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Revista UNINTER de v. 8, n.

15
dez. 2020
COMUNICAÇÃO ISSN 2357-9870
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ENQUADRAMENTO Felipe Collar Berni


felipecollar@gmail.com
NOTICIOSO NO Mestrando no Programa de Pós-Graduação
TELEJORNALISMO: em Jornalismo da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG)
ANÁLISE DO CASO NEYMAR E
A PERCEPÇÃO DA PESSOA Graziela Soares Bianchi
COM DEFICIÊNCIA grazielabianchi@yahoo.com.br
INTELECTUAL Doutora em Ciências da e professora do curso 48
de graduação em Jornalismo e do mestrado
NEWS FRAMING IN TELEJOURNAL- em Jornalismo da UEPG
ISM: ANALYSIS OF THE NEYMAR
CASE AND THE PERCEPTION OF DOI: 10.21882/ruc.v8i15.836
THE PERSON WITH INTELLECTUAL Recebido em: 25/08/2020
DISABILITY Aceito em: 06/12/2020

RESUMO ABSTRACT
O presente artigo analisa a cobertura jorna- The present article analyzes the journalistic
lística realizada pelo Jornal Nacional sobre a coverage carried out by Jornal Nacional about
denúncia de estupro feita por Najila Trin- the rape report done by Najila Trindade
dade contra o jogador de futebol Neymar Jr. against the soccer player Neymar Jr. From the
A partir das discussões e debates propostos discussions and debates proposed by the
pelas teorias Agenda-Setting e Enquadra- Agenda-Setting and the News Framing theo-
mento Noticioso, observou-se as estratégias ries, it was observed the strategies the televi-
escolhidas pelo telejornal para cobrir o acon- sion news broadcast chose to covered the
tecimento. Por fim, a partir do contato com event. Finally, from the contact with a group
um grupo de pessoas com deficiência intelec- of people with intellectual disability, the im-
tual, examinou-se as impressões desses su- pressions of these individuals in relation to the
jeitos em relação ao caso — através dos seus case were examined — through their media
hábitos de consumo midiático. consumption habits.
Palavras-chave: Enquadramento; Agenda- Keywords: News framing; Agenda setting;
mento; Jornal Nacional; Neymar; Pessoa Jornal Nacional; Neymar; Person with disa-
com deficiência. bility.

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Introdução destacam? Há intermediação no consumo


(pais, amigos, familiares, professores, ou-
No início do mês de junho de 2019, o tros)?
jogador Neymar Jr. foi colocado no centro do
debate midiático, social e policial — não pelo Um fato perpassou a maioria dos re-
futebol jogado em campo, mas por uma de- latos: as denúncias contra Neymar Jr. A re-
núncia de estupro, que se tornou pauta da im- corrência de referências que citavam o joga-
prensa no Brasil e no mundo. O crime, regis- dor incentivou o estudo sobre o agenda-
trado por Najila Trindade Mendes de Souza mento das mídias, framing e opinião pública, a
na 6ª Delegacia de Defesa da Mulher de São partir das especificidades do consumo desses 49
Paulo, teria ocorrido em um hotel em Paris, atores. O recorte televisivo se deu, pois, o de-
capital da França, no dia 15 de maio daquele senvolvimento da leitura pelas PCDI pode ser
ano. Mesmo com o inquérito policial trami- mais complexo; logo, escolhemos analisar
tando em sigilo, especulou-se bastante sobre conteúdos audiovisuais, de maneira especí-
o caso e a veracidade dele, além das intenções fica, o Jornal Nacional (JN), que é transmitido
da mulher que o denunciava e o impacto que pela Rede Globo. A escolha do JN não foi
o caso traria para a Seleção Brasileira de Fu- por acaso: ele é o jornal de maior audiência e
tebol às vésperas da Copa América. longevidade no país e completou 50 anos no
ar em 2019. O telejornal se faz presente no
O presente texto analisa o enquadra- cotidiano dos atores entrevistados e assume,
mento noticioso realizado pelo Jornal Nacio- para muitos, a função de mediador da reali-
nal na cobertura desse caso. Aqui, é prudente dade (REZENDE, 2000). Nesse sentido,
ressaltar algumas opções metodológicas para cinco edições serão analisadas: a do dia 1º, em
dar conta da discussão que se pretende reali- um sábado e na sequência, de segunda à
zar. O objeto de análise do artigo surgiu a par- quinta-feira, dia 06 de junho — sendo que o
tir de uma pesquisa exploratória com pessoas contato com os atores ocorreu na manhã de
com deficiência intelectual (PCDI), que teve sexta-feira.
por finalidade o estudo de seus hábitos e con-
sumo jornalísticos. Foram realizadas entrevis- Agenda, saliências e enquadramentos:
tas com oitos alunos da turma da Educação uma realidade construída
de Jovens e Adultos (EJA) da APAE de Santa
Fé (PR) 1, conduzidas em uma sexta-feira, 07 É prudente pensar os estudos de fra-
de junho. A partir de um roteiro prévio, in- ming a partir dos desdobramentos da Teoria
vestigaram-se pistas sobre o consumo e com- da Agenda. Apesar de serem abordagens que
preensão por parte das PCDI sobre o jorna- se perpassam, suas bases conceituais são de
lismo: o que é notícia/acontecimento hoje? O natureza específicas. O agendamento parte de
que é importante de forma pessoal hoje? dois pressupostos: de que os meios de comu-
Quais as problemáticas em destaque atual- nicação em massa possuem a capacidade de
mente (verificar se o que aparece é âmbito lo- dar ênfase a uma determinada temática, após
cal ou micro local — seu bairro, por exemplo a influência recebida pela mídia, pela tendên-
—, regional, nacional ou internacional?) Há cia de os sujeitos trazerem este tema para sua
produtos midiáticos ou jornalísticos ou per- lista de prioridades. Por sua vez, o enquadra-
sonagens midiáticos ou jornalísticos que se mento parte da hipótese do poder da mídia

1 Desterro FM 106,5. Circula mensalmente o Jor-


A título de contextualização, Santa Fé fica ao
noroeste do estado do Paraná, na Região Metro- nal O Pioneiro, que cobre o município e seu en-
politana de Maringá. A cidade possui duas emis- torno. Os canais de televisão seguem programa-
soras de rádio, uma comunitária - Santa Fé FM ção dos emissoras afiliadas em Maringá: RPC TV,
105,9; e a outra pertencendo a Igreja Católica - RIC TV, Rede Massa, TV Maringá.

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em dizer como a população vai pensar os te- e responsabilidades perante o interesse pú-
mas enquadrados a partir de destaques e ocul- blico.
tamentos.
Partiremos, agora, para o debate so-
Antes de adentrar nas especificidades bre Agenda-Setting e framing. Os primeiros es-
de cada um dos conceitos, é necessário trazer tudos sobre os efeitos da agenda foram publi-
a compreensão que atravessa ambos — o jor- cados em 1972, pelos professores estaduni-
nalismo como forma de conhecimento denses Maxwell McCombs e Donald L. Shaw.
(GENRO FILHO, 1997). A notícia se mate- No entanto, a ideia central do agendamento
rializa, essencialmente, no presente e não so- já estava presente nos debates da academia, 50
mente informa como também orienta os in- uma vez que Walter Lippmann publicava, em
divíduos no status quo, situa e adapta-os na or- 1922, seu livro Opinião Pública — principal
ganicidade social vigente. Nesse processo, “origem doutrinária” da hipótese da agenda
Adelmo Genro Filho (1997) traz a reflexão de (CASTRO, 2014). Na obra, Lippmann (2008)
Robert Park em relação ao “conhecimento argumentava sobre o poder que a imprensa
de” utilizado no cotidiano e um “conheci- exercia no enquadramento da atenção dos lei-
mento sobre”, sistemático e analítico, como o tores em relação à temática que considerava
produzido pelas ciências; assim, para situar o de interesse comum. Assim sendo, é reconhe-
jornalismo, propõe a existência de uma gra- cido o trabalho de McCombs e Shaw na or-
dação entre as duas espécies de conhecimento ganização, sistematização, aprofundamento e
e coloca a notícia em um nível intermediário batismo do conceito de Agenda-setting.
entre elas. Para Genro Filho (1997), o jorna-
lismo como gênero de conhecimento difere Segundo McCombs (2009), podemos
da percepção individual pela sua forma de pensar a Teoria da Agenda a partir de quatro
produção: nele, a imediaticidade do real é um eixos: a) a mídia, ao selecionar determinados
ponto de chegada, e não de partida. Fixado na assuntos e ignorar outros, define quais são os
imediaticidade do real, o jornalismo se mani- temas, acontecimentos e atores para a notícia;
festa no campo lógico do senso comum; é b) estabelecimento de uma escala de proemi-
justamente nesse entendimento que Eduardo nências ao enfatizar determinados temas,
Meditsch (1997) aponta para sua fragilidade e acontecimentos e atores; c) construção de
força enquanto argumentação. atributos (negativos ou positivos) sobre obje-
tos e adoção de enquadramentos positivos ou
É frágil, enquanto método analítico e de- não sobre temas, acontecimentos e atores; d)
monstrativo, uma vez que não pode se des- por fim, cristalização de uma ligação direta
colar de noções pré-teóricas para repre- entre as proeminências da agenda midiática e
sentar a realidade. É forte na medida em a percepção pública, de quais são os temas
que essas mesmas noções pré-teóricas ori- importantes em um determinado espaço de
entam o princípio de realidade de seu pú- tempo. Nesse sentido, são três as agendas
blico, nele incluídos cientistas e filósofos postas em jogo e que podem se relacionar en-
quando retornam à vida cotidiana vindos tre si: a agenda da mídia, agenda pública e
de seus campos finitos de significação. (ME- agenda governamental (MCCOMBS, 2009).
DITSCH, 1997, p. 07).
A função do agendamento é, então, a
Para Meditsch (1997), o jornalismo
capacidade da mídia de pautar o que seria dis-
como produto social reproduz a sociedade
cutido nas demais agendas, tanto a pública, a
em que está inserido, suas desigualdades e
governamental ou até mesmo a influência de
suas contradições. Compreender o jorna-
uma mídia na agenda de outros veículos — o
lismo como conhecimento implica no au-
que McCombs (2009) chama de agenda inter-
mento da exigência para com seus conteúdos
mídia. Essa abordagem, porém, não se trata
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de um retorno à teoria hipodérmica, uma vez uma nova interpretação sobre os enquadra-
que as audiências não são sujeitos inertes e es- mentos midiáticos.
táticos à espera de comandos para viver. Ao
contrário, os indivíduos são atuantes na pro- Enquadramento envolve essencialmente
dução e reprodução de sentidos a partir das seleção e saliência. Enquadrar é ‘selecio-
múltiplas relações sociais que são expostos nar alguns aspectos de uma realidade per-
cotidianamente; “mas o Teoria da Agenda cebida e fazê-los mais salientes em um
atribuiu um papel central aos veículos notici- texto comunicativo, de forma a promover
osos por serem capazes de definir itens para uma definição particular do problema, uma
a agenda pública” (MCCOMBS, 2009, p. 24). interpretação casual, uma avaliação moral 51
e/ou uma recomendação de tratamento’
Por sua vez, a noção de enquadra- para o item descrito. (ENTMAN, 1993, p. 52,
grifos no original, tradução nossa).
mento (framing) vem da metáfora dos quadros
e seu conteúdo. A mídia, a partir das delimi- Partindo dessa compreensão, Ent-
tações dos quadros, apresenta uma parcela da man (1993) entende que os enquadramentos:
realidade para o consumo da opinião pública. definem problemáticas, ao determinar o que
No jornalismo, a realidade é construída e vei- um sujeito está fazendo com que custos e be-
culada através de notícias pois, dentro das es- nefícios; diagnosticam uma causa, identifi-
pecificidades do telejornal, as operações táti- cando as forças que criaram o problema; fa-
cas de construção da realidade se dão por zem julgamento moral, ao avaliar os sujeitos
meio de palavras, sons e imagens. Essa orde- e seus efeitos e sugerem remédios, ao oferecer
nação de realidade é o que se apresenta como ou justificar tratamentos para os problemas e
enquadramento noticioso. Uma vez que o predizer seus efeitos. Antunes (2009, p. 92)
jornalista exerce a opção de enquadrar um adverte que “os enquadramentos se coprodu-
fato de uma forma, ele enfoca parte de uma zem em um processo de mútua referencia-
realidade em detrimento de outras possibili- ção” e que o entendimento da noção de en-
dades de entender o evento. Nesse sentido, quadramento como perspectiva se torna mais
Elton Antunes (2009, p. 92) argumenta que adequada do que a compreensão como uma
os enquadramentos são “esquemas interpre- estrutura. Por outro lado, o autor aponta que
tativos socialmente construídos que nos per- “os dispositivos de enquadramento podem
mitem reconhecer e situarmo-nos frente a não aparecer explicitamente em um texto no-
eventos e situações”. ticioso, mas sendo frames serão necessaria-
mente acionados no lugar da interpretação”
O conceito original de framing (enqua-
(ANTUNES, 2009, p. 97).
dramento) foi desenvolvido em 1974, por Er-
ving Goffman. O autor buscava compreen- Nos mais diversos níveis ou “lugares”
der as pequenas interações cotidianas que or- em que são identificados, os quadros funcio-
ganizam a experiência dos sujeitos no mundo, nam de forma interconectada, seja no interior
os quais se deparam, em toda situação, com a dos sistemas de mídia, junto às audiências,
questão: “O que está acontecendo aqui?”. como também, entre os atores, grupos e or-
Para Goffman, o enquadramento é justa- ganizações sociais (ANTUNES, 2009).
mente o que nos permite responder a essa in-
dagação. Nesse sentido, entende-se frame Como estruturas cognitivas, modelos cultu-
como o conjunto de princípios de organiza- rais ou esquemas discursivos, eles operam
ção que regem acontecimentos sociais e o en- em interdependência. A percepção emerge
volvimento subjetivo dos sujeitos nesses em um processo de socialização cuja trans-
acontecimentos (GOFFMAN, 2012). Anos missão se dá por meio de práticas discur-
depois, Robert Entman (1993) apresentava sivas, criadas, modeladas e transformadas

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no âmbito da cultura (ANTUNES, 2009, p. apuração profunda sobre o acontecimento —


97). o que se veiculou é resultante do Boletim de
Ocorrências (BO), registrado por “uma mu-
A partir dessa aproximação entre lher de 26 anos”, acusando Neymar Jr de es-
Agenda-Setting e enquadramento, podemos tupro: “O crime, segundo ela, teria ocorrido
pensar o telejornalismo cotidiano como cons- num hotel em Paris, cidade em que Neymar
trutor de realidades e dono de uma agenda ca- mora”. A distância entre o jornalista e o con-
paz de ditar o que a sociedade irá discutir. No teúdo da informação ali transmitida é sensível
caso específico do jogador Neymar Jr., o quando as marcações de opiniões são sempre
agendamento atravessa pautas de diferentes colocadas como de responsabilidade da ví- 52
campos sociais: policial, esportivo, feminista tima; pois, “segundo a vítima”, são descritas
e financeiro. as características de Neymar naquela noite e
os desdobramentos: o “atleta embriagado”, a
Caso Neymar enquadrado “troca de carícias”, e por fim, o “jogador
pelo jornal nacional agressivo”, forçando uma relação sexual. A
informação de que a “mulher” confirmou a
A partir das edições de 1º de junho e viagem e se hospedou às custas de Neymar
de 03 a 06 junho do Jornal Nacional (JN) 2, encerra a fala de um dos âncoras, como se os
será analisado como as denúncias de estupro argumentos anteriores se resumissem ao que-
contra o jogador foram enquadrados pelo te- rer estar com o jogador e, mais, de graça. Na
lejornal de maior audiência do país. Para continuidade da cobertura, o JN informou
tanto, as cincos edições foram assistidas na que a polícia analisou as conversas entre a “jo-
íntegra; demarcou-se, assim, as chamadas ini- vem” e Neymar em redes sociais, que aguar-
ciais, o tempo de cada reportagem, seus con- dava o resultado do exame de corpo de delito
teúdos, lacunas e problematizações. A análise e que as investigações ainda iriam ouvir teste-
subsequente se dará de forma específica para munhas e o próprio Neymar. Até esse ponto,
cada uma das edições. Nos dias estudados, o o nome da vítima não tinha sido divulgado.
telejornal ficou no ar por 198 minutos, tendo
a maior edição uma duração de 48 minutos e Depois da nota ser veiculada, a defesa
a menor, 31 minutos. Desse total, aproxima- do jogador e sua assessoria informavam que
damente 38 minutos foram destinados à te- “não tem conhecimento do caso e vai se pro-
mática central, que se torna objeto desta aná- nunciar quando souber mais detalhes”. Quem
lise. aparentou ter mais informações foi o pai de
Neymar; assim, a Rede Globo utilizou uma
A denúncia contra o jogador Neymar entrevista do pai do jogador à Bandeirantes,
ganhou a mídia durante o sábado, 1º de ju- onde ele alegava que o filho estava sendo ví-
nho, quando o Brasil e o mundo repercutiam tima de uma tentativa de extorsão e que a re-
a acusação. A primeira edição do JN pós-de- lação entre os dois foi consentida. Porém, não
núncias reservou pouco mais de um minuto houve espaço para a contradita sobre a “ten-
para informar o acontecimento, dentre seus tativa de extorsão”. Oficialmente a assessoria
44 minutos. O caso não apareceu na escalada do jogador não quis se pronunciar; assim, o
do telejornal; tão pouco foi construída uma JN buscou uma narrativa atravessada em ou-
reportagem para noticiá-lo, já que a veicula- tra emissora para trazer a discussão de extor-
ção se deu através de uma ‘nota pelada ’. são e consentimento para o caso. Nova-
Nesse sentido, ficou visível a ausência de uma mente, na nota trazida pelos âncoras, são

2Disponível em: <https://globo-


play.globo.com/jornal-nacional/p/819/>.
Acesso em: 11 jul. 2019

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apresentadas justificativas da “viagem paga perfil no Instagram, onde buscava apresentar


por Neymar”, a noção de “armação” para sua defesa perante a opinião pública. Alguns
conseguir extorquir o jogador e, por fim, o pontos merecem reflexão: a seleção que o JN
consentimento entre ambos — segundo al- fez de partes do vídeo para apresentar aos te-
guém que não estava in loco. Enquadramentos lespectadores; a busca pelo apagamento da
como estes continuarão presentes no decor- identidade e perfil de Najila: “menina; ela;
rer da cobertura. mulher” e, finalmente, o semblante e as mar-
cações de tristeza na fala do jogador. Neymar
A edição seguinte, já na segunda-feira, falou em “provar que realmente não aconte-
teve o maior tempo de cobertura reservado ceu nada de mais”; logo, há uma tentativa de 53
ao caso: 14’16’’, em um total de 48’ que o te- naturalizar o ocorrido como “algo que acon-
lejornal ficou no ar. O que se viu foi um dis- tece com todo casal”. Dias depois de veicu-
tanciamento da realidade da vítima e uma lado, o Instagram retirou o vídeo em questão
aproximação dos relatos de Neymar para o do ar 3. Outra seleção feita pelo JN, agora na
“tribunal da mídia”, que parecia ser o lugar conversa disponibilizada pelo jogador, apre-
onde o jogador mais queria impor sua defesa. senta dois momentos. Antes da viagem, é
A escalada do JN deu pistas da cobertura que combinada a ida de Najila a Paris, com uma
a edição seguiria. William Bonner abriu o te- ajuda de custo para os gastos com passagens
lejornal com o seguinte anúncio: “O advo- e hospedagem, além de ser explicitado o de-
gado que defendia a acusadora de Neymar diz sejo de ambos em manter relações sexuais.
que ela mentiu”; assim, Najila Trindade Segundo o JN, surgem novas mensagens “de-
“deixa” de ser a vítima e assume o papel de pois do dia do suposto estupro”: Neymar en-
acusadora e mentirosa. Renata Vasconcellos, via uma foto íntima dela e Najila responde
a seguir, disse que “ela apresenta um laudo “vai ter volta”, marcam um segundo encontro
médico que relata hematomas”. Acompa- e há um pedido dela para que o jogador traga
nhado pela imagem do carro de polícia che- bebida. O que se nota é a tentativa de mostrar
gando na Granja Comary, centro de treina- as intenções de Najila para com o jogador e a
mento da Seleção Brasileira, Bonner disse que ausência de reclamação por parte dela.
“A Justiça Civil do Rio intima o jogador a de-
por sobre a divulgação de fotos íntimas da de- Pela primeira vez, foi explicitada a in-
nunciante”. Vasconcellos finalizou infor- tenção da Globo em ouvir Najila quando o
mando que “o pai de Neymar disse que pre- JN entrou em contato com a advogada da ví-
fere acusação de crime virtual a de um estu- tima, que revela o nome de sua cliente, até en-
pro”. Destacam-se dois fatos centrais: a divul- tão era desconhecido; porém, pede que o
gação, por parte de Neymar, das conversas nome não seja divulgado. “A Rede Globo de-
trocadas com Najila antes, durante e depois cidiu divulgar visto a gravidade” diz Bonner.
do encontro entre eles e a saída do advogado Porém, qual seria o sentido do termo “gravi-
de acusação do caso. dade”? Gravidade da denúncia ou dos desdo-
bramentos para a pessoa de Neymar? Pelo
Bonner leu a cabeça da matéria, que veiculado até aquele momento, entende-se
tratou do crime cibernético cometido por que seria a preocupação com o jogador. A ad-
Neymar, que divulgou, junto as mensagens vogada de Najila apresentou um laudo parti-
trocadas com Najila, fotos íntimas da mulher, cular do aparelho digestivo de sua cliente, re-
sem autorização. A reportagem expôs, em alizado uma semana depois do estupro de-
partes, o vídeo que Neymar publicou em seu nunciado, em que são relatados sintomas e

3 Disponível em: https://esporte.uol.com.br/fu- acusacao-de-estupro.htm. Acesso em: 15 jul.


tebol/ultimas-noticias/2019/06/03/neymar-re- 2019
tira-da-web-video-que-fez-para-se-defender-de-
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dores. Foi divulgado um vídeo de uma con- estupro depois de não conseguir acordo com
versa entre Najila e o então advogado de acu- advogados do jogador”. O novo depoimento
sação: Najila queria divulgar o “suposto” visava compreender as “coisas que ficaram
crime; o advogado queria evitar uma briga na em aberto”, já que o BO não mencionava a
Justiça. O advogado de acusação chegou a se segunda noite entre o Najila e Neymar. O JN
reunir com representantes do jogador, mas trouxe o vídeo que Najila gravou no segundo
não obteve acordo. Nesse encontro, o pai de encontro com o jogador, no mesmo hotel.
Neymar acusa a intenção de extorsão de Na- Após a veiculação da mídia, foram exibidos
jila. Posteriormente, o advogado tentou im- comentários do pai de Neymar, que afirmou
pedir a divulgação de um vídeo do segundo que seu filho foi agredido pela mulher, “como 54
encontro, até aquele momento não divulgado. mostra o vídeo”.

O ex-advogado de Nájila aparece no A edição focou nas alegações dadas


vídeo e explica, por telefone, os motivos para pelo escritório de advocacia para deixar a de-
essa decisão; justificando sua postura, ele di- fesa de Najila. Os argumentos foram: “incon-
zia estar se colocando contra “medidas bom- sistência na fala da vítima”, a suposição de
básticas”. Posteriormente, ainda na mesma que Najila motivava sua ação por “raiva e vin-
edição, foi apresentado o documento de res- gança” e a tese de que ocorreu agressão, não
cisão de contrato entre seu escritório e Najila. estupro. A edição não trouxe, em momento
O repórter leu algumas partes desse docu- algum, a posição de Najila frente ao teor do
mento, no qual se destacam dois pontos: no conteúdo apresentado pelo escritório que en-
entendimento de estupro, segundo o ex-ad- tão fazia sua defesa. Não foi comunicado se-
vogado, havia uma “alegação totalmente dis- quer se a defesa foi procurada, optando-se
sociada dos fatos descritos”, pois o ocorrido por manter o silêncio. A ausência do contra-
teria sido enquadrado como violência e agres- ditório enfraquece a prática jornalística e sen-
são; já no Boletim de Ocorrência, os “fatos tencia uma posição como a verdadeira; nesse
descritos em desacordo com a realidade ma- caso, que a denúncia de estupro não se sus-
nifestada” não sustentariam a alegação de es- tenta.
tupro, por conta do relato presente no Bole-
tim. O que se sobressai foi a confusão por Na quarta-feira, são 4 minutos de co-
parte da acusação e, até mesmo, o descrédito bertura dentre os 31’ totais. Essa edição fez
dado pelo então advogado ao discurso de Na- referência a Neymar enquanto jogador da Se-
jila, corroborando, assim, a narrativa de arma- leção: “[Seleção] masculina vai a campo com
ção e extorsão do pai de Neymar e assumida todos os holofotes sob Neymar”. É noticiado
pela defesa do jogador. Em uma nova entre- que a polícia recebeu as imagens gravadas por
vista concedida à Band, o pai de Neymar con- Najila, que mostra os dois em um quarto de
firmou o encontro com advogados da denun- hotel. O JN apresentou a prova como um ví-
ciante, que ele caracterizou como tentativa de deo que “a denunciante teria gravado”. Nota-
extorsão e uma solicitação de um “cala a se aqui um novo afastamento e a reprovação
boca”, afirmando que a divulgação da con- da conduta de Najila, somando-se às incerte-
versa buscou uma defesa rápida e que Najila zas que rondam a fala da mulher. Mais uma
agrediu Neymar durante o segundo encontro. vez, a fala do pai de Neymar foi trazida, rea-
firmando que o filho foi agredido por Najila
A edição do JN de terça-feira durou e que ela “provoca uma agressão para ver se
31 minutos; desse total, 7’35’’ foram dados à ele revidaria”. A edição faz uma retomada dos
cobertura do caso por meio de duas referên- fatos: lembra que Najila ainda não tinha sido
cias: “A Polícia de São Paulo quis ouvir de ouvida novamente pela polícia, informa que o
novo a mulher que acusa Neymar” e “Os ex- exame de corpo de delito já havia ficado
defensores dizem que ela só passou a falar em
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pronto e que “a única lesão detectada foi num uma entrada ao vivo mostra o local onde
dos dedos da jovem”. Neymar depôs sobre os crimes cibernéticos
que a polícia apurava; as imagens mostraram
A última edição analisada foi a de Neymar frágil e com dificuldade de locomo-
quinta-feira. Dos 43 minutos do telejornal, ção pela lesão sofrida e finaliza com a fala o
12’25’’ foram destinados ao caso. Foi relatado jogador agradecendo as “mensagens de apoio
que Neymar sofreu uma lesão em um jogo e carinho” que recebeu.
amistoso e foi cortado da Copa América;
também é informado que “Neymar vai ao Rio Nesse sentido, quatro características
depor no inquérito sobre a divulgação de fo- dessa primeira semana de cobertura do caso 55
tos íntimas da mulher que o acusa de estu- são destacadas: a tentativa de justificar o su-
pro”. Chama a atenção a ausência do fato de posto estupro visto as intenções de ambos e
que Najila havia dado sua primeira entrevista pelo fato de Neymar ter pago a viagem de Na-
sobre o caso ao SBT. O conteúdo aparece jila Trindade; a construção da dúvida em rela-
apenas no final da edição, ao contrário do que ção ao discurso dela; o pouco espaço para
foi feito quando o pai de Neymar falou pela contradita em relação ao que era dito sobre a
primeira vez à Band, na edição do dia 03 de postura e intenções de Najila; e por fim, a
junho. agressão que Neymar teria sofrido no se-
gundo encontro. Essa narrativa cria uma
Na entrevista, Najila confirma a in- aproximação à realidade e narrativa do joga-
tenção de ter relações sexuais com Neymar e dor e, consequentemente, uma distância à
a passagem e hospedagem paga pelo jogador. Najila.
Sobre o que aconteceu no quarto, relata que
ao recebê-lo no hotel, Neymar estava agres- Percepção da pessoa com
sivo, mas mesmo assim, começaram a trocar deficiência sobre o caso
carícias. Ao perguntar sobre preservativo,
como nenhum dos dois havia levado, afirmou Ao analisar de que maneira algo se
que então não aconteceria mais nada do que manifesta a partir do processo comunicacio-
já tinha acontecido. Najila afirmou que Ney- nal, uma abordagem possível são os Estudos
mar ficou em silêncio, “depois a virou e co- Culturais. De acordo com esse campo de in-
meteu o que ela chamou de ato”, narra o re- vestigação, o protagonismo do sujeito e sua
pórter, e “que a bateu violentamente nas ná- capacidade de produzir e reproduzir sentidos,
degas e que havia pedido para parar. Tudo a partir dos conteúdos consumidos, avançam
ocorreu de forma rápida, questões de se- na decodificação de mediações, hábitos, ten-
gundo, até que ela conseguiu se retirar para o sionamentos, disputas, rupturas que marcam
banheiro”. Najila diz, ainda, que Neymar o processo social. Nesse processo, há uma
mandou fotos de suas nádegas machucadas ruptura da lógica hegemônica na comunica-
para ela. Nesse momento, houve uma interfe- ção que centralizava seus estudos a partir das
rência que não havia sido vista nas coberturas estruturas dos meios e o determinismo tecno-
passadas: o repórter finalizou a reportagem lógico e textual, isso posto, “é a recepção ou
pontuando algumas questões que não foram a valorização da capacidade dos receptores
apuradas na entrevista dada ao SBT. “Ela não populares em produzir sentidos diferentes
foi perguntada e não explicou como Neymar aos priorizados pela cultura hegemônica que
conseguiu fazer uma foto dela machucada, se desponta como a problemática que vai viabi-
na versão dela, ela escapou em poucos segun- lizar esse deslocamento.” (ESCOSTEGUY,
dos para o banheiro”. Novamente, a dúvida 2018, p. 106). É prudente considerar, nesse
em relação à conduta e fala de Najila foram tipo de estudo, a valorização da contextuali-
questionadas. Najila registra em cartório sua zação — de quem percebe a partir de suas di-
versão. Próximo ao encerramento da edição, mensões socioculturais, políticas, históricas e
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econômicas, ao passo que esses processos aqui atrelados ao sensacionalismo. As teleno-


constituem e são constituídos destes contex- velas vêm na sequência dos produtos mais
tos; portanto, é reconhecer a recepção, atre- consumidos na televisão. Um fator de desta-
lada às demais etapas pensando com seus vín- que, nesse caso, é a companhia de familiares
culos e com a ordem social (BONIN, 2018). nessa atividade, já que uma grande parte dos
entrevistados dizem acompanhar as novelas
Dessa forma, o que será exposto a se- junto com seus entes.
guir são relatos de alunos 4 do EJA da Escola
Novo Amanhecer, mantida pela APAE no Ao serem questionados sobre o rádio,
município de Santa Fé (PR), em relação às de- percebe-se que o aparelho está presente na 56
núncias envolvendo o jogador Neymar. O rotina de todos os entrevistados. Um possível
contato com a turma ocorreu como parte do tensionamento diz respeito a força do rádio
delineamento do projeto de pesquisa. O in- no interior; na cidade dos participantes duas
tuito desse contato não foi medir a percepção rádios repercutem os acontecimentos da ci-
dos alunos sobre o caso em específico; essa dade, bem como trazem programações volta-
materialidade surgiu de forma espontânea em das a ela. Entretanto, o consumo de conteúdo
muito relatos, que trago em seguida. Sobre a veiculados pelo rádio está, majoritariamente,
deficiência intelectual, ela é entendida como: associado à música; ou seja, a programação
jornalística é consumida por dois entrevista-
[...] uma incapacidade caracterizada por limitações dos.
significativas tanto no funcionamento intelectual
(raciocínio, aprendizado, resolução de problemas)
quanto no comportamento adaptativo, que cobre Três relações marcam o consumo co-
uma gama de habilidades sociais e práticas do dia municacional do grupo que constituiu o cor-
a dia (SHALOCK, 2010, p. 06 apud MILLAN; SPINA- pus de análise: o imediatismo, a predominân-
ZOLA; ORLANDO, 2015).
cia do local e a qualidade jornalística. Quando
Antes de avançar para os relatos dos questionados sobre o que era notícia naquele
participantes, é oportuno apresentar algumas momento, os fatos ocorridos na região eram
características do consumo comunicacional trazidos para exemplificar — poucas pautas
das PCDI. Essas características puderam ser nacionais, com exceção do caso Neymar, fo-
observadas, nesse primeiro momento, a partir ram apresentadas; observa-se uma forte pre-
das experiências dos sujeitos entrevistados. sença do jornalismo de proximidade, a partir
Para alguns entrevistados, a televisão é um das emissoras filiadas às grandes redes. Isso
passatempo entre uma atividade e outra; para tem relação, também, como a queixa da baixa
outros um ritual, no qual assistem à progra- qualidade dos programas jornalísticos, uma
mação acompanhada dos familiares. Em rela- vez que, as praças investem em programação
ção aos produtos comunicacionais veiculados local e cobrem, de forma enfática, assassina-
na TV, há uma predominância de consumo tos, acidentes e tragédias, por exemplo — o
de telejornais, acompanhado de novela e fil- que não agrada os entrevistados. Embora
mes. Embora os produtos jornalísticos sejam apresentem críticas ao jornalismo, a totali-
os mais consumidos, nesse percentual cons- dade reconhece a importância dele, seja para
tam, também, entrevistados que assistem informar as pessoas ou dar “segurança” e
mesmo sem gostar do que veem, seja pelo “conselhos” aos cidadãos.
fato das notícias não chamarem a atenção de-
A partir do apontamento de caracte-
les ou pela baixa qualidade dos programas —
rísticas gerais de serem observadas a partir do
relato desse grupo, trazemos na sequência, de

4Os nomes dos entrevistados são fictícios. Fo-


ram alterados preservando sua identidade.

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maneira específica, o relato de cinco alunos Anderson (29), mora apenas com a
que possuem algum grau de deficiência inte- mãe, possui uma televisão e um rádio de pi-
lectual. O intuito é apresentar o contexto de lha. Assiste televisão todos os dias, de forma
seu consumo midiático e sua percepção ou independente. Jornal, jogos de futebol, nove-
não sobre o caso envolvendo Neymar e Na- las e filmes são o que gosta de acompanhar.
jila. Jornal Nacional e a Tribuna da Massa são os no-
ticiários favoritos; já rádio, ouve em casa e na
Cássia (55) mora em uma casa deixada escola. Perguntado sobre o que costuma ou-
por seus pais, junto à irmã e o cunhado. Na vir, afirma ser notícia: Jota Silva, locutor da
residência, há um aparelho de rádio, além de região, foi lembrado, principalmente por “fa- 57
duas televisões; uma no quarto da irmã e a lar mal do prefeito”. Pergunto sobre o jorna-
outra na sala. Quando está em casa, Cássia as- lismo em si, afirma que repercutem muitas
siste televisão, principalmente no final da coisas negativas sobre o Brasil, como mortes
tarde. Ela inicia a rotina televisiva com Malha- e drogas. Sobre atualidade, de pronto res-
ção, depois assiste a novela das 6; contudo, ela ponde “o caso Neymar e daquela moça do
prefere a Record, as tragédias do Cidade Alerta hotel”. A quantidade de cobertura sobre o
e depois a Cidade Proibida — o que afeta sua caso chama sua atenção “24h falando disso,
percepção sobre notícia. Questionada sobre o só disso”. Anderson se isenta em chegar uma
que era acontecimento naquele dia, Cássia conclusão, “Ele andou fazendo coisa que não
responde: “muita tragédia, muito acidente, in- devia com a moça. Pela parte dele diz que não
cêndio, deslizamento”. “Coisa boa é pouca aconteceu nada, pela parte dela diz que acon-
[que aparece no Jornal]”. Confessa, que teceu, né? Tá complicado. Ele foi ontem lá na
acompanha o Jornal Nacional e o Jornal Hoje. delegacia, falar do crime virtual, que ele gram-
Assista também os programas que ela carac- peou… não sei como foi”. Ainda sobre o que
teriza como de “fofoca da vida dos famosos”. era notícia para ele, naquele momento, lem-
Especificamente sobre Neymar, Cássia diz: bra da reforma da previdência e da disputa
“Viu só, ele caiu numa armadilha. Foi tudo pelos votos dos deputados, “eu tenho meu pé
armado para ele”. Questionada sobre a razão atrás [sobre a aprovação], eu acho que vão de-
que acreditava na inocência do jogador, ela morar, tem uns que quer outros não [sic]”.
afirma que “falaram que ele é inocente”; Cás-
sia, então, explica que se referia a Datena Pedro (30), mora com a mãe e com a
quando falava da narrativa de inocência. irmã. Possui celular, além de 3 aparelhos de
televisão, mas nenhum instalado, pois não
Já Sheila (24), mora com o irmão, cu- possui antena. Televisão assiste de vez em
nhada e com a sobrinha. Em sua residência, quando, na escola; rádio ouve todos os dias.
há uma televisão e dois aparelhos de rádio. Assim que acorda, às 5h, liga o aparelho.
Sheila costuma assistir televisão todos os dias, Ouve música e também as “coisas que acon-
junto à família. Jornal, novela, desenhos e fil- tecem no mundão”. Lembrou das emissoras
mes são seus conteúdos preferidos. É um há- sediadas no município e seus locutores.
bito que gosta. Especificamente, assiste ao Quando questionado sobre a notícia na con-
Jornal Nacional e o Jornal do SBT. Perguntada temporaneidade diz: “acontece muitas coisas
sobre o que era notícia, lembra de um aci- né? O Jota [Silva, locutor de um rádio local]
dente de carro que deixou vítimas na região, conta muito do que acontece nas estradas,
além das greves da educação acontecidas em nesses mundão”. Pedro diz não saber dos ca-
maio. Sheila não cita em momento algum a sos envolvendo o jogador Neymar. Seu con-
cobertura sobre as denúncias contra Neymar. tato com a televisão é limitado, pois considera
o rádio um jornalismo mais próximo aos ou-
vintes.

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João (26) é cadeirante, telespectador analisadas, notou-se uma sequência de narra-


de jornais e o que mais gosta é o Jornal Nacio- tivas sobre o caso. De início, tentou-se ques-
nal. Confessa que acompanha o Cidade Alerta, tionar as intenções de Najila Trindade para
da Record, “mas lá passa mais acidente”. As- com Neymar Jr., reiterando as despesas pagas
siste televisão no período da tarde, no contra- pelo jogador para levá-la à França. As cons-
turno escolar. Seus pais são sua companhia e tantes falas do pai de Neymar, na qual afir-
também acompanha jogos, filmes e novelas. mava que o filho era vítima de uma “tentativa
João gosta de política, diz que assiste os tele- de extorsão”, foram utilizadas em quatro das
jornais para saber dos acontecimentos, sobre cincos edições analisadas — o que tirou o
Bolsonaro diz que “ele tá querendo cortar os foco no mérito da acusação de estupros; esse 58
benefícios [de prestação continuada (BPC)]. fato também ficou aparente a partir das divul-
É ruim né, porque senão você não recebe, gações de conteúdos íntimos de Najila na in-
né”. Também ouve rádio, “tem muita gente ternet, trazendo os crimes cibernéticos para a
que só fala bobagem, mas eu ouço”. Sobre as discussão.
denúncias que afetaram o jogador Neymar,
tece um comentário “agora ele foi para a de- Como as justificativas não sustenta-
legacia, né?”. riam a defesa, percebeu-se uma tentativa de
fragilizar as alegações da mulher. Os proble-
Pode-se observar que o consumo mi- mas com os advogados de acusação que dei-
diático e a apropriação de sentidos acontecem xaram o caso e, consequentemente, a visibili-
junto às PCDI, mesmo que de forma particu- dade dos motivos pelos quais o escritório de
lar — com ritmos e intensidades diferentes advocacia não daria sequência no amparo à
quando comparados a outros grupos sociais. jovem, ajudaram a questionar a narrativa de
É visível a capacidade da mídia em pautar te- Najila sobre as denúncias de estupro. Isso de-
mas que reverberam nas agendas individuais. mostra a cultura presente na sociedade, da
O resultado desses contatos ajudam a com- constante dúvida pesada contra as mulheres
preender de que maneira acontece a apropri- vítimas de estupro e violência. A ausência de
ação e produção de sentidos mediados pelo voz dada à Najila e seus advogados silencia
jornalismo pelas Pessoas Com Deficiência In- uma parte preciosa do jornalismo que é a plu-
telectual, a saber: as mediações sociais estão ralidade. Najila e seus advogados foram ou-
presentes na construção de sentido; o jorna- vidos em apenas dois momentos, enquanto
lismo de proximidade ganha destaque na os seus ex-advogados e a narrativa da defesa
compreensão; os jornais vistos como anunci- de Neymar eram frequentemente expostos ao
adores de tragédias; as agendas midiáticas público.
adentram no contexto das PCDI; e o enqua-
dramento dado pela mídia é incorporado Em 08 de agosto de 2019, a juíza Ana
como verdade. Paula Vieira de Moraes, da Vara de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher, aco-
Considerações finais lheu a manifestação do Ministério Público
pelo arquivamento do processo que apura a
Observa-se mais um caso da agenda denúncia de estupro e agressão contra o joga-
midiática e de seus enquadramentos sendo dor Neymar. 5
sentidos no entendimento do público sobre
um determinado fato. Nas cincos edições

5Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-


paulo/noticia/2019/08/08/justica-arquiva-pro-
cesso-que-apura-denuncia-de-estupro-contra-jo-
gador-neymar.ghtml Acesso em: 20 ago. 2019

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Em relação às pessoas com deficiên- ENTMAN, Robert. Framing: Toward Clari-


cia, especificamente, observa-se a força da fication of a Fractured Paradigm. Journal of
agenda e dos enquadramentos da mídia na Communication, v. 43, n. 4, p. 51-58, 1993.
construção de sua percepção; entretanto, não
é correto considerá-la sem a essência cultural ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Estudos cul-
das experiências midiáticas e sociais dos sujei- turais latino-americanos e Jesús Martín-Bar-
tos, uma vez que, as vivências são mediadas bero: mais afinidades do que disputas. Ma-
por questões culturais, religiosas, etárias, étni- trizes, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 99-113,
cas, de gênero, de classe (MARTÍN-BAR- jan./abr. 2018.
BERO, 2015). 59
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da
Por fim, ao considerar o enquadra- pirâmide: para uma teoria marxista do jor-
mento noticioso, seus desdobramentos e nalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987.
consequências, tendo esse caso específico
como objeto de análise, percebe-se que a mí- GOFMANN, Erving. Os quadros da ex-
dia, em especial a notícia, tornou-se uma ja- periência social: uma perspectiva de aná-
nela por onde a sociedade entra em contato lise. Petrópolis: Vozes, 2012.
com uma parcela dos acontecimentos (TU-
CHMAN, 1983). Isso posto, a depender do LIPPMAN, Walter. Opinião pública. Pe-
lado pelo qual a janela se encontra, a experi- trópolis: Vozes, 2008.
ência do público se dará a partir de um ponto
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às
de visto específico, mas outros ficarão de fora
mediações: comunicação, cultura e hege-
do campo de visão. Assim são os jornais, re-
monia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.
cortes específicos de um horizonte tão vasto;
logo, cabe a eles prezarem pelo exercício de MCCOMBS, Maxwell. A teoria da agenda:
múltiplos olhares sobre o fato. a mídia e a opinião pública. Rio de Janeiro:
Vozes, 2009.

MEDITSCH, Eduardo. Jornalismo como


REFERÊNCIAS forma de conhecimento. 1997. Disponível
em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/medi-
tsch-eduardo-jornalismo-conheci-
ANTUNES, Elton. Enquadramento: consi-
mento.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2019.
derações em torno de perspectivas tempo-
rais para a notícia. Galáxia, São Paulo, n. 18, MILLAN, Ana; SPINAZOLA, Cariza; OR-
p. 85-99, dez. 2009. LANDO, Rosimeire. Deficiência intelectual:
caracterização e atendimento educacional.
BONIN, Jiani Adriana. Dos meios às media-
Educação, Batatais, v. 5, n. 2, p. 73-94,
ções: chaves epistêmicas, teóricas e metodo-
2015.
lógicas legadas à pesquisa de recepção. In-
texto, Porto Alegre, n. 43, p. 59-73, set./dez. REZENDE, Guilherme. Telejornalismo
2018. no Brasil: um perfil editorial. São Paulo:
Summus Editorial, 2000.
CASTRO, Davi. Agenda-setting: hipótese ou
teoria? Análise da trajetória do modelo de TUCHMAN, Gaye. La producción de la
Agendamento ancorada nos conceitos de noticia: estudio sobre la construcción de la
Imre Lakatos. Intexto, Porto Alegre, n. 31, realidad. Barcelona: Gili, 1983.
p. 197-214, dez. 2014.

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