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Prefácio dos Organizadores

Na introdução a um dos volumes da coletânea de obras de John Stuart Mill 1, Lionel


Robbins narra a cena que marcou o leito de morte de Mill, em 7 de maio de 1873 2. Prestes a partir,
há relatos de que ele tenha confessado: "Meu trabalho aqui está feito". Com isso, Mill obviamente
não quis dizer que todas as causas pelas quais ele lutou, que todas as ideias que avançou, foram
triunfantes, Robbins explica. Na verdade, o que uma das maiores mentes – senão a maior – do
liberalismo no século XIX quis dizer é que, perante todas as causas nas quais ele acreditava, sua
opinião foi posta; que a vida lhe permitiu adequadamente avançar seus argumentos perante tantos
assuntos aos quais ele desejava fazer uma contribuição.

Desde o início, ao pensar este livro, nossa intenção era a de abordar John Stuart Mill, ainda
que mais suas ideias do que o homem ele mesmo. Este prefácio, no entanto, fala mais sobre sua
vida, e explicamos o porquê. Não obstante o fato de que cremos ser possível entender
completamente alguma das obras de Mill sem conhecer o homem e sua história, acreditamos que
entender o total de sua obra requer, necessariamente, entender sua vida. Em especial, entender John
requer que entendamos a amizade e o subsequente casamento que ele teve com Harriet Taylor Mill,
e vice versa. Cabe mencionar, desde já, que, como veremos, o motivo de Harriet ilustrar nossa capa
não é apenas pelo fato que ela, como sua esposa, permite uma melhor compreensão de John, e serve,
portanto, como uma premissa auxiliar, uma atriz coadjuvante nessa história. Na verdade, além de
parte intrínseca da obra de John – que, em boa parte poderia inclusive ser (além das já
explicitamente assim) considerada como co-escrita pelos dois –, foi também ela mesma uma
pensadora que merece toda a atenção e apreço; uma protagonista, portanto.

Aliás, a relação entre os dois é tão significante e informativa que levou outra das maiores
mentes do liberalismo – senão a maior, desta vez do século XX – a dedicar anos de sua pesquisa a
esse tema: o economista austríaco Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi quem editou e publicou as
correspondências trocadas por John e Harriet. O livro editado apareceu primeiro, em 1951, sob o
título John Stuart Mill and Harriet Taylor: Their Correspondence and Subsequent Marriage [John
Stuart Mill e Harriet Taylor: Suas Correspondências e Subsequente Casamento]; todavia, Hayek
exigiu que "Their Correspondence" fosse alterado para "Their Friendship" [Sua Amizade]3. O
motivo nos parece bastante elucidativo: Mill e Harriet mantiveram uma amizade de 19 anos
enquanto Harriet era casada com John Taylor (com quem teve três filhos), e mais dois anos como

1 Lionel Robbins, "Introduction", em: John Stuart Mill, The Collected Works of John Stuart Mill, Volume
IV - Essays on Economics and Society Part I, John M. Robson (ed.). Toronto: University of Toronto Press,
London: Routledge and Kegan Paul, 1967. Daqui em diante, apenas The Collected Works.
2 A maioria das fontes reporta a morte de JSM como em 8 de maio de 1873. No entanto, uma cópia dos
registros oficiais (Registres de l'Etat civil d'Avignon) mostra que ele morreu no 7 de maio. A cópia desse
documento pode ser encontrada em: Emile Thouverez, Stuart Mill. 4.ed. Paris: Bloud & Cie, 1908, p. 23.
3 Ver Sandra J. Peart, "Editorial Foreword", em: Friedrich Hayek, Hayek on Mill: the Mill-Taylor friendship
and related writings. Sandra J. Peart (ed.). The Collected Works of F. A. Hayek, Volume XVI. Chicago: The
University of Chicago Press, 2015. Daqui em diante, apenas Hayek on Mill.
viúva; o casamento entre Harriet e Mill ocorreu apenas em 1858, dois anos antes da morte de
Harriet.

A partir dos esforços de Hayek, adicionados à extensa colaboração de (entre outros) mais
dois economistas, Lionel Robbins e Jacob Viner4, deu-se luz a uma nova era de trabalhos sobre Mill,
tanto o homem, como suas ideias 5. Particularmente, sobre o homem, destacamos The Life of John
Stuart Mill (Londres: Secker and Warburg, 1954), de Michel St. John Packe, uma obra que Hayek
considerou "a biografia definitiva de Mill" 6; sobre as ideias, o monumental The Collected Works of
John Stuart Mill (Toronto: Toronto University Press, 1963), editado por John M. Robson em 33
volumes.

Se, para o caso de Mill, quase 120 anos tiveram que passar a partir de sua morte para que
seus trabalhos fossem finalmente organizados e publicados de maneira definitiva, para o caso de
Harriet, foi um pouco pior. Editado por Jo Ellen Jacobs, The Complete Works of Harriet Taylor
Mill (Bloomington: Indiana University Press, 1998) nasceu há (praticamente) apenas duas décadas,
ou 140 anos após o falecimento dela. O que vale para os dois é que uma série de fatores, alheios às
vontades dos editores e pesquisadores, preveniu que fossem publicados mais cedo. Acima de tudo,
o fato de que Helen Taylor, filha de Harriet com John Taylor, ao herdar os manuscritos e
correspondência de sua mãe e seu padrasto, quis para si a tarefa de publicar ela mesma esses
documentos. Na prática, como relata Hayek, ela acabou por se dedicar mais à tarefa de garantir seus
direitos autorais e de impedir que outros tivessem acesso aos documentos do que à tarefa de
publicá-los; a história só veio a tomar outro rumo – ainda que muito longe do fim – quando o
material foi novamente passando por herança, desta vez à sobrinha de Helen Taylor, Mary Taylor,
filha mais nova de Algernon, o segundo filho de Harriet. Ainda que Mary Taylor tenha permitido
que editores e pesquisadores, pela primeira vez, tivessem acesso aos manuscritos de JSM, as
correspondências entre Mill e Harriet permaneceram sob a tutela de Mary Taylor, que queria, ela
mesma, ser a editora, dado o conteúdo de caráter mais pessoal. A história se repete! Mary Taylor
faleceu e o material, de acordo com o testamento, ficou sob tutela do National Provincial Bank Ltd.
que acabou por mandar a maior parte à leilão, primeiro em 1922 e depois em 1927. Parte do
leiloado se perdeu ao longo do tempo, inclusive devido às bombas que levaram consigo os materiais
durante a guerra; além disso, os materiais que se encontram divididos entre a Biblioteca da
Universidade de Yale e a Biblioteca do King's College (os em posse dessa antes pertenciam a John
Maynard Keynes), em Londres, também, aparentemente, são oriundos destes leilões. Por fim, as
cartas entre Mill e Harriet, tiveram seu destino final apenas em 1943, quando o banco (que

4 Jacob Viner (1892-1970), economista canadense associado à Escola de Chicago, em especial à chamada
"Velha Chicago", e mais conhecido pelas suas contribuições à área da Economia Internacional. Lionel
Robbins (1898-1984), economista britânico associado à Escola Austríaca e por quase toda sua carreira uma
das figuras mais reconhecidas da London School of Economics. A colaboração dos dois é documentada por
uma série de cartas trocadas com Hayek durante sua pesquisa – ver Hayek on Mill, op. cit., 2015, p. 332ff.
5 A importância do trabalho de Hayek nesse âmbito é bem documentada em Sandra J. Peart "Editor's
Introduction", em: Hayek on Mill, op. cit., 2015, bem como em Lewis S. Feuer, "Review of John Stuart
Mill and Harriet Taylor: Their Correspondence and Subsequent Marriage", Philosophy and
Phenomenological Research, vol. 13, December 1952, especialmente p. 246.
6 Ver Friedrich Hayek, "Preface", em: Michael St. John Packe, The Life of John Stuart Mill, London: Secker
and Warburg, 1954), p. xii.
anteriormente, pelo seu caráter íntimo decidiu não colocá-las nos lotes leiloados) entregou como
doação à Mill-Taylor Collection, da Biblioteca da London School of Economics7.

Superados os desafios, as cartas ajudaram a dar um tom factual às análises que propunham-
se a investigar a relação entre John e Harriet, objeto que muitas vezes era mera conjectura ou
afirmações especulativas. Entre elas, diz-se que Harriet forçou Mill a ter ideias ruins, a se tornar um
radical, ou que Harriet era uma mulher passiva-agressiva que se aproveitava do amor incondicional
de Mill para avançar suas próprias ideias; ou, ainda, que tinha um "masoquismo profundamente
incrustado" e "inclinações mórbidas"8. Por outro lado, alguns de seus seguidores intelectuais tratam-
na como a mártir genial que talvez possa ser considerada até como a fonte de todas as ideias
importantes que John Stuart Mill publicou. Harriet foi, no final das contas, uma vítima de sua
próprias ideias, quando afirmou que "a Verdade tem tantos lados, um deles é contar apenas um
lado"9. Tal como sua a autora de sua biografia, acreditamos que a verdade reside em algum lugar
complexo entre esses dois extremos. Harriet era uma mulher vigorosa e vibrante, dona de um
intelecto prolífico — que funcionava melhor em seus pensamentos do que em sua escrita, algo que
ela mesma reconhece — mas que, afinal, assim como John, também era humana: com seus defeitos,
anseios e preocupações.

É inegável, todavia, que a relação entre os dois teve suas peculiaridades. Quando ainda era
casada com John Taylor, em setembro de 1833, Harriet requereu uma separação temporária de seis
meses, e foi à França com as crianças. Um mês depois, Mill, sem que John Taylor soubesse, seguiu
ela até lá. Depois de seis semanas juntos, Harriet foi compelida a escrever para seu marido dizendo
que voltaria, desde que para isso ela e Mill não precisassem "deixar de ver" um ao outro, que havia
sido o pedido inicial de John Taylor. Taylor então responde dizendo que tinha sido muito egoísta,
que aceitava a proposta e que no futuro pensaria "mais nos outros e menos nele mesmo".

De qualquer forma, ainda que não tenha incomodado John Taylor, o fato de Harriet ser
uma mulher casada era especialmente complicado para os outros, se considerarmos as implicações
que isso acabou gerando a ela e Mill. A começar pela família de Mill: ele foi confrontado por seu
pai, preocupado com as implicações de seu romance (ainda que platônico, à época). Mill esquivou-
se dizendo que "ele não tinha nenhum sentimento por ela além dos que ele teria por qualquer
homem igualmente hábil". Curiosamente, parece que o casamento de Harriet e Mill não contribuiu
muito para acalmar os ânimos – talvez justamente o contrário. Harriet se negava a ter relações com
qualquer um que ela suspeitasse ter fofocado sobre seu suposto adultério, e isso incluia também as

7 As informações históricas dispostas neste parágrafo vem de Hayek, o que apenas reforça o tamanho dos
imensos obstáculos pelos quais ele passou para poder, enfim, publicar as correspondências. Ver Friedrich
Hayek, "Introduction", em: The Earlier Letters of John Stuart Mill, 1812-1848, Francis E. Mineka (ed.), vols.
12– 13 (1963) of The Collected Works, op. cit., 1962.
8 Infelizmente, muitas dessas interpretações pejorativas continuaram após as cartas: sobre a suposta má
influência de Harriet ver, por exemplo, Gertrude Himmelfarb, "The Two Mills", The New Leader, 10:26,
1965, pp. 28-29; sobre a severa acusação de masoquismo e "inclinações mórbidas", ver Ruth Borchard, John
Stuart Mill: The Man, Londres: Watts, 1957, p. 67. Para uma análise das críticas à Harriet, ver Jo Ellen
Jacobs "'The Lot of Gifted Ladies is Hard': A Study of Harriet Taylor Mill Criticism," Hypatia, v. 9, n. 3,
1994, pp. 133-162.
9 Harriet Taylor Mill, The Complete Works of Harriet Taylor Mill, Jo Ellen Jacobs (ed.). Bloomington:
Indiana University Press, 1998, p. 232.
relações de JSM. Em uma carta, Harriet descreve uma lista de amigos de JSM – incluindo Alexis de
Tocqueville, o jurista John Austin e Thomas Carlyle – como "moralmente fracos, rasos em
intelecto, tímidos, infinitamente vaidosos, fofoqueiros [...] fantoches mais ou menos respeitáveis" 10.

O caso mais severo e emblemático, no entanto, parece ser o de seu irmão mais novo, George
Grote Mill, que sequer foi informado do casamento. Quando George ficou sabendo, meses depois,
por meio de terceiros, enviou uma carta com votos de felicidade ao casal. No entanto, a carta fazia
referência às posições feministas de Harriet, dizendo que o casamento havia lhe deixado surpreso, já
que ela tanto criticava a instituição do casamento. John não gostou nem um pouco e respondeu à
carta dizendo que "há tempos deixei de me surpreender com a falta de bom senso ou boas maneiras
em qualquer coisa que venha de você". Não bastante, cortou totalmente qualquer tipo de relação
com George. Ainda que não se possa afirmar com certeza a relação entre os fatos, George cometeu
suicídio dois anos depois11.

A despeito de qualquer resultado peculiar no âmbito das relações pessoais, a amizade e


subsequente casamento dos dois parece ter produzido prolíficos resultados no âmbito intelectual;
seja explicitamente em artigos em que foram co-autores, seja mais indiretamente na evolução de suas
ideias ao longo do tempo, refinando argumentos. Como exemplos, Mill admite ao longo de sua
autobiografia que sua obra Princípios de Economia Política (1848) foi uma "produção conjunta
com minha esposa"; que Sobre a Liberdade "tal como tudo que escrevi por muitos anos [...]
pertence tanto a ela como a mim".

Curiosamente, as ideias sobre os direitos das mulheres, que repetidamente são atribuídas
como uma contribuição de Harriet ao pensamento de John, na verdade tem a cronologia oposta:
essas eram ideias que ele já acreditava, antes dela. Aliás, ele pondera, foi justamente por sua crença
nos direitos das mulheres que Harriet tanto o admirou. Ainda assim, dizer que a origem das ideias
de Mill sobre o tema não vem de Harriet não é dizer, todavia, que Harriet não colaborou no seu
pensamento sobre o assunto. Em sua autobiografia (escrita enquanto Harriet ainda era viva) ele nos
conta12:

"[Talvez] possa ser suposto, por exemplo, que minhas fortes convicções sobre a completa
igualdade que deve existir entre homens e mulheres, em todos os temas legais, políticos,
sociais e domésticos tenham sido dela adotados ou aprendidos. Isso era tão longe de ser o
caso que essas convicções estavam entre os primeiros resultados da aplicação da minha
mente a assuntos políticos, e a força com a qual eu mantinha-os foi, acredito eu, mais do
que qualquer coisa, a causa original do interesse que ela sentiu por mim. A verdade é que,
até que eu a conhecesse, a opinião era, em minha mente, pouco mais do que um princípio
abstrato [...] Eu sou, de fato, dolorosamente consciente do quanto dos seus melhores
pensamentos eu falhei em reproduzir, e o quanto aquele pequeno tratado [A Sujeição das
Mulheres] deixa a desejar perante o que ele teria sido caso ela tivesse botado no papel todos

10 John Stuart Mill, Autobiography and Literary Essays , eds. John M. Robson & Jack Stillinger, vol. 1
(1981) of The Collected Works, op. cit., 1962-1991.
11 As informações biográficas e as citações nos últimos dois parágrafos podem ser encontradas de forma
organizada em Helen Andrews "Romance and Socialism in J. S. Mill – Review Essay of Hayek on Mill: The
Mill-Taylor Friendship and Related Writings by Friedrich A. Hayek", American Affairs, Vol. I, n. 2, 2017,
pp. 199–208.
12 Carta de Harriet à JSM. 9 de julho de 1849 - em: Hayek on Mill, op. cit., 2015, p. 154.
seus pensamentos sobre essa questão, ou tivesse vivido para revisar e melhorar, como ela
certamente faria, minha imperfeita declaração sobre o tema."

Passadas as turbulências das relações humanas do casal, o real motivo que levou Hayek a
dedicar tanto tempo de sua carreira ao estudo da vida e obra de Mill e Harriet parece ser a peça final
do quebra cabeça: Hayek queria saber se Harriet tinha convertido Mill ao socialismo, posição que
Mill acabou defendendo – ao menos de certa forma – ao final de sua vida. Como de costume, tanto
o motivo que levou Mill a admirar o socialismo quanto a extensão dessa admiração são objeto de
discordância. Todavia, a influência de Harriet nessa direção parece menos incerta, já que Mill
explicitamente cita-a como fonte dessas ideias em sua Autobiografia, dizendo que seus escritos a
partir de 1848 "pertencem a uma terceira e diferente etapa do meu progresso mental, que é
caracterizada essencialmente pela predominante influência do caráter e intelecto de minha esposa" 13.
Quando as outras dúvidas sobre o socialismo em si, economista Ludwig von Mises, teceu críticas
severas (algo que ele fazia de costume) à Mill e não demonstrou dúvidas sobre a influência socialista
de Harriet14:

"John Stuart Mill é um epígono do liberalismo clássico e, especialmente em seus últimos


anos, sob a influência de sua mulher, com poucos compromissos com o liberalismo. Ele, aos
poucos, escorrega para o socialismo e é o iniciador da irrefletida confusão de ideias liberais e
socialistas que resultaram na queda do liberalismo inglês e no solapamento do padrão de
vida do povo inglês. [...] Mill é o grande defensor do socialismo. [...] Todos os argumentos
que podem ser colocados em favor do socialismo foram por ele elaborados com afetuosa
atenção. Em comparação a Mill, todos os outros autores socialistas, mesmo Marx, Engels e
Lassalle, muito dificilmente mostram alguma importância." (grifo nosso)

Ainda que Hayek não concordasse com a acusação de que Mill tenha sido o grande defensor
do socialismo, outras duas afirmações talvez contassem com o apoio de Hayek. Em especial que, de
fato, Harriet influenciou Mill em direção ao socialismo e que a dita mistura entre "liberalismo e
socialismo" acabou por prejudicar o avanço das ideias liberais na Inglaterra. Não à toa a posição de
Hayek perante Mill mudou significativamente durante sua vida. Em seus escritos mais antigos, nas
décadas de 30 e 40, Mill não toma um papel relevante. Na década de 60, quando Hayek lança seu
monumental The Constitution of Liberty (1960), Mill é o autor mais citado, com a maioria absoluta
das citações sendo positivas. Em 1988, quando Hayek lança seu último livro, The Fatal Conceit,
Mill se torna apenas o sexto autor mais citado, todas contendo críticas negativas; bem, talvez uma
possa ser considerada como positiva: Mill "provavelmente deveria ser perdoado por ter se
apaixonado pela senhora que mais tarde tornou-se sua esposa"15.

Consequentemente, ainda que seja evidente que Mill não foi mais importante que Marx e
Engels para o socialismo, talvez ele tenha sido mais relevante que Marx para o desenvolvimento do

13 Ludwig von Mises, Liberalismo: Segundo a Tradição Clássica, São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2010,
pp. 203-204.
14 Sobre esse ponto, ver Bruce Caldwell, "Hayek on Mill", History of Political Economy, vol. 40, nº 4, 2008,
pp. 689-704. Ver também Hayek, The Fatal Conceit, especialmente o apêndice B, "The Complexity of
Problems of Human Interaction".
15 Ver Autobiography, op. cit, 1981. A versão da frase tal como escrita aqui apareceu em um rascunho
inicial, que pode ser encontrado na página 234 da edição referenciada. A versão final da mesma frase
encontra-se atenuada, página 237.
socialismo britânico16 . De qualquer forma, cabe frisar que a influência socialista de Mill certamente
não vinha de Marx, mas, principalmente, de Saint-Simon 17. Não apenas porque Mill discordava de
toda episteme marxista, mas também porque considerava que quaisquer falhas que pudessem ser
encontradas no socialismo utópico de Owen, Fourier, Blanc e Saint-Simon, o socialismo científico
(ou revolucionário) de Marx e Engels também as teria junto a tantas outras mais.

Portanto, se, por um lado, Mill admirou o socialismo, foi também o socialismo que ele se
pôs a criticar; mais um exemplo da idiossincrasia de Mill. Em especial, é seu texto "The Difficulties
of Socialism"18, publicado postumamente em 1879, que deveria atrair uma atenção redobrada. Isso
porque ele é esquecido tanto pelos socialistas que se valeram de Mill para defender suas ideias, tanto
pelos liberais que acusam Mill indiscriminadamente de ser um socialista. Mill via o socialismo mais
como um modo de produção alternativo do que como uma crítica devastadora do capitalismo;
justamente por isso Mill discute, de um ponto de vista operacional, quais seriam as consequências,
positivas e negativas, da implementação do socialismo; ou seja, pouco discute os argumentos morais
a favor do socialismo. E, do ponto de vista operacional, as críticas de Mill parecem estar
completamente de acordo com outras feitas por outros autores liberais.

Seria tal admiração pelo socialismo um motivo para os liberais descartarem Mill? Se sua
opinião é similar a Mises e você considera Mill um socialista perigoso, saiba que a crítica de Mises
tem a seguinte ponderação:

"Não obstante, ou precisamente por causa disso, devem-se conhecer os principais escritos de
Mill: Principles of Political Economy (1848) , On Liberty (1859)3 e Utilitarianism (1862).
Sem um estudo abrangente de Mill é impossível entender os acontecimentos das duas
últimas gerações [...]" (grifo nosso)19.

Por outro lado, se você já via imenso valor em Mill, pense no seguinte. Como bom
empirista, ele defendeu em seu Princípios de Economia Política que a única maneira mais justa de
comparar o capitalismo e o socialismo para decidir qual tem o melhor custo-benefício seria justapor
os dois sistemas em teoria e depois na prática. Ocorre que à sua época, o socialismo não havia sido
testado ainda. A reflexão a ser posta, pois, deveria ser a seguinte: Mill defenderia o socialismo hoje?
Depois de todas as experiências totalitárias do século XX, acreditamos que não. Se parece mera
especulação, finalizamos com suas próprias palavras, que previram os resultados do práticos dessas
experiências:

A introdução do Socialismo sob tais condições [revolucionárias] não pode ter nenhum efeito que
não o de uma falha desastrosa, e seus apóstolos poderiam apenas se consolar com o fato de que a
ordem da sociedade tal como ela existe hoje teria perecido em um primeiro momento, e todos
aqueles que se beneficiam disso estariam em comum na ruína – uma consolação que para muitos

16 Claude-Henri de Rouvroy, ou Conde de Saint-Simon (1760-1825) foi um economista francês e um dos


precursores do socialismo "utópico", em oposição ao socialismo "científico" de Marx e Engels.
17 John Stuart Mill, "The Difficulties of Socialism", de Chapters on Socialism publicado inicialmente na
Fortnightly Review (1879). Reimpresso em: The Collected Works, op. cit, Volume V - Essays on Economics
and Society Part II, ed. John M. Robson, Toronto: University of Toronto Press, 1967.
18 Friedrich A. Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, The Collected Works of F. A. Hayek, Vol
1., ed. W. W. Bartley III, Chicago: The University of Chicago Press, 1988, p. 149.
19 Mises, Liberalismo, op. cit., 2010, pp. 203-04.
provavelmente seria real, já que, se confiarmos nas aparências, o princípio que move muitos dos
socialistas revolucionários é o ódio. [...] [Querem] pôr um fim ao presente sistema a qualquer custo,
até mesmo para aqueles que sofrem por causa dele, na esperança de que do caos emergiria um novo
Cosmos, e na impaciência do desespero, desrespeitando qualquer melhora mais gradual. Eles não
sabem que o caos é justamente a mais infavorável das posições para se começar a construir um
Cosmos, e que muitas eras de conflito, violência e opressão tirânica dos mais fracos pelos mais fortes
hão de ocorrer [...] Se os mais pobres e mais miseráveis membros de uma dita sociedade civilizada
estão em uma situação tão ruim quanto a que todos estariam nesta pior das formas de barbarismo
produzido pela dissolução da sociedade civilizada, não se conclui que a maneira pela qual nós
elevamos seu padrão de vida é reduzindo todos a esse estado miserável. Ao contrário, é por meio da
ajuda dos que inicialmente elevaram seus padrões de vida que tantos outros poderão escapar da vala
comum, e é através da melhor organização desse mesmo processo que pode se ter esperança de
melhorar o padrão de vida dos restantes.

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