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CHAVES DE LEITURA DAS CONSTITUIÇÕES DAS

CARMELITAS DESCALÇAS

As Constituições das Carmelitas Descalças, aprovadas em 1991, estão sujeitas a


diversas interpretações, assim como a serem lidas a partir de ângulos diferentes. Estas
são as chaves de leituras. Poderíamos compará-las a janelas abertas ao mesmo
panorama, que permitem contemplá-lo a partir de perspectivas parciais e
complementárias. São pontos de observações que introduzem a uma realidade. Todos
são úteis e complementários. Sempre haverá uns privilegiados pela visão que oferece,
ainda que terá que considerar detalhes que se lhe escapam e que outros permitem ver
mais claramente.
As chaves de leitura não se dão em estado puro. Ordinariamente se encontram
misturadas, se bem que uma costuma predominar nas pessoas e caracterizar sua
aproximação a um fato histórico.
Creio que as principais chaves de leitura das Constituições, que nos podem
ajudar a compreendê-las são: a jurídica, a histórica, a eclesial, a apostólica missionária,
a do futuro, a teologal existencial. Entre elas, considero que esta última é mais
globalizante e a que, portanto, pode guiar melhor a reflexão para torná-las vida.

1. A chave jurídica

Esta chave de leitura se baseia na idéia do que são umas Constituições na vida
religiosa. As Constituições são o Código fundamental de um Instituto religioso. Nele se
incluem: a) “os princípios e a teologia evangélica da vida religiosa e de sua união com a
Igreja e as expressões adequadas e seguras para interpretar e cumprir o espírito e os
objetivos de seus fundadores, assim como as sãs tradições, e tudo o que constitue o
patrimônio de cada instituto”( Decreto Perfectae caritatis, n. 2 b).
Também se tem: b) as normas legais necessárias para definir claramente a
natureza, propósito e os meios da instituição.
A chave jurídica da leitura das Constituições centra-se especialmente na
organização da vida em todos seus aspectos; nas condições para a admissão e
formação das candidatas; nas estruturas de governo; nas normas canônicas que se
devem observar fielmente; no que está permitido ou não está permitido; na
observância de todas as prescrições. Esta chave é necessária, porém tem o perigo de
absolutizar-se a ponto de cair em um puro e simples legalismo que mata o espírito da
lei. Para a chave jurídica existe um comentário muito detalhado do P. Rafael Zubieta.

2. A chave histórica

A janela histórica de aproximação às Constituições é a que privilegia todo o


itinerário de renovação pelo qual teve que atravessar a redação das mesmas. Um
capítulo doloroso da história do Carmelo teresiano feminino no século XX foi, sem
dúvida, o da divisão das Carmelitas Descalças. Uma série de causas, interesses e
mediações humanas levaram a um ruptura que se concretizou em um duplo texto
constitucional. A renovação legislativa das Carmelitas Descalças, pedida pelo Vaticano
II, tropeçou com a grande dificuldade da excessiva autonomia dos mosteiros que
impedia o ter estruturas comuns que facilitariam o processo. Por não tê-las, como os
Institutos apostólicos (províncias, generalato, capítulos provinciais, capítulos gerais), a
responsabilidade de organizar e dirigir o processo renovador teve que ser assumida
pelo Superior Geral do ramo masculino da Ordem. Isto explica o por quê da
intervenção dos frades carmelitas no desenvolvimento e coordenação das etapas que
levariam à redação de um texto constitucional renovado, a partir das indicações da Sé
Apostólica.
Para o Superior Geral dos frades carmelitas, se tratava de uma missão difícil e
delicada. Nesse momento existiam 780 mosteiros de Carmelitas Descalças estendidos
em todo o mundo. Suas Constituições, escritas originalmente para os carmelos
espanhóis, se haviam mantido praticamente sem mudanças substanciais, pelo que
respeita à Congregação italiana, enquanto que a espanhola se havia introduzido
mudanças em 1626 e em 1786. Em 1996, enviou-se um questionário a todos os
mosteiros para convidá-los a apresentar sugestões e propostas para a revisão de sua
legislação. Em 1967 e 1968, o capítulo geral dos frades discutiu o tema detidamente.
Logo se pode constatar que o capítulo não podia realizar por si mesmo um trabalho
desse gênero, e decidiu-se encomendá-lo ao Superior Geral. Este, em 1972, ofereceu
às monjas um projeto chamado Lei Fundamental para que o examinasse atentamente
e enviassem suas propostas em ordem à redação definitiva de sua legislação. A reação
das monjas a esta consulta foi variada porém, prevalentemente negativa.
Por este motivo, em vez de continuar as consultas, acreditou-se oportuno
promover encontros de representantes dos diversos mosteiros. À luz destes encontros,
em 1974, perguntou-se a todos os mosteiros se estariam dispostos a aceitar como
esquema de legislação: a Regra primitiva, as Constituições primitivas de Santa Teresa e
as Declarações, para adaptar as Constituições primitivas ao Vaticano II. A imensa
maioria dos mosteiros aceitou essa fórmula. Só uma pequena minoria rejeitou o
esquema e respondeu que desejava conservar as Constituições de Alcalá em lugar das
Constituições primitivas.
Com a aprovação da Congregação para os Institutos religiosos, em 1977,
promulgo-se a nova legislação “ad experimentum” por cinco anos, para todos os
mosteiros, a fim de que, à luz da experiência, se pudessem amadurecer as propostas e
observações que serviriam para a redação do texto definitivo. Já antes de ser
promulgado o texto das Declarações pela Sé Apostólica, alguns mosteiros começaram
a opor-se à legislação anunciada e fizeram chegar à Congregação para os Institutos
religiosos numerosas cartas contendo observações e dúvidas sobre a fidelidade ao
espírito de Santa Teresa nas Declarações. Ao término dos cinco anos de experiência, os
86% dos mosteiros pronunciaram-se favoravelmente a estas, porém um grupo
dissidente, chamados “Carmelos Unidos”, contando com o apoio de grupos
conservadores na Igreja, conseguiu bloquear a aprovação do novo texto e obrigou a
que se reiniciasse um novo processo redacional das Constituições. Havia triunfado a
resistência à mudança pedida pelo Concílio. Em uma famosa carta da Secretaria de
Estado, assinada pelo Card. Casaroli, chamava-se fiéis à minoria anticonciliar e se
questionava a fidelidade ao carisma da maioria (86%) dos mosteiros que se haviam
esforçado por aceitar a necessária renovação conciliar.
A redação do novo texto constitucional foi realizada por uma comissão nomeada
pela Cúria romana e, quando depois de mais de cinco anos, o texto estava a ponto de
ser aprovado pelo Papa, a pedido da Congregação para os Institutos religiosos, que o
havia encontrado fiel ao carisma e à renovação conciliar, sucedeu o inesperado:
aprovou-se o texto das Constituições preparado pelo grupo oposto ao Vaticano II, e se
informou que a aprovação do texto renovado ficava em suspenso. Este texto
constitucional foi aprovado dez meses mais tarde que o anterior e depois de seis
meses de discussões com as autoridades eclesiástica, inexplicavelmente condicionadas
ainda pelo grupo que havia já recebido a aprovação de seu texto constitucional. Todos
os números foram analisados e discutidos em seus mínimos detalhes, a pesar de que já
haviam sido aprovados anteriormente pela Congregação para os Institutos religiosos.

3. A chave teológica

Uma leitura das Constituições em chave teológica da vida consagrada busca as


novidades que se deram nelas a partir do ponto de vista da reflexão doutrinal. Neste
ponto, deve-se confessar que houve poucos avanços em relação ao que foi exposto no
Vaticano II. A chave de leitura teológica leva a descobrir a reafirmação de elementos
da reflexão sobre a vida consagrada: os votos, vida fraterna em comum, missão,
sentido eclesial, dimensão carismática e escatológica. Algum avanço se deu na
consideração do aspecto antropológico da natureza da vida consagrada. Sublinhou-se
também a importância que tem o colocar a identidade da consagrada em relação com
as outras vocações presentes na Igreja, salientando também aqueles aspectos típicos
que não podem faltar: o seguimento de Jesus, a consagração, a profissão dos
conselhos evangélicos por meio, dos votos, o carisma que, segundo muitos, poderia
ser a perspectiva capas de esclarecer melhor as coisas, o testemunho de comunhão.
Do ponto de vista doutrinal carmelitano, as novas Constituições tem uma grande
riqueza por recorrer continuamente à experiência e doutrina de nossos Santos Pais e
de outros santos e santas do Carmelo

4. A chave eclesial

A chave eclesial faz ver a importância de viver em comunhão com a Igreja


particular e de pôr a seu serviço o carisma contemplativo, promovendo a comunhão na
missão, como pedia a Nossa Madre Santa Teresa. Pede-se abertura ao diálogo para
superar os problemas e tensões de uma vocação pouco compreendida na própria
Igreja. É a perspectiva eclesial a que descobre o papel da mulher consagrada no
Carmelo contemplativo dentro do Povo de Deus; a importância da visão feminina na
teologia e na pastoral; a necessidade de uma promoção da mulher na Igreja, dando-lhe
maiores responsabilidades e abrindo espaços para ela dentro de suas estruturas a
partir do testemunho de vida que evidencia o absoluto de Deus.

5. A chave apostólica missionária

Se considerarmos que a missão não é uma mera atividade da vida consagrada, mas
que é parte integrante de seu ser, como o é o da Igreja, poder-se-á compreender a
importância da chave apostólica missionária na leitura das Constituições. A Santa
Madre deu uma dimensão apostólica à oração. Nesta perspectiva central da missão
aparece o testemunho de vida como um elemento de evangelizar e pode ser
considerado como condição prévia para o anúncio da Boa Nova.

6. A chave do futuro

A chave de futuro na leitura das Constituições não é outra senão a que se aproxima
delas a partir da fidelidade criativa ao carisma para renová-lo e encarná-lo no mundo
atual. Quem impulsiona a ela é o Espírito Santo que orienta a buscar novos caminhos.
Requer-se para conseguir essa fidelidade criativa e madura, uma volta às origens e,
ao mesmo tempo, uma abertura aos sinais dos tempos com um discernimento orante.
Como preparação para enfrentar o futuro e abrir-se a suas exigências, está a
necessidade da formação a partir da perspectiva humana, teológica e espiritual. Deve-
se partir sempre de uma experiência de Deus na realidade e de uma escuta vital e
comprometida de sua Palavra através do exercício do discernimento orante
comunitário.
Os sinais dos tempos e dos lugares no século XX apresentaram uma série de
desafios que as monjas Carmelitas Descalças tiveram que enfrentar para viver uma
fidelidade criativa ao carisma teresiano e às orientações da Igreja. Isso implicou
mudança e evolução em suas estruturas internas e na dimensão apostólica de sua vida
de oração.
Um primeiro desafio que se teve que enfrentar depois do Concílio, foi o problema
da excessiva autonomia dos mosteiros. Com efeito, no mundo atual é impossível
enfrentar e resolver os problemas sem uma mais ampla colaboração e comunhão em
todos os níveis da sociedade e da Igreja. Os mosteiros teresianos experimentaram com
maior intensidade as limitações de viver separados e fechados em seu pequeno
mundo e começaram a dar alguns passos para abrir-se à colaboração entre eles.
Outro desafios que as Carmelitas Descalças começaram a experimentar foi o de
uma fidelidade adulta e madura à clausura. Esta é um meio fundamental para
conservar a fidelidade a seu carisma contemplativo e sua identidade vocacional. A
finalidade da clausura é a de criar um espaço de silêncio, solidão, vida fraterna,
liberdade, porém deve-se distinguir nela o que é essencial na clausura dos sinais
externos, fruto de uma época, uma cultura e uma situação da mulher na sociedade e
na Igreja. No século passado se fizeram esforços para viver a clausura com coerência e
com responsabilidade de mulheres maduras e identificadas com seu carisma
contemplativo, de maneira que fosse significativo em um mundo sedento de
contemplação. Ao mesmo tempo e de acordo com as orientações da Igreja, a clausura
não deve impedir os meios para uma necessária formação e para uma participação
litúrgica clara e compreensível.
A reestruturação de mosteiros é outro dos desafios que as monjas carmelitas
começaram a enfrentar em algumas regiões do mundo. A expansão do Carmelo
feminino contemplativo em alguns países se realizou em momentos de abundância de
vocações à vida religiosa. A crise vocacional que começou a afetar esses países no pós
concílio, apresentou um grande desafio para o futuro da presença carismática
significativa das Carmelitas Descalças. Começou-se a constatar que existiam mosteiros
demais para as possibilidades vocacionais reais de algumas regiões. O aumento da
media de idade, as enfermidades, a diminuição do número nas comunidades expõem
um grave problema: o de uma autonomia jurídica que se transforma em obstáculo
para uma autonomia vital. Mosteiros que contam com um número reduzido de
membros, em sua maioria de idade avançada ou desgastados pela enfermidade,
começaram a esboçar o problema de seu futuro à luz do que Vita consecrata diz a
propósito dos “Instituto que correm inclusive o risco de desaparecer”.1
Um discernimento orante a nível de cada mosteiro e em âmbito de cada
Associação – Federação , pode ajudar a encontrar um caminho para uma
reestruturação da presença das carmelitas descalças em cada território. Isso supunha
viver o desapego evangélico, fruto da autêntica contemplação. A “importação” de
irmãs de outras nações e culturas não pode resolver o problema de fundo. Tão pouco
o importar “vocações” de outros países sem o conhecimento de sua cultura, de sua
língua e sem contar com elementos suficientes para um discernimento vocacional. A
reestruturação dos mosteiros continua sendo, sem dúvida, um dos maiores desafios
que devem enfrentar as Associações – Federações, limitadas pela excessiva autonomia
de cada mosteiro.
Outros dois desafios importantes se apresentaram para as Carmelitas Descalças no
século que acaba de terminar: o da unidade na pluriformidade e o de uma maior
relação entre as diversas Associações ou Federações.
Não se pode pretender, como no passado, uma unidade na uniformidade. Pouco a
pouco as monjas carmelitas no século XX, foram aceitando a unidade na
pluriformidade, feita não de posições fundamentalmente opostas, senão de uma
fidelidade ao essencial do carisma e que se enriquece com a diversidade de todo o
secundário e cultural.
Se é verdade que a criação de associações e Federações foi um passo adiante na
linha de renovação querida pela Igreja desde o pontificado de Pio XII, se foi
descobrindo a necessidade de comunicação e colaboração entre elas para resolver
problemas comuns, fortalecer os vínculos de família entre os diversos mosteiros e ter
uma voz como mulheres consagradas e carmelitas contemplativas na Igreja. Deste
modo, a vivência de sua identidade vocacional as pode levar a ser testemunhas de
Deus e de seus caminhos na história e na vida humana e a testemunhar a perene
novidade do encontro de Deus com a humanidade e a riqueza evangélica de uma
oração diálogo de amizade com Deus, o único absoluto.

7. A chave teologal existencial

Esta chave parte do fato de que a vida consagrada deve expressar a santidade da
igreja em um desenvolvimento da fé, da esperança e da caridade vividas a partir do
próprio carisma. Deve-se viver uma espiritualidade vital e encarnada, que se nutra da
leitura e meditação da Palavra de Deus e da Eucaristia. Deve-se insistir na
espiritualidade dos votos e da vida comunitária como expressões de fé, esperança e
amor; viver a identificação com Jesus Cristo em um estilo alternativo de vida, que
supõe romper com as seguranças do poder, do saber e do ter, e superar a tentação do
aburguesamento.

Deve-se viver em uma atitude permanente de êxodo e conversão para abrir-se aos
sinais dos tempos e dos lugares, e aos desafios que apresentam, com uma
espiritualidade encarnada e sem dicotomias, nem reducionismos. Buscando unir o
1
Cf. VC 63.
natural e o sobrenatural, o temporal e o eterno, o individual e o social, a imanência e a
transcendência. Isto se deve fazer com uma grande liberdade evangélica ( “parresia”),
que comunica o Espírito, para anunciar as exigências do Reino e denunciar o que se
opõe a ele, em um compromisso com a justiça e a paz, assumido a partir da oração.
Nesse caminho, Maria é modelo de seguimento de Jesus na escuta da Palavra e
proximidade às necessidades dos demais. Esta chave de leitura é, sobretudo, uma
chave de esperança ativa nos esforços de renovação da vida consagrada.

Conclusão

As chaves de leitura que apresentamos são, cada uma e todas juntas, janelas às
Constituições e portas de entrada para sua assimilação e vivência práticas. O
importante é estar abertos e disponíveis à ação do Espírito. Ele, como na Igreja
primitiva, produz, como primeiro fruto, a comunhão entre os crentes. Uma comunhão
imperfeita, que se vive nas tensões. Junto com esta comunhão está a liberdade. O
Espírito cria, através do amor, um marco de liberdade no qual se desenvolve a vida
cristã. A liberdade conduz à construção da comunhão e da participação. Saber
conjugar essas duas dimensões do Espírito: comunhão e liberdade, é o grande desafio
para todo cristão e, portanto, para as carmelitas no mundo de hoje.

Camilo Maccise

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