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Belém
2015
Ivone Caldas Carvalho
Belém- Pa
2015
Dados Internacionais de Catalogação na publicação
Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA
CDD:
Ivone Caldas Carvalho
Data de aprovação____/____/____
Banca examinadora
________________________________________ – Orientadora
Prof.ª Dr.ª Josebel Akel Fares
Doutora em Comunicação e Semiótica - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Universidade do Estado do Pará
________________________________________– Examinador
Prof. Dr. Paulo Jorge Martins Nunes
Doutor em Letras, Literatura e Língua Portuguesa - Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais
Universidade da Amazônia
________________________________________– Examinadora
Prof.ª Dr.ª Abêne Lis Monteiro
Doutora em Educação – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Universidade do Estado do Pará
________________________________________– Examinadora
Prof.ª Dr.ª Renilda Rodrigues Bastos
Doutora em Ciências Sociais e Antropologia – Universidade Federal do Pará
Universidade do Estado do Pará
Belém
2015
Aos meus pais, João e Maria, sobreviventes, que não
me abandonaram na floresta da ignorância.
GRATIDÃO
A Jeová, soberano de todas as coisas, porque mesmo quando estive só, na escuridão,
fomos três: Jeová, Jesus e eu.
Aos meus pais, irmãos e sobrinho Allan pelo afeto e compreensão dedicados a mim.
Ao meu companheiro, Amarildo, pelo amor e paciência, pois só assim para suportar
tanta ausência.
A toda minha família – numerosa e barulhenta: maravilhosa. Em especial à minha tia
Joana, tio Totó e tia Isarina, tio Benedito, inspiração de contador de histórias, meus primos
Antonio e Cristiano, à Sandra, prima do coração, à Leia, doçura em pessoa, Jocileia, Janelea.
À minha madrinha, Maria das Dores, pela força no período de estudo.
Ao poeta que me atendeu sempre com um sorriso largo e muita paciência me fazendo
sonhar com a poesia.
À minha orientadora, Josebel Fares, minha lamparina, que me alumiou a sensibilidade
para tantas questões de pesquisa e me acolheu em momentos difíceis.
Aos meus professores do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação/UEPA,
pelo mapa do caminho, minha gratidão estendida, dela uma mão cheia a mais, a professora
Ivanilde Apoluceno, que levo como exemplo de consideração, por ser humana e
comprometida com seu trabalho lendo e corrigindo nossos artigos e dando uma segunda
chance aos alunos de aprimorarem sua escritura.
Aos meus professores do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação/UEPA,
pela bússola, professoras Josebel Fares, Denise Simões e Nazaré Cristina.
À Mara Jucá, que me trouxe a água de lembrar e despertou em minha memória a
experiência que tive com o poeta em sala de aula para o passo inicial desta pesquisa.
Ao Hiran Possas, faroleiro juraciano, pelas indicações do caminho do meio nestas
águas barrentas da pesquisa.
A todos os tucunarés, colegas de trabalho, amigos, da Cooperativa Educacional
Alternativa, que acompanharam minha igarité nesta travessia.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação UEPA.
Ao CUMA (Culturas e Memórias Amazônicas), pela participação no grupo de
pesquisa.
À FAPESPA, por incentivo financeiro à pesquisa científica.
Aos amigos da secretaria do Programa de Mestrado, sempre prontos a nos ajudar.
Aos amigos: Cristiane Mesquita, Márcia Sampaio, Marta Rodrigues, Ivone Bentes,
Rosilda Maia, Carlos Campelo, pelo incentivos a embarcar nesta viagem.
Aos amigos do Mestrado: Andréa Cozzi, Jéssica Figueiredo, Suely Weber, Benedita
das Graças, Márcio Barradas, Gorette Procópio, Júlia Miranda, Ilca Sarraf, Renan Freitas,
Hugo Machado, Giselle Bezerra, pelo carinho e compartilhamento de saberes.
A todas as pessoas que tornaram a pesquisa possível.
Tecendo a Manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã.
Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de
um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o
lance a outro; e de outros galos que com muitos outros
galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para
que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre
todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda,
onde entrem todos, se entretendo para todos, no toldo (a
manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se
eleva por si: luz balão.
EMBARQUE 17
2.2 VERSOS 67
DESEMBARQUE 145
REFERÊNCIAS 148
APÊNDICES 155
17
EMBARQUE
1
Segundo os moradores de Tamanduá, no interior de Cametá, a palavra mundiado significa encantado, em
transe, meio desorientado por algo mágico.
18
produção de cordel, ministrada pelo poeta e educador Antonio Juraci Siqueira, que também
apresentou à turma algumas de suas obras.
Naquele momento, quando ele apresentou poemas em performance, ativou
significações culturais na memória coletiva dos estudantes. Eles entraram em contato com o
imaginário, o falar caboclo, símbolos e memórias que delineavam uma identidade amazônida,
uma experiência social, a qual nós criamos, segundo Brandão (2002), e revestimos de
símbolos a fim de nos sentirmos sujeitos desta cultura.
A partir daí, uma inquietação me levou à constatação sobre as práticas pedagógicas
que temos realizado na escola: quando a literatura entra no currículo, privilegiamos a
literatura canônica em detrimento daquela que está a nossa volta, a qual, nas falas do poeta,
trouxe musicalidade, beleza e conhecimento sociocultural para dentro da sala de aula.
Como educadores, escrevemos parte deste enredo, porque nos instrumentalizamos
para reproduzir o pensamento hegemônico que seleciona, compartimenta e especializa o
conhecimento que levamos aos nossos alunos. Nós os preparamos para os exames nacionais,
vestibulares e concursos, mas pouco os estimulamos a desenvolver o conhecimento dos
saberes culturais que os circundam.
Por conta de um trabalho com a disciplina Literatura de Expressão Amazônica, pela
UAB/UEPA, me deparei com textos de pesquisadores como Paulo Nunes, que trata da
importância do imaginário popular, e Josebel Fares, que traz à luz uma reflexão sobre o “não
lugar das literaturas consideradas das margens”, das bordas 2, como a Amazônica, dentro das
instituições de ensino formal. Esses questionamentos vinham ao encontro de minha
inquietação.
Acredito no dito por Compagnon (2012, p.23): “há coisas que só a literatura com seus
meios específicos pode nos dar”. Diria que essas “coisas” são saberes que a literatura, a
poética, escrita ou oral, provoca acionando o sensível negado em nós pelos ensinamentos da
racionalidade clássica. E, nesse sentido, visualizo em Antonio Juraci Siqueira um educador do
sensível, um militante da poesia, que produz atividades com sua literatura a fim de incentivar
à leitura, à escrita e à oralidade, dissemina sua poética por meio de performances e de livros.
Nas águas deste rio, vejo que estão implicados autor – obra – educação, em um
processo no qual o ensino do imaginário amazônico é mediado pelas ações do poeta no fazer
literário. Logo, como mediador, ele tem um papel fundamental no decurso de educação pelo
2
Na introdução da Cultura das Bordas, Ferreira (2010, p.11-12) explicita o conceito trazendo a ideia do
periférico, do não institucionalizado, que “implica a pertença múltipla e toda a dificuldade de estabelecer
limites”.
19
educador, performer Antonio Juraci Siqueira. Aponto, então, algumas questões relativas a
esse tipo de investigação. O método (Auto)biográfico busca:
3
Segundo Siqueira em Brasão de Barro (1992), do tupi iari’te, canoa verdadeira. Embarcação de porte médio,
impulsionada a remo de faia ou motor.
21
Para falar de uma das manifestações humanas, a Arte, atravesso uma longa baía, até
chegar à literatura, que considero a arte da palavra stricto sensu. E, como arte, ela expõe as
formas sinestésicas que damos a tudo que envolve o nosso mundo, as representações
simbólicas e o pensamento que move cada um de nós.
Esta manifestação do sensível humano pode ter várias funções. A mais antiga,
considerando-se sua transmissão pela oralidade, era disseminar os ritos religiosos por meio de
um vasto repertório de narrativas, mantendo viva a tradição da Grécia Antiga, entre os séculos
VIII e IV a.C., segundo estudos de Jean-Pierre Vernant (2006).
Outra função, dita como primordial por Roland Barthes (1987), em O prazer do texto,
é causar fruição no leitor, algo ligado ao sensorial. E, sendo uma arte, também pode ser
delineada pelo dito de Fares (2014, p.6) ao expressar:
E, para Umberto Eco (2003), em Sobre algumas funções da literatura, ela serve para
manter ativo o uso da língua como patrimônio coletivo; pode criar identidade e comunidade,
bem como manter em exercício nossa língua individual. Contudo, o autor diz que mais
importante que isso “a leitura de obras literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de
respeito na liberdade de interpretação” (ECO, 2003, p.12) – podemos imaginar um bom fim
ao nosso romance preferido, mas temos que aceitar o fim dado pelo autor.
Walter Benjamim (1987), no texto O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov, ao lastimar o desaparecimento da capacidade, no homem moderno, de narrar a
experiência, aponta a importância do narrador como o responsável por repassar experiências,
conselhos, fatos e mitos, assim como o faziam os narradores na Grécia Antiga. Vernant
(2006) explica que os narradores se dividiam em dois grupos: o do lar e o dos poetas. O
primeiro grupo era formado pelas vozes das mulheres – “contos de amas-de-leite, fábulas de
velhas avós, para falar como Platão, e cujo conteúdo as crianças assimilam desde o berço”
(VERNANT, 2006, p.15). Ao mesmo tempo em que elas aprendiam a falar, também
aprendiam a imaginar o divino.
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E o segundo grupo, os poetas, em público, disseminava pela voz “o mundo dos deuses,
em sua distância e sua estranheza” (VERNANT, 2006, p.15). Esse grupo, por séculos, se
manteve nesta função, segundo o medievalista Paul Zumthor (1993).
Vejo o narrador como aquele que educa. E, nessa interação de saberes, o educar,
segundo Brandão (2002, p.28), “é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles,
pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do
destino possam ser criados”. A relação da arte literária com o binômio educação e cultura se
dispõe sendo a literatura como instrumento da educação, a qual é uma das dimensões dentro
de um âmbito mais abrangente de processos sociais de interações chamado cultura.
E neste bojo de saberes culturais estão os do imaginário, que podem ser considerados
uma chave para a compreensão de toda cultura humana, pois são constituídos pelas imagens
que estabelecem a relação entre o homem e seu mundo. Durand (2011), em seus estudos
antropológicos sobre as imagens, observa que elas provocam a reflexão, ações e modificações
da e sobre a vida que dão sentido ao mundo. Embora o processo de pensar utilize duas
funções da mente, a imaginação e a razão, é pela imaginação que o homem cria filosofias,
teorias, religiões e a arte literária.
Assim, a imaginação constrói o imaginário, que:
pode ser considerado como essência do espírito, à medida que o ato de criação (tanto
artístico, como o de tornar algo significativo), é o impulso oriundo do ser (individual
ou coletivo) completo (corpo, alma, sentimentos, sensibilidade, emoções...), é a raiz
de tudo aquilo que, para o homem, existe (PITTA, 2005, p.15).
Por isso que os mitos sempre são fruto de uma coletividade e funcionam
pedagogicamente para a manutenção de costumes, ritos e formas de entender a si e ao mundo.
Segundo Eliade (1972), como eles descrevem irrupções do “sobrenatural” que fundamentam o
mundo, também relacionam aí o homem, como ser mortal, sexual e cultural, por isso “o mito
é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’, porque sempre se
refere a realidades” (ELIADE, 1972, p.9).
Na Amazônia, por exemplo, segundo Fares (2004, p. 269), nas crônicas de viagens dos
exploradores, entre os mitos mais citados, aparece o do El dourado, da riqueza desmedida
como um dos chamarizes para aquela região; das Amazonas – nome dado ao Rio que “deve-se
a Orellana, por pensar ter encontrado mulheres armadas às suas margens” –, símbolo de
sensualidade, riqueza e força, sedução e perigo. Aliada a estes, Pizarro (2012) aponta mais um
mito encontrado nas crônicas do Maligno, o Curupira, protetor da floresta, uma temeridade de
estar ali.
24
Nas décadas de 1970 e 1980, “período em que a reação contra o paradigma tradicional
tornou-se mundial, envolvendo historiadores do Japão, da Índia, da América Latina e de
vários outros lugares” (BURKE, 1992, p.16), dentro desse enfoque surge a denominação a
Nova História, na França, chamada de História Cultural, na Itália, Micro História, enfim, o
ponto em comum – tinha a pretensão de trazer a lume a ideia de que “a realidade é social ou
culturalmente constituída”. Logo, todo tema que permeia o social é importante, como
exemplo, a infância, a morte, os odores, o corpo, o silêncio, e traz consigo seus sujeitos.
4
Iconoclasmo, na visão binária, é a superioridade da Razão sobre a imaginação, do conceito sobre a imagem
(DURAND, 2011).
26
Hoje, importa saber quem são os sujeitos que fazem a diferença dentro de suas áreas
de atuação profissional, meio social, seja qual for seu papel dentro do sistema. Na educação
no Brasil, na década de 1950, despontaram os reflexos dessa mudança de pensamento em
Paulo Freire, pela Educação Popular, que trazia como princípios uma “nova epistemologia
baseada no profundo respeito pelo senso comum que trazem os setores populares em sua
prática cotidiana” (GADOTTI, 2011, p.4). Focalizando essa prática, coloca-se em evidência o
sujeito aprendente, suas ideias e modo de pensar durante sua alfabetização.
Por um outro lado desta engrenagem educacional, a observância da atuação do
professor tem sido vista com mais cuidado, quem ele é, sua vida pessoal, sua formação
reúnem múltiplas identidades que se entrecruzam no profissional. E essa interseção produzida
pode fazer a diferença no processo de educar. Aqui, se pauta esta pesquisa, conhecer a
interseção em Antonio Juraci Siqueira. Para tanto, atravesso outras baías – do tempo e da
memória deste educador do sensível – para compreender sua vida profissional atravessada
pelo fazer poético, que no contar encanta, no encantar, desperta a reflexão sobre a “verdade”
existente no imaginário do ouvinte/aprendente.
Nunca esqueço o dito por meus professores no curso de mineração quando nos
orientavam sobre o início de uma prospecção na mata: o primeiro instrumento a ser colocado
na bagagem deveria ser a bússola, pois sem ela estaríamos desorientados dos rumos a tomar.
Assim comparo esse momento da pesquisa. E teço breves considerações sobre o aporte
teórico que sustenta a metodologia de abordagem.
Segundo Bolívar (2014, p.11), o método (Auto)biográfico chegou ao campo da
Educação por meio da investigação (Auto)biográfica e formação graças ao seu
desenvolvimento no âmbito da Antropologia, da Sociologia e da História. Nestes campos,
funcionou como metodologia de investigação da problematização e registro das tramas sociais
27
Uma operação discursiva: a narrativa é não apenas meio, mas o lugar; a história de
vida acontece na narrativa. O que dá forma ao vivido e à experiência dos homens
são as narrativas que eles fazem de si. Portanto, a narração é apenas o instrumento
da formação, a linguagem na qual esta se expressaria: a narração é o lugar no qual o
indivíduo toma forma, no qual ele elabora e experimenta a história de sua vida.
(DELORY-MOMBERGER, 2008, p.56) (grifos da autora)
As afirmativas da autora estão em Bolívar (2012) quando cita Bruner (1988) e Ricoeur
(1996). O primeiro diz que não há outro modo de descrever o tempo vivido se não pela
narrativa. Já o segundo afirma que narrar a vida para si e para os outros é uma estratégia de
construção de uma identidade em forma de texto. Assim, “jamais atingimos diretamente o
vivido, Só temos acesso a ele pela mediação das histórias. Quando queremos nos apropriar de
nossa vida, nós a narramos” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.36).
Neste contexto de construção das Histórias de Vida, o papel do investigador tem
fundamental importância, pois ele não apenas reúne o material coletado, mas, também, ajuda
a estabelecer, junto ao entrevistado, um referencial de partida dos relatos e participa na
28
Friso uma observação, quanto ao uso das obras literárias, feita por Rodrigues e França
(2010, p.70). Elas chamam a atenção do pesquisador para o fato de que “nunca deve esquecer
que a produção ficcional não constitui uma recriação do real, mas reelaboração dele,
conduzida pelo romancista”. Neste fazer literário, vejo que o escritor, por meio das
mitopoéticas amazônicas, tenta “manter ativa uma parte do imaginário coletivo do território
marajoara e, mais especificamente, construir e reconstruir constantemente a sua memória de
vida através da arte” (SILVA, 2013, p.12). E mais, segundo o dito por Possas (2012, p. 59,
grifos do autor), “seus causos ou suas acontecências, híbridos de múltiplas vozes das
experiências alheias, retratam suas ‘andanças’ pela Amazônia”.
O suporte teórico da metodologia a ser empregada a essa produção tem um caráter
hermenêutico, inspirado em uma larga tradição (Dilthey, Gadamer, Ricoeur) e
fenomenológica (Shapp, Schultz, Berger & Luckmann). Trata-se de “um sistema de
interpretação e de construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como
elementos organizados no interior de um todo” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.56).
29
O autobiógrafo (aquele que narra sobre si) faz da vida vivida o curso da vida. Em
outras palavras, no ato da narrar o autobiógrafo, tenta organizar as memórias do fato
biográfico5 (o vivido) que, a partir de então, se tornar parte de uma narrativa, quando vários
fatos biográficos forem coordenados, serão constituintes da intriga e, neste contexto, o
espaço-tempo da “representação biográfica toma do discurso narrativo seus princípios de
organização: sucessão e causalidade narrativa, sintaxe das ações e das funções, dinâmica
transformadora entre sequencias de abertura e de fechamento, orientação e objetivo”
(DELORY-MOMBERGER, 2008, p.37). E é na narrativa que os papéis das personagens de
nossa vida são delineados, onde são definidos posições e valores entre eles, a partir dos
acontecimentos e ações (grifos meus).
Segundo a autora, “o discurso narrativo, construindo sequências de ações, constitui a
trama sobre a qual são tecidas outras formas de discursos que descrevem, explicam,
argumentam, avaliam as ‘ações’ relatadas” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.56). Logo, a
“narrativa” aqui não é um gênero puro, pois acolhe outras formas de discursos para compor o
todo.
Durante uma entrevista, nem sempre as narrativas são lineares e sucessivas. Neste
momento, entram em ação a memória, o esquecimento e o silêncio, que, segundo Polak
(1989), andam juntos, e não falar não é o mesmo que esquecer. Nem sempre se quer dizer a
qualquer um fatos silenciados, não ditos, mal compreendidos, necessita-se de um ouvinte
confiável, por isso Portelli (1981, p.22) diz que a arte de ouvir tem que ser a arte do
historiador para que quebre o protocolo de entrevista e torne o ato uma conversa. Assim, cabe
ao pesquisador ouvir e organizar os fatos para que tomem corpo na narrativa. Por este motivo,
considerei necessário, nesta etapa, seguir os passos metodológicos em Bardin (2011, p.125)
para as análises das informações e interpretações das entrevistas narrativas, a fim de construir
as Histórias de Vida:
Pré-análise;
Análise do material; e
Tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
Na primeira fase, arrumei o material para elaborar um esquema. Para essa etapa,
Bardin (2011, p.126) destaca, dentre outras, as seguintes atividades:
5
Fato biográfico é esse viés da figuração narrativa que acompanha o percebido de nossa vida, esse espaço-tempo
interior, segundo o qual representamos o seu desdobramento, sobre o qual nos situamos, sem conhecer
exatamente o momento e o lugar que ocupamos na figura de conjunto que lhe atribuímos (DELORY-
MORBERGER, 2008, p.36).
30
3. Remar é preciso.
6
Poeta e professor de Literatura da UFPA. Escreveu este poema, Carta a um jovem poeta da Amazônia, em
homenagem a Antonio Juraci Siqueira. Está publicado em Aurora que vence os tigres, livro com o qual Cruz foi
indicado para o Prêmio Nestlé de Literatura.
32
Se queres escrever
rema
meu mano
rema
que o rio
te deixa
passar
Como as marés, com a preamar e a reponta que volta aos barrancos e traz, sempre,
troncos, folhas, frutos... Algo novo. Apresento o poeta em suas viagens pela vida, muitas
refletidas na literatura.
E busco conhecer o poeta e seu trabalho por meio dos indícios da memória, traços da
vida do autor que estão imbricados em sua poética e em seu trabalho educativo. Períodos
como a infância, adolescência e os anos iniciais de trabalho com a poesia e a educação, algo
muito relevante, sob o olhar da teoria, podem ser mais claramente visualizados e
compreendidos, pois, segundo Vernant (1973, p.77), “O passado é parte integrante do cosmo;
explorá-lo é descobrir o que se dissimula nas profundezas do ser”. Assim, presenciei a ida do
poeta à água da fonte de Mnemosyne7 para lembrar fatos e acontecimentos que nos remetam
aos contextos vividos no passado que, juntos, hoje compõem a vida do poeta/educador.
“Já que o senhor insiste, vou contar a minha história, mas por viagens.”
Benedicto Monteiro
7
Segundo Vernant (1973), Mnemosyne é uma deusa titã, irmã de Crono e de Okeanós, mãe de nove musas e que
preside a função poética. Ao ingressar no submundo, buscando as memórias, o consultante deveria beber na
fonte desta musa, pois ela era a própria sacralização da memória.
33
Eu tenho uma irmã que diz assim: nós viemos do interior, nós saímos do interior,
mas o interior não saiu de nós, né... Ele veio com a gente. E, realmente, essa
memória afetiva, ela é muito forte... Eu nasci às margens do rio Cajari que
empresta o nome à localidade... e... vivia lá até os dezesseis anos de idade8.
(SIQUEIRA, 2014)
8
Reiterando informação exposta anteriormente, enfatizo que as citações originárias das entrevistas serão escritas
em itálico daqui em diante.
34
Ao todo, ele tem oito irmãos, o mais velho, Jaci, “depois de desmamado / entregue aos
avós paternos / e por eles foi criado” (SIQUEIRA, 2013, p.13), em seguida vieram Jacira,
Janira, Juraci, nome herdado do pai, Jurandir e Jorge, filhos de seu Antonio. Anos depois, a
viúva Esmeralda casa-se com José Oliveira Lima, também navegante da “Flor do Cajari”, e
nascem Helena, Elza e Élida.
Debruçado na janela
da lembrança tipitinga,
vejo passar minha infância
inocente pilotando
na maré do meu passado
a igarité da saudade...(SIQUEIRA, 2010a, p. 16)
Aos quatro anos de idade, no mesmo período em que ganhou mais um irmão, perdeu o
pai, um fato que mudou a vida da família:
Depois disso, foram tempos de mudanças constantes, pois todos tinham que ajudar
para contribuir com as despesas em casa. Juraci conta que criança no interior trabalha, não
tem aquela coisa, não porque... A gente ajuda desde cedo nos afazeres... até por conta da
minha mãe ter perdido o marido cedo... (SIQUEIRA, 2014):
O irmão mais velho começou a “trabalhar como caixeiro no comércio do tio Lilico,
irmão do pai de Juraci. As irmãs, apesar de pequenas, aprenderam a cortar seringa [...]
Chegavam em casa pelas cinco da manhã, tomavam café e voltavam para a colheita do leite”
(SIQUEIRA, 2013a, p.15).
Na década de 1950, período comentado acima por Juraci, a extração do leite de
seringueira, mais conhecido como látex, utilizado para produção de borracha, ainda era
bastante cultivada no Marajó e gerava alguma renda:
O poeta lembra que eles tiveram carinho e ajuda financeira da avó, Etelvina, que
“cortava seringueira, juntava ucuúba, pescava, botava matapi e trepava num açaizeiro como
ninguém [...] vovó também cultivava um monte de abusões e crendices. História do arco da
36
velha que o povo tem como verdade absoluta” (SIQUEIRA, 2010b, p. 14). Nas memórias
escritas de Juraci, a avó sempre está inclusa nas histórias, pelas suas crendices, lembranças de
casos do sobrenatural e ensinamentos.
Outra pessoa importante neste período foi o tio Antonio, irmão de dona Esmeralda.
Contudo, não foi uma ajuda permanente, tempos depois o tio, segundo Juraci, ele... ele [risos]
fez mal9 pra uma cabocla [risos] e fugiu dos parentes e veio parar aqui pro Maguari pescar...
Passou um ano pra cá (SIQUEIRA, 2014).
Sem um apoio suficiente, trabalhavam em diversas atividades, conforme o período do
ano. No inverno, em coletas de frutas, sementes oleaginosas de pracaxi, ucuúba, pongó,
castanha de andiroba e caroço de murumuru:
Desde muito cedo, doze anos, eu já cortava seringa à noite, sozinho com meus
irmãos menores também pelo outro lado. Então, coisas que hoje eu não faria com a
idade que eu tenho. Naquele tempo a gente fazia, porque o homem é produto do
meio, você vive, você se acostuma. Hoje, se eu voltasse lá pra fazer isso de noite,
seguramente, eu não faria mais. (SIQUEIRA, 2014)
Nesta época, gradualmente, os irmãos mais velhos começaram a migrar para Macapá
em busca de novos horizontes para ajudar a família. O objetivo era fixar-se em Macapá e
futuramente vir buscar toda a família para viver lá.
A infância de Juraci foi marcada por outro acontecimento marcante. Dona Esmeralda,
viúva, na tentativa de dar conta de sustentar a família, mesmo sem nenhuma experiência com
seringal, entrou na mata:
É um negócio que emociona, que eu não consigo [...] que foi um dia que ela saiu
pra cortar seringa e se perdeu na mata. Então ninguém sabia... os vizinhos se
uniram... pra procurar... pra encontrá-la. Me lembro... ela chegando é... uma chuva
que tinha caído assim... E eles trazendo ela de volta pra gente. (SIQUEIRA, 2014)
9
Fazer mal significava que a engravidou e depois não se casou com ela, deixando-a em má situação social.
37
A primeira escola de Juraci, Escola Municipal Mista São José, deixou bastantes
recordações, ficava próximo de casa, a gente ia de canoa, a gente logo enxergava a escola, eu
e meus irmãos (SIQUEIRA, 2014).
Conta na crônica O canto grande, em Acontecências (2010b), como foi seu primeiro
dia de aula. Era um “bicho-do-mato” e queria sentar-se em um canto do longo banco para
sentar sozinho. Como não podia, caiu no “berreiro”. Passou pela experiência nada saudosa da
sabatina. Apesar disso, não teve muitas dificuldades com seu aprendizado, porque sua mãe era
alfabetizada e o ajudava com as lições. Conta no folheto Acontecências como se dava a
sabatina na escola:
Cada sábado, uma disciplina na berlinda. A mestra fazia a pergunta ao aluno ou
aluna que encabeçava o semicírculo. Cada pergunta não respondida era repassada a
quem estivesse na vez que, respondendo corretamente, ganhava o direito de castigar
o colega que errou. Muitas vezes a questão passava por muitos e quando alguém
acertava, fazia uma verdadeira faxina, distribuindo bolo nos demais (SIQUEIRA,
2010b, p.6).
Seus avós paternos eram professores leigos e também participaram de sua educação.
Por este motivo, pouco apanhava na hora da sabatina. Mas o vivido é repassado pelo crivo da
maturidade e sofre as reflexões do presente da narração (ou da escritura). Sua atitude de
criança impiedosa o faz lamentar:
Hoje, com o coração apertado, lembro de tantas mãos jovens, frias, trêmulas e
suadas que desci a palmatoria sem piedade, como um verdugo. Na época sentia
orgulho do feito mas agora, depois de tanto tempo, essas lembranças doem tanto ou
mais em minha alma quanto doeram naquelas humildes e indefesas mãos ribeirinhas
(SIQUEIRA, 2010b, p.6).
Quando lembra dos seus professores, enfatiza: professores leigos... Professora Adélia,
a Professora Cleia, o professor José Deolindo já tinha o curso técnico... Escola Industrial de
Macapá (SIQUEIRA, 2014). Em entrevista concedida a Daudibon (2012), conta que a
literatura escrita chegou por meio de:
livros didáticos (Meu Tesouro, Nosso Brasil), dos almanaques editados anualmente
pela indústria farmacêutica (Almanaque Bristol, Capivarol e Biotônico Fontoura) e,
principalmente, dos folhetos de cordel que meu padrasto José Oliveira, encarregado
da canoa freteira “Flor do Cajari”, de propriedade de meu tio e padrinho José
Siqueira, adquiria no Ver-o-Peso e que eram lidos para parentes e vizinhos à luz de
lamparina, já que “quem conta histórias de dia, cria rabo (SIQUEIRA apud
DAUDIBON, 2012, p. 44).
trovas, pois “não queria ficar atrás de uma turma de moças e rapazes que ‘jogavam’
quadrinhas em tom de desafios”:
Eram sempre as mulheres que provocavam os homens: “Lá vai a garça voando / com
uma tesoura no pé / pra cortar a língua dos homens / quando falam da mulher”. Aí os
homens replicavam: “quando saí de casa / deixei urubu com fome / pra comer as
línguas das mulheres / pra deixar de falar dos homens”. Os versos seguiam nesta
singeleza cabocla até a coisa esquentar. E quando a coisa esquentava, quando o
desafio atingia o limite do desaforo, geralmente era encerrado com alguma apelação:
“A maré que enche e vasa / no meio faz um pavio / quem tiver fazendo versos / vá
pra puta que pariu”. (SIQUIERA apud JORNAL DO AMAPÁ, 1989).
E nos encontros sempre havia histórias baseadas em fatos reais e em mitos que
circulavam pela comunidade. Na crônica O batedor de sapopema, conta uma situação vivida
quando trabalhava tirando seringa, a aparição de “uma visagem”. Como o imaginário local era
rico e criativo, dava logo resposta ao mistério, ou era Boto, Boiuna ou Mãe d’Água. Mas a
curiosidade do menino desmistificou o fato:
A princípio não dei muita atenção ao fato, acostumado a ouvir histórias como essa e
que jamais permaneceram de pé após minucioso exame. Mais curioso que temeroso
resolvi passar pelo local visagento, pois não acreditava, absolutamente, que dona
visagem fosse tão descarada ao ponto de pregar-me um susto em plena luz do dia[...]
um galho da seringueira, cheio de nós, enforquilhava-se entre dois galhos da
pracuubeira e quando o vento forçava as copas o galho nozudo escorregava entre a
forquilha produzindo o estranho som em forma de batida (SIQUEIRA, 2010b, p.18).
39
O rio era o lugar de brincadeira, fonte de alimentação, meio de transporte. Tudo tinha
que passar pelo rio. E este ir e vir de longe nas canoas aguçava a curiosidade do pequeno
Juraci. Imagem que me faz lembrar o “marinheiro comerciante”, de Walter Benjamim (1987),
em O narrador, que representa aquele narrador que viaja por muitos lugares e traz as
novidades das terras alheias para compartilhar com o “camponês sedentário”, que não sai de
sua terra natal. O marinheiro referido por Benjamin é exatamente como os navegantes da
canoa freteira que o menino sonhava pilotar por entre os rios.
Nas memórias do poeta, ficaram sentimentos, imagens, cheiros, cores, sabores do
lugar onde viveu. O desenho (Figura 2) feito por ele ilustra as imagens que guarda em sua
memória: a atmosfera de sonhos das recordações da infância como a “casa onírica” de
Bachelard (1978, p. 200), em A poética do espaço: “Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela
é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmo
em toda acepção do termo”. No caso da casa ribeirinha, rodeada pela natureza, corresponde a
aconchego e vida. Ele ilustra parte desse espaço em um desenho, mas antes explica:
Nesta primeira fase da vida em formação, um marco foi a perda precoce do pai, o que
causou mudanças profundas no cotidiano do menino, o trabalho para a sustento passa a ser
obrigação, embora participar das atividades domésticas fizesse parte da vida da criança
ribeirinha da época de Juraci. Por outro lado, o mesmo fato traz a presença constante da avó,
Etelvina, mulher forte, trabalhadora e uma contadora de histórias que o educará pelo meio dos
mitos amazônicos. Ouvinte atento, criativo, torna-se leitor ávido por novidades trazidas pelo
padrasto. Esse contexto de vivência delineia o que Moita (1995, p.115) chama de processos
parciais de formação, ou marcos componentes que contribuem para a construção da
identidade de uma pessoa.
A família migrou para Macapá, pois, naquele momento, além de ser geograficamente
mais próxima de Afuá, em relação à capital Belém, economicamente a cidade oferecia mais
condições de prosperidade para os marajoaras.
Na década de 1950, com a implantação do projeto da Icomi, empresa de exploração
das jazidas de manganês, Macapá atraía mão de obra para a construção da infraestrutura
necessária à logística do empreendimento, como o Porto de Santana, a Vila Amazonas,
moradia dos trabalhadores, e a estrada de Ferro do Amapá (PINTO; KZAN, 2013).
Depois de muitas viagens vividas em Macapá, onde experimentou vários trabalhos,
como carroceiro fazia transporte de objetos com carro de mão, ajudou o irmão no açougue,
aprendendo o ofício de açougueiro, prestou serviço ao Exército.
41
10
“Poeta e jornalista, Alcyr Araújo, paraense (1924-1989). Em meados de 1953 ingressou no funcionalismo do
Território Federal do Amapá, exercendo cargos de relevo como os de diretor da Imprensa Oficial e de chefe de
gabinete do governador. Participou na vida intelectual e artística regional, através da imprensa, do rádio, da
televisão, como nas demais áreas da cultura amapaense” (ACERVO DA GRAFIA, 2012).
11
“Território da esperança foi uma frase/slogan criada por Alcyr de Castro, na época em que se pleiteava junto
ao governo federal e militar a elevação do território federal do Amapá a categoria de Estado” (SIQUEIRA, 2013)
42
12
Máquina de datilografar
43
A trova retratava o teor das negociações entre clientes e açougueiro, pois o momento
político e econômico do País na década de 1980 era difícil e refletia em todo lugar, inclusive
nas vendas do açougueiro. O governo Sarney, na tentativa de deter a inflação, lançou o Plano
Cruzado, congelando preços e controlando a venda da carne, entre outros produtos, e assim
gerava uma crise no abastecimento. A inflação estimulava um aumento constante dos preços
da carne, diminuindo o poder de compra dos consumidores. Enquanto isso, entre o açougue e
o ofício de escrever, em 1978, ingressou na Universidade Federal do Pará, no curso de
Filosofia.
A partir daí, ampliou seu círculo de amizades. Conheceu o acadêmico Pedro
Tupinambá, que publicava suas trovas na coluna dominical No mundo da trova, no jornal A
Província do Pará. Neste período, participou de vários concursos na categoria de trovas no
círculo regional, nacional e internacional. Publicou Verde Canto, em 1981, o primeiro em
uma imprensa convencional.
Em seguida, investiu na impressão de Travesseiro de pedra. Lançou a obra e passou a
fazer com mais ênfase exposição dos poemas em lugares públicos. Contudo, o fazer literário
não era um meio de sobreviver e manter a família, o açougue que providenciava o sustento.
Por volta do ano de 1986, depois de muito lutar para manter o açougue, sem sucesso, Juraci
resolveu fechá-lo, temporariamente, e vender suas publicações para sustentar a família:
Alfredo diz que havia uma interação entre os cursos de Comunicações, Letras e
Filosofia em favor da poesia. Logo após o término do período Militar, eles observaram o
44
O único lugar que o povo não se corresponde. Isso é incrível! Nós somos isolados
geograficamente e pela comunicação que não se explica. Olha o Norte, eu caçava
endereços dos próximos aqui: Amapá, Amazonas e nada! Consegui me
corresponder com uma poetiza no Acre, mas depois descobri que ela era porto
alegrense, outra cultura, por isso, consegui, acho. (SIQUEIRA, 2015)
Essa irmandade entre poetas iniciou em 1984, quando começou a frequentar o projeto
Pôr-do-Som, na Feira do Açaí, ele e outros poetas deram início ao grupo Malta de Poetas
Folhas & Ervas, do qual inicialmente participavam o poeta Onna Alephe Agaia, a agrônoma
Heliana Barriga e o graduado em Letras Benilton Cruz.
O grupo lembra que eles se valiam de “um caixote sobre o qual, com um pouco de
coragem e equilíbrio, trepavam (mesmo) para transformar o mundo com intenções, gestos e
palavras” (MALTA, 2004, p. 7). Juntos, lançaram três livros: O livro da Malta de poetas
folhas e ervas (1999), Luz: malta dos poetas folhas e ervas (2004) e O livro da Malta III
(2008).
E esses elos de convivências levaram Juraci a outros estados. Na imagem (Figura 4), a
recordação das viagens divulgando suas trovas com Heliana Barriga, do grupo Malta de
Poetas Folhas & Ervas, lá em Porto Alegre, em 1991.
Figura 4: Ivan (prof. PUC/POA), Heliana Barriga, Delcy Canalles, Juraci e Roseli Sousa
muito bom na cidade que começava no Pôr-do-Som, no Forte do Castelo, declamava, tinha o
Varal de poesia, ficava a tarde até o final da noite. E um lamento de Garcia:
Uma coisa boa que lembro dessa época, é que a gente tinha essa liberdade de
trocar ideias, direto assim, o Juraci, lembro quando o Benilton que gostava de
música, trouxe a poesia do Beto Guedes, que eu gosto muito, trocávamos versos de
poema, declamávamos. Era muito bom. Uma efervescência muito grande da
literatura. Claro, a gente vai ver agora, no decorrer de trinta anos, quem
literalmente continua nesta prática cultural, nesse discurso são aqueles que
realmente, eu acho que persistiram, aqueles que encararam não só como... Sei lá,
hobby ou um arroubo passageiro da juventude. Eu transitei pelas duas coisas aí. E,
naquele momento de trinta anos pra cá, é interessante verificar que o movimento
literário e o lançamento de livro decresceu trinta anos depois. (GARCIA, 2015)
Os dois compadres fazem uma retrospectiva do saudoso tempo, o que também provoca
reflexões, comparações entre os momentos do passado e a atualidade, a situação de quem
produz literatura. Juraci lembra que naquele período havia um grande canal de divulgação
literário – os jornais. Segundo Juraci:
Nessa época muita gente lançava livros e outra coisa também, na época, tinha as
páginas de literatura. Tinha o suplemento literário do Diário do Pará, duas colunas
culturais, assinadas por Vicente Cecin, Ildefonso Guimarães, Age de Carvalho,
Rafael Costa, Sebastião Godinho, traduções de poemas alemães. Isso ajudava a
divulgar. E o Liberal tinha a Janela da Poesia. (SIQUEIRA, 2015)
Alfredo Garcia lembra que a militância poética era tão forte que quando era
lançamento do Juraci, entre outros lançamentos na cidade, nós saíamos uns cinco, seis, sete
juntos... Íamos para três, quatro lançamentos, íamos a pé, na mesma noite. Era uma coisa
para prestigiar o Juraci (GARCIA, 2015).
Militância foi tão forte e séria que Juraci fundou e presidiu a União Brasileira de
Trovadores, seção Belém, por três mandatos seguidos: 1986 a 1993. Fez parte da APE –
Associação Paraense de Escritores, uma forma de estimular mais reconhecimento à classe. A
imagem (Figura 5) registra uma reunião dos poetas paraenses na Sede da Associação Paraense
de Escritores, em 1986. Compõem a fotografia, na primeira fila, sentados: Rui Barata, Agildo
Monteiro, Ararê Marrocos, Manoel Alexandre, Rufino Almeida e José Artheiro; na segunda
fila, sentados: Edvaldo Parente, Alfredo Garcia, Sylvia Helena Tocantins e Aline Brandão de
Melo (de pé); e na última fila: Salomão Larêdo, Júlio Barriga, Heliana Barriga, Antonio Juraci
Siqueira, Affonso Pinto da Silva, José Mazieiro e Luiz Lima Barreiros.
46
No jornal havia uma seção chamada rima rica, era só uma tira, depois o Mário
Sobral teve a ideia de fazer algo diferente: dar um espaço maior para o poeta
escrever prosa, o de prosa escrever poema, o cartunista começou a publicar texto.
[...] Biratan Porto foi um. Ele fez com que as pessoas saíssem do seu quadradinho,
sair daquilo que fazia e experimentar. Um dos grandes culpados de eu escrever o
humor é o Sobral. Ele me instigou e tive que escrever prosa. (SIQUEIRA, 2014)
Seja com a prosa seja com o verso, Juraci publicou textos no PQP – Um Jornal para
quem pode, nos quais a temática era variada, mas o tom era humorístico. Essas publicações o
tornaram conhecido entre um grupo de poetas e apreciadores do humor picante de suas trovas
e cordéis, segundo ele, Versos Sacânicos. A colaboração ao jornal durou por 23 anos.
Nesta terceira fase, vê-se como um marco na vida de Juraci o ingresso na
universidade. Lá, encontrou parceria aos seus anseios de ser reconhecido como poeta. Largar
o açougue foi o primeiro e mais difícil indício da busca deste objetivo, pois havia o sustento
da família para gerir e sua escolha tinha que sustentar os dois lados de sua vida: o pessoal e o
econômico. Desta forma, sua tenacidade se reflete em suas ações, no seu fazer poético, a
irreverência de suas publicações no PQP – um jornal para quem pode.
47
Juraci sempre foi ladino, criativo, e suas invencionices trazem as marcas do menino
marajoara que foi aludindo ao outro, o Alfredo, personagem de Chove nos campos de
Cachoeira, que brincava com o caroço de tucumã e tudo nele imaginava. Cresceu e o poeta
assumiu essa faceta com criações que nos fazem lembrá-lo por onde quer que vá.
Assim como os cordelistas nordestinos tradicionais, que vão às feiras e praças
apresentar seus folhetos, Juraci divulga sua produção literária em lugares que frequenta, na
universidade, nos bares, praças etc. E cria objetos-signos que possam marcar sua presença.
13
Segundo o fotografo Miguel Chikaoka, esse trabalho teve início em 1981 e foi apresentado oficialmente em
junho de 1982, no final da mostra FOTOPARÁ 1982 – mostra paraense de Fotografia. Sua instalação ocorreu
entre o Theatro da Paz e o Bar do Parque (Informações via e-mail do fotógrafo).
14
Projeto de música instrumental realizado pela PMB/SEMEC, aos domingos, ao cair da tarde, na década de 80
do século XX, em Belém do Pará.
48
Figura 6: O Fotrovaral
15
Secretaria Municipal de Economia
16
Fundação Parques e Áreas Verdes de Belém
49
Por muitos anos usou o pseudônimo de Totó do Cajari, uma homenagem ao pai,
Antonio Siqueira. Algumas obras como Histórias do Tio Totó ainda levam esta marca. Mas,
Antonio Juraci, “caboclo ladino”, estava sempre em busca de uma marca que o registrasse na
memória dos leitores.
E nessa busca por um símbolo, conta Juraci em uma entrevista à revista do jornal
Diário do Pará (SIQUEIRA,2009b) que, certa noite, numa programação cultural no Centur,
vi o poeta e trovador Osmar Arouk17, de saudosa memória, distribuir trovas em pequenos
pedaços de papel. A partir daí resolvi imitar o gesto de uma maneira mais afetiva e a forma
escolhida foi o coração.
Por algum tempo, tentou lançar outro signo: simulava uma taquicardia. Ele se
contorcia com as mãos no peito na direção do coração. Na turbulência, dava uma trova em
formato de coração para o leitor, a ideia não vingou por se tratar de uma brincadeira que
assustava mais que divertia, diz ele. Hoje, apenas oferece a trova com um largo sorriso. E, faz
isso há vinte sete anos.
Aqui, são uma espécie de provérbios bíblicos com finalidade altruísta, de um ensinamento de
amor, de fé, de coragem para a vida. Segundo Juraci, elas já foram românticas, escrevia as
trovas líricas e amorosa, mas desde que dei uma pra uma dona e fui mal compreendido por
ela, pensou que eu estava a fim dela, parei. Não queria apanhar de maridos pela rua
(SIQUEIRA, 2014).
Quando recebi um coração poético pela primeira vez, ao ler, senti uma emoção,
aquelas palavras me falavam ao coração, de fato. Depois da leitura, olhei de volta para Juraci,
eu não o conhecia na época, e ele estava me olhando, me pareceu meio encabulado, tímido
com um sorriso largo, qual nossos avós querendo nos ensinar algo com paciência e carinho,
pois já aprenderam pela experiência, que só assim se passa uma lição. Hoje é fundamental a
importância deste signo na performance de Juraci, em todo lugar que vai, sempre o distribui.
Esse ato é tão singelo que o comparo ao ato de se dar uma flor a alguém.
Outro signo criado por Juraci é um mastro cheio de fitas coloridas (Figura 8), que ele
carrega pelas ruas, quando segue o Arrastão do Arraial do Pavulagem18. É o “cajado da
poesia”, um elemento cénico criado por ele no ano de 1995, quando foi convidado para
participar de uma apresentação de suas obras na Universidade da Amazônia (UNAMA). Nele,
o poeta pirografa nomes de amigos, parentes, poetas, e tudo mais que considera importante.
18
Arraial do Pavulagem – foi formado por um grupo de músicos e compositores, a maioria do interior do Pará.
Iniciou com uma roda de cantoria com variados artistas prestigiando, mas depois ganhou público e se tornou um
movimento cultural na cidade de Belém do Pará que representa parte da cultura paraense. A palavra arraial é
expressão comum no interior do Estado, que se dá ao local onde se festejam os santos padroeiros, e Pavulagem
vem de pavão, quer dizer bonito, que quer chamar atenção (LIMA, 2010).
51
Sempre fui envolvido com literatura e música. Naquela época, fazíamos varal de
poesia ilustrado. Era o chamado “Fotrovaral”, por unir trovas e fotografias, também
com a participação de Miguel Chinkaoka. Além da Feira do Açaí, na praça Ferro de
Engomar, onde ficava o famoso Bar 3X4. Foi ali que Ronaldo Silva, Ruy Baldez e
outros artistas iniciaram esse movimento que hoje toma conta do mês de São João.
Quando perguntado sobre a origem do mito do boto, ele me contou que, como o mito
do Boto é muito comum na Amazônia, em sua localidade não era diferente sempre ouviu
histórias de boto. Por outro lado, na capital, o peso mítico era maior, talvez pelo
distanciamento da floresta. E certo acontecimento foi marcante e decisivo para aceitar a
alcunha de “filho do boto”, depois de ter escrito e publicado o poema Eu, o filho do boto, para
recitá-lo em uma festa alusiva às mitopoéticas amazônicas na Casa da Linguagem, na qual ele
iria representando o Boto amazônico, em contrapartida às festas de Halloween, que se
multiplicavam na cidade no mês de outubro.
Somado a este fato, ele lembra que já o publicou no Jornal PQP, certa ocasião,
pendurou no açougue uma cópia do poema. Lá, também havia uma foto de um homem vestido
de branco, de chapéu saindo d’água. Uma cliente, ao entrar no açougue, se deparou com o
desenho e lhe perguntou, seriamente, se era ele o Boto. Jocosamente, respondeu que sim. E
percebeu o embaraço da moça. Antes que conseguisse desmentir, ouviu dela uma narrativa
sobre uma experiência com um Boto quando ela era adolescente e morava no interior da
cidade.
E Juraci observou na situação narrada pela moça a possibilidade de seguir com o
signo. Em meio ao fazer poético sobre o tema, levado pelo recontar em vários lugares, e as
19
Sfumato – expressão criada por Loureiro, significa uma “zona indistinta entre o real e o surreal, como um
elemento que estabelece uma divisão imprecisa, semelhante ao encontro das águas do Amazonas com o Rio
Negro” (LOUREIRO, 2005, p.58).
53
lembranças das histórias sobre o mito em sua cidade natal, principalmente contadas por sua
avó Etelvina, passou a intitular-se de “Boto”, criou um conjunto de características cênicas,
roupas, gestos e tom de voz para marcar um personagem tipicamente amazônico – o Don
Juan Ribeirinho. Como ele mesmo diz:
Primeiro fiz disso uma marca, mas isso pregou tanto que já é uma segunda pele que
eu já não sei mais... hoje, eu já não sei mais. Dizem que mentira mil vezes dita quem
conta acredita... e até eu acredito piamente já é verdade absoluta. (SIQUEIRA,
2014)
Mas por que o Boto como signo? O Boto é um cetáceo fluvial, conhecido como o
“golfinho da Amazônia”, que seduz as moças ribeirinhas, geralmente, e é responsabilizado
pela paternidade dos filhos de pais desconhecidos, segundo Câmara Cascudo (s.d.). Ele
aparece nas narrativas como um rapaz bem apessoado, bom dançarino, sensual, que surge em
noites de festa. Escolhe uma moça ribeirinha, a conquista pela dança, depois de seduzi-la, a
leva para a beira do rio, faz sexo com ela e retorna ao rio transformado em Boto.
Pelo ímpeto da sexualidade, ele seduz. Seduzir é exercer influência irresistível,
fascinar, encantar. Ele é encantador de mulheres, as escolhe e se transfigura para tê-las assim
como fazia Zeus na mitologia grega, quando quis ter a jovem Europa. A propósito das
aventuras amorosas do Pai dos Deuses e dos Homens, queira consultar Schwab (2001).
Possas (2011, p.79) diz que o Boto pintado pelo Poeta marajoara ganha aparência de
sujeito pós-moderno, se se levar em consideração o dito por Glissant sobre a Poética do Caos,
quando fala de descolonizar com sentido de romper, recusar “preceitos pautados na
universalidade, nas identidades fixas e unitárias e no monolinguismo”, que também funciona
para a concepção de identidade do Boto que se constrói e reconstrói a partir das “interações
conflituosas e tensas” no meio social, sendo, portanto, “mais adequado concebê-la como
identificação”:
54
O poeta Juraci ficou conhecido por suas trovas e poemas humorísticos e sacanas, mas
quando o professor entrou em ação houve uma mudança no rumo de sua prosa. Em 1997, ao
ser contratado pela SEMEC/Belém, desenvolve projetos de formação de leitura, contação de
histórias e produção de outras formas de expressão em torno da literatura, para tanto
produziam a Mala do Livro que divulgaria a Ciranda Literária (UNICEF/PMB) com Heliana
Barriga, escritora e arte educadora. Eles trabalhavam na coordenadoria de Esporte Arte e
Lazer.
O contato com o público infantil foi intenso e compensador para seu trabalho. O
Cultura, escola e alegria levava arte para todas as escolas com oficinas de teatro, de dança, de
56
música e de literatura. Segundo o poeta, foi neste projeto que desenvolveu o trabalho com
oficinas literárias.
Juraci diz que estes projetos foram o que mais gostou de fazer. Isso tudo aconteceu na
primeira gestão do prefeito Edmilsom Rodrigues, que, segundo Juraci, foi uma gestão que
muito apoiou a cultura. Mas, no segundo mandato desse prefeito, Juraci foi enviado para
trabalhar na FUMBEL – na divisão de literatura. Conta que ficou longe do que gosta de fazer
– contar histórias, pois a divisão não funcionava devidamente.
Juraci trouxe muitos conhecimentos da vivência com contadores de histórias
tradicionais de sua terra natal. Contudo, a participação nestes projetos contribuiu muito para
enriquecer seu aprendizado de narrador, pois seu envolvimento com contadores urbanos
contemporâneos que se utilizam de vestimentas, traços do teatro, fazem cursos, ampliou seu
leque de possibilidades de trabalhar outras maneiras de contar.
Em 2005, foi admitido como professor AD4 de filosofia pela Secretaria de Estado de
Educação – SEDUC, no Sistema Estadual de Bibliotecas Escolares (SIEBE). Lá, começou a
trabalhar com pequena carga horária como professor no Ensino Médio. Lecionou nas escolas
Antônio Moreira Júnior, Arthur Porto e Padre Benedito Chaves, escolas da capital do Pará.
Como professor, percebeu que as narrativas orais sobre os mitos do imaginário
amazônico estavam presentes entre os alunos, mas de forma silenciada pela formalidade do
ensino, o cumprimento do cronograma disciplinar não dava espaço para atividades orais
envolvendo o imaginário amazônico. Ao iniciar o conteúdo programático bimestral pelo tema
do mito à razão, que trata da formação do pensamento grego e do embate entre a filosofia e o
mito, o professor relacionou a temática ao tempo atual fazendo um paralelo com os mitos
amazônicos:
Resolvi lançar um desafio aos alunos do Ensino Médio: junto a um tema proposto
para avaliar habilidades e competências no exercício da palavra escrita, sugeri que
quem soubesse de alguma história relacionada ao mito e tida como verdadeira
poderia escrevê-la para mim. E, olha, fiquei surpreso com a quantidade de
narrativas que segundo os alunos aconteceram com seus parentes ou conhecido [...]
juntei todas e a SEDUC publicou o livro. (SIQUEIRA, 2014)
Na atividade, recolheu 56 relatos entre os alunos das Escolas Estaduais Padre Benedito
Chaves e Arthur Porto e organizou uma coletânea publica pela SEDUC, o Entre o real e o
imaginário (2007).
Neste mesmo período, ministrou oficinas de Contação de histórias pelos interiores do
Estado, patrocinadas pela Fundação Curro Velho. Desses encontros, reuniu mais produções,
organizou várias coletâneas de narrativas e a publicou em folhetos. Esse trabalho deu
resultado e, como consequência, em 2008, a carga horária passou para o trabalho no SIEBE
57
Figura 12: Atuando como contador de Histórias. Fonte: Acervo de Andréa Cozzi
No SIEBE, deu continuidade ao que havia começado nas escolas da prefeitura. Lá,
conhece a coordenadora, Sônia Santos, que o convida para participar de um grupo de
contadores de histórias. Inicialmente, a ideia era montar um jogral, mas, em 2009, por conta
da repercussão de seu trabalho no Estado e na prefeitura com público infanto-juvenil, resolveu
participar do grupo Cirandeiros da Palavra, feito com Andréa Cozzi e Sônia Santos. A partir
daí, grande parte de sua produção literária destina-se ao público infantil. O sucesso do grupo
tem repercutido e se consagrou no lançamento de dois livros recontando histórias do
imaginário amazônico, Apanhadores de Histórias: Contadores de Sonhos I e II, organizados
por Andréa Cozzi e Sônia Santos.
Como o grupo (Figura 13) é formado por três educadores, intentam em divertir
educando, por isso preocupam-se em manter a performance de um narrador, priorizando o
contar e a leitura, e a voz poética na performance centraliza as ações. Embora se utilizem de
alguns elementos cênicos, não teatralizam as histórias, pois não querem ser confundidos com
atores. Juraci lembra que um contador que faz surgir o imaginário tem que aludir aos
contadores com os quais teve contato na sua infância, no caso dele, em particular, com
aqueles lá do Marajó:
58
Neste reino mágico onde eu nasci as história são contadas em primeira pessoa, lá, o
contador de história é sério e se conta com tanto realismo. As pessoas de 60 e 70
anos, contam que viram, que estavam lá, é verdade, e a gente acreditava.
(SIQUEIRA, 2014)
Quando ele fala sobre esses contadores de sua infância, o fato me remete, novamente,
aos contadores de Walter Benjamim (1987), especificamente aquele narrador “camponês
sedentário”, que não sai de sua terra natal, geralmente é bem mais velho, vive as tradições e
sente-se expert quando o assunto é o imaginário local, que já se tornou uma resultante de uma
relação estreita com os rios e florestas.
Embora Juraci tenha gravado em sua essência infantil esse narrador, quando está em
sala de aula, como oficineiro sou o docente. O poeta entra apenas para, em algum momento,
dar uma mãozinha [risos]. No entanto, quando questionado sobre o que veio primeiro e
influenciou o outro em sua vida – o oficio de escrever literatura ou da docência? –, respondeu:
A minha literatura sempre veio na frente, desde a infância... Você começa como
leitor na vida no interior não tem muita coisa...E a questão da docência... É mesmo
profissional depois, essa relação vai ter, porque não dá mais para você separar
uma coisa da outra. Ninguém mais vê a gente como pessoa, escritor ou só como
professor. Quando eu ando pelo shopping:“ei, professor!” (SIQUEIRA, 2015)
mundo simbólico para melhor viver, mas, para tanto, essa capacidade está relacionada à outra
– imaginar, a irmã renegada da razão, que leva o homem a criar seu imaginário.
O poeta tem essas qualidades aliadas à de saber escolher as palavras poeticamente para
escrever ou performatizar. Ele imagina, relaciona, ultrapassa limites, tece intrigas em espaços-
tempos diversos. E isso, quando socializado, é educação pelo sensível, pois educação, para
Brandão (2002, p.25), é:
uma dimensão ao mesmo tempo comum e especial de tessitura de processos e de
produtos, de poderes e de sentidos, de regras, de alternativas de transgressão de
regras, de formação de pessoas como sujeitos de ação e de identidade e de crise de
identidade de invenção de reinterações de palavras, valores, ideias e de imaginário
E Juraci é um poeta/educador que não fica preso às paredes das salas de aula, pois
aliou muito bem sua alma de poeta ao ofício de educar. E leva a literatura e todos os saberes
que ela pode proporcionar aos leitores/ouvintes em praças, palanques, sala de aulas, quadras
escolares e ruas, valendo-se da arte de contar histórias. Nesse sentido, vale pensar na seguinte
assertiva da Professora Renilda Rodrigues Bastos (2000, p.72) acerca das matrizes escritas do
oral: “Contar histórias é jogar, é ir em busca do prazer, de compensação, de vitória. É viver
dialeticamente entre o ir e vir do oral e do escrito no jogo da tradição (re)invenção de
sentidos”. E ver Juraci em performance é presenciar a concretude desse jogo de que fala
Bastos, o que é melhor analisado em seção posterior deste estudo.
60
Segundo Antonio de Abreu Freire (2012, p.33), nos tempos em que as terras da
Península Ibérica se chamavam Al-Andaluz, grande parte da região de Portugal já era “um
reino cristão visigótico de obediência ariana com a capital em Toledo”. Após ser tomada pelos
árabes, desenvolveu-se ali, mais ainda, uma das tantas heranças culturais árabes deixadas aos
peninsulares – a tradição da poesia popular.
Era uma herança com característica tão fundamental que “ensinavam a poesia antes de
qualquer outra matéria ou disciplina mesmo antecedendo a leitura do livro sagrado do Alcorão
(PÉRÈS; HENRI apud FREIRE, 2012, p.148). Então, a tradição encontrou seu porto na
Península Ibérica depois de caminhar de sua terra natal – o Oriente (Damasco e Bagdá) –,
espalhando-se das cortes às ruas das cidades e por todos os caminhos do califado e dos reinos
de taifas.
Por séculos, foram frequentes as batalhas por domínios territoriais entre cristãos e
árabes muçulmanos. Freire (2012) reitera que, após a morte de rei Afonso VI (1047-1109), a
reconquista cristã e a formação dos reinos de Leão, Aragão, Castela e Portugal, a poesia
ibérica entra em uma outra fase, surgem as sagas trovadorescas populares que narravam os
feitos dos reconquistadores cristãos e os dos defensores muçulmanos, chamadas de poesia
épica. Além dessa, havia a poesia lírica que exaltava-se o amor cortês dos cavaleiros em
relação às suas damas.
Outras evidências quanto ao período de origem destes textos, segundo estudos do
medievalista Paul Zumthor (1993, p.36), são textos dos séculos X a XV, musicalmente
notados. Foram reunidos, observados, comparados, e havia uma forte marca da existência
61
entre a poesia e a voz. Eram “os poemas litúrgicos (em particular, o setor quase inteiro do
drama eclesiástico) e as canções de trovadores, trouvéres20 ou Minnesiinger”.
Outros exemplos de modalidade vocal-auditiva são as chamadas canções de gesta, do
relato oral, do poema épico, do romance cortês, novelas de cavalaria resultantes em ficção de
um percurso narrativo da época. A gesta, segundo Jerusa Ferreira (2008), é o cavalheiresco
épico, a história da conquista de espaço do guerreiro e imperador Carlos Magno. O livro
História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França foi divulgado “a partir das
versões de Nicolas Piamonte, na Espanha, em data anterior, e Jerônimo Moreira de Carvalho,
em Portugal no séc. XVIII, teve seu texto muito repetido em inúmeras edições que chegaram
ao Brasil” (FERREIRA,1993, p.16).
Somente no século XV, com o advento da imprensa, esse material circulou e
expandiu-se, chegando às colônias portuguesas. Segundo Zumthor (2010, p.37), esses textos,
embora impressos, não perderam seus traços de origem oral, apenas sofreram um
desdobramento: geraram literaturas, a partir de um texto de referência composto por uma
oralidade mista. Reiterando Ferreira (1993, p.16), diz que, por se apoiarem em textos de
prestígio como base, aos quais se estabelece uma espécie de condutor direto, ultrapassaram o
conceito de intertexto passando a contra-texto21.
A denominação de cordel ou Folheto de Cordel se deu em Portugal e Espanha, onde os
folhetos eram comercializados em feiras e ruas, eram pendurados em barbantes ou cordas.
Tardiamente, no final do século XVIII e início do XIX, essas novelas de Cavalaria chegaram
ao Brasil e tiveram grande aceitação popular, principalmente no nordeste, propagando-se
depois para outras regiões do País.
Segundo Borges (2005, p.15), no período entre o final do século XIX e os anos de
1920, há uma consolidação das características gráficas do folheto, de composição, de edição e
de comercialização, que o diferenciavam daquele vindo de Portugal. Borges (2005) acrescenta
que a chegada da literatura em cordel na região norte ocorreu basicamente por meio de três
ciclos migratórios: o ciclo da borracha, a abertura da Transamazônica e o garimpo de ouro de
Serra Pelada. Sobre o primeiro, diz Vicente Salles (1985, p.20) que “os nordestinos
começaram a migrar para a Amazônia, em levas cada vez mais consideráveis, a partir da
grande seca de 1877”, vinham atraídos pelo trabalho oferecido no ciclo da borracha:
20
Poetas e jograis do Norte da França, segundo Zumthor (1993, p.36)
21
Denominação proposta pelo mestre rumeno Mikhil Popp (FERREIRA, 1993, p XV)
62
Segundo Pizarro (2012), não aconteceu bem assim, o drama da borracha vivido pelos
nordestino foi cantado, ou melhor (des)encantado, por esta literatura na Amazônia, como
demonstra o texto seguinte:
E Belém do Pará tornou-se o grande centro de difusão dessa literatura, por meio de
uma editora chamada Guajarina. O segundo momento ocorreu com a Transamazônica, e o
“objetivo era interligar toda a região ao resto do país através de uma rodovia, abrindo assim
estradas e, automaticamente, povoando a região”. E o terceiro ocorreu por conta da promessa
de riqueza que o garimpo de ouro de Serra Pelada oferecia aos imigrantes nordestinos.
A introdução desse homem na Amazônia gerou uma nova feição da cultura. Nesse
sentido, Vicente Salles (1985, p.93) tece as seguintes considerações:
O autor acrescenta que, neste “ajustamento”, não somente houve a difusão do folheto,
mas também da cantoria, do improviso ou repente, assim como o desafio ou a porfia.
Segundo Juraci, criar repente era uma forma de brincar na adolescência entre grupos de
meninos contra meninas.
63
A publicação foi um desafio para o poeta, pois sua militância em disseminar sua
poesia se iniciou de forma independente. Assim como na tradição nordestina, montou sua
“gráfica” de folhetos em casa, chamada de Papachibé. Tentou manter o folheto tradicional
como uma brochura medindo cerca de 11x15cm, com 8,16,32,48 ou 64 páginas. No início, o
poeta utilizava o mimeógrafo, emprestado na Universidade, não tinha máquina de
datilografar, por isso utilizava muitos de seus textos que eram editados no jornal PQP e na
extinta A Província do Pará.
Era uma trabalheira! – lembra o poeta, pois recortava os textos e as ilustrações do
jornal, colava-os em papel branco, fazia uma boneca e fotocopiava em papel colorido para
montar os folhetos. Sem esquecer que muitas ilustrações foram desenhadas por ele mesmo.
Contudo, sua atenção se voltava ao formato e à estética dos folhetos. Fez muitas
experimentações. Inicialmente, utilizou papel simples e branco, que pintava pulverizando tinta
colorida nas capas. Depois, experimentou papel colorido nas páginas com cartolina nas capas.
E, por último, as capas com papel couché. Com o advento do computador, agora digitaliza
textos e imagens para os folhetos que produz.
Observei, durante esta catalogação, algumas características da produção de Juraci em
suas edições Papachibé. Ele costuma reunir em cada nova edição textos novos e outros já
publicados, principalmente os mais requisitados pelo público ou premiados em concursos.
Outra característica das obras é a inserção de comentários dos críticos de suas obras. Todas as
imagens das capas de obras apresentadas aqui são do acervo do autor, por isso algumas foram
feitas das matrizes em preto e branco.
Assim como os menestréis, trovadores e cantadores na Península Ibérica, nos séculos
que antecediam a chegada dos textos à colônia portuguesa, criavam e cantavam poemas e
trovas por encomenda de pessoas ricas e influentes, Juraci, como um bom guardião da
tradição em Cordel, ainda produz trovas, poemas em cordel por encomenda.
Apresento as obras desse autor publicadas como parte integrante de sua formação
como poeta e escritor. Seu fato biográfico não poderia ser compreendido inteiramente sem o
conhecimento da dimensão do seu fazer literário, que é a resultante de sua arte, seus
pensamentos, vivências, impressões durante sua trajetória de vida.
Suas publicações, seja por editoras gráficas, seja em produções alternativas, foram
organizadas cronologicamente, mas comecei a ter dificuldades em descobrir o ano de edição
de algumas obras. A memória guarda o que é importante. Após alguns meses em contato com
o autor, compreendi que o mais importante não era saber exatamente quando foram a público,
mas o que representam para quem ler. Separei as obras pela forma – verso, verso e prosa e as
64
2.2 – VERSOS
A essência literária de sua produção está em versos. E nela encontramos várias
temáticas. Seja pela trova seja em poemas líricos ou satíricos, o poeta revela sua arte.
Mundifluências
Verde Canto foi a primeira obra impressa de Antonio Juraci Siqueira em uma editora
convencional, pois, até então, seus trabalhos eram exclusivamente produzidos de modo
artesanal. Nessa época, o poeta ainda usava o sobrenome Almeida. Em nota ao jornal A
Província do Pará, em agosto do mesmo ano, Pedro Tupinambá22 diz que:
22
Pedro Tupinambá era membro da União Brasileira de Travadores, da Academia Paraense de Letras e da
Comissão Paraense de Folclore.
65
Embora seja um livro de estreia, “Verde Canto” revela um poeta dotado de certo
grau de amadurecimento, afeito ao manejo das rimas e dos versos. Seus poemas
possuem ricos conteúdos poéticos, seja nas composições líricas, seja naqueles que
focalizam temas regionais. (SIQUEIRA, 1981)
Aqui estou
Na vulva da vida
com a mente grávida de sonhos,
Na página em branco
com o verbo naufragado entre mistérios,
no cais da existência
com os olhos carregados de horizontes,
na boca da noite
com asas cansadas de voar(SIQUEIRA, 2007a, p.34)
Segundo livro impresso, embora o autor revele que já havia publicado em folheto de
forma alternativa, a edição dos 500 exemplares de Travesseiro de Pedra, também financiada
pelo autor, tem formato pocket e está impressa em papel jornal por ser mais econômico.
Lançado na Livraria da SEMEC, “Um livro que reúne poemas filosóficos líricos e amorosos”
(SIQUEIRA, 1986). E chama atenção a construção de um eu lírico “prenhe” da existência,
apresentando-se ao mundo com sede de viver e consciente de que a vida é breve.
66
Multiuno
Eu me contemplo – Narciso
no espelho turvo das águas
reino encantado da Iara,
berço e tumba dos mortais.
Me vejo multiplicado:
multi/faces, multi/seres,
multi/cores, multi/mundos... (SIQUEIRA, 2007a, p.43)
Piracema de Sonhos, segundo o autor, foi escrito antes de Travesseiro de Pedra, mas
foi publicado depois. Venceu o I Concurso Literário de Temática Regional, promovido pela
Secretaria de Estado de Cultura, Desportos e Turismo – SECDET, no gênero poesia, em 1985.
E foi editado em 1987 com tiragem de 1000 exemplares. Neste período de espera, lançou
Travesseiro de Pedra.
Piracema de sonhos “Seria o primeiro reconhecimento oficial a um trabalho que
ombreia com o dos mais importantes nomes da poesia paraense” (SIQUEIRA, 1986). O livro
é composto por 18 trovas e 21 poemas.
Os poemas apresentam temáticas filosóficas, memorialísticas, saudosistas. A capa da
primeira edição foi criação do cartunista Biratan Porto, na qual se vê um desenho de vários
peixes, aludindo à piracema, em tom vermelho em um fundo laranja, evidenciando o nome da
obra. E na capa da terceira edição em folheto do Papachibé o autor coloca uma imagem de um
cardume colorido, e na contra capa uma imagem do poeta em close mostrando o Muiraquitã23
que usa no peito, seguido de um comentário de Vicente Salles sobre a obra.
23
Muiraquitã – é um talismã, feito em pedra verde, segundo Fares (2004, p. 273), está relacionado ao mito das
guerreiras Amazonas e era doado por elas aos homens que as visitavam. A autora aponta que, na atualidade, é
utilizado como amuleto da sorte em diversos tipos de materiais.
67
As matas, os rios, os animais aparecem impulsionados por uma íntima tensão, como
rios movidos por invisíveis pororocas. O universo, para o autor, aparece através de
pescadores, águas, verdes e aventuras, como um caos cheio de sentidos, regido pelo
acaso e pelas crispações da vida social. A poesia aparece como a doadora de sentido.
Sendo assim, é ordenadora do caos. Por isso, andando entre lendas, violências
sociais, fatos, matas, rios, assombrações, o poeta vai com seu poema, como quem
leva uma luz, um leme, uma estrela. Um rumo em direção ao sensível e ao mágico.
Os versos, incorporando a solidão dos caminhos, são também os caminhos da
solidão.
O livro resulta da reunião de textos publicados no jornal PQP. São versos de humor
picante, classificação do próprio autor. Esta foi a segunda produção independente do autor
para escapar da crise econômica da época. Então, como já havia feito antes, fechou o
estabelecimento comercial e investiu nesta obra.
Inicialmente, o título da obra seria Do jeito que o Diabo gosta, mas, por sugestão
Fernando Canto, em uma conversa, passou para Os Versos Sacânicos, parodiando o título de
Os Versos Satânicos24, do escritor britânico Salman Rushdie. A primeira edição tem
ilustração da capa de Biratan Porto (Figura 19). A terceira, do próprio autor, em 2006 (Figura
20).
Lembra o poeta que teve um entrave na produção da primeira edição. Ela foi
censurada pelo dono da editora Falangola, que chamou os versos de “imoralidades”. Contudo,
o poeta defendeu sua obra dizendo que imoralidade, em sua opinião, era mortalidade infantil,
é o salário mínimo oferecido ao cidadão, essas coisas... Como os exemplares já estavam
pagos, foram feitos. Mas, nas edições, como protesto, não aparece o nome da editora, pois
todas as capas foram substituídas.
A obra causou impacto no público, pois nem todo leitor de Totó lia o periódico
semanal do PQP – um jornal para quem pode, de onde vinham os textos. E, em relação ao
teor dos versos, uma nota do jornal Diário do Pará (SIQUEIRA,1989) comenta o novo perfil
da obra do poeta: O livro traz um humor, críticas, sátiras políticas e também um lado erótico.
Versos Sacânicos contém um lado do autor que os livros anteriores não mostraram.
Sobre esta obra, Possas (2011a, p.8) diz que:
24
Os Versos Satânicos, segundo Siqueira (2010c), causaram problemas ao autor, que teve a cabeça posta a
prêmio pelo Aiatolá Khomeini por conta da obra.
69
E ainda:
Esse trato carnavalesco aborda, na maioria das vezes, situações merecedoras de
serem apreciadas, como as não digeridas ou mal resolvidas pelo social,
denunciando por meio do ridículo ou da dessacralização um mundo problemático,
concebido às avessas, e transplantado para o corpus jornalístico revelando
mésalliances e profanações (POSSAS, 2011a, p. 9) (grifo do autor).
Contudo, a repercussão da obra foi grande, na época. Conta Siqueira (2014) que,
durante um encontro com o senhor Jorge Falangola, Paes Loureiro, então Secretário de
Educação, fez um elogio ao poeta, disse que o considerava um dos maiores trovadores do
Brasil. Por conta disso, o senhor Falangola se retratou com o poeta, propondo a publicação
gratuita de um livro de trovas em comemoração aos 40 anos da editora. E assim foi publicado
Estrela de 4 Pontas.
A coletânea é formada por 100 trovas. O título é explicado no prefácio por Vasques
Filho25 que se dá pelo fato de ser exclusivamente composta de trovas, que é um gênero
poético de quatro versos de sete sílabas, “cada um figurando uma ponta da estrela”. Além
disso, em nota na obra, o autor pontua que suas trovas, quanto à mensagem, estão em três
grupos: filosóficas, líricas e humorísticas. E, qualquer nomeação, além dessas, foi feita para
facilitar a memorização por parte do leitor, ou seja, percebe-se que o poeta não gosta de
aprisionar suas trovas em categorias, classes ou nomenclaturas. A ilustração da capa é do
autor.
Incenso e Mirra
Eis-me aqui, Senhora, bubuiando
– igarité de anseios e pecados –
nas águas desse rio de reza e riso
a correr para o mar do Teu amor.
25
Vasques Filho faz parte da União Brasileira de Trovadores e da Academia Brasileira de Trova.
26
O êxtase de Santa Tereza foi uma obra esculpida em 1645 por Bernnini e foi considerada um dos exemplos
máximos do Barroco nas artes plásticas, pois representa o erótico e o religioso, elementos contrastantes da arte
então produzida.
71
Espelhos e Punhais
companheiros de insônia e jornadas
Eis-me aqui transparente aos vossos olhos
trazendo em meu cantar todos os sonhos
e em meu silêncio todos os pecados
deponho aos vossos pés a minha face
reinventada a cada pôr-de-sol
e em cada verso um pouco do veneno
que a existência deixou na minha taça. (SIQUEIRA, 2007a, p.65)
Esta obra foi lançada em homenagem aos 10 anos da publicação de Verde Canto,
primeiro livro de poesias. Capa, composição e revisão foram do autor e a encadernação da
editora Falangola, por isso é chamada de semiartesanal. Esta edição teve 160 capas
diferentes, depois a editora plastificou as capas (SIQUEIRA, 2014). A obra está dividida em
três partes: “Espelhos e Punhais – poemas”, nesta parte estão novas composições; “Alma em
Pedaços”, sonetos e trovas de um folheto lançado anteriormente, do qual o autor retirou
alguns poemas; “A B C de Orfeu – Exercício de Aliteração”.
Nesta obra, a cada poema, Juraci colocar uma epígrafe de vários escritores, poetas e
amigos. Dedica poemas a poetas como Alonso Rocha, Ruy Barata, Max Martins, Acyr Castro,
Obdias Araújo e Eimar Tavares.
72
Kararaô!
Em cada curva de rio,
em cada palmo de chão
da Amazônia existe um olho
observando o Dragão
com seu hálito de fogo,
seu discurso demagogo,
seu poder de sedução...
E em cada rosto caboclo
existe um índio escondido,
enclausurado em si mesmo,
discriminado, oprimido,
escravo em sua própria terra
trazendo o grito de guerra
no coração reprimido. (SIQUEIRA, 2007a, p.92)
9 – Do jeito que o Diabo gosta e Nosso Senhor consente – Belém, Editora Papachibé, 1995.
Humorística
Deus fez o mundo certinho,
porém, por divina troca,
fez a mulher do vizinho
bem mais bonita que a nossa!
Satírica
Existe em nossa República
gente mal-intencionada
fazendo na vida pública
o mesmo que na privada!
Escabrosa
Definição competente
de quem no verbo capricha:
-boceta é um cachorro-quente
à espera de uma salsicha.
O poeta reúne trabalhos publicados na coluna do PQP – um jornal para quem pode, o
que ele chama de Trovas humorísticas, satíricas e escabrosas, com caricaturas de Biratan,
João Bosco e Márcio Pinho. Segundo o autor, esta edição teve grande procura por conta do
teor das trovas quando publicadas no jornal. São 48 trovas.
74
Viola de 4 Cordas é composto por trovas, o gênero poético com que Juraci mais
ganhou prêmios pelo Brasil. Quanto à forma, segue a mesma linha de Estrela de 4 Pontas.
Quanto à temática, segundo o autor, é formada por trovas Líricas e Filosóficas. Segue o
padrão do autor, capa e apresentação do poeta por pessoas ilustres das Letras. Caricaturas de
João Bosco e Felix. Folheto em capa de cartolina colorida.
Figura 30: Portada O Chapéu do Boto Figura 31: Portada Os filhos do boto
76
Figura 32: Portada O Chapéu do Boto Figura 33: Portada O Chapéu do Boto
O Chapéu do Boto é uma das obras mais populares de Antonio Juraci Siqueira, com
mais de quatro edições. Escrita em forma de conto, nomeada de Metamorfose, versão
premiada pela Fundação Valdemiro Gomes, publicado em 1988. Em 2004, publicado em Voo
Noturno depois de todos os voos..., em 2010, em Histórias a Beira Rio.
Em 1992, publica em Brasão de Barro, mas transformado em poema narrativo
chamado O Boto (Des)encantado. O poeta conta que a versão em cordel, a primeira edição
[em folheto], foi feita a pedido de Vicente Salles. E saiu em 2001, com sucessivas tiragens
com formatos diferentes em papel colorido. A ilustração da edição é do autor (Figura 29).
Aqui observo o dito por Ferreira (1993, p.15) sobre a perícia do poeta que se traduz na
habilidade de transformar o texto “sem no entanto romper os fios, para a garantia de sua
aceitação pela comunidade de que provém e a que se dirige”.
Chapéu de Boto narra, em forma de cordel, a história de um homem estranho bem
vestido e misterioso que chegava de canoa às festas do interior, seduzia as caboclas e, depois
sumia deixando-as grávidas. Até que os nativos resolveram dar uma lição no faceiro sedutor.
Planejaram uma emboscada para dar cabo da vida dele, mas, ao perceber a trama, astuto
tentou fugir. Neste momento, deixou o chapéu cair, perdendo seu encantamento diante de
todos. Pulou no rio e emergiu como Boto, depois sumiu.
Tanto em Metamorfose quanto em Boto (Des)Encantado, a sina do Boto era a morte,
segundo Daudibon (2012, p.46):
Como nas duas primeiras versões o boto morria. O Juraci escreveu outra versão em
cordel para participar da feira de livro infantil promovida pelo SESC e realizada no
Shopping Center Iguatemi em Belém, em 1989, cujo tema era: “Acorda, Cordel!”
Neste comentário de Daudibon (2012, p.46), vê-se que o pensamento do autor está
preocupado com a questão educacional, pois modifica a obra:
78
Na versão da Literatura de Cordel ele resolveu “poupar o boto para tornar a história
ecologicamente correta” e mais em conformidade com a literatura infantil. Juraci usa
o chapéu como uma espécie de condão que lhe assegurava [ao Boto] a forma
humana. Com a perda do chapéu o encanto é quebrado e tudo volta à forma original,
inclusive o boto que livra-se de seus perseguidores, atira-se no rio e livra-se da
morte.
A modificação na obra feita por Juraci teve por finalidade, por um período bastante
recorrente nos contos infantis, evitar tratar, com crianças, o tema morte. Basta lembrar e
comparar a versão de Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault, na qual a personagem
morre, e a dos Irmãos Grimm, que modificam o final criando o caçador que salva a menina e
mata o lobo. Embora estas ações tenham sido superadas na atualidade, já que vários autores
tratam a morte como tema, Juraci contou-me que não queria o estigma de “malino”
[corruptela regional de maligno] ao Boto e por isso merecedor da morte, já basta a matança
desregrada do animal na Amazônia.
A edição de 2003 (Figura 30) é uma versão em quadrinhos com ilustração de Waldir
Lisboa.
A versão em cordel foi premiada com o 2º lugar no Concurso de Poesia Popular da
UBT de Maranguape, pelo nome O Chapéu do Boto (história sobrenatural), em 2009.
O poeta lança vários poemas com essa temática. Em 1997, lança em folheto Eu, o
Filho do Boto – Histórias ao molho de malagueta, contendo versos humorísticos, trovas
“sacanas” que foram publicações do jornal PQP. Outro nesta versão foi Os filhos do boto,
relançado em 2003 (Figura 31). A edição e a ilustração são do autor.
Em 2010, venceu o Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel, com o livro/folheto
O Chapéu do Boto e O Bicho Folharal – Edição Patativa do Assaré produzido pela Editora
Paka-Tatu. Esse prêmio foi um incentivo voltado para o segmento cordelista. Foi lançado dia
1º de fevereiro no Instituto de Artes do Pará. A ilustração é de Arerê Marrocos (Figura 32).
Em entrevista ao Blog Marajó Notícias (2012), Antonio Juraci conta que criou a
versão infanto-juvenil em cordel porque tradicionalmente não há cordéis para esta faixa etária,
embora tenha sido o cordel que o despertou para a leitura quando criança. Comenta ainda que
o livro tem um caráter educativo, pois os animais que aparecem no Bicho Folharal são da
fauna brasileira.
Na versão O Chapéu do Boto publicada em folheto, de 2011 (Figura 33), a capa
apresesnta ilustrações do autor com imagem do poeta/fotógrafo Eduardo Santos.
Em 2012, na França, a pesquisadora Ana Daudibon traduziu a obra para o francês –
edição bilíngue com capa e ilustrações de Michel Daudibon (Figura 34).
79
A mais nova edição infantil foi publicada pela Tempo Editora, em 2013 (Figura 20),
com ilustração de Maciste Costa. Nesta obra, o ilustrador utilizou a técnica mista de colorir,
lápis de cera e aquarela, nas imagens tornando-as leves e airadas.
Esta obra foi feita por encomenda, o autor a produziu por cortesia. Uma homenagem
para relatar a vida e a obra da Irmã Serafina Cinque em cordel. Segundo Siqueira (2014), essa
obra foi lançada em Manaus, com 4 mil exemplares, depois foi lançada em Altamira e aqui.
Teve como objetivo divulgar um acontecimento com a irmã e ela entrou em um processo de
beatificação no Vaticano.
80
Iniciação
Hoje,
amanheci meio peixe,
meio pássaro.
estou aprendendo a nadar,
tomando aulas de voo
e aprimorando o canto. (SIQUEIRA, 2007a, p.123)
O texto teve duas edições: na de 2004 (Figura 40), há as imagens de peixes que são
desenhos do próprio poeta; já na segunda, a aquarela na capa é de Waldir Lisboa (Figura 41).
No trecho do prefácio, o autor explica o motivo para ter escrito esta obra:
A temática nesta obra perpassa por questões intimistas, um eu lírico desnudando seu
íntimo em conformidade com seu habitat. Na estrofe acima, o eu lírico parece um ser
metamorfoseado, uma resultante do amor entre os apaixonados da obra de Bartolomeu
Campos Queirós (1991), O peixe e o pássaro, mostrando ao mundo que não há amor
impossível, que o peixe e o pássaro podem se amar não importa onde será o ninho.
A
Amor
Antigo
Amor
81
Astro apagado
Agônico albatroz acorrentado
De atrofiadas e abatidas asas
No alçapão abismal do anoitecer
O NASCIMENTO DO SIRIÁ
Meu leitor, preste atenção
nesta história comovente
semeada e germinada
no seio de nossa gente.
Depois de a ler com atenção,
guarde-a no seu coração
e, se puder, passe em frente.
A obra narra em cordel o surgimento do Siriá no folclore. Feita por encomenda para
compor uma programação do projeto “Cultura, Escola e Alegria”. O nascimento do Síriá é
uma obra que, segundo o autor, “por sorte”, não foi perdida completamente, pois quando a
82
compôs, em meados dos anos 80, não guardou o original. Contudo, conseguiu um exemplar
de uma amiga, professora.
Figura 41: Portada O Bicho Folharal -2012 Figura 42: Portada O Bicho Folharal.- 2013
O Bicho Folharal é uma versão para crianças do conto popular brasileiro que conta as
façanhas de um macaco labioso para fugir das tentativas da onça de pegá-lo. Em formato de
cordel, é um dos mais conhecidos de Antonio Juraci.
O autor não recorda o ano de sua primeira edição. Em 2010, ganhou o prêmio Mais
Cultura de Literatura de Cordel com a edição “Patativa do Assaré”, com mais outra obra, O
Chapéu do Boto (Figura 41). A capa e a ilustração são de Ararê.
A segunda edição entrou no mercado para o público infantil. Publicado pela Tempo
Editora com ilustração e capa de Maciste Costa (Figura 42). Segundo o ilustrador, na técnica
foi usado apenas lápis de cor para animar as cenas. Nesta edição, é apresentado um glossário
com os nomes dos animais da fauna brasileira inseridos na história.
83
Figura 44: Portada Banquete de Eros Figura 45: Portada Banquete de Eros
Soneto de Eros
A minha língua, víbora de fogo,
sobre teus lábios, pétalas de mel,
desliza sem conter o próprio afogo
rumo aos teus seios, torres de babel. (SIQUEIRA, 2007a, p.111)
As primeiras edições ainda foram feitas pelos métodos antigos de fabricação (Figura
44), com colagem na capa, seguido da apresentação do autor. Na edição de 2010 (Figura 45),
a capa é mais elaborada com uma imagem de O nascimento de Vênus, de Botticelli. Mas o
84
que mais chama a tenção são poemas de um erotismo nada comedido, apresentando os desejos
contidos de Pan realizados por um eu lírico ora Eros grego, ora Eros amazônico.
20 – Quem Souber, Levante o Dedo! – 100 trovas adivinhas – Belém, editora Papachibé,
2003.
Este folheto é classificado pelo autor entre os mais vendáveis nas escolas e nas praças,
“porque as crianças gostam das trovas advinhas”. As trovas advinhas estimulam a curiosidade
de adultos também. Quem nunca brincou de adivinhação quando criança?
1 – AVESTRUZ
A vida é um jogo:
obedeça cada regra
que o conduz
sem esconder a cabeça
à maneira da avestruz
2 – ÁGUIA
Quando plange o eterno sino,
tudo para e, de repente,
surge a águia mor do destino
e come os sonhos da gente!
Este folheto, segundo o autor, foi encomendado por um dono de jogo do bicho.
Apresenta trovas sobre os 25 bichos que compõem a lista do jogo. A capa é ilustrada pelo
autor. Antonio Juraci não tem nenhum exemplar dele na atualidade.
86
O chupa-chupa
Tem gente que não dá bola
Pra história de Chupa-chupa
Mas é bom tomar cuidado
Pra não cair da garupa.
Dia destes o Chupa-chupa
À minha porta bateu:
Sendo coisa de rotina,
Minha mulher atendeu.
Resposta ao poeta
Fulgêncio Batista
caro Fulgêncio Batista
galo bom não baixa a crista
ante qualquer desafio!
O aparte está concedido
porém, fique prevenido:
– meu canto causa arrepio!
Folheto resultado de um desafio, uma disputa poética entre dois amigos. Um deles, sob
a alcunha de Fulgêncio Batista, que desafia Antonio Juraci Siqueira. A disputa começa
publicada no jornal A Província do Pará e termina no palco da Praça do Carmo. Ferreira
(1993, p.18) chama de diálogos, disputas, falas em confronto, que são na atualidade pontos
importantes de abordagens contemporâneas sobre a oralidade, pois:
Recanto do poeta
Ninguém viu o poeta
chorar sobre os versos
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Este folheto reúne versos “escritos ao sabor das circunstâncias em forma de tributos,
homenagens, brincadeiras e louvações, publicados inicialmente em ‘Colmeia de Tataíras –
versos de circunstância, volume que reunia, além dessas homenagens, 20 anos de sátiras
dirigidas à política nacional e local”. No entanto, são duas temáticas diferentes, por isso
decide separar as sátiras das homenagens neste folheto publicado em 2010.
Este folheto, segundo o autor, teve grande procura no ano de sua publicação por sua
brincadeira irreverente com os paraenses, pois, segundo Borges (2005, p.58), “O cordel Tem
pato na corda traz no título uma paródia a uma das comidas servidas na ceia do Círio de
Nossa Senhora de Nazaré, maior manifestação católica Paraense. [...] O texto critica os
‘patos’ de toda a sociedade, seja ele o mais simples ou o mais esperto”. A ilustração da capa é
do autor.
90
Neste folheto a intenção é descontrair, pois segundo Carvalho (2010, p.82) o cordel:
não traz em seu enredo uma crítica política ou uma crítica às mazelas sociais, nesse
folheto o poeta brinca com o leitor por meio de uma linguagem que tenta imitar o
modo de falar ‘caipira’. Na capa do folheto é retratada uma caricatura de uma
mulher com o bumbum bem grande, o que justifica o título do cordel.
Ó gigante adormecido,
roto, explorado e fudido
em berço esplêndido, acorda!
Levanta e expulsa essa horda
que te fode a todo instante!
Desperta e segue adiante,
muda o rumo dessa prosa
pois enquanto o mundo goza,
contabilizas os danos.
Foi lançado no ano em que o Brasil completou 500 anos de existência, criticando os
desmandos que o País ainda vivia. A ilustração da capa é do autor. O título tem duplo sentido,
ambíguo, irônico. A capa apresenta uma caricatura de Marcio Pinho, “mapa do Brasil, como
se estivesse de perfil, com o bumbum empinado, os olhos arregalados, os dentes trincados e
um homem narigudo com uma lata de vaselina na mão esquerda” (CARVALHO, 2010, p.77).
92
O “documento”
A mulher diz:
– senhor Juiz,
Quero o divórcio
pois o “negócio”
do meu marido
é mais comprido,
mais grosso e feio
do que um esteio
de arariquara.
Juraci costumava criar seus poemas a partir de notícias de jornal como a estrofe acima
cujo título era: Mulher quer divórcio porque o marido é ‘avantajado’. Em uma nota na contra
capa de Os Novos Versos Sacânicos, o autor esclarece que publicou há dezessete anos Os
versos Sacânicos, mas somente parte do que havia saído no jornal PQP – um Jornal para
Quem Pode. Contudo, nesta edição, além dos textos do PQP, ainda foram inclusas
composições que não fizeram parte daquela coluna. Os versos de cunho temporal foram
retirados e reunidos em outro folheto chamado Colmeia de Tataíras – versos de
circunstância.
Lançado com capa de papel cartão com ilustração do autor. Ela apresenta um caldeirão
na fogueira e dentro imagens diferentes de Antonio Juraci sendo mexidas por uma caricatura
diabólica do poeta, denominada de Ministro. No interior da obra, encontram-se ilustrações de
Márcio Pinho.
93
Figura 59: Portada Histórias do Tio Totó - 2007 Figura 60: Portada Histórias do Tio Totó - 2008
Histórias do Tio Totó foi uma publicação que levou a alcunha antiga de Juraci –Totó.
Nesta obra, ele apresenta adivinhações, trovas e poemas direcionados a crianças. Nesta
edição, está o texto Os sapatos mágicos, que foi editado em No além, todos não morrem, livro
de contos fantásticos.
Na capa da 1ª edição (Figura 59), Antonio Juraci escolheu como ilustração um
desenho feito por sua neta Ingrid. O desenho representa as ideias do texto O dia em que o sol
nasceu ao contrário, no qual “a filha leva a mãe para escola, o rato corre atrás do gato que
corre atrás do cachorro”. Na capa da 2ª edição (Figura 60), o poeta ilustrou com imagens suas
com alunos de escolas em que ele visita.
Este folheto reúne textos publicados no livro Espelhos e Punhais. Na edição de 2011
(Figura 61), o autor escreve um prefácio – Do nosso Brasil ao pavão misterioso –,
rememorando as pessoas que lhe incentivaram à leitura na infância. Enumera obras
inesquecíveis para sua formação leitora e na capa há uma imagem de uma aranha tecendo sua
teia e na contracapa uma imagem do autor seguida de uma biografia.
Figura 62: Portada Rastros de Luz - 2006 Figura 63: Portada Rastros de Luz - 2010
Este folheto é composto por 200 trovas temáticas: líricas, filosóficas, religiosas,
amorosas. A maior parte delas encontramos nos corações poéticos ofertados pelo autor. A
capa apresenta uma ilustração de um girassol colorido com a técnica da pulverização de cores.
Atualmente eu não reeditei mais esse folheto (SIQUEIRA, 2014).
95
Este folheto tem como tema central a homenagem ao Arraial do Pavulagem e poemas
dedicados a poetas paraenses como o poema Baldez, a voz que não rui. Na capa, uma imagem
dos primeiros momentos em que as pessoas se organizam para iniciar o cortejo do Arrastão do
Pavulagem em que aparecem Juraci e amigos.
Matinta Perera
Noite soturna
De sexta-feira.
Por trás da copa
Da seringueira
A lua brinca
De esconde-esconde
96
Enquanto borda
Sombras sinistras
No véu da noite
Com fios de luz.
O Boto
Se encontrares o Boto em teu caminho
Numa gravida noite de luar,
Empresta-lhe teu colo e teu carinho,
Envolve-o nos lençóis do verbo amar.
Publicada junto com Canto Caboclo – Trilogia Amazônica, pela Editora Paka-Tatu.
Na época de sua publicação, a nota de jornal O Liberal explica a coletânea:
Nesta obra, foram reunidas as produções de Verde Canto (1981), Travesseiro de Pedra
(1986), Piracema de Sonhos (1992), Banquete de Eros (2001), Uirá-Pirá (2004), Mensagens
e Louvores (2005) e Na teia do poema (2007), além de 100 trovas líricas e filosóficas.
43 – Paca, Tatu, Cutia Não! – Belém, Editora Secult – 2008, Tempo - 2013.
Figura 67: Portada Paca, Tatu, Cutia Não! Figura 68: Portada Paca, Tatu, Cutia Não!
Boto
Sonso, maroto
Maledicente,
Lá vem o boto
Virado em gente.
Paca, Tatu, Cutia Não! é uma obra formada por poemas para crianças sobre a fauna
amazônica. Foi premiado no edital de Literatura infanto-juvenil da Secult, selo “Imagina Só!”,
em Belém, no ano de 2008. Ilustrado por Claudia Vinagre e Renata Segtowick. Segundo
Daudibon (2012, p.48),
Juraci elabora seus poemas com elementos que se encontram na lenda/mito do Boto.
Em 2008, ele decidiu que alguns animais amazônicos mereciam um “míni-
dicionário”, como existe para os animais da savana africana por exemplo. Ele
escreve então Paca, Tatu, Cutia Não! , livro em poesia no qual ele apresenta entre
outros o ‘Boto’.
A primeira edição (Figura 67), há ilustrações dos animais na natureza bem definidas e
coloridas. Em 2013, a segundo edição da obra saiu pela Tempo Editora. Ilustrado por Maciste
Costa. A ilustração, segundo Maciste, é em aquarela, apresentando a fauna e flora amazônicas
(Figura 68).
98
Simplesmente Belém
Feliz Lusitânia,
Cidade Morena,
Belém do Pará...
Mulata faceira,
Com qual desses nomes
te hei de chamar?!
44 – O Menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro – Belém, Editora SECULT, 2010.
Figura 70: Portada O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro 2010
Figura 71: Portada O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro 2011
99
Figura 72: Portada O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro 2012
A 2ª edição foi em folheto de cordel (Figura 71). As ilustrações da capa são formadas
por imagens feitas pelo autor de um menino na canoa e um barquinho de Mututi. A 3ª edição
saiu pela Tempo Editora, junto com outras quatro obras do autor. Neste livro, a capa e a
lustração são de Maciste Costa. Esta edição é toda ilustrada com técnicas de xilogravuras em
preto e branco. Esta é uma das obras mais narradas pelo autor no seu trabalho educacional nas
escolas de ensino fundamental.
100
45 - Marés – Poemas de argila e sol – Belém, Editora Papachibé, Cromos Artesanal, 2010.
Figura 73: Portada Marés – Poemas de argila e sol
Figura 74: Portada Marés – Poemas de argila e sol
Marés de essências
Das essências de mim fiz um jirau
Onde escamo as oníricas traíras
pescadas na tarrafa imaginaria
nas aguas desse rio que habita em mim.
As duas edições de Marés – Poemas de argila e sol apresentam uma série de poemas e
textos em prosa. Duas edições publicadas no mesmo ano, a primeira de forma artesanal, e a
segunda, impressa. A ilustração da primeira capa (Figura 84) apresenta uma imagem de duas
canoas na beira do rio ao entardecer. Dentro do livro, outras imagens que aludem a canoas,
barrancos e casas à beira do rio também compõem o cenário poético das obras. Na segunda
edição (Figura 85), a imagem fotográfica de uma casa à beira do rio. Nos poemas um eu lírico
hasteando a bandeira de sua existência expondo suas impressões de si e do mundo.
Calos na mão
Condo chega o mês de Maio,
Mês das noiva, mês das frô,
Eu me alembro, cum sodade,
Da minha Maria das Dô!
Outro folheto de trovas, cujo título sugere o tema – humor. É composto de 100 trovas.
Eu mesmo já ouvi pessoas dizendo trovas de minha autoria com pequenas alterações
e sem que meu nome fosse citado, fato que não me aborrece nem me preocupa por
saber que este é o destino comum de todas as trovas: perder a autoria quando cai na
boca do povo (SIQUEIRA, 20011b, p.15).
102
49 – Itaí, a carinha pintada – Belém, EditoraS Museu Goeldi, 2013 e Papachibé, 2013.
Cordel idealizado pelo poeta, pelo aquarelista Mário Barata e pela arqueóloga Edithe
Pereira, pesquisadora do Museu Goeldi e coordenadora do projeto Arte Rupestre de Monte
Alegre, no Pará. A composição da obra teve como objetivo a difusão da memória do
103
Velho Paytuna
Passa as manhãs
Sempre rodeado,
Por suas cunhãs.
52 – Com Amor e Devoção – poema sobre o Círio – Belém, Editora Tempo, 2013.
Figura 82: Portada Com Amor e Devoção
Com Amor e Devoção – poema sobre o Círio é uma das quatro obras de Antonio
Juraci publicadas em 2013 pela Tempo Editora. Na ilustração, foi “feita aquarela bastante
aguada para dar movimento e leveza aos personagens, sempre, é claro, respeitando o contexto
em que esses personagens foram inseridos”, revela Maciste27, o ilustrador.
27
Entrevista com Maciste via Facebook.
105
O Mito da Criação da Noite foi criado a partir da lenda dos povos Tupi, coletada e
publicada pelo General Couto de Magalhães em O selvagem, em 1935. A capa e a ilustração
são do autor.
54 – O Mito da Criação dos Rios da Ilha do Marajó – Belém, Editora Papachibé, sem data.
Figura 84: Portada O Mito da Criação dos Rios da Ilha do Marajó
Este folheto foi criado para divulgar a mitologia tupinambá da criação do Céu e da
Terra, sua primeira edição foi em 2014. Capa e ilustração são do autor.
Agatanhado
Xuxu, meu gatinho de estimação,
Foi namorar e sumiu de casa
Deixando as marcas do seu carinho
No meu coração.
É o mais recente folheto criado pelo poeta. Está composto por: Grãos de mim, com
poemas apresentando um eu lírico autobiográfico; Grãos de afeto, com poemas narrativos;
Grãos do cotidiano; Grãos de devaneio, e Grãos de poesia. Na sexta parte, encontra-se ABC
de Orfeu – exercício de assonância e aliteração.
A capa e a ilustração são do autor. A capa apresenta uma imagem de gemas coloridas
que remetem a preciosidades na forma natural. Neste folheto, Antonio Juraci declara na
apresentação que deixa de lado a métrica e a rima para escrever de forma livre.
107
2.3 – PROSA
Figura 87: Portada O Roubo da Bunda - 2000 Figura 88: Portada O Roubo da Bunda - 2010
Este folheto foi criado para divulgar textos que Antonio Juraci escreveu como
prefácios, orelhas, homenagens e comentários sobre obras e autores. São textos a que muitos
108
leitores só teriam acesso se obtivessem tais livros. Teve duas tiragens apenas. A capa, o autor
ilustra com os nomes de alguns autores cujos trabalhos Antonio Juraci prestou comentário,
como Luís Braga, Orlando Brito, Alonso Rocha, Fernando Canto, Ruy Barata, entre outros.
Segundo o autor, a obra apresenta contos universais. Na edição de 2010 (Figura 91), o
autor escreve uma nota esclarecendo que reúne:
Juraci gosta de representar seu trabalho com ilustrações alusivas aos temas
relacionados ao mundo da ribeira, barcos, canoas, utensílios de extrativismo vegetal etc. O
autor empresta o título da música de Claudio Nuccie, depois de descobrir que estava enganado
pensando ter inventado o neologismo “Acontecências”.
Tipos de crônicas estão divididos em: Memória da Infância, que contam fatos vividos
pelo autor em sua infância; Equatorianas, que tratam do período em que viveu em Macapá;
Entre Mangueiras, que relatam acontecimentos após sua chegada a Belém; No Mundo das
Letras, aqui ele relata fatos acontecidos em Belém envolvendo escritores ou relacionados à
literatura; Coisas do Coração, em que enumera casos ocorridos envolvendo as trovas em
coração que distribui em todo canto.
Nestes textos, as memórias de Juraci estão patentes, denunciando seus passos pelos
lugares em que andou.
110
por Biratan Porto, a qual, na edição de 2011 (Figura 97), substituída por uma imagem
fotográfica.
2 – Zorra Astral – Horóscopo em Verso & Prosa – Belém, Editora Papachibé, 2004.
Figura 98: Portada Zorra Astral
Zorra Astral – Horóscopo em Verso e Prosa foi um folheto criado para rememorar os
tempos das publicações do jornal PQP. É composto de textos sobre signos do horóscopo em
versos e prosa de forma humorística. A capa e as ilustrações são de Márcio Pinho e também
foram retiradas do jornal. Foram editadas no período entre os anos de 2004 a 2006.
Este folheto foi criado em homenagem à Dona Esmeralda, mãe do poeta, por
comemoração de seus 90 anos de idade. A obra é composta por um texto em versos de cordel
dividido em nove partes, correspondentes aos nove filhos, e outra parte com nove relatos em
prosa, um de cada filho. A primeira edição foi produzida em Macapá, em 2013, e reeditada
em folheto pela editora Papachibé, no mesmo ano. Na capa, uma imagem de Dona Esmeralda,
e contracapa uma foto de Juraci feita por Walcyr Monteiro.
Trova
Não haverá fome e sede
Nem mendicância entre irmãos
Se a caridade for rede
Tecida por muitas mãos.
O folheto contém textos em prosa, poemas, trovas com temas variados e atuais, como
o poema Uma história Real sem Class alguma, que faz uma reflexão após o primeiro ano
depois da queda do edifício Real Class, em Belém. Também se encontra o texto Carta para a
paz, publicado pela Fundação Arte Educar com Gente.
2.5 – COLETÂNIAS
Por isso, muitos textos impressos de Juraci vivem “o desejo da voz viva” enquanto
estão guardados em algum canto. Alguns retomam sua origem pela voz do poeta diariamente
em seu fazer literário.
Mas esse “desejo”, ditado na epígrafe, só foi aclarado, no curso dos anos 50 do século
XX, quando Paul Zumthor, entre outros medievalistas, iniciou seus estudos sobre as diversas
formas de poesia sonora no medievo que o levaram a um interdisciplinar estudo “científico”
da voz, e pelo fio condutor neste labirinto chegou ao estudo da voz “poética”.
Segundo esse autor, os textos da tradição oral, por muito tempo, foram repassados por
meio da voz humana e daquilo que a acompanha, o gesto, ou mesmo a totalidade dos
movimentos corporais. Até o final do século XIII, eram os jograis ou trovadores, depois,
menestréis, músicos, cantores, contadores os intérpretes-portadores da voz poética.
Na tessitura de sua pesquisa, o medievalista diz que “poesia significa uma arte da
linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas
estruturas antropológicas mais profundas” (ZUMTHOR, 2007, p.12), por isso a distingue da
noção preconceituosa de literatura (eurocêntrica e grafocêntrica) dada a ela nos séculos XVII,
XVIII e XX, na qual toda literatura estava atrelada à forma escrita e pautada nos cânones
europeus. Logo, a poesia oral ficava em um patamar inferior, submetida a diversas
nomenclaturas pejorativas como “popular” contrário de “erudito”, “paraliteratura”, entre
outros termos.
Após a Segunda Guerra Mundial, estudos oriundos de outras ciências, seguidos pelos
literários, emergiram fortemente com o termo literatura oral. Segundo Câmara Cascudo
119
(2006, p.21), foi denominada pelo escritor e etnógrafo francês Paul Sébillot, formando um
grande grupo que “remetia à ausência de escritura”, mais uma forma de classificar
negativamente a poesia oral e fomentar uma dicotomia – oral/escrito. Isso foi proposto por
McLuhan e Walter Ong, entre as décadas de 1960 e 1970. Contudo, Zumthor (1993) discorda
e afirmar que a poesia e a escrita têm algo em comum: lutam contra a perenidade temporal,
mesmo que por diferentes veredas. O fato de afirmar que “a voz é nômade, enquanto que a
escrita é fixa” não significa um antagonismo, pois o oral é a base do escrito e o encontro deles
funda o que chamamos a literatura.
No entanto, para Zumthor (1993, p.9), o problema está no fato de que “a ‘oralidade’ é
uma abstração, somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas”.
Para argumentar em favor dessa afirmação, Zumthor (2010) apresenta três
observações relacionadas à voz poética em situação: primeira, sobre a existência de três tipos
de oralidade que variam em um grau crescente de influência do meio grafocêntrico (primaria
e imediata ou pura; mista ou segunda; mediatizada); segunda, observa a submissão do texto
poético em cinco operações (produção, transmissão, recepção, conservação, repetição),
quando transmitido em performance a um público; terceira, quanto à relatividade do foco de
autoridade na performance, que pode ser na voz do intérprete, ser na performance, quando age
sozinho sem apoio de texto para leitura, ou na escritura, se o intérprete tiver um texto como
apoio, porém frisa que em nenhum caso diminui o efeito vocal dos intérpretes.
Por este caminho, ele demonstra que a onipresença da voz interfere no meio, na obra e
no ato do intérprete presentes nas situações de leitura, por isso prefere denominar de
vocalidade – que diz ser “a historicidade de uma voz: seu uso” – à oralidade. Logo, o que
resulta daquele termo seria poesia vocal ao invés de literatura oral.
Durante uma entrevista ao Jornal Nacional (2015), a intérprete Maria Bethânia falava
sobre a ausência de sua mãe, dona Canô, e neste momento reiterei o sentido da definição de
Zumthor à voz: “Sinto falta da voz dela, é o que mais me faz falta. Eu nasci com aquela voz,
aquela voz é a voz do que eu conheço e não ter aquela voz... Eu tenho tudo, e eu guardo tudo,
mas a voz não tem. Essa saudade é dura”.
Essa voz, para Zumthor (2010), é produzida pelo corpo e, pela linguagem, ela liberta o
“eu” aprisionado nesse espaço, em timbres, expõe a alteridade do sujeito ao Outro, marca seu
lugar no mundo. E apesar disso, não se fixa, é como o vento com movimentos nômades,
sempre uma passagem... Não se pode prender o vento, mas se pode apreender sua função
quando o sentimos na pele.
120
Assim, ao ler as obras de Juraci, sinto a “voz viva” no escrito oscilando entre o “eu” e
o “nós”. Ora quando a vida escalavra o peito, o poeta canta pela lírica voz de um eu poético
que quer se mostrar ao mundo, sua alteridade, suas sentimentalidades, seus sonhos, sua
fragilidade de ser humano:
Quando eu quero fugir das garras do mundo,
transformo em canoa as lembranças de outrora
e saio singrando saudades à fora
vivendo emoções de um passado fecundo
e o meu coração, albatroz vagabundo,
desperta, abre as asas e põe-se a voar
na noite estrelada, planando ao luar!
E a minha canoa, de sonho e papel,
cavalga nas ondas qual bravo corcel:
Galope de flor sob as ondas do mar! (SIQUEIRA, 2010a, p. 13)
Ora a “voz viva” guardada no papel não é só dele. No jogo da tradição de contar e
ouvir histórias, como ouvinte, ele recepciona as histórias com cortesia e, depois, organiza essa
polifonia de vozes realinhando-as no horizonte de expectativa28 de um viajante, cujo vivido
serve como base, para, em seguida, devolver ao mundo seu olhar sobre o ponto recriado:
28
Expressão criada por Hans Robert Jauss (1994), da teoria Estética da Recepção, para identificar o encontro
entre o nível de conhecimento cultural de um leitor e o expresso em um texto literário durante a leitura.
121
permanece funcional (na memória) e servirá de transmissão ulterior. Esse processo depende
dos valores, pensamentos e discursos que a comunidade cultiva.
Ao defender a voz viva, Zumthor (2007, p.14) aponta os impactos dos medias (meios
eletrônicos, auditivos e audiovisuais) na vocalidade, os compara à escrita por três de seus
aspectos: primeiro, por abolirem a presença de quem traz a voz; segundo, pela possível
extração das referências espaciais da voz que os medias possibilitam; e, por último, por
perderem a conexão temporal do agora, já que a voz que transmitem é reiterável, podendo ser
repetida diversas vezes.
Mas ele também aponta o que os difere da escrita: “o que eles transmitem é percebido
pelo ouvido (e eventualmente pela vista), mas não pode ser lido propriamente, isto é,
decifrado visualmente como um conjunto de signos codificados da linguagem” (2007, p.14).
Atualmente, as coisas já não são bem assim, o computador, celular e tablet fazem o
contraponto quanto à escrita em tela para ser lida. Contudo, o mais impressionante é que os
medias citados por Zumthor são hoje os meios de transmissão de dados mais utilizados nas
redes sociais, algo suscitado por McLuhan em sua obra.
Juraci é pavulagem, gosta de registrar acontecimentos, principalmente por fotografias,
tem poucos registros em áudio e vídeo de seus trabalhos das décadas de 1980 e 1990. Mas,
como sempre procurou acompanhar seu público nos mais variados lugares, chegou no
ciberespaço, o espaço das comunicações virtuais mediadas pela internet nos mais variados
suportes tecnológicos. Cadastrado na rede social Facebook, criou um perfil pessoal e, como
faz parte desse meio, também compartilha links, vídeos e fotografias.
Contudo, a soberana de A Galáxia de Gutenberg29 é parte integrante das redes sociais,
pois é uma das ferramentas disponíveis para que as pessoas possam expressar o que pensam
por escrito. Representa uma oralidade segunda apontada por Zumthor (2010, grifo meu) que
tenta recompor no escrito o oral. E é por meio dela que percebo a presença da voz viva nas
páginas de Juraci quando escreve seus poemas e trovas, pois o que mudou foi apenas o
suporte da escritura – do papel real para o virtual.
Ao observar a trova (Figura 108) seguida de imagens que reafirmam a ideia do escrito
sobre “O céu é dos chifrudos”, vê-se a trova em todas as suas qualidades e a interação entre o
poeta e os internautas. Ao analisar a imagem da página de Juraci, lembrei do Fotrovaral – já
29
A Galáxia de Gutenberg (1962), obra de Marshall McLuhan que trata sobre o impacto que a palavra impressa
teve sobre a civilização Ocidental desenvolvendo-a melhor que as de culturas orais.
122
referido em outro ponto deste estudo – criado por ele na década de 1980, um varal fixado em
algum lugar com poemas e imagens em que o visitante percorria sua extensão fazendo uma
leitura e depois podia interagir com o poeta que sempre estava por perto. A diferença entre as
situações está relacionada à espacialidade. No Fotrovaral, o alcance é local, pontual, já no
espaço virtual a voz viva nas trovas de Juraci tem um alcance global, como diria Zumthor, um
movimento nômade.
E esse espaço é benéfico para os poetas. Segundo Alfredo Garcia e Juraci, em
entrevista, há uma proposta de literatura no Facebook muito interessante chamada de Desafios
poéticos. Cada poeta, durante cinco dias, desafia cinco poetas e fica uma roda crescente de
poemas. Além disso, para Alfredo Garcia:
Zumthor não especulou a possibilidade do escrito virtual, por outro lado, não se pode
negar que “aquilo que se perde com os medias, e assim necessariamente permanecerá, é a
corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão”
(2007, p.16).
123
Mas o autor, ao fala das previsões de McLuhan sobre o vindouro império da imagem,
aponta que, na contramão dos acontecimentos, haverá a “ressurgência das energias vocais da
humanidade” (2007, p.15), a qual está além da revolução tecnológica, virá como um repúdio
ao discurso hegemônico grafocêntrico que tanto reprimiu as energias vocais da sociedade.
E enumera os signos dessa “ressurgência”, que vão “do desdém dos jovens pela leitura
até a proliferação da canção a partir dos anos 1950, em toda a Europa e América do Norte”
124
(2007, p.15). Isso é reafirmado pelo dito de Roger Chartier em palestra na XVIII Feira Pan-
Amazônica do Livro para falar sobre “A leitura no século XXI” (título de sua comunicação),
em que aponta a “morte do leitor”, apresentando como sinais: dados estatísticos feitos na
França, desde os anos 80 de século XX, que demonstram o desinteresse crescente dos
adolescentes pela leitura de livros impressos; as políticas editoriais que priorizam o lucro,
produzindo periódicos, enciclopédias e dicionários em detrimento das obras especializadas; e
o triunfo da imagem.
3.2 – PERFORMANCE
Havia um texto, em geral muito fácil, que se podia comprar por alguns trocados,
impresso grosseiramente em folhas volantes. Além disso, havia o jogo. O que nos
havia atraído era o espetáculo. [...] Havia o grupo, o riso das meninas, sobretudo no
fim da tarde, [...] Havia o homem, o camelô, sua parlapatice... Ocorreu-me comprar
o texto. Lê-lo não ressuscitava nada. Aconteceu-me cantar de memória a melodia. A
ilusão era um pouco mais forte mas não bastava, verdadeiramente. O que eu tinha
percebido uma “forma”: não fixa nem estável, uma forma-força, um dinamismo
formalizado.
Zumthor - 2007
Ao longo da história, o homem inventa culturas para si e seu grupo, alguns integram
os valores poéticos da voz e todo o contexto que a envolve, mas de forma desigual. Para
Zumthor (2010, p.182), alguns fatores podem contribuir para a preservação dessas práticas,
como “sociedades desprovidas de artes visuais e aquelas que vivem em um meio natural
pobre e austero a toda espécie de poesia oral”.
Para exemplificar o fato, o autor cita alguns povos africanos com os quais manteve
contato direto testemunhando as práticas vocais. Então vejo aí um elo, pois nós, brasileiros,
carregamos no peito, na pele e na alma um halo africano como herança de nossa colonização.
E é inegável esse laço em nossa cultura, por isso, como testemunha, trago um caboclo
marajoara como meu exemplo de que a “oralidade não se reduz à ação da voz” (2010, p.217).
Ao selecionar trechos da lembrança de um acontecimento da infância de Zumthor na
epígrafe, pinço apenas as impressões que encadeiam gradativamente a “forma-força”
resultante, algo marcado no tempo, no espaço e nas impressões do menino expectador, faço
isso para introduzir minhas impressões dessa “forma-força” em um outro espaço-tempo – o
contemporâneo.
Impressões semelhantes guardei sobre a primeira vez que assisti a uma performance de
Juraci. Aconteceu no Nem te conto – II Encontro de Contadores da Amazônia, no palco de
um auditório. Ele estava compondo uma roda de conversa com Margareth Marinho
125
(pesquisadora de Saci) e Josebel Akel Fares (pesquisadora de Matinta Perera), cujo tema era
mitopoéticas.
Durante as falas de Margareth e Josebel, percebi a ansiedade de Juraci quando estava
sentado (Figura 10930): um cruzar e descruzar de pernas, as mãos numa fricção sutil e um leve
balbucio, parecia um pouco longe da conversa, só parecia. Imaginei que estava intimamente
repassando na memória seu poema, mas o corpo, às vezes, nos trai.
Sobre essa memorização, Vernant (1973) diz que na Grécia arcaica, entre os séculos
XII e VIII a.C., antes da difusão da escrita, em uma civilização de tradição puramente oral, a
memória era dada como uma função fundamental que tinha por conta “um conjunto de
operações mentais complexas, e o seu domínio sobre elas pressupõe esforço, treinamento e
exercício”.
FIGURA 109: A espera do ato no II Encontro de Contadores da Amazônia
Enfim, chega a vez dele falar sobre o Boto e tudo que envolve o mito. De repente, ele
levanta do sofá com uma visível mudança fisionômica (Figura 110), a cabeça baixa, o rosto
sombreado pelo chapéu, caminha para o centro do palco com uma seriedade, uma
concentração, espécie de transmutação. “Parece que há uma intervenção sobrenatural”, foi o
que pensei quando iniciou a performance do poema Eu, o boto naquele momento.
Então, lembrei o dito por Vernant (1973, p. 73) sobre a função poética ser presidida
pela Deusa titã, Mnemosyne na Grécia Arcaica, entre os séculos XII e VIII, a poesia se
constituía “uma das formas típicas da possessão e do delírio divino, o estado do ‘entusiasmo’
no sentido etimológico. Possuído pelas Musas o poeta é o intérprete de Mnemosyne”.
30
As imagens das atividades aqui evocadas foram registradas por mim, em atividade de acompanhamento das
performances.
126
E, mesmo assim, na hora, não soube definir o meu entendimento diante do acontecido,
mas Paul Zumthor (2010, p.177) o define assim:
É uma voz que fala – não esta língua, que é apenas epifania: energia sem figura,
ressonância intermediaria, lugar fugaz onde a palavra é instável se ancora na
estabilidade do corpo. Em torno do poema que se faz, turbilhona uma nebulosa mal
extraída do caos. Súbito, um ritmo surge, revestido de trapos de verbo, vertiginoso,
vertical, jato de luz: tudo aí se revela e se forma. Tudo: simultaneamente o que fala,
aquilo de que se fala e a quem se fala.
E vejo que o poeta, aquele que tem vários papéis na performance – compositor,
intérprete e músico – na concepção de Zumthor (2010, p.235), tem competência31, pois sabe
conduzir a ação complexa de interpretar ou materializar corporalmente o poético emanado
pela voz expandindo-se em timbres, demarcando o espaço no tempo do poema. E, neste
momento, percebe-se o desejo da voz viva se concretizando, sua função original – pela sua
expansão, chegar aos ouvidos do Outro presente ao seu alcance. Neste momento, me asseguro
que nenhum meio audiovisual consegue transmitir para o ouvinte essa corporeidade emanada
no momento de uma performance, pois ele estava ali, na minha frente, transmutada por uma
forma-força que invadia meus sentidos.
Cuidado, cabocla!
cuidado comigo
que eu sou sempre tudo
que anseias que eu seja:
- teus ais, teus segredos
tua febre e teu cio... (SIQUEIRA, 2007a, p.96)
31
Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a performance manifesta um
saber-ser no tempo e no espaço (ZUMTHOR, 2010, p.166).
127
A combinação veemente dos versos com os movimentos de suas mãos, ora apontando
para a audiência (Figura 111), ora percorrendo o próprio corpo, traz um duplo sentido: a
consciência de um eu lírico sedutor que sabe o que a cabocla quer para si e uma apelação à
minha atenção por meio da quebra do decoro, expondo uma sensualidade que deveria ser
velada. Um exemplo da função fática32 da linguagem de Malinowski citada por Zumthor
(2010, p.31).
32
Função da linguagem na qual a emergência de um sentido é acompanhada por um jogo de forças que agem
sobre as disposições do interlocutor (ZUMTHOR, 2010, p.31).
128
33
Segundo Zumthor (2010, p.200), há três modalidades de uso da voz na performance em um gradativo aumento
melódico (o dito [falado]; o recitativo escandido ou salmodia; o canto melódico).
34
A noção de movência do texto de tradição oral está relacionada à sua criação e à recriação ao longo do tempo e
espaço, sem, contudo, a perda da essência do texto matriz, gerador. Neste caso, a mitopoética do Boto.
35
Montaria – pequena embarcação, canoa.
129
As crianças estavam sentadas no chão em círculo ao redor do poeta (Figura 112). Essa
proximidade possibilitava maior troca de vibrações entre o poeta e a audiência, percebia-se
melhor suas feições, sua verdade. Seus movimentos frenéticos de um lado para o outro
apelando à atenção das crianças, sua modulação de voz seguiam o enredo da narrativa poética
em uma gradação até o clímax – a descoberta da identidade do rapaz –, que teve a
colaboração de algumas crianças completando versos do poema.
Zumthor observa que a performance pode se valer de ornatos por alguns motivos para
compor um cenário ou por gosto pessoal do intérprete. Algumas vezes, os Cirandeiros da
Palavra se utilizam de ornamentações, enfeites, no caso de Juraci, ele usa um colete (Figura
113), no qual está pintada uma paisagem com um Boto entrando na água, o que identifica o
signo do Juraboto, contador de histórias. Neste caso, os elementos situacionais contribuem
para compor a poética.
Mas o significado do texto poético no canto do poeta em sua performance quer dizer
muito mais que gestos e ornatos, trata-se de um processo global de significações
corporificadas enunciadas pela voz. Segundo Zumthor (2007, p.77), trata-se de atravessar o
discurso do poema pelo espaço do corpo e sofrer a irreversível ação dupla de tocar o mundo e
ser tocado por ele. Complementa o autor:
O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de
maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível. O
mundo que me significa o texto poético é necessariamente dessa ordem; ele é muito
mais do que o objeto de um discurso informativo (ZUMTHOR, 2007, p.78).
acumulação de conhecimentos que são da ordem da sensação e que, por motivos quaisquer,
não afloram no nível da racionalidade, mas constituem um fundo de saber sobre o qual o resto
se constrói” (2007, p.78).
Desta forma, Zumthor (2007, p. 81) afirma que o sentido que se encontra no “texto
poético não pode se reduzir à codificação de signos analisáveis”, porque “toda poesia
atravessa, e integra mais ou menos imperfeitamente, a cadeia epistemológica sensação-
percepção-conhecimento-domínio do mundo”, ela é da “ordem do sensível”, está ligada a algo
mais profundo no Ser que a mera aparência do corpo, bastante cultuada na
contemporaneidade no império da imagem. O texto poético pode despertar a consciência de se
estar no mundo, o que para uns pode ser uma dor, para outros, um prazer.
3.3 – RECEPÇÃO
Foucault (1987), em Vigiar e punir, aponta o eficaz controle que as instituições listam
para “conformar” o corpo dos sujeitos nos diversos ambientes. A escola é uma dessas
instituições que têm como objetivo mostrar ao aluno que, se bem educado, ou conformado em
um espaço que lhe cabe, tendo autodisciplina, ele poderá ter mais eficiência em sua
aprendizagem e, consequentemente, mais sucesso. Mas a arte literária funcionou como uma
válvula de escape da convenção imposta na sala pela sua função estética, como nos diz
Loureiro (2005).
Ao final, uma grande parte dos alunos havia produzido pelo menos uma estrofe, e
todos queriam recitar para a turma o seu feito. Os temas produziam a descontração (amor,
traição, beleza, feiura etc.). Eles corrigiam uns aos outros quando os versos não apresentavam
a rima ou esta não soava adequada (Figura 114). A cada estrofe lida, a turma soltava o riso e
comentários. Esta excitação aumentava quando Juraci recitava algumas de suas trovas
humorísticas. E percebi que todos queriam expor seu “eu” por meio da oralidade na
performance para chegar à turma, o “outro”, dentro do seu mundo, naquele momento.
FIGURA 114: Oficina do bê-á-bá do cordel para alunos do 8º ano na Cooperativa Educacional
Alternativa.
Não havia nada de elaborado em sua fala, apenas tecia a conversa de acordo com as
respostas das crianças, a imaginação das crianças ficava a cargo do conhecimento de mundo
que tinham. Aqui prevaleceu a imaginação sobre no que estaria se transformando o lenço. A
literatura provoca a imaginação! Além disso, a corporeidade na performance, citada por
Zumthor (2005), cria um elo entre o poeta e o ouvinte, este torna-se cúmplice da ação.
133
FIGURA 117: Entrada da Escola Municipal Prof. Milton Montes, Ilha do Combu/Pa.
Houve uma festa com literatura, música, pintura, desenhos preparados pelos alunos
para a homenagem Juraci, leram obras dele em sala de aula. Ao chegarmos lá, todos nos
aguardavam na ponte: coordenadora, professoras e alunos. A impressão que tive é que o
grupo era ansiosamente esperado. Iniciaram as apresentações de alunos com performance de
poemas, um coral formado com alunos do 1º ao 3º ano cantou Este rio é minha rua, de Ruy
Barata. E, na frente da escola, um painel com um desenho de Juraci, ao lado da imagem do
Boto e ondas do rio, onde Juraci deveria registrar uma trova para ficar como lembrança na
escola.
36
SEMEC – Secretaria Municipal de Educação.
37
SISMUBE – Sistema Municipal de Bibliotecas Escolares.
135
Esse laço do fazer com o querer por simpatia torna a ação mais prazerosa. Após as
apresentações dos alunos, os Cirandeiros começaram a contar histórias. Juraci contou a
história de sua autoria, O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro. Nela, ele retrata
um menino ribeirinho que sonhava ser canoeiro e viajar de barco, algo que, de certa forma,
poderia suscitar uma relação com aqueles meninos ribeirinhos. É... primeiro eu vou contar
essa história que tem a ver com sonhos, tem a ver com criança. Era uma história de um
menino que nasceu lá para as bandas do Marajó... (SIQUEIRA, 2014).
Então, começam uma viagem pelo imaginário amazônico, que é, segundo Loureiro
(2005), um modo de criar e recriar da vida cultural pelo simbólico, pelo mitopoético.
136
FIGURA 119: Performance do poema O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro, na 1ª
visita à E. M. Prof. Milton Montes, Ilha do Combu/Pa.
Assim que começavam as apresentações, todos tentavam ficar quietos, tentavam, o que
não significa dizer desatentos, alguns interagiam bastante, faziam comentários entre si, porém
o os professores intercediam para manter a “ordem”, os mais tímidos apenas sorriam atentos.
Neste primeiro momento, devido às apresentações programadas, as crianças foram dispostas
enfileiradas em bancos para que todos pudessem se acomodar.
Durante a apresentação de Juraci, não há muito que se lembrar do enclausuramento de
uma sala de aula, o quadro, as carteiras separadas por um corredor... A obrigação da
manutenção da ordem, do silêncio, atos que fazem parte da rotina de uma escola. Ou, como
diz Foucault (1987), da conformação do corpo em um espaço.
As apresentações aconteciam em um barracão ao lado de um dos prédios da escola
(Figura 119). O que registrei foram crianças ávidas por saber o que havia de novo para elas e
mostrar o que tinham preparado para o poeta. Estavam do lado de fora da sala, sorridentes,
ansiosas, sentadas umas próximas das outras, às vezes formando um círculo no chão ou em
carteiras, parecia que não importava o desconforto, mas saciar a curiosidade e tendo o
burburinho como trilha sonora. Rubem Alves (2003), em Fomos maus alunos, diz: “A
curiosidade é a voz do corpo fascinado com o mundo. A curiosidade quer aprender o mundo.
A curiosidade jamais tem preguiça”. Ali, a circulação de saberes estava acontecendo de forma
leve e prazerosa. Lembrei-me também das palavras de Brandão (2007, p.9): “não há uma
forma única nem um modelo único de educação”.
Juraci, um senhor franzino, de quase setenta anos, cabelos grisalhos, vestes simples
sem muitos adornos, além do inseparável chapéu, fazia apresentação em meio às crianças, ora
137
lembra uma prática de alguns povos indígenas da Amazônia, como os Waiwai, Gavião e
Tembé, que se sentam juntos para ouvir seus anciãos e aprender traços de um modo de vida
do grupo social a que pertencem, ora lembra o viajante, aquele que veio de longe (da cidade) e
trouxe novidades para as crianças (Figura 120).
Ao assistir esta cena se repetir em lugares diferentes, começo a duvidar do dito por
Walter Benjamim (1987, p.197) sobre a arte de narra estar em vias de extinção, pois, naqueles
espaços, microcosmos de aprendizagem, os alunos/ouvintes e os adultos presentes ficaram
envoltos nos lençóis das narrativas. Em alguns momentos, eu fazia força para focar na
observação do contexto e não mergulhar na minha imaginação ao ouvir as narrativas. Foi
difícil!
Talvez a afirmação de Walter Benjamim valha muito hoje, porque vivemos tão
apressados nos preparando para o futuro que não conseguimos parar e escutar histórias, nos
deixar levar pela imaginação e pela descontração do momento de escuta. Parece mesmo que
fugimos dessa situação, porque é tão forte, pois quando estamos nela não escapamos da
entrega. Daí acredito que não esteja em extinção “nossa faculdade de intercambiar
experiências”, mas esteja adormecida em nós.
Antes de começar uma história, Juraci perguntou às crianças quem acreditava que
Boto virava gente. Muitos braços se ergueram e era mais quem queria contar um fato. E esse
foi o mote inicial para a performance do poema O Chapéu do Boto.
No meio da roda de ouvintes, os alunos começaram a participar completando partes do
poema, sem ler nada, já o tinham feito em sala de aula. Pelos olhos ansiosos das crianças,
138
observei que estavam na expectativa de falar, pois estavam tendo a oportunidade de se expor
pela voz, uma característica da infância, segundo Zumthor (2007, p.86):
Por e na voz a palavra se enuncia como a memória de alguma coisa que se apagou
em nós: sobretudo pelo fato de que nossa infância foi puramente oral até o dia da
grande separação, quando nos enviaram à escola, segundo nascimento.
Neste momento, Hans Robert Jauss (1994) ajuda na compreensão quando trata da
recepção dos textos literários pelo leitor e seu “horizontes de expectativas”, que aqui se inclui,
pois o fato de terem algum conhecimento sobre os mitos amazônicos, como o Boto, por
exemplo, determina a reação das crianças diante do poema, uma aceitação maior que
culminou na participação.
Acompanhei Juraci e os Cirandeiros nesta escola pela segunda vez, em uma atividade
que aconteceu nos dois turnos, manhã e tarde. Neste encontro, a visita fazia parte de ciclos de
encontros literários propostos às turmas do Fundamental I. As crianças já conheciam os
Cirandeiros e demonstravam uma certa intimidade com o grupo.
A ciranda de roda Tindolelê, brincadeira de criança, cantarolada, tem letra simples de
memorizar, é recheada de rimas, repetições e trocadilhos. Estimula a imaginação e a memória,
mas hoje não é tão presente na realidade infantil, conforme já citei, pois, devido às
tecnologias existentes, as crianças também estão se isolando, silenciosas e quietas diante dos
aparelhos eletrônicos. De acordo com Duarte Jr. (2001, p.70), isso é resultante da maneira
como rege nosso sistema de vida, o modelo de conhecimento atual racionalista, que estimula
o uso da mente, em busca do conhecimento, em detrimento dos saberes que o corpo pode
apreender pelo movimento, pela sinestesia.
E, apesar disso, a ciranda foi uma explosão de interação, risos descontraídos, olhos
atentos ao ritmo da cantiga, um aprendizado sobre a comunhão, ao darem as mãos uns aos
outros, repartir o espaço, socializar o prazer do momento. Algumas crianças não queriam se
movimentar, mas não paravam de cantarolar. Zumthor (2007) diz que o poético e o canto
juntos conseguem despertar o sensível, tornando o mundo visível, audível e tangível.
139
38
Segundo Lima (2010), são vários movimentos, em diversa direções. Todos, contudo, reforçam a ideia de que
se dá, por diversos modos, um processo de resgate, valorização cultural e transmissão desses saberes em um
processo educativo em espaço não formal, mas curiosamente estruturado e organizado, dentro de uma lógica
pedagógica empírica.
142
Além disso, a autora comenta que Platão tinha um pensamento contrário a Aristóteles
em relação à arte poética do contador:
A sociedade da informação calou esses velhos, os isolou de sua condição social, e eles,
quando percebem que não servem para as suas velhas funções, se retraem, e “este
recolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos” (BOSI, 2001, p.83).
FIGURA 126: Contação de Histórias com os Cirandeiros no Pão de Santo Antônio – Casa de
repouso da 3ª idade –, Belém/Pa.
DESEMBARQUE
Todos temos um poeta cá dentro,
No sótão de nosso íntimo.
Alguns convivem com eles pela casa
Sem correntes, nem entorpecentes.
Outros... lhes tiram as escadas,
para que não desçam
e baguncem o cotidiano.
E junto mais um ponto nesta busca: o presente estudo que demonstra ser possível
entrelaçar a educação à literatura com bases na oralidade e no imaginário amazônico,
imbricados no fazer poético de um educador. Escrever uma História de Vida é ter acesso ao
modo como uma pessoa se forma, é ter em conta a singularidade de sua história e, sobretudo,
o modo ímpar como age, reage e interage com os seus contextos. E, para tanto, deve-se levar
em conta como ela mobiliza seus conhecimentos, seus valores e as suas ações, para ir dando
forma à sua identidade.
Se tomar uma história de vida como parâmetro para tirar conclusões generalizáveis
sobre a formação de educadores é um absurdo, no mínimo, serve para tomarmos como
exemplo que o pessoal traz o vivido para o profissional e isso pode contribuir para o
enriquecimento do seu trabalho.
Nas Histórias de Vida de Juraci, vi emergir os sentidos de cada fase abordada por ele,
de suas relações consigo e com os outros nos vários momentos e espaços por ele vividos. Vale
lembrar novamente que “a narrativa narra histórias” – pleonasmo proposital – contadas por
um autobiógrafo que organiza, realinha e reflete sobre os fatos vividos a cada vez que os
conta. E este fazer não é novo para o poeta, já que vive a escrever literatura autobiográfica
como Acontecências. Isso implica em um [re]tratar constante da imagem que o autobiógrafo
faz de si como personagem.
Como toda criança ribeirinha no Marajó cercado pela natureza, costumes e concepções
de vida singulares, Juraci foi criado sob o signo do imaginário amazônico, sob a racionalidade
do sensível, o que tanto lhe provocou a imaginação. Sua localidade era isolada
geograficamente, e isso propiciava a circulação de mitos que povoavam o imaginário do
menino. Foi à escola e teve o privilégio de ter a mãe e os avós alfabetizados, o que estimulou
ainda mais o contato com a leitura.
Toda a memória guardada desta fase vivida em Cajari servirá como referência, uma
representação do ribeirinho que o poeta traz consigo em suas viagens por outros rios na vida.
As ligações de sua literatura com esse período estão relacionadas ao conteúdo, à forma e à
maneira de narrar e poetar. O imaginário amazônico ora serve de fundo nas escrituras
poéticas, ora como tema e metáfora de mundo. Juraci mantém a tradição da escritura de
versos em cordel, prima pela métrica e pela rima e mantém-se em constante exercício como
contador de histórias.
Mas a sua formação como poeta interage com experiências vividas em um contexto
sócio-político-econômico conturbado, pós-regime militar, em que ele experimenta o
sentimento de pertença em outros meios sociais, que o levam a assumir identificações que o
147
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