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FOFOCAS CIENTÍFICAS

Victor Vizcarra

ORIGEM DO SISTEMA DE COORDENADAS CARTESIANAS

Conta a lenda que René Descartes se inspirou no vôo de uma mosca para criar seu sistema de
coordenadas cartesianas enquanto meditava deliciosamente em sua cama sobre assuntos filosóficos
aleatórios. É uma história romântica, mas, infelizmente, tenho que dizer que não é verdade.
René Descartes formulou sua teoria sobre as funções na tentativa de resolver o problema
do lócus de quatro linhas de Papus. Usou letras do inı́cio do alfabeto, como a, b, c . . . , para
representar constantes e aquelas próximas ao final do alfabeto, como x, y, z . . . , para representar
variáveis e expressou uma linha como uma equação composta desses alfabetos. Essa prática
continua até hoje. Uma função não é nada mais do que uma equação contendo constantes e
variáveis incógnitas. Vou explicar isto através de um exemplo dado pelo próprio Descartes em
seu livro La Géométrie; porém, bastante simplificado. Observe uma régua fixa no ponto G e que
pode girar ao redor desse ponto, como na figura abaixo.

N
L
C
B

G A

Vamos rotular os comprimentos AG, KL, N L, AB e BC por a, b, c, x e y, respectivamente, dos


quais a, b e c são constantes e x e y, variáveis que podem variar de acordo com um movimento
rotativo da régua GL em torno de G. Através de um cálculo não tão simples pode se mostrar
que a função de x e y indica que o local do ponto C é uma curva quadrática. A equação que se
obtém é,
c
y 2 = cy − xy + ay − ac.
b
Pela figura, poderı́amos considerar os segmentos AK e AG como sendo os eixos x e y que se
cruzam na origem A; nesse caso, a equação acima é sim a função do lócus do ponto C, identificado
por um sistema de coordenadas cartesianas. No entanto, Descartes nunca jamais considerou os
segmentos AK e AG como sendo os eixos coordenados x e y que se cruzam na origem A. Ele
apenas considerou os comprimentos x = AB e y = BC como variáveis sem localizar nenhum
ponto de referência e nenhum outro sistema de coordenadas qualquer, e muito menos o sistema

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de coordenadas cartesianas. Em outras palavras, a ideia de algum sistema de coordenadas como
sistema de referência nunca passou pela cabeça de Descartes.
Então, se não foi Descartes, quem afinal criou o Sistema de Coordenadas cartesianas?
Vejamos alguns detalhes. Cinquenta e cinco anos após a publicação do livro de Descartes, em
1692, Gottfried Wilhelm Leibniz publicou um artigo onde ele considera uma linha como sendo
uma função associada especificamente a uma coordenada com eixo x como abcissa e eixo y como
ordenada. No artigo lê-se,
De linha ex linha número infinito ordinatim ductis inter se formates simultâneos
de ônibus, easque omnes tangente, ac novo em ea Analysis infinitorum usu.
Gottfried Wilhelm Leibniz.
Acta Eruditorum. Vol. 11. 1692. p. 168-171.
Porém, existe uma controversa relacionado a esse artigo. Foi o primeiro artigo sobre o plano de
eixos ortogonais e foi de autoria de Leibniz; não se sabe se foi ele o criador, pois em todos seus
trabalhos ele sempre se mostrou auto-suficiente e arrogante quanto a suas descobertas, e não são
essas caracterı́sticas que se encontra nesse artigo. É por essa razão que há um consenso entre os
estudiosos de que Leibniz provavelmente tenha tomado conhecimento de um sistema de referência
com eixos ortogonais e acabou por publica-los. Embora não saibamos quem foi o criador, temos
indı́cios de onde veio a inspiração.
1. Desde o ano de 194 a.C. já se conhecia o sistema de coordenadas não cartesianas de
latitude e longitude; foi criado por Erastótenes e utilizado em seu mapa do mundo. Você pode
verificar esse mapa neste link:
http://www.henry-davis.com/MAPS/Ancient Web Pages/112.html
No mapa encontramos as linhas de latitude e as linhas de longitude. (a propósito, se quer saber
algo a mais sobre Erastótenes, entre neste site:
http://adsabs.harvard.edu/full/1980QJRAS..21..379N
vai se surpreender de onde vem essa fonte.
2. A trigonometria também era conhecida já havia muito tempo. A trigonometria está
baseada nas medidas dos segmentos de retas associados a um triângulo dentro de um dos quad-
rantes de um cı́rculo de raio unitário. Veja a figura abaixo.

E F E F
B
ou B D

θ θ
O A C O AC

sin(θ) = AB; cos(θ) = OA; tan(θ) = CD;


cot(θ) = EF ; sec(θ) = OD; csc(θ) = CF ;

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Observe que essas relações trigonométricas estão relacionadas aos eixos ortogonais que se
cruzam na origem O. Considerando estes eixos e o ponto O como um sistema de coordenadas
no mesmo sentido que o sistema de coordenadas no mapa de Erastótenes, pensou-se ser possı́vel
localizar qualquer ponto dentro desses quatro quadrantes, tal qual se encontra um ponto no mapa
a partir de um ponto de referência. Por exemplo, em vez de dizer Latitude: 40◦ Norte, Longitude:
80◦ Leste (estilo Erastótenes), poderia se dizer 40 unidades horizontais, 80 unidades verticais
(estilo trigonométrico). Ora, esse tipo de associação, Latitude-Longitude, Horizontal-Vertical,
é exatamente o mesmo tipo de associação no estilo Descartes, isto é, incógnitas x-y. Além do
mais, se aplicarmos a estratégia de Descartes para resolver o problema de Pápus para o triângulo
trigonométrico, relacionados todos aos eixos ortogonais, iremos obter a equação quadrática

y 2 = 1 − x2 ,

onde x = OA é a incógnita horizontal e y = AB, a incógnita vertical. O eixo horizontal foi


chamado de abcissa (absciss) e o eixo vertical, de ordenada (ordinata). O lócus do ponto (x, y) foi
chamado de coordenada (coordinata). Então, o sistema de coordenadas ortogonais tomou forma
para localizar um ponto qualquer em um plano onde este sistema se encontrava.
Quando Leibniz tomou conhecimento dessa nova descoberta, ficou fascinado porque todas
as funções que poderiam ser imaginadas poderiam ser representadas dentro desse sistema. E foi
assim que nasceu o Sistema de Coordenadas Ortogonais, que mais tarde seria chamado de Sistema
de Coordenadas Cartesianas, ou simplesmente Plano Cartesiano, em homenagem a Descartes.

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