Você está na página 1de 11

A Constituição 

Lumen Gentium  sobre a Igreja é o resultado do conflito entre duas


eclesiologias. Esse conflito constituiu a estrutura de fundo de todos os debates
conciliares, o que se refletiu nos documentos produzidos. Lumen Gentium é bem
representativa do Vaticano II. Aí aparecem, de forma clara, duas eclesiologias.
Por que o conflito?

Porque a maioria conciliar teve atitude oposta à da maioria no Concílio Vaticano I. No


Vaticano I, os bispos defensores da colegialidade episcopal e dos direitos dos bispos
eram minoria. Essa minoria foi esmagada, apesar da sua importância numérica. Não se
lhe fez nenhuma concessão. Por isso a minoria abandonou o Concílio, protestando
contra a arrogância da maioria que queria a proclamação da infalibilidade e da primazia
do papa sem nenhuma restrição nem compensação que favorecesse o episcopado. O
Vaticano I fez com que os bispos fossem transformados em simples funcionários da
Igreja romana, encarregados de governar as Igrejas locais em nome do papa. Era o que a
maioria queria.

No Vaticano II, a minoria do Vaticano I havia se tornado maioria. No entanto, a nova


maioria não quis tratar a minoria do modo como havia sido tratada no passado. A
maioria abriu espaço para a minoria e integrou nos textos muitas reivindicações da
minoria. Dessa maneira, foram publicados textos dotados de evidente ambiguidade:
textos representantes da eclesiologia majoritária em convívio com textos totalmente
diferentes, que representavam a voz da minoria. O preço dessa atitude “democrática” da
maioria foi o enfraquecimento do texto final, suscetível de interpretações contraditórias.

Na realidade, a consequência dessa atitude de tolerância foi que os textos puderam ser
invocados pelas duas eclesiologias. A história do Concílio mostra claramente que o que
houve de novo, o que aparecia como novidade — mas era o sentido da Bíblia e da
Tradição de mais de mil anos — representava o pensamento da grande maioria. Não há
como conferir o mesmo peso às duas categorias de textos. Uma série de textos expressa
o pensamento da maioria e outros representam apenas concessão feita à minoria.

Como explicar tanta tolerância para com uma minoria bastante turbulenta, mas pouco
representativa?
A minoria, defensora da antiga eclesiologia, era dirigida pela Cúria. Desde o início a
Cúria procurou impedir a realização do Concílio. A maioria dos membros da Cúria era
hostil ao papa João XXIII e não escondia essa hostilidade. A Cúria conseguiu dirigir
toda a fase pré-conciliar e preparar esquemas representativos da eclesiologia romana
tradicional.

Na véspera do Concílio, entre os defensores da nova eclesiologia, o ambiente era


bastante pessimista. Muitos achavam que a Cúria iria controlar a assembleia e
conseguiria anular o projeto do papa. Por sua vez, os partidários da eclesiologia romana
estavam otimistas. Achavam que poderiam fazer do Concílio pura celebração festiva,
que votaria os documentos preparados pelas comissões dirigidas por eles. Achavam que
o Concílio não iria durar mais do que algumas semanas. Todo esse plano foi
desmontado por alguns cardeais que se puseram firmes e receberam o apoio da grande
maioria. Também o papa usou toda a sua autoridade para estimular e orientar o Concílio
no sentido desejado por ele. O papa queria realmente que o Concílio se inspirasse nas
suas orientações — particularmente expressas no discurso inaugural.

Mas a Cúria não desistiu e, durante todo o Concílio, procurou obstaculizar a orientação
dada pela maioria. Nem João XXIII nem Paulo VI quiseram desautorizar oficialmente
os líderes conservadores da Cúria. Esta, longe de aceitar as orientações dos papas, nunca
deixou de conspirar. Com a sensibilidade de funcionários eclesiásticos, entreviam que,
caso se aplicasse o princípio de colegialidade, o papa não iria perder sua importância,
mas a Cúria teria o seu papel muito reduzido. Membros da administração defendiam
supostos direitos adquiridos, e a rejeição da teologia que justificava a concentração de
poderes na Cúria romana vinha a enfraquecer essa argumentação. Rejeitada aquela
teologia, as repartições da Cúria perderiam muitas atribuições.

Bem mais cedo do que se podia esperar, o partido da Cúria recuperou-se e procurou
limitar a aplicação do Concílio. Uma administração pode paralisar inteiramente a
vontade do governante. A Cúria não quis ceder nada dos seus poderes e lutou durante 40
anos contra todas as novidades conciliares, particularmente contra as conferências
episcopais — as quais conseguiu anular ou reduzir a um papel puramente decorativo —
e as teologias locais que tendiam a aumentar a responsabilidade das Igrejas locais. A
teologia do povo de Deus acabou sendo eliminada no Sínodo de 1985, que
supostamente se reuniu para atualizar o Concílio, mas, na realidade, tirou dele muito do
que havia de novidade. A Cúria continua sendo inspirada pela teologia romana de
séculos passados. Conseguiu apagar a teologia conciliar, tornando-a suspeita.

Desde o início do atual pontificado, buscou-se purificar a Igreja de todo o fermento


transformador do Vaticano II, voltando à teologia anterior. Para isso, reforçou-se o
partido anticonciliar na Cúria e mudou-se completamente o rosto do episcopado,
nomeando sistematicamente bispos inteiramente submissos, que aceitam com gratidão o
papel de funcionários da Cúria romana. A cada cinco anos os bispos devem visitar a
Cúria romana, que lhes impõe a sua estratégia. Os bispos são considerados inferiores
aos prelados da Cúria e devem contentar-se com alguns gestos amáveis do papa como
“prêmio de consolação”. O discurso oficial de fidelidade ao Concílio Vaticano II está
longe de traduzir-se em prática cotidiana.

 
1. Eclesiologia pré-Vaticano II
Voltemos aos tempos do Concílio Vaticano II e ao debate eclesiológico.

A teologia romana formou-se durante mil anos, a partir das lutas entre os papas e os
imperadores. Ela cresceu e se fortaleceu. Saiu muito reforçada do Concílio de Trento.
Com efeito, a chamada reforma da Igreja — que era mais uma contrarreforma do que
uma reforma — foi entregue ao papa e, desta maneira, os bispos perderam o seu direito
de iniciativa. Em nome da reforma, a Igreja romana concentrou todos os poderes e
centralizou toda a administração. Daí em diante definiu e uniformizou a liturgia, o
catecismo, o direito canônico e o governo habitual das Igrejas — com a publicação
do Código de direito canônico, em 1917, conquistou o direito de nomear todos os
bispos.
Os pontos básicos dessa doutrina são os seguintes:

1. A Igreja é uma sociedade organizada, uma instituição fundada por Jesus que se impõe
à humanidade sem que esta possa mudá-la em nada. Supõe-se que Jesus fundou a
instituição com todas as suas estruturas. Tudo o que constitui a instituição viria de Jesus
ou dos delegados escolhidos por ele. Os cristãos dependem totalmente da instituição e,
diante dela, são receptores passivos. Belarmino comparava a Igreja com o reino da
França ou a república de Veneza. A Igreja é considerada semelhante ao Estado. Como o
Estado, ela é uma instituição e uma realidade abstrata, feita de leis e relações de
dependência. A Igreja se mantém por meio de leis atribuídas ao próprio Deus. Nessa
instituição, o elemento ativo é o clero — contingente auxiliar do papa. Os leigos são
elementos passivos que devem obedecer ao clero — e constituem o contingente deste
em vista da salvação, da defesa e do progresso da Igreja. Notemos que até hoje a imensa
maioria do clero e dos leigos, quando ouve a palavra “Igreja”, pensa “clero”. A Igreja
católica é identificada com a hierarquia. Quando alguém pergunta: “O que diz a
Igreja?”, quer saber o que dizem os bispos ou o papa. “A Igreja ensina que…” quer
dizer: “Os bispos ou o papa ensinam que…”. Nesse sentido, embora tenham passado 40
anos do Concílio, a mentalidade do povo cristão em geral não mudou. As reformas
conciliares ficaram muito superficiais, porque a administração eclesiástica impediu que
penetrassem na massa dos leigos. Para o povo, a Igreja ainda é identificada com o papa
e os bispos, juntamente com o clero e os religiosos. Os leigos não sentem a Igreja como
própria. Não sentem que a Igreja somos “nós”. No Concílio esperava-se poder mudar
essa mentalidade.
 
2. A Igreja e o mundo são duas entidades distintas, que existem separadamente, embora
haja relações entre si. A Igreja não pertence ao mundo, não tem nada que ver com os
pecados do mundo, não tem nenhuma responsabilidade. O mundo é pecador e a Igreja é
santa. Alguns membros da Igreja podem cometer erros e até pecados, mas ela não está
em nada comprometida com isso, pois esses membros agiram em sentido contrário ao
dela. A Igreja não tem nenhuma responsabilidade nos pecados de alguns dos seus
membros. A relação entre ela e o mundo é semelhante à relação entre o bom samaritano
e o homem ferido na estrada. A Igreja, cheia de compaixão, cuida do ferido e o salva. É
assim que a ela se entende. A Igreja ensina ao mundo, mostra o caminho, revela a
verdade. Denuncia o pecado do mundo, exorta para a conversão, sempre como quem
está na parte de fora: fala aos outros, mas não a si mesma. Acha que, infelizmente, o
mundo não quer escutar, não quer seguir o caminho mostrado por ela, e, por isso,
mergulha no pecado. A Igreja fez o que devia e não se responsabiliza mais pelo que
acontece. Essa tese é correlativa à primeira. A relação entre Igreja e mundo é
radicalmente desigual: a Igreja age sobre o mundo, mas o mundo não age sobre a Igreja.
Esta é ativa e aquele é, ou deve ser, passivo.
 
Essa ainda é a mentalidade do clero em geral e da hierarquia em particular. Para boa
parte do clero, o pecado é dos outros, e a Igreja é pura e santa. Esses padres têm uma
consciência inocente. Não se sentem culpados em nada daquilo que acontece no mundo.
O problema é que, fora da Igreja, não se acredita nisso; pelo contrário, muitos mostram
todas as responsabilidades da Igreja — da hierarquia e do clero — em relevantes
pecados sociais e políticos.
Essa teologia, dominante desde o final da Idade Média, foi codificada no Concílio de
Trento e alcançou o ponto culminante depois do Vaticano I com os papas Pios. No
entanto, desde o século XI alguns teólogos não conformistas começaram a descobrir a
contradição entre essa teologia e as fontes do cristianismo. No século XX, os
movimentos bíblico e patrístico, à medida que biblistas e historiadores se emancipavam
da teologia sistemática dominante, descobriram a evidência: a eclesiologia da Bíblia e
da patrística era diferente da que estava em vigor. O problema passou a ser este: como
convencer a hierarquia da Igreja de que a sua concepção teológica não conjugava a
verdadeira Tradição, mas era o resultado de circunstâncias históricas? No pontificado de
Pio XII, eram poucos os que esperavam que a Igreja católica tivesse a possibilidade de
voltar ao evangelho — uma vez que estava encerrada no sistema religioso criado no
decorrer do segundo milênio e consolidado depois de Trento. A Igreja era prisioneira de
certa escolástica que se construíra para si mesma e a tornava prisioneira. Evidenciou-se
a enorme defasagem da teologia que orientava a administração eclesiástica. Os teólogos
escolásticos não se importavam com o trabalho dos exegetas. Eles repetiam os textos
que recitavam desde o século XVI, sem levar em conta o trabalho paciente dos biblistas.
Estes viviam em semiclandestinidade, perseverando num trabalho que não tinha
nenhum efeito no ensino e na marcha da Igreja.

Com a chegada de João XXIII ocorreu o que não era previsível. João XXIII não era
teólogo nem biblista. Mas, pela sua formação e pela sua carreira, era muito sensível aos
movimentos sociais católicos e à situação do mundo dos trabalhadores. Nessa época
houve uma aliança entre, por um lado, a teologia bíblica e patrística e, por outro, os
movimentos sociais — nos quais, os católicos comprometidos faziam a experiência
diária da falsidade da eclesiologia oficial. Eles não eram membros passivos da Igreja.
Eram ativos. Não estavam separados do mundo, mas viviam mergulhados no mundo,
participando dos seus dramas. Não podiam aceitar uma Igreja distante do mundo e não
comprometida. Durante quase cem anos houve comunicação entre a nova eclesiologia
e  os leigos socialmente comprometidos. Tudo isso desembocou no Concílio. O
Vaticano II foi o principal lugar de encontro entre o laicato comprometido no mundo e a
nova eclesiologia bíblica e patrística.
 
2. Nova eclesiologia
A nova eclesiologia, a única realmente tradicional, pode ser condensada em duas teses.

1. A instituição existe dentro da Igreja como serviço, mas ela não é a Igreja. A Igreja
não é entidade abstrata. Ela é feita de seres humanos concretos, homens e mulheres que
vivem neste mundo. Também os membros ordenados da hierarquia e do clero são seres
humanos, e a ordenação não os separa dos outros. Para expressar essa realidade
concreta, a Bíblia escolheu o tema de povo de Deus. O povo não é uma instituição. Ele
existe antes de qualquer instituição, e as instituições somente se justificam quando estão
a serviço do povo. Deus fundou o seu povo antes de todos os elementos institucionais.
Todos são ativos e recebem o Espírito Santo, todos participam do magistério, dos
sacramentos e do governo desse povo. O povo de Deus existia antes dos apóstolos —
postos por Jesus para serem testemunhas de tudo o que tinham visto e ouvido. O povo é
anterior à hierarquia. A eclesiologia tridentina dizia que a hierarquia gerava a Igreja
porque gerava os seus membros como depositária dos sacramentos, do magistério e do
governo. Mas esses são sinais da operação do Espírito Santo. Quem gera a Igreja é o
Espírito Santo, embora se possam usar sinais exteriores e serviços de servidores
especializados nesses sinais. Porém a graça de Deus não é dada pela hierarquia. Os
sinais são ministrados por ela, mas a graça somente pode vir de Deus. O Espírito Santo
gera a Igreja, cria ministérios e também pode gerar e escolher muitos membros do povo
de Deus que nunca receberam esses sinais.
 
2. O povo de Deus é parte da humanidade, consiste nos mesmos homens e mulheres que
estão inseridos na sucessão das gerações, implicados no mesmo tecido social e nas
mesmas tarefas de toda a humanidade. Eles são uma porção da humanidade com uma
missão específica: de ser testemunhas de Jesus Cristo, continuando a missão de Jesus no
meio dos irmãos. Eles não têm nenhuma autoridade sobre os irmãos que procuram atrair
e convencer. Devem entrar em colaboração com estes nas mesmas tarefas para libertar a
humanidade dos seus pecados. Com certeza, a libertação inclui também a luta contra as
forças adversas, contra a resistência do mundo material e contra todos os obstáculos
naturais à sobrevivência do gênero humano. No entanto, em primeiro lugar, existe a luta
contra os males dos quais os próprios homens são os autores, e esses são os que
chamamos de pecados. O pecado é o mal provocado pelo ser humano, individual ou
coletivo. O povo de Deus sofre permanentemente a influência da humanidade inteira e
dos seus companheiros na vida diária. Os membros desse povo são tentados a cometer
os mesmos pecados. Devem converter-se todos os dias e não se considerar seres já
convertidos — que doravante estariam acima da humanidade comum.
 
3. Eclesiologias em discussão
Essas foram as duas eclesiologias que entraram em confronto durante todo o Concílio,
mas sobretudo na discussão do documento conciliar sobre a Igreja (Lumen Gentium). A
comissão preparatória, dominada quase totalmente pela Cúria e os seus teólogos, tinha
preparado um texto sobre a Igreja que o cardeal Ottaviani apresentou à assembleia como
tão perfeito que podia ser adotado tal qual. Ele aceitava algumas emendas, mas
puramente secundárias. A doutrina do documento lhe parecia perfeita, e de fato ela
representava perfeitamente a eclesiologia da Cúria romana.
O documento preparado pela comissão foi apresentado no dia 1º de dezembro de 1962,
na 31ª congregação geral. A discussão ocupou desde a 31ª até a 36ª congregação, ou
seja, seis dias. Foi o momento decisivo do Concílio, pois se definiram aí os seus rumos.
A partir desse momento se soube qual era o verdadeiro debate — o que orientou as três
sessões seguintes do Concílio.

Na discussão, vários cardeais e bispos tomaram a palavra para defender o texto proposto
pela comissão. Mas outros manifestaram-se para mostrar as deficiências do texto. Os
argumentos destes convenceram. No dia 1º de dezembro houve uma intervenção de D.
Emílio De Smedt, bispo de Bruges, na Bélgica, denunciando o triunfalismo, o
clericalismo e o juridicismo do esquema proposto. Tocou nos pontos mais sensíveis,
expressando as acusações que se faziam sem cessar à Igreja no mundo contemporâneo.
Além do texto, ele questionava toda a eclesiologia que tinha predominado desde o
século XIV. Essa intervenção abalou profundamente o partido conservador e fortaleceu
a decisão do partido conciliar.

A 33ª congregação, reunida no dia 4 de dezembro, foi decisiva, e a assembleia definiu


claramente a orientação que queria dar ao Concílio. O cardeal Frings, falando em nome
de todos os bispos de língua alemã, rejeitou o esquema da comissão e pediu nova
redação. Depois dele houve o discurso do cardeal Suenens, propondo a rejeição do
esquema e a formulação de um novo. Apelava para a intenção do papa, mostrando que o
problema principal da Igreja era o diálogo como mundo e que se tratava de mudar a
Igreja em função desse objetivo. Contrariamente ao regulamento, o discurso de Suenens
foi ovacionado de forma demorada. Nisso se manifestava claramente o desejo da
assembleia no seu conjunto. Depois desse discurso, todos entenderam que a causa
estava definida. No dia seguinte o cardeal Montini exigiu também uma revisão completa
do esquema apresentado, dando apoio à tese de Suenens, e a sua maneira de falar não
permitia duvidar de que expressava o pensamento do papa.

É importante lembrar esses acontecimentos porque mostram qual era a posição da


grande maioria dos bispos e do papa, a posição de resistência da Cúria e a existência de
uma minoria de bispos ignorantes da teologia contemporânea, apegados a fórmulas do
passado, completamente separados do mundo atual. Não haviam compreendido as
preocupações do papa ao reunir o Concílio. Nesse momento, todos no Concílio estavam
muito conscientes de que se tratava de um debate entre duas eclesiologias e que a
grande maioria, com o apoio do papa, tinha feito opção clara por uma dessas
eclesiologias, sabendo muito bem o que queria. A partir desse momento os termos do
debate estavam muito claros.
O resto foi consequência dessa opção. O papa nomeou nova comissão teológica, cujos
membros eram representativos da maioria da assembleia. Os exegetas e teólogos que
haviam sido condenados sob Pio XII foram os que orientaram os trabalhos dessa nova
comissão.

Os bispos e teólogos prepararam novo esquema. Na realidade houve três propostas: uma
apresentada pela Alemanha, outra pela França e a terceira pelo Chile. O novo texto foi
preparado com base nesses textos — principalmente os primeiros dois. Houve muitas
emendas, com a introdução de temas antigos da escolástica. Alguns capítulos
representaram mais a posição antiga. Mas, de qualquer maneira, para a interpretação dos
textos, que foram finalmente aprovados, não se pode dar igual valor a todas as
proposições enunciadas. Algumas queriam expressar explicitamente a opção da maioria
e outras foram introduzidas para não desagradar à minoria.
 
4. Sequência dos capítulos e conteúdo
Vale a pena chamar a atenção para alguns itens particularmente significativos da  Lumen
Gentium. Os autores puseram como primeiro capítulo o mistério da Igreja, isto é,  a
relação da Igreja com as Pessoas divinas. Em lugar de começar por uma exposição
jurídica, como na teologia escolástica, acharam necessário destacar a relação com as
Pessoas divinas, isto é, o aspecto invisível da Igreja.
Para esse fim, quiseram relacionar a Igreja com as três Pessoas divinas e não com
“Deus” — a natureza divina que, no linguajar da Igreja latina, substitui tantas vezes as
Pessoas divinas e não é compreendida pelos orientais. Falar em “Deus” pode dar a
entender que existe uma quarta Pessoa divina chamada Deus. Ora, não há um sujeito
divino, mas uma natureza divina e três sujeitos que são as três Pessoas divinas. Dessa
maneira os padres conciliares queriam voltar ao modo de expressão da Bíblia e da Igreja
antiga, particularmente da tradição oriental conservada até os nossos dias.

Os padres conciliares evitaram o linguajar escolástico e resistiram à tentação de dar uma


“definição” de Igreja. Quiseram voltar à maneira da Bíblia, que usa muitas comparações
e metáforas para falar do mistério da Igreja, não ficando numa noção abstrata. Os padres
quiseram sobretudo evitar que prevalecesse uma definição jurídica de Igreja.

O segundo ponto fundamental foi a opção pela ordem dos capítulos. Isso foi longamente
debatido. O esquema da Cúria queria falar primeiro da natureza divina da Igreja na sua
relação com Deus, em seguida da hierarquia e depois dos leigos. A nova comissão
propôs e defendeu a ordem inversa: primeiro o povo de Deus; depois, a hierarquia. Essa
sequência, longe de ser pormenor acidental, era um fato altamente simbólico:
manifestava a intenção profunda da imensa maioria dos membros do Concílio. A
presença do texto sobre o povo de Deus, no capítulo 2, antes texto sobre a hierarquia, no
capítulo 3, é o símbolo de todo o projeto do Concílio. O povo de Deus era a Igreja de
todos os fiéis no meio dos povos da terra.

Com essa mudança na ordem dos textos, o Concílio queria ensinar que na raiz os
cristãos são iguais, sendo todos membros do povo de Deus, com a responsabilidade de
caminhar seguindo o evangelho. No seio do povo há serviços especiais. Mas os
membros da hierarquia ou do clero não têm um destino diferente em virtude da
ordenação. Não se salvam pela ordenação, mas pelo seguimento de Jesus, como todos
os batizados. O que é comum a todos os cristãos é muito mais fundamental do que o que
os distingue.

Em segundo lugar, o Concílio quis expressar dessa maneira que a Igreja está entre a
humanidade, participa do destino da humanidade. A hierarquia está a serviço do povo
— dos seres humanos —, e não o contrário. A Igreja está a serviço da humanidade e não
tem outro significado. A lei é feita para os homens, e não os homens para a lei. Havia
muitas outras considerações que justificavam a inserção do capítulo sobre o povo de
Deus antes do capítulo sobre a hierarquia, mas os dois pontos acima indicados
expressam as motivações principais. Naturalmente a opção conciliar estava
fundamentada no Novo Testamento.

Outro parágrafo relevante é o n. 12, que fala do Espírito Santo. Foi importante dizer que
o Espírito Santo não santifica e conduz a Igreja somente pelos sacramentos e pelos
ministérios, mas por todos os carismas espalhados no seio do povo de Deus — o que
desmonta a teoria tradicional segundo a qual a hierarquia é que gera e conduz a Igreja.
A hierarquia desempenha a sua parte, mas todos os cristãos podem também ter a sua
participação ativa na condução do povo de Deus. Para quem conhece a Bíblia, não há
nisso nenhuma novidade, mas a teologia ignorou essa realidade durante sete séculos e o
Magistério agiu baseado nessa teologia, como se Deus fizesse tudo por meio da
hierarquia.
O papa havia também manifestado claramente que o ecumenismo seria uma das
prioridades da Igreja. Ora, a teologia escolástica dominante não deixava muito espaço
para as Igrejas separadas, e a prática do ecumenismo era algo muito arriscado porque
podia atrair condenações a qualquer momento.

O tema entrou a propósito do primeiro capítulo, n. 8, b. Uma vez definido o mistério da


Igreja e a unidade entre os aspectos invisível e visível, era o momento de explicitar
quem era membro desse povo de Deus. Segundo a doutrina escolástica, essa Igreja, esse
povo de Deus, visível e invisível, era a Igreja católica. A teologia empregada queria
mostrar a identidade entre o povo de Deus e a instituição chamada Igreja católica. Com
isso, qualquer ecumenismo seria impossível. Houve discussões e, finalmente, quiseram
contornar a questão e deixar espaços livres. Disseram: “Esta Igreja… subsiste na Igreja
católica”, o que não exclui que possa subsistir, de alguma maneira, nas outras
denominações cristãs. De fato mais adiante havia algumas explicações sobre as diversas
formas de participação no povo de Deus.

 
5. A Lumen Gentium no contexto conciliar
O texto da Lumen Gentium  deve ser interpretado no contexto global do Concílio. Sem
dúvida, o documento que deu a tonalidade final e definitiva ao Vaticano II foi
a  Gaudium et Spes. É o que se manifesta claramente no discurso de Paulo VI no
encerramento do Concílio. Para resumir a obra conciliar, Paulo VI destaca que nele a
Igreja se definiu como servidora da humanidade. A Igreja quer estar a serviço do ser
humano. Isso é o amor ensinado por Jesus e não é nenhuma concessão feita ao mundo
contemporâneo. A Constituição sobre a Igreja foi publicada em 1964. No entanto, ela
toma o seu sentido definitivo no final do Concílio, no dia 8 de dezembro de 1965. Por
conseguinte, o que se deve salientar é tudo aquilo que mostra a Igreja como servidora da
humanidade, presença ativa no mundo, participante das alegrias e esperanças do mundo.
Por outro lado, os textos que lembram o triunfalismo de uma Igreja-fortaleza unida
contra o mundo devem ser relativizados.
O discurso de encerramento de Paulo VI mostra claramente que o Papa estava bem
consciente das objeções que se fariam ao Concílio — já em andamento por parte da
Cúria.

Hoje, 40 anos depois da promulgação da Constituição Lumen Gentium sobre a Igreja, a


única saída viável consiste em retomar os princípios enunciados naquele tempo e que
não foram promovidos de modo suficiente.
Nesse sentido, é importante salientar a atualidade da Constituição Lumen Gentium. Nos
seus pontos decisivos, ela ainda não foi aplicada — a não ser de modo muito parcial e
localizado. Ainda é um desafio a ser assumido pelas novas gerações.

Você também pode gostar