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A ORAÇÃO EUCARÍSTICA IV

Anotações litúrgicas1

A IGMR (30 e 78) afirma que a Oração Eucarística (OE) é “ápice de toda a celebração, prece de
ação de graças e santificação”. Nessa prece, toda a assembleia é convidada a se unir a Cristo e pro-
clamar as maravilhas de Deus na oblação do sacrifício. “A OE, juntamente com a Liturgia em geral,
nos ensina que a oração é, antes de tudo, resposta e nasce da escuta da Palavra de Deus. Dessa ca-
racterística da oração, nascem também as várias formas de oração cristã: louvor, ação de graças,
bênção, pedido e súplica”2. “Olhar a OE como modelo de oração deve, então, fazer-nos assumir a
mesma direção e a mesma orientação na nossa oração”3.
Proponho algumas anotações litúrgicas sobre a Oração Eucarística IV, a mais cumprida das
OEs e de estilo muito diferente das demais. É atribuída a São Basílio Magno (329/330-379), bispo
de Cesareia (Capadócia).4
Na reforma que seguiu ao Concílio Vaticano II, a Igreja acolheu e adaptou esta OE oriental, ainda
em uso nas Igrejas do Oriente. Foi uma novidade de enorme importância; nela, fala-se muito de amor,
de Deus que cria por amor, que manda o Espírito Santo. Segundo a Tradição litúrgica, os prefácios nar-
ram a História da Salvação (HdS); mas, nessa de Basílio, o prefácio fala só de quem é Deus, o Pai: O
prefácio não é uma anamnese do que Deus fez, mas do que Ele é: antes dos dons, dirige-se ao Doa-
dor.
Seguindo modelos preexistentes, toda OE começa com o diálogo. Estamos tão acostumados a pro-
nunciá-lo e cantá-lo que, talvez, nem prestamos mais muita atenção no que afirmamos.
O Senhor esteja convosco! (Dominus vobiscum!) A Assembleia responde: Ele está no meio de
nós. (Et cum Spiritu tuo). É um intercâmbio, por meio de uma bênção, entre quem preside e a Assem-
bleia. Observemos que, em latim, falta o verbo! Podemos traduzir: O Senhor esteja, mas também está
convosco! As palavras nos recordam a saudação do anjo a Maria (Lc 1); é a saudação hebraica por ex-
celência (cf. Jz 6, 12: o anjo a Gedeão). Dizer que o Senhor esteja / está contigo, é dizer que o Senhor
te abençoa com a sua presença. Por essa presença divina, a assembleia fica repleta de graça, o Senhor a
escolheu como sua morada. Toda assembleia litúrgica é como o seio da Igreja. Participando da assem-
bleia litúrgica, nós aprendemos a fé e fazemos a experiência eclesial mais marcante. Essa saudação já é
uma confissão de fé. A oração é dirigida ao Senhor que está no meio do seu povo, é o TU da relação
da fé.
Quem preside diz: Corações em alto (sursum corda)5, é uma citação de Lm 3,41: “Os corações
com as mãos levantemos para Deus lá nos céus”. Interessante: os nossos corações acima das mãos. São
Jerônimo escreve: “Levantemos nossos corações com as mãos”! Expressa a tenção dos corações, a ne-
cessidade, na oração, de manter os corações presentes; é a presença a si mesmos e diante de Deus,
conscientes daquilo que estamos fazendo. Um dito rabínico: “A oração sem kavanah é como um corpo
sem alma”! Essa tenção corresponde à participação consciente, ativa, plena de SC (cf. 14, 21 etc.). Na
Bíblia, o coração é o centro da pessoa; significa não só um vago ficar atentos, mas expressa a qualida-
de da oração. (Outras orações eucarísticas orientais pedem de dirigir a Deus não só a mente e o coração,

1
Para a elaboração destas reflexões, devo a uma palestra de BOSELLI, Goffredo sobre as Orações Eucarísticas. Ver tam-
bém: FERRARI, Matteo. A oração Eucarística. Uma “obra” reaberta pelo Concílio. (Coleção Vida e Liturgia da Igreja,
7). Brasília: CNBB, 2022, sobretudo, nas páginas 123-126.
2
FERRARI, op. cit., p. 131.
3
Ibidem, p. 132.
4
É ele, entre os Padres, quem melhor explicou a natureza divina do Espírito Santo como será proclamado no Concílio
Ecumênico d Constantinopla (381).
5
Cf. SCMEMANN, Alexander. L’Eucaristia sacramento del Regno. Magnano (Biella): Comunità di Bose. Qiqajon,
2005, p. 227-229.
mas também o ouvido). Quem crê é chamado a se tornar oração eucarística, a levar o coração para o
alto, para saber levá-lo ao outro, para se colocar acima das preocupações cotidianas, pequenas e gran-
des, e ver tudo com olhar diferente, com o olhar de Deus Criador e Senhor.
Demos graças ao Senhor, nosso Deus:6 é a atitude cultual do cristão, a Eucaristia é a expressão
mais alta de nossa fé. Este diálogo introdutivo da OE expressa claramente que a oração da Igreja é um
ato comum, uma oração da Igreja toda! Essas palavras, abriam a oração hebraica tradicional. Portanto,
Jesus mesmo começou a sua Ceia de despedida, com essa oração que leva ser humano a Deus e salva o
mundo. Com certeza, os apóstolos responderam: E nosso dever e salvação [Dignum et justum est: É
coisa boa e justa]. A Igreja, repetindo essas palavras, faz memória desse ato de gratidão dos primeiros
seguidores de Jesus, na última Ceia. Também se pronunciada só por quem preside, expressa a fé de
todos os presentes. A esse respeito, S. João Crisóstomo escreve: “Tem momentos em que não existe
nenhuma diferença entre o padre e os demais... Não é como na antiga Aliança que uma parte das ofer-
tas era reservada aos sacerdotes. Agora a todos são oferecidos um só corpo e um só cálice. Também
na oração pode-se constatar que não é mais assim: o sacerdote reza pelo povo, mas também o povo
reza pelo sacerdote. Não é só o sacerdote que reza, mas todos. Por que se maravilhar se o povo dialo-
ga com o sacerdote quando se une até aos querubins? É preciso ficar vigilantes e compreender que
existe um só corpo, e que a diferença existe somente entre um membro e outro membro; assim não a-
tribuamos só ao sacerdote a celebração” (Homilia sobre a carta aos Corintos).
Esta anáfora respira no clima espiritual do evangelho de João. Nela, contam-se mais de 60 cita-
ções bíblicas, quase a Bíblia toda é direta ou indiretamente citada, do A. e do NT.
Pai santo (Jo 13 e 17): a santidade é a categoria dominante. Começa-se pela santidade de Deus
que santifica, não se fala de consagração mas de santificação dos dons. Único Deus (1Ts 1,9); Só vós
sois o Deus vivo [Nm 14, 21...; Jo 1,4... 5,6... Deus dos vivos e nãos dos mortos (sinóticos)]; e verda-
deiro = fiel [cf. Jo 3,33; 8,26; 17,3; Rm 3,4; 1Ts 1,9; 1Jo 5,20; At 14,15; Rm 9,26; 1Ts 1,9; 1Tm 4,10;
Hb 12,22; Ap 7,2] que existis antes de todo o tempo e permaneceis para sempre, habitando em luz ina-
cessível [Jo 1,6-9; 1Jo 1,7 e 2,10]. Mas, porque sois o Deus de bondade [Lc 18,19 e par.; Rm 2,4;
11,22] e a fonte da vida [Pv 4,23; Sl 36,10; Jo 4,4], fizestes todas as coisas [Gn 1-2].
Existis antes de todo o tempo. O tempo é a primeira realidade com que Deus é comparado.
Tempo e espaço são as duas realidades em que a nossa vida se coloca. Agostinho escreve: não este
mundus factus in tempore, sed cum tempore. É uma verdade bíblica [Gn 1,1 In principio (berechit)]
não significa no, mas em um início Deus criou]. Fizestes todas as coisas... Se confessa a fé em Deus
que criou para cobrir de bênção as criaturas. A criação é obra do amor de Deus, para dar alegria às
criaturas. Aqui se insere a ligação com os Anjos, os inventores da liturgia: Contemplando a glória da
vossa face, vos louvam sem cessar. Os anjos são espíritos litúrgicos, cantam Santo (Is, 6), aleluia
(Ap). Com eles (com os anjos). Nós humanos nos tornamos voz de toda criatura para louvar a Deus,
junto com plantas, rochas, animais... Nós que temos a palavra podemos expressar o louvor a Deus.
Reconhecemos que todas as criaturas têm voz para louvar a Deus.
Depois do Sanctus, narra-se da criação e da salvação, fala-se da História da Salvação, desde a
criação até a parusia, do “In principio”, até o “Marana-tha”. Nós proclamamos vossa grandeza, Pai
santo [Confitemos tibi, sancte pater]: a sabedoria e o amor com que fizestes todas as coisas. A cada
palavra, podemos encontrar textos bíblicos correspondentes. Deus cria uma aliança de sabedoria e
amor com tudo o que criou. Deus é amor, cria com amor; desse modo, institui uma relação de amor
com tudo o que existe. Qualquer artesão, vive uma relação com a obra de suas mãos. Recordemos Sb
11,21: “Deus ama tudo o que existe e não despreza nada do que fizeste; porque, se odiasse alguma
coisa, não a teria criado”.

6
Ibidem, p. 229-230.
2
Criastes a pessoa humana a vossa imagem (Gn 1,26; Sir 17,1; Ef 4,24; Cl 3,10). Aqui começa o
hino à pessoa humana! Confiastes para que cuidasse; é a atitude do ser humano que manifesta os
cuidados com que Deus criou! [cf. Salmo 8; Sb 9: com sabedoria formastes o ser humano]. O ser
humano é feito senhor sobre a criação para cuidar, não para dominar com prepotência!
Chegamos à desobediência que fez perder a amizade, não o abandonou no poder da morte! (Hb
2,14): é a misericórdia e a bondade do Senhor que recebem maior destaque. Não é expressa aqui ne-
nhuma teoria do pecado original; fala-se de desobediência (linguagem paulina: ex. Rm 5,19). A todos
socorrestes: cada pessoa é um Adão a quem Deus socorreu! Numa maneira inesperada, Deus veio em
socorro debaixo de sua fragilidade: sub-venire lembra a parábola do filho pródigo. Esse texto nos diz
que a misericórdia divina já é atuante desde o início; existe contemporaneidade entre a desobediência
humana e a intervenção misericordiosa de Deus. Não criação, pecado, redenção em atos separados e
seguintes, mas numa contemporaneidade!
Muitas vezes oferecestes aliança: sim, o Pai ofereceu muitas alianças... na esperança da salva-
ção: [ver Habacuc, Jeremias...] A fim de não mais vivermos para nós, mas para ele... enviou de vós,
ó Pai, o Espírito Santo que continua sua obra no mundo para levar à plenitude toda a santifica-
ção: a linguagem respira o Evangelho de João [cf. Jo discurso da última ceia e 20]. A epiclese é ele-
mento muito presente nas OEs e na teologia orientais.
Tendo amado os seus...amou-os até o fim (Jo 17 e 13). Tomai e comei... Corpo entregue por
vós. No corpo por vós, desde sempre, o Filho é doado; Ele é um corpo doado. Todo corpo humano é
um corpo doado. Nós nascemos carne e nos tornamos corpo, para sermos doados. Viver não para si
mesmos! É o elemento central da Eucaristia. Amor, partilha, acolhida, perdão são elementos e virtu-
des que pertencem à identidade da Eucaristia. Na última ceia, Jesus tomou o pão, como tomou sua
vida para doá-la. Quando, na sinagoga de Nazaré, tomou o rótulo das Escrituras (Isaías 61), ele co-
meçou abrindo-o; assim, no pão doado, Ele encerra e explica o que fez de sua vida toda. Como se
dissesse: “Minha vida é doada a vocês”. Jesus não fala em sacrifício, mas em vida doada, com pala-
vras e gestos que interpretam sua morte como expressão de amor, de partilha solidária. Nisso se en-
contra também a novidade cristã. São Paulo escreve aos Romanos (12,1): “Eu vos exorto, irmãos,
pela misericórdia de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável: este é
o vosso verdadeiro culto” (loguiquê latreia = culto segundo a Palavra, o Logos).
Nós celebramos o memorial da nossa redenção... a descida entre os mortos... sacrifício de vosso
agrado. O que oferecemos é nossa vida doada por amor aos que conosco vivem. Desse modo, a ofe-
recemos a Deus. Nos tornemos em Cristo uma oferenda viva para o louvor da vossa glória.
A morte na cruz não é, antes de tudo, para mostrar o amor de Deus para conosco. Desse modo,
Deus reconcilia o mundo, realiza a remissão dos pecados. Mas, a missão terrena de Jesus não visa,
acima de tudo, consertar o que o pecado arruinou. Essa ideia, que entrou na mentalidade (teologia e
liturgia) cristã, provém do mundo pagã e hebraico; Deus deveria ser aplacado (placatus) porque cha-
teado a causa do pecado humano! A Palavra, sobretudo São João, não cansa de repetir que Deus a-
mou o mundo (Jo 3,16), que mandou seu Filho ao mundo, não para condenar, mas para que o mundo
seja salvo por meio dele (Jo 3,17). A vinda do Filho não é a motivo do pecado! Se fosse assim, serí-
amos nós humanos, com o nosso pecado, que provocamos e determinamos a encarnação!
Toda a oração cristã, sobretudo a OE, nasce da escuta da Palavra e se expressa como narra-
ção: é como uma confissão de fé, nela se expressa a nossa fé, a fé da Igreja. “A OE tem sempre como
sujeito a Igreja e o seu olhar é dirigido à Igreja universal e ao mundo todo. Dela, então, sentimo-nos

3
inseridos no corpo eclesial. Também a nossa oração pessoal pode se tornar lugar onde se vive a
comunhão eclesial, fugindo ao risco de uma espiritualidade intimista e centrada em nós mesmos”7.
Nos primeiros séculos, a Igreja não tinha ainda formulado o seu Credo, síntese de sua fé, mas na
oração litúrgica manifestava e manifesta quem é o Deus em que crê. Por isso, o valor das expressões
litúrgicas é muito importante para ter o referencial seguro de nossa fé. Lembremos, neste contexto, a
bem conhecida afirmação de SC 10: A Liturgia é “o cume para o qual tende a atividade da Igreja e,
ao mesmo tempo, é a fonte da qual emana toda a sua força”.
Nessa OE IV, expressa-se a fé em 4 movimentos sucessivos, como numa sinfonia: 1) agradece a
Deus por aquilo que ele é; 2) narra a obra divina, desde os profetas; 3) apresenta o envio do Filho
(chegada a plenitude dos tempos: Mc 1,15; Gl 4,4), como Salvador e do Espírito Santo (primeiro dos
aos vossos fiéis: Jo 20,19-23); 4) encerra com a obra da Igreja (Olhai, com bondade, a oblação que
destes à vossa Igreja... que nos tornemos em Cristo uma oferenda viva para o louvor da vossa gló-
ria).
A parte mais frágil dessa OE, são as intercessões, que não retomam as preces originais, ligadas a
uma situação social e eclesial bem diferente; elas se inspiraram nas intercessões das outras OEs.
Concluindo. Deve ser nossa íntima convicção que as OEs são “primeiramente uma escola de
Teologia”8. De fato, é na Liturgia - que na celebração da Eucaristia encontra sua máxima expressão –
que se deve caminhar para “fazer teologia”, isto é, para conhecer o mistério de Deus, vivendo e parti-
cipando, na e com a Igreja, de forma humilde e disponível, atentos e abertos à ação do Espírito. En-
tão, irem experimentar, desde já, o mistério que celebramos e dele viver.
Como orar a OE? Responde a IGMR 38, em geral: Proferir os textos “em voz alta e distinta, a
voz corresponda ao gênero do próprio texto”. Disso iremos refletir numa outra conversa.

7
Ibidem, p. 132-133.
8
Ibidem, p. 122.
4

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