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Rio de Janeiro
Março de 2022
“Minha pintura não vem do cavalete... No chão fico mais à vontade. Eu me sinto mais
perto, mais parte da pintura, pois assim eu posso andar em volta dela, trabalhar pelos
quatro lados e literalmente estar na pintura.”
- Jackson Pollock
1. Ensaio e O Tempo
Eu havia acabado de ler a obra “Toda Poesia” quando comecei minha experiência
como estagiária no Casa Verde. Esse poema, especificamente, me povoou, pois,
diferente de Leminski, eu não conseguia estrelar este teatro que se chama tempo.
Com cenas angustiantes e papéis excruciantes, esta peça especialmente era algo que
me assombrava. Nunca me senti preparada para tal protagonismo. Do imediatismo ao
outro extremo da procrastinação, não era comum minha dança com o tempo fluir de
forma despojada.
Após algumas – muitas – sessões de análise entre o meu “sim” e o de fato início da
minha experiência no Casa Verde, meu primeiro estágio, prometi a mim mesma que
tentaria aceitar o protagonismo. Sem procrastinações, sem imediatismos e a régua que
mediria meu progresso seria a minha própria, não a alheia. E assim foi. Mesmo com
algumas recaídas e tropeços inerentes, pouco demorou para eu me sentir confortável
naquele ambiente. Confortável no desconforto, confortável na insegurança,
confortável no não saber. Minha primeira prática era um mundo completamente novo.
Quando tive as disciplinas que tangenciavam a Psicopatologia na faculdade, todas as
minhas percepções sobre saúde mental e visões subjetivas ficaram biologizadas. Foram
manuais e manuais transmitidos e eu carregava o DSM debaixo do braço, como um
padre que carrega a bíblia numa missa de domingo, achando que aqueles escritos
seriam a fonte de todas as verdades. Ao passar no processo seletivo do Casa Verde,
prestado pela segunda vez, achava que lidaria de forma relativamente fácil. Decoraria
um punhado de sintomas e pronto: tudo se tornaria calculadamente previsível.
Contudo, o primeiro tapa na cara que levei foi o da singularidade. Após meses e meses
de incertezas e inseguranças, soube que não daria mais para me guiar cegamente
pelos manuais. É um mundo feito de apostas, de erros e, de vez em quando, alguns
acertos. Cada caso é um caso, cada um é cada um e eles mesmos escrevem seus
próprios manuais, permanentemente modificados e atualizados. A angústia, nesse
trabalho, seria minha melhor amiga, e mal sabia eu que, além de tratar, seria também
tratada.
Meses se passaram, até que o tempo, mais uma vez, bateu em minha porta. Sabia que,
no final dessa experiência, teria que entregar um caso clínico. Mas sobre o que falar?
Sobre quem falar? Como falar? Eram tantos questionamentos que me tomavam conta,
parecia que todo meu processo no hospital dia havia sofrido um apagão. Achava que
não tinha nada a oferecer, que não tinha criado vínculos profundos e comecei a
questionar todo o meu desempenho até aquele momento.
Novamente, após algumas – muitas – sessões de análise e trocas essenciais com
minhas afinidades dentro da instituição, tudo ficou muito mais claro. Era para eu
continuar fazendo o que sempre fiz. Estava bem ali. A transferência havia me dado
tudo. Já dizia Freud, em “A Dinâmica da Transferência” (1912),
“Essa luta entre médico e paciente, entre intelecto e vida instintual, entre conhecer e
querer ‘dar corpo’, desenrola-se quase exclusivamente nos fenômenos da
transferência. É nesse campo que deve ser conquistada a vitória (...)”
2. O Militar
“E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?”
- Carlos Drummond de Andrade
Sempre que me refiro a’O Militar, este diálogo me vem à mente. A doçura em pessoa,
com uma importância inestimável dada à intimidade. Todavia, longo foi o tempo que
levou para eu conseguir acessar e captar esse lado dele, com a transferência já
estabelecida e concretizada. Para trançá-la, fiz o uso de uma arma que, por mim, era
subestimada: o silêncio. Antes disso, meu narcisismo era meu escudo. Sendo a
Psicanálise a cura pela fala, eu sempre queria ter algo a dizer. Tentava sustentar um
discurso do saber completamente incompatível com a técnica psicanalítica. Como alvo
de crítica de Lacan em “A Direção do Tratamento e Os Princípios do Seu Poder” (1953),
me encontrava fazendo uma Psicologia do Ego com O Militar. Em vez de dirigir o
tratamento, acabava por dirigir a pessoa, impondo o que eu achava ser o melhor para
ela. Uma dança que ele não queria participar.
Após muitos textos lidos, sendo este dos Escritos uma chave de virada, e feridas
narcísicas abertas, percebi que não era eu que dirigiria o tratamento de forma alguma.
Na orquestra analítica, eu jamais seria o maestro. Essa posição seria ocupada pela Ética
da Psicanálise, do desejo, força motriz do tratamento. Já dizia Bruce Fink em
“Introdução Clínica à Psicanálise Lacaniana” (1997),
“O ‘desejo do analista’ é um desejo que mantém um equilíbrio muito delicado,
enfatizando cada manifestação do inconsciente (mesmo quando ela interrompe algo
que o analista está pessoalmente interessado em escutar, mesmo quando ela não
parece combinar com o que o analista conseguiu compreender até esse momento)(...),
sem sugerir que o analista tem uma dada intenção e está tentando levá-lo a dizer ou
fazer algo em particular.”
Sendo assim, manejaria a relação analítica a partir da minha própria ignorância sobre
O Militar, me dando a teoria um norte, mas jamais ultrapassando o discurso do não
saber. Para a vitória ser conquistada, não teria que me portar como um mestre, e sim
como um resto. E o silêncio, nessa análise, foi o solo fértil para o estabelecimento da
transferência, para a organização do paciente dentro dela. Em certas situações, tudo
que O Militar precisava era espaço, não palavras. A partir disso, tudo se encaminhou
para a construção de um vínculo.
Após o manejo ter começado a dar frutos, finalmente consegui conhecê-lo mais
afundo, entender mais suas características e sua história. Já serviu na Aeronáutica e
sempre exercia uma postura de guardião da instituição. Se interessava muito pelas
músicas do Fábio Júnior. Sempre com um dicionário em mãos e questionando os
significados das palavras, O Militar se mostrava bastante interessado pela linguagem.
Contudo, por ter estrutura psicótica – predominância do Imaginário -, sua relação com
ela se mostrava muito diferente da estrutura neurótica – predominância do Simbólico.
Como um bloco de concreto, a palavra vira coisa. Esta última predominância é
organizada pelo que Lacan chama de “estádio do espelho”, didaticamente explicado
por Bruce Fink, ainda em “Introdução Clínica à Psicanálise Lacaniana” (1997). É uma
época em que a vida da criança se encontra desorganizada, um misto de sensações e
percepções sem a formação de qualquer coesão, de qualquer concretude e, de acordo
com Lacan, a imagem especular da criança é a primeira a lhe passar uma imagem de
sua unidade. Tal imagem é investida de libido, se tornando o molde do ego infantil, e
isso acontece por causa de um gesto de aprovação feito pelo Outro parental que está
com a criança no momento em que a mesma se olha no espelho. A imagem especular
é legitimada pelo reconhecimento, quando afirmam “sim, é você”. O estádio do
espelho é promotor de ordem, de estruturação, de organização do caos de percepções
e sensações anterior. Assim, a criança é levada ao desenvolvimento de um sentimento
de “eu”, antecipando um princípio de identidade pessoal. Esse reconhecimento é
associado ao ideal do eu, ou seja, como ela internaliza os ideais dos pais (expressos
simbolicamente) e julga a si mesma de acordo com eles. Ela internaliza a visão
percebida que os pais têm dela e passa a se ver como os pais a veem. Assim, o registro
imaginário – imagens visuais, auditivas, olfativas, táteis, outras percepções sensoriais e
o campo da fantasia – é reescrito pelo simbólico, pelas falas usadas pelos pais para
expressar sua visão do filho. A substituição do Imaginário pelo Simbólico leva à
subordinação das relações imaginárias, caracterizadas pela agressividade, às relações
simbólicas, caracterizadas pela preocupação com ideais, lei, autoridade, desempenho,
culpa, etc. Essa substituição está estritamente ligada ao complexo de castração.
Contudo, na psicose essa reescrita não é feita. Teoricamente falando, pode-se dizer
que isso se deve à instalação falha do ideal do eu, à foraclusão do Nome-do-Pai, à não
iniciação do complexo de castração, entre muitas outras alternativas. Nessa estrutura,
a predominância é do Imaginário, e o Simbólico sofre um processo de
“imaginarização”, ou seja, é assimilado não como um aspecto completamente
diferente, mas pela via da mimetização. Como já dito anteriormente, o ideal do eu
serve para a amarração de uma ideia de si mesmo, para ligá-lo ao reconhecimento de
um Outro parental, e sua ausência deixa o sujeito com uma noção precária de si
mesmo, sendo muito comum testemunharmos na psicose uma confusão entre o eu e o
outro.
L: vamos dançar?
O Militar: eu não vou pagar esse mico. O mico está custando caríssimo. Está custando
20 reais!
A nota de 20 reais é ilustrada por um mico.
3. Angie
“Eu tô te explicando
Pra te confundir
Eu tô te confundindo
Pra te esclarecer
Tô iluminado
Pra poder cegar
Tô ficando cego
Pra poder guiar”
- “Tô”, Tom Zé
A chave de virada para este se tornar um dos trabalhos mais ricos que eu já fiz no
Casa Verde foi uma orientação que recebi de um dos técnicos – relação essencial
para a minha formação e evolução como profissional: “para todo ‘não’, deve haver
um ‘sim’”. Durante certo período de tempo, meus diálogos com Angie eram
resumidos em:
4. A Valsa
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund – A Dinâmica da Transferência (1912)
LEMINSKI, Paulo – Toda Poesia (2013)
FINK, Bruce – Introdução Clínica à Psicanálise Lacaniana (1997)
LACAN, Jacques – A Direção do Tratamento E Os Princípios do Seu Poder (1953)
DOURADO, Thiago Augusto S. – O Pequeno Livro da Grande História da Teoria dos
Infinitos (2017)
ANDRADE, Carlos Drummond de – Poesias (1942)