do abrupto aclive como uma visitação interva¬ de o início para traçar-lhe a bela escadaria e prever os acro-
lada às cenas que se referiam à paixão do Senhor, a. começar térios onde, mais tarde, assentaria seus profetas. O mesmo
pela Ceia. Êstes chamados “Passos” incluem coleções de fi¬ partido da escadaria rcpetc-se aliás, na Capela de S. Fran¬
guras em tamanho natural, em madeira pintada, ie para sua cisco de São João del Rei e na Capela de N. S. da Glória
confecção é convocado Antônio Francisco Lisboa. Aceitam- do Arraial dos Carijós, nas imediações de Conselheiro La-
-se algumas delas deformadas, quase caricaturais e mesmo faiete, que sugerem sua colaboração.
desproporcionadas, pretendendo muitos que estas deficiên¬ Os Passos concluídos permitem seja iniciada, em 1800, a
cias das imagens se imputem precariedade dos méritos do escultura dos profetas, inspiradas, presumivelmente, em gra¬
artista. Mas é necessário considerar que, evidentemente, em vuras européias, similares àquelas medievais utilizadas para
os relevos dos púlpitos franciscano e carmelita de Ouro Prêto
deformadas
nalmente.
— sem sombra de dúvida
Intenção que se relaciona—
confronto com outras figuras da mesma coleção, aquelas
com
o foram intencio-
o desejo de mar¬
car, de acentuar o caráter maligno dos algozes do Senhor,
e Sabará, respectivamente. Nêstes, todavia, o estado de
ânimo do artista o leva a inclinar-se por motivos menos
dramáticos, correspondentes às suaves fisionomias dós evan¬
colocando-os, com suas deformidades, em paralelo com a gelistas e às risonhas cabeças dos querubins. Já os profetas,
serenidade e perfeição das figuras daqueles que acompanha¬ tanto pela significação de suas personalidades como pelo
ram q Cristo. Confronto do bem com o mal, da maldade tratamento que recebem, diferem de tôda a obra anterior do
com a bondade, do demónio com a divindade, recurso plás¬ mestre.
tico perfeitamente aceitável e usual quando se considera a A composição é agora francamente dramática, severa,
funcionalidade das imagens frente à curiosidade e ao enten¬ teatral e quase trágica. As contorções dos corpos, que antes
dimento das populações incultas. E tanto isso é verdade interessavam a um evidente sensualismo, definido por vo¬
que só as figuras dosi soldados se apresentam disformes, sen¬ luptuosas ondulações, tornam-se agora em angulosas de¬
do as que representam Cristo ou seus apóstolos de uma cor¬ formações que não enlevam, mas sim oprimem e inquietam.
reção exemplar. E não custa lembrar que, apesar de cari¬ Simétricas na disposição, como em tétrico balem formam
caturais, mesmo as figuras deformadas apresentam-se como as estátuas um conjunto harmónico impressionante, realçado
obras de escultura notáveis, quando consideradas dentro do pelas alvenarias brancas do tempo que antecipam e pelo céu
espirito barrôco. Suas deformações são de uma “riqueza, freqiientemente límpido que cobre o outeiro onde se erguem.
duma liberdade de invenção absolutamente extraordinária”, Não sugerem tranqúilidadel e esperança, nem amor ou pie¬
como diz Mário de Andrade. dade, nem poder ou glória, mas sim tristes presságios.
É êste, por assim dizer, expressionismo das figuras que Isaias, com1 olhos postos no infinito e longas barbas
leva os homens do campo a disparar tiros contra Judas e esvoaçando ao vento, lembra que“ enquanto os serafins ce¬
as humildes mulheres do povo ao pranto comovido. Revolta lebram ao Senhor, foi encostada por um dêles uma brasa
e lágrimas, desespêro e dor que afligiam também o artista em seus lábios”, proporcionando-lhe tormentos semelhantes
já sexagenário, ao sentir aproximar-se o fim! dos seus dias àqueles que também afligam Antônio Francisco, corroído por
de tormento. Pressente êle que sua última oportunidade males incuráveis. '
está presente e, juntando derradeiras forças, enceta afinal Jeremias, por sua vez, chora a derrota e a ruína de
sua obra prima, de estatutária propriamente dita e não mais Jerusalém, clamando pela volta do Senhor, cujo retorno
de mero entalhador ou projetista. As figuras dos Passos e os últimos tempos do mundo Baruc prediz.
recolhem-se às suas pequeninas capelas, na encosta do moro. Antônio Francisco teme o futuro e, apocalipticamente,
Acima ergue-se a capela, com seu adro elevado, altaneira consigna a visão de Eziequiel com suas rodas horríveis e
e límpida e sua brancura, a reclamar o detalhe, a grandiosi¬ animais cm chamas. Ao mesmo tempo, porém, confia em
dade e o arremate que lhe cabia. Deus e simboliza a salvação na figura de Daniel, que foi
Documentos contam que o adro vinha sendo construído retirado ileso da cova dos leões. Salvação que também se
40. PROF. SÍLVIO C. DE VASCONCELOS

anuncia pela imagem de Oséas, a quem, o Senhor proclama


que a adultera deve ser perdoada pois, feita esposa, concebe
e dá a luz.
Mais uma vez Antônio Francisco se vale die) Jonas que,
por três dias e três noites, permanecera no ventre peixe
de onde ressurge para: a vida. À baleia, que no púlpito da
capela franciscana de Ouro Prêto realisticamente escancara
a bocarra para engolir o profeta, agora docilmente se en¬
colhe aos seus pés, humilde como o leão de Daniel, domi¬
nados ambos pelo poder maior, contra o qual não preva¬
lecem a ignominia ou as forças do mal.
Antônio Francisco está inquieto e os profetas refletem
sua inquietude. Enquanto alguns se mostram tranquilos e
serenos, outros manifestam revolta e ameaçam castigos. Con¬
templam uns, com piedade e dó, as gentes do povo que even¬
tualmente os defrontam; outros põem o olhar no céu à pro¬
cura dos sinais terríveis do que hâ por vir. À velhice con¬
formada de Isaías opõe-se a juventude de Amós, e' à sobran¬
ceira de Baruc, a modéstia de Nahum. Em todos, contudo,
esplende a extraordinária caligrafia do exímio escultor, re¬
conhecida no desenho perfeito dos lábios, no amendoado
mongólio dos olhos, na estilização dos cabelos e na angulo¬
sidade peculiar do panejamento.
A lagarta, o gafanhoto, o bruco e a alfôrra trarão dias
sombrios, prediz Joel. “Ouvi esta palavra, vacas gordas
que estais no monte de Samária, vós que fazeis agravos e
vexiais os pobres; o Senhor jurou que brevemente virão dias
infelizes em que êstes levantarão vossos senhores em lanças”,
invectiva Amós. O castigo espera Nínive e tôda a Assíria
será destruída, canta Nahum. Antônio Francisco, em sua
miséria, rebela-se contra os poderosos e mostra-lhes o efé¬
mero de suas vaidades. Contudo sua fé nos destinos do
homem não se abala, e, pela boca dè Habacuc, proclama:
“Mas a vós eu canto, Deus grande, em salmos”.
“As barbas barrocas de uns, planejadas pelo vento que
corre das Gerais, lembram serpentes vingativas, a se eno¬
velarem; no rosto glabro de outros, a sabedoria ganha nova
majestade; e os doze, em assembleia meditativa, robustos (

e que os devotos vão cubiçosamente lenhando



não obstante a fragilidade do saponito em que se moldaram
os doze
consideram o estado de negócios do homem, a turbação cres¬
cente das amas, e reprovam, e advertem. Onde mais po¬
São Simão Stock, Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará.
deríamos conceber reunião igual, senão em terra mineira,
que é o parodoxo mesmo, tão mística que transforma em
"VIDA B ARTE DO ALEIJADINHO" 43

alfaiais e púlpitos e genuflexórios a febre grosseira do dia¬


mante, do ouro e das pedras de côr? São mineiros, sim,
êsses profetas. Mineiros na patética e concentrada postura
em que os armou o mineiro Aleijadinho; mineiros na visão
ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e ane¬
los; mineiros no julgar (friamente e no curar com bálsamos;
na iluminação íntima; sim, mineiros cie certo e melancó¬
licos”, diz Carlos Drummond de Andrade.
Finda o século XVIII —
. o ouro, os diamantes, a febre
de construções, a agitação, rivalidades, violência e fé grair
diloqúente. Tôda a região adormece em decadência e só
por viril inconformismo ainda se permite iniciativas maiores
que, como um eco do passado, aqui e ali persistem. Termina¬
dos os profetas, executa, ainda, Antônio Francisco por volta
de 1806, as sacras de prata e os relicários da capela do Se¬
nhor Bom Jesus. Trabalha, depois, na sôbreporta da Matriz
de Congonhas do Campo e, a seguir, é chamado para enta¬
lhar o allar-mór da capela carmelita de Sabará, que não
chega a executar por ter sido julgada exorbitante a remune¬
ração que pede.
V,elho e cansado, já quase não pode mais trabalhar, mal
podendo mover-se. Em 1810 desenha seu último projeto
arquitetônico para o nôvo frontespício da Matriz de Sto. An¬
tônio de Tiradentes e, ao mesmo, tempo, executar quatro an¬
jos de andor para a Matriz de N. S. do Pilar de Ouro Prêto.
Recolhendo-se a esta povoação, auxilia seu discípulo Justi-
no na fábrica dos retábulos da Capela de N. S. do Carmo.
Demora-se por algum tempo no casarão contíguo a esta ca¬
pela, só e abandonado de todos. Quase cego, como relata
Bretãs, c amargurado, acrescenta aos retábulos dois baixo-
relêvos cujas inscrições correspondem a seus padecimen¬
tos: “Mutilado, enviaram-no ao cárcere. Satanás saiu da pre¬
sença do Senhor e feriu a Job com terrível chaga, desde
a planta dos pés até o alto da cabeça”.
Aproxima-se a noite do aritsta. As minas, exauridas,
mostram nas encostas dos morros, suas escuras bocas va¬
zias. Encerrado estava o primeiro ciclo da civilização bra¬
sileira e o surto extraordinário das Gerais. Fogem as po¬
pulações para o interior, espalhando-se pelas matas e so-
cavões, em busca de uma agricultura de subsistência que
por todo um século conservaria a região em longoi letargo.
Antônio Francisco recolhe-se à casa de sua nora Joana
onde, entrevado e cada vez suportando maiores padeci-
44 PROF. SILVIO C. DE VASCONCELOS

mentos, implora ao Senhor que “sôbre êle pusesse seus


divinos pés”.
“Aos 8 dias de novembro de 1814, faleceu Antônio
Francisco, pardo, solteiro, de setenta e seis anos, com todos
os sacramentos, encomendado e sepultado em cova da Bôa
Morte, da Matriz de N. S. da Conceição de Antônio.

CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO

Professora Maria Helena Brancante


da Universidade de São Paulo e Ceramista.
ENCONTRO EM ROMA

Saída marítima
— 30/12/71 com Enrico “C”
Nesta palestra sôbre cerâmica no Brasil antigo vamos limitar
nosso comentário às louças de uso na sociedade colonial, desde a
Saída aérea
— 9/1/71 com a VARIG descoberta até a abertura dos portos às nações amigas em 1808,
A insuficiência de dados conhecidos foi justamente o motivo que
nos levou a escolher êsse periodo e assim tentar devassar o mistério
que ainda o envolve, procurando recompor em parte o ambiente de
Incluindo interessantes roteiros opcionais uma sociedade que dava seus primeiros passos. A cerâmica indígena
pré-cabralina não entra neste estudo por constituir mais um capítulo
Consulte a CIT — Companhia Italiana de Turismo da archeologia propriamente dita e por não se fazer presente nos
usos e costumes das populações colonizadoras de nossa terra. Abste¬
mo-nos também de comentar a produção local, que certamente exis¬
Av. São Luiz, 30
— Tels: 257-0128 — 1723
— 2803 tia anónima, apenas com uma fulgurante referência. Não deixamos, no
•entanto, de consignar desde os primórdios de nossa formação, a flo¬
ração exiplêndida da imaginária tanto nas terras de Piratininga

EMBRATUR 184/S8 - CATEGORIA A como em outros recantos pátrios e revelar uma arte expontânea e
vigorosa e o alto grau de inspiração e maestria dos santeiros locais
mo manuseio da argila. Sôbre êste tópico já tiveram os senhores a
oportunidade de ouvir, neste mesmo recinto, as considerações eru¬
ditas e brilhantes do acadêmico Oliveira Ribeiro Netto e de D. Cle¬
mente da Silva Nigra, diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia,
duas indiscutíveis autoridades na matéria.
Conquanto o mundo quinhentista e seiscentista fôsse de difícil
e morosa intercomunicação o fato surpreendente é de que mesmo
nas paragens mais distantes como as das índias Ocidentais, ou seja,
nesta América recém descoberta, e mais particularmente no Brasil,
proliferavam mercadorias de tôdas as partes do mundo. As pançu¬
das caravelas, carracas e. naus, cruzavam o oceano em ativa faina
X

46 PROF.a MARIA HELENA BRANCANTE CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO 47

mercantil e os pavilhões lusos sobretudo, castelhanos, flamengos, Seguiremos, pois, o roteiro traçado que obedece à ordem crono¬
gauleses e ingleses revezavam-se no escambo lícito e às vêzes clan¬ lógica das referências históricas começando pelo estudo da famosa
destino com os núcleos já estabelecidos nestes novos territórios. louça da índia. Sabemos que no século XVI o norte primava pela
É de notar-se que desde os primórdios a importação não se ca- opulência como diz Oliveira Vianna nas “Populações Meridionais do
racterizava tão somente por artigos de primeira necessidade, mas Brasil”: “os senhores rurais de Pernambuco eram os mais esplên¬
também por mercancias de luxo, e já representávamos sem dúvida didos súditos dei Rey em tôda sua Monarchia”. Confirma essa citação
um centro de consumo apreciável nessas primeiras centúrias de nossa outra de um mercador florentino Felipe Sassetti que em 1578 escrevia
formação. Os cronistas da época já assinalavam a presença de arti¬ de Lisboa contando: “as maravilhas do Brasil onde se encontra Feli¬
gos vários assim como também os inventários paulistas, apesar de pe Cavalcanti fundador de uma grande dinastia por seu casamento
aparentemente singelos, são os testemunhos eloquentes da profusão com uma filha de Jeronymo de Albuquerque, seu patrício, réfugo em
de mercadorias que fazem pressupor na colónia que então se for¬ Portugal por desafeto aos Médicos súbitamente lançado à opulência,
mava uma verdadeira feira de alfaias. Dir-se-ia um basar no qual onde tem engenhos de assucar, grande estado, muitos págens e cava¬
tanto a elegante local como os fidalgos europeus que aqui vinham los, gastando por ano mais de 1000 escudos”. Segundo o profundo
podiam satisfazer aos requintes mais apurados. São panos de Ruão, sociólogo patrício Gilberto Freyre (“Casa Grande e Senzala”) “o
de Flandres, Saragossa, Portalegre, canequins da índia, cambraias de brasileiro do litoral de Pernambuco e do Recôncavo entrou imedia¬
(Qlanda, chapins de Valença, rendas e espelhos da Veneza, estanhos tamente no gôzo de tôdas as vantagens que na Europa só as cortes
provavelmente de Nuremberg ou Cornwall e louças da índia, Portu¬ requintadas conheceram no século XVI”, e cita entre outros produ¬
gal, Espanha e Holanda. tos que o brasileiro importava, porcelana da China, o que •represen¬
Iremos, pois, procurar estabelecer quais as louças que foram de tava realmente um atestado de opulência, pois na Europa quinhentis¬
uso no Brasil colónia e a sua procedência. Esta conferência obede¬
cendo ao cunho de ordem cultural e didático que anima o Instituto
Histórico e geográfico Guarujá-Bertioga, irá procurar esclarecer o
estudioso e ajudá-lo a conhecer os tipos dessa louça antiga, suas pro¬
et Dezobry

ta (Diccionaire General des Lettres et des Beau Arts” de Bachelot
1872) o uso de pratos de cerâmica era restrito che¬
gando mesmo a ser apenas de uso dos “nobres e das famílias ricas”.
Qual seria a relação entre a louça da índia tantas vêzes citada e a
cedências várias e sobretudo os seus caracteristicos de molde a tornar porcelana da China? Esclarece-nos em meados do século XVI, Frei
possível uma eventual identificação. Quanto aos dois primeiros sé¬ Luiz de Souza na ““Vida de D. Frei Bartholomeu dos Mártires” essa
culos, o quinhentista e o seiscentista, infelizmente muito pouco exis¬ loiça de barro vem da índia fazem-se na China”. A primeira refe¬
te de peças recuperadas entre nós tanto nos Museus como no acervo rência que se nos depara nas crónicas é a mais nobilitante, pois se
dos nossos colecionadores. Procederemos, pois, a um esforço para trata da porcelana da China. Ela se encontra no “Tratado de Terra
divulgar informes, parte baseado em referências históricas e parte em e Gente do Brasil” escrito pelo padre Fernão Cardim, da Companhia
elementos existentes fora e dentro do pais a fim de fornecer os meios de Jesus, quando de sua visita pela Bahia em 1583, juntamente com o
para alcançarmos aquêle escopo. Vamos pois juntos voltar nossos Padre Christo vam Gouveia. Diz êle; “havia quem tivesse bom servi¬
olhos para o passado e procurarmos seguir a cerâmica na sua traje¬ ço de porcelana da índia e prata”. Mais adiante, ao relatar sua visita
tória brilhante, sonora e colorida pelas terras de Santa Cruz. à aldeia de S. Matheus perto de Porto Seguro, diz: “eis que do alto de
Vamos compulsar as fôlhas velhas e rendadas dos alfarrabios, li¬ um monte desce uma índia, vestida como ellas costumavam, com uma
vros pitorescos de crónicas, catálogos de coleções e, tratados especia¬ porcellana da índia cheia de queijadinhas de assucar, com um grande
lizados. Vamos penetrar na intimidade dos lares urbanos rurais, es¬ púcaro de água fria, dizendo que aquillo mandava seu Senhor ao Pa¬
quadrinhar prateleiras de monásticas e solarengas ucharias, abrir ar¬ dre Joseph (Anchieta)”. Eis pois que vemos emocionados ressurgir
mários bolorentos, arcas cheirosas de pau santo, bufetes de jacarandá a figura de José de Anchieta nessa primeira referência à cerâmica:
e espanar a poeira densa ique encobre aos nossos olhos todos o bri¬ essa grande sombra humilde que arrastou sua sotaina negra de Porto
lho das baixelas de antanho. E nessa pesquisa, nessa peregrinação Seguro a Itanhaem, semeando amor e harmonia, deixando também
pelo passado deparamos com a presença de louças da índia, de Lis¬ nas areias da Bertioga o rastro de suas sandálias e no coração dêste
boa, do Reyno e da Talaveira, com azulejos de Portugal e Holanda e Instituto a lembrança luminosa de sua passagem. Mais tarde, em
também com peças de um pioneiro que embora quase desconhecido 1599, na Vila de São Paulo de Piratininga, a louça se fez presente
foi o primeiro a fabricar porcelana do Brasil: João Manso Pereira. no inventário de Maria Gonçalves onde consta entre vários objetos:
48 PROE.a MARIA HELENA BRANCANTE

“três porcelanas da índia e 2 malgas” avaliadas em 250 réis. Essa


Maria Gonçalves, cujo inventário foi o primeiro a citar porcelana,
era mulher de Clemente Alvares, pessoa ilustre e sócio de Affonso
Sardinha na primeira mineração do Brasil nas lavras do Jaraguá.
Por êsses exemplos podemos ver que no panorama quinhentista
a porcelana da China alcunhada de louça ou porcelana da índia es¬
palhava-se desde a Capitania de São Vicente até a de Pernambuco. Va¬
mos agora ver que porcelana seria essa citada na época, qual o seu
tipo e que características as determinava. Na China dominava então
a Dinastia Ming que tão belas ,e famosas louças deu ao mundo, sendo
seus últimos Imperadores Cheng-Tê (1506-1521), Kia'tsing que reinou
de 1522 a 1566 e Wan-li até 1620. Tinham essas louças como princi¬
pal característica o emprego do azul e branco, embora excepcional-
mente fôsse usada a policromia também chamada das cinco côres
(vermelho, amarelo, turquez, verde e preto). No período que vai
de 1522 até 1566, ela se caracterizava pelo tom brilhante e violáceo
de seus azuis. (Q Imperador sendo taoísta fervoroso, fez introduzir
Prato de Antônio de Albuquer¬
que. Porcelana da China já da
dinastia Tsing sob influência da
dinastia Ming.
Prato de faiança portuguêsa
Coimbra com as armas da con¬
fraria de Santa Isabel.

no desenho das porcelanas além da decoração clássica de dragões e
folhagens, os simbolos da longevidade e os oito imortais do taoísmo,
que formam os temas principais da decoração da época.
Outro aspecto importante da dinastia Ming é o aparecimento do
Enien-hao” ou marcas de origem, sendo raras as peças que não as
apresentavam. Foi então que começou a exportação para o Ociden¬
te e surgem as primeiras encomendas com disticos, siglas ou escu¬
dos de origem européia.
As mais antigas encomendas de que se tinha notícia até 1950
eram três peças: duais escudelas do ano de 1541 de Pero de Farija,
uma de coleção particular portuguêsa e outra pertencente ao Mu¬
seu Duca di Martini de Nápoles, e ainda uma garrafa do ano de
1557 de Jorge Anriques que se encontra no “Victoria and Albert Mu-
"seum” em Londres.
Porém, em 1950, foi revelada a presença de mais um exemplar
ainda anterior a êsses: um gomil ostentando as armas pessoais del
Rey D. Manoel (1469 a 1521) : a famosa esfera armilar, e portanto
anterior a 1521, peça essa que pertence à coleção portuguêsa Ulmar
e que foi objeto de minucioso estudo e comunicação aos ceramógra-
fos por parte de Eldino Brancante conforme publicação na revista
“Céramique” n.° 1, pág. 17, edição da Academia Internacional de
Cerâmica de Genebra.
Constatamos, portanto, iq)ue as primeiras peças encomeifdadas
ao Oriente foram de portugueses, o que se explica facilmente pois Mallga quinhentista, Miien-hao
Prato de Talavera, século XVIII. idêntico aogomil de D. Manoel.
era Portugal então o maior centro consumidor e distribuidor dos com brazão da Ordem de
produtos orientais, e o foi até os princípios do século XVII quando S. Francisco.
a Holanda lhe tomou a dianteira.
CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO 51

As porcelanas do último período Ming, ou seja, o do Imperador


Wan-li, que vai até 1620, constituem as principais louças de expor¬
tação da China em tôda a dinastia Ming. Além dos motivos clássi¬
cos aparecem já paisagens, cenas com personagens, plantas aquáti¬
cas, pássaros, corças pintadas, desenhos êsses com os contornos tra¬
çados em azul mais escuro (Embora já apresentem sinais de deca¬
dência, os desenhos ainda são vigorosos e espontâneos). Em resu¬
mo, tôdas essas louças referidas quer pelos autores contemporâneos,
quer pelos inventários, apresentam aquelas características. O que é
de admirar é de ser assinalada no Brasil a presença de exemplares
que no século XVI eram considerados preciosidades e faziam parte
das coleções reais do Velho Mundo.
Existe aqui em São Paulo, na coleção do ilustre pesquisador Dr.
José Gonçalves, uma malga dêsse periodo quinhentista, apresentando
um nien-hao idêntico ao do gomil de D. Manoel relíquia não só
artística como quiçá histórica, pois talvéz fôsse esta uma das malgas
que pertenceram a Maria Gonçalves! A semelhança dos nomes é
mera coincidência.
Ao entreabrir-se o século XVII se nos depara ao primeiro quar¬
tel maior abundância de louças da índia nos inventários coloniais.
Vemos surgir das páginas esmaecidas dos inventários seiscen¬
tistas como por efeito da magia malgas, covilhetes, escudelas, palan-
gans, pratos covos e meãos, jarros, púcaros e bojudos boiões numa
profusão movimentada e colorida. Entre diversos arrolamentos seis¬
centistas destaca-se um bastante pitoresco: em 1603, em São Paulo,
são dadas em penhor 6 porcelanas da índia por Diogo Martins Ma¬
chuca. Em 1644 no testamento de Gaspar Diaz Barboza na Capita¬
nia de Sergipe del Rey (sic) encontramos 15 porcelanas da índia
avaliadas em l$200 e na partilha de Manoel da Motta na cidade de
Salvador da Bahya uma palangana, sendo estas as duas únicas cita¬
ções conhecidas até o momento, de inventários no norte do pais.
Já em meados do século começam a aparecer serviços armoria¬
dos, ainda em azul e branco, como o de Antonio de Albuquerquer
( + 1669) capitão-mór e governador do Maranhão, filho do famoso
Jeronymo de Albuquerque, o Maranhão, assim chamado por suas vi¬
tórias contra os francêses naquela região, e o de D. Rodrigo da Cos¬
ta (1657-1722), capitão-general da Ilha da Madeira e do Estado do
Brasil.
Além dessas peças, ainda sob a influência da dinastia Ming,
isto é, decoradas em azul e branco, encontramos já novas caracte-
risticas na dinastia seguinte pois tôda a dinastia T’sing é dominada
pelo gosto da policromia, de uma riqueza até então desconhecida. A
maioria dos esmaltes são fortes e transparentes. O espírito de ce¬
ramista é característico, êle quer impor a decoração, não se con-
52 PROr.^ MARIA HELENA BRAN CANTE

tenta Inais em sublinhar a forma. A porcelana se torna um mero


pretexto para se pintar uma paisagem ou uma história inteira de
uma fantasia esplendorosa. As formas das peças também se am¬
pliam e continuam vigorosas e equilibradas, formando um tipo bem
definido e podc-sc dizer que foi alcançada a perfeição da técnica.
A arte cerâmica reúne três elementos fundamentais: a técnica,,
a forma e a decoração. Neste periodo, no entanto, o decorador so¬
brepuja o oleiro e age diante da superficie alva do biscuit como
um pintor diante da tela, e o seu pincel encontra um campo livre
onde traduzir sua sensibilidade mística e seu simbolismo atávico.
A produção losing foi extremamente abundante e bastante di¬
fundida na Europa. O Imperador Kang-hi, o mais famoso dessa
dinastia, reinou de 1662 a 1722 e se interessou pessoalmente pela
arte cerâmica, o que explica o seu grande impulso.
No fim do século XVII, a intensificação do comércio com o
Oriente e a enorme procura pelos produtos cerâmicos chineses fez
com que essa louça de exportação perdesse rcalmente seu cunho
tradicional c viesse a sofrer quase integralmente a influência do
gôsto europeu. Assim o século XVIII caracteriza-se sobretudo pela
produção da louça conhecida e classificada como Companhia das Gomil de D. Manoel
índias. Devemos explicar que a terminologia de louça da índia (1469 - 1521)
representa a designação que os portugueses davam e deram a todos
produtos cerâmicos provenientes da China, sem a distinção que
Vaso de Talavera, com brazão
da ordem do Carmo.
hoje se faz entre uma peça de “porcelana da China” c uma da
“Companhia das índias”. Tudo era louça ou porcelana da índia!
Hoje “Companhia das índias” é a denominação adotada para os
produtos tipicamente de exportação e que são inferiores àqueles
destinados ao mercado interno chinês. Tanto era assim que tal¬
vez movido por um sentimento de orgulho de suas produções, o
oleiro oriental, com raríssimas excepções, não punha nessa louça
marcas de origem ou “nien-haos”. Ê preciso saber que a China
desde idades remotas exportava suas porcelanas, porém, ciosa de
sua arte, reserva para o Imperador ou mandarins o que de melhor
produzia. (0; Padre Herraba, missionário português e um dos pri¬
meiros a pisar na China, diz nas suas Crónicas que a porcelana de
qualidade era expressamente proibida de ser exportada sob pena de
morte aos infratores. Remetiam para a índia, Pérsia e Oriente Mé¬
dio e já desde essa época remota confeccionavam peças ao gôsto da¬
quelas paragens como por exemplo, a malga já citada do Dr. José
Gonçalves, quinhentista, é um Ming tendo entre os motivos da de¬ Travessa de Luiz Pinto de
coração um elefante, animal inexistente na China. A forma do go¬ Souza Coutinho, l.° Visconde
mil de D. Manoel obedecia aos gomíes em uso na Ásia Menor. Po¬ Prato de louça de Lisboa. de Balsemão.
rém, êsses produtos embora de comércio externo eram de inexidivel
qualidade com referência à pasta e aos esmaltes o que já não ocorre
CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO 55

no século XVIII com a avalanche de exportação em série para sa¬


tisfazer as demandas ocidentais. Nêsse século já não é mais Portu¬
gal somente a distribuir êsses produtos. Outras Companhias das
índias, a Holandesa, Francesa, Inglêsa, Dinamarquêsa, etc. entram
a concorrer no tráfico das especiarias. Em 1734 só uma náu levou
para a Hollanda 800.000 xícaras de café e 300.000 de chá, algarismos
êsses surpreendentes não só quanto à quantidade de porcelana como
quanto à revelação do elevadíssimo consumo de café na época. Esse
período é representado em Portugal e no Brasil, por uma profusão de
louças armoriadas. São vice-reis, governadores, titulares, fidalgos,
prelados, senhores de engenho que encomendavam êsses aparelhos
para adornar suas mesas faustosas. De um desses fidalgos de grande
estirpe D. Bernardo de Lorena e Silveira, Conde dos Sarzedos, que
foi capitão-general de Minas Gerais e governador de São Paulo, co¬
nhecemos três serviços diferentes, armonizados, de grande beleza.
Estas caracteristicas gerais dominantes, seguem pelo século
XIX c a exportação em massa dessa louça se processa até 1834,
qnando se extinguem as Companhias das índias Ocidentais.

No século XVIII, portanto, houve alterações sensíveis na técni¬
ca, na forma e na decoração. Quanto à técnica, a louça é, via de re¬
gra, de qualidade inferior, a pasta é grossa e impura, granulada o
mór das vêzes, o que lhe valeu o nome de pasta de arroz, de tom
cinza azulado. Quanto às formas, além daquelas tradicionalmente
chinesas apareceram outras copiadas das louças européias em que
são reproduzidos modelos de gênero barroco e rococó.
.Quanto à decoração, as cercaduras ora obedecem ao gôsto euro¬
peu, como, por exemplo, as flores de liz, óra acompanham a simbo-
logia chinesa, e êsses motivos são empregados separados, alternados
e conjuntamente. Os centros dos pratos ou das peças, óra são preen¬
chidos com motivos ocidentais, escudos, brazões, siglas, reproduções
de estampas e quadros da pintura contemporânea abrangendo mo¬
tivos sacros e seculares, gênero êste conhecido como “louça jesuí¬
tica”, e óra mantém a decoração tradicional chincza.
A paleta do esmaltes chineses é empregada com suas cromias
clássicas notando-se, porém, o abuso do emprego do ouro sòbre o
esmalte, o que faz com que o desenho das siglas e de outros ornatos
não ofereçam a mesma resistência à ação do tempo. Igualmente
são produzidos e expostados em grande quantidade, serviços de de¬
coração genuinamente chinesa como o branco e azul, tipo conhe¬
cido por Macau, assim como serviços das famàlias verde, rosa e os
tipos mandarim e Batavia, também conhecido como chocolate. Êste
em resumo é o panorama da louça da índia no período colonial.
Porém, a nossa colónia não se limitou ao uso dessa louça da
índia.
56 PROF.* MARIA HELENA BRANCANTE CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO 57

Passemos a seguir à segunda referência cronológica revelada pe¬ mo já no fim do século a adoção de outros motivos de inspiração
los inventários: as louças de Portugal. barroca ou francesa, ou puramente local como nas “rendas de
Passemos pois do Oriente ao Ocidente e fato estranho, embora Coimbra”.
muito mais perto de nós, pelo sangue e pela distância, encontramos No entanto, apesar dêsses autores darem Lisboa como centro
maioras dificuldades em definir as louças que a mãe pátria tirava mais antigo determinável de fabrico de louça, sabemos que no Pôr-
de seu solo para o uso de seus filhos. Muito ponco é conhecido da to, ainda em etmpo dos Felipes, havia uma olaria chamada de “Santo
arte oleira em Portugal no século XVI e até mesmo no século XVII. Ildefonso” que pertencia a um Domingos de Oliveira. Existem do¬
Apenas algumas referências esparsas nos permitem tatear e formu¬ cumentos oficiais como por exemplo um pedido de apressamento de
lar hipóteses. No quinhentismo, Portugal já possuia uma indústria terras feito à Câmara do Pôrto, em 13 de janeiro de 1674, por êsse
cerâmica florescente como se depreende do Sumário de Lisboa de Domingos de Oliveira e que dá sua profissão como a de oleiro.
1554, onde Christovão (Rodriguez de Oliveira diz: “que existiam só Outro documento importante é o Regimento de 1621, que regulam&jç
em Lisboa 206 oleiros, 32 ladrilheiros ou azulejadores e 47 debuxa- tava a procissão de Corpus Christi na cidade do Pôrto, onde os ofí¬
dores ou pintores”. Como porém, eram essas faianças de 1500? cios eram representados pôr figuras alegóricas. Diz êsse regimento
Elas se inspiravam diretamente nas majólicas italianas de Veneza e que os oleiros e alquifadores (alquilar) representavam a “figura de
Piza e na de Menizes, da Espanha, policromas, quase sempre recor¬ Nossa Senhora fugindo para o Egito com São José e dois anjos”.
tadas, com cercaduras ao gôsto italiano, renascentista, a mór das
vê- Não temos, infelizmente, a menor idéia de como seria essa louça
zes representando serafins, excetuando as louças totalmente bran¬ portuense do século XVII. Sabemos apenas que ela existiu.
cas que ostentavam apenas ao centro como motivo decorativo bra¬ Apesar do século XVI não nos ter fornecido referência alguma
sões de armas, êsse quinhentismo cerâmico lusitano não há referên¬ sôbre a existência dessa louça portuguesa no Brasil, ela certamente
cias à peças de inspiração chinesa, muito embora Portugal as im¬ aqui viera, pois nada mais natural do que os fidalgos que aportassem
portasse e as distribuísse. Só no século seguinte é que na colónia trouxessem em suas canastras baixelas de louça local para
sofre de
maneira marcada e decisiva essa influência e se inspira macissa- seu uso, como também os que aqui viviam e que, como sabemos, im¬
mente nos motivos orientais, de tal forma que passa pràticamente portavam louças da índia, mandassem vir as faianças metropolita¬
a só usar o azul e branco, excepcionalmente a côr de vinho ou nas. Porém, ao entreabrir-se o século XVII, o panorama cerâmico
ama¬
relo em oposição à policromia do século anterior. Sabemos já no Brasil adquire um nôvo aspecto. Além da louça da índia que,
com
mais segurança que a louçaria dêsse século estava bastante difundi¬ como vimos, sempre se fazia presente, já se consigna louça de Lis¬
da. Em 1619 quando da entrada de Felipe III em Portugal, foi cons- boa desde 1623, nos inventários paulistas, preciosos repositórios de
truido um arco do triunfo para recebê-lo, ornamentado com “faian¬ informações, isto é, louça azul e branca, quase sempre com desenhos
ças do pais”. O Livro das Grandezas de Lisboa de 1620, diz Nicolau de aranhões ou miúdos. São dessa época várias peças brazonadas
de Oliveira que em “Lisboa existiam oito fornos de louça vidrada, que estão incluídas nessa classificação, tais como a de D. Rodrigo
28 de louça de Veneza e 13 olarias de azulejos”. José de Queiroz da Costa (aranhões) a de Gaspar Pacheco (des. miúdo) falecido em
d’Reynaldo dos Santos, entre outros, em Portugal, procuraram
ana¬ 1657, senhor do engenho de Guaná, em Pernambuco, e um boião
lisar a fundo os característicos dêsse período. O primeiro estabe¬ de Francisco Barreto de Menezes, também desenho miúdo, restaura¬
leceu uma regra clássica de identificação das louças dêsse século dor de Pernambuco, capitão-general e governador da Bahia (+ 1688),
segundo sua decoração, cujos desenhos se distinguem em
dois moti¬ fundador da Igreja de Guararapes, cuja estirpe se acha representada
vas: “os arranhões” e os “desenho miúdo”, ambos de inspiração neste recinto na pessoa de um seu descendente Pedro Oliveira Ri¬
chinesa. beiro Netto, além de uma tijela de D. Luiz Carneiro de Souza, Conde
Já Reynaldo dos Santos, não divergindo do mestre, dá, no en¬ da Ilha de Príncipe e neto de Luiz Carneiro, capitão-mór da Capi¬
tanto, nomes diversos à êstes motivos. Chama de “símbolos” tania de São Vicente, São Paulo, Bertioga no Estado do Brasil.
aos
“aranhões” e “paisagem” ao “desenho miúdo”. Isto não quer di¬ E nota curiosa, assinala-se desde 1614 nos inventários a pre¬
zer que não existissem peças brancas tendo áo centro um motivo sença de uma louça chamada do Reyno, que não nos foi possível
heráldico ou desenhos ao gôsto de Veneza. A libertação dessa in¬ até o momento definir exatamente sua procedência. Por elimina¬
fluência chinesa se processa pouco a pouco, ou seja, tanto na có¬ ção, verificamos que não se trata de louça chinesa, branca e azul,
pia mais ou menos livre daqueles mesmos
símbolos ou paisagens có- pois sua avaliação é demasiado baixo para tal; não é louça de Hol-
58 PROF* MARIA HELENA BRANCANTE CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO 59

landa, pois não só a ocupação holandeza no Brasil data de co-


1624, que usava. Vem a seguir a de Miragaia fundada em 1775, por João
nio também cm 1656 fôra proibida todo comércio da colónia com os da Rocha Soares, o mesmo que assinara o requerimento à Junta
holandeses; não é louça espanhola, pois como veremos adiante, esta de Comércio pedindo isenção de impostos de entrada na América.
se acha bem caracterizada. Só nos resta a hipótese de ser ela real- No primeiro quartel do século XIX seu sobrinho e sucessor de seu
mente portuguesa, porém distinta da de Lisboa, o que nos deixa a intento. A policromia dessa manufatura comportava o amarelo, azul,
possibilidade de ser a louça do Pôrto. Esta louça do Reyno é a verde, vinho e alaranjado sôbre esmalte lácteo e homogéneo. Outra
mais abundante nos inventários, a mais barata e a encontramos as¬ não menos importante é a Fábrida do Cavaquinho, fundada em
sinalada ora em branco, ora pintada. No século XVIII, as louças 1789 por Domingos Vandelli. Essa fábrica pertencera anteriormen-
lusitanas já são diferentes no seu aspecto c sente-se a influência te a João Bernardes Guedes e era conhecida pelo nome de Fábrica
francesa especialmente a de Rouen. Aparecem igualmente as legen¬ do Vale dos Amores. Vandelli alterou sua estrutura e passa a fa¬
das e dísticos ao gôsto português local. São frases amorosas, ga¬ bricar pó de pedra, sendo o primeiro a introduzir êsse tipo de lou¬
lantes, alusões patrióticas, recordações de vida monástica. Desapa¬ ça na metrópole.
rece quase totalmente a inspiração chinesa, surge o barroco e o Em 1793 Vandelli pede à Junta isenção de impdktos na entrada
típico local. Há um grande desenvolvimento em tôda a indústria do Brasil, o que faz pressupor que no Brasil, ainda no século XVIII,
cerâmica, graças à proteção que lhe devotou o Marques de Pombal. tenhamos conhecido louças de pó de pedra de fabrico português.
Surgem os nomes de fabricantes, marcas de fábricas, designações Além de Lisboa c Pôrto temos ainda Coimbra e Vianna de Castello,
Rato, como importantes centros cerâmicos portugueses, especialmente o últi¬
de locais. Em Lisboa, encontramos a famosa Real Fábrica do
de tôdas a mais importante e estabelecida por conta do Estado em mo, com a importante Fábrica de Darque fundada m 1774. A bela
1767, sendo seu primeiro mestre Tomás Brunetto, natural de Turin. faiança, de Darque é leve, bem cosida, de boas formas, coberta com
Estas louças eram em geral, azul e branca, porém encontramos um esmalte láceo e brilhante. Possui uma policromia intensa e re¬
muitas peças totalmente brancas apresentando relêvos ao gôsto ita¬ luzente. A faiança ai atingiu ao alto grau de perfeição. Além da
liano, o que se explica facilmente devido ao elevado número de mes¬ decoração vulgar de flores e ornatos criou um tipo decorativo de
tres italianos que ai trabalhavam e mais parecendo uma peça de aspecto cativante que a caracteriza, onde está retratada a feição re¬
ourivesaria do que propriamente louça. gional, a jovialidade encantadora da capital minhota c de quando
Além dessa temos a Real Fábrica da Bica do Sapato, fundada em vez retorna às chinezices. Portugal, no século XVIII, exportava
aparentemente em 1796, por Luiz Soares Henriques. Parece, porém, pois em grande escala para o Brasil como pudemos ver pela quan¬
que esta fábrica já existia no século anterior, pois são conhecidos tidade de pedidos de isenção de impostos de entrada nos nossos
dois boiões marcados, com data de 1651 e que apresentam as mes¬ portos.
mas caracteristicas das peças dessa fábrica no século XVIII. Essa Passemos agora à terceira referência à louças constantes dos
louça sapateira, como é conhecida em Portugal, apresenta entre ou¬ inventários: Talaveira de la Reyna. É provável que desde o quinhen-
tros todos os característicos de decoração D. Maria I c empregava tismo ela aqui aportasse, embora suas primeiras referências datem
as cores verde, amarelo, alaranjado e azul, sob vidrado ligeiramente de 1616, no inventário de Izabel da Cunha na Vila de São Paulo, que
anilado. além de citar pratos de Talavera refere-se a tijclas da mesma laia,
Sabemos que no Pôrto, no seiscentismo, as fábricas existentes brancas e lavradas. Diz Garcia Fernandez cm 1536: “em Talavera ha-
“eram bastantes e proverem uma grande parte do reino e de suas •ccse vidrado blanco, verde, azul, jaspeado y oiros colores que os lo

Agosti¬


conquistas” (Descrição topográfica e histórica do Pôrto mejor que en Castilla se habra y de cllo se provec Castilla, Andalucia,
nho Rabcllo da Costa 1789). Portugal y se passa a las índias”. Essas índias eramj as índias Oci¬
|0)s fabricantes portuenses como aliás todos os outros do pais, dentais, ou seja, a América. Portuga1., pois, no século XVI importava
contavam com o mercado do Brasil, e em 1793 João da Rocha e ou¬ de Talavera loiças c azulejos segundo Reynaldo dos Santos e Santos
tros fabricantes de louça fina estabelecidos no Pôrto, requereram Simões. Vejamos o que caracterizava Talavera em seu primeiro pe¬
à Junta de Comércio que suas manufaturas fôssem isentas de im¬ ríodo: pratos grandes e fundos, pintados em azul sôbre fundo cre¬
postos na entrada dos portos da América. Ai a mais importante é moso, com sanefas ou festões nas bordas representando na maioria
a de Massarelos. Fúndada em 1738, 29 anos portanto antes da do das vêzcs mariposas, e ao centro animais em geral leões, rompantes,
iRato. Ela obteve o titulo de Real o que explica a marca R ou RF garças, cegonhas, pássaros; êstes pratos possuem marcada influência
»
60 PR 01'.« MARIA HELENA BRAN CANTE
CERÂMICA NO BRASIL ANTIGO 61
mudéjar. Máis tarde aparecem Cenas de figuras; paisagens, flores. As
mariposas das bordas são substituídas por folhagens, porém, sempre
vel que êle tenha ido além das experiências dos camafeus, fabricando
porcelana pois um famoso manual de marcas de cerâmica, o
em azul e branco, além das representações de brazões de fidalgos e
“Zimnermann, cita a marca de João Manso, “Ilha Grande”, na seção
escudos monásticos. No século XVIII, começa a surgir a policromia
de Portugal. A única maneira de poder deslindar êsse mistério é des¬
paralelamente com o azul e branco, as figuras humanas substituem
cobrir um exemplar do “Paladio Português” de 1796 onde João Manso
os animais, porém, o desenho apresenta um aspecto caricaturesco.
publicou suas memórias. Faleceu em Angra dos Reis no completo
É êste o período áureo de Talavera.
ostracismo e como última vontade pediu para ser enterrado na porta
De louça holandesa de Delft ou outras procedências pouco se fa¬
da Igreja afim de ser pisado por quantos transpusessem aquele um¬
la. Mesmo em Pernambuco onde elas deveriam figurar nas mesas do
bral e pagar assim algum pecado de orgulho que porventura tivesse
Palácio de Friburgo ou de senhores de engenho. É possível que ela
esteja encluida em “Tôda a sorte de louçaria”. que Pernambuco im¬
tido em vida.
portava, segundo a citação de Ambrosio Fernandez Brandão nos Em conclusão, resumindo a história do reinado alvo ou multicor
“Diálogos das Grandezas do Brasil”. Mais positivo é Oliveira Vianna da argila através três séculos de colónia, temos sob o aspecto técnico
no seu livro “Pernambuco e seu desenvolvimento” (pág. 89) quando a seguinte classificação, abstraída a produção indígena e a utilitária.
afirma que nó Palácio de Friburgo predominavam as coisas do Brasil
“no entanto a Hollanda far-se-ia representar nas faianças de Delft”.
—I Barro cosido decorado a frio que caractcriza o artesanato dos
santeiros locais.
Dessa origem também são conhecidos os azulejos recém-descobertos
do Claustro da Igreja de Santo Antonio de Recife e que formam ao

II a faiança branca, azul e branca, côr de vinho ou policroma que
caractcriza a produção ibérica e dos Países Baixos abrangendo
lado dos Portuguêses um escrínio precioso de arte iconográfica. So¬ a louça c a azulejaria.
bre a azulejaria há muito que dizer nesses três primeiros séculos.
Não só escritores nacionais como portuguêses se dedicaram a fun¬
do ao assunto de molde a nos proporcionar uma visão bastante pre¬
III
— A porcelana azul e branca ou policromia que distingue a pro¬
dução chinesa e as peças do fabrico de João Manso Pereira.
E que nos resta hoje no Brasil de tôdas essas louças que se rc-
cisa sôbre suas origens, suas influências e' sua difusão no Brasil.
vesaram nas mesas dos nossos ancestrais, acompanhando no âmago
Só nos resta agora dizer algumas palavras sôbre o nosso João
Muito pouco se sabe a seu respeito. do lar suas lutas, suas penas c suas alegrias? O que sobra para nossa
Manso Pereira e sua obra.
para o Rio onde, além de professor geração como testemunho material, como reminiscência afetiva ou co¬
Nasceu em Minas, veio mais tarde
mo elemento de estudo de um passado de três centúrias? Quanto
de latim, se dedicou a fundo ao estudo das ciências naturais. Entre
aos produtos de barro cosido representados pela imaginária, o patri¬
1790 e 1797 fêz várias consultas à Junta de Comércio sôbre a resul¬
mónio nosso é bastante numeroso c de alto valor artístico. A des¬
tado de suas investigações. Descobriu na Ilha do Governador uma peito da qualidade primária dêsse produto e de sua consequente fra¬
argila branca, a “tabatinga” que os chineses denominavam “noacbe”
gilidade, o carinho e o cuidado dispensados às imagens guardadas
especial para relêvo e com ela fêz vários camafeus de porcelana com
em nichos, oratórios e altares protegeram-nas da ação deletéria do
as efigies de D. Maria I. e D. Pedro III, D. João VI e D. Carlota Joa-
tempo. Quanto às faianças a azulejaria é igualmente abundante c
quina e os remeteu à Lisboa. Foram muito elogiados pela rainha,
bem preservada sobretudo a do século XVIII, que se desdobra em
que escreveu ao vice-rei (Conde de Rezende) dando ordens para que
cenas sacras e galantes pelos painéis magníficos nas paredes dos claus¬
fôsse prestado todo auxílio às suas experiências. Êstes camafeus
tros, igrejas e solares coloniais, dignificando a arte cerâmica lusa e
existem na Academia de Ciências de Lisboa (?).
também a de Flandrcs, esta recém descoberta.
Nada mais se sabe de positivo a seu respeito, muito embora exis¬
Em compensação, a louça ibérica conquanto importada em larga
tam referências à louça por êle fabricada. Diz Joaquim Manoel de
escala, sua friabilidade e seu uso constante foram os fatores que con¬
Macedo no Ano Bibliográfico Brasileiro que: “alguns dos mais consi¬
tribuíram para o seu desaparecimento no Brasil. InfcliznXçnte poucos
derados habitantes da cidade do Rio de Janeiro se desvaneciam de
exemplares são aqui conhecidos. Quanto aos produtos chineses em¬
possuir louça do país fabricada pelo célebre João Manso”. Também
bora raríssimos nos dois primeiros séculos, o nosso acervo histórico
Moreira de Azevedo cita: “Ao Rei D. João VI ofertou um aparêlho
é notável e provavelmente o mais rico c variado das Américas em
de porcelana e uma caixinha de sabão de barba que fabricara com
peças Companhias das índias. Tão numeroso e belo que causa admi¬
argila encontrada na Ilha do Governador”. Realmente é muito prová-
ração a estrangeiros. Há ainda pouco tempo, a diretora do Museu
62 PROFfi MARIA HELENA BRANCANTE

Guimet, de Paris, Exma. Sra. Daisy Lion Goldsmidt, uma das maiores
autoridades mundiais em cerâmica chinesa, mostrou-se tão surprêsa
que solicitou fotografias e detalhes que serviram para divulgar na
Europa extensos informes sôbre o acervo porcelânico no Brasil, em
artigo publicado no Cahiers de la Céramique n.° 7 e no último livro
dessa ilustre tratadista, “Les Poteries et Porcelaines Chinoises”.
iQuanto à porcelana que foi fabricada pelo brasileiro João Manso
Pereira, não temos conhecimento de nenhum exemplar no Brasil.
Antes de terminar desejamos expressar de público nossos agra¬
decimentos ao Património Histórico e Artístico Nacional, na pessoa do ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL
Sr. Germano Graesses, ao Dr. Emilio Cortet e ao Dr. Álvaro de Aguiar,
pela colaboração prestada referente aos dispositivos exibidos.
E aproveitamos a oportunidade para render duas homenagens.
Urna- ao saudoso historiador patrício Washington Luiz Pereira de
Dom Clemente Maria da Silva-Nigra
Souza, cujo espirito esclarecido tornou possível em grande parte êsse
estudo pela publicação dos inventários paulistas, salvando, assim da
destruição preciosos documentos, e outra ao Instituto Histórico e Entre as belas artes do Brasil Colonial, a escultura ocupa o cam¬
Geográfico Guarujá-Bertioga cujo esforço não se limita à preservação po mais vasto e mais generalizado. Desde os primeiros tempos da
de um património material, como seja, o Forte de São João da Bertio- fundação vilas e cidades na terra recém descoberta de Santa Cruz,
ga, baluarte quinhentista da civilização cristã nas areias vicentinas. a escultura aparece em pedra e madeira, em barro e prata, em chum¬
Almeja também, e mui particularmente uma outra finalidade, esta es¬ bo e marfim. Encontramos a escultura ligada à arquitetura, come¬
piritual, e à luz deste salão tão gentilmente cedido pelos que cultivam çando pela simples inscrição gravada na verga da porta principal da
o direito, vem. tentando exumar o nosso passado que se perde na pe- igreja nova de São Vicente em 1559, até nos ornamentos exuberantes
númbra mortiça e enfumacenta das candeias, das tochas e das velas... das fachadas de São Francisco na Bahia e Paraíba, na de Nossa Se¬
nhora da Guia em Cabedelo, de Santo Alexandre em Belém do Pará
e, finalmente, em tantas outras igrejas antigas do pais, nomeadamen¬
te nas construções evoluídas do Aleijadinho em. Minas Gerais. Vemos
molduras esculpidas em madeira engrandecer a modesta
pintura colonial, como nas sacristias de São Bento no Rio de Janeiro,
em Olinda e, sabemos que as melhores obras de prataria executadas
conforme os moldes talhados em madeira por famosos mestres escul¬
tores, como por exemplo os dois grandes lampadários da Campela-mór
da Igreja Abacial do Rio de Janeiro (1), os quais foram esculpidos
pelo maior escultor carioca, o mestre Valentim da Fonseca e Silva
que, em 1781 percebeu por êste trabalho 32$240 réis (2). Por fim,
encontramos a escultura como arte própria e quase independente na
decoração interna das igrejas coloniais, seja apenas uma simples ima¬
gem, ou então um altar com seu retábulo, ou finalmente um conjunto

1) Si'lva-Nigra, Os doi& grandes lampadários do Mosteiro- de São Bento do


Prato de José Mascarenhas Pacheco Rio de Janeiro, em Revista do Património Hist. Art. Nac., n.° 5, 1941,
Pereira Coelho de Mello, que fundou Boião com 2 alças de Francisco ps. 285-297.
a Academia Brasileira dos Renas¬ Barreto de Menezes, louça de 2) Valentim da Fonseca e Silva, em Silva-Nigra, Construtores e Artistas do
cidos. Lisboa. Mosteiro de Não Bento do Rio de Janeiro, 1950 çs. 152-153.
64 DOM CLEMENTE MARIA DA SILVA-NIGRA
j ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL 65

•de decoração de talha que abrange as próprias paredes e o teto, como la de João de Mori, que naufragara em Boipeba, ao sul da Bahia de
na igreja de Embú, a Capela Dourada de Recife, a Capela-Mor de San¬ Todos os Santos (4); de certo essa imagem de Nossa Senhora da Gra¬
to Antônio no Rio, ou a Igreja tôda, como São Bento e São Francisco ça ornava aquela “maneira de igreja” que estava ao lado da casa do
da Penitência, ambas no Rio e, sobretudo, a suntuosa Igreja Francis- Caramurú e de Catarina Paraguassú, descrita pelo Padre Nóbrega
cana em Salvador. Manifestou-se a escultura colonial, com grande em 29 de março de 1549, ao fundar com o governador Mem de Sá a
exuberância na confccção das mais belas e mais variadas mobílias Cidade de Salvador (5).
nas igrejas e sacristias, em conventos e consistórios, nos solares c Dizem que pelos anos de 1550, mandou Dom João III à essa Ci¬
casas-grandes do Brasil antigo. dade do Salvador uma bela imagem de madeira, representando Nossa
Desta fórma já acabamos de traçar a divisão do tema desta aula Senhora das Maravilhas; em 1628 esta histórica imagem foi tôda re¬
de hoje: vestida de prata por artistas baianos e como tal conserva-se na Ca¬
tedral até o dia de hoje (6). Além do alor artístico e histórico, esta
a escultura colonial da imaginária; imagem tornou-se célebre pelo famoso “ estalo” na cabeça do fraco
a escultura colonial dos altares, retábulos, púlpitos c talha do menino-estudante Antônio Vieira que assim tornou-se o grande inte¬
interior das igrejas lectual, político e o maior pregador da América Colonial.
a escultura colonial de cantaria nas facharas e portões das igre¬ Em 1558, desembarcou na Capitania do Espirito Santo o piedoso
jas, solares e fortalezas; Irmão leigo franciscano, Frei Pedro Palácios: “trouxe consigo de
a escultura colonial da mobília. Lisboa aquela soberana imagem de Nossa Senhora da Penha que hoje
está colocada na referida capela” (7).
A imagem do Brasil: Era em Lisboa que os padres jesuítas costumavam encomendar
quase tôdas as imagens de suas principais igrejas. Diz o autor do
O culto da imagem no Brasil é tão antigo como sua própria his¬ Santuário Mariano, ao tratar de imagem de Nossa Senhora da Aldeia
tória. E fato auspicioso: Pedro Alvares Cabral, ao descobrir cm 1.500 de Reritiba, hoje Anchieta, “a imagem é muyto fermosa, e obrada
esta terra brasílica, trazia na capela de seu navio a imponente ima¬ sem dúvida em Lisboa, aonde sempre os Padres da Companhia man¬
gem de Nossa Senhora da Boa Esperança. Tal preciosa c histórica darão fazer as suas imagens, por se obrarem naquela Cidade com
escultura de mármore Alzã, de 110 centímetros de altura, que ainda muyta perfeição, e por se acharem nella mestres excellentes em todas
obedece ao traço gótico português, até hoje se encontra na velha as artes” (8).
matriz de Belmonte, situado na Beira Baixa, ao éste da Serra da Es¬ O historiador dos jesuítas no Brasil, Padre Serafim Leite, nos
trela. Foi nesta vila medieval que nasceu o descobridor do Brasil conta que para a Igreja nova do Morro do Castelo no Rio de Janeiro,
e em sua homenagem os Reis de Portugal agraciaram os seus des¬ “pouco antes de 1619, chegaram de Lisboa 17 estátuas de madeira,
cendentes com o titulo de “Senhores de Belmonte”. O povo de Bel¬ revestidas de oiro e diferentes côres” (9).
monte, todos os anos, leva aquela venerável imagem de Nossa Se¬ Com auxilio do que já foi publicado e de outras fontes ainda des¬
nhora da Boa Esperança em solene procissão pelas ruas tortas e aci¬ conhecidas fàcilmente se poderia compor um extenso catálogo de
dentadas de sua vila tão simpática, tendo o seu andor a forma de imagens no Brasil vindos de Portugal no evolver dos primeiros sé¬
uma caravela em memória de nau capitânca que descobriu o Brasil (3). culos, até a independência politica. Mas o que hoje nos interessa
A imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança, por conseguinte, deve mais de perto é a escultura e a imagem feita no Brasil!
ser considerada o protótipo de tôdas as imagens que durante três Cabe a João Gonçalo Fernandes o primeiro lugar na história
séculos se iriam transferir de Portugal para o Brasil, seja dirctamcn-
te, seja indiretamente pela vinda de mestres portugueses que, por
4) Varnhagen, História Geral do Brasil, tomo I. (6.a edição), p. 20, nota 203.
sua vez iam ensinar a arte portuguesa de modelar c esculpir a brasi¬ S) Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, 1938, tomo I,
leiros: brancos, pretos, mulatos. P- 1-
Referem os cronistas que Diogo Alvares, o Caramurú, em 1535, 6) Frei Agostinho de Santa Maria, Santuário Mariano, 1722, tomo 9, títulos
salvou os tripulantes e a imagem de Nossa Senhora da galera espanho- IV, VI e VII.
7) Ibid, tomo 10, p. 8.
8) Ibid, tomo 10, tit. 31, p. 71.
3) História da Civilização Portuguesa do Brasil, 1923, vol. II, ps. 24 e 25. 9) Serafim Leite, op. cit.. História da Companhia, p. 394.
66 DOM CLEMENTE MARIA DA S1LVA-N1GRA ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL 67
das artes plásticas no Brasil (10) ; pois, são dele as primeiras ima¬
gens de que se tem notícia através de pesquisas históricas: a ima¬ De 1700 até a data de Independência em 1822, os autores das
gem de Nossa Senhora do Rosário, de São Vivente; Nossa Senhora da
imagens brasileiras tornam-se mais conhecidos. Em tôdas as capita¬
Conceição, de Itanhaem e de Santo Antônio, hoje na Matriz de São nias aparecem os mestres imaginários mais ou menos hábeis; todos
porém ficam superados pelo grande gênio da arquitetura e escultura
Vicente. Coletâneas dos primórdios da vila de São Vicente e da
Fundação de Itanhaem, julgamos poder fixar para o ano de 1560 a em Minas Gerais, Antônio Francisco Lisboa. O Aleijadinho, 1730-
confecção destas primeiras estátuas do Brasil Colonial; pois, em 1814.
1559, os Vicentinos construíram sua nova matriz e em 1561, Itanhaem Começando pela Bahia, encontramos ao lado de artistas mais sim¬
foi levada a vila própria (11). Até hoje são as três imagens as úni¬ ples os nomes de Manoel Gonçalves Pinheiro, em 1795; João Alves
cas quinhentistas, cujo autor nos é conhecido. Carneiro, 1713; Antônio Duarte Meira, 1717; o conhecido Cabra,
No século 17 já encontra-se com mais facilidade os nomes de Francisco Chagas, 1758, com suas obras primas na Ordem Terceira
diversos imaginários. Assim aparece nos primeiros decénios Sebas¬ do Carmo :Cristo Morto, Cristo na Pedra Fria, Cristo carregando a
tião Toscano, “escultor curioso, e morador no Rio de Janeiro, ima¬ cruz; Felix Pereira Guimarães, 1736-1809, com São Pedro, Nossa Se¬
ginário mais de curiosidade, e gênio, do que arte”. O Santuário nhora da Saúde, São João e Santa Maria Madalena; o grande Manuel
Mariano atribui a êste autor duas imagens de barro cozido: Nossa Inácio da Costa, 1765-1857, com seu célebre São Pedro de Alcântara,
Senhora da Piedade, de Magé e Nossa Senhora da Guia, da Ma¬ Senhor na Qoluna, Senhor da Pedral Fria e outras; Bento Sabino dos
rinha (12). Reis, com suas belas imagens em madeira e em barro cozido, morto
na Bahia em 1846 com mais de 80 anos de vida fecunda. Foi em
Na Cidade do Salvador, o mestre escultor Francisco Fernandes,
1908 que Manuel Querino publicou o interessante catálogo dos Artistas
morador na Conceição da Praia, assinou aos 21 de novembro de 1657, Baianos, no qual destaca os imaginários principais, descrevendo os
um contrato para fazer o retábulo do altar mor da nova Igreja da
seus numerosos trabalhos ainda existentes. Já desde muitos anos, o
Misericórdia e mais o altar de Santo Antônio, ambos com suas res- esforçado Prof. Carlos Ott e a incansável Da. Marieta Alves, se dedi¬
pectivas imagens (13).
cam a pacientes pesquisas nos velhos arquivos da Bahia, documentan¬
Na mesma cidade, no ano seguinte, aparece o nome de outro do e retificando o que Manuel Querino escreveu em reportagem meio
escultor de imagens, conforme os registros da Ordem Terceira do século atrás.
Carmo, onde se lê, que em 31 de março de 1658, João da Silva, ima¬
Em Recife, o estudioso pesquisador Fernando Pio acaba de pu¬
ginário, tomou o hábito e fêz profissão naquela ordem, em 8 de junho
blicar ao lado de muitas pequenas monografias sôbre escultura Artis¬
de 1659 (14).
tas .dos Séculos Passados, onde fixa os nomes e descreve as obras
Em 10 de outubro de 1683, o escultor Domingos Lopes trabalha¬ de um grande número de escultores e imaginários pernambucanos.
va na talha da Capela da Padroeira Santa Teresa (15), enquanto seu
Finalmente, desde a fundação em 1936, a Diretória do Património
colega, o escultor Miguel da Costa pretendeu ingressar na Irmandade
Histórico e Artístico Nacional, sob a segura orientação do Dr. Rodrigo
da Misericórdia, em 14 de abril de 1683 (16).
Melo Franco de Andrade, tem estudado e divulgado na sua Revista
e Publicações informes dos mais importantes sôbre a vida e as obras
10) Frei Basilio Roewer, Páginas de História FranciscOna, no Brasil, 1941, dos melhores escultores do Brasil colonial, destacando-se, especial-
p. 331. mente, a biografia documentada de Antônio Francisco Lisboa, o
11 ) Frei Agostinho de Santa Maria, op. cit., Santuário Mariano, tomo 10, p. 131. Aleijadinho.
12) Ibid. tit. XVIII, p. 42; tit. XX. p. 48.
13) Arquivo da Santa de Misericórdia
— Salvador, Livro 1 dos Acórdãos,
fls. 102-105. As indicações desta fonte e de muitas outras, assim como
a cópia dos respectivos documentos, devemos à gentileza do amigo Prof.
Se houve em tôdas as capitanias antigas escultores e imaginá¬
rios, também não os faltavam em São Paulo. Verdade é que aqui as
obras eram mais simples e os seus autores são quase todos anónimos.
Carlos Ott.
14) Arquivo da Ordem Terceira do Carmo

Profissões de Irmãos, 1636-1696, fls. 232.
Salvador, Livro 1, Entradas e
15) Ibid. Livro 2, A&e?itos à Ordem, 1660-1709, fls. 178 v.
Porém, sempre houve um João Gonçalo Fernandes, o pai da imaginá¬
ria brasileira e, houve o mestre Antônio Luiz (progenitor de Frei
Mauro Teixeira que fundou o Mosteiro de São Bento em 1598), que
16) Arquivo da Santa de Misericórdia

-
Termos dos Irmãos, fls. 201 v 202.
Salvador, Livro 2. Termos dos Irmãos, gravou com seu escopo de pedreiro na vêrga da Matriz nova de São
Vicente: “P.® Colaço Vilela me mandou fazer na era de 1559. Esta
68 DOM CLEMENTE MARIA DA S1LFA-NIGRA

preciosa relíquia da primeira escultura nesta terra acha-se hoje ex¬


posta no Museu Paulista.
Houve aqui também um Frei Agostinho de Jesus e os imaginá¬
rios jesuítas e franciscanos. Entre outros houve o escultor-imaginá¬
rio José Pereira Mutas, que em 1777, por 17$280 réis fêz a expressiva
imagem do Santo Cristo, que todo compadecido até hoje recebe as
nossas preces no seu grande nicho na parte lateral do cruzeiro da
basílica de S. Bento.

V 3{í

Ao lado dos imaginários e escultores civis, cujo número e nomes


com futuras e novas pesquisas certamente aumentarão, encontramos
as três escolas livres de artistas que, conforme suas ordens religiosas,
dividimos em imaginários franciscanos, imaginários jesuítas e imagi¬
nários beneditinos. Esta classificação refere-se mais à origem das
respectivas esculturas do que ao seu estilo ou técnica.

Imagens Franciscanas

Cabe ao insigne arquiteto franciscano, Frei Francisco dos San¬


tos a glória de ser o primeiro mestre imaginário de sua religiosa
ordem no Brasil e das numerosas casas que veio a fundar de 1585,
em diante. Jaboatão enumera os cargos de Frei Francisco dos San¬
tos: guardião, custódio, prelado maior; declara-o arquiteto das di¬
versas fundações novas, de -Olinda, Cidade de Salvador, Iragaçú, Pa¬
raíba (João Pessoa), Vitória do Espirito Santo, e finalmente da do
Rio de Janeiro”. No tempo de Frei Francisco dos Santos, 1585 a 1616
“ crescerão em grande maneira as fábricas (nos novos conventos)
traçadas pela sua idéia, que a tinha para isso muy singular, e ajusta¬
da!” (17).
Entretanto não nos fala Jaboatão nos trabalhos artísticos de ima¬
gens de barro. Somente pela oportuna publicação do Dr. Carlos
Ott, cm 1943, ficamos sabendo que “Frei Francisco dos Santos, além
do grande talento para obras, por ser bem visto na Arte de Arquite¬
tura, também o tinha para fazer Imagens de barro, como fez muitas
na Província (em Portugal), c algumas na Custodia (do Brasil)” (18).
Ignoramos se existem ainda algumas das imagens feitas por Frei

17) Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, N ôvo Orbe Seráfico Brasílico Rio
1856-1859, I, vol. I, p. 228.
18) Livro dos Guardiães do Convento de S. Francisco da Bahia, em Revista
do Inst. Geogr. Hist. Bahia, 1943, n.° 69, p. 4.
Porta do Solar Saldanha, hoje Liceu de Arles e Ofícios.
ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL 71

Francisco dos Santos (19). É muito provável ter êle deixado alguns
discipulos, os quais continuaram a arte de modelar imagens de barro.
A êste respeito, o arquivo do Convento de Santo Antônio do Rio de
Janeiro nos informa: “Em 1621, se collocou a imagem de Santo An¬
tonio, o corpo feito por hum Religioso leigo, porteiro, e a cabeça por
hum, que pediu huma esmola para jantar, como se vê no Cartório
do Convento. Tem a imagem em questão 1,10 m. de altura e é feita
de barro queimado. A execução do corpo é muito primitiva. A ca¬
beça está embutida no tronco, de modo que sem a menor dificuldade

ao do menino Jesus.

pode ser retirada. Nota-se também que o feitio da cabeça é superior
Esta imagem foi collocada no frontispício da
igreja. Graças a essa circunstância, isto é, por estar exposta ao tem¬
po, o povo, sempre propenso em alcunhar as coisas, chamou-a Santo
Antonio do .Relento!”
“Outra imagem de Santo Antonio que, desde fins do século XVII
está exposta à veneração dos fiéis no altar-mor (da mesma igreja, do
Rio de Janeiro) tem 1,66 m. de altura e é feita, como a primeira, de
barro queimado e muito mais perfeita do que aquela. Forma uma pe¬
ça só, como verificamos num rigoroso exame” (20).
Dos decénios de 1650 a 1680, encontramos uma imensidade de
imagens de Santos, que classificamos tôdas como oriundas da escola
franciscana. Sem conhecer nominalmente os seus autores vimo-lhes
contudo as obras de barro cozido, nos conventos de Santo Antônio do
Rio, em Cabo Frio, Angra ds Reis, Ubatuba, Ilha de São Sebastião,
Santos, Itanhaem, Taubaté, Mogi das Cruzes, Itu. Finalmente na ca¬
pital paulista nos conventos de São Francisco e da Luz, e na Ordem
3.a da Penitência.
Sem tentar classificar tantas obras diferentes, quer no estilo, quer
no valor artístico, merece aqui entretanto, especial menção um artis¬
ta anónimo e que doravante queremos chamar o Mestre de Angra.
As suas imagens muito se assemelham à primeira vista, com as do
mestre-ceramista beneditino, Frei Agostinho da Piedade, de quem
trataremos depois. Ao Mestre de Angra atribuímos a bela imagem de
Nossa Senhora do Convento de São Bernardino, de Angra dos Reis;
duas imagens- relicários, Santo Inêz e Santa Apolônia, na ordem 3.a
da Penitência, na Capital de S. Paulo; uma imagem da Senhora da
Conceição, em Itanhaem, e finalmente duas figuras de presépio, na
Matriz de Cabo Frio.

19) Tudo indica que a imagem de Nossa Senhora, de barro cozido, da coleção
do Dr. José Mirabeau Sampaio, Salvador, seja da autoria de Frei Fran¬
cisco dos Santos.
20) Frei Basilio Roewer, O Convento de Santo Antônio, Rio, 1937, ps. 380,
383 e 384.
72 DOM CLEMENTE MARIA DA SILVA-NIGRA ESCULTORA COLONIAL DO BRASIL 73
Nutrimos a forte esperança que um dia conseguiremos informa¬ Imagens beneditinas:
ções mais pormenorizadas a respeito dc tantas imagens franciscanas,
espalhadas do norte ao sul do Brasil antigo.
Podemos afirmar que os imaginários importantes da ordem de
São Bento são apenas três, todos seiscentistas e, todos excelentes:
Imagens jesuíticas
Frei Agostinho da Piedade, falecido em 2 de abril de 1661, em Sal¬
vador; o carioca Frei Agostinho de Jesus, discípulo do primeiro, fa¬
Visitando casas, dependências e antigas regiões sob a influên¬ lecido em 11 de agôsto do mesmo ano de 1661, no Rio de Janeiro e

——
cia dos zelosos padres da Companhia de Jesus tôdas anteriores à Frei Domingos da Conceição da Silva, falecido no Rio de Janeiro em
supressão da mesma ordem no Brasil, em 1759 encontramos muitas
imagens de barro, cujos caracteres bem especiais, nos induziram a 30 de janeiro de 1718, aos 75 anos de idade.
classificá-las como pertencentes à uma escola particular: a jesuítica. As obras de Frei Agostinho da Piedade, em número de 28, últi¬
Ficaram-nas dezenas e dezenas destas obras. São do inicio do século mamente foram muito apreciadas na Exposição comemorativa do ter¬
XVII e de origem jesuítica as trinta imagens de relicários-bustos (24 ceiro centenário de sua morte, exposição solenemente inaugurada no
de barro cozido e 6 de madeira) que hoje se acham nos dois altares Museu de Arte Sacra da Universidade da Bahia, no dia de Páscoa
primitivos da antiga Igreja (Catedral) dos padres jesuítas da Bahia. dêste ano corrente (22). Das clássicas imagens remanescentes do
Outras imagens em igrejas e capelas do recôncavo da Bahia de Todos grande escultor seiscentista, três encontram-se no Estado de São
os Santos: São Tomé do Paripe, São Gonçalo, Senhora das Neves, Sau- Paulo: Nossa Senhora do Montesserrate, a obra mais artística' do au¬
bara, São Roque, Jaguaripe e Ilha de Itaparica, denunciam a escola tor, pertence ao Mosteiro de São Bento desta Capital e, foi feita en¬
jesuítica. tre 1635 e 1640; São Bento e Santo Amaro do antigo Mosteiro de
Com certeza, padres ou irmãos imaginários da Companhia, que Parnaíba, fundado em 1643, sendo que a imagem de Santo Amaro, bas¬
na Bahia trabalharam em cerâmica, ao serem transferidos para outras tante danificada, hoje se., encontra no Museu da Cúria Metropolitana.
capitanias do norte ou do sul, continuaram a exercer a sua arte no Não há contestação, Frei Agostinho da Piedade foi o maior imaginá¬
novo domicílio. Do grande número de artistas jesuítas do Brasil, rio-ceramista do século 17, em todo o Brasil!
desde 1549 até a sua expulsão em 1760, o padre Serafim Leite nos in¬ Em segundo lugar fica Frei Agostinho de Jesus, filho do Rio de
forma com muitos nomes e ofícios diversos (21); infelizmente as fon¬ Janeiro, onde nasceu pelo ano de 1600 e na Bahia tornou-se discípulo
tes de seu valioso trabalho raras vêzes indicam as obras executadas de Frei Agostinho da Piedade. Durante a maior parte de sua vida
por cada autor. Assim, continuam anónimas as numerosas imagens trabalhou em São Paulo, Parnaíba e Santos (23). Conseguimos iden¬
jesuíticas ainda existentes nas antigas residências de Embú, Araçari-
tificar 18 imagens de barro, tôdas diferentes, hoje espalhadas pelos
guama, Carapicuiba, Itapicirica, Santos, São Vicente, Itanhaem e mosteiros beneditinos de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e San¬
outras. tos, na matriz de Parnaíba, no Museu da Cúria de São Paulo e em di¬
Verificamos São Paulo ser o Estado onde mais se produziu ima¬ versas coleções particulares. À vista de todos os visitantes da Basílica
gens de barro cozido, desde 1560 até 1803, sem interrupção. Hoje, de São Bento nesta cidade, acham-se expostas ao lado do altar-mor,
grande parte destas esculturas desapareceram do seu lugar de origem as duas imponentes imagens de São Bento e de Santa Escolástica, am¬
e encontram-se em coleções particulares; outras, em boa hora, foram bas de barro ressecado e de 156 cms. de altura. Estas duas imagens
recolhidas pelo saudoso e operoso arcebispo, Dom Leopoldo Duarte e mais Santo Amaro e São Bernardo, em 1650 foram feitas por .Frei
da Silva, para o Museu da Curia Metropolitana, um dos mais ricos e Agostinho de Jesus para a Igreja nova de São Bento, construída ás
importantes do Brasil. Entre outras preciosidades, a coleção de ima¬ generosas expensas do grande bandeirante Fernão Dias Paes, o fa-
gens de barro, de tôdas as procedências e de tôdas as épocas é a mais
variada e a mais completa. Também o Seminário Premo nstratense de
Pirapora do Bom Jesus (perto desta capital de São Paulo), conseguiu
acolher imagens bem importantes daquela antiga região bandeirante.
22) Catálogo da Exposição
escultor Frei Agostinho da Piedade, monge beneditino, 1661
— 1961, no Museu de Arte Sacra da Universidade da Bahia. —
comemorativa do terceiro centenário da morte do
2 de abril

23) Frei Agostinho de Jesus, em Silva-Nigra, op. cit. Construtores e Artistas,


21) Serafim Leite, Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil, 1953. ps. 113-122; figs. 147-161.
74 DOM CLEMENTE MARIA DA SILVA-NIGRA ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL 75

moso Governador das Esmeraldas, em penhor de sua sepultura per¬ mo, de Olinda, que hoje encontra-se transferido para uma capela la¬
pétua na mesma Igreja, ao pé dêstes santos (24). teral.
O terceiro imaginário-escultor beneditino foi Frei Domingos da Antes de desenvolver o tema dos retábulos e talha, convém dizer
Conceição da Silva, que durante longos 48 anos dedicou-se à sua arte primeiro uma palavra sôbre o estilo e a forma da nossa escultura co¬
no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, até à sua morte em lonial. Até hoje, ninguém melhor do que o grande e sempre humilde
1718 (25). Lúcio Costa definiu as manifestações dos retábulos brasileiros, divi¬
São da autoria dêste beneditino um Cristo Morte e um Senhor dindo-os cm quatro épocas com seu estilo correspondente (27) : o
Crucificado ainda existentes no Mosteiro de São Bento, de Olinda, e primeiro estilo pertence à segunda metade do século 16 e aos primei¬
mais seis imagens grandes na Igreja Abacial do Rio de Janeiro. Gran¬ ros decénios do 17; o segundo estilo de meiados de mil e seiscentos
de parte da talha desta igreja foi executada por Frei Domingos da até 1730, mais ou menos; o terceiro de 1730 até 1780, este o mais opu¬
Conceição, como todo o retábulo e revestimento da capela-mor, as lento e mais rico do Brasil; o quarto estilo de 1780 até a metade do
cadeiras do côro, grades e balaústres, portas e armários, e finalmen¬ século passado.
te os dois grandes arcazes da sacristia (26).
Primeira época: 1560-1624
II
O primeiro estilo, de 1560 até as invasões holandesas nos mostra
Altares e retábulos, decoração interna de talha: “belíssimos retábulos bem compostos e eruditos que, conquanto ainda
não sejam propriamente barrocos, também já não são mais exclusiva-
Enquanto a fôrma da imagem somente aos poucos se adaptava mente obras do Renascimento. Pertencem à fase de transição em que
às sucessivas épocas da arte colonial, vemos que a escultura dos re¬ os traços renascentistas e barrocos se justapõem e confundem. Post-
tábulos e da decoração interna alcançou depressa um estilo novo, renascentistas ou proto-barrocas, as obras dessa fase formam, entre
bem definido. Mesmo assim o estudo da talha antiga é bastante di- os dois movimejitos, uma espécie de terra de ninguém. Pareceu-nos
ficil, devido à diferença geográfica, ou por causa da idade e gôsto assim mais razoável, uma vez que a nossa arte colonial se enquadra
de cada artista. Há execução de obras quase contemporâneas na me¬ dentro do ciclo barroco, considerarmos aqui lais obras como um co¬
trópole e na colónia, sendo que outros trabalhos só odebecem ao es¬ meço dêste ciclo, de preferência e classificá-las como sobras ou resto
tilo novo muito mais tarde. Doutro lado, encontramos fôrmas retar¬ de renascença” (28).
dadas, cuja execução primitiva muitas vêzes nos dá a impressão de Os altares e retábulos de madeira que ainda existem dessa pri¬
uma obra mais antiga. meira época, pertencem quase todos às antigas igrejas dos jesuítas,
Vale a pena lembrar que os primeiros altares e retábulos do ou pelo menos, à sua influência. Demolida em 1921, a Igreja do Morro
Brasil, de que temos conhecimento, eram todos de pedra lavrada. As¬ do Castelo, no Rio de Janeiro, cuja construção datava de 1588, feliz¬
sim, no Estado de Pernambuco, a Diretória do Património Histórico con¬ mente conservaram-se seus três aliares primitivos, que hoje se acham
seguiu descobrir o primitivo altar-mor de São Cosme e Damião, de Iga- na Misericórdia, do Rio. Executados em freijo ou louro amarelo, é
raçú, cuja Igreja matriz foi inaugurada em 27 de setembro de 1535. indicado como seu autor, o escultor jesuíta Jorge Esteves, que desde
Depois, localizou o altar primitivo de pedra da Igreja do Cabo de 1569 até à sua morte em 1631, dedicou-se à sua arte nas casas da
Santo Agostinho, após ter identificado os altares originais da Igreja Companhia de Jesus, do Brasil, falecendo no Rio, com 90 anos de
de Nossa Senhora da Graça, em Olinda, construída nos moldes de São idade (29). Parece que a composição dêstes retábulos é inspirada em
Roque, de Lisboa, pelo arquiteto jesuíta Francisco Dias, em 1592: fi¬ túmulos romanos do século 15, com marcação de duas ordens hori¬
nalmente, o primitivo altar-mor de pedra do antigo convento do Car- zontais e tratamento mais em superfície plana do que volumétrica.
Apresentam formas apaineladas com pinturas que se harmonizam ao
S. Paulo, 1927, ps. conjunto. No tôpo, um painel retangular é encimado e ladeado por
24) Affonso de A. Taunay, História Antiga da Abadia de
72-58.
25) Frei Domingos da Conceição da Silva, em Silva-Nigra, op. cit. Constru¬ 27) Lúcio Costa, A Arquitetura Jesuítica no Brasil, em Revista do Património
tores e Artistas, ps. 123-139; figs. 33-75. Hist. Art. Nac. n.<> 5, 1941, ps. 9-100.
26) Silva-Nigra, Frei Domingos da Conceição, o escultor seiscentista do Rio 28) Ibid. p. 43.
de Janeiro, 1950. 29) Serafim Leite, op. cit., Artes e Ofícios, ps. 166-167.
76 DOM CLEMENTE MARIA DA SILVA-NIGRA

pequenas pirâmides e volutas caprichosas. As colunas são estriadas


em diagonal, com capitéis coríntios (30').
Semelhantes aos três retábulos do Morro do Castelo, é o altar
da Aldeia de São Lourenço dos índios, umas das primeiras na Praia
Grande da 'Guanabara.
Do antigo retábulo da Igreja de São Vicente, que provàvelmente
pouco diferenciava dos do Morro do Castelo, ainda restam quatro
colunas e o sacrário, qué continuam no altar-mor da Matriz Viccn-
tina.
Da primeira época também são os dois retábulos dos Santos Már¬
tires e das Santas Virgens Mártires, descritos por Cardim em 1583,
e transferidos, depois de 1656, para as primeiras capelas da nova
Igreja dos Jesuítas, hoje Catedral de Salvador.
Se todos êstes retábulos quinhentistas podemos chamar de clás¬
sicos na sua espécie, há outros, mais simples e mais afastados dos en¬
tão centros de cultura, entre êstes os belíssimos altares das capelas
paulistas de Nossa Senhora da Conceição, de Voturuna, e da fazenda
de Santo Antônio, no município de São Roque.

Segunda época: 1650-1730


“Depois do período inseguro, confuso e sombrio das lutas e inva¬
sões, vamos encontrar retábulos de um estilo completamente diferen¬
te dos primeiros, tanto na composição como na talha, e cujo partido
de colunas torsas repetidas em planos reentrantes, com arquivoltas
concêntricas. Êsses retábulos todos recordam muito de perto as ve¬
lhas portadas românicas, apesar da distância no tempo. Esse estilo
rico, severo e bonito, generalizou-se e, muito embora tenha perdurado
até comêço de mil e setecentos, pode ser considerado o estilo seiscen¬
tista por excelência” (31).
Como exemplos de transição da primeira para a segunda época
ainda existem os retábulos da Igreja dos Reis Magos, no Estado do
Espírito Santo e na Igreja Franciscana, do Cabo Frio.
Nas igrejas dos jesuítas encontramos o nòvo estilo no Colégio
de São Luiz do Maranhão, no Colégio de Campos, dois altares colate¬
rais no Colégio de São Paulo, os dois colaterais em Embú, sendo os
mais imponentes em tamanho c execução os retábulos novos da Igreja
de Salvador, hoje Catedral.
No estilo dessa época, o escultor beneditino Frei Domingos da
M
Conceição da Silva, riscou e entalhou tôda a capela-mor da Igreja
Abacial de São Bento, do Rio de Janeiro, dando inicio em 1672, obra

30) G. Oscar Oswaldo Campiglia, Igrejas do Brasil, p. 17.


31) Lúcio Costa, op. cit. Arquitetura jesuítica, ps. 43-45. Púlpito de onde pregou o Padre Antônio Vieira. Igreja de Ajuda.
ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL 79

prima de que hoje apenas resta a arquivolta maior do frontespício


com a data esculpida de 1694. Na sacristia do mesmo Mosteiro de São
Bento ainda vemos o bonito altar do Senhor dos Martírios que serve
de grandiosa moldura para o excelente painel de Frei Ricardo do
Pilar, executado em 1690.
A boa disposição e talha da bela capela-mor (retábulo, paredes
e teto) do convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, também per¬
tence ao estilo dessa segunda época.
Em Salvador, além dos retábulos da Catedral, podemos contem¬
plar na Igreja de Santa Tereza, hoje Museu de Arte Sacra da Univer¬
sidade da Bahia, ainda seis altares seiscentistas, terminados todos
antes de 1698. A própria capela-mor e os altares das naves laterais
da admirável Igreja de São Francisco, ainda estão nos moldes dêste
rico estilo brasileiro, como os últimos testemunhos de uma grande
época.

Terceira época: 1730-1780

Passando para o terceiro estilo que ocupa apenas meio século,


isto é, mats ou menos de 1730 a 1780, encontramos a manifestação
mais movimentada e mais exuberante da nossa arte colonial. Tôdas
as partes de composição anterior dos retábulos entram num verda¬
deiro delírio de curvas, de liberdade e de desenvoltura. Na parte su¬
perior, as arquivoltas das colunas salomônicas ficam rompidas para
dar lugar a um docel ou baldaquino que paira sôbre o camarim, o
grande nicho do retábulo. Entre as colunas torsas surgem peanhas
para imagens de santos, de tamanho menor, protegidas por docéis e
imitações de cortinas, não de pano, mas talhadas em madeira. A se¬
renidade do retábulo anterior em forma simples de uma portada ro¬
mânica, agora e sobrecarregada com cachos de uvas, girassóis, mar¬
garidas, rosas, águias, pelicanos, elementos antropomorfos, anjos, que¬
rubins, etc. Geralmente as duas colunas internas ficam transforma¬
das em pilastras ricamente esculpidas. Restam ainda muitos destes
retábulos, riquíssimos em escultura é ouro, como em Salvador o va¬
lioso altar-mor da Conceição da Praia, o antigo altar-mor de São
Bento em Montesserrate, os altares do transepto da atual Catedral
Basílica e da Igreja de São Francisco.
Em Recife continuam os retábulos do altar-mor da Madre de
Deus, da Conceição dos Militares de São Pedro dos Clérigos, do Car¬
mo e da Capela da Jaqueira. Exemplar especialmente típico consti¬
tui o altar-mor do Mosteiro de São Bento, de Olinda.
Em João Pessoa ficou desta época o admirável púlpito em São
Francisco e a Capela da Ordem Terceira do mesmo São Francisco.
No Rio de Janeiro todos os onze altares da Igreja de São Bento
ESCULTORA COLONIAL DO BRASIL 81
80 DOM CLEMENTE MARIA DA SILVA-NIGRA
primeiros altares desta nova época com caracteres bem definidos do
foram executados neste estilo deslumbrante, como tôda a rica talha empire, como na Igreja do Pilar, na Estrada de Petropolis, e nos
das duas magníficas igrejas da Ordem Terceira do Carmo e de São dois altares colaterais da Igreja de Santa Teresa, em Salvador.
Francisco da Penitência.
Também os retábulos das primitivas grandes matrizes de Minas * * *
Gerais são talhados nos moldes desta terceira época, como a Igreja
do Pilar, de Ouro Preto, de São Francisco de Assis, de São João del Ao lado de retábulos e imagens de grande perfeição, encontra¬
Rei, da Matriz de Caeté, e outras. Mas, também é em Minas Gerais, mos em1 muitas igrejas coloniais um revestimento completo de ta¬
onde ao lado da mais desenolvida escultura dêste estilo percebemos lha, tanto do teto, como das próprias paredes. Essas extensas ç ricas
as primeiras tentativas para formas mais simples, como prelúdio da decorações pertencem tôdas aos centros mais antigos da civilização
época seguinte. brasileira, como Bahia, Pernambuco, Paraíba e Rio de Janeiro.
O mais perfeito exemplar desta decoração é a Igreja de São
Quarta época: 1780-1890 ou fim do Império Francisco, em Salvador; lá também o teto da atual Catedral é de ex¬
traordinário trabalho em alto relêvo, enquanto a sacristia do Carmo
A saturação do grande excesso na desenvoltura da talha anterior, representa a mais expressiva manifestação de revestimento de talha
aos poucos começou a provocar uma reação para fôrmas mais sim¬ neste gênero. Outra preciosidade constitui a Igreja tôda da Ordem
ples. Por volta de 1780, notamos as primeiras tentativas de substi¬ Terceira do Carmo, em Cachoeira do Paraguaçú. Famosas por sua
tuir as colunas torsas demasiadamente ornadas, por colunas menos talha são a Capela Dourada de Recife e Igreja de São Francisco, de
decoradas e, finalmente, por simples colunas estriadas de capitéis co- João Pessoa com a Capela da Ordem Terceira. No Rio de Janeiro
ríntios. A própria aplicação geral do ouro diminui e pouco a pouco temos a Igreja de São Bento, a Capela-mor do Convento de Santo
é apenas admitido nos altos relevos delicadamente talhados. As su¬ Antônio; a bela Igreja de São Francisco da Penitência, a belíssima
perficies vazias de fundo são pintadas de branco, resultando do con¬ Ordem Terceira do Carmo e sua incomparável Capela do noviciado,
traste causado pelo ouro sòbre fundo branco um efeito de delicadeza Cnuz dos Militares, do Mestre Valentim, como também São Francisco
e sobriedade. Esta maneira de pintar os retábulos, paulatinamente, de Paula, com a rica Capela do Santíssimo Sacramento.
tornou-se típica e constante, vigorando até aos nossos dias. Entre¬ Outrossim, merecem ser mencionados alguns púlpitos de grande
tanto a limitação sucessiva nas formas demasiadamente desenvolvi¬ valor artístico. Desde os púlpitos seiscentistas de Montesserrate, em
das acabou em gerar um estilo novo, neo-clássico, o “empire” tão Salvador, São Francisco Xavier, do Saco, de São Francisco, de Nite¬
cultivado por Napoleão, o nosso “império” que dominou a maior rói, e Embú, de São Paulo, a evolução acompanhou o gôsto de cada
parte do século passado. época, manifestado especialmente nos retábulos. Um inventário dos
Já em 1773, o escultor do altar-mor de Bom Jesus, em Congonhas muitos púlpitos do Brasil antigo representaria uma coleção tão bela
dos Campos, Francisco de Lima, trocou as duas colunas torsas por como variada, conforme o estilo de cada época. Um dos primeiros
duas simples estriadas, neoclássicas, conservando no resto tôda a prémios caberia, sem dúvida, aos dois magníficos púlpitos da Igreja
opulência anterior. Mais tarde, em 1784, o próprio Aleijadinho faz o de Santo Alexandre, em Belém do Pará, executados antes de 1730,
mesmo no belo retábulo do altar de Santa Efigênia, na Igreja do pelo hábil escultor jesuíta João Xavier Traer, auxiliado por seus dis¬
Rosário, em Santa Rita Durão (antigo Inficcionado, confirmando êsse cípulos índios (34).
processo, entre 1790 a 1794, no altar-mor de São Francisco, de Ouro Por fim, tratando de escultura colonial, não podemos deixar de
Preto (32). lembrar os excelentes trabalhos dos nossos toreutas coloniais que
No Rio de Janeiro aparece o primeiro sinal de transição, quando nos legaram em madeira de lei tantas obras maravilhosas, como tri¬
o mestre entalhador Inácio Ferreira Pinto em 1788, no frontispício bunas, grades, bancas de comunhão, compostas dàs mais variadas
da capela-mor de São Bento, substituiu a coluna salomônica de 1694, formas de balaustres torneados e esculpidos em muitas igrejas e ca¬
por uma nova em estilo neo-clássico (33). Pouco depois aparecem os pelas antigas do Brasil. Temos grades simples e pesadas, como a
banca da comunhão da capela de São Miguel, em São Paulo, de 1622,
32) Antônio Francisco Lisboa, Publicações do Património Hist. Art. Nac. n.°
5, 1941, ps. 9-100.
33) Inácio Ferreira Pinto, em Silva-Nigra, op. cit. Construtores e Artistas, 34) João Xavier Traar, em Serafim Leite, op. cit. Artes e Ofícios, p. 252.
ps. 157-161; figs. 83-91, 106-100.
82 DOM CLEMENTE MARIA DA SILVA-NIGRA ESCULTURA COLONIAL DO BRASIL 83

e temos no correr dos dois séculos seguintes grades e tribunas de dade é que a maior parte dêles é de origem portuguêsa, mas valiam
todos os estilos até os mais requintados, como na Capela do Santíssi¬ a pena de um estudo detalhado, pelo menos os que foram feitos no
mo Sacramento, na Igreja de São Bento, do Rio de Janeiro, executado Brasil, desde o da Graça, em Salvador, quase quinhentista, até os
pelo mestre entalhador Inácio Ferreira Pinto, entre 1795 e 1800. mais requintados do nosso Aleijadinho, nas sacristias do Carmo e de
São Francisco de Assis, em Ouro Preto. ’
III
I IV
A escultura colonial de cantaria
A escultura do mobiliário colonial
Até hoje não foi feito um inventário completo das grandes e
imponentes obras, realizadas por pedreiros e canteiros coloniais, em A mobília antiga do Brasil hoje goza de fama mundial, devido às
mármore, arenito e pedra sabão, em fachadas importantes de igrejas suas madeiras de lei e não menos por causa do trabalho perfeito de
ou solares, ou em simples pias e lavatórios de sacristias. Também seus entalhadores. A mobília mais remota pertence às sacristias de
valia a pena arrolar os grandes portões, às vêzes com armas herál¬ tantas igrejas coloniais brasileiras. As matrizes, irmandades e or¬
dicas de casas nobres e fortalezas, assim como os belos chafarizes c dens religiosas, desde o início procuraram enriquecer suas sacristias
fontes públicas das vilas e cidades antigas. com grandes e belas cômodas ou arcazes, dos quais os remanescentes
iBelas fachadas existem na Bahia: Catedral e São Francisco, as nos dão o mais eloquente testemunho; basta citar as enormes e boni¬
maravilhosas fachadas da Ordem Terceira de São Francisco e do So¬ tas cômodas da antiga Sé e da Catedral de Salvador; as dos francis-
lar Saldanha (de que agora figura uma modelagem exata na atual canos nos Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraiba e
Exposição do Museu de Arte Brasileira, da Fundação Penteado), Mi¬ Rio de Janeiro; dos beneditinos cariocas e de Olinda; do Carmo de
sericórdia, Santa Teresa, igrejas do Carmo, Pilar, Conceição da Salvador e Recife, das igrejas de São Pedro dos Clérigos e Madre de
Praia e Matriz de Sant’Ana; no interior, São Francisco do Paraguaçú, Deus, também em Recife, e tantas outras em outros Estados, sobre¬
São Tiago do Iguape, Matriz de Marogogipe e por fim, em Cachoeira, tudo em Minas Gerais. Além das cômodas, armários, arcas, mesas,
as fachadas da Matriz e das duas igrejas do Carmo. bancos, poltronas, cadeiras, tamboretes e outras mobílias de sacris¬
Em Recife, destaca-se a imponente fachada de São Pedro dos Clé¬ tia e consistório, ainda existem as mais variadas mobílias de uso par¬
rigos, com seu belo portal quase renascentista, mas apenas começa¬ ticular, desde as luxuosas camas seiscentistas até as mais elegantes
do em 1728; depois, as fachadas do Convento do Carmo e de Santo cadeirinhas de arruar. Todo êste vasto assunto da mobília antiga,
Antônio com sua Ordem Terceira de São Francisco. Em Olinda, a que faz parte da arte de escultura colonial do Brasil, felizmente já
fachada do Carmo, cuja parte inferior ainda é quinhentista, sendo foi estudado e descrito por bem competentes autores brasileiros, co¬
que a de São Bento vale pelo harmonioso frontão com o grande es¬ mo Almeida Santos, Gustavo Barroso, Lúcio Costa, J. Watsh Rodri¬
cudo lavrado e a fachada de Santa Teresa, com o mais belo nicho do gues e outros (35).
século 17, em todo Pernambuco. Na Paraiba, são de suma importân¬ Assim, com estas palavras, é o que tenho a dizer, em síntese ,so¬
cia as belas fachadas de São Francisco e de São Bento, de João Pes- bre Escultura Colonial do Brasil.
soa e, especialmente, a de Nossa Senhora da Guia, em Cabedelo. A
magnifica fachada de Santo Alexandre, de Belém, vale por tôdas as
que se encontram no Pará e no extremo norte do Brasil. No Rio de
Janeiro possuem bôas fachadas de cantaria as igrejas: São José, Can¬
delária, e a /Olrdem Terceira do Carmo, cuja bela portada portuguêsa
de 1761, teria inspirado o Aleijadinho para a elaboração de seus in¬
comparáveis frontispícios de São Francisco de Assis e do Carmo, em
Ouro Preto, de São Francisco de Assis e do Carmo, em São João del
Rei e, dè Santo Antônio em Tiradentes.

35) J. Watsh Rodrigues, Mobiliário, em Artes Plásticas no Brasil, Rio, 1952 ;
vide Bibliografia', p. 200.
Além das fachadas seriam dignas de uma descrição minuciosa os
inúmeros e belos lavatórios de tantas sacristias do Brasil antigo. Ver- Museu de Arte, 1956-1958

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