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Gertrudes e seu homem, Augusta Faro

As amarguras de Gertrudes doíam na alma tropeçante de quem parasse um


pouquinho só para observá-las. Havia um sorriso de penumbra sempre lhe
embaçando o olhar cor de chuva, de tormento, de desvairo e de profunda
solidão.

Gertrudes apareceu na cidadezinha assim como sarna surge, de repente, sem


explicação. Chegou com sua maturidade acalmada, retinta de fogo morto,
sobrando apenas cinzas fabulosas. Alugou a casa da viúva Eleonora, do seu
Tomás, aquele de olhar branco, com os cabelos grudados e que possuía um
sorriso tão alto e cheio de estranha sonoridade, que espantava os passarinhos
de todas as árvores da praça e os morcegos da torre da igreja de Nossa
Senhora do Bom Parto.

Gertrudes montou seu “ateliê de costura” (como escreveu na placa rústica e


simpática do portãozinho) e trouxe tecidos de cores primorosas e sem
semelhança com outras cores de uso acostumado. Esses panos passavam
uma intranquilidade danada no espírito dos homens de todas as idades e um
contentamento esfuziante no espírito das mulheres.

A freguesia cresceu como a brisa de maio, assim silenciosa e rápida, inflexível


em sua presença, que rangia de tão cheia de frescor. Gertrudes, muito prosa,
falava até espumar os cantos da boca e contava grandeza do amor de seu
homem, e tocava a pianola, e dava corda nos relógios, e plantava lírios
amarelos nos fundos da casa e girassóis no jardim. Mas as amarguras de
Gertrudes iam atrás dela, de tão forte presença que se assemelhavam a vultos
de espíritos num acampamento solene.

A sociedade amou rapidamente aquela mulher, que dizia com a boca benta de
paixão: “Meu marido chegou de viagem tarde da noite, agora dorme. É
viajante, não tem porto, o coitado. Ama o lar, mas a profissão o consome.
Vamos falar baixo, pois, se ele acordar, fica ansioso o resto do dia”. Puxava a
porta, trazia as botinas sujas de lama para perto da bacia no corredor do
jardim. A mala abria sobre duas cadeiras ao sol.

Todo mundo que frequentava o ateliê de costura, sempre ouvia as estórias de


Romão, esse nome sempre envolto de onírico mistério ruidoso, palpável e,
sobretudo, impenetrável. Ninguém nunca o vira, só sinais do cavalheiro distinto
que “estralava” de amores por Gertrudes.

Sempre um presente acompanhava o retorno daquele rapaz escalavrado de


vítrea aura impermeável, e que sufocava o ambiente com um perfume de
macho saudável, vigoroso e quase satisfeito plenamente.

E Gertrudes fazia bolos e broa, peta e biscoitos, rocamboles com frutas


cristalizadas, tão perfumadas, e abarrotava de “quitutes” os guarda-comidas.
Sempre havia dois pratos, dois copos, duas xícaras, duas chávenas, e assim
por diante, na enorme mesa “antigona” e toda trabalhada, acomodada num
salão, só para refeições. A toalha rendada de branco céu e, em tudo por tudo,
uma zelosa harmonia parecia dançar valsa naquele ambiente. O interior da
casa sempre sóbrio, elegante e distinto, bonito de se contemplar.

“Gertrudes não é desse mundo, gente!”, diziam as moças cheias de vida e


encantadas com tudo. Leninha jurou de pé junto que viu mais de uma vez seu
Romão atravessar o pátio dos lírios desesperados. E contava na praça: “Ele é
lindo, altão, moreno claro, tem uns olhos tão verdes como uma folha de
parreira nova. É perfumado, o homem. Deixou no ar um cheiro tão bom, que
nem dei conta de ir embora dali, até que o sol me queimou e, quando ardeu
minha pele, consegui sair andando. Ele tem as mãos longas e macias. Deram-
me calafrios. Quando cheguei em casa, tive febre a noite toda. Esse homem
veio do começo do mundo, gente!”

A aura do marido de Gertrudes crescia com fama audível, indomável. Seus


cheiros, sinais, astros, marcas estavam por todos os cantos e cantoneiras da
casa. A curiosidade de vê-lo era atiçada, fora de toda compreensão, quanto
mais casos Gertrudes cantava de Romão. De como o conhecera, do dia do
casamento, do filho que lhe morreu na barriga, porque um jacaré imenso
apareceu rolando no limpo chão.

Esse dia, Gertrudes, entrecortada de dor, pensou que fosse morrer e engomou
a mortalha que bordara em noites de espera de Romão. Inteiramente de
vidrilhos cor de água, cor de espuma, em desenhos e arabesco
geometricamente riscados e que, olhados de longe, imitavam uma biga com
sete cavalos e um cavaleiro, como aqueles antigas que corriam nos primórdios
dos tempos cristãos, na cidade de Roma, que, de tão conhecida, até pereciam-
lhe os encantos.
Era sempre e sempre um martírio sem conta, de uma fundura custosa, aquele
sofrido pelas senhoras e moças que visitavam o ateliê de costura de Gertrudes.

E ela voejava pela imensa casa como borboleta, sempre a fazer mil coisas. E,
entre uma e outra, olhava-se no espelho e contava mais um caso, e revelava
as noites de amor com aquele potro de legítima gentileza e incansável ternura.

No fim de pouco tempo, as pernas das adolescentes, das moças velhas e


novas, das donas viúvas e das senhoras casadas tremiam só de pensar em ter
de experimentar o vestido, de provar a saia plissada, ou verificar se o chapéu
melancólico, mas cheio de luz, estava em ponto de prova satisfatória.

Quem andava com a alma cheia de musgo, zumbindo resignação dolorida de


ciúme consistente, como aço, era cada marido, ou cada pai, ou cada irmão.

O perfume de Romão, sempre rarefeito, sufocava e parecia derreter os ossos e


nervos das freguesas. E Gertrudes a contar suas noites afogueadas, mostrar
os presentes e pedir mais silêncio, pois ele ressonava. Chegara novamente de
longa viagem.
A agitação interior das meninas costumava provocar câimbras nos
pensamentos delas, as coitadas, ouvintes das confidências pesadas de tão
reais, fundindo o coração e a alma, resultando daí um caldo de angustiante
desejo e curiosidade sem termo.

Às vezes, quando a ausência da viagem era maior, Gertrudes caía na cama,


inapetente, pálida e, todas as tardes, chorava inclementemente, que toda a
cidade começava a rezar para que a profunda amargura descesse o rio o
deixasse a costureira sossegada. Mas logo chegava o moço, com seus
assombros em brasa, seu perfume e paixão indecifráveis, seus suspiros que
carbonizavam até planos e bordados. Os quatro cantos da cidade pareciam
sacudidos por terremotos dolorosos de tanto carinho.

Ninguém nunca conseguia explicar o porquê da desatinada amargura que


emanava sempre e constantemente da costureira Gertrudes, estando o nobre
amo e senhor presente ou estando em suas obscuras ausências de ambulante,
mascateando miudezas raras e curiosas.
Após mais de ano de tanto martírio, meia dúzia de aventureiras insalubres e
desalmadas planejaram invadir o quarto do cavalheiro para vê-lo dormindo e
em pelo, pele, suores e suspiros.

Isso, evidentemente, quando Gertrudes fosse às compras na feira do morro ou


no mercado velho, onde costumava ficar horas piruetando entre as vendinhas,
aproveitando um gole de café, e então contava as façanhas de seu amado
distante ou presente bem dentro de sua alcova dominada pela penumbra e
cheiro de céu.

Numa manhã cravejada de mau agouro, as meninas tomaram coragem e


penetraram no imenso e silencioso recinto. O homem ressonava, coberto de
linho puro todo bordado de rosáceas de seda. Bárbara de seu Tonico, o
seresteiro afamado, acendeu a vela da cabeceira, enquanto as meninas,
devagarinho, para não despertá-lo, foram lhe tocando os linhos com a leveza
das mãos e das palavras. O resfolegar da serpente interior das fêmeas mugia
solene naquela manhã calorenta e pasmada até a raiz das nuvens.

Com vagar e doçura, foram descobrindo o rosto, os ombros, o meio do corpo


daquele homem moreno, fragilizado pelo sono, dormindo tão justo e casto. Até
que, por fim, descobriram-no por inteiro, nu, repousando na beleza de um deus
grego, tão silencioso como uma estátua perfeita e fascinante de um museu de
Tróia.

Era o dia do fim do mundo. Ele, ali, verdadeiro e completo. A menor das
moças, Ditinha de Sá Rita, tocou-lhe os lábios. Estavam frios como gelo.
Assustadas, vieram todas apalpando os cabelos de seda, os ombros cheios de
flores, o peito vigoroso de pelos lisos e dourados e os pés alvos e de perfeição
rara de se ver. Ele estava ausente de alma? Habitaria naquele instante o
mundo subterrâneo, levado pela “indesejada de todas as gentes?”
Não é possível! Abram as janelas, acendam luzes do alto, escancarem tudo
para o sol chegar! O ar fresco, restolho da madrugada há pouco morta, entrou
em cheio no aposento. E elas reviravam agora aquele homem acalentado tanto
tempo em sonhos, cercado de intenso silêncio e fragilidade exposta.

Os minutos enfraqueciam nos relógios de toda terra, para chegarem a mais


esquisita constatação: era um boneco de goma, espécie de uma borracha,
perfeito dos perfeitos.
Com mãos trêmulas e úmidas de suores, abriram-lhe com tesoura o ventre
delicado viril e incandescente. O grito soou rompendo tímpanos. Uma caixa
mecânica incrustada no plexo solar, para que os suspiros, gemidos ali
dormitassem cumprindo sua sina cronometrada. O resto era algodão com
sementes, saindo aos borbotões. Os olhos de vidro, lindos, brilhantes e
lacrimosos. As orelhas, lábios e língua feitos de matéria como uma borracha
especial e macia. Gritaram até a outra madrugada chegar. A cidade acorreu em
massa. Frei Lauro, o caolho, veio tropeçante em pura castidade, suando frio
com roxo beiço tremido.

Depois de três dias de afobação tresloucada, sentiram falta de Gertrudes.


Esvaziaram Romão, beijaram-lhe todas as partes, num misto ódio e amor, e o
partiram em pedaços nobres e pouco nobres. O perfume no ar, e Gertrudes
nunca aparecia. Cada qual pôde levar um pedaço para casa, nem que fosse
uma unha, daquele sonho deitado acima de todas as compreensões. As trevas
vieram em forma de aguaceiro sem nome, sem tempo, e provocaram mediana
enchente, lambendo pontes e pinguelas.

Uma semana depois, na prainha, bem abaixo do matadouro, estava Gertrudes,


perfeita como viva, abraçada com os agrados que buscara do seu amado.
Eram colônias, sais de banho, presentinhos e enfeites, um anel de pedra lilás,
tudo para Romão, homem de suas palavras diurnas e noturnas. Nada
sucumbiu à chuvarada e nem à enchente.

Gertrudes guardou entre os seios e braços os presentes do viajante, tudo bem


guardadinho, para aquele que havia voltado de mais uma viagem. Mas quem
pegou a estrada dessa vez foi Gertrudes, não foi o cavalheiro amoroso. A alma
de Gertrudes foi vista mais de uma vez; às vezes, tomava forma de uma
pomba sempre esperta e fria.

O corpo em nada foi maculado, mas recendia aquela antiga amargura


disfarçante, que ficou repousando por todos os recantos da cidade, vinda
daquela mulher que parecia adormecida, na curva maior da prainha, coberta de
violetas e solidão. Ninguém nunca esclareceu se a senhora Gertrudes teria
morrido na hora exata em que descobriram e violentaram seu sagrado segredo,
ou se aguaceiro lhe havia roubado a flor da vida.

Até o último momento, ao fechar o esquife, ainda possuía o frescor dos vivos, a
tristeza de quem está partindo e a saudade desmesurada de um ente querido
que perdera definitivamente.

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